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Ruy Castro

O Brasil de Nelson Rodrigues

Nelson Rodrigues ensinou-nos que toda unanimidade é


burra (quem pensa com a unanimidade não precisa
pensar), que o Brasil sofre do complexo de vira-lata e
que só os profetas enxergam o óbvio. São frases que se
incorporaram no dia a dia do brasileiro, ditas hoje por
pessoas que nunca ouviram falar dele. É a glória
suprema: as palavras de um escritor não apenas
sobreviverem a ele próprio como até o dispensarem. No
caso de Nelson, isso é ainda mais impressionante
porque, em seu tempo (1912-1980), ninguém no Brasil
foi tão censurado e proibido.

Nelson, que faria 110 anos no dia 23 de agosto próximo,


ainda é pouco conhecido em Portugal. Veja um pouco do
que ele dizia sobre o Brasil, extraído de seus artigos,
peças, contos, crónicas, romances e folhetins — quase

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todos, escritos nos anos 60 e 70, e mais atuais do que
nunca.

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“O Brasil é muito impopular no Brasil. Somos um Narciso


às avessas, que cospe na própria imagem.”

“O que atrapalha o Brasil é o próprio brasileiro. Que


Brasil formidável seria o Brasil se o brasileiro gostasse
do brasileiro.”

“Eis o nosso dilema — ou o Brasil ou o caos. O diabo é


que temos a vocação e a nostalgia do caos.”

“O Brasil não tem idade. Falta-nos tempo. Ao passo que,


em Roma, um pires, um reles pires, ou uma xícara de
asa quebrada ou mesmo uma bacia entupida, tem mil
anos.”

“Somos um gigantesco terreno baldio. Temos imensas


Sibérias florestais que jamais viram um único e escasso
brasileiro. Só uma estreita orla litorânea é habitada e,
assim mesmo, pelo banho de mar.”

“Sou um homem da minha rua, do meu bairro, da minha


cidade. Não viajo para fora do Brasil nem para dentro do
Brasil.”

“O Brasil precisa ser feito e nós não o fazemos.”

“Existe uma aldeia espanhola em que as mulheres são


quase bonitas, os homens quase honestos, as esposas
quase fiéis e os ladrões quase ladrões. O Brasil lembra

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muito essa aldeia espanhola. Estamos sempre nos
subúrbios de uma plenitude e lá não chegamos. E quase
fazemos as coisas vitais e realmente não as fazemos.”

“O brasileiro não está preparado para ser ‘o maior do


mundo’ em coisa nenhuma. Ser ‘o maior do mundo’ em
qualquer coisa, mesmo em cuspe à distância, implica
uma grave, pesada e sufocante responsabilidade.”

“Nosso traço mais vivo e característico é a tendência


para a autonegação. Qualquer vago insucesso induz o
brasileiro a flagelar-se a si mesmo. Um símbolo pessoal
e humano do Brasil é aquele sujeito que vivia
anunciando: ‘Eu sou uma besta! Eu sou um quadrúpede
de 28 patas!’ Não lhe bastava ser uma besta, não lhe
bastava ser um quadrúpede — precisava,
intransigentemente, das 28 patas bem ferradas.”

“O brasileiro chamado ‘doutor’ treme em cima dos


sapatos, seja ele rei ou arquiteto, pau-de-arara,
comerciário ou ministro.”

“Qualquer brasileiro é suscetível ao pequeno suborno.


Tenho um amigo que conquistou uma senhora
inatacável com uma entrada de cinema! Se fosse um
colar de pérolas, ela teria metido o presente na cara do
tarado e lhe dado uma surra de pérolas. Mas por um
nada o brasileiro se compromete ao infinito.”

“Subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de


séculos.”

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“Só os subdesenvolvidos ainda se ruborizam. Ao passo
que o grande povo é, antes de tudo, cínico. Para fundar
um império, um país precisa de um impudor sem
nenhuma folha de parreira.”

“Ponham um inglês na Lua. Na árida paisagem lunar, ele


continuará mais inglês do que nunca. Sua primeira
providência será anexar a própria Lua ao Império
Britânico. Mas o subdesenvolvido faz um imperialismo às
avessas. Vai ao estrangeiro e, em vez de conquistá-lo,
ele se entrega e se declara colónia.”

“Um idiota em inglês, francês, alemão, italiano, já é


menos idiota e talvez seja, em certos casos, um génio.”

“Não há no mundo elites mais alienadas do que as


brasileiras.”

“O brasileiro é o único povo que faz piada de tudo. Se


não temos um vampiro, estejam certos — é a piada que
torna inviável um Drácula brasileiro.”

“A única miséria que acha graça de si mesmo é a nossa.


Sim, há por vezes, na miséria brasileira, um cinismo
épico. O povo que conserva, no subdesenvolvimento,
um humor gigantesco é miserável, mas não derrotado.”

“O brasileiro é um feriado.”

“Normalmente, o brasileiro é um fauno de tapete. Só


usamos sapatos para disfarçar os nossos pés de cabra.”

“Ao contrário do que se pensa, o Brasil nem sempre foi


um país tropical. No tempo de Machado de Assis, o
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sujeito andava de fraque, colete, colarinho duro,
polainas, o diabo. As santas e abomináveis senhoras da
época se cobriam até o pescoço. Em suma — o brasileiro
vestia-se como se aqui fosse a Sibéria, o Alasca. Hoje,
não. Procura-se um fraque e não se encontra um fraque.
Os mais vestidos andam seminus. No passado, o sujeito
que entrasse sem gravata num bonde era de lá expulso
a patadas. E, agora, anda-se de biquíni nos lotações. Um
sol hediondo vai derretendo as catedrais e amolecendo
os obeliscos. Não há dúvida — somos, finalmente,
tropicais.”

“Sou um brasileiro canicular. Só entendo o verão.”

“Com o tempo e o uso, todas as palavras se degradam.


Por exemplo ‘liberdade’. Hoje, ‘liberdade’ é a mais
prostituída das palavras.”

“Antigamente, o brasileiro só usava o palavrão por uma


necessidade vital irresistível. Havia entre um e outro
uma distância, uma cerimónia, uma solenidade. Hoje,
senhoras patuscas, donas de casa cheias de filhos,
meninas de catorze anos, usam o palavrão como quem
respira. Conseguimos corromper o palavrão.”

“O Brasil gaba-se de ser uma democracia racial. No


entanto, poderíamos indagar uns dos outros: ‘E os
negros? Onde estão os negros?’ É uma pergunta sem
resposta. As casacas estão aí, e os vestidos de baile, os
cargos, as funções, as estátuas. Mas, no Brasil nunca se
viu um negro de casaca, nunca se viu uma estátua
equestre de negro, nunca se viu um grã-fino negro.

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Enquanto um sábio negro não puder ser nosso
embaixador em Paris, nós seremos o pré-Brasil.”

“Tomem nota: ainda seremos o maior povo ex-católico


do mundo.”

“Todas as cidades pecam, menos Brasília. Em Brasília,


todos são inocentes e todos são cúmplices.”

“Eu me nego a acreditar que um político, mesmo o mais


doce político, tenha senso moral.”

“Hoje é muito difícil não ser canalha. Todas as pressões


trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo.”

“No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no


dia seguinte.”

“O Brasil deixou de ser o Brasil. Hoje estamos sendo


esmagados pelo anti-Brasil.”

“Quando os amigos deixam de jantar com os amigos por


causa da ideologia, é porque o país está maduro para a
carnificina.”

“O brasileiro tem suas trevas interiores. Convém não


provocá-las. Ninguém sabe o que existe lá dentro.”

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