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Ezio Flavio Bazzo

Mendigos
Párias ou heróis da cultura?
EDITORA
JhífI______
Os comerciantes mandam matá-los para
que não fiquem ali nas escadas de seus
negócios. Os adolescentes os queimam
vivos nas paradas de ônibus e os gover­
ISBN 978-85-7238-418-6
nantes os enfiam em trens, caminhões
ou em carroças e os despacham para
seus vilarejos de origem de onde tam­
bém já foram banidos. Os padres os 9 7 8 8 5 7 2,l3 84 1 86

excomungam quando os surpreendem


cagando nos fundos das catedrais, a
polícia e os “seguranças” dos prédios os
acossam dia e noite. Se precisam de uma hospitalização são tratados
como porcos e com horror. São vistos nos semáforos aos pedaços, como
bufões decadentes, trémulos de embriaguez e de fome. Depois desapa­
recem e são encontrados mortos nos terrenos baldios, o crânio amassa­
do por uma pedra ou por um cabo de machado. A sociedade perdulária e
extravagante os detesta mesmo mortos e os expurga implacavelmente
até mesmo de sua memória, mas eles “milagrosamente” resistem. Não se
rendem. Apesar de todas as canalhices, estão por todos os lados.
Seguem dizendo não ao trabalho, não à sujeira política, não à corrida
idiota do cotidiano em direção ao nada e cospem sobre as propostas
estatais ou clericais de “readaptá-los” ou de “normatizá-los”.
1L2WW

Sorte que escrita, a merda nào fede! Do


itrário... Produzido na década de 80. - no
auge de minha própria “mendicância” - este
livro faz um percurso pelo mundo insólito dos
indigentes, dos desterrados, dos fodidos e da
escória humana. As aventuras de Jack London,
de Kerouac, de Genet, de Rimbaud e de outros
contadores de balelas, perto das dos mendigos
que conheci não passam de peripécias de
garotinhos mimados. Antes de mais nada - para
poupar grunhidos, fel e presságios de infortúnio
aos guardiães do establishment - quero deixar
claro que este trabalho nào pretende ser
nenhuma epopéia, nenhum tipo de ensaio
“científico” e muito menos concorrer às
premiações fajutas que são promovidas
semestralmente por vigaristas da mídia, da
cultura e das multinacionais. Essas missões serão
muito melhor executadas pelos milhares de
escriíorzinhos Phds e picaretas que desde a
Ezio Flavio Bazzo

Mendigos
Párias ou heróis da cultura?

"Entre tanta mentira e tanta fraude é reconfortante contemplar os men­


digos. Eles, pelo menos, não mentem nem se enganam. Sua doutrina, se
é que têm alguma, a encarnam eles mesmos. Não gostam de trabalhar
e o demonstram na prática. Como não desejam possuir nada, cultivam
seu desprendimento, condição de sua liberdade. A preguiça faz deles
autênticos liberados, perdidos em um mundo de palhaços e de otários.
Sobre a renúncia sabem muito mais que muitos de nossos padres, pas­
tores e mestres, sem contudo, terem lido nenhuma obra esotérica".
E.M. Cioran

LGE
EDITORA

Brasília, DF
Copyright © LGE Editora, 2009

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Editor
Antonio Carlos A. Navarro

Autor
Ezio Flavio Bazzo

Designer da capa
Marcus Polo Rocha Duarte

Programação visual
Samuel Tabosa de Castro

Impressão e acabamento
LGE Editora Ltda

Foto da capa
Cláudia Neves Lopes

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte desta publicação poderá ser armazenada ou reproduzida
por qualquer meio sem a autorização por escrito da Editora.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

Bazzo, Ezio Flavio.


Mendigos, párias ou heróis da cultura? / Ezio Flavio Bazzo; Brasília :
LGE, 2009.
203 p. il.; 21 cm

ISBN 978-85-7238-418-6

1. Literatura, sociologia, psicologia. Brasil. I. Título.

CDU 82; 821


316
159.9

"Se não posso ter o destino mais brilhante, quero o mais miserável, não
para uma solidão estéril, mas afim de obter, de tão rara matéria, uma
obra nova. E se a metempsicose me conceder um nova moradia, escolho
esse planeta maldito, habito-o com os forçados da minha raça. Entre
pavorosos répteis, vou à procura de uma morte eterna, miserável, em
trevas cujas folhas são pretas, a água dos pântanos espessa e fria, o sono
me será negado. Ao contrário, cada vez mais lúcido, reconheço a imun­
da fraternidade dos crocodilos sorridentes".
Jean Genet
I

"Desde el fondo del corazón odio la tumba


de los grandes seíiores y sacerdotes, pero ódio
aún más a aquellos que se comprometeu con ellos"
Holderlin
■ *

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•'^

*Wj
CAPITULAÇÃO

Da mesma maneira que a loucura, as doenças do sexo, a


bruxaria, o terrorismo e o ateísmo, a mendicância sempre foi
vista por nossos ditadores de direita, de esquerda e do centro,
como algo vindo, no mínimo, das profundezas do inferno, lugar
onde os diabos, saudáveis e cínicos, vivem às gargalhadas sob
o signo do prazer, em um bacanal eterno...
Nos escritos de quase todos os séculos, mais recente­
mente nos de Foucault encontramos relatos, anedotas e da­
dos históricos inacreditáveis sobre esse assunto, dados que
não poderiam ser omitidos na introdução de um trabalho
desta natureza. Em 1532, por exemplo, o Parlamento de Pa­
ris mandou prender os mendigos e os obrigou a trabalhar
nos esgotos da cidade, amarrados dois a dois por correntes.
Alguns anos depois, uma decisão do mesmo Parlamento
decidiu que os mendigos seriam chicoteados em praça pú­
blica, marcados nos ombros, a cabeça raspada e expulsos da
cidade. Para impedí-los de voltar, arqueiros foram instalados
no telhado das moradias e nos portões da muralha da cidade.
Um século mais tarde outro Decreto Real criou o Hospital
Geral, cujo objetivo era confinar e internar a "mendicância e a
ociosidade", bem como todas as outras formas de desordens.
O Parágrafo 9 desse Decreto que era lido nas ruas dizia:

[Fazemos expressa proibição a todas as pessoas de todos os sexos, lugares


e idades, de toda qualidade de nascimento e seja qual for sua condição,
válidos ou inválidos, doentes ou convalescentes, curáveis ou incuráveis,
de mendigar na cidade e nos subúrbios de Paris, ou em suas igrejas e
em suas portas, às portas das casas ou nas ruas, nem em nenhum lugar

n
público, nem em segredo, de dia ou de noite... sob pena de chicotcamento
para os transgressores na primeira vez, e pela segunda vez as galeras
para homens e meninos e banimento para as mulheres e meninas].

Uma semana após o Decreto, foi celebrada uma missa na


igreja Saint-Louis de la Pitié e no outro dia, já pela manhã,
a polícia começou a caçar os mendigos e a mandá-los para
o hospital, para internamento. A mendicância e a vagabun­
dagem passavam a ser tratadas como uma enfermidade. E
a vagabundagem era tanta naquele momento histórico que
apenas quatro anos depois, a famosa Salpêtriêre abrigava 1460
mulheres e crianças. No Hospital da Misericórdia havia 98 me­
ninos, 897 moças entre 07 e 17 anos e 95 mulheres. Em Bicêtre,
1615 homens; na Savoiuierie, 305 meninos entre 08 e 13 anos.
E essa caça aos mendigos era sempre precedida de Decretos,
explicações, teorias, crenças, postulados moralistas e fraudu­
lentos engendrados nas sacristias e nos palácios. Para Santo
Ambrózio - por exemplo - "...Essa desordem da vida ociosa
era uma segunda revolta da criatura contra Deus".
E prosseguiam as teorias:
I
I "A libertinagem dos mendigos chegou a um ponto extremado através
l de um infeliz abandono a todas as espécies de crimes, que atraem a
maldição de Deus sobre os Estados quando não punidos." (...) "Tendo
a experiência mostrado às pessoas que se ocupam com as obras de ca­
ridade que vários dentre eles, de um e outro sexo, moram juntos sem
casamento, que muitos de seus filhos não são batizados, e que vivem
quase todos na ignorância da religião, no desprezo pelos sacramentos
e no hábito contínuo de todas as espécies de vícios." (...) "Se foi pos­
sível submeter os animais ferozes, não se deve desesperar de corrigir
o homem que se perdeu." (...) "A terra não tinha pecado, e se ela é
maldita é por causa do trabalho do homem maldito que a cultiva." (..)
"Inimigos de boa ordem, vagabundos, mentirosos, bêbados, impudicos,
que não saberiam ter outra linguagem que não a do demónio, seu pai.
(...) A ralé e o rebotalho da República, não tanto por suas misérias
corporais, de que devemos ter compaixão, quanto espirituais, que nos
horrorizam." (...) "Assim como é indecoroso para um pai de família

12
permitir a alguém em sua morada confortável a desgraça de estar nu
ou coberto de andrajos, do mesmo modo não convém que os magistra­
dos de uma cidade tolerem uma condição na qual os cidadãos sofram
fome e miséria." (...) "E ninguém será tão fútil, nem quererá parecer
tão pernicioso aos olhos do público, que dê esmolas a esses mendigos
ou os encorage."

Na Inglaterra não foi diferente. Enrique VIII (1530); Eduar­


do VI (1547); Isabel (1752); Jacob I etc., todos foram implacáveis
com os que não trabalhavam e, ainda por cima, mendigavam.1
E não pensem que de lá para cá as coisas mudaram, que o
destino desses homens desterrados seja hoje menos trágico
que ontem. Os comerciantes mandam matá-los para que não
fiquem ali nas escadas de seus negócios. Os adolescentes os
queimam vivos nas paradas de ônibus. Os governantes os en­
fiam em trens, caminhões ou em carroças e os devolvem para
seus vilarejos de origem de onde também já foram banidos. Os
padres os excomungam quando os surpreendem cagando nos
fundos das catedrais, a polícia e os "seguranças" dos prédios
os acossam dia e noite. Se precisam de uma hospitalização são
tratados como porcos e com horror. São vistos nos semáforos
aos pedaços, como bufões decadentes, trémulos de embriaguês
e de fome. Depois desaparecem e são encontrados mortos nos
terrenos baldios, o crânio amassado por uma pedra ou por
um cabo de machado. A sociedade perdulária e extravagante
os detesta mesmo mortos e os expurga implacavelmente até
mesmo de sua memória, mas eles resistem "milagrosamente".
Não se rendem. Apesar de todas as canalhices, estão por todos
os lados. Seguem dizendo não ao trabalho, não à sujeira política,
não à corrida idiota do cotidiano em direção ao nada e cospem
sobre as propostas estatais ou clericais de normatizá-los. Filhos
de Caim, para uns e representantes de Lázaro, para outros.
As ruas de São Paulo estão repletas. As do Rio nem se fala.

1 Isto tudo está em detalhes na obra chata mas imprescindível do Velho Marx que, aliás,
também viveu durante décadas como um verdadeiro clochard. Ver o relato histórico dos
mendigos e da repressão da época em detalhes no Capítulo XXIV La llamada acumulación
originaria, da página 607 à 629. EI Capital, FCE, México, 1980.

13

i
O país inteiro os abriga contra a vontade, os detesta e os oculta.
A França de hoje tem o desgosto de tê-los aos montes. Roma aca­
ba de abrir redes de restaurantes para saciá-los e apaziguá-los.
Atenas, Istambul, Israel, o Cairo. Nova Iorque está infestada,
os países latino americanos já não sabem mais quem é quem, a
índia já passou a considerá-los até seres iluminados. Estão por
todos os cantos do planeta, loucos egocêntricos ou tuberculo­
sos egoístas2, não dirigem a palavra a ninguém, vivem rindo
ou em prantos sem medo de escancarar a boca desdentada.
O riso deve ser o último recurso de suas vidas, uma espécie de
antidoto contra a dor, o niilismo e o desespero. Seja qual for
o continente, estão lá, as mãos sempre arquitetando o mesmo
gesto, o mesmo olhar, as mesmas feridas causando o mesmo
asco aos caipiras elitizados que, com um silêncio ofensivamente
cúmplice, também fizeram de suas vidas um contínuo e perpé­
tuo festival de mendicâncias. Sem cair na mesmice carola dos
escritores profissionais, quero dedicar este trabalho em primeiro
lugar, aos milhões de mendigos que, consciente ou inconscien­
temente vivem de migalhas, de restos e de humilhações neste
país. Sim, em primeiro lugar aos milhões de mendigos que
l vêm mendigando habitação, trabalho, saúde, comida, respeito,
salvação e dignidade há séculos. Em segundo lugar, aos outros
i milhões de ex-mendigos que compõem hoje a população brasi­
jI leira estes, formados por comerciantes, políticos, latifundiários,
estrangeiros, religiosos e outras aves de rapina, quase sempre
responsáveis diretos pelo pauperismo, pela indigência e pela
degradação dos demais. Em terceiro lugar, aos monstros que
edificaram essa "praça dos milagres" e que do fundo de seus
túmulos ainda continuam definindo as diretrizes e as políticas
de Governo. Em quarto lugar, aos religiosos de todas as laias e
de todos os naipes, esses mentirosos vampiros de almas que,
com sua sujeira absolutista alimentam-se das dores, do sangue,

2 Num livreto de Joseph Gabei intitulado Mensonge et maladie mentale, alguém havia
sublinhado: “le tuberculeux crônique est parfois un étre égoiste; le maladc mental serait
plutôt un égocentrique. L*égoisme est un phénomène moral; legocentrisme est, avant
tout, un phénomène logique et ontologique. Avec légoiste le dialoque reste possible, avec
1’égocentrique il n’y a pas de dialoque possible. Edition Allia, pp. 13-14, Paris, 1995.

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da ignorância e das lágrimas do populacho. Em quinto lugar, a
todos os vereadores, prefeitos, deputados, senadores, ministros
e presidentes desse país, responsáveis tanto pelas feridas dos
indigentes, como pela anomalia mercantil, pelo analfabetismo,
pelas endemias e epidemias que degradaram esse povo. Em
sexto lugar, aos professores, aos médicos, aos economistas e aos
militares que, por egoísmo, por avareza ou por uma idiossincra­
sia fascista, viabilizaram essa caricatura de país e essa caricatura
de sociedade. Em sétimo lugar, aos intelectuais, aos músicos e
aos artistas em geral, que seguiram escrevendo, compondo e
atuando como se nada estivesse acontecendo. Em oitavo lugar,
a todos os covardes da América Latina que têm fascínio pelas
pompas oficiais e que mesmo espoliados e subjugados, sempre
sugeriram a "paciência", a "conciliação", a "espera", a balela
cristã e a "via democrática"... Em nono lugar, aos burocratas,
servidores públicos e outros parasitas do gênero que, por
esclerose múltipla, por demência precoce, por pieguice e por
alcoolismo crónico, sempre fizeram o papel da "prostituta", da
"proxeneta" e do "cornudo", aplaudindo e elogiando, e com
isso consolidando uma por uma todas as ditaduras e todas as
draconices de seus amos. Em décimo lugar, a todas as mães e
a todos os pais que, sabendo ou não que a terra é a privada do
diabo seguem cruzando como búfalos e criando seus filhos para
serem políticos, bandidos, torturadores e alcaquetes... Por fim,
dedico novamente este trabalho a todos os indigentes do orbe.
Sim, a eles, que já poderiam ter marchado sobre seus opressores
e os esmagado sumariamente apenas com os humores de sua
imundice.

15
"A sociedade se compõe de duas grandes classes: os que têm mais
jantares que apetite e os que têm mais apetite que jantares."
N. de Chamfort

Antes de mais nada - para poupar grunhidos, fel e pres­


ságios de infortúnio aos guardiães do establishnient - quero
deixar claro que este trabalho não pretende ser nenhum tipo
de trabalho "científico" sobre os mendigos e muito menos
concorrer às premiações fajutas que são promovidas anual­
mente por vigaristas e por multinacionais. Essas missões serão
muito melhor executadas pelos milhares de Phds picaretas que
desde a inquisição até a Ditadura Militar ocuparam milímetro
por milímetro os espaços cults, acadêmicos, empresariais, uni­
versitários etc, e que, segundo recentes denúncias, além dos
pacotes de contra-cheques que empilham compulsivamente
sobre os "búrôs", não estão produzindo absolutamente nada de
aproveitável. Pelo contrário estão transformando o cotidiano e a
principalmente universidade, nada mais nada menos que num
festim de charlatães, de burocratas e de incompetentes. Também
não pretende ser um tratado religioso glamourizado, puritano,
beato ou beneficente sobre os "desterrados", os "miseráveis", os
I
"imprestáveis", os "despossuídos" e pedintes do planeta. Essa é
i outra missão que não cabe a mim, mas sim à Santa Madre Igreja
ii e a seus eunucos, a ela e a seus marqueteiros que têm usado os
4 mendigos para incrementar sua demagogia de caridade, seus
albergues, suas sopas, suas bastardices falsamente pacifistas3
e sua metafísica piegas.
Nesta centena de páginas não se teve a mais mínima pre­
ocupação de saber se os mendigos estão dentro da categoria
do lupemprolariado, se fazem parte do Exército Industrial de
Reserva, de uma underclass, se constituem um ethos, se são
dementes, se são descendentes do sêmen de Caim, se já foram
barbeiros, coroinhas, banqueiros ou proxenetas, isso, como

3 Num dos textos de Debord podemos ler: “O mundo da guerra tem pelo menos a vantagem
de não tolerar as néscias tagarelices do otimismo. É sobejamente sabido que no fim vão
todos morrer, que, como dizia Pascal, o último ato é sangrento, por mais excelente que
I
seja a defesa" Guy Debord, Panegírico, Ed. Antigona, p 70, Lisboa, 1995.

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já disse, são preocupações e balelas de outros profissionais,
principalmente, daqueles que para conseguirem uma bolsa de
estudos em Cambridge ou em Louvan, são capazes de parafra­
sear o Kapital de Marx ou as quatro mil páginas de Freud, em
menos de um trimestre.
Este trabalho não simpatiza nem antipatiza com os mendi­
gos, não os vê nem como párias repulsivos nem como heróis,
nem como nada. Se são santos como Lázaro, traidores como
Judas ou implacáveis como Caim; se são o excremento do
capitalismo ou a semente fértil do socialismo; a evidência da
degeneração da espécie ou um tipo novo de indivíduo; se são
o resultado nefasto da moral cristã-burguesa, o primeiro passo
para a revolução radical de todos os valores ou o principio do
fim, isso, insisto, são coisas que cada leitor e cada observador
terá que entender por si mesmo. Agora, uma coisa é certa: o
fervor quase afrodisíaco por dejetos que caracteriza essa Ordem
Monástica de Indigentes nos obriga a olhá-la com uma atenção
especial. Admiro a forma como se relacionam com a sujeira,
com o nomadismo, com o lixo, com as próprias tripas e mais
ainda com a indiferença que professam para com os árbitros
da verdade. Admiro o cinismo, a eutanasia e o desprezo que
professam por tudo aquilo que a sociedade "normal" gastou 7
mil anos para construir e organizar. Sim, essa filosofia kamicase
é algo digno de admiração e de interesse, algo fascinante, que
merece muito mais que algumas fotos e que alguns textos. Essa
prática "agnóstica" e essa praxis "niilista", exposta livremente
nas ruas e nos becos deveria ser tema de Encontros Internacio­
nais, de Aulas Magnas, de Congressos e até mesmo de Canoni­
zação por parte do Vaticano. Aliás, alguém já viu um mendigo
ser canonizado? Quem sabe olhar e ver tem nesses personagens
a cristalização de tudo o que fez e padeceu a humanidade, a
civilização, o homem-sapo. O certo é que diante deles, com seu
obscurantismo de horrores, a idéia de iluminismo parece uma
balela e que os noventa volumes nauseabundos de Lenin, as
estórias balzaquianas, os mil e um porres do Oriente, a falácia
da medicina, da sociologia, da história, tudo está condensado
ali, naqueles corpos vadios que não têm rumo, nem lei, nem

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destino e nem mesmo uma pedra onde descansar o crânio...
Todas as religiões, colocadas em fila não seriam mais do que
merda desidratada quando interpretadas à luz ou à sombra
de um simples mendigo de cócoras, sejam elas Confucianas,
Budanas, Cristianas ou Luciferianas. O livro dos mortos, as
enciclopédias de gerontologia, os símbolos de Jung, as leis de
Lombroso e os Códigos Penais perto do "saber" desses seres
não passam de bulas ridículas para distrair ou para anestesiar
a bestalharia humana. O capital, a riqueza, a escolaridade, a
estética, as maneiras de bem viver e a "finesse aristocrática"
simulada por grande parte de nossos diplomatas, ministros,
Presidentes e outros caipiras do gênero, não suportam nem
por um minuto o olhar de um desses lobos desgarrados que,
com mãos idênticas às garras de um javali remexem a porcaria
das patentes, as sobras das mansões, o lixo hospitalar e a caca
que desce pelo esófago dos luxuosos edifícios onde habita a
sociedade "nobre", "sóbria" e "trabalhadora".4 A polícia os
pressiona, os confina em albergues, os despacha para outros
estados ou para outros países, mas eles voltam. Teimam. Re­
sistem. Parecem saber-como dizia um tal de B. Franklin -que
pequenos golpes derrubam perobas e carvalhos.
i
A experiência de fotografá-los e de ouví-los ali na esquina
I de casa ou pelo mundo afora, mendigando por mendigar, como
intrusos, se comparada à experiência que deve ter tido o Frade
< Savanarola ao degolar milhares e milhares de aborígenes ame­
ricanos, claro que não significa nada e que é até vexatória, mas
foi uma "aventura" transcendente e insólita. Uma empreitada
cheia de imagens inéditas e únicas, onde realidade e ficção não
I se distinguem, imagens que são desconhecidas e negadas pela
quase totalidade da população sedentária e preocupada apenas
com suas ignóbeis tripas e com sua ignóbil aparência.

4 Segundo Louis Ernest Borowski, “Kant jamás daba limosna a los mendigos que encon-
traba. Una vez, micntras paseábamos, fuímos solicitados por un joven que nos impedia
charlar. Kant me arranco de la mano unos cuantos centavos que yo quise dar ,a aqucl
mendigo para libramos de su presencia y, en cambio, le propino un bastonazo. Ver EI
estupidiario de los filósofos» Jean-Jacques Barrère y Christian Roche, Ed. Catedra, p. 196,
Madrid, 1997.

18
Observem - apenas por curiosidade - como ninguém "nor­
mal" fixa o olhar demoradamente sobre um desses profissionais
da rua. Como ninguém nem sequer os percebe, como se eles e
seus trapos fossem invisíveis, mera alucinação, sombras fugidias
nos becos! Uma mulher esquelética lava seus trapos na fonte de
um jardim e de vez em quando dá uma baforada em seu cigarro
de palha com uma arrogância que lembra Joana DzArc.
Encolhidos aí i nos fundos das rodoviárias ou nos degraus
das basílicas em sua recessão afetiva vão se cercando de porca­
rias, sacos, latas, caixotes, ferros velhos e até cachorros5 como
se em seus delírios estivessem construindo uma casa, uma
comunidade, um abrigo, um lixão6, uma tumba. A indigência
pela indigência, a mendicância como uma postura filosófica
recheada de "paranóia-crítica".7 Estatuto do dejeto. Filosofia do
5 Quem é que ainda não viu um daqueles mendigos que vive pelas ruas ou confinado em
cortiços de beira de estradas cercado por sete ou oito cachorros? A isto os doutores deno­
minaram poeticamente de: Sindrome de Noé. Uma referência ao mito do dilúvio c da arca.
6 Termo usado pelas áreas psi ou mesmo pela antropologia para referir-se àqueles sujeitos
que vivem no abandono, nas ruas ou em suas próprias casas e que vão se cercando de
montanhas de lixo, objetos obsoletos, jornais, caixas, etc., com a crença de que um dias
eles podem vir a ter alguma utilidade. Principalmente pessoas idosas. Não são poucos os
mendigos que já foram internos em manicômios judiciais, hospícios, cadeias ou albergues
do gênero. Antes de serem diagnosticados “doentes mentais” ganhavam a vida como ven­
dedores ambulantes. Já venderam espelhos, alho, sorvete, espanadores, gaiolas de pássaros,
veneno para matar baratas. Um deles me relatava seus terrores noturnos. Não dormia.
Ouvia passos sobre o telhado ou pelo lado de fora do barraco. Na soleira de seu cortiço
apareciam monstros diferentes de todos os descritos ate agora. A morte sempre rondava
seus passos. A angústia devorava-lhe o peito. Tremia, tinha certeza que iria morrer. Só
meia garrafa de cachaça ou mesmo de álcool puro resolvia seu problema. Mas tudo voltava.
Não havia reza, remédio ou pinga que resolvesse. Implorava pela mãe desaparecida há
décadas e, no mais absoluto dos desamparos, passava as noites agarrado a sua pequena
cadela, uma guapequinha vadia como ele, que lhe dedicava uma verdadeira idolatria.
E quase todos aqueles iletrados indigentes que compartilhavam a rua com ele tinham algo
semelhante. Mas, apesar de ameaçarem, ninguém se matava. Parece unânime entre eles o
preconceito a respeito do suicídio. Seria de ordem social, religiosa, moral ou pura covardia?
Querer continuar vivo seria um sintoma de quê entre esses desgraçados? Enquanto o ouvia
ia pensando que o suicídio - como lembrava Thomas Szasz - é um direito fundamental
da pessoa e que interditá-lo é um ato de loucura c de desprezo do ser humano. Quando,
acidentalmcnte, faziam contato com a morte de um companheiro de marquise choravam
como crianças c, no outro dia, iam já bêbados ao cemitério, procuravam a ala dos indigentes
c colocavam um toco de vela na cova ainda com terra remexida.
7 Dizem que essa expressão se deve ao pintor Catalão, Salvador Dali. Em seu livro Asno
podre. Dali menciona a paranóia-crítica como uma percepção e uma interpretação (além
de doentia) crítica e real dos fatos.

19
deboche e com as calças esmerdeadas como se fossem parentes
e discípulos de Diógenes.
Enquadrá-los a vinte ou a 2 metros de distância, sempre
provoca prazer: os olhos remelentos, os dentes em frangalhos,
a boca maquiada de escárnio, a sujeira tomando conta de
tudo, uma ferida que não cicatriza, os piolhos passeando e se
acasalando pelas sobrancelhas, as pupilas escondidas que se
movem, que acompanham a marcha grotesca dos pedestres, a
bunda gelatinosa das mulheres ou o bolso recheado dos trouxas
e dos tecnocratas.
Há uma serenidade incrível por debaixo de todo esse es­
petáculo outsider e não se trata pura e simplesmente de uma
exclusão social - como cacarejam os sociólogos - mas de uma
inclusão no último degrau do galinheiro.
Há uma convicção medonha e uma certeza que atrai e que
perturba nesse palco nómade, tanto é, que ninguém pára para
ouvir, para falar ou para perguntar o que quer que seja. No
máximo arremessam-se moedas, notas, escapulários, roupas
velhas, restos, folhetos sobre cidadania, e se evita correr os
olhos pela gangrena de uma perna, pela hérnia exposta, pela
hanseníase avançada, pelas mãos carcomidas, pela sujeira se­
cular8. Lógica brutal e cínica através da qual se nega o fiasco
I
existencial que eles denunciam ao mesmo tempo em que se
fortalece silenciosamente o antigo conceito que deturpa.
I
Um fanático reza baixinho, deixa um desenho da Virgem
Santíssima no chapéu querendo subverter o satanismo próprio
das ruas e desaparece entre a turba de assalariados. Não quer
envolver-se em celeuma nenhuma. Os mendigos riem, tomam
um trago de cachaça disfarçada dentro de uma garrafa de leite,
buscam piolhos e carrapatos nos pentelhos, deixam-se ficar ao
léu, sem pressa para absolutamente nada. Logo depois, como
ressonância de seu desamparo (existencial) também começam
a fumar crack, a cheirar sub cocaína, éter. Como não precisam

8 Usando a frase de Euclides da Cunha: “mercê da proverbial indiferença com que nos
volvemos às coisas desta terra, com uma inércia cômoda de mendigos fartos. Os Sertões,
Ediouro, p.41, SP, 2009.

20
mais de nenhuma camuflagem enfiam publicamente até merda
na corrente sanguínea querendo, evidentemente, demolir-se e
buscando um atalho para o fim.
Mergulhados em seus guetos, em seus jardins de d'Allah
ou em seus esgotos, não devem porra nenhuma a ninguém e se
devessem não pagariam! Não desejam merda nenhuma deste
manicômio e se desejassem seria em vão, pois nunca teriam
acesso ao objeto de seu desejo! Não trabalham, e se trabalhas­
sem seriam apenas escravos em algum quilombo, na mansão
de um novo rico ou em alguma senzala da modernidade.9 Não
existem em nenhuma estatística formal, no máximo, constam
no cadastro de alguma igreja ou de algum centro espirita
oportunistas, mas estão aí decorando as ruas de São Paulo, do
Cairo, de Roma, de Brasília, de Nova Iorque... as cidades de
Salvador e de Bombaim são referências. De um momento para
outro aparecem... De um momento para outro desaparecem
mágica e misteriosamente. Correr atrás deles é comprovar o
tempo todo que, como dizia Henry Miller, aquilo que não está
em plena rua é sempre falso, mentiroso, canalha, inventado ou, em
outras palavras, pura literatura.
Anoitece. As luzes mudam o colorido e a imagem das
avenidas e dos labirintos urbanos e lá vão eles, no velho rito da
indigência, trôpegos, por entre as vadias, no meio dos travestis
e dos bandidos, uns com um bastão na mão direita como se de
fato com ele tivessem assassinado a Abel. Vão levianos, quase
arcados pelo vento e pelas trevas rente às vitrines e aos caixotes
de lixo com os farrapos balançando à sombra... Não querem
esculpir nada, nem no bronze e nem na bosta. Analfabetos
crónicos ainda não descobriram a escrita. Mas isto não é grave,

9 Como já escrevia Paul Lafargue: “E1 mezquino Dios de los judios y de los cristianos
castiga con su maldición a la descendencia de Caim, y la destina a provecr de esclavos
a la clasc dirigente. EI pensador enciclopédico de la filosofia helénica, Aristóteles,
manifesta que, por naturaleza, los hombres son esclavos, y al mismo tiempo les niega
la posibilidad de tener igualdad de derechos con los ombres libres, los privilégios. En
sus tragédias, Euripides trasunta una moral servil. Y san Pablo, san Agustín y el resto
de los padres de la Iglesia ensenan a los esclavos que deben practicar una total sumisión
a los duenos de la tierra si es que anhelan conseguir la gracia del dueno celestial”. Ver
Porque cree en Dios la burguesia, Ed. Leviatan, p. 82, Buenos Aires, 1985.

21
porque, talvez, como escreve Ricardo Paseyro, "a biblioteca sem
livros é o símbolo ideal de um mundo sonâmbulo''.10
Entre tanta mentira e tanta fraude-dizia Cioran-é recon­
fortante contemplá-los. Eles, pelo menos, não mentem nem se
enganam. Sua doutrina, se é que têm alguma, a encarnam eles
mesmos. Não gostam de trabalhar e o demonstram na prática.
Como não desejam possuir nada, cultivam seu desprendimento,
condição de sua liberdade. A preguiça faz deles autênticos libe­
rados, perdidos em um mundo de palhaços e de otários. Sobre
a renúncia sabem muito mais que muitos de nossos padres,
pastores e mestres, sem contudo, terem lido nenhuma obra eso­
térica". Descobrí-los, acompanhá-los e mostrá-los ao mundo,
me proporciona uma alegria secreta. Uma espécie de vingança
e de prazer por saber que suas existências contrapõem violen­
tamente a baboseira reacionária e retrógrada dos almofadinhas
otimistas da cultura e que em cada esgoto, em cada esquina,
em cada catedral, um deles patrulha, formando um verdadeiro
exército clandestino, uma brigada vermelha internacional de
homens que se não se filiaram a nenhum grupo terrorista pelo
menos colocaram uma bomba na própria alma!11
I
Cagam e mijam na rua, copulam a céu aberto, deixam
I apodrecer as mandíbulas, inchar os pés, entupir os ouvidos...
i
Não fazem parte nem do tempo linear nem do tempo cíclico.
I
i
Não sabem nada de estruturalismo e muito menos de descons-
trutivisnio. Não dispõem de Planos de Saúde e os hospitais
não querem vê-los nem de longe. Resistem até a morte para

I 10 Elogc de lanalphabétisfne, Robert Laffont, prólogo, Paris 1989.


11 Sempre que acontece um crime por aí (pedofilia, furto, vandalismo, assassinato)
o olhar e as botas da polícia recaem antes de tudo sobre os moradores de rua, os
mendigos, o esmoler da esquina. Descobre rapidamente que são quase todos discí­
pulos de Gandhi, hippies não esclarecidos, suicidas cautelosos. De vez cm quando
se matam entre eles, é verdade. E quase sempre por uma palavra mal posta, um
trago de cachaça, uma cachimbada de crack ou mesmo um osso. Hoje, com toda
essa demagogia estatal, não sei como estão perante a Constituição, mas já em 1830
o Código Penal do Império (que foi ratificado pelo da República) os enquadrava
como criminosos c tentava colocar-lhes uma coleira ao redor das carótidas. Previnir!
Previnir! É necessário previnir gritam até hoje as velhas carolas c chouvinistas do alto
de suas janelas repletas de grades.

22
não medirem a glicose ou para tratarem a sífilis. Não apenas
odeiam, mas têm fobia ao trabalho. Mil vezes a rua que cair na
armadilha vil do lar ou das 8:00 horas diárias, essa escravidão
concentida que reduz o Ser a um servo e a um dejeto... São a
materialização de um discurso inaudível, da pergunta secular
sobre a incógnita de haver nascido, sobre a idiotice das intrigas
cotidianas, sobre a tragédia da morte, sobre as balelas sociais
e morais inventadas por nossos "pensadores" em demência e
por esta civilização entediada.
Estão no nível mais crítico na escala dos pecadores e suas
presenças compõem um painel, um mosaico e um discurso
bombástico e diabólico contra todas as farsas institucionaliza­
das. Discurso que nos dá a certeza de que nada, absolutamente
nada deste circo diário, resiste à biografia de um deles. Sim, o
fucinhar nas lixeiras da rua, esse gesto miserável e desgraça­
do de um homem encurvado sobre a merda pública, coloca o
iluminismo e o caráter da espécie em cheque e reduz as mega­
lomanias e as supostas façanhas de nossas autoridades a um
espectro de vergonha e de asco!
Fotos e textos. Não sou nem nunca fui fotógrafo. Simples­
mente descobri que com uma câmera e duas ou três objetivas
adequadas qualquer retardado pode, de um dia para outro,
confundir-se com as grandes "estrelas" do mundo fotográfico.
A questão da luz, das sombras, da profundidade etc., etc., tudo
isso se resume hoje num apertar de dois ou três botões coloridos
na parte lateral da câmera. Um olho no objeto, um dedo no
disparador e aí estão as fotos para dar mais vida e mais fôlego
às palavras. Além dos meus textos busquei outros, correlatos
naqueles autores que realmente sempre incendiaram e eno­
breceram minha mente e minha biblioteca: Nietzsche, Marx,
Lafargue, Cioran, Foucault, Mencken, os Gregos etc., com o
cuidado de plagiar apenas aquilo que, de uma forma ou de ou­
tra, possa ampliar e materializar o discurso que, durante anos,
visualizei por debaixo da existência, da presença e da simples
expressão corporal dos mendigos, sejam eles voluntários ou
não. Em outras palavras, os textos e as fotos aqui impressos,
pretendem, no final de tudo, se não engendrar, pelo menos

23
simular uma gargalhada cínica e hedionda que convulsione
o cotidiano irrisório, desprezível e sem nexo da maioria dos
leitores.
Uma coisa que deve estar presente na retaguarda de cada
frase e nos contornos de cada foto é esse fragmento do diálogo
que registrei entre dois desses homens de rua enrolados em
um edredom sujo: Todos somos traidores e canalhas. Traímos a
natureza, a humanidade e a nós próprios. Dito isso, saíram qua­
se cambaleando pela beirada dos edifícios cruzando com a
gentalha dos escritórios, dos consultórios, das fábricas, das
lojas, das dioceses. Não olhavam para o chão como se pensa.
Mantinham o olhar soberbo na altura das janelas dos sobra­
dos e dos semáforos, como se estivessem pensando na frase
de Guichardin: "todas as cidades, todos os Estados e todos os
reinos são mortais; todas as coisas, por natureza ou acidente,
um dia ou outro hão de chegar ao fim".12
Vão no meio da tormenta e nem olham para trás. Sabem
que suas vidas são mais transitórias que a dos outros mortais,
pois testemunham a cada madrugada um ou dois de seu bando
serem queimados vivos. Ali no meio daquela sujeira o céu e a
terra para eles parecem se conciliar. Já que lá não há deuses e
aqui não há ninguém honrado, tudo, até mendigar, está libera­
do. Mas, não sejamos hipócritas: sabemos que há muita balela
nessa "liberação", pois são sujeitos que - como o mendigo das
novelas de Beckett - se decepcionaram até mesmo com a liber­
dade.13 Sabem que os novos ricos têm fobia a eles porque são
espelhos refletores. Nada é mais doloroso àquele sujeito que
acredita ter "vencido" na vida do que as coisas e os fatos que
mantém vivo e presente o seu passado. Há milícias por todos
os lados. O preço para uma execução é irrisório. Não votam,
não têm carteira de identidade, não consomem praticamente
nada, nem remédios, nem carros, nem computadores. Não
valem nem mesmo o cartucho que lhes estoura os miolos ou o
galão de gasolina que os incendeia. E não há nenhuma Ong e

12 Citado por Debord, idem, p.47.


13 Ver: Novelas, de Samuel Beckett, publicado no Brasil pela Editora Martins Fontes.

24
nenhuma associação que faça passeatas por suas mortes como
fazem, por exemplo, quando os mesmos bandidos assassinam
ou queimam um índio ou um empregado qualquer. Nada re­
lacionado aos mendigos dá crédito e status. Tudo neles revira
as tripas.
Nas semanas que antecedem o Natal Brasília recebe
centenas de mendigos de várias regiões do país, visitantes
insólitos, um mais surrealista que o outro que armam pequenas
barracas em pontos estratégicos da cidade e ali esperam pelo
mea culpa dos novos ricos, dos cargos de confiança, dos
corruptos emergentes etc.. A região da Ponte do Bragheto fica
parecendo La Plaza del Potro, em Córdoba, mencionada por
Cervantes: lotada de braços estendidos, de crianças peladas que
correm pelo meio fio com as narinas entupidas de catarro, e de
mulheres quase mudas, grávidas e estranhas que deixam cair
facilmente lágrimas e lamentos. E os carrões vão chegando de
vagar. Estacionam aqui e acolá apenas o tempo suficiente para
que a madame ou o play boy passe para as mãos dos mendigos
três ou quatro sacos de roupas usadas, sapatos, utensílios de
cozinha, ferros elétricos, cintos, gravatas, caixas de remédios,
tênis, botas, DVDs e até revólveres velhos. Claro que há vários
sentimentos infames camuflados no pretexto do Espírito
Natalino, mas isto não importa para ninguém, muito menos
para os mendigos. Normalmente os doadores são pessoas que,
por estarem fazendo uma faxina em suas casas não querem
perder a chance de passarem por socialistas, comunistas ou até
mesmo anarquistas. Outros acreditam - como na Idade Média
- que dar aos mendigos é dar a Deus! Que Cristo costuma estar
disfarçado de mendigo e mais, que é necessário ter compaixão
dos miseráveis e dos pedintes uma vez que o poder de fogo
deles no campo das pragas e das maldições é muito grande. E
conhecida por todos a estrofe mencionada pelo autor de Don
Quixote: "Solo a um ciego da um real / cada mês, porque le
rece / Las mananas en su umbral oraciones que endereza al
eterno tribunal".
Depois do dia vinte e cinco, com o Papai Noel desaparecido
e todo mundo da urbe mergulhado na ressaca, as trupes de

25

I
indigentes voltam para suas cidades cheias de objetos, porcarias
e de coisas que nem sabem para que servem. Mas todos são
unânimes na ideia de que valeu. Apesar de ser uma das maiores
idiotices vigentes, o Natal ainda tem um poder imenso sobre
os rebanhos, sobre o comércio e mesmo sobre certo tipo de
mendigos. As cores da roupa do legendário Papai Noel, com
suas barbas e seus sacos de presentes foram definidas em 1939
num golpe "genial" de publicidade, sabem por quem? Pela
fábrica da Coca Cola dos EEUU. Aproveitando-se da crendice ■=

e da cegueira geral, vestiram o Papai Noel com as cores de


sua marca. Daí para cá, o vermelho e o branco passaram a ser
definitivamente as cores de seu uniforme e, claro, o símbolo
de nossa tolice e de nossa alienação. Hoooo! HOhohoho!!!
hohoHOOho!!!

26
VTTW’ *
lenho a idolatria c o amor do sacrilégio; Oh! Todos os vícios, cólera,
luxúria, — magnífica, a luxúria — e principalmente mentira e preguiça".
A. Rimbaud

Seguindo as pegadas dos mendigos e dos indigentes vai se


compreendendo que existe uma bobagem estórica relacionada
a eles e que tem servido de álibi aos crápulas para sufocá-los: a
crença de que são o legado de Caim. Daquele lendário e filho
bastardo de Adão e Eva que, num momento de lucidez extre­
mada, teria eliminado 1/5 da humanidade com uma única bor­
doada. Não são poucos os que acreditam que os mendigos são
descendentes diretos e malditos de Caim. Quanta ignorância
e quanta mentira! Além de mendigos, seriam invejosos. Aliás,
por falar nisso, a inveja, longe de ser aquilo que os pastores,
os rabinos, os padres, os filósofos, os empresários e executivos
"bem sucedidos" e outros moralistas costumam apregoar de
dentro de suas sotainas, ao invés de um sentimento desprezí­
vel pode ser nosso mais puro e mais autêntico instrumento de
alerta para com as crapulices instituídas, para com a covardia
moral e para com as ignominias sociais. (Diga-me a quem
invejas que saberei o nome de mais um ladrão e impostor!).
Daí o reconhecimento - mesmo tardio - de que Caim foi nosso
primeiro herói, nosso primeiro homem de exceção, nosso titã e
justiceiro pré-histórico, o mais macho dos homens e o primeiro
sujeito a dizer audazmente um Não, tanto a Deus como a toda
imbecilidade e a toda neurose viciada e repetitiva que viria
atormentar a família nuclear pelos séculos afora. A proposição
socrática do "conhece-te a ti mesmo" gravada numa parede do
templo de Delos, não é nada diante da pergunta de Caim: "por
que esse crápula e não eu?".14
Acusado secularmente de ser a bile negra, de cometer o
primeiro crime da espécie, de ter tentado sabotar o projeto

14 Por que esse palhaço com cara de crocodilo, e não eu? Por que essa megera ignorante,
esse bajulador mentiroso, essa hiena descadeirada, esse estclionalário horripilante, esse
estúpido de nível superior e não eu? Por que esses trogloditas, essa quadrilha de farsantes,
esses canastrões desmiolados, esses burros de gravata, essas serpentes do entardecer, esses
pulhas de porta de cadeia e de fundos de igreja e não eu?

29
divino e de ser o patrono dos ressentidos, dos andarilhos e dos
invejosos, Caim, o protagonista principal dessa anedota infame,
foi apenas o bode espiatório de uma ideação educativa falida,
bem como a primeira vítima tanto da soberba divina como da
I
I
baixeza familiar, da ignorância dos pais e de um moralismo
putrefato, abstrato e esdrúxulo. Moralismo que, aliás, vem
até hoje engendrando a matriz do "cidadão perdulário", do
sujeito bonzinho e piedoso, do burocrata sórdido e mascara­
do, do gestor mentiroso e hienizado15, do vivaldino político e
I
enfim, do bundão vulgar e atual, conhecido e respeitado por
quase todos. Sim, aquele estelionatariozinho em franca dege­
I nerescência que se esforça para ocultar o quão insossa é a vida
I e para dar a impressão de ser uma alma voltada para o céu, para o
social e para a paz, mas que, na verdade, conserva viva e latente em
sua memória apenas a nostalgia da trapaça e do inferno.'6 Sei que é
ridículo fazer alusão novamente à anedota deplorável do Gé­
nesis, mas é que ela está instalada como um cancro no cérebro
e no inconsciente da humanidade. Incrustrada nos nervos e no
plasma de gerações e mais gerações, tanto nas hordas da ralé

I I
idólatra como nos antros da canalha esclarecida.17
Apesar da paleontologia, e da antropologia, apesar de
I I
I Darvvin e das teorias evolucionistas, dos sete bilhões de habi­
l tantes do planeta, não existe um único que, em determinado
i momento de sua vida, não tenha recebido goela abaixo a lenda
I
pueril do criacionismo e que não tenha ouvido dizer que Caim

15 Todos aqueles que tiveram uma experiência frustrada no serviço público concordam
I
plenamente com Paul Masson que: “Os funcionários são como os livros de bibliotecas: os
que estão em lugares mais altos são os que menos prestam”.
16 Ver Ernest de Gengenbach, Judas ou o vampiro surrealista, & etc Editora, p.33,
Lisboa 1970.
17 Numa antiga casa de saúde mental de Londrina, caminhando de um lado para outro
daquele ambiente quase setecentista o interno que levava o Antigo Testamento aberto nas
mãos repetia o dia inteiro: “Está aqui, cm Deuteronòmio, 22, 28... Está aqui em Dcutcro-
nômio, 22, 28”. Cheio de curiosidade, consultei a referencia que ele tanto mencionava e
encontrei lá está frase; para quem estuprar uma virgem, multa de 50 shekels. Deixando de
I lado o caráter folclórico dessa obra, vamos lembrar aquilo que dizia R.G Ingersoll sobre ela
e outras do gênero: “Os livros sagrados de todo o mundo são escória imprestável e simples
pedregulhos se comparados ao ouro faiscante e às gemas brilhantes de Shakespeare”.

30
foi o filho bandido e psicopata de Adão e Eva, casal que, anos
antes, por luxúria e leviandade, havia sido despejado do paraíso
com um pontapé no rabo e sem a mínima chance de barganha.
Esse primogénito de Adão e Eva18 teria sido um agricultor
sedentário e taciturno que, segundo as inúmeras especulações
existentes, mais ouvia do que falava. Um introspectivo e denii
autista - diriam os psicólogos -.
Raizeiro e vegetariano, não bebendo nem mesmo o leite
das ovelhas, Caim sentia-se - com razão - discriminado e me­
nos amado que seu irmão mais novo chamado Abel. Este, que,
segundo seu pai, não gostava muito de trabalhar e muito menos de
suar, (também tinha o caráter de mendigo) era pastor de ovelhas,
comia carne como um chacal e desfrutava, numa boa, da prefe­
rência gratuita dos pais. Eva, a senhora sua mãe, - sabe-se lá por
que - expressava despudoradamente sua predileção por Abel.
Certa vez, quando Caim matou um leão com seu cajado, - fato
que naquele momento pré-histórico era uma façanha imensa
- ao invés de reconhecer sua bravura, o fez lembrar e admitir
impropriamente que Abel, com sua funda, era tão ou mais hábil
do que ele. Como se vê, a malignidade feminina e materna, bem
como afamilhitis, já estavam sendo semeadas no mundo.
Sempre que Abel (nome que em hebreu significa também
vaidade), regressando do pastoreio e de sua rotina ordinária
aparecia lá no meio do rebanho, Eva corria em sua direção,
abraçava e beijava-o com imenso contentamento.
- Deus está contigo, costumava repetir - no meio dos berros
das fadigadas e torpes ovelhas.
Poderia tê-lo salvado da indignação e do espírito justiceiro
de Caim se, ao menos, o tivesse aconselhado a levar ao pescoço
ou no bolso uma daquelas pedras negras de turmalina que,
segundo os velhos hippies e os astrólogos, têm um poder
tremendo contra todos os tipos de inveja. Mas era apenas uma
pobre ignorante, uma histérica engendrada um pouco antes

18 Segundo alguns pregadores, Caim não seria filho de Adão, mas sim da serpente que,
ainda no Éden, passou a lábia e a pica em Eva.

31
i
I
I com uma costela de seu marido e seduzida logo depois por
uma serpente.19 Apenas uma reprodutora que por imaturi­
i dade e burrice, ao invés de apaziguar, ateava fogo na relação
i
dos filhos.
I Caim - como, aliás, acontece com qualquer dos filhos
I
da atualidade - sofria profundamente com essa descarada
preferência dos pais para com seu irmão. Talvez - quem sabe
- em suas angústias e reflexões, já lutasse - como nós -, para
expurgar de seu dia-a-dia a idéia vã e idealizada de um mundo
genial e libertário.
Como ainda não havia um psicanalista, um skinnerista ou
um macumbeiro em cada esquina daqueles cafundós desolados,
essa disputa pelo amor dos pais e por outras bagatelas afeti­
vas foi se agravando e se deslocando para uma disputa pelo
amor simbólico do tal Yahvé. Sim, pelo amor do mesmo Deus
que, anos antes, tomado por uma severidade paranóide, havia
mentido sobre a maçã a seus pais e em seguida os enxotado
do Éden, tanto por perceber que eles não o obedeciam como
por tê-los surpreendido brincando sexualmente a sombra de
uma macieira.20
Teria sido Deus então a sentir pela primeira vez os estigmas

;i da infâmia, as palpitações e a falta de fôlego que o ciúme e a


inveja provocam? Teria invejado-como os pacientes/bebês de
Melanie Klein21 - o casal em pleno desempenho da fornicação?
Teria sido ele o autor da frase clássica dos invejosos: Por que
esses pobres miseráveis e não eu?

19 Teria sido Lilith e o demónio que, através da serpente, excitaram e seduziram a Eva.
E foi dessa transa que nasceu Caim. (fontes apócrifas).
20 É de conhecimento de todos que tenham lido a Bíblia que Deus mentiu a Adão e Eva
quando lhes disse que morreriam se comecem a maçã (Gen. 2.17), enquanto que a serpente,
além de simpática, disse-lhes exatamente a verdade (Gen. 3. 5)
21 A já popularizada teoria da Inveja do Pénis que Freud atribui às meninas passa a ser
uma teoria singela diante das teorias posteriores desenvolvidas por Melanie Klein sobre o
sentimento de inveja e de ódio das meninas pela mãe. “Na origem dessa inveja encontra-se
a teoria sexual primitiva da criança, de que ao copular com o pai, a mãe incorpora e retém
o seu pénis". Bem que essa senhora poderia ter feito uma apologia de Caim. Ver Melanie
Klein, Psicanálise da criança, Ed. Mestre JOU, pp. 55,69, 70,78,82,89,128, 131, 132, 182,
260, 263, 274, 280, 310 e 329. Quer mais?

32
A gota d'água ou o fim da paciência de Caim ocorreu no
dia em que faziam oferendas. Abel, que assava um filhote de
ovelha ao Senhor via a fumaça subir verticalmente, para o
"céu", já Caim, que ofertava ervas e raízes assistia frustrado a
fumaça de sua oferenda rastrear o solo e dispersar-se, até que
o próprio fogo se apagava. Gabola, com escárnio e acossando
moralmente o irmão, Abel disse-lhe:
- Fiz oferenda a Deus com a carne e a gordura de meu rebanho.
Ele as aceitou, pois a fumaça subiu para o alto em forma de uma
coluna reta. No entanto, o que aconteceu quando puseste ervas e
raízes no altar? Bem o sabes: o fogo apagou-se. Bela oferenda, em
verdade! Pareceu-me que não agrada a Deus o cheiro de tuas ervas
queimadas.22
Caim mordeu os lábios e sem ouriçar-se, baixou o olhar
diante daquela provocação imperdoável, como se estivesse
ouvindo o eco da voz castradora e esquizofrenizante da mãe
repetindo-lhe:
- Percebes como o universo conspira contra ti? Deus está
com Abel! Deus está com Abel!
Olhou para as montanhas que corriam ao longo de seu
latifúndio,23 coçou o saco e sentiu um amor súbito, agreste e pro­
fundo pela revolta. Enquanto esgueirava-se daquele lugar teve
uma espécie de premonição na qual antevia que dali a milhares
de anos, por causa daquela querela estúpida, a humanidade I
rancorosa teria que viver encharcada de Ritalina e de Prozac.
Mas isto não o assustou e jurou que esmagaria assim mesmo os
miolos daquele pequeno e endeusado impostor. Como matar
ainda não era crime e como intuía que o irmão tirano não era
como o demónio que poderia ser expulso só pelo jejum e pela
oração,24 a partir daquele momento, Abel, o filhinho mimado,

22 Leiam novamente a frase de Abel e vejam como ela é detestável e odiosa. Não sei como
Caim conseguiu conter-se e não o matou na hora. Se acontecesse algo semelhante hoje,
no interior de nossas igrejas, com certeza veríamos um padre metendo um aspersório na
cabeça de outro, os pastores se atracando a facadas e os laicos se crivando de balas.
23 Para Oswald de Andrade, aquele portuguezinho antropofágico, Caim teria sido o pri­
meiro burguês que demarcou a terra e que fez a primeira cerca da história. Ver Dicionário
de bolso, de sua autoria.
24 Ver Edward Sexby, em Matar não é crime, edições Antígona, p.48, Lisboa 1985.

33
I
I
o dândi entrincheirado nas tetas sedutoras da mamãe, estaria
I literalmente marcado para morrer.25
Nos dias que se seguiram, Caim ficou mais silencioso e
deprimido do que normalmente já era, tentando talvez, res­
ponder a pergunta que lhe era obsessivamente endereçada
à consciência: a vida de cada um estaria de antemão traçada pelas
circunstâncias ou tudo estaria regido por unia abismal porralouquice?
Caminhou pelas encostas vazias daquele mundo inimaginável,
fez contato com as misérias secretas que corrompem o próprio
ser, chorou, masturbou-se, emagreceu, refletiu, teve insónia,
filosofou (talvez tenha sido inclusive, o verdadeiro pai da filo­
sofia) e concluiu que realmente Adão era um bundão submisso,
um pai só de fachada26 e seu irmão um crápula. Um mau cará­
ter, um idólatra estúpido, o inventor da política e do buylling,
um esotérico de bosta, em síntese, o clássico filho-da-puta que
viria - mais tarde - povoar a terra.27

25 Quem quiser saber por que tudo no Velho Testamento é desinformação c propaganda
enganosa deve ler Kepler, Copérnico, Newton etc. Entretanto, para aqueles que gostam
de especular sobre o assassinato de Abel c os motivos da briga, é bom que esqueçam essa
lorota demente das oferendas. Dois jovens saudáveis naquele fim de mundo jamais iriam
I perder tempo com bobagens esotéricas. Sabiam que a fumaça sobe ou desliza na horizontal
I dependendo do vento e não do narcisismo de um suposto deus oculto entre as nuvens. Se
I acabaram brigando, os motivos foram, com certeza, de ordem libidinal. Ou pelas próprias
I
experiências de troca-troca entre eles, ou para saber quem comeria a irmã ou a própria
Eva, já que naquele tempo, além da xota ser uma coisa rara o incesto ainda não era tabu.
26 Roberto Sicuteri resgata textos curiosos, onde se diz, por exemplo, que no Génesis I.,
Adão foi macho e fêmea (como as lombrigas) e mais, que aparece nos comentários rabini-
cos, embora velado, o segredo removido de que Adão vivesse sexualmente promíscuo com
animais. Ver Lilith a lua negra, p.25. Como se vê companheiros, nossas origens parecem
< ter sido pra lá de caóticas c pra lá de perversas.
27 O processo da inveja não é quase nunca um assunto de uma só vía, do invejoso para
o invejado. Quase sempre o invejado, por uma necessidade inconsciente, faz de tudo
para despertar a inveja no outro. No primeiro momento atua como sádico gabando-sc
e detonando a “doença” do outro. No segundo momento, quando passa a ser invejado,
assume o papel da vítima e do coitadinho, colocando em cena a atuação masoquista.
Forçando um pouco a barra, pode-se dizer da inveja aquilo que Wilhelm Reich dizia da
Peste Emocional: “Não existem indivíduos completamente livres dela c tampouco existem
indivíduos afetados por ela. Assim como todo indivíduo tem em alguma parte, no mais
profundo de seu ser, uma tendência ao câncer, à esquizofrenia ou ao alcoolismo, também
todo indivíduo, seja o mais saudável e vivaz, leva em si uma tendência à reações do tipo da
Peste Emocional”. Se a energia que alimenta a Peste Emocional - como diz Reich - “provem
sempre da frustração genital, independentemente de que nos ocupemos
< . de uma guerra

34
Deus está com Abel! Mas por quê? Qual c a lógica? Por que
nào há de estar também comigo? E se estivesse comigo, de que
isto me serviria?
Esta pergunta continua a ecoar e a causar certa fúria nas
sacristias, nas alcovas, nos guetos da Ku Klux Klan, nos claus­
tros da atualidade e até mesmo nos aparentemente tranquilos
cemitérios.28
Na primeira oportunidade, cumpriu o que havia prometido
para si mesmo e submeteu seu irmão à pena capital. Com um
golpe de kapap,29 esmagou o crânio de Abel,30 mais ou menos
como certos índios brasileiros faziam uns com os outros para
aliviarem-se mutuamente do sofrimento que a febre da varíola
lhes provocava.
- Caim, que fizeste? O sangue de teu irmão manchou a terra e
clama por mim -
Sussurrou-lhe austera e persecutoriamente minutos de­
pois o Senhor. O grande, enigmático e hipotético Criador do
universo, aquele ser assustador que os Astecas esculpiam em
seus templos e que Michelangelo pintou no teto da Capela
Sistina.31 E foi com essa pergunta meramente retórica, cheia

sádica ou da difamação dos amigos” (in: Análisis dei Carácter, Editorial Paidos, p. 260),
a energia que alimenta a inveja vem da injustiça, cometida antes de tudo pelo Criador e
depois, por uns homens contra os outros.
28 E digo “aparentemente" porque a paz que reina ali cm sido possível ate agora graças à
incapacidade dos mortos se organizarem, de arrebentarem a tampa dos caixões e de abrirem
uma brecha nos sarcófagos de mármore. Talvez, um dia, quem sabe, ainda poderemos ve­
los de braços dados atravessando as cercas daqueles condomínios putrefatos, para exigir
explicações da igreja c dos demagogos sobre a balela da ressurreição e da eternidade.
Traídos c esquecidos, tanto por Deus como pelos de sua espécie, colocarão um pouco
mais de ansiedade no desorientado dia-a-dia do mundo.
29 Técnica israelita do Crav rnagá que usa um pedaço de pau como arma.
30 Nas pinturas e desenhos através dos quais esta lenda bíblica foi representada, ora o
instrumento do crime é um porrete, ora uma pedra, ora um osso, ora um estilete de ma­
deira, ora uma enxada etc. Já que tudo é ficção, por que nenhum pintor ainda se atreveu
a colocar nas mãos de Caim uma espada de samurai, uma corrente punk, uma AR 15 ou
um fuzil russo?
31 O mesmo Deus que mais tarde, por questões fúteis, cumpliciado com Moisés lançará
dez pragas contra o Egito c seu povo. Ele que parecia ter se escandalizado tanto com o
assassinato de Abel, transformou os rios do Egito em puro sangue. Logo cm seguida, não
satisfeito, lançou sobre os sobreviventes a praga das rãs. Depois a de piolhos, logo em
seguida a das moscas. Não realizado com tanta crueldade contra os homens, tratou de

35
i
I
I de falsidade e de malícia feita da penumbra de seu esconderijo
I que realmente foi inaugurada a saga da desfaçatez, a Corte
i Suprema, o judiciário e o mau caráter no mundo. Se já sabia
de tudo, inclusive que ele próprio era o principal responsável
por aquela tragédia, para que perguntar?
- Caim, onde está Abel, teu irmão?
Insistia o Senhor.
— Sei lá! Por acaso sou eu guardador de meu irmão? Respondeu-
lhe secamente Caim. E poderia ter dito muito mais. Você que
supostamente c onisciente e que passa o dia vigiando os outros
é que devia saber. Abel não é meu filho, não sou sua babá e,
além disso, nunca gostei dele e sua vida nunca me interessou
para nada. Mas não o fez.32
Depois de ouvir um longo sermão Caim disse a Deus:
- "Meu fardo c demasiadamente pesado para ser carregado".
Com esta frase não estava se referindo ao fato de ter matado
Abel - como interpretaram os padres e o próprio Deus - mas
ao fato de ter compreendido de forma súbita, não só o absurdo,
mas a trama vil e sádica que era a existência. Caim percebeu
de imediato que havia sido empurrado para o crime. E mais,
que a possibilidade de que o demiurgo estivesse testando seu
caráter, era um ato canalha e inescrupuloso. Aproveitou para
I! lembrar que não era ele o primeiro criminoso do mundo, já
que Abel, dias antes, sob seus olhos e com sua aprovação havia
assassinado a ovelha da oferenda.
Deus ouviu sua queixa e, meio confuso, como se precisasse
lembrar-lhe que ele "deveria desejar apenas o meu desejo",
plagiando uma frase da Antígona rebateu:
! - Tens demasiado orgulho para alguém que se encontra
na desgraça!

atingir com a peste também aos animais. E a peste foi seguida por uma epidemia de sarna
que se transformava e feridas. Depois caiu sobre aquela nação uma chuva de saraiva, uma
invasão de gafanhotos e, por fim, Deus lançou a praga das trevas que deixou o Egito cm
total escuridão por três dias. Quem achar que isso é instinto criminoso demais para um
Deus e que posso estar exagerando, que consulte Êxodo 8 cm diante.
32 É importante observar que Caim, ao responder a pergunta de Deus com outra pergunta
dava início não apenas à escola dos cínicos gregos, mas também ao método e à técnica
psicanalítica. Freud, por alguma razão especial não o mencionou entre suas fontes.

36
1

Um pouco mais tarde veio também o grito de Eva, a tal


que seria nossa primeira mãe:
- Filho amaldiçoado, fora daqui! - Mais ou menos a mesma
frase e no mesmo tom que ela própria e Adão haviam ouvido
de Deus ao serem enxotados do Jardim das Delícias depois de
terem sido surpreendidos com as calças na mão. 33
Compreendendo que a fé era em si mesma uma forma de
artritismo intelectual,34 que vivia num mundo de bajulação e
de delongas inúteis onde tanto o amor divino como o amor
materno eram balelas e que na vida nada é retificável, Caim
(nome que em hebreu quer dizer Filho do Sol), o primeiro
grande maldito e desertor que se tem notícia, deu lhes as costas
e, sem impetrar nenhum recurso, caiu no mundo, disposto a
percorrer todos os desertos, até mesmo os impossíveis. Deus o
viu partir e tomado por um sentimento de fracasso e de culpa
constatando que em sua obra não havia nem vestígios de ex­
celência, arrependeu-se de ter criado o homem.35
Caim foi alcançado por sua irmã menor que lhe disse:
- Apesar de hodofóbica, vou contigo meu irmão.
- Tudo bem! Sussurou-lhe Caim e agregou:
- Só que tem uma coisa: matei Abel...
- Estou sabendo Caim. Mas não se angustie por isso, pois
"o que seria de uma natureza anti-angelical como a tua se não
tivesse idéia do que realmente é o tormento demoníaco?"36
Deram-se cúmplice e amorosamente as mãos e sob um cielo
huecoy tenebroso caminharam juntos durante dias, inaugurando
a vagabundagem e o andarilhismo.37

33 Adão, que não se manifestou diante da desgraça que se abatia sobre seus filhos
inaugurava naquele momento a indiferença paterna, o perfil do pai submisso e ausente.
O mesmo glutão que até hoje, por comodismo, deixa os filhos a cargo das mães, quase
sempre medeias alucinadas que vão aniquilar os filhotes.
34 Ver Pitigrilli
35 Nào pensem que estou inventando, está lá em Génesis VI, 6
36 Ver Gcngcnbach, idem, p.32
37 Segundo outros co-autores dessa lenda, Abel teria uma irmã gêmea e que inclusive I
vivia maritalmente com ela. Essa hipótese compromete ainda mais a Abel c torna mais
compreensível ainda o fraticídio. Não é difícil imaginar como devia ser grave, a abstinência
sexual dos dois irmãos naquele contexto ahistórico e quão terríveis os crimes que estariam
dispostos a praticar pela conquista da segunda xota do universo. Aliás, segunda não,

37
I
I
Estando a mais ou menos uns cem quilómetros do lugar
onde jazia o primeiro cadáver da história, a irmã, exausta,
í pronunciou a palavra Node, que, no idioma deles queria dizer:
i basta! Chega! Vamos ficar por aqui mesmo! Ali Caim e sua irmã
i
experimentaram fodas homéricas, tiveram filhos c fundaram
uma cidade que ficou conhecida inicialmente pelo nome de
Node, e mais tarde por Enoch, o nome do primeiro filho de
Caim.38 Claro que esta cidade não consta em nenhum Routard da
modernidade, mas pelas coordenadas bíblicas, tanto a família
Adão e Eva (que ainda não tinha sobrenome) como o vilarejo
fundado por Caim e sua irmã, ficavam lá pelos lados da Me-
sopotãmia, pelas barrancas dos rios Eu frates e Tigre. Mais ou
menos por aquelas regiões movidas a fúria fratricida onde os
iraquianos, os judeus, os palestinos, os estrangeiros invasores,
os iranianos, os sírios e etc, não com porretes, mas com mísseis,
armas químicas, metralhadoras, adagas, punhais, dinamites e
molotovs estão se aniquilando mutuamente há décadas.
Não pretendo exercer aqui nenhum tipo de bizantismo,
aprofundar-me exageradamente nestas bobagens e muito me­
nos edificar um tabuleiro de alteridade sobre o cadáver de Abel.
Tenho consciência de que tudo o que menciono aqui são ape­
nas lendas, representações, ficções eternas, protopatias e lixo
inconsciente que atormenta os seres mutilados e entediados.
Ressaca dos tais pecados capitais que, além de desistimularem
o ato de pensar, interessam politicamente apenas aos velhos
abastados e às classes dominantes de sempre. Bobagens que têm
servido, cada vez mais, como instrumento bestificante, através
do qual, os Cains disfarçados de Abéis e os Abéis disfarçados
de Cains vão oprimindo, desqualificando, explorando e cul-
pabilizando os rebanhos e as multidões com frases afetadas e
fingidas como esta de Jó: "Não seja como Caim que era do maligno
e matou o seu irmão". (Jó 3, 11-12)

terceira, pois já existia a de Lilith, daquela mulher diabólica que, com razão, se negou a ser
simplesmente a mulherzinha de Adão. Voltarei a falar dela neste trabalho.
38 No site de Yeshua Chai, o artigo Isivaã e a serpente faz uma relação curiosa entre a
cidade fundada por Caim e a antiga cidade azteca de Tenochtitlan. T-cnoch-titlán, (a atual
cidade do México) que na língua asteca significava cidade de Enoch.

i 38
Enfim, apesar de todas as calunias, a verdade é que o
porrete de Caim funda a legitimidade da defesa, o direito de
preservar-se e de manter-se fora do alcance do cupidez e do
besteirol dos chatos, dos bajuladores e dos puxa-sacos. E mais:
institue o direito de ser mendigo. Convicto de que Caim teve lá
suas razões e que se pudesse, teria lançado também um míssil
contra a Arca de Noé e outro contra a Torre de Babel, há muito
procuro contentar-me com minhas próprias interpretações do
mal, das excrescências, das escórias e das coisas do mundo.
Isto, porque sei que a cada exegeta e que a cada beato a quem
se indagasse sobre Caim, sobre o ressentimento e sobre a inveja,
inventariam em suas homilias bobagem diferentes para tentar
convencer ao mundo e a si mesmos de que se não fosse pelo ges­
to insano de Caim não existiria em todos nós o gen e o atavismo
sanguinário e vagabundo que conhecemos. Não economizariam
palavras para fazerem crer que, acima de tudo, amam a Deus
e à Religião, sem lembrarem que já o velho Aristóteles chamou
essa tática de "artium tirannicarum potissimam", isto é, o mais
seguro e o melhor de todos os artifícios dos tiranos.39 Por uma
questão de vaidade teológica insistiriam em catequisar-me atra­
vés daquela caduca metafísica anti-cainesca, segundo a qual, "só
em Jesus a influência do caráter daquele primeiro criminoso poderia
ser vencida". Ah! É difícil relacionar-se com esses escorpiões e
estelionatários sobredivinos sem sentir a falta de um porrete e
sem lembrar daquele velho ditado cigano que previne:
"Se você faz a mesma pergunta a vinte ciganos receberá
vinte respostas diferentes.40 Por outro lado, se você faz a um
cigano a mesma pergunta vinte vezes, ainda conseguirá vinte
respostas diferentes". E isto, porque, como lembrava o autor
de Ecce homo, da forma como a vida está montada, o cinismo
é o que de mais alto se pode alcançar sobre a terra.

39 Matar não é crime, p. 32.


40 In Pecter Maas - O rei dos ciganos, Portugália Editora, p. 7, RJ, 1975.

39
.1
X
"Yo 110 estoy nl servido de nadie (ni siquiern del pueblo,
y menos de sus dirigentes)
Rabiscado nos muros de Paris cm 1968

Uma pergunta que sempre devemos fazer, uma pergunta


que me persegue obsessiva e compulsivamente, é a seguinte:
como foi possível civilizar e canalhizar o homem a esse ponto?
Socializá-lo dessa maneira? Arrancá-lo sem remédio de sua
individualidade mais primitiva para trazê-lo à planície, onde
trabalha e pasta imbecilizado, há milénios?
As 8:00 horas da manhã todo o espetáculo recomeça: os
carros vão em filas pelas avenidas e as donas de casa colocam
os colchões mijados ao sol. A burocracia se aquece, as divisórias
mudam de lugar, os memorandos saltam de mesa em mesa, en­
feitam-se de vistos, ordens, contra-ordens, correções, respingos
de vómito! Os "executivos" não executam absolutamente nada,
mas amarram e desamarram a gravata, coçam os testículos ou
a vulva, embriagam-se de cafezinhos, ligam mil vezes para os
filhos, as amantes, os lobbistas, os credores, o frei da paróquia
e fingem-se de donos, heróis e defensores da máquina inútil,
vil, asquerosa e estatal que os alimenta.
Pelas 10:00 da manhã, inicia a corrida aos antibióticos, aos
sais minerais, aos laxantes, homeopatias etc. A coluna e as ná­
degas começam a incomodar, as brigas reiniciam, os parasitas
sugam ávidos o hospedeiro. Prisão voluntária! Teatro insti­
tucionalizado. Família de moscas varejeiras! Um manicômio I
disfarçado! Um fim em si mesmo.
Na rua, a soldadesca patrulha. Instala escutas clandestinas,
procura bandidos e criminosos reais e imaginários, elimina
mendigos e pivetes cumprindo com o contrato que assinou com
as elites, com comerciantes e empresários gatunos. Repressão
em troca de charque e de cigarros.
"Petimetres" desfilam pelas galerias dentro de calças justas
que lhes marcam o rabo e o pénis flácido. Perfume falsificado
nos elevadores. Mulheres entediadas na janelas e poetas na
fila para tomar um passe ou para averiguar a sorte através dos

43
I
I
búzios! Carros novos, cirurgia do nariz, Pitangui e Madame
Satã tão importantes e no mesmo altar de Lênin e de Rosa Lu­
I xemburgo. Lixo! Uma sociedade bostificada! Estaciono. Giro
I
sobre os calcanhares com calma. Ao redor e ao alcance de meus
olhos única e exclusivamente analfabetos, escravos, alienados,
selvagens. Rio. De meu riso brotam cinco lágrimas salúbres,
frescas, tentadoras! Desejo morrer. Acaricio a "máquina" que
I
carrego num coldre, uma daquelas balas seria suficiente para
esfacelar meu cerebro ou para abrir uma brecha assustadora
em meu coração. Mas tenho vergonha! Envergonha-me ser
socorrido e enterrado por essa turba... Por esses energúmenos,
por esses cristãos aristotélicos, por esses párias fedorentos que
em vida, apenas suporto!
Sigo caminhando. A manhã está linda, a cidade seria linda
I se fosse inabitada! Uma mulher jovem, muito jovem, descansa
nos degraus de um teatro, as pernas levemente abertas, abertas
apenas o suficiente para acelerar-me o passo, a fúria, a incóg­
nita... A morte e o sexo sempre fazendo parte do mesmo jogo,
sempre envolvidos na mesma tormenta. Estou em jejum e a
imagem meiga daquele mulher atua sobre meu plexus. Estre­
bucho em chamas. Jeová degolado! Cristo em seu leito suave de

ri
I I
pregos! Lucifer tocando List numa flauta de perfume... Charge
que ninguém fez!
Abro o livro que levo junto ao coldre. Seu autor? Um
sujeito de meia idade chamado Roger Bartra, e leio o capítulo
XX, em voz alta, para o bando de mendigos e filhos de Caim
I que caminham comigo. Trata da ressurreição dos cadáveres.
"A tanato-praxis é a técnica de tratamento somático dos cadá­
veres e de seu armazenamento, que substitui a velha prática
religiosa de simplesmente enterrar os despojos o mais rapida­
I mente possível, em uma fossa no cemério. O cadáver é tratado
com o objetivo de restaurar-lhe certas características vitais e
de conseguir sua conservação. Para isso se faz uma lavagem
intensa nos tecidos, por meio de injeções nas artérias femurais,
! ,
axilares e carótidas de um produto a base de formol, mercúrio,
arsénico e chumbo. Este líquido, chamado thanatyl, substui o
sangue e contém colorantes para pigmentar os tegumentos,

44

I
1

provoca uma hidratação do cadáver que lhe dá um aspecto


saudável e impede o afundamento dos glóbulos oculares. É
necessário um litro de thanalyl para 70 kg de carne de cadáver.
Todas as cavidades são submetidas a tratamentos cuidadosos.
São praticadas punções nas vísceras abdominais e seu conteú­
do é aspirado, de maneira que o cadáver fique livre de gases,
líquidos e material fecal. Um cadáver saudável e bem tratado
pode durar vários meses..."
Sem preocupar-me com os mendigos que a estas alturas já
vomitavam de nojo, prossegui na leitura:
"Uma tanato-praxis sofisticada consegue maravilhas
nos cadáveres que apresentam deformações ocasionadas por
acidentes, enfermidades da pele, câncer e outras mutilações.
Existem tratamentos especializados para cadáveres de homens
muito obesos ou de mulheres grávidas. Enfim, em casos es­
peciais, com ajuda de fotografias do morto, o tanato-prático
realiza autênticas reconstruções do que foi o cadáver em vida.
Os tratamentos químicos são complementados com maquiage
para esconder a lividez cadavérica e o escurecimento que o
formol provoca. São praticadas pequenas suturas, injeções e i
próteses para corrigir o "rectus" da boca e o caimento das pál­
pebras. Um cadáver assim, pode ser convenientemente chorado
por seus familiares e amigos nas ultramodernas instalações II
que são os funerariuns em cujas instalações é levado a cabo o
tratamento de conservação e de reconstrução que lhes poupa
do espetáculo horrendo da putrefação da carne. O funerarium
aloja os cadáveres de tal maneira que todas as antigas imagens I
de terra e de vermes são eliminadas: em elegantes vitrines ou
em cavidades nas paredes, no interior de edifícios de vários
andares, com arquitetura moderna, amplos e cômodos salões
atapetados para a exposição e o funeral, salões de recolhimento
para os familiares que visitam a seu parente defunto. Um fu­
nerarium norte americano anuncia assim seus serviços: " para
a dignidade e a integridade de seu defunto. O funerarium não
custa mais caro. Acesso fácil, estacionamento privado para
cem carros". O projeto de um funerarium apresentado em 1976
por um arquiteto francês, para obter seu diploma, sugere um I
45

J
r

I
I verdadeiro templo laico "lugar apropriado, provido de lugares
I e símbolos que facilitariam as condutas individuais e sociais
diante da morte".
i Quando pronunciei a última palavra, percebi que atraves­
i
i sa vamos o estacionamento do Congresso. Eram 14:00 horas e
os Constituintes saiam para a Esplanada gordinhos e eufóricos.
Iam abraçados até suas limousines, uns festejando, outros las­
timando a vitória ou a derrota de seus lobbies.41 Paramos. Os
mendigos e eu paramos. Acariciamos o conteúdo de nossos col­
dres e juntos recitamos a fórmula de Pallenberg: "O homem é um
pobre traste, só que não sabe. Se soubesse, que pobre traste seria!"

41 Cada um daqueles “representantes do povo”, apesar da demagogia c do discurso,


estava ali única e exclusivamente para defender seus próprios interesses, sua família,
sua fortuna, seu porvir Os ruralistas, os sindicalistas, os profissionais liberais, os
- i
I representantes do clero, das mulheres e de outras tantas causas perdidas etc, todos
levavam a mesma falsidade na cara. Pelo que sei, só não havia entre eles representantes
das putas, de Caim c nem dos mendigos. E isto, que são todos “bacharéis”, “juristas”,
“criminalistas”, sujeitos de “reconhecido saber” cm seus feudos. Somos um país es­
sência e irresponsavelmente gerontocrático! Uma república de velhos, de cassados e
de suplentes! E é impossível “encontrar entre nós um homem absolutamente notável
que não seja cabotino”. Apesar do ufanismo ingénuo de alguns, caminhamos para uma
I sociedade de terceira ou de quarta categoria. A astúcia por um lado e a culpabilidade
lusitana por outro lesaram gravemente nosso caráter e nosso Sistema Nervoso Central.
Vendemos-nos por uma caixa de charutos, temos problemas graves com a linguagem,
i
I
sacrificamos sistematicamente a ética em nome do moralismo e nossa imaturidade
é tamanha que, mesmo aos setenta ou oitenta anos seguimos fazemos questão de
insinuar e tagarelar que somos refinadissimos malandrins, com a alma no bolso e o
risinho da cavação nos lábios. Sabemos há décadas - como escrevia João do Rio - que
o trabalho honrado não dá fortuna a ninguém e que se não nos esganamos fisicamente,
I nos esfaqueamos e nos assassinamos moral e monetariamente a cada instante. Como
era de se esperar, o mais bandido, o mais cruel, o mais patife é quem vence. E é a essa
j
pantomima nojenta e a esse embuste que se insiste em chamar de República.

46

I
.......
I

K
"Um só homem nasceu, um só homem morreu na terra.
Afirmar o contrário é mera estatística, é uma adição impossível. Não
menos impossível que somar o cheiro da chuva e o sonho que anteontem
à noite sonhaste. Esse homem é Ulisses, Abel, Caim, o primeiro homem
que ordenou as constelações, o homem que erigiu a primeira pirâmide, o
homem que escreveu os hexagramas do Livro das Mutações, o forjador
que gravou runas na espada de Hengist, o arqueiro Einar Tamberskelver,
Luis de Léon, o livreiro que engendrou Samuel Johnson, o jardineiro de
Voltaire, Darwin na proa do Beagle, um judeu na câmara letal, com o
tempo, tu e eu. Um só homem morreu no Ilion, no Metauro, em Hastings,
cm Austerlitz, em Trafalgar, em Gettysburg. Um só homem morreu nos
hospitais, em barcos, na árdua solidão, na alcova do hábito e do amor.
Um só homem fitou a vasta aurora. Um só homem sentiu no paladar
o frescor da água, o gosto das frutas e da carne. Falo do único, do uno,
do que está sempre só."
J. Luis Borges

Longe da pretensão de equilibrar ou de apaziguar as hor­


das, os sujeitos pecantes ou os espíritos endemoniados, meus
escritos costumam agravar o mal ou - como dizem os iniciados
no zen - levá-lo ao ponto mais agudo e insuportável, lá onde
o sujeito toma consciência de que marcha irremediavelmente
para o matadouro. E isto, não porque ache bonita ou romântica
a idéia do caos, da melancolização, da ferocidade implacável,
do abismo e do naufrágio, mas porque é o que tenho de mais
genuíno, crónico e pessoal a oferecer. Apesar de trotear todos
os dias, de manhã à noite entre o rebanho prostrado e de lín­
gua para fora, costumo frisar para mim mesmo esta frase de
W. Whitman: "Não tenho cátedra, nem igreja, nem filosofia. Não
arrasto ninguém a uma mesa posta, nem à biblioteca e nem à bolsa".
Apesar de minha pose de normalidade e de indignação, não
estou nem aí para os pecados e para os crimes hediondos da
humanidade, sejam eles perdoáveis ou imperdoáveis. Não
penso com a lógica dos sindicatos, das confrarias ou dos velhos
conventos e nem mesmo com a dos mendigos. Mesmo não
simpatizando com Machado de Assis na mesma magnitude de

49
I
I meus contemporâneos, tenho sempre presente o texto que ele
colocou preconceituosamente na boca de Brás Cubas, capítulo
VI: "Ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba
I de Caim". Esse mesmo autor voltará a falar de Caim em seu
I Alienígena, capítulo C, item 18: "Mas a iniqiiidade de Caim falou
i
nele, e me feriu a cabeça, a cara e as mãos". Iniqiiidade e ruindade
de Cain? E uma infâmia que Machado, filho legítimo do lupem-
proletariado como tantos outros, fale mal de Caim, que tenha,
talvez, por ler ido demais às missas da Candelária, comido a
isca da cultura judáica-cristã. O escritor que não explicita com
todas as letras seu engajamento à causa de Caim - irreverente,
maldito, herói negativo - não é confiável, é um traidor que
reforça a tese de que a verdade de um texto é aquilo que se perde
na tradução. Mas é compreensível. Abel mártir! Sim, é com­
I preensível! A cachaça, os transtornos psicológicos, a época e o
tempo têm também a nefasta função de despistamento, já que
nosso saber é quase sempre uma torre de isopor erigida sobre
as ruínas de uma singela choupana de concreto. E aqui entre
nós, quem é que está interessado em dar uma de Hércules,
atravessar o umbral do caos e iniciar o desmoronamento de
toda essa merda civilizatória, sabendo que até os pedregulhos
do subsolo estão contaminados por essa idiotia generalizada
i
e que desconstruir é sinónimo de dinamitar?42
I Em cada cruzamento vou registrando os signos desse
complô, desse suplício, dessa purgação e desse enigmático
I
enfer bestial, onde herege é aquele que crê, e que inflamado por
•l uma pré-demência se diz porta voz do inominável e do incon­
cebível. A esse tipo de gente que solapou e infestou a terra e que
não passaria intacto pelo porrete de Caim e nem pelo cuspe dos
mendigos, só nos resta fazer uma última saudação, e naquele
ll estilo de Lawrence Ferlinghetti, isto é, com o dedo médio.43
Estamos definitivamente numa estação de pau-a-pique
em que as noites chegam sinistras, repletas de profecias e de

:l 42 Neste particular, (lembrem aqui das Torres Gêmeas de N.Y) temos que admitir que
r o velho Bin Laden tem feito muito mais que o velho Dèrrida.

I
I
43 Ver poema Saudação, de L. Ferlinghetti, escrito em 1968 na Prisão de Santa Rita,
nos EEUU.

50
; I
relâmpagos, de lampiões moribundos prestes ao desapareci­
mento. Matilhas de famintos, a filharada de Caim, espectros
e vultos fedorentos que se esgueiram sisudos sob as arvores
e junto às muralhas murmurando obsessivamente as duas
últimas linhas do badalado verso de Baudelaire em favor de
nosso errante diabólico:
"Race de Cain, no ciei monte et sur la terre jette dieu!"44
Mas como todo verso é vão e toda poesia é narcisismo con­
densado e inútil, fica tudo por isso mesmo e tudo como está.45
Cheiro de querozene, piolhos e pele descamada. Trazendo
um Caim, um Drácula e um Frankenstein sepultados dentro
de si a escória vem marchando da escravidão do latifúndio
para as vilas e para as cidades em busca de restos de comida,
de uma bala perdida ou de um Serial Killer. Gira em aspirai
ao redor de si mesma, dos muros citadinos e pelas cercanias
das magestosas catedrais e de seus campanários farejando um
esconderijo onde cuspir, vomitar e cagar sua exclusão, sua lepra,
sua esquistossomose e principalmente sua feiúra que nada neste
mundo dissipará. Tudo infinitamente mais grave do que a velha
e sectária idéia de luta de classes. Descobre as marquises e os
fundos de terrenos baldios e se resigna sob o estigma da escória
cainesca, da maldição metafísica transmutada em maldição so­
cial. Com a tatuagem de uma víbora na garganta, é a autêntica
obra divina arrastando as tripas de lá para cá enquanto, com
olhar súplice, roe sua culpa e soleniza sua longevidade. Réplica
e clone de tudo o que é abominável, de tanta miséria, penúria
e escassez, não tem competência nem forças para, como sugere
Baudelaire, pelo menos subir aos céus e enxotar de lá o Criador.
A cada anoitecer se amontoa como pode a espera de que alguém
da janela vizinha lhe aponte uma espingarda ou que alguma
estrela vagabunda despenque sobre seu crânio e coloque um
fim ao seu flagelo e ao seu único crime, o de haver resistido os
nove meses uterinos e o de haver nascido.

44 Ver Abel e Caim, em Flores do Mal.


45 Dizem que nos raros e nauseabundos soirèes poéticos onde Rimbaud marcava pre­
sença, sempre que alguém acabava de recitar um poema saia de sua boca o mesmo res­
mungo: merde!

51
I
I Mantendo a distancia conveniente, observo o traste leproso
I
i
que com seus olhinhos esverdeados de coruja descansa numa
i escada do jardim e apodrece - como diz Derrida - entregue à
i voracidade roedora, ruminante e silenciosa do animal-máquina
i
com a sua lógica implacável.46 De tempos em tempos beija uma
cruz que leva amarrada ao pulso e resmunga uma oração breve,
de apenas uma ou duas frases. De onde advém essa paixão
humana pela ficção? Pobre diabo, não teve ainda a capacidade
de compreender que um deus que coloca uma lepra no corpo
de um crente - parafraseando a Bret Harte - certamente não
se comoverá com suplicas e com orações. A barba, os cabelos,
I as sobrancelhas e os pêlos que emergem de suas narinas e de
i
seus ouvidos parecem ter a função de ocultar um teorema ou
a tal "marca de Caim" que está em todas as partes desse corpo
I condenado, como um sifão, à precariedade. Alguns racistas
insinuam que o tal sinal que Deus colocou em Caim (OTH em
hebraico) seria a cor preta.47 Outros se referem à doenças como
a lepra, a tuberculose, o estrabismo, o alcoolismo, a sífilis, a
mendicância, o HIV. Também há quem acredite que a marca
seja a circuncisão ou mesmo a ausência de pêlos pelo corpo.48
Stalin e Hitler, que para muitos foram reencarnações de
i
Caim, também colocaram - como Deus - suas marcas nos ci­
I • ganos, nos judeus, nos pansexuais, nos comunistas, nos filhos
i i
I de Jeová e em outros adversários. O nomadismo e a errância
como castigo!49 E como uma pedagogia de amansamento.

46 J.Derrida cm O animal que logo sou, editora Uncsp, p.73, SP, 2002.
47 Modesto Brocos, pintor espanhol naturalizado brasileiro, interessado na questão negra,
I dedicou uma tela a essa temática. Intitulada A redenção de Caim, essa pintura mostra
uma família negra, cuja avó, orgulhosa de seu neto pardo, ergue as mãos para o céu em
í agradecimento e em gratidão. Nesse trabalho, Brocos trata da teoria vigente na época que
I, previa o desaparecimento da raça negra através da miscigenação. Ver livro de João Carlos
Rodrigues: O negro e o cinema. Ed. Palias, RJ, 2001.
48 Como os ameríndios, normalmcnte, não têm pêlos e nem barba, alguns fanáticos
chegaram a nomear a América Central como Reino de Caim. Vejam ate onde vai o mau
caráter dessa gente.
49 Condenar alguém ao nomadismo e à errância seria realmente um castigo ou uma
recompensa? Como naquela época não havia polícia civil, por que não levantar a hipótese
de que Deus e Caim estavam mancomunados e que juntos, deram um jeito de se livrarem
daquele pobre coitado? Quem de nós, que passamos a vida inteira lutando por um exílio

52
I ransplantes, genética, clones, transgênicos... A pasmaceira do
mundo além do suportável como penitência! Caim andarilho!
Caim burguês, proletário e indigênte! Caim Ahasverus, que,
segundo Rawet, foi cão com plenitude e que como cão sondou
o mundo! Basta ir de Brasília a Pirenópolis para vê-lo com seu
bornal e sua psicose troteando no acostamento. Os pés como
pedra, lá vai o fratricida desconfiado50 sem levantar os olhos
para os sete bilhões de almas deste inferno provisório - seus
descendentes e detratores - e sem nenhuma ilusão redentora,
apenas cumprindo cm silêncio sua interminável sina, maldição e
diabolidade, alimentando talvez, uma única esperança: a de re­
encontrar sua cúmplice Aclima51 e depois, por fim, o verdadeiro
apasiguamento. Caim e Abel, as duas faces da mesma lorota e
do mesmo sofisma unidas pela jalousie, esse mal que é também
umagrflçfl, essa luz que poupou a civilização de uma penumbra,
de uma obscuridade e de um tédio ainda pior. Já pensaram como
seria o mundo se Abel não tivesse sido eliminado?
E depois da morte? Não são poucos os que como Maquia-
vel, preferem ir para o inferno e não para o céu. Pois no inferno
poderão gozar da companhia de papas, políticos, ricaços, reis,
banqueiros, mulheres nuas e príncipes perversos, enquanto que
no céu só terão a companhia de mendigos, de monjes, eremitas,
de beatos e de apóstolos...
Três mendigos repousam à sombra de uma árvore na es­
quina de uma igreja. Não trazem na memória a "operação mata
mendigos" ocorrida no Rio de Janeiro em 1960. Um parece ser
mais preguiçoso que o outro. Mover-se para quê? Devem ter
lido o Elogio do lazer, de Russel ou alguma coisa parecida. No
Capítulo I desse livro, escrito em 1932, Russel sustentava que
já se havia trabalhado em demasia no mundo. "A crença de que
o trabalho é virtuoso - dizia - é imensamente nociva e que o

permanente e pelo estatus de apátrida, que não aceitaria de bom grado passar mil ou dois
mil anos vagabundeando pelo mundo a fora e, ainda por cima, com o corpo fechado?
50 Para alguns especialistas cm doenças mentais, a Marca que Deus teria colocado cm
Caim seria de natureza psicopatológica. Já que, após o crime Caim teria passado a sofrer
da mania de perseguição.
51 Do hebraico, irmã gêmea e mulher de Caim.

53
I
I necessário a ser pregado nos países industriais modernos é mui­
to diferente de toda a pregação passada". Também lembrava a
i história daquele viajante que ao ver doze mendigos deitados
i ao sol na cidade de Nápoles ofereceu uma moeda ao mais pre­
i
i guiçoso deles. Onze correram de imediato para disputá-la, mas
ele a deu ao que chegou vagarosamente por último.52

I1
I,
52 Ver obra citada, p. 9.

I I
lií

)
K>- \
i
I
I ■V
I
H
'V
lí .'f

k <
'É em vão que procurais o segredo perdido da imensa jovialidade
de ontem. Vossos risos não têm graça, são acanhados, miseráveis,
são soluços invertidos, o resíduo dessecado das lágrimas que
não mais conseguis derramar".
J. Lcdercr

Nos arredores da prefeitura, um homem em farrapos e em


pleno estado de alucinação relata a outro a conhecida lenda
do monge que vagabundeando pela zona rural depara-se com
uma camponesa em desespero. O monge - dizia ele - ouviu pa­
cientemente as razões do sofrimento daquela mulher e depois,
como terapêutica, sugeriu-lhe que introduzisse em sua pequena
cabana, todos os porcos que possuia, todas cabras, os patos, e
por fim os cavalos, e que uma semana depois de conviver com
eles, os fosse retirando progressivamente. Ao final da opera­
ção, - insistia o monge holistico e charlatão - seus problemas e
conflitos, fossem eles da natureza que fossem, deveriam estar
resolvidos ou, em última hipótese, amenizados. O mendigo
que ouvia a história - também em estado de alucinação - coçou
a cabeça num gesto terno, malandro e descrente, pegou seu
cobertor e saiu como um farrapo levado pelo vento. Quem o
conhecia por lá afirmava que ele sabia sobre o desprendimento
bem mais até que o famoso Mestre Eckhart.
Por mais primitiva que pareça, essa "terapêutica", mais
vil do que cinica, vem sendo utilizada sistematicamente por
nossos políticos, por nossos pais e por nossos religiosos sob os
olhares covardes e messiânicos da população. Para quem está
angustiado, deprimido, acossado por uma organização social
fajuta e esquizofrénica — pensam eles — o remédio não pode
ser outro: piorar temporariamente a situação. Coloque-se uma
pedra no sapato ou um espinho sob uma unha do doente que
tudo o resto parecerá normal. Uma dor física aguda suplanta­
rá uma dor-social-crônica, além de dar aos "administradores
sociais" a chance de remediá-la a qualquer hora em troca
de votos. A retirada da pedra ou do espinho proporciona ao
"objeto da manipulação" uma sensação de glória, de alívio e

57
I
I de esquecimento que o amansará temporariamente... E depois,
I
i
juram os pastores, todos haveremos de atravessar o deserto
i um dia.
i Foi assim na suposta passagem do militarismo para o
i
civilismo; na questão das anistias; nas questões económicas
internas e externas; no asqueroso processo inflacionário e em
tudo o que a TV — esse baú de merda fluída — cacareja noite
e dia nos ouvidos de nossas domésticas, de nossos filhos e de
uma grande parte de nossa inteligentzia. Foi assim nas mentiras
sobre a saúde, nas mentiras sobre a educação, sobre a habita­
ção, sobre a reforma agrária, sobre as reformas burocráticas,
sobre os salários, sobre os partidos, sobre o internacionalismo
e sobre absolutamente tudo. E enquanto isso, a população,
principalmente a infantil, segue pelos séculos afora, literalmen­
te abandonada, entregue às doenças da fome, às doenças da
sujeira, às doenças da corrupção e da incompetência dos admi­
nistradores e dos profissionais. Pseudo-profissionais da saúde
e da educação. Ratazanas mesquinhas, usureiras, canalhas!
O truque não cessa: muda-se a cor das paredes dos presídios
querendo fazer crer que a liberdade esta sendo conquistada.
!
!
I
I
13
. I
I’
Famílias inteiras de escravagistas dominam as leis e os recursos
públicos: o avô é Ministro, o tio Senador, o pai Governador,
o irmão Deputado, o sobrinho Prefeito, o cunhado Vereador,
o sócio Secretário, a amante Superintendente, a filha Dona do
Bordel e das Boutiques do Shoping, etc. Desvia-se tudo! Rouba-
I
se tudo! Converte-se a fortuna pública em privada. E depois,
um discurso em lágrimas, uma citação de Camões, outra de
Fernando Pessoa, uma foto ao lado do Cardeal, uma garrafa de
I uísque com o Procurador e tudo estará abafado, esquecido.
A população têm fome e medo demais para memorizar a
i
canalhice histórica e para lembrar dos gatunos que a condenam
I dia após dia. É humana e também quer roubar, só que não sabe
ou não pode... Condenar radicalmente o roubo nos demais
seria fechar a porta a uma possibilidade futura para si mesmo.
O ser humano é geneticamente ladrão, trapaceiro, homicida!
Se houvesse justiça neste universo os milhares e milhares de
I condenados que nos acossam, que recolhem nossas migalhas,

58
que lambem a lataria de nossos carros, que achatam o nariz no
vidro dos restaurantes, depois de degolarem ao Criador (deus,
diabo, virús ou um monstro ainda pior), nos arrancariam as
entranhas e nos jogariam ainda vivos aos vermes mais ferozes!
Mas não há! Não há porra nenhuma nesse universo que não
seja digna de nossa ferrenha maldição, uma vez que tudo, ab­
solutamente tudo, parece ser conivente com a pena de morte
a qual, todos animais, fomos irremediavelmente condenados.
E a tragédia da morte, não está em si, nem no fato, ou no dis­
túrbio que ocasiona o fim, mas na impertinente consciência
disso. O saber, nesse caso, é intolerável, coisa da qual os gatos
e os porcos do mato estão livres! Talvez até a fotografia tenha
sido engendrada como resultado dessa consciência: registrar
a vida (embora matando-a congelada), registrar a chama vital,
o movimento, a pose de um mortal. Tornar um gesto ou um
sorriso imortal. Outra forma de enganar-se e de preservar-se,
pelo menos nos arquivos, nos álbuns, nos túmulos...
Alí está o mendigo, objeto de minha foto. Ainda não viu
minha câmera. Está imerso em suas artimanhas, em seus ne­
gócios, em sua indigência brincando com uma pequena aranha
que insiste em subir-lhe pelas canelas?3 Percebe minha câmera
e se transforma: endireita a coluna, limpa-se a boca, muda o
olhar, torna-se um pavão vulgar. Um petimêtre, mesmo em far­
rapos! Tem preconceito com o dinheiro colocado dentro de seu
chapéu, exatamente como os psicanalistas e tenta escondê-lo
antes que meu dedo indicador pressione o disparador. Também
tem noção de estética, porque disfarça o riso tentando esconder
os dentes podres ou o lábio leporino. O clic da máquina alivia
sua tensão. Afasto-me, e ele, aos poucos, volta a ser o que era.
Evidentemente, esse fato banal, mudará sua vida, nem para
bem, nem para mal, mas mudará! Assim como mudará a minha,
a do mundo, a da fotografia. Uma velhinha, portena gritou-me:
canalha! Sujo! Morto de fome! Porque a fotografei num beco
de Buenos Aires e porque ela, seguramente, sentia aquilo que

53 Dizem que até o grande Spinosa amenizava seu tédio pegando pequenas aranhas
e as colocando para brigar entre elas.

59
I!
i !
i Rol and Barthes descreve em seu ensaio: /desapropriam-me de
mim mesmo, fazem de mim, com ferocidade, um objeto, mautêm-me
a mercê, à disposição arrumado em um fichário, preparado para todas
as trucagens sutis/.
Outros, ao serem fotografados sentiram-se "endeusados",
transformados em "heróis", eternizados diante da teleobjetiva
que os reduzia a uma mancha preta e branca, a um coágulo
jogado sobre uma tira de plástico. Sinto que a sargeta não
conhece seu próprio espectro, não sabe o que é um espelho,
nunca pode ver-se. Uma câmera para ela, não se difere de um
I
velho carburador coberto de óleo. A geringonça ideada por Da
Vinci no século XVI, não tem espaço garantido entre a imundice
e os esgotos por onde flutua a mendicância e a indigência. Só
serve para a pequena-média-e-alta-burguesia, através da qual
tenta montar um esquema de despiste em sua vida. Muito bâ­
ton, muitos sorrisos, muitos abraços, muito teatro diante das
objetivas. Um fotógrafo profissional tem motivos suficientes
para tornar-se agnóstico, cético e até ateu. Talvez, seja por isso,
que é raro encontrar um profissional dessa área que tenha
uma visão revolucionária do mundo. Estão exaustos de ver a
4
pequenez e a mentira contínua dos homens! Não dão ouvidos
aos latidos revolucionários, porque assistem durante décadas
I
. I
a farsa, a mutação das aparências e a simulação dos arautos,
I I’ sejam eles reis, mendigos, generais ou coveiros! A câmera ati­
va a vaidade do ser e até o mais desgraçado dos terrestres se
torna artificial e desprezível diante dela. E não foi por acaso
que um mendigo sugeriu-me que a exposição das fotos aqui
impressas fosse feita num cemitério. Em primeiro lugar, porque
devia intuir que o "objeto" fotografado sempre deve regredir
a um estágio de morte, em segundo, porque a foto, forçosa­
mente, congela a vida, o élan vital, a pulsão, o tesão, o grito
19 e o sangue! Sempre que alguém me coloca um álbum sobre
os joelhos, sinto cheiro de velas e de incenso, mesmo quando
as fotos são de uma mulher encantadora, nua sobre um iate,
ou de um anjo saído pelas portas dos fundos de um paraíso
I
qualquer. Além disso, toda foto é um blefe, ou do fotógrafo
I ou do objeto fotografado. O primeiro, blefa para promover-se

60


profissionalmente e para ganhar dinheiro, o segundo, numa
tentativa de fazer com que os outros e o porvir o vejam como
ele sabe que não é. Em resumo: os dois blefam por vaidade,
convertendo a câmera num instrumento de suas trapaças!
Sombras! Um dia sobrarão apenas sombras! Sombras de tudo,
principalmente daquilo que fomos e daquilo que fingimos ser.

61
'II
"Por acaso não são sinceras as lágrimas que se derrama no teatro,
I I onde atores e público sabem que tudo é mentira?"
i
i Soeren Kierkcgaard
I
I
• I
Quando começo a sentir os primeiros sintomas do lobo
enjaulado, causados não apenas pela mediocridade das cidades
' I nem pela mentirologia do cotidiano, mas pelo absurdo em si
' I
que essa espera idiota significa, lanço-me terapeuticamente para
I as ruas. Para os quarteirões abandonados, para os edifícios
I
sombrios, para as livrarias, para as comerciais pauperizadas
com seus cortiços agregados e com seus camelos em busca de
algo que, sei de antemão não existir, repetindo aquilo que se
lamentava Câmara Cascudo: "Invejo essas vidas calmas, de
problemas momentâneos e breves, dispersos pela grandeza
silenciosa da paisagem..."54 Na semana passada, foi só colocar
os pés na livraria da universidade, naquele panteão róseo de
papagaios, para receber em cheio o comentário entusiasmado
sobre Giorgio Agamben, vindo de um jovem doutor em an­
tropologia.
- Giorgio Agamben? Perguntei já com a testa franzida e a
-I !
cara de nojo para que ele não se estendesse demais.
- Sim, um professor de filosofia em Verona. Verona ou
i Veneza? Não importa. E o cara do momento. Fez uma brilhante
i I-
conexão entre A. Harend, W. Benjamim e M. Foucault...
- Putz! Pedi licença e fui ao banheiro tomar trinta gotas de
I Buscopam, aquele produzido pela multinacional Boehringer e
que a nação inteira tem ingerido nos últimos tempos para su­
portar as tripas e a si própria. Na solidão da privada e sob um
forte odor de ácido hipúrico, aproveitei a claridade vinda de
uma vidraça quebrada e li e reli a imensa bula; "alivia de maneira
,.l rápida e por longo tempo as cólicas, dores e desconforto abdominal".
I1 Voltei por obrigação à livraria uma hora depois e o doutor
4 ainda estava lá e, pior, no auge dos detalhes sobre a vida e a
obra do tal Agamben. Se pelo menos estivesse falando sobre o
I pecado original, sobre alguma metafísica, sobre os mendigos

54 Câmara Cascudo, p. 30.

62

I'
ou sobre o legado de Caim... Mas não. Minhas cólicas voltaram,
agora com uma boa dose de ódio agregado. Lembrando da frase
clássica de Rimbaud,55 fui mais estúpido do que normalmente
sou. Ataquei o odioso senso comum e provoquei-o insinuando
que o tal italiano devia ser apenas mais um dos tantos inte­
lectuais narcisistas e desvairados que infectavam o mundo.
E mais, que em se tratando de Veneza, sempre tive muito mais
simpatia pelos barqueiros do que pelos filósofos. Resmungou
alguma coisa sobre Foucault, enfiou as mãos nos bolsos, coçou
a nuca e retrucou-me com as bochechas vermelhas afirmando
que ser intelectual não era crime e muito menos um atestado
de histeria, pois havia conhecido muita gente, inclusive um
gondoleiro veneziano analfabeto que também era um poço de
solidão e de infelicidade...
- Há loucos em qualquer atividade, arrematou.
Concordei. Ele estava certo. Só que como eu não tinha nada
a ver com isso, caí fora. Atravessei o mezanino da filosofia lite­
ralmente bufando esta frase que me parecia singular:
"Se o ideal do eu é o próprio ponto virtual de onde o homem
se olha com amor, o supereu é o lugar real de onde se olha com
ódio: o olho obstinado em proteger Caim no tumulto".56
Depois de tudo, considero-me um sujeito de sorte, não
apenas por ter flertado com o submundo ainda na adolescên­
cia, mas, por ter frequentado abusiva e precocemente as mais
variadas biroscas culturais. Bibliotecas e escolas que me garan­
tiram não apenas o privilégio de conhecer de perto o cotidiano
e o imaginário de inúmeros falastrões, professores, escritores,
políticos e intelectuais, mas também de ter uma visão comic do
saber e do mundo. Um pouco mais tarde pude ainda comparar
fulano com sicrano, os daqui com os dali, e até mesmo com seus
congéneres mexicanos, americanos, espanhóis e franceses entre
outros... Tese conclusiva: toda essa casta languinhosa e essa
cambada abelina sofre da mesma neurastenia e do mesmo mal...
Apesar desse saber ter atuado em mim, pelos anos afora, como

55 Par délicatcsse jai perdu ma vie.


56 Ver artigo Morte e nascimento em jogo, de Mirian Magda Giannela.

63
11
uma espécie de maldição, não posso negar que também teve o
papel de uma vacina e a importância de um antídoto...Quando
já saia do território da Universidade fui alcançado por um aluno
i
de agronomia que, afoito, foi logo me perguntando:
i - Bazzo, você que escreveu sobre Vargas Vila sabe o que
Bocage queria que escrevessem em sua tumba?
Como não me manifestei fez uma pose de gaiato e recitou:
i - "Aqui dorme Bocage, o putanheiro: Passou a vida folgada, e
milagrosa: Comeu, bebeu efodeu sem ter dinheiro."
I I
Bem lembrado! Bocage também fora uma espécie de
Sem-Teto, de Caim reencarnado e muito mais! Caim pau pra
ll toda obra, um ser híbrido, o horror e o fascínio condensados.
Caim cheirador de cocaína, dançador de tango, hippie pelas
nevascas do Himalaia, louco numa casa de orates ou atrás de
um avental branco realizando um estupro ou uma extorsão.
Caim horticultor, gestor do ciganismo, inventor do tacape.
Caim menino de rua, mendigo de semáforo, cu sujo, aspira­
dor de cola, dono de tripas vazias. Caim ladrão, Caim DAS5,
Caim pulha e autêntico gabiru. Caim de joelhos na catedral da
esquina com a língua para fora onde outro Caim depositará
t I\ a circunferência branca da hóstia. Caim louco por tetas e por
I
l . I
i' xotas, Caim comerciante, Caim nos ministérios, Caim brasão
da família, ladrão de gravatas, líder sindical, vampiro do leste
i I europeu, avô de Herodes, glutão, pai da burrice insondável e
galopante. Caim tio de Diógenes! Caim inspirador do barroco
i de Aleijadinho, foi sob sua influência que o escultor mineiro
i
cravou sete espadas no peito de Nossa Senhora das Dores.
Caim pivô da Perestróica oculto na estátua da liberdade e no
I concreto do Cristo Redentor! Caim quinta maravilha do mundo,
arquiteto do Taj Mahal, amante de Madalena, Caim de calcinhas
transparentes, aquela que tem sido o pivô de todas as insónias.
Caim cão adestrado! Caim de meias calças na porta dos hotéis e
nos porões do Conic. Caim pretensioso, empedernido, hálito de
cadáver! Caim no exílio como águia extraviada, franco-atirador,
I asno endogâmico! Caim herói da farraparia, lança-torpedos!
Candidato em todas as eleições! Caim cagando nas águas do Rio
São Francisco e vomitando nas do Ganges! Caim Mercúrio, o

64

I
Deus mensageiro, padroeiro dos ladrões e dos jogadores! Caim
bouquinista nas ruas de Paris, cigano em Valência, usureiro em
Nova Iorque, drogado em Amsterdam, sofista na Grécia, iôgue
nos templos de Bombaim. Caim Hércules que mata os filhos e
que está nos olhos do Pensador de Rodhin, Caim incorporado
em Gildamesh (o herói máximo da Mesopotâmia), Caim sob a
máscara de Teseu, entre os Cavaleiros da Tavola Redonda e até
mesmo o alter Ego do espadachim Cego dos nipônicos. Caim
bookmaker em Londres, pugilista no México, barnum em Nova
Déli e puta de todos os bas-fonds, cuja marca seria identificada
pela presença de uma energia especial, aquela que só os bruxos
e os xamãs conhecem. Oh! Caim meu cúmplice, meu comparsa
e meu herói... Filho de Deus, filho de proveta e de todas as
meretrizes, ora pro iiobis e arrivederci.
Repito pela última vez: a elaboração deste livro propor­
cionou-me a oportunidade de caminhar horas e horas atrás de
mendigos, de assistir a dança de seus trapos, de sentar-me ao
lado desses farrapos nos parques, nas escadarias das igrejas,
nos becos úmidos, nos metros das grandes cidades e até, em
algumas oportunidades, de sentir o fedor de seus corpos: uma
mistura de fezes com cachaça, chulé, mijo e piolhos.
Não procurei disfarçar-me. Assumi em todas ocasiões
minha postura de pequeno-burguês avarento: uma calça de
linho, uma camisa de algodão puro, um tênis All-Star, cinco ou
seis dentes com incrustações de ouro57 e um cartão de crédito

57 Na época cm que vivi na Espanha gostava de frequentar reuniões, congressos, simpó­


sios e manifestações anarquistas e libertárias que aconteciam em Barcelona ou em seus
arredores. Aqueles sujeitos delirantes me fascinavam com suas idealizações de vida e com
seus projetos de apedrejar e de incendiar o mundo. Quanto mais radicais melhores. Nunca
esqueci do dia em que o representante de um grupo que propunha a Greve Selvagem e a
Auto Gestão Generalizada, falando-me de seus objetivos, ações diretas etc, garantiu-me
que no momento oportuno iriam “destruir as reservas de ouro dos países através do que ele
chamou de Água Régia (mistura de ácido nítrico e de ácido clorhídrico). Fiquei fascinado,
apesar de temer por minhas obturações. Mais tarde, voltando para casa no último trem e
no último vagão fui lendo o livreto que ele me havia presenteado e encontrei lá no item
27 do capítulo Acelerar a passagem das condições de sobrevivência às condições de vida
esta lista de ações programadas (para um dia) por aqueles vigorosos idealistas: “Desde
el comienzo del movimiento, se trata de impedir toda vuelta hacia atrás de quemar detrás
nuestro las naves del viejo mundo, ayudando a la desaparición de los bancos, las prisiones,

65
;!

I
do Banco do Brasil. Bah, que merda! Quanta obscenidade!
I I O abismo que se abriu entre "eles" e "nós" é de milhões e
i milhões de quilómetros e não há filantropismo, sociologismo
I
I
ou psicologismo e disfarce que o possa amenizar. Quem de
I I nós se parece realmente com os bastardos e rudes crápulas
da era gótica? Sempre me olharam com ódio e eu a eles com
desconfiança. Involuntariamente minhas narinas fecharam-se
i
i várias vezes no perímetro de seus fluidos. Eles, por outro lado,
sem querer, contraiam automaticamente os músculos das mãos
i quando me viam!
Em uma dessas andanças, sentei-me ao lado de urna se­
I nhora pedinte que irradiava juventude e beleza. Seu rosto es­
tava queimado pelo sol de dezembro, os farrapos de sua blusa
deixavam aparecer o volume de seus seios e no fundo de seus
olhos podia-se registrar uma malícia infinita que não combinava
em nada com a sujeira introjetada por debaixo de suas unhas.

nólogo eloquente que, tanto na forma como no conteúdo, era


admirável. Olhava-me nos olhos quando falava, mas ao mesmo
tempo parecia ignorar copletamente minha presença. Ouvi-a

|
1 exatamente sete minutos, tentando não perder nenhuma pala­
vra que vinha de sua boca ágil e saciada, depois que ela se foi,
í I i reproduzi tudo o que pude de sua sabedoria. Prestem atenção:
I’
"Qual madame dessa sociedade hipócrita já acompanhou o
primeiro cio de uma gata? Qual o homem que teve a paciência
de ignorar a máquina infernal da sociedade por uns momentos
e acompanhar os estremecimentos e a tortura que o cio provo­
ca? Observando aquela pequena pantera doméstica que não
I encontrava sossego em nenhuma posição e que era subjugada
e obrigada pela biologia e pelo instinto a buscar um macho e a
reproduzir sua espécie, ficava meditando entre as esquinas de
I minha miséria, sobre a maldade da vida, sobre o destino cruel

1 i los asilos, los tribunales, los edifícios administrativos, los cuarteles, las comisarias, las iglesias,
los símbolos opresivos. Asícomo los dossiers, losficheros, los papeies de identidad, las letras y
pagos a plazos, hojas de impuesto, papelotesfinancerosy otros". (RATGEB, Ediciones accion
Directa, p.60). Não só naquela época, mas mesmo hoje, concordo com tudo.

66
das carnes, sobre a objetização de todos os seres por uma força
invisível e cruel que, da clandestinidade dos genes, dita ordens
irrefutáveis... Entre meus devaneios — prosseguia a mendiga —
uma conclusão é mais do que óbvia: quão cruel e violenta deve
ter sido a luta da civilização para sufocar o cio humano! Como '
as fêmeas primitivas que hoje são mendigas como eu, mães,
putas, filhas, avós etc., devem ter sido amaldiçoadas, sufocadas
e destruídas para poderem conquistar o silêncio onde estão.
Nenhum miado, nenhum escândalo, nenhum desassossego...
Apenas uma cólica mensal, um hálito um pouco mais forte...
Nada que um um chá de losna não resolva. Quantos milhões
de anos foram necessários para reduzir na mulher esse cio, para
colocá-lo sob controle, para proibir esse choro noturno incon­
solável? Quantas ameaças e quanto espanto deve ter assaltado
a sexualidade feminina, para que a mulher pudesse chegar a
esse oceano sem tormenta e nele ancorar para sempre? Quatro,
cinco, seis horas da madrugada. A gata choramingava por entre
os bagulhos do barraco, rolava pelo chão ressecado, inventava
mil posições, criava seu Kama Sutra, lambia-se em alucínio, ia
ao barraco vizinho e clamava por qualquer coisa que pudesse
vir a ser o objeto de seu cio... Mas a noite era escura demais!
A noite era escura para ela e para os mendigos que dormiam,
tão escura e tenebrosa que nem o eco de seu chamado retomava
ao canto onde pemaneciamos domados. As vezes ouvia-se os
resmungos de uma companheira de infortúnio que sentia-se
incomodada pelo "escândalo" supremo daquela fêmea. A gata,
além de não deixá-la dormir, devia, com seus miados libidino­
sos, rememorar suas origens remotas e mutiladas... O dia quase
amanhecia, a paixão ainda a atormentava e ela tentava construir
à sombra do barraco, entre bengalas e latas velhas o seu "Deus"
e até mesmo o seu "Everest". Não conseguia. Reprimi-a! Ergui
contra ela esta voz de mulher acostumada a pedir restos, por
misericórdia! Chutei-lhe o traseiro, exatamente como fizeram
comigo e com todas as "fêmeas" durante séculos. Então ela
calou-se. Sufocou seu miado. Encolheu-se por debaixo de um
cobertor deixando apenas ver o resplendor de seus olhos. Senti

67
I
I
I
I
que pelo menos por uns instantes minha violência era mais
I
I
implacável que a violência dos genes..."58
i A velha mendiga repetiu essa frase várias vezes olhando-
I
me diretamente nos olhos para depois fazer um longo silêncio
I e concluir:
"Talvez o que é esnobemente conhecido por desejo para
muitos lunáticos da atualidade, não seja mais do que a última
• I migalha dessa fúria que, pela ação do chicote deslocou-se de
entre as pernas para a memória..."
< Recolheu suas tralhas e retirou-se sem dar-me a mais
I mínima importância. Meia hora depois a vi estendendo a
mão nas escadarias da matriz onde a missa havia acabado.
Reconheceu-me. Lançou um olhar tímido em minha direção
como se precisasse justificar-se, fazer-me lembrar que o baixo
ventre - como dizia Nietzsche - é a parte mais vil do corpo e
que é ela que impede ao homem de considerar-se um Deus.
Ao longo desses meses em que passei correndo atrás
de indigentes tive quatro ou cinco crises, perdas de tesão e
vontade de jogar tudo no lixo. Cheguei a ligar para o gráfico
suspendendo tudo, perdi o interesse como se perde um rim ou
i
! ,1 um tesouro. Os motivos? O tédio, a ignorância e a decadência
I
I
I'
. I
total desse país. As livrarias entulhadas de merdas. A rouba­
lheira indiscriminada, a comédia da Constituinte, a inflação, o
I cheiro do Vaticano, a educação, a saúde, os alimentos, os fins
de semana. Salsichas podres, yogurt adulterado, traduções cri­
I minosas, crismas, teatro fechado, salário de fome, Padre Cícero,
Jornal Nacional, arquitetura suína, Chacrinha, Mosaico II, Poli-
position! Trama e persuassão mercantil e religiosa por todos os
lados. Tudo decadente e inútil, administrado sobre as popula­
ções analfabetas. O nível da vida regredindo a passos enormes,
a ignorância e o vírus do jequismo inoculado e apodrecendo
l! todos os setores. Um quarto mundo do tamanho de um conti­
nente, confins do mundo sem perspectiva, sem presente, um
futuro negro e pegajoso como a fuligem. Mudanças? A não ser
I
58 Este texto sobre o cio da gata já foi teatralizado (por um músico e um ator) nos corre­
dores da UnB, nos bares e nas ruas de Brasília, logo depois da primeira edição deste livro.

68
pela morte ou pela loucura. Olho a bandeira tremulante como
quem olha o mastro de um navio naufragado. Seres áridos,
secos e tristes deixam-se levar pela melancolia enquanto um
opala preto se impõe na avenida. Dentro dele quatro ou cinco
cabeças chatas e enormes, olhos esbugalhados, bocas cínicas.
Hino Nacional! Barriga para dentro! Calcanhares juntos! Anus
contraído! Deus salve a Pátria, o Rei e as Rainhas!
Caminho para lá e para cá para fugir de mim mesmo entre
uma sala e outra, entre um prédio e outro, entre um aeroporto
e outro desse suposto Estado do Bem-estar Social com seus
ministros execráveis. Puro pretexto para encontrar mendigos,
esses inventores do óbvio e do laissez-faire com suas pálpebras
marejadas. Eles que sabem, e muito bem, que piedade é uma
virtude de putas.
Mais umas fotos e o livro estará quase pela metade. Sem
saber, trabalho para os livreiros, esses personagens raros que
vendem livros como se vendessem calcinhas ou amortece­
dores. Consignação, 55% para o bolso desses "idealistas", 90
dias para efetuar o primeiro pagamento, falta de tempo para
acerto de contas, larápios da cultura! Abutres do saber! Comida
estragada no melhor restaurante da cidade. Uma diarreia sem
indenização, cozinha suja, lixo e luxo...
Para que outro livro? vaidade, delírio, masturbação, ou
simplesmente um investimento económico? Bem que poderia
migrar com esse dinheiro: Austrália, Caribe, Shangai ou mesmo
o Inferno... No mundo das letras a mesma coriola. A imprensa
velhaca pega um banana aqui e um poeta ali e tenta colocá-lo
num pedestal. No mundo do jornalismo as mesmas gangs e no
mundo da política a mesma velharada corrupta. Tudo igual:
só mesmo uma guerra civil de quinze anos poderá renovar
essa cloaca. Esse viveiro de vermes, essa cumplicidade e essa
coligação entre canalhas!
— Niemayer constrói um monumento à Bíblia.
— Murad depõe na CPI da corrupção.
— Marilin Monroe é mostrada pela televisão como se ti­
vesse sido uma heroína: a heroína da xota de ouro, das mamas
de vaca e do traseiro de hipopótamo.

69
I I
I
I
I
— A igreja católica está fissurada com as revelações de que
I I
um seminarista enrabava e era enrabado pelo falecido padre
i
Antonio Firmino.
i
l — A AIDS cresce em direção a todas as fronteiras, decidida
i I
a fazer uma limpeza neste planetinha corrupto. Para colaborar,
com o vírus, os mendigos e os marginais da vida fazem fila em
I frente aos Bancos de Sangue: vender o vírus! Esta é a política
■ I
nacional do momento. Os pobres não têm tempo para dormir.
A classe média tem insónia. A elite dorme obesa e dopada.
— A direita e a esquerda bebem na mesma fonte, mamam
I na mesma teta, riem e gozam do populacho ingénuo e votante,
com o mesmo sarcasmo.
— Uma anamnése competente junto a nossos "políticos"
registraria: 42% de psicose maníaco depressiva, 8,8% de hebe-
frênia; 39,2% de histeria e 10% com diagnóstico obscuro.
— A música é a única que se conserva imune. Um ou dois
minutos ouvindo o Prelúdio de Vila Lobos ou o Adágio en G
menor do Albinoni é suficiente para reerguer-se, inflar-se de
paixão e até de ternura!
I — Ela dorme: os seios rosados convidam minha boca, os
i
pentelhos negros camuflam o mistério, a mão esquerda cravada
I
I
i1
. I no travesseiro incolor. Cavalgo-a como um bárbaro. Ela acorda
I e requebra-se como uma Mesalina. Meu pau vai fundo, ela o
t abraça como se quizesse estrangulá-lo. A buceta verte licor
de suas paredes. A rádio informa o novo valor da OTN. Em
Hiroshima fazem um minuto de silêncio em memória à bomba
yanque. Seguimos cavalgando em homenagem as OTNs e aos
I japoneses. A cama trepida, seu clitóris vai crescendo em minha
mão direita, suas costas estão mordidas, seus olhos vidrados,
literalmente vidrados. No rádio o presidente do City Bank
entrevista-se com um asno de Minas. Pressentimos o gozo,
gritamos em coro, ao mesmo tempo que meu sêmen a reveste
por inteiro. O orgasmo é sempre prematuro e precoce, deveria
durar como duram as filas do INPS. Gritamos. Os vizinhos
tossem no outro lado da parede. Do rádio vem a notícia que
Sarney folga na chácara de Pericuman.

70
— Ascarel! Oleo de Ascarel nas águas do rio Guandú.
A população morrerá como moscas. Se não for hoje, tenham
certeza, será amanhã ou — por milagre — depois de amanhã.
E indiscritível o prazer de atacar e de denunciar as falca­
truas civis do mundo. Já é tarde da noite, tudo esta silencioso.
Domingo à noite as pessoas recolhem-se mais cedo, normal­
mente para curar o porre dos familiares ou a própria embria­
gues. Brasília, é uma cidade de bêbados. Droga-adictos! Os pais
tomam cachaça, os filhos cheiram cocaína ou cola de sapateiro
e a mãe ve TV. Para conviver com a burocracia e com o poder,
só mesmo embriagado. Um estranho liga para minha casa e
acusa-me de ser pessimista. Retruco: sou apenas um realista.
Ele desliga. Confiro no Dicionário editado pelo MEC:
PESSIMISMO —,s.m. Opinião ou sistema dos que acham tudo
péssimo ou de tudo esperam o pior.
REALISMO —, s.m. Representação fiel e direta da realidade
sem que intervenha a fantasia.
Para experimentar o que digo, abro um dos livros mais
realistas já publicados neste país59 e retiro dele alguns dados,
apenas algumas "curiosidades" quase macabras, enquanto a
noite ainda é silenciosa e as estrelas configuram no espaço um
show invejável:
— No Brasil há 5 milhões de prostitutas.
— A exploração infantil chega a afetar até mesmo crianças de
03 anos de idade que, nascidas nas chamadas "zonas de prostituição"
são submetidas aos clientes que as manuseiam e esperam que atinjam
05 ou 06 anos para então usá-las sexualmente.
— Em Crateus/CE, crianças de 06 a 08 anos são prostituídas
pela própria mãe.
— Em Mato Grosso, perto de Dourados, há 400 bordéis com
meninas de 10 a 16 anos.
— Em Recite, uma tal de Madanie Coca, prostitui meninas de
10, 11 e 12 anos. Nessa capital, 300 mil crianças e menores vivem
no olho da rua.

59 Lorcnzi, Mário. Prostituição infantil no Brasil e outras infâmias. Ed. Tchê, novembro
de 1987, Porto Alegre-RS.

71
I
I
— Em Santa Catarina e em Porto Alegre a prostituição é muito
I
i
I bem organizada, ali existem crianças de OS a 09 anos "trabalhando"
i em bordéis.
— No dia 2 de janeiro de 1987 o Sr. Leonardo Villeda, Ex- Secre­
I tário da junta Nacional do Bem-Estar-Social de Honduras declarou,
numa entrevista à Rádio América, que numerosos casais adotam
I crianças com defeitos físicos para vendê-las por peças separadas. Estas
■ i crianças são assassinadas e seus órgãos (fígado, rins, coração, olhos,
etc.) vendidos a hospitais ou a particulares para serem implantados
I
em crianças priveligiadas... Etcetera....
Respiro fundo! E inútil insistir na questão do pessimismo
I ou do realismo. Os vinte ou trinta mendigos que dormem sob as
marquises da Casa da Banha, quando os funcionários começam
abrir as portas vêm aqui para as escadarias do Teatro Municipal
espreguiçar-se e aguardar que alguma "alma misericordiosa"
lhes jogue uma migalha para o café da manhã. Com muito custo
mantive esse "interrogatório" indiscreto com um deles:
— Qual a sua profissão?
— Nenhuma.
— Desculpe, eu quis dizer "modo de vida", de "sobrevi­
i ]‘l vência", de "ganhar o pão".
i l — Ah, ah, ah, as palavras sempre atrapalhando o mundo,
I
i i não é verdade? Veja bem: eu não tenho um 'modo de vida',
I eu não 'sobrevivo' e nem estou interessado em ganhar pão de
I
ninguém. Eu simplesmente me deixo ficar à margem e à beira
i
de tudo. Sou como uma lesma amassada contra a parede...
Posso permanecer meses e até séculos lá, sem alterar meu
gesto, sem que com isso o mundo altere uma vírgula de sua
inutilidade...
— Deixe-me ser objetivo: você é mendigo ou não?
i, — Entre as "coisas" que sou, sou também mendigo.
I
— Desde quando?
— Oficialmente desde meus doze anos, camufladamente
desde sempre, desde que nasci. Mendiguei para nascer, mendi­
I guei para mamar, mendiguei para que me lavassem, para que
me amassem e, depois, para que me deixassem em paz, para
que me desamarrassem... A vida é um eterno mendigar! Um

72
dia, inclusive, chegará a hora de mendigar também a morte, o
exilio definitivo deste mundinho idiota!
— E essa hora está próxima ou distante?
— Próxima! A vida dos seres é como uma chispa vil e
fugidia, nem acaba de desabrochar e é logo tomada pela de­
composição... pela putrefação...
— O que o levou a tornar-se mendigo?
— Como já lhe disse, eu não me tornei mendigo, eu nasci
mendigo. Com o correr dos anos, fui consolidando minha con­
dição, essa condição de exilio permanente, essa condição de
quem está só, por opção, perambulando pelas ruas e avenidas,
"gozando" com o desenrolar dos fatos, com a palhaçada da
política, da religião e da sociedade "trabalhadora" e "elegante"
como um todo...
— E a vida sexual dos mendigos?
— Estamos permanentemente relaxados, soltos, saudá­
veis... Em outras palavras, estamos sempre prontos para o
amor. O ócio e a preguiça são fatores fundamentais para uma
vida psicológica e sexual intensa. Observo os pedestres que
passam: bah! que pena! Cheios de pacotes, de perfumes, de
artificialidades, caminham como se estivessem enferrujados,
encouraçados. Com esses corpos, evidentemente, deve ser
impossível "levantar o mastro" e mais difícil ainda "umedecer
os lábios"...
— E a religião?
— Nenhuma! Nossa religião é a rua, são as calçadas, nosso
gesto que recolhe os centavos e as migalhas que os filantropos
e as beatas nos brindam. As igrejas são para nós, como para os
padres, um comércio, um mercado onde vendemos as cascas de
nossas feridas e onde se vendem também as chagas de Cristo e
de São Sebastião. AIí sim é que, diariamente reúnem-se milha­
res de mendigos... homens e mulheres que mendigam saúde,
milagres, riqueza, cidadania, enternidades... São os mendigos
metafísicos, os delirantes da classe!!!
— Sua familia, onde mora?
— Sem dúvida nenhuma, no inferno. Aquela pobre mulher
que foi minha mãe... descabaçada por um trabalhador calejado

73
I
I
I
I e escravizado... O resultado foram os doze fetos, os filhos, os
I
mendigos. Unidos por garras de sofrimento, fizeram o jogo
I da chamada "civilidade", da chamada "constituição" nacio­
I nal. Política, religião e cidadania... O pús das vidas humanas.
I
O câncer que todos devem padecer sem remédio. Se é que meu
coração ainda consegue odiar, evidentemente esse ódio deve
ser canalizado contra meu pai e contra minha mãe, esses dois
’ I
mentecaptos que deveriam ter se castrado para não fazerem a
festa do circo...
— Algum desejo de reincorporar-se à sociedade?
I
— Olhe bem nos meus olhos! Sabes de algum prisioneiro
I que depois de sair da prisão tenha voltado a ela por livre e
expontânea vontade? De algum ser que, depois de galgar os
muros do manicômio, tenha voltado a ele para buscar os far­
rapos ou as algemas? I
— Algum segredo para a sociedade?
— Absolutamente nenhum, não tenho segredos desde há
muitos anos. Sou um barril transparente, um tecido de espuma
por onde o sol transpassa tanto pela manhã como pela tarde...
— E quando a vida estiver numa fase terminal?

1'1
. I
I
— Bem, aí eu saberei como abreviá-la. No meio destes
trapos, no fundo deste saco de lixo, carrego uma lâmina capaz
de degolar um dragão do mar, a usarei contra este corpo já
sem desejo, com a serenidade de um deus... e tenho certeza
que meu sangue provocará inveja a esses pobres e enrustidos
contemporâneos.
Quando me despedi, ele concluiu com esta descarada
provocação:
I - E os Direitos Humanos que se fodam!60

l!
60 Em 1973, no auge da ditadura militar no país, Jards Macalé dirigiu um espetáculo
I musical no RJ que se chamou O Banquete dos Mendigos, uma comemoração aos 25 anos
da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O espetáculo foi gravado em disco que
ficou proibido pelo regime até 1979.

74
•..i-
i

»
"Não faça pergunta tão hipócrita. Tu sabes muito bem, como eu,
onde Caim está, pois eu o matei com minhas próprias mãos enquanto
tu observavas impassível. Além do mais, fostes tu que proporcionaste
o motivo para tal".
Sloterdijk

No casarão verde abacate, depois de quatro escadarias


íngremes e barulhentas, chegava-se a um sótão sombrio e
misterioso onde eram conservados os queijos, as cervejas, os
salames, os pães, os vinhos etc, tudo made infamiglia. Era nesse
sótão que aconteciam as melhores punhetas e que, uma vez por
ano, uns dois meses antes da chegada do inverno, reuniam-se
as mulheres e as crianças da casa e mesmo da vizinhança, para
preparar os travesseiros e os cobertores para o frio. Sentados
em círculo, com o rádio ligado, retirava-se de dentro deles a
lã que era exposta ao sol e seus flocos pacientemente desfia­
dos com as mãos. Esse trabalho visava livrá-los da poeira e
dos ácaros, além de deixar a lã mais macia e mais confortável
para os quatro meses de ventos e geadas quase siberianas que
nunca atrasavam.
Com uns cinco ou seis anos, estava sempre presente àqueles
rituais que tinham, para mim, não só algo de lúdico, mas de
íntimo e de erótico, como se adivinhasse o cheiro dos corpos
da família inteira ali naqueles edredons e naquela lã já não
tão branca. Sim, apesar da idade intuía o cheiro dos fluídos
corporais, que iam do sangue, às lágrimas, do sêmen aos pei-
dos, de uma erisipela aos pentelhos. Minha própria concepção
poderia ter acontecido ali, no meio daqueles flocos de lã e do
rastro de alguma pulga... Outros cheiros indicavam a mijada
de um gato ou algumas gotas de chá, de elixir paregórico, de
óleo de rícino que eventualmente haviam sido derramados por
um doente, pelas visitas ou por ancestrais que nem cheguei a
conhecer. Tenho certeza que foi numa daquelas sessões que,
depois de me esbofetear com outra criança, ouvi por primeira
vez uma menção a Caim.
- Parem com isso! Parecem Caim e Abel!

77
I
I

Ao invés de Caim e Abel poderiam ter dito: Rômulo e


I Remo; Castor e Polux, Prometeu e Epimeteu ou dezenas de
outras duplas que ensanguentaram a história. Os irmãos Ivan
e Aliosha não se mataram entre eles, mas, pior, uniram-se para
assassinar o velho Karamazov. O que teria acontecido se Caim e
Abel tivessem dado um fim em Adão? Se ao invés do fraticídio
tivesse acontecido o parricídio?
Nos anos subsequentes as professoras e as devotas do
entorno voltariam a referir-se ao precursor do cassetete dian­
I í te de qualquer desvario. Ele era não apenas a metáfora mais
I
popular do mal, mas também do fracasso da família e de sua
I pretensão de educar. As brigas nos bares, os porres domini­
cais, as desavenças entre irmãos, entre vizinhos, entre pais e
filhos por um cache-col ou por um grostoli. Os tiroteios entre
jagunços, o sacrifício semanal de galinhas, as glebas de terras
ensanguentadas e os títulos falsos do governo Lupión cheios de
selos e carimbos. Um póster da Virgem Maria na sala principal
e um de santos em cada quarto. Sobre a minha cama - que
muitas manhãs de inverno amanhecia mijada - havia um anjo
da guarda afeminado passeando abobalhado pelos prados
. I do paraíso celeste. As brigas por herança, as infidelidades, a
'I
I negligência com os velhos, a wingester atrás da porta do quarto
I
paterno, a crueldade com os animais, as vacas com brucelose,
I os pinhões na chapa, a usura, a pose dos que eram um pouco
mais abonados e a lassidão dos vagabundos passeando em seus
cavalos que, para mim, eram todos clones do famoso Bucéfalo
de Alexandre.
A organização daquele germe de acrópole, o desenho das
casas e as cores de suas paredes, tudo me parecia uma simplória
afronta à modernidade que já explodia em outros cantos do
I mundo. A mesmice das cozinhas, das privadas,61 dos oratórios,
I
61 Não esqueço que Domnique Laporte escreveu “a privada, esse lugar repugnante
onde cada um faz silenciosamente seus pequenos afazeres, esfregando-se as mãos
é literalmente o lugar da acumulação primitiva, pequena taça de merda.” Naquele
vilarejo ítalo-germânico - como ainda em muitos pelo Brasil a fora - a privada era
uma casinha separada de onde se comia e se dormia. Algumas tinham apenas um
buraco redondo sobre a fossa, onde o usuário se colocava de cócoras e ficava ouvindo

78

I
do tanque, das frases e das crenças, tudo remetia, por uma via
ou por outra, ao crime anedótico de Caim. A lenda esdrúxula
desses dois fantoches bíblicos passou a fazer parte, aberta ou
sutilmente, de quase tudo. Se o pároco falava nela todos os do­
mingos e se estava lá no Génesis, - palavra que ninguém sabia
verdadeiramente o que queria dizer - por que não haveria de
estar também nos livretos didáticos e nos calendários dependu­
rados atrás das portas, com o primeiro sendo sempre execrado
e o segundo idealizado? Lembro que me incomodava o fato de
todas aquelas lendas e todos aqueles crimes fantásticos terem
sido sempre escritos e contados por Deus ou por seus mensa­
geiros. Algo naquela criança gostaria de ouvir a versão dos fatos
também da boca de lúcifer, de belzebu ou de satanás.62 Mas
não havia a menor possibilidade. A rezadeira sórdida de todos
os dias endereçada aos santos e ao papa fazia lembrar a velha
de Siracusa que orava pela longa vida de um tirano da época,
com medo de que a este pudesse suceder o diabo.63 Em termos
de desenhos ou de pinturas, talvez a representação de Caim
descendo o porrete na cabeça de Abel tenha sido a primeira de
minha vida, ou pelo menos a que chamou mais minha atenção,
sem falar da pintura de Hieronymus Bosch inspirada nos sete
pecados capitais que ilustrava o verso de um almanaque. Em
meus pesadelos de criança, de quando em quando surgia uma

o barulho da chegada dos dejetos lá no fundo escuro e tenebroso da fossa. Outras»


- inclusive a de minha casa - já tinham uma espécie de cadeira de madeira, onde o
conforto era bem melhor. Como ainda não havia papel higiénico, cada pessoa levava
consigo umas folhas de jornal que, depois de usadas, eram amontoadas num canto
do ambiente. Sempre havia moscas rondando aquele sub-produto demasiadamente
humano. Só bem mais tarde, com o modernismo, foi que o Estado, usando parte dos
impostos, planejou e conseguiu canalizar toda aquele imundície para uma espécie
de cloaca central.
62 Hoje, com cinquenta e nove anos, consigo compreender que apesar da ideologia vigente
naquela época e de minha aparente beatice, cultivava secretamente uma admiração imensa
por Caim. Enquanto as freirinhas laicas faziam de tudo para execrá-lo e para demonizá-lo,
eu ia aos poucos adorando-o como uma espécie de irmão mais velho e como herói. E isto
não apenas na teoria e na idealização, mas na prática, Quem conhece minha biografia
infantil sabe o quanto eu atiçava e aterrorizava a vida dos professores, das outras crianças
e dos outros adolescentes.
63 Matar não é crime, p.27.

79
I
I

das tais Cabeças Invejosas, ou Górgonas da mitologia grega que


qualquer matuto de então sabia que representavam a encarna­
ção do mal. Lembro que naquele lugarejo havia um mendigo
conhecido por Pirulito e dois sujeitos que se chamavam Abel,
i . mas que em todos meus trottoirs posteriores pelo mundo afora,
jamais encontrei alguém que se chamasse Caim.64 Não havia
mais remédio, a merda civilizatória estava feita, estava imorta­
lizado o preconceito, a cegueira, o sectarismo e a dificuldade de
pensar o mito com o próprio cérebro. Caim estava incrustrado
no imaginário das massas como um Calígula, como a Besta do
Apocalipse e como uma espécie de fantasma que fomentava
I no espírito das pessoas - como diria Lévinas - a perseverança
do mal. E tudo isso parecia ser muito pior, não só que a inveja,
mas que os sete vícios capitais juntos.
Rezas, velas, novenas, promessas, chá de marcela, incursões
pelo Parque Nacional, incenso, missas, o estoicismo, as famílias,
as solteironas, as viúvas e principalmente as mulheres da zona
faziam de tudo para evitar que as trevas do crime de Caim
viessem descambar sobre a aldeia e manchar a honra dos seus
irmão e filhos. Naquele furor e esforço para evitar que o porrete
I
I
I
'1' daquele primeiro criminoso fosse arremetido contra a cabeça

i
11
. I
de um ente querido, contra a cabeça de um dos frutos de seus
ventres ou na própria, todos vigiavam a entrada de estranhos e
ii I I de vagabundos na cidade e todos se esforçavam para controlar
seus mais verdadeiros instintos e indeléveis desejos, chegando
I até ao desprimor de negar estupidamente a si mesmos. Tudo
isso com a ilusão de banir qualquer sinal do abominável mal
cainesco: a inveja, o fratricídio, a indigência e, por tabela, os
•: outros seis pecados capitais que, diante da Invídia, pareciam não
significar muito. Mas todo esse esforço não servia para nada, a
luta interior entre os filhos de Deus e os filhos de Caim não tinha
fim. A inveja estava bem visível ou mal camuflada por todos os
lados, corroendo o estômago e as tripas da comunidade. Um
comerciante fazendo macumba contra outro; um alfaiate que-
l
64 O cubano Guilhermo Cabrera Infante (1929-2005), autor de Três tristes tigres, escreveu
criticas de cinema durante muito tempo oculto sob o pseudónimo de G. Cain.

80
rendo que o outro falisse; um bandido querendo que o outro
fosse baleado; um bêbado querendo beber mais do que o outro;
um carpinteiro invejando a construção feita pelo colega; um
padre desqualificando o sermão do coroinha; a costureira tal
invejando e desejando a decadência da outra. Uns querendo
que o câncer se instalasse antes na próstata dos outros, uma
solteirona febril de jalousie pela recém casada, a recém casada
morta de ciúmes da irmã grávida; pais de uns depreciando os
filhos dos outros... E tudo isto constituindo verdadeiros infer­
nos mentais, adoecendo, envenenando, destruindo todas as
relações e a mínima chance de ver florescer no meio daquela
tirania, pelo menos uma horda virtuosa.65
Nas noites de tempestades e de ventanias, quando as
paredes ameaçavam ruir sob o bombardeio de tantos raios,
sempre havia alguém queimando ramos de oliveira pela casa e
lembrando não apenas do Dilúvio, mas de que Caim tornou-se
o primeiro vampiro terrestre. Que era o rufião-mor da strego-
neria, que circulou pelo mundo amigado com uma feiticeira,
que iniciou vários outros vampiros e que depois desapareceu
misteriosamente. Onde estaria? No coração dos homens, repetiam
na igreja ingénuos coroinhas e os sádicos padres.
Cusparadas nas paredes, no chão batido das estradas,
nas tábuas da lei dispostas nos botecos, nas privadas e nos
barrotes das capelas. Alguns dentre eles gostariam de ter a
permissão divina para eliminar de forma radical todo o vício
pessoal identificado malignamente no Outro, principalmente
quando o Outro era um pobre nativo desempregado. Matar.
Varrer do mapa todo o sujeito afetado pelo mal, pela fraqueza,
pela frouxidão espiritual, enfim, qualquer um que os fizesse
lembrar que - como tembém escreveu João do Rio - "desde Caim
o homem traz na pele o gosto apavorador do assassinato".66 Anseia-
vam por um poder semelhante ao que tiveram os inquisidores.
Mas era aí que se deparavam com uma contradição e com uma

65 Um tirano - dizia Platão - precisa exterminar todas as pessoas de virtude, se quiser


viver em segurança. Fica reduzido à fatal necessidade de viver entre covardes e infames
ou de desistir de viver. Citado por Sexby, p. 59.
66 João do Rio em Âs crianças que niatam.

81
I
I interdição divina que não compreendiam e que na intimidade,
■ I não aceitavam. Segundo o padre e segundo a Bíblia, Deus teria
i feito a seguinte ameaça:
i "Quem matar Caim, sete vezes sobre ele cairá a vingança!"67
i
i I — Que merda de proteção é essa! Bradavam aqueles exi­
lados italianos depois de uma garrafa e meia de vinho sem
muitos recursos culturais para a subjetividade. Aqueles homens
I simplórios que haviam chegado a mais de meio século no Brasil
como verdadeiros mendigos, depois de uma vida miserável na
Itália e uma travessia épica de meses em navios precários e por
um mar quase sempre revolto. Chegaram à selva paranaense
cheios de ressentimento e alguns nem ocultavam seu rancor,
sua inveja neurótica e sua ira contra os poderes daquela nação
que os havia banido e mesmo contra um ou outro membro da
comunidade ou da própria família. Como não sentir inveja e
ódio dos monarcas e dos grandes latifundiários a quem tiveram
que vender suas propriedades antes de lançarem-se ao mar?
E mesmo dos próprios companheiros de infortúnio que, ao
invés da desolação brasileira, foram bem mais afortunados,
desembarcando ao "leste do Éden", nas promissoras terras da
Aniérika, símbolo da Nova Jerusalém?68 Deslocavam com faci­
I
I
I lidade essa fúria interior a seus filhos e a pessoas semi-pagãs
l . I que instintiva e naturalmente não estavam nem aí para seus
i I •
I delírios e que cagavam sobre seus preceitos e ideais europeus
de comunidade, de ordem e progresso, de submissão e de fé.
I I Proibidos pelo poder maior de levar à prática sua ira e sua
sede de vingança contra o homo pecatoris, contra os pobretões
desnaturados, quando embriagados, longe do padre, dos filhos
I e de suas mulheres, livres das feições cerimoniosas, se davam
o direito de esbravejar:

I’ 67 Sem querer ser chato, observem como tudo indica que Deus e Caim, por alguma razão que
jamais saberemos, eram cúmplices. Pois, quem é que faria esse tipo de ameaça para proteger
alguém, quando esse alguém não c seu comparsa. Nem mesmo o pessoal da Camorra ou do
PCC!
68 Alguns tinham consciência da analogia que havia entre a história de Caim c a sua própria
I história. Ambos banidos e nómades no meio de todos os tipos de tormentas fazendo de tudo
para maquiar sua permanência ali naquele “Oeste do Paraná”, vagando pela terra sem descan­
so, lutando com animais, com seres de sua própria espécie c com a natureza inóspita.

82
-Porco Can!69Como é possível que Deus, que foi tão duro
com Caim logo após o crime, tenha amolecido desse jeito? Que
tenha lhe concedido um hábeas corpus sem petição alguma?
Como resposta o eco da interdição divina:
- Sobre aquele que matar Caim, recairá sobre ele sete vezes
a vingança!70
- Se temos que respeitar? Tudo bem... Mas que porra é
essa? Que julgamento foi aquele? Deus teria se equivocado?
Teve acesso a outras informações sobre a intimidade daquela
pequena família e mudou de opinião? E possivel pensar um
Deus indeciso e ambíguo? Teria compreendido que Caim fora
vítima de uma injustiça materna e que matou Abel em legíti­
ma defesa de sua auto-estima? Teria Deus compreendido que
na opção profissional de Caim e Abel qualquer um já poderia
perceber quem dos dois tinha verdadeiramente um caráter
mais ético e útil para o futuro da humanidade? Ou Deus nutria
uma simpatia especial e secreta por Caim? Que, ao contrário
de Abel, - quem inaugurava com seu pastoreio os futuros
malefícios dos grandes rebanhos, da reprodução planejada de
animais para a carnificina dos açougues, para a comilança de
carne e para a sangueira que é hoje o mundo - como agricultor,
lançava sobre o planeta as sementes do vegetarianismo, do
respeito pelos animais, pelas raízes de bardana, pela alquimia
e pela agricultura? Teria Deus compreendido que Caim era o
cara verdadeiramente amoroso e legal, o anti-idiota - tanto é
que sua irmã decidiu acompanhá-lo no degredo -, ao contrário
de Abel, que se revelou um manipulador de afetos, o inventor
do sacrifício de animais, da zoofilia, da idolatria, o patrono dos
pecuaristas e da bajulação esotérica? No auge dessas indagações
sempre havia alguém agnóstico para lembrar que "um cão não
condena outro cão".

69 Não entendia naquela época c não entendo nada de etimologia das palavras, mas sempre
que ouvia esta blasfêmia, que quer dizer “cão porco” (Porco Can), acreditava estar se tratando
de Cain, já que a diferença era apenas de um “i" Também quando alguém queria imitar o
“choro" de um cão, fazia caim... caim... caim... caim...
70 Existe atualmente cm Roma uma associação que luta contra a pena de morte e que se cha­
ma: Ncssuno tocchi Caino (Ninguém toque em Caim).

83
I
I , Quando o efeito do vinho passava e as sinapses voltavam
I
ao ritmo normal... Ah! Como aqueles pobres blasfemadores se
sentiam oprimidos pela culpa de suas sacrílegas especulações
e pelo olho onipotente e persecutório de Deus que parecia
lembrar-lhes que "quando se julga algo é outra coisa que se
está julgando". Mesmo os mais jovens e os mais instruídos, que
haviam chegado a pensar que, no fundo, tudo o que provém
da fé é pecado, não se atreviam, por nada daquele mundo,

i: colocar suas vontades acima da vontade suprema da Santíssima


Trindade.71 Apesar da distância, o Vaticano conseguia exercer
sobre eles a mesma vigilância e a mesma opressão de quando
I viviam no Vêneto ou no Ti rol. Se não queriam ou não podiam
buscar explicações com o padre, o faziam com um ex-filósofo
meio louco, sofrendo de hérnia inguinal, que morava no porão
da igreja e que, com um símbolo esotérico de metal luzidio no
pescoço, sempre lhes repetia a mesma história tanto com relação
à oferta de Caim como em relação aos Sete Pecados Capitais:
— "Não sejamos hipócritas - resmungava -. A oferta de Caim
foi rejeitada porque nela não havia vestígios de sangue. Todos sa­
bemos que o deus daquela época era sanguinário. Com relação aos
Pecados Capitais, tudo começou com um monge grego (345-399) um

[f.
I I
tal de Evagrius de Pontus - dizia. Observando o comportamento de
sua gente nas aldeias daquela época e plagiando a lenda de Pandora,72
o monge listou oito sentimentos humanos que lhe pareciam a base
do desrespeito a Deus e das discórdias entre as pessoas. A inveja
ainda não constava na lista desse grego, foi o Papa Gregário, lá pelo
! ! final do século VI que a incluiu, baseado no que via e ouvia nas
"sacristias" da época. Mais tarde, no século XVIl, o grande Tomás
de Aquino substituiu o quarto pecado, que era a melancolia, por um
chamado Preguiça."73

71 Robert A. Heinlein chamava atenção para a comicidade do fato daqueles que acredi­
tando na Santíssima Trindade seguem insistindo que sua religião é monoteísta. Esse tipo
de gente - dizia ele - é capaz de acreditar em qualquer coisa, só precisa de um tempo para
se acostumar com a ideia.
72 Nessa lenda grega que envolve os irmãos Prometeu e Epimeteu, Pandora teria aberto
! i a caixa onde estavam contidos muitos males e deixado escapar a mentira, as doenças, a
inveja, a velhice, a guerra e a morte.
73 Aquino teria reconhecido que a melancolia era uma doença mental (e não um pecado)

84
Apesar das teias de aranha e das condições insalubres
onde essa conversa era travada, todos o ouviam falar e filosofar
pacientemente, principalmente quando ele entrava na parte dos
pecados perdoáveis e dos imperdoáveis, quando lhes assegurava
que Caim era fruto de uma relação carnal enquanto que Abel
havia sido gerado pela força do Espírito Santo ou então, quando
lhes repetia a anedota do Démon soufrant. Tratava-se de uma
história na qual um demónio encontrava outro demónio que
chorava, rolava pelo chão e que gritava como se estivesse com
uma dor sem igual. De que sofres tu? Pergunta-lhe então o
primeiro demónio. Ao que o outro responde em prantos: tenho
um anjo dentro de mim e ele me atormenta!74 Riam às garga­
lhadas ao final da história, mas logo resgatavam a sobriedade
de quando haviam entrado naquele submundo, pois a imagem
daquele homem não inspirava quase nada de salutar. Em seu
isolamento e em sua velhice ficava cada vez mais visível a
espécie de sonambulismo trémulo e atormentado de que os velhos
só acordam na hora da agonia extrema... E para morrer.75 Certa vez
lhe perguntaram por que não arrumava uma mulher para lhe
fazer companhia, ao que ele respondeu indignado, citando uma
frase de Nietzsche: um filósofo casado é uma piada.
- "A Soberba - prestem bem atenção - essa é a mãe de todos os
pecados." - Finalizava sua prédica.
Alguns voltavam a ensaiar um riso cínico ao ouvir esta
última observação, pois traziam um ditado da região de onde
provinham, segundo o qual, o avaro é como o porco, só é bom
depois de morto.
Não saiam necessariamente daquele lugar - onde ha­
via, sobre um caixote, a estatueta da deusa Temis com os
olhos vendados76 - mais confortados e mais lúcidos do que

c a excluiu da lista, ou achou - como muita gente ainda pensa - que aqueles sintomas
eram de pura preguiça?
74 Ver Jean-Claude Carrière, Le crede des menteurs, Plon, pp.398, 399, Paris 1998.
75 VerTassilo Orpheu Spalding, Da mitologia latina, Cultrix, p.146, São Paulo, 1982.
76 Fazia sempre questão de lembrar que foram os romanos que colocaram a venda
nos olhos da deusa, não necessariamente para insinuar imparcialidade, mas para que
ela não visse alguns tipos de crimes.

85
I
I
I quando haviam entrado,77 mas aquela "prédica" lhes servia
pelo menos para compreenderem melhor a complicação
i ardilosa de todas as coisas. Apesar de incrementar neles as
I suspeitas de que o Criador não havia sido lá tão justo como
I
I se esperava, como ainda não havia fluoxetina e nem aspirina
disponível, iam amiúde e receosos confessar e comungar-se.
A comunhão era um ritual tipicamente italiano, durante o
qual pediam à troupe celestial que lhes desse, pelo menos,
ânimo e coragem para manterem-se dentro dos limites das
!l quatro virtudes cardeais e, se possível, também das quatro
.11 virtudes teologais, a saber: fortaleza, justiça, prudência, tem­
perança, caritas, humilitas etc. Cair na mendicância, jamais!
E seguiam suas pobres vidas naquele nevoento fim de mundo.
As mãos calejadas, trepando somente no escuro e apenas para
reproduzir, ora cabisbaixos, ora eufóricos e assassinando um
paraguaio cada final de semana. Uns dançando suas músi­
cas trentinas e gritando por Giusseppe Garibaldi, outros por
Mussolini, deixando escapar uma blasfêmia aqui e outra ali,
reprimindo seus mais legítimos desejos, sufocando a dúvida
e a angústia ora no vinho, ora no cigarro e ora no catolicismo,
beijando compulsoriamente o escapulário antes de entrar no
h Parque Nacional, na eminência de qualquer perigo e mesmo
i1
. I antes de saírem de casa para o simples dia-a-dia daquela vã
I I
e inesquecível escravidão voluntária. Quando lhes chegavam
I cartas do velho continente querendo saber como estava a vida,
respondiam parafraseando Claude Debussy - sem o saber - a
respeito de Wagner: "um belo pôr-do-sol que a gente acreditou
ser uma aurora".
i
I Nos domingos à tarde, quando praticamente a população
masculina inteira esqueirava-se ébria pelos botecos, e as mu­
I lheres bebiam chimarrão e mordiscavam grostolis à sombra,
I não era difícil ouvir na fachada das casinhas azuis de madeira
alguém recitando D'Anunzio ou Dante. Lembro de um tio eru­
dito, com uma Parabélum na cintura murmurando à atendente
I
77 Para alguns, inclusive, aquele assunto lhes era tão deprimente que saiam de lá tomados
pelo sentimento - que menciona Luis Dolhnikoff - de estar com merda na alma.

86
de um bar esta frase de um poeta inglês: "para que um homem
se torne poeta é preciso que esteja apaixonado ou desgraçado. Eu sou
as duas coisas juntas".78
Mas, voltando à realidade, os dias amanhecem, anoitecem
e se repetem infinitamente com seus movimentos solares e lu­
nares, sem alterar em nada a coreografia e nem o ritmo das
tropas de mendigos, indo e vindo por nossas urbes numa mi­
gração sem fim e numa ascese suicida. Buscam o quê? Quer
saber o governador do Estado. O inferno! Retruca-lhe um fun­
cionário de carreira. Perderam o paraíso e agora querem saber
como chegar ao inferno. A cachaça, a cocaína, o crack, as sopas
beneficentes e as polícias os conduzirão para lá sem demora.
Os perfis são os mais diversos. Vi mendigos com os cabelos
como musgos, com os olhos de fogo, as pupilas amarelas. Vi
muitos com sinais evidentes de genes lusitanos, traços germâ­
nicos, africanos natos, italianos do sul e até índios. índios? Sim.
Um deles dançava e entrava em transe em plena Avenida Pau­
lista. Parecia estar dias sem comer, prestes a cair numa crise de
hipoglicemia. Tupinambás e tupiniquins, considerados "sem
alma" pelo clero e descendentes de Caim pelos exegetas. Cla­
ro que essa mendicância é rapidamente eliminada por algum
vírus suburbano ou escamoteada pelos inúmeros órgãos que
administram a vida desses infelizes. Mas assim que uns mor­
rem e uns são mandados de volta para as tribos, outros já estão
ingressando nesse faminto e terrível exército. Como poderiam
estar ausentes nesses rebanhos de miseráveis, eles que, donos
naturais do território, foram banidos há séculos das terras e até
de si mesmos?
Sabe-se que esses dois grupos eram inimigos mortais um
do outro e que, ao invés de defenderem o território que era
deles, se uniram aos invasores (os tupiniquins aos portugue­
ses e os tupinambás aos franceses) numa tentativa de exter-
minarem-se uns aos outros. Se foderam! Naquela época - di­
zem os especialistas - havia nas nossas florestas movimentos
compulsivos de migração. Manipulados por pajés mentirosos

78 Lord Byron.

87
I I
I . e crápulas ou por conta própria os grupos ziguezagueavam de
I I um lado para outro em busca da Terra sem mal, uma versão
primitiva de paraíso, que denominavam: Kandire. Fato que já
I se caracterizava como uma forma de mendicância, uma men­
I
I
I
dicância celeste e metafísica.79

I' I

, I

ll

l!
79 ”O caminho rumo à Terra sem mal - escreve Sérgio Leucovitz, em Kandire: o Paraíso
Terreal - era, ele mesmo, marcado pela ascese. Os índios acreditavam que pelo canto, pela
i| dança e pela recusa em se alimentar de carne, poderiam libertar-se da parte perecível da
I pessoa e, pela leveza, alcançar o Paraíso terreal”. Como se pode ver, nosso misticismo e
nossa esperança em algo é uma doença que vem de muito mais longe do que se pensa, e
que está cravada de maneira irreversível em cada um de nossos miseráveis ossos.

88

í
i
"O homem que teu tu ser bom o tempo todo está fadado à ruína entre os
inúmeros outros que não são bons. Por conseguinte, o príncipe que desejar
manter a sua autoridade deve aprender a não ser bom".
N. Maquiavel

Free-shopl Estas duas palavras parecem capazes de alucinar


não apenas a pequena burguesia, mas até mesmo aos velhos
proletários que aqui, como moscas em uma privada, zigueza­
gueiam de um lado a outro, afoitos, apressados, obsessionados!
Os dólares e os cartões de crédito passam de um lado para o
outro do balcão e as vitrines reluzem porcarias internacionais:
relógios brinquedos, cigarros, máquinas, rádios, lã de manches-
ter, licores, canetas... O alto-falante convoca para o embarque e
a pressa da turistada aumenta. Pelo menos um perfume! Pelo
menos uma sombrinha! Uma velharada disforme, amorfa, en­
dinheirada que não sabe o que fazer da vida e dos tesouros...
A obesidade tortura essa classe na mesma proporção que
os ossos e a esbeltez caracterizam os mendigos. Permaneço no
ambiente, os ouvidos e os olhos abertos e no bolso o cartão de
embarque da Alitália.
Fazem uns quinze anos que viajo pelo mundo e tudo parece
eternamente igual. Num free-shop as pessoas se desnudam, o
consumismo as sufoca e é comum encontrar pseudo marxistas
babando sobre uma porcaria qualquer. Observo-as com espécie
de "paixão antropológica", uma paixão idêntica àquela que
sinto quando enquadro um mendigo em minha câmera. As
mulheres fazem pose quando descobrem-se observadas, depois
fingem esquecerem e esnobam dólares e riquezas. Normalmen­
te estão com a xota congelada mas não conseguem estancar
o teatro histriónico. A Alitalia chama novamente: são 23,30
horas. Na fila, personagens de Fellini e dos bacanais romanos.
Misturo-me aos passageiros e sinto o êxtase do anonimato, do
nomadismo e da solidão. Amanhã, se este avião não mergulhar
no Atlântico, estarei em Milão, Roma, Palermo...
Pela manhã os banheiros do avião são insuficientes. Todos
querem livrar o ventre, iniciar o dia com o ventre livre. Vejam

91
I
I I
I
I que curioso e que trágico meu descobrimento aqui nas alturas:
I
I
até a famosa Lei do Ventre Livre não foi mais do que outra e sofis­
í ticada expressão de racismo dos portugueses contra os negros
i
no Brasil, pois se Prisão de Ventre quer dizer congestionamento
I
I
I
I de fezes no intestino, é evidente que Ventre Livre alude a ex­
pulsão de material fecal.80 E impressionante saber que os negros
em especial e a população em geral, jamais suspeitaram dessa
sacanagem... Mas ficar ruminando agora, aqui no meio das
nuvens seria estúpido e infantil, inclusive porque escravidão
mesmo veremos daqui a uns cem anos, com a cibernética e com
os computadores. Quando cada um de nós levar implantado
I um parafuso implantado na língua lembraremos da escravidão
negra, india, asiática etc, como um ensaio singelo de opressão
e de massificação. Sim, tudo indica que ainda andaremos com
coleiras e com etiquetas nas pernas como os cachorros castra­
dos ou como vacas leiteiras. Nossa única resistência, por ora,
são os mendigos, esses loucos suicidas que rasgaram até suas
cédulas de identidade e que se negam a participar desse projeto
penitenciário criminoso.
Roma. Aeroporto Leonardo da Vinci. Uma cidade encan­
tadora, doentiamente católica, arrogante, estética. Apto 389,
Albergue Sorrento. Uma ciganinha de 10 anos tenta dar-me o
< •1 golpe do jornal. Porra, logo em mim? Sua mão hábil e vil abre-
I 1 me a bolsa. Recuo a tempo, ela perde a presa. Três ciganos a
protegem de longe, do outro lado da rua. A beleza nos trens,
posters sobre a AIDS por todos os lados. Napoli, Pompei, Balti-
I
paglia, Paola, Rosário, Villa Giovanni, Réggio Calábria. O Trem
desliza entre as montanhas e o mar como se deslizasse preso ao
escroto do extinto Império Romano. A noite cai sobre a Calábria
como um paraquedas de fuligem. Sou o único passageiro no
trem que vai da Villa Giovanni até a Calábria. Um trem de 10
vagões especialmente para transportar-me à artéria máxima
da máfia. Hotel San Giorgio (tudo aqui tem nome de santo),
apt. 10, 25 mil liras. Anónimo. Absolutamente anónimo. Uma
parada cardíaca ou um tombo no banheiro me levaria para a

80 O lugar mais útil das casas - dizia Gautier - são as latrinas.

92

I
geladeira do anfiteatro local, com uma etiqueta amarrada aos
pés. Meus dólares desapareceriam, estas páginas limpariam o
rabo de um calabres e o mundo não alteraria uma nota de sua
melodia asquerosa.
No outro lado, as montanhas opacas da Sicília. O navio
tremula de quando em quando e a cidade de Messina vai se
evidenciando como um filme corretamente mergulhado no
revelador. Piso o solo Siciliano como quem pisa um campo
minado, mas tudo não passa de preconceito e de mito, pois
a máfia brasileira coloca a máfia Siciliana no bolso... Catania.
Siracusa. Agrigento, Trapani, Ragusa, Enna, Caltanisseta, Mes­
sina e Palermo... Ciao Sicília!
No trem, quatro Sicilianas dormem. Em seus rostos a
configuração de uma histérica, uma cínica, uma assexuada
e uma meiga, adorável, apaixonante. Observo-as enquanto o
trem rasga os túneis e desliza quase por sobre o azul do mar.
A boca humana retrata durante o sono a história, a tristeza e a
eterna incensatez do mundo. Lábios secos: o vento vai secan­
do os lábios das sicilianas e cada um deles vai inventando um
desenho distinto: de ira, de abandono ou de desejo. Passaria a
língua em cada um deles para que não se ressequem, para que
não se desidratem. Depois, deixaria que minha boca sondasse
o pescoço, os seios, a barriga e por fim, os outros lábios, quase
sempre úmidos e salgados...
Uma montanha ao longe, a história do Etna que no ano
121 a.C fodeu meio mundo, os gregos, os fenícios, e outros
capuchinhos que por aqui desenharam suas cruzes! Palermo,
linda e atraente, uma pequena Barcelona, só que é Palermo!
Castanhas na brasa vendidas por um homem que tem as mãos
como se fossem garras.
Até agora nada de mendigos. Sei que existem, que devem
estar hibernando em alguma cova ou em alguma catacumba81.

81 Tenho notícias de que o sono dos mendigos normalmentc é profundo. Qual seria o
truque? E isso não seria uma contradição com a miséria mental e corporal em que vivem?
Mesmo assim, não acredito nisto que escreve Laurendeau: “je ne crois pás au désespoir
de gens qui peuvcnt dormir. Quand lesprit garde ce recours, cest que le corps nest pas
essentiellcment malade. Et le corps suffit à guérir lesprit, à la longue”. P. 7

93
I
I Na rua Corso dei Filie, uma pomba defeca solenemente sobre
I I
minha mào esquerda. A merda atingiu uma velocidade tal,
que ao chocar-se com minha mào, espalhou-se por quase todo
i o meu corpo. O mais importante e curioso de tudo isso, é que
i
i
I era verde, mas tão logo iniciei a inútil tarefa de limpar-me, foi
I
transformando-se em amarela. Que fatalidade, estavam ali as
côres da bandeira brasileira... Dizem os livros herméticos que
submergir o corpo nesse material, da sorte! Cinco dias na Itália,
começo a sentir o cheiro íntimo das mulheres. De quando em
quando, inesperadamente, um tremor nos testículos e uma
latencia no peru. O que nos distingue das outras bestas - lem­
I brava o velho Beaumarchais - é que nós bebemos sem ter sede
e gostaríamos de fazer sexo a maior parte do tempo.
Na Catania, procuro a Praça dei Martiri e acabo chegando
em outra, decorada por uma escultura de um grego gigantesco
que enrabava uma das deusas do Olimpo. Quem quiser testar
seu estômago, que entre numa restaurante da Catania e que
peça um Spaguetti al Nero. Só agora entendo porque acusam
esse filho da puta de ter incendiado Roma. A cada esquina
uma igreja, um beato ou uma santa de preto, fato grotesco,
mais facilmente compreensível em se tratando de uma cida­
de medieval, fincada no perímetro de um vulcão fumegante.
O único mendigo que encontrei até agora, tinha os dentes fortes
t
I I e amarelos como os de um cavalo.
» Siracussa! Pedaços de um teatro grego, o Ouvido de Dio-
i
I , nizio, a parte antiga da cidade. Pêssegos, peras e o Corriere
delia Sera. Negros do Senegal quebram a italianidade de uma
avenida vendendo plástico comum por rabo de camelo. Na
Argélia, os tanques cospem fogo sobre uma população faminta
enquanto subo e desço por ruelas barrocas, procurando algo
que não existe, pensando algo que não é viável, consolidando
l! essa paixão absurda pela vagabundagem e pelo exílio! Não
tenho pátria, nem moral, nem identidade. Sou grego quando
estou na Grécia, e vil quando invado as portas da canalhice
social. Sou um traidor por excelência e um camaleão em pânico
I
por não poder freiar o tempo, esse "tanque de guerra" que não
> poupará ninguém. Os milénios passados que não testemunhei

94

I.
e os séculos futuros que não terei chances de vivenciar me en­
chem de fúria, exatamente como se eu quizesse ser uma peça
fundamental desse inútil triturador que é o mundo!
O rebolado perverso do trem noturno, apitos, gritos, idio­
mas inexistentes! Brindisi: a parte antiga da cidade. Paredes tão
velhas como o mundo, a marcha sepulcral dos soldados. Subo e
desço ladeiras sem fim, o cheiro dos pães fugindo pelas janelas
de um panefício, o canto especial de um Cuco. Um velho resolve
acompanhar-me: diminuo a marcha, fixo o olhar em seu perfil
desfeito pelo tempo, pela maresia, pelo desencanto. Fala como
se eu o entendesse, resmunga, deixa escapar uma torrente de
murmúrios como se fosse uma cachoeira. Atravesso a Cesare
Battisti, por onde as adolescentes passam em motocicletas,
deixando as saias esvoaçarem para que eu veja o couro preto
do assento cravado entre suas coxas. Ruelas estreitas, bem es­
treitas, onde apenas os minúsculos carros italianos conseguem
passar. Em cada porta uma anciã que espia. Cuecas, lençóis e
calcinhas dependuradas nos varais. A porta da rua dá direta­
mente ao quarto de dormir, sobre uma cama de casal o póster
da Virgem Maria com uma inscrição: Eco, tu Madre. O crucifixo
é a espiroqueta que destruirá esse povo. Nas livrarias o mesmo
lixo cultural, tudo repetido, o Bolero de Ravel editorial. Quanto
mais caminho mais vou me apaixonando e enchendo-me de
tesão pelas pedras que piso, pelos ângulos das janelas, pelas
sapatilhas andarilhas que trucidam o mundo. O sol aparece, as
fontes tagarelam indiferentes à minha sombra que mergulha
nelas como um bandido. Entro numa sapataria e mando fazer
mais dois furos em meu cinturão. Magro. O ser humano deve
ser magro, levar os ossos à mostra. Um de meus mais "sérios
problemas psicológicos" sempre foi esse, e meus analistas pode­
rão testemunhar: ter que comer: Ter que comer carne, tomates,
spaguetti, bucho de bode, fígado de galinha, pele de avestrus.
Qualquer "criador" com um Q.l acima de 70, teria criado um
corpo que se alimentasse de ar, de sol ou de brisa. Sim, viver de
brisa, essa deveria ser a meta e a busca frenética da tecnologia
porque, depois de tudo, ainda nos pouparia do ato humilhante

95
I
I 1

i
I e incómodo de cagar. Que necessidade mais ridícula essa! Se
I
pelo menos cagássemos ouro, safira ou notas de 100 dólares!
í Mas não, cagamos essa pasta amorfa, fumegante e cínica que
! nos olha desde sua baixeza como se ainda nos quizesse acusar
I de alguma coisa... Que bosta!
A praça do porto vai se enchendo de andarilhos, o navio
já se acomoda para partir, uma última olhada na Gazzetta del
I , Mezzogionio e, para o outro lado do mar onde está a Grécia,
!, específicamente Patras. Ciao! Arrivederzi Itália!
I I Eolos, um velho navio grego navega na escuridão da
noite e do mar. Vinte horas esquiando sobre o Adriático, esse
I rio salgado que deve ocultar em suas profundezas milhares e
milhares de crânios e de tíbias anónimas. A bordo, os passa­
I geiros agarrados a seus livros e a seus cigarros, como loucos.
ll A tara sendo amenizada pela visão e pela boca. É difícil estar,
simplesmente estar, sem ter que fazer, dizer ou acontecer.
Um mapa aberto sobre os joelhos, o indicador correndo
de um extremo a outro do globo, o rosnar manhoso dos moto­
res. Terra à vista! Patras. Três horas depois, Atenas. O grande
problema das viagens é como fugir da rota por onde circulam
os turistas, esses patetas que parecem comandados por quatro
pilhas rayo vac. As mesmas perguntas, os mesmos endereços,
I a mesma quantidade de malas, a mesma cara de hebefrenia
i I '
diante da máquina infernal do turismo internacional, coman­
I dado pelo império do dólar e do inglês. Bonezinhos ridículos
I I enterrados até as orelhas, bermudas até a canela e à mão sempre
uma Nikon. Os defuntos gregos são testemunhas de que em
nenhum momento tive o descaro de tirar minha câmera da
bolsa para fotografar esses amontoados de pedras, essas colu­
nas em forma de cacetes! O fiz em Acrópolis - é verdade- uma

p única vez, para fotografar um gato preto que, como um monge


tibetano, assistia imóvel o cacarejar da turba.
Nas ruas, por fim, os mendigos. Inesperadamente, majesto­
samente, aparecem. A mão estendida, um lenço preto tapando a
I cabeça ou a boca, um olhar assustador. Fogem da câmera como
f
quem foge do diabo ou da morte, principalmente as mulheres,

96

I
mas 10 dracmas são suficientes para relaxá-los. Lembro que foi
aqui que o mendigo Diógenes fez história.82
Dentes de ouro, pés carcomidos pela lepra83, um bastão,
uma máscara especial para provocar piedade. Sigo-os pacien­
temente, sabendo que surgirá o momento de fotografá-los sem
problemas. Movem-se como seres de outro mundo, não estão
nem aí para o porvir das imbecilidades socializadas84 e a rapi­
dez de seus olharares parece inversamente proporcional à do
corpo, esse instrumento detonador da filantropia.85 Às vezes é
difícil encontrar tempo para o foco, os locais onde "trabalham"
são sempre movimentados, a rejeição à fotos é imediata e geral,
o que quase nunca acontece no Brasil ou na américa latina, onde
até os mendigos foram "servilizados"...
Atenas continua pobre, mas encantadora! A beleza femi­
nina, o cheiro do tabaco, do café e as lendas históricas que
envolvem tudo. O famoso churrasco grego (que também se
vende no Setor Comercial de Brasília): um ou dois porcos em
pedaços. O sacrício de uns para a luxúria de outros! Talvez
o crime de matar seja idêntico ao crime de gerar, ou ambos

82 Relatam os antigos historiadores que “un dia, cn cl mercado, Diógenes se mas-


lurbaba dicicndo: Ah, si uno pudiera apagar sua hambre frotándosc asi cl estômago”.
Dizem lambem que “durante um banquete, algunos comensales le echaron huesos
como si fuera un perro. É1 resolvio la situación yendo a orinar sobre ellos como un
perro”. El estupidiario de los filósofos, idem, pp. 179 e 193.
83 Impossível falar em lepra e mendigos sem lembrar de Bcnares. Quem ainda não foi
a Bcnares não tem moral para falar de quase nada. Às cinco da manhã às margens do
Gangcs. Aqueles seres quase nus aparecendo por todos os lados para lavarem-se naquelas
águas sagradas. As mãos postas, o olhar fixo nas chamas do sol. E as correntezas advindas
das mais altas montanhas banham a lodos indistintamente e seguem o seu rumo sem se
importarem com nenhuma das porcarias da espécie.
84 Como se conhecessem o texto de Octavio Paz, onde ele afirma que o futuro
se tornou a região do horror, e o presente se converteu num deserto. Para o autor
mexicano, “as sociedades liberais giram incansavelmente, mas não avançam, se
repetem. Se mudam, não se transfiguram. O hedonismo do ocidente é a outra face
do seu desespero; o seu ceticismo não é uma sabedoria, mas sim uma renúncia; o
seu niilismo desemboca no suicídio e em formas degradadas de credulidade, como
os fanatismos políticos e as quimeras da magia. O erotismo de nossa época é uma
técnica, não uma arte ou uma paixão. Citado por Eduardo Giannetti em O livro das
citações, Companhia das Letras, pp. 294, 295, SP 2008.
85 Três deles (uma mulher, uma criança e um velho), todos vestidos com farrapos azuis,
lembravam a conhecida pintura de Picasso intitulada Os Mendigos.

97
i I
I
I
I
sejam indissociáveis! Gera-se para ter o que matar e mata-se
I para ter o que gerar. E não haveria nenhum problema se a ca­
i sualidade não tivesse desenvolvido na espécie a consciência,
i esse fenômeno que possibilita ao homem ver-se a si mesmo,
i observar moralisticamente a mesma mão que ora enterra o
i
i
punhal e que ora masturba. Enfim, o próprio pensamento que,
freqiientemente, dilacera o universo. Estação Monastirakiou!
Ruas Areos, Ifaistou, Panorossou...
Domingo pela manhã. A loucura dos mercados. Gritos,
música, comidas, malandros, uma máscara de Baco em bronze,
t
dois ou três novos mendigos, o metro para Pireaus, lento mas
I confortável como um seio, como as coxas da amante que, depois
de perder as forças, conservam-se cruzadas sobre meu tórax:
os cabelos encaracolados da buceta formando uma vereda em
i .
direção ao umbigo.
Il
Cairo: uma passagem pela Egypth Air e os poucos dólares
que sobram amarrados por debaixo da roupa. Gostaria de ficar,
a Grécia convida a permanecer nela, convida ao abismo de seus
segredos revelados, até mesmo aos viajeiros mais idiotas. No
aeroporto de Atenas já pode-se sentir a latência da Bomba Reló­
gio que é o Oriente Médio... Logo, logo, explodirá e a explosão
colorirá as calotas orbitais da noite. Quizera estar esperando,
preparado, com minha câmera engatilhada e fotografar o
I ' desastre! As vistorias antes de pisar no avião e o surrealismo
dos passageiros por si só justifica a paranoia. O avião está aos
1
pedaços, um frio estranho percorre minhas extremidades. A ae­
romoça fala em árabe e em grego... não entendo porra nenhuma
e La Nave Va! O matraquear das turbinas, examino os passa­
geiros com um olhar meio covarde e meio de cumplicidade.
Lá embaixo, Sócrates, Dionisio, Epicuro e outros vagabundos
de renome, e a cidade de Atenas lambida pelo mar...
Bem menos tempo do que pensava e pronto: estamos em
território egipcio. Aqui do alto, a enormidade e a monstruosi­
dade da cidade do Cairo assusta. Gostaria que esse avião não

I De vez em quando o reflexo do rio Nilo que, como uma


verdadeira jibóia se requebra por entre os edifícios, as ruínas

98

‘li •
e as mesquitas. Deveria ter planejado minha chegada durante
o dia. Sinto-me um cego no meio de um tiroteio. Garantem-me
que na Praça Ramsis, no centro do Cairo existe uma pensão que
cobra 5 dólares: Pensão Everestl Não deve ser nenhum Hilton,
evidentemente. Mas, como saber como se escreve o número
400 em árabe? Não importa, calma e paciência que todas as
intuições conduzem ao Cairo!
O ônibus vai lotado e lentamente. O trânsito é idêntico ao
da Cidade do México: um festival de businas ensurdecem o
mundo. Entra ofegante uma mulher e traz um bebê no colo.
Gostaria de ser um bebê neste momento. E a psicose - penso.
A vontade de não ter identidade, compromisso, responsabili­
dade, de mergulhar de volta para o território do Principio do
Prazer... Talvez esta situação devesse ser vivida por todos os
ditos "terapeutas", para que pudessem sentir o que é não ter
contato, não poder dar um passo sem sentir que a calçada oscila,
que o pé afunda ou que a terra inteira anula o movimento. No
espaço, indiferente à minha paranoia e a tudo, a lua aparece
como um C virado.
Cheguei. Ninguém jamais poderá descrever essa tal dc
Praça Ramsis, pelo menos à noite. Tentei, tentei, e não consegu
rabiscar mais do que cinco linhas. As imagens noturnas desse
lugar são desestruturantes e enlouquecedoras. Por fim, numa
espelunca de nome pomposo: Hotel Sphinx, 8 Magles El Onima
Street. Um carpete que não é lavado há séculos, baratas sobre
o travesseiro, poeira, ferrugem e uma das camas lambuzada
de porra. Saravá! Vou até a varanda e assisto do alto a esqui-
zofrênia da cidade. Ao longe, os cantos religiosos e os latidos
de cachorros. Boa noite Cairo! Boa noite Praça Ramsis!
Pela manhã tudo é excitante, não importa o lugar onde se
esteja. O começo do dia tem algo de antidepressivo que todos
deveriam conhecer, aqueles que dormem até o meio dia estão
praticamente renunciando à vida. As lojinhas levantando suas
portas, o sol, as bicicletas, os cafés, os cheiros, as multidões, os
mendigos que saem da letargia noturna, alguém jogando um
balde de água num monte de ntierda, as orações recomeçam e
as blasfémias também.

99
I
I
I Uma flor de lotus no jardim de um hotel. Dizem que essa
I i
flor simboliza a criação e que todas as manhãs se volta para
i o leste. Qual seriam as razões dessa obsessão? As bancas de
jornais exibem a imprensa planetária e os turistas começam
I
I
I
I
a circular como baratas tontas. Malandros egípcios caçando
turistas indefesas nos arredores do Museu do Cairo. Lá dentro
o ouro suficiente para equilibrar a economia de todo o Orien­
te Médio. Sarcófagos, coroas, estátuas, medalhas, carroças,
mumificações e centenas de estrangeiros atónitos diante das
I I cuecas do Faraó Tutankhamon e das peças intimas de Nefertiti.
I
Um Deus com cabeça de crocodilo. Descubro que os gatos e os
I í macacos eram animais mais do que sagrados para os egípcios e
confirmo meu desinteresse absoluto por essa parafernália toda.
A memória fede. O passado incrimina. A lembrança é a mãe
I
de todas psicopatias. Os museus repugnam! Existe uma poeira
ll
"radioativa" em suas entranhas que causa depressão alternada
com euforia e cinismo. Um dia será necessário zerar a memória.
Voltar a zero. Descobrir novamente a pólvora, inventar a roda,
acreditar que o sol gira ao redor da terra...
Não foi por acaso que o egipeio-italiano Marinetti escreveu
em seu Manifesto:

i
"Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de
I . I
I I toda natureza, e combater o moralismo e toda vileza oportunis­

I
I ta e utilitária. Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo
trabalho, pelo prazer ou pela sublevação; cantaremos as marés
I I multicores e polifônicas das revoluções nas capitais modernas;
cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros
I incendiados por violentas luas elétricas; as estações esganadas,
I
devoradoras de serpentes que fumam; as oficinas penduradas às
nuvens pelos fios contorcidos de suas fumaças; as pontes, seme­
l! lhantes a ginastas gigantes que cavalgam os rios, faiscantes ao
sol com um luzir de facas; os piróscafos aventurosos que farejam
o horizonte, as locomotivas de largo peito, que pateiam sobre
os trilhos, como enormes cavalos de aço enleados de carros; e o
I voo rasante dos aviões, cuja hélice freme ao vento, como uma
bandeira, e parece aplaudir como uma multidão entusiasta".

100

I
No lombo cie um camelo - como um idiota - pelos arredo­
res de Gila e Mentis! As velhas Pirâmides e a Esfinge vigiando
como um cão de fila.
Fico perguntando-me como foi possível que uma popu­
lação inteira tenha se sujeitado a trabalhar anos e anos para
construir essa bobagem? Esse símbolo máximo de uma escra­
vidão desprezível! Como reconstruir a imagem de um povo
que, miseravelmente, dedicou anos de trabalho para edificar
essas tumbas que iriam armazenar as tripas e os cadáveres
de seus amos? De seus verdugos? Qualquer turista, por mais
tapado que seja, não consegue passar mais de vinte minutos
ali, contemplando pedras, pisando em merda de camelos e
despistando a turba de trapaceiros que querem, a todo custo,
faturar um ou dois dólares.
Foi ali que tive dúvidas sobre a melhor maneira de identi­
ficar os "autênticos" mendigos? A miséria na periferia é tanta
e indescritível mas, mesmo assim, o povo tem um comporta­
mento e uma expressão de absoluta tranquilidade. Qual será
o segredo? Apenas o hachiche e o Corão não criariam esse
Elán. Existe uma sensualidade no ar. Existe bosta de camelos
e de asnos na praça do Hotel Hilton. As mulheres autóctones
parecem olhar desejando apesar de terem o clitóris amputado
e os homens andam de mãos dadas e se beijam "ternamente".
Todo mundo vai conhecer a Mesquita de Amr Ibn El Aas e de lá
rumam para o cemitério onde vivos e mortos dividem o aluguel:
Cemitério de Qarafa. Inicialmente pensei que em seu interior
refugiavam-se apenas Sem Teto e mendigos, mas não. Até um
pastor de cabritas estava circulando por lá, elas troteando entre
os túmulos e mordiscando as beiradas dos maosoléus. Ele, de
vez em quando, dava uns tragos num narguile portátil.
Egito, Cairo, mundo árabe. Velhos fumam e "viajam" sem
parar. Crianças fabricam os famosos tapetes persas de seda
pura para a burguesia e a nobreza do Ocidente. O papiro sendo
colhido: 06 dias na água mais 06 dias na prensa e eis o papel,
um papel que não tem nada a ver com aquele do monopólio,
falsificado e vinte vezes mais caro. Uma fábrica artesanal de
perfumes, o interesse simulado dos egípcios pelo carnaval bra-

101
,1I i
i

sileiro. Como será a nudez das carnavalescas brasileiras vista


através da ótica muçulmana? Apesar das trapaças, não vou
í I
negar que tenho uma simpatia especial por este povo!
I
I Ok! Ok! Ok! Sempre o imperialismo do idioma inglês e
dos dólares. A música egípcia, o ventre de uma mulher que se
agita para alemães e gringos verem! Nilo, um rio esgoto, uma
cloaca no meio de 15 milhões de habitantes. Luxor, a cidade
que não fui. Alexandria e sua biblioteca incendiada. O sol das
I 15 horas, um dia e meio em jejum, uma alemã infiel. Nada de
I '
fotos de mendigos. Eu, decididamente, não saberia quem é
quem. Quem quiser saber sobre eles que leiam Mendiants et
orgueilleux, de Albert Cossery.
Praça do Abasia, um canivete no bolso, o ônibus que vai
I para Israel, as imagens fortes do Egito, uma atração insólita
por esta urbe associada a um desprezo pela desorganização e
pela poeira que cobre tudo.
A burocracia para ir a Israel. Suspeitas daqui e suspeitas
dali. Desconfianças e crises paranóides por todos os lados.
Todo mundo se caga de medo só em pensar que um desvairado
membro da Irmandade Muçulmana pode instalar uma bomba
no escapamento do ônibus. Por fim em marcha. Vamos escolta­
dos por carros da polícia. A estrada corta o deserto. Tanques de
guerra, exércitos em manobras e seus uniformes contrastrando
com as areias. Aldeias miseráveis, homens deitados à beira
do asfato, o Canal de Suez numa barca e o deserto. O deserto
I, exterior e o deserto interior... Do outro lado Israel.
Os tratores, os Kibutzin, o as areias e o deserto transformado
em hortas, em plantações de algodão, de laranja e de verduras.
I Nenhum metro de terra desperdiçado, tudo limpo, organiza­
do. Adubando e cuidando dá! Sofismam as multinacionais dos
I adubos. Muitos milhões de dólares alimentam as raízes e os
I
troncos dessa vegetação.
Na fronteira, novamente a burocracia e a desconfiança.
Viver assim deve ser o inferno multiplicado. Ou não?
Tel Aviv: um mendigo na estação Central de ônibus, os
11
rabinos solenemente pelas ruas, o teto da cabeça coroado por
uma "tigela" de seda ou de lã. Pão, pepino e cebola num banco

102
de praça. Os judeus olham-me curiosos: serei um irmão desa­
fortunado? Um primo de Caim?
No centro da cidade quatro ou cinco mendigos interes­
santes, um deles, têm a arrogância do rei Salomão e enquanto
espera uns trocados lê seu Talmud. Nas escadarias de um
subterrâneo esta outro e em frente ao Sheraton um terceiro
que se move lentamente contra o sol, contra o trabalho, contra
a aborrecida vida do mundo. Insisto: ninguém precisa ser pa­
ranoico para sentir-se vigiado por aqui.
Um helicóptero passa três vezes sobre as ondas do mar,
um rabino fala sozinho, no Shoping da Dizengoff as mulheres,
como as do Cairo deliram diante das vitrines. Ah, como enten­
der esse fascínio, essa alucinação pela moda, pela roupa, pelos
penteados? Seduzem-se a si mesmas, cobiçam-se, invejam-se,
amam-se e degladiam-se sem trégua, às vezes, por uma pedra
de cristal falsificada. Observo-as: tenho todo o tempo do mundo
para observá-las e até para desejá-las. São quase indiferentes à
maioria dos homens, mas a nenhuma outra mulher, seja para
ironizá-la ou para invejá-la. Acompanham-se umas às outras
com olhares fugidios e em seguida olham-se a si mesmas e vão
troteando... sabe lá Moisés para onde...
Um quarto sombrio de albergue. A necessidade obsessiva
dos judeus de identificar-me, saber de onde venho, se tenho
remanescentes semitas e, naturalmente, se sou a favor da cau­
sa. Causa? Causa porra nenhuma! Não tenho causa! Apenas
navego no turbilhão sem fim da irracionalidade...
O mesmo mendigo que de manhã passeava pelo Sheraton,
agora dorme num banco da praça como um "deus". Shalon...
Shalon...
Jerusalém. A cidade antiga é o tipo do lugar onde gosta­
ria de ter nascido. Becos, ruelas, paredes seculares, vestígios
de bombas, de balas de genocídios. Cheiros, pressa, calma,
velocidade, letargia, comidas, incensos, gente que vai de um
lado para outro apenas por ir. Palestinos, arménios e judeus
exploram os turistas. A novela do Calvário! As sinagogas, as
mesquitas, os sinos e a turistada rezando. Soldados e rabinos
por todos os lados. Quem assiste o comportamento dos judeus

103

i
il
I I
I '
diante ao Muro das Lamentações entende facilmente a origem
dos Evangelhos, do Cristianismo e da Psicanálise. Bilhetinhos
I idiotas enfiados entre as brechas da muralha, implorando
perdão por pecados jamais praticados ou mendigando favores
I celestes. Se os bois tivessem deuses - lembra um velho grego
- estes teriam chifres. As feridas e as chagas das deportações!
A visão pré-cristã do inferno e a luta neurótica para instituir
I. a negação do "mal". Segundo Thomas Man, o inferno não é
' I

outra coisa que a continuação da vida extravagante.


Um mendigo nos labirintos da Old City e três que assediam
avidamente os turistas. JaJf a Gate Hostel, 3 dólares para dormir
e onde um judeu australiano fala acordado o tanto que peida
dormindo.
O Sabbat: quem não comprou comida até as 15.00 horas terá
que jejuar. Shalon... Shalon... Um homem "canta" uma mulher.
Haverá no mundo coisa mais idiota e repetitiva do que essa?
Ela, evidentemente, diz que não, o que, nestas circunstancias,
tem sempre mil motivos: Um: Nem nos conhecemos! Dois: Sou
casada, virgem, católica, fiel, etc.! Três: Você não é meu tipo!
Quatro: Não sou puta! Cinco: Tenho namorado! Seis: Estou
menstruada! Sete: Não tenho vontade! Oito: Estou doente!
Nove: Tenho medo de AIDS, Herpes, Sífilis. Gonorréia... Dez:
Posso engravidar! Onze: Amanhã você me deixa, etc., etc.,
etc... O palestino que a acossa remexe-se no banco, como um
leopardo. Para ele, "comer" uma estrangeira é tão glorioso
como ser agraciado por Maomé! A armadilha dos gens! A apatia
cotidiana, o xadrez da modernidade! O "Santo Sepulcro", tão
santo como o "Santo Sudário" que na semana passada a ciên­
I I cia demonstrou ser um blefe e uma palhaçada medieval, uma
mentira da Santa Sé e de seus lacaios. Um gato morto no asfalto.
Mais fotos de mendigos, outro palestino fumando hashishe!
l! A voz que sai das mesquitas confunde-se com a que vem da
sinagoga que por sua vez se funde com a que atravessa os muros
da igreja católica e que juntas vão atrapalhar a palestra do lider
ortodoxo. A esquizofrenia é geral e o toc, toc, toc, das testas no
I
Muro das Lamentações! Lixo! A humanidade é lixo!
Um restaurante arménio, uma velha coçando a xota des-

104

I
caradamente, uni crucifixo de ouro ao lado de um camelo de
madeira. Aleluia... Aleluia... Aleluia... Eu não falo inglês, nem
dinamarquês, nem bengalês! Não sou português, italiano, pa-
raguayo, boliviano, porra nenhuma! Procuro um monumento
a Judas Scariotti e só encontro elogios a Barrabas! Busco uma
referência a Pilatos e só me deparo com sombras enterradas
no fanatismo! Cinco beatas brasileiras fazendo o trajeto da Via
Crucis, quase de joelhos. Saiam dessa lama suas idiotas! Pensei,
mas não disse.
A alegria de um palestino que vende todos seus pães a um
grupo de alemães... O primeiro mundo comendo o terceiro,
dentro da "ética" e da "legalidade". Crianças palestinas do
Primeiro Grau gritam ao sair da escola:
- Deus é palestino e não judeu!
Todos fingem que não viram e elas, com os dedos em V,
desaparecem pelos becos de Jerusalém onde nasceram e onde,
provavelmente, morrerão.
Atenção: isto não é literatura, é apenas um estilo de registro.
A literatura é truque, obsessão, falcatrua, papo furado. Tagarela-
se cada vez mais. Lembrem-se que como dizia Thuiller, "A te­
ologia falava de Deus; a ontologia, do Ser. E que de "logia"em
"logia" se chegou à logologia, que é o discurso sobre o discur­
so.86 Imaginem então se tivéssemos mais de uma língua.
Tenho uma erecção cada vez que registro um vacilo do
mundo e gozo, ejaculo como um cavalo, quando a praxis coti-
diana confirma minhas hipóteses sobre a farsa existencial.
O petróleo, o Talmud, Wall Street, as eleições para prefeito
no Brasil, um cargueiro que zarpa da Alexandria para Creta.
Imagens! Apenas imagens mas que nas mãos de um charlatão,
podem gerar outros 80 volumes. Todos os povos tiveram seu
holocausto, inclusive àqueles que nasceram mortos. Eu sou
meu próprio holocausto e se isso não bastasse, faço-me o ho­
locausto dos outros.
No outro lado do mundo a mulher que fuma em meu
banheiro, que se enrosca em mim como um fogo, que me faz

86 Citado por Jean-Jacques Barrère, idem, p.234.

105
i I
I i
I
I transbordar de tesão e de abismos! Duas lágrimas, duas cacho­
I I
eiras, duas punhaladas...
i Quizera ter nascido no deserto: um bebê de um dia en­
I gatinhando na areia efervescente de um deserto qualquer, os
I
espinhos dos cactos como seios, a seiva como bálsamo, a noite
escura e fria como referência! A fumaça de meu cachimbo
provocando tosse em toda a Judéia, em toda a Galiléia... So-
doma... Lá onde quizeram transformar o cu, o ânus, o reto, o
i* intestino grosso e o rabo em receptáculo do pau, do pênis, do
■j caralho! Sodomitas!... Gomorritas... Ideologia e partido dos
.1
enrabados!
O sol se agiganta! Uma estrangera arrisca o top-les na praia
de Tel Aviv... Um baixote gordo, peludo e ágil se aproxima como
I
um coiote, ela se assusta, recua, esconde as tetas do mundo. A
razão dessa obsessão masculina pelas tetas é sempre a mesma:
ll
I' por haver mamado demais, por haver mamado pouco ou por
não haver mamado nada! Infantilismo masculino! O único
I I
macho de todas as espécies que quer seguir mamando a vida
inteira. Ou mama nas tetas da mulher, ou nas tetas da igreja,
do Estado, da Puta-que o pariu...
Consulado da turkia: 25 chequeis por um carimbo, uma
passagem pela El Al até Istanbul. Shalon Israel... Shalon...
Shalon...
No aeroporto Ben Gurion a vigilância anti-terrorista é idiota
e impressionante. Por ter estado no Egito e estar indo para a
Turkia tenho que responder a um interrogatório longo, agressi­
vo e paranoico. O mundo vive sob uma ditadura há séculos e a
I
grande maioria da humanidade não têm consciência disso. Os
soldados que me interrogam aprenderam perfeitamente com os
nazis como desrespeitar a integridade das pessoas. Cioran sabe
o que diz quando afirma que os piores carrascos são recrutados
l! sempre entre os sobreviventes de uma chacina.
- E essa câmara? E essa fotos? E essa pasta dental? E essa
barba? Por que visitar Israel? Por que passaste pelo Egito? Por
que ir à Turquia? Fock You!
I
I O avião sobe quase de bico como se tosse um falcão pré-
histórico, deixando sob si o conflitivo, secular e místico Oriente

106
Médio. De um lado o Egito, do outro a Arábia Saudita, a Jordâ­
nia, a Síria e o Líbano, entre eles, do Golfo de Eilat até o Líbano
está espremida a Palestina ou, para quem quizer, o Estado de
Israel, essa terra que anedoticamente foi prometida por Deus
a Abraham e seus descendentes.
Durante os milénios que se tem notícia, passaram por ela
os assírios, os egípcios, os babilónicos, os gregos, os romanos,
os cruzados, os mamelucos, os turcos, os britânicos e outros
piratas, cada um deles destruindo e construindo, pintando e
despintando as mesmas muralhas, colaborando cada um à sua
maneira, para o engendramento dos mitos, das religiões e dos
fanatismos mais diversos. E os patetas de todas as laias espe­
ram por Deus, pelo Cristo, por Jeová! Sabem lá o que é estar
esperando durante mil, dois, cinco mil anos? Como é possível
uma patologia com essa grandiosidade? Rabinos substituem
rabinos, padres substituem padres, macumbeiros substituem
macumbeiros e não acontece na realidade, porra nenhuma. A
miséria social, económica e psicológica devasta o terceiro mun­
do, a criminalidade estatal e marginal de hoje é relativamente
a mesma da idade da pedra, o sofrimento humano parece ser
algo incurável e os farsantes não querem tomar consciência
disso e muito menos de que os chamados Livros Sagrados não
serviram para nada, nem mesmo para limpar o rabo, já que
são feitos com papel não absorvente! O mundo inteiro delira
quando uma escavação desvenda uma nova igreja, uma nova
pirâmide ou um novo patíbulo! Ora que importância têm isso
para o mundo? Que importância social, cultural e artística
possui, por exemplo, o sarcófago de ouro exposto no Museu do
Cairo, se lembrarmos que seus fabricantes tiveram seis, cinco
ou mesmo dois mil anos para pensá-lo e para construí-lo com
o suor, o sangue e a escravidão de milhares de pessoas? Vocês
aí que só sabem elogiar como papagaios, sabem o que isso sig­
nifica? Ora, num período tão longo como esse, esses senhores e
seus deuses bem que poderiam ter inventado ou construído rios
de groselha, rochedos de filé mignon, fontes de vinho branco
e um ar que, além de alimentar, também provocasse êxtase...
Não é verdade cambada de patriarcas do otimismo?

107
i
I
I E as pirâmides do Egito? - perguntou-me um vagabundo
I I em Istambul - Outro monumento à imbecilidade e ao narcisis­
mo, à megalomania dos faraós e à covardia das massas, respon­

I di. Mas isto já havia sido dito pelo Conde de Lautrèamont.


Qualquer pedreiro de hoje em dia constrói monumentos
como aqueles, inclusive, - para ampliar a palhaçada - com mui­

■ I
I to mais luz e com muito mais ar para o deleite das múmias! Mijo
sobre essa história demente, com a mesma euforia que respeito
o montículo de bosta de um camelo caído sobre a calçada e a
senhora palestina que tenta roubar-me a bolsa.
Cago sobre Jerusalém mistificada, santificada, abortada,
fingida, deturpada, e admiro as crianças ferozes que enganam
e roubam os turistas vestidos como velhos rabinos no trajeto
que os leva para a penumbra das sinagogas.
hl Aplaudo da primeira fila a luta armada pela possessão
da Palestina como terra, como espaço, como habitat, mas des­
prezo de forma radical a luta por motivos bíblicos, místicos
ou proféticos. Deus não é judeu nem palestino. Deus não é
agrimensor! Deus não é! Simplesmente Deus não é! Deus não
existe e se existisse teria que ser conduzido pelos Sem Terras e
pelos mendigos a um tribunal popular para explicar-se... "Se
eu fosse Deus - resmungava o velho Schopenhauer - morreria
I
de vergonha e de dor diante de tanta miséria".
1 -A tragédia de ser judeu — dizia-me um novaiorquino — é
I ter sido escolhido por Deus e humilhado por Hitler!
I ,
Racionalmente é fácil desmontar essa bobagem e essa
i
maldição: basta lembrar que Deus disse as mesmas bobagens
I I aos árabes, aos astecas, aos romanos, aos guaranis, etc., etc.,
e que Hitler pensava o mesmo dos ciganos, dos negros, dos
I
turcos e de todos os povos que não fossem germânicos. Mas
a questão não é racional, é emocional/psicológica gritarão os
modernos talmudistas — entenda-se psicanalistas —. E então,
nada mais correto do que silenciar e assistir o festival no Muro
das Lamentações... Toc, toc, toc... Shalon! Shalon!
I
Uma picada de mosquito que volta a coçar todos os dias
as 19.00 horas. Como existe o ciclo da lua, o ciclo menstrual, o

108

I ,
ciclo dos tufões, etc. é até lógico que se chame a esse fenômeno
o Ciclo do veneno.
Istanbul, 2,30 da madrugada. Chuva, frio, tudo escrito
em turco, com raras exceções, ninguém fala outros idiomas.
Esse momento é cientificamente interessante. É como se o Ego
murchasse e o corpo inflasse. Como se a falta de dinheiro, o
desconhecimento da direção a tomar, do idioma, da moeda e
das formas afetivas e agressivas do povo nos succionasse sem
remédio. E uma situação em que literalmente deixamos de ser,
ao mesmo tempo em que temos a ilusão de que tudo o que
acontece refere-se a nós.
Depois de intermináveis caminhadas fecho contrato no
Hotel Ender, uma espelunca de 8 liras turcas ao dia, cravado
no bairro de Aksaray. Espio a chuva pela janela, sinto-me
faminto e isolado do mundo, meu peito se inflama, desfilam
por minha memória as poucas pessoas que quero, deixo rolar
quatro ou cinco lágrimas espessas e salubres como as águas
do Mar Morto.
Amanhece. Lá fora, sob a chuva e o vento, os turcos movi-
mentam-se rápidos, as capas molhadas, os bigodes pretos, as
caras de toxicómanos. Como por provocação, vejo uma senhora
em farrapos que mendiga: uma bolsa no braço esquerdo, uns
poucos cabelos para fora do lenço que os protege, um sapato
masculino nos pés, implorando sobras de comidas aos feiran­
tes. É evidente que uma ferida não é a mesma coisa para um
mendigo e para um filho da burguesia.
Muita fome. Comeria um rato grelhado. O velho do quarto
da frente tem incontinência urinária. A temperatura descende.
O vento desmantela os guarda-chuvas e aumenta a sobrieda­
de erótica da mulher turca nos arredores do famoso Bazar de
Istanbul. Ouro, prata, couro, ferro velho, peles de animais,
lustres, tapetes... Os vendedores? Nunca vi crápulas dessa en­
vergadura. A cidade e seus odores. O povo, tenho certeza, de
fácil convívio e o mais saudável dos que conheço.87

87 Sem esquecer, evidentemente, daquilo que foram capazes de fazer com os arménios.

109
il
: i
Chá, tabaco e gergelim! Música numa mesquita do tamanho
!i I do mundo: La Mosquée Bleue! Hora de partir. Na Grécia ainda
há sol. Uma passagem para Tessalonick. Norte da Grécia.
No ônibus os turcos respingam loção perfumada nas mãos
I i
d dos passageiros. Campos férteis, um país do chamado Terceiro
Mundo mas visivelmente sólido, indomável, com uma história
robusta, cheias de sátrapas e de proezas. Entre os passageiros
muitos australianos, japoneses, canadenses, italianos... Na
fronteira a polícia de sempre, especializada em terrorismo e
em cocaína. Por que não deixam cada um cheirar o que lhes
apetece, já que todo mundo sabe que o pó conduz ao pó? Um
I rio nada turbulento e outra vez sob os pórticos gregos.
Tessalonick: Hotel Acropol, Elia Tandalidou, 4. Um men­
digo dorme frente a estação rodoviária. Abre um olho quando
ouve o clic de minha câmera como se me alertasse: Já que não
llI pude ser um deus, um sol ou um monstro aterrador, fiz-me
um solitário, um réptil em miniatura, o último violino desse
campo penitenciário.
Quatro ou cinco mosteiros no alto da montanha, o cio das
pombas, duas putas fazem ponto diante do bordel e tentam
esconder-se de minha câmera. Os músculos de um leão de
chácara, um voo razante da força aérea grega que faria tremer
até o pacifista Epicuro.
I I A famosa Macedônia, o Monte Athos considerado uma
República Teocratica onde há mil anos os mosteiros são ha­
bitados por eremitas, fundada em 963, com autorização do
Imperador Bizantino Niceforo Fokas. Nessa república de Deus,
é expressamente proibida a entrada de mulheres. Vejam só
como até os deuses sucumbem diante da xota. Só mantendo-
as afastadas é que conseguem seguir seus rumos esotéricos e
i homossexuais.88
l Um brasileiro romântico mas esclarecido que vai trabalhar
num Kibutz em Israel. A grande parte da agricultura israelita -

88 Historicamente a mulher vem comendo o pão que o diabo pisoteou. Ela é só aparência
I ; - lembra Baudrillard. Provavelmente os padres ortodoxos escondidos nestas montanhas
saibam que “é o fenómeno como aparência o que faz fracassar a profundidade do mascu­
lino” Daí a fobia e a rejeição.

110
diz ele - foi formada e é mantida por jovens que sem emprego
vão trabalhar voluntariamente como escravos nos Kibutz, em
troca de cama, comida, e cigarros. E o mundo inteiro hiberna,
enche o bucho de cachaça, se reproduz pateticamente!
A paisagem é encantadora. Em Atenas quatro ou cinco
novos mendigos, um deles fala três idiomas. Um giro até o
outro lado do Peloponeso, o Canal de Corinto, Patras um navio
luxuoso de volta para a Itália.
A escuridão da noite, o rosnar do navio, a massa de pas­
sageiros que dorme. O sono é outro dos instrumentos que
massifica e que estandariza os indivíduos. Sob seu império as
fúrias cessam, as ideologias evaporam, a vaidade recua e tudo
é invadido por uma espécie de oligofrênia. Um ronco aqui,
um peido acolá, um gemido na outra extremidade, um pesa­
delo, uma respiração apertada. Como um navio de bezerros, a
turistada se deixa levar pela letargia, os olhos semi-abertos, a
boca retorcida, as mãos em cruz sobre o peito. Dorme. Dorme
enquanto La nave vá!
Caminho pelo convés como um bandido caminha pelas
sombras das casas durante a noite, deparando-me com casais
que se lambem no meio da tormenta do amor. No mar, nenhu­
ma luz, apenas um vento molhado. Rochedos imensos, a ilha
de Corfú outra vez, um café capuchino por meio milhão de
liras. Nos jornais, o Presidente do Brasil fotografado sorrindo
na União Soviética.
A parasitada enlouquece quando está próxima ao poder. A
caipirada delira com acesso às chaves do cofre. Roupas de seda
e de linho puro, tudo adquirido por meio do voto. Cuspo ao
mar. Quizera cuspir sobre a gentalha que condenou meu país
à miséria e ao desmantelamento. Num mundo de analfabetos,
corruptos e criminosos nada é mais trágico do que o direito ao
voto, do que o uso do voto para eleger seus administradores.
Cuspo novamente ao mar! Gostaria de cobrir de saliva a toda
essa gentalha imunda! La nave vál
O mar brinca com as toneladas do navio e o banheiro se
enfeita de vomitos.

111
I
I
I
I Na Itália um trem noturno para Veneza. O sol se reflete
I sobre o pântano veneziano. Gondolas solitárias transportam
japoneses sorridentes e parecem patos embalsamados. A cidade
onde nasceu o carnaval. Máscaras, cristais, becos que serenam...
I
I 11 Uma cidade uterina! Os sinos de San Marcos chegam aos co­
I rações dos fiéis pecadores, enquanto os japoneses continuam
sorrindo e a ironia do gondoleiro é registrada num filme de
I 400 asas.
Gatos castrados aquecem-se ao sol sob os pórticos das
I espeluncas. Aguardo os mendigos que deverão aparecer.
A estas horas devem estar maquiando as úlceras para aterrorri-
li zar a turistada que continua perseguindo o infinito. Máquinas
fotográficas por todos os lados. Cada idiota leva uma depen­
i
durada ao pescoço como se fosse um escapulário. Dia de Todos
os Santos e a velharada em orgasmo fala sozinha pelas ruelas.
I Uma mulher sentada diante a um monumento o reproduz em
nanquim. Santa Lucia! Santa Bárbara! Santa Ana! São Afonso!
Arcanjos e Querubins e toda a gang de santos que o mundo
civilizado jamais ousou desprezar. A idiotia sacralizada! Sigo
as pegadas de três brasileiras e ouço-as falar em uma coleção
de sapatos, em um perfume italiano e em uma farmácia onde
se pode comprar medicamentos geriátricos...
Mistura de idiomas, na boca o riso tetânico, a poeira que as
I pombas levantam na praça. Numa taberna, um copo de vinho
branco, 500 liras para mijar...
As pessoas buscam um "amor" em Veneza. Dá Status
11 "apaixonar-se" aqui, os violinos da Praça San Marcus e os sinos,
são os temperos para essa ânsia. Não existe um só escritor dos
últimos quatro séculos que não tenha feito constar em seus
escritos, disfarçadamente ou não, o nome desta cidade, com
i seus taxis aquáticos, seus cicerones, o romantismo das ruas,
I dos canais e dos próprios venezianos. A cada esquina algo que
nos remete ao futurismo e a seu criador:

i "É da Itália, que nós lançamos pelo mundo este nosso manifesto
I
de violência arrebatadora e incendiaria, com o qual fundamos
i hoje o "Futurismo", porque queremos libertar este país de sua

112
fétida gangrena de professores, de arqueólogos, de cicerones e
de antiquários".

Apenas um mendigo. Estava encostado na parede de uma


ruela que conduz para a estação ferroviária, o olhar fixo nos
caminhantes, a pele bombardeada pelo frio. Hoje está aqui,
amanhã, ninguém sabe.
Os dólares evaporam! Veneza/Florença, os últimos dias,
os últimos centavos, as últimas horas para estar como quem
não está! Firenze ou Florença? Um bem estar que levita. Logo
de cara vários mendigos. Um deles treinou uma cadelinha
branca para receber moedas. Outro levava animais numa gaiola
pelos arredores dos palácios, das esculturas, do Rio Amo e
das vitrines cuidadosamente armadas para caçar a turistada.
Uma última moeda na fonte do javali de bronze e de volta para
a ferroviária.
O trem parte devagar, como um monstro debilitado. Al­
gumas horas e nova mente em Roma. Centenas e centenas de
mendigos. Igreja de San Giovanni, confessionários para todas
as línguas, um jantar entre mendigos no albergue do Vaticano
na Piaza dei Santo Llfficio e sem cuecas pela manhã ensolarada de
novembro. Em cada esquina um mendigo mais interessante que
o outro. Ciganas, polacos, um negro de Baltimore, um fanático
religioso, a praça opulenta de São Pedro. Uma professora da
Universidade de Roma e um artesão que viveu entre mendigos
na Colômbia. Na estação Ottaviano, um vagabundo toca Vila
Lobos no violão. Os dólares acabam e La nave vá!
Dentro das muralhas do Vaticano, padrezinhos de todo o
mundo desfilam orgulhosos, no rosto branco e sacro a expres­
são orgásmica.
Cristo com cara de mulher.
Um homem afeminado e a luz solar entrando por entre os
ossos de um vampiro medieval.
1000 liras para mijar? Não vai dar signore! Mijo nas paredes
de uma dessas basílicas! Cruzo e recruzo a cidade, de beco em
beco, de santuário a santuário e naquela imensidão de prédios
seculares, um mendigo atrás do outro.

113
i I
I I
I Argelinos e outros estrangeiros traficam heroína na esta­
I I
ção Termini. Freiras atravessam as muralhas da cidade como
i sombras. Um bolinho de arroz, o prazer de viver como nómade
i e as pombas que infestam a praça de São Pedro. Até hoje não
l
i
I
entendi por que escolheram esse animaizinho escroto para
simbolizar tanto o "Espírito Santo" como outras páginas da
magia negra cristã. Bem que os gatos de Roma poderiam pas­
sear com mais frequência por aqui! Corpo de pombas! Corpo
de pombas! Corpo de pombas! Do claustro escapa a voz de uma
mulher: Corpo de Cristo! Corpo de Cristo! Corpo de Cristo!!!
Impossível não lembrar dos sacos de hóstias que são vendidos
no mercado de Jerusalém, onde também se vendem sacos de
■I ostras, sacos de pepinos e a buchada sanguinolenta das vacas.
Negros, pretos como o ambar, negociando bugigangas na rua,
I
no metro e na clandestinidade. As pombas comem... comem...
I comem. E eu, que, por ignorância, pensava que no Pêndulo de
Foucault Humberto Eco falava do Foucault que estudou e que
escreveu a História da Loucura!!! Ignorância, falta de uma vida
de 800 anos para esgotar a existência... Rever.., rever.., rever...
E os cavalos estão ali, diante da cruz, esperando pelos tu­
ristas. Sempre existe um cavalo no meio de tudo! Só não havia,
realmente, no mundo original dos Incas e dos Astecas... Aqueles
índios idiotas cairam de quatro quando os bandidos espanhóis
I i apareceram cavalgando aqueles monstros...
E o povo italiano? Talvez seja um dos que está mais com­
prometido psicologicamente. E interessante e assustador rever
I I e sentir em uma nação inteira a mesma problemática moral e
cultural que se conheceu e que se vivenciou na infância e na
adolescência. E indescritível o que quero dizer. O Homem ita­
liano é aquela eterna criança dependente da mãe, muito bem
descrito nas brincadeiras de Fellini. E as propostas de Basaglia?
Fechar os manicômios institucionais e mandar os "loucos"
para casa, para a rua... Isto é: para o manicômio natural da
cotidianidade católica apostólica romana... Pelo menos vais ser
divertido. Claro que se aparecerem uns dez desvairados como o
Bispo Rosário entre eles, isto dará ao mundo uma visão menos
preconceituosa a respeito das enfermidades mentais.

114

í
Eco tu Madre! Dizia o cartaz da Virgem Maria.
Um chefe do Vaticano passa pelo pórtico em seu Alta Ro­
meo. Os guardas fazem continência com a mão direita e com
a esquerda sustentam a metralhadora. A mesma hierarquia do
exercito: o Papa é o Franco Generalíssimo!
Na TV, Domingo Inn, o Silvio Santos da Itália, uma porcaria
para entreter a oligofrênia popular.
Atravesso outra vez esta cidade, faço minhas pernas dar
mais do que elas desejam. Cruzo o rio Tibre esverdeado de lama
e esgotos, Porta Portezzi, os ciganos roubando, uma máscara
oriental por 300 mil liras, um velhinho solitário vendendo moe­
das comemorativas do Centenário do nascimento de Mussolini.
Caminho como quem não chegará nunca a lugar nenhum e o
sol que não esquenta.
Diante de um albergue da Caritas, os argelinos, os mar­
roquinos, peruanos, equatorianos e outros personagens do
quarto mundo esperam para comer as migalhas do Vaticano:
roubar milhões com a mão direita e distribuir centavos com a
esquerda... Essa é a lei da Sagrada Comunidade Européia.89
Mulheres com roupas de panteras e com as tetas para fora
alegram as esquinas sombrias. Cada uma delas leva a tabela
de preços na bolsa. Um velho pederasta seduz um negro forte
e brilhante nas proximidades da Termini: eis aí o colonialismo
sexual, a dialética da punheta, os mendigos e os indigentes da
foda. O primeiro mundo comendo o segundo, o segundo enra-
bando o terceiro e o terceiro tomando no rabo em silêncio. Como
esse velho babão e rabugento outros exploram as mulheres e
os homens emigrados das Filipinas, da Argélia, do Equador,
do Brasil, etc. Por estes labirintos também deve ter cruzado o

89 Não muito longe daqui, na cidade italiana de Assis, onde teria vivido São Francisco (o
maior mendigo voluntário que se conhece, depois de Lázaro e Buda), a mendicância está
paradoxalmcnte interditada. Está proibido mendigar nos arredores das igrejas, das praças
e prédios públicos. Deitar-se nas esquinas e estender a mão aos turistas que vieram do
outro lado do planeta para fazer o teatro da compaixão e da caridade, nem pensar. Esse
ato mundano é considerado pelos padres e outros gestores um verdadeiro sacrilégio. Jogar
umas moedas no cofre da igreja e mendigar uma passagem para o paraíso, isto qualquer
desmiolado pode.

115
I
I
I velho Pasolini... O intelecto, o cinema, a blasfémia, as liras e o
I ferro dos emigrados... Morreu como um traste!
i 1
i Na bolsa 8 filmes, 240 fotos, setenta ou noventa páginas
i
rabiscadas. Esta é minha fortuna. Volto. Amanhã estarei de vol­
i ta. Ate outra vez Roma, isto, se algum Nero não te reincendiar
I
na calada da noite, o que é pouco provável, pois, como dizia o
mendigo Gohar "num mundo desprezível, até os micróbios perdem
a virulência".

Roma, 07 de novembro de 1988


:r
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116

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TEXTOS A LHEIOS

em apoio a todo e qualquer tipo


de vagabundagem
""N Tão quero nem ouvir falar da revelação, da tradição,
1 NI das filosofias chinesa, fenícia, egípcia, hebrea, grega,
romana, tedesca ou francesa. Fora de minha fé ou de minha
religião, da qual não devo dar contas a ninguém, não sei o
que fazer com as divagações dos antepassados, eu não tenho
antepassados. Para mim, a criação do mundo aconteceu no
dia de meu nascimento e, o fim do mundo, acontecerá no
dia em que meu corpo e a energia que constituem minha
individualidade voltem para a terra. Eu sou o primeiro homem,
eu serei o último. Minha história é o resumo da história da
humanidade, não conheço nem quero conhecer outra coisa.
Quando sofro, que satisfação me proporciona a alegria alheia?
Quando gozo, que ganham de meus prazeres aqueles que
sofrem? Que me importa o que se fez antes de mim? Em que
me afeta aquilo que se fará depois de mim? Não tenho que
servir nem de holocausto a respeito das gerações extintas, nem
de exemplo à posteridade. Eu me encerro no ciclo de minha
existência e o único problema que tenho que resolver é o meu
bem estar. Não tenho mais que uma doutrina, esta doutrina não
tem senão uma fórmula, esta fórmula não tem mais que uma
palavra: Gozar. Honesto quem a reconhece! Impostor quem a
nega!Trata-se da doutrina do individualismo crú, do egoísmo
inato? Sim, não o nego em absoluto. O confesso, o constato, me
glorifico dele. Trazei-me para que eu o interrogue, aquele que
poderia sentir-se ferido e reprovar-me. Lhes causa algum dano
meu egoísmo? Se não, não tereis nada que objetar, porque sou
livre em tudo aquilo que não lhes pode prejudicar. Se dizeis
que sim, é porque sois uns trapaceiros, porque meu egoísmo
não é mais que a simples apropriação de mim por mim mesmo,
um chamado à minha identidade, um protesto contra todas as
supremacias. Se vos sentis feridos pela realização deste ato de
tomada de posição, pela conservação que levo a cabo de minha
pessoa — isto é, da menos discutível de minhas propriedades
—, tereis que reconhecer que eu vos pertenço ou como mínimo,
que estáis com a mira sobre mim, e que sois uns exploradores,
uns sujos, uns codiciosos dos bens alheios, uns ladrões. Não
existe caminho intermediário. Ou o egoísmo nos é de direito

121
I 1
I I
I
ou então oco roubo, c necessário que se caia em possessão de
I
I i um ou de outro. E inadmissível pedir que eu renegue a mim
í mesmo cm proveito de todos, porque se todos devem renegar
I de si como eu, ninguém ganhará neste jogo estúpido mais
I
I
II do que já perdeu e, em consequência, ficará igual, isto é, sem
I

proveito nenhum. Evidentemente, isto faria absurda a renúncia


inicial. E se a abnegação de todos não pode beneficiar a todos,
• I necessariamente beneficiará a alguns em particular. Então estes
il últimos serão os donos de tudo e também, provavelmente,
os que se incomodarão com meu egoísmo. Pois bem, que se
incomodem. Cada homem é um egoísta, quem deixa de sê-lo

í' I
se converte em um objeto. O que afirma que não é necessário
sê-lo, é um ladrão. Ah, sim, eu compreendo! A palavra soa mal,
até agora a haveis aplicado àqueles que não se contentam com
seus próprios bens, àqueles que rapinam os bens alheios, mas
aquelas pessoas pertencem a ordem humana, os senhores não.
Ao lamentar-vos de sua vigarice, sabeis o que fazeis? Constatar
vossa imbecilidade. Até agora haveis acreditado que existem
tiranos. Pois bem, vos enganasteis. O que existe são escravos:
ali onde ninguém obedece, ninguém manda. Escutai bem
o que lhes digo: o dogma da resignação, da abnegação e da
renúncia de sí mesmo, tem sido sempre predicado aos povos.
O que resultou disso? O papado e a soberania pela Graça de
I Deus. Oh! o povo se resignou, se anulou, durante muito tempo
i I tem renegado a si mesmo. Que lhes parece? E correto isso?
Evidentemente, o maior prazer que se pode dar aos bispos
um pouco confundidos, às Assembléias que substuiram o Rei,
aos ministros que substuiram os príncipes, aos governadores
1
civis que substuiram os duques — grandes vassalos —, aos
sub-governadores que substuiram os barões — pequenos
vassalos —, e a toda a sequela de funcionários subalternos que
p' fazem as vezes de cavalheiros c puxa-sacos do feudalismo, o
maior prazer digo, que se pode dar a toda essa nobreza das
finanças, é voltar a entrar o quanto antes no dogma tradicional
da resignação, da abnegação e da negação de si mesmo.
I Encontrareis ainda entre eles, protetores que vos aconselharão
a desprezar a riqueza, encontrareis entre eles devotos que,

122

*1
para salvar vossa alma os aconselharão a abstenção sexual —
reservando-se o direito de consolar a vossas mulheres, vossas
filhas e vossas irmãs. A abnegação é a escravidão, a vileza, a
abjeção; é o rei, o governo, é a tirania, o luto, é a guerra civil.
O individualismo, ao contrário, é a redenção, a grandeza, a
fidalguia, é o homem, o povo, a liberdade, e a ordem".

Anselme Bellegarrigue
(Manifesto)

123
i
I
I
I
" X Tossos moralistas são pessoas honestas. Se bem é ver-
i 1 XI dade que inventaram o Dogma do Trabalho, também
i o é que duvidam de sua eficácia como tranquilizante da alma,
I deleite do espírito e mantenedor do bom funcionamento dos
rins e demais órgãos afins. Pretendem experimentar os resul­
tados de seu emprego sobre o povo ib anima viii (*), antes de
i revertê-lo contra os capitalistas, cujos vícios devem desculpar
e autorizar. Mas, filósofos de dois centavos a dúzia, afinal de

’l
i contas, por que esquentar tanto o cérebro na elocubração de
uma moral cuja prática não os atreveis aconselhar a vossos
amos? Desejai ver ridicularizado e vilependiado vosso dogma
11 do trabalho, do qual sentis tanto orgulho? Então vamos dar
uma olhada na história dos povos antigos e nos escritos de
I seus filósofos e seus legisladores.
"Não poderia dizer — diz o pai da história, Heródoto — se
os gregos herdaram dos egípcios o desprezo que mostram pelo
I trabalho, pois o encontro também entre os tracios, os escitas,
os persas, os lídios... em uma palavra, entre a maioria dos
bárbaros porque, aqueles que aprendem as artes mecânicas
e inclusive seus filhos, são considerados como os últimos dos
cidadãos... Todos os gregos foram educados nestes princípios,
particularmente os lacedemonianos" (Herodoto: tomo II da
tradução francesa de Larcher, 1876). "Em Atenas os cidadãos
era verdadeios nobres que só tinha que ocupar-se da defesa
e da administração da comunidade, igual aos guerreios sel­
I I vagens a quem devem as origens. Assim pois, devendo estar
livres todo o tempo para velar, graças a sua força intelectual e
corporal, pelos interesses da República, carregavam sobre os
escravos todos os trabalhos. Assim mesmo em Lacedemonia,
as mulheres estavam dispensadas de costurar e tecer para não
rebaixar sua nobreza" (Biot, De 1'abolition de i'esclavage ancien
I' en Occident, 1840).
Os romanos não conheciam mais que dois ofícios nobres e
livres: a agricultura e as armas. Todos os cidadões viviam por
I direo, as expensas do Tesouro, sem serem obrigados a colaborar
para sua subsistência com nada, com nenhum tipo de trabalho,
já que o mesmo pertencia, por direito, aos escravos. Os filósofos

11 124

il
antigos discutiam sobre a origem das ideias, mas se mostravam
sempre de acordo quando se tratava de abominar o trabalho.
"A natureza — diz Platão em sua República — não criou
nem sapateiros nem ferreiros; semelhantes ocupações degra­
dam as pessoas que as exercem, vis mercenários e miseráveis
sem nome que estão excluídos por sua própria condição dos
Direitos Políticos. Quanto aos mercadores, acostumados a
mentir e a enganar, só são suportados na cidade como um
mal necessário. O cidadão que se envilece com esse tipo de
ocupação será perseguido por esse delito e se é convicto será
condenado a um ano de prisão, o castigo será dobrado a cada
reRicidência." (Platão, A República, livro V)
Em sua Económica, Xenofonte escreve:
As pessoas que se entregam aos trabalhos manuais não
alcançam nunca um cargo, e isto por uma única razão: a
maioria deles, condenados como estão a permanecer todo o
dia sentados, não podem evitar que seu organismo se altere,
sendo, além disso, muito pi-ovável que o espírito também seja
prejudicado por isso.
O que pode sair de uma tenda que seja honrado? Professa
Cícero. E o que pode fazer o comércio que seja honesto? Tudo
o que tem relação com o comércio será, por definição, indigno
de um homem honestro... Os mercadores não podem obter
benefícios sem mentir, e o que existe de mais vergonhoso que
a mentira?1 Assim, pois, devem se olhados como algo baixo e

1 “Um dos louváveis subprodutos do cacarejo freudiano c a descoberta de que mentir,


na maioria dos casos, c um ato involuntário c inevitável — táo inevitável quanto piscar os
olhos quando se acende uma lâmpada, ou pular se alguém joga uma bomba aos nossos
pés. Nos piores casos, esta necessidade toma um caráter totalmcnte patológico e, assim,
torna-se tão inocente quanto a ciática. Faz parte da bagagem mórbida dos histéricos c
dos ncurasténicos: mentem por um esforço convulsivo para se ajustarem a um ambiente
tão hostil, que não conseguem suportar (...) Omnis homo mendax, todo homem mente,
disse o salmista. Até aí os freudianos simplesmente o papagueiam. O que há de novo no
evangelho de Frcud é a idéia de que mentir é instintivo, normal e inevitável, e a de que o
homem é forçado a isto pela própria vontade de viver. Pense numa mentira como uma
compulsão neurótica, e estará pensando nela com carinho (...) Para um homem habituado
a buscar c dizer a verdade, o mundo não é um dos lugares mais agradáveis. Este homem
será sempre impopular e, com frequência, sua impopularidade pode ser tão excessiva que
até lhe constitua um risco de vida. Dê uma olhada na lista de mártires, tanto leigos quanto

125
i
I
I vil, todos aqueles que vendem sua vergonha e sua indústria,
I
I
pois qualquer que oferece seu trabalho por dinheiro se vende
í a si mesmo e se coloca na categoria dos escravos" (Cícero, Los
iI Ofícios, 1 título II, capítulo XLII).
I
Proletários embrutecidos pelo dogma do trabalho, escutai e
entendei a linguagem destes filósofos que lhes são escondidos
com cuidadosa precaução. Um cidadão que oferece seu trabalho
por dinheiro, se degrada a categoria dos escravos, comete um
pi
I crime que merece anos de presídio.
•I A história cristã e o utilitarismo capitalista não havia
•I pervertido a estes filósofos das Repúblicas antigas que, pro­
!i fessando para homens livres, expressavam ingenuamente
seus pensamentos. Platão, Aristóteles, todos esses pensadores
gigantescos — a quem nossos Cousin, Caro, Simon e outros
não chegam nem aos pés — queriam que os cidadãos de suas
Repúblicas ideais vivessem no maior ócio.
Segundo Plutarco, o grande prestígio de Licurgo "o mais
sábio dos homens" era, para maior admiração da posteridade,
o haver concedido ócios aos cidadãos da República, proibindo-
lhes qualquer tipo de trabalho."

Paul Lafargue
. i (E/ derecho a la pereza)
I
<
I

I i

l! religiosos. Mesmo hoje, com a paixão científica tornando-se familiar ao mundo, a opinião
geral sobre eles é altamente desfavorável, O típico cientista, o critico das instituições, o
homem da verdade em todos os campos estão sempre sob suspeita pela grande maioria
dos outros e, às vezes, são perseguidos por um pelotão de inimigos. Se ele tenta descobrir
I a verdade sobre a arterioesclerose, o choque cirúrgico ou o câncer, é denunciado como
um carniceiro pelos Cientistas Cristãos, os osteopatas e os antivivisseccionistas.” Mencken,
H. L. O livro dos Insultos, Companhia das Letras pp. 142, 143, 144.

126

I
I Jll 1
I

ll J
J
'JI

I ■I

' '
i
£
ascer na rua significa vagar toda tua vida, ser livre.
Significa acidentes e incidentes fortuitos, drama, mo­
vimento. Significa, sobretudo, sonho. Uma harmonia de dados
irrelevantes que proporciona a teu vagar uma certeza metafísi­
ca. Na rua aprendes o que realmente são os seres humanos, de
outro modo, mais tarde, terás que inventá-los, O que não está
em plena rua é falso, inventado, isto é, literatura. Nada do que
se chama "aventura" se aproxima sequer ao sabor da rua. Não
importa que voes ao Pólo, que te sintas no fundo do mar com
um livreto nas mãos, que visites nove cidades uma atrás da ou­
tra ou que, como Kurtz, remontes o rio e te tornes louco... Não
importa o excitante, o intolerável da situação, sempre existem
saídas, sempre melhoras, comodidades, compensações, jornais,
religiões. Mas houve uma vez na qual não existiu nada disso.
Uma vez na qual foste livre, selvagem, capaz de matar.
Os amigos que adoraste quando pusestes os pés na rua
pela primeira vez, permanecem contigo por toda vida. São
os únicos heróis verdadeiros. Napoleão, Lenin, Capone, são
todos uma ficção. Para mim, Napoleão não é nada comparado
com Eddie Carney, que pela primeira vez me esbofeteou um
olho. Não conheci ninguém que me pareça tão principesco, tão
régio, tão nobre como Lester Reardon, quem, pelo simples fato
de caminhar pela rua inspirava medo e admiração, julio Verne
jamais me levou aos lugares que Stanley Borowski tirava da
manga ao anoitecer. A Robinson Crusoé lhe faltava imaginação
comparado com Johnny Paul. Todos esses garotos do Distrito
14, ainda têm para mim um sabor especial. Não foram inven­
tados ou imaginados: eram de verdade. Seus nomes ressoam
como moedas de ouro: Tom Fowler, Jim Buckley, Matt Owen,
Rob Ramsay, Harry Martin, Johnny Dunne... Antes da grande
mudança, ninguém notava que as ruas eram feias e sujas. Se
as lixeiras ficavam abertas te tapavas as narinas. Se ias assoar
o nariz, encontravas catarro no lenço e não em teu nariz. Havia
mais paz interior e satisfação. Estava a taberna, o hipódromo,
as bicicletas, as mulheres fáceis e os cavalos trotadores. A vida
ainda movia-se sem pressa, pelo menos no Distrito 14. No
domingo pela manhã, ninguém descia vestido. Se a senhora

129
ll
Gorman descia em bata, com seus olhos ramelcntos a saudar o
padre: "bom dia padre!' 'Bom dia senhora Gorman!', a rua ficava
purgada de todo pecado. Em meus sonhos volto ao Distrito 14°
como um paranoico regressa a suas obsessões. Quando penso
I
naqueles barcos de guerra de cor acinzentada no Navy Yara,
os vejo ali ancourados em uma espécie de dimensão astroló­
gica onde eu sou o mestre de armas, o químico, o comerciante
de altos explosivos, o embalsamador, o forense, o cornudo,
o sádico, o advogado, o erudito, o inquieto, o louco e o sem-
vergonha. Quando outros recordam sua infância com um belo
jardim, uma mãe cálida, uma temporada no mar, eu recordo,
li com uma intensidade gravada em ácido, as paredes e chaminés
cobertas de fuligem, sombrias, da fábrica de estanho em frente
e as peças circulares e brilhantes de estanho esparramadas na
rua, algumas luzindo, outras oxidadas sem lustre, como cobre,
ll que deixavam manchas nos dedos... Recordo as mãos negras
dos trabalhadores, a sujeira metida tão dentro da pele que nada
poderia arrancá-la, nem sabão, nem dinheiro, nem amor, nem
a morte. Como uma marca negra sobre eles! Caminhando até
o forno como diabos com mãos negras!... E mais tarde, frios e
rígidos em seus trajes domingueiros, cobertos de flores, nem
sequer a chuva podia lavar-lhes a sujeira. Todos aqueles lindos
. i
gorilas subindo para deus, com músculos inchados e lumbago
I I e mãos negras.
4

I
Henry Miller
{Primavera Negra)

l!

130
"/'"As últimos despojos da superpopulação relativa são,
final mente, os que se refugiam na órbita do paupe-
rismo. Deixando de lado os vagabundos, os criminosos e as
prostitutas, em uma palavra, ao proletariado andrajoso (lu-
pemproletariado) no sentido estrito, esta capa social se encontra
formada por três categorias. Primeira: Pessoas capacitadas para
o trabalho. Basta consultar superficialmente a estatística do
pauperismo inglês para convencer-se de que o número dessas
pessoas aumenta com todas as crises e diminui quando os ne­
gócios se reanimam. Segunda: Órfãos e filhos de pobres. Estes
seres são candidatos ao exército industrial de reserva (EIR), e
nas épocas de grande atividade, como em 1860 por exemplo,
são envolvidos rapidamente nos quadros dos trabalhadores
ativos. Terceira: Degradados, despojos, incapazes para o tra­
balho. Se trata de seres condenados a perecer pela imobilidade
a que lhes condena a Divisão do Trabalho. O pauperismo é c
asilo dos inválidos do exército obreiro ativo e o peso morto dc
exército industrial da reserva. Sua existência vai implícita na
existência da superpopulação relativa, sua necessidade em sua
necessidade e com ela constitui uma das condições de vida da
produção capitalista e do desenvolvimento da riqueza. Figura
entre osfauxfrais da produção capitalista apesar de que o capftal
se vira, dá um jeito de sacudí-los de seus ombros e de jogá-los
sobre as costas da classe obrera e da pequena classe média".

Karl Marx
(E/ Capital)

131
i
I
I "T Tou ainda lançar-vos um olhar, ó muralhas, que en-
I
i
V cerrais esses lobos; trague-vos a terra, para que não
i mais protejais a Atenas! Matronas, tornái-vos impudicas!
i Cesse a obediência nos filhos! Escravos e bobos, derribai das
i
i suas cadeiras os senadores graves e encanecidos, e governai
em seu lugar! Moças virgens, convertei-vos sem tardança à
imundice geral... fornicai à vista de vossos pais. Oponde resis­
tência, bancarroteiros, e em vez de pagar, arrancai da navalha,
e cortai o pescoço aos credores. Roubai servos assalariados: os
vossos circunspectos senhores são ladrões de mão comprida
e roubam à sombra da lei! Rapariga, vai para a cama de teu
!.1i amo; tua ama está no lupanar! Filho de dezesseis anos, agarra
na muleta estofada do ancião teu pai, e com ela deita-lhe os
miolos fora! Piedade e temor, religião para com os deuses,
I paz, justiça, verdade, respeito doméstico, descanso noturno,
vizinhança, instrução, maneiras, mistérios, negócios, hierar­
quias, preceitos, costumes e leis, descei a confudir-vos com o
que vos é oposto; seja tudo confusão! Pestes a que os homens
estão sujeitos, que as vossas poderosas e infecciosas febres
venham todas sobre Atenas, já madura para a ruína! Tu, fria
ciática, tolhe os nossos Senadores: coxeiem os seus membros
i
como coxeiam os seus costumes. Luxuria e licença, penetrai no
l
I• espírito e na medula da nossa juventude para que ela possa
. i
iI I lutar contra a corrente da virtude a afundar-se na devassidão.
i
Vermes da sarna e dos carbúnculos, penetrai no seio de todos
I os Atenienses; transforme-se-lhe o papo numa lepra geral!
I
Que o hálito infecte o hálito; que a sociedade, como a amizade,
seja mera peçonha! Nada levarei de ti, cidade odiosa, senão a
I ! minha nudez! Venha-te ela também a ti, com anátemas sem
conto! Timon vai para os bosques; lá se encontrará com as
i
feras cruéis, mais benignas, porém, que o gênero humano! Os
i deuses confundam, — ouvi-me, vós todos, ó deuses bons — os
deuses confundam os atenienses, tanto os que estão fora, como
os que estão dentro dessas muralhas! E concedei que à medida
que Timon for vivendo, se lhe vá aumentando o ódio por toda
I a raça humana, alta ou baixa! Bendito sol gerador, faze sair
da terra pútrida uma humidade que infecte o ar que está por

132

I
baixo do orbe da tua irmã! Geminai irmãos do mesmo ventre,
— dando-lhes procreação, gestação, gestação e nascimento
escassamente intervalados, e dotai-os com fortunas diversas; o
maior desprezará o menor. Não há índole de homem, — ao qual
todas as chagas hajam posto cerco, — que possa tolerar uma
grande fortuna senão desprezando a natureza. Elevai-me esse
pedinte e arruinado aquele senhor; o senador terá de sofrer um
desprezo hereditário ao passo que o pedinte gozará das honras
que se tributam ao nascimento. E a abundância que engorda os
flancos daquele, a fome que emagrece os deste. Quem ousará,
quem ousará erguer-se na pureza da sua alma, e dizer: Este
homem é um lisonjeador? Ora se um o é, todos os são, pois
cada grau da fortuna é adulado pelo que lhe é inferior. A cabeça
do doutor abaixa-se perante o tolo dourado: tudo é obliquo;
nada está a nível na nossa maldita natureza senão a infâmia
manifesta. Portanto, festas, reuniões e turbas dos homens, sede
todas malditas! Ao seu semelhante, e até a si próprio, desprez;
Timon! Destruição, lança as garras à espécie humana!... Terrr
dá-me raízes! A quem te pedir coisa melhor, tempera-lhe o pa­
ladar com os teus mais violentos venenos! Que é isso? Ouro?
Ouro amarelo, brilhante, precioso? Não, deuses: eu não faço
protestos vãos. Raízes quero, ó céus azuis! Muito disto tornaria
o preto branco; o feio belo; o covarde valente. Mas oh, ó deuses?
Por que é isso? Isto o que é deuses? Isto fará com que os vossos
sacerdotes e os vossos servos se afastem de vós; isto fará arran­
car o travesseiro de baixo das cabeças dos homens fortes. Este
escravo amarelo fará c desfará religiões; abençoará os réprobos;
fará prestar culto à alvacenta lepra: assentará ladrões, dando-
lhes títulos, genuflexões e aplauso, no mesmo banco em que se
assentam os senadores; isto é que faz com que a inconsolável
viúva contraia novas núpcias; e que com aquela, que as úlceras
purulentas e o hospital tornavam repugnante, fique outra vez
perfumada e apetecível como um dia de abril. Anda cá, terra
maldita, meretriz comum a toda a espécie humana, que semeias
a desigualdade na turba-multa das nações, eu vou devolver-te à
tua verdadeira natureza. Ah! Um tambor! Estás vivo, mas vou

133
I
I
enterrar-te: irás, ladrão forte, aonde os gotosos teus detentores
I I |!
I 1 não poderão acompanhar-te!
Porque nasceste para conquistar a minha pátria, matando
I
I
I
vilões. Guarda o teu ouro: vai-te... Toma lá ouro... vai-te. Sê
I qual peste planetária, que se respira no ar viciado das cidades
corrompidas quando Jove derrama nele os seus venenos. Não
perdoe a tua espada a nenhum. Não tenhas piedade da velhice
venerável pela sua barba branca: é um usurário. Carrega na
li' matrona hipócrita: de honesto só tem o vestido: é alcoviteira.
Não façam as faces da virgem abrandar o gume da tua espada;
•I
as lácteas tetas, que pelo engradamento da janela elas ostentam
li à vista dos homens, não estão inscritas na folha da piedade;
abate-as como a horríveis traidores. Não poupes a criança que,
quando sorri, encovinha as faces para exaurir a piedade dos
tolos; tem-no por um bastardo que algum oráculo anunciou
ambiguamente dever um dia cortar-te o pescoço; esmigalha-o
sem remorsos. Receia-te até das próprias coisas. Reveste com
armadura os teus ouvidos e os teus olhos: armadura a prova,
que com os bramidos das mães, das donzelas ou das crianças,
nem a vista dos sacerdotes revestidos de sagradas vestes,
possam sequer penetrar. Aqui tens ouro para pagares aos teus
I I
I•
, soldados. Faze grande destruição e uma vez satisfeita a tua ira,
I I destruído seja tú próprio! Não fales mais, vai-te!
I I Bastante para fazer renunciar uma puta ao seu tráfico, ou
I
para que uma alcoviteira faça putas. Estendei o avental, porcas.
Não podeis ser ajuramentadas, apear que, bem o sei, juraríeis,
faríeis terríveis juramentos, que até aos imortais deuses que
vos ouvissem fariam fortemente estremecer. Não jureis: confio
na vossa inclinação. Continuai a ser putas; e àquele que, com
piedosas falas, intentar converter-vos, mostrai ser ainda mais
I puta que sois; tentai a esse, inflamai-o; predomine o vosso fogo
no fumo dele. Não vos arrependais nunca. Que durante seis
meses vos penetre a infecção; e, quando peladas, cobri a pelada
cabeça com as cabeleiras dos mortos... não importa que algum
deles tenha morrido na forca...; usai essas cabeleiras, enganai
com elas; putas sempre' Pintai-vos como se um cavalo vos
tivesse enlameado a cara; toda ela coberta com os vergões da

134

I
peste! Semeai a consumação nos ossos furados dos homens;
feri-lhe as delgadas tibias, e destruí-lhe toda a energia. Cascai
a voz ao advogado para que não mais possa defender títulos
falsos, nem fazer ouvir as suas agudas rabulices. Apodrecei o
flâmine que vocifera contra os apetites da carne, sem crer no
que diz. Roído seja o nariz ao homem; que não possa tornar
a cheirar o proveito próprio à custa do bem público. Tornai
carecas os putanheiros frizados, e que os fanfarões que saem
ilesos da peleja sejam chagados por vós. Empeçonhai a todos;
que da vossa atividade resulte o aniquilamento e a morte da
origem da ereção... Aí vai mais ouro. Exterminai os outros, e
que isto vos extermine. Sejam fossos vossas sepulturas.
Será possível que a nossa natureza, enferma de ver a mal­
dade humana, ainda tenha vontade de comer?... O tú, mãe
comum, cujas entranhas incomensuráveis e infinito seio geram
e alimentam tudo; tu, que com a mesma substância tua — com
que está infatuado o teu orgulhoso filho, o homem arrogante —
engendras o negro sapo e a víbora azul, a dourada lagartixa, f
o licranço peçonhento, e todas as outras odiosas criaturas qu
há sob o firmamento, onde brilha o vivicador fogo de Hyperião
dá-lhe àquele que odeia todos os teus humanos filhos, uma
pobre raiz tirada das tuas fecundas entranhas. Mirra o teu fértil
e gerador seio para que não mais produza homens ingratos!
Concebe tigres, dragões, lobos e ursos; dá a luz monstros no­
vos, que a tua superfície nunca haja apresentado a marmórea
mansão celeste.... Oh, uma raiz... graças meu deus. Seca as tuas
seivas, os teus vinhedos, os teus campos, dos quais o homem
ingrato extrai licores e pratos untuosos que lhe ensebam o es­
pírito puro, a ponto de o privar de toda a consideração! Nem
de gado, de aves e de peixes: o que deveis comer é homens.
Não obstante tenho de agradecer-vos de serdes ladrões de
profissão, de não trabalhardes com aparências de santidade;
nas profissões limadas o roubo é ilimitado. Ladrões desprezí­
veis, tomai lá ouro. Ide, libai o subtil suco dos cachos até que
uma rija febre vos faça ferver o sangue a ponto que fermente,
e possais assim escapar a forca; não acrediteis nos médicos; os
antídotos deles são veneno; eles matam ainda mais do que vós

135
i

i! roubais; levam a riqueza com a vida. Cometei crimes, cometei,


posto que protestais cometê-los, como trabalhadores. Eu vos
i I darei exemplos de roubo: ladrão é o sol que, com a sua grande
atração, rouba o extenso mar; ladra errante é a lua que rouba ao
i
i sol a sua pálida luz; ladrão é o mar cuja líquida vaga dissolve
a lua em lágrimas salgadas; ladra é a terra que se alimenta e
procria roubando uma composição a todos os excrementos:
nada há que não roube. As leis, que vos são freio e chicote,
exerce, no seu severo poder, infrene roubo. Não vos ameis
mutuamente: destruí-vos; roubai-vos uns aos outros;... tomai
lá mais ouro;... degolai: tudo o que encontrardes é ladrão. Ide
a Atenas, arrombai as lojas; nada podeis roubar que a ladrões
! não o roubeis; não roubeis menos, por isto que vos dou; em
I
todo o caso, que o ouro vos destrua. Amém.

Shakespeare
(Timon de Atenas)

I
If
I
I

■ I
I

1
I

136
uando Zaratustra se afastou do mais feio dos homens
sentiu frio, sentiu-se só: tantas coisas geladas e isola­
das lhe atravessaram o espírito que até os próprios membros se
lhe arrefeceram. Subindo, todavia, cada vez mais por montes
e vales e, ao atravessar pedreiras ásperas, que provavelmente
tinham sido leito de um rio impetuoso em outras épocas, sen­
tiu- se de súbito mais vivo e mais animado.
"Que me aconteceu? — perguntou a si mesmo. — O que
quer que seja ardente e vivo me reconforta; deve andar por
perto de mim. Já me sinto menos só; companheiros e irmãos
rondam inconscientemente ao redor de mim; o seu hálito quen­
te agita a minha alma".
Porém, quando olhou cm volta procurando os consoladores
da sua solidão, viu que eram vacas, que estavam umas ao lado
das outras num terreno mais elevado; fora a proximidade e o
bafo desses animais que lhe havia reanimado o coração. As
vacas, entretanto, pareciam escutar atentamente alguém que
falasse, c pouco ligavam para quem se aproximava.
Já perto delas, Zaratustra ouviu sair do centro uma voz
de homem, nitida e visível, pois todas viraram a cabeça para
o seu interlocutor.
Zaratustra correu para a pequena elevação e dispersou
os animais, pois receava que houvesse acontecido alguma
desgraça a alguém, coisa que dificilmente aliviaria o pesar das
vacas. Enganava-se, porém; o que viu foi um homem, sentado
no solo, que parecia persuadir os animais a não terem medo
dele. Era um homem de aspecto agradável, um pregador das
montanhas cujos olhos pregavam a própria bondade.
— "Que procura aqui?" — perguntou Zaratustra, admira­
do. "Que procuro! — respondeu o homem. — O mesmo que
você, curioso! Isto é, a felicidade na terra.
Por isso queria aprender com estas vacas. Porque, fique sa­
bendo, há meio dia que lhes estou falando, c iam me responder.
Por que dispersou-as?
Se não voltarmos e não fizermos como as vacas, não en­
traremos no reino dos Céus. Porque há algo que devíamos
aprender com elas: é ruminar.

139
E, claro, de que serviria o homem conquistar o mundo in­
teiro, se não aprendesse apenas uma coisa, se não aprendesse
a ruminar?
II Não perderia a sua grande mágoa.
Essa grande mágoa que hoje denomina-se tédio. Quem
não terá hoje o coração, a boca e os olhos carregados de tédio?
Também você. Olhe para estas vacas!"
1 I Assim falou o pregador da montanha; depois voltou os
olhos para Zaratustra — porque até então conservara-os fixa
e amorosamente nos animais.
Logo se transformou, contudo: —"Com quem estou falan­
do? — exclamou, sobressaltado, pondo-se de pé.
Este é o homem que desconhece o tédio, Zaratustra em
I pessoa, o que triunfou do grande tédio; são seus olhos, sua
ll boca, e o próprio coração de Zaratustra".
E assim falando osculou as mãos daquele a quem falava,
com olhar de afeto e em tudo se comportava como uma pes­
soa que recebe do céu, inesperadamente, um precioso dom ou
algum tesouro. Contudo as vacas contemplavam, admiradas,
tudo aquilo.
"Não fale de mim, homem privilegiado e atraente! — res­
pondeu Zaratustra, fugindo aos carinhos. — Primeiramente
!\ fale-me de você. Não será você o mendigo voluntário que,
I 1 outrora, rejeitou uma grande riqueza?
I Não será aquele que, humilhado da riqueza e dos ricos, pro­
i . curou refúgio entre os mais pobres a fim de lhes dar sua abun­
dância e seu coração? Todavia, eles nada disso aceitaram."
"Não me receberam — disse o mendigo voluntário; já o
I sabe. Por isso acabei procurando os animais e as vacas."
"Desta forma você aprendeu — interrompeu Zaratustra
I — que é muito mais difícil dar do que receber favores; que
praticar o bem é uma arte, é a última e a mais sagaz habilidade
da bondade."
"Especialmente em nossos dias — respondeu o mendi­
■ I go voluntário — especialmente hoje quando tudo quanto é
I I
mesquinho se ergue altivamente orgulhoso da sua espécie; o
I populacho.

140
Já deve saber que chegou a hora da grande insurreição do
populacho e dos escravos, a insurreição funesta, ampla e lenta,
que cresce incessantemente.
Agora os pequenos rebelam-se contra todos os benefícios
e contra os dons mesquinhos; acautelem-se os que são dema­
siado ricos!
Há frascos bojudos que gotejam pouco por estreitos gar-
galhos... a frascos semelhantes é que se deseja hoje cortar a
cabeça.
Cobiça anelante, inveja amarga, vingança reconcentrada,
orgulho vil; tudo isso me assaltou à cabeça. Não é verdade os
pobres serem bem-aventurados, O reino dos céus está entre
as vacas."
"E por que não entre os ricos?" — perguntou tentadora­
mente Zaratustra, impedindo que as vacas afagassem com o
seu hálito o homem de semblante agradável.
"Por que me tenta? — redarguiu este. — Você mesmo o
sabe muito melhor que eu. Que foi que me impeliu para os
mais pobres, Zaratustra? Não era repulsão que sentia pelos
mais ricos dos nossos? Pelos subjugados pela riqueza que tiram
os seus lucros em todas as migalhas, com olhos frios e olhares
lascivos? Por esse magote que exala mau cheiro até o céu? Por
essa mentirosa e falsa populaça cujos ascendentes eram pessoas
de unhas compridas, aves rapaces, ou trapaceiros com mulheres
obsequisas, concupiscentes e desmemoriadas, pouco diferentes
de prostitutas.
Populacho acima! Populacho abaixo! Que significam hoje
os "pobres", os "ricos"! Esqueci essa diferença e acabei vindo
para longe, cada vez mais longe, até encontrar estas vacas."
Assim falou o homem de bom aspecto e, ao pronunciar
aquelas palavras, respirava estrepitosamente, banhado em -
suor; tanto que as vacas voltaram a admirar-se. Zaratustra,
porém, enquanto o homem falava assim asperamente, fitava
nele os olhos sorrindo e meneando levemente a cabeça.
"Pregador da montanha, você está se excedendo ao em­
pregar expressões tão duras. A sua boca e os seus olhos não
nasceram para tais asperezas.

141
i
I
I O seu estômago tampouco, segundo me parece, resiste a
i I essa cólera, a esse ódio e a essa agitação. O seu estômago precisa
i de coisas mais suaves; você não é carnívoro.
i Pelo contrário, parece-me herbívoro. Talvez mastique
i
i grão, em todo caso você não foi feo para prazeres carnívoros,
e agrada-lhe o mel."
"Advinhou perfeitamente — respondeu o mendigo volun­
I
i
tário, com o coração aliviado — apraz-me o mel e também môo
grão, porque procurei o que tem bom paladar e purica o hálito;
também uma ocupação diária e um exercício para a boca.
Estas vacas, certamente, foram muito mais longe: desco­
l! briram o ruminar e cair ao contrário. Assim se vêem livres de
todos os pensamentos molestos que incham as entranhas."
Zaratustra disse: "Pois então deveria ver também os meus
I- animais, a minha águia e a minha serpente que não têm rival
na terra.
Olha: aquele é o caminho que conduz à minha gruta: seja
seu hóspede por esta noite. E fale aos meus animais da felici­
dade dos animais, até que eu retorne.
Agora, porém, um grito de angústia chama-me urgente­
mente para longe de você. Também há de encontrar na minha
moradia mel fresco, favos de dourado mel de frescura glacial:
« I coma-o!
I Despeça-se logo das suas vacas, homem singular e atraen­
te, embora lhe custe; pois são os seus melhores amigos e mes­
I tres"!
"A exceção de um só, a quem preferir — respondeu o
mendigo voluntário. — Você é bom, melhor ainda que uma
I vaca, Zaratustra!"
"Vá embora daqui, bajulador mesquinho! Exclamou Zara­
tustra, tomado de cólera. — Por que me envaidece com tal mel
de encómios e de lisonjas?
Fuja para longe de mim!" — gritou outra vez, brandindo
o bordão na direção do mendigo adulador.

i I F. Nietzsche
(O mendigo voluntário)

142
“ I .* iim equívoco ter do exilado uma imagem de quem
JL-jabdica, de quem se retira e se oculta, resignado à suas
misérias, à sua condição de direito. Ao observá-lo, descobre-se
nele um ambicioso, um decepcionado agressivo, um amargu­
rado que além disso, é um conquistador. Quanto mais des-
possuído estamos, mais se exacerbam nossos apetites e nossas
ilusões. Inclusive, percebo alguma relação entre a desgraça e
a megalomania. Aquele que ainda não perdeu tudo, conserva,
como último recurso, a esperança da glória ou do escândalo I
literário. Consente em abandonar tudo, exceto seu nome. Mas,
como conseguirá impor seu nome, se escreve em uma língua
que os civilizados ignoram ou desprezam?
Tentará outro idioma? Não será fácil renunciar as palavras
nas quais perdura seu passado. Quem renega sua língua para I
adotar outra, muda de identidade, (leia-se de decepções). He­
roicamente traidor, rompe com suas lembranças e, até um certo
ponto, consigo mesmo.
Fulano escreve uma novela que, de um dia para outro, o
torna célebre. Conta nela seus sofrimentos. Seus compatriotas
no estrangeiro, sentem ciúmes dele: eles também sofreram e
talvez, até mais. E o apátrida se converte — ou aspira converter-
se — em novelista, resulta numa acumulação de angústias,
numa inflação de horrores e de estremecimentos. Não se pode
renovar o indefinidamente inferno, cuja característica própria é
a monotonia, nem tampouco o rosto do exílio. Nada exaspera
tanto em literatura como o terrível; na vida é demasiadamen­
te evidente para fazer-se notar. Mas nosso autor persiste; no
momento oculta sua novela no fundo de uma gaveta e espera
sua hora. Na ilusão de uma surpresa, de um renome, vive na
irrealidade. Tal é a força dessa ilusão, que, se trabalha em uma
fábrica, o faz com a idéia de ser arrancado dela um dia por uma
celebridade tão súbita como inconcebível.
Igualmente trágico é o caso do poeta. Enclausurado em
sua própria língua, escreve para seus amigos, para dez, para
vinte no máximo. Seu desejo de ser lido, não é menos imperioso
que o do novelista improvisado. Pelo menos tem sobre este a
vantagem de poder colocar seus versos nas pequenas revistas

143

1
li da emigração que aparecem ao preço de sacrifícios e renúncias
quase indecentes. Fulano se transforma em Diretor da revista;
para fazê-la durar, se arrisca a passar fome, se afasta das mu­
lheres, se fecha em sua casa sem janela, se impõem privações
que confundem e espantam. A masturbação e a tuberculose são
I I seus ganhos. Por menos numerosos que sejam os emigrados,
organizam-se em grupos, não para defender seus interesses,
I senão para cotizar, sangrar-se. Afim de publicar seus pesares,
I seus gritos, seus chamados sem eco. Em vão buscaríamos uma
forma mais desgarradora de gratuidade.
Que sejam tão bons poetas como maus prosistas depende
de razões bastante simples. Examinai a produção literária de
Nll1 qualquer pequeno povo que não cometa a puerilidade de forjar-
se um passado: a abundância de poesia é o dado mais chocante.
A prosa exige, para desenvolver-se, um certo rigor, um estado
social diferenciado c uma tradição. E deliberada, construída; a
poesia brota, é direta, ou completamente fabricada; privilégios
dos trogloditas e dos refinados, só floresce além ou aquém,
mas sempre à margem da civilização. Enquanto que a prosa
exige um gênio reflexivo e uma língua cristalizada, a poesia é
perfeitamente compatível com um gênio bárbaro e uma língua
informal. Criar uma literatura é criar uma prosa.2
I"‘
i I
Que há de mais natural que o fato de que muitos não dispo­
11 nham de nenhum outro meio de expressão a não ser a poesia?
Inclusive, os que não estão particularmente dotados obtêm, em
I
I seu desarraigamento, no automatismo de sua excepção, esse
suplemento de talento que não haviam encontrado em uma
existência normal.
Sob qualquer forma que se apresente, e seja qual seja sua
causa, o exílio, em seu princípio é uma escola de desvario.

2 “Um poeta adulto - diz Mcnckcn, em A natureza da fé - é apenas um indivíduo cm


estado de retardamento mental — em suma, um mentecapto. Assim como todos nós in
utero, passamos por um estágio em que somos girinos, da mesma forma todos nós pas­
samos por um estágio em nossa menoridade, em que nos tornamos poetas. Um jovem
I : I de dezessete anos que não seja um poeta será apenas um jumento. Mas um homem de
: I ' I cmqúenta anos que continue a escrever poesia é um infeliz que nunca passou intelectual­
mente da adolescência ou um bufão consciente que finge ser aquilo que nunca foi — algo
I
mais jovem e suculento do que, na realidade é.”

I
144

I
E o desvario não é coisa, a que, qualquer um pode chegar.
E uma situação limite é algo assim como o extremo do estado
poético. Acaso não é um favor ser transportado a ele de repente,
sem os rodeios de uma disciplina, apenas pela benevolência da
fatalidade? Pensai neste apátrida de luxo, Rilke, no número de
solidões que precisou acumular para liquidar suas ataduras,
para tomar terra no invisível. Não é fácil não ser de nenhuma
parte, quando nenhuma condição exterior nos obriga a isso,
O próprio místico não alcança o desapego a não ser através
de esforços monstruosos arrancar-se do mundo, que trabalho
de abolição! O apátrida o leva a cabo sem cobrar os gastos,
pelo concurso — pela hostilidade — da história. Nada de
tormentos nem de vigilias para que se desprenda de tudo; os
acontecimentos o obrigam a isso. Em certo sentido, parece-se
ao enfermo, quem, como ele, se instala na metafísica ou na
poesia sem mérito pessoal, pela força das coisas, pelos bons
ofícios da enfermidade.
Um perigo ameaça o poeta desarraigado: adaptar-se a sua
sorte, não sofrer mais por sua causa. Ninguém pode salvar ;
juventude de suas angústias, mas se desgastam. O mesm<
acontece com a ignorância do país natal, com toda nostalgia.
Os pesares perdem seu brilho, murcham e, apesar da elegia,
caem logo no abandono. Que existe então de mais normal que
instalar-se no exílio? Cidade de Nada, pátria invertida? Na
medida em que nele se deleita, o poeta dilapida a matéria de
suas emoções, os recursos de sua desgraça, como seu sonho de
glória. Como a maldição da qual arrancava orgulho c proveito
já - não o abruma, perde, com ela, a energia de sua exceção e
as razões de sua solidão. Expulso do inferno, tentará em vão
instalar-se nele, submerger-se nele de novo: seus sofrimentos
excessivamente amortecidos o tornarão indigno dele para
sempre. Os gritos do que no passado estava tão orgulhoso,
transformaram-se em amargura e a amargura não se transforma
em versos: ela lhe levará fora da poesia. Não mais cantos nem
mais excessos. Uma vez fechadas suas chagas, em vão revolverá
nelas para extrair alguns acentos: no melhor dos casos, será o
epígono de suas dores. Espera-lhe uma decadência honrosa.

145
Falta de diversidade, de inquietudes originais, sua inspiração
seca. Pronto, resignado ao anonimato e intrigado por sua me­
diocridade, adquirirá a máscara de um burguês de nenhuma
parte. Ei-lo ali no término de sua carreira lírica, no ponto mais
ll I estável de seu rebaixamento. "Integrado", assentado no bem-
estar de sua queda, que lhe resta por fazer? Deverá eleger en­
tre duas formas de salvação: a fé e o humor. Se carrega ainda
I alguns vestígios de ansiedade, os liquidará pouco a pouco por
Ji : ! meio de mil orações. Se pelo contrário, está inclinado para a
burla, minimizará suas derrotas até o ponto de alegrar-se delas.
Segundo seu temperamento, pois, fará oferendas a piedade
ou ao sarcasmo. Em um e em outro caso, terá triunfado sobre
suas ambições, como sobre sua falta de sorte, para alcançar
uma meta além, para chegar a ser um vencido decente, um
réprobo conveniente.

E. M. Cioran
(Ln tentación de existir)

j I
I
I

I
-
I
I 146

I
" A rebelião metafísica é o movimento pelo qual um homem
-zA.se levanta contra sua situação e contra a criação inteira.
E metafísica porque discute os fins do homem e da criação.
O escravo protesta contra a situação que se lhe cria como ho­
mem. O escravo rebelde, afirma que nele existe algo que não
aceita na maneira como é tratado por seu amo; o rebelde me­
tafísico se declara frustrado pela criação. Para um e outro, não
se trata apenas de uma negação pura e simples. Em ambos os
casos, encontramos um juo de valor em nome do qual o rebelde
nega sua aprovação à situação que lhe é própria.
O escravo que se levanta contra seu amo não se preocupa,
advirtamo-lo, de negar a esse amo como ser. O nega como
amo. Nega que este tenha o direito de negá-lo como éxigência.
O amo deixa de sê-lo na medida exata e que não responde a uma
exigência que descuida. Se os homens não podem referir- se
a um valor comum, reconhecido por todos em cada um deles,
então o homem é incompreensível para o homem, O rebelde
exige que este valor seja claramente reconhecido nele, porque
suspeita ou sabe, que sem esse princípio a desordem e o crime
reinariam no mundo, O movimento de rebelião mais elementar
expressa, paradoxalmente, a aspiração a uma ordem.
Linha por linha, esta descrição se ajusta ao rebelde metafí­
sico. Este se lança sobre um mundo destroçado para reclamar
a unidade. Opõe o princípio de justiça que há nele ao princípio
de injustiça que vê ser praticado no mundo. Por tanto, não quer,
primitivamente, mais que resolver esta contradição, instaurar
o reinado unitário da justiça, se pode fazê-lo, ou da injustiça se
for acuado. Entretanto, denuncia a contradição. Ao protestar
contra a situação no que esta tem de inacabado, pela morte, e
de disperso, pelo mal, a rebelião metafísica é a reivindicação
motivada de uma unidade feliz contra o sofrimento de viver e
de morrer. Se a pena de morte generalizada define a condição
dos homens, a rebelião em um sentido, lhe é contemporânea.
Ao mesmo tempo que repudia sua condição mortal, o rebelde
se nega a reconhece a potência que lhe faz viver nessa condição.
O rebelde metafísico não é, pois, seguramente ateu, como se
poderia pensar, mas é forçosamente blasfemo. Simplesmente,

147
I
I
I
I blasfema diante de tudo em nome da ordem, denunciando
I
I Deus como o pai da morte e do escândalo supremo.
Voltemos ao escravo rebelado para esclarecer este ponto.
i
Este estabelecia em seu protesto a existência do amo contra o
i I qual se sublevava. Mas, ao mesmo tempo, demonstrava que
dependia dele o poder deste último e afirmava seu próprio
poder: o de voltar a colocar continuamente em discussão a
I superioridade que o dominava até então. A este respeito, amo
e escravo se encontram verdadeiramente na mesma situação:
!l a realeza temporal de um é tão relativa como a submissão do
outro. Ambas forças se afirmam relativamente no instante da
i; rebelião, até o momento em que se enfrentam para destruir- se,
desaparecendo então, provisoriamente uma das duas.
Da mesma maneira, se o rebelde metafísico se levanta con­
tra um poder cuja existência afirma simultaneamente, não esta­
li
belece essa existência senão no instante exato cm que a discute.
Arrasta então este ser superior a mesma aventura humilhada
do homem, e seu inútil poder equivale a nossa vã condição. O
submete a nossa força de negação, o inclina diante da parte do
homem que não se inclina, o integra pela força a uma existência
absurda com relação a nós, o arranca, por fim, de seu refúgio
intemporal para metê-lo na história, muito distante de uma
I I; estabilidade eterna que só poderia encontrar no consentimento
I . i
iI I unânime dos homens. A rebelião afirma assim, que a seu nível,
toda existência superior é, pelo menos, contraditória.
A história da rebelião metafísica não pode, portanto,
confundir-se com a do ateísmo. De certo modo, se confunde
também com a história contemporânea do sentimento religioso.
O rebelde desafia mais do que nega. Primitivamente, pelo me­
nos, não suprime Deus, fala-lhe de igual para igual. Mas não se
trata de um diálogo cortês. Trata-se de uma polêmica animada
i
i pelo desejo de vencer, O escravo começa por reclamar justiça e
i termina desejando a realeza. Tem que dominar. A revolta contra
a condição se ordena em uma expedição desmedida contra o

i I céu para trazer dele, como prisioneiro, um rei, cuja derrubada


se pronunciará em primeiro lugar e a quem logo se condenará
I à morte. A rebelião humana termina em revolução metafísica.
I

148

I I
Caminha do parecer ao fazer do medíocre ao revolucionário.
Uma vez derrubado o trono de Deus, o rebelde reconhecerá que
essa justiça, essa ordem, essa unidade que buscava inutilmen­
te, cm sua condição, tem agora que criá-la com suas próprias
mãos e com isso, deverá justificar a caducidade divina. Então
começará um esforço desesperado para fundar, ao preço do
crime, se necessário, o império dos homens. Isto não deixará de
ter consequências terríveis, apenas algumas delas nos são até
agora conhecidas. Mas estas consequências não são devidas a
rebelião em si, ou pelo menos, não aparecem senão na medida
em que o rebelde esquece suas origens, se cansa da dura tensão
entre o sim e o imo e se entrega, por fim, à negação de tudo ou
a submissão total".

A. Camus
(O Homem Rebelde')

149
I I
" T Tm dia te chamarão "magnânimo" e as coroas de laurel
l|i
i
e as medalhas de ouro esparzidas sobre o grande se­
11 pulcro ocultarão teus pés descalços! Oh tu, cujo nome não quero
escrever nesta página, que consagra a santidade do crime!
i
i
i
l| Quando estiver na cama e ouvir os latidos dos cães no
campo, oculta-te sob os cobertores; não ironizes o que fazem:
eles têm sede insaciável de infinito, como tu, como eu, como
I todos os outros humanos de rosto pálido e alargado. E quando
rondo as casas dos homens nas noites de tormenta, com os olhos
ardentes, com os cabelos flagelados por ventos tempestuosos,
solitário como uma pedra no meio do caminho, cubro minha

I cara magra com um pedaço de veludo preto, tão preto como a


fuligem dependurada no interior das chaminés. Não é necessá­
rio que os olhos sejam testemunhas da feiúra que o ser supremo,
I II com um sorriso de ódio potente, depositou em mim.
A grande família universal dos seres humanos é uma utopia
digna da lógica mais medíocre.
O homem ingere substâncias nutritivas, e realiza outros
esforços dignos de melhor sorte, para dar idéia de que é cor­
pulento. Que se inche o quanto queira essa rã adorável. Fica
tranquilo, nunca se igualará a teu volume, pelo menos essa é
I ‘
minha opinião. Te saúdo velho oceano!
l . i
Então os homens voltarão a levantar pouco a pouco a
I
I I cabeça, adquirindo a coragem para ver quem fala, estirando o
pescoço como um caracol. Seus rostos ardorosos, decompos­
tos, que expressam as mais terríveis paixões, se contrairão em
máscaras que até os lobos se assustarão.
Ve diante de si, pela noite, escrito em letras de fogo em
i
cada cruz de madeira, o enunciado do pavoroso problema que
i
a humanidade ainda não resolveu: o da mortalidade ou imor­
i talidade da alma. Assim ves, que quando se pretende alcançar
I ! a celebridade, é imprescindível mergulhar com elegância em
rios de sangue, alimentados pela carne de canhão.
Oh piolho de pupila contraída! Enquanto os rios derramem
O declive de suas águas nos abismos do mar, enquanto os as­
tros persistam na trajetória de suas órbitas, enquanto o mundo
I vazio não tenha limites, enquanto a humanidade desgarre seus

150

l
próprios membros cm guerras funestas, enquanto a justiça
divina envie seus raios vingadores sobre este globo egoísta,
enquanto o homem desconheça seu criador e se burle dele —
e com razão — incluindo na burla uma pitada de desprezo,
teu reino estará garantido sobre este universo e tua dinastia
mostrará suas garras de século em século.
Se a terra estivesse coberta de piolhos como de grãos de
areia a beira do mar, a raça humana seria aniquilada, tomada
de terríveis dores! Que espetáculo! E eu, com asas de anjo,
planando nos ares para presenciá-lo!
Pirâmides do Egito: formigueiros levantados pela estupi­
dez e pela escravidão!
Aquele que não viu um barco despedaçar-se no meio de
um furacão, na alternância dos relâmpagos e na mais profunda
escuridão, enquanto os que viajam nele estão tomados pelo
desespero que já conheceis, aquele, digo, não sabe o que são
desgraças na vida.
A consciência julga severamente nossos pensamentos e
nossos atos mais secretos e não se equivoca. Como ela é freqúen-
temente impotente para previnir o mal não se cansa de acossar
o homem, como se fosse uma raposa, sobretudo na escuridão.
O crocodilo não mudará uma só palavra do vomito saído
do interior de seu crânio.
Recebi a vida como uma ferida, e proibi o suicídio que
faria desaparecer essa cicatriz. Quero que o criador contemple
hora após hora, durante toda eternidade, esse tacho aberto.
É o castigo que lhe inflijo.
Deste modo, vossos filhos se criarão lindos e reverencia­
rão a seus pais com agradecimento. De outro modo, doentes
e encolhidos como o pergaminho das bibliotecas, avançarão a
grandes passos, encabeçados pela rebeldia, contra o dia de seu
nascimento e o clitóris de sua mãe impura.
Oh, execrável envilecimento! Como nos assemelhamos às
cabras quando rimos! .
Quem não sabe que quando se prolonga a luta entre o
Ego, pleno de altivez e a magnitude terrivelmente crescente
da Catalepsia, o espírito alucinado perde o juízo?

151
Pena que eu não possa observar através desta página a cara
de quem a está lendo.

i
I
Conde de Lautréamont
{Cantos de Maldoror)

li
li I

I
i
t

152

I
"^e eu tiver de representar um forçado — ou um crimi-
Onoso —, irei enfeitá-lo com tantas flores que ele mes­
mo, desaparecendo debaixo delas, há de parecer uma outra,
gigantesca, nova. Não quero dissimular as outras razões que
fizeram de mim um ladrão, a mais simples sendo a necessi­
dade de comer; todavia, em minha escolha jamais entraram a
revolta, a amargura, a raiva ou qualquer sentimento desse tipo,
com um cuidado maníaco, "um cuidado ciumento", preparei a
minha aventura como se arruma uma cama, um quarto para o
amor: eu tive tesão pelo crime. Tendo saído um pouco depois
dele do hotel, eu o via de longe tentando comover as mulhe­
res. Já havendo mendigado para outros, ou mesmo para mim,
eu conhecia a fórmula: ela mistura religião cristã à caridade;
confunde o pobre com Deus; é uma emanação tão humilde do
coração que acredito que empreste um perfume de violeta ao
bafo leve e direto do mendigo que a pronuncia. Na Espanha
inteira dizia-se então: — Por Dios.
O Bairro Chino era então uma espécie de valhacouto po­
voado menos por espanhóis do que por estrangeiros, que eram
todos vagabundos piolhentos. As vezes estávamos vestidos
com camisas de seda verde amêndoa ou junquilho, calçados
com alpargatas gastas e as nossas cabeleiras coladas pareciam
envernizadas a ponto de rachar. Não tínhamos chefes, mas
diretores. Sou incapaz de explicar como chegavam a sê- lo.
Provavelmente como resultado de uma série de operações
felizes na venda dos nossos tristes saques. Tratavam dos nos­
sos negócios e nos indicavam os golpes, extraindo depois dos
mesmos uma parte razoável. Não formávamos bandos mais ou
menos bem organizados, mas naquela enorme desordem suja,
no meio de um bairro fedendo a azeite, urina e merda, alguns
homens perdidos confiavam em outro mais esperto.
Gostávamos de saber —• e sentir — pululando os bichinhos
translúcidos que, sem serem domésticos, eram tão nossos que
o piolho de outro nos dava nojo. Nós lhe dávamos caça, mas
com a esperança de que durante o dia as lêndeas teriam nas­
cido. Com as nossas unhas os esmagávamos sem nojo e sem
ódio. Não jogávamos os cadáveres — ou despojos — no lixo,

153
I
i I
I I

os deixávamos cair, sangrando com o nosso sangue, em nossa


I: i I
rouba maltratada. Os piolhos eram o único sinal da nossa pros­
peridade, do próprio avesso da prosperidade, mas era lógico
que ao fazer o nosso estado operar uma recuperação que o jus­
tiçasse, justificávamos ao mesmo tempo a marca desse estado.
Tornados tão úteis para o conhecimento daquilo a que se dá o
nome de triunfo, os piolhos eram preciosos. Deles sentíamos
I
ao mesmo tempo vergonha e glória.
A cultura das feridas, pelos mendigos, para eles é também
1 o meio de ter um pouco de dinheiro — para viver —, mas se
foram levados a isso por uma fraqueza na miséria, o orgulho
que é preciso para sustentar-se fora do desprezo é uma virtude
!■'
viril: como uma rocha a um rio, o orgulho fura e divide o des­
prezo, arrebenta-o. Entrando mais ainda na abjeção, o orgulho
será mais forte (se esse mendigo for eu mesmo) quando eu
il tiver a ciência — força ou fraqueza — de aproveitar tal destino.
E preciso, à medida que essa lepra me vence, que eu a vença e
que eu seja o vencedor. Tornar-me-ei, pois, cada vez mais ignó­
bil, cada vez mais um objeto de nojo, até o ponto final que ainda
não sei o que é, mas que deve ser comandado por uma busca
estética tanto quanto moral, a lepra com que estou comparando
o noso estado, provocaria, dizem, uma irritação dos tecidos, o
i i
paciente se coça: ele tem uma ereção. Num erotismo solitário
I I a lepra se consola e canta o seu mal. A miséria nos erigia. Com
I
i documentos falsos, por exemplo, íamos a diversos consulados
I
para sermos repatriados, O cônsul, enternecido ou irritado
pelas nossas queixas e a nossa miséria, nossa imundície, nos
dava uma passagem de trem até uma fronteira. O nosso chefe
I a revendia na estação de Barcelona. Indicava-nos também os
il roubos a cometer nas igrejas — coisa que os espanhóis não
I I
ousavam — ou nas residências elegantes, enfim, era ele mesmo
que nos trazia os marujos ingleses ou holandeses com quem
tínhamos de nos prostituir por algumas pesetas.
Assim, por um grosseiro subterfúgio, eis que estou falando
I novamente dos mendigos e dos seus males. Atrás de um mal
I
; I físico real ou fingido que o distingue e o faz esquecer, mais
I secreto um mal da alma se dissimula. Enumero as chagas se-

154

I
cretas: os dentes estragados, o hálito fétido, a mão cortada, o
fedor dos pés, etc. Para escondê-las e estimular o nosso orgulho
tínhamos: a mão cortada, o olho vazado, a perna de pau, etc.
Enquanto trazemos sobre nós as marcas da degraçào, somos
uns degradados, e mesmo que não nos abandone a consciência
da impostura, isso de nada nos vale. Só quando utilizávamos o
orgulho imposto pela miséria é que provocávamos a piedade
cultivando as chagas mais nojentas. Nós nos tornávamos uma
censura à felicidade de vocês. I

Andava sozinho. As vezes, eu cruzava ou ultrapassava


outro mendigo. Sem sequer nos sentarmos em qualquer monte
de pedras, nos dizíamos que a aldeia era mais favorável aos I
mendigos e prosseguiámos em nossa solidão, zombando da
nossa miséria, dizia-se então: "Ele vai caçar com uma espin­
garda de papel".
Carregava comigo um fardo de angústia tamanho que
toda a minha vida, eu tinha certeza, se passaria a perambular.
Não mais um detalhe que enfeará a vida, a vagabundagen
torna-se para mim uma realidade. Mas no crepúsculo, quand»
estava cansado, a minha cabeça inclinava-se, e eu sentia o meu
olhar pesar sobre o mundo e nele confundir-se ou voltar para
dentro de mim e desaparecer, creio que ele conhecia a minha
solidão absoluta. Quando trabalhava como lavrador, quando
era soldado, quando estava no serviço de proteção ao menor,
apesar da amizade e às vezes do afeto dos meus mestres, eu
era absolutamente só. A prisão me ofereceu o primeiro conso­
lo, a primeira paz, a primeira confusão amigável: tudo isso se
passava no imundo. Tanta solidão me havia forçado a fazer de
mim mesmo um companheiro.
Nunca em meu coração conheci o ódio ou a inveja em re­
lação aos ricos que de nós se afastavam com nojo. E bom que
os homens se afastem de uma obra profunda se ela é o grito de
um homem monstruosamente enterrado em si mesmo.
Se não posso ter o destino mais brilhante, quero o mais
miserável, não para uma solidão estéril, mas afim de obter, de
tão rara matéria, uma obra nova. E se a metempsicose me con­
ceder um nova moradia, escolho esse planeta maldito, habito-o

155
11
I com os forçados da minha raça. Entre pavorosos répteis, vou
I
i
l à procura de uma morte eterna, miserável, em trevas cujas fo­
I
i lhas são pretas, a água dos pântanos espessa e fria, O sono me
i
I será negado. Ao contrário, cada vez mais lúcido, reconheço a
i
I
imunda fraternidade dos crocodilos sorridentes".
I
Jean Genet
I
(Diário cie um ladrão)

i 1

i

I
I I

I
156

' I
"rl do o que desejamos agarrar nos foge; tudo têm uma
JL vontade hostil, que é preciso vencer. Na vida dos povos
a história não nos mostra mais do que guerras e levantes, os
anos de paz parecem curtas pausas, entreatos, que surgem por
casualidade. E assim mesmo, a vida do homem é um perpétuo
combate, não só contra males abstratos, a miséria e o tédio,
mas também contra os demais homens. Em todas as partes se
encontra um adversário, a vida é uma guerra sem trégua e se
morre com as armas na mão. Entretanto, assim como nosso 1
corpo explodiria se lhe fosse retirada a pressão da atmosfera,
assim também se f os- se retirado da vida o peso da miséria,
da tristeza, dos problemas e dos esforços inúteis, seria tão
desmedido no homem o excesso de sua arrogância, que o des­
truiria ou, pelo menos, o levaria a uma insensatez ainda mais
desordenada e até mesmo a uma loucura furiosa.
Para aquele que sabe o que na realidade há de passar, as
crianças são inocentes condenados (não ã morte, mas sim à
vida) que ainda não sabem o conteúdo de sua sentença.
Pode também considerar-se nossa vida como um episódic
que turba inutilmente a beatitude e o sossego do nada. Seja
como for, todo homem para quem a existência é apenas suportá­
vel, a medida que avança em idade, vai tendo uma consciência
cada vez mais clara de que a vida é, em todas as coisas, uma
grande misticação, para não dizer um engano. Qualquer um
que tenha sobrevivido a duas ou três gerações, se encontra em
situação de ânimo idêntica a um espectador sentado dentro de
uma barraca de marionetes na praça, quando ve as mesmas
farsas repeticias duas ou três vezes sem interrupção. O mundo
é um inferno e os homens se dividem e almas atormentadas e
diabos atormentadores.
Dirão novamente que minha filosofia não tem consolo, mas
isso é porque digo a verdade, enquanto as pessoas preferem
ouvir dizer: "Deus Nosso Senhor fez bem tudo o que fez!". Se
quereis ter sempre a mão uma bússula segura para orientar-vos
na vida e para poder interpretá-la corretamente, habituai-vos
a considerar este mundo como um lugar de penitência, como
um colónia penitenciária. Um ser consciente ou um gênio,

157
d11
I I
experimenta no mundo, os mesmos sentimentos que um pri­
I I!
I '
sioneiro político quando colocado numa cela comum, ao lado
i de ladrões e assassinos vulgares.
i
i
i Nos anos de minha juventude, o ruído da campainha
de minha casa me enchia de júbilo, porque pensava: "Oba!
vai acontecer alguma coisa!". Mais tarde, amadurecido pela
vida, o mesmo ruído me despertava um sentimento próximo
‘I
ao espanto, e dizia para mim mesmo: "Porra,o que será que
aconteceu?".
A cada um em particular, a história de uma vida é sempre a
■i
história de um sofrimento, porque todo caminho percorrido não
1 é mais do que uma série ininterrupta de tragédias e desgraças
que cada qual se esforça em ocultar, porque sabe que, longe de
inspirar simpatia ou pena nos outros, os enche de satisfação.
Nada existe de fixo nesta vida fugaz: nem dor infinita, nem
|i
i I
alegria eterna, nem impressão permanente, nem entusiasmo
duradouro, nem resolução elevada que possa durar a vida
inteira! Tudo se dissolve na torrente dos anos. Os minutos, os
inumeráveis átomos de pequenas coisas, fragmentos de cada
uma de nossas ações, são os vermes roedores que devastam
tudo o que existe de grande e atrevido... Nada pode ser tomado
a sério na vida humana: a poeira não vale a pena! A felicidade
esta sempre no futuro ou no pasado, e o presente é igual a uma
I nuvenzinha escura que o vento arrasta pelo espaço iluminado
pelo sol. Diante e detrás dela tudo é luminoso, só ela projeta
I sempre uma sombra. A vida não se apresenta de maneira ne­
nhuma como um presente que devemos desfrutar, mas sim
como um dever, uma tarefa que devemos cumprir a força de
I trabalho. Nas grandes e nas pequenas coisas, uma labuta sem
i
descanso, uma competição sem trégua, um combate sem fim,
uma atividade imposta com uma extremada tensão de todas as
l! forças do corpo e do espírito. O tédio não é um mal desprezível,
ele é quem faz com que os homens, que se amam tão pouco
i entre si, se busquem uns aos outros tão loucamente: é a fonte
I i do instinto social. O estado o considera como uma calamidade
pública e por prudência toma medidas para combatê-lo. Se a
I
miséria é o tormento perpétuo para o povo, o tédio o é para
!
1
158

mi
as pessoas acomodadas. Na vida civil, o domingo representa
o tédio e os seis dias da semana a miséria. O homem é o mais
desprotegido de todos os seres. Não é nada mais que vontade,
desejos encarnados, um composto de mil necessidades. Vive
sobre a terra abandonado a sí mesmo, inseguro de tudo, exce­
to de sua miséria e da necessidade que o oprime. Com passo
inquieto, olhando angustiado a seu redor, o homem segue o
seu caminho na luta contra o azar e com um sem número de
inimigos. Assim ia através da solidão selvagem; vai agora em
plena vida civilizada. Não existe para ele nenhuma segurança".

Arthur Schopenhauer
(Dolores del mundo)

159
I
I I “ | ,1 quanto menos sabemos do passado e do presente tanto
li
I
i I
i 1—/ mais inseguro haverá de ser nosso juízo sobre o porvir.
i Experimentamos assim a impressão de que a civilização é algo
que foi imposto a uma maioria contraria a ela, por uma minoria
i
I II que soube apoderar-se dos meios de poder e de coerção.
A meu juízo, há de contar-se com o fato de que todos os
homens integram tendências destrutivas — anti-sociais e anti-
culturais — e que em grande número são bastante poderosas
para determinar sua conduta na sociedade humana.
l Provavelmente uma grande porcentagem da humanidade
permanecerá sempre asocial, como consequência de uma dispo­
sição patológica ou de uma exagerada energia dos instintos.
Infinitos homens civilizados que retrocederiam temerosos
I diante do homicídio ou do incesto, não se privam de satisfazer
sua cobiça, seus impulsos agressivos e seus caprichos sexuais,
nem de prejudicar a seus semelhantes com a mentira, a fraude
e a calúnia, quando podem fazê-lo sem castigo e assim, vem
sucedendo desde sempre, em todas as civilizações. A função
capital da cultura, sua verdadeira razão de ser, é defender-nos
contra a natureza.
Recapitulando nosso exame da génese psíquica das ideias
religiosas, poderemos formulá-la assim: tais idéias, que nos são
apresentadas como dogmas, não são nascidas da experiência
nem de conclusões do pensamento: são ilusões, realizações dos
desejos mais antigos, intensos e apremiantes da humanidade.
I O segredo de sua força está na força desses desejos.
De todas maneiras, o trabalho científico é, a nosso ver, o
único caminho que pode levar-nos ao conhecimento da reali­
dade exterior. Esperar algo da intuição e do êxtase, não é mais
que uma ilusão. Dos homens cultos e dos trabalhadores do
intelecto a civilização não tem muito que temer.
li O dilema: ou manter essas massas perigosas em uma
absoluta ignorância, evitando cuidadosamente toda chance
de um despertar espiritual nelas, ou levar a cabo uma revisão
I || fundamental das relações entre a civilização e a religião.
i

I
I !
160

11
Os motivos puramente racionais podem ainda muito pouco
contra as paixões no homem de nossos dias, muito menos no
mísero animal humano dos tempos primivos.
A meu juízo, uma criança sobre a qual não se exercesse
influência alguma, demoraria muito mais para começar a
formar-se uma idéia de deus e das coisas ultraterrestres".

Sigmund Freud
I
(E/ porvenir cie una ilusión)

161
Hi'
II " A história presente faz lembrar determinados perso-
i
I I xlnagens de desenho animado, que uma louca corrida
I1
1 repentinamente arrasta sobre o vazio sem que disso se aper­
i
i cebam, de tal modo que é a força da sua imaginação que os
II I
faz flutuar a uma altura tal; mas se tomam consciência disso,
i medi a ta mente caem.
Este é o lugar onde, à falta de faca, se aprende a manejar
os cotovelos e o olhar.
O sentimento de humilhação nada mais é que o sentimento
I de ser objeto. Assim entendido, fundamenta uma lucidez com­
.11
bativa na qual a crítica da organização da vida não se separa
da realização imediata de um projeto de outra vida. Sim, não
existe construção possível a não ser ser na base do desespero
I i
individual e na base de sua superação: os esforços empreendi­
dos para mascarar esse desespero e manipulá-lo sob uma outra
11 II embalagem bastariam para o provar.
Era como se estivessem numa jaula cuja porta estivesse
completamente aberta, sem que pudessem evadir-se. Nada
inha mais importância que essa jaula, pois que nada mais
?xistia. Permaneciam na jaula, estranhos a tudo o que não fosse
ela, sem sequer a sombra de um desejo por tudo o que estava
para além das grades. Teria sido anormal, impossível mesmo,
I
evadir-se em direção a algo que não tinha nem realidade nem
importância. Absolutamente impossível. Pois no interior dessa
jaula onde haviam nascido e onde morreriam, o único clima
de experiência tolerável era o real, que era simplesmente um
instinto irreversível de fazer de modo que as coisas tivessem
importância. Só se as coisas ... tivessem alguma importância se
I
poderia respirar, e sofrer. Parecia haver um acordo entre eles
e os mortos silenciosos para que fosse assim, pois o hábito de
fazer com que as coisas tivessem importância tinha-se tornado
um instinto humano e, dir-se-ia, eterno.
I I Tal como a multidão, a droga, sentimento amoroso e o ál­
I I
cool possuem o privilégio de enfeitiçar o mais lúcido espírito.
í Graças a ele, o muro compacto do isolamento parece um muro
de papel que os atores rasgam segundo a sua fantasia, pois o

162
álcool dispõe tudo num plano teatral íntimo. Ilusão generosa
e que por isso mais seguramente mata.
Adaptar-se ao mundo é um jogo de cara ou coroa no qual
a priori se decide que o negativo se torna positivo, que a im­
possibilidade de viver fundamenta as condições sine qua non
da vida. Nunca a alienação se incrusta tão bem como quando
se faz passar por um bem inalienável. Mudada em positivida-
de, a consciência do isolamento não é mais que a consciência
privada, esse pedaço de individualismo inacessível que as boas I
pessoas arrastam com elas como propriedade sua, incomoda e
cara. E uma espécie de prazer-angústia que ao mesmo tempo
impede que nos fixemos para sempre na ilusão comunitária e
que permaneçamos bloqueados nos subsolos do isolamento.
Por toda a parte a impossibilidade de viver é garantida
com um tal cinismo que o prazer-angústia equilibrado das re­
lações neutras participa no mecanismo geral de demolição dos
homens. Parece afinal preferível entrar em dilações na recusa
radical taticamente elaborada do que bater gentilmente a todas
as portas onde se troca uma sob(re) vida por outra.
Afinal, se um indivíduo recusar igualmente a violência
do inadaptado e a adaptação à violência do mundo, onde en­
contrará ele o caminho? Se não elevar ao nível de uma teoria e
de uma prática coerentes a sua vontade de perfazer a unidade
com o mundo e consigo mesmo, o grande silêncio dos espaços
sociais construirá para ele o palácio dos delírios solipsistas.
A sinfonia dos gritos e das palavras oferece ao cenário das
ruas uma dimensão movediça. Num baixo contínuo, modelam-
se temas graves ou leves, vozes roucas, apelos constantes, es­
trépito nostálgico de frases sem fim. Uma arquitetura sonora
sobrepõe-se ao traçado das ruas e das fachadas, completa ou
corrige a nota atraente ou repulsiva de um bairro. "Desde a
vinda de Cristo, libertamo-nos não do mal de sofrer mas do
mal de sofrer inutilmente" escreve muito justamente o padre
Charles, da Companhia de Jesus. O problema do poder não
foi nunca o de se suprimir mas o de se justificar a fim de não
oprimir inutilmente. Acasalando o sofrimento com o homem,
sob pretexto da graça divina ou da lei natural, o cristianismo,

163
i I
I
I
I
ll essa terapêutica doentia, conseguiu o seu toque de mestre. Do
i
príncipe ao manager, do padre ao especialista, do diretor de
consciência ao psicosociólogo, é sempre o princípio do sofri­
i mento útil e do sacrifício consentido que constitui a base mais
i
I sólida do poder hierarquizado. Seja qual for a razão invocada,
mundo melhor, além, sociedade socialista ou futuro encanta­
dor, o sofrimento aceito é sempre cristão, sempre. A canalha
H
clerical sucedem hoje os zeladores de um Cristo que se passou
I
i
para a política. Em toda a parte as reivindicações oficiais levam
em filigrana a repugnante efígie do homem da cruz, em toda a
i
parte se pede aos camaradas que arborem a estúpida auréola do
i;1 militante mártir. Os misturadores da boa causa preparam com
•I o sangue vertido as salsicharias do futuro: menos carne para
canhão, mais carne para princípios! Na perspectiva do poder,
um só horizonte: a morte. E tanto a vida caminha para esse
desespero que no fim nele se afoga. Onde quer que estagnar a
I água viva do quotidiano os traços do afogado refletem o rosto
dos vivos e se olharmos bem o posivo é negativo, o jovem é já
velho e aquilo que se constrói atinge a ordem das ruínas".

Raoul Vaneigem
(Â arte de viver para a geração nova)

I I I
I
I

i ■I
I

I I

164
“ I A urante quinze dias eu me enclausurara no meu quarto
JL^e cercara-me do livros em moda naquele tempo (há
dezesseis ou dezessete anos); refiro-me aos livros que tratam
da arte de tornar os povos felizes, discretos e ricos em vinte e
quatro horas. Tinha, pois, digerido — engolido, quero dizer
— todas as elucubrações de todos esses empreendedores da
felicidade pública — daqueles que aconselham todos os pobres
a fazerem-se escravos, e daqueles que os persuadem de que
todos eles são reis destronados. Não é, pois, de surpreender
que me achasse num estado de espírito vizinho da vertigem
ou da estupidez.
Parecera-me somente que eu sentia, confinado no fundo
de meu intelecto, o germe obscuro de uma idéia superior a
todas as fórmulas de curandeira de que eu havia recentemente
percorrido o dicionário, Isso, porém, era apenas a idéia de uma
idéia, alguma coisa infinitamente vaga.
E saí com muita sede. O gosto apaixonado das más leitu­
ras engendra uma necessidade proporcional de ar livre e de
refrigerantes.
Ia entrando numa taberna, quando um mendigo me esten­
deu o chapéu, com um desses olhares inesquecíveis que der­
rocariam os tronos, se o espírito movesse a matéria e se o olho
de um magnetizador fizesse amadurecer as uvas. Ao mesmo
tempo, ouvi uma voz cochichar-me ao ouvido, uma voz que
reconheci perfeitamente: era a de um Anjo bom, ou de um bom
Demónio, que me acompanha por toda parte. Pois se Sócrates
tinha o seu bom Demónio, por que não haveria eu de ter o meu
Anjo bom, e por que não haveria de ter a honra, como Sócrates,
de obter o meu diploma de loucura, assinado pelo sutil Lélut e
pelo atilado Baillarger? Entre o Demónio de Sócrates e o meu
há esta diferença: o de Sócrates não se lhe manifestava senão
para defender, advertir, impedir, e o meu se digna de aconse­
lhar, sugerir, persuadir. O pobre Sócrates não tinha mais que
um Demónio proibidor; o meu é um grande afirmador, o meu
é um Demónio de ação, ou Demónio de combate.
Ora, a sua voz me cochichava isto:
— Só é igual a outro aquele que disso dá prova, e só é digno
da liberdade aquele que sabe conquistá-la.

165
Imediatamente me atirei sobre o meu mendigo. Com um
só murro lhe tapei um dos olhos, que se tornou, num segundo,
do tamanho de uma bola. Quebrei uma das unhas rebentando-
lhe dois dentes, e, como não me sentisse bastante forte — pois
sou frágil de natureza e não me exercitei bem no boxe — para
moer de pancadas aquele velho, agarrei-o com uma das mãos
pelo colete e com a outra empolguei-o pela garganta, e pus-
me a sacudir-lhe vigorosamente a cabeça de encontro a uma

!l
•I
parede. Devo confessar que de antemão inspecionara, num
lance de olhos, as adjacências, e verificara que naquele subúrbio
I
deserto eu me encontrava, por um espaço de tempo bastante
longo, fora do alcance de qualquer agente de polícia. Depois,
com um pontapé nas costas, bastante vigoroso para fraturar-
lhe a omoplata, prostrei por terra o alquebrado sexagenário, e,
apoderando-me de um grosso galho de árvore que se arrastava
pelo chão, fustiguei-o com a energia obstinada dos cozinheiros
que querem amolecer um bisteque.
Súbito — ó milagre ó alegria do filósofo que comprova a
excelência da sua teoria! — vi aquela velha carcaça voltar-se,
mdireitar-se com um vigor que eu jamais teria presumido em
náquina tão singularmente desconjuntada, e, com um olhar
de ódio que se me afigurou de bom angúrio, o malandrim
decrépito investiu contra mim, contundiu-me os dois olhos,
quebrou-me quatro dentes, e com o mesmo galho de árvore
I
me bateu de rijo.
Com a minha enérgica medicação eu lhe restituirá o
I orgulho e a vida. Então, fiz-lhe compreender, por meio de
mudos sinais, que dava por encerrada a contenda, e, erguen­
do-me com a satisfação de um sofista do Pórtico, disse-lhe:
I — O senhor é igual a mim! Dê-me a honra de partilhar da minha
bolsa; e, se realmente é filantropo, lembre-se que é necessário
I aplicar a todos os seus confrades, quando lhe pedirem esmola,
t
a teoria que eu tive a dor de experimentar nas suas costas.
I Ele jurou-me que havia compreendido a minha teoria, e
I i
que ouviria os meus conselhos.
I !
Charles Baudelaire
I (Obra completa)

166

n
" | Aepois de Marx, Engels, Lenin e Mao, aparece como o
l__y maior pensador político do século, o genial interprete
das realidades sociais, que possui sobre seus predecessores a
enorme vantagem de já ter realizado por si só o comunismo
integral no mundo inteiro. Como se chama esse glorioso herói
do socialismo? Gilbert Tirano. Qual é seu sistema? O Club
Mediterranée, versão semanal de uma sociedade sem classes,
sem dinheiro, sem trabalho, uma autêntica utopia concreta
que funciona dia e noite, os doze meses do ano, lugar de I
conjugação ideal de um homem novo e de uma natureza que
enfeitiça. O interesse do Club, quintessência, quase caricatura
da civilização das férias, reside no fato de ser por si só um
microcosmos do ocidente, o crisol onde precipam, fermentam
todas as esperanças c as contradições dos assalariados moder­
nos. Ultima sofistificação do turismo clássico, apresenta todas
suas carências, menos uma: a má consciência; daí os favores
que conhece e também os ódios que engendra, sobre tudo,
por parte de uma esquerda constantemente despeitada por
saber que existe gente feliz no mundo, no mesmo mundo que
preferia que fosse uniformemente duro e sinistro, o mundo do
capitalismo moribundo.
O aventureiro só é suportado prostituído, pois sua prosti­
tuição é paradoxalmente uma garantia de lucidez.
Nosso campo de experiência é limitado, atomizado; o sen­
tido do conjunto nos escapa ou nos deixa frios: é assim como
nos educaram as grandes desgraças do século.
Quando uma sociedade destrói todas as aventuras — es­
tava escrito num muro em 68 — a única aventura que resta
consiste em destruí-la. Mas, quando as esperanças socialistas
envelhecem mal, a guerra se automatiza, as virtudes guerreiras
baseiam-se na polícia, que recupera aos poucos, todos seus
prestígios (comandos de choque, brigadas especiais, etc). Toda
a instituição militar se difunde no Estado civil, estrategistas e
Generais adquirem vocação de dirigentes, o exército se con­
funde com o povo, ocupa-se de sua educação e constrói um
monstro horrível: o cidadão-soldado.
Os homens e as mulheres de hoje parecem-se a essas águas
estancadas que aparentam estar mortas mas que a primeira

167

!
I I
I
I
I tempestade, põe em marcha, põe em cólera, em transe reli­
I I '
I, gioso.
O olho, afirmavam os jesuítas, é a única abertura de todo o
I
I corpo que mantém com o mundo umas relações que escapam
I I!
à corrupção.
Finalmente, até o dinheiro, não como signo de infâmia,
senão como de suor e de esforço, é substituído pelo collar-bar
de bolas multicores: supremo exotismo, pois nos convida a
mendigar com magnificiência, a converter-nos em indígenas
luxuosos.
Nos anos sessenta, qualquer routard que passasse pelas es­
tradas da América do Sul ou da Asia, sabia com certeza a quem
atribuir a miséria das favelas, a fome endémica dos negros, a
devastação das zonas agrícolas vietnamitas ou cambodjanas;
toda a desigualdade, toda a escravidão, toda a injustiça do mun­
do cheirava a hamburguesa e a Coca Cola, a infâmia conduzia
diretamente à Casa Branca, seus instrumentos chamavam-se
Pentágono e CIA. Então, alguns deles, carregando os pecados
da Europa e da América, tornavam-se pobres entre os pobres,
humildes entre os humildes: novos Cristos expiando sobre os
caminhos da índia ou de Marrocos os pecados de seus superio­
res; missionários sem religião, vindos para aprender e não para
ensinar, iam ao Terceiro Mundo como outros, na mesma época,
I ingressavam nas fábricas para descobrir a condição proletária
(é sabido que muitos deles, especialmente jovens americanos e
I ingleses, desapareceram definitivamente nesta busca perdida
de um Oriente redentor). O rápido acesso a todos os pontos
do globo desvalorizou as regiões mais longínquas, as culturas
mais originais se corromperam ao civilizarem-se, a era das
exportações atrevidas ficaram para trás e nenhuma viagem,
i oh vaidoso peregrino, te curará de ti mesmo.
Meu prazer, minhas intrigas, minha epopéia cotidiana,
as minúsculas felicidades de minha vida, importam mais que
todas as façanhas dos conquistadores, que todos os arquivos
I II do planeta. Um minuto de vida realmente vivida vale pelos
, I

destinos mais sublimes dos heróis mais loucos. E necessário


I reivindicar com orgulho a pequenez de nossa experiência, a

168
i

i
mesquinhez de nosso egoísmo, e entregar à terra inteira por
>
um instante de felicidade. Ao peregrinar pelos caminhos, eu
sou filho de minhas peripécias, de minhas anedotas, de meus
encontros; gozo a ilusão de ser um indivíduo mais instável,
mais oposto a gravidade e a rigidez do destino. Assim, que
viajar é viver vários passados, vários presentes, dar a volta
continuamente ao relógio da arena do tempo, baixar e subir a
escala da duração, aparecer instantâneamente no século XVIII,
a era feudal ou o princípio do mundo, viver em uma interfe­
rência diabólica entre os seres e as coisas, gozar a maneira de
um artista dos contrastes entre os diferentes ritmos com que
giram as diversas partes do mundo.
Vivemos a automatização irresistível da esfera conjugal:
esta se desprende de suas antigas tutelas e revoga os objetivos
produtivos económicos e familiares que lhe conferiram a razão
de ser. O casal é em sí mesmo seu primeiro desejo e sua última
preocupação, (ser filho único é sua mais querida neurose). Ser
amado por si mesmo é um triste programa. Os esposos ou os
(concumbinos) se amam e vivem juntos para deixar de ser eles
mesmos, para esquecer-se como indivíduos, para dar férias a
sua imagem.
O homem apressado de hoje — homem de negócios, políti­
co, turista — é um cu-sentado que vai de poltrona em poltrona
de um continente a outro; não são os pés mas sim as nádegas que
criam calos. A pessoa é a estupidez da multidão que se empurra
quando existe espaço para todo mundo, para ganhar o que?
três segundos: é o imbecil que segue coçando o nariz quando o
semáforo já está verde; são todos os estúpidos, em uma palavra,
com que povoamos o anonimato urbano para poder sobre-
impressinar, no tempo abstrato da cidade, uma palavra que o
comente, que nos conte e nos justifique. Já não se sabe a que
estimulante acudir para despertar estes corpos de sua inderen-
ça. O subúrbio nascido da cidade, se volta contra ela e a mata".

Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut


(La aventura a la vuelta de la esquina)

i
169

I
uai é essa quimera impotente e estéril, essa divindade
que apregoa ao imbecil um odioso tropel de curas
embusteiras?
Querem que eu seja um dos seus sectários?
Ah, nunca, isso juro. Manterei a minha palavra: nunca a
esse ídolo oferecerei idolatria.
Esse filho do delírio e da zombaria nunca poderá causar-
me a menor impressão.
Contente e glorioso do meu epicurismo, pretenderei expi­
rar num doce ateísmo e esse infame Deus que pretendem criar
apenas o conheço para blasfemar.
Ah, sim, vã ilusão, minha alma te detesta e para bem calar
o meu constante protesto quisera por momentos poder dispor
e saborear da glória de te insultar.
i Mas quem é, de facto, esse fantasma vão, trivialidade de
Deus, invenção ingrata que não se pode ver e ninguém analisa,
por medo do insensato e do sensato riso? Quem se escapa ao
sentido, à inteligência, senão este filho do homem selvagem
sem consciência que regou com o sangue desde há milhares
de anos3 e ainda se nos revela como um senhor?
Pretendi analisar o inútil miserável e o meu olhar filosófico
não o achou entranhável; apenas viu como motivo das nossas
religiões um enxame de contradições que se rompe e desaparece
I em face de um simples exame. Por isso, pode afirmar-se que a
crença nasce graças ao nosso medo e é filha da esperança.4
Mas qual é a razão do mentiroso objecto que pretende
cingir-me ao seu inútil trajecto? Necessito eu de Deus que a

3 Avalia-se em mais de cinquenta milhões de vidas as perdas devidas à guerra ou mas­


sacres por causa da religião. Uma só religião pode valer o sangue de um pássaro? Acaso a
filosofia não deve precaver-sc com todas as suas peças para exterminar Deus, a favor do
qual se imolam todas as vítimas que valem mais do que ele? Acaso existe uma ideia mais
estúpida, extravagante e perigosa do que a da existência de Deus?
4 A ideia de Deus não nasce nos homens excepto quando choram ou esperam alguma
coisa. E nisto que se baseia a unanimidade de todos os seres humanos nesta quimera.
O homem, universalmentc infeliz, teve sempre motivos de dor e de esperança e tanto
invoca a causa que o atormenta como espera o fim dos seus males. Ao invocar o ser que
se supõe ser a causa de ambos, ignorando que o mal inerente à sua vida tem a sua causa
na própria existência, cria as quimeras ante as quais renuncia ao estudo e à experiências
que se tornariam simples inutilidade.

170
minha lógica pesa para justificar a natureza? Nela tudo existe
e no seu seio criador se agita a cada instante sem um princípio
motor? Ganharia eu algo com essa bifurcação? E Deus revela-
nos as leis que regem a criação? Se ele cria, se foi criado, con­
tinuarei assim também inseguro como dantes em me unir ao
seu destino.
Fora, fora de mim, infernal impostura, o universo aguarda
a tua fatal sepultura. Tudo o que temos são coisas naturais, tu
és apenas o nada que a natureza nos criou. Evade-te, execrável I

quimera! Vai para longe do mundo, abandona a terra, onde só


verás pecados empedernidos, cobertos de ouropel: jóias dos
teus amigos.
E, quanto a mim, já é tanto o ódio que me inspiras que
com prazer, Deus vil, e voluptuosamente, seria o teu verdugo
se existisses realmente: oferecerias assim a minha sombria
vingança o prazer do meu abraço que iria ao teu coração para
que conhecesses de mim ódio a sério. Mas é inútil, não existes,
ninguém te pode abraçar e a tua essência escapa-se a quem
quisera alcançar-te. Não te posso afastar, mas entre os mortais
gostaria de derrubar os teus infames altares e demonstrar ao
mundo que Deus, ainda cativo, o irrisório aborto bebedor de
orações não conseguirá pôr termo a todas as paixões. Movi­
mentos sagrados, paixões sem ambages, sêde para sempre o
objecto das nossas homenagens. A única coisa que se pode dar
ao homem sensato, a única coisa que chega ao nosso coração, é
que a natureza domina a nossa razão: cedamos ao seu impulso,
à sua força e violência para subjugar nossas almas sem recorrer
à resistência. Ondule plenamente a lei dos prazeres e a voz
do desejo inunde os nossos seres.6 Haja qualquer desordem

5 O mais simples estudo da natureza convence-nos da eternidade do movimento e o exame


atento das suas leis faz-nos ver que nada se perde nele e tudo se regenera sem cessar graças
ao efeito que parece destruir as suas obras. Se as destruições são necessárias, a morte é I
uma palavra sem sentido: só existem transmutações e não há extinções. A perpetuidade
do movimento entre a natureza anula qualquer ideia de um primeiro motor.
6 Rendamo-nos indiscriminadamente a tudo o que nos inspiram as paixões e seremos para
sempre felizes. Desprezemos a opinião dos homens: ela é apenas fruto de certos precon­
ceitos. Quanto à nossa consciência, não redobremos a sua voz, porque a podemos calar:
o costume a reduz sempre ao silêncio e torna em prazer as mais terríveis recordações. A

171
il
i

lll I e sopre qualquer vento devemos prosseguir e sem qualquer


ressentimento, sem perscrutar as leis, sem seguir os hábitos,

í abandonar-nos lânguidos, cheios pelo sentimento de adorar as


imposições da natureza. Respeitaremos só o seu divino mur­
múrio esses que em todos os lados as vãs leis sufocam. O que
I parece ao homem uma horrível injustiça é efeito total dos seus
olhos enfermos: se algo se revelar monstruoso para os nossos
hábitos recorramos à natureza que nos recebe como inteiros.7
Essas suaves acções que julgais letais, os intensos desejos que
chamam criminosos são resplendores normais da natureza.
Quando ela nos permite, simplesmente, é sublime e até nos
I confia as vitimas para o crime: torturemo-las sempre e nunca
I pensemos fazer nada de terrível: sigamos os nossos desejos.
Ela anula o azar e os pais, os filhos, templos, bordéis, devotos
li e bandidos, tudo lhe pertence e nela não há delitos. Cumpri­
ríamos com ela ao cometer o crime: enquanto mais o excesso,
mais ela nos recebe.8 Usemos as forças que ela exerce em nós
entregando-nos a gostos monstruosos, ninguém se torna ingra­
to por gostos homicidas, incestos, violações, roubos, parricídios.
Derrubando a deus, roubemos-lhe o seu trono e com este fulgor
açoitemos a vida que não nos incomode ou nos encha de medo.
Nunca a inibição, não, porque as maldades servem de exemplo
vivo às negras proezas... Nada de sagrado existe; tudo no uni-
I

consciência não é um órgão da natureza, mas dos preconceitos: vençamo-los e teremos a


I consciência às nossas ordens. Interroguemos a consciência do selvagem e perguntemos-lhe
se ele censura alguma coisa: quando mata o seu semelhante e o devora, a natureza parece
falar por ele; a consciência está muda; concebe corno coisa de idiotas apelar para o crime,
mas executá-o. Tudo é tranquilo, serviu a natureza através da acção, que agrada tanto a esta
I. natureza sanguinária que se alimenta dos crimes — os crimes que são a sua energia.
7 Como podemos ser culpados se apenas obedecemos às pressões da natureza? Os homens
e as suas leis, que são no fundo obra humana, podem considerar-nos criminosos, mas
nunca a natureza... Apenas resistindo é que podemos ser culpados aos olhos desta e este
I [
é o único crime que devemos evitar.
8 Uma vez demonstrado que o crime lhe agrada, o homem que melhor lhe servirá será
aquele que dê mais extensão ou gravidade aos seus crimes, observando que a extensão lhe
agrade mais que a gravidade, pois se está de facto estabelecido que o assassínio é menos
I , , ii grave do que o parricídio, isto é uma pura convenção humana. Quem tenha cometido
mais desordens no universo santificará mais quem se tenha detido no primeiro passo. E
j quem refreia as suas paixões deve ter esta verdade como evidente: só poderão tornar-se
caros à natureza se multiplicarem os seus delitos.

I
172
verso se relaciona com o fogoso jugo do nosso corpo. E quanto
mais nos multiplicamos, mais infâmias cometemos e mais as
sentiremos na nossa alma de ferro. Escurecendo ao máximo
os nossos negros ensaios os dias e as noites nos conduzem ao
pecado. A natureza, após os anos suaves das divinas brincadei­
ras, depara-nos com esta sorte: uma cova que espera para nos
recompensar e no fim de toda a vida cairmos nos seus braços
pois tudo nela é vida, tudo se reconstrói: grandes e pequenos,
mães, mulheres pervertidas... E nós também somos tão suaves
aos seus olhos: monstros ou libertinos, medíocres ou virtuosos.

Marquês de Sade
(/I Verdade)

\\
!■
173
I
I j|
I 1’
!|
" A /Tas, eis que se adiantam algumas pessoas, que sem
i JLV-Ldúvida vivem sob as minhas leis da Loucura: são os
i que se divertem ouvindo ou contando milagres e romanescas
invencionices. Não acreditais? Pois esse bom gosto proporciona
tal prazer que os sábios são indignos de experimentá-lo. É pre­
ciso, sim, é preciso ter nascido sob um particular auspício dos
deuses para poder saborear tão doces quimeras. E o melhor
il
é que nunca se fartam de ouvir semelhantes patranhas. Os
i milagres, os espectros, os duendes, os fantasmas, o inferno, e
mil outras visões dessa natureza, são os assuntos mais comuns
I
das conversas do vulgo ignorante, sendo que, quanto mais
extraordinárias são essas coisas, com tanto maior prazer são
elas ouvidas e facilmente acreditadas. E não penseis que tais
histórias se contem apenas para iludir as horas de aborreci­
I; mento: tornaram-se, na boca dos monarcas e dos pregadores,
um meio de tirar proveito da crendice popular. A essa espécie
podem agregar-se, a justo título, os ridículos e originais su­
persticiosos, os quais, toda vez que têm a sorte de ver alguma
estátua de madeira ou alguma imagem do seu polifêmico São
Cristóvão, ficam convencidos de que nesse dia não poderão
morrer. Soldados há que, depois de uma pequena prece diante
da imagem de Santa Bárbara, ficam certos de que sairão ilesos
I
i
da batalha. Alguns acreditam que, invocando Santo Erasmo
i I em certos dias, com certas orações e à luz de certas lampari­
i
nas, seja possível fazer uma grande fortuna em pouco tempo.
I E que direi do hercúleo São Jorge, que para esses supersticiosos
faz às vezes de um novo Hipólito? Na verdade, não se pode
deixar de rir diante de sua devoção, que consiste em ornar
pomposamente o cavalo do santo e quase que em prostrar-se,
diante do animal assim enfeitado, para adorá-lo. Fazem questão
absoluta de conservar o favor e a proteção do cavaleiro por meio
l! de alguma oferta, sendo inviolável para eles o juramento que
fazem pelo seu penacho. Mas, porque não falar dos que julgam
que, em virtude dos perdões e das indulgências, não têm nen­
huma dívida para com a divindade? Com a exatidão de uma
I
clepsidra e da mesma maneira por que, matematicamente, sem
I recear erro de cálculo, medem os espaços, os séculos, os anos,

174

I
os meses, os dias, - assim também, com essa espécie de falazes
remissões medem eles as horas do purgatório. Outra espécie
de extravagantes é constituída pelos que, confiando em certos
pequenos sinais exteriores de devoção, em certos palanfrórios,
em certas rezas que algum piedoso impostor inventou para se
divertir ou por interesse, estão convencidos de que irão gozar
uma inalterável felicidade, conquistar riquezas, obter honras,
satisfazer determinados prazeres, nutrir-se bem, conservar-se
sãos, viver longamente e levar uma velhice robusta. E, como
se isso não bastasse, ainda esperam poder ocupar no paraíso
um posto elevado, sob a condição, porém, de só passarem ao
número dos beatos tão tarde quanto possível. Pensam, então,
chegado o tempo de voar por entre as inefáveis e eternas delí­
cias do céu, uma vez abandonados pelos bens da terra, a que
se aferram de todo o coração.
Persuadidos dos perdões e das indulgências, ao negociante,
ao militar, ao juiz, basta atirarem a uma bandeja uma pequena
moeda, para ficarem tão limpos e tão puros dos seus numerosos
roubos como quando saíram da pia batismal. Tantos falsos
juramentos, tantas impurezas, tantas bebedeiras, tantas brigas,
tantos assassínios, tantas imposturas, tantas perfídias, tantas
traições, numa palavra, todos os delitos se redimem com um
pouco de dinheiro, e de tal maneira se redimem que se julga
poder voltar a cometer de novo toda sorte de más ações. Quem
já terá visto homens mais tolos, ou melhor, mais felizes do
que os devotos, os quais julgam que entrarão infalivelmente
no reino dos céus, recitando todos os dias sete versículos, que
eu não sei quais sejam, dos salmos sagrados? No entanto, foi
um demónio quem fez tão bela descoberta; mas, um demónio
tolo, que tinha mais vaidade do que talento, tanto assim que
cometeu a imprudência de exaltar o seu mágico segredo com
São Bernardo, que era muito mais esperto do que ele. E todas
essas coisas não serão, talvez, excelentes loucuras? Ah! Como
isso é verdadeiro! Até eu, que sou a Loucura, não posso deixar
de sentir vergonha. No entanto, não é o público o único a
aprovar tão completas extravagâncias. Sustentam a sua prática, l!
dando o exemplo, os próprios professores de teologia. E, já que

175
viajo por esses mares, convém continuar a navegar. Digamos,
assim, algumas palavras sobre a invocação dos santos. É cu­
rioso verificar que cada país se gaba de ter no céu um protetor,
um anjo tutelar, de forma que, num mesmo povo, entre esses
grandes e poderosos senhores da corte celeste, se encontrem
as diversas incumbências do protetorado. Um, cura dor de
dentes, outro assiste ao parto das mulheres; aquele faz achar
os objetos perdidos, este vela pela segurança e prosperidade
do gado; um salva os náufragos, outro confere a vitória nos
combates. Suprimo o resto, porque será um nunca mais acabar.
Além desses, existem outros santos que gozam de um crédito e
um poder universais, encontrando-se entre estes, em primeiro
lugar, a mãe de Deus, a quem o vulgo atribui poder maior que
o do seu próprio filho. Ora, as graças que os homens pedem
aos santos não serão, talvez, insinuadas também pela Loucura?
Dizei-me se, entre tantos votos religiosos de reconhecimento
que vedes cobrindo por completo as paredes e as abóbadas das
igrejas, já vistes pendurado um único de reconhecimento por
cura milagrosa de loucura. Decerto que não: os homens não
costumam importunar os santos para obter uma graça dessa
natureza. Daí resulta que, por maior que seja a sua devoção,
nunca se tornam nem um pouquinho mais sábios. Eis porque,
enquanto se vêem suspensos dos altares, ex-votos relativos a
toda sorte de graças recebidas, nenhum se encontra, todavia,
que se refira a um caso curado de loucura. Aquele pendurou
um ex-voto por se ter salvado a nado quando julgava naufra­
gar; este, porque não morreu de um grave ferimento recebido
numa briga; um outro, porque, enquanto os outros caíam pri­
sioneiros do inimigo, conseguiu subtrair-se ao perigo, graças
a uma feliz e valorosa fuga; aquele outro, porque, tendo sido
condenado à forca como prémio às suas boas ações, caiu do
laço, graças a algum santo dos larápios, a fim de que, pior do
antes e em virtude da caridade do próximo, voltasse a roubar
os que tivessem a bolsa muito cheia de dinheiro; um outro, por
ter recuperado a liberdade rompendo as grades da prisão; outro
por se ter restabelecido facilmente de uma febre muito grave,
com grande mágoa do médico, que esperava fazer uma cura

176
mais longa e mais lucrativa; este, porque, em lugar da morte,
encontrou remédio no veneno que lhe fora dado, enquanto sua
mulher, que já suspirava pelo momento da libertação, ficou na
maior amargura por ter falhado o golpe; outro, porque, tendo
caído com seu carro, não teve receio algum e pôde reconduzir
à casa, sãos e salvos, os cavalos; aquele, porque, tendo ficado
soterrado num desabamento, conseguiu salvar-se sem nada
sofrer; outro, finalmente, porque, tendo sido pilhado em fla­
I
grante pelo marido de sua bela, saiu da enrascada com a maior
desenvoltura.
Ora, bem vedes que ninguém deu graças a Deus, ou à
Virgem, ou a qualquer santo, por ter recuperado o juízo. A
loucura tem tantos atrativos para os homens, que, de todos
os males, é ela o único que se estima como um bem. Quantas
lindas lorotas não vão esses doutores impingindo a respeito do
inferno? Conhecem tão bem todos os seus apartamentos, falam
com tanta franqueza da natureza e dos vários graus do fogo
eterno, e das diversas incumbências dos demónios, discorrem,
finalmente, com tanta precisão sobre a república dos danados,
que parecem já ter sido cidadãos da mesma durante muitos
anos. Os teólogos se colocam imediatamente depois dos deuses.
Depois desses, segue-se imediatamente a espécie melhor do
gênero animal, isto é, os que vulgarmente se chamam monges
ou religiosos. Seria, porém, abusar grosseiramente dos termos
chamá-los, ainda hoje, por tais nomes. Com efeito, por via de
regra, não há pessoas mais irreligiosas do que essas e, como
a palavra monge significa solitário, parece-me não se poder
aplicá-la mais ironicamente as pessoas que se encontram em
toda parte, acotovelando-se a cada passo. Sem o meu socorro,
que seria desses pobres porcos dos deuses? São de tal forma
odiados que, quando por acaso são vistos, costuma-se tomá-los
por aves de mau agouro. Isso não impede que cuidem escru­
pulosamente da sua conservação e se considerem personagens
de alta importância. A sua principal devoção consiste em não
fazer nada, chegando ao ponto de nem ler. Sem dar-se ao tra­
balho de entender os salmos, já se julgam demasiados doutos
quando lhes conhecem o número, e, quando os cantam em

177
I I
1

| coro, imaginam enlevar o céu com a asnática melodia. Entre


i
esse variegado rebanho, alguns se encontram que se gabam
da própria imundície e da própria mendicidade, indo de casa
I'
em casa esmolar, mas com uma fisionomia tão descarada que
parecem mais exigir um crédito do que pedir a esmola. Alber­
I gues, botequins, carros, diligências, todos, em suma, são por
eles importunados, com grande prejuízo dos verdadeiros
’l necessitados. E dessa forma que pretendem ser, como dizem
eles, os nossos apóstolos, com toda a sua imundície, toda a sua
I ignorância, toda a sua grosseria, todo o seu descaramento/'

'i Erasmo de Rotterdam


(Elogio da loucura)

I
I

I
I •
11

;r
I 1

I1 178

!l
" A satisfaÇã° ver agonizar um canalha, quer seja ele um
xxmártir, quer seja ele um ladrão, é maior que a de sentir
os braços opulentos de uma mulher que se entrega. É menos
um. Sê, pois forte como o diamante e como o ódio. Se és bom
serás ridículo, se és mau serás temido. Sê mau sempre. Este
farrapo a que se chama vida foi, é e há de ser sempre assim.
Acredita que todos se vendem, homens e mulheres, palha­
ços e imperadores, cristos e mendigos: a questão é de preço e o
preço sufoca todas as consciências, todas as revoltas.
Tu crês em Deus? Crês sim, que bem o sei. Pois bem; vai
dizer-lhe que eu o odeio com toda a força de meu ódio. Tu que
te das com ele, que crês nele, que és amigo dele, vai dizer-lhe
que ele é mais vil do que as coisas vis. Vai dizer-lhe que eu o
odeio, porque ele deixou morrer aquela criatura aqui do lado,
cujos seis filhos abandonados me vieram comer o meu jantar.
Vai dizer-lhe o ódio que lhe tenho por ele deixar morrer aquele
justo, que por ser bom teve de se matar; diz-lhe finalmente que
nada disto se deve fazer quando se é Deus.
Ah! Não ter eu muito que dar a este pequeno miserável
que me bate agora à porta, para que ele, recebida a esmola, me
chame o mais vil que o sol cobre, o mais canalha de todos, o
mais indigno, o mais bandido!
Ciganas e écuyères, saltimbancos e mendigos, fidalgos e
aguardente, trapeiros e sacerdotes, coveiros e apóstolos, san­
tos e famintos, sultanas e cadelas, bobos e cortesãs, escravos e
libertos, tudo isso é da sua corte.
Minha casa deita sobre a cidade e sobre o mar. Lá em baixo
ficam os seus hospitais, as suas prisões, as suas morgues, os
seus cemitérios, igrejas, calabouços, penitenciárias, hospedarias
e albergues, docas, oficinas e quartéis. Seus bairros magníficos
e seus bairros pobres. Lá moram os que se embebedam e os que
esmolam, os que têm dinheiro e os que não têm trabalho.
A vida é feita de lodo e os homens do pó do crime. Tudo é í
lama e toda a lama é igual. A que salpica uma toalete de seda e a I
que traça constelações nos trapos das mendigas. As almas são de
lama, como as estrelas, como as hóstias, como os mortos, como
os vivos. Há a lama vestida de pérolas e a vestida de escrófulas, a

181
-
>
11,

lama toucada dc sedas c cetins c a vestida de crostas e farrapos.


!•
I Mas é tudo a mesma impureza, tudo a mesma podridão. Tão
impuras são as vestes de Messalina como a escova de dentes
i
i de Gauthier, as ligas de Agripina como a cama dc Rigolbeche,
i
e tudo isto como o manto da Imaculada Conceição.
A face da terra o homem não tem feito senão mal. Foi ele
quem inventou os tronos e os altares, que fez a verdade e a
I | mentira. Que inventou o canalha que governa e o que sofre e
I1 sua até morrer, que inventou a guilhotina e a glória, o deboche
e o dinheiro.
A tumba dos pobres, o carro celular, a vala, a serapilheira,
i: o caixão, a costureira, os vagabundos, as cigarreiras, os emi­
grantes, os degredados, os cavadores, os homens de gênio,
as que não têm leite nos peitos, as que arrastam um coração
Il sem amor, os ninhos abandonados, tudo, de tudo isto quem
sabe a sua tragédia? Nos bancos sombrios do square há vultos
enigmáticos, suspeitos, órfãos cujas almas são os imãns da des­
graça de todo o mundo, e na esquina das ruas pedem esmola
velhos patriarcais como castanheiros centenários. Embuçada
num portal uma criaturinha esguia e franzina como uma santa,
silenciosa, estende a quem passa a mão afilada e transparente
e todos se afastam com rancor.
I’ Passeiam na mesma rua a majestade e o andrógino, a
I
I bêbada e a duquesa, e encontram-se muitas vezes no mesmo
olhar os olhos que são alvoradas e os que são crateras sempre
I
em perpétuas erupções de lágrimas.
E na sombra, há criaturas emagrecidas pelas privações,
recantos sinistros de infâmia onde a luz debuxa, às vezes, a
I traços esguios e esqueléticos, uma caricatura que em lugar de
fazer rir faz arrepiar; há gestos de revolta, meio esboçados, re­
I
pelentes, grotescos, divinos, punhos erguidos, caras crispadas,
I ' criaturas capazes de agatanhar os pais e lhes arrancar os olhos
para castigo de tê-las feito vir ao mundo.
Ah! Eu nunca poderei vir a ser um Nero! E Nero que in­
cendiou Roma não é bem maior do que S Francisco de Assis?
i Incendiar uma cidade é bom, mas incendiar o mundo? Incen­
'l diar o mundo, ó gentes? Que grande obra para um caricaturista!

182

I
A lama não querendo morrer e fugindo do braseiro... E o fogo,
o fogo enorme, lambendo tudo, triturando tudo, por entre o
rir das labaredas até que a terra desfeita em cinzas, como um
enorme bando de andorinhas, voasse pelo espaço através
dos séculos."

Albino Forjaz de Sampaio


(Palavras cínicas)

183
REMATE DOS REMATES
(OU 65 REGISTROS EMPÍRICOS)

1. A mendicância não é uma profissão vulgar, nem fruto de


uma terrível necessidade, é, mais bem, um vício, uma paixão,
uma tara irresistível...
2. Depois de todas estas páginas, o grande mistério per­
manece: onde cagam os mendigos?
3. Quando as sociedades do mundo inteiro realizarem
o sonho messiânico da "igualdade social", tenho certeza, os
mendigos inventarão um novo meio para voltar às ruas, ao
sol, à porta dos templos e mendigar... Nem que seja às portas
de templos elevados ao sarcasmo e ao cinismo.
4. Em Israel, uma senhora mendiga ao ver um colega mais
fodido e mais bombardeado que ela, correu ao seu encontro e
depositou em seu chapéu dois de seus 4 Chequeis.
5. Em Roma, próximo à Estação Otaviano, dois mendigos
dormem abraçados no interior de um furgão como se fossem
dois gatos vencidos pelo frio.
6. Ela caminha naturalmente, como qualquer mulher, dobra
a esquina da Termini, desce as escadarias, senta-se no último
degrau, tapa parte do rosto, dobra uma perna, estende a mão
para o primeiro que passa e pronto: está feita a metamorfose.
7. Trinta e cinco anos, grego, poliglota. Deixa-se fotografar
com a mesma auto-estima que teria se fosse primo de Eurípides.
8. Depois de trabalhar cinco ou seis horas, a família se reúne
na Estação Espanha. Parece viver em extase. No rosto os sinais
da saúde e nas mãos uma agilidade invejável. Nem mendigos
nem indigentes: ciganos.
9. Enquadro-a na objetiva. Arrasto-a do outro lado da rua,
com seus olhinhos castanhos, para dentro de minha câmera, até
que ela me descobre. Bate seu bastão na calçada, grita, amal­
diçoa minha existência e a existência do Universo. Meto-me

185
por entre os automóveis, fujo, levando-a com sua fúria, fixada
numa tira de celulóide.
10. Dançam como se fossem donos da Praça da Sé. O ritmo
certo, a descontração que a burguesia não consegue, o deboche
absoluto pelo mundo e pela platéia. Um segurança entra em
cena, ameaça, está a serviço do Estado, de algum empresário
e da civilidade. Eles rapidamente decodificam a mensagem,
I conhecem os grupos de extermínio, os calabouços, a história
secreta deste país. Emudecem
11. Cinquenta mendigos comem em silêncio. Na parede três
imagens: Madre Tereza de Calcutá, Cristo e o Papa. Estamos em
Roma. E a misericórdia do Vaticano para com esses miseráveis.
Primeiro prato; Segundo prato; Terceiro prato. Em seguida uma
sobremesa e uma oração ao Deus que fez o spaguetti, o mundo
dos ricos, dos remediados e dos fodidos.
12. Até mendigar é cansativo! Dizia o cartaz sustentado
por um mendigo em Munich.
13. Uma civilização de mendigos. Mendiga-se tudo, do
ir ao fogo; da luz às trevas. Os próprios livros sagrados não
são mais de que especulações sobre a mendicância e sobre a
indigência dos homens.
14. Equivoco-me e dou uma moeda grega a um mendigo
turco. Ele a examina com cuidado e a arremessa contra minha
sombra.
15. Olha-se num espelho e sorri para si mesmo como se
fosse o último dos terráqueos e como se o mundo dos traba­
lhadores e dos ditos cidadãos não fosse mais do que uma triste
quimera. O clic de minha câmera não o perturba para nada,
não interfere em sua "viagem", possivelmente do Self para o
Ego ou da Praça San Giovanni para outra galáxia.
16. Demarcam o território exatamente como fazem os lo­
bos e os tigres... espalhando o fedor de suas entranhas.
17. Aqui mendigam sobras, restos, migalhas... Acolá
mendigam votos. A dialética e a farsa são exatamente as
mesmas..
18. É perturbador deparar-me com um mendigo que ao
sorrir exibe três ou quatro dentes de ouro.

186
19. Treinou uma cadelinha em Florença (vi a mesma cena
em Portugal) para receber e carregar os centavos. Para deixar-se
fotografar queria duas mil liras. Um mendigo trapaceiro.
20. Se a mendicância é um vício, uma paixão e uma tara
irresistível, ela encontra do lado de lá dos bastidores, viciados,
apaixonados e tarados que não saberiam viver sem terem a
quem humilhar com suas esmolas.
21. Entre a mão do mendigo que recebe e a mão do tran­
seunte que doa, levita a mais grande de todas as hipocrisias.
22. Dividia sua ração com oito ou dez gatos. Minha presen­
ça foi absolutamente ignorada. Estava explícita não apenas sua
preferência pelos felinos, mas também sua misantropia. No dia
seguinte, o encontrei mendigando na porta de uma basílica.
23. No inverno buscam o sol como as víboras; no verão se
escondem na poliformia das sombras.
24. As crianças são treinadas desde cedo. Entre elas é que
se deveria buscar os grandes atores.
25. E o Segundo mistério permanece: onde trepam os
mendigos?
26. Numa festa pomposa na Candelária os mendigos re­
solveram entrar em ação: esmerdearam o parabrisas, as portas
e os faróis das limousines e das Mercedez que conduziam os
recém casados e sua respectiva corte.
27. Num país centroamericano pensou-se seriamente em
criar um Partido dos Mendigos PM. A idéia deve ter aterrorri-
zado os velhos feudos e as velhas oligarquias.
28. Se as notícias são procedentes, os mendigos estiveram
durante décadas vendendo seu sangue no mercado negro.
Um sangue evidentemente salpicado de piolhos e dos mais
diversos tipos de vírus. A meu ver, este fato configura uma
revolução silenciosa, uma vingança sem precedentes, o troco
a uma sociedade vil que os pisoteia. Hepatites, Aids, alergias
I
cósmicas.
29. Ninguém sabia de onde havia chegado, as crianças o
conheciam por Pirulito. Habitava os buracos empoeirados e
silenciosos dos barracões. Um certo dia amanheceu morto.

187
A cidade preconceituosa, mas complacente, chorou seu herói.
Chorou a morte de seu pária.
30. Em uma igreja de Copacabana qualquer um pode
identificar a amizade fraterna e a simbiose que há entre duas
ou três mendigas e duas ou três senhoras aposentadas. Afinal,
o status é o mesmo.
31. No Cairo, um mendigo sustentava a arrogância de um
faraó enquanto implorava umas moedas. Os pés endurecidos,
uma mão mutilada, os olhos de um falcão faminto.
32. Em Brasília, nos arredores da catedral, um casal de
mendigos beija-se em extase. Ele, fascinado, os olhos abertos
e vivos, o pau ereto por debaixo dos trapos. Ela, com os olhos
fechados, as pernas juntas como uma madre e com uma pul-
serinha infantil no pulso esquerdo.
33. Em Buenos Aires a velhinha descobre minhas intenções,
salta agil como uma gazela, quer quebrar minha câmera, faz um
escândalo. Mendigas como aquela é que o mundo precisa.
34. Vale a pena visitar a ala dos indigentes em qualquer
cemitério. Nenhuma foto, nenhum dado, nenhuma flor. Apenas
o montículo de terra... Quase um favor da sociedade para com
seus filhos malditos.
35. Quando comparo os Baudelaires, os Rimbauds, os
Gides, os Millers e todos os outros trapaceiros internacionais,
- cujas vidas foram consideradas malditas - com os mendigos
de São Paulo ou do Recife... Ah, descubro que não chegaram
nem aos seus pés. Nem aos pés destes que verdadeiramente
disseram não a tudo, destes que pagam com a própria vida
para não fazer o jogo bestial da burguesia, representada por
um lado pelos intelectuais, por outro pelos comerciantes, pelos
religiosos e pelos trabalhadores que ainda enxergam no traba­
lho a semente da dignidade humana.
36. Um escritor de renome, escrevendo sobre uma de suas
viagens ao Marrocos relata o comportamento de um mendigo
que colocava na boca todas as moedas que recebia. Só depois
de degustá-las é que as enfiava no bolso.Devia proceder assim
também para limpá-las do suor e da imundícia alheia.

188
37. Das mesquitas emerge a voz, o discurso, a oração, o
grito de guerra dos musulmanos. Os mendigos cospem sem
cerimonias, ignoram a Constituição de Maomé, os preceitos, as
leis que foram escritas para os homens. Ninguém os converterá
para coisa alguma, circulam na última volta do espiral.
38. A música turca. O hashishe. A desordem de Istanbul.
Dentro da ventania de novembro uma mulher mendiga o pão
e o chá, apenas a parte que lhe cabe.
39. Um mendigo estaciona diante de um cinema e olha
longamente para o cartaz do filme de Scorsese: A última tentação
de Cristo. Um filme que no frigir dos ovos, apesar das críticas
irracionais dos beatos, está novamente a serviço da igreja, já
que colabora para com a manutenção da crença infantil nesse
mito. A existência de Jesus não é uma questão de história mas
sim de fé, afirmou descaradamente o Papa Pio XII em 1955. Por
isso é mais do que importante ter consciência que Scorsese está
blefando. Finge questionar ou revolucionar a forma, quandc
o que faz é dar credibilidade ao conteúdo, avivar o fervor e
ignorância na alma dos fanáticos.
40. Numa das ruas principais de Jerusalém, algumas horas
antes do Sabbat, onde a elite bebericava ou lambia sorvetes
apareceu subitamente um mendigo. Levava sob o braço um
rádio velho, em pedaços e, no auge de seu desfile, tirou o pau
para fora das calças e esguixou urina para todos os lados.
41. Todas as pessoas a quem participei minha "curiosidade"
pelos mendigos tinham histórias ou estórias para contar sobre
eles. O assunto é mais ou menos como o das doenças venéreas:
todo mundo está atento, conhece, sabe, já teve, cura-se como
pode, mas não abre o bico.
42. Primeiro a lepra, depois a sífilis, depois a loucura, a
mendicância, o terrorrismo e agora a Aids. Cada um desses
capítulos da miséria e da imbecilidade humana tiveram ou i
ainda terão seus Narrenschiff, os barcos através dos quais os
doentes eram desovados de um abismo a outro.
43. Estava sentada no alto de uma calçada como uma
rainha. A mão estendida para os que passavam e no rosto

189
uma expressão visível de desprezo por todos os terráqueos.
Imaginei que pudesse estar recitando em voz quase inaudível
as conhecidas palavras de velho Erasmo: se pudessem olhar
da lua as inúmeras agitações da terra, - como outrora Meni-
po - acreditariam ver um enxame de moscas que lutam entre
si, combatem-se e preparam-se armadilhas, voam, brincam,
pulam, caem e morrem, e não se pode imaginar que pertur­
bações, que tragédias produz um tão minúsculo animalzinho
destinado a logo perecer.
44. No país onde este livro está sendo escrito existem
aproximadamente trinta milhões de crianças que já rondam
as portas da mendicância e da indigência. Por enquanto estão
aprendendo, ensaiando, acostumando-se às porradas que a
sociedade lhes reserva. Amanhã, já experientes, assumirão seus
postos. Enquanto isto, Paulo Francis segue escrevendo para os
jornais tupiniquins como um proxeneta dos EEUU; os partidos
discutem o sexo das divindades; os novos ricos reformam suas
mansões e os representantes do povo, gordinhos e simpáticos
jogam futebol nos fundos do palácio.
45. A perna imóvel, as feridas recém lambuzadas. Uma
chaga aberta: instrumento de trabalho. Durante séculos os
padres e outros charlatães alugaram mendigos e maltrapilhos
para simular seus milagres, começando por aquele que se
chamava Lázaro.
46. Em Roma, o Vaticano acaba de inaugurar sete ou oito
novos pátios dos milagres, todos modernos, luxuosos e dissi­
mulados como a modernidade exige.
47. Quanto mais conheço as artimanhas da política, dos
intelectuais, do comércio, das igrejas, das famílias e da "civili­
dade" como um todo, mais admiro e respeito os mendigos. Eles,
pelo menos - como diz Cioran - não mentem nem enganam
a si mesmos.
48. No dia em que cada mendigo, indigente e maltrapilho
deixar de impunhar o chapéu para impunhar uma metralhado­
ra, então sim veremos diante de nossos olhos a "revolução social
e existencial"que sempre quizemos e que até hoje não houve.

190
49. Frente à feira e sob os olhares de uma centena de cínicos
a mulher mendiga, obscena e tenaz vai tirando a roupa, peça
por peça, até ficar nua no meio daquele alvoroço de hienas.
Para alguns, aquilo era a legítima Commedia Dell'Arte.
50. Todas as noites que ia ao Centro Cultural George Pom-
pidou (Beaubourg) dividia a mesa com mendigos, clochards
e indigentes que liam de Sartre a Santo Agostinho, que viam
vídeos sobre ilhas gregas, sobre prisões e sobre banquetes.
O hálito daqueles monstros era sempre o mesmo, mistura de
vinho com tabaco.
51. Primeiras damas, freiras, beatas e mulheres de políticos
adoram abrir asilos para mendigos ou para inválidos (ver as
tais workhouses do tempo de Hegel). Em juazeiro do Norte há
um bem próximo a antiga residência do Padre Cícero.
52. Alguém fotografou um mendigo jovem nos EUA exibin­
do um cartaz que dizia: "preciso de dinheiro para cerveja, drogas
e prostitutas. Ei, pelo menos não estou enganando você".
53. Mesmo que não se saiba e que não tenha a menor
importância para a sociedade formal, muitos indigentes sàc
sujeitos com transtornos mentais graves. Se vieram para a rue
porque já os tinham ou se foi a rua que os propiciou, não vem
ao caso. Num país onde a assistência aos doentes mentais é
uma fraude e onde nem a classe média e nem os ricos sabem o
que fazer com seus filhos psicóticos, a quem poderiam recorrer
esses pobres alienados?
54. Não são poucos os municípios que nem sequer dispõem
de recursos para enterrar seus indigentes. O corpo fica dias lá
nos fundos de um hospital ou de uma delegacia enfiado num
freezer, às vezes até no meio de cervejas ou de outras carnes,
a espera de uma solução. Mas como essa solução não vem,
alguma senhora, o padre ou o próprio prefeito paga alguém
para ir fazer o favor de jogar o corpo numa cova. E depois, os
otimistas de plantão ainda criticam àqueles que, como Oscar
Wilde, afirmam categoricamente que todos os caminhos con­
duzem ao mesmo ponto: à desilusão.

191
55. Curiosamente, nenhum dos mendigos com quem con­
segui "travar um diálogo" fez qualquer menção a filhos, prole
ou procriação. Será que leram o último livro do Cabrera?9
56. Não são muitos os velhos na mendicância. Alguns até
parecem ser, mas são cronologicamente jovens. Os mendigos
têm essa vantagem sobre o resto dos mortais: morrem cedo,
precocemente, antes que a velhice os devaste e os humilhe.10
57. Apesar de muitos politiqueiros canalhas já terem tenta­
do usar as legiões de mendigos como massa de manobra, eles
resistem. Não por "consciência política", mas porque intuem,
ao contrário de Sartre, que nosso inferno não é necessariamente
o outro, mas nós próprios.
58. Em Nova Deli os mendigos estão aprendendo idiomas
(inglês, italiano, espanhol) para melhor se relacionarem com os
turistas. Contada no idioma do forasteiro, a estória de desgraça
causa um efeito maior.
59. Alguns mendigos se queixam de que quando chega o
Natal ou o fim de ano, muitas beatas quase os obrigam a come­
morar e a fazer o teatro da felicidade. Antes que os sinos toquem
ou que o foguetório comece a ser detonado, as conhecidas
senhoras - as mesmas que costumam tratar gatos e cachorros
abandonados - vão visitá-los em suas tocas com tortas de maçã,
peito de peru e até mesmo garrafas de Champagne. As igrejas
também costumam encostar caminhões ou furgões nos becos,
onde passam a noite inteira distribuindo sopas.

9 Referencia ao livro: Porque te amo não nascerás, de Julio Cabrera e Tiago di Santis,
onde os autores, de forma inédita (depois de Sêneca) demonstram o quanto é imoral,
vil e até criminoso procriar e gerar filhos num mundo fútil, cheio de misérias e que nâo
vale nada. “Agora - escrevem os autores - sabemos que o mundo é mau, mas que não
há nenhum outro, nem ninguém que seja culpado disso, que não caímos no mundo por
algum pecado, mas que estamos, desde sempre, “caídos” ou, melhor, que o mundo caiu
em cima de nós”. P. 49
10 Apesar dos velhotes que andam por aí otimistas e felizes, entre todos os castigos a que o
ser humano está exposto, o da velhice é o pior deles. Já ouvi os próprios mendigos comen­
tando que se a espécie tivesse sido criada por um deus, se houvesse um deus administrando
a existência humana, seria, sem dúvidas, um deus maldoso e sádico. Obrigar o sujeito a
passar setenta ou oitenta anos investindo alucinadamente em si próprio sabendo que irá
transformar-se irremediavelmente num bagaço, é, realmente uma canalhice.

192
60. Mendigo: - Há quem o chame de indigente, esmoler,
pedinte, mendicante etc. No Dicionário do Diabo, de Ambrose
Bierse, está assim definido: mendigo - aquele que confiou no
auxílio dos amigos. E a palavra mendigar - pedir algo com
intensidade proporcional à crença de que este algo nào será
concedido.
61. Nào foram poucos os mendigos que conheci, princi­
palmente no norte do Brasil, que diziam ter vivido anos nos
garimpos de Serra Pelada. Um deles até exibia o pedaço de
um dente de ouro que levava na boca. Ricardo Kotscho que
escreveu um livro sobre aquele inferno relata: "um homem
sem os membros inferiores é carregado num carrinho de mão
em volta do caminhão, pedindo esmolas; uma jovem cega é
guiada por uma criança para pedir ajuda também. Todos, sem
exceção, dão alguma esmola, como se fosse o pagamento de
um pedágio".
62. Em alguns estados brasileiros, mendigos estão ocu­
pando os lugares de presos nos presídios. O verdadeiro preso
consegue licença para visitar a família e não volta para a cadeia,
mandando em seu lugar um mendigo. O sistema penitenciário
não percebe ou finge não perceber, dando assim a chance da
pena ser terceirizada. Que tal?
63. Recentemente foram presas duas velhas em Los Angeles
(75 e 77 anos) que faziam amizade com mendigos, davam-lhes
moradia, comida, roupas, providenciavam lhes seguros de vida
e depois os dopavam para assassiná-los por atropelamento. I
64. Um senhor idoso e mendigo num estado do sul do
país, enquanto fuçava nas lixeiras de sua cidade resmungava
obsessivamente este fragmento de um verso de Elvio Vargas:
"Sete vezes me excomungaram, banido fui das fronteiras do
Éden. Comigo foram amores que não tinham pátria".
65. Uma mulher índia chorava despudoradamente numa
rua quase deserta da cidade do México. Quis colocar-me de
cócoras para dar-lhe pelo menos um abraço, pedir ajuda a
alguém, mas fui paralizado pela lembrança de uma única
frase de Cioran: crier, vers qui? Telfut le seul et unique problènie
de toute ma vie.

193
RECAPITULAÇÃO

"Com aquilo que lhe serve para mijar


os homens criam seus semelhantes.
Heine

Apesar da demagogia político social e da caridade vigente,


da década de oitenta para cá, além de uma disneylandização do
mundo, não aconteceu praticamente nada de novo no universo
da mendicância e da vadiagem. Os discípulos da frugalidade
continuam por aí, do Butão ao Chile, com suas lamparinas sob
as árvores, com suas tralhas junto aos muros dos templos ou
em plena alucinação nos semáforos, na mais autentica dana-
ção, muito além do paraíso e do inferno, cada dia com mais
consciência de que o inimigo principal sempre foi e é o nosso
imaginário.
Os mais velhos parece até que ainda estão vivendo a ressaca
de Woodstock, como se tivessem tomado um ácido e nunca
mais se recuperado. Os cabelos brancos, a barba chegando
aos joelhos, um bastão, as feições cada vez mais andrógenas,
esfomeados, e a senilidade comendo solta. Claro que a grande
maioria enlouqueceu, foi parar num abrigo de dementes ou
bateu as botas e foi enterrada nos cemitérios da periferia. Um
punhado de terra para colocar um ponto final num punhado
de misérias e de desgraças.
Nesse ínterim, derrubaram o muro de Berlim a marretadas,
o capitalismo se alastrou e sufocou todas as ideologias, jogaram
os "esquerdistas" numa latrina e um executivo delirante che­
gou até a declarar o fim da história. Os banqueiros assumiram
descaradamente o comando do mundo e, juntos aos proxenetas
das repúblicas, doaram celulares, computadores, carros, cartões
de crédito, "cestas básicas" e outras porcarias a cada idiota do
planeta, para acalmá-los.
Indiferentes e à margem de tudo, sem grandes inquietudes,
os mendigos seguiram, em sua epopéia ortodoxa, ocupando
os mesmos lugares de outrora, à margem não apenas dos ban­
quetes, mas também das mentalidades da época. As praças, as

197

1
igrejas, os viadutos, os portos, as casas abandonadas, as tocas
de alguma ruína, os metros, as paradas de ônibus, os cemité­
rios, os circuitos turísticos e os lixões do planeta os acolhem
diariamente.1 Aliás, quem é que ainda não viu as missas negras
executadas por eles lá no meio dos lixões?

1 Lá fora, num local conhecido por Esplanada, uma genuína Praça dos Milagres. /\ mo­
vimentação de nómades c de romeiros lembra um Woodstock de indigentes. A índia, o
Nepal, o Marrocos, o Egito, o Haiti parecem estar condensados aqui! Famílias de mendigos
enfileiradas, com suas pequenas bacias de alumínio imploram moedas, mas nada agressivo
e nada parecido ao acosso dos leprosos de Benares. Tudo bem baiano e zcn. Doentes vindos
de todos os lados se misturam ingenuamente aos batedores de carteiras. Do bazar erguido
no meio da rua, ecoam músicas sacras mixadas aos gemidos femininos do Caetano, que por
sua vez se mesclam com os acordes de um forró carismático para desaguarem nas canções
milenaristas de Raul Seixas. Ouvir Raul Seixas aqui no sertão c outra coisa. Confesso, que
jamais o havia ouvido tantas vezes c com tanto prazer. Na esquina, um touro imenso, com
uma garrafa de plástico amarrada ao órgão, para servir-lhe de urinol se deixa cavalgar
assivamente pelos romeiros. Quanto à cidade em si, é fácil adivinhar, pelo seu espectro,
e os potentados de outrora seguem sendo donos das fazendas, do comercio, dos cartórios,
polícia e da política local. Como Aparecida do Norte, como a cidade do Padre Cícero e
tros santuários deste pobre país, isto aqui é uma mina de dinheiro. Segundo Theodoro
ampaio, já em 1900 as funções de coroinha e outras do género (que eram os DAS4 da
época) eram disputadas a tiros e sempre acabavam ocupadas pelos “magnatas” da região.
O mesmo "pagador de promessas" que hoje pela manhã ouvia Waldik Soriano na varanda
de uma pensão, agora está de joelhos, as mãos juntas e os olhos virados diante da cruz
principal. Fanáticos à sombra das sete imagens feitas cm bronze pelo escultor Diocleciano.
Querelas de rua sob o sol ardente! Muitos miçangueiros de olhares tupinizados com seus
blábláblás regionalistas! Ajudo um velho a se levantar da calçada depois de um desmaio.
Queixa-se da pressão, da insulina e das palpitações. Malditas palpitações! É bem provável
que esteja com as artérias entupidas de torresmos c que amanhã, um coágulo migre de seus
ventrículos para seu cérebro. Chamarão um táxi e morrerá no banco de trás (como João
do Rio), nos braços de sua velha que lhe enxuga a baba com um lenço de rendas. Oitenta
anos de luta para preservar o corpo e a vida. A tirania da vida. O sal c um veneno, o açúcar
e o café também. Foram-se as forças, a visão, o sono, o apetite, a capacidade de escutar e
de trepar. De todas as ficções pessoais só restou esse traste ambulante cujo corpo, como
diria Cioran, já não é mais seu cúmplice. Quitandas, cangalhas, jumentos transportando
pipas de água. A um quilómetro da gruta está o Abrigo dos Pobres, gerenciado pelas
Irmãs Vicentinas e ocupado, na grande maioria, por velhos mendigos cm situação quase
terminal e por alguns miseráveis mais jovens, cx-hippies que, pelas razões que todos
sabemos, mergulharam decididamente no nomadismo, na vagabundagem, na loucura e
por fim no suicídio. Lembro que no passado tomei boas c suculentas sopas no albergue
para velhos terminais cm Bènares, junto aos crematórios c ao lado do Ganges. “O desejo
I
de errância - lembra Mafcssoli - c o desejo de rebelião contra a funcionalidade, contra a
divisão do trabalho, contra uma descomunal especialização que transforma todo mundo
numa simples peça de engrenagem na mecânica industriosa que é a sociedade...”. P. 89 do
I
livro Entre os gritos do carcará e a desfaçatez da raça humana, do autor.

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De vez em quando são culpabilizados por alguma desgraça
social, por um estupro, uma psicopatia, um incêndio.2 Sofrem
calados o absurdo da existência, mas se vingam sobre si mes­
mos deixando-se apodrecer solenemente.
Um promotor mais idealista e mais burguês querendo fazer
média com os seus pares insinua que vai exterminar com essas
trupes de pedintes, já que elas depõem contra a dignidade e
que são a lepra da modernidade. Mas depois se acalma. Corrige
o discurso e todo mundo é deixado em paz por mais uma ou
duas décadas.
No Iraque, no auge da última guerra, os mendigos foram
retirados das ruas pelos exércitos, com a justificativa de que
estavam sendo usados para atentados suicidas. Cinco quilos de
dinamite amarrados à cintura de um indigente, um endereço, a
garantia de que minutos depois estaria no paraíso e a explosão.
Na índia tudo relacionado a eles fica cada dia mais insólito.3Os
que ficam diariamente na Praça da Sé, em São Paulo, também
foram recolhidos com a recente visita do papa Ratzinger. Ali
também disseram que foi por medida de segurança, mas é bem
provável que tenha sido por vergonha.4 Aconteceu a mesma

2 Na semana passada foram acusados em Brasília de tocarem fogo na igrejinha da 307/308


sul, uma relíquia para os beatos e burocratas da quadra, uma das poucas que além dos
mosaicos do Athos Bulcão, já teve cm seu interior uma pintura do Alfredo Volpi. Passei
por lá logo depois dos bombeiros, e os mosaicos ainda estavam chamuscados. Sete ou oito
“filhos de Caim" se esparramavam arrogantes pelas escadarias c pelos arredores como cães
em volta de uma cadela cm cio. Sabem esperar, a experiência lhes ensinou que sempre
haverá algum tipo de gratificação ou de luxúria, mesmo no interior de uma calúnia. Uma
lambida, uma dentada, mas depois o completo ato copulatório. Uma moradora das mais
tradicionais veio confidenciar-me que aquela gente, alem de não crer em Deus, cagava
por todos os lados. Que aqueles miseráveis se beijam depois de embriagados, que usam
facas por debaixo dos farrapos e que até fazem sexo junto às paredes daquele património
da humanidade, um sacrilégio não apenas contra Juscclino, mas contra Nossa Senhora
de Fátima, a padroeira da igreja.
3 Rccentcmcnte, uns hindus fanáticos deram uma surra num pregador cristão que tentava
converter um grupo de mendigos. Nesse mesmo país das crendices» durante os eclipses,
muita gente sai de casa cm busca de mendigos para oferecer-lhes alguma coisa, umas rúpias,
um pão ou até mesmo uma ducha. Sabe-se que por lá não são poucos os que dão um jeito
de amputar-se um braço ou uma perna para terem mais sucesso como mendigos.
4 Confúcio já lembrava ao pessoal de sua época que: “se um país é regido pelos princípios
da razão, a pobreza e a miséria são objetos de vergonha. E que se um país não é regido
pelos princípios da razão, as riquezas e as honras são objetos de vergonha".

199
coisa na cidade de Marrakech, às vésperas de um encontro
internacional, só que lá, além dos mendigos, recolheram
também os batedores de carteira, que não são poucos. Muitos
administradores de cidades brasileiras são acusados de mandar
clandestinamente seus mendigos para outras, como fazem
comumente com cães. A população de indigentes em Recife,
Salvador, Curitiba, São Paulo, Brasília, etc, triplicou. A Central
do Brasil no Rio parece uma das Praças dos Milagres do século
XV. Mulheres, crianças, velhos, sujeitos de todas as idades, cores
e peso. Muitos rancorosos e violentos que mijam por todos
os lados e que estão literalmente "cagando" para as idéias de
estigma e de contravenção. Se a burguesia encolerizada grita-
lhes: danem-se. eles lhes retrucam: fodam-se! O terrorismo
dos padres e dos pastores com a ameaça do inferno não os
abala nem um pouco. Ignoram o Velho Testamento, bem como
a Divina Comédia e o Apocalipse. Só são fundamentalistas
mesmo em sua miséria.
E verdade que alguns, numa tentativa desesperada chegam
itéa abrir minúsculos negócios, mas logo vão à falência. Outros
trabalham para os comandos mafiosos, outros entregam trou-
xinhas de drogas, outros caem no boiolismo e servem de quatro
a seus iguais. Outros estão sempre fingindo ler um jornal ou
com um livro aberto diante dos olhos.5 Chegaram-me notícias
de que em Londres há vários que empunham diariamente seus
violinos pelos becos. Outros são alcagúetes da polícia e vivem
de seus ardis. Uma fauna indescritível. Vi um deles sentado

5 Já relatei em algum lugar, que em Tanger, no Marrocos, encontrei um mendigo lendo


o Corão junto ao mar. De vez em quando tirava os olhos da Quinta Surata para lançá-los
misticamente por sobre as ondas na direção do território espanhol. Naquela mesma cidade,
numa feira de legumes, outro mendigo lia um dos mais importantes escritores do país,
que agora não lembro o nome. Encontrei mendigos poetas e poetas mendigos por todos
os lados do planeta. Até mendigos que já haviam sido livreiros ou bibliotecários e que
levavam no meio de suas porcarias um pedaço de lápis e uma caderneta para anotar suas
inspirações. Parece que não gostam de ler lamentos e maldições de outros desgraçados
como eles, preferem os poetas românticos, cultos e ricos, toleram os acadêmicos, mas
odeiam poetas diplomatas e funcionários públicos. Para eles (e para mim) a diplomacia
e o serviço público são desprezíveis e os poetas que surgem naquele meio (com tanta
frequência) são sempre uns farsantes. Acredito que se entediariam lendo Fome - de Knut
Hansum - ou as histórias de vagabundos de Jack London.

200
solenemente diante da BOVESPA, com sua estética macabra,
como se esperasse que alguns centavos saíssem voando pelas
janelas daquele ninho de ladrões e de bandidos. Outro admi­
rava de longe um casamento, a noiva toda débranco, o noivo
como um pinguim, as histerias de praxe dos respectivos fami­
liares e toda a idiotice que circunscreve esse costume. Alguns
já foram vistos até brincando com notebooks ou com laptopssob
os viadutos e sobre suas carroças de papel. Nos países outrora
comunistas, tanto eles, como as putas e os pregadores estiveram
interditados por longo tempo. Mas foi só a comédia acabar para
que as ruas se enchessem novamente de prostituição, de pre­
garias e de esmoleres. São sempre os mesmos. Irrecuperáveis
e imprestáveis para o establishment desse imenso Guantánanio
que é o mundo. Não votam, não abandonam o cigarro, não têm
poupança, não escovam os dentes, não dirigem, não produzem
e nem consomem. A cachaça e a solidão os fazem cada vez mais
prolixos. Continuam odiados por todo mundo. Se cada sujeito
da elite tem seu anjo da guarda, cada um dos mendigos tem
seu demónio.
Apesar do blábláblá dos Direitos Humanos, do papo
furado a respeito da Cidadania, das balelas Humanistas, da
verborréia diária dos políticos e das sopas dos animistas, as
classes sociais privilegiadas continuam olhando-os do alto de
suas coberturas ou por detrás das cercas de suas mansões com
um misto de pena, raiva e repugnância. Seguem alienadas e
torpes, cada vez mais fúteis, mais gordinhas e mais pelegas,
entretendo-se com seus brinquedos eletrónicos e com suas
porcas presunções, sempre resmungando do umbral de suas
janelas: "Descendez, descendez, lamentables victimes, / Des-
cendez le chemin de 1'enfer éternel".

Brasília, 13 de novembro de 2009

201
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203
Em apoio à sustentabilidade à preservação ambiental,
a LGE Editora declara que este livro loi impresso com
papel produzido de florestas cultivadas em áreas nâo
degradadas e que é mteiramente reciclâvel
inquisição ate
milímetro dos
empresariais, ■
recentes denúi
pacotes de con
pulsivamente s
zindo absolutc
Também não p
glamourizado,
sobre os des
imprestáveis e c
outra missão q
Santa Madre lg
seus marquetei
para increment
seus albergues
falsamente paci
Enfim, este
antipatiza com
como párias re
como nada,
traidores comc
Caim isto é sec
preocupação
categoria do lu
do Exército Inc
um ethos, se sê
do sémen de
coroinhas, bar
já disse, sào
outros profiss
que. para coi
em Cambridg
parafrasear o
páginas de Fi

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