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COLÔNIA CECÍLIA
ZANZALÁ
REINO DO CÉU
COLÔNIA CECÍLIA
D .G R
PREFÁCIO
Essa concessão de terras poderá parecer estranha aos que só hoje dela se
inteirem, desconhecedores da situação e das preocupações daqueles dias. A
verdade é que pelo Brasil ainda ecoavam as festas de 13 de Maio. O problema do
braço para a lavoura era absorvente; os escravocratas, a m de prolongar os
bene ícios do trabalho servil, tinham feito a campanha ameaçando-nos de ruína
econômica pelo abandono das fazendas. Esse temor levara o governo, com
antecipação, a tomar extraordinárias medidas. Multiplicavam-se as colônias. Ali
perto, em Santa Bárbara, já se havia estabelecido o "mir" dos alemães do Volga. O
"mir" é uma forma de socialismo agrário. Que mal haveria, pois, em ceder terras,
na mesma zona, a anarquistas italianos, num tempo em que a estabilidade social
ainda não oferecia perigos imediatos? O governo, fazendo tal concessão, pensou
inteligentemente que a terra acabaria por absorver as preocupações ideológicas. E
o governo agiu com acerto. Os fatos lhe deram razão. É o que se conta nesta
reportagem.
Por outro lado, tais iniciativas estavam em moda. Não representavam grande
novidade na América, como nos outros continentes. A época era propícia a
semelhantes cogitações. E como nenhuma delas tivesse alcançado êxito, as classes
conservadoras não lhes davam crédito, levando-as à conta de devaneios líricos de
lósofos e poetas. A organização estava sólida, os homens seguros. De nada valia
o clamor dos arautos, nos congressos, nos livros, nos jornais, por toda parte.
Não se pode, pois, julgar a Colônia Cecília uma experiência que incluía o amor
livre — designação que, por sinal, não satisfazia ao seu fundador — sem
conhecer a inquietação característica da época. Ao Congresso Operário realizado
em Bruxelas, no ano de 1891, compareceram muitas das maiores personalidades
da Europa, numa a rmação de socialismo. O socialismo daqueles dias ainda era
uma vasta nebulosa a fragmentar-se em mundos novos de concepções. Desse
Congresso saíram muitas coisas, entre as quais o Primeiro de Maio como data
internacional, a rmativa da luta de classes. Saiu também "a igualdade completa
dos dois sexos, assegurando à mulher os mesmos direitos civis e políticos
concedidos aos homens. Como esposa, como mãe de família, como trabalhadora,
a mulher é tão interessada como o homem na confecção das leis."
O Dr. Giovanni Rossi, que no nosso trabalho será chamado pelo seu
pseudônimo de Cárdias, em 1939 ainda vivia em Pisa, Itália, sua terra natal.
Deve contar para mais de 85 anos. Se ele quiser dizer o que fez e o que viu no
Brasil, de 1889 a 1894, em que esteve à frente de sua colônia, poderá escrever um
grande livro. "Enquanto, porém, ele não o faz, nós, jornalista, procuraremos fazê-
lo com o carinho com que escreveríamos uma reportagem sentimental.
O mesmo se deu com utopia. Essa palavra grega ("u" negação e "topos"
lugar) ou seja, lugar, terra que não existe, serviu de título a um romance de
Tomás Moore, nos princípios do século XVI. Na primeira parte o autor ataca a
sociedade inglesa, o despotismo das monarquias, o servilismo dos áulicos, o luxo
dos nobres e poderosos, a injustiça das leis, a mania das conquistas, e acaba por
denunciar como origem de iodos os males — a propriedade particular ilimitada.
Na segunda parte, o romancista conta pretendido naufrágio numa ilha
desconhecida, a que deu o nome de "Utopia." Ali encontra uma sociedade
diferente. Nada de propriedade individual: a terra e seus produtos pertencem a
todos. Desse princípio decorre uma existência comunista, no sentido mais antigo
do termo.
É bom lembrar que Tomás Moore, como ministro de Henrique VIII, e tido na
conta do "homem mais honesto da Inglaterra", foi um dia levado aos tribunais e
aí condenado à pena de morte, não por ser comunista, mas por não reconhecer no
seu rei a qualidade de chefe da Igreja Anglicana, isto é, foi decapitado pela sua
intransigente delidade à Igreja Romana, de que é um dos mártires.
O nome do trabalho de Tomás Moore foi estendido a todas as novelas que daí
para o futuro trataram de uma sociedade imaginária na qual se vivesse sob nova
ordem social, tida pelo autor como melhor do que a presente. São utopias: a
"Cidade do Sol", "A Terra Livre", "Viagem pela Icária" e tantas outras. Entre elas,
como dissemos, o livrinho do Dr. Giovanni Rossi. Mas com uma diferença
apenas: Platão, Campanella, Moore, Jean Grave e outros se mantiveram no puro
domínio da cção, enquanto o lósofo italiano, nas últimas páginas do opúsculo,
fazia um apelo às pessoas bem intencionadas que desejassem acompanhá-lo a
qualquer parte da terra, muito distante, a m de realizarem experimentalmente
as ideias contidas no livro. Encontrou companheiros. Realizou uma empolgante
aventura que cará para sempre na história do coração humano.
Um pouco da vida dessa ilusão, ou dessa desilusão, é o que se vai ler. Para
contá-la recorri aos escritos do próprio Br. Giovanni Rossi, através das citações
de que disponho, às pesquisas de Alexandre Cerchiai e às informações de pessoas
que, antes de mim, se interessaram pelo curioso assunto. E com isso poderei
contar às novas gerações, que no Brasil de 1889 a 1894, num período de
transição entre a Monarquia e a República, com permissão do Sr. Dom Pedro II,
se realizou uma experiência, embora frustra, de um velho sonho da humanidade.
Estudando tal obra, observa-se este fenômeno: as facilidades que a Monarquia
ofereceu aos pioneiros da Colônia Cecília, os idealistas da República suprimiram
logo depois, comprometendo assim o futuro de uma experiência em vias de
realização.
É verdade que se a iniciativa do Dr. Giovanni Rossi deixou de vingar, não foi
apenas por esse motivo; muitos outros colaboraram no seu malogro. Em
cinquenta anos de pesquisas e estudos da ciência sociológica, aprendeu-se muita
coisa. Erros cometidos naquela época, hoje, com certeza, seriam evitados. Mas o
conhecimento atual, que nos parece ainda tão frágil, foi amassado com a
observação de experimentos iguais a esses, praticados por aí fora. É Alexandre
Cerchiai quem escreve de Palmeira, diante do pouco que ainda pôde encontrar da
Colônia Cecília: "Em última análise, o que aqui se deu foi vasta experiência "in
corpore vili", rica de ensinamentos negativos." E tinha razão. A teoria ensina o
que se pode fazer, mas a prática, uma prática dura como aquela, serve para
ensinar, principalmente, aquilo que não se deve ou não se pode fazer. A ciência
sociológica saiu, pois, enriquecida, das taperas da Colônia Cecília.
I
NUMA NOITE DE PRIMAVERA
O conferencista concluiu:
— Que tens?
A mulher riu sem responder. Ele esvaziou a bolsa nas suas mãos. E a
pobre, escondida na sombra, repetiu o chamado, mas o noctâmbulo já
não podia ouvi-la, ia longe, perdido nas suas meditações. Entrou pelo
Corso, chegou à praça. O Duomo ao luar era uma nuvem branca, feita
de pedra, pousada sobre a terra. Ali pelas imediações havia algum
movimento. Carros de aluguel seguiam a passo, à espera de fregueses.
Grupos saídos das caixas dos teatros e das confeitarias boêmias,
conversavam pelas esquinas. De quando em quando, reforçando
argumentos, garganteavam trechos de ópera. Outros contavam
anedotas. As mulheres afogavam o pescoço em peles caras.
Viu-se em San Pietro All'Orto. Era uma rua estreita e velha, ladeada
de casas de três andares. Alguns portões ainda estavam abertos; de
passagem, lobrigou os cortile escuros e desertos com a lâmpada
fumarenta nas embocaduras das escadas que grimpavam para os
andares superiores.
— Já li este nome.
Dizia São Paulo que para as almas puras todas as coisas são puras.
Só os corrompidos poderão achar que a nudez, por si mesma, é imoral.
— Como se chama?
— Gioia.
— Vou consigo.
— Não importa.
— Será melhor...
Cárdias cocou a cabeça. Que fazer com aquele teimoso? Então, tirou
um livrinho do bolso, o opúsculo que publicara meses antes e deu-lhe:
— De quem é isto?
— Quem é o chefe?
— É impossível.
— Pode.
— Gioia! Gioia!
***
— Cárdias trabalha...
E o milanês:
— Má de buon, peró!
Na casa dos Gattai ardia fogo; uma fumaça azul saía alegremente
pela única janela. Cárdias foi até à porta e olhou para dentro:
— E que tem você com isso? Viemos para aqui, acaso, com o intuito
de constituirmos um principado em que vocês dispusessem de nós
outros como de súbditos? Nesse caso, preferimos o rei, o patrão, o
carabiniére!
Foi quando se ouviu um canto alegre. Era Ciccio, o gigante ruivo. Ele
morava um tanto afastado, numa pequena casa, tão pequena que para
nela entrar precisava curvar o reforçado busto. Quando tinha
hóspede, dava o interior da casa e dormia diante da porta, com os pés
ao relento... A porta e a janela não tinham folha:; para fechar. Quem
quisesse, entrava e saía a qualquer hora do dia ou da noite. Aquele
homem não precisava de nada na vida. Não tinha nada. Não queria ter
nada. O verbo "ter" nada signi cava para ele. Sua linguagem pobre,
escassa, ignorava os possessivos. Fizera aquela casa e chegara a ter
duas mudas de roupa, "propriedade" essa que era um trambolho na
sua vida: vivia a oferecê-la aos companheiros, na esperança de que
alguém lhe zesse o favor de aceitar.
Il campanil de Pisa
Ninguém acreditou.
Houve protestos: Ciccio não era ladrão. E ele não pôde ouvir tais
palavras, porque já saíra, em direção a Palmeira; Cárdias conseguiu
alcançá-lo.
— Já comi.
— É mentira.
Que seria?
Correram para lá.
— Confesso que...
— Contessa Colombo!
***
***
— Prá Colônia.
— Querem condução?
— A Colônia é ali.
***
Uma noite ela me deu uma carta para ler; tinha-a recebido da nossa
amiga Gianotta, que lhe augurava uma boa-viagem para a Colônia. "Se
vais só, acompanha lá o meu Cárdias; formareis um gentil casal. E em
qualquer caso, dá-lhe um abraço e um beijo que eu lhe mando."
***
E nos afastamos, ainda dessa vez sem um beijo. Aníbal, ele próprio,
disse a mim e a Éleda:
— É o preconceito, é o habito, é um pouco de egoísmo, se vocês
quiserem, mas a liberdade deve estar em primeiro lugar e acima de
tudo. A verdade é que amo Éleda e não tenho razão para não mais
amá-la. Isso dói. Sofrerei, mas não faz mal. Tu, Cárdias, vives triste e
sem amor. Éleda fará bem em encher a tua vida.
— De ninguém.
— Sim.
— E com alegria?
— Não.
— Surpresa?
— Desdém?
— Nunca.
— Humilhação?
— Não.
— Não.
— Temor do ridículo?
— Um pouquinho.
— Fui eu casto?
— Sim. Absolutamente.
— Foi compaixão dele que havia tanto tempo vivia sem amor?
— Já respondi.
— A mesma coisa.
— E de um burguês?
— Não.
— A primeira vez?
— Sim.
— Choraste?
— Sim.
— Não.
— Tristeza de isolamento?
— Um pouquinho.
— Não.
— Sim.
— Menos afetuosa?
— Sim.
— Sabem todos que atualmente somos egoístas, mas não creio que
o meu desgosto seja produzido pelo egoísmo.
— Por certo.
— Sentiste, embora vagamente, a necessidade de fuga?
— Sim.
— Sim.
— Exaspera, talvez?
— Não.
— E as ausências longas?
— Sim.
— A princípio sim.
— Não.
— Sim.
— Sim.
— No teu segundo amor, que foi mais longo e mais intenso, amaste
a algum outro contemporaneamente ao teu chorado companheiro?
— Não.
— Sim.
— Cultivaste-a?
— Não.
— Não.
— Faltou-te oportunidade?
— Sim.
— Procuraste-a?
— Não.
— Sim, até que conheci Anibal. Tive por aqueles tempos outra
simpatia, mas, como se costuma dizer, inocente.
— Sim.
— Nunca.
— Um pouco.
— Um pouco.
— Por simpatia?
— Sim.
— O único.
— Não.
— Sim.
— Com vergonha?
— Não.
— Sim.
— Por ti?
— Por Cárdias?
— Era.
— Não.
— Destinados a desaparecer?
— Sim, a desaparecer.
— Sim.
— Sim.
— Sim.
— Bem mais.
— Sim.
— Sim.
— Mais sensual?
— Não.
— Prejudicaram-te a saúde?
— Não.
— Sim.
— Socialmente útil?
— Não.
***
Sua atitude com Éleda, que era até então de franca camaradagem,
tornou-se de in nita doçura, uma doçura triste de quem fala com uma
criança doente. Acabou por tratá-la como irmã, talvez como lha. Isso
a ponto de ela o censurar:
— E eu?
A partida devia ser muito cedo, ao alvorecer, de modo que ele não
apanhasse a soalheira na estrada. Por isso, mais cedo que de costume,
Aníbal e Éleda recolheram-se à sua casa. Mas não dormiram. Ficaram
a conversar sobre o passado. Fizeram-se recomendações muito
íntimas, muito particulares. Que se escreveriam enquanto vivessem
nas suas lembranças. Que não forçariam uma correspondência. E
ainda estavam a dizer essas coisas quando os galos dos caboclos
amiudaram, os passarinhos se puseram a cantar nas árvores.
Ergueram-se, foram ao córrego, mergulharam nas águas frescas. Foi aí
que Cárdias, também os encontrou. Sentados na areia prateada do
córrego, ouvindo o marulho das águas nas pedras e o cantar das aves
nas árvores próximas, conversaram.
— Não.
— Nem nós...
— Se assim fosse?
— E depois?
***
Nos dias que se seguiram, Éleda andou por entre os casebres, sem
ânimo para nada. Os cabelos despenteados caíam-lhe pelos olhos. A
cabeça inclinada parecia procurar pelo chão uma sombra entre todas
as sombras, dos pinheiros e dos homens. Embalde Cárdias procurou
consolá-la. Mas não pôde. Ele próprio permanecia abstrato, ausente.
Certa noite uma mulher procurou Éleda e, num tom material,
aconselhou-a:
Uma tarde muito fresca, de atmosfera tão limpa que permitia ver a
planície até o ponto em que os pinheiros tocavam no céu, os homens
da Colônia Cecília voltaram mais cedo do serviço. Chegando ao riacho
arregaçaram as calças e entraram na água até os joelhos, borrifando a
cara e o peito para refrescar a pele tisnada pelo sol. Longe, ouviam-se
os gritos das aves da campina, procurando pouso. Nos caniços das
margens, iniciava-se o diálogo merencório das rãs.
— Boa-tarde.
— Giovanni Rossi.
Noite fechada chegou a Palmeira. Não viu mais do que uma extensa
rua de casebres que terminava no largo da igreja. Caminhando,
observava os interiores humildes através das janelas baixas. Em certo
ponto, parou e dirigiu-se a alguém que estava debruçado sobre a meia-
porta; perguntou onde era a delegacia. Indicaram-na. Para lá se
dirigiu, sendo recebido pelo escrivão, isto é, pela mesma pessoa que o
havia intimado.
Por essa altura a noite estava clara como dia A atmosfera parecia de
cristal. A lua transparente dominava o casario pobre. Namorados
conversavam nas janelas. Os últimos moleques, algures, brincavam de
"tempo-será." E aquela doçura inesperada, que o assaltara havia
pouco, continuava a derramar-se-lhe pela alma. A nal, era um moço,
um músico, um poeta... As trepadeiras que cobriam os muros
perfumavam a noite, uma noite inesquecível...
— Entre!
— É da Colônia?
— Sim senhor.
— Por que é que vocês ainda não se mostraram por aqui? Que
diacho! Não custava nada, era até uma gentileza...
O delegado continuou:
— Giovanni Rossi.
— Sente-se.
Sim, estava errada. Aquela família, que o havia recebido, era a parte
lírica de um drama que descia às contingências de tragédia; aquela
jovem tão linda, tão amável, talvez sofresse, por não ter o direito de
amar ao escolhido de seu coração. Teria de casar com o homem que a
família e a sociedade lhe indicassem para marido. E para sempre,
fosse ele quem fosse. O amor não seria levado em conta, nessa
escravatura sentimental. Talvez viesse a morrer um dia sem ter
conhecido o amor! E as outras? As grilhetas do preconceito? As
incontentadas, as tristes, as desiludidas? E a legião in nita daquelas
que atravessam a vida, solitárias, como perdidos e inúteis tesouros dos
mais elevados sentimentos? As incontáveis, que atravessam as noites
como aquela, sem uma palavra de carinho, sem um beijo de amor?
Sentiu-se mais forte na sua loso a. A Colônia Cecília, para ele, era
um apostolado. Daria por ela tudo, tudo, como estava dando a
mocidade, a glória, o seu quinhão de felicidade sobre a terra. E os seus
passos rmes ressoavam na noite, esmagando as ervas secas, a areia
branca do caminho, as gotas de claridade dos vaga-lumes.
IX
O HOMEM MISTERIOSO
— Desanimado?
— Um pouco.
— Cansado?
— Não.
— Bons companheiros!
— A coisa não foi tão má como se temia, nem tão boa como seria
para desejar. Conversei longamente com o delegado. É um
homenzinho liberal a seu modo; lamentou que ainda não tivéssemos
dado à Colônia o desenvolvimento econômico das colônias existentes
por aí afora. Evocou o orescimento de Blumenau, de Joinville, de
Dona Francisca. Teve elogios para o "mir" dos teuto-russos. Está certo
de que nós nos metemos numa iniciativa comercial como as demais.
Aceitou mesmo que estejamos animados de princípios sociais, um
tanto diferentes, dos outros. Não se conforma, porém, com a escassa
produção agrícola da Colônia.
— Ele, a nal de contas, não tem nada que ver com os nossos
problemas internos.
— A luta de classes!
Olhava em redor, para ver os que duvidavam. Foi então que se ouviu
aquela palavra fatídica:
— Argentinismo! Argentinismo!
***
Aproveitaram aquela reunião para assentar os pormenores da obra
que cou com o nome de "campanha pela salvação da Colônia."
Surgiram numerosas di culdades. Cárdias, agrônomo, achou que a
época era propícia para a plantação de milho. Mas faltava a semente.
E, por outro lado, escasseava ferramenta. Discutiu-se muito. A reunião
chegaria até o alvorecer se a solução de tais di culdades não se tivesse
apresentado de um modo singelo. O conde e a condessa, que se
mantinham afastados do grupo, vieram em seu socorro:
Cárdias recusou:
Nova discussão. Meia hora depois, Taravis. que não era tão ortodoxo
como parecia, achou preferível ceder um pouco a perder tudo. Os
demais se calaram diante de tais palavras. A condessa desacolchetou a
gola do vestido e tirou do pescoço pesada corrente e medalhão de ouro.
Com os polegares, destacou o oval de porcelana, onde se via o retrato
de uma menina, e entregou o ouro a Taravis.
— Que foi?
"... e pártano cantando
— Gioia! Gioia!
X
O TRABALHO
Não era isso o que o professor queria saber; ele esperava que Gioia,
no seu desvairo, tivesse encontrado uma planta que, devidamente
mastigada, restituísse a força e a vaidade dos verdes anos. Mas Gioia
não era o caso que ele sonhava.
Entrava-se em setembro.
E um mugir de reses.
***
— E uma biblioteca.
— E uma piscina.
— E um campo de esportes.
— E um pomar.
— E um jardim.
A plantação foi rápida e terminou numa festa, uma pobre festa que
os reuniu a todos ao calor da mesma fogueira. Assaram batatas no
borralho e tomaram mate à moda do sul. Foram médicos da Colônia
que tiveram a ideia de adotar o mate. A princípio a bebida não agradou
muito. Somente Taravis, que viera da Argentina, e alguns outros se
entregaram aos prazeres do chimarrão. Depois, como o mate, em
pequenos jacas de taquara, casse mais barato que o café, o uso se foi
generalizando. Gioia, enamorado da vida simples, fez-se logo
apóstolo da bomba e da cuia. Levava para o serviço os petrechos e,
enquanto trabalhava, a chaleira fervia na itacuruba. De hora em hora,
largava a enxada, batia as mãos para tirar a terra, e, deliciado, se
punha a chupar o chimarrão. De longe, o Professor Parodi, espiava-o
com o rabinho do olho.
Daí o carinho com que seu nome era pronunciado nos ranchos de
algumas regiões do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
XI
A COLHEITA
— Que há?
— Pode ser.
Foram contar a Cárdias. Ele estava a mil léguas de tal ideia. Não
acreditou, nem permitiu que se pensasse mal do camarada. Mas no dia
seguinte, o coletor voltou. Diante da hesitação das pessoas com quem
falava, a sua amabilidade da semana anterior desaparecera. Tornou-se
seco, descon ado. E saiu com esta ameaça:
— Boa-noite rapazes.
— Boa-noite, Cárdias.
— Que há de novo?
Cárdias sobressaltou-se.
— Nesse caso?
Os rapazes se retiraram.
— Para quê?
Sim, para quê? A humanidade, em boa parte, ainda está satisfeita
com a vida que leva. Criaram-na para escrava; a liberdade amedronta-
a. Por isso é a primeira a tomar o partido do forte contra o fraco, do
verdugo contra a vítima. E a culpa de quem é? De nós mesmos que, há
milênios, abdicamos de tudo, aceitamos o que nos fazem e o que nos
dão. Maravilhoso seria que a humanidade não fosse assim, que os
Taravis não procedessem assim. São os Taravis que mantêm a
organização de fome e de opressão em que vivem todos os Taravis.
***
**
E a Colônia Cecília?
Desapareceu:
NOTAS
***
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..................................................................................
..................................
Et ils sont partis, pleins de courage, les émigrants. Le Brésil
leur a cédé, comme a tous les colons, un terrain sur un plateau,
a neuf cenls métres d'altitude; et ils y on fondé la colonie
Cecília, un village de vingt-deux baraques, crânement baptisé
Anarchie, ou s'en est ni de 1'impôt, du ser-vice militaire, de
toutes les corvées sociales, ou chacun tra-vaille selon ses
forces, pour le bien de tous et non pour un humiliant salaire,
ou Ia fraternité n'est pas un mot, oú tout est en commun!"
***
***
***
***
***
Na Itália, o Dr. Giovanni Rossi continuou a ser um grande
amigo do Brasil. As pessoas com quem conversamos a seu
respeito, falam das suas frequentes cartas, cheias de
referências elogiosas à nossa gente. No que se refere à
agricultura, então, ele perguntava sempre pela maneira como
havíamos resolvido este ou aquele problema, elogiando nossos
cientistas e administradores.
***
Ó
"Ó Blumenau, recanto gentil do mundo descoberto por
Cabral, eu desejaria ser lósofo, artista e poeta para entender
e cantar a tua glória. O teu céu límpido, azul e profundo canta
hinos de paz e de alegria. Mas algumas vezes é brumoso e
velado, como a pobre alma humana. Nas tardes de verão
in ama-se em um oceano de calor, de luz e de força sideral,
terror do viandante, mas sublime doador de vida à ora
opulenta; depois se cobre de espessas nuvens e desaba a chuva,
entre fulgores de relâmpagos e estrondos de raios. E, nas
noites serenas, as estrelas cintilam como em outros céus
nunca vi e, mais do que em nenhum lugar, pesa sobre nosso
pensamento a visão do in nito.
***
Tito Batini."
ZANZALÁ
Como será a existência dos homens daqui a cem anos? — perguntava eu, em
1928. A julgar pelo que ela foi há um século, deverá ser muito diferente. Pode-se,
também, levar em conta que o progresso daqui para a frente se dará com maior
rapidez do que do passado até nossos dias. Atualmente, há fatores que
representam importante papel: o encurtamento das distâncias pelos novos meios
de transporte, o avanço inacreditável da ciência, o desejo que se acentua cada vez
mais de simpli car a vida.
Com tais elementos, torna-se possível fazer ideia do que será a humanidade de
amanhã. Em todas as literaturas, esse gênero de profecia é corrente. Através da
História, o aparecimento de profetas assinalou profundas mudanças. Antes de
Cristo, eles diziam: "Quando o Messias chegar..." e, a propósito desse
acontecimento esperado, o povo como catalogava as suas aspirações. Os fatos,
porém, demonstram que nenhum desses profetas conseguiu desvendar o futuro.
Os poetas são profetas, os vates fazem vaticínios. Surgem, a cada passo, fatores
novos, que modi cam os quadros previstos.
Wells — ao que leio numa citação — escreveu em 1898: "o homem nunca
voará." No entanto, em 1936, ele chegou de aeroplano aos Estados Unidos...
Bellamy, romancista ianque que pouco antes escrevera uma profecia, deu grande
importância ao telefone, mas não previu o aeroplano, o rádio, o disco e o cinema,
que deveriam modi car a sionomia do mundo atual. A profecia que ele escreveu
para dali a cem anos, antes mesmo de haver decorrido meio século, já era uma
história do passado. A realidade ultrapassa os sonhos dos poetas.
Pela "estrada de ferro", a viagem entre Santos e São Paulo era feita
em duas horas e meia. Mas já havia aeroplanos. Sim, aeroplanos. A
verdade, porém, é que não se pareciam com os aparelhos que hoje
empregamos nos nossos transportes de passageiros e cargas. Ali por
1928, época que escolhemos como ponto de referência no passado, os
aviões não passavam de brinquedos de criança. As linhas de tráfego
regular ainda eram escassas e cada aparelho, geralmente, não
conduzia mais de vinte passageiros. Essa de ciência tinha a sua
explicação. Os aeroplanos eram obrigados a conduzir consigo pesados
tanques de gasolina para abastecer os motores durante o trajeto, o que
os impedia de transportarem muitos passageiros. Foi só quando se
tornou a eletricidade transmissível sem os, que se pôde abolir tão
incômodos trambolhos. E atualmente, como se sabe, os aparelhos
recebem a energia em pleno voo, como um receptor de rádio de outros
tempos apanhava a irradiação da estação transmissora.
— Trouxe o veículo?
— Como se chama?
— João Antônio.
— Pro ssão?
— Biologista.
— Sua mulher?
— Maria Balbina.
— Pro ssão?
— Professora.
— Sua lha?
— Tuca.
— Pro ssão?
— Bailarina.
Tinham desaparecido os sobrenomes; os apelidos haviam-se
tornado outros tantos nomes.
— Onde se instalaram?
— Este é o Zé ro.
— Somos noivos.
— Isto é um canhão!
— Um o quê?
Diretor-artístico: Marcionílio.
Diretor-técnico: Kanaiama.
Declamadora: Aurimusa.
— Como?
Mas, os dias iam passando. Tuca, nas horas de apreensão, repetia esta
frase proferida pelo Padre Benedito, quando soube da ameaça que
sobre eles pairava:
E a serena con ança com que foram ditas essas palavras enchia-a
de uma in nita doçura. Zé ro, porém, não se conformava com a ideia
de perder a querida companheira. Desvairado, fez no século XXI o que
nossos antepassados zeram ao longo de todos os tempos: recorreu ao
maravilhoso. A verdade, no entanto, era que o maravilhoso, no "século
da simplicidade" já não parecia maravilhoso; a ciência havia explicado
e adotado muita coisa que por aí andava como do outro mundo.
— São almas que descem à terra, para nascer. Certos lares são
verdadeiros pombais de almas em or. Elas esvoaçam por toda parte,
fazem grandes voltas em bando sobre as cumeeiras!
Ambos gritaram:
— Li-Sonimus!
— O Guaicuru!
— A carne?
— Os índios?
— Os índios e os civilizados.
— Raptaram o Guaicuru!
— Foram os caborés!
Caboré quer dizer homem do mato. Mas, no Zanzalá, ali pelo ano de
2029, quando se falava em caboré, toda a gente emprestava a essa
palavra um signi cado particular. Aqui há lugar para uma explicação.
No século anterior, antes de ser suspensa a imigração de europeus,
tinha-se registrado um fenômeno interessante. Alguns desses povos,
nascidos e educados num ambiente de inquietações políticas e
guerras, orientados por uma loso a desumana, se haviam tornado
inadaptáveis à vida de trabalho e de concórdia que é tão própria da
América. Onde eles estavam, surgia logo uma questão, muitas vezes
um con ito. A Europa — embora hoje não pareça — já foi um
continente civilizado. As ruínas que ainda lá podem ser vistas dão
ideia do seu antigo esplendor. Como se sabe, a rápida decadência
começou em 1914 e acentuou-se com as guerras que se sucederam. Em
1950, era um montão de ruínas fumegantes. Daí para cá, cou sendo
uma espécie de museu em ponto grande, onde os estudantes de outros
continentes vão veranear todos os anos e consultar os arquivos. Hoje,
a Europa vive das glórias do passado. Nas conversas, os europeus
falam com voz tremida de descobridores, de poetas c de lósofos. Mas
tudo isso passou, está perdido na distância. Só resta um povo
envenenado, in adaptável, que a América e a África recebem com
justi cada reserva...
— Lá estão os caborés!
Zé ro parou e disse:
— "Prá que é que sinhá tem este tronco?" Ela não respondeu;
amarraram-na no tronco.
— "Prá que é que sinhá tem este bacaiáu?" Ela continuou muda; eles
vergastaram-na.
— Que susto!
— Por quê?
— Trabalhando?
— "Cariçuma."
— Em que língua?
— No dialeto das rãs.
(Bis)
— Já terminei o concerto!
— Maluca!
— A menos que...
— Flanela é um maluco!
— Flanela é um gênio!
E o maníaco:
Essa notícia foi recebida com aclamações. Pelo mar de vozes que se
ergueram da noite, a assistência foi avaliada em mais de um milhão de
pessoas.
Flanela, diante do grande órgão, teve medo. Foi a primeira vez que
isso lhe aconteceu, depois que anunciara "Cariçuma." Dirigiu-se ao
painel elétrico instalado na parede e começou a apertar botões. A cada
tecla que comprimia, uma harpa desnudava-se lá longe. E assim, uma
a uma, elas foram despindo no vale e na serra as túnicas que vestiam.
Dentro em pouco, apareceram nuas, vibráteis, expondo à claridade do
alvorecer a nervatura paralela de metal ou vidro. Mas permaneciam
mudas.
A voz das águas do Itutinga tinha sido captada; era uma cachoeira
maravilhosa, cascateando sons límpidos. Ela estava em toda parte. Era
como se as nuvens brancas tivessem escancarado as suas comportas e
chovesse cristal sobre a serra.
— A nanê! A nanê!
Uns perguntavam:
— A pobre...
Hi coeruleas ores...
In se coelum est...
— A Ave-Maria... de Schubert...
— Estou às ordens...
— Que ores?
— Da trepadeira...
— É a bailarina...
— Que bailarina?
— Que ores?
— Ora, as tucas azuis.
***
No ano seguinte, pelo orir das aleluias, apareceu no vale uma
canção anônima que andou de boca em boca.
REINO DO CÉU
I
IDADE MÉDIA
O pai não via aquilo com bons olhos. Fê-lo montar a cavalo e levou-
o consigo, nas viagens através dos Alpes, na esperança de endurecer-
lhe a bra para melhor avir-se no comércio. Mas, o jovem, em
chegando a Tolosa, abandonara o pai na hospedaria, diante do
chouriço com ovos e da botelha de rouge e ia para as tertúlias literárias,
a camaradagem dos poetas. Frequentou as Cortes de Amor e iniciou-se
no segredo dos menestréis.
— Amigos — respondeu — não sei como nem por que, mas não
estou triste; ao contrário, asseguro-lhes que neste momento sinto
tamanha alegria na alma que, se me cortassem aos pedaços, eu nem
sequer daria por isso!
Essa cena edi cante passou-se no ano da graça de 1028. O santo Papa
Inocêncio III, que andava de olho nas heresias, soube logo dos
despautérios do mercador. Chamou o bispo de Assis e arrasou-o de
perguntas. Não fosse o rapaz estar envenenado pela pregação de
valdenses e albigenses, que encontravam seguidores nas mais
disparatadas regiões, fosse no sul da França ou na terra dos búlgaros.
Mas o bispo conhecia Francisco. Estava a par dos seus sonhos de
glória, das suas visões, do desencanto que dele se havia apossado nos
últimos tempos. Já havia dado testemunho da sua fé, nas Púglias,
alistando-se entre os guelfos, sob as ordens de Gualtieri di Brienna. E
com tais argumentos desmanchou as dúvidas que toldavam a alma do
pontí ce.
— Quem sois?
— Francisco.
— Não basta.
— Um discípulo de Jesus.
— Hum...
— Ê, irmão...
— Cosa fa il Diavolo?
Foi ao quintal, cortou uns ramos e varreu a casa o melhor que pôde.
Mudou o feno dos cantos onde os frades dormiam. Tirou água do poço.
Fechou as portas com tramelas. Deitou azeite na lâmpada do
Nazareno. Substituiu por ores frescas o ramalhete mirrado que se lhe
escorava aos pés. E, depois de acender fogo animador, cou-se a tostar
maçãs, descobertas no parapeito de uma janela. E um sol claro,
franciscano, cheio de alegria do monte e da doçura dos vales, entrou
pelo edi ício como uma bênção. À sua luz, o chão de terra batida
pareceu-lhe mais bonito.
— E se vierem ladrões?
— Se os nossos irmãos ladrões aqui aparecerem, que sejam bem-
vindos! Vendo que nada temos e nada negamos, talvez se corrijam e
tomem pelo bom caminho!
Frei Elias foi eleito superior dos franciscanos, apesar dos protestos
dos primitivos irmãos, que preferiam Francisco. O frade prometeu
governar de acordo com o Mestre, e assim fez, até que ele faleceu em
1226. Mas, nem bem este fechara os olhos, Frei Elias, o frade de olhos
oblíquos e falsos, que não encarava ninguém, mudou como da água
para o vinho. Começou rompendo com a formula vitae escrita por
Francisco, implantou férrea disciplina, estabeleceu vasta e complicada
hierarquia e, socorrendo-se dos processos mais comuns, enriqueceu a
Ordem.
— Cosa fa il Diavolo?
— É um pobre de espírito?
— Cosa fa il Diavolo?
Mas ele não ouviu, tão pensativo, tão absorto seguia o seu
caminho...
V
"COSA FA IL DIAVOLO?"
Essa pergunta que, durante muitos anos andou de boca em boca entre
os desocupados de Assis, subiu aos palácios, foi repetida diante dos
príncipes e, segundo parece, considerada pelos bispos no concilio
ecumênico de Latrão, em 1215. Durante meio-século, os papas
ouviram-na do seu trono, uns com sorriso de mofa, outros apalpando
o punhal debaixo da púrpura.
Foi substituído por Honório III e, durante os onze anos que, para
maior glória de Deus, esse pio varão ocupou o palácio de Latrão,
ouvia-a repetidamente dos peregrinos procedentes do centro da
Península. Tais palavras não o impressionaram muito, apenas o
su ciente para que ele as repetisse, quase sem querer, nas horas de
silêncio e de solidão em que cava só, diante de si mesmo. Uma noite
em que o palácio de Latrão dormia e ele, insone, se arrastava pelos
salões iluminados mas desertos, estacou diante da lâmina pasmada
que lhe servia de espelho, e perguntou à própria sombra:
— Cosa fa ü Diavolo?
— Frederico?
... Mas o papa não foi do mesmo aviso. Descria de tudo, de homens,
de vinhos, de palavras. Quando lhe levavam uma fatia de queijo,
Go redo Castiglione, que esse era o seu nome, obrigava o camareiro a
comer um bocado, o bocado que ele lhe indicasse com a ponta da unha.
Para beber vinho, então, obedecia a um ritual. Traziam-lhe o sumo dos
vinhedos do Vesúvio em copo de prata que, como era sabido,
denunciava a presença dos venenos. Ele tirava um frasco do bolso e
pingava algumas gotas no vaso. Feito o exame o camareiro tomava o
primeiro gole e lhe entregava a taça. Só então molhava a ponta da
língua, estudando em si, aos poucos, os efeitos da bebida.
Via tudo com olhos de javali acossado. Contava com a morte que o
esperava, dias depois. Não dormia. Passava parte da noite, os olhos
cerrados, a espiar pelo crivo das pestanas, a conduta dos guardas que
velavam ao pé do leito. Parecia estar ao mesmo tempo em todas as
dependências do palácio. Nas salas e nos corredores, os familiares
tinham de tomar tento no que diziam, pois ele surgia
inesperadamente nas rodas, pisando de leve, com sapatos de lã.
Quando alguém se lhe aproximava era recebido primeiro como
inimigo; só depois é que conseguia passar apenas por suspeito... Ao pé
dele, não havia palavra perdida: queria saber a explicação de tudo, por
mais ingênuo que parecesse. No momento em que lhe repetiram a
frase boba, corrente entre campônios e malandros da Úmbria, onde os
primeiros franciscanos tinham sido de uma pureza tal que roçava pela
heresia, ele franziu o sobrecenho e entrou de monologar: "Que faz o
Diabo? Talvez conspire contra mim. Quero saber por miúdo." Chamou
o Cardeal Fanelli, da sua gente, e determinou que um emissário, a toda
pressa, estropiando os cavalos que fossem necessários, voasse a
buscar onde estivesse, o malsinado franciscano. Queria conhecer a
signi cação daquela frase...
VI
OMA
— É o irmão zelador?
— Quando?
Ora, a viagem era longa mas não di ícil; ainda que fosse. Por outro
lado, não sentiu vaidade, nem temor. Tudo o que Deus quisesse. E
Deus esvazia os bons. Bateu as mãos uma na outra, para tirar a terra, e
acompanhou o viajante. Ao partir, o rosto ensombrou-se-lhe... Quem
trataria das pombas durante a sua ausência? O emissário segurou no
estribo para que montasse; depois, ele também montou, com
agilidade, conservando-o na garupa.
— Scandalostia!
Não tendo mais que fazer, abriu a porta e pôs-se a caminhar pelo
corredor. De um lado e de outro, alinhavam-se portas fechadas.
Naturalmente em cada uma dessas câmaras estava alguém, vindo de
longe, à espera de ser ouvido. De repente, começou a escutar um canto
em falsete, numa língua estranha. Que seria aquilo? Adiantou-se mais
e no ângulo do corredor, viu um quadro que alarmou a sua timidez.
Sala enorme, rodeada de prateleiras escuras onde se alinhavam as
lombadas de mil in-folios, com dísticos de ouro. Duas ou três mesas
com candelabros ainda apresentavam os manuscritos abertos que os
consulentes deviam ter abandonado como estavam, à hora da saída,
para recomeçarem o trabalho no dia seguinte. O estranho estava no
zelador desse departamento. Era um anão cor de azeitona, vestido à
moda dos orientais, que se balançava num trapézio e cantava canções
do m do mundo. Sim, porque ele, com certeza, viera de muito longe.
Ainda estava a admirar aquela cena quando o homúnculo deu pela sua
presença, e, sem desconcerto, dirigiu-lhe a palavra.
— O arquivo secreto.
— Messer Kaalab!
— Que é isto?
— Enriqueceu-a!
Terminada a prece, deu uma volta pela cama e, não achando jeito de
deitar-se sobre tamanha riqueza, agachou-se a um canto e dormiu,
como se fora o zelador e não o usufrutuário de tudo aquilo. E teve
saudade do monte de feno, das cabras que o espiavam com olhos
meigos, das estrelas que, alta noite, lhe davam noção do espaço e da
eternidade. Quando, porém, ia cerrar os olhos, ouviu vozes ásperas
debaixo da janela cerrada. Levantou-se e foi ver do que se tratava.
Eram dois homens altos, vestidos de preto, que se travavam de razões.
Escutou um estalido seco, o tinir de ferros, o grito de um ferido,
correrias, lanternas de guardas balançando-se na noite. Depois, o
silêncio, uma canção avinhada, perdida na distância. Alguém bateu à
porta da câmara. Atendeu. Era o emissário, que falou:
Meia hora depois, novas pancadas à porta. Era messer Kaalab. Pôs o
dedinho engruvinhado sobre os lábios, recomendando-lhe discrição:
— Cosa fa il Diavolo?
Vinha-lhe a dúvida...
Era dali que o Cardeal Fanelli dirigia a sua guarda secreta, os seus
espadachins, lacaios, aristocratas a soldo da Igreja, como também os
espiões junto aos outros cardeais, às ordens, aos reis e até mesmo
imiscuídos na gentalha da Saburra ou nos meandros do Santo O ício.
Fanelli só não espionava a si próprio porque não sabia a quem con ar
tão delicada missão... Era, pois, natural, que estivesse cercado de
homens de toda classe. Dizia-se, em voz baixa, que nem todos os que
ali compareciam, trazidos de fora, voltavam a ver a luz do dia. E a sala
metia medo: era negra, silenciosa, sem ar. Quando porém, o guia lhe
informou, com um gesto, que estava diante de Sua Eminência, o irmão
leigo atirou-se ao chão, osculando contritamente a poeira do tapete.
Ali cou a rezar na sua profunda veneração até que uma voz de velho,
encatarroada e rascante o chamou. Só então se atreveu a levantar a
cabeça. Mas os olhos se lhe alargaram, o queixo descaiu de pasmo, os
braços se abriram para trás dando-lhe o aspecto do máximo espanto,
do pavor.
É que ele se viu diante de um homem de barbicha, com cornos de
carneiro retorcidos pelas têmporas, todo envolto em um manto negro,
forrado de vermelho. A cabeça era meio humana, meio caprina; os
chifres e o rosto alongado pela barbicha pareciam formar um
triângulo invertido. Nesse triângulo, brilhavam dois olhos humanos,
parados, cheios de uma curiosidade triste. Não era cardeal, era
Belzebu. Belzebu de braço na tipoia.
— Vou-me embora.
— Para onde?
— E depois?
O religioso não sabia disso, nem queria saber. Passou pela porta da
locanda sem ouvir músicas nem cantorias, contornou a pocilga
contígua, onde o estalajadeiro criava os porcos que, pouco a pouco, ia
transformando em presuntos e chouriços, para a gula dos fregueses.
Não ouviu o grunhido lamentoso dos bichos, meio afundados na lama.
Entrou por uma viela tortuosa das muitas que iam desembocar no rio.
Patinhava na lama na, característica do porto; escorregava nos
excrementos atirados das janelas em vasos de estanho... Passou pela
casa que tinha como emblema três bolas de ouro, onde venezianos
emprestavam com usura. Primo veneziani, dopo cristiani...
— O Papa!
E o religioso:
— Enganam-se, é Belzebu!
— Veio do "Asino che Mangia." O vinho que ali se bebe tem pimenta,
canela e funcho. Quando brigam, as mulheres levantam a saia e
mostram o traseiro. Os frades dizem sandices e morrem torrados no
Campidolio.
— Gente do Papa!
— Por isso!
— Isso o quê?
— A cauda!
— É homem ou mulher?
— Homem.
— Feiticeiro?
— Veleno!
E outros:
— Morte ai ghibelini!
— Porque tenho medo de ti; dos teus chifres caídos sobre a testa, da
tua cauda que furou o hábito...
FIM