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OBRAS DE AFONSO SCHMIDT VI

COLÔNIA CECÍLIA
 

ZANZALÁ
 

REINO DO CÉU
 

Coleção Obras de Afonso Schmidt, volume VI

EDITORA BRASILIENSE LTDA.


 

COLÔNIA CECÍLIA
 

Si la veritá ti fa paura, non leggere, perché questo libriccino per te é pieno di


paura.

D .G R
PREFÁCIO
 

Os estudiosos de sociologia estão comemorando o cinquentenário da Colônia


Cecília. Foi essa uma curiosa experiência social levada a efeito em terras do
Brasil. Malograda por diversos motivos, sobre ela caiu, durante tanto tempo, a
poeira do esquecimento. Tem-se a impressão de que seus amigos e possíveis
inimigos desejavam apagá-la da História com o intuito de poupá-la à crítica das
gerações que se sucedem.

No entanto, apesar do presumido acordo, o silêncio não tem sido completo;


ouvem-se de longe a longe vagas referências à famosa iniciativa. Sabe-se que,
mediante entendimentos havidos nos últimos anos da Monarquia, entre o Dr.
Giovanni Rossi e o Sr. D. Pedro II, essa comunidade de sonhadores foi fundada
nas vizinhanças das localidades de Palmeira e Santa Bárbara, na então
Província do Paraná.

Essa concessão de terras poderá parecer estranha aos que só hoje dela se
inteirem, desconhecedores da situação e das preocupações daqueles dias. A
verdade é que pelo Brasil ainda ecoavam as festas de 13 de Maio. O problema do
braço para a lavoura era absorvente; os escravocratas, a m de prolongar os
bene ícios do trabalho servil, tinham feito a campanha ameaçando-nos de ruína
econômica pelo abandono das fazendas. Esse temor levara o governo, com
antecipação, a tomar extraordinárias medidas. Multiplicavam-se as colônias. Ali
perto, em Santa Bárbara, já se havia estabelecido o "mir" dos alemães do Volga. O
"mir" é uma forma de socialismo agrário. Que mal haveria, pois, em ceder terras,
na mesma zona, a anarquistas italianos, num tempo em que a estabilidade social
ainda não oferecia perigos imediatos? O governo, fazendo tal concessão, pensou
inteligentemente que a terra acabaria por absorver as preocupações ideológicas. E
o governo agiu com acerto. Os fatos lhe deram razão. É o que se conta nesta
reportagem.

Assim estudado, o ato do governo monárquico perde muito da sua estranheza.


Com esse espírito, foi concedida licença para o estabelecimento da Colônia
Cecília, modesta experiência de uma sociedade ácrata, sem lei, sem religião, sem
propriedade individual e principalmente onde a família fosse constituída de
forma mais humana, no entender de seus pioneiros.

Por outro lado, tais iniciativas estavam em moda. Não representavam grande
novidade na América, como nos outros continentes. A época era propícia a
semelhantes cogitações. E como nenhuma delas tivesse alcançado êxito, as classes
conservadoras não lhes davam crédito, levando-as à conta de devaneios líricos de
lósofos e poetas. A organização estava sólida, os homens seguros. De nada valia
o clamor dos arautos, nos congressos, nos livros, nos jornais, por toda parte.

Os acontecimentos de Paris, vinte anos antes, enchiam a literatura e


escaldavam os cérebros. Era o tempo do niilismo russo, dos congressos
internacionais que abalavam o mundo, das grandes demolições e das
vertiginosas construções. Nietzsche, com a alucinação da força, havia soltado
entre os homens o demônio de um pensamento que, meio século depois, deveria
inspirar os ditadores de toda casta. Por outro lado, teoristas como Marx, Engels,
Kropotkin, Bakunin e tantos outros, cada um absorvido na sua obra, mostravam
caminhos novos para a humanidade faminta, esfarrapada, ensanguentada,
talvez esquecida de Deus.

Não se pode, pois, julgar a Colônia Cecília uma experiência que incluía o amor
livre — designação que, por sinal, não satisfazia ao seu fundador — sem
conhecer a inquietação característica da época. Ao Congresso Operário realizado
em Bruxelas, no ano de 1891, compareceram muitas das maiores personalidades
da Europa, numa a rmação de socialismo. O socialismo daqueles dias ainda era
uma vasta nebulosa a fragmentar-se em mundos novos de concepções. Desse
Congresso saíram muitas coisas, entre as quais o Primeiro de Maio como data
internacional, a rmativa da luta de classes. Saiu também "a igualdade completa
dos dois sexos, assegurando à mulher os mesmos direitos civis e políticos
concedidos aos homens. Como esposa, como mãe de família, como trabalhadora,
a mulher é tão interessada como o homem na confecção das leis."

Depois desse Congresso houve uma mudança na mentalidade da Europa.


Dois anos após, no Congresso de Zurique, o circunspecto Benoit Malon escrevia:

"O casamento na antiguidade era fundado sobre o desprezo e a escravidão da


mulher; o casamento cristão tinha por princípio a inferioridade e a servidão da
mulher; o casamento burguês atual baseia-se sobre a única conveniência dos
interesses mercantis e, ainda, na subordinação da mulher. Pela primeira dessas
formas matrimoniais o lho era para o pai uma simples coisa; pela segunda, o
seu servo, e pela terceira quase se pode dizer que ainda hoje continua sem direitos.
É indispensável libertar a mulher e conceder direitos aos lhos. O casamento
futuro terá como condição a escolha revogável dos interessados, escolha livre e
baseada unicamente nas a nidades intelectuais, morais e ísicas. Assim carão
assegurados a felicidade e o aperfeiçoamento dos cônjuges; assim poderá efetuar-
se a perpetuação da espécie nas melhores condições morais e ísicas."

A ideia de uma sociedade nova, fundada sobre novas concepções, pairava no


céu intelectual. Na Itália, que mais nos interessa no presente caso, homens do
relevo de Enrico Ferri prognosticaram que o próximo século, que já alumiava o
horizonte, traria consigo uma sociedade diferente, com alicerces na justiça e na
liberdade. E pelo mundo multiplicavam-se as experiências. Nada mais natural
que o imperador do Brasil, um homem inteligente e culto, muito acima da
mentalidade geral que o cercava, sentisse uma viva curiosidade por esse
problema. Ele havia mostrado outras curiosidades que caram históricas.
Encorajou Pasteur e deu a mão a Graham Bell. Tinha a paixão dos poetas, dos
inventores, dos iluminados. O Dr. Giovanni Rossi era o cientista social,
aplicando às relações entre os homens os mesmos processos que, na Escola de
Agronomia, observara entre as plantas. Uma página de sua lavra, sobre a
poligamia entre as ores, é admirável. Daí, o curioso folheto intitulado "Il
commune in riva al maré"; daí como consequência, a colônia experimental. No
seu sonho aquilo não devia ser uma colônia, mas um canteiro. Ele sonhava e
Deus sorria...

Essa tentativa levada a efeito no Paraná, como tantas outras surgidas no


Continente, veio a extinguir-se depois de três ou quatro anos de angustiosa
existência. É verdade que nos Estados Unidos subsistem ainda núcleos desse
gênero, em plena atividade experimental. Encontramo-los ali de diversas cores,
notadamente de fundo religioso. Mas os fatos demonstram que, mesmo nos de
caráter místico, ao abolir-se a propriedade privada, eles tomam imediatamente
caminhos libertários, interessando logo a constituição da família. A
interdependência de tais fenômenos torna-se, assim, evidente ao observador.

Mas a existência de tais colônias, mesmo na América do Norte, é quase sempre


precária. São edi ícios construídos com materiais retirados de ruínas. Não se faz
uma sociedade nova com homens emprestados de uma sociedade velha. Por isso,
ao que sei, das sociedades experimentais ali instaladas em grande número no
século passado, muitas já desapareceram de envoltas com as cinzas das
desilusões. Nem sabemos de quantas se desvirtuaram, levadas na voragem de
uma agressiva concorrência já em vigor naquelas terras privilegiadas, abertas a
muitos aventureiros, tanto aos românticos sonhadores de uma humanidade
perfeita como aos práticos lutadores em prol do próprio enriquecimento.

Aqui no Brasil essas colônias não têm encontrado melhor destino.

Depois da Colônia Cecília, no Paraná, que durou, como dissemos, de três a


quatro tormentosos anos, surgiu a Colônia Cosmos, em Santa Catarina,
fundada por um libertário chegado da América do Norte. E, ali por 1930, a
Colônia Varpa, em Quatá, Estado de São Paulo. Esta última é constituída por
letões, tem absorvente cunho religioso e prolonga a sua existência vegetativa
através das imensas di culdades da hora presente. Poderíamos acrescentar que
no município da capital de São Paulo já houve, também, uma tentativa de
colônia ácrata mas, apesar das animadoras primícias, não teve melhores
resultados em consequência de acontecimentos com que ninguém contava, de
todo alheios à vontade de seus organizadores.

O Dr. Giovanni Rossi, que no nosso trabalho será chamado pelo seu
pseudônimo de Cárdias, em 1939 ainda vivia em Pisa, Itália, sua terra natal.
Deve contar para mais de 85 anos. Se ele quiser dizer o que fez e o que viu no
Brasil, de 1889 a 1894, em que esteve à frente de sua colônia, poderá escrever um
grande livro. "Enquanto, porém, ele não o faz, nós, jornalista, procuraremos fazê-
lo com o carinho com que escreveríamos uma reportagem sentimental.

Na sua mocidade o lósofo italiano escreveu um folheto e depois, como


dissemos, resolveu pôr em prática a sua utopia. Insistimos na palavra utopia. Aí
está uma palavra que alguns de meus leitores, com certeza, só conhecerão no
sentido sorridente que lhe é emprestado. Há uma velha tendência para dar-se a
certos termos uma significação pejorativa, a m de malsinar o pensamento que
eles representam. Anarquia, por exemplo, que apenas quer dizer negação de
autoridade, é repetida a cada passo como sinônimo de desordem. Casa de
tolerância, cuja interpretação mais comum é de todos conhecida, referia-se
inicialmente à loja maçônica, onde todas as ideias superiores deviam ser
respeitadas, onde havia tolerância para todos os credos. Aqui mesmo no Brasil,
durante a Monarquia e depois dela, a palavra república serviu para designar casa
de estudantes, assim como quem diz Casa de Orates...

O mesmo se deu com utopia. Essa palavra grega ("u" negação e "topos"
lugar) ou seja, lugar, terra que não existe, serviu de título a um romance de
Tomás Moore, nos princípios do século XVI. Na primeira parte o autor ataca a
sociedade inglesa, o despotismo das monarquias, o servilismo dos áulicos, o luxo
dos nobres e poderosos, a injustiça das leis, a mania das conquistas, e acaba por
denunciar como origem de iodos os males — a propriedade particular ilimitada.
Na segunda parte, o romancista conta pretendido naufrágio numa ilha
desconhecida, a que deu o nome de "Utopia." Ali encontra uma sociedade
diferente. Nada de propriedade individual: a terra e seus produtos pertencem a
todos. Desse princípio decorre uma existência comunista, no sentido mais antigo
do termo.

É bom lembrar que Tomás Moore, como ministro de Henrique VIII, e tido na
conta do "homem mais honesto da Inglaterra", foi um dia levado aos tribunais e
aí condenado à pena de morte, não por ser comunista, mas por não reconhecer no
seu rei a qualidade de chefe da Igreja Anglicana, isto é, foi decapitado pela sua
intransigente delidade à Igreja Romana, de que é um dos mártires.

É ainda curioso observar como a expressão comunismo está ligada à doutrina


cristã, ou melhor à "pregação nazarena do Reino do Céu." Encontramo-la por
toda parte; entre os essênios, entre os cristãos primitivos, nos Evangelhos, nos
ensinamentos dos apóstolos e de São Paulo, na organização monástica, na obra
dos doutores da Igreja, a começar por São Gregório, o Grande, cujas palavras em
certos passos lembram as objurgatórias de Proudhon; no Abade de São Pedro e,
muito atenuada, em Leão XIII. O Cristianismo, na sua essência, foi, inicialmente
um movimento socialista, no sentido mais largo da palavra. Daí um fenômeno
bem atual: as ditaduras totalitárias, que se dizem fundadas contra o comunismo,
estão sendo levadas a combater o espírito cristão onde ainda se encontra um
fundo suavemente comunista. Nesse ponto, as referidas ditaduras são, pelo
menos, coerentes.

O nome do trabalho de Tomás Moore foi estendido a todas as novelas que daí
para o futuro trataram de uma sociedade imaginária na qual se vivesse sob nova
ordem social, tida pelo autor como melhor do que a presente. São utopias: a
"Cidade do Sol", "A Terra Livre", "Viagem pela Icária" e tantas outras. Entre elas,
como dissemos, o livrinho do Dr. Giovanni Rossi. Mas com uma diferença
apenas: Platão, Campanella, Moore, Jean Grave e outros se mantiveram no puro
domínio da cção, enquanto o lósofo italiano, nas últimas páginas do opúsculo,
fazia um apelo às pessoas bem intencionadas que desejassem acompanhá-lo a
qualquer parte da terra, muito distante, a m de realizarem experimentalmente
as ideias contidas no livro. Encontrou companheiros. Realizou uma empolgante
aventura que cará para sempre na história do coração humano.

Um pouco da vida dessa ilusão, ou dessa desilusão, é o que se vai ler. Para
contá-la recorri aos escritos do próprio Br. Giovanni Rossi, através das citações
de que disponho, às pesquisas de Alexandre Cerchiai e às informações de pessoas
que, antes de mim, se interessaram pelo curioso assunto. E com isso poderei
contar às novas gerações, que no Brasil de 1889 a 1894, num período de
transição entre a Monarquia e a República, com permissão do Sr. Dom Pedro II,
se realizou uma experiência, embora frustra, de um velho sonho da humanidade.
Estudando tal obra, observa-se este fenômeno: as facilidades que a Monarquia
ofereceu aos pioneiros da Colônia Cecília, os idealistas da República suprimiram
logo depois, comprometendo assim o futuro de uma experiência em vias de
realização.

É verdade que se a iniciativa do Dr. Giovanni Rossi deixou de vingar, não foi
apenas por esse motivo; muitos outros colaboraram no seu malogro. Em
cinquenta anos de pesquisas e estudos da ciência sociológica, aprendeu-se muita
coisa. Erros cometidos naquela época, hoje, com certeza, seriam evitados. Mas o
conhecimento atual, que nos parece ainda tão frágil, foi amassado com a
observação de experimentos iguais a esses, praticados por aí fora. É Alexandre
Cerchiai quem escreve de Palmeira, diante do pouco que ainda pôde encontrar da
Colônia Cecília: "Em última análise, o que aqui se deu foi vasta experiência "in
corpore vili", rica de ensinamentos negativos." E tinha razão. A teoria ensina o
que se pode fazer, mas a prática, uma prática dura como aquela, serve para
ensinar, principalmente, aquilo que não se deve ou não se pode fazer. A ciência
sociológica saiu, pois, enriquecida, das taperas da Colônia Cecília.
I
NUMA NOITE DE PRIMAVERA

O conferencista concluiu:

"— Para nós, o Amor, quando verdadeiro ou quando simulado, é a


expressão ou patológica ou quixotesca do afeto; é aquela forma
congestionai que arrebata o adolescente por entre as nuvens
luminosas da adoração platônica, onde Dante viu passar Beatriz
"benignamente d'umiltá vestita", ou então é o dilacerante martírio de
Leonardi, é o suicídio, é o crime dos incontáveis desconhecidos,
quando não é a dissimulação de outros sentimentos, a profanação de
uma nobre loucura em comédia vulgar, que visa a conquista de um
corpo, de um dote, de uma posição social. Querer bem é a forma
siológica normal, comum do afeto. Querer bem está entre os 20 e os
80 graus centígrados do termômetro do amor; mais para baixo, é o
capricho, a preferência de um dia, de uma hora talvez que — leve e
gentil — chega, beija e passa; mais para cima é a loucura sublime ou a
estupidez ridícula. Querer bem é a feliz e apetitosa mistura de volúpia,
de sentimento e de inteligência, em proporções que variam segundo as
pessoas que se querem bem. Concluindo: "Querer bem parece-nos o
su ciente para a felicidade efetiva da espécie humana."

Terminando a conferência, inclinou a cabeça numa ligeira vênia e


retirou-se da mesa. Escassas palmas se zeram ouvir no salão
obscurecido pelo fumo dos cigarros, dos charutos baratos, até mesmo
dos cachimbos. A sala estava tomada por espectadores rudes, saídos
das mais humildes pro ssões. Os homens conservavam o chapéu na
cabeça, discutiam, pitavam com ânsia, tudo isso calculadamente, para
que a reunião não se parecesse com as da sociedade. As mulheres,
vestidas de sarja verde e colete de veludo, tinham atirado para o alto
da cabeça as franjas da "veleta" que, ordinariamente, lhes sombreava
os olhos de treva úmida.

Ao descer do estrado, o conferencista encontrou diversas pessoas,


umas para felicitá-lo, outras para cobri-lo de amargas críticas.
Acolhia-as sorridente, com a mesma egma. No fundo, havia em tudo
aquilo uma grande melancolia.

Há mais de cinquenta anos, esta cena era comum na Casa do Povo,


em Milão. Suas portas estavam sempre abertas a quem quisesse expor
um pensamento à crítica de centenas de ouvintes, liados às correntes
mais em voga na época. Cárdias, que nessa noite havia subido à
tribuna para expor o seu ponto de vista losó co, era uni belo tipo de
intelectual, ainda na casa dos vinte. Seu nome já era conhecido no
meio.

Nascera em Pisa, ali por 1860, de uma família de músicos. Ele


próprio, se o quisesse, teria feito carreira como "virtuose" do piano. No
entanto, talvez por força das preocupações que desde muito cedo o
atormentavam, encaminhou-se para os estudos práticos, chegando
mesmo a formar-se em Agronomia. De posse do diploma, dedicara-se
às preocupações losó cas e ao jornalismo. Em Bréscia, fundou e
dirigia um periódico cujo programa estava no título: "Lo
Sperimentabile." Aplicava na sociologia nascente o processo utilizado
pelas outras ciências. Propunha-se estudar as relações entre os
homens com a mesma segurança com que penetrava na vida íntima
das espécies vegetais. Os mais ortodoxos criticavam-no
acerbamente...
Quando ia a Milão, hospedava-se em casa de um parente, o Maestro
Rossi, professor do Conservatório. O velho tinha um fraco pelo rapaz.
Tratava-o bem, ouvia-lhe as longas dissertações, mas incluía-o na
conta dos malucos. Daí o bom sorriso com que o via nas raras vezes
em que esse prazer lhe era dado. É que Cárdias não esquentava lugar.
Hospedado no "villino" de Corso Sempione, passava os dias e as noites
na cidade; visitava amigos, frequentava as redações dos periódicos
românticos, nas so te de Via Madonina, perambulava ao longo do
naviglio e, à noite, era certo encontrá-lo na atmosfera fumarenta da
Casa do Povo.

Como dissemos, naquela noite de primavera ele também se


abalançara a fazer uma conferência sobre o tema que mais o atraía: o
Amor. A assistência era a de sempre; ferroviários, sapateiros, tecelões,
cigarreiras, cocheiros, operários da iluminação, limpadores de
chaminés, vendedores de hortaliças no verziere. Estavam mais ou
menos liados às diversas correntes socialistas da época. Orgulhosos
com o desabrochar de uma primeira ideia, tornavam-se irredutíveis,
descon ados, por vezes truculentos. Aquela gura de artista, cabelos
revoltos, chapéu de abas largas, mãos nas e brancas, era apenas
tolerada no seu meio. Depois, as suas ideias sobre o amor, criando
problemas em que a maioria só encontrava um acidente da
organização social, acabou por concorrer para a sua desestima. Poucos
acompanharam Cárdias na sua inquietação. Alguns camaradas foram
ao encontro do conferencista e lhe zeram, perguntas. Tinham
apreendido o pensamento nas suas linhas gerais, desejavam detalhes.
O rapaz, ali mesmo, cercado de homens e mulheres, em cujas
sionomias se estampavam contraditórios sentimentos, teve, por
assim dizer, de improvisar nova conferência.

Foi um dos últimos a sair da Casa do Povo.


A noite estava clara, os ares frescos, as ruas silentes. Um cheiro de
jardins orvalhados deliciou-o. Os casarões iguais, de cinco andares,
en leiravam-se à sua frente, de um lado e de outro. Às vezes, uma
janela iluminada. Uma vigília. Amor? Estudo? Trabalho? Agonia?
Ah! o mistério das janelas iluminadas a horas mortas! Músicas
perdidas pelas cantinas, sombras oscilantes de carabiniéri caminhando
dois a dois, de mãos para trás, nos", bairros de má nota.

Os bastiões estavam adormecidos. Os lampiões pareciam equilibrar


os halos luminosos. As velhas árvores, de folhagem na,
permaneciam imóveis. Nenhuma aragem, nenhum pássaro acordado.
Adiante, nas proximidades de Porta Venezia, uma voz feminina se fez
ouvir na sombra, chamando-o. Ele aproximou-se e segurou-lhe a
mãozinha magra:

— Que tens?

A mulher riu sem responder. Ele esvaziou a bolsa nas suas mãos. E a
pobre, escondida na sombra, repetiu o chamado, mas o noctâmbulo já
não podia ouvi-la, ia longe, perdido nas suas meditações. Entrou pelo
Corso, chegou à praça. O Duomo ao luar era uma nuvem branca, feita
de pedra, pousada sobre a terra. Ali pelas imediações havia algum
movimento. Carros de aluguel seguiam a passo, à espera de fregueses.
Grupos saídos das caixas dos teatros e das confeitarias boêmias,
conversavam pelas esquinas. De quando em quando, reforçando
argumentos, garganteavam trechos de ópera. Outros contavam
anedotas. As mulheres afogavam o pescoço em peles caras.

Viu-se em San Pietro All'Orto. Era uma rua estreita e velha, ladeada
de casas de três andares. Alguns portões ainda estavam abertos; de
passagem, lobrigou os cortile escuros e desertos com a lâmpada
fumarenta nas embocaduras das escadas que grimpavam para os
andares superiores.

Distraído, esbarrou em outro distraído que saía de casa. Era um


homem de sobretudo, cabeleira, chapéu pequeno e redondo, uma
ponta de charuto esquecida no canto da boca. Morava ali. Ao entrar,
porém, deu pela falta de charutos, e se pôs a mastigar queixas contra a
memória.

— Boa-noite, Gomes! O homem voltou-se.

— Ah! É você... Boa-noite!

Era um grande músico brasileiro. Já se tinham encontrado várias


vezes no vilino de Corso Sempione. Começara por escrever uma ópera-
cômica com o nome de "Si sá minga..." em dialeto milanês, que obteve
êxito no Dal Verme. A seguir compôs uma ópera de valor e a Itália
inteira cantava sua canção "Una piccirella..." Mais tarde, "Il Guarany"
lhe dava renome universal. E, naquele momento, contava ele,
entregava-se de corpo e alma à partitura de "Lo Schiavo." Andando,
con denciou a Cárdias que tinha o hábito de trabalhar à noite, quando
a cidade estava adormecida. Fora para casa com tal propósito... mas
esquecera os charutos toscanos e não sabia produzir sem a mucchia no
canto da boca...

Seguiram juntos em direção ao Corso, onde havia um estanco. Iam a


passos lentos, conversando. Gomes entrou de falar da sua ópera, da
sua terra.

— Pedro II está doente, vem aí. Já foram tomados aposentos no


Hotel de Milão para S. Majestade e a escassa comitiva. É um rei sábio,
um pai para o nosso povo, as grandes personalidades da Europa o
estimam e admiram-no. Vítor Hugo chamou-o de "neto de Marco
Aurélio." É o amigo dos inventores, dos músicos e dos poetas. Nós,
artistas brasileiros de Milão, vamos oferecer-lhe um concerto.

Cárdias não tinha o menor entusiasmo pela grandeza dos reis.

Mas Gomes continuou:

— Talvez eu execute um trecho da minha ópera, em primeira mão...


Estacou diante do amigo e, brandindo a bengala, batendo um pé, pôs-
se a reger imaginária orquestra.

Depois, caiu em si, sentiu-se vexado pelo entusiasmo e quis explicar


aquilo.

— Vocês aqui, prisioneiros das cidades, das ruas que parecem


prateleiras de estante, das casas que lembram sarcófagos, não podem
fazer ideia da minha terra! É grande como um mundo. A Europa
inteira caberia lá dentro. Cortam-na imensos rios. Cobrem-na
orestas onde homem civilizado jamais pisou. Essas orestas são
harmoniosas pelas vozes dos ventos, das águas, dos animais, das aves
e dos insetos. Há quedas de águas cujo nevoeiro escurece o dia. E o sol
é ardente, vivo, como uma chama! E a luta é clara, transparente,
prateando as árvores, as casas e os caminhos.

Gomes, falando da pátria, se trans gura. Mas o espírito de Cárdias,


diante daquela descrição, já havia criado asas. E se esse "neto de Marco
Aurélio" quisesse interessar-se pelo seu grande sonho... No periódico
"Lo Sperimentale" ele havia escrito uma utopia à moda do tempo, que,
logo depois, aparecera em folheto. Tratava-se de uma colônia de
lósofos ácratas. Sua ideia era realizar de fato essa colônia, já não à
beira-mar, como havia escrito, mas no Uruguai. No entanto, as lutas
entre "blancos" e "colorados" se eternizavam. Sua imaginação voltava-
se agora para essa terra admirável de que o músico falava com tanto
entusiasmo, onde as divisas eram os horizontes e os homens ainda
guardavam na lama um pouco de pureza das selvas pré-colombianas.

Chegando ao Corso, o músico se pôs a correr em direção da reggia


privativa que estava fechando as portas e ainda conseguiu um punhado
de charutos. Cárdias fez-lhe um vago sinal de despedida e tomou o
comprido caminho que devia levá-lo ao Corso Sempione, do outro
lado da cidade.

A casa do professor Rossi estava dissimulada na neblina. Do jardim


subia uma umidade cheirosa. Ao primeiro sinal, o criado abriu-lhe a
porta, levando-o ao quarto, onde acendeu as luzes. O moço despiu-se
vagarosamente e deitou-se, preocupado com uma ideia. Abriu um
livro de cabeceira para depois fechar. Logo em seguida abriu outro. E
outro.

Sem poder conciliar o sono, saltou da cama, sentou-se à


escrivaninha, escolheu um papel velino, quadrado, e começou a
escrever comprida carta. Levantou-se, andou de um lado para outro,
repetiu baixinho determinadas frases. Falava consigo mesmo,
ensaiando argumentos. Terminado o trabalho, leu-o. Hesitou. Cerrou
o sobrecenho, depois sorriu... Deu de ombros. Foi buscar um envelope,
molhou a pena no tinteiro e cou a pensar nas di culdades do
endereço. Por m, afoitamente, na sua melhor caligra a, desenhou
duas linhas sobre o envelope; "Alla Sua Maestá Don Pietro II —
Magnânimo Imperatore del Brasile."

Fechou a carta e deixou-a encostada ao castiçal. A seguir apagou as


luzes e deitou-se, cobrindo a cabeça para poder dormir. Como se isso
não bastasse, encolheu-se todo. Virou para o canto... É que a primeira
claridade da manhã já batia nos vidros da janela. Fora, os carros
passavam à disparada, os sinos cantavam nas torres, os vendedores
ambulantes se esgoelavam diante dos portões do vilino. A cidade
acordava precisamente na hora em que ele, o lósofo, o poeta, se
dispunha a dormir...
II
O FILÓSOFO E O IMPERADOR

A carta cou esquecida na escrivaninha durante alguns dias. Só saiu


dali quando os jornais noticiaram, com alegria, a chegada de S.
Majestade o Imperador do Brasil. O lósofo correu ao Corso
Sempione, pegou o envelope. Meteu-o cuidadosamente no bolso e
dirigiu-se ao Hotel Milão. Não esperava ser imediatamente atendido,
contentar-se-ia nessa primeira visita em saber as formalidades a que
teria de submeter-se para ser recebido por Sua Majestade.
Caminhando, imaginou o hotel tomado militarmente, bandas de
música, bandeiras e guirlandas... Nada disso. Chegou mesmo a
duvidar das informações dos jornais. Subindo a escada, perguntou a
um criado que descia:

— O Imperador do Brasil está hospedado aqui?

— Está. No segundo andar.

Subiu e esperou; outro criado veio atendê-lo.

— Quero falar a alguém da comitiva do Imperador.

Dois minutos depois, apareceu um senhor alto, de sóbria elegância,


que acolhedoramente se pôs à sua disposição.

— Sou o médico de S. Majestade.


Cárdias contou-lhe a que vinha e entregou-lhe a carta. O Conde de
Mota Maia explicou-lhe que era hábito do Imperador receber toda
gente sem grandes formalidades, mas que, justamente naquela
ocasião, as audiências se haviam tornado mais di íceis, não por
vontade do Imperador, mas a conselho dos médicos; S. Majestade
viajava por doente. No entanto, ia mostrar-lhe a carta em momento
oportuno e estava certo de que o velho Imperador a tomaria na devida
consideração. Voltasse dentro de alguns dias.

Agradeceu e despediu-se. Na rua, não pôde deixar de sorrir. A nal,


a história de sempre. Não voltaria. E não pensou mais nisso.
Aconteceu, porém, que, uma tarde, se achou diante da porta do hotel,
e, tomado de súbita inspiração, entrou no estabelecimento. Havia ali
um vaivém desusado. Viu o Dr. Achile, de Pádua, e cumprimentou-o.
Este explicou-lhe logo: o Imperador fora atacado de uma infecção na
pleura e naquele momento ia sair, em maça, para Aix-les-Bains.

Contra a expectativa de muitos, o Imperador ainda daquela vez,


recuperou a saúde. Mas não era homem que se submetesse à vontade
dos médicos. O próprio Conde de Mota Maia teve de apelar para a
Princesa Isabel, solicitando-lhe os seus conselhos, a m de que seu
ilustre pai não se desmandasse em viagens e visitas. Mas tudo foi
baldado. Logo depois, voltava ele a Paris, ao seu mundo de cientistas,
lósofos e poetas...

Visitou as escolas, as grandes livrarias e os humildes alfarrabistas


do cais Malaquais. Ele, de impecável roupa preta e vastas barbas
brancas, mais parecia um professor de Estrasburgo, que um rei de país
americano. Na rua, o Imperador e o Conde de Mota Maia, que
geralmente o acompanhava nesses passeios, não se faziam notar entre
os transeuntes, e isso lhes dava um grande prazer.
O mais culto e democrático dos monarcas daquele tempo permitia-
se gastar longas horas en bouquinant entre estudantes e literatos
inéditos, nas caixas de vendedores de livros velhos que se alinham ao
longo da margem direita do Sena. Foi numa dessas inspeções que suas
mãos encontraram, num monte de in-folios a dois soldos, aquele
curioso opúsculo intitulado "Il commune in riva al maré." Adquiriu-o
num lote de obras excêntricas...

— Já li este nome.

O Conde debruçou-se sobre o folheto.

— Cárdias... Sei quem é... É um moço de Milão, que escreveu uma


carta a Vossa Majestade, pedindo concessão de terras para uma
colônia experimental.

O Imperador lembrou-se vagamente. E nunca mais pensou naquele


opúsculo.

Nunca mais, é exagero. No seu regresso ao Brasil, num ambiente


carregado, o velho monarca não perdeu os hábitos antigos de leitura e
meditação. Numa dessas horas, o cabuloso livrinho lhe caiu nas mãos
e ele o leu de uma assentada, com a curiosidade de homem inteligente,
amigo dos livros e das ideias que sempre desabrocham por aí, como
ores sem nome no canteiro espiritual da humanidade. Leu, gostou,
interessou-se pelo assunto.

Era assinado por um pseudônimo: "Cárdias." Mas na última página,


em seguida a incisivo apelo para formação de uma colônia
experimental, que fosse o núcleo inicial de uma sociedade nova, vinha
o nome do autor, que era o jovem Dr. Giovanni Rossi, nascido em Pisa,
redator em Bréscia de um semanário socialista intitulado "Lo
Sperimentale", em que escreviam desde niilistas até ponderados
reformistas.

Naquele tempo, a palavra socialista constituía ainda uma espécie de


nebulosa, dentro da qual se agitavam todas as ideologias que
procuravam uma diferente expressão para as relações entre os
homens. Só com os anos, graças a tumultuosos congressos, essas
tendências deveriam emancipar-se, tomando em alguns casos rumos
opostos. Quem se dizia socialista, sentia-se obrigado a explicar ao
interlocutor em que ponto estava situado, pois a designação ainda era
usada tanto para o reformismo de Turati como para o niilismo de
Bakunin, tanto para coletivismo de Karl Marx como para o
individualismo de Max Stirner, pai de Sorel, avô de fascistas, nazistas
e tutti quanti. Dizia ele: "O que tiverdes a força de ser, tereis também o
direito de ser." "Assiste-me o direito de fazer tudo o que tenho a força
de fazer." "Se alguém tiver a força de arrebatar a terra, terá direito de
possuí-la; é sua." "Quero e posso, logo é justo." Quando se leem as suas
páginas compreende-se que muitos discursos de Roma e Berlim não
são mais do que o eco de palavras proferidas há, precisamente, um
século...

O Sr. D. Pedro II não teve dúvidas. Homem excepcional, que tanto


animara os sonhos de Bell e Pasteur, habituado a falar a linguagem da
inteligência incompreendida, mandou que escrevessem a Cárdias.
Felicitava-o pelo trabalho e ao mesmo tempo oferecia-lhe a terra para
essa colônia experimental em um Brasil longínquo, quase lendário,
onde a imensidade do horizonte dá vertigens, onde ao sul, numa
província chamada Paraná, o clima é ameno, a temperatura
corresponde à do sul da Europa e, certamente, a produção é igual à
daquelas zonas privilegiadas. Cárdias recebeu a carta e desde aquele
instante estabeleceu-se uma correspondência entre os dois lósofos,
isto é, entre o socialista e o imperador. Logo depois, nos últimos meses
da Monarquia, fundou-se a Colônia Cecília, em Palmeira, Província do
Paraná.

Cárdias esperava iniciar ali um núcleo de lósofos, artistas e poetas,


tirando da terra, mediante escassos trabalhos, o necessário para a
subsistência. Mortos a propriedade, o compromisso, a sanção, o
preconceito, imaginou uma colônia de trabalho livre, de amor livre, de
vida livre.

Seria uma humanidade nua, à claridade do bosque. Sim, nua. Sem o


hábito de vestir-se, aceito por grande número. Dizemos grande
número, porque apenas 500 milhões de homens se vestem
completamente, como nós outros; 750 milhões se contentam com uma
simples tanga e 250 milhões andam inteiramente nus, por onde se vê
que nós, os de civilização vestida, não podemos invocar a nosso favor
nem ao menos a desculpa de sermos a maioria... Também não
seguimos o hábito mais antigo, porque o homem nu é anterior ao
homem vestido. E, para completar esse pensamento, adiantamos que
o pudor subentendido geralmente pelas vestes não é sentimento inato,
visto que as crianças só chegam a senti-lo depois de longa educação.
Ainda mais, as raças que não se vestem experimentam à vista da
indumentária o mesmo sentimento de vergonha que um homem de
civilização vestida manifesta ao ser apanhado em agrante de nudez.
Uma bugra de soutien gorge fugiria envergonhada para o mato; um
congolês, surpreendido de casaca, morreria de vergonha. Há um
pudor para a China e outro para a Turquia, um para o Japão e outro
para a América do Norte. Melhor: em nossa terra, como nas demais,
há um pudor para o salão e outro para as praias. A moda é regulada
pelos interesses da Associação Internacional dos Fabricantes de
Tecidos.
Entre outras coisas, a Colônia Cecília deveria ser precursora dos
formosos oásis nos quais vive feliz uma população que se rebelou
inteira ou em parte contra o "hábito imoral de cobrir a nudez com
pedaços de pano."

Até 1930, como os outros apóstolos, os da vida natural eram


perseguidos. Muitas pessoas ainda se lembrarão de ter lido telegramas
na imprensa falando de diligências policiais nos bosques da
Alemanha, Suíça, França, Itália e outras terras nas quais eram presos
muitos homens, mulheres e crianças que se haviam insurgido contra a
vida dos centros urbanos mergulhando nas escassas orestas desses
países, a m de viverem de acordo com a lei da natureza. Em poucos
anos a idéia venceu, tornou-se "legal" e o mundo já conta numerosos
núcleos de pessoas que vivem e trabalham nuas, expostas ao ar e ao
sol.

Dizia São Paulo que para as almas puras todas as coisas são puras.
Só os corrompidos poderão achar que a nudez, por si mesma, é imoral.

Os argumentos de Cárdias eram singelos. Dizia ele que o homem é


um animal preguiçoso por instinto. Daí o desejo de tirá-lo do meio em
que vive, dando-lhe cenário natural de árvores, de campos, de
plantações fáceis, onde possa fazer tudo que desejar, principalmente
não fazer nada que não desejar. A vida primitiva. Simples e fácil. Sem
cansaço, sem preconceitos, sem sanções. E com. amor. Sim, com o
Amor. Esses homens tocados pela nova loso a deveriam fugir às
populações das cidades velhas, onde a vida tem um ranço
característico, e estabelecer-se em núcleos perdidos nos campos de
outros continentes. Homens e mulheres. Nenhuma barreira para o
amor, a não ser a vontade de cada um. E esse sonho encontrou uma
humanidade cansada, triste, que acreditou nele, não porque fosse
lógico, mas porque era doce acreditar. Um pouco de trabalho e longas
horas de amor. Era só estender o braço amorosamente e, das sombras
das palmeiras, sairiam as mulheres amadas. Canções, idílios, as artes
cultivadas ao in nito.

O lósofo "viu" no horizonte a oresta harmoniosa, aquela de que o


músico lhe falara uma noite, no silêncio da Via San Pietro All'Orto.
Árvores velhas como o mundo. Suas franças se diluíam no céu,
ressoantes de aves e de insetos. Embaixo, a relva macia, pontilhada de
corolas. Miríades de borboletas de todas as cores dançavam
loucamente ao redor das moitas. E sobre esse quadro o rmamento
puríssimo, um sol cálido, apetecível como uma carícia...

Nesse mundo de sonho viveria uma gente feliz. Passaria parte da


manhã entregue ao amanho da terra, a m de tirar o necessário para a
existência frugal. O resto do dia seria consagrado ao descanso, à
cultura das artes e das ciências, ao amor e à educação dos lhos da
coletividade. A mulher seria livre, não para ser de todos, mas a nal,
para ser de quem ela própria escolhesse. Em torno dela, o estímulo de
todas as horas. Uns, entregando-se aos esportes, outros, às danças,
outros ainda, ao apuro do gosto nas palavras e nas emoções. Onde não
há coação econômica, o amor é logo transformado numa or muito
alta, que obriga a subir para colher!
III
OS PIONEI OS

No dia 20 de fevereiro de 1890 zarpou de Gênova o vapor "Cittá di


Roma", conduzindo na proa alguns homens e uma mulher que se
destinavam ao Brasil, a m de aqui fundar uma colônia socialista
experimental.

O "Cittá di Roma" era da Companhia de Navegação Ítalo-Brasileira


e, segundo os anúncios que se liam nos jornais daquela época, "fazia
serviço postal e comercial entre Lisboa, Marselha, Gênova e o Rio da
Prata." Era seu comandante o Capitão Tiscornia, de longo curso.
Apesar de navio postal, como se depreende das publicações do agente
em Santos e São Paulo, Sr. Domenico Levero, durante o segundo
semestre de 1889 parece que só passou uma vez pelo nosso porto, com
destino à Europa. Assim mesmo, com a partida anunciada para o dia 5
de dezembro, só chegou a Santos a 9 ou 10 do mesmo mês, de onde
zarpou, ao que se lê no movimento marítimo publicado nos jornais, no
dia 13, o que demonstra uma certa irregularidade nos seus serviços.

Foi precisamente na viagem seguinte a essa (e da qual não


conseguimos notícias) que embarcaram em Gênova os pioneiros da
futura colônia.

Quem seriam esses abnegados pioneiros? Um conhecemos nós, o


Dr. Giovanni Rossi, que gura nestas páginas com o pseudônimo
literário de Cárdias. Mas há outros, muitos outros... Aí está o Gioia —
"Gioia Aristide, para o servir..."
"Lo Sperimentale" era um jornal feito para meia dúzia. Apesar
disso, a notícia daquela iniciativa correu mundo. Nas vésperas da
partida do primeiro grupo de emigrantes, a sua redação recebeu a
visita de muitos pretendentes. Eram operários das fábricas de Bréscia,
modestos pro ssionais e empregados no comércio, gente que, as mais
das vezes, não estava a par dos intuitos de tal empresa. Isso sem falar
dos intelectuais, sempre dispostos a partir, partir fosse para onde
fosse...

Uma dessas visitas interessou particularmente a Cárdias. Era um


velhote pálido, estufado por longa vida sedentária. Ao primeiro olhar,
parecia bem posto: roupa lustrosa mas escovada, vincada, botinas
espelhantes, punhos, colarinhos e peito postiço ainda com o anil da
lavadeira, plastrão impecável, uma or murcha a alegrar-lhe a lapela.
Era meticuloso nos gestos e nas palavras. Sabia pegar
convenientemente no castão da bengala, dizer frases bonitinhas e,
naquele humilde escritório, onde homens desabusados sentavam nas
pontas das mesas, procedia como se estivesse no âmbito de uma
repartição pública. Apresentou-se assim:

— Li o seu jornal. Interessei-me por essa colônia. Vim dizer que


estou disposto a acompanhá-los.

Cárdias, que atentamente o estudava, não pôde deixar de sorrir.

— Meu caro... Esta aventura é para uma dúzia de idealistas


endurecidos na luta, dispostos a realizar uma grande experiência
social, nunca para pessoas como o senhor, que me parece enquadrado
no seu tempo, satisfeito consigo mesmo e com os que o cercam.

O intruso passava nervosamente a mão pelo queixo azulado:


— Deixe-me falar de mim mesmo. Estou cansado disto. Ontem
tentei suicidar-me, mas a corda era barata e rebentou. Então saí de
casa disposto a tomar outro caminho. Quero ir para a América, para a
África, para o m do mundo; quero encontrar qualquer coisa de novo.
Não faz mal que seja pior; o essencial é que seja diferente...

— Como se chama?

— Gioia.

— O senhor me parece triste demais para chamar-se Alegria!

— Gioia Aristide, para o servir. Sou toscano como o senhor. Há


trinta e tantos anos que trabalho num escritório. Levanto, visto o
roupão, calço as chinelas, vou para o banheiro. Mas o banheiro está
sempre ocupado. Depois de altercar com a moça magra que trabalha
na perfumaria, ou com o moço de cabeleira que há vinte anos conheço
como estudante, chega a minha vez. Mas nessa altura o relógio
assinala as sete e meia e eu sou obrigado a fazer, às pressas, a colação.
Vejo diariamente as mesmas caras deprimentes, ouço as mesmas
conversas, os mesmos prognósticos, as mesmas queixas. Na rua vou
encontrando as mesmas caras do costume. Não há mudança em nada,
nem sequer nos padres e nos mendigos. Chego ao escritório. Só a vista
daquela casa me deixa doente. Olhe como eu co arrepiado ao
lembrar-me daquela porta, do corredor, da sala, dos livros grossos,
das con dencias e das gracinhas dos que trabalham ao meu lado. E o
chefe? Usa óculos redondos deste tamanho, xa-os sobre mim
durante todo o trabalho; se me distraio num pensamento, ele toma
uma notinha discreta num bloco de papel. Espiona-me. Enche de
calúnias o ouvido do patrão. Este, quando me vê, ca abstrato tenho a
impressão de que ele pergunta aos seus botões: "Que faz a angina-
pectoris que não estrangula este velhaco?..." E o gerente? E aquele
maldito relógio que intervém na vida da gente, como se fosse o patrão,
o patrão de todos, o patrão do patrão? Veja como eu co! — e passava
as mãos pálidas pelo crânio úmido, que aparecia debaixo do cabelo
ralo, cor de aniagem.

Cárdias pensava. Como convencer aquele neurastênico de que a


Colônia Cecília não era uma estação de cura? Arriscou uma frase:

— Mas o seu caso não é o nosso, é um caso mais simples, mais


comum. Por que não experimenta uma estação de repouso nas
montanhas? Agora, na Primavera, a altitude e o descanso lhe farão
muito bem.

O homem se pôs a rir, a rir nervosamente.

— Altitude? Repouso? Boa pilhéria! Mas eu sou um mendigo em


traje de baile. Ganho para viver, vivo para trabalhar. Veja isto.
(Levantou a perna e mostrou que as botinas espelhantes já quase não
tinham sola; o pé encostava no chão.) E isto... (O colarinho, os punhos
e o peito postiços, de uma brancura anilada, eram de celuloide.) Ganho
uma miséria, sem a mais leve esperança de aumento. Ao contrário,
com a velhice que se aproxima, ameaçando-me com o olho da rua.
Moro num quarto de ín ma classe, com mais dois companheiros.
Entro muito tarde e saio muito cedo, para que não vejam o mecanismo
da minha elegância. Um dos meus sócios no quarto chega bêbado às
sextas-feiras e domingos, pela madrugada. Às sextas-feiras contenta-
se em azeitar o revólver, apontando o cano para os que dormem; aos
domingos, vai mais longe, lava o quarto com uma mistura de vinho e
grão-de-bico. O outro é mais quieto, no entanto sonha, e quando
sonha fala. Alta noite, escuto-o a rilhar os dentes e a dizer
impropérios contra uma pobre Teresina, que ele conheceu na terra
natal... E a comida da pensão? Sei com três meses de antecedência o
menu que me será oferecido em determinado dia do ano. O mundo
para mim já tem o cheiro daquelas costeletas queimadas. Li algures
que de sete em sete anos o homem se refaz completamente, torna-se
aquilo que comeu e bebeu. Repare em mim; eu já não sou um homem,
sou uma costela ambulante... Cárdias começava a aborrecer-se. Ele
continuou:

— Sei o que o senhor está pensando. Está dizendo lá consigo que eu


poderia, pautar a vida de acordo com os vencimentos. Poderia ter-me
casado, como toda gente. Mas tudo isso é impossível. Ganho menos do
que um carregador de estação e tenho de apresentar-me daquela
maneira a que os meus chefes chamam de "decente." Daí esta
amargura acumulada durante trinta e tantos anos. Estou cansado. Sou
uma bexiga de fel. Ou embarco com os pioneiros, ou estouro numa
esquina...

Cárdias mostrou-se in exível. O visitante saiu cheio de mesuras,


mas triste, muito triste. Grande, pois, foi a sua surpresa quando no dia
da partida do "Cittá di Roma", os emigrantes foram encontrá-lo na
proa, de cache-nez, luvas esgarçadas e um sobretudo no o, de gola
muito ensebada. Tinha estendido o lenço branco sobre um monte de
correntes e ali sentara, com alarmante serenidade. A princípio
Cárdias não quis reconhecê-lo, temeroso de avir-se com um doido.
Três dias depois o homenzinho ainda lá estava na mesma atitude. Na
semana seguinte ainda lá continuava, indiferente a tudo, os olhos
tristes xados na ponta do nariz. Então o lósofo condoeu-se e foi
falar-lhe:

— Parece que o conheço...

— Eu sou o Gioia. Gioia Aristide, para o servir.


— Vai viajar?

— Vou consigo.

— Ao menos sabe o que o espera?

— Não importa.

— E se não for melhor?

— Será melhor...

— Mas por que melhor?

— Porque não pode ser pior.

Cárdias cocou a cabeça. Que fazer com aquele teimoso? Então, tirou
um livrinho do bolso, o opúsculo que publicara meses antes e deu-lhe:

— Nosso programa está mais ou menos resumido neste trabalho.


Procure enfronhar-se nele.

Gioia tomou do livro e, sempre naquele lugar, chovesse ou zesse


sol, permaneceu de olhos grudados nas suas páginas. Estaria mesmo a
ler? Quem sabe lá... Chegou-se ao Equador. A temperatura começou a
subir. E ele, de sobretudo e de cache-nez, no seu posto. E de luvas
escarapeladas nas pontas dos dedos. Lendo sempre. Devia estar louco.
Na verdade, o Gioia era triste aquisição para uma colônia que ia servir
de experiência para uma sociedade nova. A princípio a sua gura
estranha despertara curiosidade entre os passageiros, sempre ávidos
de interessar-se por qualquer coisa. Depois, cansaram-se de observá-
lo. Toda gente já o conhecia. Os companheiros submeteram-se à sua
presença e começaram a tratá-lo com carinho. Mas ele não queria
falar. Uma palavra ou outra. Não queria aborrecer-se, nem aborrecer a
ninguém.

Os pioneiros eram intelectuais, professores, médicos, engenheiros,


ou operários de Milão e camponeses da região lombarda, afeitos ao
amanho de uma terra, há milênios cultivada, e ao trato das pereiras,
dos trigais e dos campos de beterraba. Mas não iam além dessas
culturas. Havia também dois homens a quem o cronista se refere
individualmente nos seus relatórios: um velho abúlico — svogliato —
com quem não se poderia contar para coisa alguma, e um sujeito
baixo, espesso, de testa fugidia e braços que batiam para baixo dos
joelhos. Forte, alegre e brincalhão. Chamavam-no de Ciccio. Era uma
dessas conversões feitas no cárcere, nos dias amargos em que os
presos políticos eram atirados para as cadeias atulhadas de
criminosos comuns.

Ciccio, tendo cumprido longa pena por crime de morte e frequentes


reclusões por furtos e roubos, aderira ao anarquismo e pusera ao
serviço desse ideal a energia que até aquele momento havia
empregado no crime. Fora dos primeiros a atender ao apelo publicado
em alguns semanários, contribuindo para isso com uma soma que
levara meses a ganhar como amassador de uma padaria do corso
Loreto. Sentia-se nele a ânsia por uma vida nova e limpa, numa
sociedade diferente. Sua dedicação à causa era profunda. Não tomava
resoluções com medo de errar, mas sempre que lhe mostravam o
caminho, ia até o m, custasse o que custasse. "Era — escreve Cárdias
— o mais hábil, o mais forte, o mais voluntarioso trabalhador do
grupo." A única mulher que viera com os pioneiros parece ter-se
limitado a seguir o companheiro; era simples, suave, não deixou
traços de sua passagem pela colônia. Durante um ano ela, sentada à
porta da cabana, contava e recontava, avaramente, os minguados
haveres da coletividade. Era a caixa da colônia. Ela, que tinha pelo
dinheiro a mais gélida indiferença.
IV
A COLÔNIA

Teriam eles desembarcado em Santos, fazendo transbordo para algum


navio costeiro que os conduziu a Paranaguá? Ou ainda — o que é
pouco provável — o "Cittá di Roma" teria tocado em porto paranaense
para ali deixar os passageiros que trazia da Itália? Paranaguá não era
porto da sua escala habitual, mas o mesmo se poderia dizer
relativamente a Santos, onde tocou diversas vezes sem, contudo,
gurar no itinerário anunciado.

De um modo ou de outro, aqueles viajantes cujos escassos recursos


haviam sido obtidos mediante subscrição aberta nos periódicos
libertários, entre os seus leitores, conseguiram chegar a Ponta Grossa.
Depois de curta demora para os preparativos necessários ao
empreendimento, se transportaram para Palmeira, com suas trouxas
e instrumentos de lavoura.

Não eram os primeiros imigrantes europeus. As colônias já estavam


em moda. Umas morriam, outras vingavam. Ali por 1877, havia
começado para aquela mesma região uma corrente imigratória dos
alemães do Volga. Eram teutos que se haviam xado na segunda
metade do século XVIII, na ússia, onde se constituíram num grande
núcleo, e, graças a certos privilégios que o governo imperial lhes
concedeu, conseguiram conservar a língua e muitos dos seus
costumes. Esses teuto-russos — conta-nos o Professor Emílio Willen
— trouxeram para o Brasil uma instituição rural a que chamavam de
"Mir." Nesse regime somente a comunidade possui terras. Toda pessoa
masculina participa, em proporções iguais, da terra para usufruto
temporário. De dez em dez anos ou de doze em doze, as terras são
medidas e repartidas de novo, mediante sorteio. Nessa remedição os
usufrutuários falecidos não são contemplados e o seu lugar é ocupado
pelos lhos nascidos durante tal período. Ninguém pode ingressar por
compra na participação da propriedade; somente os descendentes dos
primitivos usufrutuários podem tomar parte na redistribuição.
Apenas a comunidade está em contacto com o Estado. Este sistema
deveria vigorar até 1906.

Mas voltemos aos passageiros do "Cittá di Roma." Sua chegada


àquelas terras se deu nos primeiros dias de abril.

A porção de terras que lhes havia sido doada pelo agonizante


governo do Sr. D. Pedro II cava situada entre Palmeira e Santa
Bárbara. Eram terrenos absolutamente incultos e desertos; pradaria
empolada de colinas, cercada de bosques, numa altitude elevadíssima
sobre o nível do mar.

O comprido carretão de quatro rodas, como se usava em regiões de


pinheirais, ajustado para o transporte, deixou-os em meio dos
campos, à beira de um córrego esperto, sombreado de arbustos. E o
carroceiro, um teuto cor de ferrugem, com olhos muito azuis, depois
de receber a importância combinada, regressou a Ponta Grossa sem
olhar para trás. Naturalmente, em caminho, pensando na pobre gente
que havia cado ao sol da campanha, teve um sorriso de incredulidade
pelo êxito que a esperava. Aqueles homens e a mulher haviam chegado
de um modo diferente do habitual e, segundo se falava em certas
rodas, pretendiam realizar uma empresa estranha cuja importância
ele, o pobre carreiro teuto, tisnado pelo sol da campanha, não
compreendia muito bem.
Durante alguns dias, tanto em Ponta Grossa como nas localidades
próximas de Palmeira e Santa Bárbara, a chegada dos viajantes foi
assunto de conversas, — tendo algumas pessoas manifestado um certo
temor pela sua' presença. Houve até quem os confundisse com ciganos
desses que à porta dos ranchos, soldam panelas furadas, tiram buena
dicha e, quando podem, fazem mão-baixa nas galinhas que encontram
pelas estradas. Formou-se, portanto, ao redor dos pioneiros da
Colônia Cecília, um ambiente que não era dos mais simpáticos,
embora não oferecesse perigo para eles, pois os paranaenses são de
natural muito pací cos e a sua hospitalidade não tem limites. Mesmo
que fossem ciganos, ali estavam, eram portanto bem-vindos.

Gioia fora o primeiro a saltar do carretão. Ajudou os demais a


descarregar a bagagem e quando o veículo partiu, ele se trans gurou...

— De quem é isto?

— De ninguém. São terras que nos foram concedidas para a


fundação da Colônia.

— Mas há de haver um dono.

— Não há. Não reconhecemos a propriedade privada.

— Quem é o chefe?

— Também não temos chefe.

— É impossível.

— Nós pretendemos provar, precisamente, que isso é possível, ou


melhor, que isso é o natural.
— Então eu posso fazer o que quiser?

— Pode.

— Viver como desejo?

— Aqui estamos precisamente para isso.

Ele se pôs a rir, com riso de criança travessa. A sionomia se lhe


tornou resplandecente. Mas ainda não podia acreditar. Como para
tirar a prova, perguntou:

— E se eu quiser andar nu?

— Será uma prova de inteligência...

Então, observando na cara dos circunstantes os efeitos da sua


afoiteza, começou a despir-se. Tirou o cache-nez, o sobretudo, o chapéu
e atirou-os às ervas. Ninguém se moveu para apanhá-los. Animado,
descalçou as botinas e atirou-as ao córrego. A seguir, os punhos, o
colarinho, o peito postiço, a gravata, a camisa. Observavam-no com
seriedade, sem protesto. Então, levou ao m a sua iniciativa: despiu-se
completamente e, nu como um grego, sentiu-se criança,
absolutamente feliz. Abraçou as árvores, rolou nas ervas, acariciou a
terra negra do chão, onde marinhavam as; formiguinhas, os besouros,
os mil insetos desconhecidos; deu saltos, virou cambalhotas, e, por
último, inteiramente bêbado de alegria e liberdade, meteu-se pelo
riacho. A água subiu-lhe até aos joelhos, até à cintura... Um ramo
descia até à or da corrente. Segurou no ramo, mergulhou com. ele,
levantou-se, ganhou a outra margem, a rir, a rir como uma criança, e,
sem dar atenção aos companheiros, barafustou pela capoeira brava.
Ainda ouviram as suas exclamações de júbilo. Depois nada.
Alguns companheiros andaram à noite pelo mato, a chamá-lo pelo
nome:

— Gioia! Gioia!

Era como se gritassem: Alegria! Alegria!

Três dias depois passou pela colônia, a correr no encalço de uma


grande borboleta azul. Os trabalhadores da estrada do governo, em
suas conversas, faziam referências a um gênio da planície que, de
quando em quando, atravessava os campos, subia às árvores, virava
cambalhotas nas ervas frescas. Era um louco. De uma loucura mansa e
lírica que não causava mal a ninguém.

***

Sós, como abandonados no campo, os imigrantes tiveram de tomar


imediatamente uma iniciativa, fosse ela qual fosse. Mas qual? E,
sentados nas suas trouxas; à beira do córrego, caram a discutir, sem
que nenhum deles quisesse nem de longe fazer prevalecer a sua
opinião. E quando o sol entrou de descer entre os pinheirais
longínquos, ainda discutiam entre si. Felizmente uma lua admirável
começou a subir em plena tarde, do outro lado do horizonte, ainda
muito diáfana, anunciando já uma das noites luminosas que são tão
frequentes naquela região de céu puro e ares limpos.

Essa gente, como dissemos, encontrava-se de um momento para


outro em plena campanha, diante da bagagem e da ferramenta, na
iminência de passar a noite ao relento. Após a longa discussão cou
resolvido construir-se um rancho provisório, onde se recolhessem
para fugir à intempérie. Então, Cárdias com Ciccio, o atleta fugido da
prisão, e mais um homem do grupo dirigiram-se a Santa Bárbara,
cujos telhados de zinco se viam à distância. E aí, com os últimos
recursos da subscrição, compraram tábuas, folhas de zinco, pregos e
demais materiais necessários, trazendo tudo num carro.

Quando regressaram à beira do riacho, onde os companheiros


haviam cado, ouviram sinos distantes, Ave-Marias.

A lua aparecia mais alta e mais brilhante. E junto à única palmeira


daquelas redondezas havia uma cena muito animada: um homem, o
mais jovem do grupo, esforçava-se por subir pelo caule, mas todas as
vezes que chegava a uma altura de duas braças escorregava até o chão,
entre gritos e risadas dos companheiros. Mas depois de amarrar uma
corda no tronco, de modo a servir de descanso, já no m da subida,
conseguiu atingir as palmas e realizar o seu intento. Tirou da cintura
uma bandeira negra e vermelha, com listas longitudinais, e arvorou-a
lá em cima, desfraldando-a aos ventos da tarde. Depois, escorregou
pelo caule e veio amontoar-se no chão, entre gritos e risadas. Era
aquela a bandeira da Colônia, que simbolizava nas cores as tendências
sociais reunidas no seu programa.

Os homens haviam iniciado a toda pressa a construção do rancho


provisório. Enquanto todos trabalhavam nessa obra, o velho abúlico,
que se chamava Piero, acendeu uma fogueira, embrulhou-se na manta
e acocorou-se ao pé das brasas, com ar feliz. Ciccio perguntou-lhe:

— Não ajudas, Piero?

— Não. Estou cansado de obedecer; passei a vida inteira


obedecendo. Aqui eu faço o que quero, não faço o que não quero.
Outra vez, Cárdias ouviu este diálogo:

— Antônio, eu ainda não sei carpir e preciso que você me ensine...

— Não ensino a ninguém. Aqui cada um carpe como quer. Na


anarquia não se ensina a ninguém.

O lósofo sorriu com tristeza e lá se foi à frente, para dar o exemplo.


A incompreensão de alguns doía-lhe na alma, como um crime feito
não a ele, mas a todos, à humanidade de amanhã.

Era a incompreensão do grande sonho, o mal que deveria destruí-


lo.

Ciccio riu-se e continuou na sua faina.

Decorreram horas e horas de trabalho, sem trégua, à luz de um luar


que parecia claridade meridiana. Quando os galos de Santa Bárbara
cantaram pela primeira vez, a construção já se havia tornado mais ou
menos habitável; os colonos recolheram-se e procuraram dormir
enrolados nas mantas. E isso não lhes foi penoso, pois a noite estava
muito fresca um silêncio cósmico convidava ao sono e o vento brando
que vinha da região dos pinheirais animava as brasas da fogueira.

No dia seguinte, o sol a doirar a ímbria dos bosques, os colonos


acordaram com o bater espaçado e grave de uma enxada. Era Cárdias
que, madrugador, havia começado a cavar as valetas ao redor do
rancho, a m de dar escoamento às águas no caso de alguma
tempestade.

Piero voltou-se para Ciccio e disse-lhe:

— Cárdias trabalha...
E o milanês:

— Má de buon, peró!

Foi à porta e com viva alegria perguntou-lhe:

— Que é que você está fazendo?

— A casa de uma humanidade nova...

E continuou a bater com a enxada; mas, com o calor suava e com o


suor as lunetas se lhe escorregavam teimosamente no nariz.
V
A VIDA NA COLÔNIA

Certa manhã, quando os passarinhos começaram a sua granizada


alegre nas árvores do terreiro, Cárdias levantou-se, correu o pano de
aniagem que servia para tapar a única janela do tugúrio e espiou para
fora. Clareava. O céu se fazia cor de púrpura; na planície cinzenta,
levemente ondulada de colinas, os pinheiros se iam adensando na
distância em manchas esfumadas. Os mais próximos, na sua
conformação de gigantescas taças rasas, pareciam transbordar de
champanha cor-de-rosa: era o primeiro toque de luz nas suas copas.

Tomou de um trapo branco — última lembrança daquilo que


outrora tinha sido toalha — e seguiu para o riacho. De passagem,
notou que os companheiros ainda dormiam. Fratello, o cachorro de
Ciccio, estava enrolado no lugar em que, na véspera, ardia uma
fogueira. Aves afoitas, que mariscavam inutilmente no terreiro,
voaram à sua aproximação. As ervas do caminho pendiam
encharcadas de orvalho e, batendo nas pernas do colono, molhavam-
nas. A lama na e gelada da beira do córrego entrou-lhe por entre os
dedos dos pés, fazendo-o estremecer. Meio mergulhada na água, havia
uma tábua larga; era ali que a velha Rosa, então a única mulher da
Colônia, ensaboava e batia a roupa dos companheiros. Ao lado, no
capim rasteiro, via-se estendida uma calça de zuarte, do Ciccio. Se a
calça azul estava ali, ele nesse dia com certeza, devia envergar a outra,
aquela que nos bons tempos tivera cor de ferrugem... Sorriu.
Ajoelhou-se na tábua, fazendo esforço para não afocinhar no
charco. Então, no cristal da água viu o próprio retrato. Achou-se
mudado, quase não se reconheceu. Estava felpudo como um teppista.
Tinha a pele tisnada pelo sol, os dentes escuros. E, ensaboando o rosto
com sabão de cinza, raspando com as unhas os nós da barba, lembrou-
se de outros tempos. Fora um rapaz quase bonito. Em Florença, no
Conservatório e depois na Escola de Agronomia, ainda estudante, as
mulheres olhavam-no com ternura. E seus colegas, onde estariam
eles? Teriam progredido, constituído aquilo a que chamavam família?
Só ele ali estava, mais pobre que um mendigo, esmagado pelo sonho
de uma humanidade melhor... Ah! Aquele sonho! Quando voltou viu
a velha Rosa à janela do rancho; amarrava na cabeça um lenço de
ramagens e retorcia a boca avelhantada num ricto de mau humor.

— Você hoje dormiu bem.

— Ora, para que levantar... Não há o que comer...

Só então Cárdias lembrou-se de que a caixa se encontrava vazia e a


despensa inteiramente desprovida de gêneros. Cocou a cabeça.
Estendeu um olhar em volta. O milharal crescido, todo trêmulo ao
vento da manhã, mas nem sombra de espiga. Na horta, de canteiros
bem esquadrejados, o verde apontava na terra escura. Mas para que
servia aquilo? Para nada. Não havia sal, açúcar, pão, carne...

Os outros colonos foram aparecendo nos seus ranchos, interessados


na conversa. Piero, sempre enrolado no cobertor, sentou-se à porta e
se pôs a rir de um modo escarninho. Aquilo não era homem, era um
toco de pau, daqueles que a gente encontra retorcidos mas imóveis nas
tigueras. Se não lhe botassem a comida na boca, morreria de fome.
Além disso, era amargo, deprimente. Só dizia palavras desgostantes,
incomodativas. Que concepção tacanha tinha ele do ideal — daquele
ideal que era todo luminosidade e harmonia!

Na casa dos Gattai ardia fogo; uma fumaça azul saía alegremente
pela única janela. Cárdias foi até à porta e olhou para dentro:

— Que é isso? Fogo? Para quê?

Lá dentro havia duas pessoas: uma blasfemou e outra se pôs a rir.

E as horas foram passando. Os sinos cantaram maciamente na


distância. Dentro de pouco, como zesse frio, todos estavam sentados
num retalho de sol, a discutir bizantinismos ideológicos. Para Cárdias,
aquilo não era, nem de longe, o que havia sonhado. E a culpa não era
da terra, do governo local, nem mesmo das classes conservadoras que
ainda não pensavam em defender-se; era o resultado das taras de
milênios, da pouca inteligência de todos. E ajuntava:

— A sociedade velha deformou a nossa compreensão da vida.


Somos uns pobres chineses a quem, de um momento para outro,
houvessem tirado os sapatinhos de ferro que durante milênios lhes
foram deformando os pés. Estamos livres, mas não sabemos andar.
Conquistamos a liberdade, mas para morrer de fome...

Os circunstantes protestavam, Piero bradou:

— E que tem você com isso? Viemos para aqui, acaso, com o intuito
de constituirmos um principado em que vocês dispusessem de nós
outros como de súbditos? Nesse caso, preferimos o rei, o patrão, o
carabiniére!

Foi quando se ouviu um canto alegre. Era Ciccio, o gigante ruivo. Ele
morava um tanto afastado, numa pequena casa, tão pequena que para
nela entrar precisava curvar o reforçado busto. Quando tinha
hóspede, dava o interior da casa e dormia diante da porta, com os pés
ao relento... A porta e a janela não tinham folha:; para fechar. Quem
quisesse, entrava e saía a qualquer hora do dia ou da noite. Aquele
homem não precisava de nada na vida. Não tinha nada. Não queria ter
nada. O verbo "ter" nada signi cava para ele. Sua linguagem pobre,
escassa, ignorava os possessivos. Fizera aquela casa e chegara a ter
duas mudas de roupa, "propriedade" essa que era um trambolho na
sua vida: vivia a oferecê-la aos companheiros, na esperança de que
alguém lhe zesse o favor de aceitar.

Il campanil de Pisa

Pende perché diritto non pó star...

Eram os seus stornelli. Quando entrou no terreiro, mais ruivo, mais


corado, mais desajeitado, com uma mecha de cabelos agressivamente
espetada para a frente, os companheiros puseram-se a rir, sem mesmo
saberem porquê. Sua presença era agradável e animava. Não precisava
falar para transmitir coragem. Bastava vê-lo. E ele se orgulhava de ser
útil mesmo dessa forma, à Colônia.

— Por que riem?

— Por nada. Estamos com fome.

— Pois eu já z a minha merenda.

Ninguém acreditou.

Então ele, sem dizer palavra, voltou ao rancho e de lá trouxe uma


broa das grandes e dois palmos de salame, um jacazinho de mate e um
pacote de açúcar. Diante da alegria dos amigos, cortou um bom naco
de carne e deu-o ao cachorro que, sem cerimônia, se pôs a comer.
Depois entregou aquela riqueza à velha Rosa, que era assim uma
espécie de "ministra" do Interior. Todos se animaram. O próprio Piero
saiu do seu lugar e entrou no grupo:

— Vamos comer o resto do cachorro...

Dali a pouco a mesa estava posta e todos, alegremente, quebravam o


jejum.

Piero com a boca cheia perguntou:

— Onde teria ele roubado?

Houve protestos: Ciccio não era ladrão. E ele não pôde ouvir tais
palavras, porque já saíra, em direção a Palmeira; Cárdias conseguiu
alcançá-lo.

— Companheiro, venha comer.

— Já comi.

— É mentira.

Ele não deu resposta. Adiantou-se a gingar o corpanzil. Fratello, o


cão, parecia dançar à sua frente. Depois desembocando na estrada do
governo, perdeu-se entre as árvores.

Certo dia os colonos ouviram uma algazarra na estrada que passava


a cem metros das habitações. Poderosa voz chamava-os pelos nomes,
pedindo indicações e auxílio.

Que seria?
Correram para lá.

Um carro cheio de malas e trouxas, estantes e caixotes de livros,


estava parado entre as árvores. O dono de tudo aquilo era um homem
alto, vermelho, de botas, culotes, blusão e chapéu de cortiça; andava de
um lado para outro, enquanto o cocheiro ia descarregando a carga.

Uma mulher, em traje de montar, caminhou em direção à colônia,


ao encontro dos homens que se aproximavam. Cárdias foi o primeiro a
alcançá-la.

— Não se lembra mais de mim?

— Confesso que...

— Contessa Colombo!

Abraçaram-se Eram gente de Turim. O marido, Conde Colombo,


proprietário de terras e médico de nomeada, tinha sido durante
muitos anos aquilo a que nos meios se dá o nome de simpatizante.
Assinava os jornais, comprava os livros, concorria nas subscrições e,
como médico, não recusava serviços aos camaradas que se achavam
doentes. Vivendo na alta sociedade, concorria para soltar presos,
atenuava a culpa de outros e quando se tratava de arranjar emprego a
algum necessitado, fazia valer o seu prestígio entre industriais e
comerciantes.

Por essa altura, o marido se aproximara também. Era um belo


homem, sadio e bem-humorado.

Quase todos se conheciam. Malas, estantes e caixotes foram logo


transportados para a Casa do Amor, de onde, mais tarde, seriam
conduzidos para o rancho dos novos colonos, assim que fosse
construído.

Cárdias estava vexado. Não compreendia bem como aquele homem


e a esposa habituados a uma vida confortável, até certo ponto faustosa,
tinham abandonado as propriedades, a clínica, o seu mundo, para se
meterem naquela aventura. E a sua curiosidade divertia os
·viajantes...,

Cárdias não se conteve e perguntou:

— Como é que vocês explicam essa resolução?

O conde e a esposa, que estavam a rir, mudaram instantaneamente


de humor. Foi como se Cárdias, com a sua pergunta, tivesse revolvido
em suas almas alguma chaga muito dolorosa. Inclinaram a cabeça. O
rosto se lhes enuviou. A voz dele se fez ouvir, como um gemido :

— A lha morreu, tudo acabou.

E nunca mais se tocou no assunto.

Cárdias, apesar de tudo, acreditou que o casal não se habituasse


àquele buraco de sertão. Mas habituou-se. Ambos tomaram parte
ativa na vida da colônia. Trabalharam muitas vezes de enxada na mão,
como se nunca tivessem feito outra coisa. E, um dia, anos depois,
foram dos últimos a se retirar. A condessa chegou mesmo a confessar
que ali havia encontrado uma felicidade a que jamais poderia aspirar.
Era como se a lha os tivesse acompanhado, como se andasse por ali a
brincar com as outras crianças. Só lhes faltava vê-la; sentiam-na por
toda parte...

 
***

A vida dos pioneiros da Colônia Cecília era, pois, a de homens


abandonados a suas próprias forças, em plena natureza. Sentiam-se
náufragos aportados a uma ilha deserta. É verdade que na orla do
horizonte apareciam penachos de fumo subindo da cumeeira de
outros ranchos e, quando o vento estava de feição, podiam ouvir, à
distância, o bimbalhar dos sinos de Palmeira e de Santa Bárbara.

Mas não eram colonos comuns. Em razão dos seus princípios e


intuitos, jamais poderiam invocar o apoio dos hospitaleiros
paranaenses ou mesmo dos europeus que ali trabalhavam, amoldados
às praxes de uma sociedade velha, tida como errada pelos pioneiros e
seus amigos. Eles eram mais pobres do' que os ermitões do deserto,
pois a convicção mesma que os trouxera da Europa, nessa aventura
por longínquas terras do Brasil, os impedia de receberem auxílio,
fosse dos agricultores a quem chamavam de capitalistas, ou dos
governantes que representavam a seus olhos uma organização
inimiga. Sobrava-lhes, no entanto, a possibilidade de recorrerem a
companheiros e simpatizantes do mundo inteiro, mas essa gente
nunca passou de uma escassa minoria, rica de sonhos e pobre de
haveres.

Todas as manhãs olhavam com angústia as plantações belas mas


preguiçosas. A terra, por mais produtiva que seja, não restitui da noite
para o dia, generosamente multiplicada, a semente que se lhe con a.
Era preciso tempo, muito tempo, para colher os primeiros frutos. E
essa espera foi terrível para os colonos. Escasseava-lhes tudo: pão,
roupa, calçado, o mais comezinho conforto. Viviam descalços,
esfarrapados, mal nutridos. Quando a vida se tornava de todo
impossível, alguns homens se dirigiam às localidades próximas e
trabalhavam de ganho. No m da semana, recebendo o salário,
compravam sal, sabão, farinha de milho e de trigo e regressavam à
Colônia. Mas essa atitude não era vista com bons olhos. Piero, o
ortodoxo do grupo, que ressumava amargura, erguia os olhos do
braseiro em que vivia a aquecer-se e perguntava-lhes:

— Achastes, a nal, o vosso patrãozinho?

Mas os pobres estavam exaustos: não respondiam E a terra a


cainhar os frutos... As mãos de Cárdias não tinham sido feitas para
aquilo; empolavam-se de calos, tornavam-se pesadas e inúteis. Dentro
de pouco, era só Ciccio a fazer essas escapadas pelas terras proibidas
do "capitalismo e do patronato." O antigo malfeitor dos bastioni de
Milão não se cansava de tais sortidas. Levava-as a cabo, pondo na obra
uma certa religiosidade de cristão primitivo. Sentia-se feliz em
contribuir por essa forma para a construção daquilo que nos meios se
chamava — a sociedade nova.

Apesar de tudo, a colônia progredia. Surgiram as primeiras


casinhas de tábuas de pinho, de teto alcatroado, com seus móveis
rudimentares, algumas sementeiras novas, a horta, a fossa sanitária.
Esse progresso poderia ser considerado notável, se se levasse em conta
que os pioneiros da Colônia Cecília eram leigos em tais serviços. Um
deles era estropiado e os demais, como vimos, de quando em quando,
tinham de ir ganhar fora o pão comum.

Em ns de 1890, foi derrubada uma larga extensão de mata para a


plantação do milharal, sendo ao mesmo tempo construída comprida
cerca para defendê-lo do gado dos proprietários vizinhos. Em janeiro
do ano seguinte, chegaram à Colônia mais algumas famílias de
camponeses. No entanto, logo no começo, viu-se com desgosto que
essa gente não se harmonizava com os primeiros chegados. Homens e
mulheres manifestaram desde logo o seu desencanto, por não
encontrarem ali, à sua espera, o paraíso com que haviam sonhado
lendo ou ouvindo ler os opúsculos de propaganda da Colônia. Dias
depois, diversos desses incrédulos se retiraram para Curitiba e aí se
estabeleceram, tornando-se elementos negativos, empenhados em
desencabeçar os camponeses que, de passagem para a Cecília, lhes
pediam hospitalidade.

Os pioneiros da Colônia eram da massa dos apóstolos. Tinham a


tenacidade irritante dos convictos. E os trabalhos agrícolas, lentos e
dolorosos, prosseguiam. Foram chegando, com espaços de semanas e
de meses, os Gattai, os Marinai, os Colli, os Capellari... Iniciou-se a
construção de um edi ício central, para as reuniões. Nos meses de
março, abril e maio continuaram a chegar, em turmas, numerosos
camponeses, elevando-se a população da Colônia por essa altura a 150
pessoas.

Esse crescimento rápido, no entanto, confessa Cárdias, foi


prejudicial. Constituíram-se grupos por famílias e os mais atilados se
aproveitavam da escassa produção, em prejuízo do maior número. A
política fervia. Num grotesco sistema de referendum, a população
perdia o melhor do tempo em assembleias, das quais surgiam
fementidas promessas e ambições mal dissimuladas. Elegiam-se
comissões, votavam-se regulamentos, gritava-se a ponto de car
rouco. Mas — seja dito em seu abono — nunca, nem mesmo nas
reuniões tumultuosas, se registrou o mais ligeiro desrespeito à
integridade ísica dos contrários. Mais ainda, essa gente exasperada
pela desilusão, enfraquecida pela escassez de alimento, mas livre de
tutores, trabalhava sempre, fazendo o que sabia e como podia:
reclamava, mas não descia à violência.
Muitas vezes, aqueles jovens de estômago vazio se apoiavam no
cabo da enxada e olhavam, desfraldado no alto do coqueiro, o pavilhão
que sintetizava os seus anseios. E concordavam consigo mesmos:

— D'un pó di polenta e d'un pó d'ideale si vive...

***

Aconteceu que, numa clara noite de novembro de 1892, um par de


namorados fazia a pé a estrada de Palmeira. Um carretão que rodava
penosamente com o mesmo destino estacou diante deles.

— Prá onde vão?

— Prá Colônia.

— Querem condução?

Os dois caminhantes agradeceram ao carroceiro, atiraram as


trouxas para dentro do carro e, por sua vez, trataram de subir pela
traseira do veículo, sentando-se o melhor que puderam nas tábuas do
fundo. E a viagem prosseguiu.

A planície era imensa, banhada de luar, pontilhada de sombras


escuras de pinheiros. Mas a estrada era má e o carro não tinha molas;
dava cada solavanco que parecia virar de banda. A mulher ajeitava oi
lenço na cabeça e ria, o homem procurava arranjar-lhe um encosto
com as trouxas de roupa. De um lado e de outro, a planície, o luar, as
sombras em forma de taças, as mil vozes misteriosas da campanha.
Em certo ponto, o homem quis entabular conversa com o cocheiro,
mas desistiu; era um alemão do Volga, gente do "mir", mais
descon ada do que o caboclo, Não passava de "nhor sim" e "nhor não."
Súbito o veículo parou na estrada, entre duas árvores, no boqueirão de
um atalho.

— A Colônia é ali.

Os viajantes desceram, com palavras de agradecimento, enquanto o


cocheiro chicoteou os animais, na ânsia de chegar cedo a Palmeira.
Apesar do socorro daquela condução, o casal estava cansadíssimo.
Principalmente a mulher, que era na e pálida. Depois de trocarem
algumas palavras entre si, os dois sobraçaram as trouxas e tomaram
pelo atalho. Logo adiante, na primeira curva, viram uma claridade.
Tratava-se de um aglomerado de casas ainda mais rústicas que as da
planície. Ao centro erguia-se um barracão coberto de palha, com ervas
a grimparem pelos esteios. Adiantaram-se cautamente. Fratello, o
cachorro de Ciccio, deu o alarma. Pararam. De dentro das casas saíram
alguns colonos ao seu encontro. Cárdias conheceu-os logo; eram Éleda
e Aníbal.

Foram hospedados na casa de Ciccio que, nos últimos tempos,


andava ausente. Cárdias conta assim:

"Foi uma chegada pouco alegre. Os novos companheiros estavam


cansados da viagem, prevenidos contra a Colônia, pois os dissidentes
— chamemo-los assim — que se haviam estabelecido em Curitiba, lhe
haviam descrito muito mais pobre e menos socialista do que ela
realmente era. Também da minha parte havia uma certa frieza, pois
eu acreditava que eles tivessem hesitado em vir, o que depois averiguei
não ser verdade. Por isso, naquela noite Éleda não me causou outra
impressão a não ser a de uma criaturinha fatigada, um tanto triste. No
entanto, aqueles novos companheiros mereciam toda a minha
simpatia.

Eu tinha conhecido a Éleda no ano anterior, na localidade de X,


numa conferência pública em que fui explicar as ideias sobre o amor
livre. Lembro-me de que, tendo-a interrogado em particular, ela me
respondeu com simplicidade que o admitia. Vi-a poucos dias depois
em um hospital daquela mesma cidade, enfermeira corajosa,
devotada, infatigável, junto ao leito de morte daquele valoroso jovem
socialista que, por cinco anos fora seu caríssimo companheiro. E os
amigos me contaram naquela ocasião que a vida de Éleda tinha sido
uma modesta abnegação, uma luta penosa, mas inteligente e forte, por
seu amigo, por seus comuns ideais.

Dela, da sua simplicidade, da sua melancolia, da força de ânimo, eu


trouxe comigo um certo sentimento de simpatia e admiração, mas
nunca o mais leve desejo pela mulher. Era para mim uma gurinha
nobre e delicada, que se impunha pelo caráter, que me satisfazia pela
bondade, que me agradava como nos agrada um companheiro gentil.
Os momentos em que conheci a Éleda na cidadezinha de X foram
vários, breves e dolorosos, mas essas impressões se tornaram claras e
assim as comuniquei à nossa boa amiga Gianotta.

Anibal é um bom companheiro, daqueles que na agitação socialista


se habituaram a perder tudo, a nada ganhar. É de inteligência acima
do vulgar, mas tem o coração maior do que o cérebro. Sob aparência
áspera, esconde uma delicada sensibilidade. Foi dos primeiros e dos
poucos que apoiaram decididamente a iniciativa desta Colônia
socialista e a ajudaram grandemente, vindo depois fazer parte dela. É
um homem a quem amo, a quem estimo e prezo de todos os pontos de
vista."
 

***

"Nos primeiros dias de sua chegada à Colônia — escreve Cárdias —


tive ocasião de conhecer melhor a Éleda. É uma criaturinha de trinta e
três anos mas quando está tranquila e se sente bem, não parece ter
mais de vinte e cinco. Ainda mais, mostra nos olhos e na carinha
delicada qualquer coisa de menina. Sua expressão é quase sempre
séria, de uma seriedade triste. Começou a interessar-me e muitas
vezes me comprouve perguntar-lhe se não se habitava à solidão
daquelas pradarias e bosques, àquela monotonia, àquela pobreza de
vida. Respondeu-me que estava procurando habituar-se e que
acabaria por consegui-lo. E eu encontrava nela a socialista inteligente,
corajosa, boa, que tinha entrevisto na cidadezinha de X. Daí, uma
simpatia, uma afeição delicada, respeitosa, acreditava eu, mas que era
o alvorecer do amor.

Uma noite ela me deu uma carta para ler; tinha-a recebido da nossa
amiga Gianotta, que lhe augurava uma boa-viagem para a Colônia. "Se
vais só, acompanha lá o meu Cárdias; formareis um gentil casal. E em
qualquer caso, dá-lhe um abraço e um beijo que eu lhe mando."

No dia seguinte, perguntei-lhe, a rir:

— E quando me entregarás o presente da nossa amiga Gianotta?

Ela respondeu no mesmo tom:

— Um dia, quem sabe?


 

***

— "Escute, Éleda — disse-lhe uma noite à porta do rancho — você é


uma moça séria, a quem se deve falar sem arti ícios.

Ela me olhou e compreendeu.

— Por que motivo você não gosta também um pouquinho de mim?

— Porque tenho receio de dar um grande desgosto a Aníbal.

— Pois fale com ele a esse respeito. Separamo-nos sem um beijo.

Éleda contou a Aníbal, como uma companheira afetuosa, mas livre


e sincera, deve falar ao companheiro a quem ama e preza. Aníbal
respondeu-lhe como um homem que, acima de suas paixões, põe o
escrupuloso respeito pela liberdade da mulher.

— Sofre... — me disse Éleda.

— Era fácil prever — respondi-lhe eu. Mas acreditas que nele a


parte que sofre é a melhor ou a pior do coração? Essa dor será
humana, socialística, indestrutível? É a dor do punhal que mata ou a
dor do bisturi que cura?

— Eis aí o que é preciso averiguar — respondeu-me Éleda.

E nos afastamos, ainda dessa vez sem um beijo. Aníbal, ele próprio,
disse a mim e a Éleda:
— É o preconceito, é o habito, é um pouco de egoísmo, se vocês
quiserem, mas a liberdade deve estar em primeiro lugar e acima de
tudo. A verdade é que amo Éleda e não tenho razão para não mais
amá-la. Isso dói. Sofrerei, mas não faz mal. Tu, Cárdias, vives triste e
sem amor. Éleda fará bem em encher a tua vida.

— Tens ressentimento de mim ou de Éleda?

— De ninguém.

Naquele dia Éleda e eu trocamos o nosso primeiro beijo. Aquela


noite ela veio para a minha casa. E Aníbal chorou na tristeza e no
isolamento.

De manhã, quando Éleda voltou para a sua casa, cou admirada de


não ver o companheiro já de pé, em plena atividade, como era seu
costume. Chegou à porta do quarto e espiou para dentro. À claridade
que ltrava pelas goteiras, ela viu Aníbal, deitado de bruços na cama
intacta; tinha passado a noite a chorar. E o seu choro era abafado,
humilde, como o choro de uma criança.
VI
TÊM A PALAVRA AS PERSONAGENS

Na Colônia Cecília não havia domingos nem feriados. Quem queria


trabalhava, ou cava em casa, ou ia para o campo, Con ava-&e — um
pouco de mais — na coação da necessidade. Houve um sábado, porém,
em que as enxadas permaneceram nos cantos, a plantação parou onde
estava e a população tratou de outro assunto.

Era, no entanto, uma instituição de experiência, de todos os pontos


de vista. O que ali se passava, fosse o que fosse, devia ser
documentado, estudado, e transmitido ao mundo inteiro. Por isso, o
caso sentimental, um dos primeiros e talvez o último, de caráter
experimental da Colônia, provocou uma reunião, uma espécie de aula
em que as personagens deviam depor sobre as próprias atitudes e
sentimentos.

Realizou-se à noite, na Casa do Amor. Esse barracão, construído


carinhosamente pelos primeiros chegados, não tinha sido
verdadeiramente utilizado. Os quadros gregos, de uma ingenuidade
primitiva, não tinham sido possíveis, pois durante muito tempo só
havia uma mulher, e essa mesma era idosa, carregada de lhos,
devotadíssima ao companheiro, a tesoureira da Colônia. Mais tarde os
pioneiros desanimaram, brigaram entre si e muitos deles resolveram
emigrar para Curitiba, onde havia trabalho fácil, regularmente
remunerado, com possibilidades de uma vida burguesa que não era o
ideal, mas, a nal de contas, estava mais à mão. Em Curitiba, sendo os
primeiros a receberem os colonos que iam chegando, realizavam obra
contrária, dizendo cobras e lagartos da instituição.

Felizmente, logo depois, apesar da campanha, chegaram muitas


outras famílias, a ponto de a Colônia, em determinado período, contar
para mais de trezentas almas. Os ranchos de tábuas já se contavam
por mais de cinquenta. Mas, de amor livre, nada. Ô que talvez
houvesse, como por toda parte, não passava de ligeiras conquistas,
velhas como o mundo, sem o mais leve caráter social. A Casa de Amor,
que ainda conservava esse nome, passou a ser casa coletiva. Ao centro,
uma grande mesa de pinho, sobre cavaletes. Ao redor, bancos
igualmente de pinho. De dia era auditorium, uma espécie de conselho
onde todos tinham voz e pediam discutir os problemas da Colônia e,
de noite, era dormitório para os rapazes que iam surgindo com a
trouxa de roupa pendurada na ponta da vara.

Aquela reunião foi sensacional. Chegou mesmo a assumir certa


solenidade, o que desgostava sempre aos ortodoxos. O jornalista
Lorenzini, que tinha o hábito dessas coisas, sentara-se à mesa, diante
de folhas de papel almaço, manejando a sua pena ágil. Gastou quase
meia hora a redigir os quesitos, um requisitório especial para cada
personagem. Enquanto isso, os presentes formavam grupos e
conversavam sobre assuntos que não vinham ao caso.

Nos quatro cantos do pavilhão ardiam candeeiros de querosene.


Quando Lorenzini levantou os olhos, viu que se encontrava diante de
uma autêntica assembleia. As três personagens do drama estavam
presentes: Éleda conversava num grupo de mulheres, Cárdias
mantinha-se pensativo, sentado na ponta de um banco, e Anibal
esperava de cócoras num canto, ao fundo do pavilhão. Havia gente
sentada nos doze bancos fronteiros à mesa, encarapitada nas grades,
de cócoras ao longo da única parede lateral. Alguns, tomados de
preguiça, haviam-se deitado pelo chão, de cabeça erguida como
lagartos. Um par de jovens namorados trepara na trave do teto e ali, de
pernas penduradas sobre o recinto, arrulhava o seu amor.

O Conde Colombo tinha posto o chapéu de cortiça. Enquanto


esperava, fazia girar nervosamente o monóculo, no fura-bolos. O
Professor Damiani, sempre assoberbado nas pesquisas, fazia
anotações nas margens da "Eneida." O engenheiro Grillo roía as unhas,
olhos tos nas poucas estrelas que ardiam no seu campo visual.

Em certo ponto Lorenzini bateu palmas. Fez-se silêncio.

— Damiani, você quer ser o escrevente?

O professor custou a cair em si; Mas aceitou. Il tomando do lápis,


que havia perdido no bolso de Horácio, encaminhou-se para a mesa.
Lorenzini deu-lhe uni lugar a seu lado. O primeiro a ser interrogado
foi Aníbal. Este acedeu, com forçada serenidade pedindo que antes do
mais escrevessem esta observação: "Respondo prazerosamente a todas
as perguntas, observando porém, que se o amor livre estivesse
generalizado, muito sim doloroso passaria a ser não."

Damiani afocinhou no papel. Tomada essa declaração, começou o


interrogatório. A cada resposta, Damiani gatafunhava
apressadamente...

— Admites na mulher a possibilidade de amar nobremente a mais


de um homem ao mesmo tempo?

— Sim. Mas não em todas as mulheres.

— Reconheces nela o direito de assim proceder?


— Sim.

— Reconheces o amor livre como útil ao progresso da moral


socialista e da paz social?

— Sim. Acreditava-o e continuo a acreditar porque, sem isso, o que


seria da liberdade e da igualdade?

— Acreditas que a prática do amor livre faria sofrer a algum dos


participantes?

— Sim.

— Qual deles de preferência?

— Talvez os dois. Assim o creio.

— Acreditas que o companheiro da mulher sofra com a nova


afeição da companheira por outro homem?

— Sim, se a ama verdadeiramente.

— Achas que ele poderia passar por isso com indiferença?

— Sim, se não a ama, se é um grosseirão.

— E com alegria?

— Nunca, talvez. Mas poderá alegrar-se de um certo modo, se está


convicto de fazer obra consolado-na e digna de nossos princípios.

— Poderia desejar, sugerir, favorecer esse amor?

— Esta resposta está compreendida na anterior.


— Agora vamos ao teu caso particular. Quando Éleda te comunicou
o pedido de Cárdias sentiste dor?

— Não.

— Surpresa?

— Não. Na Itália eu já havia manifestado a minha maneira de sentir


e, portanto, já estava preparado.

— Desdém?

— Nunca.

— Humilhação?

— Não.

— Ressentimento para com Cárdias?

— Não ressentimento, mas compaixão.

— Foi vaidade ofendida?

— Não.

— Instinto de propriedade ferido?

— Nunca pensei ser o proprietário de Éleda; isso seria uma afronta


para ela.

— Egoísmo ou desejo de um bem exclusivo?


— Não egoísmo, antes um certo medo de que diminuísse o seu afeto
por mim.

— Temor do ridículo?

— Um pouquinho.

— Ideia de lesa-castidade conjugal?

— Fui eu casto?

— Foi espontâneo o teu consentimento?

— Sim. Absolutamente.

— Foi por coerência aos princípios da liberdade?

— Um pouco por compaixão vendo Cárdias sofrer e um pouco por


coerência.

— Foi compaixão dele que havia tanto tempo vivia sem amor?

— Já respondi.

— Se por acaso se tratasse de outro companheiro, supões que terias


provado as mesmas sensações?

— Não posso precisar. Mas a verdade é que no caso a rmativo teria


sofrido muito mais.

— Se se tivesse tratado de um proletário que não fosse nosso


companheiro?

— A mesma coisa.
— E de um burguês?

— Teria lamentado Éleda e sofrido muito, sem poder a rmar que


nesse caso a tivesse deixado...

— Sofreste muito mais antes de saber Cárdias com Éleda?

— Não.

— A primeira vez?

— Sim.

— Ou qual outra vez?

— Sempre, mais ou menos.

— Choraste?

— Sim.

— Na tua dor havia ressentimento contra Éleda?

— Não.

.— Contra Cárdias? .— Não.

— Tristeza de isolamento?

— Um pouquinho.

— Medo de um desvio no afeto da companheira?

— Conheço su cientemente Éleda para responder não.


— Temor de que Cárdias a tratasse de modo vulgar?

— Não.

— Que a tratasse gentilmente?

— Sim.

— Houve desejo de que ela gozasse de outro afeto siológico e


intelectual?

— Não sei responder.

— Desgosto com isso?

— Se de fato, assim fosse eu não teria desprazer.

— Medo de que ela se te tornasse menos pura?

— Ainda desta vez conheço su cientemente Éleda para responder


não.

— Menos afetuosa?

— Sim.

— Instinto irrazoável e involuntário de egoísmo?

— Sabem todos que atualmente somos egoístas, mas não creio que
o meu desgosto seja produzido pelo egoísmo.

— Contendo a tua dor, sentiste a satisfação de quem faz o bem?

— Por certo.
— Sentiste, embora vagamente, a necessidade de fuga?

— Não fundado, mas por esse motivo só.

— A apreciação dos outros in uiu nos teus sentimentos?

— Desprezei sempre as apreciações, alheias: no entanto, ter-me-ia


desgostado o saber-me escarnecido por imbecis.

— A estima pela tua companheira é sempre a mesma de antes?

— Sim.

— O afeto por ela continua a ser igual, maior ou menor?

— É o mesmo, talvez maiormente sentido.

— A repetição das ausências de tua companheira alterna a tua dor?

— Sim.

— Exaspera, talvez?

— Não.

— São para ti mais dolorosas as ausências breves? · — Não.

— E as ausências longas?

— Sim.

— Seria mais dolorosa a ausência de alguns dias?


— Aí entraria o egoísmo, pois essas ausências longas fariam de
mim um pária do amor, como era Cárdias.

— Sofreste mais vendo a companheira car ao lado de Cárdias?

— A princípio sim.

— Ou vendo-a partir de tua casa para a casa de Cárdias?

— Agora se me tornou indiferente.

— Não seria mais aceitável que a companheira vivesse por sua


própria conta e preferisse a um outro, segundo a sua vontade?

— Sim, para a tranquilidade e a liberdade de todos.

— O fato de Cárdias amá-la causa-te despeito?

— Não.

— Acreditas que o amor livre se generalizará pela rebelião das


mulheres?

— Sim.

— Pelo consentimento dos homens?

— Embora os homens não queiram, quando as mulheres se


rebelarem seriamente o amor livre se dará e todos, depois, carão
contentes.

— Por desinteressada iniciativa dos homens?

— Não. Salvo algumas exceções, que poderão dar o exemplo.


***

O interrogatório de Éleda cou assim registrado:

— Foste educada na moral ortodoxa?

— Sim, até aos vinte anos.

— No primeiro amor da mocidade te sentiste absorvida por um só


afeto?

— Sim.

— No teu segundo amor, que foi mais longo e mais intenso, amaste
a algum outro contemporaneamente ao teu chorado companheiro?

— Não.

— Tiveste alguma nascente simpatia?

— Sim.

— Cultivaste-a?

— Não.

— Cultivá-la parecer-te-ia uma culpa?

— Não.

— Faltou-te oportunidade?
— Sim.

— Procuraste-a?

— Não.

— A tua afeição por L., que foi a mais breve e menos


profundamente sentida, foi exclusiva?

— Sim, até que conheci Anibal. Tive por aqueles tempos outra
simpatia, mas, como se costuma dizer, inocente.

— E a tua afeição por Aníbal foi exclusiva?

— Sim até que conheci Cárdias.

— Há muito tempo que admites a possibilidade de amar-se


simultaneamente a duas pessoas?

— Sim.

— Foste alguma vez ciumenta?

— Algumas vezes, mas os meus ciúmes foram de breve duração.

— Entregaste-te alguma vez sem amor?

— Nunca me entreguei sem simpatia.

— E unicamente por sensualidade?

— Nunca.

— Toleraste alguma vez violências morais?


— Não.

— Surpreendeu-te a declaração de amor de Cárdias?

— Um pouco.

— Surpreendeu-te a forma breve e direta que ele usou?

— Ao contrário, agradou-me mais ainda?

— Prometeste por piedade?

— Um pouco.

— Por simpatia?

— Sim.

— O temor de fazer sofrer a teu companheiro foi verdadeiramente


o único obstáculo?

— O único.

— Sentiste-te por acaso tentada pela ideia de amar a Cárdias, sem


que o teu companheiro soubesse?

— Não.

— Quando lhe contaste o seu pedido exprimiste ao mesmo tempo a


ideia de satisfazê-la? Fizeste-o com serenidade de ânimo?

— Sim.

— Com vergonha?
— Não.

— Sofreste adivinhando o sofrimento do companheiro? Sofreste


por ele?

— Sim.

— Por ti?

— Também por mim.

— Por Cárdias?

— Principalmente por ele.

— Tomaste o seu sofrimento como prova de amor?

— Não sei responder.

— Quando procuraste Cárdias, o consentimento de teu


companheiro era completo?

— Era.

— Precipitaste um pouco os acontecimentos?

— Não.

— Consideraste razoável a dor do teu companheiro?

— Considerei-a como resultado dos preconceitos que, queiramos


ou não, pesam sobre nós.

— Destinados a desaparecer?
— Sim, a desaparecer.

— A conduta de Cárdias perante o teu companheiro te pareceu


correta?

— Sim.

— Foste para Cárdias com a consciência serena?

— Sim.

— Aumentou ele um pouquinho a felicidade de tua vida?

— Sim.

— Tu o amas sensualmente, intelectualmente ou pelo coração?

— Um pouquinho por todos os três modos.

— Tu o amas hoje um pouquinho mais do que no primeiro dia?

— Bem mais.

— Amas mais a Aníbal?

— Sim.

— Esses dois afetos simultâneos te zeram melhor?

— Sim.

— Mais sensual?

— Não.
— Prejudicaram-te a saúde?

— Não.

— A contemporânea multiplicidade de afetos, isto a que chamamos


de amor livre, te parece natural?

— Sim.

— Socialmente útil?

— Acima de tudo, socialmente útil.

— Causar-te-ia desgosto o não poder conhecer a paternidade de um


lho que agora viesses a ter?

— Não.

***

Cárdias também respondeu a esse inquérito.

Fê-lo em documentado folheto, a que deu o nome de "Um episódio


de amor livre na Colônia Cecília." Não cabe, porém, nos moldes desta
reportagem.
VII
MELANCOLIA

Apesar das declarações que zera, Aníbal mudou de conduta. Tornou-


se calado, sombrio, com uma pontinha de descon ança dos mais
íntimos. Ia de manhã para a roça e voltava de noite, quando a
população da Colônia estava recolhida em suas casas, conversando ao
redor do fogo.

Sua atitude com Éleda, que era até então de franca camaradagem,
tornou-se de in nita doçura, uma doçura triste de quem fala com uma
criança doente. Acabou por tratá-la como irmã, talvez como lha. Isso
a ponto de ela o censurar:

— Você está com medo de mim? Ele sacudiu a cabeça desanimado:

— Vocês se amam. Muito!

Um dia Ciccio ao chegar de Palmeira, onde trabalhava na


construção da estrada do governo, com o m de atender às
necessidades mais urgentes da Colônia trouxe algumas cartas da
agência do correio. Uma delas era para Aníbal. O rapaz leu-a, revirou-
a nas mães e mostrou-se muito a ito:

— Minha irmã, que se acha em Buenos Aires, está à morte e me


pede que vá vê-la.

E, contra seus hábitos, contou isso a diversas pessoas. Discutiu-se,


comentou-se.
— Vai então para Buenos Aires?

— Vou. Amanhã deixo vocês.

Éleda assim que cou a sós com ele, interrogou-o:

— E eu?

— Tu cas com Cárdias. Vocês nasceram um para o outro. Poderão


ser muito felizes. É isso o que eu mais desejo.

A viagem foi comunicada a Cárdias, que lamentou a. partida do


companheiro.

— E essa carta... Estás dizendo a verdade? Aníbal olhou para a


distância e não respondeu.

A partida devia ser muito cedo, ao alvorecer, de modo que ele não
apanhasse a soalheira na estrada. Por isso, mais cedo que de costume,
Aníbal e Éleda recolheram-se à sua casa. Mas não dormiram. Ficaram
a conversar sobre o passado. Fizeram-se recomendações muito
íntimas, muito particulares. Que se escreveriam enquanto vivessem
nas suas lembranças. Que não forçariam uma correspondência. E
ainda estavam a dizer essas coisas quando os galos dos caboclos
amiudaram, os passarinhos se puseram a cantar nas árvores.
Ergueram-se, foram ao córrego, mergulharam nas águas frescas. Foi aí
que Cárdias, também os encontrou. Sentados na areia prateada do
córrego, ouvindo o marulho das águas nas pedras e o cantar das aves
nas árvores próximas, conversaram.

— Tu não dormiste, Cárdias?

— Não.
— Nem nós...

Um passarinho esvoaçou sobre as suas cabeças; Éleda fez um


grande esforço para alcançá-lo e como não conseguisse, se pôs a rir.

— A carta que você recebeu não é de Buenos Aires, muito menos de


sua irmã...

— Se assim fosse?

— Seria a fuga, Aníbal!

— E depois?

— Você foge de si mesmo, de nós, da vida...

— Não. A carta é verdadeira, minha irmã me chama e eu atendo à


sua súplica. Mas... se nada disso fosse verdade e eu tivesse de
abandonar a vocês, fá-lo-ia, não pela minha felicidade, mas pela de
vocês, porque vocês se amam. Amam-se muito.

Saíram da água a tremer de frio, vestiram-se e foram tomar o café


com polenta, que Éleda havia preparado. Mudos. Sem uma palavra.
Absorvidos em seu próprio drama.

Dali a pouco, Aníbal vestiu o casaco, botou o chapéu e saiu com a


trouxa de roupa na ponta da vara. Cárdias e Éleda o acompanharam,
muito de perto, tocando nos seus ombros largos e fortes. Chegaram à
estrada que se estendia tortuosa e deserta, por entre bosques de
pinheiros. Não pararam. Aníbal perguntou:

— Vocês até onde vão? Éleda pensou um pouco.


— Até ali...

E foram andando. Quando o sol nasceu, todos os três caminhavam


juntos. Não tinham forças, não tinham coragem de despedir-se. Foi
preciso que Aníbal com seu passo elástico, se distanciasse
propositalmente até se perder numa curva, entre capoeiras altas. No
último instante ainda lhes atirou um beijo nas pontas dos dedos. E eles
o retribuíram da mesma forma.

Só então Éleda e Cárdias regressaram.

Quando chegaram à boca do atalho, descansaram um pouco à


sombra das árvores. E iam beijar-se quando receberam uma vaia que
vinha das copas cerradas. Olharam para cima e viram Gioia a
cavaleiro de um ramo. Já não parecia um ser humano, mas um espírito
da oresta. Cabeludo, barbudo, quase nu, mas alegre como um
homem livre.

Os dois zeram-lhe grande festa e tantas coisas lhe disseram que o


coagiram docemente a integrar-se na coletividade, porque a nal de
contas, o homem é um animal sociável. E ele cou sendo dali por
diante o poeta da Colônia, um poeta que não escrevia versos, mas vivia
em graça, em sonho, em poesia!

***

Nos dias que se seguiram, Éleda andou por entre os casebres, sem
ânimo para nada. Os cabelos despenteados caíam-lhe pelos olhos. A
cabeça inclinada parecia procurar pelo chão uma sombra entre todas
as sombras, dos pinheiros e dos homens. Embalde Cárdias procurou
consolá-la. Mas não pôde. Ele próprio permanecia abstrato, ausente.
Certa noite uma mulher procurou Éleda e, num tom material,
aconselhou-a:

— Você deve "matar" esse Aníbal... Ao que ela respondeu, a sorrir:

— Você já viu matar-se um ausente?


VIII
A INTIMAÇÃO

Uma tarde muito fresca, de atmosfera tão limpa que permitia ver a
planície até o ponto em que os pinheiros tocavam no céu, os homens
da Colônia Cecília voltaram mais cedo do serviço. Chegando ao riacho
arregaçaram as calças e entraram na água até os joelhos, borrifando a
cara e o peito para refrescar a pele tisnada pelo sol. Longe, ouviam-se
os gritos das aves da campina, procurando pouso. Nos caniços das
margens, iniciava-se o diálogo merencório das rãs.

Saindo do riacho, dirigiram-se para os seus ranchos. Só Cárdias


deixou-se car por ali, como desencorajado. A bandeira da Colônia,
que envelhecia no alto do coqueiro, estava inerte e caía a prumo como
trapo esquecido pelas aragens. Sobre as águas ia-se formando, com o
esfriar da tarde, uma neblina alvacenta; ele podia acompanhar com a
vista o curso do regato, seguindo aquela pluma imóvel estendida pelo
campo. E o agrônomo ainda estava a contemplar essa tranquila
paisagem quando um homem procedente de Palmeira apresentou-se
entre os casebres da Colônia:

— Boa-tarde.

— Boa-tarde. Que deseja?

— Venho da parte do delegado e quero falar com o dono.

— Mas aqui não há dono.


— O chefe...

— Também não há chefe.

Os colonos apareceram nas portas dos ranchos e puseram-se a rir


da conversa. O visitante, porém, não gostou daquilo e, tornando a voz
áspera, determinou:

— Pois é com você mesmo. Está intimado a comparecer ainda hoje


perante o sr. delegado de polícia...

— Então eu estou preso?

— Preso, não, contanto que não deixe de ir dar explicações.

— Pois irei daqui a pouco.

— Como é seu nome?

— Giovanni Rossi.

O polícia tomou nota num papel, fez um leve cumprimento e saiu.

Piero pôs-se a rir:

— Eu sempre disse que você era o patrão, o chefe...

Por causa desse comentário foi preciso reunir a Colônia e discutir o


caso; serviu até para esquecer a falta do jantar.

Cárdias já não tinha o que vestir. As calças estavam esgarçadas na


barra e, nas horas solenes em que calçava as velhas botinas,
apresentava um ar ainda mais vencido. A camisa não tinha punhos,
deixando de fora uns braços magros, peludos, enegrecidos pelo
trabalho. A barba rala, tendo crescido de modo desigual, dava-lhe uma
catadura de mendigo. Quanto às lunetas já as havia perdido não se
lembrava onde. Assim mesmo, quis atender à intimação e partiu.
Ficaria preso? Seria deportado? Como se sairia desse primeiro
contacto com as autoridades do país? Atirou o paletó ao ombro e saiu.

O sol já estava a esconder-se; a luz oblíqua, quase deitada, atirava-


lhe uma sombra imensa sobre a campanha deserta. Pássaros fugiam à
sua passagem. E sapos. E sombras alongadas que bem poderiam ser
cobras. As moitas pareciam-lhe cheias de asas e de cicios que
lembravam beijos, de gritinhos assustados e gemidos de rolas, tristes
como saudades. A bolha na, etérea, da luz começava a subir na orla
crespa dos campos.

Noite fechada chegou a Palmeira. Não viu mais do que uma extensa
rua de casebres que terminava no largo da igreja. Caminhando,
observava os interiores humildes através das janelas baixas. Em certo
ponto, parou e dirigiu-se a alguém que estava debruçado sobre a meia-
porta; perguntou onde era a delegacia. Indicaram-na. Para lá se
dirigiu, sendo recebido pelo escrivão, isto é, pela mesma pessoa que o
havia intimado.

Sentia-se tocado pela doçura daquela noite: achou o homenzinho


mais amável. Tão amável que, sem querer, lhe apertou a mão.
Informou-o de que o delegado já havia ido para casa, mas que lá
mesmo o atenderia. E, levando mais longe a boa-vontade,
acompanhou-o até a porta a m de indicar-lhe melhor a residência da
autoridade, no largo, duas casas depois da esquina...

Por essa altura a noite estava clara como dia A atmosfera parecia de
cristal. A lua transparente dominava o casario pobre. Namorados
conversavam nas janelas. Os últimos moleques, algures, brincavam de
"tempo-será." E aquela doçura inesperada, que o assaltara havia
pouco, continuava a derramar-se-lhe pela alma. A nal, era um moço,
um músico, um poeta... As trepadeiras que cobriam os muros
perfumavam a noite, uma noite inesquecível...

Caminhou ao longo do muro e parou diante de um portão aberto.


Diante dele estendia-se o caminho de areia branca, entre árvores
umbrosas. Ao fundo havia manchas de luz. Hesitou; depois entrou. A
umidade das folhagens acariciou-lhe o rosto. Seguiu assim até a velha
casa chata, de uma porta e duas amplas janelas baixas, debilmente
iluminadas. Bateu palmas. Ali mesmo, na sala de visitas uma voz
áspera ordenou:

— Entre!

Obedeceu. No corredor foi tocado por aquela tranquilidade in nita


que parecia irradiar das coisas, como um perfume. Parou diante da
porta lateral. A mesma voz sem timbre mandou-o entrar. Um velhote
magro, de óculos, metido numa roupa caseira, estava estirado na
cadeira de balanço e, sem dar importância à sua presença, afrouxava
um cigarro de palha. Saudou-o timidamente...

Que maravilha! Atrás da autoridade havia um piano!

— É da Colônia?

— Sim senhor.

— Por que é que vocês ainda não se mostraram por aqui? Que
diacho! Não custava nada, era até uma gentileza...

O piano era de Alexandria. Quis ver a marca. O teclado tinha o


desbotamento característico do uso...
— Não falo por vocês. Mas lá há gente que deve compreender essas
coisas. Disseram-me que há mesmo um engenheiro, lósofo,
jornalista... Diga-lhe que, segundo estou informado, a República não
está disposta a manter as concessões que lhe fez a Monarquia. Pelo
menos no que respeita aos impostos... Compreende? O Sr. Hermann
Blumenau é que soube fundar a sua colônia. Era um homem
esquisitão. Não jogava, não bebia e as mulheres (confessava ele em
carta) não lhe custavam nada. E isso por causa da impressão moral e
também para evitar a libertinagem, que é o pior dos vícios que podem
prejudicar a uma colônia nova e lhe deter o desenvolvimento. Ele
sacri cava tudo à sua colônia. Vivia menos do que parcamente. Não
queria dar azo às competições odiosas, mostrando a essa gente que é
possível acomodar-se quando se quer.

Cárdias estava longe daquela sala.

O delegado continuou:

— E dali, ele amava a sua colônia. Desde a chegada e durante


muitos anos importou árvores de muitas espécies, plantas de outros
países; não temia trabalho nem despesas. Mandou buscar videiras das
melhores e mais caras da Argélia, de Bordéus, da Bélgica, da Grécia e
da América do Norte, pois as videiras alemãs não deram o resultado
que se esperava. Chegaram as melhores árvores frutíferas da Europa e
da América... Foi, além de colonizador, um grande botânico. Ora,
quando eu soube que na Colônia Cecília havia um engenheiro
agrônomo... como se chama ele?

— Giovanni Rossi.

— Pensei que íamos ter em Palmeira o milagre de Blumenau.


Cárdias namorava o piano. A sala estava debilmente iluminada. Por
entre ramos via uma lua pálida. A claridade azul descia sobre o
instrumento, diluía-se sobre toda a sala. Era aquela doçura que ele
estava sentindo desde que entrara na cidade. Um jarro abria-se em
rosas, em rosas azuis. Quadros espalhados pelas paredes deviam ter
sido pintados por artistas daltônicos: grandes damas azuis,
camponeses azuis, fustigando bois azuis, aravam campinas azuis;
anjos azuis voavam em céus azuis... E aquela doçura in nita
penetrava até o mais profundo de seu ser. Tudo azul, tudo azul...

O homenzinho continuava a falar:

— E vocês não estão explorando devidamente as terras. Para pagar


os impostos é preciso dinheiro, talvez mais do que vocês possam
dispor de um dia para outro... E já há contribuições atrasadas. Tudo
isso, vai somando, vai crescendo... Não tenho nada com isso, estou
falando nestas coisas em bene ício de vocês. Por que não fazem como
os russo-alemães, os do "mir?" Eles andam sempre em dia com o
governo...

Cárdias acabou simpatizando com o delegado. Como ele, a nal,


estava longe das suas preocupações! Vivia em outro mundo, falava
outra língua, parecia um menino atrapalhado com uma caixinha de
música. E o luar continuava a entrar pela janela, a ungir de azul o
velho piano. Qual seria a marca do instrumento? E inclinou-se um
pouco...

— Sente-se.

O colono olhou em redor e não encontrou outro assento a não ser o


tamborete do piano; sentou-se nele. Nesse instante uma jovem entrou
com a bandeja do café. No Paraná é assim. Ele sentiu-se humilhado,
sem saber por quê. Enquanto era uma "parte" diante do delegado, tudo
ia muito bem. Mas convidavam-no a sentar, a tomar café, uma xícara
azul, na como se fosse feita de ovo de pássaro. Perturbou-se. E
quando colheu a xícara na bandeja e sorveu o precioso licor, pai e lha
compreenderam que ele, o andrajoso, o barbudo, o faminto, não era o
mendigo que parecia. A moça olhou-o com certa curiosidade. Era de
um moreno pálido, cor das teclas do piano; os olhos eram grandes,
azuis, calmos e sonhadores. Pousados sobre ele não mostraram
repulsa, mas uma in nita doçura que o aquecia, que o animava...
Então ela dirigiu-se ao pai, quase em segredo:

— Pergunte se ele toca...

O velho tirou os óculos, limpou-os na aba do paletó de riscas, e,


examinando melhor a Cárdias, acabou por dizer-lhe a rir:

— Minha lha pergunta se o senhor toca piano. Cárdias não


esperou por um convite. O desejo de correr as mãos pelo teclado era
tão forte que, se não lho permitissem, caria doente.

Estendeu as mãos escuras, mas nas. Os dedos não haviam perdido


de todo a agilidade e o instrumento se mostrou dócil, sensível. Um
turbilhão de notas cristalinas jorrou numa alegria, encheu a casa. o
jardim, a praça adormecida. Poderia mesmo tocar alguma coisa?
Hesitou. Não acreditava na ressurreição de seus pobres dedos. O velho
e a lha esperavam alguma coisa* Uma aragem leve agitou as folhas e
as sombras deram baile na janela. A inspiração venceu-lhe o receio.
Atirou as mãos abertas como dois lírios sobre o teclado, apalpando-o.
Acordes graves e profundos se sucederam num ritmo exaltado,
crescendo, subindo, até alcançarem o patético de uma imprecação.
Então a noite parou onde estava; a aragem dormiu. A renda de
sombras fez-se imóvel no quadro da janela. Ali o prelúdio entrou em
declínio; os acordes se espaçaram, as notas entraram de velar-se e
dentro de pouco só havia um queixume de notas miúdas e cristalinas,
como o arquejo de uma altera exausta que procurou escalar o céu e
caiu na terra, tonta de azul.

Da sua alma exilada e triste jorrou uma melodia dolorosa, uma


queixa, uma imprecação dessas que a gente nunca mais esquece. As
notas subiram em cachoeira do piano, precipitaram-se pela janela,
encheram o jardim, casaram-se ao cheiro das madressilvas, à
azulescência do luar, à melancolia da planície, à serenidade do céu;
rolaram no espaço e enterneceram as estrelas. O músico esqueceu-se
de si, dos que o cercavam, da Colônia, da terra, de tudo.

Quando terminou, ouviram-se palmas. Como? Olhou em redor de


si. Havia outras pessoas na sala. Havia vozes no jardim. Havia gente
diante do portão da residência... E quando saiu, pai e lha foram
acompanhá-lo até o portão. O velho apertou-lhe a mão com prazer,
ofereceu-lhe a casa, e pediu que voltasse mais vezes, e a moça, por trás
daquele olhar que era uma carícia, convidava-o também, mas em
silêncio, para que voltasse, para que viesse fazer-se ouvir
novamente...

Em caminho para a Colônia, por trilhos mal desenhados na


campina, cortando as sombras dos pinheiros, ele se pôs a pensar, a
pensar. A nal — dizia com seus botões — a outra classe é mais
ignorante do que ruim. Essa gente realiza o melhor daquilo que lhe foi
ensinado como sendo a moral, a justiça, a honestidade, todas as coisas
nobres e elevadas da vida. Tem ela, porventura, culpa de estar errada?
E estará mesmo errada?

Parou angustiado. O orvalho caía levemente, suavemente sobre a


campina. O silêncio era como perfume; transbordava das taças dos
pinheiros.

Sim, estava errada. Aquela família, que o havia recebido, era a parte
lírica de um drama que descia às contingências de tragédia; aquela
jovem tão linda, tão amável, talvez sofresse, por não ter o direito de
amar ao escolhido de seu coração. Teria de casar com o homem que a
família e a sociedade lhe indicassem para marido. E para sempre,
fosse ele quem fosse. O amor não seria levado em conta, nessa
escravatura sentimental. Talvez viesse a morrer um dia sem ter
conhecido o amor! E as outras? As grilhetas do preconceito? As
incontentadas, as tristes, as desiludidas? E a legião in nita daquelas
que atravessam a vida, solitárias, como perdidos e inúteis tesouros dos
mais elevados sentimentos? As incontáveis, que atravessam as noites
como aquela, sem uma palavra de carinho, sem um beijo de amor?

Sentiu-se mais forte na sua loso a. A Colônia Cecília, para ele, era
um apostolado. Daria por ela tudo, tudo, como estava dando a
mocidade, a glória, o seu quinhão de felicidade sobre a terra. E os seus
passos rmes ressoavam na noite, esmagando as ervas secas, a areia
branca do caminho, as gotas de claridade dos vaga-lumes.
IX
O HOMEM MISTERIOSO

No terreiro que cava entre a Casa do Amor e o grupo de cabanas,


erguia-se uma alta fogueira de ramos secos. O braseiro era vivo e
alegre. As chamas subiam a mais de um metro de altura,
prolongando-se em chuva de centelhas, em volutas de fumaça.
Apreciando esse maravilhoso espetáculo, os colonos caram sentados
às portas de suas casas, ou em bancos arrastados para fora. O pavilhão
central estava muito animado. Havia gente encarapitada nas grades ou
deitada pelo chão.

O regresso de Cárdias despertou interesse. Éleda quis saber o que


lhe havia acontecido. Mas o lósofo estava triste. Não parecia disposto
a responder a todas as perguntas que ela lhe fazia, umas sobre outras.
Sentou-se a uma tripeça que encontrou perto da fogueira e ficou-se a
olhar para as brasas. Éleda, que não se havia conformado com o seu
mutismo, voltou a interrogá-lo:

— Desanimado?

— Um pouco.

— Cansado?

— Não.

— Então por que ca assim?


— Fome...

Puseram-se a rir. Os demais não sabiam do que se tratava e zeram


um berreiro. Cárdias procurou acalmá-los.

— Não se apressem. Dentro em pouco eu lhes prestarei contas da


missão que me foi... imposta.

Ouviram-se palmas. Relanceou a vista em torno. Estava de fato,


diante de uma assembleia. A população da Colônia, por aquela época,
era de trezentas pessoas, aproximadamente. Teve a impressão de que
toda essa gente estava ali, ao redor da fogueira, à espera de sua
palavra. Éleda voltou do casebre trazendo uma caneca de lata, cheia de
café, e uma grossa fatia de polenta, tostada no borralho.

— Onde vocês arranjaram isto?

— Presente de Ciccio e De Paola; eles há muito tempo estão


trabalhando na construção da estrada de rodagem do governo — um
trabalho assassino — e o que ganham entregam à caixa da Colônia.

— Bons companheiros!

Sacudiu a cabeça, alisou os cabelos compridos e, à proporção que


tomava o café com polenta, se pôs a falar:

— A coisa não foi tão má como se temia, nem tão boa como seria
para desejar. Conversei longamente com o delegado. É um
homenzinho liberal a seu modo; lamentou que ainda não tivéssemos
dado à Colônia o desenvolvimento econômico das colônias existentes
por aí afora. Evocou o orescimento de Blumenau, de Joinville, de
Dona Francisca. Teve elogios para o "mir" dos teuto-russos. Está certo
de que nós nos metemos numa iniciativa comercial como as demais.
Aceitou mesmo que estejamos animados de princípios sociais, um
tanto diferentes, dos outros. Não se conforma, porém, com a escassa
produção agrícola da Colônia.

O Conde Colombo entalou o monóculo:

— Chamou a você unicamente para isso? O engenheiro Grillo:

— Ele, a nal de contas, não tem nada que ver com os nossos
problemas internos.

E o camarada Damiani, professor de latim e grego:

— Seremos então obrigados a apresentar um relatório ao governo


sobre o maior ou menor rendimento da Colônia?

O jornalista Lorenzini mostrou-se zangado:

— Para mim a velha Monarquia era bem mais liberal do que a


jovem República.

Cárdias engolindo o último gole de café e entregando a caneca a


Éleda, que havia cado de pé diante dele, se resolveu de fato, a falar:

— Camaradas, vocês precipitaram as suas conclusões. Eu ainda não


contei tudo. A atitude do delegado, pelo menos do ponto de vista da
organização atual, tem a sua razão de ser. Tanto mais que ele não
praticou nenhuma violência; chamou apenas ao "chefe da Colônia..."

Do lado da Casa do Amor registrou-se uma algazarra. Espocaram


risadas, silvaram assobios.

Cárdias deixou passar a refrega e continuou.


—...quis o acaso que o "chefe da Colônia", como ele disse, fosse eu,
não por me haver arrogado ou mesmo aceitado tal posto, que me
encheria de ridículo, mas porque fui eu a pessoa a quem o policial
entregou o papel a que ele denominou de "intimação." Nova algazarra
para a banda dos casebres. Uma mulher pede a palavra. Outras,
porém, procuraram dissuadi-la, pelo menos enquanto Cárdias não
tivesse, inteiramente, dado conta da sua excursão à terra inimiga.
Restabelecido o silêncio, ele recomeçou o relatório:

— O homem que, por sinal, me pareceu simpático, informou-me de


que sobre a Colônia pesa uma dívida de impostos atrasados. Com o
advento da República, que não reconhece a concessão de terras,
surgiram os impostos. Neste momento já orça por... 850$000. E os
juros vão crescendo. No m do ano scal, estarão dobrados. E irão por
aí até devorarem o patrimônio coletivo. Sinto-me, pois, satisfeito de
vê-los aqui reunidos e tão interessados no nosso destino. Aproveito
essa boa disposição para interrogar aos camaradas sobre o que
devemos fazer, a m de salvar a Colônia das exigências da Coletoria.
Aí vai a pergunta: que devemos fazer?

Sucedeu-se o silêncio; a assembleia procurava a solução. Dois


segundos depois, Taravis saiu da noite e levantou a mão aberta,
avisando que ia falar. Era um homem alto, magro, tisnado, felpudo, de
olhos inquietos e vorazes. Estava sem camisa, mostrando um torso
esquelético onde se poderiam contar as costelas. A única vestimenta
era uma calça de riscado, arregaçada para cima dos joelhos,
mostrando pernas ósseas e felpudas. Apoiava-se, como de costume, a
um bastão cheio de nós, que mais parecia uma clava. Uns chamavam-
no de Troglodita, outros de Iucanaã. Falava em tom profético, com a
cabeça inclinada para trás, os olhos cerrados, erguendo
frequentemente a mão. Poderia servir de modelo à gura de um
apóstolo. Seria, talvez, o apóstolo da Violência. Nos meios, julgavam-
no atacado de "argentinismo." Era a mania de citar, a propósito de
tudo, a e ciência dos camaradas argentinos. "Ah! Se fosse em Buenos
Aires...". "Lá sim, é que as coisas am no..."

A verdade é que Taravis conseguira ser uma gura misteriosa até


mesmo na Colônia Cecília, onde não se pediam papéis a ninguém,
nem se consultava o passaporte dos novos aderentes. Dizia-se
albanês, mas os outros albaneses da Colônia negavam-se a reconhecê-
lo como tal. Quando Taravis fazia questão disso, o que era de pouca
importância numa aglomeração de homens que se diziam "sem Deus,
sem Pátria e sem Lei", eles davam de ombros, não queriam gastar
palavras com assunto de tão pouca importância. Exprimia-se numa
língua estranha, que tanto podia ser catalão como romaico, provençal
ou mirandês. Falava de uma existência em Buenos Aires, vida de
atorrante, ao relento, dormindo nos bancos das praças públicas,
debaixo das pontes ou ainda nas embarcações encalhadas no tijuco
das dársenas. Contava a história sombria dos "grupos" organizados
para isto ou para aquilo, dos assaltos á mão armada, dos golpes de
audácia em proveito da causa. A causa para ele era a Causa, com C
maiúsculo. Inculcava um passado de grandes lutas. Dava a entender
que lá longe, a polícia pusera a prêmio a sua cabeça...

Taravis chegara à Colônia numa noite qualquer; dormira no


Pavilhão e, no dia seguinte, sem maiores formalidades, se apresentara
aos companheiros. Entre ele e Cárdias havia um abismo. Cárdias
falava a linguagem do Amor, Taravis, a do ódio. Naquele momento,
iluminado pela claridade inquieta das labaredas, parecia um homem
fugido das cavernas. Com a palavra, limitou-se a rugir:

— Nem um tostão para a burguesia!


Uns aprovaram, outros discordaram. Surgiram discussões. Dentro
do Pavilhão, os jovens objetaram:

— A burguesia tem por si a lei!

Taravis correu para a grade baixa do Pavilhão e gritou para dentro:

— Mas nós temos a força!

Alguns se aproximaram dele, perguntando-lhe qual era a força a


que aludia.

— A luta de classes!

— Mas eles têm soldados! »

— Que quer isso dizer? Nós temos a solidariedade obreira do


Paraná, do Brasil, da América, do Mundo! Se nos molestarem aqui, o
proletariado internacional cruzará os braços.

Olhava em redor, para ver os que duvidavam. Foi então que se ouviu
aquela palavra fatídica:

— Argentinismo! Argentinismo!

A discussão generalizou-se, azedou. Quando os ânimos serenaram,


Cárdias ergueu a voz macia:

— Há uma medida a tomar. Não será rigorosamente revolucionária,


mas nós não temos dois caminhos para escolher. A medida que eu
proponho é produzir. Iniciar imediatamente uma vasta plantação de
milho, vendê-la e pagar os impostos. Entregamos essa operação de
caráter nanceiro ao camarada Taravis, que é entre nós um dos mais
devotados. Cada um de nós deve assumir o compromisso de, a
começar de amanhã, tomar a enxada e tocar para o campo, a m de
obter a soma que nos é exigida.

Taravis levantou novamente a mão:

— E, enquanto a terra não produz, como viveremos na Colônia?


Proponho seja criado um grupo de expropriação...

Muitas vozes se ergueram, num protesto. Surgiram discussões,


altercações. Cinco minutos depois, um rapazola trepou na grade do
Pavilhão e declarou:

— Já conversei com 19 companheiros, todos da minha idade, mais


ou menos. Sacri ício por sacri ício. Enquanto vocês vão para a roça e
plantam e colhem, nós iremos para o serviço da estrada de rodagem
do governo, ganhar o nosso salário, para com ele fazer face às
despesas mais urgentes da coletividade. Serve?

Cárdias cou comovido com aquelas palavras. Levantou-se da


tripeça e abriu os braços, num ímpeto de abraçar a todos aqueles
jovens, mas não pôde dizer nada porque a emoção lhe havia dado um
nó na garganta.

Sua sombra, porém, ergueu-se sobre o terreiro, estendeu imensos


braços inquietos e, desse modo, abraçou a quantos ali se encontravam.

***

 
Aproveitaram aquela reunião para assentar os pormenores da obra
que cou com o nome de "campanha pela salvação da Colônia."
Surgiram numerosas di culdades. Cárdias, agrônomo, achou que a
época era propícia para a plantação de milho. Mas faltava a semente.
E, por outro lado, escasseava ferramenta. Discutiu-se muito. A reunião
chegaria até o alvorecer se a solução de tais di culdades não se tivesse
apresentado de um modo singelo. O conde e a condessa, que se
mantinham afastados do grupo, vieram em seu socorro:

— Nós ainda dispomos de uma joia de família que poderá ser


empenhada para a compra de semente e enxadas. Depois da colheita,
a Colônia poderá resgatar essa joia, que representa muito, muito, para
minha mulher.

Cárdias recusou:

— Não aprovo essa solução. Ou a Colônia tem elementos para viver


por si mesma, ou deve ser dissolvida.

Nova discussão. Meia hora depois, Taravis. que não era tão ortodoxo
como parecia, achou preferível ceder um pouco a perder tudo. Os
demais se calaram diante de tais palavras. A condessa desacolchetou a
gola do vestido e tirou do pescoço pesada corrente e medalhão de ouro.
Com os polegares, destacou o oval de porcelana, onde se via o retrato
de uma menina, e entregou o ouro a Taravis.

A Colombo estava comovidíssima. Abria a mão daquela lembrança


por um desejo superior de ser útil à coletividade. Éleda aproximou-se
e, tomando-lhe as mãos, perguntou-lhe:

— Que foi?

Ela mal pôde responder:


— La bambina!

O conde amparou-a e, num passo vagaroso, dizendo-lhe palavras


ternas, consoladoras, conduziu-a ao rancho.

Taravis cou de pé, onde estava. Sopesou os objetos de ouro,


mostrando-os aos companheiros.

— Avalio em seiscentos mil réis; no penhor, dará folgadamente


duzentos. É de quanto precisamos.

E seus olhos oblíquos, muito vivos, se enterneceram na


contemplação daquele punhado de ouro, ainda mais belo à claridade
da fogueira.

No dia seguinte, foi à cidade e de lá voltou na boleia de um carretão


carregado. Trazia vinte sacos de milho para o plantio e uma dúzia de
enxadas de boa marca, com cabos de caviúna.

Dois dias depois, ao primeiro arrepio da manhã observou-se


animadora atividade na Colônia. Homens e mulheres faziam
grazinada no riacho, atirando água uns nos outros. No terreiro, foi
servido um farto café, com gordas fatias de polenta, da véspera,
tostadas no borralho. Terminada a colação, os homens maduros da
Colônia tomaram a ferramenta e se encaminharam para a roça, ainda
orvalhada, com uma evaporação alvadia que o vento ia diluindo. Até
mesmo Piero — o abúlico — botou às costas um saco de espigas e
acompanhou os demais. Ao mesmo tempo, os 19 moços tomaram o
caminho oposto, que ia dar no estradão, e se afastaram alegres, ao som
de um velho hino:

 
"... e pártano cantando

colla speranza in cor..."

Uma voz, de dentro do mato, respondeu com o estribilho:

"Eppur la nostra idea

Non é che idea d'amor!"

Quem estaria ali no capão? Um deles lembrou-se. Devia ser o Gioia.

E todos gritavam com alegria:

— Gioia! Gioia!
X
O TRABALHO

Todas as manhãs era aquela animação. Algumas mulheres cavam na


Colônia, entregues aos trabalhos caseiros. Uma forneava a broa, outra
areava os caldeirões de ferro à beira do riacho. Os alimentos eram
preparados em duas dessas vasilhas, penduradas numa vara, sobre
forquilhas. Embaixo, ardia um fogo bravo, de nós de pinho, juntados
pelo campo. A mesa grande da Casa do Amor tinha sido arrastada
para o terreiro; era ali que as mulheres atiravam a polenta, talhando-a
em fatias com um barbante. A pitança que a acompanhava, como de
praxe, era servida numa frigideira de cobre, de meio metro de
diâmetro. O pão, cozido pela manhã, era leve, alvadio e tinha a casca
pururuca.

A hora do almoço, os trabalhadores iam chegando. Guardavam as


enxadas na Casa do Amor e iam para o riacho, a m de se lavarem.
Cárdias tinha a paixão do sol. Saindo da água, deitava-se sobre a relva,
quase nu, e ali cava até o m do almoço. Só depois que todos haviam
feito o prato e se retirado para casa, o pavilhão ou alguma macega
fresca e cheirosa, é que ele ia servir-se. Não comia carne nem bebia
álcool. Contentava-se com muito pouco: um naco de pão, um pouco de
polenta e um pé de alface. Nada mais. No entanto, era forte, talvez o
mais sadio da Colônia. A rmava nunca ter cado doente.

À tarde, a cena se repetia com algumas variantes. Voltavam cedo,


ainda com o sol e, depois da refeição cada um deles se entregava à
ocupação favorita. O Conde Colombo, o Professor Grillo e outros, que
eram médicos, perdiam-se em largas conversas sobre o clima, os
hábitos da população brasileira e alemã do Volga, as endemias da
região. Não raro, um deles se metia pelos campos e quando regressava
à Colônia era com a patrona atulhada de plantas, ores e frutos
silvestres. O resto da semana era empregado no estudo das suas
propriedades terapêuticas. O conde criava preás, à falta de cobaias»
para as suas experiências. O Professor Parodi, de Gênova, um grande
nome, interessara-se pelo caso Gioia. Regressando à Colônia o antigo
guarda-livros teve de suportar a curiosidade; do velho cientista.

Como foi contado, Gioia, num acesso de neurastenia, ou como


queriam alguns, num gesto revolucionário de volta à natureza, tinha
passado muito tempo ao relento, quase nu, comendo ervas e frutas
encontradas: ao acaso da invejável vagabundagem. E ele, que era um
cinquentão balofo, arruinado pela vida sedentária de trinta anos de
escritório, tinha voltado do mato com: aspecto bem diferente: magro,
enxuto, tisnado, um brilho novo nos olhos, na pele e nos cabelos. Uma
autêntica obra de rejuvenescimento. O Professor Parodi gastava horas
inteiras diante dele, a mendigar-lhe respostas.

— Mas você comia tudo o que encontrava?

— Não. Primeiro provava, para saber o gosto.

— Claro. E essas ervas e frutas, algumas vezes-, não lhe faziam


mal?

— Os juás me davam dor de barriga...

— Mas de que é que você gostava mais?

— Dos mamões que os caboclos me permitiam colher; ou do pão


com salame que os trabalhadores da conserva me ofereciam, para me
verem de perto.

Não era isso o que o professor queria saber; ele esperava que Gioia,
no seu desvairo, tivesse encontrado uma planta que, devidamente
mastigada, restituísse a força e a vaidade dos verdes anos. Mas Gioia
não era o caso que ele sonhava.

O Professor Damiani, da Universidade de Bruxelas, lia o seu


Horácio, deitado de bruços, à sombra de um pinheiro.

Taravis entregava-se à escrita da Colônia. Para matar o tempo,


organizara também o arquivo. Em grossos cadernos, ia colando as
referências dos jornais. Umas eram favoráveis, outras contrárias. Em
certa, caixa, devidamente etiquetados, reunia os balanços mensais, a
correspondência trocada com diversas personalidades, os
documentos relativos à doação das terras. Trazia tudo fechado debaixo
de chaves e olhava com descon ança os que, movidos por qualquer
interesse, ou simples curiosidade, manifestavam o desejo de consultar
tais papéis.

Cárdias dedicava-se a outro passatempo. Transportara os bancos do


pavilhão para um bosque próximo e, ali, reunia as crianças da Colônia.
Não raro, lhos de caboclos da vizinhança também apareciam,
movidos pela curiosidade, ou para brincarem com os meninos da sua
idade. Ficavam sentados, muito quietinhos, com os olhos vivos e
inteligentes na conversa de Cárdias, que dava as aulas em "brasileiro."

Entrava-se em setembro.

Por esse tempo, as tardes eram muito bonitas. O sol morria na


distância, atirando ao in nito a sombra dos pinheiros. O gado mugia
na planície. Os passarinhos procuravam as árvores umbrosas, para se
aninharem e pela relva fresca zinia a música níssima dos grilos. O ar
cheirava a ores de ingá e a resinas.

Cárdias colhia uma or e mostrando-a aos discípulos se punha a


decompô-la nas suas partes essenciais:

— Vocês estão vendo isto? Dentro de cada or há uma verdadeira


o cina. Elas servem para fabricar, para reproduzir as plantas de que
nasceram. O trabalho da or de laranjeira, por exemplo, é reproduzir
a laranjeira de que nasceu. A or, geralmente, compõe-se de duas
partes, uma externa, representada pelo cálice e pela corola, que vocês
aqui estão vendo, e outra interna, aqui dentro do mesmo cálice, da
mesma corola... O cálice é constituído por estas folhinhas verdes que
se chamam sépalas e a corola, a parte mais bonita da or, por estas
folhas róseas, azuis, ou amarelas, a que chamamos pétalas... O cálice e
a corola servem, quase sempre, para defender os estames e o ovário. O
estame é este ozinho que se ergue no centro da corola. Na ponta, ele
tem uma cabecinha pequenina, como vocês podem ver, chamada
antera, contendo um pó quase sempre dourado, chamado pólen. O
ovário, por assim dizer, é o centro do cálice e da corola. Quando chega
o tempo da reprodução, o pólen cai no ovário e aí, encontrando os
óvulos, unem-se formando um grânulo maior, que é a semente...

Por essa altura a lição já se havia tornado tão interessante que a


"gente grande" da Colônia vinha juntar-se às crianças. E Cárdias, que
acima de tudo era apóstolo, ia pouco a pouco se esquecendo das
crianças para falar aos adultos. Dentro em breve, estava voltado para
os amigos e dizia-lhes:

— Então as plantas fanerogâmicas — aquelas cujos sexos não são


distinguíveis — a promiscuidade é a lei e a monogamia a exceção. O
casto lírio fecha na nívea corola cinco estames ao redor de um só
pistilo, e a própria rainha das ores recebe ao redor do único
genulário um regimento de masculinos que representa muitas vezes o
múltiplo de cinco. Mas se desejais considerar os estames de uma or
como os diversos órgãos sexuais de um único masculino, pensai nas
numerosas espécies de plantas que dão ores masculinas em alguns
indivíduos e femininas em outros. Pensai nas coníferas dos Alpes, nas
palmas dos trópicos. São nuvens de polens provenientes de milhares
de masculinos que o vento transporta, rodopiando, para longe, a m
de depositar nas ores femininas que os esperam. Os grânulos de
pólen da mesma antera quem sabe sobre quantos pistilos descem?
Quem sabe dizer por quantas anteras um gineceu é fecundado?
Quando diversas variedades de plantas pertencentes a uma mesma
espécie são semeadas próximas, observam-se numerosos
abastardamentos. Suas ores negam a fábula da monogamia e da
delidade conjugai. Mesmo entre os animais a monogamia é uma
exceção, quase toda ela resumida à ordem dos pássaros, onde a
incubação e os cuidados com os lhotes a tornam necessária. Na
história primitiva da humanidade, encontramos o matriarcado. Muito
mais tarde, e sob a in uência de razões econômicas e políticas, vem o
patriarcado poligâmico e, por último, o patriarcado monogâmico. Mas
algumas escolas losó cas, seitas religiosas e rebeliões individuais
têm a rmado em todos os tempos, até nós, o amor livre como um
protesto da natureza e da razão...

Pouco a pouco, a Colônia inteira vinha para o bosque ouvir-lhe as


lições.

Às crianças, sentadinhas nos bancos, deixavam de compreender-


lhe a linguagem, tão-singela no começo.

E a noite ia caindo sobre a planície, sobre os pinheirais, sobre o


sertão.
De longe vinha um saudoso bimbalhar de sinos.

E um mugir de reses.

E o canto dos moços que trabalhavam na rodovia do governo e que,


ao anoitecer, regressavam à Colônia.

***

Na margem oposta do riacho, estendia-se uma planície rasa que ia


terminar em pinheirais escuros; pela manhã eram levemente azuis e à
tarde pareciam empoados de purpurina. Até lá se estendiam as terras
da Colônia. Apenas uma parte estava cercada de mourões com um o
de arame; o restante permanecia em aberto e não raro servia de pasto
aos animais da vizinhança.

Foi nessa planície que se fez a plantação de milho. Dava gosto


observar a atividade daquela gente. O próprio Piero tinha deixado de
ser preguiçoso. Gioia, que era o lirismo em carne e osso, acabara por
afeiçoar-se ao cabo de enxada e, como era um repositório de anedotas,
di quelle piú carine, não perdia a oportunidade de divertir os
companheiros. Cárdias tinha por ele particular estima e designava-o
como "o homem que encontrou a si mesmo."

En m, todos trabalhavam, dando para a obra o mais que podiam.


Tal fenômeno tinha sido previsto pelos autores das mais risonhas
utopias, entretanto não havia sido provado. O homem é
profundamente solidário. O passado mostra-nos, nas calamidades
públicas, populações inteiras, com riscos da própria vida,
sacri cando-se pelo bem comum. Nas próprias sociedades burguesas,
há pro ssões que, apesar de tudo, parecem animadas desse
sentimento. O mineiro que passa a vida no fundo dos poços, entre a
ameaça do grisu e de um desabamento, não foge à sua pro ssão. O
mesmo se dá com os lixeiros, que removem os resíduos das cidades e
que vivem num ambiente mortífero. Os salários em tais pro ssões não
correspondem, nem de longe, aos perigos a que se expõem. Se eles, de
fato, quisessem mudar de vida, fá-lo-iam facilmente, pois qualquer
outra modesta pro ssão lhes asseguraria o escasso salário. No entanto
não a abandonam. À roda deles a morte faz ciranda. E eles, rmes.
Esses pobres homens não sabem que estão realizando obra superior,
de solidariedade humana. Nas sociedades livres, então, esse
sentimento assume grandiosas proporções. Um simples apelo em prol
da coletividade faz levantar todos os homens como se se tratasse de
um só. Foi o que se deu na Colônia Cecília.

A planície fronteira aos ranchos, arrepiada de ervas daninhas, foi


pouco a pouco revolvida por cerca de quarenta enxadas que se
revezavam por turnos. A mancha negra do amanho alargava-se
incessantemente. A segunda turma ia batendo os torrões com o olho
da ferramenta, amontoando a erva seca, aplainando c campo. A
terceira abria os sulcos retilíneos, substituía penosamente a falta dos
arados puxados por parelhas de bovinos, como se via nas empresas
ricas. Todas as manhãs, os colonos, entre o banho no riacho e a caneca
de café com o naco de broa, cavam-se a olhar para aquela mancha
negra sobre a qual bailavam evaporações alvacentas. Não eram
homens comuns. No fundo de cada um deles havia um poeta ou um
apóstolo. Muitos sonhavam em voz alta.

— Com o excedente da colheita, construiremos um teatro, um


teatro diferente, para os nossos lhos.
— Mais do que um teatro, um instituto em que todas as artes sejam
amorosamente cultivadas. Naquelas evaporações eu vejo bailarinas
dançando.

— E uma biblioteca.

— E uma piscina.

— E um campo de esportes.

— E um pomar.

— E um jardim.

Cárdias achou que para uma primavera que se preza, aquela


macega bravia se apresentava monótona e incolor. Prometeu mandar
vir sementes de ores e plantas coloridas. Um dia a planície deixaria
de ser parda; cobrir-se-ia de extensas manchas róseas, azuis,
amarelas, brancas, como imensa palheta de pintor. Era tão fácil
realizar isso...

Taravis sorria mostrando os dentes pontudos.

— Vocês estão sonhando. Tudo isso custa caro. É preciso muito


dinheiro

A palavra dinheiro enchia-lhe a boca, iluminava-lhe os olhos


esbraseados.

A plantação foi rápida e terminou numa festa, uma pobre festa que
os reuniu a todos ao calor da mesma fogueira. Assaram batatas no
borralho e tomaram mate à moda do sul. Foram médicos da Colônia
que tiveram a ideia de adotar o mate. A princípio a bebida não agradou
muito. Somente Taravis, que viera da Argentina, e alguns outros se
entregaram aos prazeres do chimarrão. Depois, como o mate, em
pequenos jacas de taquara, casse mais barato que o café, o uso se foi
generalizando. Gioia, enamorado da vida simples, fez-se logo
apóstolo da bomba e da cuia. Levava para o serviço os petrechos e,
enquanto trabalhava, a chaleira fervia na itacuruba. De hora em hora,
largava a enxada, batia as mãos para tirar a terra, e, deliciado, se
punha a chupar o chimarrão. De longe, o Professor Parodi, espiava-o
com o rabinho do olho.

Cárdias vivia deslumbrado por tudo que o cercava. Sua simpatia


pelo caboclo era notória. Estes procuravam-no frequentemente para
consultar sobre a maneira de combater determinadas pragas. O
agrônomo e o matuto, parecidos no jeito, na vestimenta sumária e no
chapéu barato, cavam de cócoras no caminho e, pitando,
conversavam horas esquecidas.

Daí o carinho com que seu nome era pronunciado nos ranchos de
algumas regiões do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
XI
A COLHEITA

Durante meses a colônia assistiu, esperançosa, à transformação


daquela terra negra em milharal. As sementes nasceram de um dia
para outro. Era como se tivesse chovido azinhavre. Depois, as tenras
plantinhas foram se desenvolvendo, deitando folhas compridas,
tornando-se pé de milho. E cresceram. A princípio, davam pelo joelho
dos colonos; depois lhes alcançaram a cintura. Por último, só se viam
os chapéus dos homens e os lenços das mulheres que transitavam
pelos carreiros. Com o tempo deitaram pendão, intumesceram,
formaram as espigas, as quais, por sua vez, granularam e entraram de
secar.

Iniciou-se a colheita. As espigas, durante uma semana inteira,


foram transportadas para a Casa do Amor, transformada em tulha.
Cárdias tomava providências contra os ratos e os gorgulhos. Por outro
lado, Taravis andava numa dobadura entre a Colônia e o comercie de
Palmeira. Levava amostras, procurava os negociantes, discutia preços
por carro de espigas, fazia as contas das despesas, dos lucros. Certa
manhã, a Colônia recebeu a visita do coletor estadual, com uma
intimação, dessa vez de caráter scal, marcando data para o
pagamento dos impostos. Era um sujeito amável. Vendo o milho
amontoado no pavilhão, fez cálculos rápidos e cou contente, pois a
Colônia estava em condições de quitar-se com o governo.
Desbarretou-se e lá se foi.
As coisas estavam nesse pé quando Éleda, que nos últimos tempos
se mostrava arredia, deixou-se car em casa. No dia seguinte a mesma
coisa. Alta noite, Cárdias foi bater à porta do Conde Colombo.

— Que há?

— Éleda sente-se mal.

O conde e a condessa correram para lá. De manhã, quando os


colonos se levantaram para o trabalho, ouviram choro de criança nova
na casa de Cárdias. Entreolharam-se. Ninguém lhes tinha falado
nisso... Durante a noite Éleda dera à luz uma linda menina, a quem
Cárdias atribuirá o nome de Hebe, deusa da mocidade, do amor e da
alegria...

Cárdias não se importou mais com a Colônia, o milho, as mil


preocupações da véspera. Sentou-se à beira da cama e ali cou, em
adoração. De quando em quando acordava a lha para a ver chorar...
Depois do almoço, houve uma romaria de mulheres ao seu rancho. A
Cappellaro, a Gattai, a De Paola foram visitar mãe e lha. Quem tinha
um palmo de lã e uma fruta madura a fazer o seu presente. Cárdias
não cabia em si. Falava só, conversava com as árvores, sorria
compreensiva-mente para as ores, os pássaros, as nuvens.

Taravis, entretanto, se afobava na entrega do milho. Apareceu no


terreiro o carretão do comprador, sendo recebido com entusiasmo por
toda a Colônia. Daí a pouco regressou carregado de espigas. Fez mais
uma, duas, três, quatro viagens, até que o pavilhão se esvaziou. Na
última viagem embarcou Taravis, levando consigo um saco cheio de
objetos angulosos.

— Você vai levar os livros?


— Claro. É para fazer as contas.

Isso se deu à boca da noite. O carretão partiu, perdendo-se entre as


duas árvores da estrada. As crianças varreram a palha caída no
terreiro, ajuntaram-na a um canto e puseram fogo. As chamas se
elevaram, iluminando o pavilhão vazio e os ranchos debilmente
alumiados pelos candeeiros de querosene. Como o dia era de festa,
alguns colonos se reuniram à luz daquela fogueira; trouxeram
bandolim, sanfona, até mesmo uma gaita de fole, que ainda não se
tinha visto, e o baile começou. Todas as conversas começaram assim:

— Amanhã, quando Taravis voltar...

Taravis, porém, não voltou no dia seguinte. Estava, naturalmente,


ocupado com os negócios da Colônia. Os compradores, poderiam,
talvez, ter preferido o milho debulhado e ele teve de recorrer às
máquinas das colônias ricas. No dia seguinte, também não apareceu.
Que teria acontecido? Di culdades surgidas à última hora. A
burguesia é assim mesmo. Vão ver que alguém está embaraçando a
venda do milho para prejudicar a Colônia Cecília. Mas a porta do
rancho de Taravis estava aberta. Seria isso possível? Todos sabiam que
ele era o único a trancar a porta; andava com a chave no bolso. Quem
sabe se já voltara, tarde da noite, e adoecera? Um homem decidido
entrou no rancho. Estava tudo revolvido, como depois de mudança.
Nenhuma peça de roupa. Na tarimba, só se viam as esteiras
esfarrapadas. Nem ao menos o cobertor vermelho, de barras pretas,
que, nas manhãs de frio, o tesoureiro atirava pelas costas, como se fora
um manto. E o arquivo? Tinham desaparecido os livros grossos dos
assentamento?, os amarrados de cartas, os cadernos de recortes de
jornais. O homem curioso chamou os outros. Só então a suspeita
surgiu entre os colonos.
— Teria fugido com o dinheiro da colheita?

— Pode ser.

Foram contar a Cárdias. Ele estava a mil léguas de tal ideia. Não
acreditou, nem permitiu que se pensasse mal do camarada. Mas no dia
seguinte, o coletor voltou. Diante da hesitação das pessoas com quem
falava, a sua amabilidade da semana anterior desaparecera. Tornou-se
seco, descon ado. E saiu com esta ameaça:

— Se vocês até amanhã não pagarem os impostos devidos à


Fazenda, entrego a cobrança ao Judiciário.

Então, desde aquele momento, a espera tornou-se ansiosa. Durante


o dia inteiro, na boca do caminho, interrogando a estrada que
ondulava pela planície, caram alguns colonos. Seria possível que o
companheiro não voltasse? À noite os moços, fatigados pelo trabalho
na rodovia, resolveram dar um passeio a Palmeira, para ver se, por
acaso, encontravam o desaparecido. Mas foi inútil. Regressaram alta
madrugada e como na casa de Cárdias ainda houvesse claridade,
bateram levemente à janela. Ele apareceu, com um livro na mão,
marcando com o indicador a página em que havia interrompido a
leitura.

— Boa-noite rapazes.

— Boa-noite, Cárdias.

— Que há de novo?

— Nem sinal do homem. Deve ter fugido com o arquivo e o dinheiro


da colheita.
— Parece. Vamos ver até amanhã.

Uma voz aventurou:

— E se apresentássemos queixa à polícia?

Cárdias sobressaltou-se.

— Nunca. Nem que ele tivesse, de fato furtado o dinheiro da


Colônia. Nem que ele se encontrasse estabelecido em Palmeira, a
desa ar-nos.

— Nesse caso?

— Tudo perdido. Os homens ainda não estão na altura de lutar pela


própria liberdade. A culpa não é deles, é da organização que os criou e
educou.

Os rapazes se retiraram.

Fratello, o cachorro da Colônia, acuava alguma coisa ao longe; devia


ser um gambá.

Cárdias ali cou, debruçado na janela, a pitar e a re etir sobre os


acontecimentos. Assim viu clarear o dia. O primeiro homem que
apareceu no terreiro, perguntou-lhe:

— Hoje não se trabalha?

Ele sorriu tristemente.

— Para quê?
Sim, para quê? A humanidade, em boa parte, ainda está satisfeita
com a vida que leva. Criaram-na para escrava; a liberdade amedronta-
a. Por isso é a primeira a tomar o partido do forte contra o fraco, do
verdugo contra a vítima. E a culpa de quem é? De nós mesmos que, há
milênios, abdicamos de tudo, aceitamos o que nos fazem e o que nos
dão. Maravilhoso seria que a humanidade não fosse assim, que os
Taravis não procedessem assim. São os Taravis que mantêm a
organização de fome e de opressão em que vivem todos os Taravis.

O homem recolheu-se de novo ao seu rancho.

Alguns dias depois, vieram uns meirinhos; entraram sem pedir


licença e, isentos de formalidades, puseram-se a arrolar as
propriedades da Colônia, terras, ranchos, ferramentas. As reuniões se
multiplicavam na Casa de Amor. Não se chegava a acordo. O essencial
era pagar os impostos e não havia dinheiro para isso. Muitos partiram.
Penduravam a trouxinha na vara e descalços, magoando os pés nos
torrões da estrada lá se iam... Os rapazes que trabalhavam na rodovia
do governo foram morar com os demais operários da estrada, em
Palmeira. O conde e a condessa mudaram-se para Curitiba, onde ele
abriu consultório. Os professores de grego e latim seguiram o
exemplo, arranjaram meios de ganhar a vida com suas lições. Na
Colônia só caram Cárdias, Éleda e mais alguns colonos, que não
tinham para onde ir.

Sobre eles, palpitava ainda, no alto da única palmeira, um farrapo


negro e vermelho; era o que restava da Colônia.

Se o lósofo italiano alimentasse alguma ambição poderia ter


cado rico, sem desviar-se da burguesa honestidade. A verdade é que,
segundo informam os contemporâneos, aquelas terras tinham sido
concedidas a ele, pessoalmente, para nelas estabelecer uma colônia, de
acordo com as suas convicções. Isto é, em linguagem corrente, as
terras eram suas. Qualquer negociante de Palmeira lhe adiantaria, em
seu nome, o dinheiro necessário para pagar os impostos e desenvolver
a fazenda, sim a sua fazenda, que a Cecília, poderia ser transformada
numa imensa e rica fazenda...

Mas ele não quis.


XII
O DRAMA

Durante o ano que se seguiu se completou o desmantelamento da


Colônia. Algumas famílias, impossibilitadas de se retirarem para
outras regiões do Paraná, ali foram cando. Pouco a pouco,
adaptaram-se às novas condições. Construíram ranchos separados,
cercaram os terrenos de que necessitavam para plantações de milho,
horta e galinheiro. Ninguém se opôs a isso, pois a preocupação do
governo, nos anos que se seguiram à Lei Áurea, foi aumentar a
corrente imigratória e xar no país os camponeses europeus. Com o
tempo, aquelas famílias deveriam alargar as cercas, apossando-se,
legalmente, de extensas datas de terra.

Cárdias não tomou nenhuma providência para conservação da


propriedade. Nunca demonstrou resquícios de ambição. Nunca
aspirou a ser fazendeiro. O que ele havia desejado — sacri cando anos
de trabalho, expondo-se à crítica de muita gente — era a realização da
sua utopia. Essa havia malogrado lamentavelmente. Foi para ele um
período amargo.

Dispunha de profundas amizades na Itália. Enrico Ferri sentia por


ele viva admiração; Leônidas Bissolati, que chegaria a ser ministro,
era-lhe mais do que um companheiro, um irmão. Poderia, pois, ter
voltado à Itália, com a companheira e a lha. Por outro lado, em toda a
América do Sul a sua experiência tinha despertado o interesse dos
governos, partidos, associações, jornais, personalidades de relevo.
Conta-se que Battle y Ordoñez, ex-presidente do Uruguai, quando
exilado, fez uma demorada visita à Colônia Cecília, tendo ali, nos dias
áureos, tomado o chimarrão de Gioia. Mas as crônicas não falam dessa
visita. Embora. Bastaria ele manifestar o mais leve desejo e o governo
do Estado, ou mesmo o governo federal, tê-lo-iam chamado para o seu
serviço, pois o Dr. Giovanni Rossi já havia rmado entre nós a
reputação de notável agrônomo. Preferiu car ali, no seu rancho,
diante da Casa do Amor, transformada em Casa dos Morcegos. Aquele
quadro triste era um pedaço de sua mocidade. Nenhum recanto do
mundo lhe ofereceria tão profundas recordações.

Pôs a sua ciência ao serviço dos agricultores da região. Chamavam-


no de Palmeira, de Santa Bárbara, até de Curitiba. Os teuto-russos
quiseram atraí-lo para a sua coletividade. Cárdias recusou o convite.
Sua vida, com a mulher e a lha, roçava pela miséria. Tiravam da
terra, cultivando-a, quase tudo o que necessitavam. O resto era obtido
com o pouco que Éleda vendia às pessoas da vizinhança. O agrônomo
não cobrava nada pelos seus serviços. E os caboclos tinham-no sempre
à sua disposição, fosse de dia ou de noite. Sua presença não alarmava a
ninguém. Era natural como a luz, como a água. Vestia-se como toda
gente da roça: calças de riscado, camisa de chita, chapéu velho, muito
surrado, que já havia perdido a forma. Não raro, fazia grandes
caminhadas descalço, principalmente porque esse era o seu gosto de
enamorado da natureza. Éleda, por sua vez, tinha se dado bem com os
vestidos daquela chita orada que os mascates, de quando em quando,
iam vender por sítios e sitiocas. A menina era um encanto. Começava
a andar. Papagueava as primeiras palavras. E todos se sentiam felizes
naquela pobreza de franciscanos da Porciúncula. Foi ali que ele
escreveu o seu livrinho.

Assim mesmo foram intimados a abandonar as terras. Aconteceu,


porém, que Éleda deu à luz a segunda lha. Chamaram-na Janina.
Dirigindo-se às autoridades, foi-lhe concedido o prazo necessário
para o restabelecimento da esposa e a obtenção de meios com que
zessem a sua mudança. Cárdias escreveu diversas cartas, pedindo
colocação. Começou a esperar.

Um dia chegou do Rio Grande do Sul proposta tentadora:


ofereciam-lhe lugar de professor da Escola Superior de Agricultura,
de Taquari. Aceitou. Quando ele e a mulher deliberaram partir, as
lhas caram doentes. Foi um golpe terrível. Não compreendia isso.
Como é que crianças podem car doentes? E como o mal se agravasse,
chamou com urgência o Conde Colombo. Este chegou uma noite de
Curitiba e, depois de examinar as duas meninas, abraçou tristemente
o amigo... Crupe.

Impossível descrever a dor daquele homem que era todo coração.


Na hora pálida do alvorecer, as duas coitadinhas fecharam os olhos,
morreram. A angústia foi para ele tão funda que — diversas pessoas
dão testemunho — desvairou-se. E, nesse desvairo, permaneceu por
algum tempo. Em Palmeira corre ainda uma versão, registrada por
Alexandre Cerchiai, segundo a qual Cárdias obteve da bondade do Dr.
Colombo embalsamasse as lhinhas mortas. Feito isso, recolheu-as a
duas urnas de madeira, que mais pareciam caixas de violino, e
colocou-as no seu quarto, como os religiosos fazem com os santos.
Diante daquelas duas ores humanas, emurchecidas pela morte, ele
cava horas inteiras, em adoração.

Logo depois foi publicada a sua nomeação para professor. Com a


notícia, chegou-lhe a importância necessária para a viagem. Não se
demorou em partir. As terras da antiga Colônia eram ansiosamente
esperadas pelos pretendentes. Ademais, aquilo já não o prendia. Tinha
sofrido ali de todo jeito. Sua alma se partira como um cristal níssimo,
sombra daquelas duas árvores, à beira daquele riacho de águas
mansas, com um ingazeiro coberto de ores alvas e perfumadas...
 

***

No ano seguinte, vamos encontrá-lo em Taquari. Morava numa


casinha baixa, no caminho da Escola. Já não era, porém, o rancho da
Colônia. Tinha sala de visitas, janela com vidraças, jardinzinho bem
tratado. A sala ostentava mobília austríaca, estantes carregadas de
livros, ores sobre os consolos. No canto da sala, coberto por uma
toalha de crivo, com um bocal cheio de rosas, o grande piano alemão.

Cárdias, com a viagem, o trabalho na Escola, os cursos, se havia


reposto, em parte, da crise moral. Mas já não era o mesmo. Vivia
calado, pensativo, por vezes abstrato. Embalde a mulher o tratava
como a uma criança doente, inventando cuidados e atenções. De pouco
valia a solicitude. Sua tristeza era profunda, contagiante,
irremediável.

Assim que chegaram a Taquari, o agrônomo e a mulher


conquistaram a simpatia daquela hospitaleira gente. No entanto, a
vida de ambos era retraída. Por mais que lhes zessem convites, que
instassem para visitas e passeios, os dois passavam a vida sozinhos,
em casa. As pessoas que tratavam com ambos sabiam perfeitamente
que aquilo não era por mal-entendida vaidade do professor; a rmou-
se, ao contrário, que o seu retraimento só poderia ser levado em conta
de excessiva modéstia. E a curiosidade dos vizinhos ainda cou mais
aguçada ao constatar que, todas as noites, havia música naquela casa
pobre, perdida no velho caminho da Escola. Que seria?

Certa madrugada, duas vizinhas que voltavam do baile, viram a


janela iluminada, ouviram um planger de piano que mais parecia de
órgão. A curiosidade é má conselheira. Aproximaram-se da janela e,
através da vidraça, espiaram para dentro. O professor estava sentado
ao piano, como num êxtase. Diante dele, sobre o instrumento, havia
duas caixas de violino com duas bonecas louras, pálidas, tão pálidas
que causaram arrepios às duas curiosas. Não, aquilo não eram
bonecas, eram crianças mortas...

E Cárdias continuou, diante dos sarcófagos das lhas,


improvisando ao piano composições que eram queixas, profundas
como soluços, dolentes como rezas. E assim, ele na terra, as lhas no
céu, conversavam acerca do mistério azul, faiscante de estrelas,
daquela noite sobre os pampas.
XIII
EPÍLOGO

Neste ponto a nossa personagem se desdobra: Cárdias, o lósofo, o


sonhador, o poeta, o pioneiro da Colônia Cecília, morre. Era, seu lugar
ca o Dr. Giovanni Rossi, agrônomo, escritor, pai de família, uma das
personalidades estrangeiras mais interessantes do Brasil dos ns do
século passado. Falemos, pois do Dr. Giovanni Rossi.

Dali por diante, mercê da solicitude da suave Éleda, a sua tormenta


foi amainando, amainando. Do passado só lhe cou uma saudade que
andava esparsa por tudo. Ele a encontrava nos livros, nas expressões
caseiras, nos objetos de uso. A propósito de qualquer coisa, no meio da
mais franca alegria, ele se calava, entristecia, os olhos se lhe
marejavam de lágrimas. Fora tocado pela irmã invisível, a saudade.
Uma vez, ao abrir a gaveta da velha cômoda, quedou-se imóvel para
logo sufocar-se de soluços que ninguém ouviu, nem mesmo Éleda. É
que ele tinha sentido um perfume velho; naquela gaveta estava
guardado o resto da alfazema que a parteira da roça tinha queimado
num pires, na noite do nascimento de Janina.

E os anos foram passando. Em 1895, Éleda lhe deu uma menina; em


1897, outra. E o pai, tendo fundido todos os amores em dois amores,
rejuvenesceu, alegrou-se, encarou de frente a vida. E venceu. Em 1900,
por ocasião do cinquentenário de Blumenau, escreveu uma página
literária, que é um grito de entusiasmo por aquele pedaço de nossa
terra.
Foi dos primeiros propagandistas da silvicultura, a rmando que,
onde se abatesse uma árvore, deveria ser plantada uma dúzia. Pugnou
pela plantação da amoreira e criação do bicho da seda. Escreveu
contra a devastação das matas e condenou as queimadas. Em 1905, foi
nomeado diretor da Estação Agrícola de Santa Catarina, em Rio dos
Cedros, município de Blumenau, e aí fez os primeiros estudos sobre a
praga que empobrecia os plantadores de fumo. Ainda mais, dirigiu-se
ao seu amigo Bissolati, então no apogeu político, e por seu intermédio
obteve que o governo italiano iniciasse a importação do tabaco do sul
do Brasil- Infelizmente, naquele tempo, a nossa produção ainda não
era de molde a satisfazer ao mercado europeu; a iniciativa não foi
adiante, mas a Regia italiana forneceu todas as indicações que
facilitassem, de futuro, tal comércio.

Nos últimos meses desse ano deixou a direção da Estação Agrícola


de Rio dos Cedros e regressou à terra natal, onde havia recebido a
incumbência de fundar e dirigir o "Vivaio Cooperativo delia Liguria."

Noticiando a sua partida, a "Revista Agrícola" abre o número de


janeiro de 1906 com estas palavras: "A nossa revista, podemos dizer,
está sem armas para combater: deixou-nos o eminente Dr. Giovanni
Rossi. O nosso ilustre amigo foi para a Itália, com sua exma. família e,
está nos parecendo, não voltará ao nosso Estado." A notícia prosseguia
no mesmo tom de amizade e de admiração.

Voltando à pátria, depois de quinze anos de Brasil, onde sonhou,


amou e lutou, ele levou consigo, como lembrança, o cabo da enxada
com que trabalhou na Colônia Cecília. Ia cheio de saudades porque
contam, os velhos amigos e se comprova pela leitura de sua vasta
correspondência, ele tinha pelo Brasil uma profunda e sincera afeição.
Em 1905, data da partida. Éleda era uma beleza fanada, pálida, com os
primeiros cabelos brancos. O companheiro repetia, enternecido, que
ela era a velha mais bonita deste mundo... As lhas estavam,
respectivamente, com 10 e 7 anos. Eram duas lindas gaúchas, louras e
de olhos verdes. O pai a rmava que não tinha perdido nenhuma lha.
Eram as mesmas. As que morreram em Palmeira nasceram em
Taquari. Ele as reconhecia perfeitamente, e olho de pai não se
engana...

Na Itália, ocupando altos cargos, não se esqueceu do Brasil;


publicou artigos e folhetos restabelecendo a verdade, por vezes
deformada, sobre nossa terra e nossa gente. Em 1939, pouco antes da
presente guerra, a família inteira ainda estava viva: O Dr. Giovanni
Rossi, então com seus 83 anos, ainda tomava belos banhos de sol e
fazia longas caminhadas a pé, como era seu costume; Éleda estava
branquinha, um tanto curva, o que ela por faceirice disfarçava com um
grande lenço vermelho cruzado sobre o colo. Seus olhos, porém,
estavam moços. Ainda brilhavam com toda a luminosidade dos céus
do Brasil! E as gauchinhas? Ah! Essas, tiveram um belo futuro.
Estavam grisalhas. A mais velha, depois de um belo curso, formara-se,
era doutora, professora de uma Universidade. A outra, casara-se cedo,
tinha duas lhas e a sua grande ambição era, um dia, ser chamada
brasileiramente de — vovó...

Assim passou pelo Brasil de ontem uma rajada de sonho e de


idealismo. Era um sonho velho como o mundo, mas que
espaçadamente oresce, desabrocha ao sol do sentimento e da
inteligência, a sua maravilhosa or vermelha.

**

 
E a Colônia Cecília?

Desapareceu:

Em seu lugar está uma tapera. Alexandre Cerchiai que lá esteve, há


alguns anos, escreveu uma carta que é uma lâmina de aço. Contou-nos
que, ali, "o espírito morre antes do corpo." Os velhos aceitaram a
organização milenar e fumam tranquilas cachimbadas à porta de suas
casas. As crianças, lhas de caboclos, italianos e alemães do Volga, são
de uma beleza sem par. Andam descalças e trazem um laço azul nos
cabelos de ouro.

Mas do sonho anarquista nada resta. O governo imperial teve razão


quando con ou na voracidade da terra. O sonho morreu; o colono
vive, trabalha, paga o sco e, para matar o tempo, guarda moedas de
prata num velho pé-de-meia.

É um lugar como os outros.

Nada lembra a passagem do profeta.

O sonho não sobreviveu ao madeiramento da Casa do Amor.

Nem mesmo às ores daquele ingazeiro que pendia sobre as águas e


embalsamava a brisa da tarde, uma brisa que vinha do longe, dos
pinheirais azuis, manchados de ouro pela purpurina do sol...

 
NOTAS

Meu intuito inicial foi traduzir o pequeno trabalho "Un


episódio d'amore libero nella Colônia Cecília", escrito e vivido
pelo Dr. Giovanni Rossi que, para o caso, usou seu
pseudônimo de Cárdias. O assunto, porém, me interessou de
tal maneira que pus de parte as páginas do lósofo e tratei de
obter novos dados, a m de esclarecer a amargurada
existência da Colônia. Depois, pintando paisagens,
acentuando caracteres, comentando situações, acabei por me
encontrar diante de obra minha, escrita sobre a narração do
ilustre agrônomo, há mais de cinquenta anos. Faço esta
ressalva, não porque pretenda louvores que não me caibam,
mas para que não sejam atribuídas ao fundador da Colônia
Cecília as minhas de ciências. Fique, pois, entendido que o
ouro aqui existente é do escritor italiano; a obra de novelista
será minha, e nela, como se faz em peças de ourivesaria,
inscrevo o nome do lavrante.

***

Em 1932, o nome da Colônia Cecília foi lembrado pelos


"Quaderni delia Liberta" que, por essa época, eram publicados
em São Paulo. No número 2 da aludida publicação foi
reeditado "Un episódio d'amore libero nella Colônia Cecilia",
contado pelo Dr. Giovanni Rossi, sob o pseudônimo literário
de Cárdias, com uma abertura escrita por Alexandre Cerchiai,
onde eram igualmente citados os trechos mais interessantes
do relatório elaborado, em 1893, pelo mesmo Cárdias, e
publicado a expensas do semanário "Sempre Avanti", de
Livorno, e reproduzido, em 1902, pela "Protesta Umana", de
Chicago. Outro manancial de informações para os estudiosos é
o grosso volume publicado em Zurique, no ano de 1897, por A.
Sen emen, e no qual se encontram as cartas, noticias,
relatórios e polêmicas de Cárdias sobre a Colônia Cecília. Mas
esse volume é, ao que parece, igualmente inencontrável. Muito
principalmente nos dias que correm. No número 5 dos
"Quaderni" de São Paulo, publicação a que nos referimos
linhas acima, encontra-se também uma carta de Alexandre
Cerchiai. O escritor e jornalista que tantos anos residiu em São
Paulo, onde morreu, se sentiu tentado pelo assunto, foi ao
Paraná, dirigiu-se às localidades de Santa Bárbara e Palmeira
e ai pôde apreciar — com uma pontinha de amargura — o que
restava da famosa colônia, em 1932, isto é, quase meio século
depois de sua fundação.

Com essas e outras, embora escassas, informações, não


resistimos ao desejo de evocar a curiosa tentativa encorajada
pelo nosso imperador. Não tentamos descrever a acidentada
história desse empreendimento de lósofos e poetas, ela já
está escrita, embora seja di ícil, talvez impossível, encontrá-
la. Cárdias, que era jornalista e escritor de primeira água,
escreveu-a melhor do que ninguém, com o sangue de seu
próprio generoso coração. Procuramos, no entanto, contar aos
possíveis leitores destas páginas, como o seu sonho pôde ser
transplantado e conseguiu orir, embora efemeramente,
naquele tempo em que nós recebíamos da formosa Península,
além de ótimos trabalhadores para os campos, homens de
alma inquieta que renunciavam aos bens materiais para
fazerem qualquer coisa em prol dos destinos da humanidade.
Eram lósofos, poetas, sonhadores de um mundo melhor.
Muitos deles combateram conosco, lado a lado, para a
grandeza que em parte conseguimos. ' Nesse número estão,
entre outros, Libero Badaró e Giuseppe Garibaldi.

Na esperança de acrescentar algumas informações às


conhecidas, escrevi diversas cartas a descendentes das
famílias pioneiras da Colônia Cecília, que ainda os há por ai, a
prefeitos paranaenses e a colegas de imprensa capazes de me
prestarem esclarecimentos; no entanto, essas cartas, talvez
por de ciência de endereço, não alcançaram o resultado que
esperei. Entre os poucos que me auxiliaram com o que sabiam,
quero registrar aqui o nome do Sr. Francisco De Paola,
residente nesta capital; do meu amigo Comendador Francisco
Petinatti, que me falou das relações do então jovem Cárdias
com Carlos Gomes, aluno de seu parente Professor Rossi,
quando ambos viviam em Milão. A escritora Maura de Sena
Pereira, de Florianópolis, me pôs em contacto com o Sr.
Emmembergo Pellizzetti, de Rio do Sul, Santa Catarina, amigo
pessoal de Cárdias, que me forneceu interessantíssimo
material, constituído de lembranças do lósofo, já velho, aqui
e na Itália.

***

Brício de Abreu, diretor do "Dom Casmurro", do Rio de


Janeiro, publicou nesse jornal, em data de 18 de outubro de
1941, uma brilhante crônica da qual destacamos:

"En m, cheguei ao meu caro François Coppée e justamente


aos exemplares raríssimos de "Mon Franc Parler", que
Theophile Gautier e Georges D'Esparbés chamaram de "obras-
primas da crônica do século." Leitura dos meus 20 anos! Que
saudades! Atirei-me para um divã, disposto a recordar
aquelas magní cas crônicas do Paris de 1890.

Logo de início, no artigo "Les Femmes et l'Anarchie", datada


de 23 de fevereiro de 1890, encontrei uma das mais curiosas
notícias que já tive sobre o Brasil.

"Par une lettre insérée dans le dernier numero de la


"Revolte", diz Coppée — que me tombe, par hasard, sous les
yeux, — j'apprends qu'il existe au Brésil, dans la province de
Paraná, une colonie d'anarchistes! et la lecture de cette lettre
m'a vivement interéssé.

Quelques hardis compagnons, dégoutés du vieux monde,


mais désespérant sans doute de le detruire ou de le
transformer par les moyens révolutionnaires, une poignée de
ces desespérés qu'on appelle en Allemagne "Europamude", ont
traversé 1'Atlantique et tâchent de vivre la-bas selon leurs
príncipes, en toute liberté, sans loi ni réglement, sans Dieu ni
maitre. Bravo!

..................................................................................
..................................
Et ils sont partis, pleins de courage, les émigrants. Le Brésil
leur a cédé, comme a tous les colons, un terrain sur un plateau,
a neuf cenls métres d'altitude; et ils y on fondé la colonie
Cecília, un village de vingt-deux baraques, crânement baptisé
Anarchie, ou s'en est ni de 1'impôt, du ser-vice militaire, de
toutes les corvées sociales, ou chacun tra-vaille selon ses
forces, pour le bien de tous et non pour un humiliant salaire,
ou Ia fraternité n'est pas un mot, oú tout est en commun!"

A carta publicada pela "Revolte" de Paris, é assinada pelo


"compagnon" Cappellaro, segundo nos a rma Coppée.

Como se pode crer, a "serpente dos mares", naquela época,


ainda não existia para os jornais parisienses... e a imaginação
se voltava para esse longínquo Brasil.

Em todo caso, por um desencargo de consciência, procurei


na Biblioteca Nacional os jornais de 1890 e, nos pouquíssimos
que folheei, nada me foi dado deparar nesse sentido. Em um
dos mapas mais minuciosos e modernos do Paraná procurei o
nome de "Cecília", como vila, aldeia ou cidade e... nada
encontrei também. Deduzi que o tal Cappellaro era um
"bobard" que o nosso Coppée engoliu inteirinho. Mas, a sua
crônica é deliciosa, hei de traduzi-la e publicá-la aqui em
"Dom Casmurro", como um documentário do "desarroi" da
imprensa francesa daquela época. O que é certo, é que,
segundo nos relata Coppée e ainda segundo a carta do próprio
Cappellaro, a tal colônia não vingou; ia tudo mal por falta de
mulheres. As poucas que haviam seguido o "son homme" ao
Brasil, apesar de "anarquistas", não queriam ser "bem comum"
da colônia. Aliás, a carta publicada pelo tornai "Revolte" de
Paris, era justamente fazendo um apelo às "companheiras que
ainda existissem no velho continente, para que "embarcassem
para o Paraná, a m de ajudarem a vida e o progresso da ideia."
Isso serviu a Coppée para uma série de considerações
curiosíssimas sobre o "amor da mulher anarquista", que é igual
ao amor de todas as mulheres.

Mas, o que é certo, é que ninguém sabe notícias, no Brasil,


da tal colônia, nem da tal cidade de Cecília, fundada pelos
"anarquistas", com a boa-vontade do nosso governo daquela
época!

***

Ontem quase tive um desmaio! Fiquei atarantado durante


muito tempo... e não era para menos!... Vocês verão! ... Ao
abrir a 2.a edição de "O Globo", de ontem, 4.a feira 15 de
outubro, deparo com uma notícia, cujo título era — "Morreu
como um santo." A nota era sobre o falecimento de um frade
que viveu como um verdadeiro santo. Tinha o nome que
adotou na ordem, mas o verdadeiro era Mário Cappellaro e...
nascera em Cecília, no Paraná, em 1890, diz o vespertino
carioca!!!

No jornal indicado pelo cronista apenas encontramos a


notícia da morte de um frade, sob o titulo de "Morreu em
cheiro de santidade." É a seguinte:
"Na avançada idade de 71 anos faleceu ontem, no convento
de Santo Antônio, frei Burchardo Sasse, da Ordem dos
Mínimos de São Francisco de Assis.

Nascido na Alemanha, em 24 de novembro de 1870,


ingressou no noviciado da Ordem em 1889. No ano de 1894
veio para a Bahia e, no ano seguinte, recebeu ali as ordens
sacerdotais. Homem de grande resistência ísica e de palavra
fácil, dedicou-se à pregação das Santas Missões, percorrendo,
nesse caráter, vários Estados da União. Em 1931, enfermo,
abandonou as missões, depois de ter realizado 50 dessas
peregrinações apostólicas.

Em 1931, quando festejou as suas bodas de ouro sacerdotais,


jubilou-se. Cada vez mais dominado pela moléstia, o
venerando franciscano recolheu-se ao convento de Santo
Antônio, onde ontem a morte o surpreendeu, cercado das
preces de seus irmãos de hábito e de regra.

Hoje, às 9 horas, foi celebrada missa de "Réquiem", saindo


em seguida o corpo para a necrópole de São João Batista, onde
foi sepultado.

Frei Burchardo, que desaparece em odor de santidade, deixa


impressa uma coletânea de Exercícios de Santo Inácio."

Será a essa que se refere o cronista? Nesse caso não passa de


uma "blague" do ilustre jornalista carioca. Um frade alemão, de
71 anos, nascido na Colônia Cecília!

***
 

Em 1940, escrevi à poetisa Da. Maura de Sena Pereira, em


Florianópolis, pedindo-lhe colhesse informações sobre os
últimos anos da cidade de Cárdias. Essa escritora,
amavelmente, se pôs em contacto com o Sr. José Ferreira da
Silva, prefeito de Blumenau, que lhe escreveu a seguinte carta:

"Exma. Sra. — Acuso o recebimento de seu cartão. Demorei


em respondê-lo porque quis me informar perfeitamente sobre
o Dr. Rossi. A respeito desse médico, ninguém melhor do que o
Dr. Emmembergo Pellizzetti, de Rio do Sul, poderá dar
notícias, pois privou com ele vários anos. Mando-lhe, junto,
uma carta que recebi daquele senhor, em resposta a um pedido
de informações. Caso V. Exa. desejar outras noticias, o Dr.
Pellizzetti informará com prazer."

A carta a que se refere o Sr. Prefeito de Blumenau é a


seguinte:

"Rio do Sul (S. Catarina) 24 de novembro de 1940. —


Prezado amigo José Ferreira. — Venho satisfazer ao seu
pedido. Vivi com o Dr. Rossi os 3 primeiros anos deste século;
era considerado como membro da família, seu auxiliar nos
trabalhos (no Rio dos Cedros.) Em 1904, o Dr. Rossi foi dirigir
a Estação Agronômica de Coqueiro, que substituirá a do Rio
dos Cedros.

Em 1907 (se bem me lembro) o Dr. Rossi foi para a Itália e aí


ganhava a sua vida escrevendo nas revistas de agronomia, e
creio mesmo que fundou um viveiro de árvores frutíferas. Em
1923, por ocasião de minha viagem à Itália, fui visitá-lo em
Pisa. Mantive correspondência com ele até 1936; depois,
devido à minha precária saúde, deixei de lhe escrever e
somente remeti uma carta no princípio deste ano. Arrebentou
a guerra e nada mais sei.

Se vive ainda, deve ter a idade de 84-85 anos...

Conservo aqui muitas de suas "notas" agrícolas, que


costumava remeter-me; amava muito o Brasil e sempre queria
ser informado sobre a nossa vida e progresso.

Como bem sabe, ele nunca foi prefeito de Blumenau. Se


posso ser útil para dar informações mais interessantes sobre o
Dr. Rossi (seu modo de pensar, sua vida, seus costumes) estou
aqui ao seu dispor. No caso de que se venha a publicar alguma
coisa sobre a "Colônia Cecília", desejo ser informado. Abraços
do velho amigo — E. Pellizzetti.

Nota — Tenho também uma fotogra a do Dr. Rossi, de


1935."

***

Em princípios de novembro de 1941, o Sr. Pellizzetti, que é


um homem culto, amigo dos lósofos e poetas, passou por São
Paulo e aqui me procurou. Nas nossas palestras, como se
poderá imaginar, falamos muito de Cárdias e da sua Colônia
Cecília. As lembranças do meu amável informante, muito
contribuíram para a evocação da gura de Cárdias, dos seus
companheiros, da vida da colônia e dos seus principais
acontecimentos. A todos quantos me auxiliaram nesta obra de
exumação histórica, os meus agradecimentos. Ofereço-a aos
meus amigos trabalhadores italianos do Brasil: é a luminosa
or de espírito que seus antepassados trouxeram da
Península, nas caixas de ferramentas com que, tão
proveitosamente, colaboraram no nosso engrandecimento
econômico.

***

Nos ns de 1904, foi fundada a Sociedade Catarinense de


Agricultura, em cuja diretoria guravam os seguintes nomes;
Pr. Gustavo Lebon Régis, Coronel Antônio Pereira da Silva
Oliveira, Dr. João Carlos Pereira Leite, alferes-aluno Flávio
Queirós Nascimento, José Gomes da Silva Jardim e
farmacêutico Raulino J. Adolfo Horn. Essa sociedade publicou
uma bela revista cujo primeiro número apareceu a 1.° de
janeiro, tendo como diretor o Dr. Giovanni Rossi. Do seu
programa, esta promessa: "A revista manterá uma secção
dedicada exclusivamente ao ensino agrícola, cando esta a
cargo do ilustrado Dr. Giovanni Rossi, Diretor da Estação
Agronômica do Estado, auxiliado por eminentes homens de
ciência que prometeram a sua colaboração."

Tivemos em mãos exemplares dessa revista. Sob todos os


aspectos é primorosa. Não sabemos de melhor publicação
particular com o mesmo m, em todo o país, naquele tempo.
O número de janeiro de 1906 abria com esta notícia:

"DR. GIOVANNI OSSI — A nossa Revista, podemos dizer,


está sem armas para o combate; deixou-nos o eminente Dr.
Giovanni Rossi. O nosso ilustre amigo foi para a Itália com sua
exma. família e, está nos parecendo, não voltará mais ao nosso
Estado. A "Revista Agrícola" lamenta sinceramente a ausência
do seu Diretor e, desejando render uma homenagem a este
homem de ciência, ao mesmo tempo que presta um serviço à
lavoura catarinense, vai publicar, em edições sucessivas, os
trechos mais interessantes dos relatórios apresentados por ele
ao Governo do Estado durante o tempo em que foi diretor da
Estação Agronômica. Não encontrará o leitor, no que vai ler,
frases bonitas, bem buriladas, mas encontrará ensinamentos
valiosos, fruto de pacientes pesquisas e de experiências
continuadas."

O primeiro trabalho refere-se à moléstia do fumo, que então


se havia tornado um problema para vários Estados. Do
comentário da revista depreende-se que o seu estudo foi "o
primeiro trabalho em ordem cronológica" sobre tal matéria.

***

 
Na Itália, o Dr. Giovanni Rossi continuou a ser um grande
amigo do Brasil. As pessoas com quem conversamos a seu
respeito, falam das suas frequentes cartas, cheias de
referências elogiosas à nossa gente. No que se refere à
agricultura, então, ele perguntava sempre pela maneira como
havíamos resolvido este ou aquele problema, elogiando nossos
cientistas e administradores.

Temos em mão um trabalho muito interessante. É o folheto


intitulado "Agricultura primitiva negli Stati meridionali del
Brasile." Foi publicado em Florença, no ano de 1908, no
"Stabilimento Tipográ co dei Minorenni Corrigendi." O nome
do autor é seguido das suas qualidades: Diretor do Viveiro
Cooperativo da Ligúria, que me informam ter sido por ele
fundado, e professor da Escola Superior de Agronomia, de
Taquari, Rio Grande do Sul, e Diretor da Estação Agrária do
Estado de Santa Catarina. Como se vê, ele não esquecia o
Brasil, tanto para lhe ser útil em suas publicações, como
também para citar os cargos que aqui exerceu no inicio de sua
carreira.

***

Em 1900, quando se comemorava a fundação de Blumenau,


o agrônomo italiano escreveu esta página que, pelo estilo,
concepção e conhecimentos que revela deveria gurar entre os
mais altos gritos de entusiasmo e de admiração que o Brasil
tem despertado em alma estrangeira:

Ó
"Ó Blumenau, recanto gentil do mundo descoberto por
Cabral, eu desejaria ser lósofo, artista e poeta para entender
e cantar a tua glória. O teu céu límpido, azul e profundo canta
hinos de paz e de alegria. Mas algumas vezes é brumoso e
velado, como a pobre alma humana. Nas tardes de verão
in ama-se em um oceano de calor, de luz e de força sideral,
terror do viandante, mas sublime doador de vida à ora
opulenta; depois se cobre de espessas nuvens e desaba a chuva,
entre fulgores de relâmpagos e estrondos de raios. E, nas
noites serenas, as estrelas cintilam como em outros céus
nunca vi e, mais do que em nenhum lugar, pesa sobre nosso
pensamento a visão do in nito.

Se o teu verão é ardente e chuvoso, o teu inverno é enxuto e


tépido, como uma primavera da Itália. Tão doce que a videira,
apenas perdidas as folhas, os brotos já repontam, túrgidos,
como mamilos de púbere precoce, desejosa de amor. Os teus
montes são majestosos com seu esqueleto de granito e seu
manto soberbo de orestas virgens, perenemente toucadas
com todas as inimagináveis tonalidades do verde. Os teus
vales são férteis, banhados pelos a uentes do largo e pitoresco
Itajaí, que te beija, e ao mesmo tempo te ameaça, e algumas
vezes te invade, amigo in el e caprichoso, ó gentil cidade de
Blumenau! Os teus bosques são uma maravilha para o artista e
o estudioso. O cus doliaria aí se expande solene, carregado de
bromélias, de orquídeas, de begônias e de cáctus; a bougainville
se adorna de brácteas violáceas; a euterpe edulis abre no alto os
seus elegantes para-sóis, enquanto o astrocarium espinhoso e o
útil geomoma se confundem, na miúda multidão vegetal, com a
brunsfelsia de grandes ores cerúleas, com a helicônia, de amplas
folhas lustrosas e rubra haste oral, com o ginograma, o
polipodium, o adiantum e todos os nos juncos exuosos. Os teus
bosques são ainda preciosos tesouros pelas madeiras que
escondem, pelo húmus que acumulam, pelas fontes que
conservam. Tenha piedade deles a bárbara foice do colono!

Nos teus bosques, à rica variedade da vida vegetal,


corresponde uma variedade igualmente rica da vida animal;
as industriosas larvas que se transformam em crisálidas de
ouro, ou que urdem casulos estranhos dos quais sairão
gigantescas borboletas de vivas cores; os grandes repteis,
inócuos ou venenosos; os pássaros maravilhosos pela
plumagem, como os colibris, ou estranhos pelo grito, como a
araponga; os marsupiais, como a raposa; os ungulados, como o
tapir e o catete; os desdentados, como o tatu; os roedores,
como a paca e a cotia; os carnívoros como a onça e o tigre; os
primatas, como os macacos.

As margens dos teus rios veem orir o ingazeiro, que ca


como coberto de neve, cuias vagens são caras às crianças pela
doçura das bagas: e são embalsamadas pelo perfume das
brancas e delicadas ores do hedichium coronarium, a zingiberácea
que oresce nas serras da Europa. Os teus campos compensam
a fé do trabalhador com os produtos mais variados, do arroz
ao açúcar, do vinho ao café. Nos teus vergéis cintilam ao sol as
laranjas e maduram os enormes cachos da Musa paradisíaca.
Os teus pastos, ó Suíça de tórrido sol, são ricos de vacas de
leite, que a antiga origem holandesa recorda no seu tipo.

O' Blumenau! O fado quer que o teu nome germânico te


anuncie caríssima a Flora. E de tuas ores são enredadas as
casas dos teus agricultores; de ores que muitos ricos jardins
invejariam, na fria Europa. De ores e de plantas raras que
rodeiam e se alindam magni camente os palacetes da tua
industriosa cidade.

De ores, eternos símbolos de poesia; de ores das tintas


mais vivas, das formas mais bizarras, de inebriante perfume, é
esmaltado todo o teu vasto território, que mais parece um só
jardim. Mas as tuas ores mais belos e mais gentis, ó
Blumenau, não são as orquídeas das tuas orestas; são as
moças dos teus lares, que todas as ores vencem cm beleza, na
doce primavera da vida; são os recém-nascidos nos teus
berços, são as crianças das tuas escolas que, sobre as ruínas da
nossa civilização decrépita e mentirosa, ainda verão, um dia,
talvez, esplender o futuro."

***

Como dissemos em diversos passos deste livro, muito


devemos do nosso trabalho a Alexandre Cerchiai. Nem todos
saberão quem é, ou quem foi esse homem. Tito Batini, escritor
patrício que acaba de surgir vitoriosamente com seu romance
intitulado "E AGORA, QUE FAZER?" no-lo conta, a nosso
pedido, na carta que se segue. Publicando-a, prestamos
homenagem a um dos mais ilustres jornalistas proletários do
Brasil.

"S. Paulo, 3 de fevereiro de 1942.


 

Meu caro Afonso,

Sobre mestre Alexandre? Mestre Alexandre era como o


chamávamos e ele não permitia. "Poldo", diziam os seus
familiares. E nós teimávamos: mestre de cá e mestre de lá.

Isto aconteceu em Bauru, por volta de 1913, vésperas da


primeira grande guerra; ele aparecia providencialmente,
como para ensinar-nos que não se devia nem sequer pensar
em eliminar os nossos semelhantes. Eu poderia ter meus nove
anos e meu falecido irmão, uns sete. Fomos aguardá-lo, com
nossos pais, também desaparecidos, na estação da
Sorocabana. Alessandro Cerchiai devia estar no período dos
30 aos 40 anos e nos aparecia cheio de vida ainda, muito
risonho, principalmente quando avistava crianças. A sua
pro ssão seria aquela de ensinar, a pequenos e grandes, numa
preocupação constante de endireitar o mundo... Amigo dos
amigos; e, aos adversários, procurava explicá-los. Italiano de
origem, sua crônica vem contada por outros, inclusive
parentes, que sabem mais a respeito. Mas, escrevia como
poucos em português e fazia-o diretamente, sem vacilações.
Como você deve saber, foi também colaborador de "O Estado
de São Paulo", anos depois. O importante a assinalar é que a
sua adaptação ao nosso ambiente lhe foi fácil e, entre o grande
número de estrangeiros registrado pelas estatísticas, este foi
um dos que vieram para praticar o bem, dedicando-se a causas
humanas, que só podem valorizar o grau de desprendimento
de que é capaz o homem.
Nessa noite ele vinha barbeado e diferente dos adultos
daqueles tempos: não usava colete, apenas paletó-saco sobre a
camisa branca, muito limpa; amarrada sob o colarinho mole,
uma gravata preta, de pintor; escondendo fartos cabelos, um
chapelão preto que também lhe dava ares de pintor. Ou de
poeta, como queira.

Vinha a chamado dos amigos que desejavam dar a seus


lhos um bom professor. Não trazia doces ou presentes, mas a
grande dádiva de uma bondade esparramada, e umas lições
fáceis e macias como as suas próprias mãos grandes. Como
professor, era um grande psicólogo prático, (foi sempre
autodidata.) Aos sábados, uma ou duas vezes por mês, levava-
nos aos arredores da pequena cidade, onde nos dava aulas de
botânica ao ar livre. Admitia, com muito bons modos, que os
alunos discutissem questões relacionadas com o ensino.
Lembro-me de um desacerto em que me meti (nove anos
contra quase quarenta), por causa do nó-vital de uma
plantinha arrancada e que me parecia normal. Ele a rmava
uma degenerescência. Como não me conformasse,
aconselhou-me (aconselhava, não mandava), que a levasse
para casa e por lá, com vagar e com paciência — com vagar e
com paciência, repetia constantemente — veri casse,
consultasse e decidisse o caso, voltando à carga durante uma
nova aula. A razão estava com ele; reconheci-o e não me cou
nenhum recalque. Era um modelador de almas, ao mesmo
tempo em que ensinava. Haveria uma causa para a
degeneração do nó-vital, explicou. A natureza não faz as
coisas por fazer. Se ôssemos mais adiantados, dizia, iria
destrinchar-nos a dialética da natureza. As suas imagens eram
simples e inesquecíveis. Começou a comparar a planta ao
homem e à sociedade. Onde houvesse desarmonia e
insegurança, procurássemos as causas, que deviam andar
pelas raízes e pelo nó-vital.

Outra vez, dentro do salão enorme, durante uma aula. A


Sociedade italiana Dante Alighieri era uma instituição que a
política não dividira, ainda, e nada tinha a ver com as atuais
"Casas da Itália", de hoje; aquela, cedera o salão para as aulas.
Desta outra feita avisou que esperássemos, pois ia à procura
do elemento para a lição da tarde. Meteu-se no porão do palco
e de lá voltou com a roupa suja de teias-de-aranha, trazendo
um pequeno bicho negro, mamífero e de asas. Coisa
impressionante a preleção de Alexandre Cerchiai sobre o
morcego. Prendia-o na mão esquerda enquanto falava,
procurando sobre a mistura de sua mesa um polido bisturi
com que certa manhã abrira o dedão do pé do meu colega da
carteira, cheio de pus. Preveniu então, que mostraria o
morcego por dentro. Como poderia o mestre — tão bondoso
mestre Alexandre — matar o bichinho, apenas para satisfazer
a nossa curiosidade de saber? Não poderia substituir esta aula
ao vivo, pelas gravuras dum livro? Entretanto, lembro-me de
uns olhos castanho-claros, doces e inteligentes, que se
moviam rapidamente, satisfeitos do trabalho. Dias antes
falara-nos de liberdade. Respeitássemos a liberdade dos
pássaros. Eles cantam nas gaiolas, é verdade. Mas, até mesmo
o canto do homem, quando não se é cantor mecânico de ópera,
(naquele tempo não havia rádio), o canto é quase sempre um
lamento. As canções são queixas e os próprios soldados,
quando entoam marchas, fazem-no da saudade de seus lares.
Pássaros não se deviam encarcerar. Homens também não. E ali
mantinha preso, ele, um inofensivo morcego. O bichinho
numa das mãos e o bisturi na outra, fez-nos uma preleção
sobre a morte e sobre a vida. Quem vai esquecer estas coisas?
Mestre Alexandre! A vida não seria apenas cada um de nós,
enquanto consegue movimentar-se. A vida seria o conjunto,
todo o conjunto universal. O homem sente mais do que o
animal e sofre a tortura de compreender o sofrimento,
sentindo-lhe, ademais, a própria explicação; o animalzinho,
não. Mas, isso não deveria dar-nos o direito de matar somente
porque nós, bichos superiores, sabíamos todas essas coisas,
delas nos prevalecendo. Entretanto, o homem não devia
sequer estremecer diante da morte. O morcego seria morto.
Ora, a vida prossegue nas outras vidas. Uma pequenina
manifestação ia ser sufocada. Mas, a parte maior que éramos
todos nós, iria enriquecer-se de conhecimentos. Referveria
uma bolha no cadinho da cultura que ele formava em nossas
cabecinhas. A vida mais rica. Deu-nos as costas, adivinhamo-
lhes uns movimentos, pelos cotovelos. Depois, chamou-nos
para a sua mesa, camos como em cima de um operado.
Habilmente realizou o trabalho, explicando todo o mecanismo
daquele bichinho.

Seria longo para uma carta, recordar tudo. Mas, uma


palestra pública, em linguagem losó ca e especial para
crianças, que mais tarde realizou, parece-nos que é digna de
registro. Foi numa noite de festa e este o tema: "O grãozinho de
areia." Cada um de nós, um grão de areia. Éramos grandes e
éramos pequenos. O vento transportava-nos para as
montanhas de areia do mundo. E só a montanha possuía valor,
somente o conjunto possuía força; cada grãozinho, isolado,
nada valia. Meu caro Afonso não vai querer que eu recorde
tudo...

Mestre ou amigo, eu não posso de ni-lo. Não dava lições


montado num largo colarinho duro, nem assumia importante
aspecto de sabichão e, admitia, até, que um mestre errasse.
Excepcional, o homem, portanto.

Nos dias de festa, levava-nos a algum sitio ou chácara. A


frente seguia o mais alto, ou quem quisesse, levando a enorme
bandeira da escola. A seguir, uma banda de música, se não me
engano, a "Banda do Zézinho." E, ao lado, alguém soltando
rojões. Assim era a festa...

Até o dia, em que se cansou e nós fomos, chorosos,


despedir-nos, na mesma estação em que ele chegara.

Cresci e ele envelheceu em meio a colunas de jornais, de


lutas, de ingratidões e desenganos. Várias vezes palestramos,
aqui em São Paulo, e nos seus jornais publicou alguns dos
meus pequenos trabalhos. Mas, não me xava como quem
xasse sua própria obra, ao ver-me preocupado, como ele, em
escrever. Outras maneiras de agir, embora visando um mesmo
objetivo, davam diferente forma ao barro em que também ele
havia trabalhado.

Quando veio a doença irremediável, eu estava com a jornada


completa dedicada a um jornal, que nós preparávamos com
muito esforço e sacri ício. Não conseguia roubar meia hora
para chegar ao bairro distante e ali olhar uma última vez seus
cabelos já brancos, nem ouvir sua voz, a mesma que me havia
ensinado coisas belas e úteis. Mas, se mestre Alexandre
soubesse das verdadeiras razões dessa ausência, na certa
estaria de acordo comigo na sua lógica prática, produtiva, e ao
mesmo tempo cheia de sentimento. Estávamos fazendo um'
jornal que ensinava, falando de assuntos que outros jornais
não falavam. Se ainda raciocinasse, estaria satisfeito da nossa
obra. Nós somos um grãozinho de areia, cada um, que o vento
leva. Fui me conformando, conformando... Até que veio a
noticia de nitiva. A sala em que me encontrava com os
colegas atarefados, encheu-se de fumaça para mim. Nenhum
farol daquela máquina férrea que o levara ao interior para
banhar as nossas cabeças: cada qual cumpria um rumo
diferente e não podíamos, reunidos, chorar o grãozinho de
areia roubado pelo vento.

Haveria muito mais que dizer deste homem bom e útil e


produtivo, que foi Alexandre Cerchiai, turmeiro da
Sorocabana, lixeiro aqui em São Paulo, soldado garibaldino,
jornalista, uma porção de outras pro ssões e, também, grande
mestre. Diremos essas coisas de outra forma, em outros
lugares, que aqui o que você me pede é uma simples carta e
como carta já vai longa. É a minha homenagem e em nome de
seus antigos alunos, se você me permite, uma homenagem
daqueles garotos que hoje, homens feitos, andam por aí
espalhados e não o esquecem, não.

Até outra vez, portanto e um abraço do

Tito Batini."
 

ZANZALÁ
 

—Representação artística da cidade utópica de Zanzalá—


 

Como será a existência dos homens daqui a cem anos? — perguntava eu, em
1928. A julgar pelo que ela foi há um século, deverá ser muito diferente. Pode-se,
também, levar em conta que o progresso daqui para a frente se dará com maior
rapidez do que do passado até nossos dias. Atualmente, há fatores que
representam importante papel: o encurtamento das distâncias pelos novos meios
de transporte, o avanço inacreditável da ciência, o desejo que se acentua cada vez
mais de simpli car a vida.

Se ôssemos a observar apenas os primeiros fatores, poderíamos prever para o


ano de 2028, por exemplo, uma humanidade inteiramente absorvida pela
máquina, completamente dominada pelas forças sutis da natureza que sempre
procuramos escravizar e que acabariam escravizando-nos. Felizmente, porém, há
no universo uma tendência para o equilíbrio. O instinto, por vezes mais lúcido
que a própria inteligência, dirige a massa humana através de caminhos
adequados.

No presente século, a humanidade está visivelmente fatigada. A vida dos


formigueiros humanos, com vestimentas impróprias, com alimentação
envenenadora, com a precisão contínua de tônicos e excitantes para a luta,
despertou em cada homem, como já se observa, uma grande saudade da vida
simples, natural, dos nossos antepassados. Mas, as necessidades atuais já são
outras. O excesso de população e o aprimoramento das sensibilidades hão de
levar-nos, certamente, pelo caminho de uma inteligente conciliação entre a
cabana rudimentar e o apartamento ultraconfortável.

Essas mudanças materiais terão seu fundamento, como sempre, no plano


moral. Para tal evolução, muito contribuirá a música que, como é sabido, adoça
os costumes. O século XIX foi o século das luzes; o XX está sendo o da música e o
seguinte, com certeza, será o da simplicidade. Nos nossos dias, vivemos saturados
de música. O cinema e o rádio levam-na em toda parte. Além da música que se
ouve, diante dos aparelhos, há a música que não se ouve e que, nas ondas
hertzianas, dia e noite, atravessa o nosso ser, agindo nos planos mais elevados. E
cada homem, pela sua constituição, é uma estação radioemissora e receptora.

Com tais elementos, torna-se possível fazer ideia do que será a humanidade de
amanhã. Em todas as literaturas, esse gênero de profecia é corrente. Através da
História, o aparecimento de profetas assinalou profundas mudanças. Antes de
Cristo, eles diziam: "Quando o Messias chegar..." e, a propósito desse
acontecimento esperado, o povo como catalogava as suas aspirações. Os fatos,
porém, demonstram que nenhum desses profetas conseguiu desvendar o futuro.
Os poetas são profetas, os vates fazem vaticínios. Surgem, a cada passo, fatores
novos, que modi cam os quadros previstos.

Wells — ao que leio numa citação — escreveu em 1898: "o homem nunca
voará." No entanto, em 1936, ele chegou de aeroplano aos Estados Unidos...
Bellamy, romancista ianque que pouco antes escrevera uma profecia, deu grande
importância ao telefone, mas não previu o aeroplano, o rádio, o disco e o cinema,
que deveriam modi car a sionomia do mundo atual. A profecia que ele escreveu
para dali a cem anos, antes mesmo de haver decorrido meio século, já era uma
história do passado. A realidade ultrapassa os sonhos dos poetas.

As profecias têm uma utilidade: servem, no futuro, para estudar as aspirações


populares da época em que foram escritas. Nada mais. Certo disso, compus estas
páginas pensando no bom sorriso dos leitores de amanhã; deve ser o mesmo
sorriso que eu esboço ao saborear o trabalho dos meus colegas do passado.
Felizmente para todos nós, esta novela cará perdida no mar de escritos que não
tiveram a ventura de sobreviver à sua época.

Relendo-a, aproveito a oportunidade para fazer algumas emendas, a começar


pelo título, por motivos que o leitor encontrará páginas adiante.
Se alguém me arguir de falsear a profecia, eu responderei que não sou
candidato à glória do ísico Nostradamus ou do sapateiro Bandarra; desejo,
apenas, contar uma história de 2028 aos meus possíveis leitores deste ano da
graça de 1949.
 

Ilustração: Jean Luciano


I
NO SÉCULO DA SIMPLICIDADE

Se um cidadão de 1928 ressuscitasse hoje no esquecido cemitério do


Saboó, onde os antigos santistas enterravam os seus mortos, e zesse
o trecho de estrada que vai ter à raiz da serra de Paranapiacaba,
custaria a reconhecer o cenário que, certamente, lhe foi familiar
naqueles priscos tempos.

Os estudiosos da nossa história poderão, no entanto, fazer ligeira


ideia de tal mudança. A referida serra, que não é mais do que a
barranqueira do planalto, corta o caminho entre o porto de Santos e a
metrópole de São Paulo. Ao longo do litoral, com diversas
denominações, ela rami ca-se em numerosas cadeias de morros que,
abaixando-se pouco a pouco, vão morrer no tijuco escuro do mangue.
Entre essas en adas de elevações, que servem de contrafortes ao
planalto e aos quais a natureza deu estranhas con gurações, abrem-se
profundos vales; são vastas as planícies entaladas entre des ladeiros
empolados de penhascos sujos de líquens e empoeirados de verde pela
folhagem na e crespa das samambaias.

No tempo a que nos reportamos, a serra ainda se apresentava


coberta por densas matas em cujo seio serpeavam riachos que, de
espaço a espaço, se atiravam pelas grotas, formando alvas cachoeiras;
sobre elas, reclinavam-se árvores felpudas de barba-de-velho,
barulhentas de aves e de ninhos. Nos abismos, de um azul
esfumaçado, passavam, ao cair da tarde, grandes asas espalmadas,
num voo reto que ia de morro a morro.
A civilização, no seu trajeto do litoral para o interior, não havia
parado sobre a serra. Esse suntuoso cenário apresentava algumas
obras de engenharia, sinuosas estradas e muito poucas casas de
residência. Ninguém morava naqueles pendores quase desertos. Uma
das obras mais interessantes era a central elétrica. A eletricidade era
ainda produzida pela massa de água canalizada, comprimida e atirada
sobre turbinas que acionavam dínamos geradores. O seu
fornecimento; como força e luz, era geralmente feito por empresas
particulares que para tanto reuniam consideráveis capitais. Não
procuraremos explicar aos possíveis leitores desta história a
organização de tais serviços públicos, porque isso seria muito di ícil.
Há coisas simples que são impossíveis de contar. Exemplo: ninguém
ainda explicou satisfatoriamente como um chinês da época de Sun-
Iat-Sen comia arroz solto, com dois palitos. No entanto, os chineses
almoçavam assim todos os dias, quando almoçavam.

Mas continuemos. Uma dessas empresas fornecia força e luz à


cidade de S. Paulo. Com esse intuito, represava as águas turvas do
Tietê, formando grandes lagos no planalto e, na planície litorânea,
mais ou menos na altura de Cubatão, instalara poderosas usinas que, à
noite, iluminavam a massa escura das orestas com um risco
luminoso, quase a prumo, feito de lâmpadas elétricas. Esse risco
cortava a estrada de rodagem que fazia a ligação da metrópole com o
porto. Era por essa estrada tortuosa que, em automóveis e ônibus,
como se usava então, viajavam centenas de pessoas, diariamente, de
uma cidade para outra. Segundo documentos existentes nos museus,
pode-se hoje observar que as nossas lindas tataravós eram um tanto
sapequinhas e davam a vida por uma estação de banhos nas
ensolaradas cidades praianas, que já existiam por aquele tempo.
Tendo adotado havia poucos anos a moda dos cabelos curtos, como
hoje usamos, já manifestavam elas a sua predileção pelo maio que com
o decorrer dos tempos e algumas leves alterações, deveria ser a moda
de nitiva, aquela que faz o encanto deste século XXI, que os lósofos
querem que seja "o século da simplicidade."

Mas devemos esclarecer que não eram apenas o automóvel e o


ônibus (como vemos nas gravuras antigas) os únicos meies de
transporte entre o porto e a metrópole. Havia, igualmente, o que se
chamava naqueles ominosos tempos uma "estrada de ferro", isto é, uns
veículos compridos, cheios de janelinhas, que eram engatados uns nos
outros e faziam grandes extensões, puxados por locomotivas a vapor,
a óleo ou a eletricidade, sobre duas tas de ferro a que os coevos
davam o nome de trilhos em língua portuguesa ou de rails nesta língua
que já por aquela época se ia delineando pela mistura de vários
idiomas. Naquele afastado tempo, começaram-se a usar palavras que
tinham o mesmo signi cado no mundo inteiro: vagão, hotel,
restaurante, etc. Logo depois, com o encurtamento das distâncias foi
que se consolidou a língua geral, que hoje falamos. Mas seria muito
trabalhoso explicar ao comum dos leitores o que era uma "estrada de
ferro." Resta-nos, porém, o recurso da Enciclopédia, onde a explicação
poderá ser encontrada no 724.° volume. É verdade que atualmente
nenhum particular poderia ser dono de uma Enciclopédia, pois essa
mesma obra já conta 4.700 volumes, mas o governo é previdente e,
tomando em consideração tal di culdade, estabeleceu a Enciclopédia
entre os serviços públicos. Qualquer lugarejo de 5.000 almas conta
hoje em edi ício próprio e com carteiras para notas, a sua
Enciclopédia. Também, para falar verdade, é esse um dos únicos livros
que ainda permanecem "mudos", antiquados, como no tempo de
nossos maiores.

Pela "estrada de ferro", a viagem entre Santos e São Paulo era feita
em duas horas e meia. Mas já havia aeroplanos. Sim, aeroplanos. A
verdade, porém, é que não se pareciam com os aparelhos que hoje
empregamos nos nossos transportes de passageiros e cargas. Ali por
1928, época que escolhemos como ponto de referência no passado, os
aviões não passavam de brinquedos de criança. As linhas de tráfego
regular ainda eram escassas e cada aparelho, geralmente, não
conduzia mais de vinte passageiros. Essa de ciência tinha a sua
explicação. Os aeroplanos eram obrigados a conduzir consigo pesados
tanques de gasolina para abastecer os motores durante o trajeto, o que
os impedia de transportarem muitos passageiros. Foi só quando se
tornou a eletricidade transmissível sem os, que se pôde abolir tão
incômodos trambolhos. E atualmente, como se sabe, os aparelhos
recebem a energia em pleno voo, como um receptor de rádio de outros
tempos apanhava a irradiação da estação transmissora.

A estrada de ferro a que nos referimos escalava a serra mediante


cabos de aço que, puxados por grandes máquinas estabelecidas em
cinco planos, arrastavam os trens (V. Enciclopédia idem ibidem) pela
encosta acima. No começo do século XX, inaugurou-se uma estrada
nova, paralela à antiga, mas a alteração introduzida no sistema foi
quase imperceptível. Ambas corriam, mais ou menos, nos terrenos
atualmente ocupados pelos Bulevares Atlântico e América. Debaixo
deles, escancarava-se o vale do Zanzalá, como mais tarde passou a ser
chamado. Essa palavra, a princípio, designava umas capoeiras de
serra-acima, mas, com o tempo, estendeu-se à região sem nome.

O Zanzalá hoje é um imenso funil: o lado esquerdo (de quem sobe)


começa logo depois do Cubatão, num outeiro que se liga a morros e
morros até perder-se na muralha sempre azulescente da serra; o outro
lado começa em Piaçagüera e logo se apruma em des ladeiros
cortados pelas duas grandes avenidas a que aludimos. A parte central
é constituída por uma planície triangular que, espremida entre
montanhas, vai a lando e subindo à proporção que penetra pela serra
a dentro. Esse vale, há cem anos, era coberto de bananais. Quando o
Zanzalá chega — sempre num leve aclive — ao alto da serra, já não
passa de um simples valo com o seu o de água no centro, sobre o qual
orescem em todas as estações os pulcros lírios do brejo. Mas quem
dali olha para baixo vê as duas muralhas fugirem uma de cada lado,
deixando no meio aquela planície azul na qual caberia uma série de
cidades.

Ao centro, ergue-se uma pirâmide verde, com uma gota de luz no


topo.

Esse monumento, que se acha mais ou menos em frente ao segundo


patamar da Serra, tem a sua história. Muitos pensarão que foi
construído inteiramente pela mão dos homens, como as pirâmides do
Egito. Mas estarão enganados. Ele já existia mais ou menos assim, no
século XX. Era um morro como tantos outros, que os viajantes
admiravam da janela do trem de ferro. Esse trem de ferro ainda existia
ali por 1949, mas já era considerado meio de transporte muito
atrasado, quase como o carro de bois.

De uma pirâmide, esse morro apresenta apenas as linhas


principais; o resto era corrigido pela fantasia dos observadores. Foi
para comemorar a passagem do ano 2000 que os santistas tiveram a
ideia de transformá-lo, de fato, numa pirâmide. As obras duraram
muito tempo. Utilizaram-se os maquinismos mais aperfeiçoados da
época. As três faces que se viam do vale foram reti cadas, aplainadas e
cobertas de impecável gramado, dando ao monumento a feição e a cor
dê uma fantástica esmeralda; a face posterior, que se confunde com a
Serra, foi revestida de granito que o tempo vai escurecendo com suas
mãos invisíveis.

Nessa face, despercebida de qualquer adorno, só vista pelos


habitantes da região, encontra-se a porta quadrada que dá acesso ao
Museu Geológico instalado em salões retilíneos, providos de uma
iluminação que lembra a do sol, mas não produz sombras. Um
elevador conduz os raros visitantes a duzentos metros de altura, isto é,
ao ápice do monumento. Ali, no primeiro minuto do ano 2000, foi
acendida a chama votiva que, como consta de uma lápide colocada sob
a pira de ouro, arderá dia e noite, através dos séculos, através dos
milênios, em louvor de Pai Sumé, o primeiro Mestre que, na noite dos
tempos, passou pela América, ministrando às nações ainda nômades
ensinamentos rudimentares da arte, da agricultura e das relações
entre os homens.

Na planície, ao redor da pirâmide, estende-se grande lago cercado


de bambus que, nos dias de vento noroeste, tão frequentes serra-
abaixo, produzem um estralejar de fogueiras. Em certas horas, quem
se encontra na avenida por onde passava, outrora, o caminho de ferro,
pode apreciar um quadro assaz curioso: a pirâmide re etida pelas
águas do lago. Ela se nos apresenta como gigantesco poliedro, metade
material, metade re exo. É como um balão verde, a utuar entre a
terra e o céu.

Esta história começa ao cair de uma tarde quente, no Zanzalá, O sol


havia desaparecido num acolchoado de nuvens desmanchadas e a
paisagem sem sombras zera-se de estranha nitidez. Edi ícios de
setenta andares, espalhados pelos recessos da serra, assinalavam
outros tantos núcleos de população e os seus tetos re etiam
docemente a pureza azul do zênite. O movimento das sete estradas
que galgam os morros, que serpeiam pelas encostas ou cortam o vale
ajardinado em diversas direções, foi desaparecendo aos poucos. Nas
ramalhudas árvores que se inclinam para o nascente, ouviu-se a
grazinada alegre e o bater de asas que se recolhem aos bandos. E um
sabiá, ninguém sabe onde, continuou a cantar melancolicamente. Os
jardins começaram a esfumar-se, o silêncio foi envolvendo tudo e a
chama votiva. no alto da pirâmide, se tornou perceptível. como a
primeira estrela do céu, a mais pálida de todas.

Foi a essa hora que um automóvel — aí vai um termo antiquado em


falta de outro melhor — desceu a Avenida Atlântica e entrou pelo vale.
A sua marcha era lenta e, seguindo as las de casas desmontáveis que
bordam os talvegues, ia parando em determinados pontos, para logo
depois seguir de novo. Já nas proximidades do lago que rodeia a
pirâmide, estacou de repente e dele desceram três pessoas, vestidas
com o traje comum, que mais parece maiôs brancos. Qualquer
observador distinguiria nessa frente uma pequena família: marido,
mulher e lha. Tal cena é bem comum no nosso século em que a vida,
depois de se haver complicado ao in nito nos tempos passados, voltou
a esta simplicidade encantadora e saudável de que ninguém, por certo,
jamais se afastará.

Os que desejam mudar-se não têm mais que desmanchar a casa em


que vivem, enrolar as paredes e o teto, de matéria seca, resistente e
levíssima, fazer um feixe do madeiramento, igualmente desprovido de
peso, e depois de acomodar tudo isso num dos veículos de serviço
público, transportar a "mudança" para o ponto que mais lhes agrade.
Já não há mais residências apalaçadas como outrora; os grandes
edi ícios destinam-se a repartições, museus, escolas, bibliotecas, etc.
isto é, para os serviços municipais que se desdobraram ao in nito; as
residências particulares são portáteis, feitas de um papelão especial,
montáveis com a maior facilidade, mediante encaixes e parafusos
numerados. As casas podem acompanhar os donos para onde quer
que eles se dirijam. E, como são feitas em séries, qualquer peça
perdida pode ser facilmente obtida nos depósitos da Prefeitura. Com
essa facilidade de transportar casas, as ruas surgem de uma hora para
outra e quando advém algum inconveniente para os seus moradores,
elas desaparecem com a mesma facilidade.
Aquela parte do vale, a que haviam chegado os viajantes, estava
densamente povoada. Cerca de trezentas ruas de pequeninas casas
formavam uma espécie de bairro onde, aparentemente, seria di ícil
encontrar alguém. Mas isso não se dava porque o correio local
dispunha de chário perfeito e não se limitava apenas a entregar a
correspondência, mas também a informar os interessados sobre a
residência de todos os moradores.

A rua em que parou o automóvel tinha o número LVII e a quadra


vazia em que a casa ia ser imediatamente levantada apresentava num
poste, bem visível, o número 209. O marido desceu, esquadrinhou o
terreno e como lhe agradasse o local, tratou de ncar as estacas, correr
as paredes, suspender e ajustar as quatro placas escuras do teto e
parafusar as janelas teladas, reforçadas com persianas que desciam
como esteiras pintadas de novo. Foi ao fundo do terreno que sobrava
— duas braças em quadra — e ligou a água para o abastecimento da
casa. Ao mesmo tempo, a mulher e a lha faziam os arranjos caseiros.
Uma hora depois, já o fogão elétrico estava aquecido e na panela fervia
a sopa.

Tudo isso se fez enquanto escurecia. Ao terminar o trabalho, o


marido foi entregar o veículo na Prefeitura e as duas mulheres
quiseram acompanhá-lo porque a noite estava muito linda.

O veículo desceu pela rua LVII, contornou boa parte do lago e


entrou pela Avenida Jabaquara, que era a principal do Zanzalá. Ali,
parou diante de uma casa de aspecto simples, onde começavam a
acender as luzes.

Os empregados da Prefeitura revezavam-se nos guichês até tarde.

O chefe da família entrou e entregou um cartão.


O empregado interrogou-o:

— Trouxe o veículo?

— Está ali defronte.

O homem fez soar uma campainha; à porta apareceu uma sombra.

— Examine o veículo e depois recolha. A sombra desapareceu.

— Como se chama?

— João Antônio.

— Pro ssão?

— Biologista.

— Sua mulher?

— Maria Balbina.

— Pro ssão?

— Professora.

— Sua lha?

— Tuca.

— Pro ssão?

— Bailarina.
Tinham desaparecido os sobrenomes; os apelidos haviam-se
tornado outros tantos nomes.

— Onde se instalaram?

— ua LVII, número 209.

— Está bem. Amanhã, dirijam-se à Repartição de Colocações.

Despediram-se e saíram. Em caminho, passaram pelo Entreposto


da Escola Municipal e, embora fosse tarde, ainda conseguiram levar os
primeiros mantimentos para o dia seguinte, mediante a apresentação
do título de novos moradores do distrito.

Diga-se de passagem que a carne estava abolida havia algum tempo


e com o aperfeiçoamento da agricultura, que atingira a verdadeira
maravilha, as escolas de cada distrito se encarregavam do
fornecimento de verdura e legumes à população. Cerca de 5.000
crianças em cada um desses estabelecimentos agrícolas ocupavam-se,
a par dos estudos, na cultura da terra. A produção por esse meio, era
enorme e ia muito além das necessidades locais. Por isso, a direção dos
estabelecimentos agrícolas havia organizado a permuta das sobras por
peixes e moluscos que, por sua vez, eram excessivos nos distritos
praianos. Tainhas de Itaipu e camarões de Cananéia eram largamente
distribuídos no entreposto, e, às vezes, sobrava tanto pescado que
servia para a fabricação de adubos no Departamento de Química.

A água, tão abundante, corria em canos ao longo das ruas e as


famílias não tinham mais que ligar o encanamento interno de suas
casas ao encanamento público. A eletricidade, como já dissemos, era
recebida como outrora os aparelhos de rádio recebiam as músicas
irradiadas pelas estações emissoras. Mil pequenas máquinas,
reduzidas à última simplicidade, elevadas ao mesmo tempo à máxima
e ciência, deram motivo à renascença do artesanato da Idade Média,
mas imensamente aperfeiçoado. Por exemplo: um tear doméstico, que
trabalha sozinho dia e noite, abastece a casa de tecido.

João, Balbina e Tuca regressaram ao lar, e antes de entrarem para o


repouso da noite caram algum tempo sentados à porta, com a vista
perdida na paisagem cheia de novidades para eles. Nas bandas do mar,
viam-se e êmeros clarões de calmaria. A pirâmide estava
inteiramente negra e tinha lá na ponta, perdida no céu, uma gota de
luz. Os bambus, cá embaixo, agitavam-se como leques de sombra. Os
prédios de setenta andares, espalhados pela serra, mostravam leiras
de janelas iluminadas, como reticências de ouro pálido. E sobre a
concha escura do Zanzalá, pelo alto, silenciosamente, passavam larvas
negras pontilhadas de luz, que pareciam perder-se muito longe, sobre
o mar. Eram os navios-aviões, que trafegavam entre Londres e Buenos
Aires, levando no seu bojo centenas de turistas ávidos de outros céus e
outros climas...
II
SERRA ABAIXO

João Antônio foi trabalhar no Departamento de Saúde. Entrava na


segunda hora do dia (cerca de oito horas) vestia o avental e abancava-
se a uma extensa mesa, entre 38 homens debruçados sobre outros
tantos microscópios. Durante as quatro horas de trabalho, ele
examinava lâminas. Após cada exame, registrava numa cha as
observações. Era exclusivamente essa a sua tarefa. Nunca soube quem
preparava aquelas culturas; nunca perguntou tampouco o que se fazia
com o resultado das suas pesquisas. Quando o relógio do
Departamento pingava as seis badaladas do meio-dia, o biologista
interrompia o serviço no ponto em que estivesse, guardava o avental
na gaveta que lhe pertencia e, numa balbúrdia de funcionários,
ganhava a porta da rua.

O Departamento, com seus oito andares, parecia ncado no pendor


de um morro. De um lado, alvejava o Colombário, onde se cremavam
os mortos do distrito; de outro cava o Éden, que, por sinal, era uma
instituição bem triste. Não dispondo propriamente de pena de morte,
nem sequer de cadeias, o distrito mantinha uma espécie de jardim
fechado onde eram exilados os assassinos, os bêbados e os que se
entregavam ao vício do roubo. Ali estavam homens e mulheres em
promiscuidade. Havia pipas de aguardente, com uma caneca ao lado.
Havia montes de ampolas de mor na com centenas de seringas de
Pravaz. A cocaína andava em vasos fundos como se fosse açúcar. O
Éden só tinha uma porta de saída: a que comunicava com o
Colombário. E os exilados acabavam depressa...
O biologista, descendo o caminho do Departamento, saboreava o
profundo silêncio. Embaixo, esperava-o o zunzum da vida quotidiana.

Maria Balbina foi logo admitida como professora da Escola


Municipal. Ficava no lugar que outrora se chamava Monge e era um
estabelecimento de grandes proporções. Cerca de 50 pavilhões
rústicos, cada um deles dividido em quatro grandes classes,
estendiam-se em linha no pendor de um morro. Para cada matéria, a
sua professora. Nos fundos de cada pavilhão escolar, um pavilhão de
residência dos alunos, contando numerosos vigilantes e demais
auxiliares. As refeições eram servidas nos largos alpendres, oridos
de jasmins-do-imperador.

A vida nesse estabelecimento não discrepava da vida dos


internatos. À primeira hora do dia, uma sineta acordava os alunos e
estes tinham cinco minutos para se levantarem e correr à piscina
correspondente a cada pavilhão, atravessando-a a nado. Saindo na
outra banda, corriam novamente para o dormitório, vestiam-se e só
então se dirigiam ao alpendre, onde lhes era servido café com pão.
Meia hora depois, tomavam as ferramentas e seguiam para o campo.
O serviço ali estava perfeitamente distribuído: havia classes que
trabalhavam no preparo da terra para as sementeiras, na semeadura e
na escolha e entrega das plantinhas já prontas para a muda. Outras
preparavam as áreas de cultura; plantavam, adubavam, carpiam. Por
último, os que se ocupavam na colheita e no transporte para o
entreposto, lá embaixo, onde a população ia buscar boa parte dos
gêneros de que necessitava.

Depois do almoço as crianças tinham duas horas de descanso e


estudo, ndas as quais iam para as classes, estudar nos livros. As
professoras sucediam-se de acordo com as matérias e, ali pelo
entardecer, todos saíam num tumulto de festa. Durante a tarde e o
começo da noite havia esporte, música, teatro, conferências, bailados.
Terminado esse curso de quatro anos, os alunos, de acordo com a
observação dos professores, eram encaminhados para a arte, a ciência,
a administração, etc. A maior parte, porém, cava na boa vida da
lavoura.

Maria Balbina entrava no serviço depois do almoço e saía ao cair da


tarde. Ela gostava de car um instante parada à porta do pavilhão em
que lecionava, com a vista perdida nos campos cultivados. Esses
campos eram distribuídos por tabuleiros tão extensos que se perdiam
de vista. Cada um deles tinha a sua cor característica.

Não se via uma folha diferente, a destoar do conjunto. Eram


plantações arroxeadas de repolhos, ou então com todas as tonalidades
do verde, onde os olhos habituados distinguiam tabuleiros de couves,
de nabos, de cenouras, de alfaces, de berinjelas, ou de tomates. Nos
ângulos desses quadriláteros, distinguiam-se umas caixas negras com
janelinhas envidraçadas, onde o sol poente acendia re exos. Tinha
sempre, quando a gente delas se aproximava, o zumbido surdo de um
dínamo. Numerosos os partiam do alto e mergulhavam na terra
lavrada, comunicando-se a uma rede de arames de cobre que se
estendia por toda a plantação. Era a eletricidade; à sua ação bené ca
as plantas pareciam desenvolver-se à vista dos olhos.

Mais longe, para além dos vastos domínios da escola, o vale


alargava-se em trigais e canaviais. Ali, a vida era diferente. Via-se
sobre a terra escura uma espécie de poeira colorida que se
movimentava: eram os trabalhadores. Entre essa gente, como animais
de aço, deslizavam as máquinas. Umas movimentavam-se com
rapidez; outras evolviam lentamente. Não raro, trabalhavam aos
grupos em linhas, como tropas que avançam. E, pauta luzente dessa
página de vida, estendiam-se os drenos, paralelos, perdendo-se na
fumaça do horizonte. Era dali que saíam o pão, o açúcar e outros
produtos para o distrito.

As paredes das casas individuais, a que aludimos há pouco, tão


secas, resistentes e leves, eram feitas daquela palha, mediante
tratamento especial. Para além dessas culturas, ainda havia outras
igualmente importantes, mas os olhos de Maria Balbina hão
alcançavam: eram os arrozais, os algodoais, as fazendas de plantas
brosas ou oleaginosas. E ainda mais distantes, segundo lhe
contaram, estavam os laranjais, os bananais, os pomares apendoados
de mil frutas capitosas dos trópicos. As estações do calendário haviam
perdido em grande parte a sua importância agrícola; as terras
produziam o ano inteiro.

Tuca, liada ao Instituto de Cultura, passava as manhãs em ensaios


e, de noite, geralmente, gurava em espetáculos e festas populares
notadamente no Teatro ao ar livre. Esse teatro não passava de um
estádio, com a lotação de 40.000 espectadores, situado na parte mais
estreita do Zanzalá. Era nesse local que se realizavam as grandes
reuniões culturais do distrito. Geralmente, o espetáculo começava por
uma das numerosas competições esportivas que sacudiam o
entusiasmo dos moços. E a mocidade pouco tinha a ver com o número
de anos. Seguia-se uma conferência sobre arte, ciência, religião ou
ensinamentos relativos à vida quotidiana. Terminava com uma peça
clássica, bailados, etc. Ardia por esse tempo uma competição
verdadeiramente feroz entre as catorze bandas e as vinte e sete
orquestras do distrito. Não raro, depois de uma dessas reuniões, os
partidários de diferentes grupos esmurravam-se pelo caminho... Uma
tarde, João e Balbina estavam sentados à porta, esperando Tuca que se
havia demorado no teatro. Começavam a manifestar cuidados pela
demora da lha quando ela apareceu na embocadura da rua LVII.
Acompanhava-a um jovem alto, no, de gestos elásticos e sorrisos de
criança. Ficaram intrigados. Ela, porém, logo se aproximou e fez a
apresentação:

— Este é o Zé ro.

Os pais não compreenderam.

— O bailarino que dança comigo no Teatro. Então os dois sorriram.


Ela aproveitou o sorriso e declarou:

— Somos noivos.

Foi Maria Balbina quem falou:

— Se é para a felicidade de vocês...

Zé ro sentiu necessidade de abraçar a todos: depois, foi ele quem


chorou, mas chorou e riu ao mesmo tempo.

Como a tarde estivesse bonita, depois de conversarem um pouco,


saíram os quatro em direção do lago. Ao desembocarem na Avenida
Jabaquara, viram uma grande aglomeração de homens, mulheres e
crianças.

Foram ver do que se tratava.

Os trabalhadores do arrozal, que deviam voltar à última hora do


dia, tinham-se demorado no caminho. A explicação dessa demora era
repetida por todos. Tendo de aprofundar um canal, as suas pás
encontraram pesada máquina que devia estar sepultada no lodo negro
havia um século. Um desses homens chamou a atenção dos demais e,
logo depois, munidos de cabos e com o auxílio do guindaste,
conseguiram levantar o estranho achado. Não passava de um par de
rodas, tendo em cima um tubo de aço de dois metros de comprimento.
Mas tudo aquilo estava deformado; os raios das rodas apareciam
ligados por crosta negra e o cano entupido de ferrugem.

Guindado da lama e exposto à margem do valo, foi logo cercado por


centenas de homens que, ndo o serviço, caram ali a discutir o
curioso achado... Alguns deles, com seus martelos, trataram de
desbastar a camada espessa de ferrugem das rodas e, depois de muito
trabalho, conseguiram fazê-las girar, embora perras, sobre o eixo. E
como estavam de bom humor pela surpresa do achado, cobriram a
estranha carriola com ramos oridos de capetingas e a arrastaram
pelo Zanzalá... Pelo caminho iam cantando... Para essa gente, tudo era
motivo de alegria e toda alegria se manifestava por canções, que
pareciam surgir da terra, espontaneamente, como as ores silvestres.

Ao entrarem no aglomerado de casas, foi um acontecimento...


Saíram curiosos de todas as portas e, dali a pouco, a Avenida
Jabaquara estava inteiramente tomada. A carriola parou. A molecada
cercou-a, a espiá-la com olho comprido. A história era repetida por
toda a gente. Que seria? Que seria? Foi quando apareceu o indefectível
erudito; ele tomou uns ares graves e foi dizendo:

— Isto é um canhão!

— Um o quê?

— Um canhão. Usava-se antigamente nas guerras que os homens


faziam entre si, para destruir cidades e fortalezas.

— Guerra por quê?

— Para a conquista de terras, de mercados. ·Os circunstantes não


compreenderam.
O homem que tinha achado a máquina gritou:

— Toca para o museu!

A mó de gente rolou pela avenida, levando para longe a máquina


inútil.

João, Balbina, Tuca e Zé ro prosseguiram no passeio. Subiram para


a avenida que contorna o lago. A água estava levemente crespa, os
bambus pareciam compridos demais e a avam. Logo depois,
chegaram à pérgula, onde havia gente reunida. Vasto vidro fosco
servia como tela de cinema. Dentro, re etido, via-se conhecido
professor, velhinho, fazendo uma conferência no Rio de Janeiro. A sua
voz era calma e bem articulada. Dizia:

"... outra partida para o espaço sideral. Um sonho velho como o


mundo vai, pouco a pouco, se realizando. Depois das fantasias de
Cyrano de Bergerac, de Júlio Verne e de tantos poetas do in nito,
começa a aparecer no horizonte a possibilidade das comunicações
interplanetárias... Não têm faltado navegadores desse mar nunca
dantes navegado. De quando em quando, audaz aventureiro de nova
espécie, dentro de sua bala, projeta-se no azul, em direção de um dos
mundos do nosso sistema solar. Poderíamos citar vinte nomes ao
acaso.

Mas nenhum deles, lá chegando, deu sinal de vida. Neste momento,


porém, acontece algo de novo. O histórico observatório de Mount
Wilson, na América do Norte, que há mais de cem anos já havia
trazido o disco lunar a uma légua do seu telescópio, isto é, a uma
distância em que se poderia ver até um homem, acaba de transmitir ao
mundo a grande surpresa: um dos últimos viajantes parece ter
sobrevivido e no nosso satélite se agitam formas e cores,
evidentemente com o intuito de fazer sinais. Radiouvintes da Terra!
Estamos em comunicação com a Lua!"

A visão amorteceu, apagou-se. Na assistência, ouviram-se


conversas. Mas, os nossos passeantes, talvez mais no mundo da lua do
que os outros, tomaram a parte escura da avenida e prosseguiram no
caminho. Cada um deles foi pensando naquilo a seu modo, de acordo
com a crença e o temperamento. O problema, havia muito, fascinava a
humanidade, talvez mais do que nos séculos passados. Assim que os
homens conseguiram uma relativa facilidade em viver, assim que eles
se emanciparam da parte mais grosseira da luta pela vida, que tinha
surgido com a velha civilização, seu espírito se voltou para assuntos
elevados. Velhas e novas correntes religiosas e losó cas tinham
tomado, nos últimos anos, importância até então desconhecida.

Quando voltaram à casa, pela mesma avenida sombreada de


bambus, caram pensativos diante da Lua Cheia que se erguia sobre
os picos distantes. Sua luz prateada quebrava-se em re exos, sobre as
águas. E, vendo aquele disco prateado, pensaram que lá dentro,
algures, estava um habitante da Terra e que, mediante sinais, desejava
comunicar-se com os seus patrícios. Patrícios, não, os seus... E Zé ro
parou um instante, parafusando. Era preciso criar um novo termo; no
dia seguinte, dirigir-se-ia, em tal sentido, ao Departamento de Artes e
Cultura, onde 140 poetas ganhavam o pão nosso de cada! dia em
serviços desse naipe.
III
O CASAMENTO DE TUCA

Todas as tardes, Tuca regressava à casa acompanhada de Zé ro.


Enquanto o pai lia na sala e a mãe esmagava os espinafres na cozinha,
os dois cavam-se a ensaiar passos e ritmos debaixo de um pé de
brincos-de-princesa que, de janeiro a dezembro, estava sempre
coberto de ores. João Antônio tinha um fraco pelos escritores
antigos: Cervantes, Vitor Hugo, Euclides da Cunha, Tolstoi e Anatólio
France. As novelas de seu tempo, meio-prosa-meio-verso, curtas, de
pouca emoção, quase nada o interessavam. Queria os contrastes, o
passado, as lutas, a vitória taxativa do que se chamava bem sobre o que
se chamava mal.

Agora, lia o "Dom Quixote." Na sala escura, recostado numa


poltrona, tinha diante dos olhos a caixa do livro. A voz lenta, pausada,
límpida do locutor fazia-se ouvir na altura desejada pelo ouvinte.
Mediante um botão interrompia, quando era necessário, para
prosseguir depois. Ao mesmo tempo, na coberta da caixa, que era de
vidro fosco e cava diante do leitor-ouvinte-espectador, ia-se
desenrolando a cena, como num antigo cinema, in nitamente
aperfeiçoado.

No século XXI, os livros são aparelhos, com um lado de vidro. As


"leituras" começam assim:

Obra: "Os Sertões."

Autor: Euclides da Cunha.


Locutor: Quintela.

Diretor-artístico: Marcionílio.

Diretor-técnico: Kanaiama.

Intérpretes... seguem-se nomes de artistas conhecidos.

Os livros de versos ainda são mais interessantes. As caixas são,


geralmente, obras de arte, assinadas por grandes nomes da pintura.
Vejamos uma dessas obras; "Fugindo ao Cativeiro."

Autor: Vicente de Carvalho.

Declamadora: Aurimusa.

Poema sin ônico de Minhone Neto.

Intérpretes coreográ cos: Tuca e Zé ro.

Seguem-se cerca de 200 nomes de artistas que tomaram parte na


interpretação dessa riqueza do nosso passado.

Em certo ponto da leitura, Maria Balbina avisou que o jantar estava


na mesa. João Antônio apagou o livro (o nome antiquado ainda
subsiste...) e virou-o para o canto da sala. Em seguida chegou à porta e
dirigiu-se aos jovens que dançavam:

— Pessoal, o grude tá na mesa!

A notícia foi recebida com duas grandes piruetas na pontinha dos


pés.
A mesa era quadrada, de lâminas nas de ferro, coberta com
alvíssima toalha de papel. Os guardanapos, igualmente de papel. Os
pratos e travessas, de massa na e resistente, mas cartão. Só os
talheres eram permanentes. Ao centro da mesa, estava uma cesta com
frutas frescas.

A sobremesa entrava antes da refeição. Por isso, depois de comerem


goiabas e grossas talhadas de mamão, rachado de maduro, foi servida
a sopa de legumes. Após a sopa, veio o prato de resistência, "feijão com
carne seca e toucinho." Ali estava o feijão mas a carne seca era abóbora
e o toucinho... era maxuxo. Para nalizar, foi servido grande prato de
nozes, já tiradas da casca, e à guisa de vinho, copos de refresco de caju
e de maracujá, que perfumaram a casa inteira.

Naquela tarde, em honra de Zé ro, havia um adendo: favos de mel


oferecidos por Padre Benedito, que não era homem, mas uma or.

Durante a refeição, uma orquestra famosa de Iguape tocou, no


estúdio de Cananéia, um programa escolhido. A seguir, certo
professor falou sobre o Carnaval nos séculos passados. Todos
pasmaram e riram do que o velho contava. Nas -suas palavras,
certamente, havia excesso de fantasia...

Quando terminou o jantar, Maria Balbina guardou os talheres e


jogou fora o serviço usado. Então, todos saíram para o terreiro, porque
o calor se tornara intenso. Havia mais de dois meses que não caía
chuva natural. É verdade que, pela madrugada, da penúltima à última
hora da noite, a Prefeitura punha em ação as altas torres de aço e,
mediante descargas arti ciais, fazia cair sobre a terra seca uma
copiosa pancada de água. Mas não bastava. Os acumuladores elétricos,
que eram abastecidos pelos raios captados no espaço, estavam
esgotados. Já se falava num racionamento de eletricidade.
Quando chegaram ao terreiro, viram que, lá para a banda do mar, o
céu se cobria de pesadas nuvens negras e que sucessivos relâmpagos
lambiam com a sua claridade esverdeada o caótico amontoado do
horizonte. Em seguida, um ronco surdo partiu de longe, reboou pelos
costões da serra, perdendo-se na noite. As nuvens negras invadiram
todo o céu; o trom da tormenta fez-se mais próximo e dentro em
pouco, eles, dois na porta e dois na janela, viram um espetáculo
animador: raios ziguezagueavam pela abóbada e iam embeber-se nas
agulhas das torres do distrito. Estrondos de m-de-mundo sacudiam
a terra. João Antônio, referindo-se mentalmente à falta de eletricidade
dos acumuladores, exclamava a cada raio captado: — Mais 50.000
volts!

— Mais 100.000 volts!

Meia hora depois, a tempestade afastou-se para o sul e ele pôde


convir com satisfação:

— Estamos prevenidos de força e luz por mais alguns meses...

O casamento de Tuca e Zé ro deveria realizar-se no ano seguinte,


na pretoria do distrito e na Santa Cruz mais próxima, tão orida que
mais parecia um oratório em dia de festa. Aconteceu, porém que...

A cena passou-se no estádio, ao terminar uma reunião em que se


comemorava o primeiro cinquentenário da navegação normal
estratosférica. Diante do retrato do Professor Piccard, um lente da
Universidade falou dos seus primeiros trabalhos, das suas observações
e das tentativas que se seguiram em outros países. No "écran", foi
projetado o lme histórico do lançamento do primeiro projétil
estratosférico, que partiu de Nova Iorque com destino a Paris e gastou
meia hora no percurso. Era ainda rudimentar: pouco mais do que uma
bala, provida de dispositivos que, iniciada a descida, a iam
transformando em aeroplano. Abriam-se automaticamente as asas de
um lado e de outro; na parte inferior, desciam as rodas para
aterrissagem; na frente, moviam-se escamas de aço e três potentes
hélices descobriam-se para rasgarem a atmosfera. En m, partia-se
numa bala e chegava-se naquele poderoso avião. Nos últimos anos, a
evolução fora completa; era um aeroplano que partia e, pouco a pouco,
se ia fechando num casulo, à medida que se afastava da massa
atmosférica, para, na descida, automaticamente, voltar a ser o
aeroplano e pousar nos campos visados pelos seus pilotos. No
momento, as viagens nesses aparelhos estavam mais ou menos no
ponto em que ali por 1940 se encontravam as viagens em
quadrimotores...

Depois dessa conferência, os dois artistas executaram o bailado da


"Tentação de Ícaro." Zé ro, aparecia vestido à maneira grega. Tuca
mostrava-lhe a serenidade do azul, a beleza das frutas de ouro dos
astros e a alegria das asas. Nesse momento, o estádio enchia-se de
pombas brancas, voando. Ícaro ia buscar as suas asas de cera e, depois
de algumas tentativas, partia para o espaço. Ela via-o subir, subir, até
desaparecer. Então, fazia-se triste, chorava, por não poder
acompanhá-lo no seu sonho velho como a humanidade. Abria os
braços e voltava os olhos para cima. Nesse momento, asas derretidas
pelo sol, ele caía a prumo diante da companheira. Esta debruçava-se
lentamente sobre Ícaro, inclinando a cabeça e estendendo os braços
num sinal de adoração.

Aí devia terminar o bailado, num churrilho de notas altas dos 134


violinos da grande orquestra. Mas Tuca, delineando esse gesto, caiu
para a frente sobre o corpo de Zé ro. Perdeu os sentidos. O estádio foi
sacudido pelo estrépito dos aplausos, mas a moça não deu sinal de
vida e ali caria não se sabe quanto tempo se a pajem do seu camarim,
compreendendo o que se passava, não viesse buscá-la nos braços,
como uma criança adormecida. Só então o público compreendeu que
ela havia desmaiado.

Falou-se muito nesse caso. A direção deu-lhe férias. Ela recolheu-se


à casa dos pais e entrou num regime de descanso. Dali só saía à tarde,
pelo braço de Zé ro, num passeio pelas vizinhanças da pirâmide.
Quando fazia calor, tomavam uma embarcação e faziam curto passeio
pelo lago, deslizando entre as folhas chatas e escuras das ninfeias.
Tuca era melancólica. Gostava do luar sobre as águas e da orquestra
das rãs. Zé ro ria de tais criancices.

Um dia, ela, os pais e o noivo resolveram ir à clínica mais próxima.


O cientista de serviço àquela hora fez um exame rápido, não para
medicá-la como adiantou, mas para enviá-la ao especialista. A
medicina havia-se especializado ao in nito. Por outro lado, os
remédios tais como se usavam nos séculos anteriores tinham entrado
para a história. Terminado o exame, o médico chou-a e deu-lhe uma
apresentação para o especialista. Era um jovem assistente da
Universidade, que estudava tese antiga, mas sempre cheia de
novidades: "não há doenças, nem doentes."

No dia seguinte, procuraram o consultório do especialista. Como


professor, não servia em nenhuma clínica do distrito. Os poucos casos
que lhe eram remetidos, ele os atendia em sua própria casa, muito
mais rudimentar que as outras; era quase uma tenda de campanha.
Quando chegaram, o cientista havia saído do banho e deitado sobre a
relva, como um lagarto, enxugava-se ao sol. Conhecia Tuca e Zé ro,
nos seus bailados, e mostrou-se encantado com a visita.

Sentaram-se todos no chão, mas em outro lugar, debaixo de uns


jacatirões oridos. E ali, onde só se ouvia o zinir das cigarras,
conversaram por muito tempo. Ele falou de arte, agricultura, costumes
de países exóticos que conheceu em suas viagens. No m, como lhe
chamassem a atenção para o caso que ali os levara, pareceu cair em si e
com voz grave, tornando-se bruscamente professor, disse:

— Você é querida dos deuses. Eles a chamam para o seu seio.

— Como?

— Dou-lhe três meses de vida.

Os visitantes sorriram. Então o professor foi à tenda e trouxe um


aparelho que, mediante correias, ajustou ao peito de Tuca. O ponteiro
girou levemente sobre o disco esmaltado.

— Estão vendo? Ela, apesar de muito jovem, gastou o quinhão de


vida que trouxe do berço. Não é doença: é falta de vida. Con rmo o
meu diagnóstico.

— E que receita o professor?

— Nada. Ou melhor, muito pouco. Durma ao relento, exponha-se


inteiramente ao sereno do alvorecer. Quando cair uma boa chuva, das
naturais, faça o seu passeio debaixo da água e ao voltar para casa não
se enxugue. Tenha mais contacto com a terra que é nossa amiga e o
grande reservatório de vida. Talvez assim consiga viver mais algum
tempo. Mas não creio...

A morte havia perdido muito da catadura assustadora que


apresentava nos séculos passados. Morrer tinha deixado de ser uma
coisa espantosa; morria-se como se nascia. A ciência começara por
dizer: só envelhece quem quer. Naqueles dias, já anunciava pelo
silêncio austero dos laboratórios: dentro de pouco, morreremos
quando bem entendermos. Mas isso ainda era considerado utopia
pelos ranhetas da medicina.

Surgiam daí problemas espantosos que a igiam os chefes


temporais e espirituais. Por outro lado, os grandes sentimentos
humanos, com os novos aspectos da existência, tinham-se
esfarinhado em múltiplos pequenos sentimentos. Outrora amava-se,
odiava-se, temia-se ou revoltava-se profundamente. Agora, não. Cada
um desses sentimentos apresentava-se dinamizado ao in nito, de
acordo com uma humanidade in nitamente mais sensível. Parecia
que o homem, pela evolução rápida realizada nos últimos séculos,
sentia-se mais próximo da Divindade. Um novo sentido, desconhecido
pelas gerações anteriores, dominava o ritmo das existências.

A notícia da morte próxima não impressionou Tuca, nem provocou


manifestações de pesar nas pessoas que a queriam bem. Foi, pois, com
um sentimento outrora inexplicável de recôndita doçura que os quatro
se despediram do professor e seguiram para a Avenida Jabaquara. Em
caminho, os noivos resolveram casar-se antes da separação de nitiva.
Os pais não viram inconveniente nisso. E o contentamento pelo
próximo enlace dominou por inteiro o temor da prognosticada
separação. Eram moços e amavam-se; depois de se unirem poderiam
opor as suas razões à morte.

O ato civil realizou-se num sábado, pela manhã, na pretoria do


distrito, servindo de padrinhos os pais da noiva e músicos do teatro. À
saída, o juiz deu a Zé ro um papel mediante o qual ele foi à Prefeitura
e retirou a casa, a mobília e o necessário para a constituição do novo
lar.

A verdade é que eles já haviam procurado e encontrado, com a


aprovação do rabdomante o cial, um lugar para a instalação da nova
casa: era na rua LVII, junto à residência dos pais. terreno vago e orido
que parecia um canteiro. Os próprios noivos e os padrinhos montaram
a casa, prepararam-na e oriram-na para as bodas. Seu almoço foi
alegre e festivo. Cerca de quinze amigos, entre os quais colegas de João
Antônio, de Maria Balbina e dos noivos. Os rapazes da Cultura
organizaram uma orquestra e zeram a sua oferta de música, tão
linda como poucas vezes se ouvia num simples casamento. A tarde,
todos juntos, numa espécie de romaria, tomaram o caminho do morro
e se dirigiram a Santa Cruz.

Já não se viam templos pomposos, a não ser os que haviam chegado


de outras eras. Nesse tempo, eram os grupos de éis que, de acordo
com as necessidades dos núcleos de população, construíam
pequeninas igrejas, numa espécie de mutirão que lembrava
poeticamente a obra dos cristãos primitivos. Era geralmente uma
Santa Cruz. As moças e as crianças encarregavam-se de plantar
roseiras em redor delas e conservar o altar enfeitado de ores frescas.
O padre, geralmente, residia próximo à Santa Cruz, e ali dizia a missa
matinal. Aos domingos batizava, confessava, comungava, realizava
casamentos e, não raro, por noite alta, ia levar a extrema-unção a
alguém que se partia desta para melhor. Cada padre, para não car
pesado à paróquia, dedicava-se a uma pro ssão condizente com o seu
sacerdócio. Uns lecionavam música, outros, literatura, muitos
entregavam-se à lavoura.

O Padre Benedito, daquela Santa Cruz, morava mesmo ao lado. Era


um velhinho de outros tempos que repartia a existência entre os
deveres do sacerdócio e a paixão pelos versos latinos. Havia cerca de
trinta anos trabalhava na sua "Rosa Mística", um poema que,
certamente, nunca chegaria a aparecer porque ele, com excessos de
agudeza crítica, punha de tarde ao fogo os versos que havia composto
pela manhã. Mas isso não bastava para encher-lhe as claras e
compridas manhãs do Zanzalá. Então, era de vê-lo vergado sobre as
suas colmeias que, só por si, constituíam vasto estabelecimento de
apicultura. Onde ia, acompanhava-o um enxame. Quando as abelhas o
importunavam demais, abria o livro de orações e agitava-o no ar,
pondo em fuga a nuvem zumbidora. Era ele quem fornecia o mel com
que os alunos da Escola Municipal adoçavam, todas as tardes, a
merenda de cenoura ralada, seguida de uma caneca de mate.

Mas para a Igreja daqueles dias não havia desaparecido totalmente


a luta. A verdade, porém, é que as suas preocupações estavam num
terreno muito alto. Depois da famosa encíclica de Pio XIII, em 1987, o
clero havia voltado as vistas para os animais. A carne, no seu aspecto
mais grosseiro, havia muito, tinha desaparecido da alimentação, só
sendo ainda usada, e isso mesmo às escondidas, por indivíduos que
eram apontados a dedo, na rua, pelo feio pecado que cometiam. Os
homens passaram a estimar e a respeitar todos os animais. Nessa
campanha moral, a Igreja tomou papel saliente e conquistou os
intelectuais de toda a terra. São Francisco de Assis era o patrono do
movimento vencedor. Um discurso antiquíssimo, de Monsenhor Bolo,
de Marselha, iniciara a esplêndida campanha.

O casamento de Tuca e Zé ro foi naquela Santa Cruz; uniu-os o


Padre Benedito. Depois do ato religioso, levou-os a visitar o colmeal, e
a propósito de qualquer coisa, leu-lhes alguns versos da "Rosa Mística"
Mas já estava escurecendo e os recém-casados despediram-se,
seguidos pelos padrinhos e amigos. Ele acompanhou-os ainda um
bom pedaço morro-abaixo. Ao despedir-se, colheu no barranco uns
ramos de trepadeira azul e* deu-lhos. Tuca beijou as suas mãos com
um profundo reconhecimento, orvalhando-as de lágrimas.

Alguns passos mais adiante, ela voltou-se e viu o padre de pé, no


barranco, a abençoá-los de longe.
Os noivos, os pais e os amigos entraram no povoado exatamente
como se fazia no tempo de seus antepassados: ao som de música...
Chegando à casa, Tuca plantou a trepadeira embaixo da janela; e a
muda pegou.

Uma canção anônima, daquelas que surgiam e desapareciam ao


acaso, cantou enternecidamente o idílio da ua LVII, n.° 211.

Os jovens que passavam pelo local, mostravam a única janela, com


a sua cortina de rendas e as trepadeiras azuis, sem nome, e diziam:

— Ali é que mora o amor.


IV
O MARAVILHOSO

Mas, os dias iam passando. Tuca, nas horas de apreensão, repetia esta
frase proferida pelo Padre Benedito, quando soube da ameaça que
sobre eles pairava:

— Vivam e amem-se. Não pensem na morte. Se Deus nos deu a


morte é porque é boa e útil. Deus não erra...

E a serena con ança com que foram ditas essas palavras enchia-a
de uma in nita doçura. Zé ro, porém, não se conformava com a ideia
de perder a querida companheira. Desvairado, fez no século XXI o que
nossos antepassados zeram ao longo de todos os tempos: recorreu ao
maravilhoso. A verdade, no entanto, era que o maravilhoso, no "século
da simplicidade" já não parecia maravilhoso; a ciência havia explicado
e adotado muita coisa que por aí andava como do outro mundo.

Liquidadas, na maior parte, as preocupações materiais, graças ao


progresso da nação, os homens tiveram tempo e até mesmo uma certa
necessidade de se ocuparem dos problemas do Além.

Coisas que se realizavam comumente em 2028 se fossem feitas em


1928 poderiam levar o experimentador à fogueira; pelo mesmo
motivo, coisas que em 1928 eram tidas como embuste ou bruxaria, ali
pelo ano de 2028 já estavam incorporadas ao patrimônio comum e
não admiravam a mais ninguém. É que, onde chega o conhecimento, o
maravilhoso desaparece, o rictus do pavor transforma-se num
saudável sorriso de compreensão.
Pensando nessas coisas, Zé ro levou Tuca ao feiticeiro. Nas
proximidades, havia um preto chamado Simeão que era o digno
sucessor dos pais-de-santo, isto é, dos que nos séculos passados
faziam macumbas e canjerês. Tinha, no entanto, sofrido a in uência
do seu tempo. Com um século de atraso, ele complicava as coisas
precisamente na época em que os outros, cansados de complicações,
procuravam simpli car o que os rodeava. Assim, o feiticeiro já não
morava num rancho perdido à beira de velho caminhe: o Seu terreiro
já não se estendia numa tapera, sob felpudas árvores. O preto Simeão
tinha progredido, a seu modo.

Vivia numa espécie de templo, com seus arixãs, ritos e concubinas.


Para lá entrar era preciso um convite que não se dava a qualquer
pessoa. Mas a Zé ro e Tuca foi relativamente fácil conseguirem
entrada no zungu. Uma noite, tomaram o caminho do Monge e, depois
de algumas voltas, chegaram ao templo.

Era uma casa branca, feita de pedra, com arrebiques arquitetônicos


em toda a frontaria. A entrada apresentava-se estreita, defendida pelo
porteiro agaloado, de bastão, que mais parecia um marechal de
França. Vencidos os poucos degraus, entraram no único salão, vasto e
frouxamente alumiado. Já havia ali muita gente reunida. Fumava-se e
conversava-se em voz baixa. Quando a vista se habituou ao ambiente,
puderam admirar uma espécie de palco, todo escarlate, onde avultava
a imagem de São Jorge matando o Dragão. Numerosas velas ardiam ao
pé do santo, que para os éis tinha o nome de Exu.

Nem bem haviam entrado, já sentiam vontade de sair; não era


precisamente o que procuravam. Seu desejo seria encontrar aquilo de
que as velhinhas de outros tempos falavam: um homem rústico que
sabia rezas fortes, que fechava o corpo ou que cortava mandinga com
uma folha de capim cidrão. Dispunham-se, pois, a sair quando sete
pretos altos, de carapuça vermelha, subiram para o tablado com seus
atabaques e ganzás. Logo irrompeu a música selvagem, numa toada
enervante. Instintivamente, os bailarinos rmavam-se num pé e no
outro, à procura do ritmo. Logo depois, entrou uma la de doze
mocinhas vestidas de cores vivas, mostrando a cada movimento
pernas nas e braços em ângulos agudos. Elas, sim, compreendiam o
ritmo dos instrumentos e esboçavam com seus meneios uma dança
que devia datar da aringa africana de onde haviam chegado seus
ancestrais, congos e nagôs.

"Foi aí que apareceu Simeão, crioulo baixo, atarracado com a cabeça


redondinha como de criança. Vestia-se à moda antiga, ostentando
vestes que só eram encontradas, agora, nos museus e nas peças
teatrais representadas por artistas nômades, daqueles que às vezes
passavam pelo distrito e se faziam anunciar como circenses. O preto
envergava uma casaca irrepreensível do século passado, sobre colete
vermelho e calças de linho branco, que lhe chegavam aos sapatos de
couro, com polainas. Uma ta de três cores atravessava-lhe o peito a
tiracolo, por baixo da casaca. Tinha também várias medalhas e uma
bengala cujo castão era, de quando em quando, tragado pelos punhos
de uma brancura anilada.

Quando ele entrou, os instrumentos troaram e a assistência, que já


enchia o salão, prosternou-se. Um cheiro forte de resinas queimadas
inundou o ambiente, toldando a pouca claridade que havia e fazendo o
ar ainda mais irrespirável. Então, o homem parou diante do auditório
e pôs-se a proferir palavras em língua africana que lhe haviam
custado muito trabalho de pesquisa nos in-folios antigos que
atulhavam os porões de determinados museus.

Logo depois, uma das moças adiantou-se e começou aquele canto


lento e pesado, seguido pelos atabaques e ganzás, em surdina. As
outras moças de quando em quando faziam o coro a boca fechada. Ele
explicou, no m. Era uma tradição velha como o mundo.

Os bailarinos escapuliram-se, desanimados. Não. Não era aquilo


que os velhos de outros tempos contavam, tecendo picarés de tucum
nas portas de suas casas. E, já na estrada, ao ar livre, respiraram
profundamente.

Certo domingo, voltou-lhes ainda mais forte o desejo de recorrer ao


maravilhoso.

Procurariam outros meios.

O espiritismo, por exemplo, havia atingido a uma espécie de


realidade capaz de satisfazer a muita gente. Por toda parte,
encontravam-se desses homens simples e bons, um tanto exaltados
por verdades que entreviam, e sempre dispostos a arrastar os
indiferentes para o seu meio. Não faltou, pois uma mulher sorridente
para convidar os dois jovens a assistirem a uma sessão no centro local.
Quem sabe lá... Tem-se visto tanta coisa... E certa noite não resistiram
ao convite da mulher sorridente. Foram.

Era na casa de benquisto relojoeiro. Tiradas as paredes internas,


afastadas as bancas de trabalho, cava-se num vasto salão. No meio,
grande mesa com dez ou doze pessoas sentadas. Na parte dos fundos,
em aberto, viam-se assentos rústicos, nos quais se comprimia muita
gente. O dono da casa era quem presidia à sessão. A lha, magra, de
grandes olhos atônitos, auxiliava-o.

Em dado momento, a moça trouxe grosseira taça de bronze com


brasas vivas e colocou-a sobre a mesa. Um o de fumaça azul subiu a
prumo e foi desmanchar-se no teto. Depois, ela tomou de um
cofrezinho e com a espátula colocou resina sobre os carvões. Ao redor
da moça, muito contritos, os homens, rezavam baixinho. Então, da
taça ergueu-se comprida nuvem branca que se pôs a rolar sobre a
cabeça dos convidados, tomando formas extravagantes mas que,
pouco a pouco, iam delineando os contornos ora vagos ora precisos de
uma criatura evanescente. Pelos bancos, ouviu-se, mais forte, o ciciar
das preces.

No silêncio passaram sons vagos que se aproximavam da voz


humana. Dentro de pouco, esses sons chegavam a formar palavras
descosidas e, por último, até frases inteiras. Eram conselhos a alguns,
ou a todos. Em certo ponto — talvez fosse ilusão — a gura de fumaça
voltou-se para o local onde se encontravam os dois jovens e,
estendendo um lamento que bem poderia ser um braço, disse:

— A morte não é um castigo, é antes uma bênção da Divindade!

Ambos se deram por satisfeitos e saíram. A noite estava esplêndida,


mas fria. Na massa escura da pirâmide, a chamazinha votiva cintilava
como estrela perdida nos caminhos da terra.

Na semana seguinte, também ao anoitecer, um teoso sta passou


pela porta dos bailarinos e, dirigindo-se a eles, disse-lhes com ar
inspirado:

— Eu é que conheço a verdade!

Os dois caram hesitantes.

— Se a verdade lhes interessa, venham comigo!

Então, Tuca e Zé ro tomaram as túnicas de lã e seguiram o


iluminado. Entraram na Avenida Jabaquara, seguiram na direção da
serra e quando as casas desapareceram, eles alcançaram muitos
homens e mulheres que seguiam para um local, entre morros. Era
gente simples, alegre, perenemente enamorada da vida. Uns
chamavam os outros de irmãos. No meio deles ia um homem alto,
escuro, sem idade, que parecia caminhar num ritmo certo. Vestia
túnica branca e tinha larga faixa de linho, enrolada de certo modo na
cabeça. Sobre a testa, uma estrela de prata.

Procuravam os lugares isolados para aí se reunirem. Diziam sentir-


se melhor em contacto com a natureza. Mas as suas reuniões não
estavam fechadas para ninguém.

No m do caminho, surgiu uma assentada entre rochedos escuros.


No centro dessa assentada, ardia grande fogueira ao redor da qual
havia muita gente de cócoras, ou à maneira oriental. Os que chegaram
foram recebidos com abraços pelos que lá se encontravam. Zé ro e
Tuca viram-se imediatamente reconhecidos e aos artistas foram
prestadas homenagens carinhosas. Uma jovem, também da Cultura,
como eles, cantou suave invocação, erguendo os braços nos e nus
para o céu palpitante de estrelas. Quando terminou, os teoso stas
pediram ao casal que dançasse alguma coisa. Logo, um violoncelo e
vários violinos saíram da sombra e foram colocar-se à sua disposição.
Eram, também eles, seus amigos, lá no teatro. Tuca consultou Zé ro e
disse algumas palavras aos músicos. Então, no silêncio daquela
assentada, entre morros quase a prumo, começou-se a ouvir a "Dança
ritual do fogo", de De Falia. E, logo a seguir, os dois jovens, com passos
curtos e meneios rápidos, executaram bailado anguloso, no qual
parecia encurtar-se o estralejar de ossos. Projetadas pela fogueira
contra a massa escura dos des ladeiros, as suas sombras realizavam
outro bailado, ainda mais impressionante.

Terminada a parte artística que sempre dava início às reuniões, os


adeptos ergueram, mediante varas, extenso palio de seda azul celeste.
Debaixo do palio, sobre a ferra nua, estenderam esteiras. Mestre
Sidônio, que era o homem da estrela de prata, sentou-se ao centro e
dirigindo-se aos dois bailarinos disse-lhes:

— Meus irmãos, convido-os a visitar o plano astral.

Tuca hesitou, mas Zé ro tomou-a pela mão e conduziu-a para a


tenda improvisada. Sentaram-se na esteira. Uma mulher de
sobrancelhas horizontais ensinou-lhes a posição adequada:
abraçando as pernas e com a cabeça entre os joelhos. Nesse meio
tempo, viram passar a sombra de mestre Sidônio, que lhe tocou na
nuca, com a ponta dos dedos. Imediatamente puseram-se de pé, ao
lado do iniciado. Olharam em redor de si. O quadro parecia
in nitamente mais claro; no entanto, a paisagem havia-se tornado
uida, com leve tonalidade azul.

Mestre Sidônio chamou-os. Os dois jovens seguiram-no por uma


estrada onde se via muita gente. Lá estavam os que tinham morrido
pouco antes. Cada uma dessas pessoas parecia inteiramente voltada
para as suas preocupações terrenas. Havia os que continuavam a
trabalhar nos campos, os que liam, os que dançavam, os que oravam,
os que se propunham realizar os seus pequenos sonhos de felicidade.
Havia também os que se desesperavam a fumar cachimbadas de
mentira, a beber em copos horrivelmente vazios, a espetar nas carnes
de sombra agulhas de seringa, perfeitamente inúteis. Viram um
assassino conduzindo às costas, pesado como chumbo, o cadáver da
vítima. Escutaram estrepitosas gargalhadas, uivos de cólera, choro e
ranger de dentes. Era o purgatório e o inferno. Mestre Sidônio disse-
lhes:

— Ninguém chega ao céu sem passar por aqui...


Subiram mais e tudo clareou; como que amanhecia. Aí encontraram
os namorados absorvidos no seu grande amor; os sábios que haviam
passado a vida na luta contra o mistério da vida; os artistas que se
tinham sacri cado pela sua arte; as boas mães, os bons lhos, aí
viviam docemente. Os esposos, que se haviam amado, reconstruíram
aí o seu lar, uma felicidade que duraria o tempo que eles quisessem; os
poetas compunham versos estranhos nos quais as frases tinham, de
fato, música; todos os que da qualquer forma bene ciaram o seu
semelhante aí estavam. Era o paraíso dos que haviam amado, sofrido,
amparado a alguém na sua passagem pela terra.

Mestre Sidônio estava mais acima e chamou-os; quiseram


acompanhá-lo, mas não conseguiram. A ladeira tornava-se muito
íngreme e a terra — a terra na do céu — parecia fugir de baixo de
seus pés. Então o místico voltou, tomou-lhes as mãos imponderáveis
e, depois de mostrar o quadro esplêndido que dali se via, conduziu-os
de regresso pela mesma estrada. À medida que desciam, a atmosfera
voltava a fazer-se espessa, a terra pedregosa, as cores menos vivas. Em
certo ponto, começaram a encontrar os escuros habitante* daquele
mundo inferior. Uma mulher a ita, que ali devia estar há mais de um
século, contava moedas de ouro. Fazia montes de dinheiro e, quando
acabava, tudo aquilo se ia desmoronando, transformando em cinza.
Então, ela recomeçava o trabalho. Havia os que se aborreciam, por não
poderem fazer nada. Súbito, passou sobre eles uma nuvem de pombas
brancas que escureceu o céu. Mestre Sidônio sorriu e disse-lhes:

— São almas que descem à terra, para nascer. Certos lares são
verdadeiros pombais de almas em or. Elas esvoaçam por toda parte,
fazem grandes voltas em bando sobre as cumeeiras!

Estavam chegando à terra. Nuvens vivas e alvas toldavam a


paisagem invertida dos jardins: eram elementares que queriam ser
ores, borboletas, besouros, cigarras... Depois o quadro, já no nível da
matéria bruta, tornou-se outra vez confrangedor: de quando em
quando um corpo despedaçado rolava nas correntes etéreas e, vendo-
os, sorria, com a boca podre, rasgada até às orelhas. Animais ferozes
fugiam de um lado e de outro da estrada, ao gesto branco do Mestre
Sidônio. Em certo ponto, eles sentiram que estavam à altura da
planície de onde haviam partido. Dali para baixo, era um abismo
espantoso. O mestre mostrou-lhes jaula imensa como um planeta, que
se estendia pela terra a dentro. As grandes eram feitas de matéria
luminosa que as sombras acorrentadas não podiam forçar.

— Vocês sabem o que é isto? Não sabiam.

— Nesta jaula, é que a Divindade mantém os espíritos planetários


que nós, na terra, dizemos do mal. Quando a humanidade estaciona e
se torna incapaz de evoluir, de acordo com as leis do Amor, a
Divindade abre esta jaula e solta algumas das potências das Trevas.
Elas precipitam-se nos planetas e encarnam-se entre os homens. São
os que fazem as guerras, os que desencadeiam os baixos sentimentos,
os déspotas e os perseguidores. Eles revolvem o mundo como quem
mexe um tacho. Aqui é que se encontram os Herodes os Atilas, os
papas danados, todos os que oprimiram e ensanguentaram a terra. Se
a humanidade para no caminho, é preciso sacudi-la, agitá-la, como se
faz com um rebanho indolente. Quando estas almas torvas se
incorporam na humanidade há uma espécie de pânico universal. A
evolução precipita-se, os endurecidos morrem, os capazes sofrem, e
nesses rodamoinhos espirituais a humanidade adianta-se de séculos
na sua evolução. Dos que aqui se encontram muitos perseguiram a
Cristo, desencadearam as Cruzadas, perseguiram os Templários,
operaram na Revolução Francesa, espantaram o século passado...
Mas, felizmente, estão presos neste momento, até que um dia seja
necessário soltar os cães do Senhor.
Os dois olharam por entre as frestas. Na jaula havia sombras mais
escuras do que a escuridão. Olhos vítreos espiavam da profundidade.
Garras de aço raspavam as grades de luz. Lobrigaram vultos da
sinistra dinastia dos Li. Eram Li-Napoon, Li-Ther... Ouviu-se, então,
um urro espantoso e uma cara glabra apareceu na jaula. Era meio
homem meio animal. Calvo, gordalhufo, de queixada proeminente e
olhos globulosos, a girarem nas órbitas. Embrulhava-se em panos
negros e tinha no peito a caveira sobre as tíbias em cruz, emblemas
das forças do mal.

Ambos gritaram:

— Li-Sonimus!

E acordaram assustados. O mestre também. A assembleia parecia


ter su pensa a respiração. Depois de algumas palavras, os bailarinos
partiram. Iam perplexos com o que lhes fora dado ver. Mas os seus
pensamentos foram perturbados por um homem que estava sentado
numa pedra e, ao vê-los passar, chamou-os com ar divertido, feliz.
Seguia a doutrina de um certo Jiddu, que vivera no século anterior.
Explicado isso, disse-lhes:

— Para que religião? Vocês já viram um homem sicamente


perfeito andar de muletas? Quem deixa uma religião não deve adotar
outra. É como o pássaro que escapa de uma gaiola e, não sabendo o
que fazer da liberdade, procura imediatamente outra gaiola. A
verdade está no desenvolvimento da individualidade, no despertar, no
conceber, no perceber, no intuir as coisas. A contemplação é o
caminho. A poesia é a linguagem da alma. Não há nada fora de nós
mesmos. Devemos viver não no plano ísico, nem no plano espiritual,
mas em todos os planos ao mesmo tempo. Viver amplamente. Sermos
revolucionariamente nós mesmos. O homem vale pelo perigo que
representa para o estabelecido. Nem céu, nem inferno, nem mestre,
nem discípulos. Um ser que morre é uma or que se fana, murcha, cai.
Nada mais, nada mais...

Os dois fugiram e o homem sentado na pedra do caminho


continuou falando, na ânsia de quebrar todas as formas do
pensamento, de romper todos os diques que se lhe antepunham à vida.
Esperava que no m desabrochasse a consciência individual,
completa, como uma grande or. Mas ninguém o ouvia naquela noite
estrelada, fria, em que os namorados passeavam pela avenida do lago
e os bambus se inclinavam docemente à viração do mar...
V
OS CABORÉS

Com o desenvolvimento das máquinas, muitos animais que tanto


auxiliaram o homem no seu progresso estão destinados a desaparecer.
Esta observação que não é nova pode ser comprovada na vida pacata e
comum do Zanzalá. Bois e vacas ainda são encontrados em pequeno
número nos estábulos do distrito, embora a maior parte do leite
consumido seja vegetal. Os cães, empregados em diversos serviços,
também aparecem. Pode mesmo dizer-se que nas noites de lua-cheia,
as pessoas insones ainda ouvem pela rua o escandaloso namoro dos
gatos. Mas os equinos, os caprinos e os ovinos só podem ser vistos nas
páginas da Enciclopédia, ou nas Avenidas do Jardim Zoológico.

Esse jardim, que ca próximo dos Areais, é muito visitado,


principalmente nos dias de festa. Professores param diante daqueles
bichos, um tanto ariscos, e explicam coisas interessantes a crianças de
olhos arregalados:

— Vocês precisam amar e respeitar os animais. Eles representaram


importante papel na história do homem, notadamente do homem da
América. Nos primeiros séculos da nossa civilização, o transporte
terrestre era feito com auxílio dos animais. Ali está aquele cavalinho
cor de pinhão...

— O Guaicuru!

Todas as crianças conhecem o cavalinho do Jardim Zoológico.


E o professor continuava:

—..... sim, o Guaicuru. Ele é descendente de uma nobre estirpe. As


estradas eram vencidas nos lombos dos cavalos. Depois, vieram os
banguês, os diversos carros urbanos, os veículos de transporte de
mercadorias. Houve tempo em que o Brasil produziu dois terços do
café consumido no mundo. Esse café era acondicionado em sacos de
aniagem e transportado dos armazéns para os navios em carretões
puxados por animais desta espécie. Um dia surgiram carros grandes
que trafegavam sobre tas de aço e aos quais os nossos antepassados
chamavam de "bondes." Os primitivos bondes eram também puxados
por animais. Os exércitos de todos os países utilizavam milhares e
milhares de cavalos para o transporte dos víveres e para os combates.
Mas não devemos esquecer o auxílio grandioso que nos prestaram os
bois. O primeiro progresso de São Paulo passou por aqui, pelo
Zanzalá, arrastado por parelhas de bovinos; os primeiros engenhos,
caldeiras de vapor, dínamos elétricos e outras máquinas subiram a
serra em pesados e lentos carros-de-bois, daqueles que ainda se
encontram nos museus. Foi só quando a eletricidade, o vapor e o
motor de explosão se adaptaram às necessidades do transporte que o
animal desapareceu. Imaginem vocês que por aquele tempo já havia
cidades, como Londres, com seis milhões de habitantes. Seria curioso
saber como viviam e eram tratados os incontáveis cavalos utilizados
nos transportes urbanos, públicos ou particulares correspondentes às
necessidades dessa formidável população. Felizmente, a máquina
substituiu a tração animal. Os carros elétricos libertaram milhões de
burros; os automóveis, caminhões e aeroplanos libertaram os
restantes. E, com o correr dos anos, os equinos foram desaparecendo,
a ponto de os governos terem de recolher exemplares nos museus para
que a humanidade não perdesse de vista os seus velhos amigos. Com
as ovelhas, deu-se quase a mesma coisa. Nossos avós utilizavam a lã
dos carneiros para tecer as suas pesadas vestes; utilizavam a sua pele
para numerosos artefatos e até mesmo a carne...

— A carne?

— Sim, a carne para alimentação. Nossos antepassados, na sua


maioria, alimentavam-se de cadáveres de animais...

— Os índios?

— Os índios e os civilizados.

Aquele cavalinho chamado Guaicuru era o encanto da molecada do


Zanzalá. Na manjedoura, havia sempre milho, mas os seus
amiguinhos não deixavam de levar-lhe braçadas de capim cortado na
beira dos córregos. O Guaicuru, por seu lado, tinha um fraco pelas
crianças e pela erva fresca que elas lhe levavam. Era um animal muito
inteligente. Contavam-se anedotas a seu respeito. Uma canção
popular daquelas que nasciam, oresciam e morriam pelas ruas,
espontâneas como o lírio do brejo, cantava a doçura melancólica do
bicho aposentado.

Imagine-se, pois, o barulho que fez em todo o distrito esta novidade


que, certa manhã, andou de boca em boca:

— Raptaram o Guaicuru!

Foi um sucesso. Grupos de meninos correram logo para o Jardim


Zoológico e caram pasmados diante do que viram. As cercas de
arame haviam sido cortadas com alicate e o animal retirado da
cocheira de sapé, onde habitualmente passava horas com o focinho
mergulhado na manjedoura, mastigando o penso. Seu rasto podia ser
seguido até a Avenida Jabaquara, depois desaparecia no asfalto negro
e luzente. Aonde teriam levado o pobre bicho e para quê? Quando a
notícia chegou à Escola Municipal, foi um corre-corre, um diz-que-
diz-que... Naquele dia, todas as tarefas caram em meio, por mais que
os professores se esforçassem em manter a criançada em ordem.

À tarde, as ruas e praças do Zanzalá regurgitavam.

Não se falava de outra coisa.

Uma mulher subiu numa pedra e gritou:

— Foram os caborés!

Os circunstantes acharam que a mulher tinha razão. E desde aquele


momento, quando se falava no Guaicuru, havia sempre alguém que
cava indignado e repetia a terrível frase: — Foram os caborés!

Caboré quer dizer homem do mato. Mas, no Zanzalá, ali pelo ano de
2029, quando se falava em caboré, toda a gente emprestava a essa
palavra um signi cado particular. Aqui há lugar para uma explicação.
No século anterior, antes de ser suspensa a imigração de europeus,
tinha-se registrado um fenômeno interessante. Alguns desses povos,
nascidos e educados num ambiente de inquietações políticas e
guerras, orientados por uma loso a desumana, se haviam tornado
inadaptáveis à vida de trabalho e de concórdia que é tão própria da
América. Onde eles estavam, surgia logo uma questão, muitas vezes
um con ito. A Europa — embora hoje não pareça — já foi um
continente civilizado. As ruínas que ainda lá podem ser vistas dão
ideia do seu antigo esplendor. Como se sabe, a rápida decadência
começou em 1914 e acentuou-se com as guerras que se sucederam. Em
1950, era um montão de ruínas fumegantes. Daí para cá, cou sendo
uma espécie de museu em ponto grande, onde os estudantes de outros
continentes vão veranear todos os anos e consultar os arquivos. Hoje,
a Europa vive das glórias do passado. Nas conversas, os europeus
falam com voz tremida de descobridores, de poetas c de lósofos. Mas
tudo isso passou, está perdido na distância. Só resta um povo
envenenado, in adaptável, que a América e a África recebem com
justi cada reserva...

Essa gente era encontrada em grande número no litoral, mas a sua


atitude tornou-se há muitos anos mal-vista nos centros populosos.
Por isso, ela isolava-se em povoações perdidas nas dobras da Serra do
Mar. Homem civilizado não tinha comércio com europeu. No entanto
— e isso era muito da sua conduta — alguns caborés arriscavam-se
em frequentes incursões nos distritos mais próximos, fazendo valer
armas que ainda eram a sua preocupação, apesar de a humanidade ter
evoluído muito no cumprimento do Sermão da Montanha.

O núcleo dos caborés mais próximo do Zanzalá chama-se Açungüi e


ca entre Piaçagüera e o braço do mar, num recanto inutilmente
defendido por poderosas máquinas de matar gente. A aldeia está
situada à margem de um desses riachos de água vermelha que cortam
as praias e se lançam no mar. Daí talvez, o seu nome que signi ca —
rio do sangue. No Açungüi, vive uma tribo de homens que, depois de
alcançarem a civilização, regrediram à barbárie. Moram em sobrados
de pedra ou cimento armado, numas gavetas a que chamam de
apartamentos. Governam-se por uma rígida hierarquia, cheia de
complicações e mesuras. Exercitam-se no tiro-ao-alvo e dedicam-se
ao jogo de paciência de amealhar rodelinhas de ouro, como os seus
ancestrais. São, portanto, anticristãos. O motivo do seu afastamento
da vida comum é o apego que têm pelas formas arcaicas, a
intolerância, o desejo sempre presente de dar à vida americana formas
antiquadas, numa clamorosa incompreensão das belezas da
simplicidade.
Frequentemente, os caborés apresentam-se em grupos de três ou
quatro no vale do Zanzalá. Quando aparecem mais numerosos, os
homens são prevenidos, deixam o trabalho e vão obrigá-los a se
dispersarem pelo distrito. Sua presença é sempre recebida com certo
receio. É que alardeiam ideias e vícios que a América já deixou muito
para trás, no seu progresso. São altos, escarlates, e usam na cabeça
umas cápsulas de feltro a que chamam de chapéu, e que muito
divertem as crianças. Os cabelos são compridos e a longa barba ruiva
chega à altura do umbigo. Usam também roupas grossas e coloridas,
de di ícil higiene. Quase todos calçam uns canudos de couro para
proteger-lhes as pernas, sobre sapatos igualmente de couro. Fumam
cachimbo, desmandam-se em bebidas feitas com cereais apodrecidos
e muitos deles são carnívoros. Há até no seu meio, segundo se a rma
em voz baixa, os antropófagos. Mas, isso deve ser lenda. Em todo caso,
aí ca a versão...

Não fazem camaradagem com os habitantes do Zanzalá. Chegam,


passeiam, escarnecem das mulheres e crianças que encontram no
caminho e, em caindo a tarde, quando os homens voltam do trabalho,
tomam cautamente a estrada do Açungüi. São assim os caborés.

Levantada a suspeita de que o Guaicuru fora raptado pelos caborés,


alguns homens lembraram-se de que, na véspera, um grupo deles
andava pelo vale e ninguém os vira tomar a estrada do seu reduto.
Havia, pois, motivos para atribuir-lhes o crime que alarmava a
população do distrito. Discutiu-se muito a tal respeito. E, depois de
ouvidos os habitantes de Piaçagüera, que não tinham visto os caborés
regressarem ao Açungüi, cou estabelecido com segurança que eles,
depois de haverem arrombado o jardim e raptado o cavalo, ter-se-iam
escondido em alguma dobra da serra, com sinistros intuitos. Tal
convicção generalizou-se. Então, grupos de rapazes e moças tomaram
a si a incumbência de procurar os bárbaros e — se ainda fosse tempo
— arrancar-lhes das garras o pobrezinho do Guaicuru. O rádio botou
a boca no mundo. Um apelo insistente convidava a população de todos
os recantos a denunciar a passagem dos raptores e de sua presa. Até ao
anoitecer, os alto-falantes atroaram os costões azulados da serra.
Nada de novo, porém.

Tuca e Zé ro corriam de um lado para outro, verdadeiramente


interessados na sorte do animal. Só conseguiram jantar muito tarde e,
assim mesmo, a moça permaneceu abstrata durante a refeição. De
quando em quando, sem conformar-se, exclamava:

— Estou com pena do Guaicuru!

Veio a noite. Pelas ruas e praças, ajuntou-se muita gente. De quando


em quando, uma voz elevava-se e malsinava os caborés. Sentia-se em
toda a população um agudo nervosismo.

Lá pela terceira hora da noite, um moleque qualquer, brincando na


avenida que contorna o lago, apontou de repente as bandas do Monge
e mostrou aos circunstantes um o de fumo que subia da parte negra
da serra e se perdia no ar parado da noite de luar, clara como o dia.
Todos tiveram a mesma ideia:

— Lá estão os caborés!

A descoberta circulou rapidamente pela povoação e dentro de


pouco uma gente alegre dirigiu-se para as bandas de cima, em busca
do lugar assinalado pelo o de fumaça. A Avenida Jabaquara encheu-
se logo de homens, mulheres e crianças e todos se puseram a correr
com o mesmo destino. Queriam saber o que os caborés estavam
fazendo do cavalo. Mas, o sítio em que eles se encontravam, se de fato
eram eles, devia ser muito distante. Já no m da Avenida Jabaquara,
escalaram as escarpas e tomaram por estradas, depois por caminhos,
por trilhos, por picadas. E chegaram ao mato. Talvez o último reduto
de oresta da serra de Paranapiacaba. O luar prateava as copas, mas
não descia até ao chão. Por isso, aquela gente, ansiosa e disposta a ir
até o m, aceitou como guias os que naturalmente já haviam passado
por ali mais de uma vez. Entre esses estava Zé ro. Seguia na frente,
abrindo caminho com os braços; atrás dele, enroscando-se nos cipós,
tropeçando nas pedras soltas, escorregando no limo dos des ladeiros,
caminhavam homens e mulheres. Ouviam-se gritos, pragas e, de
quando em quando, cristalinas risadas.

Entraram num caminho velho entre barrancos altos.

Zé ro parou e disse:

— Estamos na estrada das Caveiras.

Uma mulher das que o acompanhavam exaltou-se.

— Por que tem esse nome?

Destacou-se da treva um homem grave que conhecia a história da


região e falou:

— Eu sei porquê. Vou contar-lhe. Ali por mil oitocentos e trinta e


tantos existia lá longe, no chamado Cubatão-de-Cima, um engenho de
cana pertencente a Dona Josefa Ferreira Bueno, que ali vivia, em
companhia de duas lhas moças e alguns escravos. Essa senhora de
engenho parece que não poupava os seus pretos. E tanto fez que, uma
tarde, eles se revoltaram. Cheios de cólera, abandonaram a senzala e
entraram de roldão pela casa de telha. Prenderam Dona Josefa e
começaram a torturá-la. Umas das lhas, meio enlouquecida, tomou o
caminho de São Vicente, distante algumas léguas e saiu a correr em
busca de auxílio. A outra trepou no fogão e com grande esforço
conseguiu esconder-se entre os jacas de toucinho atravessados no
fumeiro, onde cou muito tempo, escapando da cólera dos escravos.
Quem mais sofreu foi a fazendeira.

— "Prá que é que sinhá tem este tronco?" Ela não respondeu;
amarraram-na no tronco.

— "Prá que é que sinhá tem este bacaiáu?" Ela continuou muda; eles
vergastaram-na.

Isso durou parte do dia e a noite inteira. Pela madrugada, a lha


voltou de São Vicente acompanhada de soldados e capitães-de-mato.
Deram o cerco à fazenda, prenderam os escravos e levaram-nos para a
cidade. No entanto, durante a viagem, muitos deles foram degolados.
As cabeças foram espetadas em estacas e estas ncadas ao longo do
caminho, onde caram por muito tempo. Daí, o nome de estrada das
Caveiras... Quando o homem terminou, lançou a vista em redor e viu
que estava só; a mulher que o interrogara caminhava adiante,
seguindo as pegadas de Zé ro.

Estavam agora num encontro de morros, coberto de mato, onde se


ouvia o ruído alegre de uma cachoeira branca. Mas, a oresta
apresentava-se escura e eles não quiseram aventurar-se mais longe
sem estudar melhor o terreno. Corria, como foi dito, muita lenda a
respeito daqueles europeus. Eles eram capazes de recebê-los com o
fogo sinistro de suas máquinas de morte. Foram então determinadas
algumas providências. Nada de gritos. O menor ruído possível. Então,
Zé ro e os mais afoitos tomaram a incumbência de caminhar à frente,
passo a passo, por entre as árvores unidas, seguidos pela multidão.
Assim se fez. Os pioneiros paravam a cada instante, comunicando as
suas impressões aos que os seguiam. Em certo ponto, Zé ro parou
com os braços abertos a m de impedir a marcha dos demais. Esse
gesto só poderia ocorrer a um bailarino. Todos pararam. Então ele,
afastando com as mãos um galho de aleluia, mostrou qualquer coisa à
distância...

A mata terminava bruscamente, seguindo-se pequeno vale de ervas


rasteiras com o seu regato, as suas capoeiras esparsas. No centro dessa
larga clareira, intensamente banhada pelo luar, ardia um fogo alegre.
Via-se o quadro com todos os pormenores. À beira do fogo estavam
sentados dois caborés. Muito próximo, junto a um jacatirão, via-se o
cavalo. Dois outros caborés agitavam-se diante dele. Zé ro estendeu o
braço mostrando aquela cena e certamente ia dizer muita coisa, mas
só pôde articular estas palavras:

— Chegamos tarde demais!

E era verdade. Um dos caborés que estavam diante do cavalo meteu-


lhe uma faca comprida no sangradouro. O animal nem se agitou. Ficou
ali parado como bêbado, a inclinar-se para a direita e para a esquerda;
depois abriu as pernas, como se lhe faltasse o equilíbrio. O sangue
jorrava. Vendo aquilo, o outro caboré, que devia estar muito
embriagado, aproximou-se da fonte improvisada e fazendo concha
das mãos começou a beber avidamente o sangue. Nessa operação
lambuzou a cara. O matador, ainda com a faca na mão, começou a rir.
Ele como satisfeito, pôs-se a dar grandes cambalhotas na relva, de
modo que a comprida barba quase tocava nas compridas botas. Nesse
ponto, os dois outros caborés que se mantinham mais afastados
aproximaram-se. Um deles, vendo o cavalo cair morto, atirou-se sobre
o animal e colou a boca peluda na chaga do sangradouro. Os demais
torceram-se de tanto rir.

Foi nesse ponto que prorromperam gritos e assobios na mata,


pondo os caborés em fuga. As suas botas escorregavam no limo dos
barrancos. E como estivessem mais ou menos cercados, a fuga se lhes
tornou di ícil; dentro em pouco, eram presos pela gola e arrastados
pelo meio do mato. Ainda assim zeram uso das armas explosivas,
mas os tiros perderam-se na noite como estalidos de galhos que se
partem. Isso, porém, não amedrontou ninguém e a massa humana
levou-os consigo, entre gritos e apupos.

Com as mãos amarradas nas costas, foram levados ao distrito.

Já muito tarde, aquela gente desembocou na Avenida Jabaquara. A


notícia da morte do cavalo e da prisão dos caborés havia-se espalhado.
Apesar da hora avançada, via-se a população ainda de pé.

As casas estavam abertas e claras. Nas portas, as famílias saudavam


com gritos e risadas os excursionistas noturnos. Os caborés iam à
frente, fazendo barulho com as botas, as barbas ruivas emaranhadas,
enroscadas de folhas e gravetos. Alguns haviam perdido na fuga as
cápsulas de feltro a que chamavam de chapéu.

Ninguém perguntou pela sorte que esperava aqueles seres


atrasados. Mas, como se o povo tivesse tomado previamente uma
resolução, os que haviam prendido prosseguiram no caminho até
alcançarem as imediações de Piaçagüera, de onde se ia para o Açungüi.
Aí chegando, desamarraram as mãos dos presos. Estes caram
silenciosos, à espera do castigo que esperavam receber. Mas o povo do
Zanzalá não tinha (era uma tradição) a ideia de castigar ninguém.
Depois de soltá-los, mandou-os para o seu núcleo perdido nas dobras
da serra, convidando-os a não voltarem mais ao vale, sob pena de
serem novamente expulsos. Os caborés não esperaram por mais e
puseram-se a correr pelo caminho do Açungüi, quanto lhes permitiam
as compridas e ridículas botas.
Mas aconteceu que era um sábado, véspera do segundo dia de
descanso da semana. Por isso, voltando de tão acidentada excursão, os
habitantes do vale reuniram-se na avenida que contornava o lago, a
m de melhor discutirem a aventura. Dentro de pouco, não se sabe
como, apareceu uma orquestra e quando o relógio do distrito bateu as
três badaladas da meia-noite, já se dançava animadamente. As danças
prolongaram-se pela noite, até, que a luz mortiça da pirâmide se
apagou no azul pálido do céu.
VI
CARIÇUMA

Muito cedo, os dois bailarinos foram passear à borda do lago que


circunda a pirâmide do Pai-Sumé. As paisagens da serra e do vale
estavam estranhamente nítidas, como se observa nos dias de noroeste.
Admiraram as sete estradas cheias de homens e veículos, que coleiam
pelas encostas, ou que riscam a planície coberta de mangue cor de
azinhavre. O ar cheirava a almécega, a lírios do brejo, a or de
cambará.

Aragens quentes, espaçadas, vindas das bandas do mar, agitavam


os altos bambus, atritando levemente as varas, as folhas compridas e
ásperas, tirando-lhes ruídos de fogueira. Zé ro falou à sua gentil
companheira:

— Estamos no verão. O céu amanheceu estriado de rabos-de-galo.


Vamos ter vento noroeste.

Tuca pensava em outra coisa:

— Estive ontem no Instituto. O Zanzalá conta atualmente dois mil


bailarinos. Acho que devemos procurar outro distrito onde a nossa
arte não tenha tantos cultores.

Caminhando assim, passaram pelo marco de pedra onde os


meteorologistas a xam diariamente as previsões sobre o tempo.
Zé ro leu em voz alta: "Zanzalá, 13 de janeiro de 2029 — Hoje pela
manhã, vento fresco, 2 metros por segundo. À tarde, vento forte, 3
metros por segundo. Lufadas intermitentes, de 3 em 3 minutos. À
noite, chuva grossa até ao alvorecer." O bailarino cou orgulhoso de
ver con rmados seus prognósticos sobre o Noroeste e perguntou a
Tuca:

— Eu não lhe dizia?

Ao virar a primeira curva da avenida, diante de uma aresta da


pirâmide que parecia boiar sobre o lago, a moça segurou com força no
braço do companheiro e mostrou um vulto, a vinte braças de
distância.

— Que susto!

— Por quê?

— Olhe quem está ali...

Era Flanela, o músico. Muita gente o conhecia no Zanzalá. Nas


rodas familiares, contavam-se as suas excentricidades. Os bailarinos
estavam habituados a vê-lo todas as tardes, sentado na escadaria do
Teatro. Era um pobre maluco, que não fazia mal a ninguém. Mas Tuca,
sem saber porque, tinha medo dele.

Prosseguiram no caminhe. Flanela encontrava-se em pé, à borda da


água, o rosto voltado para a serra e, com uma varinha na mão, à guisa
de batuta, ngia dirigir a orquestra dos bambus, das cigarras, das
avezinhas que chilreavam na folhagem. Passando-lhe ao pé,
cumprimentaram-no, disseram-lhe algumas palavras, mas ele de tão
entretido que estava não os viu, não os ouviu. Continuou absorvido na
música dispersa.
Era um homem alto e magro, curtido pela vida ao relento. Cabelos
compridos, barba emaranhada. Vestia-se ainda menos que o comum
dos homens. E não usava calçado. Não tinha companheira, teto ou
qualquer coisa que o prendesse ao vale, ou à vida. De seu só possuía
meia dúzia de cadernos de música, e os trazia sempre consigo.

Os bailarinos zeram o passeio habitual e duas horas depois


regressaram pelo mesmo caminho. Flanela ainda estava lá. Mas já não
dirigia a orquestra imaginária. Sentara-se num banco, à sombra de
um jambolão, e escrevia frenèticamente no caderno, enchendo de
rabiscos a pauta musical. Zé ro parou e puxou conversa:

— Trabalhando?

O músico acordou e, dando conta da sua presença, pôs-se a rir. Tuca


comoveu-se:

— Está compondo alguma coisa?

— Estou. É um concerto, grande como a serra. Mas as notas são


poucas e a variedade de sons é enorme. E para lá dos sons estão as
ressonâncias. E para lá das ressonâncias projeções abstratas...

— Que nome vai dar ao seu concerto?

— "Cariçuma."

— Que quer dizer essa palavra?

— O romper da manhã sobre a serra.

— Em que língua?
— No dialeto das rãs.

Os dois jovens sorriram. Ele, de fato, não regulava bem. Tinha


cado assim por causa de uma mulher. Uma linda história de amor. Os
poetas do Zanzalá contaram-na numa canção que, por muito tempo,
andou de boca em boca, na música de uma valsa de Brahms. O
estribilho começava assim:

Você deve deixar

(Bis)

Que eu volte a ser feliz...

Flanela, durante muito tempo, fora organista da catedral de São


Paulo. Dos quinze aos quarenta anos, viveu exclusivamente para o seu
instrumento. Conheceu-lhe todos os mistérios. Tirava-lhe sons e
silêncios que outros haviam ignorado. Mas um dia aquela moça pálida
de olhos de ouro, começou a frequentar o templo. Parecia reunir na
alma todas as delicadezas. Quando se lhe dirigia era como se o seu
coração estivesse falando.

Ao entardecer, entrava no templo e ia sentar-se perto do músico.


Conversava com ele. Sorria-lhe em silêncio. E, pouco a pouco o
organista foi-se deixando prender pela visitante. Certa vez,
descobriram que se amavam. Fizeram longos passeios nos jardins, nos
bairros velhos. Mas a vida não era aquilo. Ela resolveu casar-se com
um patrício, montar casa, ter muitos lhos. E não voltou. Embalde
Flanela passou manhãs e tardes inteiras diante do instrumento,
tirando dele sons velados e profundos que mais pareciam gemidos. A
música transcendeu à técnica dos seus dedos. Elevou-se tanto que
tocou o limiar do céu. De muito países, vieram homens e mulheres
para ouvi-lo. Uns acharam-no genial, outros julgaram-no louco. Como
não mais a encontrasse na cidade, meteu-se pelos campos e pelas
matas. Desaparecia semanas inteiras. Nas festas mais pomposas da
catedral, o órgão permanecia mudo. Flanela? Flanela?? E o
instrumento não acordava na sombra, sob as rosas de luz que lhe
atiravam por cima os vitrais. Os clérigos acabaram por substituí-lo
diante do teclado, da oresta de tubos sonoros. Foi então que ele
apareceu no Zanzalá e ali cou abandonado no vale, esquecido dos
homens e de si mesmo. E, com o intuito de encher seus dias, começou
a compor aquele imenso concerto. Para descrevê-lo, andava à cata de
harmonias. Sabia a árvore onde, todas as madrugadas gorjeava um
sabiá-coleira. Conhecia o pé de piúva que tinha mais cigarras do que
folhas. E a fonte que, se o vento estava de feição, cantava com voz de
mulher. A serra não escondia segredos para ele. E era com os segredos
da serra que ele, havia trinta anos, compunha o seu concerto...

Os bailarinos, comovidos com a maluquice de Flanela, retomaram o


caminho da casa. Decorreram dias, semanas. Certa manhã claríssima,
ao abrirem a porta, encontraram o músico sentado na soleira, com os
cadernos debaixo do braço. Ele estava radiante:

— Já terminei o concerto!

Os esposos zeram-no entrar, servindo-lhe café. E enquanto ele


fazia ligeira refeição, debruçaram-se no spartito, estudando-o, mas
sorrindo com tristeza. E conversaram entre si, de modo que o visitante
não ouvisse:

— É uma coisa fora de todas as normas!


— Irrealizável!

— Maluca!

— A menos que...

— Eu também pensei nisso...

Então a conversa mudou de tom e dali a pouco os três saíram,


dirigindo-se ao Instituto. Pediram uma reunião dos diretores, a qual
foi marcada para a tarde. A ela compareceram compositores e
executores cujos nomes eram conhecidos e acatados cem léguas em
redor. Mas todos conheciam de sobra o Maestro Flanela, quer como
organista quer como maluco. Por isso, ao vê-lo, sorriram com tristeza.
Um regente chegou a perguntar aos dois bailarinos:

— Que querem vocês que a gente faça com a composição do nosso


infeliz colega?

Zé ro tomou a defesa do maníaco.

— Por que motivo o senhor diz isso?

— Ora, porque ninguém o compreende...

— E a culpa de quem é? Naturalmente dos senhores. Ninguém o


compreende porque ele é diferente!

Diante de tais palavras, houve um sussurro pela sala. O diretor,


levando em conta a sua opinião, pediu-lhe que mostrasse onde estava
a grande inovação de Flanela. Zé ro abriu o caderno sobre a mesa,
pô> -se a folheá-lo, a indicar aqui e ali as belezas que tinha
surpreendido na obra do compositor.
O diretor não se convenceu:

— Flanela é um maluco!

Zé ro, posto em brios ripostou:

— Flanela é um gênio!

Nesse ponto, a controvérsia pegou fogo. Oitenta compositores,


trezentos maestros, quatrocentos e nove críticos atiraram-se contra o
intruso. Um deles chegou mesmo a lembrar-lhe que, na sua qualidade
de bailarino, não devia subir além dos sapatos de ponta... Muitos
riram da facécia. Foi marcada outra reunião para a noite. Dela só
deveriam participar músicos. Zé ro entregou o caderno ao diretor e
saiu seguido de alguns artistas que — há sempre desses casos — se
colocaram a seu lado. A notícia correu pelo vale, despertando
curiosidade. A população começou a discutir o concerto. Formaram-se
partidos. Pró-Instituto, pró-Flanela. Duas horas depois, na Avenida
Jabaquara, apareceu um grupo de populares que chamou logo a
atenção dos passeantes. Um rapaz, acompanhado por violão e auta,
gorjeou:

Eu quero ouvir "Cariçuma" Do Maestro Flanela...

Dali a pouco, apareceu outro grupo. O dirigente, acompanhado por


vários instrumentos, pôs-se a cantar: "Não quero ouvir "Cariçuma" Desse
Maestro Flanela...

Quando os grupos se encontraram, irrompeu um con ito. Os


passeantes fugiram. E quando a briga terminou, só se viam pelo chão
fragmentos de violões, de autas, de cavaquinhos. Mas foram os
instrumentos os únicos a sofrer no embate; quanto aos partidários
escaparam a tempo, sem o mais leve arranhão.
À meia-noite, terminou a reunião do Instituto. Um comunicado foi
a xado por todo o vale. Nele, o Instituto declarava não estar disposto a
executar o concerto do conhecido Maestro Flanela, por não encontrar
no mesmo qualidades que o recomendassem. Esse movimento em
favor da partitura — insinuava o referido comunicado — era obra de
alguns modernistas, descontentes com a conduta austera do grande
centro coordenador e orientador dos artistas do Zanzalá.

Tal publicação despertou comentários. Uns pró, outros contra. E


naquela mesma noite foi organizada uma comissão encarregada de
fazer executar o discutido concerto, mesmo sem o apoio da instituição
o cial. En m, a obra de Flanela ia ser divulgada. A boa-nova
espalhou-se logo pelo vale, pelo litoral, pelo planalto, pela América e
pela Europa. Os rádios esgoelaram-se. De mil pontos do globo
chegaram pedidos de informações sobre o maestro, sobre a sua
composição, sobre a luta entre os artistas independentes e os diretores
do Instituto. E o Zanzalá cou em foco.

Depois de consultar o Instituto de Meteorologia, a Comissão de


Artistas Independentes do Zanzalá (C. A. I. Z.) marcou a grande
audição para o dia 13 de fevereiro. Por quê? É o que se vai saber linhas
adiante. Imediatamente, começaram os trabalhos. Sim, os trabalhos,
visto que aquela execução não se parecia com as outras. Sob a
orientação de Flanela, que de certo modo parecia ter recobrado a
razão, foram construídas 178 harpas gigantescas, de nove metros de
altura. Umas eram encordoadas com arame de diversas espessuras,
outras com lâminas de latão ou de vidro, dispostas obliquamente,
como tabuinhas de venezianas. E ainda as havia com eiras de guizos,
de cabaças ocas ou feixes de bastões de cristal. Essas harpas foram
postas, escalonadas, nas duas bandas do vale, no brejo, nos lados da
pirâmide, nos desvãos dos morros, no cume dos espigões. Das suas
caixas de ressonância, saíam os que eram ligados a imenso órgão
situado num pavilhão improvisado no centro do vale. A voz das
harpas era difundida por alto-falantes dissimulados nos bosques, nas
lapas, nos barrancos, por toda parte. Sentado diante do seu
instrumento, o maestro poderia dar voz ou fazer calar qualquer das
harpas espalhadas, pelo Zanzalá, e, movimentando a posição dos os
e lâminas que as encordoavam — obter delas o som que desejasse.

Aproximava-se a execução do concerto. Não se cuidava de outra


coisa. Homens e mulheres rodeavam incessantemente as instalações,
fazendo prognósticos. Muitos se interessavam particularmente pelas
informações meteorológicas. E se o vento noroeste, pela primeira vez
desejado, faltasse ao apelo? Mas os meteorologistas, também eles
desejosos de ouvir a música de Flanela, começaram a apresentar as
suas previsões. Diziam elas: "Dia 13 de fevereiro de 2029 — Calor
intenso — Ao alvorecer, iniciar-se-á o Noroeste. — Ondas frequentes,
de 8 e 10 metros por segundo, soprarão sobre o vale. — Essa primeira
refrega durará até ao nascer do sol, depois o vento mudará de
quadrante."

Zé ro e Flanela estavam diante do marco de pedra, vendo o


funcionário a xar os avisos.

— O vento virá como você deseja? — perguntou Zé ro.

E o maníaco:

— Sim. Como se eu tivesse encomendado ao céu, sob medida.

Os homens do Instituto de Música reuniam-se todas as tardes na


avenida dos bambus, próxima ao lago, e che avam a chusma que não
acreditava no êxito do concerto. Eles mostravam as harpas espalhadas
pelo vale e pela serra, vestidas com a sua túnica de pano branco, como
instrumentos que ainda estivessem encapados, e diziam: o vento
passará e elas permanecerão mudas. Se algum som for obtido, não se
parecerá em nada com aquele que o maestro deseja. Tanta gente a
trabalhar inutilmente, para chegar ao maior fracasso de que há notícia
nos anais do Zanzalá... Certa noite, ao verem Flanela trepar numa
árvore para instalar ali o microfone destinado a captar a voz de um
sabiá, deram-lhe ruidosa vaia. Logo depois, num bosque, onde o
maestro fazia a mesma coisa para irradiar o zinido das cigarras,
meninotes suspeitos de servirem à política do Instituto atiraram-lhe
pedras. E Flane-la, sem interromper o trabalho, riu-se deles.

Dia 12 de fevereiro — um dia claríssimo. Chegou a noite. A


Comissão dos Artistas Independentes do Zanzalá (C. A. I. Z.) dobrou
de atividade. Zé ro e Tuca puseram-se à frente dos dez mil bailarinos
do vale e depois de uma reunião na Praça Vicente de Carvalho,
dispersaram-se pelas estradas que subiam a serra ou que desciam
para o vale. Eram homens e mulheres, que, a par de artistas, exerciam
pro ssões correntes no distrito. Levavam às costas, presa por correias,
a roupa com que deviam tomar parte no bailado. Como a serra
estivesse escura, conduziam lanternas. Na Avenida Martins Fontes,
um rádio gritou:

— Lá vão os vaga-lumes! Lá vão os vaga-lumes!

E os oposicionistas do Instituto riram gostosamente da feliz


comparação. Mas o Zanzalá, por aquela altura, já estava tomado pelos
turistas. Eles procediam do Norte e do Sul, do Leste e do Oeste. Havia
uma semana que as estradas, durante o dia, se apresentavam
apinhadas de homens e veículos. Legiões de pedestres espalhavam-se
pelas grotas, pelos desvãos de morros, ônibus aéreos desciam de
minuto em minuto nos campos Xavier da Silveira e João Guerra. Ou
nos Parques Ângelo Sousa e Fábio Montenegro. Deles desembarcavam
chusmas de curiosos. Na esplanada Paulo Gonçalves, foi improvisado
imenso barracão para abrigar os duzentos poetas estrangeiros que
tinham vindo ao Zanzalá para assistir ao concerto. Na planície, ali
pela altura do distrito de Areais. surgira da noite para o dia um
aglomerado de tendas de campanha. Os panos eram de cor. A cidade
e êmera mais parecia um canteiro de dálias.

Meia-noite. Calor intenso. Céu limpo, faulhante de estrelas. De


espaço a espaço, um hálito escaldante, característico, acariciava o
rosto dos espectadores, agitava levemente as varas dos bambus. Os
rádios e televisores anunciavam a aproximação do concerto.

Ouvia-se a voz dos locutores:

— Começará ao alvorecer, com a primeira lufada do noroeste. O


Maestro Flanela está no seu pavilhão, diante do instrumento, rodeado
de músicos e escritores de toda a América, que lhe pedem
informações. O Instituto está em sessão permanente. Entre os seus
membros, até há pouco convictos do malogro de "Cariçuma," começam
a surgir vozes discordantes. Lá mesmo há quem acredite naquilo a que
ainda ontem chamavam desvario.

Duas horas depois, ouviu-se grande voz:

— O Instituto de Meteorologia con rma o prognóstico sobre a


chegada do vento, a intensidade e a freqüência das lufadas.

Essa notícia foi recebida com aclamações. Pelo mar de vozes que se
ergueram da noite, a assistência foi avaliada em mais de um milhão de
pessoas.

Quando o céu entrou de fazer-se carmesim na direção do mar, a


mesma grande voz passou de novo sobre a treva palpitante de almas:
— Dentro de vinte minutos o Zanzalá será varrido pela primeira
lufada de noroeste!

Então, fez-se um pesado silêncio de expectativa. Só se ouvia,


apagadamente, o sussurro dos bambuais. Um bando de pássaros
gritadores atravessou o céu, do Norte para o Sul. Uma cigarra acendeu
a sua lâmpada de som. Milhares de curiosos correram, batendo os pés,
à procura de melhores postos de observação.

Começou a clarear, rapidamente. A paisagem tumultuosa da serra


desenhou-se no fundo azul do céu. Na encosta e no vale, tornaram-se
visíveis, na atitude de pernaltas meditativos, os vultos brancos das
harpas. As avenidas que contornam o Zanzalá pareciam assentos de
arquibancada gigantesca. Apresentavam linhas trêmulas e coloridas.
Era a multidão de espectadores. Pelas encostas, as sete estradas eram
como claros desenhos decorativos. De repente, subiu para o ar um
rojão que, no alto, explodiu, desmanchando-se em rosas de luz.

— Vai começar! Vai começar!

Flanela, diante do grande órgão, teve medo. Foi a primeira vez que
isso lhe aconteceu, depois que anunciara "Cariçuma." Dirigiu-se ao
painel elétrico instalado na parede e começou a apertar botões. A cada
tecla que comprimia, uma harpa desnudava-se lá longe. E assim, uma
a uma, elas foram despindo no vale e na serra as túnicas que vestiam.
Dentro em pouco, apareceram nuas, vibráteis, expondo à claridade do
alvorecer a nervatura paralela de metal ou vidro. Mas permaneciam
mudas.

Os que olhavam para a banda do mar viram a vegetação mudar de


cor. Era o vento que embocava pela garganta do Zanzalá. A onda foi-se
aproximando, aproximando... A primeira lufada chegou muito fraca.
Os bambuais inclinaram-se numa vênia, como a saudar o vento. E só
se ouviu pela encosta um lamento abafado e profundo, como se todos
os homens da terra tivessem gemido. Flanela exultou. Começou a
correr de um lado para outro do órgão. Apertava pedais, martelava
teclas.

Veio a segunda lufada. Os bambuais inclinaram-se novamente, as


bananeiras mostraram o avesso das folhas. Guirlandas de sons,
multiplicados ao in nito, arrastaram-se pelo Zanzalá. E aquele
conjunto harmonioso subia, descia, perdia-se no espaço, abismava-se
nas grotas, como se a serra de Santos tivesse sido transformada num
grande órgão. Era uma missa cantada, em pleno céu. Depois, o vento
passou, a massa musical apagou-se. Mas não se fez silêncio. No ad
libitum, um sabiá cantou. Cantou em toda parte, como se estivesse ali
mesmo. Os habitantes do Zanzalá conheciam-no: era o coleirinha que
todas as manhãs gorjeava no pau-d'alho, perto do rio.

Terceira lufada. Começou com sons baixos e graves, lembrando o


marulho das águas nas pedras cavadas do Itaipu. Foi-se erguendo, aos
poucos. Encheu o âmbito cristalino da manhã. Era como se todas as
árvores, ao invés de folhas, de ores e de frutos, estivessem cobertas
de guizos. De guizos de ouro. Foi-se erguendo cada vez mais. Arqueou-
se sobre os abismos onde manchas de sol alternavam com
aglomerados de nuvens. Acabou por se tornar um arco-íris onde os
ouvidos distinguiam os sete sons e as almas, os sete silêncios que estão
para lá. da música. As aves maravilharam-se com aquilo. Então, de
cada copa subiu para o ar pelo menos um casal de pássaros. Grandes e
pequenos. De todas as cores. Suas asas douradas projetaram sombras
trêmulas sobre a encosta, sobre o público perplexo. Das devesas
elevaram-se igualmente todos os besouros, todas as borboletas, todos
os pequenos insetos. Nuvens trêmulas de abelhas ergueram-se à guisa
do fumo das fogueiras. Era como se as corolas da serra tivessem criado
asas e, a um chamado do sol, fugissem dos seus pedúnculos! E a
terceira lufada esmoreceu, passou. Cavou-se um grande silêncio azul.
E nesse silêncio cou apenas a cigarra. Era uma nota estrídula,
cristalina, maravilhosa, que enchia a terra e o céu.

Flanela, diante do órgão, dançava uma dança estrambótica. Corria


de um lado para o outro, com a obsessão das teclas e dos pedais.
Parecia mais esquelético, mais felpudo de barbas e de cabelos;
movendo-se freneticamente, agitava andrajos escarlates. Aqui
apertava amorosamente uma tecla, ali esmurrava outra, para vencer-
lhe a resistência. Esses gestos iam repercutir lá longe. Uma harpa
cantava, outra calava-se. Flanela trepava sobre pedais que afundavam
lentamente com o seu peso, mudando a inclinação das tas de latão ou
de cristal que deveriam produzir determinado som à chegada do
vento. A cada corrida, a cada instante de equilíbrio sobre os braços de
ferro que avançavam por baixo do instrumento, a orquestra mudava
de tom, abriam-se comportas de sons e novas torrentes harmônicas
desaguavam no rio imenso do seu concerto.

Foi amanhecendo. Na arquibancada constituída pelas avenidas que


desciam do planalto margeando a encosta da serra, nas sete estradas
sinuosas que coleavam nítidas por entre os espigões cobertos de
bruma, na planície do mangue com placas metálicas de águas mortas
comprimia-se a multidão que durante a semana chegara de todo o
Continente para assistir a "Cariçuma." A música tinha arrebatado as
almas. Homens e mulheres permaneciam imóveis, como no templo.
Entre uma lufada e outra, quando tudo silenciava para ouvir em
primeiro plano o canto do sabiá, o zunido da cigarra ou o amiudar dos
galos, isto é, quando o maestro virava a folha do seu caderno,
passando do andantino para o allegro ma non troppo, a grande voz se fazia
ouvir, em tom grave, explicando com poucas palavras as intenções do
compositor. Essa voz vinha da Casa dos Poetas. Eram frequentes as
expressões "concerto sobrenatural", ou "música abstrata..."

Entre o quarto e o quinto movimento da suíte, abriram-se buracos


nas nuvens, apareceu o sol, torrentes de ouro uido projetaram-se
oblíquas sobre a serra. No costão de barro vidrado, onde se erguiam as
silhuetas dos estabelecimentos públicos, apareceram manchas
amarelas formigantes de veículos, de homens e bichos. Os sete
caminhos do planalto e do palude tornaram-se resplandecente. Foi
então que, ao longo dessas vias, sinuosas e nítidas, surgiram manchas
coloridas, feitas de guras humanas, vestidas como de corolas. Elas
apareceram entre os espigões da serra, entre o azinhavre do mangue e,
oscilando, aproximaram-se do centro do vale. A distância fazia-as
minúsculas; suas roupagens fortemente coloridas davam-lhes
aparências de ores. Todos os lírios do brejo, os jacatirões, as aleluias,
as ores de São João tinham caído de suas hastes e vinham para o vale.
Eram os bailarinos. Zé ro e Tuca dirigiram o ballet do amanhecer na
serra de Santos. Vinham vindo, vinham vindo. Quando chegaram nas
imediações da pirâmide, encontraram-se, formaram largo círculo,
giraram ao redor do lago, desenharam guras geométricas e, como
impelidas por nova lufada de noroeste, perderam-se na sombra dos
bambuais.

A voz das águas do Itutinga tinha sido captada; era uma cachoeira
maravilhosa, cascateando sons límpidos. Ela estava em toda parte. Era
como se as nuvens brancas tivessem escancarado as suas comportas e
chovesse cristal sobre a serra.

Depois, fez-se novo silêncio para se ouvir o conjunto de aves


assustadas, voando e revoando no Zanzalá. Sobre esse fundo
constituído de bater de asas, de gritos de susto e de alegres cânticos
matinais, delineou-se em primeiro plano o toque do sino da capelinha
de Santa Cruz.

Quando passou a derradeira lufada do noroeste, como havia sido


anunciado pelos meteorologistas, a serra ergueu um novo hino. Era
largo e profundo, como se todas as pedras, as árvores, as fontes, as
sombras e as claridades tivessem cobrado voz e estivessem cantando.
A última parte do concerto morreu afogada na luz de um cálido dia de
noroeste, como se fora a coda daquela composição musical. Um
clamor partiu dos contrafortes, subiu pelos morros, pelas encostas,
galgou os espigões, demorou-se na gigantesca arquibancada das
avenidas e perdeu-se no rebordo do planalto. Eram as aclamações ao
maestro, aos bailarinos.

Todos os rádios falaram. Todos os quadros informativos


lampejaram cenas recebidas do m do mundo. E a multidão inteirou-
se de que Nova Iorque, Londres, Moscou e Cingapura tinham
interrompido o trabalho, ou o sono a m de correrem para as ruas e
ouvirem as transmissões públicas do concerto do Maestro Flanela. A
multidão reunida no Zanzalá quis conhecê-lo. Houve uma corrida
geral para o pavilhão em que ele dirigira o concerto, na Praça Paulo
Gonçalves. Foi uma demonstração alegre e ruidosa. Quando Flanela
saiu e viu aquilo, mostrou-se acanhado, pôs-se a rir sem graça, como
criança apanhada em travessura. Os amigos conduziram-no, muito
atarantado, pelo meio da massa popular até o Instituto onde, dessa
vez, foi recebido com todas as honras. Cada um dos membros
começou assim o seu discurso:

— Eu sempre fui um admirador fanático do Professor Flanela...

Mas o coitado tinha vindo ao mundo apenas para compor e dirigir


pela primeira vez o discutido concerto. Meses depois morreu. Foi
enterrado na grota, ao pé da fonte, debaixo do pé de jambolão. Daí
para o futuro tem sido lembrado muitas vezes. Não só pelos músicos,
mas pelo povo do Zanzalá. Nos dias de noroeste em que a serra
amanhece muito bonita, em que as aves cantam e as cigarras zinem
como loucas, há sempre uma velha que sorri e diz:

— Manhã de glória nos sete caminhos!

Alguns estudiosos veem nessa frase uma alusão remota ao concerto


do Maestro Flanela, nos idos de fevereiro de 2029.
VII
A INSURREIÇÃO

Os habitantes do vale, com a execução do concerto "Cariçuma", que


tanto os agitou, esqueceram o rapto e a morte do cavalo Guaicuru. No
entanto, logo depois, deu-se um acontecimento previsto por velhos
tidos na conta de visionários. Re ro-me à insurreição dos caborés.

Certa manhã, começaram a produzir-se estrondos lá para as


bandas do mar. Que seria? Talvez a Prefeitura estivesse arrebentando
pedras nos morros. Como os estrondos continuassem, muitas pessoas
saíram de casa e foram para a rua, a m de saber do que se tratava. Um
projétil, vindo de Piaçagüera, abriu largo rombo na Avenida Atlântica.

Os rádios começaram a anunciar coisas alarmantes e no vidro fosco


dos televisores os repórteres projetaram cenas de uma autêntica
invasão armada, como só eram vistas nas ilustrações antigas, que
amareleciam nos museus. Aquilo divertiu muito os habitantes do
Zanzalá. Os noventa aparelhos públicos, situados nas praças e nas
pérgulas das avenidas, caram logo rodeados de curiosos que, de
olhos arregalados, se puseram a admirar esse espetáculo anacrônico:
uma rebelião. Sim, o que se estava passando era nada menos que uma
insurreição de europeus da pior espécie, isto é, daqueles que ao longo
dos séculos não haviam sido assimilados pelo Zanzalá.

Os homens atrasados apareciam nos televisores em formações


compactas, com os capacetes de aço brilhando ao sol e, na rápida
avançada, iam formando núcleos para onde eram conduzidas
máquinas de guerra. Desses núcleos, depois de forti cadas, partiam
outras linhas de homens, marchando num ritmo sacudido, e mais
adiante estabeleciam novas posições. Bandeiras tremulavam no ar.
Bandas de música executavam marchas heroicas. Trogloditas de
cartola arengavam às massas, ou gritavam:

— A nanê! A nanê!

Uma festa para os zanzalianos de 2029.

Parecia que aquela parte do vale tinha sido transformada em


tabuleiro de xadrez e que o enxadrista misterioso, colocado não se
sabia onde, ia sobre ele desenvolvendo jogo lento, com lances certos.
Numerosas plantações de cereais, dentro de algumas horas, estavam
em seu poder. As densas equipes de trabalhadores eram como
raspadas dos campos, reunidas e atiradas violentamente para o centro
do vale. E a marcha dos homens uniformizados, rebrilhantes de
metais, continuava ininterrupta.

As primeiras casas foram alcançadas e os seus habitantes, postos


em fuga, começaram a chegar arquejantes, com os lhos ao colo, no
largo da Pirâmide. A verdade é que a maioria da população não sabia
explicar aquilo.

Uns perguntavam:

— "Que quererão eles?" Outros a rmavam:

— "Vingam-se do que lhes zemos, por causa do rapto do Guaicuru.

E ainda havia os que ponderavam:

— Vão ver que querem car com as terras do distrito e comer-nos


moqueados, como é seu costume...
Na altura dos Areais, houve ligeira resistência por parte dos
tiradores de folhas de mangue, que investiram de remo em punho
contra a horda de invasores. Então, as máquinas de matar
estralejaram e os homens caíram por terra, atorados pela cintura, tão
unidas eram as balas que neles haviam acertado.

Esses fatos foram noticiados pelo rádio, mostrados com


pormenores pelos televisores. Como era natural, sobreveio o terror.
Surgiram os primeiros homens e mulheres correndo de um lado para
outro. Uma jovem pôs-se a gritar com o lho apertado ao colo. Das
pequenas ruas, o povo desembocava nas grandes avenidas Jabaquara,
América, Atlântica e Paranapiacaba. Nas largas artérias, já àquela
hora toldadas pelo crepúsculo, a massa popular subia, descia e, por
último, ia reunir-se nas praças, duras de gente.

Um avião negro apareceu lá para as bandas do Açungüi, pairou


algum tempo sobre o vale e depois deixou cair obuses sobre a cúpula
escura do Instituto Sanitário que, com seus 76 andares parecia mais
alto do que a serra. Ouviu-se um estrondo de m-de-mundo. Chamas
violáceas lamberam as nuvens. O bloco arquitetônico partiu-se pela
altura do 30.° andar; a parte superior pendeu sobre o vale e desabou
num caos de poeira avermelhada. O choque pareceu abalar as
montanhas. Quando a nuvem de pó se dissipou, só se via a parte
inferior do edi ício, que havia permanecido de pé, de paredes
irregulares, como um pote desbeiçado a martelo.

Meia hora depois, o avião reapareceu no horizonte, voou sobre o


ápice da pirâmide e desovou obuses. A cada um deles que caía
seguiam-se um clarão lívido e um estrondo de abalar céus e terras;
depois, no quadro dourado do poente, a pirâmide apareceu
deformada, com as arestas comidas por imensos buracos.
Veio a noite. Embalde a mão do eletricista puxou a alavanca da
iluminação pública, que fazia abrir no vale um milhão de luminosas
magnólias. Seu gesto perdeu-se, inútil. A central elétrica devia estar
destruída, pois o vale permaneceu às escuras. Nos lares ainda intactos,
mãos ansiosas procuraram sintonizar as lâmpadas, mas o espaço
parecia morto; as lâmpadas continuaram apagadas. Aquela noite não
se parecia com as noites do vale, tão alegres, tão cheias de músicas e
risadas. Só se ouvia a gritaria da gente que passava pela rua numa
corrida doida, e o soturno bater de um invisível martelo que ia
destruindo tudo, os palácios e os monumentos. Em diversos pontos,
subiam colunas de fumo e as nuvens baixas pareciam lambuzadas de
sangue.

Ao longo da noite, num desejo invencível de fugir para algum lugar,


o povo abandonou as avenidas e reuniu-se nas praças da Pirâmide, do
Monge, da Grota Funda. Muitas famílias haviam tomado os atalhos,
perdendo-se nas últimas orestas da serra. Zé ro, Tuca e os sogros,
também espavoridos pelo que viam, tentaram fugir pelo Alto da Serra,
ganhando a planície. Mas, depois de algumas horas de di ícil caminho,
compreenderam que o seu propósito não era viável. É que lá em cima,
no ângulo do vale, estava assestado um verdadeiro ninho de máquinas
de morte, daquelas que davam tiros tão unidos que ceifavam os
homens pela cintura. Outros, antes deles, menos felizes, haviam feito
a mesma tentativa. Tinham sido mortos. À luz de uma lanterna, viam
pilhas de cadáveres, ou de feridos que rolavam pelo pendor da serra,
pedindo um pouco de água nas vascas da agonia.

Olharam para trás. O vale estava inteiramente amortalhado nas


trevas. Lá embaixo, só se viam clarões de incêndios. Só se escutava a
voz soturna do canhão, dessa palavra que perdida nos porões da
história voltara à voga da noite para o dia. Enchendo esse compasso
profundo, erguia-se o matraquear incessante dos tiros-de-leque.
Apesar disso, Zé ro e seus companheiros de fuga resolveram descer
pelo mesmo caminho.

A cada passo, encontrava grupos de homens enlouquecidos de


pavor que procuravam, numa última esperança, ganhar as planícies
de serra-acima. Então, ele levantava a lanterna à altura da cabeça,
para ver e ser visto, e explicava a situação que era de cerco, a
proximidade inquietante das máquinas de morte instaladas à
retaguarda da população. Os fugitivos não agradeciam, nem
comentavam, mas retrocediam no mesmo pé, escondendo na noite a
sua espantosa angústia.

Já embaixo, na Grota Funda, viu compacta multidão iluminada por


poderosos re etores. Essa gente estava diante de um televisor e
ansiosamente ouvia a voz do informador paulistano:

"A notícia da rebelião dos caborés no vale do Zanzalá encheu de


curiosidade o país inteiro, as Repúblicas vizinhas, o Continente. É um
episódio que lembra ao vivo o m das civilizações que precederam a
nossa. Organizaram-se neste momento, por toda parte, imensas
caravanas para assisti-la. O governo decretou feriado por uma
semana. O ambiente é de festas. Nada menos de 800 universidades
seguem neste momento para o Zanzalá, a m de que seus alunos
possam assistir in loco a esse espetáculo pitoresco a que os antigos
chamavam de guerra. Trata-se de fazer o possível para que a
insurreição não termine até amanhã, depois do meio-dia, e que as
cenas características não se interrompam tão depressa. O Continente
está com inveja do Zanzalá, terra feliz que goza neste momento de um
espetáculo a que o homem moderno, organizado por uma civilização
prosaica, não mais sonhava assistir..."
O locutor prosseguiu nesse tom otimista, de admirável bom humor,
e os fugitivos não quiseram mais ouvi-lo, recomeçando a atormentada
viagem. Mais adiante, procuraram orientar-se na escuridão e já não
viram a luz pálida da pirâmide, que havia meio século guiava os
viajantes da terra. Sem aquela luz, o vale parecia perdido, entre a terra
e o céu, martelado pelo canhoneio, lambido pelos incêndios. Uma
angústia, uma angústia...

Andaram mais algumas horas. Na Praça Monge, novo ajuntamento,


novo televisor, novas notícias irradiadas da Capital.

"... a curiosidade pública está no auge. A esta. Capital, estão


chegando por todos os meios de transporte incontáveis turistas que se
destinam ao Zanzalá, cuja povoação desaparece arrasada pelos
caborés. Na Estrada do Mar, movimenta-se uma quádrupla la de
veículos em demanda do privilegiado vale. Ao amanhecer, seguirão
para lá numerosos comboios aéreos, conduzindo famílias. Do Rio de
Janeiro, de Montevidéu e de Buenos Aires partem incessantemente
aviões com turistas. O Instituto Central de Artes está em pleno
funcionamento, apesar da hora adiantada da noite. Já foram retiradas
até este momento 91.014 caixas de tinta para pintura; 18.114 máquinas
fotográ cas; 128.745 rolos de lmes. O número de metros de celuloide
cinematográ co já atinge a mais de um milhão. A Capital, com o
êxodo dos veículos, começa a lutar com a falta de transportes. O
governo está reunido para tratar desse problema intercorrente. Serão
tomadas providências enérgicas..."

Os quatro fugitivos de torna-viagem prosseguiram o seu caminho


pela noite. Logo depois, pararam. No aceiro da planície, esbarraram
numa espessa muralha humana que recuava lentamente. Era toda a
população que, empurrada pelos invasores, ia pouco a pouco se
encurralando ali. De quando em quando, uma rajada de metralhadora
fazia um rombo na multidão. Passada a refrega, retirados os mortos, a
vaga humana se unia de novo. Os caborés saíam com freqüência de
suas posições e imiscuíam-se entre aquela gente, dando ordens,
ameaçando com gestos coléricos.

Tuca havia desfalecido de cansaço. Zé ro tomou-a nos braços e


carregou-a para um canto da avenida, ao pé da grande escadaria.
Deitou-a num tufo de tanchagem e foi buscar água, nas mãos em
concha. João Antônio e Maria Balbina caram inclinados sobre Tuca, e
não mais perceberam as coisas que se foram desenrolando pela noite.
Ao vir da madrugada, o vale inteiro já se encontrava em poder dos
caborés. Sem o sentir, seus habitantes tinham cado prisioneiros dos
bárbaros. Ali pela segunda hora. cessou completamente o
bombardeio; só se ouviam tiros esparsos num mundo pálido que
começava a emergir lentamente das trevas. Depois cessou tudo. A
invasão estava feita e naturalmente os caborés tratavam de assegurar
as posições, preparando-se ao mesmo tempo para resistir às forças
que, fatalmente, deveriam descer da banda de cima, onde a massa
escura da Serra do Mar, com seu colar de neblinas, se recortava na
lâmina luzente do céu.

A terceira hora, alvorecia; quem estivesse postado rio ângulo


superior do vale e olhasse para as bandas do mar, veria um largo
cenário de devastação sobre o qual haviam passado, num tropel, todas
as fúrias do inferno. Por cima do Zanzalá, tão alegre, tão farto, pairava
uma in nita tristeza. Foi precisamente nessa hora que começou a
segunda fase da histórica rebelião dos caborés, em 2029. E os que não
a viram como nós, no salão de espelhos do tempo, onde não há
passado nem futuro, di cilmente poderão acreditar nas coisas que se
seguiram...
A primeira claridade da manhã, um avião de passeio saiu da
sombra escura da serra e pairou docemente sobre o vale. Era o
primeiro curioso que chegava. Então, um tiro partiu lá do fundo e
feriu-o de morte; o aparelho largou-se desamparado no espaço e foi
amontoar-se entre dois morros. Logo depois, talvez ignorando a sorte
do primeiro, três belos aeroplanos apareceram no céu gris, deslizando
sobre as ruínas do Instituto Sanitário. Novo tiro e um deles,
desgovernado, afocinhou em linha reta na avenida Jabaquara, de onde
subiu uma nuvem de poeira. Os outros continuaram no seu passeio
matinal. Ainda novo tiro e outro aparelho caiu em ziguezague, como
um pássaro mal-ferido.

Ao mesmo, tempo, numerosos bandos de asas, como uma poeira de


ouro à primeira claridade do sol, avançaram da serra sobre os abismos
do vale. De minuto em minuto, ouvia-se um tiro e um avião
precipitava-se no solo. Mas, em seu lugar, chegavam dez, vinte,
cinquenta, cem... Do lado do mar, começaram a chegar também umas
galeras aéreas, de duzentos passageiros, que voavam lentamente pelo
céu, como em excursão de turismo. Logo depois, esses aparelhos
foram pousando pelos campos, pelos morros, pelas avenidas. A cada
aterrissagem, seguia-se uma cena espantosa: grupos de caborés
corriam para os aparelhos e incendiavam-nos; ao mesmo tempo,
outros bárbaros investiam contra os tripulantes e passageiros,
trucidando-os. Isso foi feito com um, com dez, com trinta aparelhos...
Mas dentro de pouco eram tantos a pousar em terra que os homens
cabeludos, barbados e de botas não venceram matar tanta gente!

Já dia claro, o centro de atividade dos insurretos foi-se deslocando


para a encruzilhada do Açungüi onde uma compacta multidão
chegada de Santos, armada de máquinas fotográ cas, de câmaras, de
blocos de papel e de lápis, ameaçava romper as suas linhas exaustas
pelo trabalho da noite. Ouvia-se novamente o pipocar dos tiros.
Dentro de pouco o estralejar das metralhadoras, numa nuvem
dourada de poeira. A multidão desfalcada recuou. Mas foi então que,
do lado de cima, nas neblinas da Grota Funda, despenhou-se pela
serra urna massa escura de homens e carros. Ouviu-se uma gritaria
infernal. E a mó de gente e de veículos foi descendo, descendo,
empurrando as linhas dos caborés. Ainda mais adiante, já no Monge,
houve uma tentativa de resistência, com metralhadoras, mas a onda
humana levou tudo de roldão, desembocando na planície e
espalhando-se nela com gritos de alegria, dobrados pelas bandas de
música e canções festivas.

Quando soaram as badaladas do meio-dia, o quadro já tinha


mudado: grupos de homens e mulheres corriam pelos bosques à caça
dos caborés. E quando estes passavam pelas ruas, a correr, sem o
cabuloso chapéu e com as botas enlameadas, as crianças
escangalhavam-se de rir. Então, o povo segurava-os pelas barbas
ruivas e arrastava-os para o Depósito Geral, onde eram con ados às
famílias que se interessavam pela sua reeducação. Ao entregá-los,
depois de formalidades que asseguravam acolhimento paternal, com a
responsabilidade de tutores, o empregado dava instruções sobre o
tratamento que lhes devia ser preliminarmente dispensado:

— Antes de tudo, cavalheiro, cortam-se-lhes a barba e o cabelo.


Depois substitui-se essa roupa anacrônica por um traje simples e
higiênico, que não prive o corpo dos bene ícios do sol e do oxigênio'
Mais tarde, com os devidos cuidados, descalçam-se-lhes as botas.
Quando as mesmas estiverem muito aderidas ao corpo, é
recomendável amolecê-las numa imersão Oe água morna. Por m, um
banho que deve ser prolongado, pois o perigo de um golpe ana lático
em tais casos é lenda do passado que pertence ao domínio da
História...
Nesse ponto, um sujeito neurastênico desceu de um aeroplano e
pôs-se a ameaçar céus e terras:

— Vocês me intrujaram! Foi para isto que me zeram voar a noite


inteira? Onde se viu uma invasão de bárbaros que termina no dia
seguinte?

E o vale entregou-se aos trabalhos de repararão dos danos


praticados pelos caborés. Dentro de um mês, a vida já havia voltado à
sua normalidade feliz, à luz do sol, à doçura dos bambuais, ao sopro
cálido e mau conselheiro do vento noroeste...
VIII
A LENDA DE UMAS FLORES SEM NOME

Estava-se em março, o mês de céus claros e ares limpos. A serra, de um


vermelho de pote, listada de altas construções, mostrava de espaço a
espaço as manchas escuras dos últimos bosques; e nesses tufos de
verdura havia escorrido a tinta amarela das aleluias. Ouviam-se o
ciciar do vento, o grito timpânico das arapongas e o canto daquele
sabiá que, onde quer que a gente esteja, parece ser o único sabiá de
toda a região.

Entardecia. Uma in nita paz reinava sobre a terra. As próprias


árvores mostravam-se quietas e silentes, estendendo compridas
sombras pelos caminhos. A ua LVII parecia amodorrada. Os
moleques brincavam nos terrenos vagos. Uma mulher cantava
alhures, embalando o lho. Raque-raque... raque-raque... raque-
raque... e o berço também cantava.

Padre Benedito saiu da casa de Tuca.

Parou diante do muro todo orido pelas trepadeiras sem nome.

Aquela trepadeira tinha sido a preocupação de Tuca durante os


últimos meses de existência. Tinha plantado o ramo colhido no
barranco, na mesma tarde em que ele lho dera. Regara-o diariamente.
E a planta plebeia, que oria boemiamente pelos caminhos, ao sentir-
se assim tratada, mostrou-se grata, viçou, enredou o muro e cobriu-o
de campainhas azuis. Dava gosto ver aquele muro. Quem passava pela
rua, parava encantado diante dele.
Uma moça debruçou-se na janela:

— Bênção, Padre Benedito. Como vai a doente?

— Deus te abençoe, menina. Ela extingue-se aos poucos, sorrindo


para a vida...

— A pobre...

— Faça-se a divina vontade...

E Padre Benedito voltou para a sua chácara, mesmo ao pé da Santa


Cruz. Ia falando só, em voz baixa:

Hi ores sitie nomem...

Hi coeruleas ores...

In se coelum est...

Já no m da rua parou um instante, tirou um livrinho das dobras da


batina e escreveu qualquer coisa. Com certeza tinha encontrado o
verso daquela tarde para o seu poema latino em louvor da Virgem.
Depois, seguiu mais apressado, perdendo-se entre os jacatirões de um
bosque plantado no m da rua.

Daí a pouco, um músico que voltava do teatro, com a caixa do


violino, subiu a ua LVII e entrou na casa de Tuca. Logo à entrada, viu
Zé ro sentado num tamborete ao pé do sofá em que se encontrava a
esposa meio desfalecida. João Antônio e Maria Balbina estavam
encostados à porta da alcova contemplando a lha. O músico sentiu-
se um tanto vexado por ter caído inesperadamente naquela cena
melancólica. Mas Zé ro chamou-o para perto de si. Ele entrou sem
dizer nada. Tuca abriu os olhos, reconheceu-o e sorriu. Depois, disse
ao esposo:

— Querido... corra aquela cortina.

Zé ro obedeceu. Pela janela — uma janela tão larga que parecia


estar deitada — apareceu o quadro do entardecer, com nuvens
brosladas de ouro e picos de morros recortados no céu pálido. A
doente olhou com ternura a tarde que se transformava em noite. A
seguir, num o de voz, dirigiu-se ao músico e pediu-lhe:

— A Ave-Maria... de Schubert...

O violinista não conseguiu dissimular a amarugem que lhe subiu do


coração e afastou-se para o interior da casa. Logo depois, em surdina,
a música popular ergueu-se nas sombras, como qualquer coisa de
luminoso e diáfano.

Ela sorria, sorria.

— Adeus... Adeus meus queridos...

O semblante transformava-se em máscara. Um instante depois,


sobressaltou-se:

— Onde estão meus pés?

Zé ro levantou a manta e mostrou-lhe os pés de cera.

— Já estão mortos. Mas não compreendo...


O marido sentiu uma grande angústia; ela delirava.

— Não, querido, estou em plena consciência. A palidez havia-se


feito lirial.

E foi adormecendo, adormecendo, ao som daquela música diluída


na sombra.

Súbito abriu os olhos e disse com vivacidade:

— Estou às ordens...

E descaiu para o lado, morta.

Ouviram-se uns queixumes pela casa; a música extinguiu-se. Fora,


o azul da tarde havia-se tornado tão escuro que no fundo do céu
começaram a aparecer as estrelinhas da noite.

Zé ro, com um in nito carinho, estendeu o corpo no sofá, ajeitou-


lhe os pés e as mãos de cera, cobriu-lhe o rosto e pediu a Maria Balbina
que fosse buscar um ramo de ores.

Ela e João Antônio continuavam encostados à porta da alcova,


espiando para dentro.

— Que ores?

— Da trepadeira...

A lâmpada branca da porta acendeu-se.

Logo depois, o corpo no e céreo de Tuca cou orido. Alguns


amigos que haviam chegado sentaram-se ao redor do sofá e puseram-
se a falar de assuntos em que a sua gura era carinhosamente
lembrada. Assim foi o velório. Ouviam-se, fora, o criscilar dos grilos e,
lá pelas bandas do lago, a tabuada das rãs. A noite, uma daquelas
noites de serra-abaixo, era tão límpida e profunda que parecia
possível contar a dedo todas, todas as estrelas do céu.

Pela manhã, chegou muita gente. Na maioria, eram amigos e


colegas dos bailarinos. Formaram-se grupos quase alegres diante da
porta. Nas conversas foram lembradas as vitórias artísticas, as
anedotas. Ali pela terceira hora da tarde, apareceu a carreta fúnebre
movida por quatro "escravos" brancos. Os robots pararam diante da
porta. Em 2030, a palavra fúnebre não quer dizer escuro, misterioso,
fatal. O além está mais aquém. Entre ambos, quase nada. Há quem
tenha relações com o "outro mundo." A morte não é mais o "reino de
onde não se volta mais." Muitas vezes, com o intuito de justiça, dão um
instante de vida a cadáveres intactos. Estes sentam-se na mesa, olham
em redor, respondem às perguntas que lhes fazem e, terminava a
audiência, voltam para a posição em que estavam, com um profundo
suspiro de alívio.

Zé ro apareceu à porta trazendo nos braços o cadáver de Tuca,


envolto num pano escarlate. Os amigos aproximaram-se, ajudaram-
no a depositar no veículo o delicado fardo. A um sinal, os "escravos"
puseram-se em marcha, com seus passos duros e medidos de
autômatos. E o féretro partiu seguido de muita gente. Nas portas,
havia mulheres agrupadas, para o ver passar. E falavam entre si:

— É a bailarina...

— Que bailarina?

— A que plantou as ores na rua.

— Que ores?
— Ora, as tucas azuis.

Seu nome tinha passado às suas ores.

O Columbário apareceu no alto, todo branco entre copas douradas,


na claridade do poente. Seguiram caminhos que serpeavam pelo
morro. A carreta ora passava em retalhos de sol, ora em retalhos de
sombra. As cigarras ziniam longamente. Uma lufada de noroeste virou
as folhas pelo avesso. Quando a carreta chegou lá em cima e transpôs a
cerca de espinheiros, abotoados de pequeninas esponjas, as pombas
voaram para o céu numa revoada de alvuras.

O Columbário era simples: quatro colunas alvas emergiam de


touceiras de lírios do brejo. Ao centro, sobre o piso de ladrilhos
brancos, uma pira de gra te, alongada. Dois autômatos permaneciam
de pé, imóveis, de um lado e de outro de imenso crisol. Um funcionário
dirigia os trabalhos de cremação.

O corpo de Tuca foi depositado na concha escura e o funcionário,


depois de consultar a Zé ro, acionou o primeiro "escravo." Este
abaixou-se e torceu um comutador. A pira avermelhou-se
instantaneamente e de sua valva subiu um escuro torvelinho de fumo.
Por esse tempo, as pessoas que haviam acompanhado o féretro já se
haviam dispersado pelo morro, voltando para o distrito. Só haviam
cado Zé ro, Maria Balbina e João Antônio.

Quando a fumaça clareou e adelgaçou, viu-se a pira que havia


tomado uma cor esbranquiçada e dentro dela um carreiro de chamas
palpitantes que iam sumindo. Do conjunto, desprendia-se um hálito
quente que escaldava o rosto dos presentes. O "escravo" branco, que
permanecia ao pé da pira, com o braço estendido, tinha a mão
esbraseada. Minutos depois, a obra de consumação do corpo estava
quase completa; do ígneo recipiente erguia-se um o de fumaça que se
perdia no ar, acima da altura das colunas. E o o foi se adelgaçando até
sumir. No fundo da pira, não havia mais nada, apenas um risco
ondulado de matéria coloidal, que mais parecia um risco de ouro
uido.

O funcionário apertou um botão; o "escravo" desligou a força. A


valva enegreceu instantaneamente, apresentando no fundo o resíduo
branco e limpo como cal. O resfriamento foi rápido.

Apertou o funcionário novo botão e o segundo "escravo" raspou o


fundo da valva, com a espátula, depositando a cinza em urna
quadrada, com seu número, que foi colocada numa espécie de
prateleira, em seguida a milhares de outras. Depois, o boneco voltou
para o seu posto e imobilizou-se. Seu braço direito, largo, ainda
oscilou um pouco, ao longo dos quadris de aço. O funcionário foi à
urna grande e com aquela cinza branca encheu urnas pequenas que
ofereceu aos parentes de Tuca.

Os três receberam-nas, comovidos, e partiram para o vale. Iam


calados, curvos, com os olhos perdidos nas urnas pousadas
religiosamente na palma das mãos estendida...

A manhã estava de um azul incrível. As pombas alvas cairelavam


no céu. O Noroeste vergava as árvores franzinas.

E a terra cheirava a ores de ingazeiro.

***

 
No ano seguinte, pelo orir das aleluias, apareceu no vale uma
canção anônima que andou de boca em boca.

Ela começava assim:

A memória de Tuca já se some

do Zanzalá nas gerações malucas;

a trepadeira que não tinha nome

herdou-lhe o doce nome e se consome

enchendo a terra de azuladas tucas...

Namorado infeliz de alma cansada

que encontra no caminho a humilde or

colhe-a depressa para a namorada,

pois é sabido que essa or da estrada

tem o condão de sugerir amor.


 

REINO DO CÉU
I
IDADE MÉDIA

Messer Pedro Bernardone poderia considerar-se feliz. Como


mercador, sua reputação de liso e probo espalhava-se pelas comarcas
da Umbria. Como homem de prol, administrando haveres que
cresciam de pais a lhos, os fados eram-lhe igualmente propícios. A
casa dos Bernardoni, uma das mais respeitáveis de Assis, era
frequentada por príncipes, cleresia, gente de algo.

Ele era mercador de tecidos. Periodicamente, transpunha os Alpes e


visitava as cidades da Provença, comprando em Tolosa e Mompilher o
afamado panno francesco que vendia aos elegantes da Península. Numa
dessas viagens, deixara-se prender pelas graças de Mademoiselle
Picque, uma Bourlemont, de escorreita linhagem. O casamento
realizou-se em Aix. Depois das bodas, o rico mercador e a suave
castelã montaram a cavalo e partiram para Assis, onde xaram
residência.

Foi lá, num ambiente religioso, perfumado de lendas, que lhes


nasceu o primeiro lho. Pedro Bernardone andava de viagem,
absorvido no seu comércio. A mãe ê-lo batizar como João Batista.
Mas o pai, quando regressou, com vinte animais ajoujados ao peso das
peças de veludo provençal, não gostou do nome. Ele era sanguíneo,
turrão. Ela era dócil, quase diáfana. E, assim, as divergências
acomodaram-se.

Esse lho, que mais tarde deveria herdar-lhe as riquezas e


continuar as honradas tradições da família, estadeava a elegância
branda e luminosa de um orete. Mas não mostrava pendor para os
negócios. Ao contrário, tinha o mau vêzo das letras. Os cônegos, nos
serões familiares, já lhe haviam reconhecido talento; as donas, de
cabelos caídos pelas têmporas, em negros caracóis, morriam por ouvi-
lo repetir frases poéticas que mais pareciam músicas...

O pai não via aquilo com bons olhos. Fê-lo montar a cavalo e levou-
o consigo, nas viagens através dos Alpes, na esperança de endurecer-
lhe a bra para melhor avir-se no comércio. Mas, o jovem, em
chegando a Tolosa, abandonara o pai na hospedaria, diante do
chouriço com ovos e da botelha de rouge e ia para as tertúlias literárias,
a camaradagem dos poetas. Frequentou as Cortes de Amor e iniciou-se
no segredo dos menestréis.

Embalde o pai con ou no tempo, nas obrigações, talvez nas


necessidades. Ele, ao longo dos anos, sentiu-se cada vez mais atraído
pela França, ou melhor, pelo pensamento que irradiava da Provença,
quartel-general dos trovadores que, improvisando fabliaux à beira das
estradas, levavam secreta mensagem por toda a Europa. Sentia-se de
tal modo voltado para aquelas bandas que, chamando-se João Batista,
se viu logo apelidado de Francesco, que queria dizer francês, nome
com que deveria car para sempre na história da bondade humana.
Seus companheiros de escola, vendo-o negociar com panno francesco,
ouvindo-o falar e cantar em francês, passaram a chamá-lo de
Francesco. E Francesco cou.

Francisco de Assis era poeta, contava-se entre os trovadores. E


enquanto não vinham as qualidades desejadas pelo pai, absorvido no
comércio, ele gastava os dias pelas salas de armas, adestrando-se na
arte gentil das estocadas e nos botes particulares que ainda mais
lustro lhe acrescentariam ao nome. Freqüentava as rodas elegantes.
Tomava parte em ceias e zanguizarras. E tanto brilhou nesse meio que,
uma vez, em honra da sua espada, da sua verve e das suas canções, foi
coroado rei da mocidade de Assis.

Mais ou menos por essa altura, estalou aquela nebulosa guerra


entre a fraca cidade de Assis e Perusa, a sua poderosa vizinha. Tal
guerra parecia destinada a distrair os vadios de ambas as populações,
ameaçadores pelo número e pela audácia. A luta proporcionar-lhes-ia
ocupação e a julgar pelas conversas em voz baixa entre arciprestes de
falas macias e matronas assustadicas — daria cabo dos mais belicosos
e exigentes.

Durante meses, a plebe de Assis e a plebe de Perusa, uma contra a


outra, entremataram-se com a desejada e ciência. Do alto das
espessas muralhas denteadas, com torreões vigilantes, pontes
levadiças e fossos de água negra, rica de rãs e de febres, os
arcabuzeiros zeram razzie nas bordas opostas, em tudo irmãs, no
andrajo, na fome e na vermina. Os senhores de Assis e de Perusa
assistiam de palanque a tais refregas, simulavam desespero nas
conversas de praça pública, e, à noite, depois de cearem vitelos cozidos
em vinho, iam dormir de alma apaziguada.

Mas, a nal, aquele esporte era tentador e acabou por empolgar a


mocidade das duas bandas. Francisco foi dos primeiros a chamar sua
gente e a tocar para a luta. Contam as crônicas que ele se bateu com
valentia. Mas, no combate da ponte San Giovanni, caiu prisioneiro.
Entre muitos companheiros de armas, foi conduzido a Perusa e ali
encerrado nos subterrâneos do Palazzo Communale.

Deu-se, então, um fato curioso. Enquanto os demais se


conservavam humilhados e taciturnos, ele, ao contrário, foi tomado de
comunicativa alegria. O cárcere era escuro, alumiado apenas por uma
lâmpada de azeite que cochilava no encontro das galerias. Diante dos
companheiros, encorujados pelos cantos, bradava ele:

— Que pensam vocês de mim? Ah! Virá um dia em que eu serei


adorado pelo mundo inteiro!

Não lhe davam ouvidos.

Veio a paz. Francisco, com os outros soldados, foi devolvido à sua


gente. A humilhação de ter caído prisioneiro nas mãos dos perusinos,
uns birbantes, doía-lhe na alma. Assim mesmo, retomou a sua
existência frívola no ponto em que a havia abandonado. Vivia em
reuniões e festas. Cavalariças e salas de armas. Serões literários e
aventuras noturnas sob balcões em or. Sua beleza e inteligência
dominavam.

Mas, em verdade, aquilo não o satisfazia. Sonhava glórias


rutilantes. O anseio que o estimulara a tomar parte na guerra contra
Perusa levou-o a meter-se em outra campanha. Sabendo que um certo
Gualtieri di Brienna desencadeara uma luta de guelfos contra
gibelinos, nas Púglias, armou-se e correu para lá. Os guelfos eram a
canalha a serviço do Papa Inocêncio III, lutando a crédito, por uma
felicidade que só lhes seria paga depois da morte. Os gibelinos eram os
aristocratas vendidos ao rei germânico. Antes de partir, porém, teve
um sonho. Viu-se num castelo cheio de estandartes e gonfaloneiros, de
cavalos e de príncipes... Ao acordar, contou o sonho aos amigos,
concluindo:

— Parece claro que serei um grande príncipe.

Partiu. Chegou a Spoletto. Fremia de entusiasmo militar.


Precisamente nesse ponto — a dar crédito aos pintores que, séculos
depois, xaram passagens de sua vida — ouviu-se uma voz celeste que
o aconselhava:

— Francisco, não siga o Servo, o Pobre; ajunte-se à grei do Amo, do


Rico!

Ele cou perplexo.

— Mas quem é o Amo, o Rico? E a voz.

— O Rico é Deus. Abandone a ideia militar. Volte para trás. Saberá


em Assis o que é preciso fazer.

Obedeceu, voltou a Assis.

Mostrava-se grave e sério, parecia outro. No entanto, de súbito


tornou-se expansivo. Retomou o lugar entre os jovens da sua idade.
Era sempre o primeiro, na inteligência e na alegria.

Certa noite, depois de um jantar de estroinas, com música e


mulheres, os rapazes saíram cantando pelas escuras e quietas ruas de
Assis, onde abundavam becos, ladeiras e escadinhas. Sobre os tetos
negros emergiam, banhadas pelo luar, as torres velhas da cidade. O
templo de Diana, lembrança dos pagãos, erguia ao longe o seu frontão
levemente azulado. Em certo momento, os alegres jovens notaram que
Francisco havia cado para trás. Onde estaria ele? Foram encontrá-lo
numa esquina, sentado num frade-de-pedra. Não ria, nem cantava.

Perguntaram-lhe a causa da tristeza.

— Amigos — respondeu — não sei como nem por que, mas não
estou triste; ao contrário, asseguro-lhes que neste momento sinto
tamanha alegria na alma que, se me cortassem aos pedaços, eu nem
sequer daria por isso!

Uns riram, outros puseram-se a gritar:

— Está enamorado! Ele sorriu:

— Adivinharam. Estou pensando nas minhas núpcias. Vocês verão


que ninguém se casará com uma jovem mais bela, mais rica, mais
nobre do que a minha!

As risadas aumentaram. Ele, no entanto, continuou silencioso.


Estava certo de que, dentro de pouco, desposaria "Madonna Povertá..."

Abandonou a camaradagem dos ricos-homens. Vagabundeou dias


inteiros pelos bairros da miséria. Ao regressar à casa parecia mais
triste. Entrava na loja paterna e, sempre que o não vigiavam, metia
uma peça de estofo debaixo do braço e levava-a para dar aos que,
naquele inverno, andavam a tiritar pelas estradas. Expropriava. Um
dia, o pai veio a saber daquilo, chamou-o de ladrão, levou-o à
autoridade e atirou-o ao cárcere. E quando saiu da prisão, encontrou
um mundo diferente. Os amigos viravam-lhe as costas. Os próprios
mendigos afastavam-se dele, para não se comprometer.

Uma tarde memorável — tarde que cou como uma or na história


do coração humano — tais desmandos fez que, contados, ninguém
acreditaria. No entanto foram vistos, com olhos arregalados, por
quem quis ver.

A cena passou-se no largo da igreja de São Jorge. Era a hora em que


o vento das planícies agita as roupas estendidas nas sacadas dos altos
prédios, sem alinhamento, inclinados uns para os outros; em que as
liteiras forradas de alveice, com cortinas de veludo granada, se
cruzam e as donas dizem adeuses, sorrindo pelo quadro do postigo;
em que os vendedores de peras cozidas, de grão-de-bico e de pevides
fazem algazarra; em que os dalgos, para melhor conversarem,
apeiam dos cavalos e entregam as rédeas aos lacaios.

Francisco trepou numa pedra, ergueu os braços e falou. Que


terríveis palavras disse! Correu gente de toda parte, para ouvi-lo. Um
pelotiqueiro, que fazia malabarismos com seis bolotas, foi
abandonado pelos curiosos que o cercavam; depois, ele próprio correu
para o adro da igreja. Francisco denunciou a duplicidade dos ricos,
apontou a miséria que comia servos e campônios, contou que à noite
os homens iam para as vielas, a disputar os ossos aos cães, e que as
mães enjeitavam os lhos recém-nascidos nas seteiras das muralhas.
Teve, então, um arranco de desespero, que roçou pelas raias da
loucura. Desvencilhou-se do barrete de veludo e dos sapatos com
velas de metal; despiu o gibão de púrpura, os calções de brocado, as
roupas brancas, tirou as lembranças ricas e atirou-as uma a uma na
lama da rua, onde eram disputadas a faca pelos vadios. E nu, diante de
mil espectadores a itos, gritou:

— Senhor! Vós que Fostes o mais pobre de todos os pobrezinhos do


mundo! Vós que Fostes contra a riqueza, a guerra, as pátrias, as armas,
os senhores, a hierarquia, a exploração do irmão pelo irmão! Em
vosso nome, repudio o luxo, a ociosidade, os privilégios de minha grei.
Vejo nas injustiças da família humana a obra dos Anjos Maus expulsos
do céu por maliciosos e protervos que, usando de tais misti cações,
procuram perder-nos a todos! Senhor! Não mais me vestirei como os
demais enquanto houver por aí homens, mulheres e crianças com as
carnes nuas, mordidas pelo frio!

Sua voz parecia o eco do sermão da Montanha.


O escândalo alarmou a cidade. O pai repudiou-o. Mas o bispo, que
era homem prático, mandou levar-lhe uma daquelas túnicas de
cânhamo, pardas, que os campônios usavam para esconder a nudez.
Essa vestia primitiva foi adotada por Francisco para si e os
companheiros que logo surgiram; tornou-se o hábito escuro que ainda
hoje, alterado no estofo, no corte e no espírito, é usado pelos piedosos
frades franciscanos.
II
UMA BRAÇADA DE LÍRIOS

Essa cena edi cante passou-se no ano da graça de 1028. O santo Papa
Inocêncio III, que andava de olho nas heresias, soube logo dos
despautérios do mercador. Chamou o bispo de Assis e arrasou-o de
perguntas. Não fosse o rapaz estar envenenado pela pregação de
valdenses e albigenses, que encontravam seguidores nas mais
disparatadas regiões, fosse no sul da França ou na terra dos búlgaros.
Mas o bispo conhecia Francisco. Estava a par dos seus sonhos de
glória, das suas visões, do desencanto que dele se havia apossado nos
últimos tempos. Já havia dado testemunho da sua fé, nas Púglias,
alistando-se entre os guelfos, sob as ordens de Gualtieri di Brienna. E
com tais argumentos desmanchou as dúvidas que toldavam a alma do
pontí ce.

Dias depois, informado do desenvolvimento que a comunidade


alcançava e da simpatia que encontrava entre os pés-rapados, até
mesmo entre a gente que tinha alguma coisa a perder, sentiu-se
novamente alarmado. Dessa vez, não quis ouvir o bispo; mandou
chamar Francisco. O Poverello atendeu com presteza e, um dia, seguido
de 12 irmãozinhos, que, pelo traje pareciam pastores, foi bater à porta
de bronze do Vaticano. Os guardas olharam-no com descon ança.

— Quem sois?

— Francisco.

— Não basta.
— Um discípulo de Jesus.

— Hum...

— Fui chamado por Sua Santidade.

Houve um corre-corre entre a porta e o palácio ponti ício. Figuras


dissimuladas começaram a rentá-lo, a indagar-lhe da vida e dos
propósitos. Por m, um camareiro de Sua Santidade veio buscá-lo.

O papa esperava-o na câmara cor de bagas de romã, Francisco levou


três dias para lá chegar. Sentiu-se arrebatado por misteriosas forças
que o desviavam do caminho, que o ameaçavam na penumbra dos
corredores e que, certa noite, estiveram a pique de raptá-lo. Mas
a nal, conseguiu abeirar-se do trono de Sua Santidade. Ali chegando,
foi recebido com agrado. Ajoelhou-se a seus pés e beijou-lhes as
velas de ouro, cravejadas de diamantes, que adornavam os sapatos.
Inocêncio III era a malícia da inteligência; Francisco era a candura da
bondade.

— Irmão Francisco, tenho ouvido falar das suas virtudes. Acho,


porém, que a sua comunidade peca pela falta de hierarquia.

— Entre nós, os primeiros são os últimos.

— Outra coisa que não me parece recomendável é a miséria em que


vivem os irmãos; a comunidade não tem nada de seu e os frades
passam fome.

— Queremos alcançar — ai de nós — a salvação.

— E quanto ao traje... Nada custava terem mais cuidado consigo


mesmos, pois um religioso não pode andar por aí como um banga-la-
fumenga.

— Nós nos inspiramos nos lírios do campo.

— Meu lho, já pensou no que aconteceria ao mundo se todos os


homens seguissem a sua doutrina?

— A terra seria o Reino do Céu.

— Mas, para chegar a tanto, teríamos de passar pela maior e mais


profunda de todas as revoluções, de todos os tempos. Jesus é
inquietante. Ele mesmo disse que não veio trazer a paz. Tal aspiração
não é para nossos dias. Não sei mesmo para quando possa ser. Daqui a
quinhentos, a setecentos anos? Só Deus sabe. Os Evangelhos, apesar
de escolhidos com sagacidade entre os muitos existentes, apesar de
cortados ou acrescentados com inteligência, continuam a ser livros
perigosos. Cuidado com eles! Os homens devem conhecê-los, mas
através da nossa interpretação, que é a mais condizente com as
necessidades de cada dia...

Francisco abaixou a cabeça.

Sua Santidade mostrou-se condoído pela candura daquele frade.


Tão condoído que lhe disse, com um bom sorriso:

— Então, vós sois os pobres de espírito? Ao que Francisco


respondeu, com segurança:

— Somos. Nosso espírito é chão como a água, como a luz!

O Santo Padre deu por terminada a audiência, e mandou-o em paz.


Para falar a verdade, gostou do frade, e em toda parte, facilitou-lhe a
obra.
Voltando a Assis, Francisco retirou-se para Porciúncula, distrito
perdido nas dobras do monte, onde havia dado início a uma
comunidade de irmãos menores. Para residência, ele e seus discípulos
ocuparam um casarão em ruínas que lhes foi doado, e por cujas
goteiras os religiosos não perdiam de vista o céu. Numerosos casebres
se lhe juntaram dentro de pouco. Mais acima, pendurada nos
despenhadeiros, entre ciprestes, enredada de caídos, havia uma
capelinha rústica na qual Francisco se recolhia semanas inteiras, em
jejum e oração.

Os primitivos franciscanos pregavam a doutrina comum da época,


mas realizavam nas suas obras, em silêncio, os ensinamentos da
doutrina nazarena do Reino do Céu. Foi essa doutrina que, alterada de
acordo com os interesses das classes abastadas, recebeu em Antioquia,
quarenta anos após a morte de Jesus, o nome de Cristianismo. Jesus
ignorou a palavra Cristianismo-. Quem quisesse juntar-se aos
franciscanos de Porciúncula teria, antes de tudo, de distribuir os seus
haveres entre os pobres, pois a propriedade é pecado mortal: mais
fácil é um camelo passar pelo fundo da agulha do que um rico alcançar
o Reino do Céu... E daí — dizia ele — "se tivéssemos propriedade
necessitaríamos de armas e de leis para defendê-la."

Os pretendentes chegavam a Porciúncula descalços, quase nus,


batendo os dentes de frio. Eram recebidos como irmãos. Dali por
diante, passavam a cuidar dos leprosos que abundavam na região, a
socorrer pestosos, famintos e agonizantes. Não podiam receber ouro
nem prata. Seus hábitos nem sequer tinham bolsos. Deixavam à porta
os bens do mundo, a começar pelo nome da família. Nas suas
jornadas, quando atravessavam as plantações, e viam os campônios
vergados sobre o chão duro, entregues ao amanho da ravina, pediam-
lhes ferramentas e ajudavam-nos, trabucando, rijamente, a seu lado.
Durante tais ajudas, pregavam a fé primitiva, que se inspirava nas
coisas comezinhas: a cordura dos anhos, a indiferença pelas
preocupações da terra, pois o seu reino não era deste mundo, e a
simplicidade e a pureza dos lírios do campo. Aquele seu Reino do Céu,
invocado a cada passo, foi o que mais tarde se chamou uma "utopia"
social, onde não havia amos nem servos, não havia fronteiras, a
riqueza era condenada, o luxo um pecado e a hierarquia se processava
ao contrário. Os camponeses, pesados e grossos como cepos,
arredondavam os olhos. Maravilhavam-se. Por que motivo os demais
religiosos, no alto do púlpito, não lhes falavam nessa linguagem?

Francisco obteve permissão para pregar na igreja de São Jorge. Suas


prédicas tiveram o dom de arrastar para o templo até mesmo os
arredios. Aos domingos, a nave cava compacta de ouvintes. Eram
nobres, mercadores, artesãos, campônios, sujeitos de má vida. E
loucos de camisola, brincos e carapuça de guizos. Até mesmo aquelas
mulheres de cabelos arrepanhados no alto da cabeça, que pecavam
debaixo das pontes. Elas chegavam assustadas, temendo magoar, com
a sua presença, a gente limpa. Os servos metiam-se pelos cantos;
tinham as mãos grossas e cheiravam a curral. Não raro, os mendigos,
endurecidos na pro ssão, deixavam o degrau de pedra da igreja e, —
também eles — iam ouvir as verdades novas que aquele homem dizia.

Alto, de magreza esquelética, de palidez transparente, feita de


morti cações e jejuns, seu rosto impressionava aos éis. Diziam que,
nos momentos de arroubo, uma claridade dourada, envolvia-lhe a
cabeça. As mãos, enxutas e brancas, esvoaçavam abrangendo a
humanidade, erguiam-se implorando misericórdia pelos erros dos
homens e acabavam unindo-se, numa ardente prece a Deus, pelos
tristes, pelos inconsolados. Todos o compreendiam, uns com temor,
outros com veneração. Ninguém, no entanto, como aquela jovem
pálida, loura, de grandes olhos azuis, que o conhecera havia tempo, no
esplendor dos salões.
Era Clara. Madonna Clara com seus 17 anos em or. Ela, sim,
compreendia-o. Tanto assim que, na noite de Domingo de Ramos de
1212, em que as estradas estavam brancas e os ciprestes levemente
azuis, fugiu do palácio paterno, seguida de sua tia Branca e, a pé, se
dirigiu a Porciúncula. Queria falar-lhe. Os fratelli mendicanti ainda
moravam no pardieiro primitivo, cercado de improvisadas
choupanas. Entrou pela porta perenemente escancarada e dirigiu-se a
um religioso. Era Bernardo, a quem Francisco chamava de "primeiro
irmão." O frade informou-a de que o Mestre, participando embora do
trabalho comum, fazia prolongadas orações na capela do monte, a
meia hora de caminho. Nesse retiro, passava semanas inteiras de
silêncio e imobilidade, no desejo de ascender aos mais altos picos da
espiritualidade. Clara, sempre acompanhada pela tia, foi ao seu
encontro.

O Subásio estava ermo e silencioso. O caminho, contornando


penhascos, esgueirando-se pelos precipícios, alternava de sombras e
claridades. A lua boiava sobre as montanhas da Úmbria. Cabras e
ovelhas, equilibrando-se nas lapas, fugiam à passagem das duas
mulheres. Alguns montanheses que encontraram persignaram-se e
desapareceram a correr, morro abaixo. Damas de tanto mimo àquela
hora, em tais lugares, deviam ser assombração, tanto mais que se
estava na noite fatídica de almas penadas e bruxedos!

Quando chegaram à capela, encontraram Francisco ajoelhado


diante de um Cruci xo. Por trás da sua cabeça magra, de desenho
perfeito, aparecia o disco da lua, como um gloriai. Ele voltou-se, ao
leve rumor dos seus chapins, e reconheceu-as. Então, ali, tomando o
céu pálido por testemunha, madona Clara contou-lhe que, ouvindo-o
nas prédicas da igreja de São Jorge, lhe viera a inspiração de
acompanhá-lo na sua obra de in nita misericórdia. E o Mestre leu-lhe
nos olhos claros a rmeza da decisão. Por isso, ele à frente, desceram
para Porciúncula. Nos pontos em que o caminho se adelgaçava sobre a
boca azul dos precipícios, Francisco parava, tomava-a pela mão e
facilitava-lhe a passagem. Depois, voltava e auxiliava a madona
Branca, que era entrada em anos e sofria de vertigens. Já nas faldas do
Subásio, a jovem deu mostras de fadiga. Então, o frade estendeu-lhe a
mão, mão magra em que ela sentiu as falanges. E, durante essas horas,
o cavaleiro e a donzela não falaram nem pensaram em outra coisa que
não fosse o Reino do Céu.

Naquela mesma noite de 12 de março de 1212, madona Clara e, sua


tia madona Branca tomaram, das mãos do Mestre, a túnica cinzenta e
o véu, para fazerem entre as mulheres a mesma obra que ele estava
levando a cabo entre os homens. Professando, elas recolheram-se ao
Convento das Beneditinas de São Paulo, perto de Bástia.

Dali o pai da donzela foi arrancá-la, com homens armados, para


entregá-la a um jovem a quem havia prometido sua mão de esposa.
Levou-a para casa. Fechou-a numa torre, pôs guardas nos jardins, na
ponte, na estrada. Mas não conseguiu torcer-lhe a vocação. Certa noite
escura, ela fugiu por um buraco praticado no muro e foi recebida no
campo por frades que empunhavam tochas. Ela e a tia foram então
recolhidas ao convento de Santo Angelo-in-Panzo.

Ao cabo de dezesseis dias, nesse glorioso lugar, se juntou Inês, a


irmã mais nova de madona Clara, e, com outras jovens, que haviam
seguido o edi cante exemplo, fundou-se a Ordem das Claristas,
orientada pela mesma formula vitae, redigida por Francisco
Bernardone. Essas chamadas "damas pobres" foram morar em
casebres ao pé da capela de São Damião, e ali, a suave irmãzinha
Clara, transformada em abadessa, viveu com devoção e heroísmo até o
dia em que Deus, como presente longamente esperado, lhe mandou a
libertação da morte...
III
O IRMÃOZINHO SEM NOME

Entre os fratelli mendicanti que habitavam o retiro de Porciúncula


apareceu um pobre diabo a quem os companheiros, na falta de nome,
chamavam apenas de irmão. Era um sujeito descon ado, taciturno.
Mas diziam-no bom como a broa, a água do poço e a claridade do dia.
Sua entrada para a comunidade não havia deixado vestígio nos livros
de assentamento. Deu-se por acaso, se é que existe acaso para
franciscano, numa noite tempestuosa do ano de mil duzentos e tantos.

Francisco e Bernardo, voltando tarde da casa de uns leprosos, que


eles tratavam com suas próprias mãos, chegaram a Porciúncula à luz
dos relâmpagos. A porta do tugúrio estava escancarada como sempre,
para receber os peregrinos, os mendigos e os que haviam sido
alcançados pela noite nas incertezas do caminho. Na soleira da porta,
encontraram adormecido um hóspede que não quisera entrar.
Ressonava como um justo, o chapéu baixado sobre os olhos, o bastão
atirado por terra. Os dois religiosos estacaram diante dele. A nal, tais
encontros eram comuns. Bernardo, o discípulo amado, bateu-lhe
levemente no ombro:

— Ê, irmão...

O peregrino acordou, saudou-os e repetiu a sua queixa. Era de


Perusa, tinha passado boa parte da vida como escrevente de um
homem de leis. Cansado da pena de pato e do pote de tinta, resolvera
correr mundo. Mas não era feliz. A caridade andava morna, o pão
escasso. Por isso, ao saber que o grande papa Inocêncio III organizava
uma cruzada contra os hereges albigenses que, no dizer dos clérigos,
infestavam o sul da França, vestiu o hábito de sarja preta, botou o
chapéu largo, apoiou-se num bastão comprido e, feito peregrino,
tomou o caminho de Roma. Mas nem todos 03 caminhos vão ter a
Roma. Aquele, por exemplo, levou-o, alta noite, a uma agreste falda de
morro, onde se ouvia o uivo agoureiro dos lobos... Ia engrossar a
horda de desocupados que, dentro em pouco, deveria produzir novos
mártires, dessa vez cristãos que haviam discordado da riqueza e do
luxo da igreja...

— E que pedis? — perguntou o irmão Bernardo.

— Um molho de palha para dormir, um naco de broa para roer, um


púcaro de água para mitigar a sede.

— Entrai. Deus seja louvado.

Entraram, um atrás do outro. No m do corredor, ardia uma


lâmpada de azeite aos pés do Nazareno, de braços abertos para todos,
como zera durante a vida. Aquela comunidade não se parecia com
outras que deram brilho à Idade Média. Seus componentes não
passavam de intermediários de bene ícios entre os remediados e os
necessitados. Esses homens não guardavam nada para si, nem para o
convento, a não ser uma migalha de pão negro para satisfazer, e assim
mesmo o mais parcamente possível, às exigências do corpo. As véstias
eram lisas de bolsos. Quando um mercador ou um alberguista, de olho
descon ado, lhes atirava uma moeda de cobre, o frade conservava-a
fechada na mão e ia depositá-la, logo adiante, como simples
emissário, nas mãos de determinado pobrezinho de Deus, que ele
sabia não ter comido até àquela hora.
A casa dos franciscanos, por seu lado, não se parecia com outros
mosteiros daquele tempo. Era um casarão crivado de goteiras, onde
dezenas de homens rudes mas compassivos, envergando ásperos
trajes grisalhos, dormiam pouco e comiam às pressas, na certeza de
que o minuto perdido consigo mesmo representava maior sofrimento
para os pobres a quem tudo faltava.

O convento era dirigido por um superior guiado por Francisco. Não


dispunha de ecônomo, nem de outros irmãos graduados. , Nem
cozinha, nem refeitório. Frades de outras ordens que, mal informados,
ali procuravam pouso, se arrependiam. Era verdadeiro o seu pasmo
diante da frugalidade daqueles religiosos. Embalde procuravam pela
casa o grande fogão aquecido a toros de azinheiro, a adega copiosa, a
mesa farta, com pães alvos e cabritinhos tenros. Punham-se de má
sombra diante daquela simplicidade primitiva, de nazarenos do
tempo das pregações. Persignavam-se três vezes, que aquilo, nó seu
entender, tresandava a heresia! E nunca mais voltavam. Os próprios
fratelli mendicanti de outras comunidades, religiosos de faro aguçado e
olho nório, afeitos aos caprichos do acaso, que nem sempre é ruim,
passavam de largo, preferindo à santidade triste da casa dos
franciscanos, a cavalariça de uma estalagem de estrada, onde havia
sempre bom fogo e alegre companhia...

Francisco e Bernardo repartiram com o hóspede o pouco de que


dispunham; depois de refeito, o peregrino ergueu os braços de modo
singular e perguntou ao teto:

— Cosa fa il Diavolo?

Francisco e Bernardo sorriram, com piedade. O peregrino explicou


que essa era a sua preocupação, desde o tempo em que gatafunhava,
por dias inteiros, as razões do homem às leis. Quis explicar-lhes, por
miúdo, os motivos da obstinação, mas os frades não tinham tempo
para ouvi-lo; desejaram-lhe boa-noite e foram dormir.

O hóspede acomodou-se no vão de uma escada e lá cou ouvindo


pela noite o chiado alegre das ratazanas. Ao clarear, mergulhou no
sono e perdeu as horas. Quando acordou, o convento estava deserto,
pois os frades, muito cedo, haviam saído para a faina. Não pensou em
prosseguir viagem para Roma. Sentia-se bem naquela companhia. Os
albigenses que continuassem a viver como entendessem. Que lhes
importava, a eles, o luxo do clero e a riqueza do Papa?

Foi ao quintal, cortou uns ramos e varreu a casa o melhor que pôde.
Mudou o feno dos cantos onde os frades dormiam. Tirou água do poço.
Fechou as portas com tramelas. Deitou azeite na lâmpada do
Nazareno. Substituiu por ores frescas o ramalhete mirrado que se lhe
escorava aos pés. E, depois de acender fogo animador, cou-se a tostar
maçãs, descobertas no parapeito de uma janela. E um sol claro,
franciscano, cheio de alegria do monte e da doçura dos vales, entrou
pelo edi ício como uma bênção. À sua luz, o chão de terra batida
pareceu-lhe mais bonito.

Durante o dia, não viu ninguém. Ao cair da tarde, bateram


nervosamente à porta. Correu a abrir. Um irmão magro, alto, barbudo,
de olhos oblíquos e falsos, pôs-se a gritar:

— Eu sou frei Elias! Abra as portas! Esta casa nunca fecha as


portas! Tem sempre as portas escancaradas!

O peregrino obedeceu. Passada a tormenta, perguntou:

— E se vierem ladrões?
— Se os nossos irmãos ladrões aqui aparecerem, que sejam bem-
vindos! Vendo que nada temos e nada negamos, talvez se corrijam e
tomem pelo bom caminho!

O hóspede conveio em que havia julgado mal ao irmão Elias. A nal,


ele não tinha culpa de que os seus olhos fossem oblíquos, turvos,
dissimulados. Acabou por considerá-lo um dos mais exaltados
discípulos de Francisco. No entanto, o homenzinho não o encarava,
não o tava de frente... En m, cada um é como Deus o fez...

Aquele irmão Elias tinha uma história acidentada; com o tempo


essa história chegaria a ser incompreensível. Diziam-no criatura do
Papa, entre os franciscanos, vagamente suspeitos de heresia. No
século, tivera o nome de Bombarone. Nascera em Beviglie, perto de
Assis, de uma família remediada. Exercia o cargo de notário, em
Bolonha, quando, deslumbrado pela obra de Francisco, veio pedir-lhe
a glória de trabalhar e orar a seu lado. Foi recebido de braços abertos.
Mostrou-se o mais humilde, o mais fervoroso discípulo do Poverello.
Um dia, o Mestre mandou-o para o Oriente, como bispo da diocese da
Terra Santa. E, desde aquele dia, o irmão sem nome que de motu-
proprio se zera serviçal do convento, não mais ouviu falar em Frei
Elias...

E os anos escoaram-se. Nas aventuras da Quinta Cruzada, Francisco


foi mandado ao Oriente, a m de pregar a boa palavra. Fez a gloriosa
viagem. Conheceu as malsinadas terras dos gentios. A nal, eram
homens como quaisquer outros. Entre eles havia bons e maus. Os bons
tinham suas fraquezas; os maus, às vezes, faziam atos de bondade... E
havia ricos e pobres, E perseguidores e perseguidos. Para que tanto
ódio na face da terra? Enquanto os cruzados pilhavam os castelos, as
herdades, até mesmo os tugúrios do caminho, e degolavam infelizes,
Francisco falava às multidões escuras do Egito e da Palestina, que o
agasalharam como irmão, repartindo com ele o seu pão elástico.
Voltou em 1221, em companhia de Frei Elias; vinha comovido com o
que vira, desiludido das Cruzadas. E ao chegar a Assis cou pasmado
do que encontrou.

Inocêncio III, inimigo sombrio dos albigenses, daqueles cristãos


que recebiam a pobreza como mercê de Deus, havia reconhecido,
a nal, a Ordem Franciscana, que fazia do trabalho, da pobreza e da
humildade suas mais altas virtudes. Mas, reconhecendo-a, dera-lhe
organização semelhante às demais, com uma hierarquia de brilhantes
frades, mandados de Roma. Francisco perdeu o gosto pela obra assim
transformada e, embora conservando-se el ao Papado, não quis
continuar como seu chefe. Afastou-se, melancolicamente, dela.

Frei Elias foi eleito superior dos franciscanos, apesar dos protestos
dos primitivos irmãos, que preferiam Francisco. O frade prometeu
governar de acordo com o Mestre, e assim fez, até que ele faleceu em
1226. Mas, nem bem este fechara os olhos, Frei Elias, o frade de olhos
oblíquos e falsos, que não encarava ninguém, mudou como da água
para o vinho. Começou rompendo com a formula vitae escrita por
Francisco, implantou férrea disciplina, estabeleceu vasta e complicada
hierarquia e, socorrendo-se dos processos mais comuns, enriqueceu a
Ordem.

Possuidor de largos recursos, iniciou, em Assis, a construção da


igreja e convento de São Francisco, um monumento único no mundo,
porque é constituído por dois edi ícios superpostos, cada qual mais
belo e rico. Os antigos irmãos, que haviam bebido a fé nazarena nas
palavras do Poverello, escandalizaram-se e procuraram reagir. Mas era
tarde. Uns foram presos e morreram esquecidos nas masmorras de
São Domingos. Outros, conduzidos à praça principal de Assis, aquela
onde o Mestre se havia despido como protesto contra a injustiça dos
homens, aí foram publicamente chicoteados, por amor e delidade a
Francisco. E Bernardo, o discípulo amado, teve de fugir para as
orestas do monte Subásio, onde viveu um ano entre lobos, acuado a
arcabuz pelos homens de Frei Elias!

Um dia o novo geral visitando Porciúncula, notou o âmulo sem


nome, que andava absorvido nos serviços domésticos do mosteiro, e
procurou interrogá-lo sobre a vida dos éis amigos de Francisco, nos
últimos anos. O antigo escrevente de advogado mostrou ter aprendido
com o seu primeiro amo; não vira nada, não ouvira nada. Não sabia
nada. Aqueles frades eram todos uma braçada de lírios. Jurou. Ergueu
os braços, invocando o testemunho do céu. Elias de Cartona (nome
com que a história o guardou) sentiu-se enganado. Azedou, cou
escarlate e, contendo terrivelmente a cólera que lhe ia na alma,
debicou-o:

— Figlio mio: non sei un frate, sei un or!

O pobre homem era, de fato, menos um religioso do que um lírio.


Mas pela pureza e pela doçura. Sua preocupação era servir, sem
aparecer. Tinha-o conseguido. A tal ponto que, adiantadas as obras do
templo de Assis, com grandezas de arquitetura e luxos de confortos, os
frades para lá se mudaram... Mas o serviçal sem nome continuou no
pardieiro. Uns diziam que o pobre fora ali deixado para zelar da velha
propriedade, visto que os lhos do Poverello já eram grandes
proprietários; outros cochichavam, disfarçando sorrisos malévolos,
que aquilo se dera por esquecimento, ou mesmo, para se descartarem
do irmão leigo. Fosse como fosse, ele juntou as mãos, ergueu aos céus
os olhos límpidos e deu graças a Deus por o haverem esquecido...
IV
AMIGO DE CABRAS E TORDOS

E os anos passaram. Do casebre em que fora abandonado ou


esquecido, o irmão sem nome, mercê de vozes que lhe chegavam aos
ouvidos, acompanhou a vida de Frei Elias. Escutava-a dos raros
visitantes que por lá apareciam e dos vizinhos que lhe iam pedir, nas
horas de sol causticante, uma vasilha de água do poço. Enquanto a
corda chiava na roldana e o balde mergulhava no fundo da cisterna,
para colher aquela água que parecia cristal líquido, o comadrio
des lava o rosário das novidades...

Apesar do prestígio de que Frei Elias dera mostra na perseguição


aos franciscanos da primeira hora, o geral da Ordem acabou por ser
afastado desse posto, sendo substituído por Frei Parente. Deu-se então
um fato inverossímil que a todos espantou, que a muitos comoveu. A
irmandade esperava que, ao cair, Frei Elias desse mostras de despeito,
mesmo de irreprimida cólera. Não foi isso, no entanto, o que
aconteceu. Ao contrário...

O frade de olhos turvos e oblíquos, que não encarava ninguém, agiu


como um digno lho do sera m de Assis. Recolheu-se a uma capela do
monte, em solo pedregoso coberto de sarça, e, durante três compridos
anos, deu provas de sinceridade e arrependimento. Tanto se
morti cou com preces e jejuns, tão simpático conseguiu tornar-se aos
olhos da comunidade, que esta, tendo à frente os mais ferrenhos
inimigos de outros tempos, foi buscá-lo no exílio para de novo colocá-
lo à frente de seus destinos.
Frei Elias sorriu da conduta angélica dos franciscanos. Pilhando-se
de novo na direção da Ordem — e dessa vez com a bondosa simpatia
de Honório III — escandalizou a cristandade. Gastou rios de ouro para
completar a construção da igreja e mosteiro de São Francisco de Assis.
Deu aos franciscanos um poder e um fausto que alarmaram a quantos
disso tiveram conhecimento. Cavalariças, liteiras, cadeirinhas,
cavalos de preço, baixelas de ouro e de prata, cozinheiros mandados
vir de outras terras, despensas atulhadas de viandas, adegas ricas de
preciosos vinhos. E recepções a príncipes. E festas deslumbrantes. E
homenagens a donas cuja beleza era uma das muitas glórias de Deus!

O irmão sem-nome sabia dessas coisas, mas de longe. Deixava-se


car no posto em que o haviam abandonado. Mas não era homem
para zelar de propriedades. Por isso, o pardieiro foi-se transformando
em ruína. Os pássaros ali zeram abrigo e, como os pássaros, os
animais, os mendigos, talvez os ladrões. Na primavera as paredes
cobertas de hera palpitavam de ninhos, de tordos, de borboletas, de
lagartixas. As cabras andavam com seus passinhos miúdos pelas salas
ermas. Quando, nos passeios pelo velho mosteiro, ele defrontava com
tais hóspedes, desviava para não os incomodar. E as pombas? Essas,
tomando conta das trapeiras, haviam-se multiplicado,
assenhoreando-se da casa. Os garotos de Assis não as molestavam
porque elas eram as pombas benditas do Poverello. Quando pairavam
em revoada sobre Porciúncula, empanavam a luminosidade da
manhã.

Pouco a pouco, o zelador foi afastado do edi ício pelos intrusos:


mendigos, animais e ervas daninhas. Também, para seu tugúrio,
pouco necessitava. Contentava-se com o arco da escada externa, todo
rendado de trepadeiras. Era ali que ele dormia sobre molhos de feno.
Alta noite acordava e, pela posição das estrelas, sabia o ponto em que
se encontrava do in nito e da eternidade. Os mendigos, que se
açoitavam no mosteiro, repartiam com ele muitas vezes o pão e as
azeitonas da sacola. As mulheres que, às vezes, se serviam do poço do
mosteiro, enchiam-lhe o cântaro de água. E ele, que vivia de olhos
mergulhados num manuscrito salvo do arquivo, abençoava-as quase
sem as ver, por cima do alfarrábio aberto, marcando com a unha o
ponto em que a leitura fora interrompida.

À tarde, porém, ele não podia furtar-se a dar dois dedos de


conversa. Era quando homens e mulheres voltavam do trabalho. Os
volumosos carros de feno passavam aos solavancos, atravancando o
caminho. Os campônios, sentados na boleia, enterrados na carga, ou
encarapitados em cima da verdura, atiravam-lhe facécias ingênuas.
Outros regressando a pé às suas cabanas, as faces afogueadas e os
olhos brilhantes, faziam a estrada como crianças em liberdade.
Tinham os pés vermelhos, dos lagares, cheiravam fortemente a mosto.

Ouvia-se de longe a algazarra, puxada a gaita de foles. Dançavam


nas encruzilhadas. Os rapazes beliscavam as raparigas. E, se a noite
chegava e o luar aparecia sobre a tristeza dos choupos, eles as
raptavam, indiferentes aos seus gritinhos de susto, arrastando-as para
o bosque ressoante de aves e de insetos.

Os velhos, que se atrasavam na estrada, carregando ao ombro


forcados e ancinhos, paravam diante do irmão sem-nome e treliam
com ele:

— Cosa fa il Diavolo?

Era um dichote da terra. Ceifadores, caçadores furtivos, soldados,


vadios, até malfeitores sabiam que o religioso se amo nava com o
destino do Demônio. Quando a brisa estava fresca, e ele se sentia
disposto a cavaquear com os passantes, a língua se lhe desemperrava.
— Como vocês sabem — argumentava — miríades de anjos foram
precipitados do céu nos abismos, por motivo da soberba e da malícia.
E Deus, na sua in nita sabedoria, deu-lhes prerrogativas, como a de se
locomoverem pela terra, de se disfarçarem em homens e até em
bichos, de se tornarem belos como efebos ou donzelas, e sábios como
lósofos. Será possível — perguntava então, com certa angústia —
que esses gênios da malícia e da soberba, após a sua queda, se tenham
contentado com desencaminhar mulheres bobas, assombrar bêbados
nas estalagens, ou confabular nas encruzilhadas, à meia-noite, com
velhas feiticeiras?

Pela meditação e manuseio dos velhos manuscritos chegara à


certeza de que aqueles Anjos Maus andavam por aí, ocupados em mais
altas empresas pecaminosas. De suas mãos, só pode sair a mentira
maligna, mas deve ser a maior e mais terrível mentira do universo!

Então, os patuscos, parados diante dele, explodiam em risadas. À


um sinal, a gaita de foles e a zamponha faziam-se ouvir e a farândula
seguia o caminho, na cega-rega das tarantelas.

E a vida se lhe foi passando, naquela bucólica contemplação, sem


nada de extraordinário a registrar nesse longo período. Contando
bem, talvez encontrasse dois ou três fatos dignos de lembrança. E
rebuscava na memória... Certa noite acordara com um clarão no pátio.
Que seria? Incêndio no mosteiro? Foi ver. Mas não era nada de monta.
Um mendigo, hospedado na biblioteca, sentindo frio, altas horas,
acendera para aquecer-se um dos grossos manuscritos encadernados
em couro de cabra, precisamente aquele escrito em latim e que trazia,
em letras de ouro: "Zurich 1030." Meditou e sorriu. Era aquela a
primeira vez que um livro bene ciava, de fato, a alguém... E retirou-se
na ponta dos pés, para não vexar o vagabundo.
Outra lembrança que lhe cara foi a aventura de um lhote de
andorinha. Nascido entre as telhas — goivas de cumeeira, quis voar
antes do tempo. Na ausência da andorinha-mãe, abriu as asas tenras,
úmidas ainda do ovo em que haviam sido geradas, e lançou-se no
espaço. O solitário meditava Lúcifer e seus anjos no momento em que
o passarinho — pofe — foi cair desamparado numa touça de ervas.
Espojou-se. Pôs-se a piar, a chiar, que nem possesso. Depois, entrou de
arrastar-se relo pátio qual folha de álamo, seca e solta, que tivesse
cado maluca. Foi um trabalhão para alcançar a avezinha. E ela
chiava, chiava... Nesse meio tempo, chegou do bosque o casal de
andorinhas. Inteirando-se logo da ausência do lhote, pôs-se a
esvoaçar e a dar pios lancinantes até que lhe descobriu o paradeiro. E
vendo-o nas mãos piedosas do serviçal, investiu contra o seu hábito,
atirando-lhe bicadas sobre bicadas. O pobre, que não tinha más
intenções com o bichinho, depô-lo no chão, sobre uma laje. Começou
aí o trabalho dos pais, a m de reconduzi-lo ao ninho. À tarde,
incansáveis, ainda lá estavam eles, na faina. Penalizado, o irmão
guardou-o no capuz e, quando lhe ajudaram magros braços e
enferrujadas pernas, meteu-se a grimpar pela hera, a rmando-se no
rebordo das cimalhas, aproveitando os buracos da parede, até que se
guindou ao beirai. Aí descansou do esforço. E, refeito, ensaiou
caminhar pelas telhas escurecidas que iam estalando debaixo das suas
sandálias. Alcançando a cumeeira, devolveu a ave ao ninho. Mas —
nunca o esperava — ali mesmo foi atacado pelas aves. Não teriam elas
compreendido a sua intenção? Todo o bem seria sempre mal
compreendido? Precisaria, então, ser revolucionário para praticar o
bem?

Na descida, a empresa como se agravou. Escorrega daqui, agarra-se


dali, chegou a nal ao chão. Mas trazia o hábito em tiras, as mãos em
chagas. E — o que o maravilhou — ao piar no pátio já viu o lhote de
andorinha, a chiar, a arrastar-se doidamente de um lado para outro.
Guardou-o novamente no capuz e, como escurecia, recolheu-se ao
tugúrio, onde passou a noite em claro, meditando na misteriosa
almazinha dos animais. No dia seguinte, à claridade da manhã,
introduziu a mão no capuz e de lá tirou o passarinho; estava frio,
esticado, com formiguinhas a roerem os pequeninos olhos baços.
Julgou então haver compreendido alguma coisa. Aquele passarinho
havia sido tomado por um dos mais modestos demônios — que os há
de todas as categorias — e cara possesso. Daí a sua inquietação, a
ânsia precoce de voar, antes mesmo de se lhe haverem emplumado as
asas. Era obra demoníaca, da pior. Lembrava-se de que nem mesmo a
mãe-andorinha quisera saber do lhote transviado. E um calafrio
correu-lhe pela espinha nodosa e pelas mãos retorcidas de homem
velho.

Os últimos anos haviam-lhe deixado apenas isso na memória. Ah!


Havia outro acontecimento de que ele, nas horas apagadas, se
recordava: uma visita à igreja e mosteiro da Ordem. Lá fora um dia,
contra a vontade, para contar a Frei Elias o ruinoso estado em que se
encontrava a velha casa de São Francisco.

Para lá arrastou-se em certa manhã muito clara, muito fresca.


Todas as vezes que a estrada subia por urna encosta, via embaixo, a
meio da planície ensolarada, duas riscas escuras de castanheiros e, no
m delas, a igreja a cavaleiro do convento. Num círculo mais largo, em
profundidades vazias ou encostas com árvores pendentes, identi cava
as cidades que circundam Assis Via, numa azulescência de distância,
Spello, Foligno, Treves, Spoletto, Montefalco, Bevagna, Bettona,
Canara, Bástia e Perusa...

Quando chegou a Assis e tomou a avenida de castanheiros, sentiu-


se remoçado. As copas estavam vivas de pássaros, de cigarras, de
borboletas. À sua passagem, os namorados fugiam por entre as
árvores, numa alegria louca. E ele seguia, sgando as folhas secas com
a ponta do bordão, batendo na relva das margens para descobrir o
ponto em que ziniam, asperamente, as cigarras. Sentia-se leve, bom,
tocado pelas graças da manhã.

Os edi ícios superpostos na campina orida foram crescendo à


medida que se aproximava. O sol incidia nas muralhas, nas ardósias,
nos vitrais que eram a novidade do século, nos arabescos de ferro
batido que contornavam a abside, dando-lhe uma tonalidade rósea
que, nas manchas de sombra, tendia para o roxo das violetas...

E a miragem fazia-se realidade. Tornava-se nítida, mostrava os


pormenores, a beleza das linhas e a riqueza dos mármores. Chegou,
a nal. Perdeu-se no jardim, alcançou a vasta entrada defendida por
grades escuras, onde a sombra era úmida e cheirava a reboco. Para
entrar foi uma di culdade, pois ninguém se lembrava do pobre
esfarrapado zelador da casa velha. Ali tudo era novo, limpo,
resplandecente. Admitido a nal no parlatório, passou para uma
formosa galeria, de arcos cruzados, que margeava o pátio central e ia
perder-se ao fundo em remotas claridades. Era pavimentada de lajes
quadrangulares, decorada com painéis onde se viam santos, uns
santos bonitos que, certamente, assim deviam ter descido do céu. A
meio da galeria, lobrigou, por dentro da sombra na dos arcos, um
ângulo de pátio onde a luz se havia coagulado em jardim. Salgueiros
de ouro velavam o sono das fontes azuis. Ouviam-se, remotamente, a
arfagem das brisas e o murmúrio das águas. Cal e sol, repuxos e ores,
silêncio e borboletas. E, sobre o pátio, erguia-se a prumo a muralha
rósea, convexa, da abside da igreja, terminada na renda escura das
obras de ferro batido.

Alcançou a outra parte do convento. Novos corredores, onde


cavaleiros arrastavam esporas nas lajes. Gentis-homens em grupos
discutiam com ardor a lâmina damascena de suas espadas.
Eclesiásticos, vestidos de trajes ricos, sabiamente recortados,
passavam numa roda fresca de noviços. Defrontando a cozinha, sentiu
o cheiro forte dos temperos. Olhou para dentro. Homens vermelhos,
rotundos, de pano na cabeça, davam ordens a lépidos serventes. O
fogão era monumental; parecia o altar daquele templo. E sobre ele,
acariciado pelo re exo ruivo do braseiro, um cabrito rolava
lentamente atravessado pelo espeto. Dois bichos de cozinha, sempre
com panos alvos na cabeça, revezavam-se atirando-lhe sobre o
courinho dourado colheradas de molho ou de salmoura.

Desembocou no refeitório. Alinhavam-se pelo salão numerosas


mesas cobertas com toalhas de linho cru. Os pratos de estanho
correspondiam aos mochos de cedro. Diante de cada prato, havia um
pichei com asa de prata. No centro da mesa, apertavam-se alcofas de
pão alvo, canjirões de vinho, potes de molho, pratos de manteiga e
frutas cobertas pela neve do último inverno, guardada no fundo das
cisternas.

Sorriu. Sorriu com saudade do irmão Francisco, quando os frades


comiam de pé, catando azeitonas no fundo da sacola. E tinham pressa
de partir para as casas malsinadas, onde a mão do povo havia pintado
um sigma, como sinal de desgraça. Lá, sem temor do mal, os
franciscanos esgaravatavam as pústulas com as unhas, a m de
sondar-lhes a profundidade... Mas essas coisas estavam tão
distantes... No tempo em que as portas permaneciam escancaradas,
em que os frades repetiam coisas eternas que brilhavam como novas...

Um frade ventrudo montava guarda à porta. O hábito parecia


sungado na frente, mostrando canelas gordas, riscadas pelas correias,
e pés polpudos que transbordavam das sandálias. Tinha as mãos
cruzadas na barriga empinada e olhava-o beati camente. Acercou-se-
lhe e contou a que ia. O franciscano não disse palavra; arrastou-se
para uma sala e lá cou. Demorou muito. Curioso, o visitante
aproximou-se e espiou para dentro. Era uma loja de mercadores. O
emissário estava de pé diante de Frei Elias que conversava com gente
de prol. Deviam ser ricaços de Assis guindados a provedores da
Ordem. Falavam em propriedades, em dinheiro, em coisas do reino da
terra. E o porteiro esperava, esperava... Em certo passo, o superior
pareceu notar-lhe a presença e perguntou o que desejava. Este,
timidamente, explicou-lhe que o irmão zelador do velho convento de
Porciúncula ali estava para falar-lhe. Frei Elias fez um esforço de
memória para identi cá-lo...

— É um pobre de espírito?

O frade porteiro, que já tinha notado o visitante ao pé da porta,


mostrou-o. Então o superior, vendo-o ali, respondeu de mau modo,
sem cuidar de ser ouvido por ele:

— Mande-o embora. Estou ocupado. Não tenho tempo para isso.

O coitado não esperou mais. Atravessou os corredores, ganhou a


porta e afastou-se a passos rápidos pela avenida de castanheiros. Ia
triste, pensando em coisas tristes. Do alto de uma daquelas árvores,
uma voz hílare gritou-lhe:

— Cosa fa il Diavolo?

Mas ele não ouviu, tão pensativo, tão absorto seguia o seu
caminho...
V
"COSA FA IL DIAVOLO?"

Essa pergunta que, durante muitos anos andou de boca em boca entre
os desocupados de Assis, subiu aos palácios, foi repetida diante dos
príncipes e, segundo parece, considerada pelos bispos no concilio
ecumênico de Latrão, em 1215. Durante meio-século, os papas
ouviram-na do seu trono, uns com sorriso de mofa, outros apalpando
o punhal debaixo da púrpura.

Inocêncio III, que fundou a Universidade de Paris, e, ao mesmo


tempo, instituiu o Santo O ício, ouviu-a de um camareiro assustado.
Mas ele, um dos nove papas da família Dei Conti Di Segni, passou o
seu governo preocupado em corrigir escândalos da corte, onde os
pecados mortais andavam à solta; limpou-a o mais que pôde de
cardeais simonitas, bispos mulherengos e cônegos frascários.
Empregou os piedosos lazeres na campanha contra a heresia e nas
cruzadas contra os in éis. Não lhe prestou ouvidos. Morreu no ano de
1216, contando nos dedos os mártires históricos do sul da França,
maiores em pureza e em fé que muitos mártires constantes de "Fios
Santorum."

Foi substituído por Honório III e, durante os onze anos que, para
maior glória de Deus, esse pio varão ocupou o palácio de Latrão,
ouvia-a repetidamente dos peregrinos procedentes do centro da
Península. Tais palavras não o impressionaram muito, apenas o
su ciente para que ele as repetisse, quase sem querer, nas horas de
silêncio e de solidão em que cava só, diante de si mesmo. Uma noite
em que o palácio de Latrão dormia e ele, insone, se arrastava pelos
salões iluminados mas desertos, estacou diante da lâmina pasmada
que lhe servia de espelho, e perguntou à própria sombra:

— Cosa fa ü Diavolo?

Sorriu. Candura de peregrinos... E a sua imagem sorriu tristemente


no espelho. Só tinha um dente, comprido e amarelo. O estômago
estragava-lhe a existência; comia polenta e digeria brasas. A nal, não
estava para amo nações. Cerrou os olhos docemente para a vida, em
1227, depois de ter coagido o rei de França a organizar uma cruzada de
morte e de pilhagem contra os albigenses, os mais pací cos de seus
vassalos.

Seguiu-se-lhe Gregório IX, outro da oligarquia dos Dei Conti Di


Segni. Era uma or em gura de homem. Coagiu os príncipes, sob
ameaça de excomunhão, a uma nova cruzada. Procurou apaziguar
guelfos e gibelinos, de modo a colocá-los, aristocratas e democratas, a
serviço da sua causa. Mas o imperador Frederico, que colecionava
versos e excomunhões, aprisionou-o em Roma. Por duas vezes, teve de
afastar-se do Vaticano, alta noite, entre bispos armados. Foi numa
dessas fugas que ele ouviu pela primeira vez a famosa frase.

Sua Santidade ia a cavalo. Uma escolta de vinte nobres


acompanhava-o de perto. Era noite e a estrada estava deserta. As
poças d'água pareciam de vidro. As grandes árvores vergadas
enchiam-se de ruídos ao passar da cavalgada. No céu, brilhavam todas
as estrelas. Em certo ponto, uma estalagem. Os viajantes zeram alto.
O guia bateu com o cabo do chicote na porta da locanda. Bateu de
novo. Pôs-se a gritar:

— Abram em nome do Papa!


Um velho de camisola e carapuça espiou pela locarna; trazia na mão
a palmatória com a vela espetada. Surpreendeu-se ao ver tanta gente,
mas foi abrir, cheio de susto. Entregou-lhe a casa, serviu-lhe de tudo o
que tinha. Horas depois, o ecônomo atirou-lhe uma escarcela
recheada de moedas e os viajantes retomaram o caminho. Faziam a
jornada em silêncio, sem trocar palavra. Já ao clarear, o Cardeal Susini
acercou-se do Papa que ia meditativo, e perguntou-lhe à queima-
roupa:

— Que faz o diabo?

— Frederico?

— Não, o gênio da soberba e da malícia...

Gregório IX riu. E para entretê-lo, Susini, cavalgando a seu lado,


foi-lhe contando a história de um velho franciscano, pobre de espírito,
esquecido em Porciúncula, que gastava a vida nessa interrogação. O
Papa ia fazer considerações, quando se ouviu um falatório que se
aproximava em direção contrária. Foi um minuto de pavor. Mas,
encontrando-se, os cavaleiros reconheceram-se; era gente amiga que
vinha esperar o Papa a três léguas do castelo em que ele deveria
esconder-se. Não mais teve oportunidade de pensar naquela história.
Morreu em 1241, desiludido da cristandade que não lhe atendera ao
apelo, que não correra em seu auxílio, a m de defendê-lo daquele
imperador meio santo, meio herético. Foi um papa que não teve tempo
de pensar em Deus, tampouco no Demônio.

Celestino IV, sucedendo-o graças a sombrias maquinações políticas,


foi eleito em outubro de 1241; devia morrer tragicamente no dia 17 de
novembro seguinte. Parecia adivinhar o m que o esperava. Era
descon ado e turrão. Sentia-se ameaçado de todos, em toda parte. No
mesmo dia em que lhe puseram na cabeça aquilina a pesada coroa de
São Pedro, surpreendeu a malsinada frase na boca do Cardeal Fanelli.
Chegou-se a ele e perguntou-lhe o que signi cava aquilo.

O Cardeal, constrangido, contou-lhe o que sabia. Observou mesmo


o pouco interesse que os seus antecessores haviam demonstrado por
semelhantes palavras.

... Mas o papa não foi do mesmo aviso. Descria de tudo, de homens,
de vinhos, de palavras. Quando lhe levavam uma fatia de queijo,
Go redo Castiglione, que esse era o seu nome, obrigava o camareiro a
comer um bocado, o bocado que ele lhe indicasse com a ponta da unha.
Para beber vinho, então, obedecia a um ritual. Traziam-lhe o sumo dos
vinhedos do Vesúvio em copo de prata que, como era sabido,
denunciava a presença dos venenos. Ele tirava um frasco do bolso e
pingava algumas gotas no vaso. Feito o exame o camareiro tomava o
primeiro gole e lhe entregava a taça. Só então molhava a ponta da
língua, estudando em si, aos poucos, os efeitos da bebida.

Via tudo com olhos de javali acossado. Contava com a morte que o
esperava, dias depois. Não dormia. Passava parte da noite, os olhos
cerrados, a espiar pelo crivo das pestanas, a conduta dos guardas que
velavam ao pé do leito. Parecia estar ao mesmo tempo em todas as
dependências do palácio. Nas salas e nos corredores, os familiares
tinham de tomar tento no que diziam, pois ele surgia
inesperadamente nas rodas, pisando de leve, com sapatos de lã.
Quando alguém se lhe aproximava era recebido primeiro como
inimigo; só depois é que conseguia passar apenas por suspeito... Ao pé
dele, não havia palavra perdida: queria saber a explicação de tudo, por
mais ingênuo que parecesse. No momento em que lhe repetiram a
frase boba, corrente entre campônios e malandros da Úmbria, onde os
primeiros franciscanos tinham sido de uma pureza tal que roçava pela
heresia, ele franziu o sobrecenho e entrou de monologar: "Que faz o
Diabo? Talvez conspire contra mim. Quero saber por miúdo." Chamou
o Cardeal Fanelli, da sua gente, e determinou que um emissário, a toda
pressa, estropiando os cavalos que fossem necessários, voasse a
buscar onde estivesse, o malsinado franciscano. Queria conhecer a
signi cação daquela frase...
VI
OMA

Dias depois, numa tarde inesquecível, o irmão sem nome distraía-se


esvaziando a sacola sobre as lajes do pátio, cobertas de pombas.
Gostava daquelas pombas brancas porque a sua genealogia remontava
ao tempo do grande irmão Francisco. As que ali estavam eram da
família daquelas que, nas tardes serenas, recebiam o cibo das mãos
compassivas do Santo. E esvoaçavam-lhe ao redor da gura angélica.
E pousavam-lhe na cabeça luminosa. E entendiam-lhe as palavras
mansas, quando ele as chamava de suas irmãzinhas...

Estava o frade inteiramente entregue à doce ocupação, quando um


clérigo refreou o cavalo suado, e estacou diante da larga porta que
dava para o pátio. Olhou curiosamente para aquela banda. Então o
cavaleiro, de um salto, apeou do animal e espiou para, dentro. Pareceu
hesitar. Depois, com uns modos discretos, quase misteriosos,
interrogou-o:

— É o irmão zelador?

O religioso esqueceu a mão na sacola e cou a rir para o visitante.


As pombas, ariscas, voaram para o telhado à aproximação do intruso.
O pobrezinho nunca poderia imaginar fosse para ele a visita daquele
dalgo de capa de veludo e sapatos bem cortados, com velas de ouro.
A capa estava erguida de banda, naturalmente pela ponta da espada.
Indeciso foi ao seu encontro, e, etindo os joelhos, beijou-lhe a
ímbria do manto.
— É contigo mesmo, meu irmão. Deus se lembra de quem se
esquece. Vim buscar-te, um tanto à pressa, para um passeio a Roma.
Agrada-te?

O velho não mostrou sentimento algum.

— Quando?

— Já. Levo-te na garupa até a estalagem; ali, alugaremos outra


montaria. Para saciar a tua curiosidade, devo dizer-te que se não vais
sob prisão, também não vais receber o prêmio das tuas virtudes.
Apenas isto: o Cardeal Fanelli, que é o grande amigo de Sua Santidade,
ouviu falar da tua estranha vida e manifestou desejo de conhecer-te.
Nada mais.

Ora, a viagem era longa mas não di ícil; ainda que fosse. Por outro
lado, não sentiu vaidade, nem temor. Tudo o que Deus quisesse. E
Deus esvazia os bons. Bateu as mãos uma na outra, para tirar a terra, e
acompanhou o viajante. Ao partir, o rosto ensombrou-se-lhe... Quem
trataria das pombas durante a sua ausência? O emissário segurou no
estribo para que montasse; depois, ele também montou, com
agilidade, conservando-o na garupa.

Partiram à des lada. A estrada era velha, larga, apenas com um


sulco ao meio, cavado pelos animais. Contornava colinas riscadas de
vinhedos. Atravessava córregos de água negra; do lado de cima, havia
charcos e caniços, do lado de baixo, represas e rodas imóveis de
moinhos. Depois eram renques de salgueiros ladeando o caminho,
manchas escuras de olivais, carvalhos centenários esquecidos nas
encruzilhadas. O Outono encurtava a tarde, envelhecia a paisagem. Os
pássaros calavam-se nos ramos. Diante dos tapumes que vedavam as
quintas, ou nos portões das propriedades, os gansos fugiam em bando,
gritando como possessos. Não raro investiam às bicadas contra as
pernas do animal. Cães latiam por detrás das sebes. Campônios em
bando, esquecidos na estrada, à frescura do crepúsculo, surpreendidos
pelos viajantes, atiravam-se nas rampas a m de lhes deixar o
caminho livre. Os velhos, porém, que tinham tardos os movimentos e
as juntas endurecidas, não arredavam da beira do caminho, mas
tiravam até o chão o grande chapéu de couro, dobrando a espinha o
mais que podiam.

Ao anoitecer, chegaram à cidade. Pararam diante de certa


estalagem que ostentava, como insígnia, uma lebre saltando na corda.
Os serviçais tomaram conta do cavalo, com ordem de ensilharem dois
para a madrugada do dia seguinte. E o cavaleiro, seguido pelo irmão
leigo, entrou pelo salão da hospedaria. Erguia o braço e gritava:

— Da parte de Sua Santidade!

As vozes calaram-se, os homens pararam onde estavam e as


mulheres vieram beijar-lhes o pó das sandálias. O clérigo de Roma
mostrou-se habituado àquilo, mas o franciscano sentiu-se
constrangido, morti cado, no meio de tais mostras de respeito.
Preferia abraçá-los, como aquele Jesus da velha casa de Porciúncula,
que estava sempre de braços abertos para receber os hóspedes, mesmo
que fossem caçadores furtivos ou ladrões.

Tudo na estalagem se pôs em movimento para bem servi-los. O


emissário sentou-se à cabeceira da mesa, atirou para trás o chapéu de
plumas e pediu uma perna de carneiro, um pichei de vinho da
contrada e azeitonas colhidas naqueles olivais que admirara no
caminho. O companheiro, desculpando-se com a idade, a canseira e as
emoções do dia, contentou-se com uma maçã assada no borralho.
Findo o jantar levaram-nos ao andar superior e deram-lhes camas que
pareciam talamos. Havia escada para subir ao leito. Deitado, o
hóspede sumia debaixo das almofadas de penas, das cobertas de lã.

O fradinho sentiu-se indigno de tais confortos. Não queria fruir


delícias que Francisco teria recusado. Sim, Francisco teria recusado.
Em caso como esse — estava certo — o Poverello teria pedido para si
um resto de pão negro, um molho de feno e, no dia seguinte,
distribuiria o dinheiro poupado entre mendigos e leprosos da
vizinhança.

Ao dealbar da manhã, o dono da estalagem foi ao quarto do


religioso levar-lhe a malga de caldo, com bolhas douradas de gordura
e compridas folhas de salsão. Mas cou pasmo. A cama estava intacta
e o fradinho de joelhos, rezava diante da janela aberta, por onde se via,
como num quadro, o sol nascendo sobre as árvores meio despidas. É
que se estava no m de outubro. O outono amarelecia tudo,
atapetando de folhas terreiros e caminhos.

Dali a pouco partiram. O estalajadeiro, pessoas da casa, hóspedes e


gente da redondeza foram despedir-se de tão ilustres personagens.
Uns levaram-lhes as últimas ores das hortas, outros cachos de uva
açucarada e alcofas de gos que tinham rachado de maduros. Pouco
adiante, os viajantes encontraram o Tibre, e foi acompanhando-o que
jornadearam. Mudavam os cavalos duas vezes por dia. Uma tarde,
depararam-se-lhes bandos de homens, portas de barreiras, soldados
com belas armas, pontes grandiosas...

O religioso maravilhou-se e perguntou:

— Que aldeia é esta?

E o clérigo, com um sorriso:


— Esta aldeia chama-se Roma.

Depois de trocarem de animais, já para dentro da Porta San


Giovanni, na estalagem situada ao pé da pirâmide, zeram o resto do
caminho num trote largo que obrigou o irmão leigo a segurar na crina
do animal. Diante deles, chicote em punho, ia um serviçal que se lhes
havia juntado à entrada da cidade e cuja missão era abrir caminho. À
torta e à direita fustigava os peões que não arredavam da estrada.
Estes, quando atingidos, rolavam na poeira, erguendo mãos crispadas
de ódio, retorcendo a boca em espantosas blas êmias. De uma delas o
fradinho se lembrou a vida inteira... Um veneziano, alto e magro
como um caniço, ia absorvido nos seus pensamentos. De súbito,
vendo-se colhido por três cavalos e ameaçado pela correia do serviçal,
desandou a correr, até achatar o dedão contra uma pedra. Louco pela
dor da topada, segurou o pé dolorido e se pôs a dar pulos...

— Scandalostia!

E os cavaleiros deixaram-no para trás, a pular e a blasfemar, numa


nuvem de pó.
VII
MESSER KAALAB

Entardecia, quando chegaram ao Campus Vaticanus. O aspecto


daqueles sagrados lugares não correspondia, nem de longe, à ideia que
o religioso de Assis havia alimentado durante tantos anos. Nada mais
que um imenso terreno cercado de muralhas, quase vazio, onde se
erguiam, ao redor da igreja e da tumba de São Pedro, meia dúzia de
grandes edi ícios e algumas capelas. Os papas eram coroados na igreja
de São Pedro e residiam no Palácio de Latrão. Algumas dessas
edi cações apresentavam aspecto ruinoso, umas dani cadas pelas
iras da plebe, outras ainda, pelo terremoto de 1227.

Quando transpuseram a grande porta, os guardas corsos correram


para interrogá-los, mas, reconhecendo talvez o emissário, que devia
ser gura de relevo na corte ponti ícia, abriram-lhes passagens. Para
dentro das muralhas, havia muita gente e, a julgar pela variedade das
véstias, eram peregrinos procedentes de remotos países. Encontraram
liteiras. E homens de armas. E guardas. E lacaios. E a estranha fauna
de mendigos, histriões e malfeitores que tanto colorido davam aos
ajuntamentos da Idade Média. A alguns passos da porta, os dois
viajantes foram cercados por serviçais que receberam os cavalos,
conduzindo-os à estrebaria. Fizeram a pé o resto do caminho.

Os jardins internos apareciam dani cados. Junto ao palácio, os dois


religiosos passaram por montes de areia, de pedras, caixas de
argamassa, escada, pilhas de tábuas. E quando chegaram à sombra
oblíqua da Igreja de São Pedro, os sinos entraram de tocar lentamente,
lentamente... Escurecia. Os guardas vestidos de manto escarlate, com
lanças ou adagas cujas lâminas de qualidade reverberavam à luz dos
primeiros fachos, eram rendidos nos seus postos. As liteiras que
passavam ao lado dos viajantes conduziam príncipes, mulheres
lindas, peregrinos de países cristãos.

A nal, alcançaram o palácio onde o irmão-sem-nome se


hospedaria até que o Cardeal Fanelli se dispusesse a ouvi-lo. Era um
edi ício velho e majestoso; aos olhos dos religiosos, enchia o céu e a
terra... Chegando à escadaria, o emissário con ou-o a um clérigo que
dele deveria ocupar-se. E voltou, sem despedir-se. Caminhando pelos
corredores, subindo pelas escadas úmidas, o hóspede viu que o palácio
resplandecia de lâmpadas, de lanternas, de velas coloridas. Os lustres
que pendiam do teto, nas salas ermas, coruscavam de pedrarias,
muitas das quais tinham sido arrebatadas a ferro e a fogo das
mesquitas sarracenas. O caminho por que seguia era fofo de tapetes.
Ele e o guia encaminharam-se para uma câmara caiada de fresco,
onde havia um vasto leito, com genu exório de cedro, diante de um
Cristo em obra de talha. A seus pés, ardia uma lamparina minúscula e
pálida; se a melancolia desse ores, as suas ores seriam assim.

Na cama, encontrou roupas novas à sua espera, lãs e linhos que,


nem mesmo em sonhos, teria acreditado poder vestir. Procurou o
emissário, mas este já havia desaparecido. Perguntou por ele e
ninguém lhe soube informar... Sentiu então uma angústia... Dali a
pouco, dois âmulos vestidos como príncipes arrastaram para essa
câmara uma mesa coberta. Do linho alvo que a cobria irradiava calor,
espalhava-se um cheiro gostoso de cominho. Quando os serviçais se
afastaram, ele ergueu a ponta da toalha: era o jantar. Polenta com
borrachos, grossas fatias de queijo, torta de maçãs, neve do ano
anterior. Havia também padas de pão branco, vinho encorpado, uma
febra de vaca, manteiga e uvas. O prato e as taças eram feitos de ouro
que o cinzel do lavrante recobria com uma renda na de lavores. A
faca era de ferro azulado e ostentava no cabo, uma de cada lado, duas
pedras preciosas.

O irmão-sem-nome, depois de longa hesitação, tirou com as pontas


dos dedos um naco de polenta e comeu-o sem a pitança, desprezando
os pombinhos refogados. Não comia de tais bichos. Talvez nem
mesmo dos outros. E, lembrando-se de suas alvas amiguinhas da casa
velha de São Francisco, sentiu os olhos úmidos. Pobrezinhas... Quem
lhes daria, à tarde, migalhas de pão preto da sacola dos mendigos?

Não tendo mais que fazer, abriu a porta e pôs-se a caminhar pelo
corredor. De um lado e de outro, alinhavam-se portas fechadas.
Naturalmente em cada uma dessas câmaras estava alguém, vindo de
longe, à espera de ser ouvido. De repente, começou a escutar um canto
em falsete, numa língua estranha. Que seria aquilo? Adiantou-se mais
e no ângulo do corredor, viu um quadro que alarmou a sua timidez.
Sala enorme, rodeada de prateleiras escuras onde se alinhavam as
lombadas de mil in-folios, com dísticos de ouro. Duas ou três mesas
com candelabros ainda apresentavam os manuscritos abertos que os
consulentes deviam ter abandonado como estavam, à hora da saída,
para recomeçarem o trabalho no dia seguinte. O estranho estava no
zelador desse departamento. Era um anão cor de azeitona, vestido à
moda dos orientais, que se balançava num trapézio e cantava canções
do m do mundo. Sim, porque ele, com certeza, viera de muito longe.
Ainda estava a admirar aquela cena quando o homúnculo deu pela sua
presença, e, sem desconcerto, dirigiu-lhe a palavra.

— Entre, meu irmão.

Tinha voz de pega. O visitante sorriu, contrafeito.


Como se não bastasse o convite, saltou do trapézio, correu à porta e
tomando o religioso pela mão, ê-lo entrar. Depois, em profunda
mesura, abrindo os bracinhos na intenção de abarcar toda a sala,
exclamou:

— Eu moro aqui; Celestino IV mora nos fundos.

— Que é isto aqui?...

O anão fez das mãos porta-voz:

— O arquivo secreto.

O fradinho não entendeu muito bem.

— E vós, quem sois?

Nova mesura do homúnculo:

— Messer Kaalab!

Naturalmente, o recém-chegado cou na mesma.

Então, prevendo essa circunstância, ele encarapitou-se numa das


mesas e repetiu a sua melopeia. Nascera em Jerusalém. O pai era
cameleiro, a mãe vendedora de água. No clamor de uma cruzada,
ainda criança, fora encontrado pelos saqueadores, a dormir num
degrau do Santo Sepulcro. Os pais, vão lá saber o que lhes ocorreu no
meio do pavor, enjeitaram-no ali. Media quatro palmos de altura e
andava... Muitos cristãos se assustaram com a sua presença. Poderia
ser macaco ou mesmo duende. Um cavaleiro, porém, enamorou-se-lhe
da feiura e. no regresso, conduziu-o na garupa. Pelo caminho,
explorou-o, exibindo-o como prova de presença nos Santos Lugares.
Chegando a Roma, ofereceu-o ao grande Papa Inocêncio III, que muita
graça achou nas suas micagens. Con ou-o a um pelotiqueiro para que
lhe ensinasse atitudes excêntricas; depois, a um latinista, para que lhe
acrescentasse erudição... Pouco antes de morrer, já aborrecido das
suas cabriolas, degradou-o no arquivo secreto, con ado a um
dominicano.

Os papas, sucedendo-se, esqueceram-no naquele posto pouco


frequentado, onde só apareciam dois ou três beneditinos providos de
licenças especiais para lerem tudo o que aos demais era proibido. Com
a morte do frade negro, messer Kaalab encarapitou-se na sua
poltrona. E foi cando. Ninguém lhe pediu contas. Acabou por ser o
rei naquele sombrio reino, uma espécie de jaula onde os papas
mantêm presos e acorrentados os mais perigosos pensamentos do
homem. Portanto, afora o exagero que messer Kaalab havia aprendido
com o funâmbulo, tinha razão quando dissera ao visitante que tudo
aquilo era seu...

O irmão-sem-nome cou perplexo. E o anão, que tinha a volúpia da


palavra, ao acabar de falar de si, pôs-se a falar do arquivo.

— Aqui estão as obras que, conhecidas pelos leigos,


transformariam o mundo. Está vendo, lá em cima aquela série de
volumes? São os Livros de Esdras. Conhece-lhes a história? O frade
não a conhecia. Pois bem, quando Jeová, no alto do Sinai, deu a lei a
Moisés, não ditou apenas um código, mas dois. O primeiro é o
conhecido, dirige a vida dos judeus; o segundo, porém, et haece
abscondes. Nunca foi revelado. Removido para Jerusalém, ali foi posto
numa arca, sob custódia de dois anjos que, por certo, fulminariam o
curioso que se lhes aproximasse. Nesses in-folios, Moisés guardou o
segredo do seu poder in nito, que um dia transformou o Nilo num rio
de sangue, fez chover maná para alimentar o seu povo, ou ainda jorrar
uma fonte do rochedo, a m de dessedentar os judeus no deserto.

— E esses manuscritos alinhados em outras prateleiras?

— Ah! Isso é a miuçalha. Cá estão: "O Asno de Ouro", de Apuleio;


"Os segredos admiráveis", do Grande Alberto; o "Sólido Tesouro", do
Pequeno Alberto; "Enchiridium Leonis Papae", "Clavículas", de
Salomão; o "Grimório", com a assinatura de Belzebu...

— Com a assinatura dele mesmo?

— Claro que sim; ninguém ainda provou o contrário. Mas


continuemos. Estes aqui de baixo são: "Trinum magicum editum a Caesare
Longino Philosopho"; "Da Adivinhação", de Cícero; "Oráculos", de
Antônio Vandale; "Tarsmern Chyromantia, Physiognomia, Astrologia
Naturalis et Judiciaria et Ars Divinatrix"; "História Natural", de Plínio;
"Painéis", de Filostrato; "Vida de Apolônio de Tyana"; "Das superstições
e dos Oráculos que cessaram", de Plutarco; e outros, e outros.

— E este? — perguntou o visitante, mostrando um volume que lhe


estava ao alcance das mãos.

— Esse é o "Perdaimonon", de Orígenes. Não de Orígenes que o seu


confessor cita, mas do outro.

— E aquele ali, que alguém esteve lendo e deixou aberto sobre a


mesa?

— É o livro de Enoque, um dos libris recipiendis do catálogo de


Gelásio. O original judaico-aramaico perdeu-se. Este é o texto grego
que foi desencaminhado por Jorge Syncelo, no século IX. Ninguém
sabe que ele está aqui. Consta de 105 capítulos divididos em cinco
partes!...

— Foi ao in-folio e, com ambas as mãos, tomou um maço de


pergaminhos.

— Que é isto?

— Esta primeira parte contém a narração da queda dos Anjos e a


origem da raça dos gigantes, a entrada de Enoque no céu e o que ali se
vê. A segunda... Mas, para falar com franqueza, simpatizei consigo.
Leve isto para ler antes de dormir.

Dizendo tais palavras, pôs-se a assoprar furiosamente o


pergaminho, para tirar a grossa camada de poeira que o cobria. Uma
folha desprendeu-se e rolou pelo chão. O arquivista saiu correndo
atrás dela até que a alcançou. Depois de repô-la no lugar, entregou o
calhamaço ao franciscano que, aturdido, tratou de afastara-se do
arquivo. Mas, já na porta, messer Kaalab segurou-o pelo hábito.

— Venha cá, não tenha pressa!

— Para quê? — perguntou, assustado, o visitante.

— Quero contar-lhe uma coisa...

Era di ícil ouvir um segredo cochichado por messer Kaalab. Foi


preciso ao visitante tomá-lo por debaixo dos bracinhos e colocá-lo
sobre a mesa mais próxima. Ali, o jerusalemitano procurou-lhe o
ouvido e segredou-lhe:

— A Igreja era imortal, mas o Demônio tornou-a mortal.


O religioso afastou-o de si, horrorizado. Mas, ao transpor o limiar, a
curiosidade tentou-o e ele ainda se voltou para perguntar:

— E que fez o Demônio para tanto?

O anão botou o dedo nos lábios, suplicando reserva:

— Enriqueceu-a!

O desconhecido olhou-o mais uma vez e, como quem foge do


próprio Demônio, ganhou o corredor, batendo a porta atrás de si. A
caminho do alojamento, com o manuscrito debaixo do braço, ainda
ouviu o homúnculo que o chamava; tinha a voz arrastada e a língua
rascante, como a de uma pega.
VIII
DESCOBE TAS DO HÓSPEDE

Recolhendo-se ao quarto, o irmão-sem-nome entregou-se à leitura.


Ao cabo de uma hora, sentiu-se assustado pelas palavras do
manuscrito. Então, a m de refrescar o entendimento, abriu a janela
para a noite e cou-se a contemplar as lanternas dos guardas e os
fachos dos que se arriscavam pelo emaranhado das vielas. Aqui e ali,
na massa escura do casario, apareciam outras janelas levemente
alumiadas. Pregões indistintos chegavam-lhe aos ouvidos. E, ao
fundo, à luz de uma lua pálida, lua de novembro, estendia-se a placa
metálica do Tibre, onde se adivinhavam brancuras de velas e luzes
oscilantes, penduradas nas gáveas. Quando o sino grande deu o toque
de silêncio, entraram na câmara os aios para o ajudarem a deitar-se. É
que ele era velho e o leito alto. Mandou-os, porém, em paz e,
ajoelhando-se no chão lustroso, pôs-se a rezar.

Terminada a prece, deu uma volta pela cama e, não achando jeito de
deitar-se sobre tamanha riqueza, agachou-se a um canto e dormiu,
como se fora o zelador e não o usufrutuário de tudo aquilo. E teve
saudade do monte de feno, das cabras que o espiavam com olhos
meigos, das estrelas que, alta noite, lhe davam noção do espaço e da
eternidade. Quando, porém, ia cerrar os olhos, ouviu vozes ásperas
debaixo da janela cerrada. Levantou-se e foi ver do que se tratava.
Eram dois homens altos, vestidos de preto, que se travavam de razões.
Escutou um estalido seco, o tinir de ferros, o grito de um ferido,
correrias, lanternas de guardas balançando-se na noite. Depois, o
silêncio, uma canção avinhada, perdida na distância. Alguém bateu à
porta da câmara. Atendeu. Era o emissário, que falou:

— Se amanhã alguém lhe falar em luta debaixo da sua janela, diga


que não viu nem ouviu.

Disse e reintegrou-se na sombra.

Meia hora depois, novas pancadas à porta. Era messer Kaalab. Pôs o
dedinho engruvinhado sobre os lábios, recomendando-lhe discrição:

— Se amanhã, por acaso, lhe vierem dizer que o Cardeal Fanelli


cutucou o couro do Cardeal Susini, por motivo de Mona Grazioza, não
acredite nem passe adiante; é intriga dos gibelinos vendidos ao
imperador germano...

O irmão-sem-nome não respondeu. Fechou depressa a porta na


cara do anão. Mas, ao enrodilhar-se no canto, cheio de tantas
impressões, entre as quais esperneavam as revelações de messer
Kaalab, os conceitos alarmantes do último in-folio e as preocupações
terrenas daquele ambiente, surpreendeu-se a fazer consigo mesmo a
velha pergunta:

— Cosa fa il Diavolo?

Acordou muito cedo e foi ouvir a missa de São Pedro. A manhã


estava fria, o céu azul, os jardins cobertos pelos minúsculos cristais da
geada, as fontes vidradas, as vielas atapetadas pelas últimas folhas dos
alamos. Mas, era lindo... Deus andava por ali, intensamente. Foi com
profunda emoção que se ajoelhou na terra, diante da porta do templo,
a m de dizer o primeiro Pater do dia. Guardas que iam e vinham, de
mãos para as costas, mostraram-se pasmados de tanta religiosidade,
que, por certo, procedia das bandas do Vesúvio ou do Etna. Depois de
orar, entrou na igreja das igrejas.

A nave estava perdida na penumbra. Ondas de cânticos e músicas


perpassavam sobre os éis. Aquela harmonia certamente não vinha
do coro, mas do próprio céu... No entanto, a missa das seis horas era a
mais singela de todas. Destinava-se aos mil serviçais: guardas,
roupeiros, padeiros, jardineiros, en m, a multidão que chamava o
Vaticano de sacra bottega. O ciava o Cardeal Susini, um milanês de
cabecinha redonda, glabra, onde avultavam olhos esbugalhados e
inexpressivos. Observou que apresentava o pulso esquerdo envolto em
panos. Fora ele o ferido da meia-noite, debaixo de sua janela...

O Cardeal Susini, candidato ao trono ponti ício, mais cotado


durante toda a campanha, vira-se à última hora suplantado pelo
Cardeal Castiglioni, um frade cistercense que recebera o nome de
Celestino IV. Este, ao colocar na cabeça a coroa de São Pedro, tomou
particular interesse pela vida do concorrente: lembrou logo a
conveniência de um ato religioso destinado aos serviçais do Vaticano,
a m de não paralisar a vida da cidade de São Pedro e subentendia-se,
afastá-los da missa do meio-dia. As honras de o ciar no ato matinal
couberam, por expressa indicação do novo papa, ao Cardeal Susini...
Conta-se que ele cou escarlate quando lhe comunicaram a
resolução... Levantou os braços, apinhou os dedos, invectivou o céu:

— E Iddio che non li manda un accidente!

Mas, submeteu-se. Todas as manhãs, quando o camareiro ia


acordá-lo para o ciar na missa dos humildes, assistia a uma
tempestade de pragas. Ao sair, porém, da sua câmara, aparecia austero
e sereno, como convinha a um quase papa. No entanto, ninguém
ousou divulgar o que ouvia de sua boca, em latim, durante o santo
sacri ício. Possivelmente, mantinha-se el aos sagrados textos.
Acreditava-se, porém, que ele substituía, a palavra Celestino, o nome
do papa, por Infernalis, que eram os sentimentos desencadeados em
sua alma. Ninguém poderia surpreender tais extravasa-mentos
durante a missa; o trono reservado de Sua Santidade mantinha-se
vazio; vazias igualmente se encontravam as quarenta poltronas de
couro, alinhadas, sobre as quais, nas outras missas, sentavam-se os
cardeais. E aquela gente era o mundo, a beleza e a força, o prestígio e a
admiração dos homens e das mulheres, principalmente das mulheres.
Entre os cardeais, chegou a haver meninos ao dealbar da puberdade e
velhos de 99 anos, tão curvos que pareciam perplexos na
contemplação do umbigo.

Ao tilintar da sineta, o o ciante voltou-se para a nave petri cada,


onde se poderia ouvir o voo de uma mosca e ergueu o Santo Calix. As
cabeças inclinaram-se humílimas, para o chão. E o irmão leigo, que
desejava levar dali uma impressão de nitiva, olhou o o ciante. Teve
de abafar um grito. Pôs-se a tremer, a tremer... É que o cardeal tinha
chifres de carneiro, olhos de coruja; e quando de novo se voltou para o
altar, um rabinho negro e retorcido, a maneira de cauda de escorpião,
parecia ter furado os linhos do sagrado paramento.

O religioso de Assis esfregou os olhos com a manga do hábito,


esforçando-se em atribuir aquilo a uma alucinação. Mudou de
pensamentos... Mas a cena perdurou por muito tempo, como se lhe
estivesse gravada a fogo nas retinas. Terminada a missa, regressou ao
alojamento e, para morti car o corpo, passou o dia em jejum, a rezar.
Sentia-se prisioneiro daquela grandeza e morria de saudades de
Porciúncula, do casarão em ruínas, onde a memória do cavaleiro
pairava como uma bênção. Que diferença entre Assis e Roma! E, no
mais íntimo do seu ser, quase sem dar por isso, ouviu uma voz:
— Francisco, o poeta dos santos e o santo dos poetas, foi o último
esforço da Igreja para voltar à fé dos primitivos nazarenos! Mas nada
conseguiu. E ali estava ela, a Igreja, cuidando mais da terra que do céu.

E o pobre acabou por apavorar-se do próprio pensamento.

Nos dias que se seguiram, foi-se familiarizando com o ambiente e


com os que o cercavam. A seus ouvidos, chegaram as murmurações
dos aios. Eram casos de mui chistoso contar. Anedotas divertidas dos
cardeais, de seus âmulos e de mulheres tentadoras. Contavam-lhe
histórias de famosas punhaladas, de notáveis envenenamentos.
Corpos cor de cera desaparecidos da cena para surgirem dias depois,
tumefactos e des gurados, nas águas lodosas do Tibre. E dos vícios
nos. E dos negócios segredados atrás dos reposteiros. E das
escarcelas de ouro que mudavam silenciosamente de dono, num
simples aperto de mão, entre clérigos vestidos de escarlate.

Diante de tudo aquilo, o irmão leigo surpreendia-se a perguntar:

— Se esta é a cidade de Deus, como será a outra, a dos Anjos Maus?

Vinha-lhe a dúvida...

— E se uma e outra fossem a mesma cidade? Se as coisas, por


maldade dos homens e dos demônios, se houvessem trocado?

Persignou-se. Foi ao genu exório e rezou horas a o. Daquele lugar,


com a porta aberta, via um pedaço do corredor, ouvia os passos e as
vozes. Numa hora qualquer, sua atenção foi alertada por leve arrastar
de super ícies macias. E se fosse õ Papa? Correu à porta e todo se
iluminou de emoção. Celestino IV, silencioso, sozinho, como lhe
haviam descrito, apareceu-lhe pela frente. Era um velho simpático,
infeliz, prisioneiro de força que ele próprio ignorava, mas temia. Ao
vê-lo, o irmão leigo atirou-se de joelhos, em humílima postura. O
santo pontí ce ergueu a mão direita e, com os dedos médio e
indicador, abençoou-o. A sombra desse gesto reteve-se um instante na
parede cor de açafrão: era a silhueta negra de uma cabeça de bode,
com os cornos para a frente!
IX
A REVELAÇÃO

Passou a manhã inteira no arquivo, assoprando o pó dos manuscritos.


Messer Kaalab, que tinha a volúpia da palavra, fazia-lhe as honras da
casa. Obrigou-o a sentar-se a uma das mesas e atirou-lhe à cara, numa
nuvem de poeira, venerável processo. Abriu-o, folheou-o, deu-lhe
vários assopros e palmadas e, por m, mostrou ao irmão leigo,
apensas ao cartapácio, duas cartas de Frederico II, rei da Sicília e da
Alemanha.

A primeira datada de 1227 era uma espécie de circular dirigida aos


príncipes da Europa. Nesse pergaminho, pela primeira vez na história
da humanidade, vinha a furo o con ito entre o Papa, senhor absoluto
da cristandade, e os direitos dos reis, portanto dos povos. Depois dessa
carta, lá estava o teor da excomunhão lançada pela segunda vez sobre
o monarca. Então, o religioso pasmou de que um soberano duas vezes
excomungando continuasse a reinar e (segundo se dizia) gozando de
estima, são como um pero. Ainda mais, aquele herege era um sábio,
um homem encantador: fundou a Universidade de Nápoles, aumentou
a Escola Médica da Universidade de Salerno, que era a mais velha das
Universidades... E fundou o primeiro jardim zoológico! Dava-se à
caça e às letras, resultando dessa dupla paixão um livro sobre a
falcoaria, que o apresenta como cientista, observador dos hábitos das
aves. Foi ele, ao mesmo tempo, um dos primeiros italianos que
escreveu versos italianos. Ao que parece, a poesia italiana nasceu na
sua corte. Chegou-se mesmo a chamá-lo séculos depois, "o primeiro
dos modernos." Por outro lado, foi o introdutor do papel-moeda, ou
melhor, do ouro-moeda, nas nanças do mundo...

Virou mais folhas. Depois de um arrazoado de Celestino IV (em


tinta fresca, talvez da véspera), lá vinha a outra carta do rei herege
sobre a Igreja. Denunciava o orgulho e a irreligião do clero e atribuía
toda a corrupção dos tempos à sua riqueza. Nesse ponto, o curioso teve
um sobressalto. Sentiu que a verdade estava ali, naquele pergaminho.
E quem poderia ter criado aquela malsinada riqueza? Os Anjos Maus!
Tudo lhe pareceu nítido, meridiano. Então — completou ele, lá
consigo, o seu pensamento — a primeira coisa que a Igreja tinha a
fazer era tornar-se pobre como queria São Francisco! Olhou de novo
para o documento; sua vista caiu sobre determinada frase curta em
que Frederico II propunha aos príncipes da Europa uma con scação
geral dos bens da Igreja — para o bem da própria Igreja!

Ainda estava considerando essas palavras quando o anão, com


outra nuvem de poeira, atirou-lhe à frente novo calhamaço, ainda
mais molambento. Tratava do seu assunto favorito: a queda dos Anjos.
Esforçou-se para penetrar o mistério daquelas palavras. Dizia que os
Anjos Maus tinham sido criados por Deus como os demais e, no
princípio, eram bons. "Se alguém pensar o contrário, seja anátema."
Mas um dia foram escorraçados do céu por motivo de sua soberba,
pois o "princípio de todos os pecados é a soberba." E quando se teria
manifestado essa soberba, que deveria atirar o Demônio e mais um
número incontável de Anjos às geenas? "Foi quando o Senhor revelou
aos Anjos o mistério da encarnação do Verbo de Deus com a humana
natureza..." "Quando introduziu o Primogênito na redondeza da terra,
determinando: "E adorem-no todos os Anjos de Deus." Foi, pois, nessa
ocasião que os Anjos se sentiram humilhados, e se deu a rebelião.
Houve no zênite uma espécie de aurora; miríades de asas brancas
palpitaram no espaço, empanando o brilho das estrelas. Formaram
um exército, um sulco luminoso como a Via Láctea; voltearam ao
redor do Empíreo, rodopiaram em espiral e, cegos pelas doçuras da
desobediência, precipitaram-se nos abismos azuis, caindo na terra
como chuva resplandecente; atravessaram a crosta escura e
perderam-se nas chamas interiores, que são vivas e eternas. No
in nito do tempo e do espaço, cou apenas o eco da maldição divina...

Mas Deus, cujos desígnios escapam à nossa ín ma percepção, não


os esqueceu de todo. Ao contrário, ocupou-os na obra do Bem. Para
tanto, concedeu-lhes dons e poderes. Tornaram-se, e assim serão até
ao dia do Juízo Final, a mentira, a ilusão, a tentação dos humanos.
Podem transitar livremente sobre a terra, tomar para seu uso corpo de
homens e de mulheres, transportar objetos a grandes distâncias. E
têm predicados. Anjo signi ca mensageiro. Demônio quer dizer —
aquele que sabe. Lúcifer — é o que anuncia a luz! Os homens, pelo
visto, não os detestam; conferem-lhes nomes de veneração e de
esperança.

E que teriam feito eles desde o instante memorável da queda? Que


estarão eles fazendo agora? Cosa ia il Diavolo? Pela sua essência, pelos
seus desígnios, autorizados por Deus, poderão eles manter-se
obscuramente sobre a terra? E o religioso continuou a pensar, mesmo
contra a vontade.

Os Anjos decaídos estão atrás de todas as coisas tentadoras. São o


gosto de todas as grandes mentiras da terra, daquelas que tornaram o
chão mais apetecível que o céu. São a grandeza dos homens, mesmo a
mais alta, como a das artes e das loso as. São a beleza dos efebos e a
graça das donzelas; a tinta dos pintores, a gama sonora dos músicos, a
forma dos estatuários. A igreja está povoada de demônios. As goteiras
são gárgulas, os capitéis são monstros de causar arrepios, os baixos-
relevos ostentam uma fauna assustadora de duendes. Há pias de água
benta sustidas por diabos chifrudos, com cauda de escorpião.

E isso vem de longe. As mesquitas são puramente fálicas; seus


minaretes erguem ao céu a lembrança genésica, a cúpula sugere
glândulas. O templo de Santa So a, em silhueta, poderá alarmar
pudores virginais. A escultura medieval é uma arte diabólica; atrás
dela, ouvem-se choro e ranger de dentes, está a mística que se
compraz em pôr, nas obras mais altas, o selo inconfundível dos
abismos. Um templo gótico é um templo demoníaco. Eles, os Anjos
Maus, riem por trás do sorriso das mulheres, brilham por trás do
gloriai dos santos, empavesam-se atrás do orgulho dos sábios. Seu
quartel-general — ai de nós — é esta imensa cidade de São Pedro,
onde o Nazareno não poderia entrar, para não macular o chão de
mármore com a poeira popular de suas sandálias, para não quebrar a
harmonia dos veludos, dos brocados e das lâminas de aço sarraceno
com a candura lirial dos seus linhos caseiros. Que sucederia a Ele, o
Cordeiro, se numa tarde qualquer de todas as tardes de Deus, viesse
bater a esta porta de bronze? Que acolhida lhe fariam os guardas?
Quem de toda esta gente lhe daria um naco de pão e um púcaro de
água? Talvez o escorraçassem. Sim, o escorraçariam. São seus
inimigos... Reconhecem, no entanto, que a sua doutrina é tão pura e
tão profundamente humana que subsiste através de séculos. Nesse
caso...

No mais fundo de seu ser, aquela ideia fragmentária, que o


importunava há muito, tomou corpo, animou-se, desprendeu-se-lhe
do coração, como fruto maduro e completo que se solta da haste e cai,
para desmanchar-se, para devolver a polpa à terra e a semente à
germinação. A seguir, já não lhe pertencia mais; era uma entidade
ereta à sua frente, que discutia com a sua razão, com a sua
sensibilidade, que o empolgava e que agia. E desde aquele momento, o
frade não mais foi dono da ideia; a ideia é que passou a ser dona do
frade... Esfregou os olhos com a manga do hábito, mas a ideia não se
apagou. Foi à janela e contemplou o Trastevero apinhado de gente; a
ideia lá estava a girar como um moinho de vento. Voltou para o quarto,
cerrou a janela e pôs-se a caçar a ideia como uma criança caça uma
borboleta; ela vinha, tocava-o, mas quando ele erguia as mãos para
alcançá-la ou destruí-la, a ideia dava saltos, furava o teto, perdia-se no
azul. Exausto, xou o quadro que lhe estava à frente e que simetrizava
com o Cruci xo: era uma mulher nua, mais nua do que a Verdade.

Acabou por sentir uma respeitosa admiração pelos Anjos expulsos


do céu. Seria possível aquilo que havia pensado? Seria mesmo possível
que o príncipe da Mentira tivesse, sob os olhos de Deus e para
escarmento dos homens, levado a cabo a magna burla, uma burla tão
espantosa que não cabia dentro do Universo? Sentia febre, vertigens,
suores frios nas mãos e nas têmporas. Aquele que ali estava diante de
seu espírito era o mistério dos mistérios. Erguia os braços para o teto,
mergulhava na sua imensa suspeita... Sim! Os demônios não podendo
tentar o Nazareno na montanha ou no deserto, como em nenhum dos
seus passos, não podendo destruir pela força ou pela tentação a sua
in nita obra de misericórdia, imiscuíram-se nela.

Esses Anjos da face sombria, durante a Paixão, assediaram os


Apóstolos; foi um deles que falou pela boca de Pedro, quando este
negou a Jesus. Alguns dias depois da morte do Nazareno, quando
Estêvão, numa reunião de discípulos, lembrou que não devia havei
ruptura entre o Velho e o Novo Testamento, pois na Igreja havia lugar
bastante para o severo Jeová, de Moisés, e o Deus do Amor, que Jesus
pregara, os presentes o mataram, porque aquilo signi cava a
supressão das muralhas contra os estrangeiros, o que era uma coisa
espantosa para os nacionalistas de todas as terras de todos os tempos.
Foi esse o primeiro golpe contra doutrina do Reino do Céu. Essa
doutrina, que era universal, cou diminuída.

Um terceiro demônio, mais tarde, falou pela boca de Paulo. Disse:


"Os escravos devem ser obedientes aos seus senhores." Com essa
simples frase, foi demolida a metade da outra metade da obra de Jesus,
que era pura libertação. E, pouco a pouco, de acordo com os interesses
de cada dia, segundo a vontade daqueles para quem era impossível a
entrada no Reino do Céu, os demônios foram desvirtuando a predica
nazarena, simples e espontânea do Reino do Céu, até transformá-la
numa religião sacerdotal, com hierarquia, cultos, sacri ícios, política,
cismas, dissensões, malabarismos teológicos, en m, igual a todas as
demais religiões orientais que prosperaram e morreram em Roma. E
tais demônios, com as mesmas artes, esconderam na ganga do
formalismo a pureza revolucionária do ensinamento primitivo. Os
papas quiseram utilizar a riqueza a serviço da fé, mas não foram
felizes; a fé está a serviço da riqueza.

Os padres não pregaram a doutrina de Jesus, ao contrário,


esconderam-na. Era preciso a adesão dos reis, dos ricos; tornaram-na
acomodatícia, exível, zeladora de interesses, de preconceitos, de
vaidades. Ao ter algo para conservar, tornou-se conservadora.
Colocou-se ao lado do amo contra o servo, do senhor contra o escravo,
dos lapidadores contra a mulher que pecou. Cada concilio ecumênico
foi uma vitória de Belzebu. Dos cofres do Vaticano, onde se amealham
gotas de suor dos crentes de toda a terra, saíram rios de dinheiro para
custear guerras. As armas homicidas, que Jesus malsinou, foram
abençoadas. As cruzadas do Oriente e do Ocidente surgiram como
empresas de morte e de pilhagem. À sombra austera da Cruz,
praticaram-se espantosos crimes... Ah! — concluiu ele — de alto a
baixo da hierarquia sacerdotal deve haver um demônio escondido no
coração de cada clérigo!
X
O CARDEAL FANELLI

Foi precisamente nesse momento que um âmulo entrou no quarto e


lhe fez sinal para que o acompanhasse. O religioso obedeceu.
Caminharam ao longo, dos corredores, atravessaram estâncias ermas
e salas concorridas. Por toda parte, cavaleiros, pajens, representantes
de reis e príncipes; falavam-se por ali as diversas línguas da Europa,
não raro as do Oriente. Desceram e subiram escadarias, com guardas
imóveis, apoiados em lanças, espadas pendentes da cintura, mordidas
pela claridade.

Saíram de um palácio e dirigiram-se a outro. A meio caminho,


passaram pela frente da igreja de São Pedro, onde havia uma cisterna
de água-benta para a ralé dos peregrinos. Um comércio exótico
orescia entre queixumes e andrajos. Era o que os familiares do
Vaticano chamavam de sacra bottega. Um pátio dos milagres. Liteiras,
cadeirinhas, cavalos ajaezados e guardas atravessavam
incessantemente aquele reduto. Junto às escadarias de pedra, à espera
de entrada, os pajens deitavam-se na relva e manipulavam dados. Ao
lado, mulheres de gola alta e penteado di ícil, conversavam
longamente. Rapazinhos de coro ensaiavam canto, com voz de
donzela. Vadios, sentados à cavaleira dos mochos, jogavam bilboquê.
Toda essa gente ostentava nos pés nus ou calçados o lodo mole e
malcheiroso do Trastevero.

Mais adiante, romperam outro grupo: eram romanos


frequentadores daqueles lugares; tinham atitudes insolentes, falavam
em altas vozes, desmandavam-se em gestos e chamavam os cardeais,
familiarmente, pelos apelidos. Eram dalgos arrumados, lhos-
segundos das grandes famílias, aventureiros de capa e espada,
espadachins desocupados, príncipes pretendentes, escribas
excomungados, toda a fauna encardida que a uía para o Vaticano à
cata de migalhas. Ostentavam as botas emporcalhadas, os linhos
enxovalhados por semanas de uso, o ranço natural disfarçado pelas
essências. Havia também os religiosos que ali demoravam semanas
inteiras na esperança de serem ouvidos. Os enfermos que, debaixo das
janelas do palácio de Latrão, suplicavam com gemidos, ao sol e à
chuva, a visão do Santo Pontí ce, para alívio das suas escrófulas. Os
corcundas, os coxos, os que não cessavam de fazer trejeitos como se
estivessem a dançar, os menestréis chegados da Ibéria, bu ões,
pelotiqueiros, bufarinheiros, jograis de Provença que traziam a cara
empastada de farinha de trigo e vinho, um urinol na cabeça a servir de
barrete... E os. escribas, com a pena de pato na cabeleira. E os médicos
de capa verdosa até o chão. E os ladrões que se dissimulavam entre os
parvos. E os mercadores de imagens. E os judeus ostentando o chapéu
ridículo que lhes era imposto e a roseta infamante, a chatinarem
moedas entre a corja dos peregrinos.

O Cardeal Fanelli era o factótum do Papa, o homem de sua con ança,


aquele que, por assim dizer, o havia elevado ao trono, na luta contra as
pretensões do Cardeal Susini. Era a eminência que mandava no
Vaticano e na Cristandade. Naquele tempo, o ideal não era ser papa,
era ser valido. O trono de São Pedro era, de fato, um potro de suplício.
Basta lembrar que no século X, em 8 anos, foram coroados 9 papas,
alguns dos quais morreram assassinados... E foram perseguidos,
tiveram que pedir a proteção de reis abomináveis. Em compensação,
Gregório VII pregou uma peça memorável a Henrique IV, da
Alemanha, fazendo-o ir a Canossa, no Castelo da Condessa Matilde,
onde se achava hospedado. E o rei passou ali três dias, num pátio,
descalço, pisando a neve, olhos tos nas janelas, à espera que Sua
Santidade houvesse por bem retirar-lhe a excomunhão. Conseguiu a
coroa, mas apanhou um resfriado...

Pois o Cardeal Fanelli — explicava-lhe o guia — estava à sua espera.


Mas o religioso não gostou, nem desgostou disso. O fâmulo, que o
espiava pelo cantinho do olho, não compreendeu. Habituara-se,
sempre que dizia aquela frase, a ver os homens saltarem de alegria ou
baterem os dentes de pavor. Chegaram a uma porta perdida entre cem
portas, e entraram. Vestido com prudente simplicidade, o cardeal
estava de pé, ligeiramente apoiado a uma mesa, confundido entre
outras pessoas. Foi o que ele pôde ver ao entrar, porque a sala estava
quase às escuras.

Era dali que o Cardeal Fanelli dirigia a sua guarda secreta, os seus
espadachins, lacaios, aristocratas a soldo da Igreja, como também os
espiões junto aos outros cardeais, às ordens, aos reis e até mesmo
imiscuídos na gentalha da Saburra ou nos meandros do Santo O ício.
Fanelli só não espionava a si próprio porque não sabia a quem con ar
tão delicada missão... Era, pois, natural, que estivesse cercado de
homens de toda classe. Dizia-se, em voz baixa, que nem todos os que
ali compareciam, trazidos de fora, voltavam a ver a luz do dia. E a sala
metia medo: era negra, silenciosa, sem ar. Quando porém, o guia lhe
informou, com um gesto, que estava diante de Sua Eminência, o irmão
leigo atirou-se ao chão, osculando contritamente a poeira do tapete.
Ali cou a rezar na sua profunda veneração até que uma voz de velho,
encatarroada e rascante o chamou. Só então se atreveu a levantar a
cabeça. Mas os olhos se lhe alargaram, o queixo descaiu de pasmo, os
braços se abriram para trás dando-lhe o aspecto do máximo espanto,
do pavor.
É que ele se viu diante de um homem de barbicha, com cornos de
carneiro retorcidos pelas têmporas, todo envolto em um manto negro,
forrado de vermelho. A cabeça era meio humana, meio caprina; os
chifres e o rosto alongado pela barbicha pareciam formar um
triângulo invertido. Nesse triângulo, brilhavam dois olhos humanos,
parados, cheios de uma curiosidade triste. Não era cardeal, era
Belzebu. Belzebu de braço na tipoia.

O religioso fez-se lívido, os cabelos grisalhos armaram-se no


crânio, o sangue fugiu das veias, a emoção inibiu-o de falar. Olhou
para os lados e só viu carantonhas de orelhas pontiagudas, queixos
proeminentes, caninos à mostra. Nos homens que se encontravam de
per l, lobrigou, de relance, o desenho da cauda mal escondida,
forçando a roupa de brocado. Quis levantar e correr, mas as pernas o
traíram; e ali cou perplexo, com os pés chumbados no chão. Vendo-o
em tal arrasamento, o cardeal fez-se azedo e, de má sombra, ordenou
ao guia:

— O pasmo de ver-me esmagou-o; leve-o depressa daqui...

Só então o irmão leigo pôde retirar-se e, de passos leves e olhos


esgazeados, partiu na frente do guia, percorrendo de volta os lugares
por onde havia passado. Sentia-se louco. Toda aquela gente escondia
qualquer coisa de diabólico; no olhar, no riso, nas atitudes. Admirava-
se de só então c perceber e com tamanha clareza. Sentia-se preso no
santuário dos Anjos Decaídos. Miríades de demônios andavam por ali,
vestidos desta ou daquela maneira; os papas usavam mitra, os bispos,
cajado, os monsenhores e demais gurões da prelazia, chapéus
redondos de grandes abas, quase sem copa. Mas — percebia-o agora
— todos eles tinham pés-de-cabra, e, debaixo da vestia rica, mal
dissimulavam a cauda arrebitada, como a dos escorpiões.
Tinha decifrado o mistério dos mistérios. O céu que lhe havia feito
esta revelação impunha-lhe que a anuncia-se. Deus esvazia os seus
serves. Quando o camareiro o deixou na porta do quarto, esperou que
ele se afastasse e, tomando do bordão que continuava encostado num
canto, esgueirou-se pelo corredor. Chegando à porta do arquivo
secreto, que encontrou fechada, bateu levemente. A porta abriu-se de
pronto; foi como se o anão estivesse à espera da visita, a olhar pelo
buraco da fechadura...

Entreaberta a porta, Kaalab pela fresta perguntou:

— Que queres, irmão?

— Vou-me embora.

— Para onde?

— Vou proclamar a minha revelação...

O jerusalemitano empalideceu; seus olhos branquearam nas


órbitas. Não disse nada. Tomou o religioso pelo hábito e conduziu-o
por novos corredores, novas escadas, até alcançarem um pátio
deserto, onde alguns cavalos comiam com o focinho metido no feno.
Ali encontrou um guarda que limpava o calçado com a ponta da
espada. Ao ver o anão preocupado, abriu uma boca deste tamanho e
pôs-se a rir com todos os dentes. Kaalab tirou do fundo da algibeira
uma moeda e passou-lha para as mãos.

— Mas que seja dos vinhedos de Óstia...

— E depois?

— Se for de carneiro, com grossas rodelas de cebola...


— E depois?

— Ah! É verdade. Facilite a passagem deste santo religioso que vai


espairecer na estalagem do "Asno que Come..."

Anão e guarda puseram-se a rir desabridamente.

O religioso partiu com c guarda. Ninguém lhes embargou o passo. A


ponte estava descida. Homens e mulheres des lavam por ela. Os dois
também passaram. Logo adiante, separaram-se, sem dizer palavra.

O velho desembocou em ruas enlameadas, onde os peões atolavam


até os artelhos. Viu cadeirinhas, liteiras, homens e mulheres a cavalo.
À sombra da muralha, do lado exterior, enxameavam novos
vendedores de objetos religiosos. Muitos cozinhavam ali mesmo os
grãos de que se alimentavam. Havia também os que defecavam na
praça pública. E os que dormiam de bruços, na sombra estreita que os
beirais projetavam no chão. Do outro lado da praça, cavam as
estalagens, de nomes estrambóticos, pois eram o seu único endereço.
Elas deviam ser conhecidas pelos peregrinos do mundo inteiro. Albergo
delia Sacra Famiglia — all'insegna del Asino che Mangia — di rimpetto alia
Porta Vaticana. À entrada, como se depreende da informação, via-se o
braço de ferro-batido com a tabuleta onde artista canhestro havia
pintado um burrico comendo na manje-doura. Peregrinos da
Bretanha, das Gálias, de Portugal e de Castela, ao chegarem em visita
ao rei dos cristãos, abancavam-se naquelas mesas, dormiam naquelas
câmaras ba entas. Essa estalagem cou famosa pelos coelhos
guisados, pelo vinho de Pozzolo e pelo numero de peregrinos ricos que
desapareceram da noite para o dia nas águas serenas e sujas do Tibre.

O religioso não sabia disso, nem queria saber. Passou pela porta da
locanda sem ouvir músicas nem cantorias, contornou a pocilga
contígua, onde o estalajadeiro criava os porcos que, pouco a pouco, ia
transformando em presuntos e chouriços, para a gula dos fregueses.
Não ouviu o grunhido lamentoso dos bichos, meio afundados na lama.
Entrou por uma viela tortuosa das muitas que iam desembocar no rio.
Patinhava na lama na, característica do porto; escorregava nos
excrementos atirados das janelas em vasos de estanho... Passou pela
casa que tinha como emblema três bolas de ouro, onde venezianos
emprestavam com usura. Primo veneziani, dopo cristiani...

Chegou ao Tibre. Ali perto, negros quase nus descarregavam uma


falua encalhada ao peso das pipas. Mais adiante deparou-se-lhe uma
barcaça adernada a bombordo. Os tripulantes, descalços, com barrete
em forma de coador, dormiam na terra seca e gretada das margens.
Vendo os embarcadiços na postura de ouvirem quem lhes quisesse
falar, o irmão aproximou-se e perguntou:

— Sabem vocês quem mora ali? — e com o dedo pálido apontou o


que se via do Vaticano.

Uma voz respondeu:

— O Papa!

E o religioso:

— Enganam-se, é Belzebu!

Os homens estranharam tais palavras na boca de um frade.


Puseram-se a rir. Um deles meteu dois dedos na boca e tirou um som
achincalhante. Outro explicou:

— Veio do "Asino che Mangia." O vinho que ali se bebe tem pimenta,
canela e funcho. Quando brigam, as mulheres levantam a saia e
mostram o traseiro. Os frades dizem sandices e morrem torrados no
Campidolio.

Aquela gente não era propícia à sua revelação. Pôs-se em marcha,


encontrando animais mortos, corvos brancos mariscando nos
montões de lixo, mendigos enrolando as chagas, casais amando-se nas
embarcações viradas de borco. Ninguém capaz de ouvi-lo. Tomou uma
vereda de espinheiros e, abandonando o porto, entrou por terras secas
onde se plantavam alhos. Homens e mulheres, inclinados para a terra,
enterneciam o chão duro. Ele parou, chamou-lhes a atenção e disse:

— Venho revelar-lhes o mistério dos mistérios! Os camponeses


rodearam-no.

— Estais vendo aqueles palácios? São o Vaticano...

Mas ainda não tinha entrado no assunto já os seus ouvintes se


haviam dispersado; não queriam saber de religião, nem mesmo para
serem contrários. E, como o lugar estivesse deserto, o mais patusco
dentre eles tomou de um torrão que lhe cava ao alcance e lho atirou
às costas. O projétil desmanchou-se contra as costelas com um ruído
cavo de pancada em caixa vazia. Então houve risadas de levar as mãos
ao umbigo. Mas o irmão não se ofendeu, não disse nada. Seguiu o
caminho sem olhar para trás.

Já no m daquele dia, encontrou um religioso sem rabo. Aquele


frade ia com o mesmo destino, ou melhor, sem nenhum destino.
Puseram-se a falar. Ao ouvir a revelação do leigo, o companheiro
mostrou-se maravilhado; já havia pensado naquilo... Dali a pouco
entendiam-se perfeitamente. Foi esse o primeiro adepto do novo
heresiarca.
XI
SANTO OFÍCIO

Tão absorvidos iam na conversa que caminharam o resto do dia sem


dar conta dos lugares por onde passavam. À tarde, jantaram côdea e
cebola nos degraus de uma fonte, entre pinhos altos e múrmuros.

— Como te chamas, irmão?

— Agnello di San Giovanni. E tu?

— Durante trinta anos só me chamaram de irmão; esqueci o nome.

A noite alcançou-os no caminho. Era uma noite fria de novembro,


mas o céu estava limpo, faulhante de estrelas. Dormiam ao pé de uma
fogueira, entre pastores, ovelhas e cães. Ao amanhecer, tomaram uma
malga de leite, que os saloios lhes ofereceram, e prosseguiram na
jornada. Logo depois pelas quintas que contornavam e pelos peões
quedos saudavam, compreenderam que ainda estavam em Roma.
Mais tarde, apareceu-lhes pela frente um trato de muralhas e uma
porta. Era a Porta Maggiore. Tentaram atravessá-la, mas na outra
extremidade, onde havia um cubículo, Frei Agnello foi tomado,
certamente, por um demônio. O frade levantou os braços e se pôs a
gritar:

— Gente do Papa!

O irmão-sem-nome não compreendeu. Teria ele ensandecido?


Um homem ventrudo, de machado na mão, saiu do cubículo e veio
parlamentar com o religioso. Eram como dois velhos conhecidos.
Trataram-se com palmadinhas nas costas, piparotes no umbigo. Frei
Agnello apontou-lhe o companheiro e informou:

— Herético, da pior peçonha.

O guarda-barreira desenrolou uma corda da cintura e com ela


amarrou para trás os braços do irmão leigo. Este não protestou, não
disse mesmo uma única palavra. Conservou-se encostado a um dos
pilares da porta, à mercê dos guardiões. Dali por diante o frade e o
ferrabrás não se incomodaram muito com ele; entraram no cubículo e,
como o dia estivesse adiantado, puseram-se a comer uma perna de
porco, regando-a copiosamente com vinho negro. Horas depois,
chegaram dois arlequins a cavalo e, vendo o religioso manietado,
começaram a rir:

— Que falta de pressa, meu irmão! Desde ontem que nós o


procuramos, pois no palácio de Frei Domingos, o bondoso frade
negro, há sempre um lugar para gente de sua marca! Queira, pois,
seguir à nossa frente...

Desataram-lhe as cordas que o prendiam e o empurraram para os


lados do casario. O irmão leigo caminhou, perplexo. Os cavaleiros
seguiam atrás, a passo, conversando sobre coisas indiferentes. Ao
virar uma esquina, o preso olhou de soslaio e não pôde deixar de
sorrir; aqueles homens tinham rabo, deviam ser âmulos do Santo
O ício. E eram mesmo. Durante mais de uma hora caminharam em
direção do centro da Urbs, pisando a lama eterna. Em certo ponto, um
dos arlequins mostrou-lhes grande edi ício que participava de
convento e de fortaleza, dizendo-lhe:
— É aqui, meu pombinho!

Foi recebido por frades negros, cadavéricos, de olhos de chama.


Tinham orelhas pontudas e um pouco cabanas. O preso riu consigo
mesmo, compreensivamente. Sim, eram "eles" a plebe dos Anjos
Decaídos. Após ligeiro interrogatório diante de clérigos munidos de
pena de pato, foi mandado para o subterrâneo da fortaleza.

A prisão era escura e fétida. Tinha, porém, locarnas para a entrada


do ar; mas as muralhas eram tão espessas que esses buracos pareciam
túneis. Ali encontrou outros infelizes; havia um que não mais se
lembrava da época em que entrara e fazia perguntas idiotas sobre
fatos de que ninguém mais se recordava. Outro tinha-se esquecido de
tudo, até de si mesmo. Não lembrava o próprio nome, a família a que
pertencia, nada. Tinha sido atacado da última das loucuras, a da não
existência; deixara de existir para si mesmo. Era uma pedra, um toco.
Falava de si como de outra pessoa. E fedia como uma sentina. Quando
o irmão leigo falou da sua revelação, todos compreenderam e
concordaram em que estavam prisioneiros dos Anjos Maus. Três dias
depois apareceu no subterrâneo um frade negro; dizia-se tocado pelas
palavras do irmão leigo, aceitara o seu ensinamento, e ali estava para
defendê-lo no que pudesse...

O leigo acreditou e foi dizendo:

— Meu irmão e meu amigo...

Houve, porém, uma algazarra pelos cantos. Braços esqueléticos


apontaram para ele, bocas retorcidas invectivaram-no, correntes
arrastaram-se pelo chão, objetos pesados cortaram a treva na direção
da sua cabeça. O frade negro deu um pulo e perdeu-se na escada de
pedra. Trinta vozes gritaram:
— Domini cani! Domini cani!

A função daquele dominicano era imiscuir-se entre os presos,


fazer-se passar por amigo para, desse modo, obter-lhes as con ssões
seladas nas suas bocas; usava da con ança como de um ferro
destinado a revolver almas.

No dia seguinte, apareceu um inquisidor seguido de seus âmulos e


todos se afastaram dele, escondendo-se pelos cantos, batendo os
dentes de pavor.

O visitante levantou o facho sobre a cabeça, examinou um grupo de


presos e declarou:

— Vós que aí estais para serdes relaxados ao braço secular, declaro-


vos da parte do todo-poderoso Deus, que antes de algumas horas esses
corpos estarão feitos pó e cinzas e, se não vos converterdes à verdade,
vossas almas serão sepultadas em companhia dos demônios nos fogos
do inferno, por toda a eternidade!

O homem que havia esquecido tudo mostrava com um dedo


quebrado e amarelo a cauda retorcida do dominicano. E todos se
maravilharam daquela cauda. Durante a noite, homens pálidos, de
olhos ardentes, iam de archotes na mão, buscar um dos presos e o
conduziam para fora. Logo depois, ouviam-se uivos espantosos,
ruídos de ferros arrastados, de ossos que estalavam nos potros. Quase
nunca o infeliz voltava; mas quando voltava, ao menos por aquela
noite, já não mais passava de uma massa escura e sanguinolenta, que
se amontoava num canto e ali cava, como um ser estraçalhado,
fugido à última hora de uma jaula de tigres.

Alguém, pondo um dedo nos lábios, segredou ao irmão leigo:


— Na tortura, às vezes, o corpo resiste e a alma não resiste; então a
alma foge espavorida, e o corpo ca abandonado nos ferros.

Uma noite, o irmão leigo e o preso que se havia esquecido de si


mesmo foram conduzidos para novo interrogatório. O primeiro a ser
ouvido foi o desmemoriado. Sobre o infeliz pesava, além das acusações
que o haviam levado para ali, a incriminação de que ele julgava os
dominicanos uns Anjos Maus, a serviço do Demônio. Interrogado
sobre as razões que o levaram a essa crença, que se ia espalhando
pelos subterrâneos do Santo O ício, ele limitou-se a apontar-lhes para
o traseiro:

— Por isso!

— Isso o quê?

— A cauda!

E pôs-se a bater os dentes, de medo. Os inquisidores quiseram ir


mais longe:

— Só por isso? E o preso:

— E por isso também — disse, apontando-lhes para as testas


pálidas.

— Mas, que é isso?

— Chifres de carneiro! Chifres de carneiro!

Então, utilizando tenazes de gengivas chatas, arrancaram-lhe a


língua; dali a pouco, ele estava morto, com os olhos estourados de
pavor, não do suplício, mas da presença dos inquisidores. O irmão
leigo, em pé, a um canto, assistia a essas cenas. Quando chegou a sua
vez, adiantou-se alguns passos e tomou o lugar do supliciado.
Perguntado, contou com voz serena, tudo o que sabia e o que pensava.
Nessa noite, as torturas não foram mortais; os dominicanos não
davam com largueza a salvação da morte. Ao clarear do dia, o fradinho
foi atirado de novo ao subterrâneo. Os outros penitentes quiseram vê-
lo; tinha as mãos furadas a fogo, as falanges partidas.

Na tarde do mesmo dia, outros frades negros foram buscá-lo com


aparato. Ele ergueu-se como pôde e, mostrando certa alegria, seguiu à
sua frente. Atravessou corredores, salões, parlatórios, capelas. Por
toda parte havia um Cristo cruci cado, a escorrer sangue. Aqueles
frades tinham a obsessão das chagas, do sangue; da tortura, dos
lamentos, da cor negra e do fogo, do demônio em todo o seu ser... E
ninguém percebia!

Entraram numa grande sala, quase escura. A claridade de uma hora


qualquer entrava pelas sgas existentes na parede espessa. Frades,
munidos de tochas, aproximaram-se e um deles leu a sentença, que
terminava assim:

—...Christi nomine invocato, declaram o presente réu sem nome por


convicto, negativo, pertinaz e relapso no crime de heresia e apostasia,
e que foi herege na nossa santa fé católica e que incorreu em sentença
de excomunhão maior e nas penas de direito contra semelhantes
estabelecidas, e como herege apóstata da nossa santa fé católica,
convicto, negativo, pertinaz e relapso, o condenam e relaxam ao braço
secular, a quem pedem, com muita instância, se haja com ele benigna
e piedosamente, e não proceder à pena de morte, nem à efusão de
sangue...
Vestiram-lhe o sambenito, no qual se via, grosseiramente pintado,
o seu retrato; meteram-lhe pela cabeça o capuz denominado carocha,
onde artista canhestro havia gurado altas chamas retorcidas.
Espetaram-lhe ainda uma vela entre as mãos ligadas por cordas. E
zeram-no andar de pés descalços sobre as lájeas negras, caminho da
porta, relaxando-o aos executores.

Diante do palácio, tinha-se formado uma longa e triste procissão.


Homens e mulheres, em hábitos negros, empunhavam tocheiros;
como o sol oblíquo incidisse sobre eles, não se via a chama, mas o
fumo negro, em cordas, torcendo-se no ar sereno, enroscando-se nos
ângulos dos telhados. Quando a procissão se pôs em movimento, o
sino grande de São Pedro entrou de badalar compassadamente...

Pelos buracos da carocha, o irmão leigo procurava tomar


conhecimento do que se ia passando à volta de si. A lama da praça
estava quase seca. O sol açafroado batia de lado nas colinas coroadas
de ciprestes, pintalgadas de túmulos pagãos, manchadas de olivais
escuros, com qualquer coisa de violeta. Os corvos voavam baixo,
equilibrando-se no ar. As torres, as capelas, as frontarias, as fontes, as
árvores tinham-se tornado cor de açafrão. A mó de gente moveu-se na
direção do Campidólio. Ia muito lenta, ao som de cânticos soturnos,
mais tristes do que a luz agonizante. A chama dos tocheiros fazia-se
agora amarela, como ouro uido, e os novelos de fumo que subiam
levavam para o céu todo o negrume daquelas ruas. O penitenciado
comoveu-se com o doce e estranho pôr-do-sol, que tingia de ouro tudo
aquilo em que tocava.

— Ah! O sol! Francisco amava o sol! Chegou a escrever o hino ao


sol!
Os romanos já tinham perdido a curiosidade pelos autos-de-fé,
iniciados pelo santo Papa Inocêncio III, que Deus tenha em sua glória
pelo século dos séculos; esses espetáculos haviam-se tornado tão
frequentes que acabaram por perder o primitivo encanto. Ainda
assim, as mulheres de pano pela cabeça aglomeravam-se nas janelas,
umas tristes, de mão no queixo; outras, alarmadas, erguendo os braços
trêmulos para o céu; as últimas, divertidas, trelendo com o poviléu da
rua, ou atirando chufas aos sambenitados. Havia também as ferozes,
as que admiravam os dominicanos. Os vadios agrupavam-se nas
encruzilhadas e, ao passar do farricoco, dançavam danças chulas, que
ele animava com a ponta do bastão. E eram gritos, saltos,
cambalhotas, correrias... As crianças barafustavam pelas pernas dos
religiosos, pediam fogo aos fachos, acendiam manojos de palha e
atiravam-nos para o ar. Em certos pontos, estabeleciam-se conversas
entre as mulheres das janelas e os populares que acompanhavam de
perto a procissão:

— É homem ou mulher?

— Homem.

— Feiticeiro?

— Não sei. É irmão leigo de uma Ordem.

A mulher recolhia-se apressada por contar a novidade. Outras


mulheres vinham pedir informações; penduravam-se no parapeito
das janelas.

E o sino grande de São Pedro tornou-se mais lento, mais grave.


Eram badaladas que pareciam vir do outro mundo. O irmão leigo
estremeceu. Na sua alma singela, desabrochou a or da primeira
vaidade. Notou que aquela gente se tornava agitada, curiosa...
Que seria? Das janelas para a rua, as cuscuvilheiras redobraram de
perguntas e comentários. Nas vielas que terminavam no Tibre, a plebe
erguia os braços e gritava. Seria por sua causa? Não era. O penitente
também veio a saber da novidade, porque a notícia, dentro de pouco,
era gritada por toda parte*

O Papa Celestino IV, que no mês anterior havia subido ao trono


ponti ício, tinha morrido. A morte dera-se durante a missa do meio-
dia. Quando Sua Santidade ergueu aos lábios o Santo Cálix,
empalideceu, gritou, perdeu conhecimento e caiu para o lado. Dali a
pouco estava morto. Ninguém sabia porquê. Esticado e rígido, na
cama, aparecia inchado e verde, como se tivesse comido um pote de
azinhavre.

Ao redor do penitente uns gritavam:

— Veleno!

E outros:

— Morte ai ghibelini!

O irmão leigo compreendeu então alguma coisa: o terror em que


vivia o Papa, os cornos de carneiro que lobrigara no Cardeal Susini.

E o sino continuava a badalar na tarde amarela. A procissão


desembocou em praça larga e lamacenta onde havia um poste ncado
ao pé de um monte de lenha. O irmão confessor aproximou-se do
penitenciado, pousou a mão na sobre a cabeça e ê-lo ajoelhar-se, no
que o religioso não pensou em resistir. Mas estava lívido e batia os
dentes. O frade negro começou a fazer-lhe perguntas:

— Tens medo da morte?


— Não.

— Então por que motivo estás pálido e tremes tanto?

— Porque tenho medo de ti; dos teus chifres caídos sobre a testa, da
tua cauda que furou o hábito...

— Que poderei fazer por ti?

— Mata-me depressa; quero fugir das garras dos Anjos Maus.

Dois homens fortes como touros arrancaram o poste do buraco,


estenderam-no na lama, e com a desenvoltura de uma longa prática,
nele amarraram, dos pés ao peito o irmãozinho sem nome; só lhe
deixaram livres as mãos, a m de que pudesse pedir perdão a Deus,
mas aquelas mãos estavam mutiladas, inúteis...

Feito isso, o poste foi novamente erguido ao pé do monte de lenha e,


a um gesto do carrasco, os âmulos meteram os fachos entre as achas.
Labaredas e cordas de fumo espicharam-se, para alcançar o penitente.
O mártir torceu-se no tronco, fez um derradeiro esforço para unir, em
súplica, as mãos partidas, mas foi logo envolvido pelo espantoso
torvelinho. Dali a pouco, a cabeça se lhe descaiu, os braços penderam
inertes ao longo do corpo, e o religioso, já despido do hábito, foi
enegrecendo, enrodilhando-se, sumindo.

Longe, no borrão amarelo da Urbs, o sino grande de São Pedro


continuava a planger. Foi quando veio, não se sabe de onde, uma
revoada de pombas brancas. Essas pombas pairaram como uma
nuvem sobre a praça, zeram voltas no céu e partiram para os lados
da Úmbria. Tão brancas, tão leves, pareciam lírios! Era como se todos
os lírios de Porciúncula tivessem voado para os céus...
XII
OS ANOS PASSARAM

A história não guardou coisa alguma daquele apagado serviçal de


convento, nem sequer o nome. No entanto, a revelação que fez lhe
sobreviveu às cinzas do corpo. Conta-se que, muitos anos depois, em
1318, numa esverdeada praça de Marselha, foram queimados mais
quatro frades menores por terem proclamado que os Anjos Maus, com
cavilosos intuitos, se haviam apoderado da obra de Jesus de Nazaré.
Dessa penca de frades, como o irmão leigo de Assis, nada cou, nem
mesmo um empoeirado processo, para edi cação da Cristandade.

Mas a velha dúvida ainda persiste neste mundo de Deus. Homens


há que, diante do antagonismo existente entre a doutrina universal,
fraterna, libertadora, dos nazarenos e a nobre hierarquia sacerdotal
da Igreja, formulam a si mesmos pecaminosas perguntas. Teria
descoberto a verdade o irmão leigo do século XIII? E os Anjos Maus,
de fato, estarão maliciosamente imiscuídos entre os sucessores de São
Pedro, para anátema do Mestre, escândalo das almas puras e
abominação do Reino do Céu?
 

FIM

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