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FOLHA DE S.PAULO

'Teologia do coaching' invade


círculos evangélicos e divide
pastores
ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER 28 DEZEMBRO 2023 | 5min de leitura

"Networking", "autorrealização" e outros termos infalíveis no léxico dos


coaches se espraiam em capítulos como "Seja o Davi da sua história!" e
"Deus e o Mindset da Inovação Constante". Há uma nova teologia na
praça evangélica, como tão bem ilustra "Empreenda Pelos Princípios
Bíblicos".

A obra de Oséias Gomes, CEO de uma franquia de clínicas odontológicas e


autor de best-sellers de autoajuda focada no mundo dos negócios, é uma
entre tantas inscritas no que alguns pastores vêm chamando de teologia
do coaching.

Desdobramento da evangélica teologia da prosperidade, que prega


conquistar já na vida terrena bonanças prometidas para o reino dos céus,
ela polvilha com elementos cristãos os cacoetes inspiracionais que
arrebatam uma multidão de seguidores no meio empresarial.

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Christ Summit, convenção para empreendedores cristãos, que aconteceu em Alphaville em junho de 2023 -
Anna Virginia Balloussier/Folhapress

Não que haja fundamentação bíblica propriamente dita aqui. Trata-se de


"uma deturpação da mensagem evangélica, que é sobre um Cristo que
vem para nos salvar dos nossos pecados", diz o pastor batista Yago
Martins, do canal Dois Dedos de Teologia. "Já a teologia do coaching é
sobre um processo de autoaperfeiçoamento a fim de encontrar sucessos
econômicos, emocionais ou psicológicos."

Enquanto o Evangelho "fornece paz mesmo nas dores e dificuldades",


diz, a proposta aqui é eliminar esses sofrimentos, ou ao menos acreditar
que isso seja possível.

"O que faz ela se popularizar tanto é justamente seu apelo a uma
sociedade adoecida emocional e psicologicamente, que procura na
religião não um relacionamento transformador com Cristo, mas um uso
instrumental da fé como um meio de levar uma vida mais agradável."

Martins escreveu, junto com os também pastores Pedro Pamplona e


Guilherme Nunes, um livro que emula no título, com alguma ironia,

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obras do gênero: "Você É o Ponto Fraco de Deus". O subtítulo diz a que


veio: "E Outras Mentiras da Teologia do Coaching".

O trio inclui nesse pacote influenciadores como Deive Leonardo e Tiago


Brunet, que só no Instagram batem com folga o número de seguidores de
Edir Macedo e Silas Malafaia, para ficar em dois gigantes da liderança
evangélica nacional. A certa altura o livro questiona: seria exagero
comparar esses dois tipos de pregadores do cristianismo brasileiro?

"Respondo com uma citação de Brunet numa pregação chamada


‘Descubra o seu destino’", afirma Pamplona. É esta: "Deus tem um lápis,
mas você tem a borracha das decisões. [...] A conspiração divina está no
céu conspirando a seu favor, sempre para você ganhar, sempre para você
sair do buraco, sempre para o casamento melhorar, sempre para a
solidão ir embora, sempre para a prosperidade chegar, sempre para o
bem. Mas por que as coisas dão errado? Porque, de vez em quando, a
gente apaga parte do plano".

A ideia de que você precisa destravar a fortuna que Deus reserva a todos
nós é herdeira direta da teologia que assoalhou o neopentecostalismo de
igrejas como Universal e Renascer.

A interseção entre os dois campos ficou clara a Pamplona após ler um


artigo do estrategista digital Ícaro de Carvalho que trata o
empreendedorismo como "a nova religião do homem moderno".

Essa novidade na cena do coaching soa "bastante interessante" a Oséias


Gomes, desde que os adeptos estejam "atentos aos que se apresentam
com essa teoria, pois é preciso realmente conhecer a teologia para que
não sejam rasos quanto ao conhecimento bíblico", ressalva.

Ele mesmo cita Deuteronômio 8:18, que fala sobre Deus capacitando os
homens para produzir riqueza, para legitimar o uso da Bíblia como "um
grande manual da vida". Inclusive na seara financeira, sobre a qual
palestrou em junho no Christ Summit, evento para empreendedores
cristãos que cobrava até R$ 9.467 dos participantes.
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A rejeição que esse tipo de abordagem sofre dentro das igrejas,


reconhece Gomes, "ainda é muito comum, infelizmente". Bobeira. "Todo
cristão precisa entender que Deus nunca foi contra a empreender, nem
contra a liberdade financeira. O problema não está nas riquezas em si,
mas no apego indevido a elas. Quando passo a servir ao dinheiro, deixo
de servir ao Senhor. E o dinheiro é quem tem que me servir."

Para Ricardo Hida, professor de marketing religioso da ESPM, o


fenômeno se encaixa no que ele rotula como "novaerização das
religiões". De Nova Era mesmo, aquele movimento mais associado ao
misticismo. "Pensa na [cantora] Enya, na astrologia."

Não que os evangélicos queiram papo com temas assim, mas o que
importa, segundo Hida, é pensar na hiperindividualização que essa
vertente trouxe. "Se falar que eles estão se ‘novaerizando’, vão ter um
chilique. Mas não é [crer em] duende, é ter o foco muito mais no
indivíduo do que na instituição."

É também a sacralização da psicologia, "como se fosse uma validação da


fé individual", diz. "E como não podem usar título de psicólogo, usam o
de coach."

Uma corrente que ele vê transbordar para várias crenças. Basta lembrar
da Monja Coen oferecendo seminários de autoajuda, ou nos escritos do
padre Fábio de Melo, exemplifica.

Esse deslocamento do poder da igreja para a pessoa vira uma ferramenta


da teologia da prosperidade ao evocar glórias que vão da vida
sentimental bacana à conta corrente abastecida, afirma. Se antes o
enfoque era no transcendente, agora a religião se presta a resolver
questões cotidianas. Quem não quer casar bem ou ficar rico que nem
Abraão, dono de generosos dotes de ouro, gado e terra?

É como diz Tiago Brunet em um de seus vídeos: "Eu não sei se dinheiro
traz felicidade, mas que pobreza traz uma tristeza danada, eu tenho

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certeza. [...] Não sei se Deus me chamou para ser rico, mas para ser pobre
eu tenho certeza que ele não me chamou".

Para o pastor Yago Martins, essa não é a essência da verdadeira fé que


Cristo nos legou. Ele prefere uma reflexão do escritor C. S. Lewis: "Nem
sempre fui cristão. E não procurei a religião para ser feliz. Sempre soube
que uma garrafa de vinho do Porto bastaria para isso. Caso você queira
uma religião para se sentir confortável, eu certamente não recomendo o
cristianismo. Tenho certeza de que deve haver um artigo americano no
mercado por aí capaz de atendê-lo muito melhor".

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