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Bortolo Valle
Introdução
Uma pergunta que tem acompanhado a humanidade em ( Verdade de Deus transmitida aos homens
) , tempo em que o
sua históna é aquela que pode ser assim formulada : o que é o Bem projeto de uma vida boa e feliz se organizaria sobre
a convicçã o
c o que e o Mal ? Ela sempre será formulada quando nos propomos numa vida futura .
de que a plena felicidade só seria alcan ada
ç
a refletir sobre nossa felicidade. No entanto, este é um daqueles sem uma atenta
Não é poss í vel compreender o mundo Ocidental
que a
questionamentos destinados a n ão receber uma resposta definitiva . an á lise daquele per í odo de nossa hist ó ria . Sabemos
desde seu
O tempo n ã o d á solu çã o ao problema ; antes, convida o homem a cristandade tem direcionado a cultura ocidental
a marca indelé vel
um constante estado de aten çã o sobre os possí veis fundamentos de in í cio. Os dois ú ltimos mil é nios carregam
Idade M édia e que
suas escolhas, ou seja , sobre os horizontes que orientam suas decisões da vis ã o crist ã de mundo que perpassou a
em busca da felicidade. A reflex ão sobre o Bem e o Mal constitui o ainda hoje permeia a cultura ocidental mesmo em seus aspectos
coração da Etica e de toda a moralidade humana; e essa reflexão aparentemente mais leigos .
esta ínsenda no tempo. Isto significa que a humanidade empenhada
nos seus projetos de felicidade vai , de quando em quando,
modificando substancialmente suas crenças e seus valores. Uma breve caracteriza çã o do projeto
Quando nos debru ç amos sobre o desenvolvimento
histórico da É tica no Ocidente (sobre o modo como tratamos o
devida assumido na Idade Mé dia
Bem e o Mal ) , podemos falar de uma É tica pró pria dos povos
primitivos que orientava as decisões da comunidade, tendo como O longo per í odo que se estende desde os primeiros séculos
base o mundo m á gico-sobrenatural . Reconhecemos també m a da era crist ã at é o Renascimento (século I ao século XV), apesar
Etica Grega que tomava a harmonia da natureza , ou a justa de suas extraordin á rias diferen ças, pode ser compreendido como
medida como fundamento para a boa açào do
,
um tempo marcado pela força de um projeto orientado pelos
homem inserido ensinamentos e convicções de uma novidade que denominamos
na polis. Visualizamos uma Etica Medieval ;
aquela que via na vida e
Verdade Divina Revelada cá non Para o Cristianismo. A novidade crist ã foi elaborada a partir da
proceder Deparamo - nos , tamb é m
° correto modo de dos ensinamentos de Jesus de Nazar é . Sua vida e sua doutrina
COm a chamada É tica como
Moderna , que sustentou na expressã o est ã o reunidas no grupo de livros bíblicos identificados
acionai , ou melhor, na esperado
capacidade de decisã o aut ó noma , • Evangelhos. Jesus Cristo, o filho de Deus, prometido e
Hoje , ja ouvimos os enunciados de
° valor da s corretas decisões . no Antigo Testamento, se encarna no meio dos homens
c lhes
uma Etica ii ncapaz de ver mandamento
um fundamento sólido para o projeto
hu mano de traz uma nova lei , aquela do amor. Esta lei é um
felicidade um
Neste capitulo estaremos refleti
ndo sobre os tra
,
novo, que n ã o elimina os antigos, mas que lhe confere
ços que pela
orientam a Etica no chamado
MundJo Med significado inovador : a ação humana deve ser orientada
levai A É tica , numa s í ntese,
daquele tempo em que a cultura
ocidental compaixão, pela misericórdia conforme se pode ler
de que a boa a çà o deveria ser espelhada manteve a convicçã o
Pela Verdad e no evangelho de Mateus. No capí tulo 5 lemos:
Kevelada
A é tico na idode m édio
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em esp í rito, porque deles é do evangelho de João: “ Ningu é m tem maior amor do que aquele
Bem -aventurados os pobres
o Reino dos Céus. que d á a vida por seus amigos ” (Jo 15 , 13). Não resta d ú vida que
, porque herdarão a terra.
Bem -aventurados os mansos estas determinações, que estas regras de comportamento onentaram
serã o consolados.
Bem - aventurados os aflitos, porque e ainda orientam parte significativa das reflex ões sobre a É tica ,
e sede de justi ça ,
Bem -aventurados os que tê m fome uma vez que o Cristianismo é , como dissemos , um dos
porque serã o saciados. componentes fundamentais da cultura ocidental .
alcan çarã o
Bem -aventurados os misericordiosos , porque
misericó rdia .
A novidade introduzida pelo cristianismo, tendo no seu centro
Bem -aventurados os puros de coração, porque verã o a Deus. a compaixão e a misericórdia , só pode ser compreendida a partir de
Bem -aventurados os que promovem a paz , porque serã o um conjunto de orienta ções introduzidas pelo estilo de vida da
chamados filhos de Deus . cristandade. Sem uma análise atenta delas fica difícil compreender a
Bem -aventurados os que sã o perseguidos por causa da extensã o e as contribuições de seu projeto ético ( indicações para a
justiç a , porque deles é o Reino dos Cé us.
correta condu ção da vida ). Apresentamos algumas delas:
Bem -aventurados sois , quando vos injuriarem e vos
perseguirem e , mentindo, disserem todo o mal contra v ós
por causa de mim . Alegrai -vos e regozijai-vos , porque a ) Consideremos que a mensagem b í blica se assenta sobre
será grande a vossa recompensa nos cé us , pois foi assim a convicçã o do monoteísmo que substitui o politeísmo
que perseguiram os profetas , que vieram antes de vós. t í pico da cultura grega . Nascido no seio da cultura
semita antiga ( o povo do Antigo Testamento ) , o
No capí tulo 25 lemos: monoteísmo apresenta um Deus que se comunica com
os homens e lhes d á um projeto de vida singular. Deus
Tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de faz uma aliança com o povo, e lhe transmite sua lei
beber. Era forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me
que é a expressã o de sua vontade.
vestiste, doente e me visitastes, preso e viestes ver- me.
b ) També m original é a ideia do criaciomsmo. Deus, segundo
Este apelo ao Amor ( traduzido na miseric ó rdia e na a mensagem bíblica , teria criado o mundo do nada , ou
compaix ã o) introduz uma diferença significativa em relaçã o à seja , o mundo seria fruto da Vontade de Deus. Esta posiçã o
vida boa ( projeto ético) que havia sido defendida pelos gregos. contraria , por exemplo, uma convicção grega que indicava
A felicidade que para o homem da Gré cia antiga orientava a vida a impossibilidade de se produzir alguma coisa do nada .
na polis , agora , no seio do cristianismo, só será alcan çada numa c ) O projeto crist ão é marcadamente centrado no homem .
vida futura se a pr á tica da misericó rdia for vivenciada em seu Criado à imagem e semelhança de Deus, o homem é a
estilo mais radical no amor ao próximo. Parece ter sido este o primícia da criação. També m aqui podemos perceber
ensinamento m á ximo de Jesus levado às ú ltimas consequ ê ncias uma diferença significativa em rela ção aos gregos que
com sua morte. Podemos conferir esse projeto de possu í am uma visã o mais cosmocê ntrica da realidade.
vida na passagem
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daquela doutrina . que brota de uma luta no interior de cada ser humano
significativos para mostrar os limites e os erros
importantes que, ao mesmo tempo em que quer també m n ã o quer.
Agostinho de Hipona é contado entre os mais
es para a - O homem enquanto corpo e alma Agostinho se vale,
pensadores do Ocidente. Entre suas contribuiçõ
na defini çã o de homem da fó rmula grega que reconhece
elabora çã o de um projeto é tico podemos destacar :
ser o homem “ uma alma que se serve de um corpo ” . No
- O homem como elemento central no projeto ético . entanto , percebemos que nele existe um significativo
Segundo Agostinho, o verdadeiro problema é tico n ã o
aprofundamento da quest ã o. Corpo e alma adquirem um
reside no cosmo, mas no homem . O grande mistério da novo significado, uma vez que devem ser considerados
cria çã o n ã o é o mundo, mas o homem para si mesmo. a partir do conceito de cria çã o, do dogma da ressurrei çã o
Ele nos alerta em sua obra mais conhecida , Confissões, que e, acima de tudo, da certeza de que Cristo se encarnou e
na maioria das vezes nos voltamos para admirar as experimentou concretamente os dilemas da vontade num
montanhas , o fluxo do mar, a corrente dos rios , o corpo. Assim , enquanto sede da alma , o corpo é mais
movimento dos astros, mas abandonamos a nós mesmos. valorizado do que um simples simulacro conforme o
Agostinho declara ser o homem um “ misté rio profundo ” . modelo plat ó nico retomado por Plotino . O homem
No entanto, diferentemente dos gregos, ele n ão o toma interior é , para o Bispo de Hipona , a imagem do Deus
como algo abstrato. Para ele n ã o interessa o homem em Trindade. Enquanto imagem de Deus Pai o homem é
geral ; antes, é do indiv í duo irrepet í vel que lhe interessa . Ser ; enquanto imagem de Deus Filho , o homem é
Ver o indivíduo em sua concretude é o ponto de partida Conhecer e, enquanto imagem de Deus Esp í rito Santo o
do projeto da é tica agostiniana . É mais propriamente das homem é Amar. Essa convicçã o agostimana , do valor
suas tensões í ntimas , dos dilemas de sua vontade particular do homem , reformula a É tica , j á que para os gregos ela
diante da vontade de Deus que Agostinho se toma í ntimo estava centrada no Cosmo.
de si pró prio, que se depara com a personalidade humana - A questão do mal . Podemos reconhecer que o problema
em um sentido inovador. do mal se toma central na reflexã o de Santo Agostinho
O lugar da vontade humana . Agostinho, ao tratar do sobre a é tica . Existe um paradoxo a ser explicitado: se
homem concreto, afasta -se do chamado intelectualismo todas as coisas prov ê m de Deus que é Bem , qual a origem
grego. Para fil ósofos como Sócrates e Plat ão, pouco espa ço do mal? Agostinho d á a essa quest ã o um tratamento
era reservado à vontade. Embora pró ximo de Plat ã o, por singular. Podemos recordar que o intelectualismo é tico
era a
influencias de Plotino, Agostinho enfatiza na elabora çã o defendido por Sócrates afirmava que a ignorâ ncia
tem sua
de um projeto de felicidade o
confronto entre a vontade origem do mal . Agostinho enfatiza que o mal
do homem e a vontade de Deus . A origem na vontade. O mal n ã o é uma
quest ã o puramente
vontade do homem é os grandes
decisiva no processo de escolha e ela é sempre
uma opçã o intelectual como estavam inclinados a defender
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Considerado o maior fil ósofo da Escol ástica , Tom á s de não é reduzida pela presci ê ncia de Deus ( Deus prevê tanto
Aquino nasceu no ano de 1221 , na regi ã o de Roccasecca , e o que é necessá rio quanto o que é contingente ) . É na
morreu no mosteiro de Fossanova no ano de 1274 . Como liberdade humana que o filósofo escolástico localiza a raiz
nenhum outro , o autor da Suma Teol ógica soube conciliar a Fé de todo o mal que, seguindo as considera ções de Agostinho,
e a Raz ã o a ponto de sua obra ser considerada como uma é tomado como ausê ncia do bem . O livre-arb í trio n ã o dirige
prepara çã o para a Fé . Al é m disso, seus argumentos possuem tal a vontade humana como uma flecha atirada pelo arqueiro
envergadura que permitem a discussã o at é mesmo com aqueles ( o que sugere uma linha reta sem desvios ) , ela segue para
que n ã o professam nenhuma fé. O projeto é tico que se desprende seu fim de forma livre ( a escolha é uma quest ã o
do pensamento de Tomás possui um cará ter especulativo racional, fundamental). Percebe-se no homem certos princípios de
ou seja , considera que é preciso ter em mente primeiro as verdades conhecimento que identificam uma disposi çã o natural a
racionais, uma vez que n ós, seres humanos, somos unidos pela gui á -lo em direçã o à s boas ações. N ã o é possí vel , segundo
razã o e, a partir delas , constru í mos um discurso de natureza Tomás, que se confunda o compreender com o agir, uma
teol ógica . De seu vasto pensamento destacamos algumas das vez que no ato de compreensã o ainda nã o se faz presente a
ideias que permitem verificar a maneira como o Doutor Angé lico a çã o. Onde reside o mal ent ã o7 Na a çã o deliberada do
tra çou o itinerá rio para a compreensã o da vida feliz . homem . É por ela que ele se afasta daquele princípio que a
razã o lhe d á a conhecer e que Deus na Sua bondade lhe
- A natureza do homem . Santo Tom á s defende que os revelou como condi çã o para a felicidade. Os fins
atos humanos sã o aqueles exercidos com uma inten çã o e intermedi á rios n ã o satisfazem a sede de felicidade do
pela livre escolha . Para ele o homem é uma natureza homem . Somente quando a açã o for dirigida para o fim
racional e isto é tomado como alicerce n ã o só para a É tica ú ltimo ( Deus ) os desejos humanos ser ã o plenamente
ser
como també m para a Pol í tica . O homem , por ser racional , satisfeitos. Assim sendo, a felicidade humana n ã o pode
possui a capacidade natural de conhecer as finalidades de
encontrada nos bens criados, mas só em Deus.
sua a çã o. Existe uma ordem das coisas e, no seu ponto - A felicidade perfeita e imperfeita . J
á que a felicidade plena
mais alto , Deus é encontrado como de Deus,
sendo o Bem Supremo. só pode ser alcançada no pleno conhecimento
Se o intelecto pudesse contemplar Deus a alcan çar u ma
vontade n ã o Tomás argumenta que nesta vida só poderemos
, imperfeita . Em
felicidade incompleta, o que equivale a dizer
poderia deixar de quer ê - lo. No ,
entanto, aqui , entre as
coisas do mundo, o intelecto do homem só que consiste essa imperfeição da felicidade
? Limitado que é ,
conhece as
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1 . Quais os fundamentos da é tica crist ã ? NEMO, P. O que è o Ocidente. São Paulo: Martins Fontes, 2005. cap. 3 e 4.
2 . Quais, de acordo com Santo Agostinho, sã o as bases do projeto de
REALE , G . ; ANTISERI , D. História da filosofia . Sã o Paulo: Paulus,
felicidade humana ?
2003. v. 2 .
3 . De que maneira Santo Tom á s, ao estabelecer uma hierarquia das
leis , elabora um projeto ético? TARNAS, R . A epopeia do pensamento ocidental. Rio de Janeiro:
4 . Quais os elementos comuns entre a É tica de Agostinho
e aquela de Bertrand Brasil , 1999.
Tom á s?
5. Qual o papel da Igreja na elabora çã o
da É tica Medieval ?
6 . De que modo a É tica Medieval
modifica a É tica Grega ?
© 2010, Cesar Candiotto e outros
2010, Editora Universitá ria Champagnat
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