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HISTÓRIA DO PENSAMENTO

CONTEMPORÂNEO

autor
LEONARDO TEIXEIRA

1ª edição
SESES
rio de janeiro  2015
Conselho editorial  luis claudio dallier saldanha; roberto paes; gladis linhares

Autor do original  leonardo teixeira

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  gladis linhares

Projeto gráfico  paulo vitor bastos

Diagramação  bfs media

Revisão linguística  joice karoline vasconcelos dos santos

Revisão de conteúdo  paulo cotias

Imagem de capa  ginasanders | dreamstime.com

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

T266h Teixeira, Leonardo


História do pensamento contemporâneo / Leonardo Teixeira
Rio de Janeiro: SESES, 2015.
140 p. : il.

isbn: 978-85-5548-116-1

1. Historicidade. 2. Correntes filosóficas. 3. Era digital.


I. SESES. II. Estácio.
cdd 109

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário

1. Historicidade e Pensamento 5

1.1  O século XVIII inaugura a contemporaneidade 7


1.2  A Revolução Industrial na Inglaterra 10
1.3  A Revolução Francesa 14
1.4  O período Napoleônico 19
1.5  O pensamento contemporâneo pós
revoluções do século XVIII – XIX 22

2. Iluminismo 29

2.1  O Iluminismo 31
2.2  O Idealismo alemão 46

3. Positivismo e a arte do século XIX 51

3.1  O positivismo 53
3.2  O século XIX – arte, literatura e filosofia 59

4. Racionalismo 73

4.1  Racionalismo 75

5. O século XX 99

5.1  O fundamentalismo religioso 101


5.2  O ambientalismo 113
5.3  Teoria das Justiças e dos Direitos Humanos 119
5.3.1  A concepção Liberal de Jonh Rawls 119
5.3.2  A concepção Igualitária de Ronald Dworkin 121
5.3.3  A concepção Capacitária de Amartya Sen. 124
5.4  Atualidades: Bioarte e Bioética,
Diversidade e Multiculturalismo 126
1
Historicidade e
Pensamento
Este capítulo tem a proposta de discutir como as Revoluções inglesas e francesas
do século XVII-XVIII transformaram o mundo. A Revolução Industrial na Inglaterra
trouxe uma nova lógica de trabalho impondo tempo, velocidade e ritmo às relações
sociais, econômicas e políticas. A Revolução Francesa alterou sobremaneira o qua-
dro social francês e estabeleceu o poderio burguês no âmbito da administração da
nação. Tente em seu percurso de leitura criar vínculos entre àquelas transforma-
ções e as estruturas de nosso tempo. Boa leitura.

OBJETIVOS
•  Localizar os avanços do pensamento burguês na participação política na Inglaterra.
•  Identificar os processos de transformações decorrentes da passagem do trabalho artesa-
nal para o trabalho industrial.
•  Verificar as mudanças sociais introduzidas com a expansão do trabalho urbano.
•  Reconhecer os eventos históricos que caracterizam a Revolução Francesa.
•  Analisar as transformações ocorridas na França durante a revolução.
•  Identificar os princípios burgueses instaurados no governo de Napoleão Bonaparte.

A verdadeira e legítima meta das ciências é a de dotar a vida humana de novos inventos
e recursos. Francis Bacon (século XVII)

6• capítulo 1
1.1  O século XVIII inaugura a
contemporaneidade

O século XIX é resultado das transformações oriundas da Revolução Industrial


e da Revolução Francesa. Essas mudanças profundas nas concepções econô-
micas, políticas e sociais substituíram a sociedade agrária milenar por uma
sociedade urbana repleta de técnica e industrialização. Rapidamente todos os
continentes e suas nações foram incorporando aspectos culturais do Ocidente.
A Europa fervilhou como sede das metamorfoses, a América completou seu ci-
clo de independências, África, Ásia e Oceania sofreram profundas imersões do
neocolonialismo.
Façamos uma pequena síntese dos eventos que transformaram a socieda-
de. Em primeiro lugar tratemos da Revolução Industrial na Inglaterra, uma vez
que lá se criaram as condições necessárias para que o evento ocorresse.
O fenômeno que antecede e cria espaços para a primeira Revolução
Industrial é o fortalecimento da burguesia no Parlamento inglês. Pequenos
comerciantes e manufatureiros passaram a pressionar o governo absolutista
inglês contra privilégios de alguns burgueses e realizaram na Inglaterra uma
revolução burguesa que alterou profundamente o predomínio da estrutura feu-
dal. Essas mudanças traçaram o novo rumo para a Inglaterra.
O parlamento inglês durante o governo da rainha Elizabete I (1533 – 1603)
era favorável ao governo absolutista. Tratava-se de uma assembleia de repre-
sentantes da nobreza, da Igreja e alguns cidadãos livres, que normalmente de-
sempenhavam apenas o papel de consultor. Porém, no período da dinastia dos
Stuarts, o número de deputados burgueses e da gentry – classe social proprietá-
ria de terra, não pertencente a nobreza de sangue – aumentou e eles passaram
a reivindicar menores impostos e o fim da opressão política.

Os gentrys, que mais pareciam homens de negócios, eram grandes criadores de ove-
lha, destinadas a exportação de lã. Apoiados pelo Parlamento, passaram a demarcar
e cercar as terras comunais, nas quais os camponeses viviam à séculos. O enclosure
acts – cercamentos – obrigaram os camponeses a fugirem para a cidade, na qual se
estabeleceram como mão de obra barata nas diversas manufaturas.

capítulo 1 •7
As oito décadas de governo dos Stuarts foram palco de passagem do absolu-
tismo para o liberalismo. A burguesia urbana que utilizava a mão de obra cam-
ponesa, num processo denominado produção doméstica, passou a pressionar
o governo contra os monopólios, as práticas protecionistas do mercantilismo e
por uma economia mais livre.
O primeiro rei da família Stuart foi Jaime I, que era primo da rainha Elizabete
I. Ele era naquele momento rei da Escócia e, passa então a governar três países,
denominados Grã-Bretanha (Inglaterra, Irlanda e Escócia). As marcas de seu
governo foram péssimas. Primeiro ele perseguiu os religiosos católicos e calvi-
nistas para fortalecer seu poder via a religião anglicana, segundo, sua adminis-
tração tentou controlar as contas do reino aumentando os impostos existentes
e criando novos. O Parlamento se opôs a tais políticas e Jaime I, irritado, o dis-
solveu. Essa situação agravou imensamente a relação do rei com o Parlamento
e abriu espaço para o fim do absolutismo inglês.
Com a morte do rei, assume Carlos I, seu filho. Nos primeiros anos de go-
verno o jovem rei consegue reestabelecer relação com o Parlamento, porém por
conta novamente de uma política fiscal autoritária os laços se rompem outra vez.
As diversas dissoluções do Parlamento realizadas por Carlos I levaram a Grã-
Bretanha à guerra civil. O conflito ficou dividido entre católicos e anglicanos
que protegiam o rei, e puritanos e presbiterianos que defendiam o Parlamento.
Comandados pelo general inglês Oliver Cromwell a Revolução Puritana forta-
leceu a burguesia inglesa e pôs fim ao absolutismo. Em 1658 Cromwell mor-
re e uma série de conflitos ressurge na Inglaterra. Neste momento, nobres e
burgueses realizaram um acordo que possibilitava o retorno de um membro da
família Stuart a realeza, porém sem os poderes absolutistas. Carlos II assume a
monarquia. Após sua morte assume o trono Jaime II, que era seu irmão. Ambos
durante seus reinados tentaram fortalecer o catolicismo, forma de camuflar o
retorno do poder absolutista e o fim de privilégios a diversas classes.
Em 1688, perante a tentativa de retorno ao absolutismo, a burguesia junta-
mente com a gentry, organizam outra revolução. Arquitetaram a transferência
da coroa inglesa para o príncipe holandês casado com Maria Stuart. O protes-
tante Guilherme de Orange assume a coroa em novembro daquele ano prome-
tendo liberdade ao Parlamento e a manutenção do anglicanismo. Com o título
de Guilherme III, o rei se submete ao Bill of Rights – Declaração de Direitos –
que garante a governança ao Parlamento (Criar leis, aprovar e rejeitar impostos,
convocar o exército e fiscalizar os atos reais).

8• capítulo 1
Os conflitos do século XVII na Inglaterra trouxeram mudanças políticas
estruturais, que fizeram os ingleses refletirem sobre o papel do indivíduo na
sociedade civil. Inúmeros pensadores passaram a teorizar sobre esse momen-
to. Jonh Locke (1632 – 1704) foi um dos principais filósofos do período, crítico
do absolutismo e defensor do Liberalismo Econômico. Sobre a constituição de
uma sociedade civil Locke nos esclarece

O homem, nascendo, conforme provamos, com direito a perfeita liberdade e gozo in-
controlado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza, por igual a qualquer outro
homem ou grupo de homens do mundo, tem, por natureza, o poder não só de preservar
a sua propriedade - isto é, a vida, a liberdade e os bens - contra os danos e ataques
de outros homens, mas também de Julgar e castigar as infrações dessa lei por outros
conforme estiver persuadido da gravidade da ofensa e até mesmo com a morte nos
crimes em que o horror do fato o exija, conforme a sua opinião. Contudo, como qualquer
sociedade política não pode existir nem subsistir sem ter em si o poder de preservar a
propriedade e, para isso, castigar as ofensas de todos os membros dessa sociedade,
haverá sociedade política somente quando cada um dos membros renunciar ao próprio
poder natural, passando-o às mãos da comunidade em todos os casos que não lhe
impeçam de recorrer à proteção da lei por ela estabelecida. [...] Os que estão unidos em
um corpo, tendo lei comum estabelecida e judicatura para a qual apelar, com autoridade
para decidir controvérsias e punir os ofensores, estão em sociedade civil uns com os ou-
tros; mas os que não têm essa apelação em comum, quero dizer, sobre a Terra, ainda se
encontram no estado de natureza, sendo cada um, onde não há outro, juiz para si e exe-
cutor, o que constitui, conforme mostrei anteriormente, o estado perfeito de natureza. (...)
A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade natural e
se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em
juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto e paz umas
com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de
maior proteção contra quem quer que não faça parte dela. (LOCKE, 1966, p. 118-119)

Para o filósofo, conforme a leitura anterior, em primeiro lugar, o Estado nas-


ce do consenso de seus indivíduos na vontade de constituir um governo ou uma
comunidade, pensamento oposto ao dos defensores do direito divino do rei no
absolutismo. Em segundo, a constituição do Estado ocorre para preservar os
direitos dos cidadãos, tais como o direito a vida, a liberdade e a propriedade, e
não para realizar os desejos do rei absoluto.

capítulo 1 •9
A introdução desse novo modo de pensar alicerçou a transformação polí-
tica, econômica e social desejada pela burguesia. Ao associar-se ao rei, ela de-
senvolveu suas atividades artesanais e comerciais. Com isso houve a expansão
do capitalismo, ou seja, o modo burguês de produzir, baseado na propriedade
privada da matéria-prima, das ferramentas e das máquinas de produção. Nesse
contexto, houve na Inglaterra um momento de transição, pré-revolução indus-
trial, no qual os camponeses fabricavam em suas casas os produtos que ven-
diam a preços baixos aos burgueses, que por sua vez revendiam a preços bem
mais altos no mercado urbano.

1.2  A Revolução Industrial na Inglaterra


A Revolução Industrial na Inglaterra do século XVIII teve como premissa dois
fatores. O primeiro, uma revolução agrícola, onde os cercamentos transforma-
ram-se em grandes latifúndios e passaram a empregar trabalhadores assala-
riados e a produzir enormes quantidades de lã e alimentos para atender um
mercado em pleno crescimento. Segundo, os países ainda não industrializados
e suas colônias necessitavam consumir os produtos industrializados ingleses,
assim houve a ampliação do mercado consumidor. Os produtos ingleses aten-
diam, por exemplo, Portugal e Brasil.
A partir do crescimento demográfico e da ampliação dos mercados consu-
midores, iniciou-se a busca por matéria-prima diferente. Aos poucos o algodão
foi substituindo a lã na produção de tecido. O tecido de algodão, que, até o mo-
mento, era importado da Índia, passou a ser produzido na Inglaterra a custo
inferior, aumentando enormemente o consumo, ao ponto das fábricas não
conseguirem atender aos pedidos. Houve nesse momento a necessidade de
investimento em tecnologia. No ano de 1779, um inglês chamado James Watt
(1736 – 1819) criou a máquina a vapor, revolucionando para sempre a maneira
do homem produzir.
A partir da introdução da máquina a vapor, a Revolução Industrial é impul-
sionada, pois surge a fábrica moderna. Comparada a produção manufatureira,
a produção por máquinas era infinitamente superior. Algumas fábricas passa-
ram a reduzir imensamente o tempo de produção e, concomitantemente, am-
pliar inúmeras vezes a quantidade produzida. O homem foi perdendo o tra-
balho coletivo e transformando-se num operador autômato das máquinas. O

10 • capítulo 1
pequeno artesão é arrasado na competição injusta, e falido é obrigado a buscar
vaga de emprego nas grandes fábricas.
A oferta de mão de obra abundante e o acúmulo de capital originado do
mercantilismo, somado a farta reserva de carvão mineral e a posição estraté-
gica, garantiram o pioneirismo inglês na Revolução Industrial. Esses fatores
articulados possibilitaram que a Inglaterra liderasse a passagem do trabalho
manufatureiro para a maquinofatura.
Dessa maneira, para compreendermos melhor a primeira revolução indus-
trial precisamos, anteriormente, analisar a evidente transformação do trabalho
artesanal para a atividade manufaturada, até a posterior introdução das máqui-
nas. Nesse sentido, começamos a perceber que o conceito de revolução indus-
trial não se limita à introdução de máquinas na organização do trabalho, mas a
alteração na relação entre o trabalhador e o capital. Para Marx: “Não se levou em
conta ainda esta grande diferença: até que ponto os homens trabalham com má-
quinas, ou até que ponto eles trabalham como máquinas.” (MARX, 2004, p.32).
Inicialmente, partiremos da reflexão sobre o trabalho artesanal. Vamos pen-
sar no ofício de um carpinteiro. O primeiro passo de sua atividade é projetar,
ou seja, produzir intelectualmente, como será o produto de seu esforço. Assim,
o artesão desempenha sua humanidade ao racionalizar acerca de seu objeto
de produção. Em seguida, inicia o trabalho com a matéria-prima. Imaginemos
que o nosso carpinteiro produz mesas. Depois de projetar, ele deve trabalhar
com a madeira. Posteriormente, cada etapa de sua atividade é por ele contro-
lado. Até as tarefas finais de pintura e acabamento. O que deve ficar evidente é
que o artesão participou de todas as fases da produção da mesa de maneira que
quando o produto se finaliza há uma identificação com o objeto construído.
Além disso, destacamos que o carpinteiro é dono de suas ferramentas de
trabalho e da matéria-prima necessária. Portanto, ele é dono de seus meios de
produção. Assim, ele desempenha suas atividades em sua própria casa ou ofi-
cina. Outro elemento ímpar de analisarmos é o fato de o artesão poder estabe-
lecer o seu próprio ritmo de trabalho. Ou seja, é ele quem determina quando
começa, quando deve descansar ou parar.
No século XVIII na Europa eclodiu a grande transformação no mundo do tra-
balho. O ofício do artesão foi, lentamente, sendo substituído pela manufatura.
Essas mudanças vinculam-se à construção do trabalho na primeira revolução
industrial. A princípio, pensemos no fato dos trabalhadores do campo e da cida-
de procurarem trabalho em oficinas manufatureiras. O fato de desenvolveram

capítulo 1 • 11
uma ocupação em um espaço em que outra pessoa é dona dos meios de produ-
ção altera radicalmente a relação do trabalhador com seu trabalho.
Vamos nos atentar detalhadamente nesses aspectos. A imagem do artesão
agora é substituída pela figura de um trabalhador que não é mais dono de suas
ferramentas e, portanto, deve vender a sua força de trabalho. Neste instante,
não será mais ele quem determina o ritmo de produção. O patrão, centrado no
lucro, impõe a jornada de trabalho.
Ao mesmo tempo, outra mudança estrutural assombra a vida dos trabalha-
dores: a divisão do trabalho. Como o dono da oficina quer acelerar o ritmo da
produção, determina que cada trabalhador desempenhe uma única atividade:
um aperta o parafuso, outro lixa, outro martela. Portanto, o trabalhador não
tem mais uma visão da totalidade da produção. Cada vez mais, passa a se sentir
desvinculado de sua produção, o que gera a acentuada alienação do trabalho,
conceituada por Marx. Quando as máquinas foram introduzidas nesse contex-
to de produção foi possível acelerar ainda mais o processo de acumulação do
capital e consolidou-se na Inglaterra a Primeira Revolução Industrial.
Esse salto tecnológico possibilitou uma produção de excedente antológica.
Explicitamente, o aumento tecnológico não se articulou a melhoria das condi-
ções de trabalho senão possibilitou mais diretamente a acumulação dos donos
dos meios de produção. A primeira revolução industrial utilizou como fonte de
energia o carvão mineral e o ferro como matéria-prima. A indústria têxtil teve
um enorme papel nesse processo de inovação na produção. Por fim, o capitalis-
mo industrial passou a dominar o modo de produção.
Podemos perceber que a partir da estruturação da Revolução Industrial ocor-
rem amplos investimentos na pesquisa científica. A ascensão da burguesia pos-
sibilita o desenvolvimento de inúmeras técnicas e da ciência. O termo ciência
era utilizado já nos meados do século XVII, mas tornou-se usual no século XIX.
Quando lemos o termo Ciência Moderna assumimos que o homem produ-
zia ciência antes, porém dentro de outros padrões. Muitos autores defendem a
ideia que o filósofo inglês Francis Bacon é o pai da Ciência Moderna.
Em seu livro Novum Organum (Novo Instrumento) de 1620 Francis Bacon
elabora questões sobre o pensamento humano, trazendo novos elementos me-
todológicos. Seu texto marca a quebra com o pensamento escolástico medieval.
O pensador inglês postulava a divisão do conhecimento em duas partes: o di-
vino – trata da natureza como obra de Deus; o humano – compreensão do ho-
mem sobre o mundo. A partir dessa divisão Bacon elabora diversos textos para

12 • capítulo 1
esclarecer a história e os progressos do pensamento humano, demonstrando
concomitantemente sua proposta metodológica para os estudos da ciência.
Seu empirismo tratava de observar, descrever, classificar, comparar, eliminar
e desse processo retirar resultados possíveis para um fenômeno. Vejamos no
trecho a seguir o modelo de ciência que Bacon pretende superar:

Deve-se buscar não apenas uma quantidade muito maior de experimentos, como tam-
bém de gênero diferente dos que até agora nos têm ocupado. Mas é necessário, ain-
da, introduzir-se um método completamente novo, uma ordem diferente e um novo
processo, para continuar e promover a experiência. Pois a experiência vaga, deixada
a si mesma, como antes já se disse, é um mero tateio, e presta-se mais a confundir
os homens que a informá-los. Mas quando a experiência proceder de acordo com leis
seguras e de forma gradual e constante, poder-se-á esperar algo de melhor da ciência.
(BACON, 1620, p. 42)

No livro Novum Organum, o filósofo opera a diferença entre a investigação


que se baseia em acasos e um método que busque observação e experimentos
programados. Vejamos a metáfora criada por ele para exemplificar o avanço
cientifico proposto.

Os que se dedicaram às ciências foram ou empíricos ou dogmáticos. Os empíricos, à


maneira das formigas, acumulam e usam as provisões; os racionalistas, à maneira das
aranhas, de si mesmos extraem o que lhes serve para a teia. A abelha representa a
posição intermediária: recolhe a matéria prima das flores do jardim e do campo e com
seus próprios recursos a transforma e digere. Não é diferente o labor da verdadeira
filosofia, que se não serve unicamente das forças da mente, nem tampouco se limita
ao material fornecido pela história natural ou pelas artes mecânicas, conservado intato
na memória. Mas ele deve ser modificado e elaborado pelo intelecto. Por isso muito se
deve esperar da aliança estreita e sólida (ainda não levada a cabo) entre essas duas
faculdades, a experimental e a racional. (BACON, 1620, p. 57)

No intuito de fortalecer tal aliança Bacon cria para seu modelo investigati-
vo as tábuas de investigação. Trata-se de um processo que segue a tríade afir-
mação ou presença; negação ou ausências e por último a comparação entre as
duas primeiras para compreensão do fenômeno.

capítulo 1 • 13
Por fim Bacon afirma o poder da ciência procurando ajustar os conheci-
mentos divino e humano,

Pelo pecado o homem perdeu a inocência e o domínio das criaturas. Ambas as perdas
podem ser reparadas, mesmo que em parte, ainda nesta vida; a primeira com a religião
e com a fé, a segunda com as artes e com as ciências. Pois a maldição divina não tor-
nou a criatura irreparavelmente rebelde; mas, em virtude daquele diploma: Comerás do
pão com o suor de tua fronte,261 por meio de diversos trabalhos (certamente não pelas
disputas ou pelas ociosas cerimônias mágicas), chega, enfim, ao homem, de alguma
parte, o pão que é destinado aos usos da vida humana. (Bacon, 1620, p. 232)

1.3  A Revolução Francesa


Para os historiadores do tema, a Revolução Francesa demarca o tempo de tran-
sição entre os profundos mecanismos do absolutismo e mercantilismo para a
ascensão da burguesia e do sistema capitalista. Durante a monarquia absolu-
tista francesa, a burguesia ampliou sua capacidade de comércio e obteve diver-
sos benefícios. No entanto, ao final do século XVIII, o absolutismo representa-
va enorme obstáculo aos avanços burguês.
A situação complicara-se tanto na vida urbana quanto na vida rural. Os pe-
quenos proprietários de terra e os camponeses sofriam com a alta desenfreada
de impostos cobrados pelo rei. Assim, um questionamento começou a nebular
pela França: como remover o rígido poder absoluto do rei?
Os franceses foram criadores e ao mesmo tempo influenciados pelo pensa-
mento iluminista que marcou o século XVIII. Como vimos anteriormente, as
revoluções burguesas na Inglaterra haviam alterado o quadro de poder, dando
a burguesia papel relevante no Parlamento inglês. De olho nas mudanças ocor-
ridas na organização política de sua vizinha, a França passou por um processo
de lutas e transformações tão profundas que a Revolução Francesa serve a al-
guns historiadores como o marco inaugural da Contemporaneidade.
Para compreendermos a revolução faz-se necessário desenhar a conjuntura
francesa do período. As características da França no século XVIII são marcan-
tes. No último quartel do século a população francesa era aproximadamente
de 25 milhões de habitantes. O país era o mais populoso do ocidente europeu,

14 • capítulo 1
e sua população dividia-se em estamentos, por isso é reconhecida como uma
sociedade estamental. Isso significa que homens e mulheres estavam dispos-
tos em três ordens. A primeira ordem era a do clero, a segunda a nobreza, e a
terceira o restante da população – camponeses, artesãos e burgueses.
As ordens também eram chamadas de estados. O primeiro estado constituí-
do pelo clero contava com 120 mil habitantes e estava dividido em dois grupos:
o alto clero – eram religiosos pertencentes às famílias nobres que ocupavam
cargos de bispos, cônegos e abades. Baixo clero – eram pessoas oriundas de fa-
mílias menos abastadas que conduziam as igrejas mais simples. Esses sacerto-
des comungavam com as ideias da revolução.
O segundo estado era a Nobreza, contava com aproximadamente 350 mil
pessoas. Os nobres se dividiam entre três subgrupos: a nobreza cortesã, a nobre-
za provincial e a nobreza de toga. Os primeiros viviam ao redor do rei no palácio
de Versalhes. O segundo grupo vivia no interior e estava cada vez mais empobre-
cido. O terceiro era formado por burgueses que adquiriam títulos de nobre.
O terceiro estado abarcava o restante da população que se aproximava de
24 milhões de pessoas. Este número representava noventa e seis por cento da
população francesa, somente essa informação pode nos remeter aos anseios
revolucionários. Explicaremos adiante. O terceiro estado se dividia entre cam-
poneses; trabalhadores urbanos: artesãos, assalariados e desempregados; pe-
quena-média-alta burguesia (aqui encontravam-se pequenos comerciantes,
profissionais liberais, banqueiros e grandes comerciantes).
Nesse período a economia francesa era dependente do campo. A agricultura
produzida por aproximadamente 20 milhões de habitantes gerava quase toda
a renda do país. Grande parte dos camponeses vivam ainda sobre o regime da
servidão feudal. O comércio sofria com as intervenções do estado e com os im-
postos feudais pagos aos donos das terras no interior. A indústria não avança
por conta do alto controle pelas corporações de ofícios que impediam o avanço
das técnicas.
Em 1774 assume o trono francês Luís XVI, neto de Luís XIV, e leva a popu-
lação francesa a esperança de melhorias na crise pela qual passava a nação. No
entanto, nos primeiros anos de seu reinado, Luís XVI entra em guerra com a
Inglaterra ao apoiar a luta de independência dos Estados Unidos da América.
Os problemas econômicos oriundos deste enorme investimento levaram o go-
verno francês aumentar ainda mais a carga de impostos.

capítulo 1 • 15
A política fiscal francesa desse período beneficiava a nobreza e o clero, que
eram isentos do pagamento de impostos. Portanto, toda carga tributária recaia
sobre o terceiro estado. Tal situação gerava descontentamento geral, dos cam-
poneses aos banqueiros burgueses. Para enfrentar a problemática e recuperar
as finanças o rei nomeou o fisiocrata Anne-Robert Jacques Turgot para o cargo
de Controlador Geral das Finanças. Em seu texto denominado Réflexions sur
la formation et la distribution des richesses, Turgot defende que a riqueza to-
tal de uma nação é proveniente da somatória dos lucros líquidos das culturas,
comércio e indústria e a importância da produção agrícola na França. Ressalta
também o valor da classe produtiva por transformar seu trabalho em produtos.
Seguidor das ideias liberais inglesas Turgot propõe ao rei a igualdade de taxa-
ções. Ele é demitido do cargo e seus sucessores seguem o mesmo caminho.
Perante o impasse da política fiscal, Luís XVI é levado por seus ministros
a convocar os Estados Gerais – assembleia composta por representantes do
primeiro, segundo e terceiro estados. O resultado foi excelente pretexto para
o terceiro estado introduzir reivindicações que criarim enorme alvoroço na
assembleia.
Os principais pontos de discussão colocados pelo terceiro estado eram: au-
mento no número de representantes, para atingir paridade com o primeiro e
segundo estados que geralmente votavam em benefício próprio e o voto indivi-
dual e não mais por estado.
Desde esse momento a França foi tomada por uma enxurrada de panfletos
e jornais que discutiam as reivindicações elaboradas para a Assembleia. O rei
e a nobreza assustados com a reação popular abrem os Estados Gerais pontu-
ando que somente seriam discutidos temas relacionados a finanças francesas.
O terceiro estado, prevendo a possibilidade de manobra política pelos outros
dois estados, proclama a Assembleia Geral Nacional para garantir que suas rei-
vindicações fossem ouvidas. O rei tomado pelo medo manda fechar a sala de
reuniões. Os representantes do terceiro estado reuniram-se então em outro sa-
lão e proclamaram a Assembleia Nacional para redigir uma nova constituição
para a França. Logo, a pedido do rei, primeiro e segundo estados se juntaram a
Assembleia. Com o desejo de escrever uma nova constituição os deputados do
terceiro estado, alguns padres e nobres demonstraram a força do movimento
revolucionário, pretendia-se dar fim ao poder absoluto, pois o rei estaria a ser-
viço da nova Carta Magna.

16 • capítulo 1
Vejamos a narrativa de Mario Schmidt sobre esta etapa da revolução
francesa.

Geralmente, quando falamos em revolução pensamos em algo sangrento, com multi-


dões trocando tiros com defensores da classe dominante. No caso da França, a revo-
lução poderia ter acontecido com tranquilidade: a assembleia faria a nova Constituição
e todos passariam a obedecê-la. Na verdade, as revoluções são sangrentas porque as
antigas classes dominantes usam a violência para impedir a perda de privilégios. Foi o
que aconteceu na França. O rei Luís XVI ordenou que a guarda cercasse o prédio da As-
sembleia Constituinte. Naquele momento, o deputado Mirabeau foi ao encontro dos sol-
dados e declarou de peito aberto: “diga ao rei que estamos aqui representando o povo, e
só seremos desalojados pela força das armas”. Acontece que a força das armas não es-
tava mais com o rei. A capital inteira respirava os novos acontecimentos. Os deputados
eram a esperança de mudanças. Por ordem de Luís XVI, Paris e o palácio de Versalhes
(moradia do rei) foram cercados por dez regimentos do marechal De Broglie, conhecido
pela brutalidade das ordens. Quem levaria a melhor? Em respostas ouviu-se um único
grito indignado entre os sans-culottes: “Aux armes, citoyens!” (Às armas, cidadãos!) Era
o dia 14 de julho de 1789, data oficial do começo da Revolução Francesa. Milhares de
pessoas, inclusive mulheres, crianças e soldados desertores, invadiram os arsenais reais
e tomaram espadas, fuzis e pólvora. A Bastilha, antiga prisão, símbolo da opressão do
Antigo Regime, foi tomada pela multidão enfurecida. (SCHMIDT, 2005, p.282)

Comumente encontramos a Revolução Francesa divida em três partes. Não


detalharemos aqui cada período porque nossa intenção direciona-se mais para
os resultados por ela produzidos, do que para os acontecimentos de cada fase.

CONEXÃO
Para melhor visualizar as etapas da Revolução Francesa e seus conflitos internos assista ao
filme franco-polonês dirigido por Andrzej Wajda: Danton – o processo da revolução. Gravado
no início da década de 1980 o filme narra a trajetória do revolucionário Danton num período
da revolução conhecido como Terror. Os líderes da revolução entram em conflitos filosóficos
e o choque entre Robespierre e Danton se intensifica.

capítulo 1 • 17
A primeira fase inicia-se com os Estados Gerais já em 1789. As principais
novidades do período são o reconhecimento da soberania da nação, fim dos
privilégios dos nobres e proclamação das liberdades básicas. A segunda fase
de predomínio ideológico jacobino, de 1793 a 1794, tem como marco a apro-
vação da nova Constituição, que proclama o voto universal e a república. A re-
volução popular se intensifica nesse momento, com o fim dos direitos feudais
e a desapropriação de terras dos nobres e da igreja. A última fase, terceira, é
dominada pela ideologia burguesa, pois há retrocesso nas conquistas demo-
cráticas e a volta do liberalismo político-econômico. Nesse período uma nova
Constituição é votada (1795), e o texto demonstra claramente a ascensão dos
direitos políticos burgueses.
A Revolução Francesa é notadamente um dos acontecimentos históricos
que mais gerou debates e publicações. Ela marca o fim da sociedade do Antigo
Regime ao introduzir ideias de igualdades de direitos entre os homens. O do-
cumento Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de agosto de 1789
proclamava a liberdade e igualdade dos homens perante a lei, o direito a pro-
priedade e o direito de liberdade de opinião. Essa ruptura demarca a força po-
lítica e filosófica do movimento. O pensamento dos séculos seguintes será in-
fluenciado profundamente por essas características.
A historiografia trata de diferentes formas a conceituação da Revolução
Francesa. Por exemplo, o pensamento marxiano defende que os maiores inte-
ressados no processo revolucionário foram os burgueses. Por meio da revolu-
ção conseguiram força política e desenharam nova ordem ao colocarem fim no
absolutismo e feudalismo. Com a estrutura capitalista organizada a ideologia
liberal se instala na sociedade e produz reverberações até os nossos dias. Para o
historiador Eric Hobsbawn, o movimento revolucionário francês foi impulsio-
nado pela grande massa populacional apartada do poder. As transformações
sociais e econômicas do período alicerçaram a democracia e o liberalismo es-
senciais para a contemporaneidade.

18 • capítulo 1
1.4  O período Napoleônico
O fim da Revolução Francesa é marcado por um Golpe de Estado. Em 10 de no-
vembro de 1799 - o golpe de 18 de Brumário.

Durante a Revolução Francesa foi criado um calendário próprio que seguia as estações
do ano e o ano I foi contado a partir do fim da monarquia. Por exemplo, o segundo mês
era o das brumas (brumaire – de 23 de outubro a 21 de novembro), o terceiro era
frimário (frimas, geada em francês – de 22 de novembro a 21 de dezembro) e assim
por diante.

O governo de Napoleão Bonaparte, iniciado pelo golpe, durou 15 anos.


Podemos dividir em três etapas seu domínio sobre a França: de 1799 a 1804
governou sob a forma de consulado (uma tríade na qual Napoleão ocupava o pa-
pel principal); de 1804 a 1814 império, o trono foi alcançado por um plebiscito
no qual sessenta por cento da população aprovava a substituição do Consulado
pelo Império; em 1815 o curto governo de cem dias, após o exílio na ilha de
Elba.
No primeiro período, o do Consulado, percebemos o avanço da alta burgue-
sia nas instancias dirigentes da França. A constituição de 1799 centralizava o
poder e minimizava os avanços democráticos do período revolucionário. A opo-
sição ao governo foi sufocada pelos polícias e forte censura à imprensa.
Para Karl Marx, o governo de Napoleão Bonaparte,

capítulo 1 • 19
criou na França as condições sem as quais não seria possível desenvolver a livre con-
corrência, explorar a propriedade territorial dividida e utilizar as forcas produtivas in-
dustriais da nação que tinham sido libertadas; além das fronteiras da França ele varreu
por toda parte as instituições feudais, na medida em que isto era necessário para dar à
sociedade burguesa da França um ambiente adequado e atual no continente europeu.
Uma vez estabelecida a nova formação social, os colossos antediluvianos desaparece-
ram, e com eles a Roma ressurrecta - os Brutus, os Gracos, os Publícolas, os tribunos.
Os senadores e o próprio César. A sociedade burguesa, com seu sóbrio realismo, havia
gerado seus verdadeiros intérpretes e porta-vozes nos Says, Cousins, Royer-Coilards,
Benjamm Constants e Guizots; seus verdadeiros chefes militares sentavam-se atrás
das mesas de trabalho e o cérebro de toucinho de Luís XVIII era a sua cabeça política.
Inteiramente absorta na produção de riqueza e na concorrência pacífica, a sociedade
burguesa não mais se apercebia de que fantasmas dos tempos de Roma haviam velado
seu berço. Mas, por menos heróica que se mostre hoje esta sociedade, foi não obstante
necessário heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil e batalhas de povos para torná-la
uma realidade. E nas tradições classicamente austeras da república romana, seus gla-
diadores encontraram os ideais e as formas de arte, as ilusões de que necessitavam
para esconderem de si próprios as limitações burguesas do conteúdo de suas lutas e
manterem seu entusiasmo no alto nível da grande tragédia histórica.

Conforme nos demonstra o texto marxiano do livro 18 de Brumário, os ho-


mens não fazem sua própria história apoiados nas sociabilidades transmitidas
e legadas pelo passado. A configuração pós Revolução Francesa solidificada pelo
poder napoleônico lembra em muitos aspectos a estrutura sócio-política romana.
Em seus primeiros passos de governante, Bonaparte conseguiu dirimir os
conflitos externos contra Grã-Bretanha, Áustria e Rússia. O menor investimen-
to em questões externas permitiu ao primeiro-cônsul a pacificação interna. A
criação do Banco da França e da Sociedade Nacional de Fomento a Indústria
efetivaram o controle das finanças francesa e a recuperação econômica. O con-
trole da emissão de moeda e a proteção da indústria nacional incentivaram o
consumo e produções internas. No campo da educação realizou inúmeros in-
vestimentos para formar o cidadão francês, a educação pública foi considerada
essencial para a formação moral e política. Em relação à Igreja houve reaproxi-
mação com o reconhecimento do catolicismo como religião maioritária no país
e com o pagamento do salário do clero pelo Estado.

20 • capítulo 1
Entre as ações de Napoleão o Código Civil de 1804 merece destaque. Nessa
legislação encontramos a institucionalização dos anseios burgueses na revo-
lução. O texto regulamentava a igualdade de todos perante a lei, o direito de
propriedade privada protegida pelo Estado, proibia a organização sindical e
censurava o direito a greve, separava o casamento civil do religioso, defendia
a liberdade individual e ratificava a desapropriação de terras do período revo-
lucionário. Com isso Napoleão conseguiu o apoio dos diversos setores sociais,
burguesias, camponeses e exército.
No mesmo ano Napoleão Bonaparte fez-se coroar imperador da França. A
marca maior de seu império foram as conquistas de territórios europeus. Ele
conseguiu dominar na Europa continental territórios do norte da Holanda ao
sul da Itália. Suas conquistas transformaram o modus político de quase toda
a Europa. As velhas instituições aristocráticas foram aos poucos sendo substi-
tuídas por instituições de funcionamento burguês. Porém, sua maior concor-
rente, a Inglaterra, estava além do continente. Para tentar sufocar a economia
inglesa, Napoleão criou o Bloqueio Continental, no qual as nações europeias fi-
cavam proibidas de comerciar com a Inglaterra. Ao longo dos anos essa estraté-
gia perdeu força e tornou-se ineficaz. As matérias-primas oriundas da América
não chegavam à França pois a esquadra marítima inglesa era muito forte. Por
outro lado, os países europeus em sua maioria agrícolas dependiam dos produ-
tos industrializados ingleses. Somando a esse fator, os territórios conquistados
foram lentamente se organizando contra a opressão francesa, que impunha
sua lógica burguesa de funcionamento e não respeitava as culturas locais.
Em sua última tentativa de invasão, na Rússia, Napoleão foi derrotado. Com
um exército de aproximadamente 600 mil homens a invasão foi um fracasso
completo. Os russos utilizaram uma tática de guerra conhecida como “terra ar-
rasadas”, na qual destrói-se tudo diante da invasão inimiga – casas são incen-
diadas, plantações destruídas, águas envenenadas, etc.
Após essa derrota, em 1814, Napoleão foi atacado por Grã-Bretanha, Áustria,
Rússia e Prússia. Derrotado foi exilado para a ilha de Elba, e o rei Luís XVIII as-
sumiu o trono francês. No ano seguinte, Napoleão arquiteta sua fuga e apoiado
pelo exército invade Paris e passa a governar por mais cem dias. Na batalha de
Waterloo de 18 julho de 1815 a derradeira derrota de Napoleão se consuma. Ao
final de sua trajetória política, o francês pede a proteção ao governo inglês e é
encaminhado para o exílio na ilha de Santa Helena, na costa africana, aonde
veio a falecer.

capítulo 1 • 21
CONEXÃO
Para enriquecer seu conhecimento leia o livro Napoleão: o mito salvador, de Jean Tulard. O
texto é ótimo material para discutirmos se as vontades individuais são fundamentais para as
transformações sociais em larga escala.

1.5  O pensamento contemporâneo pós


revoluções do século XVIII – XIX

A reflexão e produção do pensamento histórico é campo central para todo his-


toriador. A historiografia é a maneira pela qual os historiadores verificam a His-
tória das ideias, dos pensamentos, do imaginário de um determinado período.
Para Kalina V. Silva o exame de diversos discursos históricos

é a única forma de um historiador ser objetivo e isento é conhecendo o trabalho e os


erros dos que vieram antes. A historiografia seria assim a melhor vacina contra a in-
genuidade. Nesse contexto, a historiografia, mais do que a descrição da sucessão das
escolas históricas, é uma forma de analisar os mecanismos que envolvem a produção
do discurso dos historiadores, percebendo esses discursos em relação ao tempo e a
sociedade em que cada historiador está inserido. (SILVA, 2008, p. 189-190)

A reflexão crítica parte do acumulo de conhecimento, quanto mais conhe-


cemos do nosso campo de estudo melhor produziremos textos históricos. Para
compreendermos o pensamento do século XIX e XX faz-se necessário refletir-
mos sobre as bases que os fundamentaram. Tanto a Revolução Industrial na
Inglaterra quanto a Revolução Francesa foram pilares para instalação da socie-
dade com a qual nos deparamos. As formas de agir e pensar estão diretamen-
te conectadas aos processos históricos experienciados por aqueles homens e
mulheres. Pensar todo o processo de transformações pós Revolução Industrial
interfere no modo como miramos nossas relações cotidianas. As interferên-
cias no mundo do trabalho são infinitas e fluentes, muitos autores afirmam
já termos atingido a quarta revolução tecnológica. Nosso ritmo e tempo foram

22 • capítulo 1
alterados sobremaneira ao ponto da contemporaneidade pregar a conexão de
vinte quatro horas por dia. Já a Revolução Francesa abriu o caminho para de-
bates infindáveis sobre os direitos humanos. Obviamente que o momento da
revolução não colocou fim a opressão em diversos patamares, porém foram
inúmeras as conquista que embarcaram no movimento de igualdade, liberda-
de e fraternidade.
Para a o historiador inglês Eric J. Hobsbawm a era das revoluções revela as
transformações que alicerçaram o nascimento da Idade Contemporânea, mes-
mo tratando de movimentos em larga escala nacionais, França e Inglaterra, o
autor destaca a importância mundial dessas metamorfoses.
A seguir leia o trecho introdutório do livro A Era das Revoluções 1789-1848.

LEITURA
As palavras são testemunhas que muitas vezes falam mais alto que os documentos. Conside-
remos algumas palavras que foram inventadas, ou ganharam seus significados modernos,
substancialmente no período de 60 anos de que trata este livro. Palavras como "indústria",
"industrial", "fábrica", "classe média" ', "classe trabalhadora", "capitalismo" e "socialismo". Ou
ainda "aristocracia" e "ferrovia", "liberal" e "conservador" como termos políticos, "nacionalida-
de", "cientista" e "engenheiro", "proletariado" e "crise" (económica). "Utilitário" e "estatística",
"sociologia" e vários outros nomes das ciências modernas, "jornalismo" e "ideologia", todas
elas cunhagens ou adaptações deste período *. Como também "greve" e "pauperismo". Ima-
ginar o mundo moderno sem estas palavras (isto é, sem as coisas e conceitos a que dão
nomes) é medir a profundidade da revolução que eclodiu entre 1789 e 1848, e que constitui
a maior transformação da história humana desde os tempos remotos quando o homem in-
ventou a agricultura e a metalurgia, a escrita, a cidade e o Estado. Esta revolução transfor-
mou, e continua a transformar, o mundo inteiro. Mas ao considerá-la devemos distinguir cui-
dadosamente entre os seus resultados de longo alcance, que não podem ser limitados a
qualquer estrutura social, organização política ou distribuição de poder e recursos internacio-
nais, e sua fase inicial e decisiva, que estava intimamente ligada a uma situação internacional
e social específica. A grande revolução de 1789-1848 foi o triunfo não da "indústria" como
tal, mas da indústria capitalista; não da liberdade e da igualdade em geral, mas da classe
média ou da sociedade "burguesa" liberal; não da "economia moderna" ou do "Estado mo-
derno", mas das economias e Estados cm uma determinada região geográfica do mundo
(parte da Europa e alguns trechos da América do Norte), cujo centro eram os Estados rivais
e vizinhos da Grã-Bretanha e França. A transformação de 1789-1848 é essencialmente o

capítulo 1 • 23
levante gémeo que se deu naqueles dois países c que dali se propagou por todo o mundo.
Mas não seria exagerado considerarmos esta dupla revolução - a francesa, bem mais política,
e a industrial (inglesa) - não tanto como uma coisa que pertença à história dos dois países
que foram seus principais suportes e símbolos, mas sim como a cratera gêmea de um vulcão
regional bem maior. O fato de que as erupções simultâneas ocorreram na França e na Ingla-
terra, e de que suas características difiram tão pouco, não é nem acidental nem sem impor-
tância. Mas do ponto de vista do historiador, digamos, do ano 3 000, assim como do ponto de
vista do observador chinês ou africano, é mais relevante notar que elas ocorreram em algum
ponto do noroeste europeu e em seus prolongamentos de além-mar, e que não poderiam sob
hipótese alguma ter ocorrido naquela época em qualquer outra parte do mundo. É igualmen-
te relevante notar que elas são, neste período, quase inconcebíveis sob qualquer outra forma
que não a do triunfo do capitalismo liberal burguês. É evidente que uma transformação tão
profunda não pode ser entendida sem retrocedermos na história bem antes de 1789, ou
mesmo das décadas que imediatamente a precederam e que refletem claramente (pelo me-
nos em retrospectiva) a crise dos anciens regimes da parte noroeste do mundo, que seriam
demolidos pela dupla revolução. Quer consideremos ou não a Revolução Americana de 1776
uma erupção de significado igual ao das erupções francobritânicas, ou meramente como seu
mais importante precursor e estimulador imediato, quer atribuamos ou não uma importância
fundamental às crises constitucionais e às desordens e agitações económicas de 1760-89,
elas podem no máximo evidenciar a oportunidade e o ajustamento cronológico da grande
ruptura e não explicar suas causas fundamentais. Para nossos propósitos é irrelevante o
quanto devemos retroceder na história - se até a Revolução Inglesa da metade do século
XVII, se até a Reforma e o princípio da conquista do mundo pelo poderio militar europeu e a
exploração colonial do início do século XVI, ou mesmo mais para trás, já que a análise em
profundidade nos levaria muito além das fronteiras cronológicas deste livro. Aqui precisamos
simplesmente observar jque as forças econômicas e sociais, as ferramentas políticas e inte-
lectuais desta transformação já estavam preparadas, em todo o caso pelo menos em uma
parte da Europa suficientemente grande para revolucionar o resto. Nosso problema não é
traçar o aparecimento de um mercado mundial, de uma classe suficientemente ativa de em-
presários privados, ou mesmo de um Estado dedicado (na Inglaterra) à proposição de que o
aumento máximo dos lucros privados era o alicerce da política governamental. Tampouco
constitui problema nosso traçar a evolução da tecnologia, tio conhecimento cientifico ou da
ideologia de uma crença no progresso individualista, secularista e racionalista. Por volta de
1780 podemos considerar a existência destas crenças como certas, embora não possamos
ainda assumir como certo que elas fossem suficientemente poderosas ou disseminadas. Ao
contrário, devemos, quando muito, evitar a tentação de desprezar a novidade da dupla revo-

24 • capítulo 1
lução ante a familiaridade de suas roupagens externas, ante o inegável fato de que as roupas,
maneiras e prosa de Robespierre e Saint-Just não estariam deslocadas num salão do ancien
regime, de que Jeremy Bentham, cujas ideias reformistas expressavam a burguesia britânica
por volta de 1830, era exatamente o mesmo homem que propusera as mesmas ideias a
Catarina, a Grande, da Rússia, e de que as mais extremadas declarações da economia políti-
ca da classe média vieram de membros da Câmara dos Lordes inglesa do século XVIII. As-
sim, nosso problema é explicar não a existência destes elementos de uma nova economia e
sociedade, mas o seu triunfo; traçar não a evolução do gradual solapamento que foram exer-
cendo em séculos anteriores, minando a velha sociedade, mas sua decisiva conquista da
fortaleza. É é também problema nosso traçar as profundas mudanças que este súbito triunfo
trouxe para os países mais imediatamente afetados por ela e para o resto do mundo que se
achava então exposto a todo o impacto explosivo das novas forças, o "burguês conquistador",
para citar o título de uma recente história do mundo deste período. Inevitavelmente, visto que
a dupla revolução ocorreu numa parte da Europa, e seus efeitos mais imediatos e óbvios fo-
ram mais evidentes lá, a história de que trata este livro é sobretudo regional. Também inevita-
velmente, visto que a revolução mundial espalhou-se para fora da dupla cratera da Inglaterra
e da França, ela inicialmente tomou a forma de uma expansão europeia e de conquista do
resto do mundo. De fato, sua mais notável consequência para a história mundial foi estabele-
cer um domínio do globo por uns poucos regimes ocidentais (e especialmente pelo regime
britânico) que não tem paralelo na história. Ante os negociantes, as máquinas a vapor, os
navios e os canhões do Ocidente - e ante suas ideias -, as velhas civilizações e impérios do
mundo capitularam e ruíram. A Índia tornou-se uma província administrada pelos procônsules
britânicos, os Estados islâmicos entraram em crise, a África ficou exposta a uma conquista
direta. Até mesmo o grande império chinês foi forçado a abrir suas fronteiras à exploração
ocidental em 1839-42. Por volta de 1848, nada impedia o avanço da conquista ocidental
sobre qualquer território que os governos ou os homens de negócios ocidentais achassem
vantajoso ocupar, como nada a não ser o tempo se colocava ante o progresso da iniciativa
capitalista ocidental. E ainda assim a história da dupla revolução não é meramente a história
do triunfo da nova sociedade burguesa. É taníbém a história do aparecimento das forças que,
um século depois de 1848, viriam transformar a expansão em contração. E mais ainda, por
volta de 1848, esta extraordinária mudança de destinos já era até certo ponto visível. Natu-
ralmente, a revolta mundial contra o Ocidente, que domina a metade do século XX, era então
apenas escassamente discernível. Somente no mundo islâmico podemos observar os primei-
ros estágios do processo pelo qual os que foram conquistados pelo Ocidente adotaram suas
ideias e técnicas para se virar contra ele: no início da reforma interna de ocidentalização do
império turco, na década de 1830, c sobretudo na desprezada e significativa carreira de

capítulo 1 • 25
Mohammed Ali no Lgito. Mas, dentro da Europa, as forças e ideias que projetavam a substitui-
ção da nova sociedade triunfante já estavam aparecendo. O "espectro do comunismo" já as-
sustava a Europa por volta de 1848. E foi exorcizado nesse mesmo ano. Depois disso, duran-
te muito tempo ficaria impotente como o são de fato os espectros, especialmente no mundo
ocidental mais imediatamente transformado pela dupla revolução. Mas se dermos uma olhada
no mundo na década de 1970, não seremos tentados a subestimar a força histórica do socia-
lismo revolucionário e da ideologia comunista nascidos de uma reação contra a dupla revolu-
ção e que por volta de 1848 tinham encontrado sua primeira formulação clássica. O período
histórico que começa com a construção do primeiro sistema fabril do mundo moderno em
Lancashire e com a Revolução Francesa de 1789 termina com a construção de sua primeira
rede de ferrovias e a publicação do Manifesto Comunista. (HOBSBAWM, 1977, p.15-19).

ATIVIDADES
01. Leia com atenção a citação de Ianni e responda as duas questões abaixo: “O mercan-
tilismo, ou a acumulação originária, iniciava um amplo processo de europeização do mundo.
Simultaneamente, a Europa sentia que se transformava, em sua fisionomia social, econômica,
política e cultural. Estava em marcha a revolução burguesa.” (IANNI).
a) Explique o que você compreendeu sobre o processo de europeização do mundo.
b) Quais as principais características da revolução burguesa?

02. Leia com atenção a citação de Marx retirada da Carta ao povo: “O domínio do homem
sobre a natureza é cada vez maior; mas, ao mesmo tempo, o homem se transforma em es-
cravo de outros homens ou de sua própria infâmia.” Explique a citação relacionando-a com a
Revolução Industrial.

03. São corretas as seguintes transformações ocorridas após as Revoluções Industriais,


exceto:
a) intensificação do êxodo rural e reconfiguração do espaço urbano.
b) mudança da relação do homem com o tempo, visto que a fábrica passa a determinar o
ritmo de trabalho.
c) melhoria das condições de vida de toda a população, visto que o aumento de tecnologia
é sempre sinônimo do progresso na qualidade de vida.
d) crescente alienação no trabalho fabril.
e) aumento da produtividade capaz de criar novos mercados de consumo.

26 • capítulo 1
04. Bacon criou uma interessante analogia para descrever caminhos do pensamento filosó-
fico. “Os empíricos, à maneira das formigas, acumulam e usam as provisões; os racionalistas,
à maneira das aranhas, de si mesmos extraem o que lhes serve para a teia. A abelha repre-
senta a posição intermediária: recolhe a matéria prima das flores do jardim e do campo e com
seus próprios recursos a transforma e digere.” Explique a comparação descrita pelo autor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação
da Natureza. 1620.<http://br.egroups.com/group/acropolis/> Disponível em: http://www.
dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2278
HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções 1789-1848. Rio de Janeiro, Paz e Temi, 1977.
MARX, Karl. 18 de Brumário de Louis Bonaparte. 1852 Fonte: The Marxists Internet Archive .
SCHMIDT, Mario Furley. Nova história crítica. Volume único. 1.ed. – São Paulo: Nova Geração, 2005.
SILVA, Kalina Vanderlei. Dicionário de conceitos históricos. 2.ed. – São Paulo: Contexto, 2008.

capítulo 1 • 27
28 • capítulo 1
2
Iluminismo
Este capítulo pretende analisar a base do pensamento racional ocidental. Para
tanto situa o movimento iluminista na lógica de uma revolução intelectual bur-
guesa responsável por reconfigurar a ordem política europeia. Esse movimento
reafirma a necessidade de transformação da lógica do Antigo Regime e possibi-
lita a alteração na lógica de pensamento na Europa.

OBJETIVOS
•  Localizar no contexto europeu a eclosão de uma nova perspectiva de pensamento: a ra-
cionalidade.
•  Identificar o discurso de Locke na sistematização do pensamento liberal.
•  Reconhecer o cartesianismo como movimento relevante das ciências naturais e exatas.
•  Analisar a construção do discurso iluminista por meio do pensamento de Kant.
•  Discutir princípios do idealismo alemão.

30 • capítulo 2
2.1  O Iluminismo
Investigar os meios naturais e sociais para compreender o mundo data das pri-
meiras civilizações. As sociedades primitivas buscavam coletar conhecimentos
acerca das plantas, dos animais, dos fenômenos naturais para interferir na na-
tureza e transformá-la a seu favor. Para alguns autores como Colin Ronan, a ci-
ência e o desenvolvimento do pensamento científico em todo o planeta ocorre
das primeiras sociedades até os dias de hoje.
A revolução intelectual que ocorreu no século XVIII e disseminou-se pelos
séculos posteriores não foge ao padrão humano acima descrito. Podemos ob-
servar que as grandes transformações advindas dos séculos XV- XVII foram es-
senciais para basilar o pensamento moderno. Podemos citar o exemplo, entre
outros, de três pensadores daquele momento: René Descartes, Jonh Locke e
Issac Newton.
O primeiro deles, desde sua obra Discurso sobre o método, é reconhecido
como pai da filosofia moderna. Seu texto constrói e esclarece o pensamento
racionalista, no qual a razão seria o verdadeiro caminho para o saber e, assim
por diante, os conhecimentos pautados nas tradições e na autoridade perdem
sua força.

O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem
provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa
não costumam desejar tê-lo mais do que o têm. E não é verossímil que todos se enga-
nem a tal respeito; mas isso antes testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o
verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é
naturalmente igual em todos os homens; e, destarte, que a diversidade de nossas opi-
niões não provém do fato de serem uns mais racionais do que outros, mas somente de
conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas
coisas. Pois não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem. As maiores
almas são capazes dos maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes, e os que só
andam muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o caminho
reto, do que aqueles que correm e dele se distanciam. (DESCARTES)

Notamos que o autor nos apresenta o caminho do método, ou seja, um pro-


cesso racional para alcançar determinado fim. O filósofo francês acreditava

capítulo 2 • 31
que precisamos partir de verdade indiscutíveis para atingirmos verdades su-
periores. O método que ele utiliza é para atingir seus axiomas é o da dedução
matemática, sempre partindo de uma dúvida.
A seguir, leremos um trecho da mais celebre frase do pensamento de
Descartes: Penso, logo existo.

enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu,
que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo,
era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não
seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro
princípio da Filosofia que procurava. Depois, examinado com atenção o que eu era, e
vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo, ou
qualquer lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia;
e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras
coisas, seguia-se mui evidente e mui certamente que eu existia; ao passo que, se ape-
nas houvesse cessado de pensar, embora tudo o mais que alguma vez imaginara fosse
verdadeiro, já não teria razão alguma de crer que eu tivesse existido; compreendi por
aí que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e
que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material.
De sorte que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do
corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que este nada fosse,
ela não deixaria de ser tudo o que é. Depois disso, considerei em geral o que é ne-
cessário a uma proposição para ser verdadeira e certa; pois, como acabava de encon-
trar uma que eu sabia ser exatamente assim, pensei que devia saber também em que
consiste essa certeza. E, tendo notado que nada há no eu penso, logo existo, que me
assegure de que digo a verdade, exceto que vejo muito claramente que, para pensar, é
preciso existir, julguei poder tomar por regra geral que as coisas que concebemos mui
clara e mui distintamente são todas verdadeiras, havendo apenas alguma dificuldade
em notar bem quais são as que concebemos distintamente. (DESCARTES)

Vale ressaltar que a base do pensamento não é a dúvida, ela funciona como
ponto de partida, já que devemos colocá-las frente aos conhecimentos que pos-
suímos. O raciocínio é construído para constatar os fatos. O pensamento carte-
siano livrou a ciência da condição de mística e mágica, uma vez que a capacida-
de de raciocinar possibilita a humanidade conhecer o Universo todo.

32 • capítulo 2
O cartesianismo é o nome dado ao pensamento do filósofo francês René Descartes. A
base de seu pensamento está calcada na Razão, caminho único para atingir o conheci-
mento. Segundo Descartes, pelo racionalismo cartesiano podemos alcançar a verdade
absoluta. Para isso, devemos em primeiro lugar duvidar dos conhecimentos postos até
o momento, logo após, o investigador deve passar pelas fases de experimentação e
observação para construir novas conclusões e assim montar leis que comprovem o
objetivo do estudo.

O segundo deles, Locke, foi filósofo e atuou amplamente na Revolução


Gloriosa, na qual a burguesia inglesa passa a influir permanentemente no
Parlamento. Esse pensador foi considerado fundador do liberalismo político.
Lutava pelo fim do poder absoluto do rei, pois acreditava que o melhor gover-
no é aquele contratado entre governantes e governadores. Para ele as leis que
regem esse contrato devem estar registradas na Constituição de cada nação e
defender os direitos naturais que cada ser humano possui, como liberdade e
propriedade. Locke, discordava de Descartes em relação a origem das ideias,
entendia que pelas experiências os homens iam construindo o conhecimento,
enquanto o francês acreditava em ideias inatas. Dessa maneira, podemos dizer
que o filósofo inglês é empirista – INCLUIR GLOSSÁRIO. Para Locke o saber
resulta das operações realizadas entre as ideias, as sensações e a reflexão, con-
forme a discordância e os acordos entre eles.

Empirismo: Corrente filosófica na qual Jonh Locke defende a ideia de todos os seres
humanos nascem como uma folha em branco e nada conhecem. As experiências viven-
ciadas formam os nossos conhecimentos, pois as aprendizagens se dão pelo método
da tentativa e erro. Portanto, empírico é aquilo conseguimos verificar a veracidade ou
falsidade por meio dos resultados de experiências.

Por acreditar que tudo o que está na mente passou pelos sentidos, Locke
rejeita afirmações de cunho metafísico, assim a função da razão é organizar
os dados empíricos. Essa mudança foi fundamental para introduzir o método
científico no qual a compreensão da natureza se dava nas diversas experiências
que traziam resultados práticos.

capítulo 2 • 33
O principal campo de estudos de Locke foi a política. O Liberalismo Político
estava pautado no contrato social que formava a sociedade, na garantia dos di-
reitos naturais e na defesa da propriedade. O Estado não podia interferir nas
liberdades individuais, por exemplo, todas as pessoas tinham o direito de livre
expressão, defender suas ideias religiosas e escolher sua profissão. Para Locke,
os homens devem inverter a lógica do poder absoluto do rei, ou seja, não são os
homens que se submetem ao Estado, ao contrário, o Estado se submete à vonta-
de dos homens. Caso aconteça do Estado descumprir os desejos da sociedade,
os indivíduos tem o direito de destituir aqueles que governam e substituí-los
por outros governantes. Vejamos um trecho de seu pensamento:

Embora em um Estado constituído - erguido sobre a sua própria base e atuando de


acordo com a sua própria natureza, isto é, agindo no sentido da preservação da co-
munidade - somente possa existir um poder supremo, que é o legislativo, ao qual tudo
mais deve ficar subordinado, contudo, sendo o legislativo somente um poder fiduciário
destinado a entrar em ação para certos fins, cabe ainda ao povo um poder supremo
para afastar ou alterar o legislativo quando é levado a verificar que age contrariamente
ao encargo que lhe confiaram. [...] E, nessas condições, a comunidade conserva per-
petuamente o poder supremo de se salvaguardar dos propósitos e atentados de quem
quer que seja, mesmo dos legisladores, sempre que forem tão levianos ou maldosos
que formulem e conduzam planos contra as liberdades e propriedades dos súditos.
Pois, uma vez que nenhum homem ou sociedade de homens tem o poder de renunciar
à própria preservação, ou, consequentemente, aos meios de fazê-lo, a favor da vontade
absoluta e domínio arbitrário de outrem, sempre que alguém experimente trazê-los a
semelhante situação de escravidão, terão sempre o direito de preservar o que não ti-
nham, o poder de alienar, e de livrar-se dos que invadem esta lei fundamental, sagrada
e inalterável da autopreservação e em virtude da qual entraram em sociedade. E assim
pode-se dizer neste particular que a comunidade é sempre o poder supremo, mas não
considerada sob qualquer forma de governo, porquanto este poder do povo não pode
nunca ter lugar senão quando se dissolve o governo. (LOCKE, 1966, p.12)

Retiramos da leitura a concepção de poder que emana da comunidade. O


autor parte do princípio de que as leis devem ser criadas pelos indivíduos que
contratam formar uma sociedade e, portanto, a lei é respeitada por todos. A
partir de Locke, a sociedade passa a exigir outra postura do rei, e a burguesia
amplia sua condição de classe social ativa nos diversos setores da sociedade.

34 • capítulo 2
O terceiro pensador citado por nós nesse texto trouxe ao mundo uma revo-
lução filosófica científica. Isaac Newton é reconhecido como mais importan-
te cientista inglês. Utilizando a física e matemática o cientista construiu uma
nova maneira de admirarmos o Universo. Para ele a natureza poderia ser com-
preendida pelas experiências dos homens, e em seus estudos escreveu as leis
essenciais da Mecânica. Em suas investigações Newton criou condições para
o desenvolvimento de diversas áreas científicas: matemática com os cálculos
diferenciais e integrais, também com o binômio de Newton; na ótica com diver-
sos estudos sobre a luz e cores; e a introdução dos fundamentos da gravitação
universal.
Esta última merece destaque. Ao tratar a gravidade como força que permeia
a relação entre todos os corpos, pela atração devido massa e distancia, o físi-
co descobriu um fenômeno que não explica tão somente a natureza do nosso
planeta, mas sim o funcionamento de todo o Universo. Devemos deixar claro
que Newton não negava a existência de Deus, no entanto, não reconhecia sua
interferência na mecânica do Universo, pois Deus seria um mestre relojoeiro e
havia criado o Universo como um relógio, no qual todas as engrenagens funcio-
navam em conjunto. Após a criação o mecanismo funcionava sem intervenção
divina, pois para a perspectiva newtoniana o movimento do Universo é abso-
luto, enquanto o repouso é relativo. Assim, cabe a ciência compreender as leis
que regem o funcionamento dele.
O pensamento dos três homens que descrevemos acima, representa parte
importante das transformações realizadas nas ciências sociais e naturais, na
educação e tecnologia durante os séculos XVII e XVIII. Devemos ressaltar que
não havia uma unidade filosófica entre eles, no entanto, todos estavam cons-
truindo oposição ao poder e influencia da Igreja Católica, e a autoridade do
Antigo Regime. Possuíam em comum a racionalidade e criticavam a autoridade
de maneira geral.
A evolução desse pensamento culminou num movimente denominado
pelo filósofo Imannuel Kant de Iluminismo. O termo remete a palavra alemã
aufklärung que pode ser traduzida por esclarecimento. Para os iluministas os
homens devem utilizar a razão para compreender a existência, o pensamento
deve agir de forma autônoma. A ciência e o pensamento racional devem ser o
alicerce da sociedade, uma ferramenta que possibilita aos homens o caminho
do esclarecimento.
Ao tratarmos do iluminismo devemos citar a encyclopedie. Aproximadamente
300 homens escreveram a maior coletânea de textos do período. A intenção era

capítulo 2 • 35
recolher o máximo de conhecimento produzido pelo ser humano. Conduzidos
por Jean d´Lambert e Denis Diderot, os enciclopedistas produziram textos ra-
cionalistas e de forte cunho liberal. Defendiam a ideia de uma sociedade menos
clerical. Por exemplo, Paul-Henri Thiry, conhecido como Barão de Holbach, ba-
seado no conhecimento clássico greco-romano, defendia que o universo não
possuiu início e não passará por um fim, pois trata-se do movimento infinito da
matéria. A matéria em transformação perpétua é a origem dos seres. Para esse
autor a religião é uma maneira que alguns homens encontram para dominar
outros homens. Os pensadores iluministas redefiniram o homem.
Em seu texto chamado O que é o iluminismo? , Imannuel Kant irá, na res-
posta a sua própria indagação, esclarecer a potência humana de transformar a
sociedade. Vejamos seu raciocínio:

A saída do homem de sua minoridade, pela qual ele próprio é responsável. Minoridade,
isto é, incapacidade de se servir de seu entendimento sem a direção de outrem, mino-
ridade pela qual ele é responsável, uma vez que a causa reside não em um defeito do
entendimento, mas numa falta de decisão e coragem em se servir dele sem a direção
de outrem. Sapere aude ! [Ousai saber !] Tem a coragem de te servir de seu próprio
entendimento. Eis a divisa das Luzez. (KANT apud ABRÃO, 1999, p.271)

Em seu texto Kant demonstra que o homem deve ser senhor do seu destino,
pelo conhecimento podemos construir nossos próprios caminhos, indepen-
dentemente de intervenções divinas ou sobrenaturais.
Vamos então, citar alguns pensadores iluministas que marcaram o momen-
to histórico no qual viveram e continuam afetando nossos cotidianos.
Iniciemos por François-Marie Arouet, conhecido como Voltaire. Esse fran-
cês foi dos mais expressivos iluministas. Sua frase mais celebre é um clássi-
co da filosofia da liberdade de expressão: “Posso não concordar com uma só
palavra do que disseres, mas me baterei a vida toda pelo direito que tens de
dizê-las”. Fiel defensor das liberdades individuais, foi preso e deportado por
atacar em seus textos os reis absolutistas e a Igreja. Suas obras são conhecidas
pela força satírica. Em suas novelas encontramos a crítica a sociedade da épo-
ca. Bastante irônico e crítico com os costumes, o autor descreve no texto “O
mundo como está” uma viagem de Babuc – personagem principal, à cidade de
Persépolis. Sua missão é analisar a sociedade e responder as divindades se ela

36 • capítulo 2
deve ou não ser destruída, pois a cidade passava por um período de grande cor-
rupção. Podemos imaginar com quem Voltaire está dialogando em seu texto.
Vejamos o trecho no qual Babuc procura entender as causas da guerra que anda
assolando a região. Após falar com diversos soldados acaba chegando a tenda
dos generais, e um deles lhes responde:

A causa desta guerra que há vinte anos assola a Ásia - disse-lhe afinal um deles -
provém de uma querela entre o eunuco de uma mulher do grande rei da Pérsia e um
funcionário do grande rei das Índias. Tratava-se de uma taxa que montava pouco mais
ou menos à trigésima parte de um dárico. O primeiro ministro das Índias e o nosso sus-
tentaram dignamente os direitos de seus senhores. De ambas as partes, armou-se um
exército de um milhão de soldados. É preciso recrutar anualmente, para esse exército,
cerca de quatrocentos mil homens. Multiplicam-se os assassínios, e os incêndios, as
ruínas, as devastações; o universo sofre, e o encarniçamento continua. Nosso primeiro
ministro e o das Índias protestam seguidamente que só se trata da felicidade do gênero
humano; e, a cada protesto, há sempre algumas cidades destruídas e algumas provín-
cias devastadas. (VOLTAIRE, 2014, p.4)

Podemos notar no trecho acima questões que nos ferem até os dias de hoje.
Conforme o General que fala a Babuc, o início da guerra deve-se a uma querela
insignificante entre dois funcionários e por um valor monetário desprezível,
o equivalente a centavos em nossos dias. A força do texto de Voltaire está em
trazer a tona as miudezas que levem milhões a morte.
Em outro diálogo, o personagem principal é convidado para um jantar na
casa de uma dama para quem trazia uma carta do marido que lutava na guerra.
Nesse momento encontramos Voltaire tratando dos totens familiares, observe-
mos a análise de Babuc,

A casa era limpa e ornada, a dama jovem, bonita, agradável, atenciosa, a companhia
digna dela; [...]Notou, entretanto, que a dama, que começara por lhe pedir ternamente
notícias do marido, falava ainda mais ternamente, no fim da refeição, com um jovem

capítulo 2 • 37
mago. Viu um magistrado que, em presença da mulher, assediava vivamente a uma
viúva; e essa viúva indulgente enlaçava com uma das mãos o pescoço do magistrado,
enquanto estendia a outra a um jovem cidadão muito bonito e modesto. A mulher do
magistrado foi quem primeiro se ergueu da mesa, para ir falar, num gabinete vizinho,
com o seu diretor, que chegara atrasado e a quem haviam esperado para jantar; e o
diretor, homem eloqüente, falou-lhe, naquele gabinete, com tanta veemência e unção,
que a dama tinha, ao voltar, os olhos úmidos, as faces vermelhas, o passo inseguro, a
voz trêmula. Então Babuc começou a recear que o gênio de Ituriel tivesse razão. O seu
dom de atrair confiança fe-lo conhecer no mesmo dia os segredos da dama; confes-
sou-lhe esta a sua inclinação pelo jovem mago e assegurou-lhe que, em todas as casas
de Persépolis, encontraria o equivalente do que vira na sua. Babuc concluiu que uma
sociedade assim não poderia subsistir; que o ciúme, a discórdia, a vingança, deviam
desolar todos os lares; que todos os dias deviam correr lágrimas e sangue; que sem dú-
vida os maridos matariam os galãs de suas mulheres, ou seriam mortos por estes; e que
enfim Ituriel fazia muito bem em destruir de uma vez por todas uma cidade entregue a
contínuos desmandos. (VOLTAIRE, 2015, p.5-6)

Outro trecho marcante de O mundo como está trata do convívio entre os


homens do saber, a sátira de Voltaire aparece latente sobre os de seus pares,

Babuc estremeceu ante a loucura daqueles homens que faziam profissão de sabedoria,
as intrigas daqueles que haviam renunciado ao mundo, a orgulhosa ambição e cobiça
daqueles que pregavam a humildade e o desinteresse; e concluiu que Ituriel tinha boas
razões para destruir toda aquela espécie. De regresso a casa, mandou procurar livros
novos para suavizar suas penas e convidou alguns letrados para jantar, a fim de dis-
trair-se. Veio o dobro do que convidara, como vespas que o mel atrai. Esses parasitas
não faziam mais que comer e falar; louvavam duas espécies de pessoas, aos mortos e
a si próprios, e nunca a seus contemporâneos, exceto o dono da casa. Se algum deles
dizia uma boa frase, os outros baixavam os olhos e mordiam os lábios de dor por não
lhes haver ocorrido isso. Eram menos dissimulados que os magos, pois não tinham
tão grandes ambições. Cada qual disputava um lugar de lacaio e uma reputação de
grande homem; diziam-se em cara coisas insultantes, que julgavam frases de espírito.
Tinham algum conhecimento da missão de Babuc. Um deles pediu-lhe em segredo
que exterminasse um autor que não o louvara suficientemente cinco anos atrás. Outro
solicitou a perda de um cidadão que nunca rira nas suas comédias. Um terceiro pediu a

38 • capítulo 2
extinção da Academia, porque jamais conseguira entrar para ela. Findo o almoço, cada
qual se retirou sozinho, pois não havia em todo o grupo dois homens que se pudessem
suportar, nem falar-se a não ser em casa dos ricos que o convidavam para a sua mesa.
Babuc julgou que não se perderia nada se toda aquela cambada perecesse na destrui-
ção geral. (VOLTAIRE, 2015, p. 9-10)

Por fim, tal qual seus contemporâneos, Voltaire tece inúmeras críticas a
Igreja Católica. Em seu texto intitulado As cartas de Amabed, um romance es-
crito em forma de correspondências, o autor narra a experiência de um homem
hindu em contato com a civilização europeia. Quando em Roma, Amabed pre-
sencia o cotidiano do Papa.

Esse Deus na terra chama-se Leão, décimo do nome. É um belo homem de trinta e
quatro a trinta e cinco anos, e muito amável; as mulheres estão loucas por ele. Achava-
se atacado de um mal imundo, que só é bem conhecido na Europa, mas que os portu-
gueses começam a introduzir no Indostão. Julgavam que disso morreria, e foi por isso
mesmo que o elegeram, a fim de que o sublime posto ficasse logo vago; mas curou-se,
e zomba daqueles que o nomearam. Nada. mais magnífico do que a sua coroação, na
qual gastou ele cinco milhões de rúpias, para prover às necessidades de seu Deus,
que foi tão pobre! Não pude escrever-te na agitação das festas; sucederam-se tão
rapidamente, tive de assistir a tantas diversões, que não sobrou um momento de lazer.
O vice-Deus Leão ofereceu espetáculos de que não tens idéia. Há principalmente um,
chamado comédia, que me agradou mais que todos os outros. É uma representação
da vida humana; é um quadro vivo; os personagens falam e agem; expõem os seus in-
teresses; desenvolvem as suas paixões: abalam a alma dos espectadores. (VOLTAIRE,
2015, p. 32)

Percebemos no excerto que Voltaire crítica a instituição católica e o agir de


seus representantes. A ironia ao tratar o Papa como vice-Deus demonstra sua
inconformidade com a diferença entre as palavras e as ações dos padres, bispos
e outros.
Outro iluminista de destaque é o francês Charles-Louis Secondat, conhe-
cido como Barão de Montesquieu. Formou-se em Direito na Universidade de
Bordeaux. Passou a dedicar-se a literatura e sua primeira obra ganhou o público

capítulo 2 • 39
francês em pouco tempo. No texto Cartas Persas, assim como seus pares criti-
cou o governo e a igreja. Porém, sua principal obra foi redigida após alguns anos
vivendo na Itália e estudando o sistema político local. Em O Espírito das Leis,
Montesquieu trata das possibilidades de condução de um governo. Escreve so-
bre a Monarquia, a República e o Despotismo. Leiamos:

Da natureza dos três diversos governos: Existem três espécies de governo: o REPU-
BLICANO, o MONÁRQUICO e o DESPÓTICO. Para descobrir sua natureza, basta a
ideia que os homens menos instruídos têm deles. Suponho três definições, ou melhor,
três fatos: "o governo republicano é aquele no qual o povo em seu conjunto, ou apenas
uma parte do povo, possui o poder soberano; o monárquico, aquele onde um só gover-
na, mas através de leis fixas estabelecidas; ao passo que, no despótico, um só, sem
lei e sem regra, impõe tudo por força de sua vontade e de seus caprichos". Eis o que
denomino a natureza de cada governo. Precisamos ver quais são as leis que provêm
diretamente desta natureza e, consequentemente, são as primeiras leis fundamentais.
(MONTESQUIEU, 2015, p.8)

O autor elabora um grande estudo para explicar as origens das leis conforme
os modelos de governo. Em alguns trechos podemos reconhecer o diálogo com
outros pensadores. Com Hobbes, por exemplo, discute sobre as primeiras for-
mações sociais. Enquanto este defende que os homens em primeiro lugar sub-
jugam-se uns aos outros para conquistar e dominar, Montesquieu acredita que
antes do estabelecimento da sociedade não há como isso acontecer, ou seja, em
primeiro lugar o homem se associa. O autor assim descreve tal encontro,

Ao sentimento de sua fraqueza, o homem acrescentaria o sentimento de suas necessi-


dades. Assim, outra lei natural seria aquela que lhe inspiraria a procura da alimentação.
Eu disse que o temor levaria os homens a fugirem uns dos outros: mas os sinais de
um temor recíproco encorajariam-nos a se aproximarem. Aliás, eles seriam levados a
isto pelo prazer que um animal experimenta ao sentir a aproximação de outro animal
de sua espécie. Além disso, o encanto que os dois sexos inspiram um ao outro devido
a sua diferença aumentaria este prazer; e apelo natural que sempre fazem um ao outro
seria uma terceira lei. Além do sentimento que os homens têm em primeiro lugar, ainda
conseguem possuir conhecimentos; assim, possuem um novo motivo para se unirem; e
o desejo de viver em sociedade é uma quarta lei natural. (MONTESQUIEU, 2015, p.6)

40 • capítulo 2
Devemos ressaltar, também, o desenvolvimento de uma ideia que segue até
os nossos dias: a divisão dos três poderes – executivo, legislativo e judiciário.
“Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais,
ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de exe-
cutar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os par-
ticulares”.(MONTESQUIEU, 2015, p.75)
Para falar da relação entre os poderes, o filósofo relembra os ensaios de
Newton,

Assim, a criação, que parece ser um ato arbitrário, supõe regras tão invariáveis quanto
a fatalidade dos ateus. Seria absurdo dizer que o Criador poderia, sem estas regras,
governar o mundo, já que o mundo não subsistiria sem elas. Estas regras consistem
numa relação constantemente estabelecida. Entre um corpo movido e outro corpo mo-
vido, é segundo as relações da massa e da velocidade que todos os movimentos são
recebidos, aumentados, diminuídos, perdidos; cada diversidade é uniformidade, cada
mudança é constância. (MONTESQUIEU, 2015, p.5)

Para esse filósofo iluminista, cada um dos três poderes deve ter autonomia
para funcionar, e principalmente conseguir limitar o poder dos outros dois.
Sobre as assembleias para criar leis, no poder legislativo, vejamos o raciocínio
de Montesquieu.

Se o corpo legislativo passasse um tempo considerável sem se reunir, não haveria mais
liberdade. Pois aconteceria uma destas duas coisas: ou não haveria mais resolução
legislativa, e o Estado cairia na anarquia; ou estas resoluções seriam tomadas pelo
poder executivo, e ele se tomaria absoluto. Seria inútil que o corpo legislativo estivesse
sempre reunido. Seria incômodo para os representantes e, aliás, ocuparia demais o
poder executivo, que não pensaria em executar, mas em defender suas prerrogativas
e o direito que tem de executar. Além disto, se o corpo legislativo estivesse continua-
mente reunido, poderia acontecer que só se chamariam novos deputados para o lugar
daqueles que morressem, e, neste caso, uma vez corrompido o corpo legislativo, o mal
não teria remédio. Quando diversos corpos legislativos sucedem uns aos outros, o povo,
que tem uma má opinião do corpo legislativo atual, coloca, com razão, suas esperanças
naquele que virá depois. Mas se fosse sempre o mesmo corpo, o povo, vendo o uma

capítulo 2 • 41
vez corrompido, não esperaria mais nada de suas leis; tornar-se-ia furioso, ou cairia na
indolência. O corpo legislativo não deve convocar a si mesmo, pois se considera que
um corpo só tem vontade quando está reunido; e, se não se convocasse unanime-
mente, não se saberia dizer que parte seria verdadeiramente o corpo legislativo: a que
estivesse reunida, ou aquela que não estivesse. Se possuísse o direito de prorrogar a
si mesmo, poderia acontecer que não se prorrogasse nunca, o que seria perigoso no
caso em que quisesse atentar contra o poder executivo. Além disso, existem períodos
mais convenientes do que outros para a reunião do corpo legislativo: logo, é preciso que
seja o poder executivo que regulamente a época e a duração destas assembleias, em
relação às circunstâncias que conhece. (MONTESQUIEU, 2015, p.77)

Notamos neste excerto que o filósofo demonstra a relação entre o executivo


e legislativo. Nesse entrelaçamento verificamos o espaço em que cada poder
deve agir e quais os riscos de um tornar-se mais forte que o outro. O funciona-
mento de cada poder depende da relação autônoma com o outro. O sistema de
separação dos três poderes é praticado até os dias de hoje, em diversos países
mundo afora, cada qual com algumas particularidades. Sobre as palavras acima
de Montesquieu, podemos lembrar o processo de redemocratização brasileiro
no início da década de 1980, que culminou na Constituição de 1988, quando
houve a convocação do legislativo para reescrever nossa Carta Magna.
Devemos realizar uma ressalva. Tanto Voltaire quanto Montesquieu cons-
truíram um pensamento de transformação social e político, no entanto, não es-
tavam dialogando com as camadas populares. Ambos desprezavam as massas,
pois consideravam ignorantes e grosseiros as camadas populares. E diferente
destes filósofos aparece o pensamento de Jean-Jaques Rousseau.
Rousseau referia-se a República como uma forma de governo na qual o
povo realmente participaria, e não somente os burgueses como defendiam
Montesquieu e Voltaire. Acima de tudo, o autor era um grande defensor da li-
berdade. Para ele o poder deveria emanar do povo:

Eu quisera nascer num país em que o soberano e o povo só pudessem ter um único e
mesmo interesse, a fim de que todos os movimentos da máquina tendessem sempre
unicamente à felicidade comum; como isso só poderia ser feito se o povo e o soberano
fossem a mesma pessoa, resulta que eu quisera nascer sob um governo democrático,
sabiamente moderado. (ROUSSEAU, 2015, p. 3)

42 • capítulo 2
A citação demonstra como o pensamento rousseauniano defende a auto-
nomia do povo perante o governante, crítica clara para os autoritarismos do
período. Os estudos de Rousseau o levam a defender a ideia de que o homem é
por natureza bom. Em dialogo aberto com Hobbes, elabora a seguinte crítica:

Não vamos, principalmente concluir com Hobbes que, por não ter nenhuma ideia de
bondade, o homem seja naturalmente mau; que seja vicioso, porque não conhece a
virtude; que recuse sempre aos seus semelhantes serviços que não acredita serem do
seu dever; ou que, em virtude do direito que se atribui com razão às coisas de que tem
necessidade, imagine loucamente ser o único proprietário de todo o universo. Hobbes
viu muito bem o defeito de todas as definições modernas do direito natural: mas, as
consequências que tira da sua mostram que a toma em um sentido que não é menos
falso. Raciocinando sobre os princípios que estabelece, esse autor deveria dizer que,
sendo o estado de natureza aquele em que o cuidado de nossa conservação é menos
prejudicial à dos outros, esse estado era, por conseguinte, o mais próprio à paz e o mais
conveniente ao gênero humano. Diz precisamente o contrário, por ter feito entrar, fora de
propósito, no cuidado da conservação do homem selvagem, a necessidade de satisfazer
uma multidão de paixões que são obra da sociedade e que tornaram necessárias as leis.
O mau, diz ele, é uma criança robusta. Resta saber se o selvagem é uma criança robusta.
Quando se concordasse com ele, que se concluiria? Que, se esse homem, sendo robus-
to, era tão dependente dos outros como quando fraco, não há excessos aos quais não se
entregasse: batendo na própria mãe quando ela demorasse muito a lhe dar de mamar;
estrangulando um irmão menor quando por ele incomodado; mordendo a perna de outro
quando nele esbarrasse ou fosse por ele importunado. Mas, são duas suposições con-
traditórias no estado de natureza: ser robusto e dependente. (ROUSSEAU, 2015, p.24)

Ora, podemos perceber a inversão de valores que este filósofo nos traz. A
corrupção do homem estava na organização social e na forma de educação, que
para Rousseau perpetuava o fanatismo e a ignorância. Não seria o desenvolvi-
mento das luzes nem as rédeas da lei que transformam o homem, mas sim o
controle das paixões e a ignorância dos vícios.
Retomando as primeiras organizações sociais, o autor nos demonstra quan-
do o homem se afasta da natureza própria, quando o espírito, a beleza, a habi-
lidade e a força, todos os talentos humanos estavam desenvolvidos a corrupção
passa a afetá-las,

capítulo 2 • 43
Foi preciso, para vantagem própria, mostrar-se diferente daquilo que se era de fato. Ser
e parecer tornaram-se duas coisas inteiramente diferentes; e, dessa distinção, surgi-
ram o fausto imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que constituem o seu
cortejo. Por outro lado, de livre e independente que era o homem outrora, ei-lo, por uma
multidão de novas necessidades, submetido, por assim dizer, a toda a natureza e, prin-
cipalmente, a todos os seus semelhantes, dos quais se torna escravo em certo sentido,
mesmo tornando-se seu senhor: rico, tem necessidade dos seus serviços, pobre, tem
necessidade de seu auxílio; e a mediocridade não o põe em estado de passar sem eles.
É preciso, pois, que procure sem cessar interessá-los por sua sorte, e fazer-lhes encon-
trar, de fato ou em aparência, o próprio proveito em trabalhar para o dele: isso o torna
velhaco e artificioso com uns, imperioso e duro com outros, e o põe na necessidade de
abusar de todos aqueles de que precisa, quando não pode se fazer temer, e quando não
é do seu interesse servi-los utilmente. Enfim, a ambição devoradora, o ardor de fazer
fortuna relativa, menos por verdadeira necessidade do que para se colocar acima dos
outros, inspira a todos os homens uma negra tendência a se prejudicarem mutuamente,
uma inveja secreta tanto mais perigosa quanto, para dar o golpe com mais segurança,
toma muitas vezes a máscara de benevolência; em uma palavra, concorrência e rivalida-
de de uma parte, e, de outra, oposição de interesses, e sempre o desejo oculto de tirar
proveito à custa de outrem: todos esses males constituem o primeiro efeito da proprie-
dade e o cortejo inseparável da desigualdade nascente. (ROUSSEAU, 2015, p.34-35)

A propriedade é para o filósofo a pedra fundadora da desigualdade entre os


homens, vejamos um trecho célebre de seu texto:

O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou
pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.
Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero
humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos
seus semelhantes: "Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecer-
des que os frutos são de todos, e a terra de ninguém !". Parece, porém, que as coisas já
tinham chegado ao ponto de não mais poder ficar como estavam: porque essa ideia de
propriedade, dependendo muito de ideias anteriores que só puderam nascer sucessiva-
mente, não se formou de repente no espírito humano: foi preciso fazer muitos progres-
sos, adquirir muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de idade em idade, antes
de chegar a esse último termo do estado de natureza. (ROUSSEAU, 2015, p. 29-30)

44 • capítulo 2
O autor irá defender que o homem saiu de seu estado natural por inúmeros
acasos e o contrato social, diferente do que afirmava Hobbes, é um engodo que
transformou o homem em escravo de si mesmo. Para ele “O homem nasce li-
vre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais não
deixa de ser mais escravo do que eles”(ROUSSEAU apud ABRÃO, 1999, p.286).
Como crítica aos seus contemporâneos, o filósofo irá tratar da questão do
poder. Em sua análise histórica descreveu como os fatos podem desmascara
as ações. Entende o autor que para conhecer os homens, é preciso vê-los agir.
Portanto, como podem os homens construir uma sociedade civil que não pra-
tique a injustiça? Para que o Contrato Social ocorra, para que um pacto seja
construído pelos homens faz-se pertinente um modelo de organização que de-
fenda as pessoas e seus bens de forma comunitária, sem que qualquer um seja
prejudicado. Isso daria certo caso.

Todas essas cláusulas, bem entendido, se reduzem a uma única, a saber, a alienação
total de cada associado, com todos os seus direitos, em favor de toda a comunidade;
porque, primeiramente, cada qual se entregando por completo e sendo a condição igual
para todos, a ninguém interessa torná-la onerosa para os outros. (ROUSSEAU, 2015,
p.10)

Nessa obra Rousseau enfrenta a estrutura do feudalismo e o poder absoluto


do rei, portanto, sua fala é para compreensão de que um novo sistema político
seja construído. Contra as mazelas que acometem a sociedade, o filósofo lan-
ça propostas de revisão da liberdade, da origem e uso do poder, da religião, a
estrutura social, e lança as bases para uma modalidade de representatividade.
Ao cabo, notamos a diferença entre este filósofo e seus contemporâneos, há
em seus escritos evidente defesa do povo, ele busca a participação popular nas
estruturas de poder, pesquisando sobre a uma administração legítima que não
separe justiça e utilidade, pois a “ordem social é um direito sagrado que serve
de base para todos os outros. Esse direito, contudo, não vem da natureza; está,
pois, fundado sobre convenções”. (ROUSSEAU, 2015, p. 5)

capítulo 2 • 45
2.2  O Idealismo alemão
Como verificamos nos capítulos anteriores, o iluminismo francês e o empiris-
mo inglês orientavam o pensamento ocidental entre os séculos XVII e XIX. No
entanto, sobre outras condições políticas e econômicas a sociedade alemã or-
ganizava sua linhagem de pensamento. Se para os primeiros os sentidos eram
guias para atingir a razão humana, os segundos buscavam os pensamentos/
ideias como germe do conhecimento.
Nesse período a Alemanha passava por forte influência dos ideias protes-
tante. A conjuntura alemã daquele momento não separa a realidade política
dos filósofos em atuação, assim como a religião protestante não afastava o pen-
samento iluminista, pois procuravam aproximar razão e revelação. Na corte de
Frederico II (século XVIII) a liberdade de pensamento era patrocinada e incen-
tivada, sua corte tornou-se grande centro cultural. Ressalvamos que naquele
tempo não existia a nação alemã assim como a conhecemos hoje. Tratava-se de
uma união de diversos Estados, cada qual com sua cultura, língua e costumes.
Se há no iluminismo a defesa da liberdade para reflexão e expressão, um
dos primeiros passos dados nesse caminho foi a construção e divulgação da
língua alemã. Naquela região encontramos uma universalidade que ainda não
ocorre fisicamente, pois como dissemos haviam inúmeras culturas compar-
tilhando um espaço territorial. Portanto, foi fundamental para o iluminismo
alemão promover uma língua que unificasse o pensamento. Nas universidades
de então notamos a elaboração de cursos de filosofia na língua alemã e por con-
sequência o nascimento de uma linguagem filosófica própria.
Influenciados pelo caminho pedagógico de Christian Wolff – professor da
Universidade de Halle - que julgava que tudo pode ser provado pelo intelecto do
homem, inclusive a existência de Deus, o movimento filosófico alemão busca
aproximar-se do racionalismo do século XVII. Esses pensadores buscavam um
conhecimento de uma teoria pura, pois julgavam o empirismo inferior por ape-
nas comprovar os fatos.
Imanuel Kant era reconhecidamente um sujeito metódico. Existe um fol-
clore de que muitos cidadãos acertavam seus relógios pelo passeio vespertino
de Kant, pois sempre ocorria na mesma hora. O filósofo nasceu e morreu na ci-
dade de Königsberg, na qual realizou todos os seus estudos. Sua obra mais im-
portante é chamada Crítica a Razão Pura. Para os iluministas era fundamental
criticar as verdades construídas nas diversas culturas como as impostas pelas

46 • capítulo 2
autoridades. Um dos aspectos geniais de Kant foi elaborar uma crítica a respei-
to da própria razão.
Em suas obras podemos verificar grande interesse pela metafísica, apesar
de postular que o conhecimento humano só seria capaz de reconhecer peque-
nos traços de questões como Deus e a alma.
Para resolver o conflito entre empirismo e conhecimento puro, Kant indaga
se não haveria nada que o homem possa conhecer que não tenha que passar pe-
los sentidos. Para responder cria o sistema de conhecimentos a priori e conhe-
cimentos a posteriori . O primeiro tipo é o saber que se adquiri independente-
mente de qualquer experiência. O do segundo, são àqueles que conquistamos
pela experiência.
As questões que impulsionam a investigação de Kant estavam para além
dos limites de nossos juízos. O autor busca uma filosofia que produza uma ci-
ência para determinar os princípios e a extensão de todos os conhecimentos a
priori. Vejamos sua proposta:

Precisamente nesses conhecimentos, que transcendem ao mundo sensível, aos quais


a experiência não pode servir de guia nem de retificação, consistem as investigações
de nossa razão, investigações que por sua importância nos parecem superiores, e por
seu fim muito mais sublimes a tudo quanto a experiência pode apreender no mundo
dos fenômenos; investigações tão importantes que, abandoná-las por incapacidade,
revela pouco apreço ou indiferença, razão pela qual tudo intentamos para as fazer, ain-
da que incidindo em erro. Esses inevitáveis temas da razão pura são: Deus, liberdade
e imortalidade. A ciência cujo fim e processos tendem à resolução dessas questões
denomina-se Metafísica. Sua marcha, é, no princípio, dogmática; quer dizer, ela enceta
confiadamente o seu trabalho sem ter provas na potência ou impotência de nossa
razão para tão grande empresa. Parecia, no entanto, natural que, ao abandonar o ter-
reno da experiência, não construíssem imediatamente um edifício com conhecimentos
adquiridos sem saber como, ou sobre o crédito de princípios cuja origem ignoramos. E
sem haver assegurado, antes de tudo, mediante cuidadosas investigações, acerca da
solidez do seu fundamento. Pelo menos, antes de o construir, deveriam ter apresentado
estas questões: Como pode a inteligência chegar aos conhecimentos “a priori”? Que
extensão, legitimidade e valor podem ter? (KANT, 2015, p. 5)

capítulo 2 • 47
Para esclarecer o caminho para sua crítica a razão pura, Kant, cria um sis-
tema de quatro tipos de julgamentos, o par dos juízos analíticos e sintético e a
relação com saber a priori e a posteriori. Na obra o Livro completo da Filosofia,
James Mannion nos dá o seguinte exemplo:

O julgamento analítico é aquele em que a verdade pode ser determinada dentro de


si, ou seja, as definições das palavras dentro de uma afirmação da verdade afirmam a
verdade. O famoso exemplo disso diz: ‘Todas as casas pretas são pretas’. Obviamente,
uma casa preta é uma casa. Um exemplo de uma verdade sintética é simplesmente ‘A
casa é preta’. Isso precisa ser determinado pela ação de olhar para a casapara saber
se ela é realmente preta. Dois outros julgamentos são(...) a priori e a posterior. Essas
são simplesmente as palavras ‘antes’ e ‘depois’. ‘Todas as casas pretas são casas’ é um
julgamento a priori – você não precisa ver as casas para saber isso. ‘A casa é preta’
é um julgamento a posteriori – você precisa ver as casas para determinar sua cor.
(MANNION, 2004, p. 109).

A partir desses julgamentos Kant propõe a questão fundamental de sua


obra: “como são possíveis os juízos sintéticos a priori?”. Para o filósofo essa
indagação serve a tarefa de salvar a Metafísica. Somente a ciência e seus meca-
nismos podem levar ao conhecimento da razão por ela mesma. Isto porque não
podemos apenas desmontar os conhecimentos a priori que se encontram em
nossa razão, pois isso seria um fim, enquanto a Metafísica nos serve como meio
de estender os conhecimentos científicos.
Para solucionar essas dúvidas, Kant inverte a noção de realidade existente
daquele período. Ao invés da realidade ser um universo em ordem pronto para
ser compreendido por nossa mente, ele discute que a mente ordena o caos ab-
sorvido e organiza dentro da realidade percebida.
Nesse sentido, pudemos perceber que não há um consenso entre esses filó-
sofos. Assim, eles debatem sobre o uso da razão como instrumento de constru-
ção do pensamento real e a própria interpretação do que é o real. Todavia, é pri-
mordial perceber mesmo nesse contexto de debate uma paradigmática capaz
de orientar as revoluções dos séculos XVIII e XIX.

48 • capítulo 2
ATIVIDADES
01. Segundo o iluminista Charles Montesquieu: “liberdade é o direito de fazer tudo aquilo
que as leis permitem.” Julgue a relação proposta entre as afirmações abaixo.
I. O iluminismo representou uma revolução intelectual na Europa a partir do século XVIII.
Porque
II. A corrente iluminista fortaleceu o poder absoluto do rei e da Igreja Católica por meio da
compreensão dos saberes pautados nos costumes e na autoridade.
As asserções I e II são verdadeiras? Há relação estabelecida entre elas é verdadeira? Jus-
tifique.

02. Leia com atenção as afirmações das ideias defendidas pelos pensadores iluministas.
I. A razão deveria ser usada como ferramenta para questionar o Velho Regime.
II. A instauração de políticas Absolutistas.
III. A fé é o único e infalível condutor à sabedoria.
IV. A manutenção das instituições sociais feudais e o poder da Igreja Católica.
Está(ão) correta(s) a(s) afirmativa(s):
a) I e II apenas.
b) I, II e II apenas.
c) II e III apenas.
d) III e IV apenas.
e) I apenas.

03. Explique no que consiste a ideia do Iluminismo a partir do excerto: “Tudo estaria perdido
se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse
os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os cri-
mes ou as querelas entre os particulares”.(MONTESQUIEU)

04. Sintetize as ideias principais do empirismo.

capítulo 2 • 49
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LOCKE, Jonh. Textos de Locke extraídos de Two treatsises of civil government. London,
Everyman's Library, 1966, p. 117-241. Tradução de cid Knipell Moreira). Exemplos disponíveis em:
http://www.cefetsp.br/edu/eso/valerio/textoslockeselecionados.html . Acesso em 24 de abril de
2015.
ABRÃO, Bernadette Siqueira. História da Filosofia. São Paulo: Editora Nova cultura Ltda, 1999.
VOLTAIRE. O mundo como está. Exemplos disponíveis em: http://www.dominiopublico.gov.br/
pesquisa/ResultadoPesquisaObraForm.do , Acesso em 24 de abril de 2015.
VOLTAIRE. As cartas de Amabed. Exemplos disponíveis em: http://www.dominiopublico.gov.br/
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MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Exemplos disponíveis em: http://www.dhnet.org.br/direitos/
anthist/marcos/hdh_montesquieu_o_espirito_das_leis.pdf Acesso em: 29 de abril de 2015.
ROUSSEAU. Jean-Jacques. Discurso sobre a origem da desigualdade. Exemplos disponíveis em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2284
Acesso em: 02 de maio de 2015

50 • capítulo 2
3
Positivismo e a arte
do século XIX
Este capítulo visa a interpretar o positivismo sob a luz da filosofia empirista
e da crítica à herança metafísica. Dessa maneira, as mudanças no século XIX
expandem as fronteiras do campo político e econômico e chegam às produ-
ções artísticas. Atentaremos para a maneira como a mentalidade tipicamente
racionalista atravessa a produção literária e filosófica.

OBJETIVOS
•  Localizar o contexto pós-revolucionário francês como cenário de elaboração do pensa-
mento positivista.
•  Identificar os princípios básicos do positivismo por meio da obra de Comte.
•  Analisar o século XIX a partir das referências da: arte, literatura e filosofia.

52 • capítulo 3
3.1  O positivismo
Essa linha de pensamento ocidental nasce dos resultados dos acontecimentos
do século XVIII, principalmente a Revolução Francesa e Revolução Industrial.
Os pensadores do positivismo tratavam de aspectos filosóficos, políticos e so-
ciológicos e propunham um entendimento do mundo pautado nos valores ex-
clusivamente humanos, ou seja, descartavam as ciências da religião e as doutri-
nas que investigavam a essências das coisas.
O conceito de positivismo pode ser compreendido de diversas maneiras.
Algumas acepções do termo, por vezes, diferem bastante do pensamento de
Comte, tal como a linha jurídica de Kelsen. Se por um lado podemos entender
como algo que seja oposto a negação, verificando e afirmando apenas os aspec-
tos positivos de algum fenômeno, ou por outro lado, apenas defende o conheci-
mento objetivo dos sentidos.
Augusto Comte, filósofo que inaugura esse movimento, acredita que sua
teoria desenvolve, numa perspectiva histórica, uma nova compreensão da so-
ciedade. Formado numa escola politécnica na cidade de Montepellier, França,
adquiri profundos conhecimentos de matemática e ciências. Inspirado nas
obras de Marie Jean Antoine Nicolas Caritat – Marquês de Condorcet, ele irá
reunir as ciências produzidas pelo homem numa linha histórica. Para a huma-
nidade o progresso é uma lei fundamental, pois quanto mais conhecimento e
técnica o homem acumula com o passar do tempo, maior se torna a riqueza e
a felicidade.
Observemos o pensamento de Condorcet no qual Comte se inspira.

A perfectibilidade do homem é realmente infinita; os progressos dessa perfectabilida-


de, agora independentes da vontade daqueles que desejariam detê-los, não tem outros
limites que os da duração do globo em que a natureza nos lançou. [...] Sem dúvida, esses
progressos poderão seguir um ritmo mais ou menos rápido, mas serão contínuos, e
jamais retrógados(...). (CONDORCET apud ABRÃO, 1999, p. 295)

Podemos notar nessa citação o quanto a ideia de progresso está engendrada


na história da humanidade. Independentemente se acelerado ou desacelera-
do o caminho percorrido pelos homens é impossível de evitar e não há como
retroceder.

capítulo 3 • 53
A filosofia de Comte dialoga com a sociedade francesa no processo de re-
organização pós Revolução. O início do século XIX foi bastante conturbado na
França, uma vez que a estrutura de governo passou por golpes e contragolpes.
Para Maria Célia Simon, doutora em filosofia,

(...) a filosofia de Comte se inscreve, conscientemente, na onda contra-revolucionária e


ultraconservadora que se seguiu a 1789. Embora guardando algumas diferenças sig-
nificativas, encontramos na sua obra algum parentesco com a tradição romântica, ca-
tólica e conservadora, representada na França, especialmente por Bonald e de Maistre.
Esta tradição propunha como remédio para o que era visto como desordem, anarquia
e mudanças radicais resultantes do avanço burguês, a volta à unidade espiritual vivida
pela civilização católico-feudal. Ainda de acordo com esta tradição, somente esta uni-
dade espiritual poderia dar sentido e direção a todas as atividades do gênero humano.
Embora Comte percebesse, desde o início, a decadência irrecuperável da velha con-
cepção religiosa do mundo, embora tivesse clareza que a unidade espiritual fornecida
pelo catolicismo medieval (que, a seu tempo, tinha sido responsável pela direção moral
e espiritual e pela “organicidade” da sociedade) estivesse definitivamente ultrapassa-
da, ele recuperou em sua religião da humanidade a própria ideia da necessidade de
uma unidade espiritual para a sociedade, que lhe pudesse dar sentido e direção e que
possibilitasse fazer face à anarquia mental do ideário democrático burguês. (SIMON,
1986, p. 65)

Quando Comte refere-se a uma unidade espiritual, compreendemos o


quanto para o autor a ordem é essencial para o desenvolvimento da humani-
dade. A ordenação das coisas torna-se lema do positivismo. Temos em nosso
país um grande exemplo disso, pois consta em nossa bandeira nacional o ter-
mo: Ordem e Progresso. Essa expressão refere-se à frase positivista O amor por
princípio, e a ordem por base e o progresso por fim. Os princípios defendidos
por Comte possuem uma base conservadora, que defende a tradição e a autori-
dade, baseados principalmente na obediência de normas.
Novamente recorremos a Maria Célia Simon, para compreendermos a obra
de Comte, devemos de início verificar três pontos fundamentais que caracteri-
zam sua obra como uma unidade, vejamos:

54 • capítulo 3
Em primeiro lugar, uma filosofia da história que se propõe a fundamentar porque a
filosofia positiva é a que deve imperar definitivamente no futuro do desenvolvimento
da humanidade. Em segundo lugar, uma fundamentação e uma classificação das ci-
ências assentadas na filosofia positiva. Enquanto tal, o positivismo de Comte assinala
o fim de uma problemática das mais fundamentais do pensamento moderno, qual seja
a questão do conhecimento, a teoria do conhecimento. Como aponta Habermans, em
seu lugar o positivismo propõe e instala uma teoria da ciência. Em outras palavras, o
positivismo inaugurado por Comte confirma o enunciado básico do cientificismo do sé-
culo XIX, segundo o qual o conhecimento define-se, implicitamente, pelas realizações
da própria ciência. É neste sentido que se pode falar que se trata de uma “perversão”
cientificista da razão. Em terceiro lugar, finalmente, uma sociologia, ou uma doutrina da
sociedade, que, ao determinar a sua estrutura essencial, permite a proposta de reali-
zação de uma reforma prática da sociedade como um todo e, finalmente, uma reforma
religiosa, a criação da religião da humanidade. (SIMON, 1986, p. 66-67)

Dessa maneira podemos perceber o planejamento do autor ao estruturar


sua filosofia. Comte inicia seu pensamento destacando que o positivismo cons-
trói uma história das ciências, investigando suas bases e classificando os co-
nhecimentos. Após elaborar esse alicerce, o filósofo irá postular que uma ciên-
cia positiva é capaz de compreender os fenômenos e a partir daí criar previsões
para seu funcionamento, ou seja, tal previsibilidade pela descoberta das leis
naturais permite ao homem o domínio da natureza, em fronteiras máximas.
Destaca Comte, que para compreendermos seu Sistema de Filosofia
Positiva, devemos em primeiro lugar ter consciência do que ele denomina de
três estados teóricos pelos quais o pensamento humano passou e passa quan-
do tem que elaborar um novo conhecimento. Para Comte, para elaborarmos
um conceito passamos por três métodos de filosofar que se configuram de ma-
neira diferente e até oposta. Devemos sempre lembrar que o autor raciocina
numa linha progressiva. Os três estados seriam: teológico – de característica
provisória e preparatório; metafísico – um estado que surge para somente dis-
solver o anterior, e nada acrescenta sendo transitório; positivo – estágio último
da razão humana. Para o autor, o primeiro estágio do pensamento é o ponto
pelo qual a inteligência humana parte e se pauta nas leis sobrenaturais para
analisar os fenômenos. No segundo estado observa-se a abstração metafísica
que, segundo o autor, é apenas uma modificação do primeiro estágio com a

capítulo 3 • 55
substituição do sobrenatural por uma abstração teórica. Por fim, há no terceiro
estado um reconhecimento de que é impossível compreender as noções abso-
lutas. Dessa maneira, caberia uma busca por uma observação racional capaz de
explicar a causa dos fenômenos particulares e suas relações invariáveis.
Sobre o último estado, o positivo ou real, Comte anuncia que seu caráter
principal é a subordinação contínua da imaginação à observação.

A pura imaginação perde então de modo irrevogável a sua antiga supremacia mental e
subordina-se necessariamente à observação, de maneira a constituir um estado lógico
plenamente normal, sem deixar contudo de exercer, nas especulações positivas, um
papel tão capital como inesgotável, para criar ou aperfeiçoar os meios de ligação, quer
definitiva, quer provisória. Em uma palavra, a revolução fundamental que caracteriza o
estado viril de nossa inteligência consiste em substituir por toda a parte a inacessível
determinação das causas propriamente ditas, pela simples pesquisa das leis, isto é, das
relações constantes que existem entre os fenômenos observados. Quer se trate dos
menores ou dos mais sublimes efeitos, do choque e da gravidade, quer do pensamento
e da moralidade, deles não podemos conhecer realmente senão as diversas ligações
mútuas próprias à sua realização, sem nunca penetrar o mistério da sua produção.
(COMTE, 2015, p. 12)

Dessa relação na qual a observação deve prevalecer ante imaginação po-


demos deduzir o fortalecimento do cientificismo no século XIX, no qual o
conhecimento humano é produzido pela produção da ciência. E as ciências
para Comte são também fruto de um processo histórico de acúmulo de conhe-
cimento, no qual a cada passo elas vão subindo degraus de especialização. O
autor determina algumas ciências primordiais, as quais possuem regras meto-
dológicas que servem de base para outras ciências. Assim, astronomia, física,
fisiologia, química e física social possuem terrenos próprios de observação. Ao
realizar a classificação das ciências e colocá-las em ordem cronológica, Comte
monta um sistema científico onde um conhecimento estrutura-se como lei do
conhecimento anterior e, ao mesmo tempo, serve de base para uma investiga-
ção que resultará num conhecimento novo.
Nos vale muito a longa citação a seguir na qual o filósofo argumenta sobre a
universalidade do positivismo e sua contribuição para a harmonia mental, nos
aspectos individuais e coletivos.

56 • capítulo 3
Ainda que as necessidades puramente mentais sejam, sem dúvida, as menos enérgicas
de todas as inerentes à nossa natureza, sua existência direta e permanente é contudo
incontestável em todas as inteligências: elas constituem o primeiro estimulo indispen-
sável aos nossos diversos esforços filosóficos, muitas vezes atribuídos especialmente
aos impulsos práticos, que, na verdade, os desenvolvem muito, mas não os poderiam
fazer surgir Estas exigências intelectuais, relativas, como todas as outras, ao exercício
regular das funções correspondentes, reclamam sempre uma feliz combinação de es-
tabilidade e de atividade, de onde resultam as necessidades simultâneas de ordem e
de progresso, ou de ligação e extensão. Durante a longa infância da Humanidade, só
as concepções teológico-metafísicas podiam, conforme nossas explicações anteriores,
satisfazer provisoriamente a esta dupla condição fundamental, ainda que de modo ex-
tremamente imperfeito. Mas quando a razão humana se acha bastante amadurecida
para renunciar francamente às especulações inacessíveis e circunscrever com sabe-
doria sua atividade ao domínio verdadeiramente apreciável por nossas faculdades, a fi-
losofia positiva proporciona-lhe, por certo, uma satisfação muito mais completa, a todos
os respeitos, e também mais real, destas duas necessidades elementares. Tal é eviden-
temente, com efeito, sob este novo aspecto, o destino direto das leis que ela descobre
sobre os diversos fenômenos e da previsão racional delas inseparável. Em relação a
cada ordem de fenômenos, tais leis devem, a este respeito, ser distinguidas em duas
modalidades, conforme ligam por semelhança os que coexistem, ou por filiação os que
se sucedem. Esta indispensável distinção corresponde essencialmente, para o mundo
exterior, à, que ele sempre nos oferece espontaneamente entre os dois estados corre-
latos de existência e de movimento; donde resulta, em toda ciência real, uma diferença
fundamental entre a apreciação estática e a apreciação dinâmica de qualquer assunto.
Os dois gêneros de relações contribuem igualmente para explicar os fenômenos, e
conduzem de modo semelhante a prevê-los, ainda que às leis de harmonia pareçam
a princípio destinadas sobretudo à explicação e as leis de sucessão à previsão. Quer
se trate, com efeito, de explicar ou de prever, tudo se reduz sempre a ligar: toda liga-
ção real, estática ou dinâmica, descoberta entre dois fenômenos quaisquer, permite ao
mesmo tempo explicá-las e prever um pelo outro, porque a previsão científica, convém
evidentemente ao presente, e mesmo ao passado, assim como ao futuro, pois con-
siste sempre em conhecer um fato independentemente de sua exploração direta, em
virtude de suas relações com outros já conhecidos. Assim, por exemplo, a assimilação
demonstrada, entre a gravitação celeste e a gravidade terrestre conduziu, em virtude
das variações pronunciadas da primeira, a prever as fracas variações da segunda, que

capítulo 3 • 57
a observação imediata não podia descobrir suficientemente, ainda que as tenha em
seguida confirmado; assim também em sentido inverso, a correspondência observada
antigamente entre o período elementar das marés e o dia lunar ficou explicada logo que
se reconheceu ser em cada ponto a elevação das águas resultante da passagem da
lua pelo meridiano local. As nossas verdadeiras necessidades lógicas convergem, pois,
essencialmente para este comum destino: consolidar, tanto quanto possível, por nossas
especulações sistemáticas, a unidade espontânea do nosso entendimento, estabele-
cendo a continuidade e a homogeneidade de nossas diversas concepções e fazendo-
nos achar de novo a constância no meio da variedade, de modo a satisfazer igualmente
às exigências simultâneas da ordem e do progresso. Ora, é evidente que, sob este
aspecto fundamental, a filosofia positiva possui necessariamente, para os espíritos bem
preparados, uma aptidão muito superior à que jamais pôde oferecer a filosofia teológi-
co-metafísica. Considerando esta mesmo nos tempos do seu maior ascendente, tanto
mental como social, isto é, no estado politeico, a unidade intelectual achava-se então
certamente constituída de maneira muito menos completa e menos estável do que há
de permitir em breve a universal preponderância do espírito positivo, quando for habitu-
almente estendido às mais eminentes especulações. Então, com efeito, reinará por toda
a parte, sob diversos modos e em diferentes graus, esta admirável constituição lógica,
da qual só os estudos mais simples nos podem dar hoje justa ideia, em que a ligação
e a extensão, ambas plenamente garantidas, se acham, ademais, espontaneamente
solidárias. Este grande resultado filosófico não exige, aliás, outra condição necessária a
não ser a obrigação permanente de restringir todas as nossas especulações aos casos
verdadeiramente acessíveis, considerando estas relações reais, quer de semelhança,
quer de sucessão, como capazes apenas de constituir, para nós simples fatos gerais,
que cumpre procurar reduzir ao menor número possível, sem que o mistério de sua
produção jamais possa ser penetrado de modo algum, conforme o caráter fundamental
do espírito positivo. Mas se somente esta constância efetiva das ligações naturais é, na
realidade, apreciável por nós, também só ela basta plenamente às nossas verdadeiras
necessidades, quer de contemplação, quer de direção.(COMTE, 2015, p.16)

Dessa maneira, sintetizaremos alguns desses princípios dissertados acima.


Para tanto, é fundamental olhar para o lugar histórico ao qual Comte se situa-
va. Imerso em uma França pós-revolucionária, pretensamente hegemônica e já
vanguarda do pensamento ocidental, o filósofo contrapôs os movimentos re-
volucionários e conservadores. De um lado a França convivia com um grupo de

58 • capítulo 3
restauradores absorvidos pela lógica de retomar a velha ordem do absolutismo
e interromper o movimento de transformações originado no final do XVIII. Por
outro lado, Comte era contemporâneo de um movimento mais revolucionário
descontente com as limitadas formas de transformação proporcionadas pelos
movimentos burgueses. Portanto, havia esse grupo anárquico comprometido
com a radicalização das mudanças no cenário francês. Nesse contexto, é mui-
to difícil compreender a construção do pensamento comtiano sem situá-lo no
bojo dessa dicotomia.
A resposta dada por Comte a esse embate filosófico foi buscar uma proposta
comprometida em não destruir tudo tampouco não restaurar aquilo que não
funcionava. Segundo Soares (1998) esse terceiro caminho traçado por Comte
preocupou-se em: “Não reconstruir com materiais desgastados, nem destruir
sem saber o que construir.” (p.9). Nessa perspectiva, Comte elabora uma utopia
pensada a partir da lógica do amor universal e de uma paz estável. Para que esse
anseio filosófico pudesse se concretizar o autor refletiu sobre aquilo que traria
a universalidade a sua busca. Ou seja, como construir um discurso universal
capaz de ser entendido por diferentes povos e culturas? Para ele, somente a ci-
ência poderia consolidar suas idealizações. Nesse sentido, conseguimos anali-
sar melhor a linha de pensamento comtiana. O objetivo do autor era chegar a
esse amor universal. O caminho para isso era a ciência. Por isso, a necessidade
de pensar sobre a epistemologia da ciência e de que maneira seria possível pro-
gredir, avançar.
Nesse caminho Comte busca legitimar seu discurso de uma religião racio-
nal e elabora sua famigerada fórmula: “Amor por princípio e a Ordem por base;
o Progresso por fim.” Para o autor, o amor é sentimento tipicamente humano
traduzido de maneira universal. Nesse viés, a ordem deve ser compreendida
para além da disciplina, mas centrada na dinâmica do respeito aos princípios e
às leis universais que atuam no mundo. Por fim, o progresso não está limitado
a uma compreensão material de evolução, mas a um desenvolvimento das in-
tuições sociais as quais poderiam ser responsáveis pela incorporação do Amor.

3.2  O século XIX – arte, literatura e filosofia


A ciência e a tecnologia criaram na Europa do século XIX um estado de eu-
foria generalizada. A Revolução Industrial havia ampliado de maneira nunca

capítulo 3 • 59
experimentada pelas sociedades a produção de bens materiais e o consumo
caminhava a pleno vapor nos trilhos dos trens. Se grande parte do público pas-
sou a consumir tais bens, concomitantemente passaram a se familiarizar com
diversas áreas do conhecimento. O movimento é o grande imperador do perío-
do, pessoas, objetos, informações viajam por diferentes territórios e a troca se
torna corriqueira.
Notamos que nesse período muitas pessoas desenvolvem interesses tanto
por arte como pela ciência. Em relação a esta última, é característico daquela
época, tendo em vista os pensamentos cartesiano e positivista, a sistematização
das diferentes áreas do conhecimento. Essa organização possibilitou a estru-
turação de escolas técnicas, museus, centros de pesquisa e outros lugares nos
quais o desenvolvimento tecnológico atrelava-se ao desenvolvimento da indús-
tria. Na arte, encontramos o fortalecimento de uma ideologia individualista e
uma enorme corrente de sucessivos movimentos artísticos que dialogavam en-
tre si, as vezes por completa oposição.
Para compreendermos a efervescência cultural do momento devemos reto-
mar uma ideia essencial para o período: o nacionalismo.
A construção de uma nacionalidade – o que constitui o caráter nacional,
aquilo que faz de você e de mim um brasileiro, por exemplo, é artificial, ou seja,
está inserido num processo histórico. Normalmente esta construção ocorre
unificando elementos de tradição e costumes que são transformados em mitos
e criam heróis e momentos únicos de lutas para definir nosso povo e assim uma
nação. São elementos principais do nacionalismo a cultura (etnia e língua), a
independência (soberania de um povo em um território) e a autodeterminação
(liberdade de se organizar política e economicamente).
Para o historiador Eric Hobsbawn, no início do século XIX,

Os grandes proponentes do nacionalismo de classe média desse estágio foram as


camadas médias e inferior das categorias profissionais, administrativas e intelectuais,
ou sejam, as classes educadas. (É claro que estas não são distintas das classes empre-
sariais, especialmente em países atrasados, onde os administradores das propriedades,
os tabeliões e os advogados se encontram entre os principais acumuladores da riqueza
rural.) Para sermos precisos, a guarda avançada do nacionalismo de classe média fez
sua guerra ao longo da linha que demarcava o progresso educacional de um grande
número de “homens novos” em áreas até então ocupadas por uma pequena elite. O
progresso das escolas e das universidades dava dimensão do nacionalismo, na mesma

60 • capítulo 3
medida em que as escolas especialmente as universidades se tornavam seus defenso-
res mais conscientes(...) (HOBSBAWN, 1977, p. 192-193)

Assim, verificamos o papel central da educação na formação do sentimen-


to nacional. A escola se reestrutura para adequar-se a sociedade e, portanto,
ganha cada vez mais espaço como instituição central da vida em sociedade,
selecionando pessoas, reproduzindo e transmitindo conhecimento. Dentro
da escola percebemos as seguintes modificações: torna-se obrigatória, estatal,
modeladora da atuação no mundo do trabalho e a manutenção da divisão de
classes sociais.
Se a escola ganha centralidade na formação nacional, podemos concluir
que serão expressivos os movimentos literários do período. O romantismo é
grande exemplo para nós. Seria tarefa infinita tentar sintetizar o que foi esse
movimento literário, uma vez que são diversas frentes e inúmeras temáticas,
porém encontramos algumas que perpassam boas obras românticas. Assuntos
como a pátria, o amor, o povo, a natureza, o passado são tratados por autores
de inúmeras regiões.
Com a obra Os sofrimentos do jovem Werther, o alemão Johann Wolfgang
Von Goethe introduz uma maneira de escrever que irá contrariar a lógica racio-
nal trazida pelos filósofos que lemos anteriormente. Criticando o racionalismo
em Goethe notamos o fortalecimento do sentimentalismo, o amor supervalori-
zado e a idealização da mulher.

A vida humana não passa de um sonho. Mais de uma pessoa já pensou isso. Pois essa
impressão também me acompanha por toda parte. Quando vejo os estreitos limites
onde se acham encerradas as faculdades ativas e investigadoras do homem, e como
todo o nosso labor visa apenas a satisfazer nossas necessidades, as quais, por sua vez,
não tem outro objetivo senão prolongar nossa mesquinha existência; quando verifico
que o nosso espírito só pode encontrar tranquilidade, quanto a certos pontos das nos-
sas pesquisas, por meio de uma resignação povoada de sonhos, como um presidiário
que adornasse de figuras multicoloridas e luminosas perspectivas as paredes da sua
célula... tudo isso, Wahlheim, me faz emudecer. Concentro-me e encontro um mundo
em mim mesmo! Mas, também aí, é um mundo de pressentimentos e desejos obscuros
e não de imagens nítidas e forças vivas. Tudo flutua vagamente nos meus sentidos, e

capítulo 3 • 61
assim, sorrindo e sonhando, prossigo na minha viagem através do mundo. As crianças
- todos os pedagogos eruditos estão de acordo a este respeito - não sabem a razão
daquilo que desejam; também os adultos. da mesma forma que as crianças, caminham
vacilantes e ao acaso sobre a terra, ignorando, tanto quanto elas, de onde vem e para
onde vão. Não avançam nunca segundo uma orientação segura; deixam-se governar,
como as crianças, por meio de biscoitos, pedaços de bolo e vara. E, como agem por
essa forma, inconscientemente, parece-me, portanto, que se acham subordinados à
vida dos sentidos. Concordo com você (porque já sei que você vai contraditar-me) que
os mais felizes são precisamente aqueles que vivem, dia a dia, como as crianças, pas-
seando, despindo e vestindo as suas bonecas; aqueles que rondam, respeitosos, em
torno da gaveta onde a mamãe guardou os bombons, e, quando conseguem agarrar,
enfim, as gulodices cobiçadas, devoram-nas com sofreguidão e gritam: "Quero mais!"
Eis a gente feliz! Também é ditosa a gente que, emprestando nomes pomposos às
suas mesquinhas ocupações, e até às suas paixões, conseguem fazê-las passar por
gigantescos empreendimentos destinados à salvação e prosperidade do gênero huma-
no. Tanto melhor para os que são assim! Mas aquele, que humildemente reconhece o
resultado final de todas as coisas, vendo de um lado como o burguês facilmente arranja
o seu pequeno jardim e dele faz um paraíso, e, de outro, como o miserável, arfando sob
o seu fardo, segue o seu caminho sem revoltar-se, mas aspirando todos, do mesmo
modo, a enxergar ainda por um minuto a luz do sol. . . sim, quem isso observa a margem
permanece tranquilo. Também este se representa a seu modo um universo que tira de
si mesmo, e também é feliz porque é homem. E, assim, quaisquer que sejam os obstá-
culos que entravem seus passos, guarda sempre no coração o doce sentimento de que
é livre e poderá, quando quiser, sair da sua prisão.(GOETHE, 2007, p. 6)

No trecho acima podemos notar a genialidade de Goethe quando olha a so-


ciedade de seu tempo. O que para muitos é a fonte de segurança, para ele se
torna coisa vil: todo o nosso labor visa apenas a satisfazer nossas necessidades,
as quais, por sua vez, não tem outro objetivo senão prolongar nossa mesquinha
existência. Para o autor a meta é o próprio caminho e não o ponto de chegada,
a vida por si mesma é o fim.
Podemos perceber que o discurso literário de Goethe está inserido num
determinado contexto histórico, ou seja, os textos de literatura comungam
com a classe social e as interferências políticas e econômicas do período. O
romantismo possuí no século XIX, em diversos países a função de construir a

62 • capítulo 3
identificação das pessoas com a nação, ou seja, o fortalecimento da identidade
nacional. O Estado Nação europeu utiliza bastante o aspecto literário de sua
cultura para forma-se e estabilizar-se, claro, que também existe um forte rela-
ção de poder.
No caso brasileiro não foi diferente. Logo após nossa independência em
1822, os escritores românticos passam a árdua tarefa de construírem pela lite-
ratura uma identidade nacional, principalmente pela prosa e poesia utilizando
as imagens do índio e da pátria de maneira ideal, assim como Goethe idealizava
a figura feminina.
Para diversos historiadores da literatura nacional Gonçalves Dias inaugu-
rou o romantismo brasileiro. Para Alfredo Bosi,

O núcleo “americano”, que pela intensidade expressiva se prendeu ao nome do poeta,


é, de fato, exíguo o conjunto da obra gonçalvina que vive dos grandes temas românticos
do amor, da natureza, de Deus. Mas é preciso ver na força de Gonçalves Dias indianista
o ponto exato em que o mito do bom selvagem, constante desde os árcades, acabou
por fazer-se verdade artística. O que será moda mais tarde, é nele matéria de poesia.
(BOSI, 1994, P. 105)

A conjuntura histórica brasileira diferenciava muito da europeia. Nossa so-


ciedade era escravista e não democrática, dependia de uma economia atrelada
a monocultura agrícola de exportação, fato que fortalecia a elite produtora cau-
sando enorme diferença entre as camadas sociais. Assim, o nosso projeto de
identidade nacional não passou por uma visão crítica e realista da nossa socie-
dade, mas ao contrário buscou elementos míticos, idealizados na origem dos
índios. Vejamos um exemplo, na primeira parte do poema I-Juca Pirama.

No meio das tabas de amenos verdores, Cercadas de troncos — cobertos de flores, Al-
teiam-se os tetos d’altiva nação; São muitos seus filhos, nos ânimos fortes, Temíveis na
guerra, que em densas coortes Assombram das matas a imensa extensão. São rudes,
severos, sedentos de glória, Já prélios incitam, já cantam vitória, Já meigos atendem à
voz do cantor: São todos Timbiras, guerreiros valentes! Seu nome lá voa na boca das
gentes, Condão de prodígios, de glória e terror! As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,
As armas quebrando, lançando-as ao rio, O incenso aspiraram dos seus maracás: Me-
drosos das guerras que os fortes acendem, Custosos tributos ignavos lá rendem, Aos

capítulo 3 • 63
duros guerreiros sujeitos na paz. No centro da taba se estende um terreiro, Onde ora
se aduna o concílio guerreiro Da tribo senhora, das tribos servis: Os velhos sentados
praticam d’outrora, E os moços inquietos, que a festa enamora, Derramam-se em torno
d’um índio infeliz. Quem é? — ninguém sabe: seu nome é ignoto, Sua tribo não diz: — de
um povo remoto Descende por certo — d’um povo gentil; Assim lá na Grécia ao escravo
insulano Tornavam distinto do vil muçulmano As linhas corretas do nobre perfil. Por
casos de guerra caiu prisioneiro Nas mãos dos Timbiras: — no extenso terreiro Assola-
se o teto, que o teve em prisão; Convidam-se as tribos dos seus arredores, Cuidosos
se incumbem do vaso das cores, Dos vários aprestos da honrosa função. Acerva-se a
lenha da vasta fogueira, Entesa-se a corda de embira ligeira, Adorna-se a maça com
penas gentis: A custo, entre as vagas do povo da aldeia Caminha o Timbira, que a turba
rodeia, Garboso nas plumas de vário matiz. Entanto as mulheres com leda trigança,
Afeitas ao rito da bárbara usança, O índio já querem cativo acabar: A coma lhe cortam,
os membros lhe tingem, Brilhante enduápe no corpo lhe cingem, Sombreia-lhe a fronte
gentil canitar. (DIAS, 2015, p. 1-2)

No poema encontramos a situação de um guerreio que é capturado por uma


tribo inimiga e seus valores serão contrastados. A força guerreira dos índios
é exaltada demonstrando a bravura idealizada que interessa aos românticos.
Não podemos esquecer que os escritores nacionais daquele tempo pertenciam
principalmente às classes mais abastadas da sociedade e portanto percebemos
um projeto político em seus textos. Devemos estar atentos as interações dos
movimentos artísticos e a economia e política das nações.
Retomando, como dissemos anteriormente, o século XIX é um período de
grande movimentação cultural em diversas partes do globo. Baseado nas trans-
formações tecnológicas e científicas a produção de arte e política sã entrelaça-
das. Na metade do século, principalmente na França, surgem autores buscan-
do opor suas obras ao ideal romântico. Na busca por uma representação mais
fiel da realidade – pensemos nos avanços da biologia, sociologia e demais áreas
do saber – esses escritores irão se afastar do sentimentalismo procurando cri-
ticar as instituições dominantes. Os valores instalados na sociedade burguesa
tornam-se alvo de críticas que denunciam as contradições e a corrupção dessa
classe. O movimento Realista surgiu como voz de uma população cada vez mais
urbana que sofre com a desigualdade e a exploração de seu trabalho.
Esse movimento mantinha a descrição da realidade como eixo central de

64 • capítulo 3
sua escrita, pintura, arquitetura entre outras artes. Verificamos que a pequena
burguesia e os operários ganham espaço nessa etapa. Sob forte influência do
positivismo a arte será caminho de luta, torna-se uma voz engajada na transfor-
mação social e portanto contesta as tradições.
No teatro por exemplo, encontramos o norueguês Henrik Ibsen tratando de
uma questão de suma importância para o período: o lugar e papel da mulher
na sociedade.
Concluímos que o pensamento realista pretendeu descrever a sociedade
em suas pequenezas, detalhes de uma sociedade que oprimia e explorava, de
um ser humano mesquinho e falso, do amor infiel e da insignificância do ho-
mem perante os poderes do capitalismo. Pela denuncia dos defeitos físicos e
morais procuravam descrever a realidade sem distorções.
Logo em sequência ao realismo, e interligado a ele, nasce o naturalismo.
Esse movimento buscou questionar a maneira como o homem procedia peran-
te a sociabilidade da época. A vida social tornou-se naquele tempo objeto de
estudos de diversas áreas cientificas e portanto surgiram novas análises e pro-
postas de transformações sociais.
A partir da teoria evolucionista de Charles Darwin, os naturalistas acredita-
vam na seleção natural como força que determinava a evolução das espécies e
por isso retratam em suas obras a relação da natureza humana e seu convívio
social. São severos descritores do aspecto animalesco da humanidade – a sexu-
alidade, agressividade, o instinto – principal matéria-prima de suas obras.
Encontramos nos personagens desse estilo literário inúmeros embates en-
tre a imposição de um comportamento social adequado e o funcionamento fi-
siológico do corpo humano. Temas como incesto, homoafetividade, insanida-
de são retratados como traços essenciais e inegáveis do ser humano.
Grande crítico da literatura nacional, Antonio Candido explica a potência
do Naturalismo brasileiro na obra O cortiço de Aluísio de Azevedo, leiamos:

Neste ensaio o interesse analítico se volta para um problema de filiação de textos e de


fidelidade aos contextos. Aluísio Azevedo se inspirou evidentemente em L'Assommoir,
de Emile Zola, para escrever O Cortiço, e por muitos aspectos o seu livro é um texto
segundo, que tomou de empréstimo não apenas a ideia de descrever a vida do traba-
lhador pobre no quadro de um cortiço, mas um bom número de motivos e pormenores,
mais ou menos importantes. Em ambos sobressaem as lavadeiras e sua faina, inclusive

capítulo 3 • 65
com uma briga homérica entre duas delas. Em ambos um regabofe triunfal serve de
ocasião para um encontro de futuros amantes, cujas consequências serão decisivas.
Em ambos há um policial solene, morador do cortiço, onde é uma espécie de inofensiva
caricatura da lei, embora os destinos respectivos sejam muito diferentes. Estes poucos
exemplos, apenas mencionados, servem para mostrar a derivação de que falei. Mas ao
mesmo tempo Aluísio quis reproduzir e interpretar a realidade que o cercava, e sob este
aspecto elaborou um texto primeiro. Texto primeiro na medida em que filtra o meio;
texto segundo na medida em que vê o meio com lentes tomadas de empréstimo, O Cor-
tiço é um romance bem realizado e se destaca na sua obra, geralmente medíocre, pelo
encontro feliz dos dois procedimentos. Se pudermos marcar alguns aspectos desta
interação talvez possamos esclarecer como, em país subdesenvolvido, a elaboração de
um mundo ficcional coerente sofre de maneira acentuada o impacto dos textos feitos
nos países centrais e, ao mesmo tempo, a solicitação imperiosa da realidade natural
e social imediata. Do cortiço parisiense ao cortiço carioca ("fluminense", no tempo de
Aluísio) vai uma corrente que pode ajudar a análise conveniente da obra, vista ao mes-
mo tempo como liberdade e dependência. (CANDIDO, 1993, p.112)

O texto de Aluísio de Azevedo assim como os textos naturalistas europeus,


trata de homens dominados pelos seus desejos e paixões. O comportamento
instintivo imperará na consciência desses personagens. Trata de moradias co-
letivas nas quais homens, mulheres e crianças convivem em condições mise-
ráveis, na qual a promiscuidade, o alcoolismo e a violência são naturalizadas.
Vejamos um trecho do texto do autor brasileiro.

Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua
infinidade de portas e janelas alinhadas. Um acordar alegre e farto de quem dormiu de
uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de
neblina as derradeiras notas da ultima guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à
luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia. A
roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto
acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em
alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acu-
mulações de espumas secas. Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas
de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se

66 • capítulo 3
grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aque-
cia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras pala-
vras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora
traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não
andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que
altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de
galinhas. De alguns quartos saiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a
gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosa-
mente, espanejando-se à luz nova do dia. Daí a pouco, em volta das bicas era um zun-
zum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros,
lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns
cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre
as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que
elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não
se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da
água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as
palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada
instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda
amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despa-
chavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto
das hortas. O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se;
já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o
cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e resin-
gas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela
fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os
pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante
satisfação de respirar sobre a terra.

Outro fenômeno artístico do século XIX foi o impressionismo. Destacamos


os caminhos percorridos principalmente pelos pintores desse movimento. Os
Salons eram espaços privilegiados de difusão da arte, na França, os pintores
exibiam suas obras ao público. Ao analisar a obra  Impression du Soleil Levant
de Claude Monet, o crítico de arte Louis Leroy cunhou o termo impressionista
em 1874. Tratava-se de um agrupamento de pintores que levaram a pintura um
aspecto de investigação da luz em espaços abertos.

capítulo 3 • 67
Para os artistas dessa linhagem a questão principal está na forma como o
ser humano pode registrar sua impressão de um determinado momento. Para
eles era prazeroso fixar a singularidade das situações. O diálogo com o contexto
histórico sempre é fundamental, relembramos. A França do século XIX é ce-
nário de crescimento da burguesia e seu modo de vida. O conflito social entre
operários e burgueses se avoluma e a luta de classes se torna presente nas ce-
nas cotidianas. Os artistas e intelectuais do período estão vivenciando isso por
mais difusos que sejam os intercâmbios de influências.
O escritor Charles Baudelaire irá descrever a rua parisiense daquela época.
Sua crítica contundente aos valores do romantismo burguês aponta o dedo para
uma sociedade que se constrói a partir das leis de mercado e do consumismo. No
seu texto Sobre a modernidade ele discute a questão do belo nas artes, vejamos:

Na verdade, esta é uma bela ocasião para estabelecer uma teoria racional e histórica
do belo, em oposição à teoria do belo único e absoluto; para mostrar que o belo ine-
vitavelmente sempre tem uma dupla dimensão, embora a impressão que produza seja
uma, pois a dificuldade em discernir os elementos variáveis do belo na unidade da im-
pressão não diminui em nada a necessidade da variedade em sua composição. O belo
é construído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente di-
fícil de determinar, e de um elemento relativo, circunstanciado, que será, se quisermos,
sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão. Sem esse segundo
elemento, que é como o invólucro aprazível, palpitante, aperitivo do divino manjar, o
primeiro elemento seria indigerível, inapreciável, não adaptado e não apropriado à na-
tureza humana. Desafio qualquer pessoa a descobrir qualquer exemplo de beleza que
não contenha esses dois elementos. (BAUDELAIRE, 1996, p. 10-11)

Demonstra o autor que as impressões não podem ser desvinculadas do con-


texto histórico na qual obra e público estão inseridos. Sua crítica à forma de
pensamento e expressão burguesa antecede a postura dos impressionistas.
A cidade de Paris nesse momento passa por reformas profunda. O centro
da cidade é desconstruído para dar lugar ao espaço público. Queremos dizer
com isso que as grandes avenidas e parques construídos foram responsáveis
por trazer as pessoas para a rua. Os cafés tornaram-se espaços de convivência
e de trocas culturais. As habitações populares e miseráveis forma destruídas e
as pessoas que ali habitavam encaminhadas para a periferia da cidade. A saúde

68 • capítulo 3
tornou-se lema da política social, foram realizadas obras gigantescas de sane-
amento e distribuição de água. A nova face de Paris transformará a cidade no
centro intelectual do mundo.
A seguir vamos ler um poema de Baudelaire que está no livro As flores do
mal, no qual o autor trata de seus temas prediletos no caminho de revelar sua
insatisfação com os costumes de sua época.

Reversibilidade

Ó Anjo de alegria, já viste a desgraça,


Os soluços, o tédio, o remorso, as vergonhas,
E o difuso terror dessas noites medonhas
Que o peito oprimem como um papel que se amassa?
Ó Anjo de alegria, já viste a desgraça?
Ó Anjo de bondade, já viste o rancor,
As mãos em gesto aflito e as lágrimas de fel,
Quando brande a Vingança o seu apelo cruel
E de nossas virtudes torna-se senhor?
Ó Anjo da bondade, já viste o rancor?
Ó Anjo de saúde, já viste os Delírios,
Que, ao longo das paredes do asilo alvadio,
Como exilados vão em passo tardio,
Movendo os lábios e buscando a luz dos círios?
Ó Anjo de saúde, já viste os Delírios?
Ó Anjo de beleza, as rugas já não viste,
Não viste o medo da velhice e este suplício
De ler esfíngico pavor do sacrifício
No olhar que outrora no saciou a gula triste?
Ó Anjo da beleza, as rugas já não viste?
Ó Anjo de ventura e júbilo e clarões,
Davi da morte se teria levantado
Sob os eflúvios de teu corpo enfeitiçado;
Mas a ti só imploro as tuas orações,
Ó Anjo de ventura e júbilo e clarões!

(BAUDELAIRE, 2013, p. 25)

capítulo 3 • 69
Na poesia podemos notar o diálogo que revira a lógica burguesa, o autor
contrasta beleza e rugas, saúde e delírios. Para ele a constituição da época mo-
derna está na qualidade de extrair o eterno do transitório. O grande volume de
produção de bens materiais institui as relações humanas reguladas pelo efême-
ro. Vejamos um poema sobre a vida em Paris.

A uma passante

A rua em derredor era um ruído incomum,


Longa, magra, de luto e na dor majestosa,
Uma mulher passou e com a mão faustosa
Erguendo, balançando o festão e o debrum;

Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata.


Eu bebia perdido em minha crispação
No seu olhar, céu que germina o furacão,
A doçura que embala e o frenesi que mata.

Um, relâmpago e após a noite! -  Aérea beldade,


E cujo olhar me fez renascer de repente,
Só te verei, um dia e já na eternidade?

Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!


Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado - e o sabias demais!

(BAUDELAIRE, 2013, p.107)

ATIVIDADE
O positivismo marca a formação do pensamento moderno. Nesse sentido, explique o que é o
positivismo e suas características mais importantes.
Para Baudelaire a constituição da época moderna está na qualidade de extrair o eterno
do transitório. Procure algum trecho de sua obra que confirme essa afirmação.
Descreva os estágios da construção do pensamento elaborado por Comte.

70 • capítulo 3
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRÃO, Bernadette Siqueira. História da Filosofia. São Paulo: Editora Nova cultura Ltda, 1999.
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 30. ed. São Paulo: Ática, 1997
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal: Edição bilíngüe. Nova Fronteira, 2013.
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1996.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Editora Cultrix Ltda, 1994.
Candido, Antonio. "De cortiço a cortiço." O discurso e a cidade  V.2 Rio de Janeiro: Ed. Ouro sobre o
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COMTE, Augusto. Discurso Preliminar sobre o Espírito Positivo. Exemplares disponíveis em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000028.pdf Acesso em 03 de maio de 2015.
DIAS, Gonçalves. I-Juca Pirama. Exemplares disponíveis em: <http://www.dominiopublico.gov.br/
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GOETHE JW. Os sofrimentos do jovem Werther. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
HOBSBAWN, Eric. A Era das revoluções: Europa de 1789 – 1848. Rio de Janeiro, Paz e Temi, 1977.
KANT, Imanuel. Crítica da Razão Pura. Exemplares disponíveis em: <http://www.dominiopublico.gov.
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SIMON, Maria Célia. O positivismo de Comte. Curso de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar/Seaf (1986).
SOARES, M.P. O positivismo no Brasil: 200 anos de Augusto Comte. Porto Alegre: Editora da
Universidade, 1998.
MANNION, James. O livro completo da filosofia. São Paulo: Madras Editora Ltda. 2004

capítulo 3 • 71
72 • capítulo 3
4
Racionalismo
Neste capítulo discutiremos algumas especificidades do pensamento euro-
peu que deram continuidade ao racionalismo cartesiano. Com propostas
filosóficas distintas, os autores abordados nesta unidade utilizam a lógica
racional como forma de explicar os fenômenos no mundo ao qual estavam
inseridos. Dessa maneira, sintetizaremos as análises da influência do pensa-
mento filosófico hegeliano às críticas de Nietzsche a lógica racional.

OBJETIVOS
•  Localizar as influências do pensamento de Hegel na constituição da percepção raciona-
lista do XIX.
•  Identificar as principais características do discurso de Marx na proposta de um pensamen-
to transformador.
•  Reconhecer as críticas de Nietzsche ao pensamento ocidental racional.

74 • capítulo 4
4.1  Racionalismo
O Racionalismo no início da Contemporaneidade é a recuperação do método
construído por René Descartes – cartesianismo descrito anteriormente. Claro
que essa corrente da filosofia foi transpassada pelos valores do período princi-
palmente pelas evoluções do método científico. A retomada da razão como via
de operação mental que consegue investigar e retirar conclusões propõe a ex-
plicação das causas dos fenômenos, que são matematicamente comprováveis.
Esse novo racionalismo deve muito ao sistema filosófico Hegeliano. Georg
W. F. Hegel é um filósofo que viveu entre os séculos XVIII e XIX. Alemão criado
por uma educação religiosa no seminário protestante de Tübingen, aprofun-
dou seus estudos na língua e filosofia grega. Ele acreditava que a construção
do real (política, economia, sociedade) deveria ocorrer conforme o pensamento
que segue uma linha progressiva. Dos gregos, o filósofo retira a ideia de dialé-
tica como movimento do saber; já de Descartes retira a consciência da coisa
pensante.
Hegel produz um pensamento que investiga o presente a partir do desen-
volvimento histórico, buscando a realidade para suas explicações. Devemos
ressaltar que para o autor a realidade não é algo estanque e em suas mudanças
percebemos o que é. Segundo Bernadette S. Abrão , interessa a Hegel,

Considerar o aspecto de processo que a mobilidade do real envolve. Para ele, é preciso
explicar principalmente a articulação, ou seja, as condições de modificação e o sentido
que as mudanças apresentam em todos os aspectos da realidade, desde a percep-
ção sensível até as revoluções políticas. Compreender a realidade significa entender
o modo como esse processo transcorre e, se possível, as leis que o regem. (ABRÃO,
1999, p. 350)

Nesse percurso a busca de Hegel é pela consciência total, isso significa que
há um espírito absoluto. Para James Mannion, em seus estudos sobre Hegel,
o absoluto:

capítulo 4 • 75
Em seu estado físico é a própria natureza e o mundo que nos cerca. Em sua forma espi-
ritual, o absoluto é a mente humana e a sua habilidade de raciocinar. Hegel propôs que
o Absoluto estava constantemente evoluindo e chamou esse processo de dialético. A
evolução do Absoluto é, de acordo com o filósofo, viabilizada pelo conflito dos opostos.
Portanto, Hegel acreditava que a realidade era um Espírito Absoluto e que a história
avançou por meio de seus atos constantes de síntese. A tese encontra seu oposto, a
antítese, e elas combinam em uma síntese, que então encontra sua própria antítese
para produzir uma nova síntese e assim por diante. (MANNION, 2002, p. 111)

Na dialética hegeliana podemos notar a influência do racionalismo. O autor


via a evolução da humanidade num processo histórico ordenado e racionaliza-
do. Hegel busca opiniões que no conflito se superam e encontram a verdade.
Uma de suas mais conhecidas assertivas diz: o que racional é real, e o que é real
é racional. A seguir, leiamos um trecho no qual Hegel desenvolve seu pensa-
mento acerca de um sistema filosófico verdadeiro:

O começo da cultura e do esforço para emergir da imediatez da vida substancial deve


consistir sempre em adquirir conhecimentos de princípios e pontos de vista universais.
Trata-se inicialmente de um esforço para chegar ao pensamento da Coisa em geral e
também para defendê-la ou refutá-la com razões, captando a plenitude concreta e rica
segundo suas determinidades, e sabendo dar uma informação ordenada e um juízo sé-
rio a seu respeito. Mas esse começo da cultura deve, desde logo, dar lugar à seriedade
da vida plena que se adentra na experiência da Coisa mesma. Quando enfim o rigor do
conceito tiver penetrado na profundeza da Coisa, então tal conhecimento e apreciação
terão na conversa o lugar que lhes corresponde. A verdadeira figura, em que a verdade
existe, só pode ser o seu sistema científico. Colaborar para que a filosofia se aproxime
da forma da ciência — da meta em que deixe de chamar-se amor ao saber para ser
saber efetivo — é isto o que me proponho. Reside na natureza do saber a necessidade
interior de que seja ciência, e somente a exposição da própria filosofia será uma expli-
cação satisfatória a respeito. Porém a necessidade exterior é idêntica à necessidade
interior — desde que concebida de modo universal e prescindindo da contingência
da pessoa e das motivações individuais — e consiste na figura sob a qual uma época
representa o ser-aí de seus momentos. Portanto a única justificação verdadeira das
tentativas, que visam esse fim, seria mostrar que chegou o tempo de elevar a filosofia à

76 • capítulo 4
condição de ciência; pois, ao demonstrar sua necessidade, estaria ao mesmo tempo re-
alizando sua meta. Sei que pôr a verdadeira figura da verdade na cientificidade — ou, o
que é o mesmo, afirmar que a verdade só no conceito tem o elemento de sua existência
— parece estar em contradição com uma certa representação e suas conseqüências,
tão pretensiosas quanto difundidas na mentalidade de nosso tempo. Assim não parece
supérfluo um esclarecimento sobre essa contradição — o que aliás, neste ponto, só
pode ser uma asserção que se dirige contra outra asserção. Com efeito, se o verdadeiro
só existe no que (ou melhor, como o que) se chama quer intuição, quer saber imediato
do absoluto, religião, ser — não o ser no centro do amor divino, mas o ser mesmo desse
centro —, então o que se exige para a exposição da filosofia é, antes, o contrário da
forma do conceito, O absoluto não deve ser conceptualizado, mas somente sentido e
intuído; não é o seu conceito, mas seu sentimento e intuição que devem falar em seu
nome e ter expressão. (HEGEL, 2015, p. 3)

Ocorreu na Alemanha um movimento conhecido como os Jovens


Hegelianos, extremamente ativos no racionalismo moderno. Esses pensadores
eram defensores ávidos da negação. Por esse caminho buscavam criticar a re-
alidade. Para Arnold Ruge, um dos jovens hegelianos, o nascimento do novo
racionalismo trouxe consigo,

ao converter-se em instrumento da dialética e denunciar o caráter irracional da Razão


que se fixa numa realidade determinada, torna-se ao mesmo tempo instrumento da
Crítica e, superando o passado e o presente, mostra o caminho para o futuro. (RUGE
apud ABRÃO, 1999, p. 375-376)

Hegelianos de esquerda ou Jovens Hegelianos:corrente idealista na filosofia alemã


dos anos 30-40 do século XIX, que procurava tirar conclusões radicais da filosofia
de Hegel e fundamentar a necessidade da transformação burguesa da Alemanha.
O movimento dos jovens hegelianos era representado por D. Strauss, B. Bauer e E.
Bauer, M. Stirner e outros. Durante certo tempo, também L. Feuerbach partilhou as
suas ideias, bem como K. Marx e F. Engels na sua juventude, os quais, rompendo pos-
teriormente com os jovens hegelianos, submeteram à crítica a sua natureza idealista e

capítulo 4 • 77
pequeno-burguesa em A Sagrada Família (1844) e em A Ideologia Alemã (1845-46)
In: https://goo.gl/U1sIfn .

Esse grupo de pensadores da Universidade de Humboldt tornou-se uma fa-


mosa corrente filosófica idealista. As polêmicas ao entrono dessa linha de filo-
sofia surgem a partir de discussões sobre religiosidade. No livro a Vida de Jesus
Examinada Criticamente, o jovem hegeliano David Strauss irá analisar o evan-
gelho como um texto mítico e com isso produziu uma versão de Jesus como
ator da realidade mundana. Em sua proposta é a própria humanidade que será
salvadora de si mesma, ao romper com a alienação religiosa.
Nos textos de Ludwig Feuerbach, outro dos hegelianos, a religião aparece
como escape da miséria humana. Seu texto é uma obra destinada a defesa da
razão, vejamos:

Deus enquanto Deus – como ser espiritual ou abstracto, isto é, não humano, não sen-
sível, acessível e objectivo só para a razão ou para a inteligência, nada mais é do que
a essência da própria razão; mas esta é representada pela teologia comum ou pelo
teísmo mediante a imaginação como um ser autónomo, diferente, distinto da razão. É
pois uma necessidade interna, sagrada, que com a razão se identifique finalmente a
essência da razão distinta da razão; portanto, que se reconheça, realize e actualize o
ser divino como a essência da razão. Nesta necessidade se funda o grande significado
histórico da filosofia especulativa. A prova de que o ser divino é a essência da razão
ou da inteligência reside em que as determinações ou propriedades de Deus – tanto
quanto naturalmente estas são racionais ou espirituais – não são determinações da
sensibilidade ou da imaginação, mas propriedades da razão. «Deus é o ser infinito, o ser
sem quaisquer limitações.» Mas se Deus não tem fronteiras ou limites, também a razão
não tem quaisquer fronteiras. Se, por exemplo, Deus é um ser que se eleva acima das
fronteiras da sensibilidade, também a razão igualmente o é. Quem não pode pensar
nenhuma outra existência a não ser a sensível, quem, pois, possui uma razão limitada
pela sensibilidade, possui por isso mesmo também um Deus limitado pela sensibilidade.
A razão que pensa Deus como um ser ilimitado pensa em Deus apenas a sua própria
ilimitação. O que para a razão é o ser divino é também para ela o ser verdadeiramente
racional – isto é, a essência que corresponde perfeitamente à razão e, por isso mesmo,
a satisfaz. (FEUERBACH, 2015, p.9)

78 • capítulo 4
A teoria de alienação de Feuerbach irá influenciar sobremaneira o pensa-
mento de Karl Marx, no tocante ao conceito de alienação. O primeiro descreve a
alienação quando o homem cria a ideia de Deus e se perde dela, no sentido que
a criação passa a dominar o criador.

Este ser é Deus – o bem supremo dos neoplatónicos. Só na essência se satisfaz o


homem. Substitui, pois, a carência do ser real por um ser ideal, isto é, subpõe agora a
essência da realidade abandonada ou perdida às suas representações e pensamentos
– a representação já não é para ele nenhuma representação, mas o próprio objecto; a
imagem já não é uma imagem, mas a própria coisa; o pensamento, a ideia, é a própria
realidade. Precisamente porque já não se comporta como sujeito perante o mundo real
como seu objecto é que as suas representações se lhe transformam em objectos, em
seres, em espíritos e em deuses. Quanto mais abstracto ele é, tanto mais negativo é
perante o sensível real, tanto mais sensível é justamente no abstracto. (FEUERBACH,
2015, p. 48)

Passemos agora aos filósofos que discutiram com jovens hegelianos, apesar
de na juventude terem participado do grupo.
Karl Marx e Friedrich Engels foram responsáveis por severas críticas ao ra-
cionalismo dos seguidores de Hegel. O pensamento desses filósofos inverteu a
lógica hegeliana no sentido de atribuir ao material lugar essencial na constru-
ção do pensamento humano. Se para os jovens hegelianos existia uma forma
de pensamento puro, absoluto, o qual a consciência teria acesso ao reconhecer
sua totalidade, para Marx são as condições de existência que determinam as
ideias do homem.
Retomemos um pouco a realidade histórica da qual esses dois pensadores
fazem parte.
A Revolução Industrial havia se instalado em diversos países europeus, le-
vando consigo as máquinas que produziam aceleradamente, novas formas de
energia mecânica, e a modernização do processo de produção. Isso resultou
num grande processo de industrialização das cidades que passaram cada vez
mais receber um número grande de pessoas. As populações rurais que sofriam
com a escassez de terra e trabalho, buscaram como alternativa de emprego as
indústrias e foram, assim, viver nas periferias das cidades produtoras.

capítulo 4 • 79
Esse modelo de sociedade, urbana e industrial, foi o espaço de criação de
duas classes antagônicas: os burgueses industriais e os operários das fábricas.
Estava montado o palco do capitalismo moderno. A burguesia tornara-se com
a revolução a classe dominante do período, a proprietária dos meios de pro-
dução do sistema vigente. Já o proletariado estava em condições de existência
bastante pauperizada. Como dependiam da venda de sua força física para o
recebimento de um salário, só lhes restava como alternativa o trabalho nas in-
dústrias, o que permitia ao burguês a exploração da mão de obra. Isso ocorria
porque havia milhares de pessoas a procura de trabalho em relação ao número
de postos de trabalho. Na fábrica o trabalho era pesado e as jornadas chegavam
a 14 horas. Homens, mulheres e crianças se submetiam a essa situação por es-
tarem a parte do sistema político.
Como vimos anteriormente, a burguesia conseguiu instalar nas esferas po-
líticas sua linha de pensamento. A economia política era dominada pelo libera-
lismo, que exaltava a liberdade individual e defendia a propriedade privada. O
estado não deveria interferir nos negócios individuais, reinava a lógica do laissez-
faire (deixai fazer). Na defesa das liberdades individuais cada homem era respon-
sável por realizar seus negócios, sem o controle do estado, portanto as relações
de trabalho estavam sujeitas aos desejos de patrões e trabalhadores. Óbvio que a
classe trabalhadora estava em condições subalternas e portanto o valor do salário
e o número de horas a trabalhar ficavam sob os desejos dos patrões.
Dessa maneira, fica evidente que a proposta de transformação elaborada
por Marx se estruturou concomitante a uma contundente crítica à dinâmica do
capitalismo industrial. Entre as análises feitas sobre o capitalismo, a teoria da
mais-valia é um ponto crucial da interpretação do contexto nos textos de Marx.
A mais-valia, de maneira sintética, corresponde as horas em que o operário de-
sempenha sua função, mas não é remunerado para isso. Assim, a mais-valia
corresponde a maneira pela qual os burgueses conseguem acumular suas ri-
quezas. O trabalhador não é remunerado por toda a produção de sua riqueza.

a força de trabalho do homem torna-se uma mercadoria. O operário assalariado ven-


de a sua força de trabalho ao proprietário de terra, das fábricas, dos instrumentos de
trabalho. O operário emprega uma parte do dia de trabalho para cobrir o custo do seu
sustento e de sua família (salário); durante a outra parte do dia, trabalha gratuitamente,
criando para o capitalista a mais-valia, fonte dos lucros, fonte da riqueza da classe ca-
pitalista. (LÊNIN, 1913. The Marxists Internet Archive)

80 • capítulo 4
Nesse sentido, Marx definiu a existência de dois movimentos responsáveis
por esse tempo não-remunerado de trabalho: a mais-valia absoluta e a relativa.
A exploração por meio da mais-valia absoluta se manifesta no movimento de
intensificação do ritmo de trabalho. Para tanto, os patrões incorporam inúme-
ras formas de controle capaz de acelerar o ritmo de produção. Estratégias como
cronometrar a produção e a vigilância constante permitem aumentar a produ-
ção sem alterar a hora paga de trabalho.
Por outro lado, os capitalistas encontram na mais-valia relativa uma eficien-
te estratégia de acumulação de capital. Ao introduzir inovações tecnológicas os
burgueses aumentam a produtividade das indústrias. No entanto, esse valor
não é transferido para os trabalhadores. Avanços na produtividade a partir de
novos métodos de produção diminuem o valor dos bens individuais produzi-
dos, ou seja, reduzem o valor da força de trabalho.
Surge na França então, alguns pensadores propondo um novo modelo so-
cial, que desejava diminuir as desigualdades ampliadas pelo sistema capitalis-
ta de produção. Para o historiador Eric Hobsbawn, a situação no século XIX era
a seguinte:

A novidade da situação depois de 1815 era o fato de que a frente comum era de ma-
neira crescente e direta contrária à classe média liberal e aos reis aristocratas, e que
o que lhe dava unidade eram o programa e a ideologia do proletariado, ainda que por
essa época a classe trabalhadora fabril e industrial mal existisse, e no seu todo fosse
politicamente muito menos madura do que outros grupos de trabalhadores pobres.
Tanto os pobres quanto os ricos tinham a tendência de assimilar politicamente toda
‘a massa urbana existente abaixo do nível médio da sociedade’ ao ‘proletariado’ ou a
‘classe trabalhadora’. Todo os que se sentiam pertubados pelo ‘crescente sentimento
geral e vivo de que há uma desarmonia interna no atual estado das coisas, e que tal
situação não pode durar’ se inclinavam para o socialismo como única crítica alternativa
intelectualmente válida. (HOBSBAWN, 1977, p.296-297)

O socialismo de Karl Marx e Friedrich Engels é um pensamento marcante


na história do pensamento ocidental. Os escritores buscaram analisar a histó-
ria da humanidade para compreender o tempo na qual viviam. Estudaram as
formas como cada sociedade produzia seus bens necessários para a sobrevi-
vência e chegaram a conclusão de que o modo de produção capitalista havia

capítulo 4 • 81
tomado conta da Europa oitocentista. Não nos cabe aqui tratar dos inúmeros
processos históricos retratados pelos filósofos do socialismo, portanto criare-
mos um conjunto que julgamos essencial para o seu estudo, caro leitor.
Para Marx e Engels a estrutura fundamental de todas as sociedades é a eco-
nomia. Isso significa que o direito, a linguagem, a filosofia, a arte eram deter-
minadas a partir das relações econômicas que faziam a sociedade funcionar.
A relação entre a infraestrutura social e a superestrutura é denominada pelos
autores como modo de produção. Observemos o raciocínio dos filósofos.

A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das
lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de
corporação e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante opo-
sição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que
terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária, da sociedade inteira, ou
pela destruição das duas classes em luta. Nas primeiras épocas históricas, verificamos,
quase por toda parte, uma completa divisão da sociedade em classes distintas, uma es-
cala graduada de condições sociais. Na Roma antiga encontramos patrícios, cavaleiros,
plebeus, escravos; na Idade Média, senhores, vassalos, mestres, companheiros, servos;
e, em cada uma destas classes, gradações especiais. A sociedade burguesa moderna,
que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Não
fez senão substituir novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta
às que existiram no passado. Entretanto, a nossa época, a época da burguesia, carac-
teriza-se por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade divide-se cada
vez mais em dois vastos campos opostos, em duas grandes classes diametralmente
opostas: a burguesia e o proletariado. (MARX & ENGELS, 2003, p.9)

Para Lênin, a forma como a humanidade busca recursos para explicar a re-
alidade não reflete apenas as concepções filosóficas, mas o regime econômico
da sociedade. “As instituições políticas são a superestrutura que se ergue sobre
a base econômica. Assim, vemos, por exemplo, como as diversas formas políti-
cas dos Estados europeus modernos servem para reforçar a dominação da bur-
guesia sobre o proletariado.” (LÊNIN, 1913)
Além disso, notamos que para esses pensadores a história da humanidade
está pautada na luta de classes antagônicas que são determinadas por fatores
de ordem econômica. No intuito de combater as desigualdades promovidas

82 • capítulo 4
pela Revolução Industrial os escritos Marx e Engels buscavam inflamar a socie-
dade pela busca do comunismo, num mundo sem classes no qual não existira
exploradores nem explorados.
Por detrás das palavras de Marx, encontramos seu caráter materialista. O
modo de produção de uma sociedade é determinante para ela própria, ou seja,
a maneira como uma sociedade fabrica e acumula seus bens é fundamental
para compreender as relações sociais. Assim, a ideologia dominante é a ideolo-
gia da classe dominante.

Há vários significados para o termo. Um dos mais abrangentes apresenta a ideologia


como um sistema de “ideias’ ou, mais exatamente, de crenças mais ou menos coerente.
Considera ainda que as ideologias são formas de se entender o mundo e de se posi-
cionar nele. Essa definição, porém, não é única. Para muitos intérpretes, a ideologia, ao
invés de esclarecer a realidade concreta, prejudica o seu entendimento. De qualquer
modo, existe o consenso de que nenhuma sociedade é desprovida de crenças ou valores
e a ideologia é parte desse sistema de valores mais amplos (SILVA, 2008, p. 206-207).

Para Marx a ideologia pode ocultar a realidade, uma vez que separada da
vida prática e da produção material ela esconde sua própria constituição, qual
seja ser produzida pela divisão do trabalho. Ela é capaz de esconder a divisão
social a partir da criação de uma inexistente crise de interesses e assim resul-
tando na manutenção de uma ordem instituída. Marx não pensava a ideologia
como uma mentira, mas uma inversão da realidade. Recorremos a explicação
de Bernadette Abrão.

Mas porque os dominados também são envolvidos nessa ilusão ideológica? A respos-
ta encontra-se novamente na divisão do trabalho. Na forma de então, essa divisão se
dá fundamentalmente entre os proprietários dos meios de produção (os capitalistas) e
os trabalhadores, possuidores apenas da capacidade de trabalhar, a qual vendem aos
capitalistas em troca de salário. Nessas condições, o que o trabalhador produz não lhe
pertence e aparece como um objeto que lhe é exterior, alheio e estranho. Tal estranha-
mento é o que Marx, retomando a linguagem hegeliana, denomina alienação, isto é, a
exteriorização do sujeito, na qual o próprio sujeito não se reconhece mais. (ABRÃO,
1999, PP. 379)

capítulo 4 • 83
Assim, Marx vai produzir uma literatura preocupada em alterar a dinâmica
material presente na Europa do século XIX. Todavia, antes de pensarmos nos
caminhos propostos pelo autor para alterar a lógica capitalista é relevante pon-
tuarmos a crítica elaborada por ele ao capitalismo. Ou seja, é fundamental olhar
para alguns problemas daquela dinâmica do capitalismo industrial, a saber, a
alienação, mais-valia e exploração para melhor olharmos para as propostas de
transformação defendidas por Marx. Portanto, neste momento, vamos sinteti-
zar alguns desses problemas do capitalismo industrial citados anteriormente.
Marx está postulando que o trabalho do filósofo não é apenas o pensar, mas
também agir para transformar a realidade posta. O comunismo deve acontecer
na prática e não somente na elaboração do pensamento, uma simples teoria
de transformação. E o sujeito ativo dessa transformação é o próprio operário.
Olhemos novamente no Manifesto Comunista:

O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato, mas a união cada vez
mais ampla dos trabalhadores. Esta união é facilitada pelo crescimento dos meios de
comunicação criados pela grande indústria e que permitem o contato entre operários
de localidades diferentes. Ora, basta esse contato para concentrar as numerosas lutas
locais, que têm o mesmo caráter em toda parte, em uma luta nacional, em uma luta de
classes. Mas toda luta de classes é uma luta política. E a união que os habitantes das
cidades da Idade Média levavam séculos a realizar, com seus caminhos vicinais, os
proletários modernos realizam em alguns anos por meio das vias férreas. A organização
do proletariado em classe e, portanto, em partido político, é incessantemente destruída
pela concorrência que fazem entre si os próprios operários. Mas renasce sempre, e
cada vez mais forte, mais firme, mais poderosa. Aproveita-se das divisões intestinas
da burguesia para obrigá-la ao reconhecimento legal de certos interesses da classe
operária, como, por exemplo, a lei da jornada de dez horas de trabalho na Inglaterra. Em
geral, os choques que se produzem na velha sociedade favorecem de diversos modos o
desenvolvimento do proletariado. A burguesia vive em guerra perpétua; primeiro, contra
a aristocracia; depois, contra as frações da própria burguesia cujos interesses se en-
contram em conflito com os progressos da indústria; e sempre contra a burguesia dos
países estrangeiros. Em todas essas lutas, vê-se forçada a apelar para o proletariado,
reclamar seu concurso e arrastá-lo assim para o movimento político, de modo que a
burguesia fornece aos proletários os elementos de sua própria educação política, isto é,
armas contra ela própria. Demais, como já vimos, frações inteiras da classe dominante,

84 • capítulo 4
em consequência do desenvolvimento da indústria são precipitadas no proletariado,
ou ameaçadas, pelo menos, em suas condições de existência. Também elas trazem ao
proletariado numerosos elementos de educação. (MARX & ENGELS, 2003, p. 23-24)

O plano de Marx e Engels é a construção da unidade entre os diversos prole-


tariados para a derrubada da burguesia e a tomada do poder. Quando falam em
coesão da classe social eles pretendem inclusive dissolver as fronteiras nacio-
nais, pois é necessário que qualquer forma de propriedade seja compartilhada,
por isso existe a intenção de um movimento internacional.
Portanto, é basilar relacionar a importância da literatura marxiana para a
articulação do movimento operário no mundo. Marx acreditava que a primei-
ra experiência socialista ocorreria na Inglaterra dado que o início do processo
industrial eclodiu na ilha. Nesse sentido, começamos a evidenciar a relação en-
tre a lógica dialética e o pensamento de Marx. Para o autor, a intensificação do
processo capitalista geraria o movimento revolucionário de oposição a ele. Ou
seja, como a Inglaterra tinha os mais evidentes contrastes gerados pelo capita-
lismo industrial insurgiria lá a consciência de classe e articulação das revolu-
ções socialistas.
Dessa maneira, é primordial articularmos o pensamento marxista com
o desenvolvimento do movimento operário no mundo. Havia no contexto da
Europa industrial do século XIX um evidente contraste gerado pela acumula-
ção capitalista. Concomitante a essa desigualdade crescia a insatisfação dos
trabalhadores das fábricas. Entretanto, o movimento de resistência a essa ex-
ploração ainda não havia, segundo Marx, desenvolvido a consciência de classe
entre o proletariado. Nesse sentido, diversas manifestações no cenário europeu
aconteciam sem um esclarecimento de quem era a culpa da péssima condição
de trabalho ou do desemprego. Os ludistas, por exemplo, quebraram as má-
quinas com a leitura de que a tecnologia era a responsável pelos problemas no
mundo do trabalho.
Assim, a grande contribuição do pensamento de Marx para a classe traba-
lhadora caminhou na reflexão sobre a busca pela consciência de classe. Ou
seja, a exploração dos operários existia proporcional ao acúmulo de riqueza da
burguesia. Nesse caminho, era incoerente na lógica marxista que os trabalha-
dores se aliassem com os patrões na busca de uma melhoria das condições de
trabalho. Não havia alianças possíveis uma vez que nessa perspectiva há um

capítulo 4 • 85
antagonismo de interesses. Nessa medida, somente o fim da propriedade pri-
vada poderia efetivamente gerar uma transformação nas condições de trabalho
e na diminuição da alienação.
O que fica evidente então do discurso de Marx é a necessidade de buscar
a consciência de classe. Ou seja, perceber como havia interesses contrários
entre a burguesia e o proletariado. Nesse viés, não havia coerência na guerra,
por exemplo, entre Alemanha e Inglaterra. Conflitos como esse só reforçavam
a dinâmica do capitalismo monopolista e, no limite, representavam a luta de
proletários alemães contra operários ingleses para fortalecer as indústrias e,
consequentemente, a burguesia. Assim, um conflito legítimo na concepção
marxiana se daria entre proletários e burgueses. Quando o autor descreve no
Manifesto Comunista: “Proletários de todo o mundo, uni-vos” há uma evidente
conotação de que a luta era internacional para que a esse modelo de exploração
acabasse nos diferentes espaços do globo.
Nesse caminho, a primeira busca da classe trabalhadora deveria ser o movi-
mento de conscientização e busca por definir quem eram os responsáveis pelo
desemprego e por péssimas condições de trabalho. No contexto do XIX euro-
peu, grande parte da produção da riqueza se concentrava na burguesia indus-
trial. Em contrapartida, milhões de trabalhadores não se identificavam com
seu trabalho e não ganhavam o suficiente para ter uma vida digna. Portanto,
esses trabalhadores precisavam identificar na propriedade privada a origem da
exploração. O meio para a transformação, a saber, o fim da propriedade privada
dos meios de produção, era a união dos trabalhadores, grande maioria contra a
burguesia. Além disso, há uma preocupação no discurso de Marx em destacar
que dificilmente essa revolução se daria de forma pacífica. Assim, os operários
precisariam estar preparados para uma luta armada.
Devemos ressaltar por fim, que umas das contribuições de maior importân-
cia do pensamento marxiano foi o modelo de interpretação da realidade, o ma-
terialismo histórico dialético. Partindo da dialética de Hegel, o filósofo buscou
compreender o mundo e as coisas por uma interpretação que unisse visão de
mundo e a práxis. Essa última não remete tão somente a prática, mas sim na
união da força física e da capacidade de idealizar (teoria e ação). Porém, deve-
mos manter a atenção no fato de que o que produz as ideias para Marx são as
condições materiais da vida, ou seja, a concretude. Nesse sentido, há um rom-
pimento com a lógica do pensamento hegeliano na medida em que a filosofia
se forma como base para interpretação mas também para a transformação da
sociedade por meio de mudanças no mundo material.

86 • capítulo 4
Outro pensador que participou da crítica ao racionalismo foi Friedrich
Wilhelm Nietzsche. Nascido em 1844 foi um dos filósofos mais sujeito a con-
troversas. Ele próprio dizia que seu pensamento seria compreendido apenas
séculos mais tarde. Seus textos são uma potência negadora de todos os princí-
pios morais, políticos, religiosos e políticos. Atualmente em nossa sociedade
de consumo não são poucos os ambientes nos quais encontramos um de seus
mais famosos dizeres: Deus está morto!
Para esse filósofo a razão, consciência, não pode ser a rainha da humani-
dade, isso porque ele considera frequentes as falhas de nossos sentidos, nossa
mente. Nietzsche postula que a mente humana é um órgão fragilizado e não
deveria ser tomada como ápice de nossa evolução. O autor exalta os instintos
humanos, que foram ao longo do tempo sendo oprimidos pelo predomínio da
razão, da lógica, da ciência, etc. Nesse ponto notamos que o desejo do filósofo é
analisar e criticar o paradigma civilizatório ocidental.
Nietzsche estou teologia e filosofia na Universidade de Bonn, Alemanha.
Porém seus estudos e escritos foram influenciados pela filologia – o estudo
científico de uma língua. Seus textos a partir desse instrumento foram capazes
de compreender como as formas históricas estão inseridas na literatura e como
esta demonstra como a sociedade é regida, revelando a mentalidade do tempo
a qual se referem.

Nós, que somos homens do conhecimento, não conhecemos a nós próprios; somos de
nós mesmos desconhecidos e não sem ter motivo. Nunca nós nos procuramos: como
poderia, então que nos encontrássemos algum dia? Com razão alguém disse: "onde es-
tiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração". Nosso tesouro está onde se assen-
tam as colmeias do nosso conhecimento. Estamos sempre no caminho para elas como
animais alados de nascimento e recolhedores do mel do espírito, nos preocupamos de
coração propriamente de uma só coisa - de "levar para casa" algo. No que se refere,
por demais, a vida, as denominadas "vivências" - quem de nós tem sequer suficiente
seriedade para elas? Ou o suficiente tempo? Jamais temos prestado bem atenção "ao
assunto": ocorre precisamente que não temos ali nosso coração - e nem sequer nosso
ouvido! Antes bem, assim como um homem divinamente distraído e absorto a quem o
sino acaba de estrondear fortemente os ouvidos com suas dozes batidas de meio-dia,

capítulo 4 • 87
e de súbito acorda e se pergunta "o que é que em realidade soou?", assim também nós
abrimos às vezes, os ouvidos depois de ocorridas as coisas e perguntamos, surpreendi-
dos e perplexos de tudo, "o que é que em realidade vivemos?, e também " quem somos
nós realmente? e nos pomos a contar com atraso, como temos dito, as doze vibrantes
campainhas de nossa vivência, de nossa vida, de nosso ser - ah! e nos equivocamos na
conta... Necessariamente permanecemos estranhos a nós mesmos, não nos entende-
mos, temos que nos confundir com outros, e, em nós servirá sempre a frase que disse
"cada um é para si mesmo o mais distante" continuamos a nos considerar "homens do
conhecimento". (NIETZSCHE, 2005, p. 12)

O filosofo defendeu a ideia de que a forma de conhecimento guiada pela


razão levou o ser humano ao controle ideológico de alguma instituição. A mo-
ral e a religião são severamente críticas por eles, pois na história da humani-
dade servem como mecanismo de controle, nos quais alguns homens fazem o
que quiserem com outros homens. Segundo Bernadette Abrão, o autor alemão,
analisou as metamorfoses da civilização ocidental, na qual o espírito se trans-
mutou em camelo, o camelo em leão e, por fim, o leão em criança, leia a seguir
como essa operação ocorreu:

Compreenda-se: nossa civilização passou primeiro pelo domínio do “tu deves”, quer
dizer, pelo primado da moral e da religião; esta primeira etapa do espírito cede seu lugar
ao domínio do “eu quero”, que designa o eclipse do mundo do dever e a libertação da
vontade; enfim, o “eu quero” supera-se no “eu sou”, uma nova relação do indivíduo com
a sua existência. Para apreender do interior estes períodos, vale a pena situar-se na
etapa intermediária – domínio do “eu quero” -; que é o período do niilismo europeu. “Que
vos fala” diz Nietzsche, “é o primeiro niilista perfeito da Europa”. O niilismo é antes de
tudo o território onde Nietzsche se situa para falar. (ABRÃO, 1999, p.413-414)

Segundo a estudiosa de filosofia, Nietzsche fala de uma posição conhecida


como niilismo – linha da filosofia que compreende o mundo de maneira pes-
simista e cética, a palavra deriva do latim nihil, que significa nada. Os niilis-
tas acreditam que não há nada para além da positividade e materialidade das
coisas, ou seja, questões como de onde vem a vida (metafisicamente)? ; qual
o sentido da vida? Os autores dessa doutrina filosófica acreditam que não há

88 • capítulo 4
respostas possíveis a tais indagações e qualquer tentativas de respondê-las são
convenções, moralismos e verdades que se pretendem absolutas, todas engo-
dos bem engendrados do ser humano!
O texto de Nietzsche que criticou claramente a moral instalada em sua épo-
ca foi Para além do Bem e do Mal. Nesta obra o autor defendeu um papel ativo
para o quem se pretende filósofo. Para ele somente aqueles que vivessem uma
vida mais ampla e profunda poderiam criar condições de compreender a socie-
dade e assim elaborar um pensamento crítico sobre ela.
Ir além do bem e do mal significa para Nietzsche que toda moralidade é ins-
talada por algum grupo que domina ideologicamente a sociedade e por isso
não é valida. Aquele que consegue verificar essa invalidez irá perceber o quanto
de potência a vida do homem possui, ou seja, quantas possibilidades de poder
ser. Em suas próprias palavras seu texto é uma crítica da modernidade; das ci-
ências, artes e inclusive política.

Nossas mentes rechaçam a ideia do nascimento de uma coisa que pode nascer de uma
contrária, por exemplo: a verdade do erro; a vontade do verdadeiro da vontade do erro; o
ato desinteressado do egoísmo ou a contemplação pura do sábio, da cobiça. Tal origem
parece impossível: pensar nisso parece próprio de loucos. As realidades mais sublimes
devem ter outra origem, que lhes seja peculiar. Não pode ser sua mãe esse mundo
efêmero, falaz, ilusório e miserável, esta emaranhada, cadeia de ilusões, desejos e frus-
trações. No seio do ser, no qual não morrerá nunca, num deus oculto, na “coisa em si” é
onde deve se lobrigar seu princípio, ali e em nenhuma outra parte. Este é o preconceito
característico dos metafísicos de todos os tempos, este gênero de apreciação se en-
contra na base de todos seus procedimentos lógicos. A partir desta "crença" esforçam
se em alcançar um “saber”, criam a coisa que, afinal, será pomposamente batizada com
o nome de "verdade". A crença medular dos metafísicos é a crença na antinomia dos
valores. Nem aos mais avisados dentre eles ocorreram dúvidas desde o início, quando
teria sido mais necessário: ainda que tivessem feito vota "de onnibus dubitandum". En-
tretanto, deve-se duvidar, imediatamente, da existência de antinomias; depois dever-se
-ia perguntar se as valorações e as oposições de valores usuais às quais os metafísicos
apuseram seu sinete, não são apenas valorações superficiais, perspectivas momentâ-
neas, tomadas a partir de um ângulo determinado, perspectivas de peixe, no faizão dos
pintores. Qualquer que seja o valor que concedamos ao verdadeiro, à veracidade, ao
desinteresse, poderia acontecer que nos víssemos obrigados a atribuir à aparência, à

capítulo 4 • 89
vontade da ilusão, ao egoísmo e à cobiça, um valor superior e mais essencial à vida; po-
der-se-ia chegar a supor inclusive que as coisas boas têm um valor pela forma insidiosa
em que estão emaranhadas e talvez até cheguem a ser idênticas em essência às coi-
sas más que parecem suas contrárias. Talvez! ... mas há quem se preocupe com esses
perigosos 'talvez'? Esse, terá que esperar a chegada de uma nova espécie de filósofos,
diferentes em gostos e inclinações a seus predecessores: filósofos do perigoso 'talvez',
em todos os sentidos da palavra. Falo com toda sinceridade, pois vejo a vinda desses
novos filósofos... (NIETZSCHE, 2001, p. 12-13)

Verificamos nessa citação que o autor nos apresenta como as questões de


filosofia podem trazer um esclarecimento ao saber, no sentido de que a com-
preensão das gêneses morais, políticas e cientificas podem demonstrar como
em nome de Deus inúmeras maldades são realizadas, ou seja, um traço do bem
pode gerar maldade, e vice-versa. Para Nietzsche a genealogia – exposição da
origem e ramificações de um pensamento, moral, etc. – é caminho para análi-
se e compreensão dos conceitos vigentes em cada período histórico, tanto do
bem quanto do mal. Nietzsche foi um filosofo fundamental para questionar os
valores , tidos como absolutos, que foram utilizados para fundar a civilização
ocidental.
Tratemos agora do pai da psicanálise: Sigmund Freud. Primeiro devemos
relembrar que as questões relativas a consciência não foram invenções dos ho-
mens modernos. Já na Grécia antiga os filósofos tratavam do tema. Temos o
exemplo clássico do mito platônico da caverna na qual as sobras refletidas na
parede da caverna representa apenas um aspecto da vida, e que a realidade deve
ser alcançada por aqueles que questionam, investigam e atingem o conheci-
mento. A psicologia passa a ganhar força no século XIX com as investigações
sobre o inconsciente.

CONEXÃO
Leia o texto de Freud sobre o tema na página <http://goo.gl/xaE5Xr>.

No texto O mal estar na civilização, o pai da psicologia moderna, que teori-


zou amplamente sobre o inconsciente, procurou demonstrar que os avanços

90 • capítulo 4
tecnológicos e científicos não levaram a humanidade a um estágio de maior fe-
licidade, a civilização ocidental moderna não conseguiu garantir que as pesso-
as se tornassem feliz. Isto porque no caminho da busca do prazer passamos por
tanto trabalho, sofrimentos e necessidades que a satisfação não é possível. Sua
teoria do inconsciente estabelece que nossos pensamentos são completamen-
te interligados, existe uma cadeia de nexos entre nossas memórias e sentimen-
tos e, por consequência, nossos modos de agir. Cada uma dessas etapas possui
uma causa, seja inconsciente ou consciente. Seu método determinista previa
que quando não conseguimos encontrar os nexos conscientemente devemos
buscar no inconsciente, investigação que levará a ligação dos elos.
Outra questão fundamental da teoria de Freud é a maneira como nos rela-
cionamos com nossos impulsos sexuais, a sociedades se estruturam e se repro-
duzem de acordo com o controle e repressão de nossa sexualidade. Vejamos no
trecho do livro supracitado:

A tendência por parte da civilização em restringir a vida sexual não é menos clara do
que sua outra tendência em ampliar a unidade cultural. Sua primeira fase, totêmica, já
traz com ela a proibição de uma escolha incestuosa de objeto, o que constitui, talvez,
a mutilação mais drástica que a vida erótica do homem em qualquer época já expe-
rimentou. Os tabus, as leis e os costumes impõem novas restrições, que influenciam
tanto homens quanto mulheres. Nem todas as civilizações vão igualmente longe nisso,
e a estrutura econômica da sociedade também influencia a quantidade de liberdade
sexual remanescente. Aqui, como já sabemos, a civilização está obedecendo às leis da
necessidade econômica, visto que uma grande quantidade da energia psíquica que ela
utiliza para seus próprios fins tem de ser retirada da sexualidade. Com relação a isso, a
civilização se comporta diante da sexualidade da mesma forma que um povo, ou uma
de suas camadas sociais, procede diante de outros que estão submetidos à sua explo-
ração. O temor a uma revolta por parte dos elementos oprimidos a conduz à utilização
de medidas de precaução mais estritas. Um ponto culminante nesse desenvolvimento
foi atingido em nossa civilização ocidental europeia. Uma comunidade cultural acha-se,
do ponto de vista psicológico, perfeitamente justificada em começar por proscrever as
manifestações da vida sexual das crianças, pois não haveria perspectiva de subme-
ter os apetites sexuais dos adultos, se os fundamentos para isso não tivessem sido
lançados na infância. Contudo, uma comunidade desse tipo de modo algum pode ser
justificada se vai até o ponto de realmente repudiar essas manifestações facilmente

capítulo 4 • 91
demonstráveis e, na verdade, notáveis. Quanto ao indivíduo sexualmente maduro, a es-
colha de um objeto restringe-se ao sexo oposto, estando as satisfações extragenitais,
em sua maioria, proibidas como perversão. A exigência, demonstrada nessas proibi-
ções, de que haja um tipo único de vida sexual para todos, não leva em consideração
as dessemelhanças, inatas ou adquiridas, na constituição sexual dos seres humanos;
cerceia, em bom número deles, o gozo sexual, tornando-se assim fonte de grave in-
justiça. O resultado de tais medidas restritivas poderia ser que, nas pessoas normais
– que não se acham impedidas por sua constituição –, a totalidade dos seus interesses
sexuais fluísse, sem perdas, para os canais que são deixados abertos. No entanto, o
próprio amor genital heterossexual, que permaneceu isento de proscrição, é restringido
por outras limitações, apresentadas sob a forma da insistência na legitimidade e na
monogamia. A civilização atual deixa claro que só permite os relacionamentos sexuais
na base de um vínculo único e indissolúvel entre um só homem e uma só mulher, e que
não é de seu agrado a sexualidade como fonte de prazer por si própria, só se achando
preparada para tolerá-la porque, até o presente, para ela não existe substituto como
meio de propagação da raça humana.

A teoria freudiana nasce de inúmeras pesquisas realizadas por Freud na


prática com pacientes neuróticos. O autor descreveu como os traumas causa-
dos na infância, por conta das repressões diversas, afetam o período de vida
adulta. Sua tese defende que as repressões são principalmente relacionadas a
sexualidade infantil, daí retiramos como a questão da sexualidade é centra para
a obra de Freud. Suas descobertas nessa área de investigação trouxeram as se-
guintes conclusões: a sexualidade se manifesta na criança desde o nascimento;
sexualidade conjuga prazer e reprodução e passa por diversos períodos antes
da vida adulta; a libido é energia fundamental do ser vivo que se manifesta pela
sexualidade.
Perante essas descobertas o psicanalista construiu uma categorização das
fases pelas quais passam o desenvolvimento de nossa sexualidade. Vejamos:

O Estágio Oral vai do nascimento até o décimo oitavo mês. Durante esse estágio o
bebê descobre o mundo através de sensações orais. O Estágio Anal vai do décimo
oitavo mês até o trigésimo sexto mês, coincidindo com o período em que a criança
aprende a usar o vaso sanitário. Adultos que ficam psicologicamente presos a esse

92 • capítulo 4
estágio são meticulosos e inquietos ou totalmente negligentes. O Estágio Fálico vai dos
três anos até os seis anos. A criança torna-se fascinada com seus órgãos genitais e
surge o complexo de Édipo Latente, de acordo com Freud. Ele vai dos seis anos até a
puberdade. Esse é o período em que as meninas são repulsivas para com os meninos e
vice-versa. O último estágio é o Estágio Genital, que começa na puberdade e continua
durante toda a vida. Um indivíduo normal começa o que será uma vida sexual feliz e
gratificante. (MANNION, 2004, p. 163)

Para definir as organizações psíquicas, Freud criou um sistema que deriva-


va dos lugares em que cada um deles ocupava na mente. O modelo de lugares
ele denominou utilizando o termo grego para lugar: topos. Na primeira tópi-
ca, são apresentados os sistemas: consciente, pré-consciente e inconsciente.
Sobre o primeiro, nos explica que sua função é receber as informações advin-
das do exterior e do interior, que por sua vez são registradas conforme nosso
prazer ou desprazer. O segundo, serve como filtro para o consciente e também
como um arquivo de registro. O terceiro, o inconsciente, é a parte mais antiga
de nossas experiências humana, guarda elementos instintivos, desconhecidos
do sistema consciente.
O segundo modelo é conhecido como Estrutural. Ao contrário da primeira
tópica, que possui certa passividade, a segunda é bastante dinâmica. Freud di-
vidiu a mente em três instancias de funcionamento: id, ego e superego.
Vejamos a descrição da estrutura pelo professor Marcus Vinicius da Cunha:

O id é a instância que contém os impulsos inatos, as inclinações mais elementares do


indivíduo. O id é composto por energias – denominadas por Freud de pulsões – deter-
minadas biologicamente e determinantes de desejos e necessidades que não reco-
nhecem qualquer norma socialmente estabelecida. O id não é socializado, não respeita
convenções, e as energias que o constituem buscam a satisfação incondicional do
organismo. Ao passo que o id é inato, as duas outras partes da personalidade desen-
volvem-se no decorrer da vida da pessoa. O ego, que significa literalmente “eu”, é o
setor da personalidade especializado em manter contato com o ambiente que cerca o
indivíduo. Ele é a porção visível de cada um de nós, convive segundo regras socialmente
aceitas, sofre as pressões imediatas do meio e executa ações destinadas a equilibrar o
convívio da pessoa com os que a cercam. O superego, por sua vez, é um depositário das

capítulo 4 • 93
normas e princípios morais do grupo social a que o indivíduo se vincula. Nele se con-
centram as regras e as ordenações da sociedade e da cultura, representadas, inicial-
mente, pela família e, posteriormente, internalizadas pela pessoa. Podemos visualizar a
dinâmica entre essas três instâncias da seguinte maneira: energias determinantes de
desejos, originárias do id, devem chegar ao nível do ego para que este possa articular
ações supressoras das necessidades então impostas. Se o ego irá dar conta de fazê-lo
ou não, este é um problema que diz respeito às possibilidades reais de que dispõe o
indivíduo. (Marcus Vinicius Cunha – FREUD: Psicanálise e Educação, exemplares dis-
poníveis em http://goo.gl/WcUzd4 , acesso em 20 de maio de 2015)

Nos anos de 1930, Freud publicou alguns livros que causaram polêmicas.
A psicanálise freudiana já possuía bastantes seguidores e alguns críticos. Nos
vale sempre ressaltar que suas investigações e conclusões enterraram a ima-
gem mística e religiosa dos distúrbios mentais, uma vez que ele construiu um
método de análise. As mudanças ocorridas na psicoterapia pautadas nos co-
nhecimentos trazidos por Freud mudaram a maneira de tratar os “desvios” da
psique humana. Porém, encontramos entre os seguidores de Freud alguns que
romperam com seus pensamentos e trouxeram novas interpretações, discor-
dando principalmente do determinismo da sexualidade.
Neste último momento, iremos verificar os saberes trazidos por outro críti-
co do Racionalismo: Henri Bergson. Nascido em Paris no ano de 1859, formou-
se em Letras, foi professor da Universidade de Paris e diplomata francês. Suas
obras, assim como outros filósofos do período, foram extremamente influen-
ciadas pelo positivismo, mas ampliaram algumas discussões pela introdução
de novos aspectos científicos trazidos pela psicologia, biologia e uma filosofia
da física (neokantismo francês).
Para Bernadette Abrão,

Toda a filosofia de Bergson, naquilo que tem de mais original e inovador, funda-se
num objetivo aparentemente simples: o retorno à experiência imediata, aquela que está
aquém das imediações simbólicas que construímos entre nós e as coisas, ou mesmo
entre nós e nossa personalidade, naquilo que esta tem de mais autêntico e profundo.
E não é fácil anular os esquemas de interpretação do mundo que se tornaram consti-
tutivos de nossa experiência, tanto no nível prático como no teórico. São hábitos cuja

94 • capítulo 4
origem remonta a épocas anteriores ao que poderia ser identificado pela a memória
coletiva; são categorias que nosso entendimento parece ter sido levado naturalmente
a eleger; são maneiras de conduzir o raciocínio que, de tão arraigadas, aparecem como
as únicas possíveis. Há, enfim, toda uma lógica que rege nossa vida prática e intelectu-
al, profundamente embutida na nossa linguagem, responsável pelas linhas básicas de
nossa visão de mundo. (ABRÃO, 1999, p. 434-435)

Podemos observar que Bergson trouxe a discussão novamente para a expe-


riência humana. Para ele todos os animais têm como pressuposto a proteção
à própria vida, portanto precisa se organizar para isso. Desta forma tanto a in-
teligência do homem com seus instintos devem trabalhar para a adaptação a
vida. Adepto da ideia de evolução, o autor defendia que a inteligência humana
nos leva a invenção e ao progresso, portanto as ciências são estágios acumula-
tivos das experiências humanas que quanto mais sofisticadas mais produzem
o avanço da civilização.
Diversos autores tratam Bergson como o último dos metafísicos. Seu méto-
do intuitivo coloca-se do outro lado da metodologia científica de análise.

ATIVIDADES
01. Segundo Karl Marx: “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas manei-
ras; o que importa é modificá-lo”. Sobre a ideia de socialismo científico defendida por Marx,
podemos afirmar. Explique a afirmação acima.

02. Para Marx: “O dinheiro é a essência alienada do trabalho e da existência do homem; a


essência domina-o e ele adora-a”. Explique como Marx entende o trabalho no modelo capi-
talista.

03. Avalie as asserções a seguir e a relação proposta entre elas.


V. Sob a perspectiva da totalidade e da transformação a partir das contradições sociais
internas que Marx desenvolveu sua análise materialista.
PORQUE
VI. Marx afirmava que a estrutura de uma sociedade está condicionada pela forma com
que esta mesma sociedade se organiza para produzir seus bens: as condições materiais de
produção determinam as formas de pensamento.

capítulo 4 • 95
A respeito dessas asserções, assinale a opção correta.
a) As asserções I e II são proposições verdadeiras, e a II é uma justificativa correta da I.
b) As asserções I e II são proposições verdadeiras, mas a II não é uma justificativa correta
da I.
c) A asserção I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa.
d) A asserção I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira.
e) As asserções I e II são proposições falsas.

04. “ (...) suponhamos que um funcionário leve 2 horas para fabricar um par de calçados.
Nesse período ele produz o suficiente para pagar todo o seu trabalho. Mas, ele permanece
mais tempo na fábrica, produzindo mais de um par de calçados”
(Acesso:http://www.roocarneiro.seed.pr.gov.br/redeescola/escolas/5/2270/15/arquivos/
File/mais-valia.pdf)
Pensando nisso, responda:
a) qual a relação entre a citação e o conceito de mais-valia em Marx?
b) dê uma consequência da utilização da mais-valia em nosso mundo.

05. Marx e Engels foram um dos responsáveis pelo avanço teórico capaz de estimular a
classe operária em sua luta contra os excessos do capitalismo. Eles publicaram, ao longo do
século XIX, uma literatura pela qual havia a definição do socialismo científico. Sobre a ideia
de socialismo defendida por Marx, podemos afirmar:
a) O socialismo científico depende diretamente da consciência da classe proletária e da
socialização dos meios de produção.
b) O socialismo científico se diferencia do capitalismo, pois no socialismo há uma valoriza-
ção da propriedade privada.
c) Segundo Marx e Engels, o socialismo científico não era para ser posto em prática, para
eles, o socialismo deveria se reduzir ao plano teórico.
d) O socialismo científico pretendia fortalecer a classe burguesa em seu ideal igualitário.
e) Ao contrário do capitalismo, o socialismo científico pretendia explorar a classe trabalha-
dora e manter a desigualdade social.

06. Segundo Bernadette Abrão: “Nietzsche, “é o primeiro niilista perfeito da Europa”. A que
a autora se refere com essa afirmação?

96 • capítulo 4
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRÃO, Bernadette Siqueira. História da Filosofia. São Paulo: Editora Nova cultura Ltda, 1999.
FEUERBACH, Ludwig. Princípios da Filosofia do Futuro. Exemplares disponíveis em <http://www.
lusosofia.net/textos/feuerbach_ludwig_principios_filosofia_futuro.pdf>. Acesso em: 09 de maio de
2015.
FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. Exemplares disponíveis em: <http://goo.gl/0hnacI>.
Acesso em: 13 de maio de 2015.
LÊNIN. As Três Fontes e as Três partes Constitutivas do Marxismo. 1913. Fonte: The Marxists
Internet Archive
MANNION, James. O livro completo da filosofia. São Paulo: Madras Editora Ltda. 2004
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. Editora Paz e Terra, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral (1887). Rio de Janeiro: Companhia das Letras (2005).
NIETZSCHE, Friedrich. Para além do Bem e do Mal ou Prelúdio de uma filosofia do futuro.
Curitiba: Hemus Editora S. A., 2001.
HEGEL, G.F.W. Fenomenologia do espírito. Exemplares disponíveis em: <http://www.
dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000058.pdf>. Acesso em: 09 de maio de 2015.
SILVA, Kalina Vanderlei. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2008.

capítulo 4 • 97
98 • capítulo 4
5
O século XX
Este capítulo pretende analisar movimentos do século XX que marcaram
contundentes manifestações do pensamento contemporâneo. Movimentos
como o fundamentalismo religioso, o ambientalismo e os direitos humanos
configuram novas concepções do homem frente às transformações da socie-
dade no capitalismo monopolista e financeiro. Dessa maneira, novas lógicas
e formas de organização se configuram no espaço urbano europeu e mundial.

OBJETIVOS
•  Localizar a formação do fundamentalismo religioso.
•  Contextualizar o discurso das religiões monoteístas.
•  Reconhecer o ambientalismo como uma relevante manifestação do pensamento humano
na contemporaneidade.
•  Analisar os direitos humanos como síntese de anseios sociais mundiais.

100 • capítulo 5
5.1  O fundamentalismo religioso
A respeito do termo fundamentalismo existem discussões diversas, sem que
um consenso coloque fim e determine uma verdade. Alguns autores apontam
para o século XVII a gênese do movimento, com a aceleração e acentuação da
individualização e acentuação da vida religiosa.
Para o professor Hans-Georg Flickinger, o ponto de convergência sobre o
conceito de fundamentalismo está na característica de retorno a tradição, a re-
tomada de valores do passado que possam realocar a consciência humana nos
princípios que foram dissolvidos no processo de modernização da sociedade.
Porém, devemos ir além desse reducionismo para compreendermos as interfe-
rências socioculturais em nosso tempo.
Na apresentação do livro Fundamentalismo, da editora Edipucrs, Flickinger
nos demonstra o terreno no qual as principais discussões se alicerçam, veja-
mos a seguir,

Compreendido como utopia voltada para o passado – embora produto da convicção re-
ferente ao necessário domínio irrestrito da racionalidade moderna – o fundamentalismo
marca o fio condutor das contribuições apresentadas nessa coletânea. Em busca do
desolcultamento das verdadeiras raízes deste fenômeno, os autores abordam a temá-
tica com perseverança crítica, sem se deixar enganar pelas aparências imediatas, ob-
servadas nas diferentes áreas de expressão do fundamentalismo. Protestando “contra
um mundo que admite o sentido apenas como oferta , embora ele mesmo se apresente
como oferta de sentido” (C. Türcke, pág. 61), o fundamentalismo decreta certezas das
quais ele mesmonão pode estar certo. Em outras palavras , a base do fundamentalismo
não é apenas contraditória em si mesma, mas explica, também, o motivo que levou
estes movimentos a se imunizarem contra qualquer postura crítica: a crítica iria atingir
necessariamente, a imposição irrefletida das pretensas verdades fundamentalismos
das diferentes áreas a buscar, desesperadamente, alianças com o poder recorrendo
aos meios da violência e da intolerância. A tese, segundo a qual “a busca do poder traz
sempre uma insegurança íntima” (A. Künzli, pág. 68) é idêntica àquela que atribui à
insegurança íntima a necessidade de se disfarçar pelo poder e pela violência. Não são
poucos os exemplos que servem de ilustração a essa tese. Tanto a luta das grandes
religiões contra a descrença crescente referente a suas bases dogmáticas, quanto o
surgimento das seitas coo oposição ao desdobramento do liberalismo desenfreado, ou

capítulo 5 • 101
os diversos nacionalismos que tentam ocupar o espaço político em relação a globaliza-
ção das estruturas econômicas, dão prova de uma “atitude ofensiva” (O. Guariglia, pág.
31) dos moviments fundamentalistas; atitude esta que não se dirige apenas contra o
liberalismo laico, mas, de modo oculto, contra a falta de bases legitimadoras destes
mesmos movimentos. A “dialética segundo a qual cada desencantamento forçado do
mundo deve ser pago com formas sempre novas de encantamento e mitificação” (H.
Dubiel, pág. 9) não relaciona desencantamento e mitificação apenas como dois lados
complementares da mesma medalha; muito pelo contrário, cada um destes momentos
vê-se sem o seu outro. Ao meu ver, é esta a estrutura principal que os autores tentam
desmacarar como raiz alimentadora do fundamentalismo moderno, aprofundando as-
sim nossa compreensão de um fenômeno, cujo surgimento nas diferentes culturas só
pode assustar a quem não se dá conta de tal estrutura. (FLICKINGER apud ROSO,
1999, p. 7-8)

Para iniciarmos nossos estudos sobre as interferências religiosas em nosso


cotidiano, sejam filosóficas, práticas ou políticas, devemos retomar, numa pe-
quena síntese as diferenças e semelhanças entre as três maiores religiões mo-
noteístas do planeta: judaísmo, cristianismo e islamismo.
Em primeiro lugar, devemos esclarecer que tanto cristianismo quanto o is-
lamismo são religiões que derivaram do judaísmo. No entanto, podemos per-
ceber que atualmente milhares de conflitos, inclusive armados, ocorrem em
nosso mundo, pautados no discurso de defesa da fé, ou seja, em nome de Deus,
ou Alá, ou Jeová.
A característica essencial que une essas religiões é a crença monoteísta. São
consideradas religiões monoteístas aquelas que possuem apenas uma divinda-
de, ou seja, somente um Deus é adorado. Exatamente neste ponto podemos en-
contrar resultados maléficos dessa adoração exclusiva. Em diversos aspectos a
religião leva as pessoas a paz de espírito, ao trabalho em comunidade, ao amor
ao próximo, produzindo valores de solidariedade. No entanto, quando a fé co-
loca-se como verdadeira e única entre tantas outras, passamos à intolerância.
Inúmeras guerras assolam o planeta por motivos políticos e econômicos, mas
possuem como pano de fundo argumentos religiosos.
No germe do judaísmo havia aceitação por parte da comunidade de Deuses
adorados por outras sociedades. Isso significa que apesar de acreditarem em
apenas um Deus, não era importante para aquele povo colocar fim ou mesmo

102 • capítulo 5
desacreditar a fé alheia. O termo judeu refere-se aos habitantes da Judéia, deno-
minação do antigo reino de Israel. Devemos salientar que o judaísmo além de
questões religiosas envolve também um aspecto étnico.
A religiosidade dos judeus é inaugurada com um pacto entre os homens
e Deus. Essa narrativa é descrita nos textos bíblicos conhecidos como Velho
Testamento, porém está denominação é utilizada pelos cristãos, pois para os
judeus a doutrina religiosa é chamada de Torá. Nela, estão descritas as tradi-
ções, as leis e a essência da religião.
Por ser uma religião de características históricas marcantes, podemos en-
contrar na Bíblia as narrativas do desenvolvimento da aliança criada entre a hu-
manidade e Deus. O primeiro fato marcante ocorre quando Abraão recebe de
Deus um aviso para mudar-se para uma terra prometida na qual seria formada
uma comunidade de um grande povo. O filho de Abraão chamado Jacó venceu
uma batalha e fundou as doze tribos de Israel – esse nome significa aquele que
lutou com Deus. Outra narrativa conta a história de José, neto de Abraão que
levou o povo israelita para o Egito. Sobre a vida neste país encontramos a descri-
ção da história de Moisés que numa longa peregrinação, conduz seu povo para
Canaã, a terra prometida por Deus.
O fato fundamental de tal peregrinação ocorre quando Javé (nome de Deus
para os israelitas) entrega a Moisés as leis fundamentais da religião descritas
em duas tábuas: os Dez Mandamentos. Nesse acordo o povo deveria reconhecer
a existência de um só Deus e em troca seriam protegidos e escolhidos como o
povo de Deus.
Por volta do ano 1000 a. C. Saul instalou a monarquia no reino de Israel e o
povo viveu largo período de estabilidade. O crescimento do reino atingiu seu
ápice nos reinados de Davi e Salomão. Não nos cabe aqui em nosso textos pas-
sar pela descrição histórica de todo desenvolvimento da comunidade judaica,
assim, sinteticamente anotamos que devido a inúmeros conflitos na região o
povo judeu passou por algumas diásporas e passaram a viver em diferentes can-
tos do planeta, até que em meados do século XX (1948), logo após a Segunda
Grande Guerra foi proclamada a República de Israel.
A criação desse Estado foi resultado de acordos internacionais que bus-
cavam contrabalancear as perdas humanas e materiais de inúmeros judeus
sobreviventes do extermínio em massa realizado pelos nazistas. Mesmo que
atualmente existam discursos neonazistas que tentam desconstruir a ideia de
Holocausto – assassinato em série de pessoas, como ocorreu com os judeus

capítulo 5 • 103
durante o regime nazista - é inegável a quantidade de documentos que compro-
vam o massacre.
Retomemos o aspecto conceitual da religião. No Livro das Religiões, Jostein
Gaarder explica a noção de Deus para o povo judeu:

O credo judaico é: “Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único Iahweh!’ (Deuteronô-
mio 6,4). Esse credo, que é repetido pelos judeus devotos todas as manhãs e todas
as noites de sua vida, mostra que o judaísmo é uma religião monoteísta. Deus, o único
deus, é o criador do mundo e senhor da história. Toda vida depende dele, e tudo o que
é bom flui dele. É um Deus pessoal, que se preocupa com as coisas que criou. Quem é
deus – ou o que é deus – é algo que não pode ser expresso em palavras. O nome de
Deus é representado pelas letras IHVH, um acrônimo que em hebraico significa “eu sou
quem sou”. Esse acrônimo costuma ser lido como “Jeová” ou “Javé”, porém o nome real
é tão sagrado que sempre se usa algum sinônimo, como “senhor” ou “o nome”. Jeová
é o criador e sustentador do mundo. A ideia de que Deus possa não existir é alheia a
um judeu. Elie Wiesel, que recebeu o prêmio Nobel da Paz, sintetizou: “Você pode ser a
favor de Deus ou contra Deus, mas não pode ser sem Deus”. O fato de que Deus é um
e apenas um se reflete também na existência humana. Toda a vida de um homem deve
ser consagrada. Não há linha divisória que separe o sagrado do profano. Honra-se ao
Senhor também na vida secular. A tarefa mais importante do homem é cumprir todos
os seus deveres para com Deus e para com seus semelhantes. (GAARDER, 2005, p.
117-118)

Assim, verificamos que uma vida regrada e condizente com as leis divinas
leva os homens a paz de espírito e felicidade. E para os judeus, a felicidade eter-
na chegaria com a presença do Messias. Desde os tempos do Rei Davi, quando
o povo de Israel passava por conflitos e provações, a chegada de um novo rei
ungido, purificado, sagrado é aguardada por eles.
Em relação ao Messias encontramos convergências e divergências entre o
judaísmo e o cristianismo. Encontramos na história do povo judeus diversos
homens que pretenderam assumir esse papel. Muitos pregaram a palavra de
Deus e conseguiram seguidores. No entanto, foram muitos que não entraram
para a história, mas, um judeu carpinteiro de vida simples conseguiu influen-
ciar a história da humanidade e modificar os rumos da história ocidental: Jesus
de Nazaré.

104 • capítulo 5
O Cristianismo é a religião construída a partir do que Jesus ensinou aos ho-
mens de sua época durante seus 33 anos de vida. O texto que relata a experiência
de Jesus no planeta terra é narrado no Novo testamento em 4 evangelhos que
explicam a doutrina cristã; S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas e S. João. Devemos
aqui realizar uma ressalva no sentido de que o texto bíblico não foi organizado
ao acaso e serve a uma vontade política de um período histórico. Existem di-
versos evangelhos que não foram incluídos e que também descrevem a vida de
Jesus, tais como o de S. Tomé e S. Judas.
Permeando a história de aproximadamente 2 mil anos, a religião cristã in-
fluenciou a filosofia, a arquitetura e as artes europeias e americanas. Existe um
senso comum que diz ser a Bíblia o livro mais lido do mundo.
São incontáveis as narrativas que habitam o imaginário ocidental, como por
exemplo o mito da criação no qual Deus criou o mundo em sete dias, a crença
da criação do homem a partir do barro a imagem e semelhança de Deus, da
mulher sua companheira feita da costela de Adão, da expulsão do paraíso, do
dilúvio, e o apocalipse, que em 1999 causou inquietação junto com o Bug do
Milênio.
Para o cristianismo, assim como o judaísmo, Deus é único. Na Bíblia
cristã encontramos os mesmos diálogos entre Moisés e Deus. Em um desses
encontros Deus diz a Moisés para avisar o povo de Israel que Aquele que é os
salvaria das privações vividas no Egito.
Sobre os ensinamentos de Jesus iremos destacar o amor e caridade, senti-
mentos pelos quais o homem deveria pautar suas relações. Em diversas passa-
gens da Bíblia podemos ver Deus descrito como amor, no sentido de que para
amarmos a Deus devemos nos amarmos uns aos outros.
Vejamos a análise de Gaarder sobre o sermão da Montanha, no qual Jesus
falou sobre um mandamento essencial.

Um pequeno versículo do Sermão da Montanha se tornou muito conhecido e é cha-


mado de Regra de Ouro: “tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam,
fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas” (Mateus, 7,12). Em todas as prega-
ções de Jesus, a caridade é proclamada como o mandamento-chave: “Amarás o teu
próximo como a ti mesmo” (Mateus 22, 39). Repetidas vezes se enfatiza que a caridade
não deve ser expressa apenas àqueles de quem se gosta, às pessoas da própria comu-
nidade, ou àqueles que se encontram em dificuldades sem ter culpa por isso. Todas as

capítulo 5 • 105
pessoas devem receber amor – mesmo as que, segundo a opinião comum, merecem a
dureza de seu destino. Como já foi mencionado, Jesus chega a dizer que devemos amar
nossos inimigos. É importante ressaltar que amor, no sentido em que Jesus empregava
a palavra, não era principalmente um sentimento ou uma emoção. Isso será sublinhado
em várias passagens dos ensinamentos de Jesus, talvez da melhor forma na parábola
do Bom Samaritano. A exortação à caridade deve levar à ação. Desse mandamento
brota uma série de outros valores: fidelidade, compaixão, justiça, veracidade e honesti-
dade. Mas todos esses são meros ideais abstratos se não os aplicarmos às situações
reais em que nos encontramos. (GAARDER, 2005, p. 172-173)

Podemos perceber pela citação que tanto o judaísmo quanto o cristianismo


estão tratando de uma postura de vida que exalta o papel de conhecer as regras
e agir conforme elas. A vida conforme os mandamentos de Deus levaria o ho-
mem a justiça e felicidade, está no sentido de paz entre todos.
O islamismo é, em ordem cronológica, a terceira das grandes religiões mo-
noteístas. Nascida na região da Arábia, grande parte de seus seguidores encon-
tram-se na região do Oriente Médio e norte da África, porém pesquisas recentes
indicam o aumento de número de fies na Europa – duas gerações de imigran-
tes; e nas Américas.
A origem do termo islã é a palavra submissão, na língua árabe se diz íslam.
Segundo Gaarder, “na raiz do nome algo essencial nessa religião: o homem
deve se entregar a Deus e se submeter a Sua vontade em todas as áreas da vida.
Trata-se da condição para ser muçulmano, palavra árabe que tem a mesma
raiz que íslam. (GAARDER, 2005, p.127) O termo muçulmano devira da palavra
muslim que significa aquele que se submete às vontades de Deus.
Durante muito tempo a religião islâmico era denominada maometanismo,
pois estava diretamente ligada ao criador da religião: o profeta Maomé. Nascido
em Meca, um grande centro comercial da Arábia, Maomé era filho de uma das
mais importantes famílias da cidade.
Da mesma maneira que o cristianismo e o judaísmo, os islâmicos também
acreditam na existência de um único Deus verdadeiro. A crença de que todos os
homens são semelhantes aos olhos divinos, qualquer pessoa a qualquer tempo
pode converter-se num seguidor de Alá – a palavra árabe para Deus único. Basta
que a seguinte oração seja feita: Não há Deus senão Alá, e Maomé é seu Profeta.

106 • capítulo 5
Maomé, assim como Moisés e Jesus, foi um ser humano escolhido por Deus
para revelar aos homens as palavras divinas e seus ordenamentos. Um ponto
que nos parece de convergência entre as religiões é que Maomé recebe o pri-
meiro aviso de Deus pelo Anjo Gabriel, que no ano de 610 revele que ele seria o
último dos profetas. O mesmo anjo havia avisado que Maria seria mãe de Jesus.
No trecho a seguir o autor do Livro das Religiões nos explica a revelação e o
rompimento do islamismo com as outras religiões:

Deus falou ao homem por intermédio de seu profeta Maomé, o último de uma linha de
profetas que ele enviou a humanidade: adão, Abraão, Moisés, Davi e Jesus. Original-
mente, Maomé se considerava parte da comunidade judaico-cristã. Aos poucos ele se
distanciou tanto dos judeus como dos cristãos. Logo de início os judeus apontaram que
Maomé cometera erros em sua reinterpretação das narrativas do antigo testamento.
Maomé não aceitou a acusação: as revelações que recebia eram as Palavras de deus;
assim, os judeus é que deviam ter distorcido o significado de suas escrituras sagradas.
A fim de criar um fundamento histórico para sua nova religião, Maomé se reportou a
Abraão e Ismael, antepassado dos árabes. Ensinou que Abraão e Ismael tinham recons-
truído a sagrada Caaba, que fora erigida por Adão mas destruída pelo dilúvio na época
de Noé. Segundo Maomé, os judeus, os cristãos, e os politeístas haviam corrompido o
monoteísmo original de Abraão. Quando chegou a Medina – onde havia uma grande
população judaica -, Maomé ensinou que se deve orar com o rosto voltado na direção
de Jerusalém. Depois do rompimento com os judeus, ficou decidido que o fiel deve se
virar de frente para Meca. E a sexta-feira foi designada como o dia festivo da semana
em vez do sábado, que é o Shabat judaico. O ataque mais severo de Maomé contra o
cristianismo se dirigiu à Trindade, que, segundo ele, é uma quebra do monoteísmo puro.
(GAARDER, 2005, p.135)

Ao comparar cristianismo e islamismo, Gaarder nos explica que no primei-


ro Deus se fez carne para salvar a humanidade dos pecados – Jesus veio viver en-
tre nós. Enquanto no segundo, Deus nos ensina através do livro, pois a própria
verdade é revelada no Corão.
No livro sagrado islâmico estão descritos os cinco pilares fundamentais do
islamismo. Todos os devotos mulçumanos têm que se dedicarem a realizar o
Iman - que significa a crença no Deus único;; a Salat – são as orações que devem
ser realizadas cinco vezes por dia; o zakat – refere-se a contribuições a pagar,

capítulo 5 • 107
uma parcela da riqueza; Siyam – a prática do jejum, ocorre no mês do Ramadan;
a Hajj – cada mulçumano deve pelo menos uma vez na vida peregrinar até Meca.
Para alguns mulçumanos existe um sexto pilar: a Jihad. Este termo remete
ao esforço na causa de Deus. Todos os esforços que realizamos em nosso coti-
diano podem ser definidos como Jihad. Por exemplo, controlar nossos excessos
individualistas, porém, infelizmente dentro do senso comum a mais conhecida
manifestação é a guerra santa. Parte dos mulçumanos pegam em armas para
defender a fé islâmica no mundo atual.
A partir da leitura que fizemos sobre as três grandes religiões monoteístas
podemos perceber que são vários os elementos que unem a crença de milhões
de pessoas. No entanto, na atualidade não encontramos o foco nos elementos
unificadores da fé. Na maior parte dos conflitos atuais estão introjetados as di-
ferenças que dividem judeus, cristão e muçulmanos.
Tratemos então de uma questão em voga no século XX: o fundamentalis-
mo religioso. A expressão fundamentalista passou a ser utilizada por volta dos
anos de 1920 para designar grupos cristãos protestantes que acreditavam que
os escritos bíblicos deveriam ser seguidos ao pé da letra. Contudo, polêmicas a
esse respeito despontaram com a transformação do Irã num estado teocrático
em 1979.

Revolução Islâmica: Durante a década de 1970 o Irã passou por um processo de


revolução que derrubou o governo do xá Reza Pahlevi, que por mais de 40 anos coman-
dou o país sem transformar a realidade que dividia pobres e ricos. O líder do movimento
que criticava a Monarquia autoritária do xá Pahlevi era o religioso aiatolá Ruhollah Kho-
meini. As forças de oposição eram contrárias principalmente ao contato permanente
com a cultura ocidental e defendia reformas econômicas, sociais e o retorno dos valo-
res e tradições do islamismo. Em 1979 levantes contra o governo iniciaram o processo
de tomada de poder, em 1º de abril o Irã foi transformado numa República Islâmica,
isso significa que o Estado tornou-se teocrático, ou seja, guiado pela doutrina religiosa.

Atualmente a expressão fundamentalismo religioso nos remete a práticas


violentas de grupos fanáticos que utilizam da fé para suportar atitudes que não
condizem com os valores de uma sociedade democrática. Devemos dar atenção
para o fato de que não existe apenas um tipo de fundamentalismo. Por muitos
anos a expressão esteve atrelada completamente as questões religiosas, porém,

108 • capítulo 5
nos dias atuais agregou-se a questões políticas, econômicas e culturais. A plura-
lidade do termo é essencial para compreendermos os desdobramentos atuais.
Para Roberlei Panasiewicz, doutor em Ciência da Religião da Universidade
Federal de Juiz de Fora,

O nascimento do movimento fundamentalista se insere no centro da modernidade. Esta


foi o emergir da consciência autônoma, histórica e crítica. Ante a modernidade, o fun-
damentalismo apresenta-se como via de “mão dupla”. De um lado, ele é resultado desta
modernidade crítica, secularizada, individualizante e pluralizada. De outro lado, é uma
reação à modernidade ocidental, liberal e tecnocrática. (PANASIEWICZ, 2015, p. 2)

Conforme Panasiewicz, enquanto a modernidade fortaleceu a autonomia


e o individualismo, pautados na razão humana como eixo central da explica-
ção da existência, o fundamentalismo religioso caminha no sentido oposto,
tentando resgatar os valores e tradições religiosos, sempre atrelados aos livros
sagrados de cada religião.
Os fundamentalistas, de maneira geral, procuram em seus afazeres cotidia-
nos viver a doutrina excluindo os fatores externos de interferência trazidos pelo
tempo em que se vive. Para a filósofa Mariena Chauí, as religiões têm amplia-
do seu papel de ordenamento e coesão social na esfera privada, uma vez que o
Estado moderno as retirou do espaço público. Para ela esse fato apresenta ris-
cos, pois a história nos apresenta cenários nos quais esse modelo de ordenação
mostrou-se amplamente repressor. Vejamos:

De fato, as grandes religiões monoteístas –judaísmo, cristianismo e islamismo– não


têm apenas que enfrentar, do ponto de vista do conhecimento, a explicação da realida-
de oferecida pelas ciências, mas têm ainda que enfrentar, de um lado, a pluralidade de
confissões religiosas rivais e, de outro, a moralidade laica determinada por um Estado
secular ou profano. Isso significa que cada uma dessas religiões só pode ver a ciência
e as outras religiões pelo prisma da rivalidade e da exclusão recíproca, uma oposição
não tem como exprimir-se num espaço público democrático porque não pode haver
debate, confronto e transformação recíproca em religiões cuja verdade é revelada pela
divindade e cujos preceitos, tidos por divinos, são dogmas. Porque se imaginam em
relação imediata com o absoluto, porque se imaginam portadoras da verdade eterna e

capítulo 5 • 109
universal, essas religiões excluem o trabalho do conflito e da diferença e produzem a
figura do Outro como demônio e herege, isto é, como o Falso e o Mal. Não é, portanto,
casual em nossos dias, o súbito prestígio de Carl Schmitt: a política entendida como
guerra dos amigos contra os inimigos e como vontade e decisão secreta do soberano,
cuja ação é incontestada, correspondem perfeitamente à maneira como os fundamen-
talismos religiosos concebem a política como batalha entre o bem e o mal e a atividade
soberana como missão sagrada porque comandada por Deus. Os discursos de Sharon,
Bin Laden e Bush são as expressões mais perfeitas e mais acabadas da impossibilida-
de da política sob o fundamentalismo das religiões monoteístas reveladas. Com elas, a
política cede lugar à violência como purificação contra o Mal, e os políticos cedem lugar
aos profetas, isto é, aos intérpretes da vontade divina, chefes infalíveis. Dessa maneira,
o desencantamento do mundo, obra da civilização moderna, se vê às voltas com o misti-
cismo do mercado e a violência da teologia política. Em outras palavras, com a barbárie
interna à ação civilizatória. (CHAUÍ, 2015, p. 132)

Notamos pela leitura acima que os valores religiosos estão criando oposição
ao invés de unir as pessoas. A filósofa cita líderes de grandes nações que mis-
turam discurso político e religioso para sustentar suas ações. Cada um deles
estimula a ideologia de que sua fé é única verdadeira e, portanto, são os filhos
escolhidos de Deus. Óbvio que ao se autodeclararem os herdeiros diretos do
reino celeste, passam ao movimento de rejeição e ataque a fé alheia. Essa into-
lerância, baseada na crença de que seu próprio ponto de vista é absoluto traz
inúmeras consequências para nosso mundo, principalmente desprezo, agres-
sividade e guerras.
Um dos exemplos recentes e que deram nova direção à história do mundo foi
o atentado de 11 de setembro de 2001. A derrubada das torres do World Trade
Center em Nova Iorque assumida pelo grupo extremista islâmico Al Qaeda cho-
cou o planeta pela brutalidade. Por outro lado, a resposta estadunidense não
deixou de causar indignação. Revestido de outro fundamentalismo, a Guerra
contra o terrorismo islâmico foi tão violenta quanto, e resultou no assassinato
de milhares de pessoas inocentes e que não deveriam pagar pelas ações de um
grupo determinado.
Por uma superexposição a imprensa mundial conseguiu unir terrorismo e
fundamentalismo religioso. Essa questão deve ser amplamente analisada, pois
podemos cometer o engano de generalizar e consequentemente discriminar

110 • capítulo 5
pessoas que não estão a favor do terrorismo. Os atos terroristas geralmente
atingem civis, mas o alvo principal é um determinado Estado, pois regularmen-
te as ações violentas possuem fins políticos.
Vejamos a seguir alguns exemplos de conflitos pautados em fundamenta-
lismos de origens diferentes.
Na Irlanda, encontramos desde o início do século XIX o conflito entre re-
ligiosos protestantes e católicos. O domínio inglês sobre o território irlandês
não trouxe significativas melhoras à população, que enfrentou inclusive cri-
ses alimentares durante aquele século. A maioria da população irlandesa é de
origem católica e passaram a exigir seu próprio parlamento para autonomia
interna. Em 1922 a Irlanda se torna independente da Grã-Bretanha, porém o
acordo de criação da independência permitia que os condados irlandeses po-
diam escolher se continuavam ou não sob os domínios da Grã-Bretanha. A re-
gião de maior número de protestantes, no nordeste da ilha, denominada Ulster
continua ligada à Grã-Bretanha até os dias atuais. A população divida entre
católicos e protestantes lutam entre si pautados na religião como ideologia
política. Os de orientação católicas são favoráveis a independência e ligação
com a República da Irlanda, fazem parte desse agrupamento o IRA – Exército
Republicano Irlandês – que realiza ações violentas para defender seu ponto de
vista. Do lado oposto, os protestantes desejam a manutenção da relação com a
Grã-Bretanha. Desde a década de 1970 a relação conflituosa na região já matou
inúmeras pessoas.

CONEXÃO
Assista ao vídeo da banda U2 https://www.youtube.com/watch?v=EM4vblG6BVQ , que
ilustra o domingo de 30 de janeiro de 1972, quando em meio a uma passeata que exigia
direitos iguais entre católicos e protestantes, 13 pessoas foram assassinadas pela repressão
violenta da polícia britânica.

A Nigéria também nos serve de exemplo para o conflito religioso, mas agora
entre cristãos e muçulmanos. O neocolonialismo do século XIX contribui para
a ampliação das igrejas cristãs como anglicana, batista e grupos pentecostais.
A constituição nigeriana garante a laicização do estado, no entanto, a um do-
mínio muçulmano político e econômico desde o século XIX, e que, durante o

capítulo 5 • 111
século XX vêm discriminando e perseguindo os cristãos. Em alguns estados ni-
gerianos a lei islâmica - sharia – vem sendo adotada como oficial. A interferên-
cia chega a obrigar as jovens cristãs a usarem os trajes muçulmanos durante o
período escolar. Principalmente nos estados do norte os conflitos vêm matan-
do milhares de pessoas desde a década de 1980. Em dezembro de 2011, quase
50 pessoas foram assassinadas pelo grupo radical islâmico Boko Haram.
Por fim, mas não encerrando o assunto, uma vez que são inúmeros os exem-
plos de conflito fundamentalistas, trataremos da questão tibetana.
Desde a revolução em 1949, liderada por Mao Tsé-Tung, a China vem ten-
tando interfirir no modo de vida tibetano, intentando promover reformas de
cunho comunistas. Leia o texto a seguir, da Casa da Cultura do Tibete, sobre a
invasão do Tibete e o desmanche de sua cultura pela política chinesa.

Em 1950, quando Mao pede à China para dar o "grande salto em frente", o Exército de
Libertação Chinês ocupa Lhasa, a capital do Tibete. Perante o silêncio internacional, os
chineses iniciaram um "programa" de dizimação da cultura e sociedade tibetanas, sob
o pretexto de ajudar os tibetanos a regressarem à pátria-mãe chinesa e de os libertar
do "jugo do feudalismo". Com o início dos confrontos armados em 1959, o Dalai-La-
ma foi obrigado a deixar o seu país e exilar-se na Índia, em Dharmsala. Actualmente
Dharmsala é a sede do governo tibetano no exílio que, liderado pelo Dalai-Lama, se
dedica à causa da libertação do Tibete, através da não-violência . Juntamente com
seis milhões de Tibetanos espera que a comunidade internacional reaja à situação do
seu país. Em Maio de 1951 foi imposto ao governo tibetano o "Acordo dos 17 pontos
para a libertação pacifica do Tibete", que entre outras coisas, dava soberania à China
sobre o Tibete, mas reconhecendo a autonomia do governo tibetano no que respeitava
aos assuntos internos. A China comprometia-se a não alterar o sistema político exis-
tente, a não interferir com o estatuto do Dalai Lama e do Panchen Lama e a respeitar
a autonomia , religião e costumes dos Tibetanos - clausulas nunca cumpridas pela
China. Em 1959 o não cumprimento pela China da clausula da autonomia induz a um
levantamento nacional, que culmina com o exílio do Dalai Lama na Índia. A sua partida
desencadeou uma repressão muito dura e a artilharia chinesa acabou facilmente com a
resistência tibetana. Depois disso, 85.000 tibetanos fugiram do seu pais. A destruição
da cultura do Tibete e a opressão do seu povo foi brutal nos anos seguintes ao levan-
tamento nacional resultando na morte de 1.2 milhões de Tibetanos, ou seja, um quinto
da população. Muitos outros foram presos ou deslocados para campos de trabalho.

112 • capítulo 5
Foi levado a cabo um processo de destruição de mais de 6000 mosteiros, templos e
outros edifícios históricos. Em 1965, a China conferiu ao Tibete o estatuto de região
autónoma. Tentou demonstrar à comunidade internacional os benefícios da ocupação
chinesa através da construção de hospitais, centrais eléctricas, estradas e escolas. No
entanto, este progresso material em nada beneficiou os tibetanos (que são já uma
minoria no seu próprio país), antes pelo contrário, somente aproveitou ao crescente
número de emigrantes chineses que, encorajados pelo governo, continuam a usurpar
todos os sectores político - económicos do Tibete. (Exemplares disponíveis em : http://
www.songtsenportugal.org/#!estatuto-do-tibete/cwn7)

Apesar do estatuto da autonomia, as autoridades tibetanas continuam exi-


ladas. Aproximadamente 120 mil tibetanos vivem fora do país. De um lado, as
autoridades chinesas buscam interferir para levar progresso e suas benesses
materiais, enquanto os líderes religiosos temem a destruição das tradições reli-
giosas e a liberdade da população do Tibete.

5.2  O ambientalismo
Desde de a década de 1970, surgiram movimentos institucionalizados que têm
como objetivo principal defender o meio ambiente. Diversos movimentos pro-
curaram suprir as desilusões causadas pelas duas grandes guerras. Estes movi-
mentos nasceram contra uma ordem economia mundial que passou à lógica da
utilização extrema dos recursos naturais.
Após a destruição de Hiroshima e Nagasaki em 1945, por duas bombas atô-
micas lançadas pelos Estados Unidos, ficou claro o potencial destrutivo que a
tecnologia tinha alcançado. Toda vida no planeta estava ameaçada, a força des-
trutiva das bombas, dizia o senso comum no período, poderia destruir o plane-
ta inúmeras vezes.
Entre os anos de 1960 e 1970 surgiu nos Estados Unidos um movimento de
contracultura que se denominavam hippies. Esses jovens rejeitavam os valores
e normas do sistema capitalista que tanto causava violência e miséria em diver-
sas partes do planeta. Suas vestimentas eram coloridas e com forte influência
das roupas indianas, homens e mulheres usavam os cabelos longos e soltos,
desprezavam o dinheiro, o trabalho formal e o consumismo; normalmente

capítulo 5 • 113
vivem em pequenas comunidades compartilhando alimentos e tarefas. O modo
de vida essencial desses grupos de jovens era baseado nas ideias do pacifismo,
desobediência civil e socialismo utópico. No movimento oposto ao materialis-
mo burguês eles buscavam a liberdade sexual, o rock and roll, o amor e a vida
na natureza. Sempre a favor da paz, um dos lemas mais marcantes desse movi-
mento foi: Faça amor, não faça guerra, contra a intervenção bélica dos Estados
Unidos no Vietnã, que resultou em milhares de mortes, tanto para os estaduni-
denses quanto para os vietnamitas.
Juntamente com esse movimento de contracultura surgem os movimentos
ambientalistas. Preocupados com a crescente industrialização da década de
1970 e os impactos ambientais, o movimento passou a denunciar e exploração
exagerada dos recursos naturais, a poluição ambiental, a extinção de espécies
vegetais e animais, etc. Ressaltamos que o ambientalismo deve ser considerado
como um movimento de inúmeras frentes de trabalho. São diversas temáticas
e atores sociais que tratam das questões referentes à destruição dos ecossiste-
mas no planeta.

LEITURA
O livro Primavera Silenciosa da estadunidense Rachel Carson discute os efeitos do uso de
agrotóxicos, tais como o DDT – dicloro-difenil-tricloroetano. Após 4 anos de pesquisas a au-
tora constatou que, utilizado a principio para combater as pragas que atacavam as lavouras,
o DDT também aniquilava outras espécies de insetos, contaminava o solo e os rios próximos,
ou seja atingia todo o ecossistema até chegar ao homem via alimentos. O título do livro
remete ao fato de que o agrotóxico agia nas células reprodutoras de diversas espécies de
pássaros e também causava morte, daí o silêncio na primavera.

Perante a problemática do uso indiscriminado da tecnologia na exploração


dos recursos naturais e na produção industrial, diversos pensadores passaram
a tratar de temas relacionados à ética do desenvolvimento tecnológico.
Falemos em primeiro lugar do alemão Hans Jonas. No início da década de
1980 o livro O Princípio da Responsabilidade será traduzida do alemão para o
inglês e passou a influenciar o pensamento contemporâneo. O texto trata es-
sencialmente do fato que os seres humanos são parte do planeta terra e portan-
to para que a vida continue faz-se necessário cuidar do futuro do planeta.

114 • capítulo 5
Para Mario Sérgio Alencastro, os textos de Hans Jonas são fundamentais
para uma postura condizente à defesa da vida no planeta, pois a crise insta-
lada na sociedade contemporânea – avanços tecnológicos versus destruição.
Sobre os Princípios da Responsabilidade, o professor comenta em sua tese de
doutoramento:

Nessa obra, Jonas antevê, no choque causado pelas bombas atômicas de Hiroshima e
Nagasaki, o marco inicial do abuso do domínio do homem sobre a natureza, causando
sua destruição. A evolução de uma tecnologia com grande potencial destruidor e de-
vastador como essa, estaria interpelando a estruturação de uma nova ética, capaz de
impor limites à evolução tecnológica acelerada e descontrolada. Jonas, mais do que a
consciência de um apocalipse brusco, teria percebido também a possibilidade de um
apocalipse gradual decorrente do perigo crescente dos riscos do progresso técnico
global e seu uso inadequado. Trata-se do mesmo perfil de risco que Ulrich Beck iden-
tificou como inerente às sociedades contemporâneas, mas que Hans Jonas abordou
de forma radical e decisiva . Nas primeiras linhas do prólogo do Princípio Responsabili-
dade, Hans Jonas alerta para o fato de que a ciência e a técnica atuais, impulsionadas
incessantemente pela atividade econômica, estão pondo em movimento forças nunca
antes conhecidas, cujos efeitos destrutivos, remotos e cumulativos da intervenção ne-
gativa sobre a natureza, passam a exigir uma nova reflexão no campo da ética; uma
ética que evite, mediante contenções voluntárias, que o poder tecnológico conduza
os homens a um desastre. Para ele, pela primeira vez na história, as ações humanas
parecem irreversíveis: Prometeu4 está liberto e o mal-estar cresce ao redor da Terra.
(ALENCASTRO, 2009, p. 14-15)

Notamos que a intenção de Hans Jonas é alertar a humanidade para que


uma fatalidade não ocorra. Sua preocupação com o futuro pretendeu dar ru-
mos as ações dos homens para que a sobrevivência no planeta ainda seja possí-
vel para as próximas gerações.
No pensamento de Hans Jonas encontramos uma crítica a ética liberal e a
moral filosófica e religiosa que regem as ações humanas. O autor realiza uma
análise do agir coletivo em nosso tempo e conclui que necessitamos construir
outra ética de ação para garantir a existência de todas as espécies. Sua filoso-
fia deriva do imperativo categórico kantiano, descrito nos capítulos anteriores.
Contudo, Hans foi além buscando ultrapassar a ação individual restrita a si

capítulo 5 • 115
mesma, essa mudança na condição moral prevê uma nova forma de agir que
inclui o plano coletivo, pois pretende a permanência da vida no planeta como
um todo.
A ética que deriva do Princípio da Responsabilidade produz uma forma de
agir que considera o ser humano como natureza e não parte isolada dela. Todos
os seres, minerais, vegetais, animais e a biosfera devem ser levados em conside-
ração frente aos usos que realizamos para mantermos nossa sociedade.
Para chegar a elaboração dessa nova ética, o autor passou por três fases de
produção filosófica. Primeiramente, realizou um estudo crítico da filosofia
gnóstica ( a palavra vem do grego gnose que significa conhecimento). Essa fi-
losofia de linhagem cristã compreende o mundo como um lugar de passagem
do espírito humano que deveria se libertar dessa prisão material. Deus havia
apenas nos dado uma centelha divina com a qual poderíamos nos despertar
para a essência verdadeira. Essa dualidade: Deus e homem, está presente na
metafísica e em algumas religiões. Para Hans Jonas essa separação entre Deus
e o homem, ou seja, o espírito e a matéria interferem profundamente nas atitu-
des do homem contemporâneo, criando uma consciência que divide natureza
e humanidade.
Feito essa elaboração o autor passa a tratar de temas como a interligação
do homem ao ambiente natural. Ele dará um passo a mais no pensamento de
Heidegger adicionando a noção de que a consciência pura não pode excluir o
corpo. De acordo com Jonas somos tocados inevitavelmente pela natureza, e
por isso devemos construir uma nova ética de interrelação. O pensador irá unir
biologia e filosofia para romper com o dualismo vigente e fundir num só ser
homem e natureza. Desde o pensamento cartesiano o homem vem se afastan-
do da natureza no sentido de se colocar a parte dela, porém Hans Jonas buscou
retomar a consciência de que somos parte de um sistema único.
Por fim, a partir do entendimento que a vida é um sistema que procura man-
ter-se em atividade, o filósofo passa a construir um modelo de ação ético que
reconheça a necessidade de proteger a vida em sua amplitude e particularida-
des global.
Outro pensador de grande influência no ambientalismo atual é o australia-
no Peter Albert David Singer que coloca em causa questões éticas do mundo
contemporâneo num panorama utilitarista.
Em suas obras o autor discute temas como: a forma como os seres hu-
manos fazem uso da vida animal para suprir suas necessidades alimentares

116 • capítulo 5
infringindo dor e sofrimento à inúmeras espécies; sobre a pobreza no mundo,
que trata da desigualdade social causada pela ordem mundial; e os polêmicos
assuntos da escolha da interrupção da vida.
Em seu livro A Libertação Animal, o filosofo trata da tirania dos animais hu-
manos sobre os não-humanos. Criticando a noção de Ludwig Wittgenstein de
que não se pode atribuir consciência aos seres que não possuem linguagem, o
autor declara que aspectos como dor e sofrimento são primitivos e podem não
estar relacionados a linguagem. No texto o Singer esclarece que:

Os animais são capazes de sentir dor. Como já vimos, não pode existir qualquer justi-
ficação moral para considerar a dor (ou o prazer) que os animais sentem como menos
importante do que a mesma dor (ou prazer) sentida pelos humanos. Mas que consequ-
ências práticas se retiram desta conclusão? Para evitar mal-entendidos, explicarei de
modo mais exaustivo o que quero dizer. Se se der uma palmada forte no flanco de um
cavalo, o animal pode estremecer mas, presumivelmente, sentirá uma dor diminuta. A
sua pele é suficientemente dura para o proteger de uma mera palmada. No entanto,
se se der a um bebê uma palmada de igual intensidade, o bebê chorará e, presumivel-
mente, sentirá dor, pois a sua pele é mais sensível. Por isso, é pior dar uma palmada a
um bebê do que a um cavalo, se ambas as palmadas forem administradas com igual
força. Mas deve existir um tipo de pancada - não sei exatamente qual será, mas talvez
uma pancada com um pau pesado - que causa a um cavalo tanta dor como causa a um
bebê a tal palmada. É isso que pretendo dizer ao referir "uma dor de igual intensidade",
e, se consideramos errado infligir gratuitamente essa dor a um bebê, deveremos, se
não formos especialistas, considerar igualmente errado infligir gratuitamente uma dor
de igual intensidade a um cavalo.(SINGER, 2004, p.29)

Verificamos nessa leitura que o filósofo defende a igualdade em relação


aos sofrimentos causados tanto em seres humanos quanto nos não-humanos.
Seu pensamento elabora uma ética nova que possui como princípio a conside-
ração de um status de igualdade para questões de moralidade entre os seres
vivos. Podemos notar uma crítica a noção filosófica que pressupõe o ser huma-
no como eixo central da vida no planeta. Dessa maneira, declara:

capítulo 5 • 117
O primeiro capítulo deste livro estabelece um claro princípio ético - a igual consideração
dos interesses de todos os animais - através do qual é possível determinar quais prá-
ticas que afetam os animais não humanos são justificáveis e quais não são. Aplicando
este princípio nas nossas vidas, tomamos as nossas ações completamente coerentes.
Desta forma, poderemos negar àqueles que ignoram os interesses dos animais a opor-
tunidade de nos acusar de incoerência. (SINGER, 2004, p.172)

O argumento de Singer segue na seara de que nossas ações são éticas quan-
do observamos os interesses daqueles que vão receber um tratamento que pode
resultar em sofrimento, pois a consciência da dor pode ser a premissa para a
igualdade entre as espécies.

As nossas concepções quanto à natureza dos animais não humanos, e o raciocínio


incorreto acerca das implicações que advêm da nossa concepção da natureza, contri-
buem igualmente para o apoio da nossa atitude especista. Sempre gostamos de nos
considerar menos selvagens do que os outros animais. Dizer que as pessoas são "hu-
manas" significa que elas são gentis; dizer que são "bestiais", "brutais" ou, simplesmen-
te, que se comportam como "animais" é sugerir que são cruéis e malévolas. Raramente
nos detemos a considerar que o animal que mata com menos razão para o fazer é o
animal humano. julgamos os leões e os lobos como selvagens porque eles matam;
mas eles têm de matar: se não o fizerem, morrem à fome. Os humanos matam outros
animais por desporto, para satisfazer a sua curiosidade, para embelezar o seu corpo e
para agradar ao seu palato. Os seres humanos também matam membros da sua própria
espécie por ganância ou sede de poder. Mais, os seres humanos não se satisfazem
com a simples morte. Nota-se, através da história, a sua tendência para atormentar e
torturar tanto os seus congêneres como os outros animais, antes de os matarem. Ne-
nhum outro animal revela grande interesse nesta prática. Ao mesmo tempo que igno-
ramos a nossa própria selvajaria, exageramos aquela dos outros animais. O lobo de má
fama, por exemplo, vilão em tantos contos populares, tem sido considerado por muitos
estudos levados a cabo por zoólogos como um animal altamente sociável, um cônjuge
fiel e afetuoso - não apenas durante a época de acasalamento, mas durante toda a vida
-, um progenitor dedicado e um membro leal da alcateia. Os lobos quase nunca matam
nada que não,seja para comer. Quando os machos lutam entre si, a luta termina com
um gesto de submissão no qual o vencido oferece ao vencedor a parte posterior do

118 • capítulo 5
pescoço - a zona mais vulnerável do seu corpo. Com as presas apenas a centímetros
da veia jugular do inimigo, o vencedor considera-se satisfeito com a submissão e, ao
contrário do conquistador humano, não mata o adversário derrotado. (SINGER, 2004,
p. 166-167)

Notoriamente percebemos o quanto as discussões trazidas por Singer en-


frentam as questões atuais de biotecnologia e um novo paradigma de prática,
alicerçados em uma nova ética.

CONEXÃO
Para ampliar seus conhecimentos leia a entrevista do professor Paul Singer à Zero Hora, em
http://goo.gl/cP1oqL , na qual ele discorre sobre questões éticas do século XXI.

5.3  Teoria das Justiças e dos Direitos


Humanos

A Teoria da Justiça é um campo do conhecimento que apresenta diversas ver-


tentes, sendo influenciadas por filosofias como a liberal, libertária, capacitária,
comunitarista e igualitária. Alguns pensadores vêm ganhando notoriedade na
comunidade internacional dos direitos humanos. Exemplos como Jonh Rawls,
Ronald Dworkin, e Amartya Sen tem influenciado o pensamento jurídico atual.

5.3.1  A concepção Liberal de Jonh Rawls

Nascido em Baltimore, nos EUA, no ano de 1921, o professor de filosofia polí-


tica da Universidade de Havard baseou seus escritos na teoria rousseauniana
do contrato social para indicar que toda sociedade podem gerar instituições
justas. Para ele a virtude estaria na capacidade do ser humano de construir um
complexo social que reconheça os direitos de cada um.
Em seu livro de 1971, Teoria da Justiça, Rawls argumenta que as pessoas são
em si mesmas um absoluto moral, relembrando a ética de Kant. Todos os seres

capítulo 5 • 119
humanos ao atingirem maturidade intelectual são capazes de estabelecer um
senso de justiça e se tornarem autônomos no estabelecimento de uma consci-
ência da equidade social.
Os princípios de justiça para o autor são fruto de um processo contratual
da sociedade. Sobre o ordenamento social, o autor diz que numa concepção
pública de justiça, “(1) todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mes-
mos princípios de justiça, e (2) as instituições sociais básicas geralmente satis-
fazem, e geralmente se sabe que satisfazem, esses princípios”. (RAWLS, 2000,
p.5) São essenciais, em sua teoria, que a equidade garanta a igualdade de opor-
tunidades possíveis a todos os membros da sociedade; e que haja uma com-
pensação dos benefícios para aqueles menos privilegiados, uma vez que justiça
social inclui amparar os desprotegidos. Desses dois fundamentos, retiramos
que a construção de uma sociedade justa parte de valores sociais que permitam
o redimensionamento de liberdade, riquezas, e oportunidades conforme as ne-
cessidades de cada grupo social.
Vejamos como Rawls define o papel da justiça:

A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas
de pensamento. Embora elegante e econômica, uma teoria deve ser rejeitada ou re-
visitada se não é verdadeira; da mesma forma leis e instituições, por mais eficientes e
bem organizadas que sejam, devem ser reformadas ou abolidas se são injustas. Cada
pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da
sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da
liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. Não permi-
te que os sacrifios impostos a uns poucos tenham menos valor que o total da maior
das vantagens desfrutadas por muitos. Portanto numa sociedade justa as liberdade da
cidadania igual são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não
estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais. A única coisa
que nos permite aceitar uma teoria errônea é a falta de uma teoria melhor, de uma
forma análoga, uma injustiça é tolerável somente quando é necessária para evitar uma
injustiça ainda maior. Sendo virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a
justiça são indisponíveis. (RAWLS, 2000, p.3-4)

Para Rawls, a justiça de uma estrutura social é consequência de como são


atribuídos os direitos e deveres e do conjunto de circunstancias econômicas

120 • capítulo 5
e condições sociais nos diferentes setores da sociedade. Devemos reconhecer
que os homens partem de condições sociais diferentes e assim possuem expec-
tativas diferentes, e portanto os princípios de justiça devem ser aplicados em
primeiro lugar nessas profundas desigualdades.
Em sua teoria a questão das liberdades básicas é principal. Em seus textos
aparecem os três princípios para sua concepção de justiça: da liberdade igual;
da diferença e da oportunidade justa. O primeiro trata de como a sociedade
deve garantir a liberdade máxima aos indivíduos de forma igual para todos;
no segundo, deve ocorrer na sociedade a redistribuição de riquezas mas sem
ocorrer benefícios que desequilibre a justiça; e no terceiro, a igualdade de opor-
tunidades deve seguir o princípio justo do acesso a posições que permitam a
superação das desigualdades sociais.
Em 1993 o autor publicou um livro no qual rebate as críticas a sua teoria.
Em O liberalismo político, sua empreitada é construir um princípio de justiça
que seja capaz de corresponder ao caleidoscópio das expressões culturais dos
indivíduos, grupos, minorias e comunidades.

5.3.2  A concepção Igualitária de Ronald Dworkin

Do estado de Massachusetts, nascido em 1931, o filósofo do Direito Ronald


Myles Dworkin é o mais conhecido autor do igualitarismo liberal anglo-saxão,
debatendo sobre a ideologia da igualdade e suas aplicações na atualidade. Em
caminho diferente de Rawls, o pensamento de Dworkin funda-se na questão da
igualdade.
No livro a Virtude Soberana, o autor nos apresenta a questão da relevância
da igualdade e afirma que nos ideias políticos ela desaparecendo. Leia trecho
da entrevista do filósofo à Revista Novos Estudos.

Nas linhas iniciais de A virtude soberana você diz que a igualdade é a “espécie em ex-
tinção dos ideais políticos” e questiona se a igualdade realmente tem importância. No
entanto, muitas pessoas que aceitam a igualdade de consideração como uma virtude
fundamental têm a intuição de que no campo econômico o que de fato importa não é
alguns terem mais que outros (mesmo que essas desigualdades decorram de fatos mo-
ralmente arbitrários, como a pura sorte), mas sim alguns (ou melhor, muitos, no mundo
real) não terem o suficiente nem mesmo para satisfazer às necessidades básicas. Seu

capítulo 5 • 121
livro parece pregar aos convertidos abordando a questão “igualdade de quê”? Mas o
que você teria a dizer aos que perguntam “por que a igualdade”? Em que o resultado
prático de sua teoria difere de uma garantia das necessidades básicas mínimas?
No mundo contemporâneo, eliminar a fome e outras privações extremas nos tornaria
muito mais próximos do ideal do seguro, e talvez, sob uma perspectiva prática, devês-
semos todos nos concentrar nisso. Como até mesmo esse objetivo é idealista,pode
parecer tolo nos preocuparmos com mais igualdade do que isso.No entanto,da pers-
pectiva filosófica isso é importante,porque é importante enfatizar que o princípio diretor
é o da igual consideração. Suponha que as necessidades básicas de todos estivessem
garantidas, mas que algumas pessoas tivessem um leque de oportunidades muito mais
rico do que outras. Isso teria que ser justificado como consistente com a igual conside-
ração para todos. Poderia ser realizado se o modelo do seguro ou algo parecido fosse
implementado,mas não de outro modo.
(...)
Ao sustentar que a igualdade é a virtude dos soberanos, você em princípio restringe
sua aplicação ao relacionamento entre governo e seus cidadãos. A legitimidade política
é certamente um argumento sólido para defender a igualdade. Mas será que o ideal da
igualdade não tem lugar também na esfera privada e na esfera internacional?
Essa é uma questão muito ampla para uma resposta curta, mas devo deixar claro que
não acredito (como os utilitaristas e outros filósofos) que temos o dever pessoal de
mostrar igual consideração a todos em tudo que fazemos. Eu tenho direito de favorecer
meus filhos em relação aos seus,não porque eles sejam em qualquer sentido mais im-
portantes sob uma perspectiva impessoal,mas porque são os meus filhos. Mas há um
limite para o favoritismo que posso mostrar, e esse limite é particularmente importante
na esfera internacional. Pretendo escrever sobre a justiça internacional no futuro, mas
não considero que A virtude soberana tenha algo muito útil a dizer sobre o assunto.
(DWORKIN, 2007)

Para Dworkin, os direitos individuais não são contrários à noção de igual-


dade, e podem coexistir com o estado de bem-estar social. Inclusive, é papel do
Estado trabalhar para, dentro dos princípios do igualitarismo liberal, garantir a
distribuição igualitária de oportunidades. Pois, com o equilíbrio de forças eco-
nômicas o Estado pode criar condições mínimas para que os cidadãos possam
atingir suas metas pessoais. Podemos citar como exemplo a educação escolar
básica que pode possibilitar a ascensão social de inúmeras pessoas.

122 • capítulo 5
O autor demonstra como liberalismo e justiça se entrelaçam no livro Uma
Questão de Princípio, vejamos como ele trata o valor da igualdade para os
liberais,

No mundo rela, porém, as pessoas não começam suas vidas em termos iguais; alguns
partem com acentuadas vantagens de riqueza de família ou educação formal e informal.
Outros sofrem porque sua raça é desprezada. A sorte desempenha um papel adicional,
muitas vezes devastador, na decisão de quem obtém ou mantém empregos que todos
desejam. Além dessas desigualdades inequívocas, as pessoas não são iguais em ha-
bilidades, inteligência, ou outras capacidades inatas; pelo contrário, divergem muito,
não por escolha própria, nas várias capacidades que o mercado tende a recompensar.
Assim, algumas pessoas que estão totalmente dispostas, mesmo ansiosas, a fazer exa-
tamente as mesmas escolhas de trabalho, consumo e economia que outras pessoas
fazem, acabam com menos recursos, e nenhuma teoria plausível de igualdade pode
aceitar isso como algo justo. Esse é o defeito do ideal fraudulentamente chamado de
“igualdade de oportunidade”; fraudulento porque, numa economia de mercado, as pes-
soas menos capazes de produzir o que as outras querem não têm igual oportunidade.
Assim, um liberal não pode, no fim das contas, aceitar que os resultados do mercado
definam cotas iguais. Sua teoria de justiça econômica deve ser complexa, porque ele
aceita dois princípios difíceis de sustentar na administração de uma economia dinâmi-
ca. O primeiro requer que as pessoas tenham, em qualquer ponto de suas vidas, quan-
tias diferentes de riqueza na medida em que as escolhas genuínas que fizeram tenham
sido mais ou menos dispendiosas ou benéficas para a comunidade, de acordo com o
que as outras pessoas querem para suas vidas. O mercado parece indispensável a esse
respeito. O segundo requer que as pessoas não tenham diferentes quantias de riqueza
só porque tem difernetes capacidades inatas para produzir o que os outros querem, ou
porque são favorecidas de maneira diferente pelo acaso. Isso significa que as distribui-
ções do mercado devem ser corrigidas para que algumas pessoas se aproximem mais
da parcela de recursos que teriam tido, não fossem essas várias diferenças inicias de
vantagem, sorte e capacidade inerentes. (DWORKIN, 2001, p.308-309)

Outro aspecto importante nas obras de Dworkin é sua proposta de inter-


pretação das legislações que resultem na adequação das decisões judiciais e
os valores sociais de uma determinada comunidade. Seu método de interpre-
tação é construtivo, o que significa que o direito como um todo deve justificar e

capítulo 5 • 123
legitimar as práticas do poder judiciário. Sua teoria interpretativa transforma o
direito numa prática social, que não deve estar condicionada a mera aplicação
de regras.

5.3.3  A concepção Capacitária de Amartya Sen.

O escritor e economista Amartya Sem nasceu em Santiniketan, na Índia em


1933. No ano de 1998 foi premiado com o Nobel de Ciências Econômicas por
seus trabalhos relacionados ao estado de bem-estar social.
Sua luta na busca por justiça social será contrastada com o pensamento de
Rawls. O economista indiano defende que a questão da igualdade é fundamen-
tal para entendermos a desigualdade, pois devemos pensar no que desejamos
ser iguais. Utilizar somente a renda para mensurar as condições de existência
humana seria injusto, uma vez que possuímos diferenças em nossos estôma-
gos e nossa fantasia.
Para Alexandre Araújo Costa e Alexandre Dougla Zaidan de Carvalho, o pen-
sador indiano,

se dedica a elaborar uma teoria que seja capaz de orientar uma reflexão racional que
estimule um engajamento efetivo das pessoas não apenas no cumprimento das leis
(niti), mas na transformação da sociedade para que ela se torne mais próxima da nyaya,
ao menos com uma exclusão das injustiças sentidas em um determinado momento
como inaceitáveis. Por isso mesmo é que o seu maior esforço é o de justificar a impor-
tância relativa de uma série de elementos que podem não formar um sistema de valo-
res hierarquizados, mas que forma um conjunto de fatores legítimos a serem levados
em conta em uma avaliação moral. Essa reflexão, desenvolvida na Parte III, tem como
principal objetivo garantir espaços de avaliação ética que transcendam o consequen-
cialismo utilitarista (típico da economia e da ciência política), considerando a ampliação
da liberdade (freedom) como um elemento relevante do julgamento moral. Afirma ele
que “ao avaliarmos nossas vidas, temos razões para estarmos interessados não apenas
no tipo de vida que conseguimos levar, mas também na liberdade que realmente temos
para escolher entre diferentes estilos e modos de vida.” (p. 261). Na medida em que a
teoria da justiça é sempre engajada na realização de uma determinada ideia de Bem,
é necessário ter critérios para avaliar se a vida de uma pessoa pode ser considerada

124 • capítulo 5
boa. Na economia, essa medida normalmente leva em conta “renda, riqueza e recursos”
(income, wealth and resourses), sendo elas teorias baseadas na utilidade e nos recur-
sos (p. 265). Em contraposição, Amartya Sen propõe uma perspectiva “baseada na
liberdade” (freedom-based), na qual a vida boa é medida em termos da efetiva liberdade
das pessoas, entendida tanto em termos da existência concreta de oportunidades de
escolha individual (possibilidade efetiva de se fazer o que se deseja) quanto da existên-
cia de processos de decisão pública que respeitem essa liberdade (p. 266). Segundo
Sen, a avaliação da liberdade deve ser feita em termos de capacidades (capabilities),
dado que o bem pessoal deve ser medido em termos da “capacidade de uma pessoa
para fazer coisas que ela tem razão para valorizar” (p. 265). De acordo com Sen, esse
enfoque possibilita uma avaliação que leva em conta a pluralidade de objetivos que as
pessoas têm, em vez de identificar de modo idealizado um determinado padrão como
desejável em si. Além disso, ele nos estimula a pensar na capacidade de gerar “combi-
nações funcionais valorativas” (combinations of valued functionings), que podemos jul-
gar de modo comparativo. Com isso, tal posição permite ir além de avaliações fundadas
nas “realizações” (achievements) ou nos recursos disponíveis, que são mais facilmente
mensuráveis, mas que não levam em conta o fato de eles serem moralmente valiosos
na medida em que decorrem do exercício da liberdade. (COSTA & CARVALHO, 2012,
p. 311)

Notamos que o Sen elabora um conceito de justiça e liberdade que levam


em consideração a concretude da vida material das pessoas e as reais oportuni-
dades de escolha que elas podem desejar. Devemos ressalvar que o economista
indiano não está se referindo a uma igualdade totalitarista, pois compreende
que a heterogeneidade das pessoas não permite uma igualdade que não reco-
nheça os aspectos múltiplos da potencialidade humana.
Em suas análises econômicas o autor revela que quando a igualdade sobre
num lugar, ela estará faltando em outro. Apenas distribuir recursos financeiros
na forma de salários não evitaria a desigualdade, uma vez que Sen está tratando
de liberdades de escolha.

Assim, atenta-se particularmente para a expansão das “capacidades” [capabilities] das


pessoas de levar o tipo de vida que elas valorizam — e com razão. Essas capacidades
podem ser aumentadas pela política pública, mas também, por outro lado, a direção da

capítulo 5 • 125
política pública pode ser influenciada pelo uso efetivo das capacidades participativas
do povo. Essa relação de mão dupla é central na análise aqui apresentada. Existem
duas razões distintas para a importância crucial da liberdade individual no conceito
de desenvolvimento, relacionadas respectivamente a avaliação e eficácia. Primeiro,
na abordagem normativa usada neste livro, as liberdades individuais substantivas são
consideradas essenciais. O êxito de uma sociedade deve ser avaliado, nesta visão, pri-
mordialmente segundo as liberdades substantivas que os membros dessa sociedade
desfrutam. Essa posição avaliatória difere do enfoque informacional de abordagens
normativas mais tradicionais, que se concentram em outras variáveis, como utilidade,
liberdade processual ou renda real. Ter mais liberdade para fazer as coisas que são
justamente valorizadas é (1) importante por si mesmo para a liberdade global da pessoa
e (2) importante porque favorece a oportunidade de a pessoa ter resultados valiosos.
Ambas as coisas são relevantes para a avaliação da liberdade dos membros da socie-
dade e, portanto, cruciais para a avaliação do desenvolvimento da sociedade. (SEN,
2010, p. 33).

Por fim, averiguamos que o autor acredita que a capacidades encerram lu-
gar central no bem-estar dos indivíduos.

5.4  Atualidades: Bioarte e Bioética,


Diversidade e Multiculturalismo

Bioarte é uma tendência da arte contemporânea que trabalha com as infinitas


possibilidades de cruzamento das artes com a biotecnologia. Diversos artistas
têm realizado em seus ateliês os conhecimentos científicos e tecnológicos para
produzir obras de artes com matéria viva.
Clonagem, engenharia genética e outros meios são utilizados pelos bioar-
tistas para obras como GPF Bunny de Eduardo Kac, na qual num experimento
científico o artista introduziu genes de fluorescência nas células responsáveis
pela reprodução e exposto a uma luz azul o animal nos parece verde.
Outro nome de vanguarda do movimento é Marta de Menezes, uma portu-
guês artista plástica que define seu trabalho como:

126 • capítulo 5
Meu trabalho explora as possibilidades biologia moderna oferece aos artistas. Assim,
tenho vindo a desenvolver o uso de biologia e biotecnologia como new media art, re-
alizando minha prática em laboratórios de investigação que sejam meu estúdio ART .
Eu tenho tentado não só para retratar os avanços recentes de ciências biológicas, mas
para incorporar material biológico como uma forma de transmitir uma discurso artístico
não é possível com um meio diferente : dna, proteínas e células oferecem uma opor-
tunidade de explorar novas formas de representação e comunicação. (Disponível em:
http://martademenezes.com/ , acesso em: 20 de maio de 2015)

Bioética é um conjunto de valores que refere-se a vida no planeta terra. Os


temas relativos a abuso da vida animal pela humanidade, clonagem de seres
vivos, o progresso científico trazem à discussão os caminhos que nós seres hu-
manos deveremos percorrer nos próximos anos.
Em outubro de 2005, a Unesco publicou a Declaração Universal sobre
Bioética e Direitos Humanos. Em seus objetivos encontramos,

A presente Declaração tem os seguintes objectivos: (a) proporcionar um enquadra-


mento universal de princípios e procedimentos que orientem os Estados na formulação
da sua legislação, das suas políticas ou de outros instrumentos em matéria de bioética;
(b) orientar as acções de indivíduos, grupos, comunidades, instituições e empresas,
públicas e privadas; (c) contribuir para o respeito pela dignidade humana e proteger os
direitos humanos, garantindo o respeito pela vida dos seres humanos e as liberdades
fundamentais, de modo compatível com o direito internacional relativo aos direitos hu-
manos; (d) reconhecer a importância da liberdade de investigação científica e dos be-
nefícios decorrentes dos progressos da ciência e da tecnologia, salientando ao mesmo
tempo a necessidade de que essa investigação e os consequentes progressos se in-
siram no quadro dos princípios éticos enunciados na presente Declaração e respeitem
a dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais; (e) fomentar
um diálogo multidisciplinar e pluralista sobre as questões da bioética entre todas as
partes interessadas e no seio da sociedade em geral; (f) promover um acesso equita-
tivo aos progressos da medicina, da ciência e da tecnologia, bem como a mais ampla
circulação possível e uma partilha rápida dos conhecimentos relativos a tais progressos
e o acesso partilhado aos benefícios deles decorrentes, prestando uma atenção parti-
cular às necessidades dos países em desenvolvimento; (g) salvaguardar e defender os

capítulo 5 • 127
interesses das gerações presentes e futuras; (h) sublinhar a importância da biodiversi-
dade e da sua preservação enquanto preocupação comum à humanidade. (Exemplares
disponíveis em: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf ,
acesso em 23 de maio de 2015).

No mesmo documento encontramos os princípios da Bioética, quais sejam:


a) a dignidade humana e os direitos humanos – os interesses e o bem-estar do
indivíduo devem estar acima dos usos da ciência e da sociedade; b) efeitos be-
néficos e efeitos nocivos – na aplicação da ciência devem prevalecer as expe-
riências que tragam efeitos benéficos para os participante e minimizados os
efeitos maléficos; c) autonomia e responsabilidade individual – respeito a auto-
nomia das pessoas para tomar decisões desde que não prejudique outras pes-
soas; d) consentimento – as pessoas participantes de pesquisas ou tratamentos
médicos devem dar sempre seu consentimento livre e esclarecido; e) respeito
pela vulnerabilidade humana e integridade pessoal; f) vida privada e confiden-
cialidade – respeito as informações pessoais; g) igualdade, justiça e equidade;
h) não discriminação e não estigmatização; i) respeito pela diversidade cultural
e do pluralismo; j) solidariedade e cooperação; l) responsabilidade social e saú-
de; m) partilha de benefícios; n) proteção das gerações futuras; o) proteção do
meio ambiente, da biosfera e da biodiversidade.
A bioética também pode ser compreendida conforme suas áreas de atu-
ação. Por exemplo, em relação a educação pode buscar novas pedagogias que
melhorem as práticas educativas e aproximem os estudantes da biodiversidade.
O termo multiculturalismo nos remete ao reconhecimento das individuali-
dades de forma bastante ampla. Explico, é o respeito às diferenças que podem
surgir nas inúmeras comunidades que formam uma nação, por exemplo. Se
pensarmos no caso do Brasil, o direito a proteção dos valores e costumes das
comunidades ribeirinhas é extremamente importante.
Para discutir sobre o multiculturalismo, Zigmunt Bauman, irá tratar da
“condição de reprodução contínua da comunidade”. Vejamos,

“Minoria étnica” é uma rubrica sob a qual se escondem ou são escondidas entidades
sociais de tipos diferentes, e o que as faz diferentes raramente é explicitado. As dife-
renças não derivam dos atributos da minoria em questão, e ainda menos de qualquer

128 • capítulo 5
estratégia que os membros da minoria possam assumir. As diferenças derivam do con-
texto social em que se constituíram como tais: da natureza daquela atribuição forçada
que levou à imposição de limites. A natureza da “sociedade maior” deixa sua marca
indelével em cada uma de suas partes. Pode-se argumentar que a mais crucial das dife-
renças que separam os fenômenos reunidos sob o nome genérico de “minorias étnicas”
se correlaciona com a passagem do estágio moderno de construção da nação para o
estágio pós-Estado-nação. A construção da nação significava a busca do princípio “um
Estado, uma Nação”, e, portanto, em última análise, a negação da diversificação étnica
entre os súditos. Da perspectiva da “Nação Estado” culturalmente unificada e homo-
gênea, as diferenças de língua ou costume encontradas no território da jurisdição do
Estado não passavam de relíquias quase extintas do passado. Os processos esclarece-
dores e civilizadores presididos e monitorados pelo poder do Estado já unificado foram
concebidos para assegurar que tais traços residuais do passado não sobreviveriam por
muito tempo. A nacionalidade compartilhada deveria desempenhar um papel crucial
de legitimação na unificação política do Estado, e a invocação das raízes comuns e de
um caráter comum deveria ser importante instrumento de mobilização ideológica — a
produção de lealdade e obediência patrióticas. Esse postulado se chocava com a rea-
lidade de diversas línguas (agora redefinidas como dialetos tribais ou locais, e destina-
dos a serem substituídos por uma língua nacional padrão), tradições e hábitos (agora
redefinidos como paroquialismos e destinados serem substituídos por uma narrativa
histórica padrão e por um calendário padrão de rituais de memória). “Local” e “tribal”
significavam atraso; o esclarecimento significava progresso, e o progresso significava a
elevação do mosaico dos modos de vida a um nível superior e comum a todos. Na prá-
tica, significava homogeneidade nacional — e dentro das fronteiras do Estado só havia
lugar para uma língua, uma cultura, uma memória histórica e um sentimento patriótico.
(BAUMAN, 2003, p. 83-84)

As discussões trazidas pelo autor nos permite verificar como o pós-Estado-


nação vêm construindo seu modo de operar com a diversidade étnica das inú-
meras comunidades. A administração dos fluxos migratórios têm determinado
os direitos de asilo por exemplo. Notamos a transformação das desigualdades
sociais em aceitação pelas diferenças culturais. Para Bauman o multicultura-
lismo é

capítulo 5 • 129
um joguete nas mãos da globalização não limitada politicamente; as forças globalizan-
tes conseguem escapar com suas conseqüências devastadoras, a principal das quais
sendo a impressionante desigualdade entre sociedades e dentro das sociedades. O
antigo, ostensivo e arrogante hábito de explicar a desigualdade por uma inferioridade
inata de certas raças foi substituído por uma representação aparentemente compas-
siva de condições humanas brutalmente desiguais como direito inalienável de toda
comunidade à sua forma preferida de viver. O novo culturalismo, como o velho racismo,
tenta aplacar os escrúpulos morais e produzir a reconciliação com a desigualdade hu-
mana, seja como condição além da capacidade de intervenção humana (no caso do ra-
cismo), seja com o veto à violação dos sacrossantos Valores culturais pela interferência
humana. (BAUMAN, 2003, p. 98).

A identidade cultural nesse novo modelo adota a impermanência, pela qual


o sujeito pós-moderno assume as identidades conformes as situações experi-
mentas. Para discutir a questão da identidade na pós-modernidade, o escritor
Stuart Hall tratou de três concepções essenciais para ele, elaborando os três
sujeitos a seguir: do iluminismo, o sociológico e o pós-moderno. Vejamos em
suas palavras.

O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um


indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consci-
ência e de ação, cujo "centro" consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira
vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essen-
cialmente o mesmo - contínuo ou "idêntico" a ele - ao longo da existência do indivíduo.
O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa. Direi mais sobre isto em
seguida, mas pode-se ver que essa era uma concepção muito "individualista" do sujeito
e de sua identidade (na verdade, a identidade 'dele': já que o sujeito do Iluminismo era
usualmente descrito como masculino). A noção de sujeito sociológico refletia a cres-
cente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior
do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com "ou-
tras pessoas importantes para ele", que mediavam para o sujeito os valores, sentidos
e símbolos - a cultura - dos mundos que ele/ela habitava, G.H. Mead, C.H. Cooley e
os interacionistas simbólicos são as figuras-chave na sociologia que elaboraram esta
concepção "interativa" da identidade e do eu. De acordo com essa visão, que se tornou

130 • capítulo 5
a concepção sociológica clássica da questão, a identidade é formada na "interação"
entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o
"eu real", mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos cul-
turais "exteriores" e as identidades que esses mundos oferecem. A identidade, nessa
concepção sociológica, preenche o espaço entre o "interior" e o "exterior" - entre o
mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a "nós próprios" nessas
identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores,
tornando-os "parte de nós" contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com
os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então,
costura (ou, para usar uma metáfora médica, "sutura") o sujeito à estrutura. Estabiliza
tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reci-
procamente mais unificados e predizíveis.
Argumenta-se, entretanto, que são exatamente essas coisas que agora estão "mu-
dando". O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável,
está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. Correspondentemente, as identidades,
que compunham as paisagens sociais "lá fora" e que asseguravam nossa conformida-
de subjetiva com as "necessidades" objetivas da cultura, estão entrando em colapso,
como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de iden-
tificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se
mais provisório, variável e problemático. Esse processo produz o sujeito pós-moder-
no, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A
identidade torna-se uma "celebração móvel": formada e transformada continuamente
em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas
culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamen-
te. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que
não são unificadas ao redor de um "eu" coerente. Dentro de nós há identidades con-
traditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações
estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade uni-
ficada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda
estória sobre nós mesmos ou uma confortadora "narrativa do eu" (veja Hall, 1990). A
identidade plenamente identificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao
invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se
multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante
de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao

capítulo 5 • 131
menos temporariamente. Deve-se ter em mente que as três concepções de sujeito
acima são, em alguma medida, simplificações. (HALL, 2006, p.9)

Assim como Stuart Hall, autores dessa linha de pensamento irão de-
monstrar como as experiências de mudanças ocorrem constantemente pela
incorporação e reelaboração das informações recebidas em escala global. A
velocidade das informações e as interconexões sociais rompem os padrões tra-
dicionais construindo uma nova estrutura social e possibilitando uma identi-
dade flutuante.
Para que possamos compreender essas alterações, retomes o conceito de
cultura, como manifestação das experiências humanas. O antropólogo Roque
de Barros Laraia retoma Edward Tylor para esclarecer que no início do século
XIX o termo Kultur, de origem germânica, simbolizava os aspectos espirituais
de um agrupamento social; e de outra perspectiva, o termo francês civilization
tratava das realizações materiais de uma comunidade. O autor assim descreve,

Ambos os termos os termos forma sintetizados por Edward Tylor (1832-1917) no vo-
cábulo inglês Culture, que “tomando em seu amplo sentido etnográfico é este todo
complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer
outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma socieda-
de”. Com esta definição Tylor abrangia em uma só palavra todas as possibilidades de
realização humana, além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura em
oposição à ideia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos. (LARAIA,
2001, p.25)

Dessa maneira, verificamos que diante a profusão dos fenômenos culturais


que abarcam os diversos territórios do planeta, o reconhecimento e legitima-
ção fazem-se extremamente necessários. O respeito ao multiculturalismo for-
talece o direito do que é diferente, e evita a universalização da moral, dos costu-
mes e o enrijecimento dos direitos humanos. O antropólogo Laraia afirma que
a cultura é dinâmica e que precisamos estar atentos às mudanças para compre-
endermos, respeitar e agir. Por fim, leia a conclusão do autor.

132 • capítulo 5
Cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender esta dinâmica é importante
para atenuar o choque entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos.
Da mesma forma que é fundamental para a humanidade a compreensão das dife-
renças entre povos de culturas diferentes, é necessário saber entender as diferenças
que ocorrem dentro do mesmo sistema. Este é o único procedimento que prepara o
homem para enfrentar serenamente este constante e admirável mundo novo do porvir.
(LARAIA, 2001, p. 101)

LEITURA
Leia a resenha de Maria Inês Marcondes do livro Multiculturalismo: diferenças culturais e
práticas pedagógicas, e aproveite para retirar indicações de leituras que possam ampliar
seus conhecimentos sobre o tema.
A questão multicultural tem despertado interesse e candentes debates na atualida-
de. Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicastraz uma importante con-
tribuição para ampliar e aprofundar esse debate em bases teóricas. Os organizadores são
Antônio Flávio Barbosa Moreira (Universidade Católica de Petrópolis) e Vera Maria Candau
(Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), que já possuem outras obras tratando
das temáticas de currículo, cultura e formação de professores.
O livro traz uma coletânea de artigos de autores diversos sobre questões referentes a
identidade, raça, gênero, sexualidade, religião, cultura juvenil e saberes. Os artigos vinculam
essas questões com a escola, com o currículo, alunos e professores, ou seja, com a prática
pedagógica. São textos atuais que se propõem a desafiar representações hegemônicas. A
discussão da questão multicultural precisa ir além do discurso, assim como começar a prover
ferramentas mais práticas em conjunto com lentes conceituais. Essa é a proposta do livro:
discutir aspectos teóricos e práticos do multiculturalismo que podem dar bases para uma
formação de professores mais crítica.
O primeiro texto é de Vera Candau, que defende a interculturalidade, perspectiva que im-
plica a aceitação da interrelação entre diferentes grupos culturais; da permanente renovação
das culturas; do processo de hibridização das culturas; e da vinculação entre questões de
diferença e desigualdade. Partindo do pressuposto que a diferença se encontra na base dos
processos educativos, a autora sugere possibilidades pedagógicas para o desenvolvimento
de uma educação intercultural na escola.

capítulo 5 • 133
O segundo texto, de Antônio Flávio Moreira e Michelle Januário Câmara, enfoca a ques-
tão da identidade, argumentando com base nos estudos culturais. Discute as concepções de
identidade e diferença e apresenta possíveis formas de lidar com essas questões no coti-
diano da escola. Traz a experiência de uma pesquisa realizada em sala de leitura, mostrando
a possibilidade de envolver alunos em discussões sobre raça, gênero e sexualidade, com a
intenção de desafiar representações hegemônicas.
O terceiro texto, de Nilma Gomes, sustenta que o racismo e a desinformação sobre
a ascendência africana no Brasil constituem obstáculos à formação de uma consciência
coletiva que tenha como eixo de ação política a construção de uma sociedade mais justa e
igualitária. Discute a lei n. 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de história da África
e de cultura afro-brasileira nos currículos da escola básica. A partir de uma visão crítica dessa
proposta, a autora destaca os aspectos positivos da nova legislação, mas também alerta para
os necessários cuidados em sua implementação.
O texto de Marília Pinto de Carvalho é o quarto da coletânea e aborda a relação entre
gênero e educação. Investiga a percepção das professoras de ensino fundamental sobre
o desempenho escolar de meninos e meninas, apontando que a falta de critérios claros
para avaliar faz com que elas recorressem a repertórios e valores pessoais marcados por
preconceitos de gênero, prejudicando os alunos do sexo masculino. Afirma que é impossível
enfrentar os problemas centrais da educação brasileira hoje sem uma adequada apropriação
do conceito de gênero.
O quinto texto é de Luiz Carlos Moita Lopes, abordando o tema da sexualidade. O autor,
ancorado na teorizaçãoqueer, problematiza qualquer sentido de verdade e de normatividade
em relação à sexualidade, oferecendo-nos a possibilidade de compreender as sexualidades
para além das políticas da diferença. Propõe que a escola seja um lugar de recriar e politizar
a vida social, de compreender a necessidade de não separar cognição e corpo.
Stella Caputo escreve o sexto texto, explorando a temática das crianças que são pre-
paradas para penetrar nos mistérios do candomblé. Elas dizem-se orgulhosas da religião
que professam, mas a situação modifica-se ao chegar à escola, quando começam a ser
discriminadas por professores e colegas, o que se confirma pelas entrevistas e observações
realizadas pela autora. Caputo alerta para o "silenciamento" a que são submetidos esses
estudantes, com conseqüências nefastas para sua auto-estima.
Paulo Carrano, no sétimo texto, discute a importância das culturas juvenis, destacando
seu potencial criativo na reformulação das escolas e dos currículos. Propõe aos educadores
atuar com o propósito de construir a unidade social em sociedades marcadas por diferenças
e desigualdades, promovendo a leitura crítica das mensagens emitidas pela publicidade; tra-
balhando com as experiências prévias dos jovens alunos e reformulando currículos de modo

134 • capítulo 5
que se reorganizem espaços e tempos de compartilhamento de saberes, bem como que se
ampliem a experiência social pública e o direito de todos às riquezas simbólicas e materiais
da sociedade.
Carmem Teresa Gabriel aborda, no oitavo texto, a importância da discussão do conhe-
cimento escolar, colocando-se a favor de novas formas de articular diferentes teorizações
no campo do currículo para que se potencializem os aspectos políticos e epistemológicos
da interface conhecimento e cultura. Sustenta que o processo de hibridação dos discursos
sobre cultura, conhecimento, poder e currículo favorece questões críticas e pós-críticas re-
ferentes ao conhecimento escolar, sem que se abra mão da crença na escola pública como
importante espaço político.
O valor e a importância do livro estão não só na diversidade de enfoques e na riqueza
conceitual apresentada, como também na possibilidade de conhecer experiências práticas
que tratam da questão multicultural. Somos desafiados a refletir e a nos posicionar perante
as questões tratadas, o que é urgente no nosso contexto. O livro é certamente leitura indis-
pensável a pesquisadores da questão multicultural, professores e estudantes de pedagogia
e licenciaturas, possibilitando uma postura mais crítica diante dessas questões.
Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Rev. Bras. Educ. [on-
line]. 2008, vol.13, n.39, pp. 590-591. ISSN 1809-449X.  Disponível em: <http://dx.doi.
org/10.1590/S1413-24782008000300017>.

ATIVIDADES
01. Qual a relação do capitalismo industrial com o desequilíbrio ambiental?

02. O que justifica o fundamentalismo religioso?

03. De que maneira podemos explicar a ideia que os direitos humanos transcendem algu-
mas especificidades nacionais?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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revisão técnica Ricardo Doninelli Mendes. — São Paulo : Companhia das Letras, 2010.

capítulo 5 • 135
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136 • capítulo 5

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