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06/08/2023, 01:05 Quatro Cinco Um: a revista dos livros - Chimamanda Ngozi Adichie sobre liberdade de expressão
Percebi que todas as vezes que os amigos dos meus pais vinham nos visitar, eles
ficavam sentados na sala de estar falando bem alto, a não ser quando criticavam o
governo militar. Então, eles sussurravam. Aqueles sussurros, além de testarem
minha capacidade de ouvir a conversa alheia, me impressionavam. Por que falar num
tom tão baixo na privacidade da nossa sala de estar, e ainda por cima bebendo
conhaque? Ora, porque eles estavam tão cientes daquele governo punitivo e
autoritário que instintivamente baixavam a voz quando diziam palavras que não
ousavam dizer em público.
Uma estudante americana me abordou certa vez em uma sessão de leitura. “Por que”,
perguntou ela, com raiva, “eu tinha dito aquilo numa entrevista?”. Expliquei que o que
eu disse era verdade, e ela concordou, mas então perguntou: “Mas por que a gente
tem que dizer isso, mesmo sendo verdade?”. A princípio, fiquei atônita com o absurdo
da pergunta, mas então me dei conta do que ela queria dizer. Não importava no que
eu acreditava. Não devia ter dito aquilo porque era algo que não se encaixava na
minha tribo política. Eu tinha profanado a ortodoxia dominante. Foi como ser
acusada de blasfêmia numa religião que não é a sua. A pergunta daquela jovem, “Por
que a gente tem que dizer isso, mesmo sendo verdade?”, ilustra aquilo que o escritor
Ayad Akhtar chamou de estridência moral, “um alinhamento feroz, talvez até
punitivo, às atitudes e comportamentos sancionados coletivamente nesta era”.
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Se alguém pensar, “Bom, algumas pessoas que disseram coisas terríveis merecem
isso”, não. Ninguém merece. É de uma barbárie inconcebível. É um vigilantismo
virtual cujo objetivo é não apenas silenciar a pessoa que falou algo mas criar um
clima vingativo que impeça outras pessoas de falarem. Há algo honesto em um
autoritarismo que se reconhece como tal. Um sistema como esse é mais fácil de
enfrentar, porque as linhas de batalha são claras. Mas essa nova censura social exige
consenso ao mesmo tempo em que faz questão de não enxergar a própria tirania.
Acho que ela é um prenúncio da morte da curiosidade, da morte do aprendizado e da
morte da criatividade.
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Leia também: Manifesto pela leitura: ‘Ler nos ensina a falar e nos educa na arte do diálogo’
(https://www.quatrocincoum.com.br/br/noticias/livro-e-leitura/manifesto-pela-leitura)
A literatura nos mostra quem somos, nos leva para dentro da História, nos conta não
apenas o que aconteceu mas qual a sensação que causou, e nos ensina, como um
professor americano disse certa vez, que há coisas que não dá para “dar um Google”.
Os livros formam nossa compreensão do mundo. Nós falamos da “Londres de
Dickens”. Procuramos grandes escritores africanos como Aidoo e Ngugi para
compreender o continente e lemos Balzac pelas sutilezas da França pós-napoleônica.
Em uma manhã tranquila de agosto em Nova York, Salman Rushdie foi atacado
quando estava prestes a falar, ironicamente, sobre liberdade de expressão. Imaginem
a intimidade brutal e bárbara de um estranho a poucos centímetros de você,
mergulhando com força uma faca no seu rosto e no seu pescoço múltiplas vezes,
porque você escreveu um livro. Eu decidi reler os livros de Rushdie não só como um
gesto desafiante de apoio, mas como um lembrete ritualizado de que a violência física
como reação à literatura não pode nunca, nunca ser justificada.
Leia também: Nada será sagrado? Salman Rushdie defende o romance como espaço de
transcendência e excepcionalidade
(https://www.quatrocincoum.com.br/br/artigos/politica/nada-sera-sagrado)
Rushdie foi atacado porque, em 1989, depois de seu romance Os versos satânicos ser
publicado, o regime iraniano declarou que ele era ofensivo e condenou não apenas
Rushdie, como todos os seus editores, à morte. A isso, seguiram-se coisas horríveis, é
claro: o tradutor dele para o italiano foi esfaqueado, seu editor norueguês foi baleado
e seu tradutor para o japonês, Hitoshi Igarashi, foi assassinado em Tóquio. Uma
questão sobre a qual tenho pensado: será que o romance de Rushdie teria sido
publicado hoje? Provavelmente não. Será que teria ao menos sido escrito?
Possivelmente não.
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Existem escritores como Rushdie, que querem escrever romances sobre temas
sensíveis, mas não se permitem devido ao fantasma da censura social. Os editores
têm receio de cometer blasfêmia secular. A literatura é cada vez mais vista através de
uma lente ideológica e não artística. Nada demonstra isso melhor do que o recente
fenômeno dos “leitores sensíveis” nas editoras, pessoas cujo trabalho é limar
palavras com potencial ofensivo de manuscritos.
Para mim, isso nega a própria ideia da literatura. Não podemos contar histórias que
são apenas luz quando a vida em si é luz e escuridão. A literatura trata do fato de
sermos sublimes e falhos. Ela trata daquilo que H. G. Wells chamou de “a alegre
rudeza da vida”. A isso eu acrescentaria que basta a rudeza, ela não precisa ser alegre.
Embora eu insista que a violência nunca é uma reação aceitável ao discurso, não nego
que palavras têm o poder de ferir. Palavras podem destruir a coragem humana.
Algumas das dores mais profundas que já senti na vida vieram de palavras que
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alguém disse ou escreveu, e algumas das mais belas dádivas que já recebi também
foram palavras. É exatamente por causa do poder das palavras que a liberdade de
expressão importa.
Meu motivo prático, que também poderíamos chamar de meu motivo egoísta, é que
temo que essa arma, que defendo ser usada contra outra pessoa, possa um dia ser
usada contra mim. O que hoje é considerado benigno pode perfeitamente se tornar
ofensivo amanhã, pois a supressão do discurso não gira tanto em torno do discurso
em si, mas da pessoa que censura. Diretorias de escolas americanas de ensino médio
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têm banido livros freneticamente, e o processo parece ser arbitrário. Livros que
vinham sendo usados em currículos escolares há anos sem que houvesse
reclamações foram subitamente banidos em alguns estados e, pelo que eu soube, um
dos meus romances está nesse ilustre grupo.
Confesso que existem alguns livros que eu poderia ter a fantasia de banir. Livros que
negam o Holocausto ou o genocídio armênio, por exemplo, porque eu detesto a
negação da História. Mas e se a fantasia de outra pessoa fosse banir um livro sobre o
massacre de Deir Yassin de palestinos por sionistas em 1948? Ou um livro sobre os
mineradores de carvão igbo massacrados na Nigéria pelo governo colonial britânico
em 1949? Acima do princípio e do pragmatismo, no entanto, está a realidade de que a
censura com muita frequência não alcança seu objetivo. Meu primeiro instinto, ao
saber que um livro foi banido, é procurá-lo e lê-lo.
Por isso eu diria: não vamos banir, vamos responder. Nesta era de desinformação
crescente no mundo todo, na qual é fácil enfeitar tão bem uma mentira que ela
adquire o brilho da verdade, a solução não é esconder a mentira, mas expô-la, e tirar
dela esse brilho falso. Quando censuramos os vendedores de ideias más, corremos o
risco de transformá-los em mártires, e a batalha contra um mártir jamais poderá ser
vencida.
Eu leio jornais de ambos os lados do espectro político. Aliás, continuo intrigada com o
fato de os jornais, bastiões aguerridos da objetividade, se diferenciarem
politicamente. E muitas vezes digo, quando quero parecer melhor do que sou, que
tenho interesse pelas ideias de quem discorda de mim porque acredito que é bom
ouvir lados diferentes de uma questão. Mas a verdade é que tenho interesse por essas
ideias porque quero entendê-las direito para conseguir demoli-las melhor.
Acredito que a resposta ao mau discurso é mais discurso, e reconheço quão simplista
e até irresponsável isso pode soar. Não estou sugerindo que uma pessoa deveria
poder dizer qualquer coisa a qualquer momento, uma posição que, para mim, é
imatura, pois é fantasiosa e descolada da realidade. O absolutismo na liberdade de
expressão só seria adequado em um mundo teórico habitado por ideias animadas,
não seres humanos.
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06/08/2023, 01:05 Quatro Cinco Um: a revista dos livros - Chimamanda Ngozi Adichie sobre liberdade de expressão
Isso leva à questão: quem decide quão severas e quão claras devem ser as restrições?
O filósofo inglês John Stuart Mill, que viveu no século 19, escreveu que qualquer
silenciamento de uma discussão é uma presunção de infalibilidade e, com todo o
devido respeito ao Papa, ninguém é infalível. Então, quem decide quem deve ser
silenciado?
Mahatma Ghandi, após ser preso por sedição, escreveu: “A afeição não pode ser
fabricada ou regulada pela lei. Se alguém não tem afeição por uma pessoa ou sistema,
deve ser livre para expressar da maneira mais completa sua insatisfação, contanto
que não contemple, promova ou incite a violência”.
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Até a definição de discurso pode ser limitadora, como quando a Suprema Corte dos
Estados Unidos decidiu, no caso da Citizens United, que dinheiro é discurso. Todos
aqueles que não são ricos não podem responder, por assim dizer. E acima de tudo as
empresas donas de mídias sociais, com seus algoritmos místicos e sua falta de
transparência, exercem enorme controle sobre quem pode falar e quem não pode,
suspendendo e censurando seus usuários, algo que já foi chamado de “moderação
sem representação”.
Sim, essas empresas são privadas, mas, considerando-se a imensa influência que têm
na sociedade moderna, realmente deveriam ser tratadas mais como de utilidade
pública. Há aqueles que acreditam que, devido a esses tipos de limitações de poder,
deveríamos censurar o discurso de maneira robusta para criar tolerância. Uma ideia
bem-intencionada, sem dúvida. Mas, como argumentou o advogado dinamarquês
Jacob Mchangama: “Impor o silêncio e chamá-lo de tolerância não faz com que ele
seja tolerância de verdade. A verdadeira tolerância requer compreensão. A
compreensão surge quando se escuta. Escutar pressupõe um discurso”.
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06/08/2023, 01:05 Quatro Cinco Um: a revista dos livros - Chimamanda Ngozi Adichie sobre liberdade de expressão
Protestos em Nova York após a morte de Mahsa Amini nas mãos da guarda iraniana. Outubro de 2022
Yuki Iwamura/afp via Getty Images
A maior ameaça ao discurso hoje não é legal ou política, mas social. Essa não é uma
ideia nova, ainda que sua manifestação atual seja moderna. Aquele famoso cronista
da vida americana, Alexis de Tocqueville, acreditava que os maiores perigos para a
liberdade não eram legais ou políticos, mas sociais. E quando John Stuart Mill alertou
para a “tirania da opinião e do sentimento prevalentes”, a impressão que dá é que ele
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previu a ameaça que a ortodoxia representa hoje. A solução para essa ameaça só
pode ser a ação coletiva. A censura social não só cria só um clima de medo como
também uma relutância em reconhecer esse medo. É humano temer uma turba, mas
eu a temeria menos se soubesse que meu vizinho não ficaria em silêncio se eu fosse
colocada no pelourinho. Nós tememos a turba, mas nós somos a turba.
Hoje, quero argumentar a favor da coragem moral, defender que cada um de nós
apoie a liberdade de expressão, se recuse a participar de censuras não justificadas e
torne muito mais vasta a definição do que pode ser dito. Nós precisamos voltar a
presumir a boa-fé. Nas discussões públicas de hoje, a presunção da boa-fé está morta
e o discurso é, por falta de alternativa, interpretado da maneira menos generosa.
Sim, algumas pessoas não têm boa-fé, e suponho que seja isso que a palavra moderna
troll significa, mas nós não podemos, porque algumas pessoas não agem de boa-fé,
decidir que a boa-fé em si está morta. É instrutivo lembrar das palavras do presidente
americano James Madison: “Algum nível de abuso é inseparável do uso adequado de
qualquer coisa”.
Precisamos ouvir todos os lados, e não apenas o que fala mais alto. Ao mesmo tempo
em que as mídias sociais remodelaram a dinâmica de poder tradicional dando algum
acesso a quem não tem poder, elas também fizeram com que seja fácil confundir as
vozes que falam mais alto com as vozes mais verdadeiras. Precisamos proteger os
valores da discordância, e concordar que há valor na discordância. E precisamos
apoiar o princípio da livre expressão mesmo quando ele não é atraente para aquilo
que consideramos importante, por mais difícil que isso seja, e eu acho
particularmente difícil.
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Chimamanda Ngozi Adichie falando em um festival em Liubliana, capital da Eslovênia, em 2022 Luka
Dakskobler/SOPA Images/LightRocket via Getty Images
Precisamos parar de presumir que todo mundo sabe, ou deveria saber, de tudo. Certa
vez, fiquei impressionada com o quão rapidamente uma jornalista americana foi
demitida por dizer algo racista. Pouco foi tornado público sobre o que exatamente ela
disse, e isso não só deu um certo poder indevido a suas palavras, mas também
sugeriu sinistramente que elas talvez tivessem um lado verdadeiro. O público também
não pôde exercer o seu direito de ouvir e, potencialmente, aprender. O que foi dito?
Por que dizer aquilo foi errado? O que deveria ter sido dito em vez daquilo?
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06/08/2023, 01:05 Quatro Cinco Um: a revista dos livros - Chimamanda Ngozi Adichie sobre liberdade de expressão
E se cada um de nós, mas particularmente aqueles que têm voz, aqueles que
controlam os acessos, os formadores de opinião, os líderes políticos e culturais, os
editores, os influenciadores, de todo o espectro político, concordássemos que essas
ideias são diretrizes a serem seguidas? Uma coalizão dos razoáveis automaticamente
moderaria o discurso extremo. Isso é ingênuo? Talvez. Mas uma aceitação deliberada
da ingenuidade pode ser o princípio da mudança. A internet, afinal de contas, foi
projetada para criar uma utopia da conexão humana. Uma das ideias mais ingênuas
que já existiu, mas que mesmo assim fez surgir a mudança mais significativa na
maneira como os seres humanos se comunicam.
Às vezes é preciso uma crise para que uma ideia ingênua se torne realista. O New
Deal do presidente Roosevelt foi baseado em ideias que iam contra o consenso
prevalente na época e foi, de maneira geral, considerado ingênuo e impossível. Mas,
quando uma crise surgiu na forma da Grande Depressão, ele subitamente se tornou
possível.
A censura social é nossa crise de hoje. George Orwell escreveu que “se um grande
número de pessoas se interessar por liberdade de expressão, haverá liberdade de
expressão, mesmo se a lei proibir”. A isso eu gostaria de acrescentar: podemos
proteger o nosso futuro. Só precisamos de coragem moral.
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