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Curso de Cristina López Barrio

FUNÇÕES DA LITERATURA
FUNÇÕES DA LITERATURA
Recursos Adicionais - Cristina Lopez Barrio

UMA ABORDAGEM DAS FUNÇÕES DA LITERATURA


AO LONGO DA HISTÓRIA.

Bem-vindo a este curso de escrita e obrigado por escolhê-lo.

Atrás de cada texto de ficção existe uma história, de maior ou menor


extensão, conto, romance, mas o que nos leva a escrever essa história?
Por que o homem, desde os tempos antigos, sentiu necessidade de
contar? Quero dizer, por que escrevemos?

Essas questões me levaram a mergulhar no mundo da teoria literária na


tentativa de entender o que há por trás das histórias, o fato de escrever, o
próprio processo criativo, que é considerado por alguns escritores como
Stefan Zweig um dos grandes mistérios do homem. Também foi
fascinante saber como foi a experiência de outros escritores, como
viveram o ato de escrever, por que o faziam, quais eram suas crenças a
respeito ao fato literário. Acredito que mergulhar nessas questões e nos
perguntar o que é que nos move a escrever pode enriquecer nossa
escrita, nos ajuda a focar e a compreender o processo criativo envolvido
que é a aventura da escrita de um texto.

Há uma citação de Gabriel García Márquez, um dos meus escritores


favoritos, que diz:
“O que mais importa para mim neste mundo é o processo de criação. Que tipo de
mistério é esse que faz com que o simples desejo de contar histórias se transforme
em uma paixão, que um ser humano seja capaz de morrer por ela: morrer de fome,
frio ou qualquer outra coisa, só para fazer algo que não se pode ver ou tocar e que
afinal, se pararmos para analisar bem, não serve para nada?".

O que não tenho dúvidas é nossa tendência de nos perguntarmos o


porquê de muitas coisas. A curiosidade é um dos grandes motores do
progresso humano, e uma das principais razões pelas quais continuamos
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lendo uma história depois de começá-la. Queremos saber o que


aconteceu. A curiosidade do sultão salvou a vida de Sherezade nas Mil e
Uma Noites. O poder da palavra.

No ano passado li um livro que me fascinou: Sapiens, de animais a deuses,


escrito por um professor da Universidade de Jerusalém, Yuval Noah Harari.
As conclusões que tirei relacionadas ao fato literário em si, e à necessidade
humana de contar histórias, é que milhares de anos atrás, o homem
primitivo não bastava só o simples fato de sobreviver, mas ele também
precisava entender o fato de estar vivo, precisava entender sua própria
existência e a natureza ao seu redor. Viver não era o suficiente. Deixe-me
levar pela paixão e curiosidade que o livro que citei despertou em mim,
em que o autor nos conta que o homo sapiens passou por três revoluções.
A primeira é a cognitiva. Uma mutação genética em seu cérebro fez com
que sua linguagem se expandisse e, com ela, sua capacidade de
abstração, de imaginar. O homem é o único animal que acredita em coisas
que não existem e, caso existam, não são tangíveis. É nessa hora que
surgem as histórias. Surge o mito. O mito revela respostas às perguntas
que o homem se fez sobre a sua existência, sobre o mundo em que
habitava. De tal forma que a angústia de estar vivo foi amenizada pelas
histórias, pelo menos séculos atrás. Esta ideia responde ao fato de que
todas as mitologias do mundo, desde a nórdica, passando pela grega, à
australiana, sem que houvesse qualquer possibilidade de comunicação
entre elas, especialmente com esta última na Antiguidade, tratavam dos
mesmos temas: a criação do mundo, a imortalidade, a natureza ... O mito,
as histórias, colocam ordem no caos que o homem viveu, naquele mundo
primitivo onde a natureza era selvagem e brutal.

Desde o início fomos seres sociais, porém, nos sentíamos unidos somente
aos demais membros da pequena comunidade da qual fazíamos parte.
Após a revolução cognitiva e nossa nova capacidade de abstração,
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pudemos nos sentir unidos a outros membros de nossa espécie com os


quais compartilhamos uma crença, apesar de não ter tido nenhum
contato com eles.

Penso agora em quando éramos crianças, como a primeira estrutura para


entender o mundo, para entender o caos que a vida acarreta, isso nos é
dado por meio de histórias infantis. Despertam a imaginação da criança,
ordenam o mundo de forma simples: bons, maus, heróis, vilões, são uma
primeira aproximação do que significa estar vivo, o que significa família e
sociedade. Portanto, nossa primeira compreensão do mundo, pelo menos
no Ocidente, é por meio de histórias.

Outro livro que li ultimamente e que me fascinou tem um título daqueles


que qualquer pessoa gostaria que fosse seu, A Literatura é minha vingança.
Conversas entre Mario Vargas Llosa e Claudio Magris. Como li depois do
Sapiens fiquei surpresa ao descobrir que se tratava do mesmo tema sobre
a origem das histórias e as necessidades que o homem tinha e tem para
sua existência. Vargas Llosa diz que o romancista é o xamã dos tempos
modernos. Conta histórias e reflete sobre o mundo, sobre o que nele se
passa, questiona-se, embora muitas vezes não encontre resposta.

Se a princípio usamos as histórias para dar ordem ao caos que vivemos, na


literatura contemporânea às vezes as usamos para denunciar a
necessidade de mudar o mundo civilizado.

Vargas Llosa corrobora o que li no Sapiens:

“Acho que dessa necessidade (se refere a dar coerência às nossas vidas, a encontrar
uma ordem na existência e no mundo em que vivemos) surgiram as histórias, nas
brumas do tempo, na caverna primitiva, quando os seres humanos cheios de terror
diante de um mundo do qual nada entendiam, começaram, depois de inventar a
linguagem, a contar histórias, a fugir do mundo dos perigos para um mundo diferente
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porque se sentiam mais seguros, e podiam entender porque tinha um começo e um


fim ... "

Vargas Llosa considera os romancistas e contistas como descendentes


dos primeiros contadores de histórias. Hoje temos as mesmas
preocupações de antes: compreender a realidade, a existência, buscar um
mundo melhor. A literatura deve então ter um propósito?

1.1 A LITERATURA COMO BELEZA. A ARTE PELA ARTE

A teoria da arte pela arte defendeu desde o início a independência da


literatura como arte autônoma que não está a serviço da filosofia, da
moral, da política ou de qualquer outra disciplina. Essa ideia, que em nossa
época pode ser óbvia para nós, é, no entanto, relativamente recente. Até
meados do século 17 se considerava que a literatura deveria ter um
propósito hedonístico ou pedagógico e moralista.

Um dos textos clássicos da teoria literária, como a Epístola de Horácio aos


Pisões , fala a esse respeito: "Os poetas querem ser úteis ou deleitar, ou ao
mesmo tempo dizer o que é agradável e adequado para a vida."

Ao longo da história, vamos encontrar algumas exceções a essa


concepção um tanto restrita do objetivo de um texto literário, assim como
os trovadores provençais, criadores da literatura do amor cortês,
inteiramente dedicados à beleza e ao aperfeiçoamento do poema. Eles
consideravam a arte como um fim em si mesmo que deveria responder
apenas à beleza da própria criação. A arte não precisa de mais
justificativas. Argumento que posteriormente defenderão escritores como
Edgar Alan Poe e Oscar Wilde, como veremos.
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A teoria da arte pela arte, como movimento estético e escola literária,


situa-se no século 19. Proclamou a liberdade da literatura, mas ao mesmo
tempo defendeu que ela tinha que obedecer à beleza. Era então tão livre
como sugeria? A beleza não é uma disciplina que tem a ver com estética
ou a que tipo de beleza se refere? Eu me pergunto se um texto literário,
pelo mero fato de ser, tem que responder a essa beleza merecida que
teve tantos significados ao longo da história. Belo para quem, pergunta-
se? De acordo com quais cânones? Lembro-me de um capítulo do livro
fantástico do filósofo Eugenio Trías, O belo e o sinistro, em que o autor
afirma que, segundo Kant na Crítica do Juízo, tudo o que não promova o
sentimento de repulsa, independentemente do horror desperta e sua
moralidade pode ser objeto de uma obra artística. Há, portanto, um limite
para uma obra de arte que o filósofo situa no sentimento de repulsa que
anularia o efeito estético.

Seguidores da teoria da arte pela arte tentaram definir esse conceito de


beleza fazendo uma oposição ao de utilidade. Tudo o que não é útil será
belo.

Mas antes de avançar com essa teoria e nomear os escritores que a


defenderam, vamos situá-la melhor no tempo. No manual da Teoria
Literária de Víctor Manuel Aguiar e Silva, li que a expressão arte pela arte
aparece pela primeira vez nos círculos românticos alemães, especialmente
nos de Weimar e Jena. Mais tarde se espalhou pela França, onde o escritor
Teófilo Gautier, em seu famoso prólogo de sua obra Mademoiselle de
Maupin, ataca todos aqueles que defendem que a literatura tenha um
propósito moral ou utilitário, ou até mesmo um propósito social. Cito as
palavras de Gautier:
“Só é verdadeiramente belo aquilo que não serve para nada, tudo o que é útil é feio,
porque é a expressão de alguma necessidade, e as necessidades do homem são
ignóbeis. O lugar mais útil de uma casa é o banheiro ”.
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O que você acha das palavras de Gautier? A citação de Gabriel García


Márquez me vem à mente; “O que mais importa para mim no mundo é o
processo criativo... somos capazes de morrer de sede, de fome ... por algo
que, se pararmos para pensar, é inútil...”. Beleza pura, então, sem mais
utilidade?

Em relação à citação de Gautier, me pergunto se seria possível falar de


necessidades espirituais levando em conta o que expliquei na introdução
desta unidade.
O homem imaginou as histórias para entender sua existência? O desejo de
compreender sua vida não é uma necessidade espiritual? A literatura deve
ter um fim metafísico?

Mas vamos voltar ao século 19. A teoria de Gautier na França é totalmente


endossada por Oscar Wilde na Inglaterra. Recomendo a leitura do livro A
decadência da mentira, o favorito de Wilde em termos de estética,
conforme li. Para começar, fiquei impressionada com a justificativa para o
título. Já não se mente como antes, explica Wilde, uma febre da realidade
ataca os escritores da época; a mentira como arte, ciência e prazer social
está em declínio, por isso não se escreve bem. O escritor se prende muito
na visa, documenta seus romances e contos, se esforça para recriar os
feitos que realmente aconteceram.

Wilde defende que a arte nunca deve imitar a vida. É a vida que deve
imitar a arte; a mentira deve prevalecer na arte. A maioria dos escritores
não se atrevem nem a roubar as ideias dos outros, argumenta Oscar Wilde,
baseia-se diretamente em sua experiência pessoal e em enciclopédias.

Em um dado momento, ele diz que, ao escrever romances tão


coincidentes com a realidade, é impossível aceitar sua verossimilhança.
Acho que não é possível separar totalmente a escrita, a criação, da vida do
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autor, de sua experiência. Embora não seja o desejado, surge de uma


forma ou de outra.

Oscar Wilde não pode escapar do romantismo literário, em que a criação


artística é a única forma do homem acessar o infinito, os enigmas da vida.
Voltaremos a essa ideia mais tarde, quando falarmos sobre literatura como
conhecimento.

A poética de Wilde é revolucionária para sua época. “As únicas coisas belas
são aquelas que não nos dizem respeito”, dirá ele, depreciando também
uma literatura útil, porém, nas últimas páginas do A decadência da mentira,
mostra que a arte não expressa nada além de seu próprio ser. Tem uma
vida independente. Não deve ser realista em uma era de realismo, nem
espiritual em uma era de fé. Ao contrário, geralmente se opõe ao seu
tempo, não reproduz seu tempo, mas geralmente está à frente dele.

É por isso que obras que foram incompreendidas e desprezadas durante a


vida do autor, posteriormente, encontraram seu reconhecimento ao longo
do tempo.

No continente americano, é Edgar Alan Poe quem defende essa teoria,


assumindo a beleza do poema como o fim nobre e supremo. Veremos
Poe mais de perto ao discutir sua teoria da composição. O que quero
destacar agora é a ideia que ele teve sobre a criação artística. Defendeu a
total autonomia da literatura em relação a outras disciplinas ou objetivos
sociais, mas insistia que devia ser sempre bela, voltada para esse fim.

Na minha opinião, essa teoria pode limitar a literatura, seu próprio


significado e razão de ser. Entendo a teoria de Oscar Wilde neste sentido: a
literatura é algo mais do que uma enumeração de fatos contados em uma
ficção, tão fielmente que, ao imitar a vida, se desprende de toda a sua
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veracidade, porque a lógica literária é diferente daquela da vida, bem


como o é a tempo narrativo do tempo real (veremos mais adiante). Um
texto literário é um mundo separado da vida. É um universo, por menor
que seja, um cosmos em que o único propósito é a coerência de si
mesmo, sua história. As leis que ele mesmo cria e que foram respeitadas.

Outro ponto a se levar em conta na teoria da arte pela arte, é sua reflexão
sobre a natureza. A poesia, a criação literária não deve ser inspirada pela
natureza, pois ela é imperfeita. Quanto mais a arte se fixa na natureza, mais
se dá conta de que é inacabada, grosseira e monótona, diz Oscar Wilde. A
arte é a tentativa de ensinar a natureza qual é seu lugar. "Quanto à sua
infinita variedade, diz Wilde, é puro mito, reside apenas na imaginação de
quem a contempla." A imaginação, a fantasia que a arte representa é o que
cria a vida, a natureza como a concebemos. Não pude deixar de
mencionar esta frase crítica e sarcástica com a natureza: Se fosse
confortável, o homem não teria inventado a arquitetura.

Limitar a literatura à beleza supõe para mim uma limitação da obra como
ser vivo. O conceito de beleza foi mudando ao longo dos séculos. Embora
a beleza do estilo ou a sensação de beleza que algumas obras produzem
ao lê-las, como acontece comigo cada vez que leio Gabriel García
Márquez, são um deleite e um fim em si mesmo.

A verdadeira obra de arte não precisa disso, não deve segui-las, não pode
estar sujeita a alguns cânones porque está viva.

Ramón Gaya nos fala sobre a criatura artística que nasce e não serve para
nada além de si mesma. A verdadeira criação transcende o próprio
homem, o escritor, e se torna vida. A obra como criação do espírito, do
alma humana que usa a vida como matéria-prima, mas autônoma, livre,
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obedecendo a nenhum outro propósito que não o seu próprio significado.


É o que Karen Blixen chamou de ser fiel à história.
“Quando o narrador é fiel, eternamente e inabalavelmente fiel à história, no final é o
silêncio que fala. Quando a história é traída, o silêncio nada mais é do que vazio. Mas
nós, fieis, quando tivermos dito nossa última palavra, ouviremos a voz do silêncio "

Karen Blixen

Elimine qualquer tentação de interferir em nossa história. Deixe-a


desenvolver-se como criatura viva para que tenha coerência própria e, no
final, escutemos esse silêncio sagrado. Você quer tentar?

1.2 LITERATURA COMO EVASÃO. A TORRE DE MARFIM


DE FLAUBERT.

A evasão é uma das funções atribuídas à literatura, a evasão tanto do


ponto de vista do escritor como do leitor. Vejamos primeiro do ponto de
vista do escritor.

Nesse sentido, gosto da teoria de Ramón Gaya, um pintor e escritor do


século 20, que abominava os estilos pictórico e literário, as escolas, as
tendências, pois tiravam a liberdade do ato de criação.

Os adeptos da teoria da arte pela arte consideram que o escritor não deve
tomar a vida como fonte de experiência para a sua escrita. A realidade não
é digna de arte. Lembremo-nos de que pensavam que a arte estava
acima da vida, o que se traduz em alguns escritores fazendo da escrita um
verdadeiro sacerdócio, a ponto de às vezes considerá-la incompatível as
ações mais fundamentais que se realiza no dia a dia. Gustave Flaubert é
um desses casos. Ele se entrega de corpo e alma à criação literária. Fiquei
impressionada com uma citação dele no livro de Victor Manuel Aguiar e
Silva em que o escritor explica como se incomoda com tudo o que distrai
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do seu trabalho criativo: “Odeio a vida ... sim, a vida e tudo o que me faça
lembrar que é preciso suportá-la. É uma provação andar, me vestir, ficar
de pé ... "

O artista da arte pela arte se isola do mundo, da realidade rotineira e


constrói para escapar de sua torre de marfim, um dos grandes mitos da
arte pela arte. Na sua torre de marfim, longe de tudo e de todos, sozinho
com a sua arte, com o seu mundo criativo, é onde o escritor desenvolve a
sua obra.

Recomendo a leitura das cartas que Flaubert escreveu à sua amante


Louise Colet. Nelas conta como lida com o processo de escrita e sua
dedicação total ao que mais o apaixonou: a literatura. Flaubert nunca
pensou que essas cartas seriam lidas, pertencem à sua esfera privada, por
isso fala livremente nelas do sofrimento e da alegria que a escrita é para
ele.

“Eu sou um homem-pena. Sinto por ela, por causa ela, em relação a ela e
muito mais com ela ”, diz Flaubert.

A escrita das cartas coincide com a de seu famoso romance Madame


Bovary, o que é muito interessante quando se trata de ver como é
abordado o processo criativo de uma das grandes obras da literatura
mundial.

Flaubert hesita, procurando a forma, a palavra perfeita. Ele se desespera,


mas nunca desiste. Ela é uma seguidora fiel da arte pela arte, a literatura
nada deve a uma disciplina que não seja ela mesma. Flaubert busca a
palavra certa em sua prosa, aquela que não admite sinônimo ou pode ser
substituída por outra; busca a musicalidade, o ritmo interno que anseia
pela prosa como se fosse um poema. Experimente, sofra, escreva e
escreva ... parando apenas para recuperar o fôlego e voltar à sua paixão.
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"Que coisa mal-intencionada é a prosa! Nunca acaba; sempre há algo para refazer.
Acredito, entretanto, que lhe pode ser dada a consistência do versículo. Uma boa frase
em prosa deve ser como um bom verso, imutável, tão rítmico, tão sonoro. Essa é, pelo
menos, minha ambição, há uma coisa de que tenho certeza: ninguém jamais teve em
mente um tipo de prosa mais perfeito do que eu; mas quanto à execução, quantas
fraquezas, meu Deus! Quantas fraquezas!”

Aqui está uma bela citação do sofrimento de um escritor como Flaubert


durante seu processo criativo. A obsessão em reescrever, em encontrar a
perfeição em sua obra é uma constante em sua vida dedicada de corpo e
alma à literatura.

Você se reconhece nessa ânsia de reescrever, na correção que às vezes


não encontra o fim? Voltamos à citação de Gabriel García Márquez que
escrevi na introdução. Que tipo de mistério é esse que torna um homem
capaz de passar por infortúnios, passar fome, frio ou qualquer outra coisa,
só para contar histórias?

Que resposta você daria? O que o faz querer criar?

Acho que escrever tem muita a ver com a catarse interior. Não é em vão
que uma das funções atribuídas por Aristóteles à tragédia em sua Poética
(a trabalharemos com mais profundidade ao falar sobre a tragédia grega,
uma de minhas paixões, confesso). As experiências da sua vida devem
passar pelo crivo da arte, pelo crivo da ficção, poderíamos dizer, são a
matéria-prima que vai acumular a nossa inteligência, a nossa memória, a
nossa fantasia, as nossas emoções; Devemos deixá-los emergir da forma
que decidimos no início, entretanto, é muito possível que chegue um
momento em que sentiremos que elas escolheram seu caminho. Seja fiel à
história, como dizia Karen Blixen.
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É esse processo de criação, o mistério que ele contém, que nos atrai à
paixão pela escrita. O que acontece conosco durante esse processo?
Tentaremos desvendá-lo ao longo do curso. Para começar, e de acordo
com o que estamos falando, a escrita é uma fuga do mundo. Tanto na
leitura quanto na escrita. A possibilidade de viver outras vidas, de
experimentar o que nunca poderíamos viver na realidade. A necessidade
da ficção para viver, para compreender o mundo, para ser mais feliz, para
desfrutar.

Há alguns anos, eu estava lendo um artigo em uma revista literária que


sugeria a morte da ficção. O escritor estava interessado apenas na
realidade. O que está morrendo, ou não se leva, ou não interessa, é a
ficção, afirma o artigo. O romance deve ser realista, a ficção está fora de
moda. Esse movimento é aparentemente chamado de Bipster, no mundo
anglo-saxão. O escritor Karl Ove Knausgard diz: "A mera ideia de ficção, a
mera ideia de um personagem inventado em uma trama inventada me
deixa nauseado."

Fiquei chocada ao ler isso. Existe um livro chamado Hunger for Reality
escrito por David Shields que eu não li, mas estou muito curiosa e
interessada em fazê-lo. Diz que usava a não ficção como trampolim para
as questões mais interessantes: o que é verdade, o que é real. Será que
não podemos chegar a essas questões por meio da ficção, eu me
pergunto. Shakespeare ou Cervantes não fizeram isso? Na próxima seção,
veremos a literatura como fonte de conhecimento humano.

De alguma forma, a evasão da escrita pode colocar a questão para quem


o criador escreve, para si mesmo, ou para uma sociedade da qual ele se
distancia. Minha arte não é para multidões, pensaram alguns poetas da
arte pela arte, apenas para uns poucos selecionados.
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Um século depois, a respeito de escrever para as minorias, Rubén Darío


dirá no prólogo das Canções de Vida e Esperança: "Não sou um poeta de
multidões, mas sei que devo inevitavelmente ir até elas."

Já a evasão na literatura do ponto de vista do leitor é algo que todos nós já


experimentamos. Ao ler um livro podemos viver outras vidas, ter outras
experiências, nos transportar a outras épocas. "Não há melhor navio para
viajar para longe do que um livro", disse Emily Dickinson.

Existe um livro chamado The Inner Eye de Nicholas Humphrey em que fala
sobre a possibilidade de adquirir novas experiências e conhecimentos por
meio dos livros, mas trataremos desse tema com mais profundidade na
próxima seção.

1.3 A LITERATURA COMO FORMA DE CONHECIMENTO.

A discussão da literatura como conhecimento aparece em Platão. Para o


filósofo, a poesia nada mais era do que uma imitação, uma mimese da
realidade, e esta, por sua vez, outra imagem do mundo das ideias.
Portanto, é uma imitação de imitações e não pode criar uma aparência de
verdade como a filosofia.

No entanto, Aristóteles, em sua Poética, afirma que a poesia é superior


como instrumento gnoseológico. Pois cria um mundo no qual os eventos
são representados em sua universalidade, mostrando a natureza humana.
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Literatura como conhecimento também aparece nesta citação de Horácio


na Carta aos Pisões:
“... mas todos os votos estão apurados, quem mescla utilidade com interesse,
encantando o leitor e ao mesmo tempo fazendo-o pensar. Este é o livro que faz
ganhar os sócios, navega pelos mares e prolonga a vida do famoso escritor da
posteridade ”.

Posteriormente, o tema da literatura como conhecimento surge no


romantismo. Como mencionei em outra seção, a literatura e,
principalmente, a poesia, para os românticos era a única forma de chegar
à verdade, de conhecer os enigmas da vida, o infinito. A literatura como
conhecimento específico da existência humana. Se olharmos a teoria de
Yual Harari em seu livro Sapiens, as histórias surgem para que o homem
possa entender sua existência e a da natureza quando a ciência ainda não
existia. É, em minha opinião, um conhecimento por meio de emoções,
intuição, e não apenas por meio da razão como afirmavam no Iluminismo.

Por milhares de anos, o homem desejou explorar além das possibilidades


que possui em sua vida pessoal, o homem tem sede de conhecimento, de
experimentar e o faz, entre outras formas, por meio da ficção. Alguns
críticos tentam separar completamente a literatura do fenômeno
gnoseológico, alegando que o primeiro apela para as emoções, o coração,
enquanto o segundo apela para a mente e a razão. Concordo com a
opinião contrária à exposta, que não admite uma ruptura total entre a
literatura e o conhecimento. Só as obras que se traduzem em uma
experiência humana, na experiência de compreender do mundo e da
própria existência, são as que permanecem, as que podem virar clássicos.
Cervantes em Dom Quixote, Shakespeare em suas tragédias falam da
experiência de estar vivo, do próprio homem, das paixões e loucuras que
os arrebatam. Suas obras têm sido instrumentos para a compreensão do
ser humano, pois é por meio da ficção que nos mostram o que pensam
do mundo, do mundo em que viveram e de seu mundo pessoal. O que
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nos dá a visão do homem em seu universo, na natureza, com os outros e


consigo mesmo. Claudio Magris em La letteratura è la mia vendetta diz:
“Nessa fantasia necessária, a literatura também tem uma grande função no que diz
respeito à sociedade; não seguramente em propor programas políticos ou ideológicos,
mas em fazer as pessoas sentirem, experimentando essa necessidade aventureira de
criar sempre um mundo novo ”.

Também entendemos a literatura contemporânea como uma reflexão


sobre o mundo, uma forma de nos questionarmos sobre ela, mesmo que
não encontremos respostas. Vargas Llosa diz em La letteratura è la mia
vendeta
“A ficção, quando bem sucedida, alcança o milagre: exprimir a totalidade, o homem
como ser racional e como irracional, como fantasia e história, realidade e irrealidade, o
material e o espiritual, tudo o que é o ser humano".

1.4 LITERATURA COMO DENÚNCIA SOCIAL

Tem havido muito debate sobre a chamada literatura comprometida. É


aquela em que o escritor dedica todo o seu esforço literário para defender
ou denunciar uma ideia, uma injustiça política ou social. Alguns escritores
latino-americanos como Mario Vargas Llosa ou Julio Cortázar acreditam
que o escritor latino deve de alguma forma registrar o que aconteceu em
seu país ou na América Latina em geral. A maioria deles escreveu obras
sobre ditadores, Gabriel García Márquez, O Outono do Patriarca, Mario
Vargas Llosa, Festa da Cabra, Roberto Bolaño, Noturno do Chile etc.

Concordo com Julio Cortázar quando ele diz que o escritor que só
escreve literatura comprometida se limita de alguma forma, o escritor tem
o mundo diante de si para escrever. Embora seja verdade que a literatura,
a arte em geral, seja uma reflexão, e a qualidade literária não é
incompatível com um conteúdo que denuncia uma situação que o
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escritor acredite merecer ser contada. Agora, enquanto escrevo, me vem


à mente um romance que li na juventude e que me marcou
profundamente "A colmeia", de Camilo José Cela. Este romance é um
afresco do Madrid do pós-guerra. Utilizando a ficção, Cela deixa na mente
do leitor uma sensação amarga, às vezes engraçada, trágica, quase
caricatural da mesma miséria que conta, ou seja, despedaça toda a
dimensão humana submetida a uma determinada situação histórica difícil
à qual o homem se adapta para sobreviver. Não é um romance que faz
uma denúncia expressa como faria um ensaísta ou um ativista, mas o leitor
percebe que por trás da história essa denúncia existe e é muito pior do
que se fosse expressa. O impacto que produz no leitor é muito mais brutal,
não esqueçamos que a literatura desperta emoção e empatia, aproxima o
leitor dos personagens e se o romance ou história for autêntico, o leitor
sentirá como seu os infortúnios, contratempos ou dissabores e alegrias do
personagem; Este é um dos elementos maravilhosos que a literatura
possui. O importante é que a estética do romance não seja condicionada
pelo conteúdo. No entanto, é verdade que às vezes o tema do romance
ou da história contada exige uma certa forma de estilo para ser
compreendido com maior profundidade. É Claudio Magris quem afirma
que o estilo deve se adequar ao tema em questão. Por exemplo, no
romance às cegas, onde narra os horrores do século 20 e o sacrifício
humano por uma crença, por uma ideologia. O estilo em que o romance é
escrito parece adaptado ao tema abordado.

Voltaríamos de alguma forma à pergunta que nos fizemos na primeira


seção deste tópico. A literatura deve se submeter à moralidade, política ou
qualquer outra disciplina? Volto a concordar com Julio Cortázar quando
diz que um escritor deve ter bastante liberdade para escrever o que sua
consciência e dignidade pessoal o levam a escrever. Se for um escritor
comprometido com uma causa, vai defendê-la no campo da arte com as
armas que ela concede.
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Encontramos também na Espanha, no campo poético, a chamada poesia


social dos anos 50 representada principalmente por Blas de Otero e
Gabriel Celaya. Onde a poesia tem um caráter social marcante, e se torna
um veículo para denunciar uma realidade; não como os românticos
costumavam dizer no veículo do conhecimento dos mistérios do homem,
do infinito, dos sonhos. A literatura é um instrumento para mudar o
mundo.

Junto com a chamada literatura comprometida, encontramos outra


chamada literatura dirigida. Nele, o escritor não tem a liberdade de
escolher os valores políticos ou sociais que deseja defender, mas sim
aqueles que normalmente lhe são impostos pelo poder político. Um
exemplo que encontrei é o que aconteceu na União Soviética durante a
primeira metade do século 20. Em 1930, um congresso de escritores foi
realizado em Kharkov, onde foram lançadas as bases da literatura na Rússia
comunista:

-A arte era uma arma de classe.


-A criação artística deve ser sistematizada, organizada e conduzida de
acordo com os planos de uma ordem central, e esta tarefa será realizada
pelo partido comunista.
- Os artistas devem abandonar o individualismo e o medo da disciplina
estrita porque é uma atitude pequeno-burguesa.

Por que os poderes políticos tiveram tanto trabalho ao longo dos séculos
para censurar, controlar e amordaçar a literatura? Por que os livros foram
queimados por considerá-los muito perigosos?

Porque a literatura é tudo o que vimos até agora: beleza, paixão,


conhecimento, denúncia, reflexão, elementos que constituem o ser
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humano se não livre, pelo menos capaz de pensar por si, com espírito
crítico. O poder da palavra. O poder da ficção, de histórias tão
profundamente enraizadas no espírito humano.

© Direitos autorais: Cristina López Barrio


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BIBLIOGRAFIA:

- Sapiens, de animales a dioses. Yual Harari, editorial Debate.


- La literatura es mi venganza, Mario Vargas Llosa y Claudio Magris. Editorial
Anagrama.

- La decadencia de la mentira, Oscar Wilde. Editorial Siruela.

- Lo bello y lo siniestro. Eugenio Trías. Editorial Debolsillo.

- La carne, la muerte y el diablo. Mario Praz. Editorial Acantilado.

-La mirada interior. Nicholas Humphrey. Alianza Editorial.

- Teoría de la literatura. Vicente Manuel de Aguiar y Silva.

- Karen Blixen. Ser Biel a la historia. Editorial Confluencias.

-Obra completa. Tomo I. Ramón Gaya. Editorial Pre-textos.


- El hombre-pluma (selección de cartas a Louise Colet) Gustave Flaubert.
Editorial Funambulista.

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