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“Se tivesse escrito sua própria biografia, a obra poderia passar, aos olhos de quem
desconhece a história de sua vida, por um de seus romances. A tal ponto o herói, paradoxal
e de atitudes surpreendentes, encontra-se às voltas com histórias tão inverossímeis que
parecem inventadas.” — Dostoiévski, de Virgil Tanase. LP&M Editores. p. 3.
Sua Família.
Pai: Mikhail Andreevich Dostoiévski.
O pai de Dostoievski era para ter sido sacerdote, mas se tornou médico “por acaso”.
Foi enviado com 14 anos para o seminário.
“Mikhail, nascido em 1789 e que o pai matrícula em 1802 no seminário de
Kamenets-Podolsk, a cidade mais importante da região, com esperança de um dia lhe
deixar sua paróquia. Quis o destino que a história fosse diferente. Para tirar o país de uma
inércia que o torna vulnerável em uma Europa em pleno desenvolvimento e para dar um
basta a uma estagnação econômica e social – que em parte também é culpa da Igreja,
que atrai e, depois de dar instrução, orienta as mentes brilhantes para funções
sacerdotais em um momento em que a Rússia precisa de uma elite científica e técnica
e de uma administração competente –, o tsar, por meio de um decreto em 5 de agosto de
1809, obriga certo número de jovens a deixar o seminário para se dedicar, às custas
do Estado, aos estudos científicos. Mikhail Andréievitch vai para uma das cadeiras da
Academia Imperial de Cirurgia e Medicina de Moscou, que abandona em 1812 para tratar
os feridos de Borodino, onde os exércitos de seu país combatem os regimentos de
Napoleão. Quatro anos depois, é nomeado major-médico. ”
“Sua esposa era doce e submissa. Em um retrato, ela aparece com um lindo vestido
branco, bordado. Cachos negros caem sobre um rosto redondo, com traços delicados e
lábios finos que não sorriem. [..] Culta, ela ama livros, adora poesia e canta romanças
acompanhada do violão.”
Os irmãos de Dostoiévski.
O mais velho é Mikhail (1820), era tradição que o primogênito tivesse o nome do pai. Em
seguida vem Dostoiévski (1821), depois Varvara (1822); Andrei (1825); Vera (1829), sua
irmã gêmea Liubov, morre nos primeiros anos de vida; Nikolai (1831) e Aleksandra (1835).
“Mikhail Andréievitch acorda às seis da manhã, faz a toalete e reúne as crianças para o café
da manhã. Às oito horas, vai para o hospital, para o “Palácio”, como o chama. Às dez, as
crianças começam a fazer o dever de casa, supervisionadas por Maria Fiódorovna, e
Mikhail Andréievitch vai para a cidade visitar os pacientes. À tarde, de roupão, faz a sesta
na sala. As crianças brincam nos quartos, sem fazer barulho, ou ao ar livre quando o tempo
está bom. Depois do chá das quatro, Mikhail Andréievitch retorna ao hospital.
À noite, quando “papacha” acaba de anotar as observações do dia no registro dos doentes,
a família se reúne na sala. Os pais se revezam lendo em voz alta longas passagens de
grandes autores russos: Derzhavin, Jukóvski, Púchkin e, muitas vezes, páginas
inteiras do sucesso editorial do momento: A história da Rússia, de Karamzin, apólogo
tanto da mãe Rússia quanto da aristocracia imperial, que fez dela uma grande
potência europeia. Para ensinar os filhos a ler, Maria Fiódorovna utiliza a tradução de
um livro alemão que conta em linguagem acessível as histórias edificantes da Bíblia.
Dostoiévski fica impressionado com a de Jó, que lhe arranca lágrimas, bem como
com os romances góticos de Ann Radcliffe, que descobre pela leitura de sua mãe
antes de devorá-los por conta própria e com paixão. Também sente fascínio pelos
contos populares russos, narrados com simplicidade por suas diferentes aias, todas
camponesas.”
“Dostoiévski afirma que foi de ouvir as histórias ingênuas dessas camponesas que
passou a ter vontade de inventar as suas. Quarenta anos depois, ainda se lembrará
de algumas aventuras imaginadas na época, gravadas para sempre na memória.”
Infância
1821 - Ao tempo de Dostoievski, regia na Rússia o calendário juliano, que registrou o
nascimento em 30.10. Mas o calendário gregoriano, que já existia há séculos na Europa
e em todo o Ocidente – e passou a reger na Rússia a partir de 1918 -, o nascimento
deu-se em 11.11. Portanto, a data é esta.
1821 - O registro métrico do nascimento de Dostoiévski diz: “Um bebê nasceu na casa do
hospital para os pobres, filho do médico-chefe Mikhail Andreevich Dostoiévski. O padre
Vasily Ilyin estava orando, com ele estava o diácono Gerasim Ivanov ”- Veja:“
“Dostoiévski devia ter cerca de dez anos e brincava com a filha de um servo, uma
menina da mesma idade, quando um bêbado se atirou sobre ela e a violentou. As
pessoas que acorreram para ajudar mandaram Fiódor chamar seu pai, porque a
menina perdia muito sangue, mas o médico chegou tarde demais para salvar aquela
vida.”
“Dostoiévski gosta em particular do bosque de Bríkov, para onde vai muitas vezes sozinho
ou com seu irmão Mikhail: “Não há nada que eu ame mais na vida do que a floresta com
seus cogumelos e frutos silvestres, seus insetos e pássaros, seus ouriços e esquilos, e
aquele cheiro úmido que me agrada tanto, de folhas mortas em decomposição”4, escreve
45 anos depois. [...] Certa vez, tem a impressão de que um lobo está ali para valer, à
espreita, prestes a atacar. Em pânico, Dostoiévski foge sem saber para onde, lançando-se
nos braços de um camponês que tem a sorte de encontrar. Trata-se do velho Mark Efremov,
vulgo Marei. Os dois se tornam amigos. A criança descobre nesse homem simples um
coração generoso e terno, uma grandeza de alma que transparece à primeira vista
naquele olhar claro, direto, sereno. Ele é bom por natureza, tem a paz de quem sabe
por instinto de que lado está o bem. Dostoiévski está convencido de que essas
pessoas rudes e incultas trazem dentro de si uma luz divina que é essencial
preservar.”
“Mikhail e Fiódor aprendem latim com o pai, que se mostra exigente e severo. Para a
instrução dos filhos, contrata dois preceptores: um sacerdote e um professor de francês,
Souchard – que achara engraçado russificar seu nome criando um anagrama:
Drassouchoussov. Souchard tem um internato onde os dois irmãos Dostoiévski continuam
os estudos, a fim de adquirir o nível exigido para o ingresso em um dos mais famosos
estabelecimentos de Moscou, o internato de Léopold Tchermak. Apesar de uma situação
financeira precária, que lhe causa um temor obsessivo de deixar a família na miséria
em caso de falecimento, Mikhail Andréievitch não hesita em se sacrificar a fim de
pagar para os filhos uma escola com educação de qualidade e onde os alunos não
corram o risco de sofrer punições humilhantes, como as aplicadas
indiscriminadamente em escolas públicas a estudantes pobres e aos nobres – na
mesma época, Liev Tolstói sentiu na pele essa amarga experiência.”
Adolescência
Dostoiévski com 13 anos no internato e seu amor pela leitura.
“Os colegas não se esqueceriam daquele garoto pálido, distante, carrancudo, que espera o
recreio para puxar um livro e continuar a leitura, que volta a interromper com tristeza
quando o professor chega. Na época, Dostoiévski lê com grande satisfação os romances
históricos de Walter Scott e as narrativas de um realismo água com açúcar de Dickens. Lê
Dom Quixote, as peças de Shakespeare e os poemas de Goethe. Tem uma admiração
incondicional pelo teatro de Schiller e fica marcado para sempre por uma representação de
Os bandoleiros, encenada no Teatro Maly e com grande elenco: “Garanto que a fortíssima
impressão que me causou na época teve efeito benéfico na minha mente”, vai se lembrar o
escritor quase cinquenta anos mais tarde. Depois de ganhar do pai uma assinatura da
“Biblioteca de leitura”, uma coleção popular que publicava com regularidade traduções e
as obras eminentes dos escritores russos, Dostoiévski tem a oportunidade de travar contato
com textos bem variados em qualidade e estilo, mas que, sem exceção, o transportam para
o mundo da ficção, onde ele se descobre através das experiências vividas por personagens
imaginários.”
“No momento da morte de Púchkin, que considera não apenas um grande poeta como
também o homem que elevou a literatura russa ao patamar das grandes literaturas
europeias, Dostoiévski teria entrado em luto, se não já estivesse pelo falecimento da
mãe, que ocorrera alguns dias antes.”
Extremamente debilitada, não saía mais da cama. Como desejava rever os filhos, mandam
buscá-los de Moscou, mas ela não consegue falar com eles. Os lábios se movem, porém
não há mais fôlego suficiente para formar palavras. Na noite de 26 para 27 de fevereiro de
1835, Maria Fiódorovna abençoa as crianças e se despede da vida fitando-as. Mikhail e
Fiódor escolhem juntos uma frase de Karamzin para inscrever na lápide da mãe.
Apesar de Dostoiévski nunca tocar no assunto, esse falecimento o afetou de maneira
profunda. Como respeita e estima o pai sem sentir ternura, e como tem um
temperamento que o impede de se apegar aos outros, de repente se vê privado de
uma pessoa fundamental em sua solidão. Ele se volta para o irmão mais velho, que
provavelmente experimenta os mesmos sentimentos. Os dois criam uma profunda e
inabalável relação de amor fraterno, que dá a cada um a sensação de não poder fazer
nada no mundo sem o outro.
(Aqui não fala, mas ela morreu de Tuberculose, o mais triste é que seu pai tratava de
tuberculosos)
Na faculdade de Engenharia.
Dostoiévski ingressa na instituição em janeiro de 1838, não sem dificuldade. Ainda que
tenha passado na prova de admissão considerada difícil e que o Estado arque com os
custos da moradia e dos estudos, ele precisa pagar uma quantia considerável para as
despesas pessoais e para o material. Mikhail Andréievitch tem apenas setenta rublos
dos quatrocentos necessários. Com muita generosidade, Aleksandra Kumánina, a irmã
do pai de Dostoiévski oferece o restante, disposta também a cobrir as custas de Mikhail se,
depois das intervenções feitas junto ao tsar, o primogênito for aceito na escola, apesar do
parecer contrário dos médicos, que recusaram sua candidatura por motivos de saúde.
Dostoiévski nem precisava de tanto para se lançar aos livros. No retorno das manobras de
verão, em uma carta ao irmão Mikhail, se gaba de ter lido “quase tudo de Balzac”. Está
fascinado: “Balzac é gigante! Seus personagens são fruto da genialidade universal! Milênios
inteiros e seus embates, e não o espírito da época, prepararam este desenvolvimento na
alma humana...”. Acrescenta à lista de leituras recentes “tudo de Hoffmann”, em
traduções e no original em alemão, o Fausto de Goethe e suas pequenas peças em
versos, o teatro de Victor Hugo, Ondina de Vassíli Jukóvski e Ugolino de Nikolai
Polevoi. Sem falar de Homero: “Na Ilíada ele deu a todo o mundo antigo uma organização
de vida ao mesmo tempo espiritual e terrena, com a mesma força da que Cristo deu ao
novo mundo”.
Em outubro de 1838, é informado de que vai repetir de ano. Embora suas notas sejam
excelentes – uma média de 9,5 de 10 –, ele teve “desentendimentos” com alguns
professores, como o de álgebra, que se recusa peremptoriamente a passá-lo de ano,
mesmo que tenha tirado 11 de 15 na disciplina. O general que dirige a escola consente em
explicar que se soma a isso a pouca aplicação nas disciplinas militares. Seu colega e amigo
Konstantin Aleksándrovitch Trutóvski evoca um rapaz de compleição frágil, com dificuldade
para executar determinados exercícios físicos e que não faz esforço para superar essa
deficiência. Desajeitado, ele se enrosca no equipamento, que carrega “como grilhões”10,
incapaz de adquirir os automatismos viris de um bom soldado.
Dostoiévski tenta em vão explicar ao pai que a reprovação é uma decisão injusta.
Ambicioso, provocado por alguns colegas que fazem chacota e acreditam que ele nunca
será um bom militar, Dostoiévski quer provar com notas que é superior a eles. Por isso,
passa horas a fio estudando disciplinas muito distantes de suas preocupações: geodesia,
táticas e estratégias militares, arquitetura, matemáticas aplicadas, física e química,
mineralogia... Quase não lhe sobra tempo para as leituras.
Dostoiévski não tem mobília, apenas uma escrivaninha, um sofá-cama, algumas cadeiras e
centenas de livros empilhados no chão, mas pode receber sem restrições os amigos, cujo
círculo aumenta com visitas casuais, companheiros de jogo ou de noites de farra. Os jovens
continuam debatendo temas mais ou menos sérios e, sempre apaixonados por literatura,
conversam sobre Gogol, que acaba de publicar a primeira parte de seu romance Almas
mortas. Eles bebem, fumam, viram a madrugada jogando cartas. Algumas vezes, passam a
noite em um café jogando bilhar. Quando recebe algum, Dostoiévski convida todos para
irem ao Dominique, um restaurante chique e caro, mesmo que no dia seguinte tenha que
pedir dinheiro emprestado para comprar cigarros. Essa vida desregrada não é obstáculo
para que Dostoiévski passe nos exames finais. Em junho de 1843, promovido a subtenente,
é nomeado para o Departamento de Plantas da Direção de Engenharia de São Petersburgo
No dia seguinte, Nekrássov e Grigórovitch vão juntos até a casa de Vissarion Grigórievitch
Bielínski, o grande crítico literário da geração anterior, cujos severos julgamentos são lei.
Este começa rindo na cara deles, antes de se render à evidência: é preciso ter dom para
escrever aos 25 anos um romance que revela semelhante compreensão da vida e seus
sofrimentos. É o primeiro romance social russo, decreta Bielínski. Além disso, que
capacidade de traçar em poucas palavras, em poucas linhas o retrato de um personagem:
“Tudo é verdadeiro, profundo e grande...”.
Bielínski quer conhecer aquele jovem escritor.
Sobre Bielínski
Bielínski vive em um modesto quarto e sala, ao qual se chega por uma escada de serviço
de um suntuoso imóvel localizado no cruzamento da Fontanka e da Névski Prospekt. No
local há livros em todos os cantos, perfeitamente organizados. Na escrivaninha, cada papel
está no devido lugar, cada pequeno objeto disposto com cuidado. Nas paredes, retratos de
Voltaire e Goethe, mas também de Púchkin e Gogol. Bielínski tem apenas 35 anos, mas os
cabelos loiros e ligeiramente ondulados já começam a esbranquiçar, assim como a barba,
que passara a usar havia pouco. Ele tosse muito. Ao falar de Gente pobre, cujas qualidades
elogia, se empolga e passa a discorrer sobre a arte em geral, sobre a vocação da literatura,
sobre os deveres do escritor e conclui, se dirigindo a Dostoiévski:
Para você, porque você é um artista, a verdade se revelou inteira. É um dom que você
carrega dentro de si. Permaneça fiel a ele e você será um grande escritor...
Dostoiévski fica comovido. “Foi o minuto mais exaltante de toda a minha vida”, se lembrará
mais tarde.
Nos primeiros dias de dezembro de 1845, Dostoiévski lê na casa de Bielínski sua nova
história, O duplo. O jovem e ainda desconhecido Turguêniev, que acredita que Gente pobre
ganhou elogios exagerados, sai antes do final da leitura.
Sem dinheiro, Dostoiévski interrompe o romance para escrever um texto curto, A senhoria,
que o agrada: “O resultado já é melhor do que Gente pobre. Segue a mesma linha. Minha
pena é movida por uma fonte de inspiração que brota direto da alma”.7 Para sua
infelicidade, essa não é a opinião de todos. Publicada em outubro de 1847, a novela é mal
recebida pela crítica. Bielínski afirma que “cada nova obra de Dostoiévski é uma nova
queda”. Acrescenta que, na sua opinião, se o autor já não tivesse uma pequena reputação,
ninguém teria notado esse texto, em que “tudo é rebuscado, empolado, enfático, simulado e
falso”.8 Os amigos de Bielínski acompanham o relator.
O Círculo de Petrachévski
“Um informante se infiltra no círculo de Petrachévski, ainda mais vigiado porque se teme
que os estudantes que o frequentam estabeleçam ligações entre a juventude de São
Petersburgo e os meios explosivos. Além disso, o grupo começa a funcionar por células, o
que sugere que existiam alguns segredos que, por proteção, devam ser conhecidos apenas
por alguns.”
“Uma última reunião do grupo de Petrachévski ocorre em 22 de abril, no mesmo dia em que
o tsar assina a ordem de parar a atividade desses desordeiros cujas palavras, “mesmo que
não passem de mentiras”1, lhe parecem intoleráveis.
Trinta e quatro participantes das reuniões de sexta-feira são presos de madrugada.
Dostoiévski passa parte da noite na casa de Nikolai Pávlovitch Grigóriev, autor de
Conversação de um soldado, panfleto cáustico contra o exército e, de modo implícito, contra
a monarquia, lido recentemente no círculo de Petrachévski. Sai por volta de três da manhã,
levando um livro proibido: Le Berger de Kravan, causeries sur le socialisme, de Eugène
Sue. Ao chegar em casa, mal tem tempo de ir para a cama antes de a polícia arrombar a
porta. Uma diligência aguarda embaixo, e ele é levado para a Terceira Seção, localizada na
Fontanka, depois encarcerado no revelim Alekséievski da Fortaleza de Pedro e Paulo,
reservado aos presos políticos.”
Prisão/Sibéria
“ Seja como for, a Comissão decide pela culpa de 21 acusados. Observa que Fiódor
Mikháilovitch Dostoiévski, que ao contrário da maioria dos companheiros reconheceu os
fatos, se esforçando para justificá-los em vez de negá-los, deve ser considerado como “um
dos mais perigosos” entre os conspiradores .Em setembro de 1849, o ministro de Guerra
nomeia um Tribunal Civil e Militar. Em 16 de novembro, este envia o dossiê para
apreciação. Em 19 de dezembro, os réus são condenados ao pelotão de fuzilamento.
Nicolau I comuta essa sentença por pena de trabalhos forçados, mas exige, conforme
o artigo 73 do código de processo penal, que a decisão só seja comunicada aos
condenados depois de uma simulação da execução.
“Às sete horas da manhã de 22 de dezembro de 1849, em uma temperatura de vinte graus
abaixo de zero, eles são levados em várias diligências até a praça de armas Semenóvski,
onde cerca de três mil curiosos, de acordo com relatórios da polícia, aguardam a execução.
O regimento é organizado diante de três postes plantados na terra congelada e coberta de
neve fresca. Os condenados se reveem pela primeira vez desde a detenção. Eles se
abraçam. Na presença do governador-geral de São Petersburgo, do chefe de polícia, dos
oficiais que comandam as unidades da Guarda do tsar e dos ajudantes de campo do tsar, o
procurador lê a sentença de morte. Os condenados têm seus casacos retirados e recebem
camisas grosseiras que caem até os tornozelos. As mangas compridas permitem que o
carrasco amarre os condenados no poste, antes de lhes cobrir o rosto com o capuz, que
substitui a venda. Petrachévski agita as mãos com um movimento cômico e cai na
gargalhada.
Eles serão executados em grupos de três.
Dostoiévski faz parte do segundo grupo e abraça Plechtchéiev e Dúrov, que se encontram
ao lado dele, e sussurra em francês no ouvido de Spechniev: “Nós vamos para o lado de
Cristo”. “Nós vamos virar pó”, responde este. Um padre faz um sermão final e entrega uma
cruz para os presos beijarem. Petrachévski, Мombelli e Grigóriev são amarrados nos
postes. Os capuzes são colocados, rufam os tambores, os soldados apontam.
Um mensageiro a cavalo cruza a praça e entrega um envelope ao general Sumarokov, que
comanda a execução. Ao fim de uma ordem sua, os detidos são desamarrados e levados
para o lado dos demais. O general lê a ordem do tsar que comuta a sentença de morte dos
presos. Dostoiévski é condenado a quatro anos de trabalhos forçados e, em seguida, a
servir como soldado raso.”
“Construída um século antes para dificultar as incursões das tribos das estepes, protegida
por fossos e muralhas, a antiga fortaleza é utilizada agora como prisão. Estúpido e
perverso, sempre bêbado, o diretor é famoso pela crueldade. Recebe os novos prisioneiros
meio embriagado, xingando e prometendo chicotadas ao menor desvio de conduta. Os
presos têm metade da cabeça raspada. Entre eles, os nobres são poupados da
tatuagem na testa das três letras que indicam por toda a vida um forçado. O casaco de
condenado apresenta na parte de trás um grande quadrado amarelo, o que permite que as
pessoas identifiquem o forçado de longe e evitem contato. Eles são alojados em uma
cabana de madeira podre, cujos aquecedores só fazem fumaça, sem produzir calor Tábuas
simples como cama e nada de cobertas. Um balde comum esvaziado pela manhã e à noite.
Piolhos, percevejos, baratas.”
“E, além disso, os demais forçados. Ao olharem para aquela testa que não carrega a marca
da infâmia, já sabem que o recém-chegado faz parte daquela classe de homens que desde
sempre exploraram e humilharam os seus, daquela classe de homens que eles odeiam
porque mesmo ali, na galé, têm privilégios. Vingam-se. Assim que o vigia se distrai, podem
atacar maldosa e instintivamente, como animais. Seriam mesmo animais, esses “terríveis
celerados”? Esse tártaro que matou os filhos? Esse outro assassino que tem inveja de sua
Bíblia e quer roubá-la? Esse Aristov, “um Quasimodo pervertido”? É preciso domá-los para
conhecê-los e compreendê-los para sentir pena.
Os forçados inspiram compaixão. Quando se dirigem para os locais de trabalho, recebem
esmolas. Uma menina coloca nas mãos de Dostoiévski alguns copeques.”
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paulo-em-sao-petersburgo/
Exército
“Em 23 de janeiro de 1854 retiram os grilhões e, escoltado, Dostoiévski deixa a prisão de
Omsk para se juntar como soldado raso ao batalhão de linha siberiano acantonado em
Semipalatinsk. Trata-se de uma pequena cidade perdida entre areias movediças, perto da
fronteira com a Mongólia.”
“Depois de cinco anos em que o único livro permitido era a Bíblia, Dostoiévski pode ler
enfim. Agora que tem permissão para enviar cartas, depois de mostrá-las aos superiores,
que leem também as missivas recebidas, ele pede ao irmão e aos amigos os mais diversos
livros: as obras de Kant, de Hegel e dos historiadores da Antiguidade – Heródoto, Tucídides,
Tácito, Plínio, Plutarco; os textos dos santos padres da Igreja e tratados sobre física e
economia. Sem falar nos autores russos: Púchkin e Gogol, claro, mas também Turguêniev e
Ostróvski. Deseja também ler o Corão.”
Europa/Exílio
Últimos anos.
https://br.rbth.com/historia/86440-a-sao-petersburgo-de-dostoieski