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Lendo os evangelhos, enxergamos catástrofes cotidianas como atos da nossa via crucis
e concluímos que nos cabe suportá-las como Cristo o fez; diante dum romance
romântico, aprendemos que uma paixonite de férias tem a densidade d’uma vida;
encarnando migalhas mal cagadas de Homero, um palhaço se vê como herói épico; e
assim brincamos histórias.
O sujeito encarna, como caricatura, um ideal que nos é familiar; mas vai além: desenha
no espaço público e na vida dos seus eleitores os contornos da história mítica em que ele
próprio é o herói. Nus, desprotegidos, acovardados na tormenta do desemprego e do
desamparo, um herói cai bem; cai melhor ainda quando, à noite, acende sua chama e
põe à vista a causa do perigo: os corruptos, os degenerados, os vagabundos ─ os que
devem ser curados de viver ou, na melhor das hipóteses, submetidos ao silêncio dos
derrotados.
Como uma caricatura dessas consegue enfeitiçar e dar sentido a tantas vidas ─ a idosos
e adolescentes que dividem seu tempo entre dominó ou Tiktok e as muralhas da
civilização ocidental? Minha hipótese, fazendo uso de um conceito freudiano, é que o
bolsonarismo nos consola da condição de desamparo que nos é essencial como seres
humanos. Frágeis, mortais, em órbita instável, sujeitos à doença, ao frio, à falta de amor
e de um lar. Por vezes, é verdade, nos esquecemos de tudo isso; mas a proximidade da
morte e da ruína cisma em nos assombrar com a lembrança de sermos pequeninos.