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Bolsonaro, Ilíada, heróis, caricatura com roupagem cristã. Desdobramento?

Ouvimos à exaustão de professores e vendedores de curso que textos clássicos são


perenes e sempre têm algo a ensinar. O fedor mágico da coisa percorre distâncias e nos
intimida com o dever de, tocando o papel, sentir o sobrenatural. Desse feitiço nunca
provei. Mas reconheço: ao ler Homero, Shakespeare ou Dostoiévski, salta a impressão
de que somos todos uns imitadores vagabundos ─ em escrita, pensamento e ato;
impressão de que, ali, cruas e brutas, estão experiências selvagens que emulamos
conscientes ou distraídos. Vejamos os nossos líderes; vejamos nós mesmos.

Lendo os evangelhos, enxergamos catástrofes cotidianas como atos da nossa via crucis
e concluímos que nos cabe suportá-las como Cristo o fez; diante dum romance
romântico, aprendemos que uma paixonite de férias tem a densidade d’uma vida;
encarnando migalhas mal cagadas de Homero, um palhaço se vê como herói épico; e
assim brincamos histórias.

Certa vez, o Presidente da República arvorou-se ao posto de imbrochável. O episódio


chamou minha atenção menos pelo que tem de escatológico do que pela série nele
expressa: no mesmo dia, o Presidente comparou a beleza da penitente que o suporta
com a da Primeira-Dama adversária; noutra ocasião, segurava a mão de uma criança
formando uma arma; ao longo da pandemia de COVID-19, desestimulou medidas de
contenção, afirmando que deveríamos “deixar de ser um país de maricas”; e eu poderia
seguir numa sequência que aspira ao infinito. Se, a princípio, temos a impressão de se
tratar dum adolescente desorientado, logo percebemos, no sujeito, traços caricaturais do
que se entende por heróico.

Não há surpresa: o sujeito é um militar reformado, orgulhoso da sua virilidade


combativa (“Sou militar do exército. A minha especialidade é matar.”). Tal orgulho,
ademais, não se restringe às artes da guerra, mas, como visto, alcança também o que
considera serem seus espólios amorosos. À parte a óbvia distância, as atitudes nos
lembram um Aquiles ou um Agamemnon que, por suas respectivas honras, põem o
destino dos Aqueus em risco por uma bela mulher. Prêmio que, segundo parecia a cada
um, era um espólio que lhe era devido. Atitudes que lembram, ainda, a ânsia de tantos
inomináveis que caíram nas areias da praia de Tróia buscando, em combate, a
eternidade da poesia cantada ou uma memória intocada pela desonra da covardia.
Quando a farsa sobe ao palco, o Chefe de Estado ressalta o valor do seu sacrifício
diário: bem poderia estar fruindo a vida, iguana sob o sol da praia, mas optou pela
guerra contra demônios, bandidos e vagabundos, em benefício da cristandade; fala com
a voz da maioria cristã, ante à qual as minorias são livres para dobrar seus joelhos ─ é
um guerreiro que encara a morte por sua pátria, como Heitor um dia o fez por Tróia.

O sujeito encarna, como caricatura, um ideal que nos é familiar; mas vai além: desenha
no espaço público e na vida dos seus eleitores os contornos da história mítica em que ele
próprio é o herói. Nus, desprotegidos, acovardados na tormenta do desemprego e do
desamparo, um herói cai bem; cai melhor ainda quando, à noite, acende sua chama e
põe à vista a causa do perigo: os corruptos, os degenerados, os vagabundos ─ os que
devem ser curados de viver ou, na melhor das hipóteses, submetidos ao silêncio dos
derrotados.

Como uma caricatura dessas consegue enfeitiçar e dar sentido a tantas vidas ─ a idosos
e adolescentes que dividem seu tempo entre dominó ou Tiktok e as muralhas da
civilização ocidental? Minha hipótese, fazendo uso de um conceito freudiano, é que o
bolsonarismo nos consola da condição de desamparo que nos é essencial como seres
humanos. Frágeis, mortais, em órbita instável, sujeitos à doença, ao frio, à falta de amor
e de um lar. Por vezes, é verdade, nos esquecemos de tudo isso; mas a proximidade da
morte e da ruína cisma em nos assombrar com a lembrança de sermos pequeninos.

Herdeiros, enfrentamos o desafio de apreender a ordem do mundo por meio de


conceitos, histórias e referências do passado. E, na medida em que nossas concepções
são questionadas, patinamos, pressentindo o vazio sob o chão de vidro; ouvimos rachar
as ruínas porosas da civilização perfeita, estática, segura, que nunca existiu, mas não
cessa de cair. O eco dessas rachaduras, por baixo das bravatas televisionadas, não
descansa; é insistente e incorpora diferentes manifestações: a instabilidade das
sexualidades divergentes; o questionamento dos papéis tradicionais atribuídos à mulher;
o anticomunismo que contamina a sociedade cristã; a proteção ao self-made man, em
que todos podem se enquadrar, contra os tentáculos do Estado. Temos à vista um castelo
desmoronar-se e, com ele, também, a esperança de que o mundo seria um lar. Viver é
hostil. Bolsonaristas, como todos nós, querem morada para protegê-los da erosão. Como
estruturas dessa casa, participam o medo, a nostalgia e a revolta contra quem não sabe
permanecer no seu lugar ─ o tempo.
A experiência de frustração das representações do mundo encontra sua cura não no
replantio, mas na terapia aplicada ao próprio mundo, a ser curado. Nisso, nos
encontramos aos montes. A marca do bolsonarismo, por seu lado, está em eleger certos
inimigos como encarnação do processo de decadência do mundo: os petistas/comunistas
ameaçam a estabilidade econômica; as feministas, as posições e expectativas a respeito
dos gêneros; os negros mimizentos (porque há os que conhecem seu lugar), as posições
sociais que cada um merece desde a nascença. É por meio do movimento de retorno ao
éden, onde vivíamos sob o braço gentil de militares e éramos um só povo cristão, que
Bolsonaro e seus idólatras reúnem motivações para fazer do mundo um lar novamente.
É precisamente disso que os inimigos nos afastam: do refúgio no deserto. Que fazer
com o inimigo? Uma vez mais Freud pode nos servir, com sua ideia de que a vida
cultural depende da repressão regular de certos tipos de pulsões, entre elas as pulsões
violentas destrutivas.

O bolsonarismo, para além de reunir certa estrutura de enquadramento da realidade ─


coisa reconfortante por si só ─, justifica e instiga o direcionamento e a liberação de
pulsões agressivas frente aos seus inimigos; pulsões que se convertem em palavras ou,
mesmo, atos violentos. Mais uma vez, não há, nisso, inovação. A marca bolsonarista
está em construir na institucionalidade descreditada por seus idólatras a via mesma pela
qual irá desmoronar. Se, por um lado, o Estado moderno reivindica para si o monopólio
da violência, a institucionalidade bolsonarista, por dentro do Estado, o questiona como
meio propício, fomentando conspirações e redicerionando a agressividade diretamente
para seus inimigos.

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