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29/03/2023, 15:16 Quatro Cinco Um: a revista dos livros - Chimamanda Ngozi Adichie sobre liberdade de expressão
Percebi que todas as vezes que os amigos dos meus pais vinham nos visitar, eles
ficavam sentados na sala de estar falando bem alto, a não ser quando criticavam o
governo militar. Então, eles sussurravam. Aqueles sussurros, além de testarem minha
capacidade de ouvir a conversa alheia, me impressionavam. Por que falar num tom tão
baixo na privacidade da nossa sala de estar, e ainda por cima bebendo conhaque? Ora,
porque eles estavam tão cientes daquele governo punitivo e autoritário que
instintivamente baixavam a voz quando diziam palavras que não ousavam dizer em
público.
Uma estudante americana me abordou certa vez em uma sessão de leitura. “Por que”,
perguntou ela, com raiva, “eu tinha dito aquilo numa entrevista?”. Expliquei que o que
eu disse era verdade, e ela concordou, mas então perguntou: “Mas por que a gente tem
que dizer isso, mesmo sendo verdade?”. A princípio, fiquei atônita com o absurdo da
pergunta, mas então me dei conta do que ela queria dizer. Não importava no que eu
acreditava. Não devia ter dito aquilo porque era algo que não se encaixava na minha
tribo política. Eu tinha profanado a ortodoxia dominante. Foi como ser acusada de
blasfêmia numa religião que não é a sua. A pergunta daquela jovem, “Por que a gente
tem que dizer isso, mesmo sendo verdade?”, ilustra aquilo que o escritor Ayad Akhtar
chamou de estridência moral, “um alinhamento feroz, talvez até punitivo, às atitudes e
comportamentos sancionados coletivamente nesta era”.
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Se alguém pensar, “Bom, algumas pessoas que disseram coisas terríveis merecem isso”,
não. Ninguém merece. É de uma barbárie inconcebível. É um vigilantismo virtual cujo
objetivo é não apenas silenciar a pessoa que falou algo mas criar um clima vingativo
que impeça outras pessoas de falarem. Há algo honesto em um autoritarismo que se
reconhece como tal. Um sistema como esse é mais fácil de enfrentar, porque as linhas
de batalha são claras. Mas essa nova censura social exige consenso ao mesmo tempo
em que faz questão de não enxergar a própria tirania. Acho que ela é um prenúncio da
morte da curiosidade, da morte do aprendizado e da morte da criatividade.
Leia também: Manifesto pela leitura: ‘Ler nos ensina a falar e nos educa na arte do diálogo’
(https://www.quatrocincoum.com.br/br/noticias/livro-e-leitura/manifesto-pela-leitura)
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A literatura nos mostra quem somos, nos leva para dentro da História, nos conta não
apenas o que aconteceu mas qual a sensação que causou, e nos ensina, como um
professor americano disse certa vez, que há coisas que não dá para “dar um Google”. Os
livros formam nossa compreensão do mundo. Nós falamos da “Londres de Dickens”.
Procuramos grandes escritores africanos como Aidoo e Ngugi para compreender o
continente e lemos Balzac pelas sutilezas da França pós-napoleônica.
Em uma manhã tranquila de agosto em Nova York, Salman Rushdie foi atacado
quando estava prestes a falar, ironicamente, sobre liberdade de expressão. Imaginem a
intimidade brutal e bárbara de um estranho a poucos centímetros de você,
mergulhando com força uma faca no seu rosto e no seu pescoço múltiplas vezes,
porque você escreveu um livro. Eu decidi reler os livros de Rushdie não só como um
gesto desafiante de apoio, mas como um lembrete ritualizado de que a violência física
como reação à literatura não pode nunca, nunca ser justificada.
Rushdie foi atacado porque, em 1989, depois de seu romance Os versos satânicos ser
publicado, o regime iraniano declarou que ele era ofensivo e condenou não apenas
Rushdie, como todos os seus editores, à morte. A isso, seguiram-se coisas horríveis, é
claro: o tradutor dele para o italiano foi esfaqueado, seu editor norueguês foi baleado e
seu tradutor para o japonês, Hitoshi Igarashi, foi assassinado em Tóquio. Uma questão
sobre a qual tenho pensado: será que o romance de Rushdie teria sido publicado hoje?
Provavelmente não. Será que teria ao menos sido escrito? Possivelmente não.
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Existem escritores como Rushdie, que querem escrever romances sobre temas
sensíveis, mas não se permitem devido ao fantasma da censura social. Os editores têm
receio de cometer blasfêmia secular. A literatura é cada vez mais vista através de uma
lente ideológica e não artística. Nada demonstra isso melhor do que o recente
fenômeno dos “leitores sensíveis” nas editoras, pessoas cujo trabalho é limar palavras
com potencial ofensivo de manuscritos.
Para mim, isso nega a própria ideia da literatura. Não podemos contar histórias que
são apenas luz quando a vida em si é luz e escuridão. A literatura trata do fato de
sermos sublimes e falhos. Ela trata daquilo que H. G. Wells chamou de “a alegre rudeza
da vida”. A isso eu acrescentaria que basta a rudeza, ela não precisa ser alegre.
Embora eu insista que a violência nunca é uma reação aceitável ao discurso, não nego
que palavras têm o poder de ferir. Palavras podem destruir a coragem humana.
Algumas das dores mais profundas que já senti na vida vieram de palavras que alguém
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disse ou escreveu, e algumas das mais belas dádivas que já recebi também foram
palavras. É exatamente por causa do poder das palavras que a liberdade de expressão
importa.
Meu motivo prático, que também poderíamos chamar de meu motivo egoísta, é que
temo que essa arma, que defendo ser usada contra outra pessoa, possa um dia ser
usada contra mim. O que hoje é considerado benigno pode perfeitamente se tornar
ofensivo amanhã, pois a supressão do discurso não gira tanto em torno do discurso em
si, mas da pessoa que censura. Diretorias de escolas americanas de ensino médio têm
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banido livros freneticamente, e o processo parece ser arbitrário. Livros que vinham
sendo usados em currículos escolares há anos sem que houvesse reclamações foram
subitamente banidos em alguns estados e, pelo que eu soube, um dos meus romances
está nesse ilustre grupo.
Confesso que existem alguns livros que eu poderia ter a fantasia de banir. Livros que
negam o Holocausto ou o genocídio armênio, por exemplo, porque eu detesto a
negação da História. Mas e se a fantasia de outra pessoa fosse banir um livro sobre o
massacre de Deir Yassin de palestinos por sionistas em 1948? Ou um livro sobre os
mineradores de carvão igbo massacrados na Nigéria pelo governo colonial britânico em
1949? Acima do princípio e do pragmatismo, no entanto, está a realidade de que a
censura com muita frequência não alcança seu objetivo. Meu primeiro instinto, ao
saber que um livro foi banido, é procurá-lo e lê-lo.
Por isso eu diria: não vamos banir, vamos responder. Nesta era de desinformação
crescente no mundo todo, na qual é fácil enfeitar tão bem uma mentira que ela adquire
o brilho da verdade, a solução não é esconder a mentira, mas expô-la, e tirar dela esse
brilho falso. Quando censuramos os vendedores de ideias más, corremos o risco de
transformá-los em mártires, e a batalha contra um mártir jamais poderá ser vencida.
Eu leio jornais de ambos os lados do espectro político. Aliás, continuo intrigada com o
fato de os jornais, bastiões aguerridos da objetividade, se diferenciarem politicamente.
E muitas vezes digo, quando quero parecer melhor do que sou, que tenho interesse
pelas ideias de quem discorda de mim porque acredito que é bom ouvir lados
diferentes de uma questão. Mas a verdade é que tenho interesse por essas ideias
porque quero entendê-las direito para conseguir demoli-las melhor.
Acredito que a resposta ao mau discurso é mais discurso, e reconheço quão simplista e
até irresponsável isso pode soar. Não estou sugerindo que uma pessoa deveria poder
dizer qualquer coisa a qualquer momento, uma posição que, para mim, é imatura, pois
é fantasiosa e descolada da realidade. O absolutismo na liberdade de expressão só seria
adequado em um mundo teórico habitado por ideias animadas, não seres humanos.
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Isso leva à questão: quem decide quão severas e quão claras devem ser as restrições? O
filósofo inglês John Stuart Mill, que viveu no século 19, escreveu que qualquer
silenciamento de uma discussão é uma presunção de infalibilidade e, com todo o
devido respeito ao Papa, ninguém é infalível. Então, quem decide quem deve ser
silenciado?
Mahatma Ghandi, após ser preso por sedição, escreveu: “A afeição não pode ser
fabricada ou regulada pela lei. Se alguém não tem afeição por uma pessoa ou sistema,
deve ser livre para expressar da maneira mais completa sua insatisfação, contanto que
não contemple, promova ou incite a violência”.
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Até a definição de discurso pode ser limitadora, como quando a Suprema Corte dos
Estados Unidos decidiu, no caso da Citizens United, que dinheiro é discurso. Todos
aqueles que não são ricos não podem responder, por assim dizer. E acima de tudo as
empresas donas de mídias sociais, com seus algoritmos místicos e sua falta de
transparência, exercem enorme controle sobre quem pode falar e quem não pode,
suspendendo e censurando seus usuários, algo que já foi chamado de “moderação sem
representação”.
Sim, essas empresas são privadas, mas, considerando-se a imensa influência que têm
na sociedade moderna, realmente deveriam ser tratadas mais como de utilidade
pública. Há aqueles que acreditam que, devido a esses tipos de limitações de poder,
deveríamos censurar o discurso de maneira robusta para criar tolerância. Uma ideia
bem-intencionada, sem dúvida. Mas, como argumentou o advogado dinamarquês
Jacob Mchangama: “Impor o silêncio e chamá-lo de tolerância não faz com que ele seja
tolerância de verdade. A verdadeira tolerância requer compreensão. A compreensão
surge quando se escuta. Escutar pressupõe um discurso”.
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29/03/2023, 15:16 Quatro Cinco Um: a revista dos livros - Chimamanda Ngozi Adichie sobre liberdade de expressão
Protestos em Nova York após a morte de Mahsa Amini nas mãos da guarda iraniana. Outubro de 2022
Yuki Iwamura/afp via Getty Images
A maior ameaça ao discurso hoje não é legal ou política, mas social. Essa não é uma
ideia nova, ainda que sua manifestação atual seja moderna. Aquele famoso cronista da
vida americana, Alexis de Tocqueville, acreditava que os maiores perigos para a
liberdade não eram legais ou políticos, mas sociais. E quando John Stuart Mill alertou
para a “tirania da opinião e do sentimento prevalentes”, a impressão que dá é que ele
previu a ameaça que a ortodoxia representa hoje. A solução para essa ameaça só pode
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ser a ação coletiva. A censura social não só cria só um clima de medo como também
uma relutância em reconhecer esse medo. É humano temer uma turba, mas eu a
temeria menos se soubesse que meu vizinho não ficaria em silêncio se eu fosse
colocada no pelourinho. Nós tememos a turba, mas nós somos a turba.
Hoje, quero argumentar a favor da coragem moral, defender que cada um de nós apoie
a liberdade de expressão, se recuse a participar de censuras não justificadas e torne
muito mais vasta a definição do que pode ser dito. Nós precisamos voltar a presumir a
boa-fé. Nas discussões públicas de hoje, a presunção da boa-fé está morta e o discurso
é, por falta de alternativa, interpretado da maneira menos generosa. Sim, algumas
pessoas não têm boa-fé, e suponho que seja isso que a palavra moderna troll significa,
mas nós não podemos, porque algumas pessoas não agem de boa-fé, decidir que a boa-
fé em si está morta. É instrutivo lembrar das palavras do presidente americano James
Madison: “Algum nível de abuso é inseparável do uso adequado de qualquer coisa”.
Precisamos ouvir todos os lados, e não apenas o que fala mais alto. Ao mesmo tempo
em que as mídias sociais remodelaram a dinâmica de poder tradicional dando algum
acesso a quem não tem poder, elas também fizeram com que seja fácil confundir as
vozes que falam mais alto com as vozes mais verdadeiras. Precisamos proteger os
valores da discordância, e concordar que há valor na discordância. E precisamos
apoiar o princípio da livre expressão mesmo quando ele não é atraente para aquilo que
consideramos importante, por mais difícil que isso seja, e eu acho particularmente
difícil.
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Chimamanda Ngozi Adichie falando em um festival em Liubliana, capital da Eslovênia, em 2022 Luka
Dakskobler/SOPA Images/LightRocket via Getty Images
Precisamos parar de presumir que todo mundo sabe, ou deveria saber, de tudo. Certa
vez, fiquei impressionada com o quão rapidamente uma jornalista americana foi
demitida por dizer algo racista. Pouco foi tornado público sobre o que exatamente ela
disse, e isso não só deu um certo poder indevido a suas palavras, mas também sugeriu
sinistramente que elas talvez tivessem um lado verdadeiro. O público também não
pôde exercer o seu direito de ouvir e, potencialmente, aprender. O que foi dito? Por
que dizer aquilo foi errado? O que deveria ter sido dito em vez daquilo?
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29/03/2023, 15:16 Quatro Cinco Um: a revista dos livros - Chimamanda Ngozi Adichie sobre liberdade de expressão
E se cada um de nós, mas particularmente aqueles que têm voz, aqueles que controlam
os acessos, os formadores de opinião, os líderes políticos e culturais, os editores, os
influenciadores, de todo o espectro político, concordássemos que essas ideias são
diretrizes a serem seguidas? Uma coalizão dos razoáveis automaticamente moderaria o
discurso extremo. Isso é ingênuo? Talvez. Mas uma aceitação deliberada da
ingenuidade pode ser o princípio da mudança. A internet, afinal de contas, foi
projetada para criar uma utopia da conexão humana. Uma das ideias mais ingênuas
que já existiu, mas que mesmo assim fez surgir a mudança mais significativa na
maneira como os seres humanos se comunicam.
Às vezes é preciso uma crise para que uma ideia ingênua se torne realista. O New Deal
do presidente Roosevelt foi baseado em ideias que iam contra o consenso prevalente
na época e foi, de maneira geral, considerado ingênuo e impossível. Mas, quando uma
crise surgiu na forma da Grande Depressão, ele subitamente se tornou possível.
A censura social é nossa crise de hoje. George Orwell escreveu que “se um grande
número de pessoas se interessar por liberdade de expressão, haverá liberdade de
expressão, mesmo se a lei proibir”. A isso eu gostaria de acrescentar: podemos proteger
o nosso futuro. Só precisamos de coragem moral.
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