Você está na página 1de 28

1

Política, o Outro da psicanálise II1

Fascismo colonial brasileiro


Traumas da escravidão
Práticas políticas na psicanálise2

Luiz Eduardo Prado

Muitos pensam que o Brasil seria para sempre samba,


praias, garotas, música popular, gracinhas e mumunhas, futebol,
política amiga. Os fatos mostram o contrário: mais de 60 mil
mortes violentas por ano, um genocídio permanente de negros,
um estupro a cada dez minutos, metade deles envolvendo
crianças de menos de cinco anos, dez estupros diários por
gangues, um feminicídio permanente, milícias tomando o poder
político. Cada uma dessas mortes e estupros é um ataque contra
a comunidade como um todo, fazendo do Brasil um lugar muito
violento, onde dançamos num universo de ódio. Em sete países
da América Latina houve mais assassinatos nos últimos vinte
anos do que nas guerras no Afeganistão, no Iraque, na Síria e no
Iémen juntas3. Isto é uma definição do trauma: a coexistência de
duas realidades diferentes, uma colonizando a outra, violando a
outra, a subalterna, uma confusão de línguas entre graça e ódio4.
1
Um primeiro artigo deste projeto Política, o Outro da psicanálise, com o
título de “Terror e radicalização”, apareceu na Revista brasileira de
psicanálise, 52, 4, 63-74, 2018.
2
O presente artigo originou-se em uma apresentação feita em Estocolmo em
colóquio do grupo anglo-escandinavo “Psicanálise e política” em maio de
2019. A versão ora apresentada contou com sugestões de Marta Ferreira,
Sandra Francesca, Vera Iaconelli et Eliana Schueller Reis, a quem agradeço.
3
New York Times, Saturday, May 4th, 2019.
4
S. Ferenczi (2.4.1931), “Remarques aphoristiques sur le thème: être mort -
être femme” (Observações aforísticas sobre o tema: estar morto — ser
mulher), “Notes et Fragments”, Œuvres complètes, t. IV, 1927-1933; pp.
284-285, Paris, Payot, 1982, trad. Grupo do Coq-Héron. O autor retoma esse
conceito de “identificação ao agressor” em seu artigo sobre “A Confusão de
2

Índios

Vaz de Caminha, escrivão da frota que desembarcou pela


primeira vez no Brasil, descreveu o paraíso numa carta a seu rei,
terras cheias de árvores, flores, rios plenos de peixes voando e
pássaros mergulhando. E as pessoas, a gente:

“A feição deles é serem pardos, maneira de


avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos.
Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de
cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta
inocência como em mostrar o rosto. [...] Ali andavam
entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis,
com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e
suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das
cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos
nenhuma vergonha5.”

Não só as moças, também os homens, eram


surpreendentes, de belos corpos e brincalhões.

"Tanto que chegamos, vieram logo pera nós, sem


se esquivarem. E depois acudiram muitos, que seriam bem
duzentos, todos sem arcos. E misturaram-se todos tanto
conosco que nos ajudavam deles a acarretar lenha e a
meter nos batéis e lutavam com os nossos e tomavam
muito prazer. [...] Enquanto ali, este dia, andaram sempre
ao som dum tamboril nosso, dançaram e bailaram com os

línguas entre os adultos e a criança”.


5
1500, La lettre de Pero Vaz de Caminha au Roi Manuel sur la Découverte
de la « Terre de la Vraie Croix » dite aussi Brésil, Paris, Chandeigne, édition
bilingue, 2011, édition bilingue, J. Penjon, A.-M. Quint, pp. 22 e 32.
3

nossos. Em maneira que são muito mais nossos amigos


que nós seus6.”

Não poderia ter escrito melhor, pois então houve a missa,


o padre lhes colocou colares em seus pescoços, com cruzes. E
assim concluiu:

“[Nesta terra] Águas são muitas; infindas. E em tal


maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á
nela tudo, per bem das águas que tem. Pero o melhor fruto
que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta
gente, e esta deve ser a principal semente que Vossa
Alteza em ela deve lançar7.”

Um século e meio depois, em uma de suas cartas do


Brasil, Padre Antônio Vieira escreve:

“As mulheres casadas são retiradas de suas casas e


vão trabalhar em casas particulares, apesar dos protestos
de seus maridos, que depois dessas remoções muitas vezes
se separam de suas esposas [...] com o resultado de que
eles, suas esposas e seus filhos, sofrem e perecem. [...] São
pois os ditos índios aqueles que, vivendo livres e senhores
naturais das suas terras, foram arrancados delas por suma
violência e tirania, e trazidos em ferros com crueldade que
o mundo sabe, morrendo natural e violentamente muitos
nos caminhos de muitas léguas onde os moradores delas
[...] ou os vendiam, ou se serviam e servem deles como
escravos. Esta é a injustiça, esta a miséria, este o estado
presente, e isto o que são os índios [...]8.”
6
Idem, pp. 58 e 68.
7
Ibidem, p. 78.
8
C. Willis, S. B. Schwartz, “The State of Maranhão. A Letter from Father
Antonio Vieira (1653)”, Early Brazil: A Documentary Collection to 1700,
4

Para salvar esta gente eram necessários tamanha


violência e ódio, não só com ela, mas também com quem os
infligiam. Winnicott, descreveu o surgimento da loucura:

“No momento em que a mãe odeia, ela demonstra uma


ternura especial e não existe maneira para uma criança de lidar
com este fenômeno9.”

Era disso que tratava a carta de Caminha: um ódio


desconhecido jorrando da ternura espantada, o trauma da
descoberta, a necessidade de destruir o paraíso tão logo
encontrado, marca interminável da nação que se forma. Os
dados são duros e claros: milhões de índios quando os
colonizadores chegaram, cem mil hoje em dia. As moças, bem
moças e bem gentis, com suas altas vergonhas que os olhos não
se envergonhavam de olhar, desapareceram em ondas de ódio.
Ao mongo da história brasileira, eles são tão persistentes quanto
as ondas que banham as praias deste pais continente.

Negros

“Que coração pode ser tão duro que não sofra ao


ver essa companhia? Alguns ficam com as cabeças baixas
e os rostos em lágrimas, olhando uns para os outros.
Outros, gemendo de dor, olhando para o céu, gritando em
voz alta [...]; outros batem as mãos nos rostos, jogando-se
no chão [...].10”

Cambridge University Press, 2009, pp. 293-294.


9
D. W. Winnicott (1969), “Desenvolvimento do Tema do Inconsciente da
Mãe tal como Descoberto na Prática Psicanalítica”, Explorações
Psicanalíticas. Porto Alegre, ArtMed Editor, 1994, 2007, trad. J. O. de
Aguiar Abreu, p. 194.
10
H. Thomas, “Zurara. Chronicle of the Discovery and Conquest of Guinea”,
The Slave Trade. The Story of the Atlantic Slave Trade, 1440-1870, New
York, etc., Simon & Schuster Paperbacks, 1997, pp. 21-22.
5

Eram escravos dos portugueses, que os atacaram,


mataram e levaram o que puderam. Um deles escreveria: “Vinte
e duas pessoas dormiam. Toquei-os como se fossem gado para
os barcos”11, onde, em pânico, foram marcadas com ferros em
brasa como possessões. Era a tática habitual dos portugueses
quando caçavam negros, atacá-los quando dormiam. Uma marca
corporal era até então motivo de orgulho, feita em honra de
antepassados ou celebração de acontecimentos, a escarificação
agora feita era pior que vergonha, a escravidão começando com
a perda total de qualquer individualidade, ou história pessoal, ou
subjetividade, nada sobrando para um escravo a não ser a
identificação com o agressor12. Maafa, catástrofe, significa
escravidão em Swahili. Assim que os brancos descobriram os
africanos, maravilhados, começaram a destruí-los, ódio jorrando
do espanto.

Os africanos acreditavam que, o reino dos mortos ficava


no Oeste, além de uma água tão vasta que nenhuma pessoa viva
podia atravessá-la, onde seria a Terra da Vera Cruz. De lá
vieram os pálidos fiéis do Deus dos Mortos, canibais que
comiam negros, pois os caçavam com tanta avidez. Alguns até
já tinham visto as provas seguras de tais verdades 13. O medo e o
comportamento violento e errático dos Brancos semeavam
pânico entre os Negros que os encontravam, provocando
suicídios de tantas maneiras. Quem por acaso sobrevivesse não
viveria mais do que sete anos nos trabalhos forçados. É um

11
Idem, « On the River Gambia », Diogo Gomes, c 1460, p. 68.
12
S. Ferenczi (2.4.1931), “Remarques aphoristiques sur le thème: être mort -
être femme” (Observações aforísticas sobre o tema: estar morto — ser
mulher), já mencionado.
13
Histórias contadas em toda a África. J. C. Miller, Way of Death. Merchant
Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830, Madison, University of
Wisconsin Press, 1988, pp. 3-5.
6

engano persistente acreditar que os escravagistas eram tão


somente Portugueses. Com rapidez e muito cedo, os Brasileiros
suplantaram os Portugueses como negreiros e uma divisão do
trabalho se impôs. A uns, o comércio direto entre as costas da
Africa e o Brasil; aos outros, a venda de Negros à América do
norte e às Caraíbas. Os negreiros brasileiros escolhiam chefes
africanos que localizavam entre os escravos, ofereciam-lhes
melhores condições de escravidão em troca de sua ajuda na caça
e na importação de novos Africanos. “O colonialismo é uma
ferida que nunca foi tratada. Ela sempre machuca, as vezes se
infecta, outras vezes, sangra14.”

Os dados são claros: durante três séculos a partir de


1550, cerca de 13 milhões de pessoas foram levadas da África
para as Américas, um pouco menos da metade delas para o
Brasil, sendo o Rio o maior porto de escravos da história da
escravidão. Aliás, sublinhemos que apenas oito artigos
psicanalíticos mencionam “escravidão” em seu título. É um
campo que os psicanalistas não estudaram, fora exceções nos
Estados Unidos.

Durante esses séculos, no Brasil, os Negros eram


torturados em público, pendurados pelos pés e espancados, suas
línguas queimadas, seus olhos, arrancados, seus seios, cortados.
A tortura era um pano de fundo, possibilidade permanente,
mesmo na intimidade de seus corpos, de mulheres e de
homens15. Uma das primeiras cartas enviadas do Brasil dizia que
os colonos tomavam “índios como esposas, segundo os

14
G. Kilomba, Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism, Münster:
Unrast-Verl., 2010
15
h G. Freyre (1933), “O escravo negro na vida sexual e de família do
brasileiro”, Casa Grande & Senzala, Rio de Janeiro, Record, 1998.
7

costumes da terra”16. E se não fossem estes os costumes, a quem


teria importado? O fato é que o abuso sexual de mulheres e de
homens era parte integrante da escravidão, agravada pelo fato
que no Brasil foi imenso o número de proprietários e
proprietárias de pouquíssimos escravos ou escravas, estas usadas
como fonte de renda gerada pela prostituição.

Além de partilharem camas, Negros e Portugueses


partilhavam também o comércio de escravos baseado numa
tradição antiga17. O terror, escravidão, sexo, engendravam vidas
e sonhos traumatizados e fragmentados, além da identificação
com os agressores18, geraram apegos traumáticos, quando um se
submete e adivinha até o querer do outro, antecipando-o 19.
Muitas possibilidades existiam para todos, mas só os brancos ou
por vezes as brancas usavam o chicote e torturavam ou
mandavam fazê-lo. Horrorizado e revoltado, Darwin lembrava:

“Perto do Rio de Janeiro, minha vizinha da frente era


uma velha senhora que tinha umas tarraxas com que esmagava
os dedos de suas escravas. Em uma casa onde estive antes, um
jovem criado mulato era, todos os dias e a todo momento,
insultado, golpeado e perseguido com um furor capaz de
desencorajar até o mais inferior dos animais. Vi como um
garotinho de seis ou sete anos de idade foi golpeado na cabeça

16
J. S. Trevisan, Devassos no Paraíso. A Homossexualidade no Brasil da
Colônia à Atualidade, São Paulo, Max Limonada, 1986.
17
B. L. Solow (ed), Slavery and the rise of the Atlantic System, Cambridge
University Press, 1991.
18
S. Ferenczi (2.4.1931), “Remarques aphoristiques sur le thème: être mort -
être femme” (Observações aforísticas sobre o tema: estar morto — ser
mulher), já mencionado.
19
J. Salberg, (2015). “The Texture of Traumatic Attachment: Presence and
Ghostly Absence in Transgenerational Transmission’. Psychoanal. Q.,
84(1):21-46.
8

com um chicote (antes que eu pudesse intervir) porque me havia


servido um copo de água um pouco turva…”20.

Judeus

Em Luanda, na Angola, no início do século XVII,


Gonçalo Menezes, comerciante de escravos, possuía e vivia com
sete mulheres de dez a quarenta anos de idade, e ainda com
quatro homens, adultos e rapazes, um modo de vida habitual
durante a escravidão, comum mesmo entre os religiosos21.

De fato, Gonçalo era judeu. Desde o século XIV, com o


avanço do Império árabe até o sul do Saara, a miscigenação com
os Negros não era rara, inclusive para os Judeus, que se moviam
com maior liberdade no mundo muçulmano que no mundo
cristão. Desde o final do século XV, a política de Portugal era de
instalar em suas colônias Judeus que fugiam da Espanha.
Primeiro, em São Tomé; em seguida ao longo da costa africana.
Muitos Judeus, portugueses e espanhóis, se estabeleceram
sozinhos nestes litorais antes das grandes descobertas e de
qualquer Conquista oficial. Judeu, Gonçalo era também Cristão
Novo, forçado a converter-se para salvar a vida. Na verdade, as
diferenças entre Judeus e Cristãos Novos eram tênues22.

Os dados são duros: durante um século, entre 1391 e


1492, tantos milhares de Judeus eram queimados, enforcados ou
assassinados de diversas maneiras, outros 250 mil, espanhóis e
portugueses, tiveram que se converter ao catolicismo, tornando-
20
C. Darwin, Countries Visited During the Voyage of H. M. S. Beagle Round
the World, NY, D. Aplleton and Company, 1871, p. 499.
21
A. M. Caldeira, Escravos e Traficantes no Império Português. O Comércio
Negreiro Português no Atlântico Durante os Séculos XV a XIX, Lisboa,
Esfera dos Livros, 2013, pp. 194-195.
22
C. L. Wilke, Histoire des Juifs Portugais, Paris, Chandeigne, 2007, p. 133.
Ainda, N. Wachtel, La foi du souvenir. Labyrinthes marranes, Paris, Seuil,
2001, pp. 329-330.
9

se Marranos ou “Judeus segredos”. A partir de 1496, Judeus ou


Cristãos Novos pouco convincentes eram desterrados para a
África, muitos para o Magrebe e para o Egito, outros tanto para
Angola e Moçambique, para o Cabo Verde e São Tomé.

- « Em 1484, João II de Portugal, achando que o


clima da ilha era pouco sadio, impôs aos Judeus de seu
reino a escolha entre ser batizado católico ou ser colono
em São Tomé onde seriam casados com mulheres trazidas
de Angola23. » -

Em seguida, durante mais de três séculos, a Inquisição


em Portugal e nas colônias, prendeu cerca de 55 mil Cristãos
Novos, muitos deles no Brasil ou com famílias neste país 24. Na
verdade, nomes tirados de árvores, como Oliveira, de azeitonas,
ou Pereira, de peras, e assim por diante, foram dados a Judeus
que se tornaram Cristãos Novos. Levando-se em consideração a
quantidade de Oliveiras no Brasil e em Portugal, podemos
adivinhar a quantidade de judeus forçados a se converter.
Também foram traumas. Em Luanda, no Recife, no Rio,
“traficante de escravos” era sinônimo de Judeus, ou Cristãos
Novos ou “Marranos”. O Brasil abrigou muitos e muitos deles.
Quem mais viria massivamente para cá ou para Angola, senão
párias? Judeus protegiam-se no Brasil. Para se esconder, tinham
muita terra. Alguns foram cada vez mais fundo nas fundas
florestas. Ou devo dizer: nos escondemos e escondemos também
nossos segredos? Fomos muito longe nas distantes brenhas.

Pouco conhecida ou estudada, a presença dos Judeus nas


colônias portuguesas foi determinante. Judeus e Negros

23
W. W. Reade, Savage Africa, Londres, Smith, Elder and Co., 1863.
24
C. L. Wilke, Histoire des Juifs Portugais, já mencionado, p. 99.
10

partilhavam um mesmo destino: ambos eram perseguidos e


traficavam escravos, além dos Portugueses claro, embora só os
Judeus fossem ameaçados pela Inquisição e só os Negros pela
escravidão. Segredos eram importantes para quem fugia, e o são
ainda. Os Judeus luso-brasileiros tinham e têm muito segredos 25.
Abandonaram a parte pública de seus rituais, como a circuncisão
ou a sangria dos animais antes de consumi-los, ou a recitação da
Thora, e guardaram suas tradições domésticas femininas, como
acender velas na sexta-feira ou preparar o pão, muitas vezes
afirmando tratar-se de rituais absolutamente cristãos. Assim, a
religião dos marranos tanto quanto o cristianismo novo,
tornaram-se religiões essencialmente femininas, unindo-se a
outras religiões brasileiras herdadas da África, como o
candomblé, dominados por matriarcas. Isso marcou o
patriarcalismo brasileiro, cujo machismo ficou exacerbado e
contraditório, tanto mais mandão quanto submisso, tanto mais
violento quanto frágil e duvidando de si, prestes a desmoronar
em prantos. Eram estas as religiões das colônias, de perseguição
mútua, de traições, de torturas e de mortes, onde a cumplicidade
se substituía à fraternidade, no langor de perdidas pátrias
distantes. Deus, encontrado, em sua ternura, mostrava seu rosto
de ódio e ordenava a destruição, o ódio jorrando de espantadas
descobertas.

Novidades sobre traumas

Todos esses traumas são cumulativos, voltavam e voltam


de novo e sempre, em ondas26. Os índios não foram eliminados
25
Sobre a importância do segredo para os Judeus Cristãos Novos, veja-se a
conclusão do livro de N. Wachtel, La foi du souvenir. Labyrinthes marranes,
« Fé, memória, esquecimento », pp. 319-332.
26
Masud R. Khan, (1964), “Ego Distortion, Cumulative Trauma, and the
Role of Reconstruction in the Analytic Situation”, Int. J. Psycho-Anal.,
11

uma vez por todas, continuam sendo eliminados. Mais de seis


milhões de negros não foram trazidos para o Brasil de um dia
para o outro, vieram em ondas permanentes. O pânico, a
vergonha e os traumas continuaram crescendo geração após
geração. Os Judeus não se tornaram Cristãos Novos de súbito e
tiveram de continuar reafirmando sua nova religião. Como
haviam Negros vendendo e caçando Negros que fugiam dos
portugueses, haviam Cristãos Novos buscando afirmar e
reafirmar sua conversão e caçando outros Cristãos Novos cujas
crenças judaicas não eram bastante escondidas.

Todas estas pessoas viviam nas “zonas cinzas” descritas


por Primo Levi no gueto de Lodz 27. Os sobreviventes sempre
vivem em zonas cinzas. O Brasil tem sido em grande parte um
país cinzento brincando colorido, recobrindo o negro cinza com
muitas cores. Pode ser alegre e feliz com tal história e destino 28?
As condições de vida dos índios, dos negros e dos pobres
frequentemente lembram Primo Levi. Neste imenso campo, que
agora tem seus Kapos, e seus Comandos, e seus Pogroms, a vida
acumula traumas.

A zona cinza, “[...] o naufrágio heteróclito, os fedores


exacerbados da corrupção, a sodomia monstruosa da hóstia e
dos torturadores, os casais insuperáveis do preconceito e da
besteira, as prostituições, as hipocrisias, as lubricidades, as
traições, as mentiras, as falsidades, as falcatruas — a falta de
fôlego das covardias insuficientes, os entusiasmos sem afinco,

45:272-279.
27
Para um estudo completo da “zona cinza”, veja-se M. Mengoni, Variazioni
Rumkowski: Primo Levi e la zona grigia (Variações Rumkowski. Primo Levi
e a Zona Cinza) Torino, Silvio Zamorani Editore, 2018.
28
E. Solano Gallego, “Pode ser feliz um povo que chora?”, GV Executivo,
Fundação Getúlio Vargas, vol. 13, n° 2, julho-dezembro 2014.
12

as avidezes, as histerias, as perversões, as palhaçadas da miséria,


a putrefação monstruosa das revoltas inoperantes, [...] e nossos
gestos imbecis e loucos para reviver o turbilhão dourado dos
momentos favorizados, fazer voltar o esplendor frágil do cordão
umbilical, o pão e o vinho da cumplicidade, o pão, o vinho, o
sangue, dos casamentos verídicos29”. Os psicanalistas deveriam
ter escrito A Psicopatologia do Trauma Quotidiano.

As zonas cinzas são os lugares onde cresce e se


multiplica o homo sacer, homem sagrado, segundo a tradução
proposta pelo próprio Agamben, que define e discute
longamente seu conceito30, questionando a compreensão vigente
do sagrado e restabelecendo a dos antigos romanos. Assim,
sagrado designaria paradoxalmente aqueles que podem ser
impunemente assassinados, ou em outra formulação, “a
definição do herói ⸺ é quem pode ser impunemente traído 31.”
São sagrados, para Agamben, “[...] os refugiados, os deportados,
os banidos [...]”32 e, é claro, todos que foram e são segregados
em espaços de morte, campos de concentração, campos de
trânsito, campos de trabalho escravo, os marginais, as favelas,
lugares entre exclusão e inclusão precária, onde se acumulam
traumas em uma mesma vida, de geração em geração, impérios
de foraclusões às quais se acrescentam outras consequências
próprias aos traumatismos33.
29
A. Cesaire (1936-1939), Cahier d’un retour au pays natal, Présence
Africaine, 1956, pp. 12 e 13
30
G Agamben, Homo Sacer. Le pouvoir souverain et la vue nue, Paris, Seuil,
1997, trad. M. Raiola, p. 18, pp. 81-85, 92-93.
31
J. Lacan, lição de 6 de julho de 1960, « Os paradoxos da ética”, O
Seminário, livro 7, A ética da psicanálise.
32
G. Agamben, « Une biopolitique mineure. Entretien », Vacarme, 10,
janeiro 2000, https://vacarme.org/article255.html.
33
Em 4 de julho de 1956, em seu seminário sobre As Psicoses, Jacques Lacan
define formalmente este conceito que tecerá seu ensino, adotado enfim pelo
movimento psicanalítico, conceito ativo para seu autor vinte anos após este
13

Traumas cumulativos geram novas fragmentações e


novas identificações com agressores e uma forma particular de
vínculo, que é o apego traumático34. Era imperativo para os
escravos criar uma nova subjetividade ligada a seus donos. Ao
que se acrescenta a telescopagem de gerações 35 — quando uma
geração sofre com o sofrimento do qual uma geração anterior
não pôde fazer o luto, a escravidão, tanto a atual quanto a
“escravidão mental”36, continuam sendo reproduzidas — através
do apego traumático, feito da nova subjetivação de um campo
infinito de significantes, baseada no universo de significantes
dos agentes do trauma – os escravos se identificam não somente
a seus donos, mas mesmo ao que estes esperam deles.

De fato, a colonização não termina quando o colonizador


vai embora, mas se torna uma colonização mental traumática; a
escravidão, naturalmente, não termina quando sua abolição é
proclamada, se as condições sociais continuam tratando índios e
negros como escravos e párias, “[...] banidos por uma lei e uma
tradição [...] os incluindo numa pura relação de abandono”37.

Os dados são duros. Durante três séculos mais de um


milhão e meio de negros foram trazidos para o Brasil a cada
anúncio de princípio. Lacan entretanto não é dogmático. Ele menciona uma
“parcial foraclusão do complexo de castração” e chegará a uma formulação
radical: “Só há foraclusão do dizer” (8.12.1971). Assim, há uma história da
foraclusão, conceito sobreterminado. Ver meu “Forclusion: thèses, histoires,
cliniques”.
34
J. Salberg, “The Texture of Traumatic Attachment: Presence and Ghostlyt
Absence in Transgenerational Transmission”, já mencionado, mas também,
para um resumo da literatura sobre o assunto, ver T. Bakó e K. Zana, “The
Vehicle of Transgenerational Trauma”, American Imago, 2018 75(2): 271-
285; e, em geral, este número da revista.
35
H. Faimberg, « The Telescoping of Generations: Genealogy of Certain
Identifications », Contemporary Psychoanalysis, 1988, 24:99-117.
36
B. Fletchman Smith, Mental Slavery: Psychoanalytical Studies of
Caribbean People, Karnac, London, 2000.
37
G. Agamben, Homo sacer. Le pouvoir souverain et la vie nue, jà
mencionado, p. 61.
14

século, com um enorme pico em meados do século XIX. Então,


50 anos depois deste pico, foram todos libertados, exatamente
em 13 de maio de 1888, sem nenhuma medida que os
acompanhasse ou ajudasse em sua nova vida. Pior ainda: toda
formação ou educação lhes tinha sido proibida. Em seguida, era
difícil conseguir alguma, deixando-os sem preparo para
enfrentar a concorrência com as novas levas de imigrantes, da
Síria e do Líbano, da Suíça e da Alemanha, da Itália e da
Espanha, da Polónia, do Japão, da Rússia, do mundo inteiro,
ultrapassando mesmo os portugueses. A imigração tornou-se
avassaladora no Brasil do século passado. Os primeiros
imigrantes deportados, africanos, não tinham nenhuma
possibilidade de enfrentar a nova realidade do mercado de
trabalho, onde inaugurariam um novo tipo de escravos. Nessa
altura, como se comentou, a antiga escravidão já tinha

“não só dado a possibilidade de se tornar poderoso


e rico para os imigrantes que, na sua maioria, estavam no
outro extremo da escala socioeconômica [...] vagabundos,
mendigos, órfãos, condenados, um grupo descontrolado
que cometia crimes e caos de vários tipos. Além disso, os
primeiros colonizadores enfrentaram traumas
próprios[...]”38.

No início do século XVII, de um total de 100 colonos


enviados para Jamestown, Virgínia, USA, apenas 38
continuavam vivos oito meses depois. Não há razão para que
fosse diferente no Brasil.

38
J. Gump, “The Endurance of Slavery’s Traumas and ‘Truths’, in S. Grand,
J. Salberg, Trans-generational Trauma and the Other. Dialogues Across
History and Difference, London & New York, Routledge, Taylor & Francis,
2017, pp. 102-119.
15

Repúblicas de Violências

Em 1889, um ano após o fim da escravidão formal, um


golpe militar instalou uma república, sem nada mudar em
relação à pobreza, aos índios ou aos negros. E exatamente em 13
de maio de 1891, para comemorar a Nova República e o fim da
escravidão, um grande homem de Estado 39 decretou a destruição
de todos os arquivos, documentos e dados sobre escravos.
Queria que o Brasil esquecesse a escravidão, sonhava em recriar
o Brasil das origens. Então foracluiu o que tinha acontecido com
índios, negros e pobres. República e Democracia são baseadas
em foraclusões: com aura delirante no melhor dos casos.

Duros dados: ao longo do século 20, houve no Brasil:


meia dúzia de constituições legais, meia dúzia de golpes de
estado militares, o exército fechou meia dúzia de congressos,
treze presidentes não terminaram seu mandato eleito e trinta e
um presidentes não foram eleitos. Cada um destes episódios foi
um ataque contra a comunidade, naturalmente em nome de
novos laços sociais, que nunca foram criados. “Onde
percebemos uma cadeia de acontecimentos, o [Anjo da História]
vê uma única catástrofe, empilhando destroços sobre destroços e
atirando-os diante de seus pés40.”
39
Rui Barbosa. Este nome, com o qual se tornou célebre, é o de sua mãe. Seu
nome completo era Rui Barbosa de Oliveira, este último sendo o nome de seu
pai. É muito provável então que ele, mulato, fosse de origem cristã nova,
tentando manter secreto seu judaísmo ou buscando afirmar sua fé recente
para que não se pudesse dela duvidar, tendo foracluído então nomes
Africanos e os nomes de seus proprietários, porque, exatamente? Nomear os
escravos eram um dos prazeres secretos do escravagismo. Veja-se V. Gay,
“The Logic of Ownership: Naming Slaves in the US Census”, On the
Pleasures of Owning Persons: The Hidden Face of American Slavery, New
York, International Psychoanalytical Books, 2017, pp. 72-73.
40
W. Benjamin, « L’Ange de l’Histoire », Sur le concept d’histoire, thèse IX,
Payot, 2013, trad. O. Mannoni. Benjamin: “(O Anjo) gostaria sem dúvida de
ficar, acordar os mortos e consertar o que foi quebrado. Mas uma tempestade
vem do Paraíso, sopra em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais
16

A democracia nasceu de um desejo de paz surgido onde


jorrava o ódio. Foram experiências violentas, todos que queriam
melhorar a vida dos descendentes de escravos e dos pobres eram
acusados de “comunismo”, perseguidos, e ainda o são. A
instabilidade crônica brasileira decorre também dessas
foraclusões violentas, dessa permanência da colonização e da
escravidão mental, impedindo o avanço do Anjo da História. De
fato, por que as forças da ordem brasileiras não haveriam de
torturar e matar, quando no final do século XVIII um
inconfidente mineiro foi esquartejado e a tortura de escravos
fazia parte da história e do cotidiano há séculos? A tortura dos
Judeus não lhes ficava atrás, tanto em Portugal quanto no
Brasil41. Os europeus civilizados também torturavam. Os
militares brasileiros, a "Sorbonne" como se chamavam,
aprenderam novas formas de tortura com os militares franceses
da Argélia e o que faziam contra os argelinos 42. Sem nenhum
processo de luto social, sem que nenhuma justiça fosse feita,
anos mais tarde retomou-se o elogio dos torturadores, sendo
eleito um antigo oficial militar expulso do exército, chamado
também Messias, com uma intensa manipulação das mídias
sociais enviando rajadas de mentiras e notícias falsas, após
pilhas de erros cometidos pelas forças progressistas, elas
próprias marcadas por séculos de colonialismo e escravidão,
com um programa prometendo reforçar a exclusão de negros e

fechá-las. Essa tempestade o empurra irresistivelmente para o futuro ao qual


ele dá as costas enquanto o monte de ruínas adiante aumenta até o céu. O que
chamamos de progresso é este monte de ruínas.” (minha tradução)
41
N. Wachtel, La logique des bûchers, Paris, Seuil, 2009. Relatos quase
clínicos seguem-se uns aos outros, sobretudo em seu impressionante quarto
capítulo, “Cenas da vida carceral” e em sua conclusão, “Da banalidade do
mal”.
42
Meu artigo “De la torture, de l’exil, du génocide” (Da tortura, do exílio, do
genocídio), Dialogue, n°117, Toulouse, Érès, 1992, pp. 88-102.
17

de índios e de pobres através da generalização de assassinatos já


tão frequentes, prometendo ainda com símbolos de armas e
gestos de sua utilização, eliminar a corrupção e a aniquilação de
todos aqueles que a Teologia da Prosperidade acusar de desvios
culturais. Os primeiros meses do novo governo fascista mostram
que a confusão mental e política tem raízes na negação da
realidade. Muito rapidamente, os slogans contra a corrupção
revelam sua natureza, o velho grito dos bombeiros
piromaníacos.

Lula foi um dos presidentes brasileiros que mais tentou


integrar os excluídos, estimular a lembrança e o conhecimento
da história, deixar fluir o tempo e não o bloquear, tentar limpar
os destroços aos pés do Anjo da História. Seu modelo, porém,
era de um acesso geral ao consumo, sem transformação radical,
permitindo e encorajando a persistência de um monopólio
fascista da imprensa, que buscou com ingenuidade utilizar.
Foram mantidas velhas estruturas políticas, sem radicalização da
democracia e com total incapacidade de combater a corrupção
endémica, partilhada enfim por seu partido sem que nenhum
mecanismo de combate interno contra tais práticas fosse criado.
As classes médias foram ampliadas e não se transformaram,
após terem passado um século se afirmando. E nem as classes
médias nem a democracia poderiam existir de fato em país onde
tantas pessoas são excluídas de tantos laços sociais,
abandonadas, em sociedade violentamente dividida entre ricos
proprietários, herdeiros de proprietários de escravos, e uma
massa de pobres, herdeiros de escravos. O modelo de Lula
facilitou um golpe civil de Estado contra Dilma, que prosseguia
18

seu projeto, ambos imóveis em uma perplexidade política


traumatizada.

Um problema surgiu então aparentemente vindo da


utilização de novas tecnologias, imprevisto embora pudesse ter
sido antecipado, pois muitos trabalham com ele, problemas
vindos do retorno do reprimido. O Messias representa o retorno
do ódio dos senhores de escravo brasileiros, que se uniu aos
desejos assassinos e reprimidos de quem sonhava em ter
escravos. Lembremo-nos que, no Brasil, a maioria dos
compradores ou compradoras de escravos possuíam apenas uma
ou duas cabeças, o que o transformou em país bastante dividido
entre proprietários e escravos.

Como Lula era o presidente da vida, o Messias é o


presidente da morte, invocando o que os antigos Africanos
chamavam Deus dos Mortos, o deus cristão. Messias vem na
esteira de Salazar, Mussolini, Franco e Hitler. Ora, as classes
médias não são nem progressistas nem esclarecidas por
natureza. Foram assim descritas:

“A classe média deslizou em silencio para dentro


da sociedade moderna. Qualquer história que tenha tido
foi uma história sem acontecimentos, quaisquer interesses
comuns que tenham tido, não as uniu, qualquer futuro que
tenham não será feito por elas. Se aspiram a algo, é algo
ilusório numa sociedade imaginária43.”

Classes médias de amor e ódio, aspirando a “zonas


cinzas”, 50 mil tonalidades de cinza, cem milhões de nuances de
trauma. O ódio brota e jorra quando as palavras colidem com os

43
C. Wright Mills, White Collar. The American Middle Classes, Oxford
University Press, 1951.
19

fatos, quando o imaginário se choca contra o real. Um eminente


historiador da psicanálise descreveu o reino das classes médias
como A Cultivation of Hatred44. Como nascem entre o
preconceito e o privilégio, as classes médias alimentam-se do
ódio contra quem os ameace. O ódio jorra do luto impossível do
sonho de um mundo melhor. Se desfazendo o sonho, jorra o
fascismo, cultura do ódio.

O argumento de Freud é que o ódio é nosso primeiro


impulso: “...nós [...] derivaremos a capacidade de origem da
moralidade do fato de que, na ordem do desenvolvimento, o
ódio é o precursor do amor45.”

Hoje, as classes médias organizadas nas Igrejas


Neopentecostais, num Exército virgem de verdadeiras guerras,
em tribunais perversos e tendendo à corrupção, reagrupadas
ainda em milícias, realizam enfim o casamento incestuoso da
religião com a tortura, da hóstia com a matraca e a bala, da
redenção com o crime, evocados por Cesaire. Tendo eleito um
governo com menos da metade dos eleitores, criou-se um país
dividido, com um governo central fascista e um consórcio de
estados progressistas formando o Bloco do Nordeste. As
próprias classes médias estão divididas entre fascistas, querendo
manter o Brasil para sempre uma colônia, e forças progressistas,
esperando resolver as contradições do país sem revolução. Nem
sempre a separação entre ambas é nítida. A situação política do
país é caótica, com um governo fascista colonial e uma vasta
desorganização das forças resistentes.
44
P. Gay, The Cultivation of Hatred. The Bourgeois Experience. NY &
London, W. W. Norton & Company, 1993.
45
S. Freud, (1913), S. Freud (1913), « A predisposição à neurose obsessiva.
Contribuição ao problema da escolha da neurose », Obras completas vol. 10
(1911-1913), trad. P. C. de Souza, Companhia das Letras, pp. 256-275.
20

O que é o fascismo senão uma ditadura de classes médias


passadistas, apoiadas por um capitalismo predatório de vistas
curtas, alimentado por projetos de destruição, o último grau da
abjeção humana46? O que é a colonia no Brasil se não a realidade
de um país colonisador e negreiro desde sempre que uma certa
intelectualidade como pobre vítima ingenua da antiga metrópole
ontem, e do imperialismo Norte-americano hoje ?

« A elite nunca conheceu uma revolução descolonial,


lentamente ela se tornou uma burguesia capitalista sobretudo
latifundiária e pouco industrial, sem nunca deixar de ser uma
elite colonial. A relação desta elite com o povo não é apenas a
do capitalista com o proletário, mas ainda bastante a do senhor
com o escravo, da “Casa Grande” à la “Senzala”47. »

Existe no Brasil uma concentração abjeta da renda, uma


tamanha disparidade, herança e persistência abjetas da
escravidão. O fascismo colonial busca agravá-la, condição para
que as classes médias sobrevivam ainda um pouco. Frente a esta
insanidade, temos movimentos populares emergentes dos quais
participam os psicanalistas, de maneira inédita, abandonando na
luta suas tradicionais querelas e divergências. Esta é a herança
hoje de cinco séculos de traumas, da escravidão e do
colonialismo, que persistem e se acumulam.

46
G. Bataille, La structure psychologique du fascisme, CNRS Éditions,
Hermès la Revue, em linha https://www.cairn.info/revue-hermes-la-revue-
1989-2-page-137.htm.
47
M. Cahen, « Le retour du Brésil colonial », Libération, 2 juillet 2019.
21

Adendo:
Criatividade psicanalítica
Assistimos no Rio de Janeiro à uma explosão de
criatividade. Um grupo, os Psicanalistas Unidos pela
Democracia, apropria-se de um símbolo do carnaval, o
estandarte, nele inscreve seu nome, e passa a brandi-lo, festivo e
guerreiro, em todas as manifestações populares das quais os
psicanalistas agora participam enquanto psicanalistas, acabando
com a estéril divisão de um mesmo sujeito em psicanalista e
cidadão. Participam ainda de movimentos populares como as
manifestações “Parem de nos matar”, onde se exprime a revolta
das favelas contra o genocídio sofrido, contando agora com a
participação manifesta de psicanalistas.

Entre tempo, em São Paulo, em outras cidades 48,


espalhando-se, psicanalistas se lançam em experiencias
revolucionárias no percurso do ódio à moralidade, se é que o
ódio por si só pode levar a esta. Questionando velhas
modalidades do exercício da clínica, herdado da psiquiatria
tradicional do final do século XIX pela psicanálise, propõe
agora novos exercícios, próximos das tradições populares,
recebendo pacientes junto a árvores, revivendo antigos
curandeiros49; em praças públicas, nas ruas, nas estações de
ônibus ou trens, reatando com práticas antigas de médicos
progressistas que reservavam um dia de sua clínica de graça à
população carente, os jovens psicanalistas propõe hoje consultas

48
“Psicanalistas criam coletivo e fazem atendimento nas ruas do DF”, Helen
Leite, Correio Brasiliense, 21.06.2018.
49
« Psicanalista que atendia moradores de rua em “consultório a céu aberto”,
monta projeto social no Beco do Candeeiro em Cuiabá », Yago Oliveira,
oglobo.com, 07.02.2019.
22

à céu aberto50. A psicanálise estava fadada a viver em ilha de


luxo em mar de sofrimento? As experiencias de rua dos
psicanalistas, aproximando-se do povo, situando-se diretamente
juntos ao homo sacer, indo ao centro das periferias, às zonas
cinzas, realizando um verdadeiro populismo psicanalítico,
buscam práticas capazes de levar à integração de teorias
psicanalíticas descritivas e explicativas das consequências dos
traumas da escravidão e dos genocídios: a teoria da acumulação
dos traumas de uma geração à outra; a teoria do apego
traumático gerado pela violência da escravidão; a teoria da a
persistência do colonialismo e do trabalho escravo sob a forma
de salários miseráveis; todas costuradas com o fio vermelho da
foraclusão e Agamben de exclusão central da política, quando o
Outro impede qualquer alteridade, raiz persistentes do ódio.

Terminando com as lendas sobre as origens da


psicanálise e de Freud, podemos agora constatar que descendiam
de migrantes e marginais. O pai de Freud, expulso de Leipzig,
era mais vendedor ambulante que comerciante 51. O tio de Freud
foi preso como falsário52. Sabemos e prestamos atenção no fato
de que o inventor da psicanálise era um imigrante e um exilado
de segunda geração? Fugindo da Galícia, região pobre e afastada
do Império, judeus oprimidos, colonizados, migrando das

50
« Grupo de psicanalistas oferece atendimentos gratuitos em praça de Porto Alegre
aos sábados », Jéssica Rebeca Weber,
https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia, 28.07.2018.
51
M. Schröter, C. Tögel, « The Leipzig Episode in Freud’s Life (1859): A
NewNarrative on the Basis of Recently Discovered Documents », in
Psychoanalytical Quarterly, n° 76, 2007, p. 193-215.
52
A. Grinstein, Freud at the Crossroad, Madison CT, International
Universities, 1990. D. Anzieu comenta longamente este episódio em seu
L'auto-analyse de Freud et la découverte de la psychanalyse, Paris, PUF,
1998.
23

periferias para o centro do Império53, lutando para construir um


lugar próprio, esmagando seus rivais ou ajudando outros, os
subalternos e os reprimidos a falar, antes de pretender ascender à
respeitabilidade e à cientificidade burguesas, adaptando um
núcleo incandescente de sua prática ⸺ progressivamente a
atenção à livre associação e aos significantes próprios ao sonho,
ao sexo, à infância ⸺ às práticas tradicionais da medicina do
Império ⸺ o quadro, o divã, a posição, o psicanalista supondo-
se neutro, como os médicos em geral 54. Quando Freud propõe a
metáfora do retorno do reprimido, ela se inscreve também no
real das lutas que vivia, retorno do oprimido ao reino do
opressor.

Em seus primeiros tempos, a psicanálise estava longe de


ser apolítica. Pelo contrário, situava-se no centro da luta política.
Freud ajudava financeiramente o jovem Ernst Federn, militante
de extrema esquerda, filho de Paul Federn, seu amigo, ele
próprio militante de um partido então considerado “subversivo”,
o Partido social-democrático. As filhas de Paul Federn, muito
amigas dos Freud, eram tão ou mais de esquerda que o irmão 55.
Apenas uma versão machista da história da psicanálise nunca
conta a história destas jovens, cujo militantismo foi tão
importante e variado que até hoje parques vienenses têm seu

53
E. Mülhhetner, J. Reichmayr, “Following Freud in Vienna”. International
Forum for Psychoanalysis, 6(2):73-102, 1997. V. Buriánek, “Paradise lost
and trauma mastered: new findings on little Sigmund”, International Forum
for Psychoanalysis, “Freud in Příbor”, vol. 24, 2015, pp. 22-28. Příbor é o
nome da cidade hoje tcheca onde nasceu Freud, que a evoca sempre por seu
nome alemão, Freiburg.
54
Veja-se meu livro L’Invention de la psychanalyse : Freud, Rank, Ferenczi,
Paris, Campagne Première, 2014 ; também A. Mayer, Sites of the
Unconscious. Hypnosis and the Emergence of the Psychoanalytic Setting,
Chicago e Londres, The University of Chicago Press, 2013.
55
Meu artigo « Qui était donc le Dr Paul Federn ? », site Œdipe,
https://www.oedipe.org/article/qui-etait-donc-le-dr-paul-federn-0.
24

nome. Contra críticos ferozes, Freud defendia a prática de


Wilhelm Reich, militante comunista que fazia conferencias de
psicanálise para operários. Se Freud declarava apolítica a
psicanálise, devemos ler suas declarações como exercícios na
arte de dissimulação56, quando as declarações de opiniões
políticas dos Judeus eram observadas com atenção. Reich não
era o único militante apoiado por Freud. Edith Jacobson, Otto
Fenichel, Eric Fromm, Siegfried Bernfeld, eram militantes de
esquerda, socialistas ou comunistas. O próprio Ernst Federn foi
prisioneiro dos campos de concentração de meados dos anos
1930 até meados dos anos 1940, dando conferências de
psicanálise nestes campos, atendendo quando necessário e
possível57, enquanto suas irmãs lutavam na guerra da Espanha ou
nas comunas Vienenses. Encorajados por Freud, estes
psicanalistas, como parte de suas atividades políticas,
organizavam clínicas populares58 financiadas por riquíssimos
psicanalistas, como Max Eitingon, ou por outros milionários
simpatizantes da psicanálise, como Anton von Freund, cujo
nome aparece com frequência na correspondência entre Freud e
Ferenczi. Houve ainda a movimentada história da Escola de
Frankfurt, para a qual a psicanálise colaborou tanto 59. Mas, tanto
quanto nas policlínicas de Berlin, Viena, Budapest ou Londres,
quanto nas perspectivas que a Escola de Francfurt pôde oferecer
à clínica, todas eram sempre pautadas pelo dispositivo

56
L. Strauss, La Persécution et l'Art d'écrire, Paris, Gallimard, 2009,
tradução O. Sedeyn.
57
E. Federn, Témoin de la psychanalyse : de Vienne à Vienne via
Buchenwald et les États-Unis, Paris, Presses universitaires de France, 1994,
tradução de M. Tran Van Khai.
58
R. Jacoby, The Repression of Psychoanalysis. Otto Fenichel and the
Political Freudians, N. Y., Basic Books Inc, 1983.
59
M. Jay, L’Imagination Dialectique. Histoire de l’École de Francfort
(1923-1950), Paris, Payot, 1977, tradução de E. E. Moreno, A. Spiquel.
25

tradicional: consultório, divã, poltrona, analista suposto saber, e


sobre a concepção de educar o povo, de semear no povo a boa
nova da psicanálise, de colocar ao seu alcance uma nova
medicina. Em momento algum se questionou o próprio
dispositivo desta consulta.

A prática inaugurada agora no Brasil vem fazê-lo 60,


sempre com a orientação de “psicanálise de rua” 6162, que não se
reduz à “psicanálise em espaços públicos”, pois hospitais e
centros de atendimento são também “espaços públicos”. A rua, à
céu aberto, é um outro universo. “A rua é uma mãe”, afirma um
paciente à psicanalista que o acolhe e constata a diversidade do
público que se dirige a ela, gente que não teria acesso a seu
consultório, que desconhece até a existência de tais lugares 63.
Negros e índios, domésticas e feirantes, tantas e tantos excluídos
da psicanálise, que, na rua, vêm ensinar aos psicanalistas novas
questões e novas maneiras de abordá-las, levando em
consideração a diversidade étnica e a luta de classes, elaborando
novas teorias64 ou retomando com vigor o trabalho de integração
60
Uma história da psicanálise de rua no Brasil mostraria algo diferente, por
exemplo que ela existe já há bastante tempo. Que ela não se restrinja ao
Brasil é o que testemunha K. Cargill, “Off the Couch and Onto the Streets:
Toward na Ethnographic Psychoanalysis”, University of Washington,
Tacoma,UW Tacoma Digital Commons, 2006.
61
Interessante e útil distinção proposta por Marta Ferreira entre « psicanálise
de rua » e « psicanálise na rua », a partir das diferenças estabelecidas entre
“teatro de rua” e “teatro na rua”. Ver sua comunicação feita ao colóquio
« Políticas da psicanálise, quando os psicanalistas se encontram », Campinas,
Brasil, 13-15 junho 2019.
62
A. S. Marino, A. R. Coaracy & T. Oliveira, “Uma experiência de clinica
aberta de psicanálise”, Lacuna, Revista de psicanálise, 4 de junho de 2018.
63
T. Pinto, “Os pés descalços. Um relato sobre a experiência Psicanálise na
Rua”, Teoria y Critica de la Psicologia, 12 (2019), Facultad de Psicologia
Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, Morelia, Michoacán, Mexico e
Annual Review of Critica Psychology, http://teocripsi.com/ojs/index.php/TCP
64
A. Turriani, Coletivo Margens Clínicas, São Paulo, “Questões subjacentes
às margens da clínica e da transmissão psicanalítica em territórios
vulnerabilizados pela violência política”; T. Guimarães, R. M. M. Jardim,
Coletivo Psicanálise na Rua, “Apontamentos sobre o horizonte crítico da
26

de dois materialismos, o psicanalítico e o histórico 65. Ir ao povo


implica aprender com ele, tanto quanto um analista ideal mais
aprende com seu paciente que lhe ensina suas teorias,
encaminhando-se para a elaboração de uma “metapsicologia dos
processos psíquicos do analista durante a análise” 66, para o
conhecimento de sua própria maneira de pensar, desejar e ser
com um paciente determinado.

Eis entretanto que diante do ideal, no percurso de uma


prática que amadurece, uma dúvida aparece. A psicanálise na
rua parte “do pressuposto de que o sofrimento possui uma
dimensão sociopolítica”67, tese que, explicitada, torna-se
revolucionária. Uma outra tese entretanto se infiltra, supondo
que a psicanálise na praça existe “sem pretender, com isso, uma
‘inovação’ na clínica psicanalítica”68, tão somente sendo
participes da constituição da psicanálise de seu tempo,
alinhando-se com uma fórmula protocolar e com jargão à
psicanálise existente “na espiral do tempo”, suposta inovação.
Visariam também com isso à “retomada do sentido grego das

Psicanálise na Rua”, Teoria y Critica de la Psicologia, já mencionado.


65
G. Tupinambá, PUC-RJ, “Sobre um projeto de psicanálise popular, ou:
convém ser comunista para escutar o sofrimento social?”, texto apresentado
no Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise, USP, São Paulo,
outubro 2016, https://lavrapalavra.com/2017/04/19/sobre-um-projeto-de-
psicanalise-popular-ou-convem-ser-comunista-para-escutar-o-sofrimento-
social/
66
S. Ferenczi (1928), « Elasticidade da técnica psicanalítica », Obras
completas, p. 40.
67
Coletivo Psicanálise na Praça (M.-C. I. Fonseca, D. S. Taranta, A. R.
Coaracy Neto, A. Marino, J. Tambelli, A Be Vasconcelos, A. C. Perrelli),
“Psicanálise na Praça Roosevelt: Lugar do Desejo e Resistência”, Cultura no
Divã, 10.09.2018, https://www.culturanodiva.com/psicanalise-na-praca-
roosevelt-lugar-de-desejo-e-resistencia/
68
Coletivo Psicanálise na Praça (A. R. Coaracy Neto, T. Oliveira, A.
Marino), “Uma Forma Possível de Psicanálise na(s) Praça(s)”, Cultura no
Divã, 8. 10. 2018, https://www.culturanodiva.com/uma-forma-possivel-de-
psicanalise-nas-pracas/
27

praças como ágoras dos espaços públicos que realmente


pertençam a todos de forma igualitária”69.

Como se a ágora não fosse lugar de exclusão,


atravessada por classes. De uma maneira geral, os textos
teóricos apresentados a partir das experiencias de psicanálise de
rua buscam justificar-se de maneira tradicional através de textos
canônicos de Freud, Lacan, Foucault, Adorno, de sincretismos
entre Marx e Lacan. Entretanto, em lugar algum, nunca, a
psicanálise aproximou-se tão francamente do povo,
confundindo-se com ele. Enquanto a psicanálise de rua possui
uma história no Brasil e a experiencia atual seus antecedentes,
outras tradições de presença na rua ou no espaço público aberto,
existem e outras disciplinas interessadas por estas tradições se
oferecem à pesquisa, os textos canônicos parecem pesar sobre a
prática que se reabre. O viés teórico e as dificuldades de
formulação de uma teoria revolucionária para uma prática
revolucionária que ainda não se reconhece decorreria da sombra
do passado que se estende sobre as promessas do presente?
Trata-se da divisão entre o pensamento que se formula
colonizado, buscando aval e se justificando à luz de teorias que
não se prestam às práticas descritas. Estas se descolonizam,
apesar de tudo? Questões relançadas, revolução que germina.

Pode uma tal psicanálise ser revolucionária sem uma


política revolucionária? Podemos superar nosso passado
traumático de escravidão, colonização e exclusão sem levar
ambas em consideração? Perguntas que reaparecem hoje,
retornando dos oprimidos e do recalcado, nossas perguntas
comuns, na luta para manter viva a inspiração inicial
69
“Psicanálise na Praça Roosevelt: Lugar do Desejo e Resistência”, acima
citado.
28

revolucionária da psicanálise, núcleo incandescente onde brotou


algo cujo rico ramo se exprime hoje na psicanálise de rua, das
praças, das estações de ônibus, nos espaços públicos.

Agradecimentos

Quero agradecer Marta Ferreira, de Tykhe Associação de


Psicanálise, Campinas, São Paulo; Sandra Francesca, psicanalista et
professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB).
Vera Iaconelli, do Forum dos Campos Lacanianos e Clínica Gerar, São
Paulo; Eliana Schueler Reis, do Espaço Brasileiro d’Estudos Psicanalíticos.

Juntas, tentamos superar as fórmulas protocolares e os jargões, espero.

Você também pode gostar