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ARTIGOS

A arte de viver no Antropoceno:


um olhar etnográfico sobre
cogumelos e capitalismo na
obra de Anna Tsing
Thiago Mota Cardoso [1]

Resumo: Me propus a escrever uma resenha do livro The Mushroom at the end of the World:
On the possibility of life in capitalist ruins, de Anna Tsing. Porém me propus tecer essa rese-
nha subvertendo este gênero ao incorporar uma narrativa que mais se aproxima a um ensaio
etnográfico livre. Diria até um ensaio sobre uma experiência de viagem de campo para etno-
grafar cogumelos e seus companheiros nas paisagens pós-industriais arruinadas na Dinamarca
pelo projeto Aarhus University Research on the Anthropocene (AURA project – Living in the
Anthropocene), onde a autora do livro que estou me debruçando era partícipe da jornada a
ser relatada. Confabulações miceliais é o nome que dou a essa atividade em homenagem ao
título do presente dossiê. O livro de Tsing foi um guia, um relato de manchas experimentais
que nos faz ver melhor, ou ver de outro jeito, a arte de viver com e de perceber mundos
emergentes no e contra o capitalismo.

Palavras-chave: Fungos. Etnografia Multiespécie. Antropoceno.

The art of living in the Anthropocene: an ethnographic perspective about mushrooms


and capitalism in Anna Tsing’s book

Abstract: propose to write a review of Anna Tsing’s book “The Mushroom at the end of the World:
On the possibility of life in capitalist ruins”. But I set out to weave this review by subverting
this genre by incorporating a narrative that most closely approximates a free ethnographical
essay. I would even say an essay on a field trip experience to ethnograph mushrooms and their
companions in post-industrial landscapes ruined in Denmark by the Aarhus project University
Research on the Anthropocene (AURA project – Living in the Anthropocene), where the author
of the book that I am studying was part of the journey to be reported. Mycelial confabulations
is the name I give to this activity in honor of the title of this dossier. Tsing’s book was a guide,
an account of experimental stains that makes us see better, or see otherwise, the art of living
with and perceiving emergent worlds in and against capitalism.

Keywords: Fungi. Multispecies Ethnography. Anthropocene.

[1] Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, Bolsista PNPD pelo Programa de Pós-
-Graduação em Antropologia, Universidade Federal da Bahia. E-mail: thi.motacardoso@gmail.com.

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Highway E45 descortinar o potencial do design não inten-


cional em paisagens antropogênicas. Elaine,
ali estava como pesquisadora, orientanda de
“As ruínas serão nossos jardins” doutorado de Anna e como Arts Coordinator
(TSING, 2014)
do projeto. Ambas seriam nossas guias, por
uma Jutlândia inóspita à forasteiros made in
America engajados numa pesquisa voltada
Retirei o nosso veículo Renault, tipo perua, para compreender a relação entre fungos e
no pátio do campus do Departamento de Cul- árvores numa paisagem industrial devastada.
tura e Sociedade em Moesgård, da Aarhus
University. Era uma tarde fria e acinzen- Após os últimos ajustes no veículo, como
tada – muito comum nessa cidade de origem forasteiro que éramos, inseri no GPS do veí-
Viking situada no norte da Dinamarca e que culo o nosso destino: Søby Brunkulslejerne.
dava nome a universidade e a baía em que E assim seguimos nosso caminho pelas ruas
se situava – que apontava para os primevos de Aarhus até entrar na Ostjyske Motorvej, a
dias de uma primavera tão desejada após um highway E45, em uma viagem na qual assumia
inverno rigoroso e chuvoso. No porta malas o papel de pesquisador visitante e de piloto da
estava todo o equipamento organizado no dia Renault numa expedição que mais se asseme-
anterior, com o necessário para um campo de lhava às minhas atividades de campo junto aos
três dias no centro da Jutlândia: caixas com meus colegas biólogos no Brasil. Pelo menos,
trenas, microscópios, pequenas pás, sacolas essa era minha impressão inicial diante de
plásticas, instrumentos para coleta de amos- tantos equipamentos que nada ofertavam
tras, guias de identificação de cogumelos da uma imagem de um canônico “estar lá” da
região escandinava e, todo tipo de itens para antropologia. Não há dúvidas que os equipa-
fazermos nossas refeições. mentos já nos denunciaria como verdadeiros
cientistas naturais e, para aumentar minha
Pouco depois chegam as minhas companheiras estranheza, não haveria, até onde sabia, e o
e organizadoras da expedição, a antropóloga que me foi confirmado rapidamente, os nos-
Anna Tsing e a artista e antropóloga Elaine sos notórios interlocutores humanos, o típico
Gan. Anna, minha supervisora no intercâmbio “nativo” modernista da Jutlândia Central,
de doutorado no exterior, motivo de minha a não ser pelo encontro que teríamos já em
presença, era docente do Departamento de Søby Brunkulslejerne com outro pesquisador
Antropologia da Universidade da Califórnia forasteiro, Henning Knudsen, micologista da
Santa Cruz e estava na Dinamarca como Niels Universidade de Copenhague.
Bohr Professor, liderando um projeto de
larga escala, o Aarhus University Research Em minha bagagem: estranhamento, dúvidas,
on the Anthropocene (AURA project – Living incertezas e muita curiosidade. Até então
in the Anthropocene), que juntava gentes da não tinha capturado as ideias de se trabalhar
antropologia, science studies, biologia e filo- antropologicamente com outras vidas não
sofia de diversas partes do mundo para tra- humanas, como fungos, levando-os a sério
tar colaborativamente da “arte de viver no como interlocutores, projeto um tanto incon-
Antropoceno” ou, mais especificamente, em cebível tanto para meu background biológico,

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como para o antropológico, essas duas cul- diferente, rememorando o momento em que
turas (SNOW, 1995) que se esforçam para se recebi o majestoso livro Friction[2] das mãos
manter bem apartadas e em extrair a vida e de Márnio Teixeira-Pinto, meu orientador, e
a agencialidade de outros seres que não os da leitura de In The Realm of the Diamond
humanos. Até então já tinha navegado critica- Queen[3], ambas majestosas obras etno-
mente por entre esse grande divisor por meio gráficas de Anna que, pelo impacto visceral
da etnoecologia, da etnologia indígena, ou que me atingiu, me motivaram na busca
tateando a virada ontológica e os escritos de em tê-la como coorientadora. Em ambos os
Tim Ingold, que, nesse último caso, influen- livros Anna já impunha seu estilo de narrativa
ciava meu atual projeto de pesquisa com etnográfica temperada com todo arsenal do
suas noções de conhecimento, movimento e pós-modernismo norte-americano com sua
habilidades e suas críticas às noções de pai- verve crítica pós-colonial, feminista e eco-
sagem e espaço para compreensão da vida política e, para além, já apontando para os
humana (INGOLD, 2015). O que estava se pro- conceitos que a levaram a desenvolver, junto
pondo ali, por Anna, era ir direto ao assunto, a tantos outros antropólogos e antropólogos,
sem intermediários, sem rodeios, sem porta o que viria a ser uma antropologia relaciona-
vozes humanos e sem tradutores, algo como lista e materialista, batizada posteriormente
um etnoecologia reversa, um olhar sensível como “etnografia multiespécie” (KIRKSEY;
para vidas de não humanos para poder perce- HELMREICH, 2010; HARAWAY, 2013).
ber suas práticas e efeitos nas vidas de seus
outros: uma confabulação micelial. Para autores como Eduardo Kohn, o pro-
jeto multiespécie na antropologia, com
Em uma hora e meia de viagem pela highway forte influência de Donna Haraway, é pro-
interagi pouco com minhas companheiras, fundamente ontológico, compondo com a
mantendo certo silêncio um tanto devido a chamada “ontologial turn”, pois insiste em
minha timidez, um tantinho ao meu inglês incluir outros seres em seus relatos antro-
ainda deficiente, mas muito mais pela aten- pológicos com a “esperança de imaginar e
ção dada ao caminho e a meus devaneios. encenar uma ética e política que possam
A forma da paisagem dinamarquesa era de abrir espaço para esses outros seres” (KOHN,
uma planície sem fim, entrecortada por pro- 2015, p. 316, tradução nossa). Creio que o
priedades pequenas, com muitas plantações mesmo seja pensado a partir de Eduardo
de batata e canola, entrecortada por poucas Viveiros de Castro (2019). Viveiros de Castro
manchas de floresta modificada e manejada, propôs os contornos de uma noção de “anar-
predominando pinheiros de diversos tipos. quismo ontológico”, como modo apropriado
Não havia como não notar as fazendas coope- de existência do Antropoceno. O anarquismo
rativas de porcos, um símbolo da nacionali- ontológico seria, então, segundo Viveiros de
dade, sendo muitas proprietárias de torres de Castro a tradução político-filosófica da estru-
energia eólica. Aglomerados de placas solares tura e função simbiogênica e simpoiética da
entre pequenas vilas davam o tom do esforço vida em sua absoluta imanência material
de produção de uma paisagem moderna (citando Donna Haraway); incluindo também
domesticada. Pensava em como cheguei ali o reconhecimento pós-capitalista da agên-
naquele mundo completamente estranho, cia da “vida não-orgânica” (citando Gilles

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Deleuze). Anarquismo ontológico, pluralismo hospedaria, por entre florestas de pinheiros


ontológico: creio que seja um caminho inte- que cresciam com fungos simbióticos e eram
ressante para pensarmos as contribuições manejadas pelos proprietários, plantios de
das chamadas etnografias multiespecies para batata e, por sorte, avistamos o movimento
o Antropoceno. de um grupo de veados vermelhos (red deer),
que recolonizavam aquelas paisagens do pós-
Fricção, colaboração, assemblage, mar- -Segunda Guerra Mundial. Estavam ali todos
gens, contaminação, distúrbio, manchas, os personagens desta história.
irregularidades, hibridismo, liberdade,
escalabillidade, indeterminação, história e
contingência: termos-chave de um projeto Perseguindo cogumelos
acadêmico, que viria redundar numa enga-
jamento etnográfico colaborativo, multissi- Ela viaja pelo mundo em busca de cogu-
tuado e internacionalista voltado para seguir melos matsutake e as pessoas que buscam
as linhas de vida de um fungo – o Matsutake por eles nas florestas de Oregon, Yunnan,
Lapônia e Japão, onde eles se tornaram
– e suas gentes, desde suas paisagens modi-
“os cogumelos mais valiosos do mundo”,
ficadas em Oregon (EUA), Japão, Finlândia valorizados como guloseimas e presentes
e China, aos fluxos dos circuitos globais de exclusivos. Dizem que depois Hiroshima
mercadorias, o Matsutake Worlds Research foi obliterado por uma bomba atômica, “o
Group: uma WebSpace para história de cole- primeiro ser vivo a emergir da paisagem
destruída era um cogumelo de matsu-
tores de cogumelos Matsutake, cientistas,
take” (The Guardian)[4].
comerciantes e manejadores de florestas. Foi
ali naquele momento que fiquei ciente de que
Me propus a escrever uma resenha do The
em breve, naquele mesmo ano, seria publi-
Mushroom at the end of the World. Como
cado por Tsing o livro objeto deste ensaio/
sabemos toda resenha é um gênero que se
resenha, o The Mushroom at the end of the
propõe a construção de relações entre as
World – on the posibility of life in capitalist
ruins, pela Princeton University Press. propriedades de uma obra analisada, descre-
vendo-a e enumerando aspectos considera-
Após mais de duas horas de viagem, um dos relevantes, conceitos centrais e pontos
atraso motivado por inúmeros erros de cami- críticos. Em suma, uma abordagem crítica
nho onde nos perdemos na complexa rede de uma obra literária ou acadêmica em que
viária interiorana, adentramos na região comentários de origem pessoal e julgamen-
central da Jutlândia e chegamos nessa parte tos do resenhador são benvindos contanto
industrial ou pós-industrial da Dinamarca, que sejam devidamente controlados. Porém
onde realizaríamos o campo. Já próximo ao me propus tecer essa resenha subvertendo
nosso destino uma placa na beira da estrada este gênero ao incorporar uma narrativa que
indicava o perigo de se trafegar nas margens mais se aproxima a um ensaio livre, diria até
de lignita, um carvão marrom acastanhado um ensaio etnográfico de uma prática cientí-
mostrando traços da estrutura vegetal, algo fica inspirada por uma experiência de viagem
intermediário entre carvão betuminoso e de campo, onde a autora da própria obra que
turfa. Seguimos ao Bed and Breakfest, nossa usei como lente, era partícipe da jornada

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a ser relatada: a construção de mundos em O que estávamos prestes a fazer ali numa
paisagens concretas. paisagem pós-industrial dinamarquesa, em
Søby Brunkulslejerne? Para melhor com-
preendermos essa expedição científica ines-
perada, basta seguirmos a proposta do livro,
publicado meses depois desta experiência.
Uma resposta inicial poderia ser “perseguir
cogumelos”, algo que micólogos já fazem em
seu cotidiano. Além de histórias de aromas,
sabores, alergias, lisergias e contaminações
ferozes, que histórias a mais nos ofertam
os fungos, esses fazedores-de-mundos incrí-
veis que transpõem membranas materiais e
arrombam conceitos pré-estabelecidos como
o de espécie e a divisão moderna entre vida
e não vida, mundo animal e vegetal. Para
Anna Tsing, trabalhar com os fungos pode nos
Figura 1 – Cogumelo em Søby Brunkulslejerne levar ao cruzamento da linha entre as ciên-
cias naturais e estudos culturais, não apenas
Confabulações miceliais é o nome que dou a através da crítica mas também através do
essa atividade em homenagem ao título do conhecimento construtor-de-mundos: uma
presente dossiê: o tecer uma história que, multiespécie storytelling como um dos seus
afastando suas premissas psiquiátricas duras produtos. O livro nos brinda com suas jorna-
(confabulação enquanto doença mental), se das entre cogumelos, árvores e pessoas para
baseie parcialmente em fatos e é também explorar indeterminações e as condições de
um produto da imaginação: uma verdade precariedade, que é a vida sem a promessa
parcial e familiar. Sigo assim os passos da de estabilidade no capitalismo:
própria autora da obra resenhada, que nos
inspira a contar histórias que parta da expe- […] a vida incontrolável dos fungos é uma
dádiva – e um guia- onde o mundo que
riência “to make any concept come to life” pensamos controlado falhou. Matsutake
(TSING, 2015, p. 66), com a esperança que pode nos catapultar em uma curiosidade
os leitores “vão experimentar alguma des- que parece-me ser o primeiro requeri-
mento da sobrevivência colaborativa em
sas ‘mushroom fever’ comigo nos capítulos tempos precários (TSING, 2015, p. 2, tra-
do porvir” (TSING, 2015, p. 75, tradução dução nossa).
nossa). O livro The Mushroom at the end
of the World será então um guia, um relato Fungos não são seres sem mundo ou com
de manchas experimentais que nos faz ver mundo empobrecido, mas são fazedores-
melhor, ou ver de outro jeito, a arte de viver -de-mundos em suas histórias entrelaçadas,
com e de perceber mundos em ebulição num e quem já viu ou leu sobre as contamina-
capitalismo incompleto: a arte de perceber ções fúngicas nas plantations históricas sabe
(art of noticing). do que estou falando (não se esqueçam da

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grande fome na Irlanda e do arruinamento natureza em um primeiro plano, o das rela-


dos seringais da Fordlândia). Seus tecidos ções ecológicas e a segunda, a da transfor-
miceliais contribuem, nas palavras de Tsing, mação capitalista da natureza, a ação do
para se contrapor ao iluminismo, a uma filo- Homem. A “terceira natureza” aponta para
sofia que afirma que a natureza é imponente a emergência de uma temporalidade poli-
e universal, mas ao mesmo tempo passiva e fônica, sem direcionalidade única, como
mecânica, fonte de recursos para a intencio- partículas virtuais em um campo quântico:
nalidade moral do Homem, no qual a domi- interações indeterminadas e contingentes na
nava. Diante da arrogância do imponente história, ecologia e economia entrelaçadas,
Homem de pés de barro, Tsing propõe nos capitalismo e distúrbio nas paisagens, sem
aliarmos com os contadores de histórias “não mais. Aqui chegamos num ponto de com-
ocidentais” contra estatais e contra moder- preender um pouco mais o que iríamos fazer
nos para sempre lembrarmos das atividades nas paisagens de Søby, as pistas metodológi-
de todos os seres, humanos ou não. cas expressas na própria organização do The
Mushroom.
Muitas coisas contribuíram para minar
tal divisão do trabalho, entre natureza e
O livro se organiza em vinte capítulos distri-
cultura e entre ciências. A domesticação
e domínio da natureza foi posto à prova buídos em quatro partes, sendo os dois do
pela crise ecológica e incertezas do por- meio os centrais do ponto de vista etnográfico
vir, em segundo lugar os emaranhados e ambos se dividem em falar “sobre o comér-
interespecíficos que eram vistos como
cio” e “sobre ecologia”. Embora a autora se
material de fabulações primitivas passou
a ser levada a sério nas discussões entre recuse a reduzir a economia ou a ecologia à
biólogos e ecólogos, que mostraram a outra, para ela haveria uma conexão entre
impossibilidade de se pensar a vida sem economia e ambiente que parece impor-
a interação entre os viventes […] E por
tante apresentar de antemão: a história da
fim, a turbulenta presença de mulheres e
homens críticos que passaram a levantar concentração humana de riqueza através da
os dedos em riste e questionar que o cla- produção de seres humanos e não-humanos
mor da masculinidade cristã do Homem, em recursos para investimento. Segue daí as
que separa Homem da Natureza estava
seguintes questões e argumentos. Como o
minado, e se não condenado a um final
não tão honroso (TSING, 2015, p. VII, tra- capitalismo pode parecer sem assumir a ideia
dução nossa). de progresso? Pode parecer irregular sendo
a concentração de riqueza possível porque o
Sem Man and Nature, todas as criaturas valor produzido em remendos não planejados
podem voltar a ter vida. Tsing segue os cogu- é apropriado para o capital? O capitalismo é
melos oferecendo estas histórias em capítu- tudo menos a racionalidade controlável e
los que se abrem para assembleias em aberto, universal em que se autocongratula. Sobre
intentos de explorar contingências dos cogu- ecologia: novos desenvolvimentos tornam
melos que explodem após as chuvas. O livro possível pensar de forma bastante diferente,
oferece uma “terceira natureza” (TSING, introduzindo interações interespécies e his-
2015, p. viii, tradução nossa), que rompa tórias de perturbação nas paisagens. Neste
com a divisão que aponta para uma primeira tempo de expectativas inflamadas, Anna

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procura por ecologias menores, baseadas em antropólogos com criações alternativas


perturbações, nas quais muitas espécies às do mundo. Para muitos antropólogos cul-
turais, a ciência é melhor vista como um
vezes convivem sem harmonia ou conquista espantalho contra o qual se deve explorar
(TSING, 2015, p. 5). Siga a convivência! alternativas, como as práticas indígenas.
Misturar formas científicas e vernaculares
Confabule com os micélios. Mundos que emer- de evidências convida a acusações de se
curvar à ciência. No entanto, isso pres-
gem com os fungos e seus companheiros são supõe uma ciência monolítica que digere
manchas diferenciais materialmente visíveis, todas as práticas em uma única agenda.
são marcas de linhas de vida de humanos e Em vez disso, ofereço histórias construí-
outros seres: em outras palavras, paisagem. das por meio de práticas em camadas e
díspares de conhecer e ser. Se os com-
Contar histórias sobre paisagens no Antropo- ponentes colidirem um com o outro, isso
ceno irregular nos faria sair da sonolência de apenas aumentará o que essas histórias
que não estamos aprendendo nada de novo podem fazer. No coração das práticas que
como resultado da infeliz construção de um defendo estão as artes da etnografia e da
história natural. A nova aliança que pro-
muro que separa as humanidades das ciên- ponho baseia-se em compromissos com a
cias ditas duras. Como antídoto ao muro e observação e o trabalho de campo – e o
seus aparatos intelectuais e suas domestica- que chamo de arte de perceber (TSING,
ções que drenam sensibilidades Anna desafia 2015, p. 159, tradução nossa).
a nós, os seus leitores, “a perceber conceitos
e métodos dentro das histórias da paisagem” Histórias sobre paisagens devastadas, distúr-
(TSING, 2015, p. 159, tradução nossa). Pai- bios de onde emergem vidas entrelaçadas a
sagens são protagonista de nossas histórias, outras vidas em suas precariedades, fugindo
diria Anna, seguindo aqui de mãos dadas com do controle humano foi o que Tsing apren-
o escritor (e também antropólogo) Amitav deu com seus interlocutores em Satoyama,
Gosh quando este descreveu as forças vivas no Japão, seus “professores excepcionais”,
nos mangues dos Sunderbans na India, em que revitalizaram sua compreensão de como
Maré Voraz[5]. Paisagens perturbadas pelo a perturbação poderia iniciar uma história da
homem são espaços ideais para a observação vida da floresta. Precariedade é uma pala-
humanista e naturalista. Para Tsing, precisa- vra-chave e o capitalismo eleva a precari-
mos conhecer as histórias que os humanos zação de mundos humanos e não humanos a
fizeram nesses lugares e as histórias de parti- quinta potência. Todavia, viver com e na pre-
cipantes não humanos. cariedade exige mais do que censurar quem
nos colocou aqui: “Podemos olhar em volta
Contar histórias de paisagem requer para perceber esse estranho mundo novo e
conhecer os habitantes da paisagem, podemos estender nossa imaginação para
humanos e não humanos. Isso não é fácil, compreender seus contornos” (TSING, 2015,
e faz sentido para mim usar todas as práti-
cas de aprendizado nas quais posso pensar, pp. 3-4, tradução nossa), e é aqui que os
incluindo nossas formas combinadas de cogumelos ajudam. Seguindo a disposição do
atenção plena, mitos e contos, práticas de Matsutake em emergir em paisagens devas-
sustento, arquivos, relatórios científicos e tadas (TSING, 2014) ou de assemblages[6] de
experimentos. Mas essa confusão cria sus-
peitas – particularmente, de fato, com os fungos e pinheiros nas paisagens pós-indus-
aliados que eu almejei para alcançar os triais precarizadas da Jutlândia, “podemos

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explorar a ruína que se tornou nosso lar cole- Deixamos o nosso veículo no início de uma
tivo” (TSING, 2015, pp.3-4, tradução nossa). pequena trilha. Começamos a andar por
Perseguir os cogumelos num fim de tarde nos entre pinheiros (Pinus contorta) até chegar
leva para além das experiências gustativas num descampado onde avistamos uma estru-
ou alucinatórias, nos catapulta às possibili- tura montada por um proprietário como local
dades de coexistência dentro da perturbação de espera para caça do veado vermelho, algo
ambiental, nos mostra um tipo de sobrevi- como um casebre de madeira. Cerca de cem
vência colaborativa: viver com, confabula- metros um bloco de sal vermelho suspenso
ções miceliais: e posicionado num local que, ao atrair os
veados, os colocavam na mira para um tiro
Em cada caso, eu me vejo cercada de certeiro. Por de trás dos pinheiros podíamos
remendos, isto é, um mosaico de monta-
gens abertas de formas de vidas emara-
ver um lago cercado por dunas de lama acin-
nhadas, com cada uma delas se abrindo zentada. Nosso primeiro local a ser visitado
em um mosaico de ritmos temporais e se chamava Three Lakes.
arcos espaciais. Argumento que apenas
uma apreciação da precariedade atual
como uma condição terrestre nos permite
Em nosso primeiro trabalho de campo, quando
perceber isso – a situação do nosso mundo. paramos o carro e começamos a andar nas
Desde quando a análise autoritária requer trilhas, senti meu primeiro estranhamento.
pressupostos de crescimento, os espe- Estranhamento não é necessariamente uma
cialistas não veem a heterogeneidade de
espaço e tempo, mesmo onde isso é óbvio
situação negativa para a prática antropoló-
para os participantes e observadores gica, é o fundamento da disciplina. Para nos
comuns. No entanto, as teorias da hete- colocarmos no encontro com a diferença
rogeneidade ainda estão em sua infância. devemos ser capazes de dialogar e apren-
Para apreciar a imprevisibilidade irregular
associada à nossa condição atual, precisa-
der com essa experiência, tornar o estranho
mos reabrir nossa imaginação. O objetivo familiar, abordar o exercício da tradução
deste livro é ajudar nesse processo – com e da compreensão crítica e não fugir dela.
cogumelos (TSING, 2015, p. 4-5, tradução Todavia, a paisagem era realmente estranha
nossa).
para alguém que, como eu, só tinha traba-
lhado nas paisagens tropicais e só conhecia
as florestas temperadas pelos livros. E em
Aroma metálico Søby Brunkulslejerne a paisagem não era
Vou andar, e tenho realmente sorte, eu
uma floresta bem temperada como nas foto-
encontrei cogumelos. Cogumelos me grafias que anteriormente tive acesso nos
puxam de volta para os meus sentidos, tempos da escola. Dunas cheias de pedaços
não apenas – como flores – através de suas de metais e carvão marrom, misturados com
tumultuosas cores e cheiros, mas porque
eles surgem inesperadamente, lembran-
árvores exóticas e outras espécies desconhe-
do-me da boa sorte de estar acontecendo cidas para mim. No chão fezes de veados,
aqui. Então eu sei que ainda há prazeres junto com manchas de grama indicavam que
em meio aos terrores da indeterminação os caçadores estavam ativos naquela época,
(TSING, 2015, p. 1, tradução nossa).
indicando uma prática de gestão para a caça.
O aroma era metálico.

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de equipamentos industriais enferrujados,


em uma geologia instável que favoreceu a
proliferação do encontro entre o pinheiro
exótico e os fungos e sua dispersão domi-
nante. A palavra para isso, segundo Tsing é:
alienação. Por meio da alienação, seja pela
entrada do carvão do capitalismo europeu em
Søby Brunkulslejerne, assim como nas histó-
rias dos circuitos globais do Matsutake, pes-
soas (trabalhadores das minas e coletores de
cogumelos) e coisas se tornam ativos móveis,
eles podem ser removidos de seu mundo da
vida para ser trocados por outros ativos de
Figura 2 – Dunas, pinheiros, águas ácidas e outros mundos da vida. A alienação bloqueia
cogumelos nas ruínas de Søby Brunkulslejerne o entrelaçamento do espaço vital. Para Tsing,
o sonho da alienação inspira a modificação
Direcionamo-nos a um local íngreme numa da paisagem na qual apenas um ativo inde-
duna endurecida e instável na beira do lago pendente é importante; tudo o mais se torna
onde Anna e Elaine já realizavam pesquisas. ervas daninhas ou desperdício. Quando seu
Os cogumelos, que floresceram no outono do ativo singular não pode mais ser produzido,
ano anterior não estavam presentes. Dire- carvão esgotou, árvores perderam valor ou
cionamo-nos para alguns pinheiros e come- se extinguiram ou cogumelos não mais apa-
çamos a cavar com nossas pequenas pás na recem, um lugar pode ser abandonado e o
busca das raízes infectadas com ectomicor- processo se inicia em outro. Assim, a simplifi-
rizas, um fungo simbionte dessas espécies cação pela alienação cria espaços abandona-
de pinheiros. Pedaços de carvão e de metal dos pela produção de ativos: simplesmente
saiam junto com a terra. Ali mesmo enquanto ruínas, esse é seu nome. Bastava caminhar
Elaine desenhava a arquitetura da paisagem pelas dunas, o que fiz, para percebermos as
e tirava fotos, Anna retirava alguns filamen- ruínas em nossos pés.
tos de micorrizas e observava ao olho nu e
olhando num pequeno microscópio portá- O que aconteceu com a vida na esteira destas
til vocalizava com deslumbramento a cor e ruínas industriais? Nosso campo era uma mina
forma da micorriza antes de depositar num de carvão marrom abandonada no centro da
saco plástico para posterior análise genética Dinamarca, Søby Brunkulslejer, ou “Søby
e morfológica. Brown Coal”. Søby foi o principal local de
extração de carvão marrom durante a Segunda
Foi ali acocorados e sujos de lama que Anna Guerra Mundial, fornecendo um terço da pro-
me contou a história de como aquela pai- dução nacional entre 1940 e 1954, com pico
sagem foi formada, com lagos de acidez de produção durante a ocupação alemã na
extrema oriundos da exploração do carvão, Dinamarca. Durante os anos de mineração,
depósitos de resíduos formando dunas com- capitalistas, trabalhadores manuais, joga-
posta por areia endurecida, carvão e restos dores e foras-da-lei se encontraram nesse

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centro industrial, criando uma paisagem cul- de mineração foram solicitadas a depositar
tural “danosa”, um “Klondike” dinamarquês fundos para a reabilitação da área e as árvo-
(BUBANDT; TSING, 2018). Na década de 1970, res foram plantadas – primeiro pela Danish
o local, já abandonado, de 1.100 hectares Heath Society e, mais tarde, por proprietá-
havia se transformado em uma série de bura- rios privados. Na década de 1970, a Dina-
cos no solo, cercados pela areia escavada em marca participou do esforço de replantio em
grandes montes e fileiras, a água, uma vez escala industrial de coníferas exóticas e de
bombeada, retornou e a estrutura do terreno crescimento rápido que possuíam silvicul-
mudou. Os buracos foram sendo preenchi- tores em grande parte do mundo. Pinheiros
dos com as águas ácidas dos lençóis freáticos escoceses (P. sylvestris, origem Eurasiana) e
formada pelas argilas expostas da pirita, tor- pinheiro lodgepole (P. contorta, origem ame-
nando-se lagos (ver BUBANDT; TSING, 2018). ricana) foram plantados, muitas vezes em
Mathilde Højrup e Heather Anne Swanson fileiras alternadas. Ambas são espécies pio-
(2018) oferecem uma visão importante sobre neiras de crescimento rápido e ambas cres-
Søby: o próprio solo se move sob as máqui- ceram bem apesar da areia ácida, mas suas
nas. As minas de carvão deixaram uma com- trajetórias rapidamente divergiram. Pinus
binação instável de areia e água subterrânea, contorta, se tornou erva daninha e, em pro-
em que deslizamentos de terra são comuns e liferação contaminante ocuparam o terreno
areia movediça engole homens e máquinas. (GAN; TSING; SULLIVAN, 2018). A dissemi-
A escavação de carvão trouxe a geologia nação de árvores moldou o habitat, abrindo
irrevogavelmente à vida em Søby (BUBANDT; unwelts para os animais. Quando a cobertura
TSING, 2018). Para alguns membros do AURA de árvores estava disponível, os veados ver-
aquele lugar era uma ruína considerável, um melhos se espalharam por Søby abrindo uma
lugar para considerar o que Natalia Brichet, nova economia de fronteira da caça. É bom
Frida Hastrup e Felix Riede (2017) denomi- ressaltar que veados de movimento livre
naram de “apocalipse moderado”, ou seja, desapareceram no século XVIII na Dinamarca,
“o lado mais suave dos terrores do Antropo- deixando apenas aqueles em parques cerca-
ceno”. Søby é uma mancha do Antropoceno dos e controlados (BUBANDT; TSING, 2018).
fragmentado (patchy anthropocene) que No entanto, no final do século XX, os fugi-
questiona a própria ideia de Antropoceno tivos voltaram para o campo. Num processo
como um tempo que marca o efeito global da de retroalimentação com a economia da caça
ação dos Humanos – também visto como um que permitia que o pinheiro continuasse se
universal homogêneo – na Terra, para propor proliferando, o que por sua vez encorajou o
jogar com o Antropoceno enquanto manchas aumento da população de veados. Seguindo
contingentes dos encontros entre humanos e os passos dos veados reaparecem os lobos,
não humanos. depois de mais de dois séculos de seu desapa-
recimento nos solos do reino da Dinamarca.
Søby foi transformado num terreno árido e
não cultivado onde só cresciam plantas ras- Notável percepção de Anna e da equipe do
teiras e silvestres, em uma paisagem indus- AURA. Ao explorarmos os espaços de aban-
trial arruinada de dunas de areia resultante dono, poderíamos nos perguntar sobre a
da mineração. A partir de 1958, as empresas tolerância dos humanos ao empobrecimento

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biológico e ao envenenamento químico – e, Tsing. Esta história começa após a hecatombe


também ficarmos espantados com a vida que da bomba atômica de Hiroshima, na Segunda
não apenas sobreviveu, mas que até flores- Guerra Mundial: o pós-Guerra, o tempo da
ceu em infraestruturas arruinadas (BUBANDT; Grande Aceleração antropocênica, onde se
TSING, 2018). Mas como cotejar tal realidade incrementa o mercado global de Matsutake.
com a dos Matsutake. O que os fungos têm a Este cogumelo é uma guloseima no Japão, e
ver com a história de Søby e como conecto sua história revela a história recente deste
com as linhas de vida dos Matsutake que flo- país: a expansão dos centros industriais, o
rescem do Oregon ao Japão, por exemplo? incremento das taxas de desmatamento,
Como tecer histórias comuns? Em Søby cogu- bem como a urbanização contribuíram para
melos não adentram em circuitos comerciais o abandono da vida rural. Com as florestas
e nem nas casas para o consumo familiar, são japonesas de Matsutake reduzidas, estes
pouco conhecidos por moradores locais que passam a ser coletados em outros lugares,
passam muitas vezes despercebidos por eles. passam a ser valorizados no mercado interna-
Por outro lado, as peculiaridades da história cional, tornando-se o cogumelo mais caro do
da Søby nos permite focar no diálogo entre mundo. Segundo nos conta Tsing, os huma-
planos gestão disciplinados, indeterminação nos não conseguem cultivar o Matsutake, o
e proliferação de associações entre pinheiros surgimento deste cogumelo é espontâneo e
e fungos. Aqui temos outro ponto de conexão está intimamente ligado ao manejo de baixa
para pensar a partir das manchas antropocê- escala das florestas, da presença de seus
nicas numa comparação produtiva em cone- pinheiros companheiros e a criação de con-
xões parcial (STRATHERN, 2005) por entre dições ótimas para seu florescimento. Muito
desmatamento e florestas fechadas não são a
feral ecologies: confabulações miceliais, a
solução, essa é a lição de Satoyama.
palavra-chave é weed, erva daninha.

As paisagens globais de hoje estão reple- Em 1989, algo mais havia começado nas flo-
tas desse tipo de ruína. Ainda assim, esses restas de transição do Oregon segundo Tsing:
lugares podem ser animados apesar dos o comércio de cogumelos “selvagens”. O
anúncios de sua morte; campos de ativos desastre de Chernobyl, em 1986, contaminou
abandonados às vezes geram novas vidas
multiespécies e multiculturais. Em um
os cogumelos da Europa, e os comerciantes
estado global de precariedade, não temos chegaram ao noroeste do Pacífico em busca
outras opções além de procurar vida nesta de suprimentos. Segundo Tsing, quando o
ruína (TSING, 2015, p. 6, tradução nossa). Japão começou a importar Matsutake a pre-
ços altos o comércio foi à loucura e milhares
Em The Mushroom at the end of the World, de pessoas – refugiados indochineses desem-
as relações miceliais entre fungos e pinheiros pregados, veteranos brancos incapacitados,
ganham contornos em paisagens modificadas nativos americanos e latinos indocumenta-
por entre as fissuras e pontos da cadeia de dos – adentraram nas florestas do noroeste
commodities Matsutake do Oregon ao Japão. do Pacífico para obter o novo “ouro branco”,
Aqui cogumelos não são “invisíveis”, mas desafiando leis ambientais conservacionistas,
entram na história como dádivas e mercado- onde a situação precária de trabalho e ima-
rias. Sigam as trilhas da parte II do livro de gens de uma guerra contínua em nome de um

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valor – central para se entender o forragea- relacionais que enfatizam como o Matsutake
mento e comércio de Matsutake em Oregon são incompletamente mercantilizados. Uma
– a experiência da “liberdade”. verdade tanto para o carvão em Søby quanto
para o mercado de Matsutake.
Em Oregon, continua Tsing, Matsutake ofe-
recia seu aroma de outono para forrageado- Os interlocutores de Tsing descrevem os
res que ali desenvolviam práticas e saberes cogumelos como “troféus da liberdade”
sobre a florestas, tornando-a familiar. Flores- em vez de mercadorias, embora Matsutake
tas que passaram por desmatamento intenso se transformem em ativos capitalistas ao
dos grandes pinheiros no início do século XX serem colocados num navio ao Japão (TSING,
e depois, após virar área de conservação 2015, p. 62). Mesmo no Japão, Tsing des-
ambiental, ter a prática de supressão de creve o fluxo de Matsutake através da lógica
incêndios como maior resultado. Mas numa da dádiva. Tsing usa essas formas pericapi-
ecologia indomável, abetos e pinheiros esta- talistas – não capitalistas, mas não fora do
vam florescendo com a exclusão do fogo, se capitalismo – para construir suas ideias em
espalhando em moitas cada vez mais densas torno do “capitalismo de salvação” (salvage
e inflamáveis, exigindo mais manejo pelo capitalism): o processo de acumulação capi-
serviço florestal. “Ponderosa, abeto e lodge- talista que se aproveita do valor produzido
pole, cada um encontrando vida através da sem o controle capitalista. Tsing argumenta
perturbação humana, são agora criaturas de que o salvamento é parte integrante do
diversidade contaminada”. Surpreendente- capitalismo: “uma característica de como
mente, nesta paisagem industrial arruinada, o capitalismo funciona” (TSING, 2015, p.
surgiu um novo valor: o Matsutake. 63, tradução nossa) em uma condição geral
de precariedade. Confabulações miceliais:
Na etnografia de Tsing se nota o capitalismo cogumelos são particularmente úteis como
galgando espaço através da diversidade eco- uma metáfora aqui, as acrobacias micorrízi-
nômica traduzida por uma cadeia sucessiva cas escondidas que tornam possível o fruto da
de dádiva e mercadoria. O Matsutake forra- mercantilização exemplificam o salvamento,
geado nas margens das florestas de Oregon onde o esforço de todos os personagens é
por etnias de emigrados do sul da Ásia ou por para ditar os ritmos do salvamento (salvage
veteranos brancos da guerra do Vietnã, ven- rhythms), entrelaçando-se ao incontrolável
didos ou consumidos em performances peri- modo de vida do cogumelo – indeterminação,
capitalistas tornam-se objeto impessoal do coordenação, precariedade e contingência, o
inventário capitalista quando são enviados ao sonho modernista da mecanização, da quan-
Japão. Essa tradução de valor é o problema tificação e do progresso não são suficientes
central de muitas cadeias de suprimentos nessa história.
globais, como diria Tsing, onde o capitalismo
depende das margens, das periferias não Nossa experiência em Søby é refletido no livro
capitalistas. Nesses circuitos de valor o modo de Anna. A inseparabilidade entre economia
de vida dos forrageadores, atravessadores e e paisagem explode junto aos cogumelos que
comerciantes são atrelados a circunstâncias habitam as ruínas junto a suas companhias.

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Ali acocorados nas dunas de Three Lakes, uma artista e um micólogo taxonomista e
cavando a lama metálica, observando micor- geneticista para caminhar, conversar e cavar
rizas que conectam os simbiontes fungos o solo. Um encontro colaborativo onde a
com as raízes do Pinus contorta, ainda não ciência, como diria Tsing, só pode ser enten-
percebia como tal conexão poderia nos dida como uma prática de tradução por
levar a histórias assombrosas sobre mundos entre a diferença. Estávamos andando sem
em tensão. Os pinheiros, com seus parcei- um caminho preciso, em nosso “transecto”
ros fúngicos, frequentemente florescem em passamos por caminhos diferentes rumo ao
paisagens modificadas por humanos, onde Desertum Arboretum. Entrando por essas tri-
trabalham juntos para aproveitar espaços lhas encontramos uma cerca e, através dela,
abertos e solos minerais expostos. Humanos, um lixão onde funcionava uma indústria de
pinheiros e fungos confabulam em arranjos bioenergia. O que eu poderia pensar sobre
de vida simultâneos para si e para os outros: esse lugar que eu ainda não conhecia bem.
mundos multiespecíficos. A potência do The
Mushroom at the End of the World, foi jus- Henning, com seu cesto de coletor de cogu-
tamente os chamar atenção de que o con- melos, era nosso hábil guia e contador de
ceito moderno de humano como fazedor de histórias. Eu estava tão interessado e exci-
mundo não é a única possibilidade: “estamos tado em conhecer e ouvir histórias sobre
cercados por muitos projetos de criação de fungos e suas ocorrências simbióticas através
mundo, humanos e não humanos, que emer- deste renomado biólogo escandinavo. Não só
gem de atividades práticas de criação de pela vivência e aprendizados que tive sobre
vidas” (TSING, 2015, p. 2, tradução nossa). identificação de cogumelos, mas sobretudo
pelo diálogo com alguém que têm relações
mais profundas com a paisagem em que
Dançando com os cogumelos estávamos. Durante nosso caminhar juntos,
Henning associava pequenas montanhas de
Andar atentamente por uma floresta, pedregulhos e plantas que indicavam a histó-
mesmo que danificada, é ser apanhado
pela abundância da vida: antiga e nova;
ria da fundação da mina e a casa dos traba-
sob os pés e alcançando a luz. Mas o que se lhadores durante a Segunda Guerra Mundial;
diz da vida na floresta? Podemos começar em curtas paradas nos era exposto algumas
procurando por drama e aventura além plantas, suas flores e suas relações com
das atividades humanas. No entanto, não
estamos acostumados a ler histórias sem
formigas, usos medicinais, e conhecimen-
heróis humanos (TSING, 2015, p. 155, tra- tos botânicos sobre as mesmas. No caminho
dução nossa). encontramos dois senhores que nos disseram
que pescavam na lagoa, algo que achei que
Uma de nossas melhores experiências de seria impossível naquelas águas tão ácidas e
nossa viagem foi no segundo dia do trabalho contaminadas. Fico imaginando como seria
de campo interdisciplinar, agora com a pre- caminhar com estas pessoas tão animadas,
sença do biólogo Henning Knudsen. Tivemos que paisagens emergiriam desta relação.
algo como um encontro entre antropólogos,

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geoquímica, hidrologia, vida vegetal. O lugar


do fungo é plano e aberto a plena luz do sol.
Ela nos mostrou as micorrizas. Elaine pegou
novamente o pequeno microscópio e come-
çamos a observar as estruturas micorrízicas.
Estávamos tentando identificar as espécies
de cogumelo, associando a árvore e fizemos
desenhos e anotações onde eles estavam, e
finalmente nomeando as formas das micorri-
zas e tiramos fotos.

Temos nosso segundo encontro, com o


Figura 3 – Caminhando na paisagem ressurgente
em Søby Brunkulslejerne
mesmo fungo companheiro, um dos nossos
anfitriões. Este pequeno amigo vive também
“infectado”, como diria Henning, na raiz
Todos iam observando o chão nas bordas da
de um pinheiro. Mas a sua casa é um tanto
estrada e em alguns ambientes específicos,
diferente. A terra continua arenosa, mas um
como alagados, monte de troncos abandona-
pouco mais escura, creio que devido a maté-
dos, áreas abertas e areial. Em dois momentos
ria orgânica depositada ou, como segunda
encontramos cogumelos. Quando cogumelos
hipótese, devido a área ser de alagamento
eram encontrados, Henning nos convidava a
e a cor ser influência da água ácida. Sua
observá-lo. Em uma dessas dunas ocupadas
casa também é num relevo plano e próximo
por árvores paramos. Tanto ela como Elaine a lagoa, é assolada pelos raios solares, que
estavam muito animadas. Elas apontavam devem ajudar o crescimento mútuo, tanto
para os lugares onde meses antes eles teriam seu quanto do seu simbionte, o pinheiro. O
encontrado muitos cogumelos. Agora eram nosso terceiro encontro foi novamente pró-
poucos, era primavera. Anna procurou por ximo ao Three Lakes e envolveu três curtos
alguns fungos que foram colocados no chão encontros com pequeninos pinheiros que
e começamos a cavar a terra, ficando com- foram “desalojado” por nós para virar histó-
pletamente enlameados. Vividamente ani- ria. O primeiro vivia próximo ao lago, num
mada, Anna pegou as raízes do chão e soltou terreno também arenoso, na base de uma
um “uau, isso é incrível”: Inocybe era o seu ladeira íngreme, mas um pouco mais som-
nome. Muito animada começa a cavar para breado devido a presença de uma árvore mais
ver suas micorrizas. Inocybe ocorre em sua grandinha. Anna observa suas micorrizas, e o
coordenação de ação com um pinheiro. O solo guarda na sacola. O outro cogumelo vivia na
é arenoso e de cor branca, um tanto compac- ladeira, como sempre, solos de areia, que-
tado devido às chuvas e a sua própria textura bradiço. Sua vida deveria ser muito incerta,
mais fina. Creio que seja um arenoso que pois viver num sulco cavado por intenso pro-
não se explica apenas por fatores de ordem cessos de lixiviação não deve ser fácil. Sua
geológica, mas sim pela inserção humana em micorriza o ajudava no crescimento e Anna e
sua produção. A areia é produtos de intera- Elaine ficam em êxtase ao ver que a micor-
ções históricas do processo de mineração, riza apresenta espécies diferentes, de cor

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branca. Vamos ao topo e encontramos outra ao Antropoceno, as ervas daninhas são


micorriza, simbionte de outro pequenino um golpe de sorte. Sem ervas daninhas,
as paisagens abandonadas pela indústria
pinheiro, ambos habitantes da parte plana permaneceriam estéreis (GAN; TSING;
do topo, entre as árvores de maior estatura, 2015, p. 1, tradução nossa).
que lhes ofertam sombra. Habitam um chão
arenoso, de cor escura com certeza devido Cogumelos Matsutake em associação com
a presença de matéria orgânica das árvo- pinheiros são aromas que se perpetuam na
res existentes, presença de insetos, outros cultura gastronômica japonesa e nas flores-
fungos, madeira apodrecida, dentre outros, tas manejadas em diversas partes do mundo.
porém o solo é mais estável e coberto com Não são vistos como weeds, mas como um
vegetação do que os anteriores. hóspede desejado mas incontrolável. Em The
Mushroom at the End of the World, os cogu-
Fazíamos pequenas perguntas para sermos melos são “elusivos e enigmático e segui-los
capazes de resolvê-la: que assembleias de levavam Tsing a “um passeio selvagem – ultra-
espécies emergem após a mineração – neste passando todos os limites” (TSING, 2015, p.
caso, a mineração de carvão marrom em uma 138, tradução nossa):
antiga paisagem em ruínas? Muitos antigos
residentes, humanos e não humanos, desa- Cogumelos são os corpos frutíferos dos
pareceram da região. Alguns novos foram fungos. Os fungos são diversos e muitas
vezes flexíveis e vivem em muitos luga-
importados ou movidos em si mesmos. O res, desde correntes oceânicas a unhas
mais bem-sucedido reproduzido e prolife- dos pés. Mas muitos fungos vivem no solo,
rado. Podemos chamar essa coalizão conta- onde filamentos semelhantes a fios, cha-
minante entre fungos e pinheiros como ervas mados de hifas, se espalham em leques
e se enroscam como cordas através da
daninhas (weed) – organismos que se apro- sujeira. Se você pudesse tornar o solo
veitam da perturbação humana para dominar líquido e transparente e entrar no solo,
as assembleias ecológicas emergentes?. As você se encontraria cercado por redes
ervas daninhas são arquitetos; eles moldam a de hifas fúngicas. Siga os fungos por den-
tro daquela cidade subterrânea, e você
paisagem. Alguns provocam mais distúrbios, encontrará os prazeres estranhos e varia-
reajustando continuamente as ecologias dos da vida entre espécies (TSING, 2015,
locais. Os humanos são esse tipo de erva, p. 138, tradução nossa).
mas não os únicos. Em Søby Brunkulslejerne,
a antiga mina de carvão marrom que forma o Fungos são construtores de mundos, criando
tema deste conjunto de papéis, as três espé- ambientes para si e para outros. Matsutake e
cies de ervas daninhas não microbianas mais pinheiros são acontecimentos, encontros que
agressivas são os humanos, os veados verme- fazem diferença, em outras palavras conta-
lhos e os pinheiros lodgepólicos (GAN; TSING; minação. Segundo Tsing, estamos contami-
SULLIVAN, 2018). nados pelos nossos encontros: “eles mudam
quem somos enquanto abrimos caminho para
as ervas daninhas, que excedem a gestão os outros” (TSING, 2015, p. 28, tradução
humana, não são inerentemente ruins nem
boas. Para qualquer um que espera que
nossa). À medida que a contaminação muda
parte da diversidade e integridade ecoló- os projetos de criação de mundos, mundos
gica dos ecossistemas da Terra sobrevivam mútuos – e novas direções – podem emergir.

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Para Tsing, todo mundo carrega uma história as estratégias de expansão e conquista
de indivíduos implacáveis, precisamos
de contaminação, sendo que a pureza não é
buscar histórias que se desenvolvam por
uma opção. Em seu livro ela argumenta que meio da contaminação. Assim, como uma
viver e permanecer vivo – para todas as espé- reunião pode se tornar um “aconteci-
cies – requer colaborações habitáveis, o que mento”. Colaboração é trabalho através
da diferença, mas esta não é a diversi-
significa trabalhar com a diferença, o que dade inocente de trilhas evolutivas auto-
leva à contaminação multiespecífica. Sem contidas. A evolução de nossos “eus” já
colaborações, todos nós morremos. está poluída por histórias de encontros;
estamos misturados com os outros antes
mesmo de começarmos qualquer nova
colaboração. Pior ainda, estamos mis-
turados nos projetos que mais nos pre-
judicam. A diversidade que nos permite
entrar em colaborações emerge de histó-
rias de extermínio, imperialismo e todo
o resto. Contaminação faz diversidade
(TSING, 2015, p. 29, tradução nossa).

Contaminações multiespecíficas proporcio-


nam colaborações entre fungos e pinheiros
na conformação não intencional de paisagens
pós-industriais, onde “dançam” cogumelos e
forrageadores. O Matsutake agradece, essa
é a história da parte três do livro de Tsing.
Figura 4 – Filamentos com Ectomicorrizas
Se se deseja Matsutake no Japão, devemos
esperar a existência de pinheiros e se que-
A perspectiva liberal do indivíduo construtor
remos pinheiros, devemos ter distúrbios
de mundos não tem vez nessa história – we
humanos de baixa intensidade. Compreender
never been individuals diria Scott Gilbert, Jan a história das múltiplas vidas em interação,
Sapp e Alfred I. Tauber (2012) e decretemos o suas práticas ressurgentes em ambientes
fim do um contra todos. Para Tsing, os estu- arruinados ou manejados – do voo dos esporos
diosos têm imaginado a sobrevivência como à dança dos forrageadores asiáticos em Ore-
o avanço dos interesses individuais (espécies, gon – nos faz perceber que paisagens são, em
populações, organismos ou genes). Todavia termos gerais, produtos de design não inten-
se a sobrevivência sempre envolve outros, cionais (em termos da ação humana), uma
ela também está necessariamente sujeita à sobreposição de emaranhados de atividades
indeterminação das transformações de si e de múltiplas linhas de vidas humanos ou não
dos outros. Nós mudamos através de nossas (Tsing usa aqui Tim Ingold), onde nenhuma
colaborações dentro e através das espécies. das partes possui total controle do processo.
Como locais de dramas mais-que-humanos,
A coisa importante para a vida na terra
acontece nessas transformações, não
paisagens podem, nas palavras de Tsing, ser
nas árvores de decisão de indivíduos “uma ferramenta radical para descentrar a
independentes. Em vez de ver apenas arrogância humana”.

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Paisagens não são cenários para a ação Søby, cavando e seguindo filamentos que
histórica: elas são ativas por si mesma. conectavam fungos e árvores, sem neces-
Observando paisagens em formação, os
humanos se juntam a outros seres vivos sariamente termos um porta-voz da língua
na formação de mundos. Matsutake e latina ou para informar ontologias outras,
pinho não crescem apenas nas flores- o que para mim continua sendo algo impor-
tas; eles fazem florestas. As florestas de tante a se fazer.
Matsutake são encontros que constroem
e transformam paisagens. Esta parte do
livro começa com a perturbação – e faço Lá, diante dos meus olhos, estavam antropó-
da perturbação um começo, isto é, uma logas fazendo biologia. Ou elas faziam outra
abertura para a ação. A perturbação rea- coisa? Obviamente perguntei a Anna quando
linha as possibilidades do encontro trans-
ela já estava com lama em todo o corpo e
formativo. Os remendos da paisagem
emergem da perturbação. Assim, a preca- cavando outro cogumelo. Ela olhou para mim
riedade é encenada em uma sociabilidade e disse apenas “antropologia, veja bem…”,
mais do que humana (TSING, 2015, p. 152, “por meio de um olhar desinteressado, aberto
tradução nossa). ao imponderável do encontro e de descrições
críticas, observando as relações sociais entre
diferentes espécies e descrevendo relações
Patchy Anthropocene: uma conclusão do ponto de vista da antropologia”; indo para
o campo sem formulações preconcebidas,
Que situação estranha. Eu era antropólogo, abertas à estranheza e às questões colocadas
com graduação e mestrado na área bioló- pelos interlocutores e descrevendo o fazer
gica, caminhando com antropólogas com e desfazer das vidas em interação. A essa
um enorme interesse, desenvoltura e expe- abordagem antropológica, poderíamos, disse
riência na observação das vidas que não são ela, inserir métodos das ciências naturais ou
humanas. Desenvoltura e experiência que colaborar com cientistas naturais para estu-
eu tinha “esquecido”, ou deixado um pouco dar a vida de ervas daninhas nas ruínas de
para trás. Por outro lado, não perdi o inte- uma mancha antropocênica, como o fungo
resse e o afeto pela vida dos outros seres que e seu processo simbiótico: “Por que não?”,
não os humanos, mesmo após anos de estudo olhou me fixamente? Sim, por que não. Por
de uma biologia marcada pela ideia de vida que não poderíamos estender ao estudo dos
como espécie, como objeto passivo aos dita- não-humanos os métodos antropológicos,
mes da evolução biológica, como algo a ser aliás não deveríamos levar a sério as outras
medido e tratado como estatística. Por outro vidas e coisas que agem com ou sem nós? O
lado, na antropologia era instado precisa- livro The Mushroom at the End of the World,
mente a aprender com os outros – humanos nos proporciona uma lente para compreen-
– quais possibilidades conceituais e práticas der esta experiência.
teríamos para compreender como diferen-
tes humanos vivem e pensam outras nature- The Mushroom at the End of the World,
zas. Mas a situação com Anna e Elaine era uma obra etnográfica instigante e de leitura
realmente diferente. Uma espécie de antro- complexa, mesmo ciente de seus pontos crí-
pologia estranha (para mim naquelas circuns- ticos e limites teóricos e políticos (ver Alf
tâncias), estando ali naquela experiência em Hornborg, 2017), me ajudou tempos depois

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e compreender os caminhos percorridos. espécies e modos de vida criam as manchas


O livro se desenrola circulando como um de diferença: a textura da terra. Seguindo
cogumelo, serpenteando pela cadeia de o dendezeiro, os pataxós me ensinavam que
commodities, para nos permitir ver tanto a essa palmeira não nasce apenas pelo plantio
floresta quanto as árvores – um fascinante humano. Os dendezeiros seguem os caminhos
relato da história do capitalismo contem- dos humanos no corte e queima da floresta e
porâneo em suas manchas, circuitos e mar- na implantação das roças de mandioca, após
cas na paisagem. A ressurgência holocênica o “abandono” desses lugares o dendezeiro
marca a história da interação humana com age junto com urubus, pássaros e pacas,
os ambientes hoje devastados e bloqueados seus verdadeiros cultivadores. Nessa relação
pela plantation antropocênica. Mas, como multiespécies, o dendezeiro proliferou e fez
Tsing demonstra, “alguns tipos de distúrbios mundos, criando condições para sua prolife-
foram seguidos por um novo tipo de cresci- ração e a emergência de paisagens afroin-
mento que alimenta muitas vidas” (TSING, dígenas no sul da Bahia diante dos poderes
2015, p. 190, tradução nossa). Este livro foi coloniais racistas da plantation e da criação
uma deliciosa incursão sob as florestas que de áreas protegidas que instituem uma rígida
nos convida a imaginar as redes micorrízicas divisão entre o mundo natural e cultural
de colaboração que criam a possibilidade (CARDOSO, 2018). Confabulações miceliais,
de emergência da vida na ruína capita- um argumento possível: assembleias mice-
lista, sem aderir aos projetos modernistas liais entre fungos e pinheiros e associações
do capitalismo tardio. Se algum mérito há de dendezeiros, urubus e pacas atuam, no
nesse esforço, no mínimo podemos apontar sentido de Gilles Deleuze e Felix Guattari
o de descortinar um sistema de geontopoder (2012) como máquinas de guerra rizomática
(POLVINELLI, 2016), que institui o que é vivo contra os aparelhos domesticadores de cap-
e o que não é, e a necropolítica (MBEMBE, tura do Estado, conformando topologias das
2012) do que é passível de morrer ou não no multiplicidades.
Antropoceno. Me entrelaço a esta proposta
– apesar ainda estar tateando que fazer com Talvez resida aqui o ponto de meus apren-
ela em meu engajamento político junto aos dizados, e uma breve conclusão. A arte da
movimentos sociais e diante das ontologias e antropologia seria essa abertura a diferentes
experiências ameríndias -, ela me fez pen- situações e possibilidades de aprender com
sar sobre alguns momentos em meu campo os outros, para explorar as belezas, incerte-
no Brasil. zas e tensões de encontros com vidas signifi-
cativas em seu processo de fazer e desfazer
Eu estudei a formação e recuperação da seus lares. Anna e Elaine, “educaram minha
paisagem com meus interlocutores Pataxó atenção” para viver com e nessa “situação
no sul da Bahia. Nosso foco foi perceber a estranha” na arte de viver, perceber e teste-
multiplicidade de mundos da vida em relação munhar nas manchas irregulares e tentacula-
à distúrbios históricos na paisagem e como res do Antropoceno: Confabulações miceliais,
o movimento e os encontros de diferentes persigam cogumelos.

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A ARTE DE VIVER NO ANTROPOCENO ARTIGOS

Bibliografia HØJRUP, Mathilde; SWANSON, Heather Anne. The


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ARTIGOS A ARTE DE VIVER NO ANTROPOCENO

Recebido em: 28/02/2019

Aceito em: 28/03/2019

[2] Friction: An ethnography of global connection. Prin-


ceton University Press, 2011.

[3] In the realm of the diamond queen: Marginality


in an out-of-the-way place. Princeton University Press,
1993.

[4] https://www.theguardian.com/books/2017/oct/19/
mushroom-end-world-anna-lowenhaupt-tsing-review.

[5] “This is a landscape so dynamic that its very chan-


geability leads to innumerable moments of recogni-
tion (…) I do believe it to be true that the land here is
demonstrably alive; that it does not exist solely, or even
incidentaly, as a stage for the enactment of human his-
tory; that it is (itself) a protagonist” (GOSH, 2016, p. 6).

[6] O conceito de assemblage, no sentido dado por Gilles


Deleuze e Felix Guattari, é fundamental na obra de
Anna Tsing. Todavia Tsing, o utiliza de forma diferente
das conotações deleuzianas, se aproximando mais da
noção de assembleia da ecologia. Tsing usa o conceito
de assembleia para tratar da questão de como espécies
variadas influenciam umas às outras. Todavia a autora,
se valendo do qualificador polifônico abandona a noção
de organismos como os elementos que se reúnem, para
falar de formas de vida – e modos não vida e de ser – se
unindo, onde modos de ser são efeitos emergentes dos
encontros. Pensar através da assemblage nos leva a per-
guntar como as reuniões às vezes se tornam “aconteci-
mentos”, isto é, maiores que a soma de suas partes e a
nos valermos da história sem o argumento linear do pro-
gresso, mas sim como indeterminada e multidirecional.
Ver crítica ao uso da noção de assembleia pelas denomi-
nada “multispecies ethnography” em Tim Ingold (2013).

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