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Resumo: Me propus a escrever uma resenha do livro The Mushroom at the end of the World:
On the possibility of life in capitalist ruins, de Anna Tsing. Porém me propus tecer essa rese-
nha subvertendo este gênero ao incorporar uma narrativa que mais se aproxima a um ensaio
etnográfico livre. Diria até um ensaio sobre uma experiência de viagem de campo para etno-
grafar cogumelos e seus companheiros nas paisagens pós-industriais arruinadas na Dinamarca
pelo projeto Aarhus University Research on the Anthropocene (AURA project – Living in the
Anthropocene), onde a autora do livro que estou me debruçando era partícipe da jornada a
ser relatada. Confabulações miceliais é o nome que dou a essa atividade em homenagem ao
título do presente dossiê. O livro de Tsing foi um guia, um relato de manchas experimentais
que nos faz ver melhor, ou ver de outro jeito, a arte de viver com e de perceber mundos
emergentes no e contra o capitalismo.
Abstract: propose to write a review of Anna Tsing’s book “The Mushroom at the end of the World:
On the possibility of life in capitalist ruins”. But I set out to weave this review by subverting
this genre by incorporating a narrative that most closely approximates a free ethnographical
essay. I would even say an essay on a field trip experience to ethnograph mushrooms and their
companions in post-industrial landscapes ruined in Denmark by the Aarhus project University
Research on the Anthropocene (AURA project – Living in the Anthropocene), where the author
of the book that I am studying was part of the journey to be reported. Mycelial confabulations
is the name I give to this activity in honor of the title of this dossier. Tsing’s book was a guide,
an account of experimental stains that makes us see better, or see otherwise, the art of living
with and perceiving emergent worlds in and against capitalism.
[1] Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, Bolsista PNPD pelo Programa de Pós-
-Graduação em Antropologia, Universidade Federal da Bahia. E-mail: thi.motacardoso@gmail.com.
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como para o antropológico, essas duas cul- diferente, rememorando o momento em que
turas (SNOW, 1995) que se esforçam para se recebi o majestoso livro Friction[2] das mãos
manter bem apartadas e em extrair a vida e de Márnio Teixeira-Pinto, meu orientador, e
a agencialidade de outros seres que não os da leitura de In The Realm of the Diamond
humanos. Até então já tinha navegado critica- Queen[3], ambas majestosas obras etno-
mente por entre esse grande divisor por meio gráficas de Anna que, pelo impacto visceral
da etnoecologia, da etnologia indígena, ou que me atingiu, me motivaram na busca
tateando a virada ontológica e os escritos de em tê-la como coorientadora. Em ambos os
Tim Ingold, que, nesse último caso, influen- livros Anna já impunha seu estilo de narrativa
ciava meu atual projeto de pesquisa com etnográfica temperada com todo arsenal do
suas noções de conhecimento, movimento e pós-modernismo norte-americano com sua
habilidades e suas críticas às noções de pai- verve crítica pós-colonial, feminista e eco-
sagem e espaço para compreensão da vida política e, para além, já apontando para os
humana (INGOLD, 2015). O que estava se pro- conceitos que a levaram a desenvolver, junto
pondo ali, por Anna, era ir direto ao assunto, a tantos outros antropólogos e antropólogos,
sem intermediários, sem rodeios, sem porta o que viria a ser uma antropologia relaciona-
vozes humanos e sem tradutores, algo como lista e materialista, batizada posteriormente
um etnoecologia reversa, um olhar sensível como “etnografia multiespécie” (KIRKSEY;
para vidas de não humanos para poder perce- HELMREICH, 2010; HARAWAY, 2013).
ber suas práticas e efeitos nas vidas de seus
outros: uma confabulação micelial. Para autores como Eduardo Kohn, o pro-
jeto multiespécie na antropologia, com
Em uma hora e meia de viagem pela highway forte influência de Donna Haraway, é pro-
interagi pouco com minhas companheiras, fundamente ontológico, compondo com a
mantendo certo silêncio um tanto devido a chamada “ontologial turn”, pois insiste em
minha timidez, um tantinho ao meu inglês incluir outros seres em seus relatos antro-
ainda deficiente, mas muito mais pela aten- pológicos com a “esperança de imaginar e
ção dada ao caminho e a meus devaneios. encenar uma ética e política que possam
A forma da paisagem dinamarquesa era de abrir espaço para esses outros seres” (KOHN,
uma planície sem fim, entrecortada por pro- 2015, p. 316, tradução nossa). Creio que o
priedades pequenas, com muitas plantações mesmo seja pensado a partir de Eduardo
de batata e canola, entrecortada por poucas Viveiros de Castro (2019). Viveiros de Castro
manchas de floresta modificada e manejada, propôs os contornos de uma noção de “anar-
predominando pinheiros de diversos tipos. quismo ontológico”, como modo apropriado
Não havia como não notar as fazendas coope- de existência do Antropoceno. O anarquismo
rativas de porcos, um símbolo da nacionali- ontológico seria, então, segundo Viveiros de
dade, sendo muitas proprietárias de torres de Castro a tradução político-filosófica da estru-
energia eólica. Aglomerados de placas solares tura e função simbiogênica e simpoiética da
entre pequenas vilas davam o tom do esforço vida em sua absoluta imanência material
de produção de uma paisagem moderna (citando Donna Haraway); incluindo também
domesticada. Pensava em como cheguei ali o reconhecimento pós-capitalista da agên-
naquele mundo completamente estranho, cia da “vida não-orgânica” (citando Gilles
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a ser relatada: a construção de mundos em O que estávamos prestes a fazer ali numa
paisagens concretas. paisagem pós-industrial dinamarquesa, em
Søby Brunkulslejerne? Para melhor com-
preendermos essa expedição científica ines-
perada, basta seguirmos a proposta do livro,
publicado meses depois desta experiência.
Uma resposta inicial poderia ser “perseguir
cogumelos”, algo que micólogos já fazem em
seu cotidiano. Além de histórias de aromas,
sabores, alergias, lisergias e contaminações
ferozes, que histórias a mais nos ofertam
os fungos, esses fazedores-de-mundos incrí-
veis que transpõem membranas materiais e
arrombam conceitos pré-estabelecidos como
o de espécie e a divisão moderna entre vida
e não vida, mundo animal e vegetal. Para
Anna Tsing, trabalhar com os fungos pode nos
Figura 1 – Cogumelo em Søby Brunkulslejerne levar ao cruzamento da linha entre as ciên-
cias naturais e estudos culturais, não apenas
Confabulações miceliais é o nome que dou a através da crítica mas também através do
essa atividade em homenagem ao título do conhecimento construtor-de-mundos: uma
presente dossiê: o tecer uma história que, multiespécie storytelling como um dos seus
afastando suas premissas psiquiátricas duras produtos. O livro nos brinda com suas jorna-
(confabulação enquanto doença mental), se das entre cogumelos, árvores e pessoas para
baseie parcialmente em fatos e é também explorar indeterminações e as condições de
um produto da imaginação: uma verdade precariedade, que é a vida sem a promessa
parcial e familiar. Sigo assim os passos da de estabilidade no capitalismo:
própria autora da obra resenhada, que nos
inspira a contar histórias que parta da expe- […] a vida incontrolável dos fungos é uma
dádiva – e um guia- onde o mundo que
riência “to make any concept come to life” pensamos controlado falhou. Matsutake
(TSING, 2015, p. 66), com a esperança que pode nos catapultar em uma curiosidade
os leitores “vão experimentar alguma des- que parece-me ser o primeiro requeri-
mento da sobrevivência colaborativa em
sas ‘mushroom fever’ comigo nos capítulos tempos precários (TSING, 2015, p. 2, tra-
do porvir” (TSING, 2015, p. 75, tradução dução nossa).
nossa). O livro The Mushroom at the end
of the World será então um guia, um relato Fungos não são seres sem mundo ou com
de manchas experimentais que nos faz ver mundo empobrecido, mas são fazedores-
melhor, ou ver de outro jeito, a arte de viver -de-mundos em suas histórias entrelaçadas,
com e de perceber mundos em ebulição num e quem já viu ou leu sobre as contamina-
capitalismo incompleto: a arte de perceber ções fúngicas nas plantations históricas sabe
(art of noticing). do que estou falando (não se esqueçam da
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explorar a ruína que se tornou nosso lar cole- Deixamos o nosso veículo no início de uma
tivo” (TSING, 2015, pp.3-4, tradução nossa). pequena trilha. Começamos a andar por
Perseguir os cogumelos num fim de tarde nos entre pinheiros (Pinus contorta) até chegar
leva para além das experiências gustativas num descampado onde avistamos uma estru-
ou alucinatórias, nos catapulta às possibili- tura montada por um proprietário como local
dades de coexistência dentro da perturbação de espera para caça do veado vermelho, algo
ambiental, nos mostra um tipo de sobrevi- como um casebre de madeira. Cerca de cem
vência colaborativa: viver com, confabula- metros um bloco de sal vermelho suspenso
ções miceliais: e posicionado num local que, ao atrair os
veados, os colocavam na mira para um tiro
Em cada caso, eu me vejo cercada de certeiro. Por de trás dos pinheiros podíamos
remendos, isto é, um mosaico de monta-
gens abertas de formas de vidas emara-
ver um lago cercado por dunas de lama acin-
nhadas, com cada uma delas se abrindo zentada. Nosso primeiro local a ser visitado
em um mosaico de ritmos temporais e se chamava Three Lakes.
arcos espaciais. Argumento que apenas
uma apreciação da precariedade atual
como uma condição terrestre nos permite
Em nosso primeiro trabalho de campo, quando
perceber isso – a situação do nosso mundo. paramos o carro e começamos a andar nas
Desde quando a análise autoritária requer trilhas, senti meu primeiro estranhamento.
pressupostos de crescimento, os espe- Estranhamento não é necessariamente uma
cialistas não veem a heterogeneidade de
espaço e tempo, mesmo onde isso é óbvio
situação negativa para a prática antropoló-
para os participantes e observadores gica, é o fundamento da disciplina. Para nos
comuns. No entanto, as teorias da hete- colocarmos no encontro com a diferença
rogeneidade ainda estão em sua infância. devemos ser capazes de dialogar e apren-
Para apreciar a imprevisibilidade irregular
associada à nossa condição atual, precisa-
der com essa experiência, tornar o estranho
mos reabrir nossa imaginação. O objetivo familiar, abordar o exercício da tradução
deste livro é ajudar nesse processo – com e da compreensão crítica e não fugir dela.
cogumelos (TSING, 2015, p. 4-5, tradução Todavia, a paisagem era realmente estranha
nossa).
para alguém que, como eu, só tinha traba-
lhado nas paisagens tropicais e só conhecia
as florestas temperadas pelos livros. E em
Aroma metálico Søby Brunkulslejerne a paisagem não era
Vou andar, e tenho realmente sorte, eu
uma floresta bem temperada como nas foto-
encontrei cogumelos. Cogumelos me grafias que anteriormente tive acesso nos
puxam de volta para os meus sentidos, tempos da escola. Dunas cheias de pedaços
não apenas – como flores – através de suas de metais e carvão marrom, misturados com
tumultuosas cores e cheiros, mas porque
eles surgem inesperadamente, lembran-
árvores exóticas e outras espécies desconhe-
do-me da boa sorte de estar acontecendo cidas para mim. No chão fezes de veados,
aqui. Então eu sei que ainda há prazeres junto com manchas de grama indicavam que
em meio aos terrores da indeterminação os caçadores estavam ativos naquela época,
(TSING, 2015, p. 1, tradução nossa).
indicando uma prática de gestão para a caça.
O aroma era metálico.
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centro industrial, criando uma paisagem cul- de mineração foram solicitadas a depositar
tural “danosa”, um “Klondike” dinamarquês fundos para a reabilitação da área e as árvo-
(BUBANDT; TSING, 2018). Na década de 1970, res foram plantadas – primeiro pela Danish
o local, já abandonado, de 1.100 hectares Heath Society e, mais tarde, por proprietá-
havia se transformado em uma série de bura- rios privados. Na década de 1970, a Dina-
cos no solo, cercados pela areia escavada em marca participou do esforço de replantio em
grandes montes e fileiras, a água, uma vez escala industrial de coníferas exóticas e de
bombeada, retornou e a estrutura do terreno crescimento rápido que possuíam silvicul-
mudou. Os buracos foram sendo preenchi- tores em grande parte do mundo. Pinheiros
dos com as águas ácidas dos lençóis freáticos escoceses (P. sylvestris, origem Eurasiana) e
formada pelas argilas expostas da pirita, tor- pinheiro lodgepole (P. contorta, origem ame-
nando-se lagos (ver BUBANDT; TSING, 2018). ricana) foram plantados, muitas vezes em
Mathilde Højrup e Heather Anne Swanson fileiras alternadas. Ambas são espécies pio-
(2018) oferecem uma visão importante sobre neiras de crescimento rápido e ambas cres-
Søby: o próprio solo se move sob as máqui- ceram bem apesar da areia ácida, mas suas
nas. As minas de carvão deixaram uma com- trajetórias rapidamente divergiram. Pinus
binação instável de areia e água subterrânea, contorta, se tornou erva daninha e, em pro-
em que deslizamentos de terra são comuns e liferação contaminante ocuparam o terreno
areia movediça engole homens e máquinas. (GAN; TSING; SULLIVAN, 2018). A dissemi-
A escavação de carvão trouxe a geologia nação de árvores moldou o habitat, abrindo
irrevogavelmente à vida em Søby (BUBANDT; unwelts para os animais. Quando a cobertura
TSING, 2018). Para alguns membros do AURA de árvores estava disponível, os veados ver-
aquele lugar era uma ruína considerável, um melhos se espalharam por Søby abrindo uma
lugar para considerar o que Natalia Brichet, nova economia de fronteira da caça. É bom
Frida Hastrup e Felix Riede (2017) denomi- ressaltar que veados de movimento livre
naram de “apocalipse moderado”, ou seja, desapareceram no século XVIII na Dinamarca,
“o lado mais suave dos terrores do Antropo- deixando apenas aqueles em parques cerca-
ceno”. Søby é uma mancha do Antropoceno dos e controlados (BUBANDT; TSING, 2018).
fragmentado (patchy anthropocene) que No entanto, no final do século XX, os fugi-
questiona a própria ideia de Antropoceno tivos voltaram para o campo. Num processo
como um tempo que marca o efeito global da de retroalimentação com a economia da caça
ação dos Humanos – também visto como um que permitia que o pinheiro continuasse se
universal homogêneo – na Terra, para propor proliferando, o que por sua vez encorajou o
jogar com o Antropoceno enquanto manchas aumento da população de veados. Seguindo
contingentes dos encontros entre humanos e os passos dos veados reaparecem os lobos,
não humanos. depois de mais de dois séculos de seu desapa-
recimento nos solos do reino da Dinamarca.
Søby foi transformado num terreno árido e
não cultivado onde só cresciam plantas ras- Notável percepção de Anna e da equipe do
teiras e silvestres, em uma paisagem indus- AURA. Ao explorarmos os espaços de aban-
trial arruinada de dunas de areia resultante dono, poderíamos nos perguntar sobre a
da mineração. A partir de 1958, as empresas tolerância dos humanos ao empobrecimento
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As paisagens globais de hoje estão reple- Em 1989, algo mais havia começado nas flo-
tas desse tipo de ruína. Ainda assim, esses restas de transição do Oregon segundo Tsing:
lugares podem ser animados apesar dos o comércio de cogumelos “selvagens”. O
anúncios de sua morte; campos de ativos desastre de Chernobyl, em 1986, contaminou
abandonados às vezes geram novas vidas
multiespécies e multiculturais. Em um
os cogumelos da Europa, e os comerciantes
estado global de precariedade, não temos chegaram ao noroeste do Pacífico em busca
outras opções além de procurar vida nesta de suprimentos. Segundo Tsing, quando o
ruína (TSING, 2015, p. 6, tradução nossa). Japão começou a importar Matsutake a pre-
ços altos o comércio foi à loucura e milhares
Em The Mushroom at the end of the World, de pessoas – refugiados indochineses desem-
as relações miceliais entre fungos e pinheiros pregados, veteranos brancos incapacitados,
ganham contornos em paisagens modificadas nativos americanos e latinos indocumenta-
por entre as fissuras e pontos da cadeia de dos – adentraram nas florestas do noroeste
commodities Matsutake do Oregon ao Japão. do Pacífico para obter o novo “ouro branco”,
Aqui cogumelos não são “invisíveis”, mas desafiando leis ambientais conservacionistas,
entram na história como dádivas e mercado- onde a situação precária de trabalho e ima-
rias. Sigam as trilhas da parte II do livro de gens de uma guerra contínua em nome de um
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valor – central para se entender o forragea- relacionais que enfatizam como o Matsutake
mento e comércio de Matsutake em Oregon são incompletamente mercantilizados. Uma
– a experiência da “liberdade”. verdade tanto para o carvão em Søby quanto
para o mercado de Matsutake.
Em Oregon, continua Tsing, Matsutake ofe-
recia seu aroma de outono para forrageado- Os interlocutores de Tsing descrevem os
res que ali desenvolviam práticas e saberes cogumelos como “troféus da liberdade”
sobre a florestas, tornando-a familiar. Flores- em vez de mercadorias, embora Matsutake
tas que passaram por desmatamento intenso se transformem em ativos capitalistas ao
dos grandes pinheiros no início do século XX serem colocados num navio ao Japão (TSING,
e depois, após virar área de conservação 2015, p. 62). Mesmo no Japão, Tsing des-
ambiental, ter a prática de supressão de creve o fluxo de Matsutake através da lógica
incêndios como maior resultado. Mas numa da dádiva. Tsing usa essas formas pericapi-
ecologia indomável, abetos e pinheiros esta- talistas – não capitalistas, mas não fora do
vam florescendo com a exclusão do fogo, se capitalismo – para construir suas ideias em
espalhando em moitas cada vez mais densas torno do “capitalismo de salvação” (salvage
e inflamáveis, exigindo mais manejo pelo capitalism): o processo de acumulação capi-
serviço florestal. “Ponderosa, abeto e lodge- talista que se aproveita do valor produzido
pole, cada um encontrando vida através da sem o controle capitalista. Tsing argumenta
perturbação humana, são agora criaturas de que o salvamento é parte integrante do
diversidade contaminada”. Surpreendente- capitalismo: “uma característica de como
mente, nesta paisagem industrial arruinada, o capitalismo funciona” (TSING, 2015, p.
surgiu um novo valor: o Matsutake. 63, tradução nossa) em uma condição geral
de precariedade. Confabulações miceliais:
Na etnografia de Tsing se nota o capitalismo cogumelos são particularmente úteis como
galgando espaço através da diversidade eco- uma metáfora aqui, as acrobacias micorrízi-
nômica traduzida por uma cadeia sucessiva cas escondidas que tornam possível o fruto da
de dádiva e mercadoria. O Matsutake forra- mercantilização exemplificam o salvamento,
geado nas margens das florestas de Oregon onde o esforço de todos os personagens é
por etnias de emigrados do sul da Ásia ou por para ditar os ritmos do salvamento (salvage
veteranos brancos da guerra do Vietnã, ven- rhythms), entrelaçando-se ao incontrolável
didos ou consumidos em performances peri- modo de vida do cogumelo – indeterminação,
capitalistas tornam-se objeto impessoal do coordenação, precariedade e contingência, o
inventário capitalista quando são enviados ao sonho modernista da mecanização, da quan-
Japão. Essa tradução de valor é o problema tificação e do progresso não são suficientes
central de muitas cadeias de suprimentos nessa história.
globais, como diria Tsing, onde o capitalismo
depende das margens, das periferias não Nossa experiência em Søby é refletido no livro
capitalistas. Nesses circuitos de valor o modo de Anna. A inseparabilidade entre economia
de vida dos forrageadores, atravessadores e e paisagem explode junto aos cogumelos que
comerciantes são atrelados a circunstâncias habitam as ruínas junto a suas companhias.
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Ali acocorados nas dunas de Three Lakes, uma artista e um micólogo taxonomista e
cavando a lama metálica, observando micor- geneticista para caminhar, conversar e cavar
rizas que conectam os simbiontes fungos o solo. Um encontro colaborativo onde a
com as raízes do Pinus contorta, ainda não ciência, como diria Tsing, só pode ser enten-
percebia como tal conexão poderia nos dida como uma prática de tradução por
levar a histórias assombrosas sobre mundos entre a diferença. Estávamos andando sem
em tensão. Os pinheiros, com seus parcei- um caminho preciso, em nosso “transecto”
ros fúngicos, frequentemente florescem em passamos por caminhos diferentes rumo ao
paisagens modificadas por humanos, onde Desertum Arboretum. Entrando por essas tri-
trabalham juntos para aproveitar espaços lhas encontramos uma cerca e, através dela,
abertos e solos minerais expostos. Humanos, um lixão onde funcionava uma indústria de
pinheiros e fungos confabulam em arranjos bioenergia. O que eu poderia pensar sobre
de vida simultâneos para si e para os outros: esse lugar que eu ainda não conhecia bem.
mundos multiespecíficos. A potência do The
Mushroom at the End of the World, foi jus- Henning, com seu cesto de coletor de cogu-
tamente os chamar atenção de que o con- melos, era nosso hábil guia e contador de
ceito moderno de humano como fazedor de histórias. Eu estava tão interessado e exci-
mundo não é a única possibilidade: “estamos tado em conhecer e ouvir histórias sobre
cercados por muitos projetos de criação de fungos e suas ocorrências simbióticas através
mundo, humanos e não humanos, que emer- deste renomado biólogo escandinavo. Não só
gem de atividades práticas de criação de pela vivência e aprendizados que tive sobre
vidas” (TSING, 2015, p. 2, tradução nossa). identificação de cogumelos, mas sobretudo
pelo diálogo com alguém que têm relações
mais profundas com a paisagem em que
Dançando com os cogumelos estávamos. Durante nosso caminhar juntos,
Henning associava pequenas montanhas de
Andar atentamente por uma floresta, pedregulhos e plantas que indicavam a histó-
mesmo que danificada, é ser apanhado
pela abundância da vida: antiga e nova;
ria da fundação da mina e a casa dos traba-
sob os pés e alcançando a luz. Mas o que se lhadores durante a Segunda Guerra Mundial;
diz da vida na floresta? Podemos começar em curtas paradas nos era exposto algumas
procurando por drama e aventura além plantas, suas flores e suas relações com
das atividades humanas. No entanto, não
estamos acostumados a ler histórias sem
formigas, usos medicinais, e conhecimen-
heróis humanos (TSING, 2015, p. 155, tra- tos botânicos sobre as mesmas. No caminho
dução nossa). encontramos dois senhores que nos disseram
que pescavam na lagoa, algo que achei que
Uma de nossas melhores experiências de seria impossível naquelas águas tão ácidas e
nossa viagem foi no segundo dia do trabalho contaminadas. Fico imaginando como seria
de campo interdisciplinar, agora com a pre- caminhar com estas pessoas tão animadas,
sença do biólogo Henning Knudsen. Tivemos que paisagens emergiriam desta relação.
algo como um encontro entre antropólogos,
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Para Tsing, todo mundo carrega uma história as estratégias de expansão e conquista
de indivíduos implacáveis, precisamos
de contaminação, sendo que a pureza não é
buscar histórias que se desenvolvam por
uma opção. Em seu livro ela argumenta que meio da contaminação. Assim, como uma
viver e permanecer vivo – para todas as espé- reunião pode se tornar um “aconteci-
cies – requer colaborações habitáveis, o que mento”. Colaboração é trabalho através
da diferença, mas esta não é a diversi-
significa trabalhar com a diferença, o que dade inocente de trilhas evolutivas auto-
leva à contaminação multiespecífica. Sem contidas. A evolução de nossos “eus” já
colaborações, todos nós morremos. está poluída por histórias de encontros;
estamos misturados com os outros antes
mesmo de começarmos qualquer nova
colaboração. Pior ainda, estamos mis-
turados nos projetos que mais nos pre-
judicam. A diversidade que nos permite
entrar em colaborações emerge de histó-
rias de extermínio, imperialismo e todo
o resto. Contaminação faz diversidade
(TSING, 2015, p. 29, tradução nossa).
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Paisagens não são cenários para a ação Søby, cavando e seguindo filamentos que
histórica: elas são ativas por si mesma. conectavam fungos e árvores, sem neces-
Observando paisagens em formação, os
humanos se juntam a outros seres vivos sariamente termos um porta-voz da língua
na formação de mundos. Matsutake e latina ou para informar ontologias outras,
pinho não crescem apenas nas flores- o que para mim continua sendo algo impor-
tas; eles fazem florestas. As florestas de tante a se fazer.
Matsutake são encontros que constroem
e transformam paisagens. Esta parte do
livro começa com a perturbação – e faço Lá, diante dos meus olhos, estavam antropó-
da perturbação um começo, isto é, uma logas fazendo biologia. Ou elas faziam outra
abertura para a ação. A perturbação rea- coisa? Obviamente perguntei a Anna quando
linha as possibilidades do encontro trans-
ela já estava com lama em todo o corpo e
formativo. Os remendos da paisagem
emergem da perturbação. Assim, a preca- cavando outro cogumelo. Ela olhou para mim
riedade é encenada em uma sociabilidade e disse apenas “antropologia, veja bem…”,
mais do que humana (TSING, 2015, p. 152, “por meio de um olhar desinteressado, aberto
tradução nossa). ao imponderável do encontro e de descrições
críticas, observando as relações sociais entre
diferentes espécies e descrevendo relações
Patchy Anthropocene: uma conclusão do ponto de vista da antropologia”; indo para
o campo sem formulações preconcebidas,
Que situação estranha. Eu era antropólogo, abertas à estranheza e às questões colocadas
com graduação e mestrado na área bioló- pelos interlocutores e descrevendo o fazer
gica, caminhando com antropólogas com e desfazer das vidas em interação. A essa
um enorme interesse, desenvoltura e expe- abordagem antropológica, poderíamos, disse
riência na observação das vidas que não são ela, inserir métodos das ciências naturais ou
humanas. Desenvoltura e experiência que colaborar com cientistas naturais para estu-
eu tinha “esquecido”, ou deixado um pouco dar a vida de ervas daninhas nas ruínas de
para trás. Por outro lado, não perdi o inte- uma mancha antropocênica, como o fungo
resse e o afeto pela vida dos outros seres que e seu processo simbiótico: “Por que não?”,
não os humanos, mesmo após anos de estudo olhou me fixamente? Sim, por que não. Por
de uma biologia marcada pela ideia de vida que não poderíamos estender ao estudo dos
como espécie, como objeto passivo aos dita- não-humanos os métodos antropológicos,
mes da evolução biológica, como algo a ser aliás não deveríamos levar a sério as outras
medido e tratado como estatística. Por outro vidas e coisas que agem com ou sem nós? O
lado, na antropologia era instado precisa- livro The Mushroom at the End of the World,
mente a aprender com os outros – humanos nos proporciona uma lente para compreen-
– quais possibilidades conceituais e práticas der esta experiência.
teríamos para compreender como diferen-
tes humanos vivem e pensam outras nature- The Mushroom at the End of the World,
zas. Mas a situação com Anna e Elaine era uma obra etnográfica instigante e de leitura
realmente diferente. Uma espécie de antro- complexa, mesmo ciente de seus pontos crí-
pologia estranha (para mim naquelas circuns- ticos e limites teóricos e políticos (ver Alf
tâncias), estando ali naquela experiência em Hornborg, 2017), me ajudou tempos depois
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ARTIGOS A ARTE DE VIVER NO ANTROPOCENO
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A ARTE DE VIVER NO ANTROPOCENO ARTIGOS
GAN, Elaine; TSING, Anna. How weeds are made, STRATHERN, Marilyn. Partial connections. Rowman
or, does Paxillus involutus aid succession to Altamira, 2005.
lodgepole brush in sandy brown-coal overburden?
Manuscrito Aura project, 2015. TSING, Anna Lowenhaupt. The mushroom at the
end of the world: On the possibility of life in
GAN, Elaine; TSING, Anna; SULLIVAN, Daniel. Using capitalist ruins. Princeton University Press, 2015.
Natural History in the Study of Industrial Ruins.
Journal of ethnobiology, v. 38, n. 1, p. 39-55, _______. Blasted landscapes (and the gentle arts
2018. of mushroom picking). In: Kirksey, E (ed.). The
multispecies salon. Duke University Press, p. 87-
GILBERT, Scott F.; SAPP, Jan; TAUBER, Alfred I. 109, 2014.
A symbiotic view of life: we have never been
individuals. The Quarterly review of biology, v. 87, _______. Friction: An ethnography of global
n. 4, p. 325-341, 2012. connection. Princeton University Press, 2005.
GOSH, Amitav. The great derangement: climate _______. In the realm of the diamond queen:
change and the unthinkable. London: The marginality in an out-of-the-way place. Princeton
University of Chicago Press, 2016 University Press, 1993.
HARAWAY, Donna J. When species meet. University VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. On Models
of Minnesota Press, 2013. and Examples: engineers and bricoleurs in the
Anthropocene. Current Anthropology, 60,
Supplement 20, 2019.
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ARTIGOS A ARTE DE VIVER NO ANTROPOCENO
[4] https://www.theguardian.com/books/2017/oct/19/
mushroom-end-world-anna-lowenhaupt-tsing-review.
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