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“A Gloriosa Família” – O Tempo dos Flamengos três filhos mortos e oito vivos: Ambrósio, Ana, Ben-
– é um romance pós-modernista do escritor angolano vindo, Gertrudes, Hermenegildo, Matilde, Rodrigo e
Antônio Carlos Maurício Pestana, mais conhecido pelo Rosário. Também tinha vários “filhos do quintal” (bas-
seu pseudônimo Pepetela, que apresenta uma descrição tardos), mas só reconheceu Catarina, Nicolau e Diogo.
minuciosa do cotiano do holandês Baltazar e de toda Esta numerosa família mestiça não era muito bem vis-
a sua família Van Dum. A narrativa, em que se mis- ta, pois estava do lado dos portugueses; mas, devido
turam elementos fictícios e fatos históricos, acontece às amizades influentes, sempre se salvava de alguma si-
em Luanda, de 1642 a 1648, ou seja, da dominação dos tuação constrangedora com os mafulos. Este patriarca
flamengos (holandeses) à expulsão destes e reconquista considerava sua família como o bem mais precioso e
portuguesa. Esta família, núcleo básico de organização sempre tentou mantê-la unida. Todos aprendiam com
social, ratifica o princípio africano “eu pertenço, logo ele, pois dava aula de política para educar seus filhos.
existo” desde os filhos legítimos até os bastardos. Nesta grande sanzala, moram também dois forros agre-
O narrador, um escravo guarda-costas, filho de uma gados, Ngonga e Kundi, e suas famílias em cubatas pró-
negra e um padre napolitano, só foi efetivamente repa- ximas, o “faz-tudo” Dimuka e, claro, muitos escravos.
rado pelo seu dono, Baltazar, duas vezes: quando o rece- Durante os sete anos da narrativa, vários fatos mar-
beu de presente da rainha (rei) Jinga Mbandi e quando o caram a vida da família Van Dum. A atitude diplomática
viu chorar pela prisão de sua mãe de criação Mocambo do protagonista sempre lhe proporcionou grandes ven-
(D. Bárbara) – irmã da rainha Jinga. Assim, esta proprie- turas: boas relações sócio-políticas, com portugueses e
dade semovente é considerada por ele, como analfabeta holandeses; casamentos ascendentes para os filhos (Ger-
e muda de nascença, por isso não se importava com trudes com o feitor de plantação, de ascendência judia,
a sua presença. Este narrador, ciente da sua condição Manuel Pereira e Rodrigo com a filha do Mani-Luanda
servil, diz que sua missão era servir de relator do que Nzuzi/Cristina) e o trânsito livre pelas Luandas (portu-
acontecia com a família Van Dum, pois foi criado para guesa e holandesa). Esta diplomacia, inclusive, permitiu
descrever os fatos, tal como vivia o seu dono e a sua a sua permanência, após a expulsão dos holandeses, em
gloriosa descendência. Ele utiliza a primeira pessoa do 1648. Ao longo da narrativa, esta família gloriosa, en-
singular e os discursos direto, indireto e indireto livre. tretanto, também passa por momentos de adversidade,
Embora afirme que “a neutralidade tradicional é neces- que viram escândalos, a saber: Matilde desonrou a fa-
sária para a narrativa”(1997, p. 183), delata os fatos com mília duas vezes, pois engravidou antes do casamento e
bastante subjetividade e uma impagável ironia. depois traiu o marido; Thor (escravo) desonrou Ana na
Baltazar Van Dum era um comerciante que traficava senzala e Ambrósio manteve uma ligação espúria com
escravos para o Brasil. Ele vivia na Luanda portuguesa, a degredada Angélica Ricos Olhos. Nestes momentos,
casado oficialmente com D. Inocência (negra), e tinha a honra da família sempre era lavada, com discussões,
punições e até mesmo com a morte, como foi o caso da
decapitação de Thor.
Vale ressaltar que o misticismo também está muito
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Mestranda em Políticas Sociais e Cidadania (UCSal), pes-
presente neste enredo, a saber: as visões de Matilde, o
quisadora de relações étnico-raciais no GAPPS (Gestão e
caso do leão cazumbi, a história da lagoa do Kinaxixi e
Avaliação de Políticas e Projetos Sociais) e no NPEJI (Nú-
cleo de Estudos e Pesquisas sobre Juventudes, Identidades e a pemba jogada pelo narrador a Redinckove, por ter de-
Cidadania), ambos da UCSal. sonrado a sua amada Catarina. Esta desonra, entretanto,
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não foi descoberta e alardeada (por ser filha bastarda!), afirmar que “...chibatadas, confinamentos, privação de
limitando-se aos amantes, ao narrador e às irmãs mais alimento, trabalho pesado extra e a capacidade de dis-
próximas. Em toda a narrativa, os bastardos são apenas por dos escravos através da venda eram meios de co-
personagens secundários. Entre guerras civis e milita- erção”. Infelizmente, havia também a perpetuação do
res, acordos políticos e nupciais, por interesse e discur- complexo de inferioridade pela própria etnia, como a
sos falaciosos, “...os Van Dum se multiplicam...”(1997, visão de D. Inocência que considerava os casamentos
p.348) e cresce a linhagem notável desta gloriosa família de Gertrudes e Matilde um avanço da raça, por terem
mestiça (outrora profetizada por Matilde!), em pleno filhos com brancos. Rodrigo e Hermenegildo, entretan-
século XVII. to, atrasaram, em relação ao ideal de alvura, por procria-
Segundo Ki-Zerbo (1980, p. 27), “a tradição oral é rem, respectivamente, com Cristina e Dolores – ambas
a fonte histórica mais íntima, mais suculenta e melhor negras. Além da coerção, havia também a obrigação se-
nutrida pela seiva da autenticidade”. Esta assertiva per- xual das escravas, que serviam para aquecer uma parte
meia todo esse romance, pois o escravo-narrador, atra- da noite do seu dono (1997, p. 226) ou para serem en-
vés de uma crônica descritiva, mas também cheia de gravidadas (1997, p. 165) e, posteriormente, privadas da
imaginação, em Luanda (1642 a 1648), apresenta uma companhia da prole. Assim, o dono tinha o direito de
“revisão” original da História Geral da África. Com fazer com a sua mercadoria “ humana” o que quisesse,
tom sarcástico, o narrador relata, sob o seu ponto de inclusive separar mães e filhos, proibi-las de assistir ao
vista, as histórias do seu dono Baltazar Van Dum: criti- batizado etc. O narrador confessa que a única liberdade
ca o discurso: “...os brancos dizem que não temos his- que possuía era saltar no tempo com a imaginação.
tórias...” (1997, p. 120); julga comportamentos cotidia- Esta submissão imposta desde os primórdios des-
nos: “...os brancos armam sempre confusão por causa figura e mascara toda a riqueza cultural desse povo e a
de mulheres...” (1997, p. 235), ou atitudes: “...os bran- história de todo o continente africano. Na visão euro-
cos são mesmos complicados...” (1997, p.314); confessa cêntrica, o primitivismo, o exotismo, as catástrofes e a
um aprendizado: “...as vantagens da dissimulação e do uniformidade da África são caricaturados na História.
recato...” (1997, p.232) e até elogia: “Ah, grande Van Divulgam-se apenas o clima assustador (1997, p. 17), a
Dum, um vivaço!” (1997, p. 232). paisagem íngreme (1997, p. 89), as matas impenetráveis
O “olhar do outro” é sempre uma visão limitada, (1997,p. 224) e as zonas espinheiras cerradas desabita-
unilateral e, às vezes, até preconceituosa. É possível das por gente e bicho (1997, p. 299), desconsiderando
exemplificar, neste romance africano, vários discursos: o toda a riqueza bionatural além da cultural. A África é
cristão-novo é sempre tratado com desconfiança (1997, vista como uma “massa compacta, imensa e vaga aos
p.22); os mulatos, mesmo sendo padres, estão ligados a pés do continente europeu. Território indiferenciado e
feitiços (1997,p.99); os guerreiros jagas não possuíam uniforme. Reservatório de minérios, diamantes e cultu-
amor filial, pois vendiam até a mãe (1997, p.225); a Jinga ras exóticas”. (REGINALDO, 2002, p. 102).
é considerada, diabolicamente, inteligente e hábil (1997, Quanto à diversidade linguística, o olhar sobre a
p. 262), o mulato é considerado fruto do pecado, uma África aponta uma homogeneidade inexistente. O nar-
aberração, um monstro, um ser contra a Natureza (1997, rador poliglota (português, kimbundo, flamengo, caste-
p. 377) entre outros. Alguns destes julgamentos consa- lhano e francês), por exemplo, relata atos interlocutivos,
gram a superioridade da crença, como a crítica do padre na bodega e na casa do protagonista, recheados de idio-
Tavares aos cultos afros, chamando-os de cerimônias mas. O ápice desta polissemia discursiva é o diálogo em
demoníacas, com cenas de feitiçaria e o kimbanda (adi- que várias línguas são misturadas (1997, p. 114). Costa
vinho) Sukeko ser considerado um macaco crédulo do e Silva (1992, p. 38) ratifica, ao afirmar que “a África é
diabo. No episódio da visita do padre Tavares à sanzala rica em diversidade, fraciona-se em incontáveis cultu-
dos Van Dum, ele queimou todos os objetos (ídolos) e ras e fala numerosíssimos idiomas”. Esse desrespeito
deitou água benta nas cubatas dos escravos, que nem linguístico, invade também o âmbito identitário-lexical,
puderam protestar por lhe roubarem os deuses. ao rebatizar pessoas (Nzuzi/Cristina, Mocambo/Bár-
Às vezes, este preconceito é generalizado e chega ao bara, Henri/Henrique) e até a terra (Mbanza-Kongo/
extremo de inferiorizar toda uma etnia, ao afirmar que São Salvador). Este desrespeito também aconteceu com
os escravos não têm direitos nem liberdade (1997, p. vários outros países que tiveram seus nomes alterados
14), não podem manifestar sentimentos e juízos (1997, pelos europeus, dentre eles, as Rodésias meridional
p. 18); enfim, considera-os objetos animados (1997, p. (Zimbábue) e setentrional (Zâmbia) (OLIVER, 1994,
142). Assim, eles estavam expostos a todo tipo de vio- p. 257).
lência coercitiva. Lovejoy (2002, p. 33) corrobora, ao No âmbito religioso, a invasão foi ainda maior e
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