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Escravismo de Circunstância: o repertório moral do escravismo e do abolicionismo


brasileiros1

Angela Alonso

“Acaso nos terá endurecido o coração a permanência do mal?”


(Manifesto da Sociedade Contra o Tráfico de Africanos
e Promotora da Colonização e da Civilização dos Índios, 1852:20)

I. Em Nome da Ordem
Hoje esse homem vai envergar seu destino. Barba aparada, camisa de casimira branca bem
cortada aderida como luva ao corpo alto e fino, Paulino se prepara para o combate.
Não que a vida seja uma guerra. Antes tem sido uma escalada. Nasceu em fazenda, a de
Tapacora, em Itaboray, mas educou-se no grande mundo. No Colégio Pedro II, ganhou distinções e o
amor aos gregos, que sabe de cor. Na Faculdade de Direito de São Paulo, de onde saiu em 1855,
aprendeu o esperado de primogênito de estadista do Império: armar jornais, discursos e panelas. Política
respirada em casa. O Visconde do Uruguai teve todos os postos de monta do Segundo Reinado e pôs o
filho no seu trote, a começar pelo emprego público na diplomacia. Viena, Paris, Londres. Virou até
cavalheiro da ordem turca de Medjidie, cujo medalhão, com sete pontas, traz em vermelho a divisa que
de fato segue: ―Lealdade, zelo, dedicação‖. Não que fosse pagão; ajoelhava-se ao Papa. Justo em Roma,
em 1856, alcançou-o a notícia: aos 22 anos, era deputado geral pelo 3º. Distrito da Província do Rio de
Janeiro.
Ascendeu no exemplo do pai. Escrevia aos eleitores, arrebanhando, orientando, disciplinando,
até comandar o partido na província (Needell, 2006). Por isso, em 1881, contra governo oposto, terá a
maior votação do país. Já foi ministro e chegará a presidente da Câmara, senador, conselheiro de estado,
presidente do Senado – aonde adiante o reencontraremos. Enfim, ―Deus me tem dado, na carreira a que
me destinei, quanto nela se pode aspirar.‖ (Carta de Paulino Soares de Souza a Maria Amélia, 5/2/1877).
Tudo com maneiras aveludadas, garbo, refinamento, traquejo. Seu pai dançaria em mesa posta sem
quebrar cristal – contava o Barão de Cotegipe - e o filho podia a mesma proeza, de olhos vendados
(Soares de Souza, 1923:111).
Mas Paulino não vive de saraus, como Cotegipe. É austero, caseiro. A perda do pai, em 1866, o
pôs sorumbático. Seu refúgio é Maria Amélia: ―Nas grandes dores da minha alma o conforto que tenho e
agradeço a Providência é o teu amor, que me prende à vida (...).‖ (Carta de Paulino Soares de Souza a
Maria Amélia, 2/11/1866). Dele vieram renda polpuda, cinco filhos e a condição definitiva de grande
fazendeiro no Vale do Paraíba.

1Texto produzido para discussão no Seminario Sociologia, Política e História, PPGS-USP, em 30 de maio de 2011.
Sou grata aos comentários de José Arthur Giannotti à versão preliminar.
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Paulino Soares de Souza une em si as duas metades do mesmo Império. Do pai, homem de
estado, um dos orquestradores da fábrica política do Segundo Reinado, herdou o realismo como chave
de sobrevivência do estado monárquico, a crença nas instituições imperiais como o melhor dos mundos
possíveis. Com o casamento, fincou pé na lógica local dos proprietários de terras e de escravos,
aferrados a usufruir da mercadoria mãe de todas as outras, seja por meio, seja ao largo das políticas do
estado. Paulino é operador de dois mundos, da Corte e da roça, do Parlamento e da fazenda, da herança
política do Visconde de Uruguai e do dote escravista de Maria Amélia. Ponte entre a civilização e o
cafezal.
E nisso não vive sozinho. Elegância e etiqueta, maestria do francês e do piano, o corte da
sobrecasaca, tudo em si transpira o apuro do modo de vida aristocrático da elite imperial brasileira, que
se nutre da senzala. De libré, ali na porta, nos aposentos de dormir, dando recado, cosendo, cozinhando,
limpando latrina, os escravos de servir são as mãos invisíveis da grande casa senhorial e de seus
suntuosos salões urbanos. E os escravos do eito, plantadores de café, capinadores, ensacadores, são o
Atlas que carrega esse mundo nas costas, enchendo bolsos de fazendeiros, atravessadores, banqueiros,
comerciantes. Assim gira o luxo da rua do Ouvidor e a máquina do estado. Disso vivem pequenas e
grandes rodas, as letras e a sociabilidade. A escravidão é um estilo de vida, compartilhado por toda a
classe senhorial e que se espalha pela sociedade em círculos concêntricos, como pedra na água.
Paulino, no vestuário e nas maneiras, exprime o ethos senhorial. Rebento fina flor. Nada nele rescende
brutalidade ou ganância. Desvio ou maldade. É culto e ilibado; ama o latim e a esposa, crê em Deus, no
Império e na propriedade de escravos.
Somente insensatos, julga, podem se insurgir contra essa ordem natural das coisas, que não
está aí por vontade de uns, mas por necessidade de todos. De onde veio essa quimera, da mudança
como passo para a felicidade? Sem escravidão não há café, nem finanças. Nem aristocratas, nem
Império. Nem ordem, nem paz. Mudança rima com decadência, anarquia, revolução. Aos homens de
responsabilidade, cabe resistir. É quarta-feira, 23 de agosto de 1871. Paulino enverga a casaca preta,
dos sóbrios. Bengala, luvas e cartola na mão, desce a escadaria imensa da imensa casa. Pede a caleça.
Há de barrar o transloucado projeto do gabinete Rio Branco, de libertar os preciosos frutos do ventre das
escravas.
Naturalmente o boleeiro que o conduz é um deles.

II. Retórica da Reação2

2A estratégia aqui, na esteira de Gamson (1996:279), consiste em ―(...) examining political discourse as a way of
understanding the cultural component of opportunity.‖ Neste caso, oportunidade para a formação de um movimento
abolicionista no Brasil.
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Se tivessem tido a chance de doutrinar Paulino os dois Quakers abolicionistas que visitaram seu
pai e quase toda a elite política brasileira, nos anos 1850, bradariam que o Criador fez seus filhos para a
liberdade. Mas nem todos tomaram assim a palavra de Deus.
David Davis demonstrou como a justaposição entre escravidão e pecado fez carreira no
Ocidente, conexa à cor da pele. O escravismo valeu-se de tema do Gênesis, o do pecado mortal. Um dos
filhos de Adão e Eva, tomado de inveja, mata o outro. Deus interpela o fratricida: ―Caim, Caim, que fizeste
do sangue de teu irmão?‖ O assassino de Abel foge, mas o pecado segue consigo, impresso na testa,
como mancha negra. Indelével e hereditária. Toda a descendência de Caim estaria condenada a carregá-
la, estampada na pele. Noutra leitura Caim é ele mesmo negro. Episódio acessório é o da crise entre
Noé, aquele da arca, e seu rebento Cam (ou Ham), que o teria ofendido – as interpretações vão de
castração a sodomia. Noé revida com anátema ao filho de Cam: ―Maldito seja Canaan! Que ele seja para
seus irmãos, o último dos escravos!‖ A posterior identificação entre os descendentes de Canaan e os
habitantes da África sub-Sahariana equalizou escravidão e negritude (Davis 2006:69;65;64;67). Por esse
caminho, que Tomás de Aquino aprofundou, a situação de escravidão virou produto do pecado do próprio
escravo (Davis, 2006:54;55) e, adiante, a igreja católica legitimaria a escravização como instrumento de
salvação dessa alma perdida (Alencastro, 2000:155ss).
Mas a culpa não foi só da religião. Davis pinça duas outras linhagens de justificação do
escravismo no Ocidente. Uma é a da distinção ―natural‖ entre senhores e escravos de Aristóteles, outra a
do iluminismo europeu, gente como Voltaire, Kant, Hume, que admitiam a escravidão e a hierarquia entre
brancos e negros (Davis, 1992:68ss).
Amparada nesses dois largos costados, a religião e a filosofia, a escravidão fez - literalmente -
história como forma natural e legítima de desigualdade. Temperley (1981: 29) nota que até o século XVIII,
―(...) slavery was accepted with that fatalism which men commonly reserve for aspects of nature which,
whether they are to be celebrated or deplored, have to be borne. To argue against slavery was to argue
against the facts of life.‖ A escravidão era fenômeno natural, do reino das coisas dadas, tidas e havidas
desde o começo dos tempos. Hierarquia tão trivial e legítima quanto a que punha os homens no mando
das mulheres, os velhos na gerência dos jovens, os aristocratas no comando da plebe.
Nisso o Brasil em nada dista do resto do Ocidente. Quando os portugueses aportaram por aqui
já estava mais ou menos consolidada a justificativa filosófica, religiosa e racial da escravidão e sua
justaposição entre pecado, escravidão e negritude (Davis, 2006:73; Vainfas,19??).
Quando, então, Paulino saiu em defesa da instituição ameaçada pelo projeto do Ventre Livre, em
1871, pôde se amparar num repertório escravista ocidental bem consolidado, isto é, num conjunto de
argumentos e imagens, religiosos como filosóficos, de defesa do escravismo antigo como do moderno,
desde Roma até a Inglaterra, indo da França às colônias espanholas. Paulino e seus partidários
aclimataram esse repertório ocidental à experiência social local.
É que a retórica escravista não foi em toda parte a mesma. O tropos da mancha de Caim e da
maldição de Cam foram essenciais no repertório escravista norte-americano. Religião e filosofia se
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combinavam para afirmar a desigualdade racial, num escravismo de princípios. Dentre nós, a justificativa
imanente, o pecado de origem, comparece em textos religiosos ao menos desde Antonio Vieira, e noutros
menos populares, dando no que Alencastro (2000:157) chamou de ―ajustamento doutrinário pró-
escravista operado pelos jesuítas‖. Mas a fundamentação religiosa e racial foi comparativamente menos
empregada, como argumenta José Murilo de Carvalho (Carvalho, 2009:xxvii), e o peso de Caim e de Cam
deu lugar à racionalidade econômica e política. O argumento racial aparece, mas não prevalece3. Mesmo
na prosa do pioneiro do pensamento escravista brasileiro, Azeredo Coutinho, afinal um bispo, ―a razão
colonial reina soberana sobre a razão cristã.‖ (Carvalho, 2005: 44). Num realismo sem paciência para
sentimentalismos, Coutinho entende o trabalho escravo como uma necessidade na fundação do estado
brasileiro: ―O comércio da venda dos escravos é uma lei ditada pelas circunstâncias às nações bárbaras
para o seu maior bem, ou para o seu mal menor.‖ (Coutinho, 1789:239 apud Carvalho, 2005:45).
Essa ideia da escravidão como ―circunstância‖ perdurou no pensamento brasileiro. Ao contrário
do escravismo norte-americano, a escravidão foi menos justificada como princípio, e mais como
circunstância, mal menor, aceito na impossibilidade de extirpá-lo. Ninguém vendo nela valor defensável
por si, seus partidários pipocaram aqui e ali, encabulados e no mais das vezes implícitos. A ferro e fogo, a
nação toda era escravista, assentando na escravidão, em seus produtos e decorrências, todas as
atividades sociais. Instituição estruturadora, meio e estilo de vida, com tentáculos na cultura, definindo
identidades, possibilidades e destinos dos membros da sociedade imperial.
A escravidão era uma segunda natureza. Bom negócio em si e base de todos os rentáveis, tinha
a seu favor a racionalidade econômica. Partidos e eleitorado eram majoritariamente proprietários de
escravos. A posse de escravos estruturava um habitus e a hierarquia de prestígio. Força econômica,
organização política, estilo de vida, a escravidão esparramou suas sombras por toda a vida social. Tão
grande era seu o peso que se plasmou no modo de ser, invisível porque natural. Centralidade que
dificultou sua tematização.
Todas as instituições do Segundo Reinado viveram dessa anuência tácita. A tradição que as
legitimava - o tripé liberalismo estamental, catolicismo hierárquico e indianismo romântico – explicitou-se
apenas ao ser contestada (Alonso, 2002). Assim foi com a legitimação do escravismo: ascendeu nas
crises, em resposta a ataques abolicionistas.
O ―comércio de carne humana‖ de fora para dentro findou-se nos anos 1850, sob coerção moral
de abolicionistas europeus e canhões ingleses, sem que defesa veemente se levantasse. Homens como
Eusébio de Queiróz e Paulino pai entenderam que o tempo do tráfico se esvaia por imperativos
geopolíticos, não por conta de seu coração piedoso. Tanto assim que Eusébio franqueou os portos para
importação em massa de africanos, antes de fechá-los de vez (Bethell, 1970). E nunca ocorreu a
ninguém que com o tráfico se abolisse a escravidão. Secava uma fonte, a africana, mas sobrevivia a
outra, o útero das escravas.

3 Para uma análise dos escritos brasileiros relacionando escravidão e raça em perspectiva comparada, veja-se Azevedo, 2003.
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Como a escravidão em si demorou a ser o fulcro dos ataques, sua legitimação acabou difusa,
discreta, sinuosa, se compararmos com o caso norte-americano. Veja-se José de Alencar, cidadão do
mesmo mundo de Paulino. Filho de padre do Partido Liberal, migrou para o lado contrário, onde se viu
deputado e ministro, vindo a ser, observa José Murilo de Carvalho (2005:55), ―(...) entre nós, quem mais
se aproximou dos teóricos do escravismo do sul dos Estados Unidos.‖ Afora isso, prescinde de
apresentações. Você leu Iracema na escola. Lá está o idílio fundador da brasilidade, que funde
aristocratas autóctones e portugueses numa comunidade tão harmoniosa quanto imaginada. Alencar, no
romance, como Gonçalves de Magalhães, na epopéia, edificaram, nas décadas de 1840 e 1850, essa
exclusão simbólica do africano na representação da nacionalidade. O Segundo Reinado difundiu o
indianismo em romances, poemas, pinturas, sempre escamoteando a nódoa negra. Sayers (1956:73)
nota que até a metade do século o escravo era uma ―shadowy figure‖ na ficção brasileira. Sofria,
completa Haberly (1972:32), de ―literary invisibility‖. De fato, acha nos enredos o lugar que tem nas casas
senhoriais: o de pano de fundo.
Mas o fim do tráfico pôs a escravidão como problema. Isso está no nome da peça de sucesso de
Alencar, representada em novembro de 18574, no Teatro Ginásio Dramático, em presença do imperador
e da imperatriz: O Demônio Familiar.
O escravo do título é Pedro, cria da casa, acolhido com bonomia na intimidade dos donos.
Enxerido, encrenqueiro, abusa dessa confiança, semeando confusões que funcionam como motor da
comédia de erros. E nessa centralidade mora seu perigo: circulando pelos núcleos narrativos, amarrando
a trama, logra poder invisível. E temível. É animal doméstico, mas peçonhento: ―réptil venenoso‖ (Alencar,
1856:37), cuja punição não será o açoite, mas a perda do amparo da família patriarcal. A liberdade como
castigo:

―Eu o corrijo, fazendo do autômato um homem; restituo-o à sociedade; porém expulso-o do seio da minha
família e fecho-lhe para sempre a porta de minha casa. (A PEDRO) Toma: é a tua carta de liberdade, ela
será a tua punição de hoje em diante (...).‖ (Alencar, 1856:94)

Mal oculto, o escravo é um demônio desestabilizador. Em O Tronco do Ipê, o velho pai Benedito
surge animalesco, em estado de natureza:

―De longe, esse vulto dobrado ao meio, parecia-me um grande bugio negro (...). (...) o bruxo preto, que
fizera pacto com o Tinhoso; e todas as noites convidava as almas da vizinhança para dançarem embaixo
do ipê um samba infernal que durava até o primeiro clarão da madrugada. (...) batuque endemoninhado
(...).‖ (Alencar, 1871:pg?)

4 Como em Mãe, de 1860, Alencar visava aqui dar exemplo de moralidade, baseando-se no que julgava ser uma representação realista da
sociedade imperial (Cf.Faria, 1987).
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Nisso de associar o escravo ao diabólico há uma aproximação com a figura do escravo-pecador


da tradição anglo-americana. O demoníaco está na feitiçaria como na sensualidade desbragada, movida
a álcool - ―garrafão escondido debaixo do balcão de ramos‖ – e a dança africana, ―redobre das
contrações e trejeitos‖. O frame da Mancha de Caim comparece desse modo, o africano como pecador-
predador, corruptor de costumes.
Além da linguagem religiosa, o escravismo à brasileira valeu-se da científica, grudando a
escravidão no corpo social. Imagem presente na sessão de 5 de novembro de 1866, quando o Conselho
de Estado discutiu alforriar escravos para servirem na guerra aberta contra o Paraguai. O Marquês de
Olinda reagiu à tematização, causadora de ―grande inquietação nos fazendeiros‖. ―A escravidão é uma
chaga em que se não deve tocar.‖ A metáfora é o do câncer, presente desde José Bonifácio e, aliás,
reiterada por partidários e adversários. Chaga, mal intestino, doença, cancro. Moléstia a minar o
organismo social traiçoeiramente, maior dos inimigos, porque de dentro. Demônio familiar.
O escravismo explicitou-se um bocadinho quando a escravidão entrou na linha de tiro de duas
guerras, a mencionada do Paraguai e a civil norte-americana. Ameaçada, ganhou visibilidade,
requisitando legitimação expressa. Nesse sentido, o escravismo brasileiro emergiu como uma retórica da
reação – ou da intransigência (Hirshman,1991;1996) – diante de ameaça concreta. Mas seu desabrochar
foi constrangido pelas oportunidades externas hóstis. O repertório moral (Halfmann e Young, 2005)
abolicionista se consolidara mundo afora estabelecendo novos parâmetros discursivos. O escravismo se
recolhera de sinfonia a música de câmara. Quase num solo – havia, é verdade, os tenores cubanos -, a
banda escravista da elite imperial tocou um escravismo pianíssimo em vez de vivace. Ciosa de seus
laços com a civilização ocidental, exibiu-se menos como escravista que como ―emancipacionista‖,
partidária do fim gradual da escravidão. Só que tropo lento.
Isso se percebe tanto em textos políticos, ensaios, discursos parlamentares, projetos de lei,
quanto na imprensa, na literatura, no teatro, nos quais a forma média de pensar de uma sociedade
encontra expressão. Por esses veículos circulou uma justificação da ―situação escravista‖, sem que
legitimação da escravidão em si fosse imprescindível. Mal circunstancial, provisório. Necessidade
imperiosa do presente, inalterável por ato de vontade, como inalteráveis são as estações.
Excessivo então falar de uma retórica escravista brasileira com a potência e a violência da norte-
americana. Em vez de escravocratas de princípio, tivemos escravocratas de circunstância: os que se
diziam compelidos pela conjuntura a defender instituição indefensável, câncer sem o consolo da
quimioterapia. A escravidão, reconheciam, a civilização e a moral condenavam, mas as propostas
abolicionistas chegando à agenda parlamentar seriam veneno mais que remédio, dadas as
―circunstâncias‖.
Episódico, fortuito, desenxabido, o escravismo de circunstância vingou fragmentário, ex-post,
espasmódico. Em vez de sistema de idéias coeso e estruturado, armou-se por frames:‖an interpretative
schemata that simplifies and condenses the ‗world out there‘ by selectively punctuating and encoding
objects, situations, events, experiences, and sequences of actions within one´s present or past
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environment.‖ (Snow e Benford,1992:137). Esses esquemas interpretativos avulsos permitem aos


agentes localizar, perceber, identificar e rotular dimensões (Snow e Benford, 1992:137), simplificando a
realidade social de modo a facilitar a ação coletiva. Frames combinam um diagnostico e um prognóstico,
vinculando um dado problema a uma linha de argumentação e de ação para corrigi-lo (Benford e Hunt
1992; Snow e Benford 1988). No nosso caso, frames que compõem uma ―retórica da reação‖, tal qual
Hirschman (1991:7-8) a descreve na obstrução às três grandes reformas do Ocidente: a revolução
francesa, a expansão do sufrágio e o welfare state. Embora os assuntos na mesa não sejam os mesmos,
a estrutura da argumentação contrária varia pouco. O ―efeito perverso‖ apresenta como temíveis,
indesejadas e desastrosas as consequências de qualquer reforma. A ―futilidade‖ aponta o efeito nulo dela,
sendo a ação humana impotente para alterar a lógica do mundo social. Finalmente, a ―ameaça‖: qualquer
reforma poria a perder benefícios adquiridos.
Hirshman bem poderia ter listado a abolição da escravidão dentre as grandes reformas a suscitar
tal reação. Sua tríade comparece no repertório5 de resistência ao abolicionismo no Brasil – e
provavelmente na Europa, nos Estados Unidos e na América Espanhola. Sobretudo a partir da discussão
da lei do ventre livre, panfletos, discursos parlamentares e mesmo folhetins transpiram essa retórica, pela
boca de denodados defensores da tradição imperial, a ala ―emperrada‖ do Partido Conservador, a qual
pertencem o conhecidíssimo José de Alencar, o nosso conhecido Paulino e o Barão de Cotegipe, que
valerá a pena conhecer.

1. O efeito perverso
O tiro pode sair pela culatra: a intenção progressista gera consequências imprevistas, contra-
intuitivas, contraprodutivas. Eis a maneira mais recorrente de abortar uma reforma, diz Hirshman, não
obstando de frente, mas demonstrando que seus efeitos serão menos virtuosos que o imaginado, numa
sequência Hybris-Nêmesis: a arrogância de reformar tem por rebote a destruição.

―(..) reactionaries are not likely to launch an all-out attack on that objective. Rather, they will endorse it,
sincerely or otherwise, but then attempt to demonstrate that the action proposed or undertaken is ill
conceived; indeed, they will typically urge that this action will produce, via a chain of unintended
consequences, the exact contrary of the objective being proclaimed and pursued.‖ (Hirschman, 1991:11)

Por aqui o argumento do efeito perverso apareceu incontáveis vezes, dos anos 1850 aos 1880.
Está no Demônio Familiar, a abolição geraria antes desgraça que elevação para o escravo. Alencar o
reitera em O Tronco do Ipê, publicado no ano nervoso do Ventre Livre:

5 Segundo Charles Tilly (1883:264-5), um repertório de ação coletiva é:―a limited set of outlines that are learned, shared, and acted out through a
relatively deliberate process of choice. (…) they do not descend from abstract philosophy or take shape as result of political propaganda; they
emerge from struggle. (…) [they] designate not individual performances, but means of interaction among pairs or larger sets of actors.(…) When
the claims in question would, if realized, affect the interests of other actors, we may speak of contention. Thus, repertoire of contention are the
established ways in which pars of actors make and receive claim bearing on each other‘s interests.‖
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―O conselheiro, que não perdia ocasião de angariar as simpatias dos fazendeiros de quem dependia a
sua reeleição, fez um discurso a respeito do tráfico.
— Eu queria, disse ele concluindo, que os filantropos ingleses assistissem a este espetáculo, para terem o
desmentido formal de suas declamações, e verem que o proletário de Londres não tem os cômodos e
gozos do nosso escravo.‖ (Alencar, 1871, vol 2:126)

A situação de escravidão, embora má, seria superior à resultante da libertação em massa, já que
os senhores brasileiros, comedidos e civilizados, proveriam à escravaria melhores condições que as dos
operários na Europa.
O Alencar deputado e ministro pelo Partido Conservador continua o Alencar ficcionista. Em suas
Cartas de Erasmo, dirigidas ao Imperador entre 1867 e 1868, quando se conversava sobre o Ventre Livre
no Conselho de Estado, a escravidão aparece como instituição natural, própria à infância das sociedades
e, como tal, parte das dores de nascimento da civilização moderna:

―(...) na história do progresso representa a escravidão o primeiro impulso do homem para a vida coletiva,
o elo primitivo da comunhão entre os povos. O cativeiro foi o embrião da sociedade; embrião da família no
direito civil; embrião do estado no direito público (Alencar, 15/7/1867:65)

No Brasil, a escravidão cumprira tarefas do state-building, crucial na colonização e no


povoamento: ―Sem a escravidão africana e o tráfico que a realizou, a América seria ainda hoje um vasto
deserto.‖ (Alencar, 15/7/1867:69-70); ―a raça africana entrou neste continente e compôs em larga escala
a sua população (...). Eis um dos resultados benéficos do tráfico.‖ (Alencar, 20/7/1867:77).
Benéfica mesmo para o escravizado. A retórica bíblica dos norte-americanos, que Corwin
(1968:164) encontrou também dentre os espanhóis, foi menos usada no Brasil para enquadrar a
escravidão como sina, na linha da maldição de Caim, e mais para situá-la no âmbito da caridade cristã: o
resgate do ―selvagem‖ seria obrigação do bom católico, que assim salvaria alma doutro modo perdida
(Alencastro, 2000:155ss). Retirar o africano de seu continente de origem foi socorrer seu corpo da guerra
e livrar sua alma do fetichismo. A escravidão como princípio civilizador, argumento de Aristóteles usado já
no caso espanhol, dá à instituição a chancela de humanitária, ratificada pela ―mais sã doutrina do
evangelho.‖ (Alencar, 15/7/1867:74-5).
Outro bordão brasileiro que repete a retórica cubana (Corwin, 1968:164;163) é o
excepcionalismo da escravidão na América abaixo do Equador: leniente, fundada na cordialidade entre
senhor e escravo, antes forma de patriarcalismo, organização social de sabida vantagem, a de amortecer
conflitos.
Nessa forma a escravidão virou costume que resiste à caneta do legislador: ―A decadência da
escravidão é um fato natural, como foi a sua origem e desenvolvimento. Nenhuma lei a decretou;
nenhuma pode derrogá-la.‖ (Alencar, 20/7/1867:92). Ao idealismo ingênuo contrapõe-se o realismo
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amargo. Ninguém a deseja indefinidamente, mas atacá-la de chofre originaria dominó perverso:
bancarrotas na economia (Alencar, 15/7/1867:71) e anarquia social:

―Chegado o termo fatal, (...), a escravidão cai decrépita e exânime (...). Mas antes de seu prazo, quem fere
mortalmente uma lei, derrama sangue, como se apunhalara um homem.‖ ―um sopro bastará para
desencadear a guerra social, (...), lançar o Império sobre um vulcão‖ (Alencar, 20/7/1867:78;86)

Trazida pela colonização, legitimada pelo catolicismo, enraizada na economia e nos costumes6,
a escravidão seria infensa a qualquer meneio legislativo, que traria apenas maremoto e ressaca. Cegos
para tantos e tamanhos riscos, os partidários do Ventre Livre abraçariam o abominável meio-termo, capaz
de acender a esperança, incitando os escravos a encurtarem o prazo a separá-los da liberdade futura.
O Barão de São Lourenço pensava da mesmíssima maneira. Disse-o ao Senado em 8 de junho
de 1868: no Brasil isso de escravistas era invenção, havia homens de bom senso, com sua inseparável
companheira, a prudência:

―Senhores, ninguém no Brasil combate a emancipação ou a cessação da escravidão. (...) Porém quer-se
um procedimento racional, prudente e prevenido, não se sacrificando a propriedade atual e o descanso e a
segurança da maioria dos cidadãos brasileiros ao triunfo precipitado de uma ideia, por melhor que ela
seja.‖

O exemplo estrangeiro aí estava para provar o infausto do progressismo. Eis a guerra civil norte-
americana, avizinhando a ―anarquia‖ e a ―desgraça pública‖. Na Espanha ainda se ―marcha com
prudência‖. Disso carecem os brasileiros. Como legislar sobre a escravidão na falta de censo da
população escrava? Que o ministério antes o providencie. Como alterar o status quo às portas do
processo eleitoral? Que se aguarde o novo parlamento. Ponderação, ponderação. ―Essa reforma afeta
gravemente todas as fortunas, põe em risco a ordem pública (...)‖. E os resultados? Incertos, completava
o Marquês de Olinda:

―Uma só palavra que deixe perceber a idéia de emancipação, por mais adoranda que ela seja, abre a
porta a milhares de desgraças... Os publicistas e homens de estado da Europa não concebem a situação
dos países que têm escravidão. Para cá não servem suas idéias.‖ (Apud Nabuco, 1897-9:705)

Isso no curso da discussão do Ventre Livre, quando o Barão de Três Barras alertou contra a
apropriação do repertório abolicionista, as ―falsas idéias de filantropia, importadas do estrangeiro‖, vinham

6O Brasil e as colônias espanholas de Cuba e Porto Rico viveram intensamente seu estatuto de colônias agroexportadoras, o que redundou
numa assimilação da escravidão nessas sociedades num número, profundidade e intensidade jamais vivenciada em casa pelos britânicos e
experimentada pelos norte-americanos apenas em parte de seu país.
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―perturbar a sociedade em seus fundamentos, atacando a propriedade, garantida pela lei e respeitada por
tantos séculos.‖ Andrade Figueira, que apreciava uma hipérbole, achou que o projeto do governo fora
―escrito por pena estrangeira.‖ (apud Paulino, 1871:22;24). Paulino, narrador dos engalfinhamentos de
Conservadores nessa matéria, acusou São Vicente de querer voar puxando-se pelos cabelos, sem ―um
reclamo da opinião‖, escorado apenas em ―inspiração infeliz‖ (Paulino, 1871:30).
Ninguém em sã consciência acreditava na perenidade da escravidão. Mesmo os mais arraigados
concordariam com o imperador em 1867: a questão era definir forma e oportunidade. A primeira, ordeira,
a segunda, longuínqua. Inspirando-se alhures para apressar o ritmo social, o abolicionismo se
autosabotava, pois que evolução ligeira desanda em revolução. E aí, senhores, mais que a ordem
escravocrata, perder-se-ia a ordem monárquica.

2. Futilidade
São Vicente, autor do primeiro projeto do Ventre Livre, retrucou a Paulino, que o imobilismo fazia
da escravidão um tonel das Danaides (apud Paulino, 23/08/1871). Aquele a que as 50 filhas do rei de
Argos estavam condenadas a encher ininterruptamente, pois que se tratava de barril furado. Do que se
esqueceu São Vicente, mas não Paulino, é que houve o dia em que as Donaides viram-se desincumbidas
de encher o pote. Bastou esperar. Tudo acaba nesse mundo, até penitência grega.
A escravidão vai seguir a marcha lenta do desenvolvimento social, sem meios artificiais, ―pelo
curso natural das mortes‖, como o asseverou o Marquês de Olinda (Anais do Conselho de Estado,
2/4/1867). À política convém se ausentar, cuidando de evitar perturbações ao tempo, que murchará o que
antes florescia.
O segundo argumento reacionário mais comum, diz Hirshman, é esse da futilidade da reforma. O
reformismo se assentaria numa ilusão, ignorando leis que regem a vida social e impedem alterar suas
estruturas profundas. Só o negam ingênuos e hipócritas - que cumpriria desmascarar (Hirshman,
1991:72;79). No espírito de O Leopardo, tudo muda apenas para permanecer o mesmo.
Andrade Figueira, deputado pelo Rio de Janeiro, a quem, em 1888, Joaquim Nabuco chamaria
―coração de bronze‖, apontou aos correligionários o inútil do Ventre Livre, em reunião do Partido
Conservador em 1871. Julgava ―grande inconveniência de legislar-se sem dados, que só a estatística
podia fornecer, e que talvez por si sós bastassem para demonstrar a possibilidade de uma solução lenta
e suave, sem abalo da riqueza pública e particular, e respeitando todos os direitos.‖ (apud Paulino,
1871:22). Além do que, a situação de escravidão produz indivíduos incapazes de viver à solta, precisados
de regramento e orientação. A vida é conforme Deus a criou, com uns no topo outros na base. O
desaparecimento de uma hierarquia apenas gera outra. De modos que a melhor política é o faire niente.
Paulino já a praticava. Homem forte e parte orgulhosa do mais reacionário dos gabinetes
imperiais, o de Itaboraí, diplomara-se em obstar. O gabinete preferiu cair por terra, em setembro de 1870,
a incluir o tema na fala do trono. Somente governo irresponsável, julgava, lançaria na agenda esse
melindre, sem meios de resolvê-lo. É verdade, há barulho lá fora, no estrangeiro e na sociedade, e o
11

Imperador teima nisso espasmodicamente. Mas a maioria de Conservadores como de Liberais sabe que
enrosco dessa monta entrega-se a Cronos.
Seu ex-colega de faculdade, José Maria da Silva Paranhos, logo Visconde de Rio Branco, que
antes rezava para o mesmo deus, trocou-o por Marte. Veio à guerra, com o Ventre Livre estufado no
peito. Negligente com a etiqueta política, quer se impor ao país a fórceps, ajuíza Paulino, a maioria
premindo a minoria no Parlamento, recusando negociar o cerne, com desrespeito de regimentos e
praxes, maculando a Constituição. A proposta original, da lavra de Pimenta Bueno, ingressou no sistema
político por porta torta, a do poder moderador, em vez de usar a da Câmara - claro vício de origem.
Rejeite-se in limine lei fadada à contestação, por inconstitucional, e ao olvido, por afronta à sociedade
(Paulino, 1871: 30ss).
Fútil mudança promovida por líder incapaz. Na operação-desmoralização do chefe de gabinete,
Paulino desenhou Rio Branco como incongruente. Em 1867, no Conselho de Estado, falara em transição
de 20 anos, e, agora, em mudança imediata. Que país seguirá um volátil, traidor de seu partido, de sua
convicção?
Afetando o modo de vida da sociedade imperial, a emancipação é nó que se desatará sem essa
espada de Alexandre do Ventre Livre, mas pelo andar do cabriolé do desenvolvimento social (1871:44). A
―elevação‖ da

―(...) ordem moral, intelectual, econômica e política, haviam de obrar com muito mais vigor no sentido de
extinguir-se a escravidão do que essa medida antijurídica, injusta, perturbadora, imprevidente, desumana
e opressora, por meio da qual se quer obter a emancipação da geração futura com menospreço [sic] do
direito e sacrifício de grandes interesses. (Muitos apoiados; muito bem.)‖ (Paulino, 1871:45)

Paulino é incansável e imbatível no ofício de torcer raciocínios adversários, pinçando em


abolicionistas famosos, Tocqueville, Grey, Broglie, a Anti-Slavery Society britânica, advertências para o
nefasto da abolição por ―meias-medidas‖ (Paulino, 1871: 47-8).
A mais elegante das negativas ao Ventre Livre veio do mais elegante dos Conservadores, João
Maurício Wanderley, Barão de Cotegipe. Lavado em bacia de ouro ao nascer (Pereira,1931:88), homem
dos mais finos do Segundo Reinado, talhado para o comando em política como de seu disputado salão,
ao qual acorriam beldades, talentos musicais e literários, como Machado de Assis, Cotegipe tinha seu par
de luvas de pelica. Premido por Paulinistas e Riobranquistas, deu por inútil conversa e projeto e
simplesmente se ausentou dos debates. Mais adiante o reencontraremos na resistência, mas nesses
princípios de guerra ao abolicionismo, houve por bem espalhar nos corredores, que lá tinha em casa
―uma espingarda velha‖, mas de público, ajuntou ao faire niente de Andrade Figueira um parlare niente.

3. Ameaça
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A ameaça escrava é onipresente no repertório moral do Segundo Reinado. A maldição de Cam


assoma no poema épico de Manuel Araújo de Porto Alegre, de 1866, Colombo, anunciando a desgraça:

―(...) Conspira a escravidão, sempre irritada


Contra a mão que a subjuga, e vingativa
O crime injecta nos virginios lábios
Do infante que amamenta, e que aborrece
Qual renovo de planta infesta e iníqua.
Quando o sangue de Abel tingio a terra
Aos pés de seu irmão, surgio a morte,
E a injustiça no mundo propagou-se.
Veio a raça de Cam, raça maldicta,
E co'ella a escravidão; veio o escravo,
Veio o homem sem pátria, sem família,

Sem vontade, sem crença, atado ao jugo


Do plaustro errante do senhor que odeia, (...).―

O clima é de medos e ódios. Nervos saltando nos pescoços, para aonde, aliás, saltariam
deputados e senadores uns sobre os outros, se a sobranceria aristocrática falhasse em contê-los,
conforme depôs Paulino:

―(...) se me conservo sempre calmo, é, Sr. presidente, fazendo às vezes grande esforço sobre mim
mesmo, porque meu espírito está debaixo de dolorosa pressão vendo meus parentes, meus amigos, meus
comprovincianos e tantos Brasileiros na mais triste expectativa, dominados por fundadas inquietações e
temores, ameaçados na vida, na propriedade e em interesses dignos da maior consideração.‖ (Soares de
Souza, 1871: 11).

Entre elevações de vozes, acusações de golpe do governo contra a minoria,


inconstitucionalidade do projeto, ameaças de república e de insurreição (de escravos como de
proprietários), xingamentos polidos, outros nem tanto, oradores enervados, lenços empapados, e mesmo
desmaios, a tramitação do Ventre Livre transcorreu como conversa sobre o que de fato era: o fim de um
mundo.
Opunham-se os que julgavam que manter o status quo era alterá-lo um pouco, a turma Rio
Branco, aos que entendiam que a semântica de ―manter‖ comportava mal o verbo ―modificar‖, a patota
Paulino. O argumento paulinista mais usado contra a liberdade dos escravos por nascer é a terceira
categoria de Hirshman (1991:81;121), a da ameaça, raciocínio emprestado de capítulo de Victor Hugo,
―Ceci tuera cela”: qualquer reforma, mesmo se desejável, envolve custos ou consequências inaceitáveis,
desestabilizadoras, minando instituições sociais valiosas.
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Adotando perspectiva comparada, os contra-abolicionistas brasileiros lançaram exemplos mal


sucedidos de abolição, edificando uma retórica do medo: medo da rebelião escrava, da fragmentação do
país, da crise econômica, da queda da monarquia. Base da ordem, a escravidão não desapareceria sem
convulsão social. A guerra civil, como a norte-americana, e a revolução, do Haiti e de São Domingos,
exemplos surrados aqui como no debate espanhol (Corwin, 1968: 164), miravam o pânico, como Célia
Azevedo (2004) demonstrou.
Essas Cassandras colavam o temor da desorganização econômica ao terror da desordem
política, combinando efeitos deletérios do fim da instituição nos Estados Unidos e no Haiti, numa
síndrome do caos.

―Quanto à desorganização do trabalho, arrastando consigo a desorganização da propriedade, porque


estes dois fatos se prendem intimamente, exercendo um sobre o outro influência recíproca e necessária, o
projeto a prepara em larga escala, de golpe (...).‖ (Deputado Pinto Moreira, Anais da Câmara dos
Deputados, 7/8/1871)

O próprio Visconde de Rio Branco, comandante do pelotão Ventre Livre, vira antes, em 1867, no
mínimo avanço o desabar do temporal. Condenando a reverência aos propagandistas abolicionistas
estrangeiros, Rio Branco (então apenas Paranhos), apontou o monóculo noutra direção, a guerra norte-
americana, tirando lição de imobilismo:

―Este exemplo por ora parece-me mais favorável ao statu quo do que à inovação que atualmente se
pretende no Brasil. (...) O estado atual da sociedade brasileira, ou a encaremos pelo lado político e moral,
ou a consideremos sobre o ponto de vista dos interesses econômicos, não incita a um passo precipitado
no terreno dessa questão social, pelo contrário, faz recuar com terror ante dela‖ (Atas do Conselho de
Estado, 2/4/1867)

Rio Branco mudou de ideia, no espírito de Don Fabrizio, para voltar a Lampeduza. Paulino, não.
Aferrou-se ao status quo. Primeiro como chefe de fato do gabinete Itaboraí, quando barrou a
confabulação em torno do projeto que São Vicente gestava. Agora, no tempestuoso debate de 1871,
dirige a dissidência contra o ―furacão emancipador‖ (Soares de Souza, 1871: 38) do gabinete de Rio
Branco, rachando os Conservadores - para sempre.
Nas negociações, Paulino está inflexível, sem se apear do veto ao cerne do projeto, a libertação
dos filhos de escrava. Em plenário, nega quórum e levanta objeção formal: o governo atropela o
regimento e tratora a minoria com subterfúgios que a impedem de se manifestar (daí, aliás, os parcos
registros de escravismo). A liberdade de opinião abafada pelos defensores da liberdade do ventre
(Soares de Souza, 1871:5;6).
A abolição é imperativo da civilização e da religião: ―Ninguém sustenta aqui a perpetuidade da
escravidão (Apoiados). Já disse noutra ocasião e repito: Neste século das luzes para homens que
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professam a lei do Evangelho a causa da escravidão está julgada e para sempre!‖ (Soares de Souza,
1871: 8). Mas, o princípio deve se adequar à circunstância:

―A questão de que tratamos é por sua natureza uma questão toda prática e na qual a solução não pode
ser determinada por princípios absolutos.‖ ―(...) os pontos que interessam no debate são a apreciação das
circunstâncias do país e o alcance da medida que se pretende decretar: o dever de todos nós é não deixar
irrefletidamente expor o país a uma crise violenta, acautelar antes de tudo e defender os grandes
interesses de nossa pátria. (apoiados; muito bem)‖ ―[E agir] (...) sem atentar contra a propriedade, sem
perturbar as relações existentes, sem prejudicar os grandes interesses que infelizmente estão ligados e
por muito tempo hão de firmar nessa instituição (Apoiados).‖(Soares de Souza, 1871:48-9;8-9;47)

Paulino (1871: 26;14) julga intolerável impor ao país ―reforma que influa no modo de ser da
sociedade, alterando as relações estabelecidas por leis anteriores‖, pois que afronta a Constituição e o
direito de propriedade. Deus sabe ―as conseqüências desastrosas que dela hão de provir‖.
O deletério, Paulino elenca, se derramará em três campos. Na economia, será a quebra das
fortunas, a desorganização do trabalho e da produção. O descrédito das instituições políticas acarretará a
queda do regime, quiçá por revolução, a ―perigosa anarquia‖. A lei fere a ordem em seu leito profundo, o
estilo de vida da sociedade imperial, ―vem romper muitas relações firmadas em hábitos que se
consolidaram no nosso modo de viver.‖

―A escravidão, senhores, é uma instituição, que se radicou em nossa sociedade, prendeu-se ao modo de
ser de nossa vida social e com ela formou um todo compacto, do qual não é possível arrancá-la
violentamente sem que esse mesmo todo se ressinta e se manifestem perturbações na ordem de cousas
que sob diferentes aspectos com ela afinal veio a fazer corpo.‖ (Soares de Souza, 1871:43)

Eis o perigo dos perigos. A abolição desbarrancará o solo cultural aristocrático, as hierarquias,
os costumes, toda ―uma ordem de cousas que repousa na fé social‖, aonde se enraízam economia e
política (Soares de Souza, 1871: 60;43;54). O Barão de Três Barras acrescia a perda do amálgama
social: o desvirtuamento da ―relação benévola entre senhores e escravos‖ em ―algozes diante de vítimas‖
(Anais do Senado do Império, 15/9/1871). Conclusão: pelos ―motivos os mais ponderosos, que é
escusado assinalar longamente, pois que estão na consciência de todos, a emancipação simultânea,
quer imediata, quer diferida, é atualmente inaceitável no Brasil (...)‖ (Soares de Souza, 1871:44).
Em vez de se fiar nos modelos abolicionistas sempre à mesa, o inglês, o francês, o espanhol, tão
dissonantes do Brasil em seu ―procedimento‖, pois que neles ―(...) os governos defenderam os interesses
existentes contra a propaganda e davam satisfação às representações dos proprietários das colônias, do
comércio e dos mais interessados. (Apoiados)‖ (Soares de Souza, 1871:27), conforme reconhecera até o
Duque de Broglie, ―insuspeito‖ abolicionista francês. O governo inglês resistira por um quarto de século
em respeito a colonos de além-mar. Idem para a França, que se calçou em recenseamentos e pareceres
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―preparatórios‖. O exemplo invejável é a Rússia. Apesar de autocrático, o governo negociou, o Czar ouviu
proprietários, reuniu delegados em assembléia nacional, que discutiu por 3 anos e meio os 331 projetos
das comissões provinciais. Eis aí, Paulino (1871:27-9) exultava, uma maravilha de modelo decisório.
Já o governo Rio Branco empurra os proprietários para o precipício. Serão secundados pelo
regime. O Ventre Livre fará com

―(...) que se divorciem da monarquia classes como o comércio e a lavoura que a tem até hoje firmemente
apoiado. (...) Ou pensa o Sr. presidente do conselho que a monarquia constitucional no Brasil pode
dispensar o apoio das classes mais consideradas da sociedade ?― (Soares de Souza, 1871:34)

Paulino se irritava com a retórica emotiva do abolicionismo: ―Que lei é esta que apela para o
sentimento e coloca com ele em luta manifesta o interesse? (Muito bem)‖. (Soares de Souza, 1871: 57).
Era a toada de seu parente, o Visconde de Itaboraí, que adendou profecia. A abolição gestaria
―Os assassinatos, as insurreições mais ou menos extensas, e quem sabe mesmo a guerra servil (...).‖
(Anais do Conselho de Estado, 2/4/1867). Como a Helena de Tróia, passaria de fascinante a fatal.

O leitor versado em Segundo Reinado terá notado que os exemplos acima vêm das hostes
Conservadoras. Talvez, de fato, os Vermelhos tenham sido mais contundentes em seu realismo político
atávico. Mas da boca de muitos Liberais se ouviriam melodias assemelhadas. A escravidão era valor
compartilhado pela elite imperial e corporificado em seu modo de vida, ossatura do mundo social do
Segundo Reinado, mas que poucos ousaram explicitar no debate público, à maneira de Martinho
Campos, aliás, um Liberal, e talvez o único homem de todo o Segundo Reinado a declarar-se de peito
aberto ―escravocrata da gema‖ - assim compelindo todos os que tratamos do assunto a citá-lo pela
enésima vez.
No seu estertor, contudo, esse modo de vida ameaçado pela mudança ganhou forma discursiva,
o escravismo de circunstância, e alimentou uma política contra-abolicionista, um conjunto de práticas de
resistência, igualmente suprapartidário: bloqueio político, articulação de braço na sociedade, os clubes da
lavoura, e, adiante, de milícias antiabolicionistas.
Paulino a tudo isso comandou com o denodo com que polia suas abotoaduras. Seu amigo
fraterno, o ―da gema‖, o auxiliará, assim como o ―coração de bronze‖ de Andrade Figueira, e mais uma
porção de sequazes menos vistosos. Adiante, Paulino dividirá seu império com o aveludado Cotegipe,
destinado a grande vilão desta história. Face à ―ameaça abolicionista‖, vingou essa santíssima liga
Emperrada.

III. O Repertório Moral do Abolicionismo


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Para que houvesse movimento abolicionista no Brasil era preciso destoar de Paulino e quebrar
com a visão da escravidão como natural. Temperley (1981:29) nota que ―Before slavery could become a
political issue – or even, in the proper sense, a moral issue – what needed to be shown was that the world
could get along without it.‖ Enquanto a sociedade escravista era modo de vida corriqueiro, a escravidão
não era problema social. Podia ser dificuldade da ordem da economia, era, mas no plano das demais
commodities, não como tema que o conjunto da sociedade precisasse enfrentar. Por esse lado, era
invisível e não se resolve o que nem se vê. A mudança de percepção acerca do assunto tem a ver com o
processo de modernização que a sociedade brasileira viveu nos anos 1860 e 1870 e com a subseqüente
difusão de um repertório de novas ideias e ascensão de novo tipo de sensibilidade.
O repertório abolicionista anglo-americano, conta David Davis (1992:22ss), se amparou em
fontes intelectuais variadas: o pensamento da Ilustração, em particular a tese de Montesquieu da
escravidão como estorvo à felicidade humana; a ―ética da benevolência‖, que Adam Smith representa,
antagonizando escravidão e progresso humano; a fonte Quaker, da escravidão como pecado (a mancha
de Caim invertida) e o primitivismo literário, colando o africano no bom selvagem. Embora trate de tudo
isso, Davis adverte – secundado por extensíssima bibliografia – que a vertente que vingou como ética
orientadora do abolicionismo angloamericano foi o proselitismo Quaker. Ao longo dos séculos 18 e 19, a
religião foi a principal difusora também por lá de uma nova sensibilidade, humanitarista, que conformou
certa simpatia de grupos de elite para com seus subalternos, afinal comungando da mesma natureza
humana. O humanitarismo estofou o romantismo, mas foi sobretudo sua versão religiosa que abriu trilha
para os escravos ascenderem de mercadorias a pessoas (Temperley, 1981).
Quando o abolicionismo começou a ganhar corpo dentre nós pôde então contar com esse
repertório e dele colher esquemas de pensamento, imagens, metáforas, retórica e frames para ajudar na
deslegitimação da escravidão.
Assimilação seletiva, por duas razões. Primeiro, o contexto era outro. Qual os escravistas, os
abolicionistas atentaram à sua circunstância, bem diversa daquela do abolicionismo angloamericano, e
isso deu lugar diferente para a religião nos dois casos, já veremos. Segundo, o tempo era outro. O
repertório abolicionista angloamericano formou-se em fins do século XVIII enquanto o abolicionismo
brasileiro desabrolhou na segunda metade do XIX. Muita água correra por baixo dessa ponte, carregando
novos esquemas de pensamento, prescritores da aplicação da ciência ao entendimento da sociedade e
da política. O cientificismo somou-se ao humanismo.
Ideias desembarcadas de vapores. Vinham na cabeça dos que iam ao estrangeiro – as viagens
bordavam a biografia da elite imperial; ou encadernadas em livros, panfletos, revistas. Assim aportaram
frames antiescravistas, que constituíram o que Gamson e Meyer (1996:285-6) chamaram de uma
―retórica da mudança‖ – o contraponto à retórica da reação de Hirschman. Nela, o crucial é apontar a
urgência e possibilidade da mudança: ―Collective action frames deny the immutability of some undesirable
situation and the possibility of changing it through some forme of collective action.‖ (Gamson e Meyer,
1996:285). No nosso caso, a retórica da mudança se bifurcou em três, apontando a liberdade como
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exigência do direito moderno, da marcha do progresso e da sensibilidade do homem civilizado. Esse


coquetel, temperado pela tradição e pela conjuntura local, redefiniu a percepção acerca da escravidão de
natural a condenável, abrindo as portas para o ativismo político coletivo contra ela. E deu ao
abolicionismo brasileiro sabor distinto do angloamericano: mais laico que religioso, científico em vez de
filosófico, antes dramático que circunspecto.

1. A retórica do direito
Uma das formas mais recorrentes de argumentação abolicionista está no manifesto da
Sociedade Contra o Tráfico de Africanos e Promotora da Colonização e da Civilização dos Índios: a
escravidão não pode ―(...) ser promovida por utilidade dos mesmos Escravos; e nem mesmo se pôde ser
sustentada por Direito Natural (...).‖ (SCTAPCCI, 1852:7). José Murilo de Carvalho (2005:37) chamou a
atenção para essa longeva linhagem, de José Bonifácio a Joaquim Nabuco, que põe a escravidão de
usurpadora do direito natural à liberdade.
Na mesma toada, o discurso de Caetano Alberto Soares no Instituto dos Advogados, em 1845, e
publicado como opúsculo dois anos depois, responde simetricamente ao argumento do escravismo de
circunstância da naturalidade da escravidão. Como no abolicionismo angloamericano, Montesquieu
combate Aristóteles: nenhum homem pode escolher a condição de escravo (Soares, 1847:7; 8; 10-1):
―(...) o fato certo e inegável de terem muitas nações modernas abolido de todo a escravidão entre si
demonstra até a evidência que, nem ela é inerente à natureza humana, e nem condição necessária da
sociedade.‖ (Soares, 1847:8). Soares impugna o realismo da tradição brasileira e seu ―direito de fato‖: as
―circunstâncias‖ da colonização não justificam a escravidão, produto da ―força bruta‖; não a pode garantir
o direito (Soares, 1847:15;12). Por essa ótica, o escravo é portador de direitos naturais confiscados por
costumes e instituições sociais.
O pólo completar desse argumento é o da incompletude da formação nacional. O Brasil, país
novo, precisa universalizar a liberdade, dotando todos os seus membros de cidadania, de modo a concluir
o processo de state-building (Carvalho, 2005:48ss). Daí porque Caetano Soares escolheu o 7 de
setembro em 1845, para, em sessão da Ordem dos Advogados do Brasil, tematizar a escravidão. Nesse
frame da abolição como complemento da Independência nacional – também mantra de Bonifácio a
Nabuco (Cf Carvalho, 2005) - cabem dois sentidos. Apenas o fim da escravidão ―nos porá a salvo e
independentes dessa coadjuvação externa, mais orgulhosa, do que filantrópica, mais humilhante do que
oficiosa.‖ (SCTAPCCI, 1852:18), isto é, a abolição consolidaria estado soberano em relação à tutela
estrangeira – a dos ingleses. Outro sentido, vingando pelos anos 1880, é a completude da nação, a
abolição compondo o corpus de cidadãos em igualdade civil.
Referir a abolição à data fundadora da nacionalidade foi jeito de legitimá-la colando a causa na
tradição nacional. Funcionou também como diferenciador, provendo ao abolicionismo brasileiro um frame
ausente no angloamericano: o da liberdade como requisito da existência da nação.
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Mas como a nação era de proprietários, e de proprietários de escravos - os escravocratas de


circunstância não deixavam esquecer -, o direito de propriedade demorou a ser contestado. Somente ao
ganhar escala nacional, nos anos 1880, o movimento entrou por aí. Antes, a argumentação foi legalista,
amparada em tratados do Brasil com a Inglaterra, em 1831 e 1836. Pela letra da lei, os ―africanos livres‖
entrados desde então seriam livres. Os governos, de vista grossa, aceitavam essa gente como tão boa
escrava quanto o mais da escravaria. Mas embora nunca vigentes, os acordos puseram o tráfico negreiro
na ilegalidade e abriram porta de contestação jurídica ao escravismo. O método adiante popularizado, as
―ações de liberdade‖, volvia a legislação contra si mesma. De forma que o que principiou como retórica
filosófica, na linha do direito natural, desembocou em retórica jurídica, de tribunal.

2. A retórica da compaixão

―Como muitas vezes acontece, criou uma escrava o filho de seu senhor, e serviu-lhe de mãe, não
obstante a diversidade de condições: pode acaso haver cousa mais dura, mais revoltante ao coração
humano, do que este filho, assim criado, deixar na escravidão essa mesma, que por tão longo tempo o
pensou, amamentou, que tantas vezes o apertou ao coração, desejando sofrer em lugar dele (...)? Se a lei
fizesse valer neste o direito à gratidão, obrigando esse filho a dar a liberdade aquela a quem tanto deve
(...), a medida haveria de encontrar a simpatia de todos os brasileiros (...).‖ (Soares, 1847: 20-1)

Justamente a simpatia a retórica da compaixão visava suscitar. À imagem da mãe de leite se


juntam as da inocência infantil destroçada no cativeiro, da pureza da moça conspurcada pela sexualidade
de seu dono, a velhice sem arrimo, a purgação do açoite, a humilhação de ser objeto de compra e venda,
num quadro compungido de pessoalização do escravo.
Aqui e ali comentários como o de Caetano Soares aparecem desde a Independência, mas como
fórmula reiterada, popular, a humanidade do escravo só se generalizou no Brasil na segunda metade do
século XIX. Gilberto Freyre apontou como esse tempo, de modernização e urbanização, produziu rápida
mudança de costumes, deslocando poder social do campo para a cidade, do sogro proprietário de terras
aos filhos e genros bacharéis urbanos, e do poder simbólico do padre, com sua bíblia, ao médico, com
seu compêndio científico. Esse ―novo estilo de vida‖ (Freyre, 2003: 952) competia e contrariava o
patriarcal-rural.
Para essa configuração contou a mãozinha do avanço tecnológico: navio a vapor, telégrafo e
máquinas tipográficas incrementaram a troca de informações do Brasil com o mais da América e a
Europa, circulando inovações sociais, do corte do paletó ao último movimento político, de invenções
científicas a empreendimentos econômicos, e, naturalmente de ideias. Tudo atiçando a perspectiva
comparada.
O estilo de vida moderno relaxou a severidade patriarcal. Isso se vê no vestir, roupas menos
sisudas, coloridas, a pulseira dos dândis, que ornava os abolicionistas Castro Alves e Joaquim Nabuco, e
no afrouxamento da pressão sobre as mulheres, que, sem se livrarem da costura, adentraram artes,
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educação e, moderadamente, reinos masculinos, a ciência e a política. Embora o ethos hierárquico da


sociedade aristocrática siga dominante, gestava-se outro modo de vida, puxando para o democrático.
Modo de vida urbano, afastando-se da lida da fazenda, que aprimorava a polidez. O processo
civilizatório, mostra Elias, de maneira não linear, mas cumulativa, gera os comportamentos contidos,
aplacando a violência física em favor de formas sutis e simbólicas de imposição das hierarquias.
Condutas antes normais – o uso da força do pai contra o filho, do marido contra a mulher, do homem
contra os animais - passam a percebidas como bárbaras e sentidas como repugnantes. O espocar dessa
sensibilidade melindrosa ao longo do Segundo Reinado, Freyre a registrou em Sobrados e Mucambos.
Nova visada acerca da escravidão veio no pacote. A sensibilidade moderna, que se dissemina
nos séculos XVIII e XIX, Peter Gay e Keith Thomas o registraram para diferentes áreas da experiência
social, como as definições do self e da natureza, inclui uma delicadeza, uma simpatia pelos diferentes,
afinal comungando da mesma natureza humana. As sociedades da Europa Ocidental, a Inglaterra e os
Estados Unidos gestaram desde 1750, argumenta Haskell (1992:107;130-2), essa ―sensibilidade
humanitarista‖: percepção aguda do sofrimento e ética da ajuda desinteressada a terceiros7. Trata-se de
inflexão na consciência moral moderna, segue Haskell, por gerar intervenção contra males que afligem a
outrem. A motivação abolicionista nasce dessa nova sensibilidade e do imperativo moral decorrente, que
leva a agir contra hierarquias e desigualdades até então naturais e legítimas:

―What happened was that the conventional limits of moral responsibility observed by an influential minority
in society expanded to encompass evils that previously had fallen outside anyone´s operative sphere of
responsibility. The evils in question are of course the miseries of the slave (...).‖ (Haskell, 1992:133)

O humanitarismo é o cerne de um novo repertório moral que desnaturaliza o modo de vida


escravista: o escravo passa de mercadoria a pessoa, de escravo a escravizado; a escravidão migra de
fenômeno natural, da ordem imutável das coisas, a fenômeno social, de causação terrena, moralmente
condenável, afetivamente abjeta, politicamente modificável, suscitando ação contrária.
O novo repertório moral está na origem do primeiro abolicionismo, o inglês. Lá a sensibilidade
antiescravista alimentou um movimento social (Drescher, 1986): com mobilização popular culminando em
legislação antiescravista no Parlamento. Embora a celeuma explicativa seja grande, a maioria dos
intérpretes contemporâneos concorda que as razões humanitárias foram decisivas para que a maior
potência econômica do mundo abrisse mão do negócio mais rentável do século, cometendo o que
Drescher (1997) chamou de ―econocídio‖. Também Haskell (1992) e Davis (1992), embora divirjam
noutros pontos – o vetor causal entre humanitarismo e capitalismo sobretudo - , estão de acordo quanto à
importância do humanitarismo e de sua difusão pela rede religiosa Quaker na gênese do abolicionismo

7 Conta Bowie Moniz (2010) que apenas por essa hora salvar um afogado virou imperativo moral na Inglaterra, pois que até então a morte era
tida por decisão divina, no curso da qual não se devia intervir. Uma das primeiras formas de associativismo humanitário é justamente uma
sociedade para salvar os afogados, seguida por sequência de sociedades filantrópicas, de temperança, protoambientalistas e antiescravistas, na
Inglaterra e nos Estados Unidos.
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angloamericano. Os Quakers inverteram o frame da mancha de Caim, para criar o bordão da escravidão
como pecado. Em trabalho revisionista, Brown (2006) reitera a tese, vendo na nova sensibilidade,
alimentada pelo protestantismo, o embrião da motivação abolicionista.
Esse bom coração tem lugar na história do abolicionismo brasileiro. Mas lugar diferente. Que o
catolicismo é matriz cultural potente no Brasil ninguém nega. Encarnado na vida cotidiana, nos ritos
sociais, na linguagem, durante o Império tinha o atributo adicional de religião de estado. Esta
contingência obrigou os abolicionistas brasileiros a lidarem com a religião de maneira distinta de seus
antecessores angloamericanos.
A questão tem dois lados. Um é o uso da estrutura eclesiástica, a igreja, as irmandades,
confrarias e redes religiosas como suporte do ativismo abolicionista. Desse lado, em que o protestantismo
tanto fez pelos ativistas angloamericanos, o catolicismo ajudou pouco aos brasileiros. Religião de estado
significava atarracamento de braços e pernas ao status quo monárquico. Responsável pela legitimação
simbólica do regime – as instituições imperiais como vontade divina - esse catolicismo hierárquico achou
para os escravos espaço na base da escada para o céu, últimos dos filhos de deus, embora biblicamente
exortados a crescer e se multiplicar. Não que não houvesse padres emancipacionistas, havia. Mas
causava espécie. Contestar instituição-base do estado monárquico, no qual a igreja católica era parte
interessadíssima, fugia ao bom-tom. Críticas de eclesiásticos à escravidão foram, por isso,
parcimoniosas.
No outro lado, o do dogma, da liturgia e da linguagem religiosa, o catolicismo compareceu na
campanha abolicionista toda. O repertório sacro - imagens, episódios e personagens bíblicos, a elocução
dramática dos profetas - foi acionado na propaganda. No manifesto da Sociedade Contra o Tráfico, a
escravidão antagoniza com a moral, a religião e os sentimentos: ―os nossos Escravos são filhos de Deus,
como nós somos, nossos iguais, e nossos Irmãos perante o Criador― (SCTAPCCI, 1852:21). E em seu
discurso no Instituto dos Advogados, em 1845, Caetano Soares se vale de figuras e metáforas religiosas,
referindo parábolas do velho testamento de uso dos escravocratas para desmontá-las: o escravismo é
―antes uma lei civil que não um preceito religioso, ou uma máxima moral.‖ (Soares, 1847:13). Do panteão
católico, São Paulo vem referendar que ninguém ―quereria ser tratado pelo Senhor Nosso Deus‖ da
mesma maneira como ―tratamos nossos escravos‖ (Soares 1847:24). Adiante, no debate do Ventre Livre,
uma representação à Assembléia, manuscrita, sem assinatura e intitulada A escravidão examinada à luz
da Santa Bíblia, traz rol exaustivo de episódios e personagens de velho e novo testamento para teimar
contra a legitimidade cristã de escravizar. Começando pela maldição de Noé ao filho Cam e indo,
infatigável, até o evangelho de Lucas, tira lição contrária: ―O espírito do Senhor repousou sobre mim
porque me escolheu para pregar (...) a libertação dos cativos (...).‖ (Apócrifo, 1871:30).
O mesmo se acha em Úrsula, romance de 1859, no qual o senhor tinge as mãos de sangue: ―o
assassino é maldito do senhor; Caim o foi.‖ (Reis, 1859:159). A danação se transfere do escravo ao
escravocrata. Em vez do pecado justificar a escravização, o escravista passa o pecador; ele é agora o
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―satanás expulso do céu e ferido no orgulho‖ (Reis, 1859:167). Perfeito simétrico inverso do Demônio
Familiar.
A referência à maldição de Caim escancara a raiz cristã do tropos da piedade para com o
sofrimento escravo. E não é difícil ver sucedâneo do cristo no escravo. O humanismo se nutre de
cristianismo. É a liberdade, em vez da escravidão, a compromisso do caridoso, que se cristaliza numa
retórica da redenção, oposta à retórica do sacrifício – econômico e político – do escravismo de
circunstância. Nisso tudo estamos vizinhos do repertório anglo-americano, com a diferença de que lá o
protestantismo fez em larga escala o que o catolicismo por aqui fez minguadinho.
Essa linha de argumentação cristã não some nunca, nem da boca dos abolicionistas ateus, mas
vem quase sempre contaminada, inseminada, pelo romantismo.

o abolicionismo como drama

―(...) Chora, escravo, na gaiola


Terna esposa, o teu filhinho,
Que, sem pai, no agreste ninho,
Lá ficou sem ti, sem vida.
(...)
Hoje, escravo, nos solares
(..)
Nem da lua a luz serena
Vem teus ferros pratear.
Só de sombras carregado,

Da gaiola no poleiro
Vem o tredo cativeiro,
Mágoas e prantos acordar.‖
(Gama, 18618)

A metáfora de Luiz Gama do escravo passarinho na gaiola mostra como o abolicionismo


brasileiro foi cevado no romantismo. O grande movimento artístico do século XIX foi ao mesmo tempo
raiz e fruto da nova sensibilidade, com suas formas grandiloquentes e emoções em transbordamento: o
amor é passional, a compaixão é sacrifício, a devoção é suicida. Seus efeitos aparecem na vida amorosa
e familiar, em romances, música, poesia, teatro. E na política. Uma política de hipérboles: nos discursos,
gestos, atos, que vão ao encontro de público igualmente sequioso não da tragédia, com o seu pathos
imutável, mas do drama, com seu final feliz.

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Esse poema não consta da primeira edição das Trovas Burlescas, de 1859.
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Davis apontou o ―primitivismo literário‖ como uma das justificações do antiescravismo


angloamericano. Aqui a tradição nacional engasgou na deglutição desse naco do repertório estrangeiro,
expurgando a identificação entre africano e bom selvagem. O primitivismo plasmou-se como indianismo,
desandando em legitimador da escravidão. Mas o romantismo, qual o catolicismo, teve uso ambíguo
dentre nós, abrigando também maneira rebelde, de sensibilização antiescravista, que está na literatura,
no teatro e na retórica parlamentar, completando a faina de persuasão intelectual no plano dos
sentimentos, insuflando e difundindo a sensibilidade humanitarista, mormente a partir dos anos 1860.
Sayers (1956:86ss), analisando a produção literária brasileira sobre a escravidão, distinguiu meia
dúzia de personagens típicos: o negro nobre, o escravo sofredor, o escravo fiel, o mulato melancólico, a
mulata faceira, o escravo fugitivo9. Os dois últimos simbolizam os perigos do escravo para o senhor: a
sensualidade e a revolta. Já os quatro primeiros são variações do tropos de dignificação do escravo,
presente no romance proselitista da norte-americana Harriet Beecher-Stowe, A Cabana do Pai Tomás
(1852), best-seller mundial, incorporado na propaganda abolicionista na Espanha, em Cuba (Surwillo,
2005) e no Brasil - Nabuco (1900) exagera que o leu mil vezes.
O ―escravo sofredor‖ inspirou outra mocinha de coração antiescravista, encravada em São Luiz.
Professora de primeiras letras e, ao que tudo indica, mulata, Maria Firmina dos Reis (1825-1917) foi a
primeira brasileira a escrever romance, o referido ―Úrsula, romance original brasileiro‖, que Sayers
estranhamente não refere, e que saiu em 1859, depois, portanto, de O Demônio Familiar. Maria Firmina,
ao costume, se escondeu no pseudônimo - ―uma maranhense‖. No enredo, Úrsula discrepa de A Cabana
do Pai Tomás, mas partilha seu espírito piedoso. A narrativa encharcada de arrebatamentos promove a
detratação sentimental da escravidão. Há certo arrojo no princípio, focalizando ato de bravura de Túlio,
delineado como homem de nobres sentimentos, para só depois revelar sua condição de escravo:

―(...) o mísero ligava-se a odiosa cadeia da escravidão (...).‖ ―Coitado do escravo! nem o direito de arrancar
do imo peito um queixume de amargura dor!! Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua
sublima máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo –, e deixará de oprimir com tão repreensível
injustiça ao teu semelhante!...aquele que também era livre no seu país...aquele que é seu irmão?!‖ (Reis,
1859:13;14)

Cristianismo e romantismo irmanam os escravos à família humana de seus donos. O status de


Túlio na trama é inverso ao de Pedro, de O Demônio Familiar: em vez de gerar, soluciona problemas do
triângulo romântico básico herói-mocinha-vilão. Sempre em posição edificante, resiste ao abominável
Fernando; salva o bom moço Tancredo, que o alforria e por quem sacrifica a própria vida. Escravo-herói.
Nesse passo a escravidão se desumaniza. À narrativa lamuriante de Túlio da separação forçada
da mãe em pequeno, somam-se os horrores do tráfico, vividos na pele pela velha africana, a ―boa e
compassiva‖ Susana (Reis, 1859:88):

9 Para classificação ligeiramente diferente, ver Haberly, 1972.


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―(...) dois homens apareceram, e amarram-me com cordas. Era uma prisioneira – uma escrava! (...) os
bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, (...). Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de
infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. (...). Para caber a mercadoria humana no
porão fomos amarrados em pé para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como animais para
que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes (...). Davam-nos a água
imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado
muitos companheiros a falta de ar, de alimento e de água. (...). Os mais insofridos entraram a vozear.
Grande Deus! Da escotilha lançaram sobre nós água e breu fervendo (...).‖(Reis, 1859:93-4).

Outra inversão de Alencar: bárbaros são os traficantes, não os escravos. Susana ilustra o
calvário do africano: vítima do tráfico e do mau senhor e a tudo resignada. A tríade de personagens
escravos se completa com Antero, cuja índole é degradada no vício graças à sordidez do regime
escravista.
O tropos do bom senhor e do mau escravo, de O Demônio Familiar, vira de ponta cabeça: o
senhor vil, o escravo nobre. O comendador Fernando é ―fera indômita‖, ―detestável e rancoroso‖, de
―coração de tigre‖; ―bárbaro senhor‖, que trazia seus escravos ―Esfaimados, semi-nus, espancados
cruelmente‖ (Reis, 1859: 133; 146; 94;147;136). Um personagem secundário ilustra o amo sádico, adepto
de ―acoites os mais cruéis, das torturas do anjinho, do cepo10 e outros instrumentos de sua malvadeza, ou
então nas prisões onde os sepultava [aos escravos] vivos (...).‖ (Reis, 1859:94).
O escravo sofre: ―Ah! Senhor! Que triste cousa e a escravidão!‖ (Reis, 1859:138). Prisioneiro da
menoridade, aguarda a redenção por obra da superioridade moral do bom senhor11. A liberdade é uma
dádiva. O escravo vingativo, pavor da elite imperial, cede ao compassivo. Apela à compaixão em vez de
ao medo.
O final é o dramalhão: morrem Susana, Tancredo e Túlio e a heroína; o vilão, que a ama, se
desespera. É que o mau senhor precisa também ser redimido. Nem vencedores, nem vencidos. Do lado
escravo, dor e resignação, do lado senhorial, arrependimento e culpa. O foco recai sobre a instituição:
―Cadeia infame e rigorosa, a que chamam: - escravidão?!‖ (Reis, 1859:27-8).
Úrsula incita o apiedamento face ao escravo. Delineia o anti-excepcionalismo da escravidão
brasileira, com sua violência intrínseca e repugnante para os nervos modernos. O esquadro romântico, o
mesmo de Alencar, serve para desenhar um escravo varado de desgostos e descortinar a escravidão
como moralmente intolerável, emocionalmente lancinante. A mesma operação humaniza o escravo e
desumaniza a escravidão.

10 Os ―anjinhos‖ e os cepos eram instrumentos de tortura, funcionando o primeiro por meio de anéis que comprimiam progressivamente os
polegares por meio de pequena chave ou parafuso, já o segundo era um grande tronco de madeira que o escravo devia manter sobre a cabeça e
que ficava atado com uma corrente ao seu tornozelo.
11 É verdade que o mau senhor convive com o bom, que se encarna em Dona Luiza, que ―poupou-me os mais acerbos desgostos da escravidão‖

(Reis, 1859:90), depõe Túlio. Note-se a idealização: o escravo fala como um nobre.
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Essa discrepância em relação à tradição imperial abre filão para uma literatura abolicionista. O
escravo sofredor se torna leit motif da literatura romântica, nos poemas de Castro Alves, no romance de
Bernardo de Magalhães e que tais. Nota Sayers (1956:85), raro será o escritor a ignorar o tema
doravante12. A escravidão fere a sensibilidade, suscita o choro empático. A simpatia envolve o escravo,
objeto de uma retórica da compaixão.
Haberly (1972:370) fala de uma ―distance between Romanticism and Abolitionism‖ no Brasil. Pelo
que fica dito, não me parece. O romantismo foi ambíguo, servindo aos dois lados, legitimando a
escravidão e criticando o escravismo, ao armar dramatização da escravidão, oferecendo forma para a
nova sensibilidade.
O romantismo, que alimentou a retórica da compaixão, deu também lado para o manejo da
retórica da ameaça, arrebatada do escravismo de circunstância. Joaquim Manuel de Macedo, membro do
Partido Liberal, foi por aí, no curso do debate sobre o Ventre Livre: a abolição seria ―conselho da
prudência e o recurso providente dos proprietários.‖ (Macedo, 1869:4). Seu As vítimas-algozes. Quadros
da escravidão, de 1869, divisa dois caminhos para uma literatura da escravidão: o ponto de vista do mal
que o senhor causa ao escravo, que é o de Úrsula, ou o do mal que o escravo causa ao senhor, que é o
seu, com o drama azedando em tragédia. Sua defesa enviesada da abolição aponta não o benefício do
escravo, mas o prejuízo evitado ao senhor, com três narrativas exemplares do mau desfecho. O criolo
Simeão mata os senhores enquanto dormem; o feiticeiro Pai-Raiol incita o envenenamento das
plantações de café; a mucama Lucinda corrompe a sinhazinha. Ressurge o perigo doméstico de Alencar,
o escravo traiçoeiro, que fere a mão que o protegia, no asilo inviolável do escravocrata, sua casa. Mas
em Alencar, o senhor controla o processo, cabe a si a alforria. Macedo sublinha a insegurança do
proprietário13. A escravidão é instituição-bomba, que eclodirá a qualquer momento, como nos Estados
Unidos e no Haiti. O senhor está à mercê do ódio do escravo, imerso no que Sussekind (1991) e Azevedo
(2004:219) chamaram de ―imaginário do medo‖.
Imagens assemelhadas estão em Mauro, o Escravo (1864), de Fagundes Varela (Sayers,
1956:110ss) e, com toda a potência romântica, na Tragédia no Mar (1865), de Castro Alves, e em seu
Bandido Negro, onde a fúria escrava arrepia a segurança escravista:

―Trema o céu... ó ruína! ó desgraça!


Porque o negro bandido é quem passa,
(...)
Dorme o raio na negra tormenta...
Somos negros... o raio fermenta
nesses peitos cobertos de horror.
Lança o grito da livre coorte,

12O Navio Negreiro, de Castro Alves, é de 1868; Mariana, de Machado de Assis, de 1871, já analisado por Chaloub (199?).
13Não que fosse emancipacionista extremado: ―A emancipação imediata e absoluta dos escravos (...) seria louco arrojo que poria em convulsão o
país, em desordem descomunal e em soçobro a riqueza particular e pública, em miséria o povo, em bancarrota o Estado‖ (Macedo, 1869:4).
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lança, ó vento, pampeiro da morte,


este guante de ferro ao senhor. ‖
(...)
E o senhor (...)
murmure, julgando-se em sonhos:
‗Que demônios são estes medonhos,
que lá passam famintos e nus?‘
(...)
Somos nós, meu senhor, mas não tremas,
nós quebramos as nossas algemas
para pedir-te as esposas e mães.
Este é o filho do ancião que mataste.
Este - irmão da mulher que manchaste...
Oh! não tremas, senhor, são teus cães.
(...)
Para vós fez-se a púrpura rubra.
Fez-se o manto de sangue para nós.
(...)
Meus leões africanos, alerta!
Vela a noite... a campina é deserta.
(...)
seja o bramo da vida arrancado
no banquete da morte lançado
(...)
Cai orvalho de sangue do escravo,
cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
cresce, cresce, vingança feroz.‖

Eis aqui versão amedrontadora do Demônio Familiar. O animal doméstico veste a carapuça do
demônio vingativo, num grito revolucionário que ameaça se consumar. Castro Alves combinou à maestria
o apelo romântico à humanidade do escravo com a inversão da retórica senhorial, numa lírica da
iniquidade da escravidão. O escravo sofredor é o rebelde romântico, cuja causa é justa, os frames do
sofrimento e da injustiça se sobrepõem. E numa métrica que incita a declamação. Foi o que os jovens
abolicionistas fizeram adiante, decorando os versos e elevando o autor a ícone do movimento – poeta
dos escravos.
Do demônio de Alencar ao de Castro Alves, o escravo surge como figura bivalente, tanto ―é
punida como pune‖ (Sayers, 1956:77). Acendendo a um só tempo a compaixão e o medo, a literatura fez
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aqui mais que a religião: difundiu a sensibilidade humanitarista, desnaturalizou a escravidão e chamou a
mobilização contra ela. A geração que mamou o leite romântico fez política apaixonada.

3. A retórica do progresso
A ideia de que a escravidão deve ter fim para que o Brasil entre no rol das nações civilizadas é
velha. O par liberdade-civilização aparece desde o célebre projeto de José Bonifácio à primeira
Constituinte. Nos anos 1850, a Sociedade Contra o Tráfico voltou a reclamar dessa ―desgraça da
escravidão permanente a nodoar a nossa civilização.‖ (SCTAPCCI, 1852:20). O tema virou uma
constante. Nessa senda, a ciência, mais que a religião e a literatura, oferecia justificativas: escravidão
conflita com progresso, obstrui a marcha da civilização.
O XIX brasileiro foi do tipo meio-a-meio: romântico até o tutano, científico até a mania. Os
abolicionismos angloamericano e francês se valeram dos clichês românticos, mas da onda científica
pegaram só o comecinho. A ideia de progresso é matriz do abolicionismo angloamericano e francês, mas
não a principal. Davis pontua o darwinismo como força de reação, ao naturalizar o espezinhamento do
fraco pelo forte, mas, como a religião e o romantismo, a ciência podia ser puxada para os dois lados, o
abolicionista e o escravocrata.
Chegando cedo no século, os movimentos europeus e norte-americano ficaram sem chance de
aproveitar o maremoto sociológico da segunda metade do oitocentos, Auguste Comte. Tardio, o
abolicionismo brasileiro pode se beneficiar dele e da coqueluche da ―política científica‖. Positivismo,
spencerianismo, darwinismo e outros evolucionismos foram encampados no Brasil não tout-court, mas
aos pedaços, meio pasteurizados, em combinações até esdrúxulas do ângulo teórico, mas de coerência
cristalina como instrumento de crítica às instituições e valores do antigo regime, incluída a escravidão
(Alonso, 2002).
Rezava esse repertório da política científica que as sociedades tradicionais sofreriam
movimentos irrefreáveis de desenvolvimento e diferenciação, que afetavam da economia ao pensamento.
O vendaval de industrialização, urbanização e secularização arrasaria instituições e estruturas
aristocráticas. No ciclone, a escravidão, típica do mundo antigo, entrava em choque incontornável com a
modernidade. Comte argumentou nesse sentido: a escravidão era ―normal‖ na antiguidade, ajustada com
o estágio de desenvolvimento social. Na modernidade, virava arcaísmo inconciliável com a Marcha da
Civilização. Nessa sociologia nascente, a escravidão era relação social, sendo os pólos, senhor e
escravo, mutuamente influentes. Elevar o escravo era ascender o senhor no elevador da civilização. A
ciência da sociedade vinha ajudar a corrigir a aberração histórica, traçando o rumo das decisões estatais
- daí a ―política científica‖. A sociologia, aliás, se candidatava a substituir a religião na direção da
sociedade.
A política científica se disseminou no Brasil, nos anos 1870 e 1880, nas faculdades imperiais, na
imprensa, funcionando, qual nas colônias espanholas (Corwin,1968:169), como fonte extra de
deslegitimação da escravidão. Embocadura que permitiu definir a escravidão como prática anacrônica e
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atestar a eficácia do trabalho livre, ―mais vantajoso que o trabalho forçado‖ (Caetano, 1847:15-6), como
base da prosperidade dos países modernos.
Mesmo no plano da imagética, donde a religião jamais sumiu, a política científica trouxe sua
maleta de figuras e metáforas laicas, químicas, físicas e sobretudo biológicas, reforçando a
representação da escravidão como câncer. O ―cancro moral‖ está em Úrsula; aparece em discurso de
Pedro Pereira da Silva Guimarães, na Câmara, em 22 de maio de 1852, a escravidão como ―um cancro
roedor da prosperidade da nossa Pátria‖; e, mais perto do sentido aqui visado, em As vítimas-algozes:
―cancro social”, ―enorme que afeia, infecciona, avilta, deturpa e corrói a nossa sociedade‖ (Macedo,
1869:3;1).
Um largo rol de brasileiros manejou o repertório científico contra a escravidão. O mais combativo
nessa linha foi Teixeira Mendes, que do altar da igreja positivista do Rio de Janeiro comandou
proselitismo abolicionista vigoroso nos anos 1880. Mas aqui pela hora do Ventre Livre quem fez o serviço
foi outro maranhense: Francisco Antonio Brandão Jr, formado em ciências naturais por Bruxelas, de onde
trouxe A Escravatura no Brasil e a Agricultura e Colonização no Maranhão (1865) na valise. Livro taludo e
primeira aplicação de Comte à história brasileira, explicava que a Marcha da Civilização, maiúscula como
é, sepultara a escravidão por aí afora. Essa instituição arcaica atravancava o curso do desenvolvimento
nacional, o Brasil estaria em ponto de perder o bonde do progresso e arrastar-se ao fosso norte-
americano da guerra civil. Donde o imperativo de converter escravos em colonos, ou ―servos de gleba‖,
de modo que chegássemos rapidinho ao Estado Positivo.
A imbricação entre positivismo e abolicionismo daí para frente foi tão constante que, para marcar
o abolicionismo do protagonista de uma peça, Joaquim Nunes (1884:29) o caracterizou como positivista.
A família de Brandão Jr., de proprietários no Maranhão, também juntou as bolas. O irmão o admoestou
contra isso de usar Comte para fazer-se ―reformador do Brasil‖: ―Não podias escolher mais detestável
assunto (...), hoje és tido como um louco, um utopista!‖ (apud Carta de Francisco Brandão Jr. a Pierre
Laffitte, 4/7/1865 in Lins, 1964:97).
Também a religião científica do espiritismo, arribando pelo Brasil mais ou menos na mesma
hora, punha o pé no acelerador da marcha da civilização. O engenheiro baiano Antonio da Silva Neto
(1836-1905) foi dos primeiros a discutir o Ventre Livre, ainda em 1866, em A Coroa e a Emancipação do
Elemento Servil, e Estudos sobre a Emancipação dos Escravos no Brasil e, em 1868?, com Novos
Estudos sobre a Emancipação dos Escravos no Brasil. Tinha Allan Kardec na cabeça e se valia de
perspectiva comparada, do repertório abolicionista francês, para deslegitimar a hierarquia racial: ―(...) não
encontra a fisiologia diferença radical entre o homem branco, o homem vermelho e o homem preto; nota-
se, simplesmente, para a classificação zoológica os acidentes das cores.‖ (Silva Neto, 1868:8 apud Valle,
2010:30-1). Contrário ao princípio de indenização, Silva Neto embrulhava emancipação rápida, imposto
territorial e educação para ex-escravos em prosa meio cristã, meio científica.
Toada parecida saía pela boca cearense de Adolfo Bezerra de Menezes (1831-1900), o espírita
brasileiro. Além dessa prerrogativa, era político veterano do Partido Liberal. E médico. Aliás, não é fortuito
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que tantos deles fossem abolicionistas, a profissão científica encaminhava para o progresso. Bezerra de
Menezes entrou nessa parada, em 1869, com A Escravidão no Brasil e as medidas que convém tomar
para extingui-la sem dano para a nação, folheto que é a cara da década: crítica moderada à escravidão
mais projeto de emancipação gradual: ventre livre e imposto para bancar programa de colonização e
educação para ex-escravos.
O médico diagnosticava o câncer: ―Fundo, no seio da sociedade brasileira, têm penetrado as
raízes malditas do cancro da escravidão. (...) essa lepra social (...).‖ (Bezerra de Menezes, 1869:31).
Aduzia argumentos pró-emancipação extraídos da religião, da economia, da moral e reiterava a inversão
da retórica da ameaça: a postergação traria degeneração dos costumes e a rebelião escrava, do Haiti e
de São Domingos, ou a guerra civil americana (Bezerra de Menezes, 1869: p33-36; 56;55).
Acusava o governo de reter o carro da história e parir ―engodos‖: ―a promessa solene da Coroa
não passou, até hoje, de simples promessa. O nosso governo estuda, mas não resolve; estudará
eternamente, mas nunca resolverá nada (...).‖ (Bezerra de Menezes, 1869:48). A alternativa era a dos
ingleses, a auto-organização da sociedade, para apressar a marcha da civilização e do Ventre Livre:

―Fique o governo em sua eterna impassibilidade, vamos nós simples cidadãos, mas dedicados obreiros do
progresso de nossa terra; espalhando a semente por todos os ângulos do império, que um dia virá em que
do Norte ao Sul um brado de indignação, partido de todos os peitos brasileiros, levará de vencida a inércia
de uns, e o emperramento de outros, e dará ao mundo o exemplo grandioso de um povo marchando
adiante de seu governo na iniciação e promoção das grandes reformas que a civilização do nosso século
reclama.‖ (Bezerra de Menezes, 1869: 50).

A política científica impactou a maneira de ver a escravidão e, como nessa fala se lê, apontou
uma estratégia de mobilização, a formação de associações civis. Por lacuna de política de estado,
haveria movimento social. Bezerra de Menezes poria palavra em ato, virando um dos diretores da
Libertadora Cearense, em 1880.

4. Castor e Pólux
Durante o Segundo Reinado dois estilos de pensamento ficaram em tensão. A escravidão é mal
necessário, instituição normal de um estágio de civilização, alicerce da economia e da política, no qual
convém não mexer. Ou o ―escravizado‖ é vítima de ordem social injusta e a escravidão é nódoa moral,
empecilho arcaico, relação social a urgir por superação. São maneiras especulares, confirmando o que
diz Hirschman sobre a equivalência entre retórica da reação e retórica da mudança. Tópicas do
escravismo de circunstância aparecem de ponta-cabeça no abolicionismo. Os argumentos são como
Castor e Pólux, gêmeos de pais diferentes, mas de destinos entrelaçados, um a sustentar a escravidão e
o outro a combatê-la, a partir de lógicas assemelhadas.
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Contra a tese da futilidade da reforma, os abolicionistas insistiram no temerário da inércia. No


imobilismo mora o perigo. Contra o efeito perverso, desfiaram o rosário das virtudes da mudança, a
experiência alhures apontando o progresso - econômico, político e moral – das nações que cedo
aboliram, enquanto as que emperraram o processo purgaram o rebote. Já a ameaça escrava, igualmente
a brandiram, mas invertida, como motivo para apressar em vez de protelar a abolição.
O escravismo foi por muito tempo tácito; o abolicionismo foi sempre explícito. Dos anos 1850 aos
1870 cristalizou-se por aqui um repertório moral antiescravista, amparado nas retóricas do direito, da
compaixão e do progresso. Repertório mais amplo que os movimentos abolicionismos anteriores, que
adendou à religião e à arte, a ciência. As três alimentaram a deslegitimação da escravidão por
inconciliável com o direito, a sensibilidade e a civilização modernas, cevando uma retórica da mudança.
Esse novo estilo de pensamento desautorizava a retórica da reação do escravismo de circunstância,
baseado, de sua parte, na economia e na ratio política. Enquanto o escravismo foi realista até o osso, o
abolicionismo teve esta ignição ao mesmo tempo cientificista e sentimental.
Embora se possa ver de tudo um pouco ao longo da campanha, com os frames antiescravidão
em convivência, as tônicas destoam. O frame religioso, opondo escravidão e moralidade cristã, é mais
visível nos anos 1850. É também quando o apelo dramático do humanitarismo romântico assoma, indo
num crescendo até o fim da mobilização. Já a política científica é mais tardia, aportando nos anos 1870 e
abrindo campo para a expansão da retórica dos direitos dos cidadãos da revolução francesa. Avulsas ou
amalgamadas numa retórica da mudança fizeram o inferno dos escravocratas de circunstância.
Que, claro, responderam. A contenda entre os dois lados nunca foi, contudo, equilibrada. Ora
Pólux, ora Castor prevaleceu, conforme variações das oportunidades políticas. Nos anos 1850, o
escravismo de circunstância foi a maneira média de pensar, da qual o abolicionismo destoava. Pela
segunda metade dos anos 1880, esse mundo estará invertido: o escravismo de circunstância assoreado,
e o abolicionismo encarnando-se no senso comum, pondo de pé todos os cabelos que restavam a
Paulino.
Enquanto a retórica da reação rezava o imobilismo, a retórica da mudança empurrou o ativismo
político abolicionista. Gamson (1992, 1995) identificou os componentes que conferem a dado frame
potencial mobilizador. Um frame é eficaz como ignição para a ação política coletiva quando define certa
situação como injusta não por razões pessoais, concernentes a um individuo, mas por razões políticas,
que afetam muitas pessoas. Isto é, a injustiça precisa ser apresenta como resultante de ações sociais –
não como dado da natureza produzido por forças suprahumanas. Sendo socialmente produzida pode ser
socialmente transformada por meio de ação coletiva – não de protesto individual. Ação contra um inimigo
que o frame constrói, traçando divisão entre ―nós‖ que queremos a mudança e ―eles‖ os responsáveis
pela reprodução da injustiça. Amalgamando injustiça, agency e identidades coletivas relacionais os
frames incitam mobilização (Gamson e Meyer, 1996). Esse passo cognitivo as retóricas do direito e do
progresso o deram entre nós. Complementadas pela retórica da compaixão: sem um empurrãozinho na
sensibilidade, sem o ―choque moral‖ (Jasper, 1997), não há ação política em favor de outrem. Daí a
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importância de difundir um novo ―repertório moral‖: ―(…) images and rhetoric evoke strong negative
emotions (…). As such, (…) [they] can create moral shocks that contribute to both diagnostic and
motivational framing processes. (…), in the process denaturalizing and suggesting the mutability of
existing social arrangements‖. (Halfmann e Young, 2005:3).
Isso bem vale para o nosso caso. Por aqui o embate correu em palavras como em atos, conflito
moral e político a um só tempo. Movimento e contramovimento social foram às vezes violentos, mas
numa sociedade de gentlemen, nem o escravismo foi desabrido, nem o abolicionismo chegou a
revolucionário.

IV - O Marechal do Passado
Com o braço no de Maria Amélia, Paulino abre o baile que oferece no encerramento desta
tumultuada sessão legislativa. Sua ―espaçosa residência‖ está coalhada de ―viva luz que em ondas
alagava os salões artisticamente decorados, e o encantado jardim‖ (Diário do Rio de Janeiro, 14/9/1874
apud Soares de Souza), iluminando a fina flor carioca, a gente de imprensa, correligionários, inimigos de
seu partido e amigos desencaminhados no oposto – o caso de Martinho de Campos.
O clima é mais de consternação que de festa. O partido se abriu em dois, sem remédio. A
reforma do elemento servil feriu a ordem natural das coisas. Não compreendem Riobranquistas e muitos
Liberais que toda mudança implica desequilíbrio, perda. Tal qual a que logo se abaterá sobre si, quando o
nascimento do último filho lhe roubar ―a flor da minha alma‖. Seus olhos ficarão fundos, desenhando no
rosto pálido e calvo a viuvez sem consolo. Ausente Maria Amélia, a vida vai ―encobrir-se nas trevas da
imensa dor que só terminará comigo.‖ (Carta de Paulino Soares de Souza a João Álvares Soares de
Souza, 25/9/1877). A impotência diante do destino pessoal não dissuadirá Paulino de chefiar seu grupo
social. Doravante será só e unicamente a política da reação: ―A resistência a todos os excessos é um
dogma conservador; nessa resistência acompanho os meus amigos da minoria, hei de auxiliá-los quanto
puder (...).‖ (Paulino, 1871:41).
Maneiroso, mas intransigente, moderno em seu tradicionalismo, Paulino carrega o ethos
aristocrático no nome de seu Partido Conservador. Encarna o escravismo como expressão política, como
forma de pensar e como estilo de vida. Por isso toma a bazuca da resistência entre seus dedos longos e
finos. Perdida uma batalha, o bom general não abandona a guerra. Ali em sua antesala, defronte do
Visconde de Uruguay esculpido em mármore, Paulino enverga a chefia dos renitentes. Mas o pai foi um
construtor, com Eusébio e Vasconcellos, desse mundo político agora ameaçado por febre de reformas. Já
o filho é um conservador, guardião da obra dessas ―almas elevadas‖, que, se pudessem ―(...) inspirar-nos,
a nós que os desejamos imitar, dir-nos-ião hoje e sempre: ‗Defendei essa ordem constitucional que vos
legamos; (...) sustentai os grandes interesses de hoje, que encerram em si a prosperidade vindoura; aí
tendes na história os nossos exemplos, segui-os e passai-os a vossos filhos.‖ (Paulino, 1871:62).
Paulino é o escudeiro do tempo saquarema, bastião das instituições e do modo de vida do
Segundo Reinado. Vendo-o tomar as rédeas da reação, Firmino Rodrigues Silva chamou-o ―Marechal do
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Futuro‖ (Soares de Souza, 1923:88). Enganou-se. Paulino não vem abrir tempo novo. Diante do pai,
tradição cinzelada em pedra, sagra-se primeiro cavaleiro no zelo da ordem escravista, como será o último
a tombar, em 13 de maio de 1888. Comandando o exército da resistência, Paulino é o Marechal do
Passado.

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