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do bra11co 110 º''º u11do se de\1e n1e11os a i·azões de cará-

ter ct1lturaI do que ao uso arbitrário da violência e à i111po-


sição brutal de t1111a ideologia, co1no atestaria a recorrência
da 1)alavras "escravo" e "a11in1al" 11os escritos dos portugt1eses
e es1)a11l1ói . Essas ex1)ressões, a1)Iicadas aos não ocidentais,
configt1ra111 111t1ito 111ais t1n1 po11to de vista do1ninador do qtie
1)ro1Jria111ente u111a tradt1ção do desejo de co11l1ecer.
Iesse se11tido, Clat1de Lévi-Strat1ss 11os fala de uma en-
quete de ordem IJsicossociológica , empree11dida pelos mon-
ges da Orden1 de São Jerônimo. A pergt1nta se os índios eram
capazes l'de \'Í\rer por eles próprios, como camponeses de
Castilha'', a resposta negativa se i1npt1nha de imediato:

a \1erdade, talvez seus netinhos possam; além do mais, os


indígenas estão de tal modo entregues ao vício que ainda
se pode duvidar da sua capacidade; como prova, evitam os
espanhóis, recusam-se a trabalhar sem remuneração, mas
levam a perversidade até o ponto de presentearem os pró-
prios bens; não admitem repudiar os companheiros que tive-
ram as orelhas decepadas pelos espanhóis. [... ] Seria melhor
para os índios que se transfarmassem em homens escravos do
2
que continuassem a ser animais livres [... ] .

Em visível contraste, os índios de Porto Rico, seguindo


ainda as informações prestadas por Lé, i-Strauss nos Tristes
1

Trópicos, se dedicam à captura de brancos com o i11tuito de


os matar por imersão. Em seguida, dura11te se1nanas ficam
de guarda em torno dos afogados para saber se eles se sub-
metem ou não às leis de putrefação. Lévi-Strauss conclui
não sem certa ironia:

,;

2 LEVI-STRAUSS, Claude. Tristes Tropiques. Paris: Plo11, 1955, p. 82.

12 1 Silvia110 Santiago
d i11ocê11 i do í11díge11a . Dia11te des a fig ira ''er11 e]f1as
Ll ma aqt1eia111 o b1·a11co cab 1·ia }Jergt111tar e eles 11 ão
procura\ an1 cl1egar ao ê ·tase es1Jiritual pela duplicação dos
ge to . Ião acreditaria1n tan1bén1 c1ue poderia111 e11contrar 0
det1 do c1·i tãos ao fi11al c]os ''e ~ercícios espiritt1ais'', assim
co1110 o í11dios de Porto Rico teria111 se ajoell1ado dia11te do
e i)anl1ol afogado que tive e esca1Jado à putrefação?
fl:ntr o JJOVO indígenas da 111érica Lati11a a palavra
euro1Jeia, ]Jro11unciada e de1Jressa apagada, se perdia na sua
i111ateria]idade de voz, e 11u11ca se JJetrificava ein sig110 escri-
to, 11u11ca conseguia ii1stituir e1n escritura o i10111e da divin-
dade cristã. Os Í11dios só qt1eriam aceitar como 1noeda de
co111u11icação a representação dos acontecin1entos 11arrados
oral111ente, enquanto os co11quistadores e missionários insis-
tia111 11os be11efícios de u111a co11,1ersão milagrosa, feita pela
assirni]ação passiva da dot1trina trans1nitida oralmente. l11sti-
tuir o 110111e ele Det1s equivale a impor o código linguístico no
qL1al seu 1101ne circula em evicle11te transparência.
Colocar junto não só a representação religiosa como a lín-
gua et1ro1)eia: tal foi o trabalho a qt1e se dedicaram os jest1ítas
e os co11c1uistadores a partir da segunda metade do século
XVI 110 Brasil. As representações teatrais, feitas no interior
das tal)as indígenas, comporta1n a míse-en-scene de t1m epi-
sódio do Fios Sanctorum e um diálogo escrito metade em
portt1guês e a outra metade em tupi-guarani, ot1, de maneira
nlais precisa, o texto em português e sua tradução em tupi-
guara11i. Aliás, são numerosas as testemunhas que insistem
e1n assinalar o realismo dessas representações teatrais. Um
padre jesuíta, Cardim, nos diz qt1e, diante do qt1adro vivo
do n1artírio de São Sebastião, patro110 da cidade do Rio de
Janeiro, os espectadores não podiam esconder a emoção e as
lágrimas. A doutrina religiosa e a língua europeia conta 111 i-
nam o pensamento selvage1n, apresentam no palco o corpo

14 I Silvía110 Sa11tiago
perfurado por flecl1as, corpo e111 tudo se111ell1a11te a
)1 u111a110
outros corpos qt1e, pela cat1sa religiosa, e11contravam morte
paralela. Pouco a pot1co as re1)rese11tações teatrais propõem
t1ma substitL1ição defi.11iti''ª e ii1exorável: de agora en1 diante,
11a terra descol)e1·ta, o código li11gt1ístico e o código re]igioso

se e11co11tra111 inti111a1nente ligados, graças à i11tra11sigê11cia, à


astúcia e à força dos bra11cos. Pela mesma 111oeda, os índios
perden1 sua lí11gua e seu sisten1a do sagrado e recebem em
troca o substitt1to et1ropeu.
E'ritar o bilinguisn10 significa evitar o pluralis1no religio-
so e sig11ifica també1n impor o poder colonialista. Na álge-
bra elo conquistador, a unidade é a única medida que conta.
Un1 só deus, um só rei, uma só lí11gua: o verdadeiro deus,
o verdadeiro rei, a verdadeira língua. Como dizia Jacques
Derrida: ''O signo e o nome da divindade têm o mesmo
4
tempo e o mesmo lugar de nascimento'' . Uma pequena
correção se impõe na última parte da frase, o suplemento de
um prefixo que visa a atualizar a afirmativa: ''[ ... ] o mesmo
tempo e o mesmo lugar de renascimento''.
Esse renascimento colonialista produto reprimido de
uma outra Renascença, a que se realizava concomitantemen-
te na Europa à medida que avança apropria o espaço so-
ciocultural do Novo Mundo e o inscreve, pela conversão, no
contexto da civilização ocidental, atribuindo-lhe ainda o esta-
tuto familiar e social do primogênito. A América transforma-se
em cópia, simulacro que se quer mais e mais semelhante ao
original, quando sua originalidade não se encontraria na có-
pia do modelo original, mas na sua origem, apagada comple-
tamente pelos conquistadores. Pelo extermínio constante dos
traços originais, pelo esquecime11to da origem, o fenômeno de

4 DERRIDA, Jacques. De la Grammatologíe. Paris: Minuit, 1967, p. 25. (DER-


RIDA, Jacq11es. Grc11natología. Trad. Mirian1 Scl111aider111an e Re11ato Janine
Ribeiro. São Paulo: l~erspectiva, 1973).

Uina literatura nos trópicos 1 15


du1)licação se estabelece como a ú11ica regra \1álicla de civiliza-
~

ção. -e assim que \1e111os 11ascer })Of todos os lados essas cidades
de 110111e europet1 ct1ja única originalidade é o fato ele traze-
re111 a11tes do 1101ne de origem o acljetivo ''novo'' ot1 ''nova'':

I Ie''' Engla11d, I lue''ª Espafía, º''ª Fribt1rgo, Not1velle Fran-


ce etc. ' 1nedida que o te111po passa esse adjetivo pode guardar
- e n1uitas vezes gt1arda um significado difere11te daqt1ele
qt1e ll1e e111presta o dicio11ário: o no\'Osig11ifica bizarramente
fora de 1noda co1no 11esta bela frase de Lévi-Strauss: ''Les tro-
'
1)iques sont moins exotiques qt1e démodés'' (p. 96).
O 11eocolonialismo, a nova ináscara que aterrorizava os paí-
ses do Terceiro Mt1ndo e1n pleno século XX, era o estabeleci-
1nento gradual em outro país de valores rejeitados pela metró-
pole, era a exportação de objetos fora de moda na sociedade
neocolo11ialista, transformada no centro da sociedade de consu-
n10. Hoje, quando a palavra de ordem é dada pelos tecnocratas,
o desequilíbrio é científico, pré-fabricado; a inferioridade é con-
trolada pelas mãos que manipulam a generosidade e o poder, o
poder e o preconceito. Consultemos de novo Montaigne:

Eles são selvagens, assim como chamamos selvagens os


frutos que a natureza, por si só e pelo seu progresso habi-
tual, produziu; qt1ando, na verdade, são os qt1e alteramos
por meio de nosso artifício e desviamos da ordem natural é
que realmente deveríamos cha111ar sel\ agens. Nos prin1ei-
1

ros são vivas e vigorosas as verdadeiras, n1ais úteis e natu-


rais \'Írtudes e propriedades, as quais abastardamos nestes
outros na medida em que apenas os acomoda1nos ao deleite
do nosso gosto corrompido.

O renascimento colonialista engendra por sua vez uma


nova sociedade, a dos mestiços, cuja principal caracterís-
tica é o fato de qt1e a noção de unidade sofre revira\1olta
'

16 1 Silviano Sa11tiago
' co11taminada e1n fa or de u111a nlistt1ra sutil e complexa
e11tre o ele111ento et1ro1)et1 e o elen1e11to at1tóctone t11na
espécie de i11filtração progressiva efetuada pelo pe11sa111en-
to selvage111, ot1 seja, abertt1ra do único ca1ninl10 possível
qt1e poderia levar a descolo11ização. Cami11l10 percorrido
ao inverso do percorrido pelos colo11os. Estes, 110 desejo de
e ·terminar a raça indíge11a, recolhiam 11os hospitais as rou-
pas infeccio11adas das vítimas de varíola para depe11durá-las
co111 011tros presentes nos atalhos frequentados pelas tribos.
o novo e infatigável movimento de oposição, de mancha
racial, de sabotagem dos valores culturais e sociais impostos
pelos conquistadores, uma transformação maior se opera na
superfície, mas que afeta definitivamente a correção dos dois
sistemas principais que contribuíram para a propagação da
cultura ocidental entre nós: o código linguístico e o código
religioso. Esses códigos perdem o seu estatuto de pureza e
pouco a pouco se deixam enriquecer por novas aquisições,
por miúdas metamorfoses, por estranhas corrupções, que
transformam a integridade do Livro Santo e do Dicionário e
da Gramática europeus. O elemento híbrido reina.
A maior contribuição da América Latina para a cultura

ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de uni-


5
dade e de pureza : estes dois conceitos perdem o contorno
exato do seu significado, perdem seu peso esmagador, seu si-
nal de superioridade cultural, à medida que o trabalho de con-
taminação dos latino-americanos se afirma, se mostra mais e
mais eficaz. A érica Latina institui seu lugar no mapa da

5 En1 artigo de sig11ificativo títt1lo Sol da Meia Noite, publicado em 1945, Üs\vald
de Andrade detectava por detrás da Alemanha nazista os valores de unidade
e pureza, e i10 set1 estilo típico comentava com rara feliciclade: ''A Alen1anha
racista, purista e recordista precisa ser edt1cada pelo nosso mt1lato, pelo cl)inês,
pelo índio n1ais atrasado elo Peru ot1 do México, pelo africano do Sudão. E pre-
ciso ser misturada de t1n1a vez para sen1pre. Precisa ser desfeita no melting pot
do ft1turo. Precisa n1t1latizar-se''. Ponta de Lança. Rio, Civilização, 1972, p. 62.

U111a literatl1ra nos trópicos 1 17


ci\rilização ocide11tal graçé;1s ~10 1110\ri1ne11to c1e c1es\rio da nor-
111a, ati''º e destrt1idor gt1e tra11sfigt1ra os eleme11tos feitos e
i111utá\1eis qt1e os et1ro1Jeus exporta\ra111 para o Novo Mundo.
E111 ,·irtucle do fato de que a Ai11érica Lati11a 11ão pode inais
fec11ar st1as portas à i11\ asão estra11geira, 11ão pode ta111pot1co
1

ree11co11trar st1a condição de ''paraíso'', de isolan1ento e de ino-


cê11cia, co11stata-se co111 cinisn10 que, sem essa co11tribt1ição,
set1 produto seria mera cópia silêncio , t1ma cópia 111uitas
''ezes fora de n1oda, por causa desse retrocesso imperceptível
110 te111po, de qt1e fala Lé\1i-Strauss. Sua geografia deve ser uma

geografia de assi111i]ação e de agressi,,idade, de aprendizagem e


de reação, de falsa obediê11cia. A passividade reduziria seu pa-
pel efeti''º ao desaparecin1ento por analogia. Guardando seu
lugar na segt1nda fila, é, no entanto, preciso que assinale sua
diferença, marqt1e sua presença, uma presença mt1itas vezes
de \1anguarda. O silêncio seria a resposta desejada pelo impe-
rialis1110 cultural, ou ainda o eco sonoro que apenas serve para
a1)ertar 1nais os laços do poder conquistador.
Falar, escrever, significa: falar contra, escrever contra.

2.
Se os etnólogos são os verdadeiros responsáveis pela desn1is-
ti ficação do discurso da História, se contribuem de maneira
decisi\ a para a recuperação cultural dos povos colonizados,
1

dissipando o véu do imperialismo cultural qual seria pois


o papel do intelectual hoje en1 face das relações entre duas
nações que participam de u1na mesma cultura, a ocidental,
mas 11a situação em que uma mantém o poder econômi-
co sobre a outra? Se os etnólogos ressuscitaram pelos seus
escritos a riqueza e a beleza do objeto artístico da ct1ltura
desmantelada pelo colonizador como o crítico deve apre-
sentar hoje o complexo sistema de obras explicado até o pre-
sente por um n1étodo tradicional e reacionário cuja única

J8 I Silviano Sa11tiago
fonte tor11a- e a estrela i11ta11gível e pt1ra qt1e, se1n se dei-
xar coi1tami 11ar co11tamina brill1a para os artistas dos países da
inérica Latina, c1t1a11do estes dependem da sua luz para 0 seti
trabalho de expressão. Ela ilumi11a os movi111entos das mãos

lece a estrela co1no único valor qt1e conta. Encontrar a escada


e contrair a dívida que pode mi11i1n izar a distância insuportável
entre ele, mortal, e a i1nortal estrela: tal seria o papel do artis-
ta latino-americano, sua fl1nção na sociedade ocidental. É-lhe
preciso, alé1n do 1nais, dominar esse movimento ascendente
de que fala o crítico e que poderia inscrever seu projeto no
l1orizonte da cultura ocidental. O lugar do projeto parasita fica
ainda e sempre sujeito ao campo magnético aberto pela estrela
principal e cujo movimento de expansão esmigalha a origina-
lidade do outro projeto e lhe empresta a priori um significado
paralelo e inferior. O campo magnético organiza o espaço da
literah1ra graças a essa força única de atração que o crítico es-
colhe e impõe aos artistas este grupo de corpúsculos anô-
nimos que se nutre da generosidade do chefe de escola e da
memória enciclopédica do crítico.
Seja dito entre parênteses que o discurso crítico que aca-
bamos de delinear nas suas generalidades não apresenta em
sua essência diferença alguma do discurso neocolonialista:
os dois falam de economias deficitárias. Aproveitemos o pa-
rêntese e acrescentemos uma observação. Seria necessário al-
gum dia escrever um estudo psicanalítico sobre o prazer que
pode transparecer no rosto de certos professores universitários
quando descobrem uma influência, como se a verdade de um
texto só pudesse ser assinalada pela dívida e pela imitação.
Curiosa verdade essa que prega o amor da genealogia. Curio-
sa profissão essa cujo olhar se volta para o passado, em detri-
mento do presente, cujo crédito se recolhe pela descoberta de

20 1 Sílviano Santiago
ttma clí ida co11traída, de u111a ideia rot1bada, de t1111a i111agem
ou pala ra pedidas de emprésti1no. A voz profética e ca11ibal
de Pat1l Valéry 11os cl1ama: "Nada n1ais original, 11ada n1ais
intrí11seco a si que se ali1nentar dos outros. É preciso, porém,
digeri-los. O leão é feito de carneiro assi1nilado".
Feche1nos o parê11tese.
Declarar a falência de tal método i1nplica a 11ecessidade
de substituí-lo por outro em que os eleme11tos esquecidos,
neglige11ciados e abandonados pela crítica policial serão iso-
lados, postos em relevo, em benefício de um novo discurso
crítico, o qual por sua vez esquecerá e negligenciará a caça
as fo11tes e às influências e estabelecerá como único valor
crítico a diferença. O escritor latino-americano visto que
é necessário finalmente limitar nosso assunto de discussão -
lança sobre a literatura o mesmo olhar malévolo e audacioso
que encontramos em Roland Barthes na sua leitura-escritu-
ra de Sarrasine, este conto de Balzac incinerado por outras
gerações. Em S/Z, Barthes nos propõe como ponto de par-
tida a divisão dos textos literários em textos legíveis e textos
''escrevíveis'', levando em consideração o fato de a avaliação
que se faz de um texto hoje estar intimamente ligada a uma
''prática e esta prática é a da escritura''. O texto legível é o
que pode ser lido, mas não escrito, não reescrito, é o texto
clássico por excelência, o que convida o leitor a permanecer
no interior do seu fechamento. Os outros textos, os ''escreví-
veis'', apresentam ao contrário um modelo produtor (e não
representacional) que excita o leitor a abandonar sua posição
tranquila de consumidor e a se aventurar como produtor de
textos: ''remeter cada texto, não a sua individualidade, mas a
seu jogo'' nos diz Barthes. Portanto, a leitura em lugar de
tranquilizar o leitor, de garantir seu lugar de cliente pagante
na sociedade burguesa, o desperta, transforma-o, radicaliza-
-o e serve finalmente para acelerar o processo de expressão

Uma literatura nos trópicos 1 21


da própria experiência. Em outros ter1nos, ela o convida a
práxis. Citemos de novo Barthes: "que textos eu aceitaria es-
crever (reescrever), desejar, afirmar con10 t1ma força neste
d , ,
111un o que e o meu. . 7''

Esta interrogação, reflexo de u1na assinúlação i11quie-


ta e insubordi11ada, antropófaga, é sen1elhante a que fazem
há muito ten1po os escritores de uma cultura dominada por
outra: st1as leitu ras se explicam pela busca de 11m texto '~es­
crevÍ\1el)', texto que pode in citá-los ao trabalho, sc1 -~,- l hes de
n1odelo na organização da st1a própria escritura. Tais escri-
tores utilizam sistem aticam ente a digressão, essa forma mal
integrada do discurso do saber, como assinala Barthes. A obra
segunda é, pois, estabelecida a partir de um compromisso fe-
roz com o déjà-dit, o já dito, para empregar uma expressão
cunhada por Michel Foucault na análise de Bouvard et Pé-
cuchet, de Gustave Flaubert. Precisemos: com o já escrito.
O texto segundo se organiza a partir de uma meditação
silenciosa e traiçoeira sobre o primeiro texto, e o leitor, trans-
formado em autor, tenta surpreender o modelo original nas
suas limitações, nas suas fraquezas, nas suas lacunas, de-
sarticula-o e o rearticula de acordo com as suas intenções,
segundo sua própria direção ideológica, sua visão do tema
apresentado de início pelo original. O escritor trabalha sobre
outro texto e quase nunca exagera o papel que a realidade
que o cerca pode representar na st1a obra. Nesse sentido, as
críticas que muitas vezes são dirigidas à alienação do escritor
latino-americano, por exemplo, são inúteis e mesmo ridícu-
las. Se ele só fala da sua própria experiência de vida,
,,,
seu texto
passa despercebido dos seus conten1porâneos. E preciso que
aprenda primeiro a falar a língua da metrópole para melhor
combatê-la em seguida. Nosso trabalho crítico se definirá
antes de tudo pela análise do uso que o escritor fez de um
texto ou de uma técnica literária que pertence ao domínio

22 1 Silvia110 Santiago
público, do partido qL1e ele tira, e nossa a11álise se completará
pela descrição da téc11ica que o inesn10 escritor cria 110 set1
1110,·i1nento de agrec;são contra o modelo original, fazendo
ceder as ft111dações que o propt111ha1n co1no objeto ú11ico e
de reprodt1ção impossí\·el. O in1agi11ário, no es1Jaço do neo-
colo11ialisn10, 11ão pode ser 111ais o da ig11orância ou da i11ge-
nt1idade, nutrido por t11na 111anipulação simplista dos dados
oferecidos pela experiê11cia i1nediata do at1tor, mas se afirma-
ria mais e mais con10 t1ma escritura sobre ot1tra escritt1ra. A
obra segu11da, já qt1e ela em geral comporta t1ma crítica da
obra anterior, se in1põe com a violência desmistificadora das
pla11cl1as a11atômicas que deixam a 11t1 a arquitetura do corpo
ht1mano. propaganda tor11a-se eficaz porque o texto fala a
linguagem do nosso tempo.
O escritor latino-americano brinca com os sig11os de um
outro escritor, de outra obra. As palavras do outro tê1n a par-
ticularidade de se apresentarem como objetos qt1e fascinam
seus olhos, seus dedos, e a escritura do texto segundo é em
parte a história de uma experiência sensual com o signo es-
trangeiro. Sartre descreveu admiravelmente essa sensação, a
aventura da leitura, quando nos fala das suas experiências de
menino na biblioteca familiar:

As densas lembranças e a doce insensatez das crianças cam-


ponesas em vão as procuraria em mim. Nunca esburaquei
a terra nem procurei ninhos, não colecionei plantas nem
joguei pedras nos passarinhos. No entanto, os livros foram
meus passarinhos e meus ninl1os, meus anin1ais de estima-
ção, meu estábulo e meu campo ...

Como o signo se apresenta muitas vezes em uma língua es-


trangeira, o trabalho do escritor, em lugar de ser comparado ao
de uma tradução literal, se propõe antes como uma espécie de

U1na literah1ra 11os trópicos 1 23


tradução global de pastiche, de paródia, ele digressão. O sig110
e tra11geiro e reflete no es1)ell10 do dicionário e na i1naginação
criadora do escritor IatiHo-a111erica110 e se dissemina sobre a
página branca con1 a graça e o de11gt1e do movimento da mão
qt1e traça 1inl1as e curvas. Durante o processo de tradução, 0
imagi11ário do escritor está sem1Jre no palco, como neste belo
exen1plo pedido de empréstimo a Julio Cortázar.
personagem principal de 62 Modelo para armar, de
nacio11alidade argentina, ''ê desenhada no espelho do res-
taurante parisiense em que entrou para jantar esta frase má-
gica: ''Je voudrais um château saig11ant''. Mas em lugar de
reproduzir a frase na língua original, a traduz imediatamente
para o espanhol: ''Quisiera un castillo sangriento''. Escrito
no espell10 e apropriado pelo campo visual da personagem
latino-americana, château sai do contexto gastronômico e se
inscreve no contexto feudal, colonialista, a casa onde mora 0
se11l1or, el castillo. E o adjetivo, saígnant, que significava ape-
n~s a preferência ou o gosto do cliente pelo bife malpassado,
na pena do escritor argentino, sangriento, torna-se a marca
evidente de um ataque, de uma rebelião, o desejo de ver o
château, o castíllo sacrificado, de derrubá-lo, a fogo e sangue.
A tradução do significante avança um novo significado -
e, além disso, o signo linguístico nuclear (château ) abriga o
nome daquele que melhor compreendeu o Novo Mundo no
século XIX: René de Chateaubriand. Não é por coincidência
que a personagem de Cortázar, antes de entrar no restauran-
te, tinha comprado o livro de outro viajante infatigável, Mi-
chel Butor, livro em que este fala do autor de René e de Ata-
/a. E a frase do freguês, pronunciada em toda sua inocência
gastronômica, ''je voudrais un château saignant'', é percebida
na superfície do espelho, do dicionário, por uma imaginação
posta em trabalho pela leitura de Butor, pela situação do sul-
-an1ericano em Paris, ''quisiera un castillo sangriento''.

24 1 Silvíano Sa12tiago
~ difícil ])recisar e é a frase ouvida ao acaso que atrai a
ate11ção do sul-americano, ou se ele a vê porque acaba de
]e,1a11tar os oll1os do li,1ro de Butor. E1n todo ca o uma coisa
'
é certa: as leituras do escritor lati110-a111ericano 11ão são nt111ca
i11oce11tes. ão 1)oderia1n 11t111ca sê-lo.
Do livro ao e pelho, do espell10 ao pedido do fregt1ês
glutão de cl1âteau à sua tradt1ção, de Cl1ateaubria11d ao es-
critor ul-a111ericano do origi11al à agressão nessas tra11s-
formações6, realizadas, na ausência final de n10\rimento, 110
de ejo tor11ado coágulo, escritura ali se abre o espaço
crítico por 011de é preciso con1eçar l1oje a ler os textos ro-
111â11ticos do 1 ovo lundo. esse espaço, se o significan-
te é o n1esmo, o significado circula outra mensage111, uma
1ne11sagem in,1ertida. Isolemos, por comodidade, a palavra
''índio''. En1 Chateaubria11d e muitos outros româ11ticos
europeus, este significante torna-se a origem de todo um
te111a literário que nos fala da evasão, da viagem, desejo de
fugir dos contornos estreitos da pátria europeia. Rimbaud,
por exemplo, abre o seu longo poema Bateau Ivre por uma
alusão aos ''Peles-vermelhas barulhentos'', que anuncia no
seu frescor infantil o grito de rebelião que se escutará ao
final do poema: ''J e regrette l'Europe aux anciens parapets''.
Aquele mesmo significante, porém, quando aparece no tex-
to romântico americano, torna-se símbolo político, símbolo
do nacionalismo que finalmente eleva sua voz livre (aparen-
temente livre, como infelizmente é muitas vezes o caso),
depois das lutas da independência. E se entre os europeus

6 Seguimos de perto os ensinamentos de Derrida com relação ao problema da


tradução dentro dos pressupostos gramatológicos: ''Dans les limites oi:1 elle est
possible, ou du moins elle PARAIT possible, la traduction pratique la différence
entre signifié et signifiant. Mais si cette différence n' est jamais pure, la traduc-
tion ne l' est pas devantage et, à la notion de traduction, il faudra substih1er une
notion de TRANSFORMATIO : tra11sforn1ation réglée d'une langue par une
autre, d'un texte par un autre." Positions. Paris: Flammarion, 1972, p. 31.

Uma literatura nos trópicos 1 25


aqu le ig11ifica11te expri111e t1111 desejo de ex1Jaiisão
- ' e11tre
0 a111ericanos ua traduçao 111arca a vo11tade de estabelec
o li111ite da 11ova pátria t1111a for111a de co11tração. er
Pare1110 por u111 in ta11te e a11alise1nos de perto tin1 coi
. "' 1 "' . , l d
d Jorge Luís Borge , CLIJO t1tt1 o e Jª reve a or das 11ossas . 1to
. . p· 111--
tenções: Pierre Me11ard, autor de O __ uz1ote. 1erre Me 11ard r

de orador de livros, sera a metafora ideal para be111 precisar

respeito pelo já escrito, e a necessidade de produzir Ltm novo


texto que afronte o primeiro e muitas vezes o negue. Os pro-
jetos literários de Pierre Menard foram de início classifica.
dos com zelo por Mine Bachelier: são os escritos publicados
durante st1a vida e lidos com prazer pelos seus admiradores.
Mas M111e Bachelier deixa de incluir na bibliografia de Me-
nard, nos diz o narrador do conto, o mais absurdo e 0 mais
an1bicioso dos seus projetos, reescrever o Dom Quixote: "não
qt1eria con1por um outro Quixote o que é fácil , mas
o Quixote". A omissão perpetrada por Mme Bachelier vem
do fato de que não consegue ver a obra invisível de Pierre
Menard nos declara o narrador do conto , aquela que é
"subterrânea, a interminavelmente heroica, a sem igual". Os
poucos capítulos que Menard escreve são invisíveis porque 0
modelo e a cópia são idênticos; não há diferença alguma de
vocabt1lário, de sintaxe, de estrutura entre as duas versões, a
de Cenrantes e a outra, a cópia de Menard. A obra invisível é
o paradoxo do texto segu11do que desaparece completamen-
te, dando lugar à sua significação mais exterior, a situação
ct1ltural, social e política em que se sitt1a o segundo autor.
O texto segt1ndo pode, no entanto, ser visível, e é assim
que o narrador do conto pôde incluir o poen1a Le Cimetiere
Marín, de Paul Valéry, na bibliografia de Menard, porque na

26 1 Silviano Sa11tiago
tra11scrição do poe111a os clecassílabos de Valéry se tra11sfor-
1na1n em alexa11dri11os. agressão contra o modelo, a tra11s-
gre são ao 1nodelo proposto pelo poe1na de Valéry se sitt1a
11essa duas sílabas acrescentadas ao decassílabo, peqt1eno
st1plen1e11to sonoro e diferencial qt1e reorganiza o espaço vi-
st1al e silencioso da estrofe e do poema de Valéry, modifican-
do ta1nbén1 o ritmo inter110 de cada verso. A originalidade,
pois, da obra visível de Pierre Menard reside 110 pequeno
suple1ne11to de violência que instala na página branca st1a
presença e assinala a ruptura entre o modelo e sua cópia, e
finalmente situa o poeta face à literatura, à obra que lhe serve
de inspiração. ''Le lion est fait de mouton assi111ilé."
Segt1ndo Pierre Menard, se Cervantes, para construir seu
texto, não tinha ''rejeitado a colaboração do acaso'', ele tinha
''contraído o misterioso dever de reconstituir literalmente sua
obra espontânea''. Há em Menard, como entre os escritores
latino-americanos, a recusa do ''espontâneo'', e a aceitação
da escritura como um dever lúcido e consciente, e talvez já
seja tempo de sugerir como imagem reveladora do trabalho
subterrâneo e interminavelmente heroico o título mesmo da
primeira parte da coletânea de contos de Borges: ''o jardim
das veredas que se bifurcam''. A literatura, o jardim; o traba-
lho do escritor a escolha consciente diante de cada bifur-
cação e não uma aceitação tranquila do acaso da invenção. O
conhecimento é concebido como uma forma de produção. A
assimilação do livro pela leitura implica já a organização de
uma práxis da escritura.
O projeto de Pierre Menard recusa, portanto, a liberdade
total na criação, poder que é tradicionalmente delegado ao
artista, elemento que estabelece a identidade e a diferença na
cultura neocolonialista ocidental. A liberdade, em Menard,
é controlada pelo modelo original, assim como a liberdade
dos cidadãos dos países colonizados é vigiada de perto pelas

Uma literatura nos trópicos 1 27


or a . _ Ça, es. .
cr1tura or1 ., . #OJ o e} 0
no 1110 111 ' erver. .
ão de re\riravolta. . .

Meiiard: "Meu jogo solitário é regido por duas leis diame-


tralmei1te opostas. A primeira me permite ensaiar variantes
de tipo formal ou psicológico; a segunda me obriga a sacri-
ficá-las ao texto 'original'''.
O escritor latino-americano é o devorador de livros de que
os contos de Borges nos falam com insistência. Lê o tempo
todo e publica de vez em quando. O conhecimento não che-
ga nunca a enferrujar os delicados e secretos mecanismos da
criação; pelo contrário, estimulam seu projeto criador, pois é
o princípio organizador da produção do texto. Nesse sentido,
a técnica de leitura e de produção dos escritores latino-ameri-
canos parece com a de Marx, de que nos falou Louis Althus-
ser. Nossa leitura é tão culpada quanto a de Althusser, porque
nós estamos lendo os escritores latino-americanos ''observan-
do as regras de uma leitura cuja impressionante lição nos é
dada na própria leitura que fazem'' dos escritores europeus.
Citemos de novo Althusser:

28 1 Sílviano Santiago
Ot1a11do 1e111os larx, de in1ediato estamos dia11te de t1n1
leitor, que dia11 te de 11ós e em ''ºZ alta lê: [... ] lê Qt1esnay,
lê 1n itJ1, lê Ricardo, etc., [...] para se apoiar sobre o qt1e
dissera111 de exato e 1)ara criticar o que de falso disseram [...].

A literatura lati110-a111ericana ele l1oje 11os propõe um texto


e ao n1es1110 te1npo, abre o ca1npo teórico e1n qt1e é preciso
se inspirar durante a elaboração do discurso crítico de que ela
será o objeto. O ca1npo teórico co11tradiz os princípios de certa
crítica t111i\1ersitária que só se i11teressa pela parte invisível do
texto, pelas dívidas contraídas pelo escritor, ao mesmo tempo
que ele rejeita o discurso de u1na crítica pseudomarxista qt1e
prega t1ma prática primária do texto, observando que sua efi-
cácia seria consequência de uma leitura fácil. Estes teóricos
esquecem que a eficácia de uma crítica não pode ser medi-
da pela preguiça que ela inspira; pelo contrário, ela deve des-
condicionar o leitor, tornar impossível sua vida no interior da
sociedade burguesa e de consumo. A leitura fácil dá razão às
forças neocolonialistas que insistem no fato de que o país se
encontra na situação de colônia pela preguiça dos seus habi-
tantes. O escritor latino-americano nos ensina que é preciso
liberar a imagem de uma América Latina sorridente e feliz, o
carnaval e a fiesta, colônia de férias para turismo cultural.
Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, en-
tre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a re-
belião, entre a assimilação e a expressão ali, nesse lugar apa-
rentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade,
ali se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana.

Março de 1971

O entre-lugar do discurso latino-americano foi escrito origi-


nalmente em francês, com o título de L'entre-lieu du díscours

Uma literatura nos trópicos 1 29


latino-anzéricai11. Et1ge11io Donato, que me co11vidou para
. a lCQ
tei1do sugerido ot1tro: Nazssance dit sauvage, A11thropopha . '

, ea
State U11iversily of e\.v York at Bt1ffalo ( I 973). A versão em
porhigtiês, feita pelo autor, clata da pt1blicação do livro Uma
literatura nos trópicos (1978) .

30 1 Silvümo Santiago
d111iro con10 algué1n pode 1ne11tir pondo
a razão do seu próprio lado.
(Jean-Paul artre)


[... ] toda retórica visa a superar a dificuldade do discurso sincero.
(Rola11d Bartl1es)

Já é tempo de se começar a compreender a obra de Machado


de Assis co1no um todo coerentemente organizado, percebendo
que, à medida que seus textos se sucedem cronologicamente,
certas estruturas primárias e primeiras se desarticulam e se rear-
ticulam sob forma de estruturas diferentes, mais complexas e
mais sofisticadas. Certa crítica que se fazia à monotonia da obra
de Machado, à repetição nos seus romances e contos de certos
temas e episódios, ocasionando desgaste emocional por parte
do leitor (ou do crítico impressionista), tem de ser também ur-
gentemente revista. Afirmações como esta de Augusto Meyer
não podem continuar a ter trânsito livre na crítica machadiana: •

[Machado] ganha muito em ser lido aos trechos, ou a largos


intervalos de leitura, para que o esquecimento relativo ajude
a sentir, não a inércia da repetição e os lados fracos, mas a
1
graça original dos melhores momentos .

1 ASSIS, Joaquin1 Maria Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Pref.
Augusto Meyer. São Paulo: Melhoramentos, s/d, p. 17. •

'

Uma literatura 11os trópicos 1 31


a ex,
1
ci . ão iiit I e a1 11 1J · pura11 e11t ei ociorial a 1 .
. . " ' . it tra

. o es..
~ . . aa

qualquer ron1ancista.
an,

coinumente como valor pessoal, classificando-a de "confian~

flexão" e ao "estudo". Finalme11te, recusa para si a condição


e a lei dos gênios, para se contentar com a "lei das aptidões
111édias, a regra geral das inteligências mínimas". Termina
declara11do: "Cada dia que passa me faz conhecer melhor 0
agro destas tarefas literárias nobres e consoladoras, é certo
- 111as difíceis quando as perfaz a consciência" (1, 114).
Mesmo a divisão abrupta da sua obra em duas fases distintas
- felizmente já contestada pelos críticos também tem de
ser refutada. Já no dia 15 de dezembro de 1898, Machado em
carta a José Veríssimo expunha com clarividência o problema:

O que você chama a minha segunda maneira naturalmente


me é mais aceita e cabal que a anterior, mas é doce achar
quem se lembre desta, que a penetre e desculpe, e até que
chegue a catar nela algumas raízes dos meus arbustos de
hoje (III, 1044).

Não seria, pois, fantasia de crítico encontrar em Ressurrei-


ção, por exemplo, as raízes do arbusto que é Dom Casmurro
'

32 1 Sílviano Sa11tíago
para reto1nar a metáfora empregada por Nlachado. Foi se
não 11os e11ga11amos, He1en Cald\\·ell, no seu The Brazilia 11
Othello of l 1achado de Asszs, quem primeiro assii1alou esta
corre pondência. Analisada e catalogada ficou ela infeliz-
n1ente atirada para um canto, pois o crítico norte-a1nericano
a11alisa en1 separado os dois roma11ces. Faltou-ll1e dar o salto
i11dispensá\·el: estudar Dom Casmurro dentro da econo1n ia
interna da obra de achado de Assis.
Mais importante ainda é não cair em outro equívoco da
crítica 111acl1adiana que insiste em analisar Dom Casrnurro
co1110 t11n pendant, ou mesmo excrescência, de certa corren-
te do ron1ance burguês, mas de intenção antiburguesa do
séct11o XIX, a do estudo psicológico do adultério fe1nini110,
c11jos exe111plos mais conhecidos para nós brasileiros são a
Mada111e Bovary e O Primo Basílio. Segundo essa crítica -
qt1e 11ão percebe que o romance de Machado, se estudado
for, é a11tes estudo do ciúme, e apenas deste dois partidos
to111aram bandeira e começaram a se digladiar em jornais,
revistas e até livros: se condenava ou se absolvia Capitu. Esta
dispt1ta chegou a tal ponto, que um machadiano incansável,
Eugênio Gomes, decidiu entrar em campo e apaziguar os
ânimos e os grupos rivais, escrevendo 200 páginas que levam
o título infeliz de O enigma de Capitu.
Para a alegria ou tristeza geral da nação, vamos reabrir o
problema, mas entraremos por outra porta, já que se nos afigu-
ra como indispensável mudar de chave. A ferrugem intelectual
é ainda o mais poderoso e corrosivo ácido contra a boa crítica.
Qualquer das duas atitudes tomadas na leitura de Dom
Casmurro (condenação ou absolvição de Capitu) trai, por
parte do leitor, gra11de ingenuidade crítica, na medida em
que ele se identifica emocional1nente (ou se simpatiza) con1
un1a das personagens, Capitu ou Benti11l10, e comodame11te
já se sente disposto a esquecer a grande e grave proposição do

Un1a literatura nos trópicos 1 33


li ro: co11 ciência pen a11te do 11arra<lor 0111 Casin
e lltro
.,C,C:•4~/:) 1
11ar1 t·a de for111ação con c1e11c1a pensa11te e vacila11te q
. . ' t1e
te111 11ece idade de recon tru1r 11a \ el111ce a casa de Mata
1
e Ca-
2
\'a)o 011 de , j, eu a sua adolescência • O leitor, esquecend
, . o
a c011 ciência pe11 a11te do se ·age11ar10 to111ava a posição de
juiz e e eiitia na obrigação de dar o seu veredicto sobre os
fa11ta 111as do 11arrador, qua11do na realidade o ú11ico Íl1teresse
que de eja de pertar 1Iachado de ssis é para a pessoa inora]
de Do1n Casmurro.
E 111 resuino: os críticos estavam i11teressados em buscar a
verdade so1Jre Capitu, ou a impossibilidade de se ter a verda~
de sobre Capitu, qua11do a única ''erdade a ser buscada é a de
Dom Cas1nurro.
Por outro lado, semelhante compreensão do romance
deixava escapar o essencial da forma estética escolhida por
Macl1ado para os seus roma11ces. O romance de Machado
3
é a11tes de tudo t1m romance ético , no qual se pede, se
exige a refl exão do leitor sobre o todo. No caso específico
de Do1n Casmurro, identificar-se com Bentinho ou com
CaJJitu é não compreender que a reflexão moral exigida
JJelo autor requer certa distância das personagens e/ou do .
11arrador, aliás, a mesma distância que Machado, como au-
tor, guarda deles.

2 Poder-se-ia, sem dú\rida, estudar em Dom Casmurro a relação isomórfica


e11tre casa e romance, na medida em que uma reconstrução se sucede à
outra. Proporíamos, co1no início de raciocínio, no primeiro caso um retorno
à origem (mãe), e no segundo, a negação do retorno à orige1n (casamen-
to). Por outro lado, não se deve esquecer que existe uma simetria dentro
do romance, visto que a casa de Matacavalos e a do Engenho de Dentro
são semelha11tes (mas não iguais), se11do apenas diferente a da Glória, onde
rei11ou Capitu como dona de casa. Mas coincidência feliz é o fato de que a
segunda casa, apesar de ser a de Capitu, é sempre referida no texto como a
da Glória (11on1e da mãe de Bentinho).
3 Cf.: ''Con1pte-rendu: Estruturas, de Rui Mourão''. ln: Suplemento Literário do
Mí11as Gerais. Belo Horizonte, 2 de agosto de 1969.

34 J Silvia110 Santiago
problemática de Dom Casmurro ultrapassa por assin1
dizer o e5quema rígido das relações propostas apenas por
este romance, pois não é só ele que reflete o proble111a do
a1nor/casamento/ciúme na sociedade patriarcal brasileira
do Segundo Reinado, como não é só ele que ilt1stra a busca
de defi11ição, cada vez mais precisa e mais ambígua, mais
rica de detalhes também, da posição complexa e asfixiante
do adolescente ao querer o seu lugar ao sol dentro da rigi-
dez da comunidade burguesa e aristocratizante do final do
séct1lo. Sua condição de adulto e semelhante. Sua imperso-
11alidade e personalidade.
Em análise longa e minuciosa que fizemos de Ressurrei-
ção, já publicado no Suplemento Literário de O Estado de •

São Paulo, procuramos mostrar como o problema do ciúme


surgiu no universo machadiano. Advém ele propúnhamos
no início do nosso raciocínio da concepção que tem as
personagens machadianas do que sejam o amor e o casamen-
to e, por outro lado, do que sejam eles diante dos delicados
jogos de marivaudage que homem e mulher têm de represen-
tar para se poder chegar à união.
Assinalávamos de início como o conceito de casamento
restringe a expansão livre do sentimento, pois o amor é um
sentimento enjaulado pela cerimônia cristã (o,, casamento), e é
este que possibilita a constituição da família. E, pois, o ,,univer-
so do amor machadiano asséptico, formal, são, rígido. E ainda
masculina e burguesa a sua concepção de casamento. Amar
é casar, é comprar título de propriedade. Qualquer invasão
estranha nesta propriedade amante acarreta um curto-
circuito emocional que invalida os dois primeiros termos.
Por outro lado, para se passar do amor ao casamento, o
homem e a mulher se entregam a diversos jogos sociais. As
várias formas de jogo são baseadas em posições opostas e
con1plementares, que definem a sua posição na sociedade: a

Uma literah1ra nos trópicos 1 35


'
liberdade e a prisão, o se11ti1nento e a razão. A multiplicidade
de e JJeriências que o l1omem pode ter, por ser livre, corres-
ponderá 11a jo,·em solteira ao uso, caso queira a liberdade,
de 1núltiplas máscaras. aceitação de qualqt1er experiência
por parte da mulher, aliás, requer obrigatoriamente a dissi-
mulação: esconder é a sua atitude habitual, mesmo porque
o próprio recato que namorado/noivo/marido exige dela já é
um ét1 que cobre os seus mais legítimos sentimentos.
Em termos gerais, dizíamos que o homem recorre à sua
razão (casamento) para restringir a sua liberdade, aceitando
as correntes da virtude. Já a mulher se liberta da sua con-
dição de escrava agarrando-se ao sentimento (amor) que
ll1e parece ser superior a razão (casamento), arriscando-se
co111 isso ao deslize. Se o homem se sente bem escolhendo
a razão, que controla o sentimento, já .ª mulher se sente
1nt1lher quando se entrega ao sentimento que simboliza a
sua busca de liberdade.
Assim é que a personagem feminina mais carregada de
dramaticidade para Machado de Assis é a viúva. Lívia, no
caso específico de Ressurreição. A viúva, tendo experimen-
tado a razão e o sentimento, só ela é que pode, diante de
um novo pretendente, viver o dilema em toda sua extensão.
Tem a possibilidade de escolha: ou a fidelidade ao defun-
to (a crença no casamento, razão, é superior ao sentimento,
amor); ou a aceitação de novo marido (a crença no amor,
sentimento, é superior ao casamento, razão). Se aceita novo
marido é porque é capaz de sentir sucessivos amores. Poderia
ser infiel pensa o novo pretendente. O casamento não será
eterno, porque o amor não o é. Só a fidelidade total ao pri-
meiro marido é que justificaria a aceitação de novo marido.
Como conciliar tantas contradições?
Eis o drama que o solteirão e ciumento Félix tem de en-
frentar ao tomar a .decisão de levar a viúva Lívia ao altar.

36 1 Silviano Santiago
Porém 11a ''ésperas do ca ame11to recebe carta lacônica e
anônima, act1sa11do a ft1tura esposa. Espírito já predisposto
a dú,,ida, -célix não pe11sa dt1as \ieze : dá total crédito a carta
anôni1na e abando11a o projeto de casa1ne11to.
Estamos salie11tando este episódio do romance porqt1e
é ele qt1e nos pode conduzir ao proble1na ético da condt1ta
do l1omem ciumento no t1ni\ erso roma11esco de Macl1ado.
1

carta pressente acertadamente Félix deve ter sido


escrita por Lt1ís Batista, também pretendente aos favores de
Lí,ria e preterido, e portanto não merecia crédito ou con-
fia11ça, escrita que fora pela pena da inve ja ou do orgulho
ferido. Mas isso não tinha importância para Félix, porqt1e
para ele contava mais a verossimilhança da situação criada
pela carta do que a verdade proporciónada pelo exame de-
tido dos fatos. Leiamos o texto: ''O que ele [Félix J interior-
me11te pensava era que, suprimida a vilania de Luís Batista,
não estava excluída a verossimilhança do fato, e basta ela
1)ara lhe dar razão'' (1, 192-3).
Machado de Assis, ainda inseguro do seu instrumento de
trabalho e mais inseguro ainda da capacidade de apreensão
do drama moral de Félix pelo leitor, deixa que o narrador
se intrometa na narração e esclareça para o leitor não só
os dizeres falsos da carta como o eqúívoco moral de Félix:
''Entendamo-nos, leitor, eu, que te estou contando esta his-
tória, posso afirmar-te que a carta era efetivamente de Luís
Batista'' (1, 189).
Aclara ele, portanto, (de maneira um tanto gauche, nunca
é demais assinalar) a verdadeira procedência da carta e o erro
da atitude do médico em relação à conduta da viúva, e deixa
finalmente para o leitor a terrível responsabilidade de julgar
Félix, de julgar a calúnia que levanta contra Lívia, de julgar
enfim a sua decisão que se baseia, não no conhecimento da
verdade, mas na mera verossimilhança dos fatos.

Uma literatura nos trópicos 1 37


a11te111ão o t]Lte qt1er pro\''1r e tia peça oratória 11acla 111ais
é do qt1e o dcsen\'O],,i111e11to \ ero í111il de certo raciocínio
1

qt1e 11os co11dt1zirá in11)laca' eln1ente a conclusão por ele


a111lJicio11ada. ua estruturação dos fato5 sua apresentação
do co111portan1ento 11t1n1ano das personage11s (inclt1sive de
Be11ti11l10) é infor1nada pelo rigor da demonstração a ser es-
tabelecida. ssim, para Dom Casn1urro o essencial era pro-
\'ar (e sair vencedor) qt1e o conhecimento que tinl1a dos atos
de Capitt1 quando 1nenina lhe possibilitava um jt1lgamento
segt1ro sobre a Capitt1 adulta e n1isteriosa. Ot1, usando as
st1as próprias palavras, dirigidas é claro ao leitor: ''Mas et1
creio que não, e tu concordarás comigo; se te len1bras bem
da Capitu me11i11a hás de reco11hecer que uma estava de11-
tro ela outra, como a fruta dentro da casca'' (I, 942).
A ú11ica le111brança que pode ter o leitor da jovem Capitu
é a qt1e ll1e foi dada pela escrita do narrador. Não é de se estra-
nl1ar, também, como já assinalou Helen Caldwell, que o nar-
rador gaste dois terços do livro descrevendo as suas impressões
da Capitu menina e um terço da Capitu adulta. Ora, o que nos
provaria que a tese de Dom Casmt1rro é válida a não ser certa
noção preconcebida, certo preconceito, de que o adulto já está
no menino, assim como a fruta dentro da casca? A comparação
é uma comprovação, baseada qt1e está na verdade da natureza.
Como diz outro advogado, este agora nosso contemporâneo e
personagem de Les Faux-Monnayeurs, de André Gide, o juiz
Profitendieu: ''Afi11al, isso é apenas um preconceito; mas os
preconceitos são os pilares da civilização''.
Depois de ter comprovado a primeira parte de sua teoria,
Dom Casmurro pode se dar ao luxo de passar por alto sobre a
segunda, assim como Félix aceita a verdade da carta anônin1a
sem ter a curiosidade de aquilatar a sua veracidade. Por outro
lado, visto sob o ângulo de Bentinl10, percebe-se que nesta
aritmética estrutural os dois terços descrevem-no e1n situação

U1nu litcrntt1r~1 11os trópicos 1 39


a ori e . . . reende~

r1a111 qu . . s 1 car

a est adjetivo) ad ogado.

da. ~ creve 0 narrador: Aqui devia ser o meio do livro, mas

Coino podia saber, naquele momento preciso, que tinha

fica 0 meio de um livro que está sendo escrito? Um livro pode


ter tantas páginas quantas queira o autor. Seu tamanho depen-
de sempre das intenções de quem escreve, e é sem dúvida a
sua elasticidade que destrói a bela tese de Borges na Biblioteca
de Babel. Portanto, apressar a narrativa, o melhor dela, como
ele próprio nos diz, só porque tinha ultrapassado um marco
que na realidade não deveria existir, é porque há motivo. É
aí11da incorrer em raciocínio apriorístico e cacoete retórico.
Outro traço preciso e importante para definir a retórica
da verossimilhança é o predomínio da imaginação sobre a .
memória na investigação do passado. Machado de Assis, em
pelo menos dois capítulos deixa claro que quis dar ao narra-
dor a ocasião de levantar o contraste entre as duas
,
faculdades
e estabelecer nítida vitória da fantasia. Trata-se do capítulo
XL, Uma égua, e do que leva o número LIX, Convivas de Boa

40 1 Si/viana Santiago
co1n1Jaração e por oposição a falta de 1ne1nória. Desco11l1ece,
ot1 bem 11ão ten1 certeza do 110111e do at1tor das diferentes ci-
tações com qt1e abre cada t1m dos citados capítulos. Co11fessa
no pri111ei ro: "Creio l1aver lido em Tácito [... ], se não foi 11ele
foi 11outro at1tor antigo [... ]"; e no outro: "[ ... Ja prova de ter a
nlemória fraca seja exatamente não me acudir agora o no1ne
de tal [autor] a11tigo [... ]''. Basta justapor os dois trechos se-
guinte para que se possa apreender em toda st1a riqueza o
problema de que estamos falando:

A imaginação foi a companheira de toda a minha existência,


viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empa-
car, as 1nais delas capaz de engolir campanhas e campanhas
correndo (cap. XL).
ão, não, a minha memória não é boa [... ] Como eu invejo
os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vesti-
ra1n! Eu não atino com a das que enfiei ontem. Juro só que
não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo
pode ser olvido e confusão (cap. LIX).

Daqui advém sem dúvida a grande diferença não muito


respeitada pela crítica brasileira entre o narrador de Dom
'
Casmurro e o de A la recherche du temps perdu, na medida em
que, no caso de Machado, a reconstrução obedece a desígnios
apriorísticos, óbvios ou camuflados, mas sempre sob o devido
controle daquele que lembra, que escreve e que sabe onde
está o meio do livro, ao passo que no caso de Proust o passado
lhe surge como um presente, gratuito e inesperado, que lhe
é oferecido pelo exercício apurado dos seus sentidos. No caso
de Machado, a reconstituição do passado obedece a um pla- •

no predeterminado (cujo exemplo concreto dentro do tecido


narrativo seria a reconstrução real da casa de Matacavalos, que
mostra em si toda a artificialidade do processo macl1adiano) e

U111a 1iteratt1ra nos trópicos 1 41


obretudo a um arranjo co11\ ince11te e intelechial da .
. , . . . . s11a v1
. , . .' rque re..
- ' e ectt1al
· · · · ao trai
. _ · · · · o, Por

. ,. as
cita Goet11e logo no 1n1c10. '
o prefácio de Contre Sainte-Beuve, Proust deixa cl aro a
. -
sua pos1çao:

cebo melhor que é só fora dela que o escritor pode nova-


1ne11te reassumir alguma coisa de nossas impressões isto e"
' )
alca11çar algo de si mesmo e a matéria única da arte .

Macl1ado, racionalista infatigável, dificilmente poderia


ser colocado ao lado do bergsonismo proustiano. Colocar
um ao lado do outro é subestimar a formação filosófica de
um e do outro.
Outro aspecto ainda, não menos desprezível, da retórica
de Dom Casmurro é o fato de recusar sistematicamente a pro-
cura da identidade perfeita entre dois elementos, procurando
antes impingir ao leitor proposições que traduzem a igualda-
de pela semelhança. Mesmo deixando de lado a regra de três
(menina-adulta-fruto-casca), vemos, por exemplo, que Benti-
nho, segundo o dizer de José Dias e da sua mãe, ''é a cara do
pai'' (1, 904), como ainda nos propõe Dom Casmurro como
argumento maior para o adultério da sua esposa o fato de seu
filho não se parecer a ele, sendo mais semelhante ao amigo
Escobar. Essa visão da vida em família trai, é claro, certo pre-
conceito, ou neste caso específico, se baseia em provérbios

42 1 Silviano Santiago
que de certa forn1a traduze1 1 apena o bo111 se11 o. pro\ érbios
co1no: " 'ai pai tal filho ' ou ' r'ill10 de ]Jei ·e pei ·iI1ho é".
per tia ão 110 pre e11te ca o, rge }JOrtanto da e11trega ao
leitor dac1L1ilo 111es1110 que a sua 111ente já e tá l)fCJJaracla para
receber (''la sages e des 11atio11 co1110 se diz e 111 fra11cê );
11 ão exige dele 11enl1u1n e forço de ada1Jta ão 11e11l1t1111 111e-
Jl1ora111e11to. O co11\re11cime11to 11ão é fei to co111 a es1)era11ça
de qL1e o leitor e\1olua o seu 111odo de pe11sar 0L1de e11carar os
)JrolJlen1as, 1nas 1)elo fato de ll1e propor co1110 IJase IJara o set1
4
julga1ne11to aquilo mes1no qt1e já possui: o bon1 se11so • St1r-
pree11der, porta11to, a falácia do narrador-ad,rogado é rect1sé1r
a situação de eqttilíbrio (falsa) proposta pelo consen ·adoris-
1110, é des111ascarar a sua li11guage1n e deitar certa i11tranqt1i-
lidade no status quo.
e, de certa maneira, são esses os inecanis1nos predon1i-
na11tes 110 modo de raciocinar do 11arrador, e, por consegui11-
te, de co11ve11cer, não se deve esqt1ecer de que a retórica elo
verossímil se es1Jraia, ocasionando certa con1preensão par-
ticular elo co1nporta1nento dos outros. Duas atitudes, entre
ot1tras, são típicas de Dom Casmurro, quando analisa os
qt1e o rocleiam: a) joga a culpa de toda calú11ia nos outros,
ise11tando-se aparentemente de qualquer responsabilidade,
colocando-se ainda na qualidade de vítima; b) empresta aos
ot1tros contradições entre o que cl1amaremos por enqt1anto
de i11terior e exterior.
No pri1neiro caso, bastaria lembrar que a primeira acu-
sação contra Capitu foi feita por José Dias: ''olhos de cigana
oblíqt1a e dissimulada'', e é o mesmo José Dias, à semelhança
de Luís Batista em Ressurreição, que inspira a primeira crise

,,
4 E111 recente artigo sobre a poesia de Affo11so Avila, A/1s! e silêncio, proct1ramos
111ostrar co1110 set1 poen1a se constrói por st1cessivas transgressões/traições a
t1n1a frase-feita, 011 chavão, desajuste este que vc1n ser o responsável pelo salto
semâ11tico e participante, anticódigo e re\ olt1cionário.
1

Un1a literatt1ra nos trópicos 1 43


de ciú111e afir1nando que apih111âo ficará qtiieta "e11qt1a11to
não pegar u1n peralta da vizinl1ança qt1e case co1n ela". Mais
tarde, Jo é Dia tern nece idade de confessar o set1 engano
de julgan1e11to, e por uma de as cosh11neiras felicidades do
ro1nance de truirá por completo a tese proposta no final por
Do111 a n1urro. pas agem da me11ina a adulta é vista por
Jo é Dias co1110 a transformação da flor e111 fruto , e se a flor é
capricl10 a, o fruto é sadio e doce: ''Cuidei o contrário, outro-
ra; confundi os modos de criança com expressões de caráter,
e 11ão vi que essa meni11a tra\ essa e já de olhos pensativos era
5
flor capricl1osa de u1n fruto sadio e doce [... ]'' (I, 905) .
O descontrole de julgamento de José Dias (critica primei-
ro, elogia depois) inostra bem o caráter de calúnia que reves-
tiu o pri1neiro julgamento que fez da jovem Capitu. (''Modos
de cria11ça'' não são ''expressões de caráter'' boa lição para
...., 0111 Cas111t1rro). Bentinho aceitou as calúnias e as elaborou
pela in1agi11ação, como ficou patente na passagem em que
descreve os seus pri111eiros ciúmes, quando constrói o quadro
e111 que Capitu é cortejada por um jovem da vizinhança, ten-
do i11clusive correspondido aos avanços do apaixonado. Tão
seguro já está de que haviam trocado beijos, que apenas quer
saber a quantidade. Mas se foi capaz de elaborar mentalmen-
te a calú11ia, não o foi de aceitar a correção do julgamento.
En1prestando sobretudo a Capitu e a José Dias a contra-
dição entre o exterior e o interior, entre os gestos/palavras e
as \1erdadeiras aspirações e desejos, acusando-os, portanto, de
conduta interessada, de falta de sinceridade e de dissimulação,

5 Sem dúvida a metáfora flor/fruto entra em evidente choque com a proposta


por Dom Casmt1rro: fruta/casca. Uma análise microscópica das dt1as metáfo-
ras indicaria por certo a ~oerência que existe tanto em José Dias quanto em
Do1n Cas1nurro, na medida em que na primeira há um processo de tTansfor-
~11ação , a~ passo que na segt1nda o que sucede é apenas t1m amadt1recimento
1nter110. E claro qt1c o problema da coerência é totalme11te estranl10 ao teor
de nosso traball10.

44 1 Silvíano Santiago
protege de cert~ for1na Be11tinho e ao 1ne 1110 tenipo chama
a ate11ção do leitor }JOr contraste, i)ara a stta si11ceridade ele
vítinJa. Ora con10 vin10 no caso de Ressurreição ein que 0 es-
queleto do 1necanisn10 de })en a1nento do hon1e1n citunento
e 1110 tra 111ai a ''i ta, por i1111)erícia do ron1a11ci ta estrea11te
(repita1nos) a dissin1ulação feminii1a é un1 dado qt1e existe e
e,·i tirá 11a sociedade qt1e lachado descre,,e e qt1e pode ser
obsenrado e111 toda jo,re111 qt1e se enamora e deseja casar-se. É
conseqt1ência da sua própria posição fre11te ao l10111e111, i1a so-
ciedade, e de modo algt1m pode ser tomada co1110 exe1nplo de
ftih1ra traição. A 11ão ser, é claro, que se dê inais in1portância
ao verossí111il do qt1e a ''erdade.
Acreditamos que já se encontra esboçada em ter1nos ge-
rais e e111 seus traços predo1n inantes o qt1e estamos cl1ama11do
de retórica da verossin1ilhança. Podemos desde já concluir,
então, q11e o romance que estamos analisando dran1atiza
a ''sit11ação moral'', para usar a expressão de Machado ao
criticar O Primo Basílio, de Dom Casmurro. Seu problema
ético-n1oral é óbvio, sua reconstituição do passado é egoísta
e interesseira, medrosa, complacente para consigo mesmo,
pois visa a liberá-lo dessas ''inquietas sombras'' e das graves
decisões de que é responsável. O remorso (outro vocábulo
constante na pena de Machado crítico) deve rondar as suas
últimas horas. Como no poema baudelairiano intitulado O
irreparável, devia ele clamar: ''Em que filtro, em que vinho,
em que tisana/ Afogar esse velho inimigo?''. Dom Casmurro
dá prioridade a este ''velho inimigo'' nas suas preocupações
de suburbano pacato, e o afoga com sua escrita.
Através do seu discurso ordenado e lógico, procura re-
solver st1a a11gústia existe11cial. Depois de perst1adir a si,
quer persuadir os outros da sua verdade. Percebe-se, porém,
que o ex-seminarista advogado incorre em duas falácias ao
estabelecer a sua verdade. Do ponto de vista estritamente

Un1a literah.1ra 11os trópicos 1 45


j ir' dico peca por ba ear a per t1asão 110 verossímil, e do
po1 to de 'i ta 111oral-religioso: por st1stentar suas justifica-
ti a pelo pro,·á,·el.
in1 sendo Do1n Cas1nt1rro, qt1e 11ão teve forças para
e cre\ er u1n tratado sobre "Jurisprudê11cia, Filosofia e Po-
lítica' , tinha 110 enta11to estes conl1ecin1entos quando es-
cre\1ia a obra que com constância está oferecendo ao seu
leitor. eria, pois, uma lástima que o crítico não tomasse
em consideração o background cultural daquele que narra
sua vida, um pouco impelido pelo oll1ar dos quatro bustos
pi11taclos na parede.
Parece-me enfim que a intenção de Machado de Assis ao
idealizar Dom Casmurro era de "pôr em ação" dois equívocos
da cultura brasileira, que sempre viveu sobre a proteção dos
])acharéis e sob o beneplácito moral dos jesuítas.

III
Nesse sentido, de grande importância para se compreender
11ão só a extensão da problemática colocada pelo romancista
e pelo romance como também a riqueza do drama ético-mo-
ral de Dom Casmurro, caso se o considere como uma ''pes-
soa inoral'', ou representativo de uma coletividade de chefsl
salauds (Sartre) seria a leitura de Fedro, diálogo de Platão
en1 que Sócrates discute o problema da retórica que se vale
do verossímil como recurso de persuasão, e as 18 cartas escri-
tas por Louis de Montalte a um provincial, conhecidas como
Les Provinciales (a partir da quinta carta), em que Pascal
critica sem nenhuma clemência a casuística jesuíta, através
do que se cl1ama o ''probabilismo'', ou seja, ''a doutrina das
opiniões prováveis''. A palavra ''provável'', como nos ensinam
os teólogos, guarda o seu sentido etimológico, que é o equi-
valente perfeito do verossímil em retórica. Eis a definição
fornecida por um dicionário de religião e ética: "An opinion

46 1 Silvíano Santiago
i probable "hich con1111end it elf to tJ1e 111 ind by \veighty
rea on as bei11g ''el)' JJOS ibJ true ·6.
i 111 carta dirigida en1 l 906 a Joac1ui 111 l 1abt1co, e a 111-
pla111e11te di\ru)gada o próprio achaclo de 1\ ssi co11fessa
0 e 1 culto JJOr Pa cal: ''Desde cedo~ li 111t1ito Pascal (... ],
e afir1110-lhe qt1e não foi por distração'. Oua11to a Platão,
=

e111bora o críticos 11ão te11ham as i11alado a i1nportância do


seu pe11same11to na obra de ~1lachado-, é i11teressa11te cons-
tatar, com a ajuda de Lt1ís ian11a Filho últin10 bi ógrafo
de acl1ado, qt1e di ersos co11te1nporâ11eos do nosso at1tor,
du ra11te os a11os de elaboração de Dom Casmurro, o assimi-
]a\ra 111 a figt1ra do fil ósofo grego:

Para eles (set1s amigos J Machado é u1na espécie de Platão,


cuja co111pa11l1ia ilustre e a1nável disputam enternecidos. ''Só
/

vi 11elc o grego'' dirá Nabuco. E expressivo qt1e, em diver-


sas ocasiões Veríssimo e Mário de Alencar, ao evocarem
Macl1ado, se lembrem do filósofo grego.

E 1nais abaixo, na mesma página, Vianna Filho cita Má-


rio de Alencar: ''Mostrei-lhe uma vez um diálogo de Platão,
8
t11n trecho da palavra de Sócrates [... ]''
A familiaridade com estes dois filósofos e, sem dúvida, a
leitura de Fedro, diálogo indispensável na formação dos ad-
\:ogados, juntamente com o Górgias, bem como das Provín-
ciales, em que Pascal critica acirradamente os responsáveis
pela nossa educação moral e religiosa, podem sem dúvida

6 Enciclopaedia of Religion and Ethics, edited by James Hastings, Edinburgh: T


&T Clark, 191 8, v. X, p. 349. (Uma opinião provável é a que se recon1enda ao
espírito por razões ponderáveis como se11do 111uito possivelmente verdadeira).
7 Cf. O Astrólogo e a Vellia, capítulo de nosso estudo sobre Ressurreição,
reeditado peJa editora da UFMG, sob o título de /ano, janeiro (2012).
8 VIA A FILJ-10, Luís. A vida de Machado de Assis. São Paulo: Martins,
1965, p. 189.

Uma literah1ra 11os trópicos 1 47


e "IJlicar a di tância i11dispen á\rel que se deve estabelecer en..
tre crítico e narrador/personage1n para se apreciar o drama
ético-moral de Dom Casn1urro, ou do brasileiro qt1e tem 0
poder nas mãos, porqt1e decidit1 Machado que set1 11arrador/
personagen1 i11corresse siste1naticamente naql1ilo mesmo
que idealizava como objeto de st1a crítica.
O pri11cipal interesse do Fedro, como têm salientado os
eus modernos exegetas, é o de opor o ponto de vista da
, __ilosofia representado pela palavra de Sócrates, ao ponto
de ' 'ista dos sofistas e retóricos, representado por Fedro, na
111edida em que este é discípulo e admirador de Lísias, re..
produtor das suas pala\1ras. Como base para essa discussão,
toda a primeira metade do diálogo é dedicada a três discur-
sos sobre o amor, um do próprio Lísias, tal como é repetido
por Fedro, e os outros dois da responsabilidade de Sócrates.
Para o nosso trabalho, o qt1e interessa salientar é qt1e Só-
crates sublinha a indiferença da retórica tal como era
]Jraticada naquele momento na Grécia a sua indiferença
em relação à busca da verdade, exatamente porque o texto
ofista se baseia no verossímil.
Para Sócrates, como para nós, a palavra retórica está toma-
cla 110 seu sentido lato. Assim define ele o termo:

[ ... ] a retórica não seria, em suma, uma psicagogia, uma


maneira de conduzir as almas por meio do discurso, não
ape11as nos tribunais e em qualquer outro lugar público de
ret1nião, mas também nas reuniões privadas [... ] 9

Retórica é, pois, basicamente um método de persuasão,


de cujo uso o homem se vale para convencer um grupo de

9 As citações de Platão foram extraídas de: PLATÃO. Phedre. Paris: Les Belles
Lettres, 1966. As páginas são indicadas entre parênteses.

48 1 Silviano Santiago
pessoas da st1a opii1ião. E não é este um dos pri11cipais inte-
resses da prosa de Do1n Casmt1rro co1no \'in1os 1nostrando? e
de qt1e outra maneira se poderia jt1stificar a st1a constante ne-
cessidade de trazer para a are11a de discussão o leitor? Co1no
ainda se poderia justificar a chave de ouro do livro, frase fi11al
que pede a apro\1ação do leitor para contradizer a Escritura
e impor a palavra verdadeira como a metáfora do narrador?
Segt1ndo Sócrates, o grande erro do ensino e da prática da
retórica 11a Grécia é que, como diz Fedro:

[... ] para aquele que se destina a ser orador é absolutamente


desnecessário ter aprendido o qt1e constitui a realidade da jt1s-
tiça, mas antes o que dela pode pensar a multidão, que precisa-
mente deve decidir; não tanto o que realmente é bom ou belo,
mas o que ela pensará a respeito disso. Eis aí, de fato, qual é o
princípio da persuasão, mas não da verdade (pp. 60/61 ).

Este defeito educacional na formação do orador redunda


num duplo cacoete profissional: o desligamento por comple-
to da realidade e por consequência a crença no valor supre-
mo das regras da Retórica, e por outro lado, a centralização
do motivo do discurso, não no próprio discernimento do ora-
dor, mas no de quem escuta. Daí que o ponto de referência
para as suas ideias não é a realidade (a constatação, o fla-
grante como se diz em termos policiais), mas o provável,
o verossímil, que como vimos é a base da retórica de Dom
Casmurro. Sócrates continua mais adiante:

Vejam que, nos tribunais, ninguém tem o menor interesse


pela verdade, mas apenas com aquilo que é convincente.
Ora, isso constitui o verossímil, a que deve aplicar-se quem
se proponl1a a falar com arte. Há mesmo casos em que não
se de,,e enunciar o próprio ato, se não se realizot1 de modo

Un1a literah1ra 11os trópicos 1 49


ver ín1il deve- e, ím ent111ciar as veras imill1anças, tanto
na acu ação como na defesa. De qt1alquer n1aneira é preciso
pro urar o \·ero ímil dando- e repetidas vezes adet1s ao ver~
dadeiro! (p. 9)

Dom Ca mtirro aplica na sua prosa as r:gras e leis que


ªl're1 deu no (mau) ofício de sua profissão: "E, na verdade, a
\ 1eros in1ilhança qt1e, percorrendo o discurso de uma extremi-

dad a ot1tra 1 constitui a totalidade da arte oratória". (p. 84)


l e11tro ele) esq11e111a proposto, em que advogado de defesa
réu são a 111esma figura, é importante notar qt1e a persuasão
se sit·ua e111 dois ní eis. Dom Casmurro que se persuade a si
da su· i11ocê11cia e qt1e, ao mesmo tempo, perst1ade os outros.
Ma o 11 étodo qt1e usa já é nosso co11hecido. E dentro da so-
ciedad l>rasileira é muitas vezes persuadindo o outro que se
cl1ega a }) rst1adir a si mesmo de alguma coisa.
Ao verossí1nil, Sócrates vai propor, como se sabe, o método
filo ófico por excelência que é o dialético. E o veículo ideal
])ara a expressão do orador, não é a palavra escrita, mas a falada
- co1110 acentua no final do diálogo. Ora, se atentarmos bem
1>ar:a a prosa de Dom Casmurro notaremos que diversas vezes
insiste no fato de que escreve, escreve um livro, ao contrário
de outros narradores de primeira pessoa que criam a ilusão de
~

que estão falando. E certo que Sócrates, defendendo a pala-


vra escrita impedia ao mesmo tempo o filósofo de incorrer no
1

dogmatismo, pois podia aquele que fala encontrar-se aberto às


sugestões e correções daqueles que ouvem. E finalmente per
díamos perguntar: não seria a palavra escrita a base de um dos
grandes dílemas da nossa civilização? Acreditar que se apreen-
deu a substância de um livro pela sua leitura.
A complacência que existe no âmbito forense, compla-
cência em relação ao pensamento do ouvinte, a entrega
total e consciente do imaginário retórico na reconstrução

50 1 Sil\ iano Santiago


1
do passado, e11contram seus correspo11de11tes nos pla 1105 pes-
oal e n1oral como adiantávamos, na benevolência que os
jansenistas co1nbatiam na casuística dos jesuítas, 0 ''abran-
dan1e11to da confissão'' (l'adoucissement de la confession),
baseada que esta\1a a casuística, 11ão nos ensinamentos dos
E\rangelhos e da Patrística, mas nas summae confessorum
que desde o Concílio de Latran (1215) ajudavam os padres
11 os difíceis e delicados mistérios da confissão.
Esta oposição entre a palavra do Evangelho e a casuística
se encontra magnificamente expressa e concretizada nas últi-
mas páginas do romance, quando o narrador em um último
esforço de autoperdão e de convencimento do leitor opõe a
palavra de Jesus, filho de Sirach e autor do Eclesiástico, a um
argumento metafórico, típico do verossímil, do provável:

Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros


ciúmes, dir-me-ia, como no seu Cap. IX, vers. I: ''Não tenhas
ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-
te a ti com a malícia que aprender de ti''. Mas eu creio que
não, tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu
menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra,
como a fruta dentro da casca (1, 942).

10
Como assinala Pascal , no mundo barroco dos casuístas,
graças à instituição do Probabilismo como teoria, chegava-
se a equívocos extraordinários e sobretudo à organização de
uma religião que não conduzia à fé, ou à caridade, mas que
queria, pela benevolência, receber no seu seio os grandes e os
nobres, agradá-los para receber em troca o seu agradecimen-
to. Tão intricado ficou o sistema, que o Padre Bauny, como

lO As citações de Pascal foram extraídas de: Lettres écrites à un Provincial, Paris:


Garnier-Flammarion, 1967. As páginas são indicadas entre parênteses.

U111a literah.1ra nos trópicos 1 51


no diz Pascal pôde afirn1ar que: "Qt1a11do o pe 11 itente se
unla opinião prová,·el, o confessor deve absolvê-lo, aind gue
. , . , d .t '' (
ua opii1ião se1a contraria a o pen1 ente p. 81 ). a que
Este tipo de raciocínio, que raia o absurdo e parece ref
, . . ira-
do da lógica de I?nesco, e qt~e o 1ansen1smo criticava. Portan-
to, 0 ex-seminansta, encamn1hando a sua reconstituição d

que não compartíssemos da st1a opinião) não só a tranquili-


dade dada pelo con~ess_or, com~" .qu~r-nos parecer a que
exigia para a sua propr1a consc1enc1a. [... ] o desígnio capital
que nossa Sociedade tomou como o bem da religião é 0 de
11ão repelir quem quer que seja, para não desesperar 0 mun-
do'' (p. 88) afirma um outro padre nas cartas de Pascal.
Outro po11to em que incorre Dom Casmurro, criticado
ta1nbém pelos jansenistas, é o chamado processo de "dirigir
a intenção'' (p. 97). Consiste este a se propor como o fim de
suas ações um objeto permitido. Assim, a maioria dos casos
de \ringança pode ser desculpada pelo fato de o criminoso
11ão estar realmente se vingando, mas defendendo a sua hon-
ra. O exemplo escolhido por Pascal é claro e dispensa co-
111e11tários: ''Aquele que recebeu uma afronta não pode ter a
intenção de se vingar, mas pode, isso sim, evitar a infâmia e,
por conseguinte, rechaçar imediatamente a injúria, até mes-
mo com golpes de espada'' (p. 98-99).
No caso de Dom Casmurro, muitos dos seus atos são justi-
ficados por ter ''dirigido a intenção'': era sempre a sua honra
que estava em jogo. Justifica-se:

En1barquei um ano depois, mas não a procurei, e repeti a


viagem com o mesmo resultado. Na volta, os que se lembra-
\1am dela, queriam notícias, e eu dava-lhas, como se acabasse
de viver com ela; naturalmente as viagens eram feitas com o
intuito de simular isto mesmo, e enganar a opinião.

52 1 Silviano Sa11tiago
Tão se ,,ingot1 de Capitu, ape11as defendeu a stta J1onra.
Tão me 11 tiu aos set1s amigos, a1)e11as lhes escondia o deslize
da espo a. Talvez se sentisse até ge11eroso.
facl1ado de t\ssis pode1nos concluir quis com Dom
Casrnurro des111ascarar certos l1ábitos de raciocínio, certos
01 eca 1isn1os
1 de pensame11to, certa benevolência retórica -
hálJitos, 1necanismos e bene\·olência que estão para sempre
enraizados na cultura brasileira, na medida em qt1e foi ela
balizada pelo ''bacharelismo'', que nada mais é, segundo
Fer11ando de Aze, edo, do que ''um mecanismo de pensa-
1

inento a que nos acostu1nara a forma retórica e livresca do


ensi110 colonial'', e pelo ensino religioso. Como intelectual
conscie11te e probo, espírito crítico dos mais afilados, pers-
crutador i1npiedoso da alma cultural brasileira, Machado de
Assis assinala ironicamente os nossos defeitos. Mas este é um
engajamento bem mais profundo e responsável do que o que
se pediu arbitrariamente a Machado de Assis. E pensar que
se pode falar da filosofia de Machado acreditando que a base
das suas ideias se encontrava no ''ressentimento mulato'' ...

[1969]

Palestra escrita a convite de Heitor Martins e lida na sessão


especial da Modern Languages Association, em 1969, dedica-
da a Machado de Assis.

Unia literatura nos trópicos 1 53


1 . ersona
e1n e . , . , . . ar or .
ace o canao
1

'

erg1 _ . n iça0
1 e11 . . no sen .
. , . Papel
'b l . , . sonho
ode er encontrada no conto-para o a Jª citado, o a~ .
P . . quzteto
· . eado

, . , ,, ,, . . er a
,, . ar e,
·a ,,
cioso: 0 colossal monumento ao al cai e-mor (p. 149). i

A ficção de Sérgio Sant'Anna parece querer oscilar entr


. , e
dois polos extremos, maniqueistas e a nosso ver equivo-
cados: nem deveria ela abrir o espaço da utopia nem deveria
coino 11a República, de Platão, apenas repetir as verdades d~
comt1nidade e dos chefes. O espaço da ficção contemporânea
é simplesmente atípico, excessivo, suplementar. E se alguma
personagem seu Sérgio devesse ouvir nestes anos de difícil so-
brevivência, seria melhor que escutasse o 12 da Nossa casa:
"[ ... ] o 12 afirma que as brincadeiras revelam o que se oculta
no ser mais profundo de cada um de nós" (p. 130). Este tam-
bém seria o conselho que daria tanto o Freud da Psicopatolo-
gia da vida cotidiana, como o dos mots d'esprít (chistes).
No entanto, tais são a premeditação e a segurança das
diversas vozes narrativas inventadas por Sérgio Sant'Anna,
que seus contos se encerram em uma única e envolvente
Palavra (com P maiúsculo, como a imitar as maiúsculas que
designam personagem e lugares dentro da sua ficção; Pala-
vra bem genérica e abstrata como para poder englobar os
indivíduos que são dramatizados mais pela posição social

206 1 Silviano Santiago


o
p

Dizem, entretanto, que sempre recai uma maldição sobre


os diretores da Casa. O 18 começou a mudar de aparên-

208 1 Sílviano Santiago


. torna 11do-se orridente e, mi teriasa e traiçoeira 111 e11 te
c1a, '
afá,el. E tan1bém passou a <lesen olver t1111a respeitável
barriga (p. 13 ).

Pena que Sérgio 11ão tivesse se detido no exan1e acurado


da "n1aldição", e1n lugar de se deleitar com a mecânica da
redtição da diversidade ao semelhante.
Assim sendo, Sérgio Sant'Anna não vê outra solução se-
não ficar para sempre com os valores "de baixo", que pas-
sam a ser positivos dentro da sua negatividade, visto que estar
"em cin1a" não é um privilégio, mas t1ma "maldição". Sérgio
Sant'Anna, apesar de se liberar do ranço dialético que per-
segtiiu de modo geral a inais prolífica literatura política do
Modernismo brasileiro, não consegue esconder as garras do
''home1n do ressentimento'' de que fala Nietzsche. Só uma
literatura escrita com a pena ''do escravo'' pode guardar tanto
rancor e tanta amargura, tanto remorso, marcar tanto passo,
rodopiando-se sobre si mesma.
Sérgio, semelhante ao observador que, vendo no quadro
a mancha tranquila, informe e sem significado do cachor-
ro (Composição I), crê que só pode lhe dar um significado:
pensa ele que o cachorro vai rosnar e arreganhar os dentes,
preparando-se para o ataque (p. 34). A manifestação ideoló-
gica da ficção não devia se situar tanto no prazer de afirmar
a negação, mas empreender primeiro a negação para depois
poder afirmar, afirmar os novos valores da nossa época. Negar
primeiro que os mais poderosos em uma determinada situa-
ção social sejam os mais fortes; afirmar em seguida a própria
força que independe portanto da colocação cima-baixo do
sistema burocrático ou social. É preciso que as coisas come-
cem a "dar certo", como diz Luís Gonzaga Vieira, pois do
contrário o escravo será sempre escravo, e dele só virá a pala-
vra da amargura, do desespero, do ressentimento.

Uma literah.1ra nos trópicos 1 209


Uma literatura nos trópicos 1 211
da persoiiagens é o acidente qt1é ta1nbém fecha a ação na
realidade das personage11s, e se o acidente é fictício, também
0 e 0 fechainento, pois este é mt1ito mais um gesto i1
npulsivo
do controle autoritário que exerce a voz narrativa dentro do
coiito, do que proprian1ente o "fim" que vinha sendo prepa-
rado pelo tipo de narração que Sant'Anna tinha escolhido.
Tal achado, que me parecelI extraordinário ao terminar
a leitura do primeiro conto, vai, no entanto, se desgastando,
perdendo o interesse à medida que avançamos nossa leitura
de todo o otas de Manfredo. O que era um achado excep-
cional, signo certo de originalidade dentro da ficção brasileira,
con1eça a virar cacoete, e depois da leitura de Composição I,
O círculo, O 58, A nossa casa etc., devemos concluir que teria
sido melhor que Sérgio Sant'Anna variasse um pouco mais as
armações que idealizou para seus contos. No entanto, nesta
crítica estaríamos também pedindo ao autor que não escreves-
se o livro que escreveu, que não admitisse em determinados
momentos aquela palavra obsessiva de que falávamos antes,
que não aceitasse como figura e metáfora para seu livro o cír-
culo, que não estabelecesse como espaço da ficção o idêntico,
e neste sentido temos de reconhecer que, se escapasse de nossa
crítica, incorreria talvez em outro tipo de crítica. Ou não.
Seu conto, a personagem de seu conto tem de viver o destino
duplo e contraditoriamente único que se encontra dramatizado
no conto final, O espetáculo não pode parar, pois é ele sempre
ele próprio e mais uma vida imaginária (criada por ele mesmo,
ot1 por outros para ele), como fica claro nesta passagem:

[...] um homem, às vezes, pode ser mais prisioneiro lá fora


do que aqui dentro. Um homem pode tornar-se inteiramente
livre aqui na Casa. Como se o espírito dele passasse entre as
grades, pulasse o muro da Casa e ficasse voando sobre todas
as coisas (p. 12 5).

212 1 Silviano Santiago


o conto final e .. iste aparentemente uma vida fora do
palco e outra \·ida dentro do palco, mas as duas vidas, ot1
melhor dito , os dois textos se entrecruzam, se mistL1ra1n, se
enco11tra1n, se superpõem, sendo no final apenas e u11ica-
mente t1111. voz da perso11agem que é ator vai pouco a pou-
co perdendo o sentido, o próprio timbre, e apenas soa como
a voz do ator que ele encarna: ''Então ela me mata. Sim, sot1
assassinado" (p. 211). Personagem e ator passam a ser idên-
ticos fala111 e se exprimem com idêntica voz. A personagem
de érgio Sant'Anna vamos descobrindo é aquela que
perde a própria personalidade para poder ganhá-la, perde a
própria personalidade para poder representar o papel que lhe
é delegado, no conto, pela voz autoria} que comanda e reduz
o livro, as situações, as personagens ao único. A personagem,
no livro de Sérgio, é ator antes de ser personagem, ou melhor,
é personagem sendo ator, é ator sendo personagem, como se
sempre o texto de um interferisse no outro, e vice-versa, de tal
modo que na montagem final se apresentassem com um úni-
co e idêntico texto. Nesse sentido é esclarecedora a relação
que é mantida entre o 58 e o 125: ''Naquele instante [diz o
125], eu tive a sensação de que não fora eu quem falara. Mas
que o 58 falara por minha boca'' (p. 122).
E, chegando ao final do conto, vemos que o 125 repete,
agora para o 237, as mesmas palavras que tinha escutado da
boca do 58, fazendo-as agora suas. Mais tarde, será o 237
que repetirá etc. Esclarecedora ainda é uma afirmação do
repórter Manfredo Rangel, a respeito de sua personagem-
-política, Kramer, que se transforma nesta citação em per-
sonagem-ator:

O político é um ator. O bom político é um excelente ator,


nos moldes de Stani1avski. Ou seja, identificando-se com a
figura do personagen1, assumindo-o totalmente, de maneira

Uma literatura nos trópicos 1 213


,.
qL1e \)~1 ·~a é1 5e11tir e representar aqt1ilo qt1e qt1er e pre-
t 1s'"1 e11tir e re1)re ei1tar. alegri a de Kramer no gol do
l~la111e11go foi qt1ase autê11tica (p. 187).

Retor11ando ao e ·e1nplo i11icial, o conto Da ja11ela , pode-


rían10~ co11cluir ql1e a n1orte de á1·io ''foi ql1ase autêntica'',
e. so pode e'Xistir porqt1e naqt1ele momento o fill10 estava
representando para a mãe o papel que ela ll1e tinha delega-
do de de as st1as primeiras palavras. A perso11agem-filho é
le\ ada a se exprin1ir como ator-filho nessa estra11l1a ''peça''
1

qt1e pouco a pouco sua mãe vai urdindo dos resqt1ícios de


lembranças do outro filho, Mário, filho ausente e querido.
A morte de Mário apenas existe na realidade do ator-filho e
apenas existe na ''peça'' qt1e sua mãe, pela imaginação, cria
ao entardecer, quando as pessoas voltam do trabalho para
casa. Difícil, portanto, ou mesmo impossível, seria separar
o texto da personagem-filho do texto do ator-filho: estão am-
bos escritos nas folhas do seu rosto, de manejra corrida e
escorregadiça, como uma máscara.
Continuando o nosso jogo permutacional de intertextos,
podemos agora tomar de empréstimo o final do conto O Pe-
lotão, para concluir que, mentindo sobre a morte de l\tlário, o
filho ''manteve sua alegria austeramente sob controle'' (p. 56).
A alegria do ator é controlada pela austeridade da personagen1,
a1nbas escritas na mesma face da página. Como tt1do é a mes-
1na coisa no inundo ficcional de Sérgio, pudemos e pode-se
encaixar frases de um conto en1 outro, sem que com isso se
estabeleça inconveniências i11terpretativas. Por isso, ainda, é
que 11ão é com surpresa que, lendo o texto Romeu e Julieta ,
enco11tran1os dois parágrafos de outro texto, O círculo.
Esse desdobra1nento sem desdobramento entre perso11a-
ge111 e ator, que esta1nos analisando, se encontra e111 t1111
co11to qt1e ai)resenta a técnica mais moderna do livro o

214 f S1/viano Sa11tiago


últi1no 111inuto. Aqui, o goleiro, que deixou passar o frango
que proporcionou a vitória do adversário, vê st1a própria fi-
gura dia11te de si no canal 5, no 3, no 8, e em todos como
se trata''ª de uma jogada culminante apresentam o lance
de 110\·o em cân1ara lenta. Diante do aparelho de televi-
são, apesar dos conselhos da esposa para que o desligt1e, o
goleiro procura não se reconhecer reconhecendo-se fran- •

gueiro naquela figura (ele-personagem) que, desentranhada


do n1omento real, se repete infatigavelmente nas sucessi-
vas projeções do vídeo-tape nos vários canais. O instante
fatal, surpreendido pela câmera, funciona como descargas
mortíferas na retina do goleiro, dando-nos a impressão de
que apenas toma total consciência da jogada quando a vê
interpretada por ele-ator 11a televisão: ''[ ... ] como a vida se
decide as vezes num centímetro de espaço ou numa fração
"'
de segundo'' (p. 16). E dessa maneira qL1e Sant'Anna conse-
gue captar a sensação desesperadora e bem atual da falta de
controle sobre a própria imagem (que é o tema também do
conto que deu título ao livro). Porque afinal o jogador acaba
sendo ele e a imagem, pois todos os mortais, nesta época de
televisão, emitimos signos como antes apenas emitiam os
chamados artistas (escritor, ator, pintor etc.). O jogador vai
ser interpretado pelo público televidente pela performance
que apresentou no campo e pela cena qt1e representa agora
na sala de estar de cada família. E como o ficcionista que
relê os signos que disseminou pela página em branco, pode
também o jogador se ler na i1npressão qt1e cat1sot1 na pelí-
cula virgen1. A diferença do artista da palavra, não pode, no
enta11to, apagar o gesto qt1e i111primit1 no vídeo. Sua inscri-
ção é la111e11tavel111ente clefi11itiva e incorrigível: ''Ir naqt1e-
la bola de ot1tro jeito, espal1ná-la para cór11er, 1nesmo sem
necessidade'' (p. 16), gostaria ele, 11t11n gesto que teria
forçosa111ente ele ser de ''lot1ct1ra''.

U111(1Jiteratt1ra11os trópicos 1 215


Disse111os qt1e este conto é t1n1 dos de téc11ica 111ais mo . .
der11a no co11jt111to do livro, porque e1n lt1gar da a11álise
de caráter psicológico (por exen1plo: a culpa, o remorso,
o n1edo do ft1turo, por ter deixado passar o frango ), Sér-
gio Sa11t' nna desi11terioriza a personagen1 fazendo com·
que a cha1nada ''ação interior'' seja encampada pela ação
apresentada e reapresentada pelos meios de representação
de que se cerca o l1on1em tecnocratizado na segunda meta-
de do século. Seria bom esclarecer que o salto que Sérgio
opera no discurso 11arrativo não é o dado por Maupassant,
ou pelos romancistas da lost generatíon norte-americana,
qua11do a a11álise do comportamento (behaviorismo) li-
berou a prosa da análise introspectiva, tal como pudemos
aprender no então surpreendente L'Age du Roman améri-
cain, de Claude-Edmonde Magny. Aqui, o fio da narrativa
não se sitt1a todo o tempo na ''realidade'' da personagem,
mas a escritura serve quase sempre como meio de repro-
dução de um discurso (no sentido lato) de representação.
A linguagem deve mimar mesmo a câmera le11ta, con10 se
ao espichar temporal da ação que se dese11rola com lenti-
dão no vídeo correspondesse um espichar temporal da frase
que progride no papel.
Como derradeira impressão de leitt1ra, diren1os que a
maioria dos contos de Sérgio Sant'An11a, co1no os melhores
contos do seu, a met1 ver, mestre, Rt1be1n Fonseca (e estou
pensando na coletânea Coleira de cão, em particular), me
parecem por den1ais compron1etidos com a literatura que
se fez nos a11os 1940 e e1n pri11cípios da década de 1950. A
expressão alegórica ( 110 caso de Sérgio, melhor seria dizer
si111bólica), já salientada em Rubem por Fábio Lucas e José
G11ill1er111e Merquior, o tom moralizante, a seriedade das
i11te11ções, os temas binários como confinan1ento/liberação,
autoridade/rebeldia tudo nos faz lembrar o que de mais

216 1 Silviano Santiago


110 ,,o 11os \ 1 inha do e'\iste11cia]is1110 fra11cês de logo depois da

egunda Gt1erra, como Les cl1e111i11s de la liberté, ele Sartre,


ott La })este, de Ca111t1s. as, para ser si11cero, tanto algt1ns
co11t·o. de érgio co1110 o l i\ ro de Rul)c1n 111e baratinam
1

porqt1e ''ê111 atados ao Sartre e ao Camt1s qt1e 1nenos 111e


agrada111 11oje e111 dia. Se fosse o Sartre ele La ausée, ou o
Ca111t1s de I.Ja C/1ute, á lá.
1\ssi111 co1110 não seria difícil (aliás, seria até proveitoso)
traçâr t1111 paralelo entre o drama ético-111oral do delegado
\lilela na Coleira de cão, com o doutor Riet1x de La Peste,
ta1nbé1n seria esclarecedor ver como o tema do e11clausura-
n1e11to se as e111ell1a en1 otas de Manfredo e no romance de
Ca111t1s. E dentro desses joguinhos gideanos em que Sérgio
Sa11t' 11na se afir1na hábil (ve ja-se, por exemplo, a televisão
que projeta L11n anúncio em que a própria televisão é a propa-
ganda p. 38), poderían1os desentranhar no texto de Sérgio
a epígrafe de Defoe que Camus usou para o seu romance.
Passaria ela a ser o resíduo final do nosso comentário crítico:
/

'E tão razoá\'el representar uma forma de aprisionamento


por un1a ot1tra quanto representar qualquer coisa que existe
realn1e11te por qualquer outra que não existe''.
Se a peste cria os muros com qtte se cercam os habitantes
de Oran, separando-os dos povos livres, também outras ''doen-
ças'' e outras ''perversidades'' (metafóricas, e da nossa civiliza-
ção e do nosso tempo) vão criando muros que aprisionam as
personagens de Sérgio Sant'Anna, os muros do apartamento
da Praia do Flan1e11go, das várias casas, das fábricas etc.
Esse paralelo não é tão gratuito quanto ainda possam es-
tar pensando tupiniqt1ins renitentes, pois também o roman-
ce de Camt1s termina com a mesma 1nelodia do retorno do
e ao idêntico (veja-se também o final de Le Mythe de Sysí-
phe) que vi1nos a11alisando com exaustão na prosa de Sér-
gio. A cidade de Oran vê-se finalmente livre dos ratos e da

U 111a lilerah1ra 11os trópicos 1 217


, t , 111 ..1 exi l e 111 ~1l gt1111 lt1 g,11· e 11t1111 le 1111)0 '1i11tlél 11 ão
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i1 " i11~1111e11 t o c1t1 c se c '\.t1·<1i1·ié1 elos co11tos 111ais 111oré:1liza11_

'"'"' ele éi·gio?

[1973]


O propósito deste trabalho é o de configurar três momentos e
1nodos disti11tos de pesquisa em Teoria da Literatura, segundo
os postulados de alguns estudiosos franceses da última década.
Para que tal tarefa fosse levada a cabo sem acúmulos enciclopé-
dicos, optamos por duas atitudes: a) selecionar primeiro apenas '
algu11s textos e, em seguida, estudá-los de tal modo que servis-
sem de núcleo para fixar determinada situação teórica; b) apre-
sentar sempre as obras a partir de seu sistema conceitua! (explí-
cito ot1 implícito), e nunca a partir de uma possível paráfrase.
Com isso, pensamos que evitamos, no primeiro caso, o
excesso de exemplificação repetitiva, e deixamos ainda para
o nosso leitor a tarefa de incluir (ou não) os seus teóricos den-
tro de algt1m dos momentos. No segundo caso, acreditamos
que pt1demos neutralizar certa retórica tão ao gosto francês
pela depuração que representa a exposição pelo conceito.
ão se confunda, por obséquio, redução do campo de es-
tudo a deter111inado grt1po, cujo único fim é o de mell1or (es-
peramos) apree11der as ideias, con1 u1na simples galomania.

Un1a litcratt1ra 11os trópicos 1 233


dentro de l1111a orde111 t1postan1ente ''real'', serão revistos
pela análi e, de11tro de u111a lógica que proct1rará configurar
as açõe e atá-la por e,·e1nplo, ao desenvolvimento e/ou ca-
racterização da i)er onage11s.
Roland Bart\1es, e111 artigo' 111uito divulgado, na época em
que foi escrito ( 1963), defi11ia os dois processos como découpa-
ge (de 111011tage111) e age11ceme11t (arranjo, regra de associação).
Já o objeto reconstih1ído não sendo uma mera cópia, é cla-
ro era para ele L11n ''simt1lacro'', isto é, resultado da ''fabri-
cação \1erdadeira de um mundo que se assemelha ao primeiro,
não para copiá-lo, 1nas para o tornar inteligível". Assim sendo,
110 sin1ulacro, ''o intelectual [se encontrava] unido ao objeto''.

Depois de ter defi11ido o movimento da análise por aqueles


três conceitos (desmontagem, arranjo, simulacro), podia ele
rest1mir assin1 o fim de toda a atividade estruturalista: deve ela
''reco11stituir um 'objeto' de maneira a manifestar nessa recons-
tih1ição as regras de funcionamento (as 'funções') desse obje-
to''. Como diz ainda Barthes, ''recupera-se o objeto para fazer
aparecer as funções''. E ta] não deixa de ser a palavra de or-
dem de Propp, em Morfologia do conto, que, insistindo em um
jogo entre constantes e variáveis, concluía que as modificações
nas estruturas dos ''contos maravilhosos'' se situavam ao nível
dos nomes das personagens (e dos seus atributos), enquanto
4
suas ações (ou ''funções'') não se modificavam • Voltando a

bola trans111ite-JJJe o impulso, e eis a segt111da bola a rolar como a primeira ro-
lotI. Supo11l1amos que a prin1eira bola se c11ama ... Marce]a, é unia simples
suposição; a segu11da, Brás Ct1bas; a terceira. Virgília [etc.]'' (ASSIS, Macl1ado
de. Obra Co1npleta, Rio de Janeiro: Aguilar, 1971, v. I., p. 560). Seria necessá-
rio a11alísar todo o capitttlo e, ein particular, suas i1nplicações no pensamento
111etafísico. Fica ape11as a i11dicação.
3 BAR1HES, Rola11d. L'actívíté structuraliste: Essais critiques. Paris: Set1il,
19641 pp. 213--220. Existe tradt1ção brasileira; a tradução para algt111s tern1os
foi to111ada de e111présti1110 a ela.
4 PROPP, Vladí111ir. f\1/orp/10/ogíe du co11te. l'aris: Seuil, 1970. Co11sultar, c111
particular, o ca1)ít11lo ]\1/étodo e 111c1téría.

Unia Jiter,1tt1ra nos trópico 1 2.,5


Bartl1es percebemos que via ele, 11a tra11sforn1ação operada 110
objeto 1Jelo si111ulacro da análise, t11n a~réscimo se1nâ11tico de

0 inteligível que se acresce11tava ao s~ns1vel. U1n co1npleme11_


tava 0 outro e vice-versa. O estabelec11ne11to da decomposição
sintag111ática e a explicação pelo ft1ncio11a1ne11to paradigmá-
tico dos elen1entos inter11os, das ft111ções, visava a deixar falar
aquilo que restava "ini11teligível" 110 objeto "11~h1ral". Como
já dizia Lévi-Strauss algt1ns anos antes, em Tristes tropiques,
ao comentar o encontro feliz da Geologia, do marxismo e da
Psica11álise na sua formação intelectual:

[... ] compree11der consiste em reduzir um tipo de realidade


a otitro; já que a realidade verdadeira nunca é a mais mani-
festa e qt1e a natureza do que é verdadeiro já transparece no
cuidado que ele mostra em se esconder.

E concluía Barthes que, em todos os casos, o mesmo pro-


blema era o que se colocava, o da relação entre o sensível e
o racional cujo objetivo procurado é o mesmo: uma espécie
5
de super-racionalismo . Seguindo ainda os passos dos auto-
res citados, Gerard Genette, poucos anos depois, via a crítica
6
literária como bricolage em um gesto de adaptação da sua

5 LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes tropiques. Paris: Plon, 1955, p. 62.


6 Gerard Genette estabelece primeiro a regra do bricolage, para, em seguida,
descrever sua ''econo1nia'', que se dá e1n dupla operação: ''de análise (extrair
diversos elementos de diversos conjt111tos constituídos) e de síntese (constituir
a partir desses elementos l1eterogêneos t11n novo conjt111to no qual, no fim
das contas, nenhum dos elementos ree1npregados reencontrará sua função
de orige1n)''. Essa dupla operação, que é considerada por ele como tipica-
mente estruturalista, é característica do pensamento selvagem. Mas continua
Genette, alargando o escopo do propósito lé\·i-straussiano: ''Mas há uma outra
atividade intelectual, própria das ct1lturas 111ais evoluídas, a qual essa análise
[a do bricolage] pode ser aplicada quase palavra por palavra: trata-se da crítica,
e mais precisamente da crítica literária, [... ] a crítica literária fala a língua do
seu objeto, é n1etali11gt1agem, 'disct1rso sobre um outro disct1rso' [... ]'' (GE-
TETI"'E, Gerard. Figures. Paris: Set1il, 1966, p. 145-146 - grifos nossos).

236 1 Sili ia110 Sa11tiago


1
pr cupa ão ao e1 i1 n1ent de é\ i- trau do Pensamen-
to l1ag n1-. Para o etnólogo co1110 para eJ1ette) o uní,er o
111 ru1ne11taJ do bricoleur (con10 o do crítico literário) é por
defi11ição~ 'fecl1ado e ''a regra do eu jogo é a de em-
pre e 'irar con1 o meio de bordo . t\qui a diferença entre
0 objeto 11atural e o i111ulacro e e~"])re a pela passagem de
u111 co11j1111to i11 tTu1ne11tal clado a u1n co11ju11to a e realizar,
endo que a difere11ça ei1tre ele ai er i11 taurada pela cli po-
ição i11ter11a da parte . Tal e1nell1a11ça (de in trt1n1e11to) e
tal difere11ça (de di po ição i11terna), circun cri ta a1nbas ao
me 1no e e)rplica111 pelo dt1plo e tah1to qt1e cada elemento
do co11jt1nto i11 tn1mental comporta em si: cada um é ao me -
1no ten1po concreto e ''irtual. e sitt1a cada tim deles a meio-
can1inl10 entre o ''perceito' (percept) e o ''conceito'' (cor1cept).
E é por i o, conclui Lé\ri- trat1ss, qt1e o signo pode englobar
tal ele1ne11to filosoficamente , 11a medida em que é ele um
intern1ediário e11tre a imagem e o conceito, como lhe tinha
en i11ado ~ at1ssure. Colocada assim, ot1 ainda por outros ca-
minhos, a problemática do signo linguístico, da linguagem,
tinha in\1adido a pesquisa de todos os teóricos, fazendo com
que em seus trabalhos pulsasse ''esta inquietação com a lin-
guagem qt1e só pode ser uma inquietação da linguagem e
na própria lingt1agem'', conforme percebia Jacques Derrida.
Tanto na recomposição pelo simulacro, quanto na ativi-
dade descrita como bricolage, tratava-se de levantar os vários
e]ementos significativos e constituintes do objeto ''natural'',
dar a esses elementos um duplo estatuto (sensÍ\'el e inteligí-
vel; significante e significado), pô-los e1n movimento, anali-
sando o mecanismo interno das funções ou o jogo relacional
entre os elementos no interior do objeto. Mas nos dois casos

,
7 LEVl-STRAUSS, CJat1de. La Pensée Sauvage . Paris: Plon, 1962. Em particu-
lar, o capítulo I, A ciência do concreto.

Un1a literatt1ra nos trópicos 1 237


a,; ada era be111 111ai at1daciosa do c1ue JJarecia: o fi111 da ati\'i-
dade e trt1turali ta era o todo. O todo 11a 111edida e111 qt1e era ar-
1
tificial111e11te fecl1ado co1110 ' e11sÍ\1el e/ot1 ''i11teligí\ el , como
1

''objeto 11ah.1ral' e/ou in1u]acro'' . 110 pe11sa111e11to de Bartl1es.


1
O todo e11qua11to fecl1ado (' co11j11nto finito 11a arqt1itetura )

teórica do bricoleur, tal qt1a1 foi defi11ida no pensa1nento do


pri111eiro) Lé\ i- trat1 . En1 st1111a a é111álise perfazia o mesmo
ca111inl10 do objeto apenas t1sando atalhos st1speitos. São os
atall10 do conceito e da razão qt1e conduzian1, por sua vez, a
ati, idade a11alítica a qt1erer aça111barcar a ''solidariedade'' dos
1

8
ele111e11tos internos . ou a ''totalidade'' do objeto estt1dado .
J\firn1ar apenas a configuração global e a relação das fun-
çêes a11t1 lando a força, co11forme assinala Derrida, visivel-
111ente influenciado por Tietzsche, é indicar co1no o pe11-
amento estruturalista esta''ª i11teressado na apreensão do
todo, do panorama ,
global proporcionado pela representação
pa11orográfica. E recair em um bidimensionalismo formal,
pois o ''relevo e o desenho das estruturas tornam-se mais vi-
sí,·eis quando o conteúdo, q11e é a energia \1iva do sentido, se
9
encontra neutralizado'' .
O tipo de análise descrito até agora foi feito seguindo prin-
cipalmente duas postulações teóricas. Ou bem o processo de
reconstituição era feito a partir de un1 exen1plo único e se apre-
senta''ª o estudo deste exemplo con10 n1atriz teórica para a aná-
lise de ot1tros exen1plos sen1elhantes, aproveitando-se a lição
teórica e clássica da Poética, de Aristóteles. Ou bem estabele-
cia-se a priori t1m 1nodelo de análise teórico, baseando-se para
isso principalmente nos e11sinamentos, já julgados ''científico P

S Cf. en1 particular o capítulo O conto como totalidadade JllQ


gia do Conto. = -,

9 Cf. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferm.~


''ª· São Paulo: Perspectiva, 1995. Panor6~ 6'•1..••Jt~
obtém, en1 uma superfície plana, o desenv.ól
objetos que rodeiam o horizonte (p 15

238 Srlviano Santiago


d iado o prim i .......
relato do mundo {.....} nu...,..,.
• trair d da onto o u od lo d
modelo uma grand tu n
mo (para rifi õe ) para qualqu""ª
enuante {... ] e por fim ind J
ni o perde ua diferença12•

quele doi tipo de análi e pod'"'ª


campo propriamente literário de leitura p.
em que a explicação e atém ao fechamento d
texto e tudados não procurando e ergá-lo O.- ,... =·~·
d~los na ua diferença. Tinham a diferença o ~ ~~~
emântico, mas não a tinham como cone it
E é claro ainda não tinham a différance 1

mento anterior a toda diferenciação, a toda


binária, antecena, portanto, da metaff ica a 1
nham o jogo e a relação como inspiradore cl<i
a ser depreendido do texto, mas não o tinham. . . ". ~*M
mentos estruturantes. O jogo e a relação se esgqt
centramento operado pela reconstituição totãl~
movimento do agencement, na sua tentativa de
a solidariedade de todos os elementos do obje n. '"-'"'l:.A

de configurar o que Barthes chamava de ' i 1


tinham, ainda, é claro, como preocupação
zação desses objetos naturais dentro de umll
ordem que escapasse às da semelhança e da ... ,. .
porcionada pela visão sincrônica (a-hi tõn
presente pelo modelo teórico utilizado.

12 BARTHES, RoJand. S/Z. Paris: Seuil. 19~


13 Cf. DERRIDA, Jacques. La Differmu:é
Minuit, 1973.

240 I SilV1ano Santiago


2.
1al' z por razõe d caráter e1111)írico talvez 1)or razõ de
caráter t órico-e pe 1Jati' foi 11 e ário re1Je11 ar o e Cjtte-
ma de aná]i e qu didática apr s adan1e11t de cr v 1110
anteriorn1e11te. A razõe en11)írica pode111 r e: 111plifica-
da pelo fato de qu o ar1ali ta tive , e 11tido a nece idade
de expli ar aquilo que tradicio11al111e11te e c]1a111'1''ª • olJTíl
completa' d u111 e critor, i to é u111 co11jt111to de texto en1
que há algo 1n co111u1n 111a qt1e se e 1)rin1e, 110 111on1e11to
en1 que a análi e e111 ei)arado é aba11do11ada, co1110 diferen-
ça. ece idade ai11da de explicar o c1t1e, de11tro da n1oder-
nidac1e e co11\1e11cio11ot1 cl1a111ar ''te. to de apro1Jri,1ção'', ot1
seja, texto qt1e para a st1a leitt1ra exe1111)lar, 11os re111ete a ot1--
tros textos, tel to qt1e deixa ver ein st1a trans1)arê11cia ot1lros
11
textos . ecessídade que poderíamos explicitar, apela11do
para a descrição a11teríor, pela i1nagem de t11n teciclo-texto
que perdia sua opacidade virando-o contra a luz e qt1e, co1no
vétt, deixa''ª \ er, entrever, no esgarçado, ot1tras figt1ras, 011-
1

tros tecidos-textos. Por coincidência se fazia necessária a lição


que nos tÍl1ha dado Althusser ao ler O capital, e qt1c, agora,
os críticos literários tomavam de empréstimo. Desta 1na11eira
exen1plifica''ª Althusser a sua leih1ra symptomale:

O resultado desta leitura cruzada [sous grille ], em qt1e o texto


de Smitl1 é \1isto através do texto de Marx, projetaclo 11ele co1no
a sua medida, não passa de um rest1mo das co11cordâncias e

14 Exe111pio tipico de impossibilidade de cornprecr1der s articttlação ele t1n1


te~io obre outro, por cegt1eira metodológica, se ~ 11co ntra o livro ele Jea11
CoJ1en Estrutura da linguagem poética t1racl. varo 1Jore11cirli e n11e
Amichand. São Paulo: CuJtrix, 1974), às página~ 30-31 De modo algt1m
con1preende o crítico o que acontece qL1ando Qt1er1ea t1 rcto1na "'I.e \'Ícrgc.
le '~'ace et le bel aujourd'htii ... , de \1aI1arrné, e escreve por cin1a: ·· r~c liege,
le tita11e et le sel aujourd hui''. Oe;ntro da IiteratL1ra fra11cesa, o rr1ell1<Jrc
1

e..xemplo de ·~apropria ção' se encontrarn e 111 Robert f) es110 (no períc>do


anterior a 1930) e crn 1icl1el Leiris.

(Jma literattJra no trópicos r 2-rl


di cordância a redução tdéco1npte1 daqt1ilo que Sn1itl1 des-
cobrit1 e daqt1ilo em qt.1e fracassou, dos set1s 111éritos e de suas
15
fraql1eza de uas i)rese11ças e de Sl1as ausências •

e de un1 lado já se impunha de ma11eira categórica a


'formação disct1rsi ·a' con10 objeto do estudo estrutt1ralista,
i to que todos os ''fenômenos'', todos os ''acontecimentos''
\1

passa\1an1 a ser vistos pela óptica da linguística, que tinha se


tra11sformado já então no método que i11dicava a unidade 16

da pesquisas levadas a cabo por disciplinas várias (Antro-


pologia, Psicanálise, Crítica Literária, Economia etc. ), por
outro lado, salienta-se esse diálogo entre textos, a intertex-
tualidade, que tinha sido negligenciada pelos modelos teó-
ricos anteriores. Tanto no caso da ''obra completa'' de um
escritor como no dos poemas de apropriação era necessário
co1neçar a pensar conceitos até então impensados pelo es-
truturalismo, ou de maneira mais ampla, conceitos que ''so-
licitaria1n'' (abalariam o todo, etimologicamente) o edifício
da metafísica ocidental. Mas faltava aos teóricos, seja a base
filosófica, seja a coragem, para sair do campo teórico cujo
estatuto se definia pela ''científicidade'' do método utiliza-
do o linguístico e realmente questionar a teoria como
problemática se desenvolvendo dentro (e fora) de uma ma-
neira de pensar, ou de ler, que era o pensamento ocidental.
Por outro lado, tanto os pressupostos teóricos dos estudos
antropológicos quanto os dos estudos psicanalíticos antes de

JS ALTHUSSER, Louis. Líre le capital. Paris: François Maspero, 1969, v. 1, p.


16. Conforme ainda a definição de leitura symptomale: ''Tal é a segunda lei-
tura de Marx: uma leitura que ousare1nos chamar 'sintomal', na medida que,
nu111 mesmo movimento, ela desvenda o indesvendável no próprio texto que
lê, e o relaciona a uni outro texto, p resente de t1ma ausência necessária no
prímeiro. Do mesmo modo qiie a prí1neira leitura, a segunda leitura de Marx
pressupoe a existência de dois textos, e a avaliação do primeiro pelo segundo.
[.... ]o segundo texto se articula 11os lapsos do primeiro''.
16 BARTHES, 1971, op. cít., p. 13.

242 / Silvíano Sdnliago


tudo al)alava111 a e rt za do ])e11 a111e11to ce11trado i1a et11ia
ocide11ta1 11a ''filo ofia da co11 ciê11cia '.
~a 11c1t1a11to ta] tarefa 1nai a1npla 11ão era e11cetada pelo
n1e110 trê co11ceito e i11filtrava1n 11a éltjvidade estrt1tt1ralis-
ta, faze11do co111 qt1e de 1naneira ''i11ocente' (perceber-se-ia
mai tarde) e co111 ça se a escrever o fecl1a1nento da meta-
física ocidental: a difere11ça, a tra11 gre são e a contradição.
Pela difere11ça co1neça-se a pe11sar a i11stância de articu-
lação de u111 te 'to obre ot1tros. ão mais são considerados
os textos isolada1ne11te> ot1 co1no pertencentes a 11m único
modelo do 1nes1110, 1nas co1110 se diferenciando na repe-
tição, con10 u111 diálogo ei1tre o 1nesmo e o ot1tro. Recolo-
ca- e porta11to, a 1)rOl)]e1nática do ''st1jeito'' (do ''autor'', em
tern1os literários), pois 11ão existe 111ais uma orige1n clara e
altisso11ante que se deve buscar no processo de explicação do
te to, origen1 ta111bé1n da verdade deste texto e que se acla-
raria no processo de análise literária. Tem-se de pensar em
um mome11to a11terior co11fuso conft1são de escrituras ,
pois os textos só fala1n sig11ificativamente a partir da inserção.
Tomando como exen1plo os poemas de Oswald de Andrade
da História do Brasil (na coletânea Pau-brasil), pode-se dizer
que o autor da Carta de Pero Vaz Ca111inha seria tanto este
quanto o poeta paulista, os dois, na medida em que t1m se
inscrevia dentro do outro e vice-versa, abandonando-se assim
também uma \ isão cronológica e t1nívoca do estudo do texto
1

literário, ou cultural de inodo n1ais geral.


E quando a inserção se i11scre,,ia em um espaço que drama-
tizava o choque entre duas culturas (a et1ropeia e a i11dígena,
por exemp1o), se descobre t1111 processo de transgressão aos va-
lores de uma das ct1lturas, a cultt1ra do1ninante no caso. Tal se
passa, ainda, no mesmo exe1nplo, quando percebe1nos que o
questionamento básico dos poe1nas de Oswald são os dos valo-
res da cultura porh.Iguesa, ocide11tal, bra11ca e cristã, espraiac]os

U111a literattara 11os trópicos 1 243


d de a Carta para o outro di curso qL1 r }Jre eI1taria111 de
111a11eira i111ilar a terra l ra i]eira. Reto111ar o te ct:o l1i tórico do
cronivta. t xio ério a1Jro1J1·iá-]o de11tro d t1111a e tética do
11ão ério, do joco o é operar u 111 111eca11i 1110 d re11l ersen1e11t
ideológico que pode er e. ~licado pela coexi t"11cia 110 111e _
1no 1110111e11to escriturai de afirn1ações que se co11tradize111.
afin11ação e a 11egação a co11tradição e afir111a pela difere11-
ça (e 11ão por t1111a si111ple ~ínte e), e]a e....iste co1110 co11ceito
OJJeracio11al pois é ela que pode dar co11ta de u111 criar pela
destruição do destruir pela criação qt1e 111ai e 111ais sig11ifica
(estamos descobri11do u111 pouco tarde) o espírito moderno.

3.
1à11to o panorama das discu sões e111 tor110 das Ciê11cias I-I u-
111anas quanto o discurso da Crítica Literária tal qual era pra-
ticado pelos di,rer 'OS estudiosos ambos vão 111udar de 111aneira
radical quando da entrada em cena de dois pensadores de 11íti-
da formação filosófica. Um, professor de Filosofia en1 t111i\·ersi-
dades da pro,1ncia e significati\ramente marginalizado do n1eio
sorbo11nard, e o outro, um jo\·en1 esh.1dante da Escola l or111al
uperior, aluno de Althusser e de Fot1cat1lt. Referin10-nos a Gi-
les Deleuze e a Jacq11es Derrida. São a1nbos qt1e se e. forçan1
por retirar as categorias do discurso teórico das \1árias Ciências
Humanas (discurso que, con10 já salienta111os, esta''ª operando
com as categorias ''inocentes'' de Saus ure, ot1 co111 a catego-
rias mais rece11tes e ''científicas'' da Lingt1ística Estrt1h1ral) do
limbo filosófico em que se enco11tra\·é1111, para dar-ll1es o estatt1-
to de culpadas, na medida e1n qt1e, con1 elas, ai11cla se trc1ball1a-
\1a dentro do sistema da metafísica ocidental. Sisten1a este qt1e,

paradoxalmente, proct1ravam de todos os 111odos abalar.


Ponto pacífico de crítica foi a obsen1ação de Derrida qt1an-
to aos co11ceitos de ''natt1reza'' e ele ''ct1lt11ra'' 110 siste111a de
Lévi-Strattss. Percebendo-os correta1nente co1110 pre111issas

244 1 Sill1ia110 Sa11tiago


1
do etnoce11tri n o Lé' i- tratt o consenra co1110 i11strt1n1en-
to de trabalho. porén1 o critica enqt1anto ",,alor de verdade".

incesto en1 ''irtude de que en1 sua ambiguidade, ostentava


traços de natureza e de cultura. Observa Derrida, prenun-
ciando com agudeza a différance e a "origem":

[... ]não é um escândalo que encontramos, pelo qual caímos


no campo dos conceitos tradicionais; é o que escapa a estes
conceitos e certamente os precede e provavelmente como
17
sua condição de possibilidade •

Escapa, precede e possibilita, eis a tarefa: determinar o


momento de significação, anterior à diferenciação. Mas para
tal é preciso antes abordar o problema do ''conceito tradicio-
nal", ou melhor, o do "nome guardado". Pergunta Derrida:
"Por que reter um nome antigo durante um tempo determi-
nado? Por que amortecer de memória os efeitos de um signi-
ficado, de um conceito ou de um objeto novos?''.
Será então preciso compreender o mecanismo da ''mar-
gem'', que abre e fecha, que fecha e abre, o mecanismo da
dupla ciência. Continuam as perguntas:

Que função histórica e estratégica dar desde então às aspas,


visíveis ou invisíveis, que transformam isso em ''livro'' ou fazem
ainda da desconstrução da filosofia um ''discurso filosófico''?

Trabalha-se então com uma estrutura da marca dupla, da


leitura dupla, da escritura dupla, pois:

17 DERRIDA, Jacques. A estrutura, o signo e O jogo no discurso das ciências hu-


manas. ln: A Escritura e a Diferença. lrad. Maria B. M. N. Silva. São Paulo:
Perspectiva, 1995.


Uma literatura nos trópicos 1 245
. - or un1
par de OJJO 1 ao. u111 ter1110 co11 ena set1 non1e ai1tigo
. . _ _ t .
de tru1r a opo 1 ao a que nao per e11ce 111a1 cornp1etan e Para
.d J • ~ . d 1 11te
a que nu11ca terá ce d1 o a 11 ·tor1a essa oposição sei d '
1 0
d un1a luta i11ce a11te l1ierarquiza11t s. 1 ª

oi a parti1· obretudo de Deleuze e de Derrida qtie se t


Or-
110U capital de11tro do pe11san1e11to fra11cês co11ten11)orâneo
uma releitura das prin1eiras inanifestações estrutt1ralistas, le~
\rando en1 conta u1na releitt1ra dos textos filosóficos tradicio-
19
11ai (onde e como os tinl1a deixado fecl1ados Hegel), releitu-
ra ainda da "filosofia a golpes de martelo" de Nietzsc11e e do
/ s
filósofos alemães Husserl e Heidegger. E através do contato
com o disct1rso nietzscl1ia110, inteira1nente desconhecido _
ta11to nos textos clássicos, como em outros até então inéditos
- dos prin1eiros estruturalistas (já Hegel tin11a sido absorvido
de un1a n1aneira ou de outra pelos diversos "marxismos"), é
através da meditação nietzschiana sobre a linguagem, unida
ai11da à meditação também sugestiva e paralela de Freud, já
avançada radicalmente por Lacan, mas dentro das categorias
20
l1egelianas , que vai se colocar:

a) o problema da verdade, da verdade na linguagem, e


em particular na ''escritura'';
b) a problemática da interpretação;
c) a problemática da genealogia.

18 DERRIDA, Jacques. Hors livre. ln: La Dissé112ination, Paris: Set1il, 1971.


19 Observa Cl1âtelet; ''Vale 1nais - co1no f\1a,..rx e co1110 ietz cl1e - co111eçar
por Hegel, \·isto qt1e ele é u1n fin1'' (Clll-\.1,ELET, François. 1-legel. Paris:
Seuil, 1968, p. 17).
20 Ler a extensa nota que Derrida dedica a Laca11 e111 e11tre,·ista concedida à
revista Promesse e hoje incluída e111 Positio11s (Paris, l\li11t1it, 1973 ). Derrida
acaba de reton1ar Lacan en1 leitura do ''Sé111i11aire st1r la lettre l10/ée ', sob o
título de Le facteur de la vérité.

246 1 Silviano Sa11tiago


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dial tica d Ti tz cl1 (11 a li11iza1· (>lt 11·1 1 i 't s 11 ), 11 r-
cel)c- e 110 11ta11to 111 a111l)O o ll Sl'io l '\ l'1r tl() tli, l lti·-
o da Ciê11cia HtJ1111a11a lllll cst.1tt1t c:1111l)t~t10 }lt s jcl
condize11t con1 a i11\' tida Oj) r~1 l. 1 e l)11t1··1 l 11s'1111 iito
ocrático . e111 ttm 1110,·i111e11to c.lt r 7Zl ~1·' 111 11t Llt1 1>l . 1tL)t1i,
11102 , co1110 qt1er D l ttze. Olt cl '"clt: "Ct)ll trttçc1c.1·· cl~1111 't·i-
fí i ca ocide11 tal, co1110 ])ft't-c re l )t'rri <.l<t.
ão J)Ocle co111cçi.1r <l fé1le:1r (l,1 l)rol)lt111átic~1 cl<1 i11lt:t})ll-
tação e1111lelo 111e110 t1111<1 })Té\'i(l 1·t: cl fi11ição tlL .. io11<1 ~1 liet-
z c11e) e ele estrt1tttf(l (11erricl<1). lo111<ltlllt) 1)01· l)i.lSL t) cit(ttlo
a1·tigo ele l~ttC<lt1ll, 1)ercebe1110 elcsc.lc o i11icio qt1e o sig110, ·1
]j11guage111. 11ão e t<í ise11to ele t1111<-1 ··,1,1C:1li<1çào·· l)l)l. 11i.1rlt' tll1
i11tér1)rete ot1 elo ge11ealogi ta. Já 110 Lil,ro cio fi/c) ofo t l )7--
J 73) 25 ietz cl1e i11terpcl(l\'él Cl 'lpri11cí1)io cl(l i·<17.~1t) •• Jlll' st'
repot1 ª''ª e111 t1111a co11ti11t1ielaclc c11lrc e:1 li11at1agc111 e ~ls ctli i.ls.
e111 11111 <1cordo pc1cífico e i11co11clicio11al i1trc e1<1 ~ })1"t)1)01· io-
11a11<lo e11tão ao 1)ens,1dor a ''ilt1são'' clt' c1t1e ,1 li11gt1<1g 't11 })l)lli<1
ser a expressão adcqt1acla ele tocl~1s <lS rcc1l iclél(lcs. }-<~ssé.l clesco11-
fia11ça c111 relação àc1t1ela co11ti11t1icl<1c.lc, et11 1·e],1ção })Ofté111to <l
J)fÓ])Tia li11gt1age111 co1110 \ cíct1lo ele.) ro11l1eci111e11to ela bt1 ca
1

da \1erdade, le''ª Tietzscl1e él ])fO})Or 11111 ot1tro iste111a para


a co1111)ree11são do ''éllor do sig110, <1l)strai11do-o total111e11t

24 Cf.: J)l~l.iltUZE, Gilles. Si11111/ac·re et plzilosopl11e a11tique. ln: Logiqu1 du tn


l'aris: ~1 i11t1it, 1969, Jl. 292-307.
25 IErfZSCI li~, 17rieclricl1. l ,e lil're du philosophe. Paris: ubier-Flamm non
1989. CrJ11st1lt i1r c111 cs1>eci,1l: 111trodllction th,orltiquc ur la v4rit4 t lt men.-
songe ai1 se11s ex/ra-111or<1l.

248 1 S1/v1a110 a11tic1go


. iei·ro da problen1ática da ''coisa em si'' e \'endo 0 estabe-
pr1n . ,. '
Jecirnento da l111gt1age111, sua genese, con10 t1ma st1cessão de
rnetáforas 26 in1po tas pelo l101nem às coisas. Escre,·e Deleuze:
"em geral, a l1istória de u111a coisa é a sucessão das forças qt1e a
ocupam e a coexistência das forças que lt1tam para ocupá-la".
Primeira 111etáfora: transpor uma excitação 11ervosa em t1ma
irnagen1. Segunda 1netáfora: a imagem se transforma em som
articulado. E co11clui ietzsche:

Acreditamos saber algun1a coisa das próprias coisas quando


falan1os de án1ores, de cores, de neve e de flores, e no entanto
apenas possuí1nos metáforas das coisas, que não correspon-
dem de modo algum às entidades originais.

Palavras que ecoam de maneira genial na poesia de Al-


berto Caeiro, nos seus versos que dizem que ''pensar é não
compreender'', ''é estar doente dos olhos''.
Daí para a desconfiança em relação à linguagem da filosofia
ocidental por excelência o conceito nada mais precisava
do que apresentá-lo como uma nova forma de metáfora, em
um distanciamento ainda maior da linguagem à coisa. Tercei-
ra metáfora, portanto. Pois o conceito vive de uma das maio-
res contradições do pensamento ocidental: a identificação do
não idêntico. O conceito, por exemplo, do vocábulo ''folha''
foi formado com o abandono deliberado de todas as diferenças
individuais. Assim é que, percorrendo agora as páginas da Ge-
nealogia da moral, vemos que nomear as coisas é antes de h1do
um ''ato de autoridade'' por parte do homem, por parte dos que
dominam. Da pacífica relação entre a linguagem e as coisas
passamos a uma relação conflituosa que só pode ser descrita

26 Para maiores detalhes, co11st1ltar: KOF IM >Saral1> ietzscl1e et la 1nétapho-


re. Paris: Payot, 1972.

U111a literatt1ra nos trópicos 1 249


. . . . abul ri da ]iti r 11 a · 1 ' i 1·n i 1. h llll ·n1 in 11 0 •
unla ua int ·ri r ta •1 un1 . H 'al 1 1n 11 l utili..:n 1i 1•
fi, 3111 nt .1 ]incruacr 111. lt.11 alho 1 fil >S , lo 1 ti ·n .1 1
xatanl nt 0 d 1 r l r ·1 ori<r 111 .1 '- tn \ ic l ·n i.1 i11t •111 .11•
tiva. julgar o ,alar lo. \ 1.I l ' • • tab ·1 . ·ido l )I" la. sjn1 '
qti . cliz <l 1ze zloaia:

rlàda a l1i tória cl llllla • '()}\,\,, tll' llll\ l1ál itc) 1 oc] 'l' lll1l[l
cacleia i11i11tl 1 rt1pta cl i11t 11)1 "l 'lÇ<> ele fl] li 'él <> ~ '1111) 1 \
110,au. ct1 J cau a"' 11 111 • c1t1e1· 1)1·' 'i ~1111 St'l li él l ~1s 11 t1 l

ela e qtie, e111 lCtt"1~ lirct111'\t,111ci~1~. St) SllC' l '111 ' . ttl , ti-
..
~

tt1e111 t1111a à~ Otltie:l~ ,10 êlCilSl) .

De' a forn1a, chegé.11110 a clois clos pri11cí1)ios cli1·t'l<.)1·es cl<t


-
interpretação. segu11do 1licl1el I~àt1cc111lt • l~ el<1 28
t1111<1 t~11·c f,1
i11fi11ita porque nt111ca se pocle co1111)letar. i11,1s 11ão . e co111-
}Jleta porqt1e não l1á nada })ara se i11terprctc11·, isto é, 11[1Clé1
de prin1eiro para ser interpretado. Tt1do já é i11tc1·1)retação.
1\ssi111 se11do, a interpretação se111pre se ,·olta sol)rc si 111t's-
n1a criando um mo, in1e11to de circt1laridaclc q11c se1·á e11tão
1

definidor do n1ovimento do co11l1eci111e11to 1111111;;1110. f\ssi111,


apesar das aparências, conclt1i Fot1ca11lt: ''Parcce-111e Cllle é
11ecessário compreender esta coisa qt1e a 111a iori,1 elos 11ossos
contemporâneos esquece: a l1erme11êt1tica e a se111iologia são
duas inimigas ferozes''.
Esse aspecto de incomplett1de da ati,,idade i11ter1)retati-
''ª é também sublinhado no pe11sa1nento de Fret1d, 11a 111ter-
pretação dos sonhos, por exemplo, q11ando afirn1a o caráter
polissêmico do texto onírico, dizendo qt1e ''os sonl1os, co1no

27 "'IIE~SCHE, Friedrich Whilheln1. La gé12éalogie de la morale, Oeuvres Pl1i-


Josoph1ques, tome VII. Paris: Calli111ard, 1971 . Ver, en1 especial, 11, 12.
28 FOUCAULT, Michel. Nietzscl1e, Jrreud, Marx. 111: Nietzsche, Paris, Minuit,
1967, p. 183-192.

250 1 SilvicJ110 Sa11tiago


toda a outra e trutura P icopatológica regularmente
têm n1ai de u111 ig11ificado' . s e significado plural do te ·-
to não cl1ega a er e gotado por u1na ou vária interpreta-
çõe poi existe "pelo n1enos u1n ponto em todo sonho no
qual ele é in ondá,·e] um un1bigo, por assin1 dizer, qt1e é
0 eu ponto de contato com o desconhecido . sin1 sendo,
completa Freud:

Os pen amentos oníricos a que somos Je,,ados pela interpre-


tação 11ão podem, pe]a , natureza das coisas, possuir qualqt1er
término definido. [... ]E num certo lugar em que essa malha
é particularmente fechada que o desejo onírico se desen-
vo], e, co1no um cogumelo do seu micélio 29.

Enxergando, pois, a interpretação como polissêmica e como


impossibilitada de dar conta da ''totalidade'', era necessário re-
pensar o conceito clássico de estrutura e de estruturalidade da
estrutura. Tarefa a que se dedicou Jacques Derrida em confe-
rência sob o tírulo A estrutura, o signo e o jogo no discurso das
ciências humanas. Assinala ele, de início, que sempre houve
limitação do jogo da estrutura, em virtude de ela vir sempre
centrada em um elemento ordenador, organizador, e que, em
te11nos filosóficos, seriam os princípios de arche e de telos. Acon-
tece que a estrutura era, então, trabalhada no laboratório de
análise a partir desse ponto fixo, desse centro, que é ao mesmo
tempo interno e externo à estrutura, na medida em que ele é
ordenador e ordenado, se apresentando o discurso crítico, por-
tanto, como parte de um sistema teleológico. Usando a lingua-
gem da linguística, Derrida diz que a cadeia dos significantes
é sempre ordenada por um elemento que está fora dela e qt1e

29 FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonlios. Rio de Ja11eiro; Imago, 1972,


v. I, p. 119-560.

Uma ]iteratt1ra no trópico 1 251


fu11cio11a a t1111 certo 1110111e11to, ape11as con10 significaclo (setn
o set1 correspo11de11te sig11ifica1·1te, é claro). Esse e1eme11to vai
ser cha111ado de ''significado tra11scende11t·al'', ot1 seja, ac1uele
''qt1e i1ão reen\1iaria en1 si 1nesn10, em st1a essê11cia, a nen11um
ignifica11te, excederia a cadeia cios signos e deixaria de ft1ncio-
11ar, a u111 determinado mo1ne11to, co1110 sig11ificante''.
Descentra11do, pois, a estruh.1ra, deixa11do-se de pensar
esta co1no ordenada por um ''sig11ificado transcendental'',
a1nplia-se indefi11idamente o jogo da significação, na medi-
da en1 que destitt1indo da co11dição de óptica estruturante os
conceitos de pri11cípio e de fim, passa o disct1rso escrito a se
impor con10 estrut11ra solta, aba11donada, desamparada, seja
por parte do autor, como de qualquer outro elemento estra-
nho à cadeia dos significantes. De um sistema teleológico,
típico do discurso da metafísica ocidental, passamos a um
''sistema no qual o significado central, originário ot1 tra11s-
cendental, nunca está absolt1ta1ne11te presente fora de t1m
sistema de diferenças',.
A partir do momento en1 que postt1lot1 essas ideias, foi im. .
portante para Derrida a releitt1ra crítica do Fedro, de Platão 30 ,
texto em q11e se colocava de ma11eira clara a condição assassi-
na da escritt1ra. O ''pai'' do disct1rso se ause11ta 110 mon1ento
e1n qt1e escreve e se1n a presença pater11a o discurso escrito,
como diz Sócrates a Lísias, ''11ecessita sen1pre a ajuda de seu
pai, uma vez qt1e não é capaz de se defender e socorrer a
si mesmo''. Escrever é pois: ''cair longe da sua linguagem,
e1nancipá-la, ou desa111pará-la, deixá-la caminhar sozinha e
desmunida. Abando11ar a palavra [... ) Deixá-la falar sozinha,
o que ela só pode fazer escrevendo''.

30 DERRIDA, Jacques. La pharmacie de platon. ln: La Dissémination, op. cit.

252 l Silvuino Santiago


l1iera1·quização dos cor1Jos da intolerância com todo disso-
I a11te ou seja a \1iolência maior da exclusão, frequentemen-
te 111ortal do a11tagonista tornado um i11in1igo.
Os e11saios publicados e111 U111a literatura 11os trópicos são
parte dos embates entre i11telectuais, escritores e artistas que
na década de 1970, na n1ais dt1ra vigência do regime militar,
prepararam o que o 111es1no Silviano Santiago designará, 20
a11os n1ais tarde, como ''a transição do século XX para o seu
fi111'', datada po·r ele e11tre 1979 e 1981. E11tão debatiam-se
110 can1po artístico as vanguardas reativadas pelo tropicalis-
1110, a exaustão da programática estético-cultural marxista e
a co1nbinação para muitos incompreensível dos meios
de comt111icação de massa com a insurreição contracultural
jo\1e1n. o círculo mais próximo ao crítico e professor de
literatura digladiavam-se a vertente sociológica, intérprete
autorizada da história política, cultural e literária do país há
décadas, e o ''pensamento francês'' (expressão da época, útil
pela imprecisão), que aglomerava tanto o formalismo e os
vários estruturalismos quanto a sua desmontagem.
Os estridentes debates sobre arte e literatura nas principais
universidades brasileiras, em cena aberta e com imediata reper-
cussão nos suplementos culturais, funcionaram como válvula
de escape providencial para a compressão, o cerceamento das
manifestações públicas e a imposição violenta do consenso,
próprios da ditadura. Mas esses debates foram também expres-
são da perplexidade de todos criadores e críticos sobre
como operar politicamente a arte e a cultura no exterior da
sintaxe marxista. Ter-se formado no exterior dessa sintaxe, fora
da grande tradição que constituiu o pensamento social e a ativi-
dade crítica da maioria de seus pares e contemporâneos brasi-
leiros, é o lance diferencial de Silviano Santiago que repercute
em Uma literatura nos trópicos e produz u111 forte curto-cir-
ct1ito imagem assíclt1a 11as apreciações do crítico quando
'e11tre-lugar o al\10 é a polarização e11tre ''ontade de pureza
e , i' ê11cia da 111estiçage111 e11tre colo11ização (a in11)osição do
111odelo as có1Jias), e descolonização (a agressi\1idade desviante
dos iinulacros). Com a vee111ê11cia própria daqueles teinpos
de opre são política e agitação cultt1ral, a a11álise de Silviano
a11tiago descarta a (esperada) sí11tese dialética e propõe a re-
,,er ão da classificações, o \1alor do híbrido e a fertilidade de
i)aradoxos e contradições: '' 111aior contribuição da América
Lati11a para a cultura ocide11tal \1e1n da destruição sisten1ática
dos conceitos de unidade e pureza'' (grifos dele).
O segundo ensaio da coletânea, Eça, autor de Madame
Bovary,, demonstra qt1e a conti11gê11cia da repetição, do pasti-
che ou da ''tradução ct1ltural'', e o dilema da secundariedade
não estão confi11ados na derivação colonial histórica e explí-
cita. Recorre ao Pierre Menard, autor del Quijote, de Jorge
Luís Borges, para rei11terpretar, como valor afirmativo, a fa-
111iliaridade escabrosa do Primo Basílio com o romance de
Flaubert. Em análise exemplar para a crítica cultural e para a
teorização do literário, Silviano Santiago recolhe, na compa-
ração dos dois romances, prosaicas cenas ilustrativas da ''re-
versão do Platonismo'' anunciada por Nietzsche e retomada
por Gilles Deleuze: a invisibilidade das cópias fiéis, quando
coi11cidem com o seu modelo versus a visibilidade desafiado-
ra dos simulacros quando exibem a sua diferença. A conclu-
são é análoga à avaliação do ''entre-lugar'' latino-americano,
ressalta o valor da transgressão, a potência da repetição que se
produz ''fora do lugar''. Vale, para Santiago, tornar-se Outro
pela energia transformadora do ritual antropófago.
Em um segundo bloco de Uma literatura nos trópicos lê-se
a incursão do crítico literário com atuação t1niversitária nos
domínios dos mídia, da indústria cultural, da mercadoria ar-
tística ou ''de uma arte de intenso consumo'', em especial nos
dorr1í11ios da ''jt1venh1de'', co1no diz. A leitura que Silviano

346 1 Sílvíar10 Sa11tiago


a11tiago ÍélZ d(1 ct1lh11·a dos a11os 1970 ta111bé111 é i11ovida peJa
força t"e\"er i''ª ot1 de co11strt1tor;;1 ele 11oções cruciais sobre a
arte. 11a tradição ocide11tal. Os e11saios expõe111 a retração ele
, alore da 111oclcr11ielade estética, corno a alta cotação ela escri-
hlfé:l do literário, elo ,,a]or artístico t1ni\rersal. Os e11saios ()s abu-

tres, Caeta110 \ feioso e71qz1a11to s11perastro e Bom co11selho, em


eqt1ê11cia 110 Ii,1ro tra11sita111 })elos debates culturais dos a11os •

I970 para a1)ontar às ' rezes co111 \·oz empe11hada, ot1tras com
delicada e solidária iro11ia a ((dessacralização'' da alta ct1ltura.
Os trê e11saios pode1n ser lidos sob o signo da insistência
de un1 prefixo, próprio daquela geração do desbunde e da
desconstrução qt1e aparelha Santiago na st1a atividade crítica.
4

eles, alén1 da 'dessacralização'', proliferam as operações de


''descentran1ento'' e de ('deslocamento'' 11as decisões de valor.
''Curtição'' pode ser hoje t1m termo vazio, mas é a partir dele
e no i11tercâ111bio entre o crítico erudito e a então emergente
cultura popular que uns semearam (palavra caríssima para
Si},1iano Sa11tiago) e outros disseminaram o ''alor do precário,
do efêmero, do transitivo; a exploração do corpo como lugar
de inscrição e Ieitt1ra; a contingência do espetáculo, as con-
taminações entre o público e o privado, o desejo e a neces-
sidade; a desconfiança da atividade intelectual que cataloga,
codifica, paralisa, sacraliza - ''salva do acaso'', corr10 diz.
''Curtição'' e ''desbunde'' são palavras já fora de circula-
ção, mas em Uma literatura nos trópicos funcionara111 con10
portas por onde Silviano Santiago fez e11trar 110 debate in-
telectual e acadên1ico brasileiro a ct1ltura da contempora-
neidade, com acuidade crítica e sem preco11ceitos. Pode-se
considerar que o intelectual e professor, titt1lado na Sorbo11-
ne e treinado nas u11iversidades norte-america11as, adentra os
espaços do desbu11de e da ct1rtição co1n alegria e a excita-
ção etnográfica dos t11ristas aprendizes, inas igual1nente co111
voraz reverência de t1111 a11tro1)ófago, 11erdeiro tan1bé111 dé1

U111a literatt1r;1''º trópicos 1 347


li11l1age111 o '''alclia11a. n1ediação e11tre o i11ocler11is1110 dos
anos 1920 e a st1a ah1alidade ct1ltL1ral elo fi11é1l do séct1lo, aliás,
é u111 bo111 \1iés (como preza dizer) para se ler os ensaios deste
e dos doí ot1tros livros set1s pt11Jl icados cn1 seqt1ência, o Vale
qua11to pesa ( 1982) e Tas 111all1as da letra ( 1989).
E111 t11n dos pot1cos e11saios dedicados à crítica literária
e1n Uma literatura 11os trópicos, a leitt1ra de Notas de Manfre-
do Ra11gel, repórter (a respeito de Kran1er), de Sérgio Sant'An-
na, Silvia110 Santiago flagra a face menos alegre da década
e os impasses e arbítrio dos ''anos de cht1n1bo'', expondo os
efeitos perversos do autoritaris1no 11a elaboração ficcional.
Co1n pala\rras ácidas, por vezes duras, lê nas situações drama-
tizadas por Sant'Anna o sectarismo moralizante e a atn1osfera
''repetitiva, pessimista, obsessiva, abt1siva, lancinante, viole11-
tamente carregada de tons éticos-n1orais'' que, diz ele, ''reen-
co11tramos de conto em conto''.
Esta contundência trespassa as páginas da literatura para
al\ ejar o momento político e existencial em que ele e o con-
1

tista estão imersos, e1n 1973, ano de pt1blicação do livro de


Sérgio Sant'Anna, do ensaio e ápice do governo do general
Emílio Garrastazu Médici, qua11do a ação da censura onipre-
sente se consolida: peças de teatro, filmes, exposições, músi-
cas ou outras formas de expressão artística são interditadas ou
rasuradas; artistas, compositores, escritores, professores, polí-
ticos e líderes operários são investigados, presos, torturados,
exilados do país ou sumariamente executados.
Lamentavelmente, estamos voltando a saber, ou apren-
dendo, l1oje, do que se trata.

348 Srlviano Santiago


11dré Botell10*

Co11ten1poiâ11eo é só quem recebe 110 rosto o fac/10 de trevas e


11ão de luzes - que fJrovém do se11 te1npo. Recebe o fac/10 de trevas
no rosto e, 110 e11tanto, e11xerga.
(Silviano Santiago, A 111oda conio metáfora do co11te111pora11eo, 2017)

With tl1e lights out, it's less dangerous.


(Patti S111itl1, S1nells Like 1een Spirit, 2007)

Difícil escapar da sensação de aguda att1alidade de Uma li-


teratura 11os trópicos: e71saios sobre dependência cultural, que
~

acaba de con1pletar 40 a11os. E t1ma se11sação t1n1 tanto estra-


nha também, pois se a tó1Jica da ''depe11dê11cia ct1lh1ral'', qt1e
define o asst1nto 110 subtítt1lo, pocle parecer clatada, }Jarte já de
uma l1istória intelech1al elos a11os 1960-70, os ]Jroble1nas que
ela colocava per1na11ece111, en1 grancle 111edida, e111 aberto. A
chamada mundialização da ct1ltura 11ão JJarece estar, de fato,
gerando exata1nente relações mt1lticê11tricas ou mais eqt1ita-
tivas. Basta le111brar, por exen1plo, que, se porve11tt1ra le111os
mais literatura de ficção africa11a co11te111porâ11ea 110 B1·asil, as
edições nacionais segt1e1n ai11da l1oje a rota ele co11sagração via

• Sociólogo e pesqt1 isa dor ela UFRJ .

lJ 111a litcrat111 a 11 cJ tr61)ico.., 1 361


grandes editoras e conglomerados editoriais europeus e nor-
te-americanos (em parte, mesmo para aquela escrita em por-
tuguês); ou ainda o espaço tão exíguo ocupado pela literatura
brasileira contemporânea nos suplementos literários de maior
circulação e consagração internacional, ainda publicados na-
queles antigos centros. outras palavras, mesmo que não seja
exatamente a mesma, continua a existir uma geopolítica mun-
dial da literatura e da culrura com relações e trocas assimétricas
1
e recriação de hierarquias de vários tipos •
Mas a atualidade do livro que Silviano Santiago fez pu-
blicar em 1978, quando contava 42 anos de idade, não está
apenas nos problemas substantivos c~m que lida, mas em
como forja sua abordagem e análise. E certo que os proble-
mas tratados no livro não dizem respeito somente a processos
(históricos, sociais, culturais, estéticos) de longa e de média
duração em que se constituem, mas também de exceder as
circunstâncias originais de publicação a propósito, sabe-
mos agora que o livro teve uma versão anterior, intitulada
Ruptura e tradição. Ensaio sobre o romance brasileiro do sécu-
lo XIX, organizada ao final dos anos 1960, jamais publicada.
Não basta considerar que a mudança social se realiza, na so-
ciedade brasileira, mais pela reiteração e acomodação do que
apenas pela ruptura para que se possa constatar a atualidade
de uma interpretação. Se assim o fosse, toda obra do passado
seria atual. O poder de interpelação de Uma literatura nos
trópicos é também de ordem teórica, e pode ser testado na
concepção, na feitura de texto e na análise crítica forjadas de

1 Mariana Chaguri e eu trabalhamos a questão da dependência cultural em


nossa apresentação no seminário Uma"literatura nos tr6pico1 40 anos: de-
pendência cultural e cosmopolitismo do pobre realizado em setembro (na
UFRJ, Unicamp e UFMG) e outubro (na Anpocs) de 2018. O seminário
foi organizado por Maurício Holez, Mariana Chaguri, Roberto Said e por
mim e contou com a participação de cerca de 30 especialistas veteranos e
recém-chegados na obra de Silviano Santiago.

J62 1 Silviano Santiago


ttm po11to de 'i ta muito próprio em u111 cerrado e criatj, o
corpo a corpo com a literatura e com a outra ]inguagens
artí tica e manife taçõe culturai tratada no ]i,rro.
Ciente de que a atualidade de um ]i,rro con titui tópica
convencional em reedições, apres o-me a dizer que por meio
dela, quero expre ar que e te livro admirável de Silviano San-
tiago desafia a literahJra e a cultura brasileiras não imples-
mente ainda hoje, mas, tal ez, hoje, mais ainda do que antes.
Implicará i o a consideração de que os ensaios recolhidos no
]i rro são tão inovadores que acabaram se antecipando ao seu
tempo e só agora os leitores estarão preparados para eles? Ou
estaremos em meio a uma espécie de refluxo que faz da socie-
dade, da cultura e da crítica cultural e literária de 2018 con-
temporâneas de um livro de 1978? Ou ainda, suas ideias terão
atingido tal êxito na definição da agenda intelecrual dos últi-
mos quarenta anos a ponto de já nos parecerem simplesmente
"perenes''? Em suma, qual seria a natureza da sua ah.Ialidade?
O problema não comporta resposta unívoca. Enfrentá-lo re-
quer um gesto não disjuntivo de pensamento, que, ao invés de
repor binarismos como ''aqui'' e ''lá'' ou ''antes'' e ''depois'', fa-
voreça uma perspectiva mais complexa que pe1111ita não apenas
nuançar, mas colocar em xeque polaridades assentadas, per1ni-
tindo surpreender presente e passado em uma nova rearticula-
ção tensionada em processo. E em poucos lugares poderemos
apreender tão claramente esse gesto de troca do ''ou'' pelo ''e''
como no próprio pensamento de Silviano Santiago, inclusi-
ve pelo diálogo tão decisivo que estabelece com as ideias de
2
desconstrução e descentramento de Jacques Derrida • Talvez

2 A consulta aos verbetes "Projeto de desconstrução" e ''Descentramento'' no


Gloaáno de De11ída ídea]izado e supervisionado por Silviano Santiago escla-
rece o ponto, mostrando bem como essas ideias implicam a recusa do gesto
dis1untivo e apostam na ideia de movimento (S TIAGO, Silviano. Glossá-
no de Dettída. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976).

Uma literatura nos trópicos 1 363



ro

a
~or111L1lada 110 e11 aio O eJ1tre-lugar da literatura lati110-
-a1nerica11a I)U1)licado origi11alme11te e1n inglês, e111 1971,
o co11ceito forjaclo j)Or ilvia110 antiago é pioneiro en1 re-
lação a outro isas })Osteriores como em The location of
culture, ele 1994, de I-Io1ni Bhabha. E, até por isso, vale re-
gi trar os diálogo desse crítico mineiro feito do 1nt1ndo com
Jacque l)errida (., scritura e diferença ) e Michel Foucat1lt
(Arqueologia do saber), por exemplo, e sua "reescritura" no
conte ·to i11telectt1al pós-colonial. Sabe1nos qt1e o cl1amado
disct1r o j)ÓS-colonial 11ão constitui nenhuma unidade, ainda
que seja possível entrever em st1as diferentes vertentes um
e forço co111t1111 de proclução de referências epistemológicas
críticas às co11cepções do111ina11tes e et1rocê11tricas de ''mo-
der11idacle''. Proble1natizar e mesmo desfazer o imaginário
ocide11tal 11a q11aliclade de padrão para se pensar os contextos
dos países periféricos são esforços recorrentes que permitem
repe11sar a 111oder11idade não mais a partir do exclusivismo
et1ropet1, con10 ''11arrativa 111estra'' (CHAKRABARTY, 2000,
p. 27), 111as ele st1as conexões globais (BHAMBRA, 2014 ), qt1e
poden1 (e deve1n) passar a incluir qt1estões co1no o ''[des]en-
3
co11tro colo11ial'' (CONNELL, 2007) .
O co11ceito ele ''e11tre-lt1gar'' ava11ça, assi1n, i1os n1odos de
defi11ição e co1npree11são da relação colo11ial e, ao fazê-lo,
desestalJiliza as categorias te1111)0 e es1)aço, apontando ai11da
para o valor l1et1rístico e l1istórico clt:1 ''clifere11ça'' e da alteri-
dade sobre a icle11tidade. Falar en1 ''entre-lt1gar'' in1plica co11-
siderar t1111 lt1gar co11creto e es1)ecífico, e 11ão t1111 111ero lt1gar

3 131~AMI3RA, Ct1r111i11cler. C~cJ1111ected .~ociol<)gies. l.io11clrcs: Bloo111sbt11y Aca-


de111ic, 2014; CJ;AKRAJ3Al\11', l)i1)csl1. l)rol1i11cializing l~ r1rope. l)ri11celo11:
l'ri11ccto11 U11ivcrsit)1 Press, 2000; CONl~ Ll", l~tlC\\t·y11. Soullzer11 t/1eo111: soc1,1l
scie11ce a11cl tl1e glcJ1)~1) c)}'l1éllt1ics í)Í kt1<>\\1lctlgL'. (~,1111\Jriclge: l)olil\' Prc~s. 2007.
Maurício l loelz e A11clrc J~ittt 11c.·cJt 1rt trttl)~1ll 1c1ra111 c111 st1~1s ~1])Tese i1taçõcs (l
c1ucstão cio co11le to i11telcctt1~1l 1Jé>s-colcl11i~1l c.lc () e71/re-IL1gar do disciirso lc1ti-
110-a111ericl1110 110 rcfericlo ~t;!t1 ti11nrio.

ll111J liter~lltlf(l llOS tró1>iCC)S 1 "'65


coiita", co1no diz Silviano. Todavia, se o colonialismo procu-
ra''ª a todo custo apagar as diferenças, sua própria dinâmica
fez com que novas relações, imagens e sons aparecessem _
pouco identificáveis aos olhos e ouvidos talvez insensíveis
do colonizador. Assim, o "entre-lugar" é também um lugar
a partir do qual se fala, e não apenas sobre o qual se pode di-
zer algo. E, neste ponto, do cosmopolitismo, se poderia puxar
t1m fio longo desde o Joaquim Nabuco de Atração do mundo,
capítulo de suas memórias Minha formação (1900), passan-
do por Mário de Andrade e outros modernistas e chegando a
O cosmopolitismo do pobre, de 2008. Não me parece possível
mesmo pensar em questões como ''inserção'' (em contraposi-
ção à ''formação'') e ''cosmopolitismo do pobre'' de que Sil-
viano Santiago tem se ocupado recentemente sem qualificar
suas relações como o conceito primeiro de ''entre-lugar''. Ano-
to que essa relação ainda está por ser demonstrada.
Tem sido justamente dessa perspectiva própria que Silvia-
no Santiago, ao se debruçar sobre a literatura brasileira, e não
apenas nela, se lembrarmos de Eça, autor de Madame Bovary,
por exemplo, e outras linguagens artísticas também analisadas
em Uma literatura nos trópicos, tem questionado a tendência
recorrente de pesquisa das ''fontes'' ou das ''influências'', que
segundo o crítico reproduziriam o discurso "neocolonialista" e
policialesco das orige11s, e, portanto, da "pureza" e da "unida-
de"· Ao contrário, o que lhe interessa são os deslocamentos, os

4 AU~É, Marc. Non-lieux, introduction à une anthropologie de la sunnodemité.


Paris: Seuil, 1992.

366 Silviano Santiago


t 11 i 11a111 11to ela ,.i õ e tá' ei e })Olarizaclé1s ele ide11tidacle,
n1últi1 la ',iria õ - d significado a })artir ele t1n1 n1es1110 e
ri talizaclo sig11ifica11te. 1\ bt1sca j)Or essas zonas de ii1-
iI 1})1Jreza d e tabiliza111 cl gra11des linl1agens teleo-
l oi a . apo ·ta11do 111 Íl1 tâ11cias históricas heterogêneas, que
d ~111011ta111 a po il)ilidade de t1111 di ct11~so e11t1nciador ho1110-
g 11 o arbitrarian1e11te l1ierarqt1izador. Embora 11ão seja este o
n1on1ento para dcse11volver a questão, vale assinalar que é desta
perspecti\"a origi11al qt1e U111a literatura nos trópicos se inscreve
no debate obre depe11dê11cia ct1ltural do seu (e nosso) tempo .
......,,ui111 o conceito n1t1ito próprio de ''entre-lugar'' de Sil-
' iano a11tiago se coloca 110 centro do 11osso comentário so-
bre a atualidade-a11acronismo do livro reeditado, pois retrata
a ideia muito própria e potente de ''movimento'' que aproxi-
n1a e tan1bém separa diferenças, exigindo que se responda,
corajosa1nente, à questão sobre qual é, afinal, o espaço crí-
tico que se abre quando a noção de unidade é perturbada.
Exagerando um pouco, talvez, o ''entre-lugar'' é tão somente
''movimento'' e ''relação'' (sempre carregada de conflito e po-
der mas também potencialmente de solidariedade), como
expressam, aliás, os muitos ''es'' da frase final do ensaio: ''En-
tre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre
a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a
rebelião, entre a assimilação e a expressão ali, nesse lugar
aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestini-
dade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino-a-
mericana'' (grifos meus).
Deixe-me qualificar melhor minha sugestão de que a
sensação de atualidade anacrônica de Uma literatura nos
trópicos está associada, acima de tudo, a certos recursos teó-
ricos e procedime11tais que forja. Espécie de redução es-
trutural da realidade social, esses recursos analíticos atuam
já, de saída, na seleção mt1ito variada de temas dos ensaios,

Uma literatura nos trópicos 1 367


o ro111a11c bra ileiro do éculo Xl.1 ). 01110 ob rvot1 ilvia110
e111 11tr ''i ta r e11lc:

o a })alavra rufJtura no ntido de transgressão ao câno11e,



e 111e 1110\ 1111 11to teorican1e11te 110 e11tido de retor110 à ideia
1

d va11gt1arda 111od rni\ta e concreta, à sen1ell1a11ça do qt1e


fará Octavio Paz en1 Os filhos do barro (19'14), cria11do o
paradoxo tradição da \ anguarda. E\ridentemente, e111 1970
1

ainda 11ão a u1110 u111a 1)erspecti\ a lati110-america11a da lite-


1

rah.1ra bra ileira.

Ruptura e tradição ... Parece mesmo difícil encontrar um


tíh1lo n1elhor para o que vimos discutindo até aqui. Ele re-
força a ideia de niovimento no tempo e de uma dinâmica
que enlaça temporalidades, pondo-as em relações de con-
ti11uidade, de conflito e de corte em diferentes realizações
que constituem objeto da análise do teórico da literatura e
da cultura brasileiras. No plano de Ruptura e tradição não se
encontra\1am, naturalmente, O entre-lugar da literatura lati-
no-americana, publicado em periódico acadêmico um ano
após assinar o contrato jamais executado pela editora, e os
ensaios sobre os seus contemporâneos, alguns deles artistas
mais jo\1ens do que o autor, como Caetano e Sergio Sant'An-
na, a maior parte deles escrita em 1973. Vemos, assim, que da
,,ersão dedicada ao romance brasileiro do século XIX a Uma
literatura nos trópicos novas temporalidades são acrescenta-
das, aproximando e afastando os tempos das obras analisadas
aos tempos da escritura e publicação do livro, acentuando
ainda mais a questão por nós apontada.
É possível, porém, dar 1nais um passo, e especificar um
pouco 1nelhor os procedimentos formais adotados por Sil-
viano Sa11tiago para lidar com ten1poralidades tão diferentes,
baralhando-nos em fios anacrônicos. Exemplifico com ensaio

U1na literatura nos trópicos 1 369


crucial sobre 1Iacl1ado de Assis recolhido i10 livro. e]

'' ,, .. . . 1v1d1r
~ . o 1 o
poca e
em ter1110s qt1e pern1aneceran1 pauta11do a agenda de d b
. . . e ates

a possibilidade de uma leitura do con1u11to formado por ela

seus textos [de Machado] se sucedem cronologicamenté cer-


tas estruturas primárias e primeiras se desarticulam e se rear-
ticulam sob forma de estruturas diferentes, mais complexas
e mais sofisticadas''. Embora tenha permanecido em textos
posteriores sobre Machado de Assis, em parte, dando forma
inclusive ao romance Machado (2016), o gesto não disjuntivo
de Silviano Santiago é um dos vezas da sua obra realizada até
o momento, ficcional e ensaística.
Retórica da verossimilhança merece de fato atenção para
6
pensarmos a atualidade de Uma literatura nos trópicos . Vou
me concentrar nele nesta segt1nda parte do meu comentá-
rio. Parte Silviano da constatação de qt1e os dois partidos que
organizavam a crítica machadiana sobre Dom Casmurro -
entre, de um lado, a condenação de Capitu, e, de outro, sua
absolvição , além de inge11t1an1ente eqt1ivocados, já que
ele não pode ser t1m romance sobre traição, mas apenas sobre
o ciúme, compartilham ambos de outro preconceito fatal,
que é negligenciar a ''grande e grave proposição do livro: a
co11sciê11cia pensante do narrador Dom Casmurro''. A forma

6 Agradeço ao editor Scl111eider Carpegiani por me chamar a atenção para


este po11to.

i70 Silviano Sa11tiago


r

t 'tica coll1ida ))Or iacl1ado para set1 ro111a11ce, argt1men-


ta é o "ro111anc ético". Mostra, então, como o problema
ético da co11dt1ta do l10111en1 cit1111ento no universo roma-
ne co 1nacl1adiano, clo1ni11ado )Jelo te1na amor/casamento/
ciú111e 11a ociedacle patriarcal brasileira e ct1ja personagem
fe11li11iJ1a 111ais carregada de dra1naticidade, aliás, seria a viú-
''ª se desartict1la e se rearticula nos romances destacados.
En1 a1111Jos opera un1 apreço pela verossimilhança, em lugar
da verdade, cujas raízes ct1lturais profundas e mais atuais
do qt1e nt1nca, acrescentaremos nós adiante na sociedade
lJra ileira se encontrariam no bacharelismo e no jesuitismo
11ela do1ninantes.
Recorde1nos o leitor. Em Ressurreição, o solteirão ciu-
n1e11to Felix desiste de levar a viúva Lívia ao altar, após rece-
ber carta anônima levantando dúvidas vagas sobre o caráter
da futura esposa, mas qt1e ele acertadamente intui (suspeita
inclusi\1e confirmada logo adiante pelo próprio narrador) ser
obra de seu rival Luís Batista. Observa Silviano que o fato
de saber ter sido a carta escrita pela ''pena da inveja ou do
orgulho ferido'' não altera a disposição de Felix, porque para
ele, ao fim e ao cabo, importava mais ''a verossimilhança da
sitt1ação criada pela carta do que a verdade proporcionada
pelo exame detido dos fatos''.
O drama é ampliado e aguçado em Dom Casmurro , pois
Machado deseja, sugere Silviano, que o novo romance ''se
torne mais ambíguo, mais sutil, e para isso suprime o nar-
rador onisciente, que explicava os fatos de uma plataforma
divina, e dá toda a responsabilidade da narração ao persona-
gem ciume11to''. Outras mudanças fundamentais são a pro-
fissão do personagem, que passa a ser advogado, ''portanto
homem mais ligado à arte de escre\'er, de persuadir e de
julgar os outros'', e o fato de ser u111 ex-sen1inarista, ''ho-
men1 que, pelo menos em teoria, deve ter as a11tenas n1ais

Un1a 11teratt1ra nos trópicos 1 371


intelectuai associado aos treinamentos da formaçao reli-
io a cri tã e da profis ão de ad ogado mo trar- e-ão de ._
g d b. . .d d d Cl
i 0 na modelagem a su 1et1v1 a e a personagem e da
narrati a moral do Casmurro, e sua combinação é a chav

ga duração na sociedade bras1le1ra ou, como ob ervou a


propósito Roberto Schwarz em seu ensaio sobre Dom Cas-
mu~o de 1990, Sil iano teria detectado ''o caráter brasilei-
ro dessa combinação'' entre seminarista e ad ogado, entre
7
religião e cultura jurídica •
0 novo romance, como o leitor está inteirado, achado
de Assis casará seu personagem ciumento e fá-lo-á pai de 11111
filho para deixar, contudo, que acuse a esposa de infidelidade,
renegando-a e ao filho, cuja paternidade çausa-lhe dúvidas, en-
viando ambos para a Europa. Como de um romance a outro se
opera aquela mudança de narrador, todas as mencionadas de-
cisões não se justificariam, como no caso de R · ''pelo pleno
conhecimento da verdade, mas por acreditar que as. aconteci-
mentos se encaixam e podem ser explicados pelo
Ou seja, a importância da ''verossimilhança'' em l~ 'l!i!~
dade'' se expande dramaticamente de
murro, com consequências decisivas para ~·
mais precisa do ''romance ético'', bem c.va.·•
de perene crise moral da sociedade bra ·
mais aguda neste momento, do que ...
Uma literatura nos trópicos saiu do
Réu e advogado de defesa i ..........,
gem, Bentinho e Dom Casmur-r:
bom advogado que devia ser',,

7 SCHWARZ, Ró
Companhra da

J7l
Chan1a a atenção ilviano para o traço que considera o 1nais
·alie11te da retórica do ot1tro Santiago, 0 advogado-narrador:
0
· a1)riori 1110 '. Afinal, a peça oratória arquitetada para a defesa,
en1 que a ' ocações forense (do advogado) e moral-rei igiosa (do
ex- e1nina~ista) tambén1 se innana1n, "nada niais é do que
0
de envol 1n1e11to de certo raciocínio que nos conduzirá in1pla-
cavehne11te à conclusão por ele an1bicionada". Obedecendo a
uni pla110 pré-determinado, a reconstituição do passado pelo
narrador n1achadiano, egoísta e interesseira, 1naterializada tam-
bén1 11a reconstn1ção da casa de Matacavalos, segue un1 n1esmo
princípio ft1ndante presente em diferentes proposições lançadas
ao longo da narrativa que procuram industriosamente traduzir
"a igt1aldade pela semelhança". Diz Silviano:

O convencimento não é feito co1n a esperança de que o


leitor evolua seu modo de pensar, ou de encarar os proble-
mas, mas pelo fato de lhe propor como base para seu julga-
mento aquilo mesmo que já posst1i: o bom senso.

Lembra o crítico a importância e a familiaridade, para


Machado de Assis, de dois at1tores e textos fu11da1nentais
a esse respeito: o Pedro, diálogo de Platão em que Sócra-
tes discute o problema da ''retórica qt1e se vale do verossí-
mil como recursos de persuasão'', e Les Provincíales, cartas
escritas por Louis de Montalte a un1 provincial, nas quais
Pascal critica ''sem nenht1ma clen1ência a casuística jest1íta,
por meio do qt1e se cha1nava o 'probabilismo', ou ~ej~, 'a
doutrina elas opiniões prováveis'''. E111 suma, para S1lv1a110
Santiago, a narrativa de Do1n Casmurro ao 1nes~10 temp_o

gera] ético-moral da cultura brasileira, "que se~n~re viveu

dos jesuítas''. Verossi111ill1a11ça co1no rect1rso de perst1asao

Ur11 a litcré1tt1rít 11os trÓf)Ícos 1 373


})rol)abili 1110 a pala ra "prová,rel", o crítico a11ota, é
con id rada pelo t ólogos u111 eqt1ivale11te perfeito do ve-
ro í111iJ e111 1·etó1·ica são a base daqL1ilo qt1e co11l1ecemos
co1110 bacl1a1·el is1110'' ace11 tt1a Sil,ria110.
O bacl1ar,e]j 1110 brasileiro associado à 111atriz edt1cacio11al
je uítica l1erdada do colo11izador portugt1ês e ct1ltivado nas
facttldades de Direito foi objeto de crítica e1n diferentes mo-
n1e11to . Os 111odernistas de 1922, por exe111plo, abusara1n da
pill1éria tanto na poesia quanto no ensaio criticando o "lado
dot1tor' da 11ossa formação cultural, para eles materializa-
do no orna1nentalismo parnasiano. Eí.n Raízes do Brasil, de
1936, Sérgio Buarque de Holanda refere-se à "praga do ba-
cl1arel ismo" que condicionaria o móvel dos conhecimentos
como fonte de distinção e destaque dos seus cultores:

De onde, por vezes, certo tipo de erudição sobrett1do formal


e exterior, onde os apelidos raros, os epítetos supostamente
científicos, as citações em língua estranha se destinam a des-
lumbrar o leitor como se fossen1 uma coleção de pedras bri-
lhantes e preciosas.

Já Üs\vald de Andrade no Ma11ifesto da poesia pau-brasil,


de 1924, personificando o ornan1entalisn10 e111 Rui Barbosa -
um ''cartola da Senegâmbia'' , co11fere feição ao nosso ''lado
doutor'' como um traço ct1lh1ral do111inante, prodt1to do lega-
do ci,,ilizacional ibérico trans111itido da 111etrópole à colônia:

O bacharel. Não poden1os deixar de ser doutos. Dot1tores.


País de dores anô11i1nas, de dot1tores anônin1os. O Império foi
assi1n. Eruclitan1os tt1do. Esqt1ece111os o gavião de penacho.

o caso de Oswald, a crítica ao bacharelismo parecia tra-


zer co1no co11traparticla, porén1, t1111a aposta algo difusa no

374 l Sil\ ia110 Sarztiago


1
}Jrogre o tec11ológico, ta],rez a sc)ciaclo ao cresce11te })Testígio
do di CLtrso téc11ico · ide11tifica<los a I~epúl)lic,1. s prÓJ)rias
refor111a ed11cacio11ais i111ple111er1tad~1s pelo 110\'0 regin1e,
d de a ])io11eira Benja111i11 Co11 ta11t 11a área da escola se-
ct111dária, 110 â111bito fecleral, ele 1890, e a Caeta110 ele Cam-
po , de 1892, e1n São Pat1lo, na área das escolas prin1ária e
nor111al até as c1t1e a elas se seguiram, estavam \ oltadas para 1

a tentat:i''ª ele st1bstituição do modelo currict1lar l1t1manista,


l1erdaclo do l1npério, por outro de natureza tecnocie11tífica
identificaclo à República. Daí a palavra de orden1 do n1oder-
ni ta: ''e11genheiros ein vez de jurisconsultos''! 8

oposição OS\\ aldiana, e modernista en1 grande medida,


1

poré111, pelo próprio caráter normativo a ela associado, corre o


risco de dilt1ir o fi.111damental abordado no problema da ''retó-
rica da \ erossimilhança'', tal con10 fom1t1lado por 1lachado de
1

Assis, e desvendado por Silvia110 Santiago. A própria polariza-


ção entre os ideais de cultura e edt1cação l1un1a11istas e de\ oca-
ção profissional, embora fosse exigência co1nt1m do processo de
racionalização da modernidade i11dustrialista e bt1rgt1esa, pare-
ce ter assun1ido feições difere11cia<las 11a sociedade bra ileira · e
é mais provável que, entre nós, tais ideais, i11co11grl1entes e111
tese, tenham se interligado, e não se exclt1íclo t111ilaterc.1l111ente,
como poderia st1gerir a 1)erspecti''ª associada à nor111a et1ropeia.
Brutalizando o argt1n1ento: o problen1a 111oder11ista tal-
vez fosse aci1na de tuclo cl1an1<.1r a ate11ção pé1ra defa age111
da edt1cação brasileira ele 111atriz jest1ítico-jt1rídica e111 face
da era industrialista qt1e e11tão se i111pla11ta\ a i10 paí , e st1a
1

correspondente exigê11cia de t1n1a n1entaliclade tida como


mais prag111ática e racio11al. Se estÍ\'er111os lendo adeqt1a-
damente ilvia110 Sa11tiago o qt1e ele e, tá dizc11do não é

8 Ver BOTl""LHO, 11dré. pre11di:ado do Brasil. A nação er11 bu ca de eu


portadores ociais. Ca1111>i11~1 : l~di tora da 11ica111p 2002.

U111a literalLtra 110 trópicos 1 3"'-


ape11 a
· 0
1 ·
o prolJ]en1a des,1
e11c1ado e111
/ • ,,
achado de
.

1s

cttltural brasileira' põe em evidê11cia traços éticos e mo-


rai eiJraizados na 11ossa sociabilidade e nas nossas práticas
e valores etn geral, perpassa11do difere11tes icleais de cultttra
e educação. -1, poderían1os ai11da acresce11tar, co11textos e
regi 111 es políticos.
;\cresce 11 to t1ma 11ota 111achadia11a à análise de Silviano.
Recorro à Teoria do 111edall1ão ( 1882), no qt1al Macl1ado de
,,,...,sis já deixa''ª claro o prestígio simbólico e os proveitos ob-
jeti''º desfrutados pelos portadores sociais do bacharelismo.
lesse conto, um pai experiente e zeloso orienta o filho re-
cém-chegado à maioridade, Janjão, a cultivar o habitus de
''111edalhão'', o qt1al, independente da atividade profissional
que ,,iesse a escolher, apresentaria a vantagem incontestável
de 11ão deixá-lo ser ''afligido de ideias próprias'', gara11tindo,
assin1, sua posição entre as correntes ideológicas em disputa
pela hegemonia política. Conselho que, segundo estima o
sábio pai, repositório das práticas que inforn1am a ação dos
detentores do poder autocrático, valeria ao filho a leitura do
próprio O príncipe, de Maquiavel.
Um paralelo com um contemporâneo de Uma literatura
nos trópicos nos ajudará a qualificar melhor o sentido político e
a atualidade-anacrônica da ''retórica da verossimilhança''. Em
A revolução burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes, publi-
cado em 1975, livro que Silviano Santiago teve, aliás, a oportu-
nidade de resenhar a convite de seu próprio autor, o sociólogo
9
i11siste que não se deve confundir autocracia com clitadura •
Ditadura e democracia são forrr1as de exercício do poder; ao

9 F~RN . D~S, f!orestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de .!nterprcta-


çao soc1ológ1ca. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. S TIAGO, Silviano. Revolu-
ção Burguesa". ln. Sociologia 6 Antropologia, 2018, v. 8.

3 6 S1lviano antiago
.
HOELZ Maurício ''Florestan
10 B01"'ELHO, André; BRASIL JR., A ~onio;11
ide ' Ru ai Bastos Gabriel

Col111 e Mariza Pe1ra110 · 111: oczo ogza

Uma literah.1ra i1os trópicos 1 377


q 1 i111 li ari'l u11 a , 1t era i 11 110 ,,j í eJ, f)Or 'n11) 1
111 ~i dir t ] 11 b1·c 110 a11 1 t alJriel Coh11 • 'ltido
11

111 fJ· aii 1~1 i11-:ii ] r oc I]Ja11t aliá e 1e111])rar11 o de


du q 1 tõ a ]i i 1 ai . I ri111eiro, a e,·pa11 ão das front ira
lo J11cli i1ri })r o le111ais JJO<l r , o egis1ati o e o ·e-
L1tiv o JLI ri·1 t11 l )J rigo o (para a de111ocracía) desequilí-
1rio 1 ft.11 õ JU l 111os assistido 110 Brasil. Segu11do, que
o ' ro í111il JJarec tar ati faze11do ta111l)é1n as expecta-
ti\ a da OJ)Í11ião JJÚ blica, que. clesvirtuada, vai se tor11a11do
u111a e p "cie de }Jro1011ga111e11to paradoxa] da própria jt1stiça,
12
ca1Jaz d 111e dar algu111a aparê11cia den1ocrática •
l or111a de socialização at1tocrática por excelência, ethos
1

da at1tocracia, a retórica da verossi1niJJ1ança, tal con10 dis-


cutida fJOr Sil\riano Santiago, nos dá uma perspectiva na e
a j)artir da cultt1ra brasileira que se 111ostra crucial também
jJara entendermos as reviravoltas na espiral da den1ocracia
que ta1nbé1n liga anacronicamente passado e presente no
Brasil contemporâneo. Uma literatura nos trópicos é um Ji-
' ' fO perfor1nativo, em um sentido que le1nbra a discussão de
13
Derrida , isto é, mais do que transmitir conteúdos, mais do
qt1e analisar ''textos'' e ''contextos'', age, provoca uma reação

11 Ibide1n.
12 E t1n1 dos rnaíores perigos desse transborda111ento de t1m Jttdiciário intrusi-
''º, co1110 sugere a J1istoriadora He1oísa Star]ing, é justan1ente que os seus
111c111bros ''passam a se co11ceber como e pelhos da sociedade e acreditam
qtie stias \ ozes são co1110 expressões mecanica1nente exatas do que a socie-
1

dade deseja. Qt1a11do isso ocorre a definição do que é bon1 para todos e de
1

co1no son1os forçosa1nente obrigados a aderir a essa definição passam a ser


sa11cio11adas por grttpos e i11divíduos qt1e estão co11vencidos da superiorida-
de de seus pri11cípíos e de set1s \1alores sobre todo o restante da sociedade"
(SrfARLI G, Heloísa M. ''Onde estão os repúblicos? A crise e a república
110 Brasil conte111porâ11eo·'. ln: BOTELHO, André; ST RLI G, He1oísa 1.
(Orgs. ): República e de1nocracía: ir11passes do Brasil contemporâneo. Belo
Horizo11te: Editora UFMG 2017 p. 107.
13 DERRIDA, Jacques. Limited lnc. E\'anston: orth\vestern Uni\er 1t)
Press, 1988. Agradeço a A1eja11dra Josiowicz por me ter chamado a ate11ção
JJara o paralelo.

378 / ílvíano Sa11tiago


110 leitor e 11a co111t111idade de crítico e teóricos ela ct1ltura.
O ]i\iro i1111Jlica t1111 1)osicio11e:1111ento político e o esti1nula 110
leitor. í está a st1a co11te111pora11eidacle.
Le111l)1·0 Giorgio gan1ben e sua discussão sobre a noção
de ''co11te1111)orâ11eo'', a propósito, objeto de diálogo rece11te
de il\riano Sa11tiago, para fechar 111eu co111e11tário sobre a
'att1a]idad.e-a11acrô11ica'' e11tre te111pos, a11tes e agora, passado
e prese11te, de U1na literatura 11os trópicos. Para Aga111ben, o
conte1111)orâ11eo não é aquele qt1e adere plenamente a sua
época porque, por 111anter os olhos fixos nela, não consegt1e
enxergá-la; mas, ao co11trário, aquele que não coi11cide per-
feitan1e11te co1n seu tempo, sendo inatual deslocado e
anacrô11ico e por isso mesmo mais capaz do que outros
de perceber e apreender o seu tempo. A co11temporaneidade
seria para e]e tima relação ao mesmo tempo de adesão e dis-
tancian1e11to do presente, através de uma ''dissociação'' e de
14
u111 ''anacronismo'' • Silviano Santiago:

O contemporâneo é, pois, o st1jeito que se descola do presente


em que \ ive para perceber o esct1ro da att1alidade en1 que vive-
1

1nos todos [... ] Co11te1nporâ11eo é só qt1e111 recebe no rosto o


facl10 de trevas e não de 1t1zes - qt1e prové1n do sct1 te1111)0.
15
Recebe o facl10 de trevas 110 rosto e, no e11ta11to, e11xe1·ga .

14 AGAM13l~ , Giorgio. O c1t1e é o co11fe1111J<J1·â11e<J? e 011tros c11 ~1ios. CJ1u1)ecó:


Argos, 2009.
15
S_A '1.1A O~ ílvia110. ''A 111ocla co1110 J11cfáfo1·~l do co11lc1111JorfJ11e<>'', .111: ., o-
czolog1a 6 A11tropologia, 2017, v. 7, 11 . J JJ. 1O5- 124.
1

U111él Iiter, lttríl 11os trópico 1 379

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