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A NOVA ATLÂNTIDA

DE SPIX E MARTIUS:
natureza e civilização
na Viagem pelo Brasil
( 1817- 1820)
IV
A VIAGEM PELO BRASIL
ESBOÇO DE UMA
CIVILIZAÇÃO
"U m espírito malicioso definiu a América como sendo uma
terra que passou da barbárie à decadência sem conhecer a
civilização."
(C lau de Lévi-Strauss, Tristes tró p ic o s)

"Condenávamo-nos à civilização."
(Euclides da Cunha, À margem da história)

Espelho M á g ic o

A o aportarem n o Rio de Janeiro, o notório encantam ento de Spix e Martius 1 Spix Sc MarfiuS, op., cit., vo], l, p . 48/90-1
com abeleza natural é abruptamente interrompido pela '"barulhenta turba
2 Norbert Elias, op., cit., p . 6 0 , e George W .
de pretos e m ulatosseirtinus q u e ofereciam seus serviços com (...) grande S tocking, Victoritm Anth ropology, N e w York, T h e
insistência", q u a n d e subiam a escada de granito do cais e atingiam a praça Free Press, 1987, p. 10.
p rin cija l d a cid a d e.O s autores surpreendem-se ao descobrirem um lugar
* Partímosdfi sucinta definição d e C la jd e Lévi-
cu ja "selvageria americana" já teriasido rem oyidapela "influência da civili­ Strauss, reiterando que a q u estão etnocêntrica,
z ação «cultura d a velhaeeducadaEuropa", em prestando àcapital do Reino n a sua expressão mais im ediata, tal c « n o defi­
nida acima, não é particular do europeu, estrn
U n íd od e P o r tu g a l, Brasil e A lg arv es o "cu n h o de civ ilização avançada".
um a atitudeprofundamente enraizadaem gran­
M as o }ue d e parte dos seres humanos. lá., "R açae Histó­
ria", trad. Chaim Samuel K atz, I n - ____, An­
tropologia estrutural áois, 3.* ed., R io cit Janeiro,
lemijra a o v iajan tcqu eele s e acha num estranho continente do mundo, é
Tempo Brasileiro, 1989, p. 3 33-4. De forma se­
sobietudo a turbavariegada d e negros e mulatos, a classe operária com melhante L.Leadi conceitua o etnocentrismo
q u e áe to p a p o r teda a parte, assim que p õ e o pé na terra. Esse aspecto foi com o um desdobramento d o "egocentrism o",
que, por sua vez, é característica d e todos seres
n o s mais d e surpresa do qu e d e agrado. A natureza inferior, bruta desses
humanos e culturas. 'Todo ser hum ano, qual­
h o n m s im p o rtu n as, sem inus, fere a sensibilidade d o europeu que acaba quer que seja sua identidade cultural, te n a sen-
d e deixar o s costumes d elicad o s e as form as obsequiosas da sua pátria1. saçãode se encontrar no centro d e um universo
privado. (...) Oetnocentrismo éunaa caracterís­
tica humana universal e não, com o porvezes se
Essa consciência d e str europeu e de pertencer a um m und o por ele denomi­ supõe, apenasuma peculiaridade d o retente im-
n a d o d e "c ív iliz a d o "3 s faz sentirem -se agredidos por esse s que representa­ perialismocapitíüiita" (p. 136). L e a ch demons­
tra tis múltiplas formas do elnocenbrisms, dentre
vam a alteridade. Selvageria é ep íte to para a América e, co m o veremos, para
elas a "estrutura segmcnlária da solidiriedade
os n e g ro e p a r a o s índios, tanto quanto é o term o oposto e com plem entar de etnocêntrica" vista como u m sistem a de "cír­
"civilização"2. C ortforaie lem bra Claude Lévi-Strauss, "'selvagem ", ou seja, culos concêntricos'1. '"Eu estou a q u i to centro
do meu universo, omundo d a cultura eda civi­
p ró p rio da s e lv a , alge portanto qu e evoca um a forma d e vida animal, e a
lização; à minha volta, em círculos cada utzmais
expressão c o rr e la ta "bárbaro" em an am de u m a postura etnocêntrica, na qual afastados, estão aqueles que eu recordeço co­
se recu saa d iv ersid ad e cultural. N essa recusa, exclui-se d a cultura e relega- mo seres humanos, tal como eu. Algunssão-me
mais próximos; outros só longinquamente me
se p a r a a n a tu re z a tudo o que n ã o está d éacord o com a " n o r m a " sob a qual
são aparentados. Para além d isso, há cs estra­
se v iv e 3. nhos e os estrangeiros,cujos costum es áosu fi-

A VIAGEM pelo B ka sil : esdoço de uma civilização 135


Spix e Martius sabiam, já antes de partir para o Brasil, que seu escopo, além
V, do m undo natural, eram os povos ''prim itivos" americanos e também, os
imigrados. junto da curiosidade de conhecer os habitantes, confrontam-se
com a diversidade cultural, provocada pelo grande número de pessoas "d e
todas as cores e vestuários"4. Diante desse espectro muitífacetado até admi­
tem, com certo desdém, depois de ter viajado mais de um ano pelo Brasil,
que, no contato com as "diversas raças hum anas", o "europeu sensível" tem
de "deixar de parte certas pretensões"5. Nem por isso, porém, os nossos na­
turalistas relativizarão o seu olhar.

Em Salvador, confirmam'quão sugestiva era a pesquisa sobre as "raças huma­


nas" no Brasil. Sob as palavras-chave "índole e a cultuía dos habitantes" —
que constam n o índice da Viagem pelo Brasil—, apresentam uma visão panorâ­
mica dos diferentes aspectos humanos: nela ressaltam a predominância da
mistura das raças branca, negra e indígena, ao passo que o semblante de traço
puramente europeu é verdadeira raridade. Os autores discorrem sobre a for­
mação intelectual e política dos brasileiros e imigrados portugueses, os esfor­
ços científicos, o teatro— que, em dia de espetáculo, contava com um a platéia
de "hom ens de todas as condições e cores" — , cuja programação, em virtude
do calor, era mais de diversão do que de tragédias, preterindo-se as "gran­
diosas criações de Calderón, Shakespeare, Racine ou Schíller". Além disso, o
jo g o de cartas, de prendas, víspora e dados eram o grande entretenimento das
eientemente parecidos com os meus para qtie
eu experimente sentimentos de simpatia huma­
classes altas e baixas. Nas casas mais ricas, contam de formosos banquetes,
na, mas além destes últimos há pessoas ainda m uitas vezes acompanhados de música e do lundu, "que as senhoras costu­
mais estranhas que não me suscitam a mínima m am dançar com muita graça"6.
resposta; estes estSo para além dos limites da
humanidade, s5o selvagens, animais ferozes,
elementos da N atureza". !d. "Etnocmtrismos". P ara as classes inferiores, nos dias d e festa, os passeios eram a diversão. Os
In: Enciclopédia Einaudi, (md. Rui Pereira e Tere­ festejos de N osso Senhor do Bonfim duravam alguns dias, atraindo "inume­
sa Bento, Lisboa, Imprensa Nacional, 1985, vol.
5, p.339. É necessário lembrar, porém, que os
ráv el aglomeração de povo":
europeus, cnohvados pela sua visão ebiocên-
trica, chegaram ao extremo de destruir e exter­ O vozerioe os divertimentos extravagantes do grande número de negros,
m inar culturas inteiras da face da terra. Lfm
exemplo é o genocídio dos índios causado pela
ali reunidos, dão a essa festa popular um a feição estranha e excêntrica, da
conquista espanhola e portuguesa na América. qual só pode fazer idéia quem observou as diversas raças na sua promis­
cuidade. Igualmente atrativos para os observadores são as particularida­
4 Spix k Martins, op., cil., vol. I, p. 49/96.
des das diferentes ciasses e raças, que se manifestam, quando, acompa­
5 Ibidem, vol. II, p. 114/632. nhando uma procissão religiosa, passam pelas ruas da Bahia7.

* Jbiílem. vol. D,p. 149-52/639-43.


Formam um "luxuoso préstito" as inúmeras irmandades de "gente de todas
7 Ibítlem, vol. II, p. 152 <'643. as cores", que disputam seu espaço no meio dabalbúrdia de opas, bandeiras

136 A nova Ati.Antida de S pix e Martius


temacional diante das grandes potências, Martius atém -se ao conceito de
Kultur e corrobora a auto-im agem alemã;

Nós alem ães, m esm o sem colônias, temos um a só propriedade (...), o


campo do esp írito [Felddes Geístes]. Estamos destinados p ara explorar o
N ovo M undo no interesse espiritual [geistigen Interesse} e alargar esses
interesses249.

Finalm ente, n o rev erso do "espelh o m ágico", M artius sobrepõe o seu pro­
jeto de cu ltura ao d a civilização. O "gên io da história" p o u p o u os "germ â­
n ico s" desse fan tasm a da colonização e determínou-os a outra atribuição,
achava ele. Esse " s o lo " americano ainda "intacto"250 p o d e s e r ocupado de
outra m aneira. A o s e u ver, o que motiva os alêíaãe&..a.e^plotar o Novo
Mundo são os in teresses 4 q. intelecto e 05 ideais sor i aís e morais. Ãssiih
sendo, o próprio a u to r dá margem para ju stifíq T a Viagem pelo Brasil e
suas obras posteriores. Baseado na "propriedade" dos "germ ânicos", que
seria o "cam po do espírito", a obra de Spix e M artius adquire dupla fun­
ção: ao m esm o tem po em que se presta para evidenciar a auto-imagem da
cultura alemã, representa a expkfl&ção que os alemães fariam ao Novo
Mundo. E, nesse sentido, M artius, m ais que Spix, exp an d iu 0 campo da
sua exploração, deixando uma obra que não somente contemplou a "ciên ­
cia", mas tam bém a história e a literatura.

Por outro lado, se M artius julga os latinos culpados e inocenta os germânicos


das catástrofes com etidas pela colonização dos europeus na América, não
poderia fazê-lo algum as décadas m ais tarde. Depois d a Conferência de Con­
go em B erlim (1884/5), quando as potências hegemônicas européias reparti­
ram quase toda a Á frica entre elas, a Alemanha também recebeu 0 seu pedaço:
para os povos africanos das colônias alemãs, seu destino infeliztnente não F. P, Martius, "ARthnogra/ia da Aciônca...
foi menos catastrófico ao dos outros povos colonizados pelos europeus. p. 562. D e acordo com Norbert Elias, a antíte­
se alemã entre Ziví/isafíon e Kultur náo se s u s ­
tenta sozinha: é parle de um contexto mais-
Por fim, essas palavras de Martius traduzem uma utopia fundada em um à amplo. É, em suma, a expressão, da auto-iron-
visão de m undo eurocêntrica, na qual os valores da Kultur, que definem a gem nlemã, R aponta para ns diferenças eniíui-
auto-imagem alem ã, tomam-se referência imperativa e com o tal se impõe ao tolegitimaçâo, em caráter c comportamento tatil :
que, no início, existiram preponderan temente,
resto do inundo. Que essa utopia aponta para um extremo nacionalismo embora não exdusivamente, entre determina-.-
trazendo consigo um projeto social de conseqüências absolutamente furtes- j das classes e, em seguida, em re a naçáo alemã é ;
outras nações." J/i.op. dl., p. SÓ.
tas, o século XX n os mostrou.
2,0 Spix «Sc Martius,, op. c i t 1938, vo!. II, p. 26/,;

A vw . em m .o B fasu .: eshoçooe uma cívíuzaçâo 199


seu ver, a caminho da civilização. Mas nesse esforço depararam-se com a
própria contradição da idéia do processo civilizador. Compartilhando como
conceito franco-inglês de civilização, Spix e Martius desnudam o seu poder ?
de destruição: a civilização pode resultar na aniquilação da natureza, amea­
çando a própria humanidade. Um segundo aspecto dessa força destrutiva, :
os nossos viajantes encontram na colonização do Brasil: o triste paradeiro ■
dos índios. Embora Spix e Martius releguem a "imperfectibilidade,/ e a con­
sequente incapacidade de os indígenas absorver a civilização ao campo da
história natural, destituindo-lhes praticamente a "hum anidade", seu trágico
destino foi reforçado pela história da humanidade, ou seja, a própria civili-
zação, conforme a equivalência que Martius atribui a esses termos.

t Enfim, uma vez que os nossos naturalistas qualificam a América, e o Brasil ti


portanto, de "solo in tacto", cuja natureza deve ser dominada e transforma-^

I
! da pela mão dos europeus em conjunto com a dos africanos, ainda que estes
I sejam rebaixados à condição de "natural" inferioridade, é esboçado o gesto
fundador da civilização. M as, enquanto os autores arquitetam o desdobra- v;

mento desse gesto inicial, projetando-o para os tempos futuros, também en- ■■■■.■s‘
xergam nessa terra da "barbárie" a possibilidade de recuperar o passado de
uma humanidade primitiva. No momento da despedida, Spix e Martius ex­
pressam os votos de prosperidade ao Brasil e acrescentam ao relato um epi­
sódio, no qual narram o último lugar por eles visitado antes de rumar para
Europa. Esse instante finaimente trouxe à luz um outro lado que tanto alme­
javam avistar nesta nova Atlântida, propiciando o resgate nostálgico de algo
que jamais existiu: numa fértil região, outrora tomada pela mata virgem,
topam com uma rica paisagem cultivada com roças de milho, feijão, cana e
caca u, ocupadas por palhoças no meio de bananeiras, goiabeíras e laranjei­
ras silvestres. Esse "sim ples quadro de serena pobreza e encantamento" é
habitado por famílias de índios e mulatos. Com o esforço de suavizar as
contradições da colonização, o naturalista afirma que, não obstante a "misé­
ria" trazida pelo europeu, ainda seria possível "certo bem -estar" no Novo
Mundo. iNao se trata, porém, do bem-estar gerido pelas condições civiliza’"
das representadas, em alguns lugares do Brasil, pelo comércio, indústria*
cultivo da terra, riqueza dos cidadãos, educação, costumes europeus, fé cris­
tã e diligente dedicação ao trabalho. E sim de um bem-estar "adequado ao
I^jj^ estado primitivo da raça humana, um a vida de natureza"242.

A contrapelo da visão de Spix e M artius acerca dos índios, nessa cena re­
criam um "espetáculo idílico", no qual invertem a concepção negativa que
A nova A tiánnda de S pix r. M artius
"gênio", até certo ponto imprevisível, que não se organiza necessariamente ,,Spix & Martins, op., cit., vol. fií, p. 226/1234-
5.
segundo um eixo linear, e dotado de especificidad.es.
14A esse respeito v. supra, Capítulo I. Nota 52.
O ponto de partida dessa "evolu ção", conforme Spix e Martius fazem men­
l5Sobre a herança do pensamento de Herder na
ção, é o "núcleo inalterável da hum anidade" ao qual a "civilização {Çivilisa-
historiografia romântica alemã, G. Stocking, op.
tion) " se sobrepôs paulatinam ente "com m il facetas e tonalidades"13. A idéia cit., p. 21-2, Nipperdey, op. dl., p. 502-5; E lias T.
do "núcleo inalterável" permite compreender a humanidade valendo-se de Saiiba, As utopias românticas, São Paulo, Brasi-
liense, 1991, p. 39.
uma identidade básica, que não exclui porém a diversidade da sociedade
humana. A essas diferenças os nossos viajantes estão atentos. Para tanto, as 14Spix Sc Martius, op., cit., vol. I, p. 27/7.
heranças da Statístik de Gottfried Achenwald como método para orientar a
17 Sobre o mcmogenismo e o poligenismo e as
observação de povos estrangeiros certamente foram bastante úteis14. . Mas
respectivas predominâncias nos séculos XVIU
muito prova-velmeute Spix e M artm sJamfaém..ahs<wer.am -Q_que Tohann e XIX, verUrs Bitterii,op. cit., p. 327-31; Lilia M.
riottfried Herder deixou para a h istoriografia romântica, introdu zindo de Schwaccz, ap. cit., p . 47-54; Keith Thomas, op.
cit., p . 162-3.
forma inéditai o estudo dos m itos, das línguas,, da poesia para compreender
õVolksgeist, ou seja, o ^ s p ír ífo d o povo7^com o u m a u ís r^ “ Buffon par tia do princípio de que o fator p rin ­
rízá^ Ô êx pres^ g á rã n tin d g -lh ^ g u a pécüiiajldad^H SH nca^.^dis^nd en- cipal para determinar a cor da pele é o clima.
Escalonando a espécie humana em branca, am a­
tênderHos nossos ru t^ sT o sO T è re n fê sfíp o s humanos são compreendidos
rela, parda e negra, considera a coloração da tez,
como "representantes de todas as épocas", de forma que sua língua, seus isto é , todos os tipos que não são brancos, com o
costumes, seu "folclore", seus "m ito s" e "tradições históricas" seriam mani­ uma degenerado física, que estaria intimamen­
te ligada a uma inferioridade cultural, frequen­
festação de seu "estado de cultura e história", conforme esclarecem no pri­
temente Igualada à es tupidez e à b arbáríe. N essa
meiro capítulo da Viagem pelo B rasil 16. ........... ordem hierárquica, o homem das 2onas tem pe­
radas, cspecialmente o europeu do norte, era
visto como o mais belo, o mais d ame mais bem -
Portanto, do mesmo m odo que a natureza brasileira se oferecia ao enriquecí-
formado, dentre todos os demais. Cf. Walter
m ento da pesquisa naturalista, a diversidade étnica dos seus habitantes pres­ Deruel, "Wie die Chinesen G.elb wurden", H is-
tava-se para ampliar o conhecim ento acerca dos "povos" extra-europeus e lorische Zeilichrift, <255):6Z5-66,1992, p. 646-7.

das raças humanas. É necessário lembrar que o pensamento naturalista igual­ lv Conforme Lineu, a espérie hpmo sapiens, é d i­
mente procurava pôr a diversidade da espécie humana rtujna ordem ta x o vidido em subgrupos, homo feru$ (selvagem),
nômica. Sem romper com o texto bíblico, as sistematizações do final do século americanus,europaeus,:asiatlcus, afer. (negio) e
monstruosus. Faltavam caracterizações m aa p re­
XVIII partiam, em sua maioria, do pressuposto monogerusta. ou seja, com-
cisas sobre o /tomo jeru$ devido h impossibili­
preendia-se a origem d a humanidade a partir de Adão e Eva17. Misturando dade d e se encontrar um representante deste,
aspectos físicos, caracteres inatos e traços culturais, os filósofos do. século grupo. No grupo dos monstros integravam-se
os gigantes da Patagônia, os hotentotes, os in - •
XVIII criaram uma série d.e classificações, hoje consideradas equivocadas, díos canadenses e os chineses. Urs Bitterli, op:
dos tipos humanos, como, porexempLo, as de Buffon18e Lineu19. NTa Alema­ cit., p. 332-3. Edwin R.A. Seligman Sc tlvin John­
nha, nos anos setenta do século XVIII, Immanuel Kant e Johann Friedrich son (org.), Encycbpnedai a f í/ie Social Sciences,
N ew York, The Macmillan Company, 1985, vol.
Blumenbach definem a utilização do conceito de raças para a antropologia. 13,p.26.E . Leachressalta a mistura deparame- .
Kant acha que só é possível classificar a espécie humana pela diferença das tros para classificar a espécie humana: Lmeu, ■
tonalidades epidérmicas. Os pais bíblicos, que já traziam em si de forma por exemplo, define oeuropeu como claro, san- •
güíneo, robusto; cabelos lisos, olhos azuis; geri- •
latente a diversidade, foram os únicos ascendentes das quatro raças: a bran­ til, arguto, inventivo; completamente vestido;,
ca, a amarela, a negra e a verm elha. Fatores climáticos e o isolamento geo- governado por leis".: A vanedade afnçana.re-

A viagem pelo Brasil: esdoço oe uma civilização 139


aperfeiçoam ento na história. Essa ideologia do progresso abrigaria num ex­
trem o os liberais burgueses e no outro os vindouros revolucionários socialis­
tas proletários10.

N a A lem an h a do final do século XVIII, as idéias do liberalism o clássico —


im portadas d a França e da Inglaterra — encontram seu nicho na camada
pensan te qu e se concentrava na classe m édia. No entanto, diferentemente
d o contexto francês e inglês, a Alem anha não passava diretamente pelas
ráp id as transform ações suscitadas pela Revolução Industrial e pela conso­
lidação do capitalism o. Vale lembrar que no contexto da história do Oci­
dente, na Alem anha, a industrialização, a unificação nacional e a democracia
p arlam en tarista plena se deram tardiamente. Isso teria influência na pecu­
liaridad e do pensam ento liberal alemão com o resposta a essa situação his­
tórica, na q u a l os pressupostos econôm icos e sociais para a prática dessa;
ideologia e ra m fracos. Por isso, seus representantes enfatizaram a crença
n a "in ev itabilid ad e do progresso e nos benefícios do avanço econôm ico e
cien tífico ", atrelada à crença "nas virtudes de uma adm inistração burocrá­
tica d e ilu strad o paternalismo e um senso de responsabilidade entre as.
h ierarquias su p erio res"11. Na continuidade do final d o século X VIII, o XIX
fo i " o grande século da idéia do progresso"12. E, sem sombra de dúvida,
entre as v ertentes extremas que esse ideário resguardava, é notório que as
inquietações d e Spix e Martius a respeito do Brasil giram constantemente
em to m o das questões do progresso e do possível aperfeiçoam ento da hu­
m anidade, co m o demonstraremos a seguir.

A m etáfora d o "espelho mágico" de Spix e Martius insere-se no panorama


dessas preocupações compartilhadas pelo pensam ento moderno ocidental.
O s nossos autores referem-se ao "espelho", uma vez que o Brasil — na con­
dição de praticam ente ex-colônia — deveria refletir a imagem projetada pela
10 Eric Hobsbawm, op. cit., p. 255-6. Europa. No entanto a adjetivação de "m ágico" alude a certa desordem ou
m esm o deform ação do que o "gênio da hum anidade" foi capaz de criar. Os
" Id., op, cit., p. 270; Ricardo R. Terra, "Algumas
questões sobre a filosofia dn história em Kant”.
autores rom p em com a idéia de um a temporalidade linear, conforme a histo­
In: Immanuel Kant, Idéia de u m história univer­ riografia da Ilustração, pelo fato de que Salvador e, até certo ponto, o Brasil'
sal de um ponto de vista cosmopolita, trad. Rodri­ tom am -se a sín tese de "toda a história da evolução hum ana". Em bora acre­
go Naves e Ricardo R. Terra. S2o Paulo, Brasi-
liènse, 1986, p. 56-7, c T. Ntpperdey, op. cit., p.
ditem numa hum anidade ünica, conduzida por um só "gênio", seguindo
287-8:' ' assim o id eário da Ilustração de Kant e Voltaire, a história do Brasil não é o
espelho mais imediato e fiel da européia, emprestando-lhe sua particulari­
’2 Jac'ques Le Go£f, "Progresso/ReaçSo", trad,
Irene Ferreira, jri: --------- , História e memória,
dade. N esse sentido, descortinam uma dimensão romântica, ao enxergarem
Campinas, Unicàmp, 1990, p. 256. o processo histórico como algo dinâm ico, m ovim entado, animado p o r um
138 A n o va A t l A n h o a d e Spix e M artius

e mm***--*#*
reservavam em relação aos índios, emprestando-lhes, ainda que m uito tim i­
damente, a imagem do "bom selvagem ". E junto deles, "m ulatos", represen­
tando remotamente a feliz união entre negros e brancos, longe porém de um
am biente civilizado, e sim próxim o do regresso ao estado natural, __

Se ao Brasil "falta a história"243, conform e os nossos autores sintetizam quan­


do de volta ao Velho Mundo, en tão pelo menos essa terra podia gabar-se
de guardar uma coisa da qual, diz Martius, "nós, na velha Europa h istórica
e não natural não temos mais vestígio nem noção"244. No entanto o que
aparenta ser o resgate.de um idílico estado primevo da hum anidade, fixa­
do n u m a paisagem pitoresca, ond e não somente se revela a integração do
h om em com a natureza tropical, m as também a harmônica sociabilidade
entre diferentes "raças", é logo'sobreposto pelas projeções civilizadoras.
Enquanto o autor se regozija com esse "espetáculo'idílico", lem bra qu e a
"hum anidade" som ente é atingível por meio da civilização. Por isso n ã o é
possível encontrar no interior das cabanás "simplicidade ingênua" e "paz">
m as sim "sangue e fogo e pavorosas expiações" que a "espécie h u m a n a "
paga à sua natureza ambígua, "à m aldição e à bênção de sua origem ". Sen­
do assim , a ambigüidade da idéia de.civilização evidenciada nesse estado
de lu ta entre os hom ens e o seu potencial destruidor não é sinônim o de
barbárie, tampouco se distancia d o seu ideal de humanidade; mas é ju stifi­
cada e entendida segundo o prism a da moral cristã defendida pelos au­
tores.

De outro lado, a alusão à perda dessa imagem idílica à qual se refere M ar­
tius ao deixar o Brasil, deixa transparecer um sentimento de desconforto,
certo "desencantam ento" com a h istória da civilização européia, que tanto
pode suscitar um a postura crítica reveladora da contradição inerente ao
processo civilizador, quanto evocar a nostalgia romântica de uma socied a­
de prim itiva mais feliz. O texto "O Passado e o Futuro do Homem A m erica­ 'M rbide/n, vo), m, p. 317/1383.
no" oferece mais evidências sobre essa ambigüidade, que se desnuda diante
Ibiíicrv, vol. IT1, p. 316/1378. Na versão brasi­
do ocaso dos índios em decorrência do contato com ps europeus: apesar de leira traduziu-se "verkiinstelt" por requinta­
M artius não abandonar a crença de que o habitante original am ericano da. Sugerimos "nào-naturai", porque a palavra
estava fadado desde sempre ao desaparecimento, de ser um "ram o atro^ alemã, embora rito se utilize mais dessa forma;
e sim "gekiinstelt", significa "artificial", "nSo-
fiado n o tronco da hum anidade"245, enfatiza a violência da colonização bran­ rtatural".Cf. GüntlrerDrosdowskyef n/fi, op. cit.'
ca, a ta l ponto de se sentir mais confortável por ser alemão e por isso p e r - i
tencer- a um povo que não contribuiu ativamente para o aceleramento des- \ JJ,Spix & Martius., op. cit., vo!. IU, p. 48/935/ ■

sa "catástrofe"246. Na- Viagem pelo Brasil os autores jamais aludiram a essa 2“'C. F 11 v. Martius, "Aethnografia da Ameri­
diferenciação da história européia em relação à América. M as entendem a ca...",p. 561.

A viacem pelo Brasil: esboço civiuzaçAo 197


o naturalista oferece elementos para construir o mito da "democracia ra­
cial", escam oteando o racismo que im pera na sociedade brasileira, além de
encobrir a sua própria visão preconceituosa e conivente com a escravidão239.

Nesse texto, a caracterização do mulato é "positiva": trata-se de um tipo


fisicamente forte, bem encorpado e flexível, dotado de muita mobilidade,
destreza prática e de índole passional- Ele tem m aior inclinação para traba­
lhos manuais, os quais aprende com facilidade e exerce com sucesso. Se bem
educado e formado, teria plenas condições de igualar-se ao artesão europeu.
N ão lhe faltam sagacidade e potencial reflexivo quando descobre que esses
P lhe rendem frutos. E quanto mais claro, mais reivindica o reconhecimento
■i
social e o prazer na vida. Martius gradua a coloração da tez relacionando-a ■-i
com as atividades profissionais: os m ais pardos contentam-se com o ofício
de sapateiro, de ferrador, de arrieiro etc. Já os m ulatos mais claros e quase
brancos podem ser finos artesãos ou até mesmo dedicar-se às artes e às ciên­
cias: de barbeiro a médico, de escrivão a administrador, notário, advogado e
juiz. igualmente as características de "enfático" e de "fanfarrão", típicas do
negro, podem ser uma herança útil para os mulatos que se dedicam às letras,
especialmente neste país onde a "literatura nacional" estaria dando os pri­
meiros passos. Também no mundo do comércio, ver-se-ia semelhante grada- :‘:5
( ção, embora o autor considere esse setor de atividades profissionais mais
preservado aos brancos140. ' í:
vs
No mesmo Martius pronuncia-se sobre os negros e a sua mobilidade
social. Quan. o sc trata de escravos, a lei determ ina o seu lugar na sociedade,
simplifica Martius. Mas, quando alforriado, sua atividade, sua capacidade
de trabalhar e seu poder de decisão, aliados à ambição, proporcionam-lhe a
possibilidade de uma nova e vantajosa posição social. Nesse sentido, "grau
de formação intelectual, habilidade prática e as consequentes necessidades e
exigências sociais" também seriam fatores determinantes na hierarquização. A
Novamente, pouco crítico para com a com plexa situação do negro numa
sociedade escravocrata, Martius otimiza o status do forro e a mobilidade
social, aiirmando^que a questão_da_cor pode sepsuperada pela situação.so-
cjaj_conquistada peío indivíduo. No entanto, ele acentuaTísêirpreconceito
racial, aolem brãr que élnerente à raça negra não alm ejar posição mais ele­
vada e que ela mesma reconhece a sua "inferioridade", sua incapacidade de
interferir na "vida civil de forma organizada e engenhosa". E sintetiza: sua
' C, i;. K v. Martins, (j;>. cil„ p. 153.
“subordinação não é um mito". Já os m ulatos — com exceção dos mais escuros
1Ibidcm, p. 153-4 . e portanto mais próximos dos negros — esquecem -se de sua origem, inserin-
194 A.sjova ArLÂvriOA dp Srixü Martius
pécie de elo perdido entre o orangotango e o hom em "23, negando-lhe portan­
to a humanidade.

Spix e Martius pouco se detêm em questionar a origem dos povos e das raças
humanas. Apesar de Martius ter sido um grande admirador de Lineu, no
que diz respeito à classificação da espécie hum ana; os naturalistas estão mais
próxim os das sugestões de Blumenbach. Igualmente dividem a humanida- ) y
de nas raças mongólica, caucásica, malaia, americana e etiópica, divergindo, [ -
porém, em relação à formação racial. —i

O encontro de Spix e Martius, a caminho de São Paulo, com um grupo de


imigrantes chineses no cultivo do chá é ensejo para formular algumas hipóte­
ses que a "antropologia" deveria investigar: os aspectos da "fisionomia" e do
"caráter" dos chineses são cotejados com os dos índios americanos. Concluem
que existem várias semelhanças, desde a cor da pele e do cabelo, a forma da
cabeça e do corpo, os poucos pêlos, até o "caráter desconfiado, pérfido, (...)
não raramente inclinado ao furto, e a expressão de mesquinhez". Aos olhos
dos pesquisadores, nesses "traços idênticos" entre as duas raças, acreditavam
perceberum "tipo básico", que seria o prim itivo habitante da Ásia oriental. Os
americanos, portanto, deles se originam, representando um exemplo da trans­
formação das raçás em virtude de m udanças climáticas. Por outro lado, as
semelhanças observadas, com base nas quais justamente se explica a mesma
origem, provariam que certas características pouco se transformam. Desse "tipo
básico", teriam decorrido a raça mongólica, am ais antiga, depois alãnericanaT
a malaia e, por fim, a caucásica, defendendo assim um percurso diferente do
de Blumenbach. Já as enormes particularidades que Spix e Martius enxergam
nos negros, quanto à cor da pele e do cabelo, ao formato do crânio, à expressão,
do semblante e do corpo, os fazem duvidar da mesma origem24. Nesse senti­
do, os autores contrariam a concepção m onogenista, que sustentava a origem “ Manuela Carneiro da Cunha (org.),Leghlação
ünica das raças humanas. Mas dessa hipótese jam ais voltaram á falar indigenistartoséculoXIX,SioPiivlo,Edxi$p, 1992,
p. 5 . lembrando, aliás, que o anatomista Edward
Tyson, ,no;imal do século' XVH, conclui serem
Quando Martius visita Goethe, em 7 d e outubro dè 1828, traya-se uma: ahi- ‘os pigmeus ^um elo de ligaçáo entre o macaco
mada conversa acerca das diferentes "raças hum anas". Messa ocasião, o n a­ ço.hom em ", tanto Lineu cooioRousseau ado­
turalista confirma a sua crença na origem ún ica da humanidade conforme tam essa interpretação. Cf. E. Lcach, op. cit., p.
2 3» i-:-.':.;--- ..
pregava a Sagrada Escritura.Martius.opõe-se àidéiadeG oethe/queacredi-
tava que a força divina teria criado 0 hom em e a mulher simultaneamente 24Spix & Martius, op., cit., 1938, vol. I,p. 173-7/
em vários pontos da Terra. Destarte, seria m ais lógico compreendera diveri 184-5. Atentar para o corte de texto na edição
de 1981>.voJ, I, p. 112.
sidade da espécie. Mas Martius, como fiel cristão> sentia certo "constrangi­
m ento" em concordar com tuna opinião que negasse a Bíblia2*. 25 Jphann Pcter Eckcrmann, np. cit., p. 258-9.

A viagem teuo Brasil: esboço de uma civiuzaçAo 141


gráfico influenciaram nas variações da espécie. N esse processo, Kant intro­
duz um princípio da hereditariedade para a elaboração de uma teoria das
raças.

Blumenbach concorda com Kant quanto ao fato d e que uma distinção so­
m ente pode basear-se em características físicas. N o entanto, muitas desuíú-
formidades manifestam-se tão discretamente que m al se fazem notar. Seria
m uito difícil, portanto, erigir fronteiras entre os grupos humanos, a não ser
que fossem flexíveis e permeáveis. Indo além do critério físico, Blymenbach
considera_a regionalidade, apresentandp_cínco. tipos, raciais: os caucásicos
j fflran co s"), que s eriam a raça origiriaí (lftrgs.ge),.dos quais os jnongóis ( " a r n í”
relos") eo s êtiápicosJ"negros'Ó são uma degeneração, ao p É s o q ú é osame-1
■ncanos (índios) e o s malaios seriam raças (Übefgãngsrõsse).
T o3as’ás outras formas humanas com as qu álsT ih eu ainda se preocupava
(hommoferus, monstruosus)2<1,e le as relegou ao reino da fantasia ou da patolo­
gia. A visão da história da humanidade como algo estático e invariável, que
no século XVIII ainda vigorava, torna-se cada vez m ais difusa. O critério da
hereditariedade de Kant e a hipótese de Blum enbach sobre a formação das
i várias raças como um fenômeno temporal, um processo, e n ã o mais como
acontecim ento encerrado, são alguns preparativos para uma teoria da evo­
lução biológica21.

Na França, no início do século XIX, as controvérsias entre Gcorges Cuvier,


partidário da "idéia da existência de heranças físicas permanentes entre os
vários grupos humanos", ejean Lamarck, cujo evolucionismo inaugura a lei
do "uso e desuso", animavam o interesse por pesquisas anatômicas e acalo-
ravam as discussões. Lamarck não compartilhava a opinião geral de que as
conhecia-se pelas seguintes características: "ne­ influências do meio físico agiam diretamente na form ação das espécies. De­
gro, fleumático, relaxado; cabelo preto e cres­
fendendo um ponto de vista pouco aceito naquele período, acreditava que
po; pele fina, nariz achatado, lábios carnudos;
as mulheres sem pudor, com seios proeminen­ m udanças do meio provocariam transformações n a s necessidades do orga­
tes; astuto, indolente, negligente; untando-se nism o e estas se traduziríam em alterações do comportamento22.
com gordura; govemacfo pelo capricho". Id.,
"Anthropos", op. cit., p. 40 e 58.
Enquanto o evolucionismo biológico não superasse o filosófico, o critério do
w Q. v. nota anterior. atributo da perfectibilidade como prova de hum anidade ainda seria válido é
essencial para discriminar os "an tropóides" dos "hum anos". N o século XIX,
11 Ibidern, p. 649-51, e U. Oitterli, op. cit., p. 346-
a hum anidade d o sjn d ios é tum .das grandes questões. da_quM.SphLe.Mar-
liu sjam h érn participam, como veremos adiante. Blumenbach, por exemplo,
n LiliaM- Schwarcz, op. cit.,p. 47; cf. EdvvinSe-
ligman et tilii, "Lamarck", In: op. cit., vol. 9, p.
considerado um a autoridade no campo da anatom ia craniana comparada,
21 . deduz, após o exame do crânio d e um botocudo, que se tratava de uma "es-

140 A nova Atlàntida dh Spixe M artius


do-se como cidadãos na posição social que lhes faz jus.. Nessa posição são
y l-V
tolerados. Martius lemhra ainda que essa atitude tambérnjjgrorrp d<=>gpjy
grande númeropnpulaciaEiaLdg.sorte que, além de tolerá-los, urge assimi­ (ri
lá-los. Enfim, nesse caldeamento. n ovamente retoma a miscigenaçãQ.como
um processo que^isa^-£urQpeizacãoe~porian4&r-ehfanqueamente-tdfi so-
r iedade. da qual osindígenafirterm im nterrtenterferam-e-xeiuídos241;

E m suma, para os nossos autores, a miscigenação das raças tal qual aconteÀ
cia no Brasil era u m aspecto basilar do inexorável caminho da "civilização", n
iniciado n o remoto Oriente e que m ais cedo ou mais tarde cobriria a América--
em toda a sua extensão. Embora essa relação entre cruzam ento de raças e
sucesso civilizador não fosse tão bem elaborada no texto da Viagem pelo Bra­
sil como o foi no tratado historiográfico, os autores, em nenhum mom ento,
duvidam de sua viabilidade no país. Garantia desse sucesso é a presença do
hom em branco nos trópicos, que, p o r representar verdadeira hum anida­
de"' e por isso gozar de "superioridade" sobre as demais raças, cumpre a sua
m issão de difundir a "civilização". Tratava-se, afinal, de uma idéia m uito
bem definida que, na prática, no entanto, era extremamente complexa. Em
teoria, os portugueses seriam responsáveis por essa difusão. Mas a coloniza­
ção trouxe consigo tantos problemas, que até os próprios colonos lusitanos
passaram por certa "degeneração". M uitos brasileiros brancos seriam prova
disso. Para o olhar providente de Spix e Martins, o fim do Antigo Sistem a \
Colonial em muito contribuiu para dar continuidade ao processo civiliza- 1
dor, d e um lado em razão da instalação da monarquia n o país, de outro, em
virtude do novo sangue europeu qu e estaria redescobrindo e transform ando \
o reino nesses trópicos.

Em relação aosnegros. os nossos autores defendem que-eíes-sejam escr V


t
zados. A despeito dos horrores do próprio sistema, ele se justificava um a vez a
que propicTariaacTviÜzaçIõdêss a ^ a çã <7 q ^ cd h sÍd erav ãrn /Tnfêrfôp77m as
ca p Szcíese^ ap êríeiçõarA E o sm u lato se dem áislh jsci^ enãd os^ ue ap riori j
seriam um indicador dos benefícios do cruzamento das raças, não escapam
do "racismo da Ilustração". Quanto mais claros, mais dotados de perfectibi- j
lidade, em teoria. N a prática, a descrição que fazem dos sertanejos, por exem ­
plo, está muito aquém de um vislumbre da mistura d as raças com o um a
vereda certa para a civilização.

Spix e Martius não se furtaram de encarar o "espelho m ágico" da diversida­


de humana para descrevê-la e ordená-la num mundo qu e deveria estar, ao Ibidem, p . 155-6 (grifo nó o rig in a !);

A via cem reto Brasil : esboço de u m a c iv il iz a ç A o 195

íuMJüli- m m *** m
I

hgura y. tvitinwhna e Cafuza. Litografia - Alias lu r Reisn vi Brasihen vau Dr. wn Spixund Dr. vonMartius (Atlas da viagem de Spix e Martins pelo Brasil). O inchaço do
bócío daria, .segundo os autores, a “essa gente, na maioria de coj; que sem isso já não tem fisionomia agradável, uma horrível aparência. Parece, entretanto, que
no país se considera o bócio mais embelezamento do que deformação, pois não é raro verem-se mulheres com monstruoso bócio enfeitado de correntes de ouro
e prata ase exibirem, de cachimbo na boca ou com um fuso na mão, para fiar algodão, sentadas diante de suas casas." (Spix & Martius, Viagem p d o Brasil, vol. I,
p. 128/210) "(...) Notamos diversas famílias dos chamados cafuzos, que são bastardos de negros e índios. Q seu aspecto é dos mais estranhos que um europeu
possa encontrar/--} A cabeleira extremamente comprida forma um monstruoso, horrendo topete." (Spix & Martins, Viagem pd o Brasil, vol. I,p. 132/215). (Ilustração,
extraída da edição fac-similada do Atlas zurReise in Brasilien voit Dr. vonSpix tinci Dr. von Martins, 1967,5tuttgart, Brockhaus, tábua 33.)

Embora o objetivo dos autores seja caracterizar os diferentes tipos étnicos, apontando para as suas particularidades, percebe-se que as dtias mulheres retratadas
na litografia assemelham-se uma à outra. Os traços dos rostossão muito parecidos. Além disso, evidentemenle, tanto obócío não pode ser considerado característica
particular dos mamducos, como o cabelo crespo não a 6 dos cafuzos. Tampouco a idéia de que uma “certa incerteza no olhar" seja uma característica geral dos
mamelucos, herdada dos índios. Nota-se, mais uma vez, que os critértospara classificar os tiposhumanos,pautadosempressupostosdo"radsmoda Dustração"/
deixam uma larga margem parn caracterizações pejorativas.

192 A NOVA. ATUNTIQa. oc Scix í M ahtiejs


que consideram "a verdadeira hum anidade", que não pode ser com preen­
dida sem a "idéia de liberdade". Justificando, por m eiò das diferenças das
"raças", o papel civilizador do europeu, o s viajantes determinam a função e
o potencial dessa "liberdade". Baseada n a

viva consciência moral e desenvolvida pela delícia da religião e da autên­


tica ciência, [a liberdade] imprimiu ao europeu o cunho d e dignidade e
grandeza, que até aqui o tem guiado quase involuntariamente por todas
as partes do mundo, sempre vitorioso; (...) e, por toda parte, ele sem pre
infunde respeito18. ' ••- . i-.'.

Não há outra passagem na Viãgèm feio Brasil na qual os autoresexplicitam


com absoluta transparência a idéia da superioridade dos brancos, relacio­
nando "ra ç a " e valores da civilização européia à lu z de um. "racism o dá
ilustração"?9. Umá possível inferioridade do europeu em relação aos outros
concentra-se tão-somente n os aspectos físicos. Pois elé é sinônimo da pexfèc-j
MSpix & Martius, op., cit.r vol. I, p. 164/259-60,
tibilidade hum ana, é a referência dos valores estéticos:— seu corpo é=.xnais
belo eproporcional30— , morais, intelectuais e religiosos; enfim é a tradução ^SegundoStocking, o “‘racism’ o í theEnlighte-,
imediata da ""humanidade" que explica o seu poder e seu domínio pelom une ment". baseia-se cm várias idéias: a da civiliza-.
geograficamente limitada, a da foimaçáo do
do afora. Sendo assim, Spix e Martius, insensíveis às complexas relações t caráter humano e do tipo físico confirm e no­
sociais intrínsecas a um sociedade colonial escravocrata, acreditam que tan-1 ções mesoiógicas e do humor; a da "grande ca­
to os índios com o os etiópicos e mestiços revelam "secreta timidez diante do deia do ser", conforme a qual os huronianos e
os holento tes selavam o elo entre o Europeu e o
branco, de sorte que basta um simples olhar deste, mesm o a-sua'sim ples \ ^orangotango; a buffoniana da degeneraçao das
presença, p ara os amedrontar, e um bran co governa tacitamenté çeritènas espécies no Novo Mundo, indicando o locus
deles". E especialm ente o negro, que; desprovido de " verdadeira coragem"-1 classicus do homem selvagem, Na França, o evo-
lucionismo anterior às teorias de Darwin era
e diante da "inata' superioridade do branco, deixa-se subm eter e subjugar . .entendido pelo progresso social e n â o pelo bio­
psiquicamente pela vontade firme deste'.'?1; lógico. O que separava o homem 'civilizado'
do "selvagem' n8o residia tanto n a diferença
desuaformaçào mental,mas sobretudo no pro­
Guiados por esses preceitos, Spix e M artius escrutinam a diversidade h um a­ gresso do seu refinamento e na própria dvi-
n a que se apresentava diante de seus olhos. ■/■■■• ilzaçáo. Nesse sentindo, as concepções raciais
d e Spix e Marfauspodern sercompreendidas
valendo-se dc um "racism o da U ustraçJo".
Stocking, op. at., p. i8 -9 .' ■
Negros e índios no Brasil: um obscuro enigma? .
w Lembrando aqui que não apenas a harmonia
das proporções do corpo era-essencial para o
ideal da Dustração de beleza física, mas: tam--
Assim que dão os primeiros passos neste país, nossos viajantes deparam -se béro a idéia dc estabelecer.uma correspondia-:
o a entre a beleza (isica c o caráter m oral dos
com os negros, além dos mulatos, vistos corno marca indelével de que o R io
seres humanos. Cf. l/rs Bitterh, op. cit., p, 25&7'
de Janeiro não era uma cidade européia. Os negros eram considerados u m a
"infeliz raça hum ana", dotados de "natureza inferior, b ru ta", de caráter le - 51Spix &Martius, op, at., vo\.l,p. •}64-/259r60;:.
A VIAGEM PEGOBkASIL: ESPOÇO DE UMA CIVIUZAÇAQ ■ 143
A despeito das inovações qu e o debate naturalista e antropológico sugeria
no início do século XIX, Spix e Martius não fazem questão de se inteirar da
polêmica. Pois, acreditando explicitamente nos pais bíblicos da hum anida­
de, a explicação acerca de sua origem sofria certa influência da idéia da "gran­
de cadeia do ser". A rigor, essa id é ia_cons iderava que os diferentes tipos
derivados da humaruHãcIê ünãToriginária do casal bíblico, eram tidos ou
como mais p^mam^dcTpérFeiçao do Éden ou como produto da degenera-
ção. /7Pênsãva-se n a hum anidade "como um gradiente — que iria do m ais
'perfeito (...)ao menos perfeito (...)— ,sem pressupor, num primeiro m om en­
to, uma noção única d e evolução"26, no sentido biológico, como Darwin con­
clui mais tarde. É n a virada do século XV III para o XIX que o axioma bíblico
e a conseqüente "grande cadeia do ser" estão enPfase de demolição.

Não resta dúvida, como veremos, de que o nossos autores se utilizam das
idéias complementares de degeneração e perfeição para classificar os dife­
rentes tipos humanos. E tam bém deixam entrever a sua convicção da supe­
rioridade da "raça caucásica" no contexto da história evolutiva dos hom ens.
Um a aplicação de "m ag n etism o "27no braço paralisado de u m escravo negro
e su a rápida reação para a cura foi ensejo para que expusessem sua visão
acerca das diferentes raças: a experiência dessa sessão terapêutica provaria
por várias razões que o "europeu é superior aos homens de cor pela intensi­
dade da vida nervosa", superando somática e psiquicamente as dem ais ra-
^ ças. As raças, no entender de Spix e Martius e conforme "diversos autores
;} talentosos", eram "qualificadas mais ou menos perfeitamente em diferentes
sentidos", e o europeu com pensava a inferioridade de suas "faculdades fí­
\ /"Li r
sicas" pelo "desenvolvim ento superior dos órgãos e forças intelectuais". E,
apelando a comparações estereotipadas, delineiam o m odelo d o h o m em ideal,
; notadamente europeu:

Se, por exemplo, o hom em d e raça caucásica é de fato inferior ao negro em


* Conforme L. M. Scbwarcz lembra, a id éia de mobilidade e potência sexual, ao indígena americano em constituição ro­
evolução anterior aDanvin parle da concepção
busta e vigorosa, em força muscular, resistência e longevidade, e a este,
de uma natureza imutável e estática e dos ho­
mens que desde sempre /oram os mesmos. Sen­ como ao mongólico, em agudeza dos sentidos; todavia, ele supera a todos
do assim, compreendia-se a evtolitrfin como em beleza do corpo, em precisão simétrica das proporções e atitude, e no
Japerféiçoamento moral do homem. ld.,op. cit.,
p. 48.
desenvolvimento m oral livre, independente e universal do espírito.

2TA medicina romântica resgatou a terapia do A dignidade do homem é definida pela "bela harmonia de todas as forças,
magnetismo praticada por Franz Anton Mes-
mer, da qual Spix c Martius, pelo visto, são adep­
produzida e mantida som ente pelo predomínio das faculdades mais nobres".
tos. E essa "bem organizada e perfeita unidade das forças humanas" resulta no

A n o v a A tl A ntio a d e S pix e M artius

m m **-****
Os m ulatos e os caím os do sertão baiano formavam um "povo" miserável,
vivendo em palhoças "im undas", sem aspirações, cu jom aior "gozo" igual­
m ente eram as caçadas e os prazeres do "amor sensual". Por terem herdado
a "indolência e irresolução dos antepassados americanos", eram alcunha­
dos, por desdém, de "tapuiada". Nessa ocasião, admitem os autores, de acor­
do com um ditado popular, que "qualquer mestiçagem.£pnt sangueándígena—.
nada tinha de bom^6. Em Ilhéus, por exemplo, a "estranha preguiça e incul-
tura dos m oradores" explicavam-se, provavelmente, pelo fato de serem , em
sua m aioria, mestiços de índios. Relativizando o papel dos portugueses no
processo civilizador no Brasil, os autores afirmaram que os lusitanos lá resi­
dentes eram da "mais baixa extração", de forma que pouco poderíam "ele­
var a m oral nem a indústria dessa população desleixada"237. Nota-se qu e os
autores defendem üm a estratificação social, segundo a qual os indivíduos
sòcialm ente mais mal colocados — ainda que fossem brancos e portanto con­
siderados de "raça superior"— seriam incapazes de contribuir para o "pro­
gresso" da sociedade. Evidentémente os nossos observadores não conseguem
com preender esse fenômeno como expressão de objetivas relações sociais de
poder.

Ao que tudo indica, entender a miscigenação com o u rr^ en ef ícíq; 'para o


processo civiüzãdor nad e'fruto du que os olhos de~Spix el^arHus^ n j e -
guiam enxergar em sua visita ao Brasil. Essa idéia revela-se apenas n o final
do relato d e vmgêmllTdê~cefta form ^ ihu ífõ fímHráminteyprestando-se Ibidm, vo!. JI, p. 229/607.
m ais cSm u Dm ^slumBrê^™comcraigcrTpae“atnda esta pãrãIcõrLfêcérrE,
iúesm dho'tratadõTiisfõnõgi^Ícõ 7no'qirãienaitere"as_^'ánfãgêhs^ía m isci­ a7 Ibidem, vol. II,p. 176/677.

genação, M artius não chega a refletir sobre esse tipo humano. Som ente IW C. P. Ph. von Martius, "Dii; politische und
num texto escrito por volta de 1856, o naturalista aprofunda o tem a do soriale Stellung der farbigcn Mcnschen Brasi-
cruzam ento das raças235. Entre outros aspectos, o naturalista enfatiza ter lien"(I856?), Stadenjahrbtich, São Paulo,36:150-
6 ,1 9 8 8 .0 texto d eveserdel856ou posteriora
sido a m istura racial um fenômeno qu e já havia acontecido em Portugal e essa data porque Martius faza úiterlocuçãc com
que m uitas vezes o próprio colono já era um tipomiscigenado. O au tor não um artigo, dc auíor não revdado, de 1856. É ne­
du vida de que no Brasil o "am álgam a das cores já era um fato qu ase con­ cessário lembrar que somente tu metade do sé­
culo XIX o corpo do pensamento racista é, de
sum ado". Contudo, restringe-se a comentar sobre os negros e_os b rancos, fa to, sistematizado. Em tom o de 1660 também
ignorando a participação indígena no caHeãmento. Endossando a particu­ as teorias racistas obtêm o consentimento da
laridade da sociedade brasileira,'Õ^ãüFór aposta ha mobilidade social dos ciência e a aceitação dos Líderes políticos e cul­
turais, tanto na Europa como nos EstndosUni­
indivíduos de "co r"; Ao seu ver, "inteligência, educação, potência, capital, dos. Portanto a escrita desse texto de Martius
necessidades sociais e civis" diversificaram-se entre os negros e os bran­ insere-se num segundo momento da discusr
cos, de tal forma que mal se podería falar de uma discriminação legal para sito nítocentista sobra hj raças. Sobre as prin­
cipais teorias racistas daquele período, verTho-
com os habitantes de "cor". Essa suposta igualdade seria sinal de um "ver­ mas Skidmore, op. àt-, p. 65-70,.e Lilia Moritz
dadeiro progresso para a hum anidade", sublinha M artius. Mais u m a vez,: Schwarca, op. cit., p. 43-66.

A VIAGEMPELO BRASIL: ESBOÇO DE UMA C1VIUZAÇAO 193


Figura 8. Batuque em Srlo Paulo (OitiBnthwcn. in S.Ptnilv). litogra fia - /U/iis :»r Reise in Bmiilienwn Dr. wn Spix itnd Dr. wtt klariiit${Alhs iia viagem deSpix eMariitts
pelo Brasil). "O batuque é dançada por um bailarino só e uma bailarina, os quais, dando estalidos com os dedos e com movimentos dissoiutos e pantomimas
desenfreadas, ora se aproximam, ora se afastam um do outro. O principal encanto desta dança, para os brasileiros, está nas rotações e contorções artificiais da
bacia (...)."(Spix & Martins, V%rm jk Io Brasil, vol. [, p. 180/ 294). (ílustraçáo extraída da adição fac-similada do Atlas ztir Rdse in Brasiliai voii Dr. von Spix und Dr.
vori Mirfúis, 1967, Sluttgart, Brockhaus, tábua 27.)
rf
190 A nova A tlám t ida de S pix e M aktius
Evidentemente as palavras de Lineu traduzem o que Martius pensava acer- >
ca da questão. N ota-se que o naturalista novamente evita falar do regim e
escravista de trabalho no Brasil, discordando somente com alguns aspectos
da escravidão. E, preso ao seu esquema ideológico, aplica o conceito de d e -
generação moral para justificar o cativeiro dos negros, e mais: em presta-lhe
coerência quando compreendido n a história da humanidade, escusando a
violência do próprio sistema e a exploração dos europeus sobre os africanos.

Voltando para a Viagem pelo Brasil, fica evidente que para Spix e M artius, a
questão dos negros, em face da crença no inexorável processo civilizador e
no paulatino aperfeiçoamento humano, não suscita grandes desdobram en­
tos e controvérsias. Especulam co m a concepção poligenista, de qu e a o ri­
gem da raça etióp ican ãtjserm fh os país bíblicos7N oentantonão retom am
essa questão, límitanHõ3^ ^ um " r a d g ^ d ã 'ilu stração" segundo o q u a lo s
negros sao uma raça inferior, por não conhecerem a "civ ilização^ E a escra­
vidão tòm a-se justlEcàvel umaVez^que serve como instrumento para cris-
tianizá-los e civilizá-los. Já em relação à "raça americana", como verem os a
seguir, os nossos autores vão mais a fundo, levantando algumas questões d e
m aior complexidade.

Semelhantemente a Humboldt, descreveram os hábitos e o cotidiano dos ín d i­


os, apontaram as diferenças entre as tribos e enfatizaram o estudo de sua s
línguas, a procura de possíveis elos de ligação entre elas47. Os próprios auto­
res expõem que, diante da ausência do que consideravam "tradições, h istória
ou documentos históricos", restava ao "investigador observar esses hom ens
da natureza quanto ao seu físico, seus costumes e, sobretudo, a sua língua,
para depois decifrar pelo lado físico e psíquico, qual a posição da sua ra ç a
entre as demais e quaJ a sua cultura geral (gesammte Bildung)"49. As observa­
ções daí decorrentes são extremamente abrangentes e poderíam ser estudadas
por inúmeros aspectos. É de conhecimento notório que Spix e Martius p e rte n -í / 7
ceram ao grupo dos primeiros naturalistas a pesquisar os povos indígenas| ^
brasileiros de forma sistemática. No entanto, referindo-se especialmente a M a r -'
tius, Herbert Baldus diz ter sido ele um "ótimo sistematizador e um péssim o u Sobre-Humboldt, a esse respeito.ver.R/R;/-
psicólogo", pois perde-se nas "generalizações mais absurdas" quando trata Wuthenow, Vis erfahrene W elt ...,

da "mentalidade" dos índios49. Essa carência de sensibilidade para enxergar o 43 Spix fie M artius. op:. Cit.-, v o l. I, p-.-236/384;.
índio (e também 0 negro) manifesta justamente 0 etnocentrismo europeu n o
‘vHerbert Baldus,'''Etaologia^. lm-RubensÇorf; :-
início do século XIX, uma vez que o critério básico para a investigação é o d a
ba de Moraes e-WilIiam B em eu (org .)-M jn w h
perfectibilidade moral e o d a c o n s e q ü e n te ca p a á d a d e c te ^ m ^ a r^ ^ p e r-^ bibliográfico de estudos •«jsiírmis. JKjo de Janeira, '
m eãddpela dúvida quanto'áhutnauidatlSTJtríiãõ^dosIffâígenas. Gráfica fcditora Souza; 1949, p.

147

- -U.
pouco a compreendem no interior do Antigo Sistema Colonial, esquivando-
se de qualquer crítica mais contundente.

Escapando d o relato de viagem, m encionam os um a passagem da palestra


proferida p o r M artius em homenagem a Lineu, na qu al fala de forma mais
dramática porém não mais crítica da escravidão no Brasil. Vale lembrar
que essa com unicação trata de um sonho provavelm ente fictício, no qual
M artins encontra Lineu. Os dois fazem juntos um a viagem imaginária, atra­
vessando a atm osfera, e aproximam-se das terras brasileiras. Após sobre­
voar as matas, avistam de cima Salvador, justaxnente o mercado de escravos.
O viajante descreve o trágico desem barque dos cativos. Observa o seu esta­
do deplorável de saúd e: subnutridos, doentes/em parte cegos, cobertos de
abscessos p o r causa do escorbuto. E refere-se aos senhores desses m iserá­
veis — "todos hom ens brancos" — como totalm ente insensíveis ao "irm ão
n egro". "Ao ver isso, meu coração san grav a", pranteia Martius. E por sor­
1
te, digamos assim, não precisa agüentar p o r m uito m ais tempo a terrível
cena. Lineu, como "gu ia" da viagem, dela o afasta e o conduz a um a mara­
vilhosa floresta virgem 45.

f'D tom de denúncia e inconformação com o hediondo tratamento imposto


í aos negros, verdadeiras vitimas da "crueldade" dos brancos, é, no entanto,
i logo abafado não somente com a deslum brante vista sobre a mata à qual
j Lineu levou Martius, mas também com as sugestões que o "m estre" faz ao
I seu "discípulo": a terrível e histórica perseguição aos negros resulta de sua
| própria "degeneração", que desde épocas rem otas procriam para vender os
j joróprios descendentes. Pois "o negro não conhece o amor, que une o pai aos
seus filhos e esposa". Tanto eles, como aliás também esses da "raça branca"
que fomentam o tráfico humano, terão com o castigo o "definhamento mo­
ral" e a "desumanização". Cotejando com obed uíno, que igualmente é "fi­
lho da tórrida África", mas não se deixou aviltar pela escravidão, reitera que
o ponto de partida desse lastimável tráfico é um a deficiência moral original.
O beduíno, do contrário, preservou a liberdade, as nobres relações familia­
res, a hospitalidade e a fidelidade. Por fim , conclui que o tráfico de escravos
é uma etapa necessária no desenvolvimento do espírito da humanidade. Ela
deve ser compreendida na cadeia dos acontecim entos semelhantes às guer­
ras, às epidemias e às destruiçoes que assolam a sociedade. Quando vistos
isoladamente, esses horrores parecem n ã o ter sentido e nenhum a solução.
Vistos na história da humanidade, porém, trata-se de "crises benéficas"46.

A n o va A t là n t id a de Spix e M artius
mente com prida", que se encrespa n a ponta e forma, na altura da testa, um
"monstruoso, horrendo topete". Essa cabeleira, advertem os naturalistas, não
é "d oen ça", e sim resultado do "cruzamento das raças, figurando m eio ter­
mo entre o cabelo lanoso dos negros e o cabelo comprido e escorrido dos
índios". E, para concluírem a descrição, acompanhada de uma litografia,
afirm am que "às vezes" era "tam anha a cabeleira natural", que os portado­
res precisavam "abaixar-se profundamente para entrar e sair da porta da
cabana"231.

Para exp licar o tipo "mam eluco", "filh o s de brancos e índios", admitem,
que a tonalidade das cores da pele podem variar desde um m arrom quase
cor de café, amarelo-clara, até quase branca. A h r .ança indígena rev ela-sé
no "ro s to largo, redondo, com m açãs salientei/', os "olhos negros n ã o gran­
d es" e "certa incerteza no olhar"231. Pára ilustrar o tipo, no A tlas d a Viagem
pelo Brasil, apresentam uma m ulher com bodo, uma vez que esse m a l se
desenvolve, na opinião dos .viajantes, m ais nos negros, mulatos e m estiços
e em m en or proporção nos brancos. O consequente inchaço dá a "essa gen­
te, na m aioria de cot, que sem isso já não tem fisionomia agradável, urna
h orrível aparência"233.

Q ualquer mistura com os índiòs> portanto, não somente resulta em fo rm a s.


"estranhas",com o definem quasejocosam ènteo cafuzo, cuja cabeleira deve­
ria então servir de marco distintivo para. idéntificá-los, mas também feias,
com o lhes pareciam ser os màmelucos. Afora os paulistas, cujas "arro jad as^
emp resas" sã.Q-deeoftênciadldo gênio bondoso, fleumático dos índios.,que se.: •
cruzaram com os europeus"234, não sobravam muitos iujzo sfavoráyeis acer-
ca dessa mistura. '

Já entre os sertanejos verificam todos os passíveis resultados da m escla das


três raças. Em Minas, a maioria eram mulatos, "na quarta ou qu inta gera­
ç ã o ", e "mestiços de índios com negros ou dé europeus com ín d ios", é so­
m ente a mínima parte era de "origem puramente européia". Entre eles não
se viam escravos, "devido à miséria geral", de forma que era o próprio serta­ 31 Ibidem, vot. I, p. 132/215,
nejo qu e trabalhava a terra e criava o gado. "Sem instrução, sem exigências,
35 Ibidem, vol. I, p. 139/221.
de costumes simples e rudes", ele era "criatura da natureza". Carente de
"sentim ento de delicadeza m oral", tem vergonha de si próprio e d e todos u Ibident, vol. 1, p. 128/210. Ver Figuro
que o cercam. Mas é "bem intencionado, prestativo e nada egoísta e d e gênio
3í/ W fra,vo H p . 138/219.. ■
pacífico". O calor do clima, a solidão e a "falta de ocupação espiritual" sedu-
zem-no ao jogo de cartas, dados e a o am or sensual235. 3Í Ibidem, vol. II, p. 76/510-1.

A viagem pelo B rasil: esboço d e u m a C iv iu z a ç A o

**•*«■■*; SUWA*.-
outro, implicava a "decadência" dos colonos portugueses, Como m édicos,
"diagnosticam a "íhcriv ^"difusão dã sífilis" e observam suas "incalculáveis
conseqüências funestas no físico e no moral dos habitantes". O "despudor"
que reinava na sociedade ofendia "o sentimento m oral". Mas os viajantes
também atentam para a situação da mulher, cujos "direitos" estariam lesa­
dos por não lhe ser permitido influir no "modo de pensar dos- hom ens".
Esses aspectos, no seu entender, compunham a "mancha mais sombria do
caráter do brasileiro", que se agravava pelo contingente de escravos negros
e concubinas. E eram especialmente os mestiços que se aviltavam nesse pa­
pel. Embora evidenciem que esse ambiente de absoluta "decadência moral"
seja particular dessa região e não corresponda às .comarcas mais ao norte de
M inas,jonde "costum es europeus" já se haviam espalhado, acrescentam o
provérbiopopulãrhaTTüfffderodãpê",ilüStr'andcrásituação: "Nesse.sentido,
ouve-se no Brasil, em geral, (...): As brancas são para casar; as mulatas para
f...; e as negras, para servir"222.

Além da "caracterização dos brasileiros", em seus "quadros hum anos", os


viajantes traçam os tipos regionais: comparando o temperamento "fleum áti-
co ", "sossegado" e, até certo ponto, marcado por uma "lim itação" do pa­
raense com os habitantes das demais regiões que conheceram, os autores
salientam suas peculiaridades: o pernambucano distinguia-se pela "vivaci­
dade espirituosa do trato desem baraçado"; o baiano era "prático e rude".e
desfrutava de "expedita atividade comercial"; "a delicadeza séria" definia o
maranhense; o traço característico do mineiro era a "com edida cavalheiresca
gentileza"; o "gênio afável e franco" seria próprio do paulista223. Adefiníçãp
d o caráter ou temperamento do habitante regional também atenta para a indu­
mentária masculina e feminina (que chamam de "traje nacional", embora
seja regional, apontando que a própria noção de nação era-lhes um pouco
difusa), para o tipo físico, para os hábitos alimentares e outros costumes
1 locais.

A esse quadro geral no qual se vêem recortados os tipos regionais, opõe-se a


caracterização da."m idato"LSeiri especificar a sua origem racial, enfatizam
m lbidcm, voU, p. 185-6/302-0-1, reticências no que elg_éiguale m todos osiugares: "facilmente excitaveíj cfé gramJe~vivach
original.
dade", pronto para qualquer partida, contra o sossego, "visando efeitos es­
m Ibidem, vol. El, p. 29/907. Ver também ca­ palhafatosos". Está sempre disposto, como aliás o brasileiro de um modo
racterização do paulista (I, p. 338-41/219-26), geral, para o jogo, a música e a dança. Aos ouvidos europeus de Spix e Mari
do mineiro (I, p. 195/318-9; II, p . 112/579), do
piauiense (11, p. 230/768) e do maranhense (II,
tius, eles tocavam um sussurrante violão e criavam "sons monótonos", mo*
p. 270-1/839-41). vimentando-se com insaciável prazer e agilidade no "lascivo lundu" e no
188 A n o v a A t l Antida d e S pjx e M a r tius

ÜfMRfe
pio, a co rd a pele54. Além do mais, vale repetir que as observações que fazem
sobre os índios partem de sua crença na superioridade espiritual e m oral do
homem branco e destarte teriam de apenas afirmar unia tautològia: á infe­
rioridade da "raça americana". Sendo assim, rápidos, e superficiais contatos
com os índios oferecíamos "d ad o s" suficientes para "provai" as suas teorias
depreciativas acerca do íncola americano. -''J. ^

Vejamos alguns exemplos: na visão dos autores, o temperamento dos in díge­


nas "quase não se desenvolveu e pode ser considerado de fleum ático". As
"potências dà alma; mesmo a sensualidade mais nobre", estão entorpecidas.
Incapazes de pensar sobre a "criação universal, sobre ás causas e as íntim as
relações das coisas", vivem preocupados somente com a "conservação pró­
pria". N ão ligam para o dia seguinte, porque não distinguem "p assad o e
futuro". E são estranhos á "todas ã s emoções delicadas e nobres" ■— n o foco
do olhar etnocêntrico — "que distinguem a sociedade.humam": não coiihe-
cem o "sentim ento dé deferência; gratidão, amizadè/humildade, am bição";
São "insensíveis, taciturnos, imersos: no mais absoluto indiíerentisino' p o r .
tudo". Ò s índios "n ão fazem uso senão dos sentidos aguçados pela natureza
da sua astúcia e por sua infalível memória; e só para guerra ou caçada, s u a s .
principais ocupações". Levados pelos "instintos mimais", são "M ó s" e "in-
dolentes", mesmo com a família. O s homêns não. conhecem o pudor. Ás
m ulheres, úm pouco. Sua indifereriça também se mariifesfca.no paladar, na,,
forma de comer, no jejum que fazem por comodidade. M as são apaixonados:
pela vinhaça e pela cachaça. De acordo com o qu e os. coloriõs: costumàm>.
dizer, .o índio "nasceu.para ser m andado"; tanto que é "dócil nó serviço d o s,
brancos" e trabalha com tenacidade. As coisas que podem arrancar suá "friniâ !
definhada da insensível indiferença em que jaz" é o terrívçl"ciúine" — ú n ica
expressão do seu-"amor pela m u lh er" — e o "espírito de vingança"?5. • •
V Lembrando aqui que o conceito decultura r.a
antropologia define-se apenas i\o final do sé-,
As observações de S p ix e Martius vão além da caracterização,do "tem p era­ ■culo XIX, precisa monte em Í8 7 1,cp iri Edtvayd
m ento"; Relações familiares, hábitos alimentares, saúdè/ práticas religiosas, Tyloi.Vei também siiprfc Nota 19, corno exem­
plo dessa mistura dé critérícrs e E/Le.afh>àp:ci't.,
rituais de passagem, formas.de guerras, armas é utensílios domésticos, lín ­ p. íl
guas, festas e costumes compõem o repertório .da descrição. No final do ex-
curso etnográfico sobre os índios em Minas, resumem: "Assim, passam -se 55 Spix & Martius, op.t dt. võh I, p, 231/377-8,;
griíos nossos. • • • -
m eses e anos, para o índio, em caçadas e guerras, festas selvagens e tarefas
rotineiras, numa vida rude e insensível55, ignorante de toda alta vocação, a 56 Sugerimos “insensível", etrv vcz';dé-tgróssè.ÍK'
que a humanidade tende". E, mesm o quando começa a entrar em "co n ta to ra "o u <!rude"para traduzir "gefÜhH6s"fWrfcflJ,'.
v a l . I p . 239/390 e 1938,I , p. 358.-.- ‘
com os senhores da terra, desconhece em absoluto as virtudes sociais", apro­
veita-se das atividades destes e muitas vezes rouba-lhes do gado e da roça57. 17 Ibident.. •— rÍ i>ísj£'r.v...

A viagem pelo Brasil: esboço de.uma civilização 149


Spix e Martius tinham viajado quase quatro meses, desde a saída do Rio de
Janeiro, em dezembro de 1817. Nesse tempo, conheceram somente um meni­
no botocudo na casa de Langsdorff, na capital, que era uma espécie de "p e ça .
viva" do gabinete do naturalista. E os povoados de mestiços que até então
haviam visto não satisfaziam a curiosidade que os impélia a ver os "filhos
das selvas" no seu "próprio dom icílio"30. Em Minas Gerais, chegam enfim às
aldeias de coroados, puris e coropós, escoltados por dois soldados, que fo­
ram instruídos para defender os viajantes bávaros "contra os índios". Ape­
sar disso, sentiram -se inseguros e desconfortáveis, percebendo-se pela
primeira vez no meio da "se lv a g e m " e da "barbaridade"51. Fazem descri­
ções minuciosas desses índios aldeados, que estavam sob a "tutela" de um
"diretor-geral" incumbido de transmitir a "civilização aos índios". Os auto­
res explicam no que deveria consistir o aldeamento: estimular os índios, de
maneira "inteligente", a cultivar a terra que lhes é dada, e habituá-los à vida
sedentária. Durante o primeiro ano, o governo ajudaria com alimentos, além
de isentar o índio por dez anos do pagamento de impostos. O diretor-geral e
os subdiretores deveríam zelar pela segurança e garantir a proteção legal
como cidadãos livres, assim como puní-los em caso de desobediência52. Nes­
se primeiro momento, os viajantes elogiam a conduta dos diretores-gerais e
dos objetivos da instituição.

Após alguns dias nesses aldeamentos, verificam que na sua estatura e na sua
feição os índios coropós, puris e coroados pouco se distinguiam entre si,
Spix & Martius, op-, eit.,vol. I, p. 214/349. parecendo todos "dom inados pelos traqos gerais da raça". A ausência de
traços individuais era sinal de sua falta de "desenvolvim ento". No entender
J1 Ibidem, vol. I, p. 220/361.
desses naturalistas, o fenôm eno da indistinção não acontecia mais em ne­
5- Ibidem, vol. I, p. 221/361. nhuma outra raça, o que implicava a primitividade dos índios na história da
evolução hum ana53. Uma descrição minuciosa do corpo, da cor da pele, do
(v” ibidem, vol. I, p. 230/375-6. Alentar para erro
de tradução na edição de 1982. Lê-se ’’os traços
cabelo, dos olhos, muitas vezes em com paração com o negro, é intercalada
individuais pareciam, provavelmente por /alta com a observação de que o "índio, propriamente, não pode corar", e que o
de desenvolvimento, dominados pelos traços "hum ano" enrubescer não tem validade para essa "rude raça hum ana". S o ­
gerais da raça do que é o caso, nas outras ra­
ças.' O original diz o seguinte; "... die indivi-
mente após longa convivência com o branco, faz-se notar entre os índios esse
duellen Ziigeschienen, vermuthlich aus Mangei "sinal de em oção". Continuam a descrição física e passam a falar do "tem pe­
anAusbildung, von demallgemeinen Raçezug ram ento" dos índios, patenteando algumas das "absurdas generalizações"
viel mehr beherrscht, ols dicses beí den übrí-
gen Raçen jetzt noch der Fali isi." (p. 375*6). A
às quais Baldus se referia.
edição .de 1938 se aproxima do original; "nos
traços Individuais, justamente mal conforma­ Notar-se-á que o olhar investigador de Spix e Martius tem como prado os
dos; predominamos traços gerais da raça, como
n5o acontece, até hoje, em nenhuma outra raça."
valores da sociedade cristã ocidental, misturando aspectos que a antropolo­
(vol. I,p . 345)1. gia m oderna chamaria hoje de culturais com aspectos inatos, como, por exem-

148 A mova A tlAntioa de S pix e M artius


"desenfreado batuque"224, dança de "feição obscena"225, "quase imoral" 226 e
que, espalhada por todo o Brasil, era a dança "preferida da ciasse inferior do
p ovo"227. Para complementar esse juízo depreciativo, acrescentaram a lito ­
grafia "D ie Baducca", cujas figuras caricaturadas parecem querer provar ao
leitor quão grotesco e impudico deveria ser tudo isso223. Em suma, para esses
alemães, os "m ulatos" eramsemelhantes aos negros, ou èeja, eram de "n a tu - nf\
reza mterioiTBruta"TpÕrisso " im p o r t im ô ^ ^ r^õnrTefulgám ja na sua ch e­
gada ao Rio de Janeiro. Por o u jia la d o J,.Spix-e,M artiusuião^jScari.^' çque
enlr^ is^ sn ã ^s^òT^riiulatos" manifestavam "maior capacidade e diligên­
cia para as artes mecânicas" e há indícios de que tivessem talento para a
pintura229.

Evidentemente, o seu "racismo da Ilustração", pautado n a presunção da su- ,.


perioridadé da "raya daucásica". hão favorece uma imagem positiva do " m u - .

"humanidade superior"! Mèsse sentido, fica difícil com preender a idéia-da


miscigenação como algo imediatamente benéfico para o processo civiliza­
dor. F or nutro lado: uma imagem ta vor âvêl^ánuslurã tamhérncTependià do ;
quanto o miscigenado estaria entrosado na sòdedade ou de quão "claro
sena. hrn"5alvâdòr, cuja ^ p ú laça~ o ^ o n sta d a misturã das tresraças", im-
pressionararri-se, de início, ao ver que "a s tonalidades m ais leves de cor não
fazem perder prestígio na sociedade; h á pessoas de cor distintamente m ista
sem q u e isso cause estranheza" ou as im peça de pertencer a famílias "b u r­
guesas" de tradição. Depois, em bora os nossos autores deem a entender que
nessa cidade há a possibilidade da m obilidade social, o seu preconceito ra­
cial vigorava: ser branco enobrece e costuma "dar direitos a certa posição na
sociedade". Tanto que a5 "profissões (...) mais baixas eram ocupadas p ela
gente de co r", ao passo que os brancos, ou os "que assim se consideram ",
trabalham no comércio, no funcionalismo público, ou tinham grandes fazen ­
das e engenhos230. . 21 lbidern, vol.III, p. 29/907.

»Ibidcm, vol. II, p. 189/699.


Nessa profusão de cores e raças que desvendaram no Brasil, os nossos ob ser-
vadores também não deixaram de descrever os tipos decorrentes da m istura Jt,Ibidtm, vol. 1, p. 1H0/294.
coolòs índios: o cafuzo e o mameluco. Para os seus olhos, o aspecto dos
27 !bidem.
/cãfuzq^ "bastardos de negros e índ ios", era "dos mais estranhos que um
S ü irõp eu " podia encontrar. Uma m inuciosa descrição cobre a forma do c o r­ 41 \fer Figura 8.
po: estatura, formação muscular, forma dos pés, do rosto, dos olhos, do na­
49 (bideni, vol. í, p. 75/132.
riz, d a boca, do queixo, cor da pele e dos olhos. Valendo-se da observação
morfológica, depreendem a sua maior singularidade: "a cabeleira extrema- 40 Ibidcnt, vol. II, p. 149/639-40.

A viagem ro o Brasil: esuoço d í uma civilização 189


j-ifturn 7. No R iode Janeiro (ín Ricxfe Jrmeim). Litografia -Atlas zur Reisem Brasilienvott Dr. íwi Spix mui Dr. vott Martins (Atlas cia via^m de Spix eMartius pelo Brasil).
Até aqui tem sido antes o gasto pelas comodidades, pelo luxo e pelas formas amenas da vida exterior, que se espalha rapidamente, do que o amor pelas artes e
pelas ciências no seu verdadeiro sentido," (Spix & Martius, Viagem pelo Brasil, vul. I, p, 54/100). (Ilustração extraída da edição fac-similnda do Atlas zur Reise in
Brasihen von Dr. vou Spix wni Dr. um Martius, 1957, Stuttgart, Brockhaus, tábua 27.)186

186 A nova A ti.Antio a o t Snx c M aktius


figura 4. Dança dos índios puris (TamderPuris). Litografia; Desenho de Van de Velden - Atlas zur Rase m Brasihen von Dr. von Spix nnd Dr. von M ortais (M ias da
viagem dc Spix e Martins pelo Brasil). À esquerda, vemos os naturalistasao serem cumprimentadas pelo índio com uma umbigada. Noto-sequeo$ Índios,sáo.
iepresentados.com corpos absolutamente deformados, desproporcionais e com expressão de demência, ausente de traços fisionòiaicos que os individualizem,.
parecendo-se mais com figuras animalescas e monstruosas. Os viajantes, em virtude das vestimentas arrumadas, da postura ueta cdos ío&tos dotadosde traços
bem definidos, contrastam com os índios, criando urna certa tensão na imagem. [Ilustração exbaida da edição íac-sumlada do utfis zur Reise.in lirasihaivort Dr. ,
von Spix und Dr. von Martius, 1967, Stuttgart, Brockhaus, tábua 6.) 1

A viÁCDkí pelo Brasil: esboço de uma cíviuzaçao 151


Em resumo, para Sgix e Martius, os índios vivem do lado de fora da sociedade
Inimana, seridoíortemente conduzidos por instintos animais e dotados de uma
lilmaJepiKadn; esses "hom ens das sel vas" inspiram nos naturalistas um a sen-
sação mista de rejeição e de pretensa compaixão. A dança dos puris, por
exemplo, evoca-lhes "sentimentos melancólicos", em razão da "degenera-
ção do humano" nos índios:

o porte baixinho, o pardo-avermelhado da pele, o cabelo negro de carvão,


solto e desgrenhado, o formato desagradável da cara larga, angulosa, e os
olhos pequenos, oblíquos, inconstantes, finalmente o andar de passos cur­
tos, esquivos (...). E, então, pelo caráter tristonho dessa festa, na escuridão
da noite, a nossa impressão de pena era ainda maior56.

U m negro, que havia muito tempo conhecia essa aldeia, traduziu-lhes a letra
da canção que cantavam para o ritual: era a lamentação de uma flor que caíra
da árvore no momento em que queriam colhê-la. Nesses versos, Spix e Mar-
tius, assentados em sua visão de mundo, não conseguiam enxergar alguma
dimensão poética, mas sim somente um "quadro melancólico" que era expres­
são do "paraíso perdido" no qual esses índios se encontravam59. A comple-
mentação iconográfica dessa descrição — a estampa "Dança dos Pu ris" no
Atlas na qual os viajantes são cumprimentados com uma umbigada de um
índio — nada deixa a desejar. Levando à risca a descrição literária, o artista
es/orçou-se para recriar o aspecto "selvagem " dos autóctones. Traçou figuras
absolutamente deformadas, desproporcionais, quase animalescas, monstruo­
sas e sem traços fisionômicos que os individualizassem, fazendo jus à opinião
dos naturalistas para explicar o pouco "desenvolvimento" dos índios60.


‘V tóim , voJ. I, p. 223/374. C om o já tivemos ocasião de mencionar anteriorm ente,noséculo XIX grande
* lbiâem, v o l I,p- 228/375.
número dos desenhos feitos por viajantes era adaptado por artistas acadê­
m icos que não conheciam o que reproduziam, criando im agens m uito dife­
" Ver Figura 4, "A dança dos índios puris". re n tes dos esboços o rig in a is. Presos aos preceitos estéticos vigentes,
MSobre os índios na iconografia dos viajantes procuravam em vários casos embelezar a paisagem, adequá-la ao gosto ro­
europeus no s é c u h XIX, q.v. Tekla Harhrtann, mântico, assim como embru tecer as figuras humanas, sobretudo os índios,
op. c it.,c Maria Sylvia Porto AJegre, "Imagem e aumentando o impacto no público europeu. Mas n a "D ança dos Puris", par-
representação do índio no século XIX", In: Luís
Donizeti Benzi Grupioni (org.), índios no Brasil, ticularmente, a exagerada desfiguração nem tanto parece ser consequência
SSo Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, dos limites do próprio artista — as amarras estéticas e o desconhecimento
1992, p. 59-72. Relativamente aoséculo XVI, ver antropológico — , mas pode ser entendida como tradução quase perfeita da
Ana Maria de M. Belluzzo, "A lógica das ima­
gens e os habitantes do Movo Mundo", In: Luís visão detratora que Spix e Martius revelam acerca dos habitantes originais
Donizeti Benzi Grupioni (org.) op, cit., p. 47-58. americanos61. 0 naturalista alemão Wied-Neuwied, em cuja viagem também

150 A no va A tlâ nt ica d e Sp ix n M artius

pçspfc^*--
vão da câm ara queixava-se de o governo não subsidiar a compra de escravos
para portugueses recém-chegados, pois como "brancos deviam (...) gozar do
privilégio de não lavrarem com as suas próprias mãos a terra". O escrivão
tenta persuadir os viajantes de que não cultivavam o solo por causa da falta
de escravos. Spix e Martius comentam:

Opiniões, como esta, que se ouvem muitas vezes no Brasil, indicam o es­
tado em que se acham a industria e a burguesia; soam, porém, tanto m ais
singulares quanto mais freqüentes se expõem, junto com precoces preten­
sões democráticas214.

O comentário dos naturalistas desnuda as contradições que observavam no


país e m ostra igualmente que os anseios civilizadores projetados na in ci­
piente nação tòparn com uma série de obstáculos, dentre eles a escravidão,
conforme insinuânTnessas ctuaS passagens, ainda~que nunca tènKárirtóma-
do um a posição contrária a ela. Alguns portugueses, portanto, _passavan~i
pelo processo de'" degeneraçãô" e "imÓraljHâcTe", íaltade diHgên cia^Jn dis-
poSlçãaTJara o tfabalhò7E grande parte dos "brasileiroPVdíferenciados ev i-
dentementé conforme sua posição social, era produto desse processo. A o s
olhos dos viajantes, os brasileiros; em geral, gostavam das comodidades e do
luxo e só chegariam "tardiamente ao aperfeiçoamento da arte e das ciên ­
cias", em virtude do desenvolvimento "m ais livre da sensualidade" e da
preferência das formas "amenas da vida exterior"215. Sempre "alegre, pronto
para divertir-se"216, o brasileiro é dotado de um talento particular para co n ­
tar e sobretudo "descrever cenas eróticas"217. Por onde os bávaros passavam ,
costum avam ser recebidos com "toadas de violas", acompanhadas por c a n ­
to ou dança218, reiterando a idéia de que se tratava de um povo de "m úsicos 2ií Ibidciu, vol. U, p. 190/702.
natos"219, cu ja música, provavelmente, "cedo^àlcançaria "certa perfeição"220.
llf Ibídutv, vol. 1, p. 54/100. Ver Figura 7.

O que registram em M inas Gerais, logo depois de terem passado por São lbiàmi, vol. I, p.180/294.
João dei Rey, os inspira a traçar um "triste quadro da miséria hum ana".
2,7 Ibiitem, vol. II, p. 36/448.
Embora associassem normalmente "riqueza e comércio'' com "civilização" e
"m odos m ais requintados", nas regiões mineiras vêem que "o luxo e a co r­ l u Ibidm . vol.I, p. 180/294.
rupção andavam de p ar" e que ao lado da maior opulência vigoravam " a
» MIWííem, vol. ÍI.p. 150-1/642.
indigência e depravação"221. Os autores insurgem-se contra a "casta dos v a ­
d ios" formada por hom ens brancos, "perversos", que se acomodaram corn o 2211Ibidern, v ol.I, p. 57/105.- ■■■ - - ■
trabalho escravo e adiavam desonroso tér de cultivar a terra e criar o gado.
51lSobreaimsérla da população em regiôesondfi::
jd o & g g mais uma vez a extensão dos efeitosdaescravidão^que, de u m lado, havia outrora extraçSo de metais preciosos,-ver.
_ como vjm os. era consicfèrada uma v ered ajiara ^civÚLzar'' os negros e^ d e tam bémIbidem, vol. I,p . 182,247; II,p. 25.

A viacem fíLO Brasil: esboço de uma civiuzaçào


raças, baseada num transparente racismo. E esta, por sua vez, aliada ao do­ d
mínio da exuberante natureza por meio do cultivo da terra e da exploração
de suas riquezas, forma a vereda da civilização. Assim, o Brasil évisto como 1j
uma terra do porvir, como um país que, conduzidoq3eIo_'lgênio^3aEíâI2aã
d õ ^ í ^ d õ ^ t a n ^ e y m n K ^ ^ c e n a r B da história européia. O tripé "bur­ I
guesia, Estado e Igreja"207 já se esboçava em alguns lugares, atestando a èxe-
qüibilid ad e de um projeto civilizador na América tropikâLJpniados pÕFesSè 1
ponto de vista, Spix e Martius afastam-se da visão detratora de Hegel acerca 'i
dos trópicos, embora não resgatem uma imagem positiva do autóctone ame­
ricano, excluindo-o do processo civilizador. i

As sombras do caráter brasileiro


) I

No “espelho mágico", que reflete um "espetáculo único" que nem a própria ••'■■■•d
Londres nem Paris podiam oferecer, ficou claro qual o papel que Spix e Mar- :
tius atribuíram aos índios e aos negros no Brasil. Resta ainda saber como og ij
autores enxergavam os im igrantes europeus, os portugueses — em teoria, os
irradiadores da civilização — e os miscigenados, como representantes dó
fenômeno brasileiro, da sua particularidade histórica, que deveríam ser re- ' - ..v
sultado e prova de que o país sairía do estado de "selvageria" para atingir a
"civilização". .jj

No trecho referente ao "estado de civilização" do Rio de Janeiro, os nossos - . ,v


autores contrapõem o "europeu" ao "espírito do povo brasileiro" represen­
tado pela sociedade da capital do reino. Ao seu ver, o período colonial dèi-
xou um a "impressão forte dem ais no caráter do brasileiro", tanto.que muito
dificilmente ele já poderia, naquele m om ento^devotar-se com a mesma
1,7 Splx & Martins., op. ci!., vol. III, p. 316/1379. eneigiã 7 q u e*riísfi^ ]^ jD ^ j^ p .çu ^ Q 5.igérip^kboXÊSÍdaJm ^^rIa, da arte e
dãsLrêhcIas7q ue asseguram a sorte e o vigordo Estado^f8- O grand^ítume- ' „>
íbidem, vo!. I, p. 54/100, A versão brasileira
refere-se à "índole do povo brasileiro". No tex­
ro dTportugueses, ing le s e s T ^ ^ c c ^ s J^ la n d e s es^.alernães e italianos>que /j
to original, porém, os autores usam "Geist", que emigraram para a capital, desde.auabertura-dos poxtos^e,lá se estabeleceram
pode scr traduzido como "espírito". Esse ter­ como negociantese artesã<^,dev.eriam "iirqm nik.uim itLU^ ' \
mo nos parece mais apropriado, uma vez que
a idéia de "Geist des brosilianischen Volkes"
d o sT iãh íJâh te^ ^em dprofundar como essas mudanças. s.e cumpriríam, os ,‘
muito provavelmente se inspira no conceito aj^oreg^reçH tavam ji^^ "a civiliza-
herderiano de Volksgeist (espírito do povo), ado­ çãor as--neceBSidades-da-vida-e.a^JÍYÍdad.ç..tcmyAíA..llQyí^esenvo^irnen- / 7 iif
tado pelos românticos alemães.
t p 3 Afinal, conforme o eurocentrism o de M artius sintetizado em Frei
w Íbidem, vol. I, p. 52/97. Apolônio, "o verdadeiro europeu leva a sua pátria para todos os cantos, todos ‘ ' r;
184 A nova A tlántída de Spix e M aktjus '
Doce e do rio Belmonte. Para tanto, os índios deveríam ser empregados com o
remadores e, assim, "pelo mais pacífico de todos os m eios, o tráfego co m er­
cial, promover a sua civilização gradual (allmàlige Civilisation)"65. , :

Os "pacíficos macuanis" serviram-lhes d e exemplo de que uma longa c o n ­


vivência com os portugueses propiciaria a absorção de alguma "noção de
civilização" {Anstrich der Cuítur). Lavravam a terra, plantavam milho, feijão
e m andioca, embora preferissem caçar. Eram 'Liem constituídos" e os traços
de sua fisionomia eram “animados pelos primeiros raios da civilização"
(erste Strahlen der Bildung)66,

Apesar d e considerarem ps índios do Amazonas mais desenvolvidos em g rau


de "civilização {Bildung)” do que .as tribos d o sul do Brasil, que se distinr
guiam pela "incultura quase animal"67, a "vidái" dos m uras, uma das nações
mais populosas, das imediações do rio Amazonas, reduzia-se igualmente a.
"m odo de animais". Seu estado "baixo de civilização" não reqiiernecessida­
des nenhum as. E aproximam-se dos brancos somente em troca de cachaça,
um verdadeiro "talism ã", segundo os viajantes. Brigas e ataques de cólera
que aparecem após as bebedeiras são prova de sua "indôrrvita selvageria".
Também não tinham lugar fixo de m orada e preferiam "vagar, ao sabor d a
fantasia e da necessidade, pelas margens dos rios m aiores". Sua palhoça e r a
desprovida de qualquer utensílio, com exceção de armas. N o olhar de Sp ix e
M artius, a expressão de suas fisionomias era "feroz, hesitante, abjecta". E m
nenhum lugar lhe$ "pareceu tão medonha e triste a miséria do.silvícola am e­
ricano", como entre os m uras68. Entre os índios tupinambaranàs, próxim os à
atuai Manaus, certificam, sem refletir sobre as possíveis causas, que o prin ci­
pal "v ício " do índio é a bebedice, "pela qu al o mais belo germe da civilização
é destruído, e talvez fomentado, o despovoamento". N esse lugar, onde e n ­
contraram nos folguedos noturnos dos. índios "divertimento, se não do céu,
pelo m enos do inferno", negam terminantemente que o consumo de bebida
tenha sid o introduzido pelos europeus e afirmam que os habitantes o rig i­
nais já conheciam e consumiam bebidas fermentadas inebriantes6?.
Mlbident,vol.11,p. 56/482.
Também o "pavor de fantasmas", desqualificado pelos autores de "rid ícu­
44Ibidem, vol. II, p. 63/4 9 1 ;'/-;;. !'.•
lo", e a "crença em fatos", de "inverossímeis e extraordinários", eram vistos
como "traços típicos" do caráter do índio. Defendiam opinião taxativa que ? Ibidem, vol. m , p. 172-3/1155,'/,

essa "raça traz em tudo cunho da absoluta falta de unidade intrínseca e.es-
Mfi7tft'f>//vol.in,p. 120-1/1071-2;:
sencial", e , por isso mesmo, "suas atitudes, os seus intentos, costum esé lin ­
guagem são de con tín ua in co nstân cia". E, seguindo a argum entação "Ibideni, v 6Ç m ,^ ;Í1 7 /ÍÒ 6 6 r\ $ .

A VIAGEM

p s m m **--
esteve com os paris pouco tem po antes de Spix e Martius, foi bastante crite­
rioso em relação às imagens publicadas sobre essa tribo. A pior de todas, ao
seu ver, era a "Dança dos Puris" do Atlas dos naturalistas bávaros: além de
"horrível", nada tinha a ver com a realidade. Comentou Wied-Neuwied: "To­
das essas figuras grosseiras têm uniform em ente a cara feia como sapo com a
qual não se acha em nenhuma tribo de índios no Brasil nem a mais afastada
semelhança". Embora considerasse o restante do Atlas lindo, era a favor de
que se eliminasse essa imagem62.

Sob várias formas os nossos naturalistas aludem à crença na inferioridade


da raça "americana": imaginam-se "quase como no meio de dem entes" e,
apesar de terem conquistado a confiança dos ífidios em Minas Gerais e de
poderem demorar-se entre eles "sem m edo", os naturalistas desejavam dei­
xar "aquelas sombrias paragens". Quando finalmente se distanciam do lu- ;
gar, sentem-se aliviados por estar de volta aos campos e por viajar "entre
caras mais hum anas"63.

Mas não levou muito tempo e novam ente se viram diante de um grupo de
fndios, dessa vez da tribo dos botocudos. Os batoques que metem no lábio
inferior e nos lóbulos furados das orelhas contribuíam, ao ver dos naturalis­
tas, para a horrorosa desfiguração de suas "feições embrutecídas". Se a "fi­
sionomia desconsolada" dos coroados, puris e coropós havia causado nos
VVled-Neuwíed<7;jfírfTe}da Harlmann, ap. cit.,
bávaros "dó e tristeza", os botocudos incitaram-lhes "horror" e foram moti­
p . 92-3: Renate Lôsdiner, "D ie künstlerische vo para mais uma descrição pejorativa:
Darstetíung Lateinamerikas im 19. Jahrhundert
unter dem Einfluss Alexander von HwnbolcHs".
I n : - - — (org.) Deutsche Künstlerin lateiname-
na sua aparência feia, quase não têm traço de humanidade. Indolência,
ríka. Mnler und Naturforschcr cies 19. fahrlumiiert embotamento e rudeza animal, estam pam-se-lhes nos rostos (...); voraci­
ilhistrieren einett Kantinent. Katalog zur A us- dade, preguiça e grosseria, patenteiam-se-lhes nos lábios inchados, na bar­
steUung des Ibero-amerikanischen [nstituts
Pieussischer Kaltucbesite Berlin, Berlín, Vietrích
riga, assim como em todo o torso troncudo e no andar de passos curtos64.
Reimer, 1978, p. 31. O naturalista alemão Bur-
meister, que visitou a região d e Minas em mea­ E bastou um exemplo de violência com a qual foi tratada uma das índias
dos do século, não recomendava o Aítos dos
bávaros aos seus feitores como "ilustração fide­
pelo marido, para que os naturalistas concluíssem que a "raça am ericana" é
digna". Considerava as paisagens muito "m a­ composta de semi-humanos (Halbmenschen). Ainda assim, são capazes de
neiradas e pouco naturais c as cenas da vida absorver paulatinamente a "civilização". O "contínuo progresso desses fi­
humana parecem, em sua maioria, como gro­
tescas. Os retratos pouco vaiem". Burrrteisfer
lhos da selva" é reconhecido com prazer pelos olhos do "filantropo", ates­
npud Tekla Hartmann.op. cit., p.83. tam Spix e Martius, cuja simpatia pelos índios somente se manifesta se estes.
estivessem mais próximos das "virtudes", dos valores, da moral, dos costu­
** Spix &Marhus, op., cit. vol. t, p. 240-1/392-4.
m es, do compaxtamento do mundo ocidental cristão. No seu entender, éfum
Iblcicm, vol. II, p. 55/480. damental "civilizar" essa tribo, para to m ar viável a navegação segura cforio

152 A NOVA A.TLÀNTIDA DE SPIX E M a KTIUS


■j

Â
os mares e todas as regiões. Seu caráter compõe-se de humanidade cristã; e
esta constitui também sua essência."210

Em São Luís, tem-se mais um exemplo da importância que atribuem ao eu­


ropeu: ele é o "conhecedor do mundo e das grandes forças morais em jo g o ;
possuidor de instrução, sè não profunda, em todo caso prática". Na qu alid a­
de de imigrante, ele vem para "fündár, com suas próprias forças, condições
de vida mais agradáveis". Contrapondo a forma de o europeu engajar-se no
trabalho à do brasileiro, observam:

nascidos [os brasileiros] na fartura das necessidades físicas, criados en tre


escravos domésticos ctè pouca educação, e na segura posse de bens Herda­
dos, mais inclinados ao gozo do que à. atividade, reconhecem a suprem a-;,
cia do imigradó, e ábandoriam-lhe, com çèrta timidez, atividade com erciai
que enriquece, preferindo retirar-se para as suas fazendas e g ozar sua
prosperidade211. ;

Evidentemente, estavam falando da clásse de grandes proprietários d e ter­


ra, sem especificar se eráin òú não miscigériados. Pois, nessa cidade, tam ­
bém encon tram relativ am en te m uitos d escend entes de p o rtu g u eses
não-misturados, ã o ladò de grande numero de negros e poucos ín d ios e
mestiços. C om entam qué òs cargos públicos do alto escalão estavam em
poder dos portugueses natos (filhos do reino), imprimindo-lhes " u m a es- d
tranha preponderância sobrè os brasileiros". Dominavam igualmente a ad- U
m inistração e grande! parte do comércio, em razão de sua "ativ id ad e" e |
"espírito de iniciativa", o que criava certa discórdia entre portugueses e \
brasileiros212.

Mas os autores, com o vimos, não são insensíveis a muitas atrocidades co m e­


tidas pela colonização lusitana, reiterando o potencial destruidor da civ iliza­
ção e questionando o próprio papel dos portugueses na história do Brasil.
Desse prisma, Spix e Martius também não descartam, embora com certa ti­
midez, a "degeneração morai" do colono português nos trópicos, sem elhan-
te ao queSouthey pensava, por exemplo, numa conversa em que o m eirinho 5ll,C. F. I3. Martius, Frei Apvltlnin.... p. 11.

tfafrõp ã defendia-a opinião de que os filhos de portugueses imigrados eram 111 Spix & Martius., op cit., vol. U, p. 270-1/ H39-
"mais sujeitos à degeneração (Ausartung) e imoralidade ( Sittenlosigkeity' do 40.
que os brasileiros, os viajantes não fizeram objeção alguma. A razão dessa
M ibidatt, vol. II,p. 270-1/839-40.': "
decadência era a " fa lta de educação, e respeito no trato dos escravos da casa,
não estando habituados a eles na Europa"213. Em outro episódio, um escri- 213 Ibiiiem, vol. II, p. 68-9/501.

A viagem pelo B rasil: esboço ns uma civilização 185

■ b s m r »*- wü » * m < -
.CoQSiderai^-^rèetgefK^a-a-pemUar^ do Brasil talvez tenha
sido herança imediata da leitura_que-M aii±ja^kide^SQutheyj[fiu^»vente
influenciado por Humboldt, o historiador inglês discutiu na History o/Brazil
o enraizamento e a aclimatação do hom em europeu na América, o que o
conduziu aos assim tos do desbravamento e da conquista dos sertões, da
escravidãoe "para qestudodo grandeienôm eoo.da m estiçagem ,queconsi-
derava t^ c^ iv o n á lo rmaçãxi-polítira,,.social..c,.cultural d.Q-BlgsiI"lÜ- Apesar
d ê jo r is iderar a mistura das etnias um processa -benc fk-o-para-a-adaptação
do europeu.aojRQvo nmhionteT.cln.uthpy-oão-rechaça.aidéia da_degeneração
doscolono^pnrtuguuscs^.Q&.(ns.§tiç.QS^-dos4nameluces. Responsáveis por
essa decadência seriam a ausência de leis, o desrespeito à religião, bem como
o cruzamento entre as raças ocorrido apenas porlicenciosidade e não por
necessidade de sobrevivência. Também a vida de pastoreio, no interior do
continente, favorecia esse processo, que, no seu conjunto, significava muito
mais uma degeneração de costumes, de ordem moral portanto, do que o
resultado do determinismo climático ou das leis naturais395.

Há fortes indícios de que Martius também tenha seguido alguns passos do


historiador romântico francês Augustin Thierry. Pedro Moacyr Campos res­
salta algumas passagens do tratado Como se deve escrever a história do Bra­
sil que se afinam perfeitamente com as idéias da Histoire de la Conquête de
1'Angleterre par les Normands, editada em 1825, eventualmente lida por Mar-
lius no transcorrer da redação do relato de viagem. O grande paralelo entre
Academia iiV LWm<, Riu de Janeiro, abril do ]lJ 12: an\b£)^.(x5..auloxeii,estaria na impprtâzjcia.atribuída à mistura cte lacas cõmo
2.31-72, p. 271. forj^iiQrmadorade-uma-níLçãa Martius cita também a formação da "nação"
|l“' C. I T. von Martins, oy cit., p. 104-7.
inglesa com base na mescla de vários povos, para provar que o cruzamento
das raças é um .aminho para atingir os "mais sublimes fins"199. E a s .guges-i
"'M a iia Odiiíi I tiiíc Dias, úp. at., p. 228. tões_que-m+ia-.-«ralista..lçouüa.p3ta a e s ç n ^

|,,s Ibiilcm, p. 252-3,


tenbaJiuscado no segundo volume da
Outro ponto dc convergência efe Martius e a historiografia liberal da França
,,N "Quem poderá negar que a nação inglesa seria a defesa da monarquia constitucional. Campos chega m esmo a cogitar
deve stm energia, sua fiime/.n e perseverança a
essa mescla dos povos céltrco, dinamarquês,
í que a visão de história de Martius estaria m uito m ais próxima do pensamen-
romano, anglosaxAo e normando!" C. P. 1:. von \to francês do que da historiografia alem ã200.
Martins, op. d l ., p. 86. Pedro Modcyr C.impos,
"U m jwhJjTilistíi e a história", Revista tk Histó­
ria, São Paulo, XI/Jj!(87):241-8, ano XXII, julho-
■! José Honório Rodrigues menciona igualmeníe essa distância de Martius das
setembro, 1971, p. 243-4. inovações da historiografia alemã, lembrando qu e os seminários de Leopold
Ranke e de Georg Waitz, um dos seus maiores discípulos, ainda não haviam
'J "U>idm, p. 247-8.
iniciado quando Martius escreve o relato de viagem e o tratado para uma
1,1 José Honório Rodrigues, crji. cit,, p. 158. escrita da história do Brasil201. Porém, ao contrário do que José Honório dei-
182 A.vova AiLÃNTiiM de S m í. M artius

L.
Figura 5. Préshtofsíhvodçsmáios Tecum (F&thcIterZugderTecunas). Litografia de Ph. Schrrud-AttaszurReisein Brasilim von Dr. vonSpix uni Dr. vonMartius(Atlas^
da viagem de Spa eMartwpJoBrasil). Tambémpesla litografia nota-se a ausência de traços fisionômicos que individualiaema expressão dos índios náo-mascaxados;-
e a desfiguração dos corpos das enanças. (Ilustração extraída da edição fac-similada do Atlas zur Reise in Brasilien von Dr. von Spix und Dr.ván MariiusA967?.'
Stuttgart, Brockhaus, tábua 23.) • . ... .. ' .. ? ■'

A viAtiEMríLO Brasil: esboço de uma civiuzaçAo 155 •

i. ■ .«^3—-A.
depreciativa, os naturalistas sintetizam: ''Em coisa alguma perm anece fir- -,1
me, a n ão ser na instabilidade". E n a "alm a" desses homens estão arraigadas '
a hostilidade entre si e a "fú ria da perseguição"70. Aludindo à fé cristã, acharit :
que os índios desconhecem o "amor e a confiança num ser superior dirigin- 1
do a sua sorte" e vivem condicionados pelo "pavor atônito de um a força m â '
e hostil". Nunca se libertam, segundo os viajantes, de sua "im aginação as- >
sombrada", que se expressa em m áscaras e figuras pavorosas e no seu modo :
de agir cheio de medo e de pavor71. Os autores também recriminam as festas
índigenas, dizendo que eram "bacânticas", um "tumulto selvagem ". Spix
comparou o préstito dos tecunas a um a "bárbara festa", cujos participantes í
dançavam e pulavam como se fossem "bodes, parecendo fantasmas ou ma-
lucos"72. Ao observarem a expressão dos índias quando falavam, os natura-, ri
listas sentem falta das "entoações variáveis da voz" e da "viva gesticulação"
própria dos europeus. "C om tão pouca acentuação, imóveis e quase sem :s
jogo de m úsculos da fisionom ia", os indígenas parecem "que falam em so- :
nho". Dessa comparação decorre a patética pergunta: "E não é um sonhò ri
soturno a vida toda desses homens, sonho do qual quase jamais acordam ?"7* .. :

j1 Conforme conheciam cada vez m ais grupos de Índios aldeados, perdiam. ,,


\ 'tarnSem" aTconvicção dó sucessò~dãOh.!clatívas éívilizatóHãslriEm. relação i
aõs giúpo^Indí^éhã^erm M m as G erais,ain da achavam qúe-^ aldeam en-
tos sob a guarda de diretores-gerais eram de "fazer honra ao govern o"74. É, /
na verdade, a tendência qu e crêem.perceber entre os caririse os sabujás, no ri
interior da Bahia, de se subordinarem aos brancos, sem que houvesse um a .
"influência favorável sobre seu desenvolvimento espiritual", "nem enõ- ri
brecimento da expressão de sua fisionom ia", evidencia-se em m uitas tri- ri
bos que contataram. Logo, asseveram os autores, seriam mais "propensos

ro Ibident. vol. III, p. 100/2033-4.


! a adotar os defeitos do que as virtudes dos europeus, seus vizinhos". Des-, ri
tarte, perpetuar-se-iam nos índios a indolência, a preguiça, a superstição, a ri
71 lbulem. vol. III, p. 145-6/1108. mesquinhez em seu rosto, a decadência moral, a fraqueza intelectual, a ri;
falta de confiança em si m esm os e a indiferença a qualquer estím ulo, a não . ri
n Ibidetn. vol. IÍ1, p. 7.00/1188. Ver Figura 5.
ser as mais baixas paixões75.
" Ibidetn, vol. U, p . 65/495.
Por outro lado, a colonização e a política dos brancos para com os índios ri
: !i Ibidem, vol. I, p . 221 /361.
contribuíram também de maneira negativa: para explicar a rala população
.» Ibiitem. vol. U ,p . 133/615, 182/688. indígena nos arredores de São Paulo, lembram as "terríveis devastações" j
causadas por doenças espalhadas pelos europeus, desde a época de Anchie- h
» Ibidem, 1938, vo l. 1, p . 257/ 276-8 e E , 2 5 9/ 821.
A tentar para o corte d e texto n a ed içSo de 1981.
ta e Nóbrega, bem como a miséria e o sistem a de escravidão "praticado com /
C f. 1938, J , p . 257, com 1 9 8 1 ,1, p . 172. requintada crueldade"76. Os naturalistas entendem que os autóctones sén-

154 A nova A tlàntida de S pix e M artius

b e m»*#'-' E ct* * * * - - *
F

xa entender, Ranke publica a sua obra,-Gesàiichte der romanischen unrí gemia-,


nischen Võlker (História dos Povos Rommicos e Germânicos), em 1824. De 1832 a
1836 editou a Historisch-Politische Zeitsclirift (Revista Histórica e Política) e, desde
1834, era professor em Berlim202. Não há dúvida de que as idéias do histori­
ador já circulavam no meio intelectual alemão, tanto que em tomo de 1840
ele era um pensador consagrado203. Não sabemos por que exatamente o mé-~
todo crítico para a interpretação de fontes e a' concepção historicista de Ranke
não tocaram diretamente o universo naturalista de Martius.

Entre as possíveis heranças filosóficas e historiográficas da Ilustração e do


Romantismo, conforme Am o Wehling, Martius teria encontrado no pensa-
mento de Voltaire e de Kant as m atrizes do conclito de^'ln^a.ddcid&úxiica,/,
conduzida pelo "gênio daRístoria^rE séTeriá distanciado do ideário de Herder
para comungar com ãTs~coricépçoes de um "historicismo pró-naturalista",
segundo o_qual se enfatiza a unidade histórica da espécie humana, condu­
zida pelo 'gêruõM alüstória', cujH5‘lels sao" dêtermftTadHSqiélãT^Kireza. O
autor também concorda:que o naturalista tenha buscado idéias na historio­
grafia romântica francesa, que, com o resgate da "C iên cia Nova" de Vico, fo­
caliza a relação entre idiomas, r ^ o s ,:~?êlig'iaü^e~dIreito para o estudo da
História.20^ ' ~r"'. ~

De acordo com Campos, como dissemos, há um aforte inspiração no Rom an­


tismo francês de Thierry, que aliás em 1835 edita um texto de 1820 no qual
eleva os. Estados Unidos a uma feliz nação, por realizar o sonho da hum ani­
dade, da verdadeira convivência baseada na fraternidade e no amor, onde
não havia conflitos de raças, de língua e de religião205. Também Martius quer
acreditar num a relação absolutamente harmoniosa entre as diferentes raças,
conforme apontamos ácima. N ão estamos de acordo, porém, com a leitura
de Campos, segundo a qual Martius encararia as "raças em pé de igualdade /
perante a história", provando a sua "orientação liberal"206. Ora, uma análise"] Rüdiger von Bruch c Rainer A . fvíülJ.ur (org.),
mais criteriosa mostrou-nos justamente qüe essa suposta igualdade baseia- I H iitorikerlexikon, von der A ntike t is zum 20..
JaMíimderl, MtLnchen, Beck, 1991, p . 247-9. ■
se numa espécie de racismo, que visa, por intermédio da mistura das raças,
o branqueamento da sociedade e a paulatina exclusão das demais etnias,-- -n'-'Alice C anflb cnva,fíp. c it.,p . 217.
consideradas inferiores, no processo civilizador.
A m o W ehling, "M a r tiu s' K o tu e p l d er Ce-
sduchte",Sí<7i/wi fnhrbuch, S â o P a u lo , 42 :119-29,
FinaLmente, à luz da polêmica sobre o Novo Mundo, evidencía-se mais um 1 9 9 4 ,p. 122 e s s .
aspecto no pensamento dos nossos autores: não som ente são tenazes acerca
^ 'A n lo n eilo G erbi, op. cit., p . 4 1 2 ; . ;
da possibilidade da civilização nos trópicos, como também defendem a idéia
de o Brasil ter a sua própria história, cuja particularidade é a mistura das i,ÉPedro M oacyr C am pos, op. çi>., p- 215. ..

A VIACEM POO B kaSIL.: ESBOÇO DE UMA CIVILIZAÇÃO 183

m m s m * * *~"*
.ÚTBH

refere especificamente aos negros, compartilha uma posiçãom uito duvidot


sa quanto à sua influência na formação da nacionalidadc,v

Por outro lado, se n o tratado historiográfico M artius reitera a tese decaden-r


tista d e que os índios são "resíduo áe muito antiga, posto cjueperdida história", \
que viveram outrora num estado de "florescente civilização" decaída à de­
gradação187, ele contradiz a sua convicção acerca da incapacidade tia perfeo ;
tibihdade humana d o s índios, articulada na Viagem pelo Brasil e nos demais
textos. Nesse tratado, os índios adquirem posição positiva no caldeam ento,''
uma vez que lhes e igualmente atribuído o potencial da "perfecbbí lidade" i
Pois, preocupado.em apresentar um método pragm ático para a pesquisa
histórica, o naturalista sugenu: '
,SÍ "N ão M d úvida q ue o Brasil le ria tido u m
d esen volvim ento m u ito diferente s e m a in tró -
devia ser um ponto capital para o historiador reflexivo m ostrar como no
cliiçfl.o dos escravos negros- Se para o melhorou desenvolvimento sucessivo do Brasil se acham estabelecidas as condições
jnini o piar, este problem a sc resolverá para o h is ­ para o aperfeiçoamento de três raças humanas, que nesse pais são colocadas
toriador, depois de ter tid o ocasião d e po n d e ra r
tod as « s influencias, q u e tiveram o s escrav os
um a ao lado da outra, de maneira desconhecida na História Antiga, i* que
a frica n o s no d esen v o lv im e n to c iv il, m orai e devem servir-se d e meio e de fim188.
p o lític o da presente p o p u la çã o ." C . F. P v o n
M artiu s, op. cit., p. 103 (g rifo nosso). '■ '''
Todavia o que nos p o d en a parecer um a revisão das suas concepções setecen-
m
57 Jbidern, p. 92 (grifo ri ■riginal). tistas, profundamente marcadas pelas idéias de De Pauw, dificilm ente se
sustenta189. Em 1867, um ano antes de morrer, M artius reedita seus textos
'■v Ibide/U, p. B9 (grifo n osso ).
etnográficos sem m udar as suas convicções defendidas na década de 1830m
1WG uriosam ente, M .aríius cham a a a te n çS o p a rá O fato de o tratado Como se Deve Escrever a Histórm do Brasil destoar, até certo
o fa to d e que desde L afitau o núm ero d e m a te 1- ponto, dò conjurfiõcfã obfãTrTOito^rõ^VelníSíté se exp lica p.oi ele lersíd o
rial s o b re os in dígenas aum entou, ex ig in d o a s
"mí»is severas críticas": dever-se-ia ex clu ir uma-
êgcnfÕ^ara^ÕTHG^, em com vertei a cornos objetivos mtelectuaís almejados
s érie d e "alegações extravagantes, d e fatos in­ pélQ^pnáprios^integrantes do_lnsüfiIfòTCõnfóri^^ acima, o
teiram en te falsos (co m o , por ex em p lo , foram 1HGB nasce no contexto das preocupações da elite ilustrada brasileira que
e sp a lh a d a s p ela obra e s c a n d a lo s a .d e Mr. d e
Panu [s/cj)". Ibidem, p . 9 4 . P ro vavelm ente, o
naquele momento precisava escrever uma história do Brasil norteada pela
au to r queira d izer De P íu iw , e não D e Panu. O questão nacional191-. D è acordo com a tendência.do pensamenlo histonográ»
m esm o erro consta n a prim eira versão ed itada fieo europeu, Martius põe em evidência o que seria a "pi culiaridade histori-
n a-R ÍH G B , Rio de Ja n e iro . Janeiro d e 1845'.-24:
3 81 -4 0 3 , p. 38& ■■■
ca do poyò e da n açao", depreendertdo.da m escla das raças o "cunno muito
particular."192da história desse pais.A partir daí, segundo a anábse de Salga*
'*'C.F, P vonMarbus,Btiínigczur&hrtogrnplttç... do Guimarães, Martius esboçou: as linhas basicns de um 'projeto historlo-
. 1,1 A es s e respeito, qi v.supra, C ap itu lo I. •-
gráfico, capaz de garanfjxmma-rdgntidade especificaANacÕQ en ajrocesso
^ Ê ^ on staição-193
^ ld.. Como se deve.... p. 87-

ífl,Manoel tvfe Salgado Guimaraes. cp. cit., p.;


Em bora não se trate, a rigor, de uirt programa.de metodologia histórica, tal
16-7 como Jo sé Honóno Rodngues conclui, e Martius não ti « *•. '■ululi sii n i
A w Va At l AnTIDA DE SPIX E Ma RTÍUS . •

f»!

■fc- «H»
nos Diretórios/ e entre o Estado, exigia sem dúvida nova organização
para os índios81. ......... v , .

Os apontamentos de Spix e M artius sobre a questão indígena abrangem ju s­


tamente o período que se caracteriza pelas polêmicas em tomo da form a
institucional de "civilizar" os índios. A revogação do Diretório Pom balino,
em 1798, deixou certo vazio em relação à legislação indigenista, qu e v e io a
ser preenchido somente em 1845 com o "Regulamento acerca das M issõ es de
catequese e civilização dos índios". Em razão desse vácuo, o Diretório P o m ­
balino continuava atuando62. Com efeito, os comentários dos nossos autores
revelam uma série de contradições na form a de "civilizar" os índios é n a ~
conduta das autoridades governamentais, confirmando esse vazio: após a
expulsão dos jesuítas, "não fixou o governo nenhum, princípio geral em refe­
rência aos índios; ao contrário, deixou tudo n a indecisão". Valendo-se dessa
evidência, corroboram a necessidade de reativar as missões religiosas. N o
entanto, comparando com o tempo dos jesuítas, acham que o que os carm e­
litas e capuchinhos estavam fazendo também padecia da falta de "m o ralid a ­
d e " e de "princípios uniformes e enérgicos no seu modo de agir". Sublinh am
que mesmo uma legislação liberal, que concede aos índios os mesmos d irei­
tos de um cidadão livre, em nada melhorou a situação desses "infelizes" que
dependem da assistência de um "governo humanitário e sábio". Onde, in d a­
gam os naturalistas, existirá e se instituirá essa "assistência"? E qu estionam
abertamente a conquista: "que meios estão ainda hoje à disposição do E sta ­
do, para melhorar a sorte dos desgraçados filhos de um a terra que, até aqu i,
em vez de benefícios só recebeu da Europa cristã, guerra e devastação?"83

Com o vimos, Spix e M artius não são alheios às contradições do processo


colonizador e às dificuldades qu e se travaram entre os europeus e os ín co -
las originais. Criticam a conduta desrespeitosa dos colonos, o passado da
violenta conquista, a escravidão indígena, a violação da legislação, a p o lí­
tica dos aldeamentos, as m issões religiosas, as autoridades governam en­
tais e, enfim, conferem à colonização o papel de ter semeado tantas "se m e n ­ J /5irfe»i,vol. DL p. 44-5/930-U.'
tes da destruição" no N ovo M undo04, apareai£m ente^latm z^ndo-equase~.
M A esse. re s p e ito , q.v.
inocentando os índios de sua "d e cadência", da qual não cessam d e falar.
C unha, o p .a t ., p. 9-11;.-,,
Essa visão crítica não se restringe a Spix e Martius. Já HumBoTdt denirn-
ciou com veemência as com plicadas relações de poder da colonização his? “ Sp ix &Marhus.'cp.ci/.,.vol.Ur,p.'4É.-7/932-3;..'-
pânica, marcadas pelo espírito de ganância e exploração, como n ão sen tiu
81Ibuíein, vol Hp 168 /697 ' ,i
o m enor remorso em responsabilizar muitos colonos brancos e m ission á-
rios pela m iséria dos índios?5. Robert Southey, de cuja obra, como sab em o s; RR R Wuthcnow, üp ctí,p 40910,,

A. VIAGIM peuoBrasiu esboço de UMA C 1VIU2 AÇÂD 157

'v'll8J

"98
tiam. medo, ódio e desconfiança quando estavam entre colonos, que, com
"cobiça e egoísmo", os exploravam77. Esclarecem outrossim que muitas ini­
mizades entre índios e colonos eram resultado da "perfídia" dos últimos,
que presenteavam os primeiros com peças de roupas contaminadas de varí­
ola78. No litoral baiano, verificaram que os índios aldeados (ou mansos), fru­
to do trabalho dos jesuítas, foram, após a expulsão da ordem religiosa,
empregados para fazer guerrilha contra outras tribos79. Fato semelhante ocor­
ria em M inas Gerais, onde era permitido às autoridades militares recrutar os
puris e os coroados para praticar a guerra de "exterm ínio" contra os botocu-
dos. Em ambos os casos, na visão dos autores, a crítica a esse funesto serviço
não é a trágica dizimação da população autóctone e o desrespeito a sua for­ í
ma de vida, mas o fato de que essa política terra im pedido a "civilização"
dos "selvagens", perpetuando o seu "estado de selvageria e de degeneração
m oral"80.

N um a nota de rodapé, Spix e Martius exploram o assunto dos diretórios,


77 íbidem, vol. f, p. 240/391.
tendendo a criticá-los enquanto os comparam com a prática missionária. A
?4/I>/rftw,vol.II,p. 260/823. seu ver, os diretórios exploravam muito m ais os índios do que as missões.
Entre os missionários, devido à vida regrada, à m útua vigilância e à idade,
” S p ix e M artius referom -se aos índios bttgres
c o m o sen d o o s recém -cap tm ad o s e to m a d o s
os excessos e o desrespeito eram impedidos. Já os diretórios sustentavam-se
es c ra v o s , em bora isso n â o fo sse m ais p e rm iti­ por uma aparente filantropia, cujas bases, n a verdade, eram o "ód io " e o
do p ela legislação. ín dio tnnnx) era o a ld ea d o "ciú m e" das ordens religiosas. Os autóctones aldeados eram obrigados a
(íbidem, 1938, vo l., I, p. 258/278). Vale lem brar
q u e a q u estã o da escrav id ão ind ígena é m u ito
entregar praticamente a metade da produção agrícola ao diretor, e normal­
com plexa. A abolição po m b alin a foi d iv e rsa s mente estavam subjugados a "senhores absolutos" sobre os quais não havia
v e z e s rev o g a d a . D esd e 1 8 0 8 e ra p e r m itid o fiscalização alguma e cujo comportamento dificilm ente servia dc bom exem­
escrav izar, ain d a que tem porariam ente, o s bo-
to cu d o s e o s kaingang. D e um m odo g e ra l, a
plo para os índios. As aldeias tornavam-se verdadeiros meios d o monopólio
escrav id ão in d ígen a perpetuou -se até m ead os do diretor, que abusava da mão-de-obra indígena, incentivava o consumo
d o sé c u lo XIX . M anuela C arn eiro d a C u n h a , op. de cachaça, frequentemente por uma tavema que mantinha. E, quando al­
cit., p . 23 . So bre as categorias d os ín dios n o iní­
cio d o sécu lo X IX , havia o s ín dios "b r a v o s " e
gu m funcionário público lhes "opunha óbices à atuação", respondiam com
"d o m é s tic o s " ou "m a n s o s " . Hstos últim os se­ intrigas. Esses diretores, ainda conforme os naturalistas,
ria m os ín d ios sed enlarizad os em ald eam en to s
" s o b o 'ju g o d a s le is "’. O s b ra v o s era m aq ueles
con tra os q u a is as autorid ad es go vern am entais
praticavam as maiores crueldades, os m ais vergonhosos vícios, ao passo
tra va va m gu erra, in d o a lé m d essa s categorias, qu e apresentavam, como inacessíveis a toda civilização, os índios como
h a v ia o s ín d ios tupis ou g u aran is, já ex tin to s, criaturas irracionais; ora censuravam os seus pupilos, por não saberem
su p o stam en te assim ilados e q ue a p a recem co­
m o "em b lem a da n ova n a ç ã o ". A estes o p u -
econom izar o salário que recebiam para o trabalho, recusando assim
n ha-se o b o to c u d o , índio ain d a viv o , feroz, q ue entregar-lho; ora alegavam que eles queriam trabalhar e pagar o dízimo,
d ev eria ser com batido- lá., op, cit,, p . 7-8. ao passo que só tratavam de esquivar-se de prestar contas ao erário; ora
“ S p ix Sc M artius, ap. cit., v o l. Ü, p. 134/616 e I,
inventavam , até, que os índios tramavam, secretam ente revolta para as-
p . 2 4 0/ 391. senhorar-se da aldeia, etc. Tal discussão de todas as peias da moralidade
156 A nova A tiA ntida de S n x i M artius

m a m e*-*" * BBSIW k"- *****


dor, suas idéias foram basilares para a historiografia brasileira do século X ÍX W4.‘ José H on ório Rodrigues, " M a r tiu s " .-------—
Dentre os vários aspectos inovadores apresentados no Como se Deve Escrever, Vidn t>história, Rio cie Janeiro, C iviluuçflu B ra si .
leira, 1966, p . 158-6Í.
a História do Brasil, ressalta-se que Martius pode ser considerado o prim eiro /
autor que tratou da necessidade de pesquisar os indígenas e os negros, ao h ','r Para aprofun d ar n questão, q.v. Alice C an a-
'b r a v a , "V am h ag en , M artius e C npistran o de
lado dos portugueses, para se escrever uma história do país195.
A breu ", UI Coióquio de Fetudos Tettlo-Bnsikiras,
Parto Alegre, Ed itora da U niversidade Rio G ra n ­
Apesar de salientar qual era a particularidade da história do Brasil, n ão des­ d e do Su l, 1980: 215-85 (Separatn), p. 2 21-2.
Q uan to ao s aspectos per assim d izer in o vad o ­
carta ser ela um "ram o" da história de Portugal. Contudo esse aspecto não
res de M artius p ara o pensam ento historiográ-
priva M artius de formular a inédita sugestão de tazerT ^ã^is^d m Te^Ó nãí, fico b ra s ile iro , v a le lem brar q ue i> po lêm ico
conteinple ^ áquelagporçoeFdy^is^uéTp^r analogia da_sua natureza Sílv io Romeiro arg iiiu ju stam en ie n o sen tid o
contrário. A seu ver, "a áivitõo do país pvr zonas
físfca7pertenceh\ umás ^outras^irpara tanto, era imprescindível que o his-
(refcrc-se n o c stu d o p o rre g iô e sg eo -h istó ric as],
tóriadur 'vrajagge^peíõ^país para conhec^ã~geografta;7Tiãtürez^é’ã £ Õ ^ lâ -" ’ a necessidade de considerar ns três raços qut consti­
ção,e perceber as relações erilroé^êsTãlí^^srE^íaniBêm. insiste no papel do tuiram opovo" são "íiuascjisni triviaUf.uiias", não
era preciso que um M artius " n o s viesse ensinar
WstorTadurnrquein càtrerianfesp^ffar^rf(^ ã7as virtudes cívicas" no leitor.
d uas coisas evid entissim cis,correntes em iodos
Pois, diante do perigo dos republicanos, extrapola Martius, os historiadores, o s cronistas q ue trataram de nossos fad os, em
tinham a obrigação de redigir livros estritamente destinados a convencê-los to d o s os c ien tista s que v e rsaram c o isa s n a ­
c ion ais an tes dele" (p. 232, grifo no original).
"por um a maneira destra da inexeqiiibilidade de seus projetos utópicos" e N o artigo, Rom ero desm antela prim eiram ente
persuadi-los da necessidade da monarquia num país onde h ã "tã o grande n necessid ad e de estu dar o país con fn m ie r e ­
número de escravos". Finalmente, o historiador deveria "prestar um verda­ g iõ e s q u e se d iferen ciam u m a s d o s o u tra s.
N um a seg un da seção, enrica a "fan tasia rom ân ­
deiro serviço à sua pátria", escrevendo como "autor monárquico-constitu- tica (de M artius] d e acreditar no wsi/f/mío mara­
cional", reafirmando que o Brasil é formado de províncias fêcíerâtivas>puja vilhoso da mistura de raças inteiraimvlo diversas"
união política é resultado de uma integração orgânica proviaapcTFuma sóli­ (p. 245, grifo no origin al). Rom eru1_qui[-..ries-sa
fiis c d e sua W.d.acp.rBRarti]lyya_as tesrsarian is-
da m onarquia196. tas e a o p in ião de q u e as nuscigen^a^ãqj.om~TÕ:
Rros"ê7n'dios resultavn. npõs d uas nu três g e -
N ão se trata enfim de um equívoco identificar na Viagem pelo Brasil os esbo­ raçõej,- e n v " bastard os in fécunctõs*, eviriente-
ãV ènféintfíã d e se npçn .io g d au sav x-lau atu ra-
ços desse projeto, a despeito das diferenças concernentes ao papel dos índios lista bâvnro. A d em ais, reputa ser o licitado de
e dos negros. Primeiramente, o autor deu continuidade_à importância da M artius caren te a c estudo, cie fatos, ah sd u ta-
m onarquia como fãtõr d e ln legração Qo^têmitório nacional^ aTém_de serio m en te in d eciso e s e m na da d e novo. Ao longo
d o artigo, Rom ero procura d em onstraras falhas
frrelfrOí1Sistema para urri7<pairôri3riFíruiri tão grande número de escravos"- d e M artius acerca d o estudo que propõe sobre
Em segundo lugar, M artius aprotuhdÕ u^jem gi^m isçigenaçãoriom b uma o s índios, os portugueses e o s n egros. Por fim ,
alavanca para a civilização, d^ X e ’que conduzida pelo P P P luguêâ^ppr 'este" o pen sad or brasileiro escusa as lim itações do
c o n h e cim en to a n tro p o ló g ic o d e M artiu s, as
p ertencer'segundo ajsistemática^Hos^aütores. à ráça caucâsica. Está, como q u ais decorriam d o próprio perío d o e m q u e e s -,:.
demonstramos anteriormente, desfrutaiiã^è^O penófídade^síquica e so­ creveu o tex to. R om ero aprov eita a d eixa p ára
m ática sobre as outras raças. E, por meio dessa superioridade, que resultaria ex p or suas teses racis tas, basead o em O to A m o u
e ind iretam ente em Gobmcau> Lapouje; Niútz-'
na "verdadeira humanidade" ou "humanidade superior", se justificaria a s c h e e S c e c k , reite ran d oo s m ales d a m iscigen a -1
irradiação da civilização européia pelo mundo afora. Apesar de seu potenn çSo com a s “raças in fe r ir e s " «p le itean d o , p a ia 1:
ciaí destruidor, ela significava, no olhar desses alemães, o caminho da "cu l- X
clricOTtingentcsjmigTatórios superiores". Sílvio ;
tu ra" ( Bildung ) e da "salvação" para esses que ainda não haviam, sido H Romèroj "Carlos Frederico R SiTKíàrriuse suas
"agraciados" por elas. iddins acerca da Hístúrií- do Brasil", Revista 'ida -

A viagem Aui B rasil: esboço oe uma civiuzaçAo 181


tando forças republicanas e separatistas da Confederação do Equador, pas­
sando pelo fiasco das ofensivas na Banda Oriental, Província Cisplatina,
culminando na guerra entre o Brasil e a Argentina, além das dificuldades
econômicas do país, Martius não quer saber, Ignora igualn^nig-QS-conflitos
sociais da sociedade escravocrata., mostrando^se-absoluiamente-conivenie
cQmpJséLsisíemar'

Martius talvez tenha-se inspirado diretamente no conservadorismo de Sou-


they. A History o/Brazií previa "boas e gloriosas perspectivas para o futuro,
Í desde que escapasse à praga da revolução, que viria (...) term inar por dividir
o país em inúmeros e insignificantes Estados". Influenciado pelas teorias de
( ' Edmund Burke, Southey acreditava num "crescimento histórico, necessário,
lento, contínuo, (...) que envolvia o tempo, mil fatores de integração, o lento
enraizamento dos costumes e das tradições, até que esboçassem os germes
de um futuro Estado nacional"1'’9.

Essa repulsa a qualquer movimento ou levante de caráter revolucionário dá-


se, provavelmente, em resposta a uma postura contrária à Revolução Fran­
cesa e às conseqüencias políticas, sociais e econômicas por ela desencadeadas.
. De um modo geral, a burguesia conservadora, muitpassustada_com a_demo-
c-radcDpõIífícã, era a favor de uma monarquia constitucional com sufrágio
quando a situação urgisse, "qualquer.absolutism o" retró­
grado valería para garantir os seus interesses150. E.,a atitvi.de ideológica dos
n ossos-a v-vteres-tam o em .se_almava com osproprios .mandantes. E necessário
lem brar o contexto poLítico no qual a expedição se realiza e para quem, afi­
nal, os viajantes devem os seus resultados: ao reiM axim iliano José Id a Ba-
viera. Foi ele quem acertou com a casa real austríaca a partida dos bávaros
R. Southvy 'ipud M O dil.i d a Silva Dias, op. para o Brasil, quando do casamento de LeopqldmjLpoinp£dra._Na retaguar­
cii., p. 231.
da da monarquia austríaca, atuava o póderosopríncipe M e tte m iclt^ n c a r-
IWI£. n obsb aw m , op. cil., p. 261. M ich el I.òw y nação da restauração", conhecido pelo seu conservaHõrTsnTo e sua política
d iferencia v á ria s v e rte n te s d o R o m a n tism o . repressiva e anti-revolucionária151.
D entre elas, os representantes da "ro m a n tism o
conservador", que, inspirados em Burke, d ese­
javam o restabelecim ento do m od elo social o ; ;M as, voltando às projeções que traçam para o Brasil, Spix e M artius conver-
p olítico d a sreln çó csp ré-ca p ita lista se capitalis­ jjgem para uma resposta à indagação que formularam em Salvador. Explicam
tas a n terio resà R evolução Francesa cm m esm o
a m anutenção da so cie d a d e e da E stado nos
,|que nesse paulatino processo de "aperfeiçoamento" da nação, marcado pela
países que não foram atin gid os pela R evolução, liideologia do progresso explicitamente liberal conservadora e monarquista,
com o a Inglaterra t* a Alem anha. Lí., op. dl., p. |apostam não somente n as esplêndidas "disposições naturais", mas também
U.
na "mistura das raças", que concorre para o bem de um "pov o inteligente,
IS1C f.T. Nippmley, op. a t., p. 316 r- 362. vivaz e forte". Essa tímida alusão à mistura das raças como algo positivo

178 A nova A ti.àn tid a de S n* c M artius


m anizar" eram eficientes para "elevar à verdadeira humanidade esses d e ­
caídos filhos da Am érica", então restavam poucas esperanças52.

Em outro lugar, resgatam as esperanças de que um a "bem orientada ativida­


de do clero, sem egoísmo" promete resultados favoráveis para a tarefa de
"civilizar" os íncolas americanos” . Contudo logo refutam ta l opinião para
eles otim ista, lamentando que as "boas intenções" dos europeus e seu singu­
lar em penho em "civilizar" os "selvagens" foram em vão. O que vêem n a
cidade d e Belém é ensejo para esmiuçar a situação dos índios; embora con­
denassem vários aspectos da colonização portuguesa, asseveram que o d e­
senvolvimento da "raça americana" foi solapado por inúmeras desgraças,
criando dificuldades aos mais "justos empreendimentos". Com implacável
convicção; declaram que

nem o s sentimentos cristãos dos reis nem a disposição dos estadistas, nem
a proteção e poder da Igreja puderam levantar os índios (....) do estado
selvagem em que foram encontrados, para o benefício da civilização e do
bem -estar cívico; como dantes, permanece essa raça rebaixada, sofredora,
y
sem significação no conjunto dos outros, joguete dos interesses e da cobi­
ça de particulares, um peso morto para a comunidade, que de má vontade
a suporta94. ■ • .. .- >■
r- Ibidem, vot. II, p . 184-5/692; No rom ana.’ Frei -
Prova desse fiasco, dentre tantas outras, seriam os índios "mansos" que vivem Apaloruo, M aih u s expressa a descrença n o s u - -
à margem da sociedade de Belém, "semi-civilizados, sem conhecimento, nem cesso da civilização d o s índios: o v ia ja n te a je - ::
m ao H arto m an (alter ego d e -Mftrluis) d ia lo g a ..
instrução, nem ambição", dedicados ao dolcefar niente, às mulheres e à cacha­
com fre i A polôm o sobre a p o ssib ilid ad e e :o -
ça95. Finalmente, a devastação e a descaracterização cultural dos nativos tam­ sen tid o d e cateq uizar os índios. Ao p a s s o q u e.o
bém afetavam diretamente os propósitos dos naturalistas. Mesmo no interior m issionário tem f é n a sua obra e ach a q u e tr e - • >■
zen to s anos é pouco para que-"a vida esp iritu al- •■/•
das províncias do Pará e do rio Negro verificara que os índios nada mais res­
d a h um an id ad e am erican a'' seja .'p u r ific a d a ,
guardavam de sua "vida natural e primitiva, com liberdade de movimento" e enobrecida, transform ada , o v ia ja n te.a le m ã o :
de "seus costum es". Toparam apenas com resquícios de tribos, enfermas e tem e q u e os ' am ericanos deixem d e v e z -.este .-.-
c en á n o , en tregan d o a outras raças, e s p iritu a l- -.
alteradas. E de outras restavam somente osnom es, de forma que suas "inves­
m ente m ais em ancipadas, o seu rapai, a n te s q u e
tigações etnográficas se transformaram envdiscussões arqueológicas"96. o cristianism o c on siga recebê-lpsa to d o s n o s e u v--:;
regaço " ld ,op cit, p 93 j - >■ ' *

Para contatar povos intocados pela colonização, urgia afastar-se dos litorais ' \
,5Spix & Martius, op.cú. vol III,p 26/903-
e das m argens dos grandes rios. Navegando o rio Japurá acima, separado de
Spix,M artius julga-se finalmente no "território incontestado dos aborígines n Ibiáeni.val. m ,p ; 28 /905.- .
d a Am érica, ainda não tocado pelo sopro da civilização européia [europaische
^ ibidem, vol. ID,p..26/902v:.- >;
Civilisation]", Essa idéia continha "certo encanto" e imprimia um "colorido
particular".à situação. Vê-se "cercado por natureza selváhca e homens pri- KW id em ,v oim ,p .9 S /W 2 9 ^ ,

A VIAGEM PELO BRASIL: ESBOÇO K VMA qVJLlZAÇAO 159


os nossos autores fizeram uso, foi mais longe com suas ressalvas à história
da conquista e a ocupação lusitana rio Brasil. Para tanto, expôs as deficiências
da metrópole, criticando o "despotism o português" como consequência das .3
superstições católicas, do tribunal da Inquisição e da falta de justiça. A colo- • ;í
nização, no seu entender, não deveria ser um empreendimento de conquista j
e exploração comercial, tal qual a lusitana o era, mas u m "empreendimento :
cultural, civilizador e hum anitário"85, o que, evidentemente, não atenua os f
propósitos eurocêntricos inerentes ao processo colonizador.

Spix e Martius verificam o lado devastador da colonização para com a popiri


lação indígena; reconhecem que a "decadência moral e física" dos índios os
jo g a rmma "vida am bígua", "tristíssim a", n a qual perdem os seus costumes
originais87, esquecem sua língua, dissipam "tod a a energia m oral", ou mes­
m o se extinguem por completo88. E, em última instância, sua situação de
"meío-independentes" forma um Estado dentro de um Estado, pois não "se
assimilam com os elementos e a vida do Estado, e não possuem influência
sobre a comunidade". D e um modo geral, as autoridades nada fizeram alérrí
de tomá-los " o mais inofensivos possível para os outros habitantes: quebra­
* M aria CMíla L eite D ias, O fardo do homem ram os dentes à fera, sem a dom esticar"69. Por ou tro lado, lim itados ideologi­
branco. Soulhep, historiador do Brasil, S a o Paulo,
N acional, 1974, p . 230-1.
camente pelo seu "racism o da Ilustração", jam ais passaria pela cabeça dos
viajantes bávaros perguntar aos próprios índios o que eles pensavam e sen­
" S p ix fi M a rtin s, op., cit. vol. 1, p. 119/195,131 / tiam a respeito disso tudo. Tanto que Spix e Martius sugerem que um pater­
213 e II, p . 248/805.
nalismo por assim dizer humanitário e cristão seria talvez um a saída para
essa triste situação: somente por meio de uma "grande força moral se pode­
Ibidem, vol. JI, p . 22 6 / 7 6 3 e vol- IH , p . 211/
1208. Kl ría esperar qualquer m udança favorável nesses desfavorecidos filhos das
89 Ibidm , vol. U, p . 134/616.
selvas; mas de tal energia só raram ente dispõe o inspetor ou o sacerdote"90;

" Ibidem, vol. H, p . 248/805. N a Bahia, os viajantes tiveram a rara ocasião de conhecer um aldeamento;
n M uito p rov a v elm en te, esse m issio nário capu­
dirigido por um missionário capuchinho, cujo trabalho traduzia essa "força
ch in h o ta m bém serv iu com o fonte d e in spira­ m oral", instruindo os índios nas doutrinas elementares da fé católica e na
ç ã o para M a rliu s ela b o ra r o personagem Frei agricultura. Se havia alguém capaz de "converter esses irrequietos e incultos •
Apolftnio, d o rom a n ce q u e leva o m esm o nome
(d ados so bre o rom a n ce, q.v. supra,C a p ítu lo D.
selvagens", com entam os viajantes, "aos sentimentos m ais suaves e suscetí­
D e fato, M a rtiu s con heceu um Fiei Apolônio, veis à voz da religião, não podería ser senão aquele digno ancião".91 N o en-
n o interior d a B ah ia. Fo ra ele quem f e z d a cape­ tanto, as histórias de um a índia que matou seu filho e de outra que desenterrou
la d e Santa C ru?., n o lendário M on te Santo (de
Antôruo C on selh eiro ), p o n to d e rem aria (11, p.
os restos mortais d o filho predileto, cozinhando-os num a sopa, que tomou,
2 1 3 ). O rom a n ce; p o ré m , p assa-se rio rio Japu- devolvendo os ossos limpos à terra, eram indicadores fortíssimos para negar
r á , por o nd e M a rtiu s v iajo u sem a com panhia a capacidade de deixar o seu estado de "selvageria". Em tom de censura, os
de Spix. B o p ro ta g o n ista príndpal, F r e i Àpolô-
ra o , é d e o rig e m portu gu esa e p erten cia & or­
viajantes comentam: "Q ue excessos horrorosos dos sentim entos, que quase
d e m d o s carm elitas. ultrapassam as raias da hum anidade". Se nem esses m eios religiosos de "hu-

158 A nova Atlíntida de S pix e M artius

m m ***-*»
F

para o desenvolvimento do jovem país, como fator de integração entre os


diferentes grupos étnicos, M artius desenvolveu no tratado Como se Deve Es*
crever a História do Brasil. Vale lem brar que esse texto, de 1843, foi destinado
a u m concurso promovido pelo recém-fundado Instituto Histórico e G eográ­
fico Brasileiro, pelo qual, aliás, fo i premiado, em 1847182.

Se n a Viagem pelo Brasil Martius detalha pouco as particularidades dessa


miscigenação, nesse tratado explicita o papel destinado a cada uma d as três
raças: o português, por ter sido o "descobridor, conquistador e sen h or", por
ser responsável pelas "condições e garantias morais e físicas para um reino
independente", é visto como o "m ais poderoso e essencial motor" no desen ­
volvimento do país; os indígenas e os negros "reagiram sobre a raça predo­
m inante", embora igualmente tivessem concorrido para o "desenvolvimento
físico, moral e civil da totalidade da população". N o Brasil, o "gênio d a his­ 'MA e s s e respeito v.'íiipm, C a p ítu lo JL
tória", que conduz o gênero humano, sabiamente lançou mão da m escla das
raças, "para alcançar os mais sublimes fins na crdein do m undo". E, nesse 1115C. F. P. von M artius, "C o m o-se d eve...", p.
87-8. . . . . . .
sentido, afirma peremptoriamente que "jam ais" será
'st N o m eio p o lítico e in telectu al brasileiro, a
d iscussão do "b ran q u eam en to " d a so cie d a d e
permitido duvidar que a vontade da providência predestinou ao Brasil
brasileira tomou enorm e fô leg o no período a b o ­
esta mescla. O sangue português, em um poderoso rio, deverá absorver licion ista, quan do tam bém o pensam ento ia -
o s peqiiehos confluentes das raças índia e etiópica183. cista já fora sistem atizado e m várias v e rte n te s.
Seg un do Th om as Sk id m o re, a tese d o b r a n -
quoam ento bascava-se na supo sição d a .supe­
No entanto, Martius sabia que a maioria da população não era branca. C o m ­ rioridade branca e n o u so d o s "eu fen u sm os r a ­
preender os negros e índios com o "pequenos confluentes" era quase uma ças 'm a is ad ian tad as' e 'm eno s. a d ia n ta d a s '".
Acreditava-se que, por nicip da m iscigen ação ,,
força de expressão para justificar o processo de " branqueamento" 184 d a po­
o negro desaparecería e a p o p u lação ficaria p r o ­
pulação, desejado por Martius. gressivom ente m ais clara. O s m iscigeuad o ‘*-|y*<a-
seriiim prod uto da d egenerarão,.m as estariam ,
aptos a prod uzir d cscen d cn tê ^ c ã dÃJÇÕZ-.b3ãIs^
O autor também quer fazer crer que no. Brasil, em comparação com outros
J ^rncõsTis s o s e êxpliraria.em p arte pel o fa to d e .
estados do Novo Mundo, ao négro foi permitido "influir no desenvolvim en­ 5 gene branco s e r mais forte e.enrt p a rte p o rq u e
to da nacionalidade brasileira" e que as duas "raças inferiores" (negros e 'SrpnrcmTWãnc^
índios) não foram excluídas do "movimento geral" ou consideradas com o 5 5353
.P XíQi c çfiõ. f íio m z s Skid m ore, Preto nó ■
Bronco; trad. Rau l cie Sá Barbosa,. Rio d e Ja n e ir ■
"in d ign as" por causa de seu nascimento. Nesse sentido, como M. Salgado ro, Paz e Terra, 1976, p. 81. Vale notar q u e M a r-,
G uim arães observa, foi esse naturalista quem lançou os "alicerces para a tius n ão explica o fen ôm en o da m estiçagem e ,•
do d ecorrente branqueam ento.d o ponto de vis-r
construção do nosso mito da democracia racial"185. E valería ainda perguntar
ta biológ ico. N e sse sentido, as suas id éia s s ê |^ -
de onde .Martius tirou essas informações, a respeito dos países americanos, pautam em conceitos filo sofico s, e m c c v r e n d a j v
um a vez que, desde o período das independências, a escravidão estava sen­ com o "racism o da I lu s tr a ç ã o '. . . •-

do sistematicamente eliminada, ao passo que no Brasil ela ainda iria durar


,Ki M anoel L u ís Salgado G uim arães, vp. u t p ..
até quase o final do século, perpetuando um sistema que em nada podería 16. Ver tam bém RpbertoA^ntura,£sf/(ní>o/iic/í/..., .
emprestar dignidade aos cativos. E mais adiante,no mesmo texto, quando se p. 42, e Lilia M orítz Schw arcz, cp, cii, p . It2-3í.

A viacem pelo B rasil : esooço de uma civilização


N ota-se que os autores dão especial destaque à difícil relação do europeu
imigrante com a rica natureza dos trópicos, que em muitos momentos é sinô­
nimo de fome, pobreza, desamparo, morte, doença, perigo e ameaça. Sobre­
tudo para o europeu do norte que se choca com o "clim a estranho, solo
estranho, modo de vida e alimentação estranhos" e o idioma desconhecido,
v Mas esses aspectos negativos não são razão para relegar o país ao estado de
; detração, conforme o pensamento de século XVTII. E sim para desafiar o
potencial humano de dominar essa exuberante natureza, realizando o gesto
■ fundador da civilização e destarte europeizando a própria paisagem.

Para tanto, exige-se o "m ais alto esforço: a união de inúmeros habitantes em
cooperação diligente" e não pelo cultivador isoladb172. E caberia às autorida­
des governamentais procurar concentrar em certas regiões o maior número
de colonos, incentivando o aumento populacional e as atividades industriais.
O ganho seria mútuo. Para o governo, a proximidade entre os colonos facili­
taria a administração pública, a arrecadação de impostos, a regularização da
milícia e o recrutamento. Para os colonos, fomentar-se-iam a "civilização",
"a observação da lei", a "influência benéfica da sociedade", "moral, patrio­
tismo e cultura"173.

Assim, acreditam os viajantes, a América tropical será "desbravada" e tor-


Ibuícni, 1938, v o l., II, p. 7 9 -8 0 / IIl,p . LVI. "Co- nar-se-á "habitável", de forma que seu significado naturalista ( naturhistori-
opcrnçáo d ilig e n te " é tradução para "b ü tg erli-
chem H cjíssü" , q u e a rigor significa "d ilig ên cia
scheBedeutung) em relação ao Velho Mundo passará a ser histórico e civilizar
bu rg iiefa". do (geschichtliche undallgemein biirgerliche Bedeutung). Nessa passagem decisi­
va paraocenário da historiada iratiirezados trópicos encontrarão seu devido
;r’ M i m . vol. 1, p , 118/194.
papel:.estar subõTdínada aos seres humanos, ~põTs7como já explicado, são
" 1 !• im portante lem brarm os q u e no tem po de elejip^seres.íP_aisjoeHerfos'd'ãOÍaç^7ehíphestahdõ "áltadignid adeàjiatur
Spix e M artins já era sabido que alguns produ­
t q^z;y.'_quejqsçerca: Cnm]ê^ que o indígena am e-
tos agrícolas d o s indígenas am erica n o s tinham
contribuído p a ra a transform ação do m apa dt’- /■-
> rícan o — por não ser capaz de dominar a natureza e enobrecê-la por m eio da
m ográfico europeu. Eira clara n relevância, por êülturaJ^jferra^y. —^g£j;.4 e>^
exemplo, da b a ta ta n a A lem anha e n o n orte da óónform epsua concepção de.raçq_e d_e civilização, "aos povos de raça ca u cá-
Europa. M as os n ossos v iajan tes estíio dem a­
siad am ente c om p ro m etid o s com a su a ideo­
sica fê éspecialmente às de origem românica dê conjunto com às raças anglcP
lo gia, q ue se esq u e cem d e s s e s im p o rta n tes essas forças formadoras, a América
aspectos. E a o consid erarm os a h istó ria da Re­ conquistará, aos poucos, a sua determinação (Bestimmung) histórica, da qual
volução A g rícola, tão fundam entai p a ra a his­
tória da h u m a n id a d e, verifica-se que d e seus
o seu habitante original não fará mais parte175. Logo, o fio que tece a malha
sete focos origin ais, dois en con tram -se rm Am é­ da história do Brasil foi fiado pelas m ãos dos portugueses e demais imigran­
rica (A n d e se M esoam énca) e n enh u m n a Eu­ tes europeus e dos negros, ao passo que os índios definham pela sua própria
ropa.
condição, determinada p ela história da natureza, de n ão absorver a civili­
1,5 Ibiíiem, 1938, vol. II, p. 79-80/111, p. LVI. zarão. "

176 A wtm A tiA mida Dt Svi.x e Martius


inferno do que humana": a dança de antropófagos "depravados, exaltados
pelo gozo do triunfo e pela sensualidade". Diante do "bacanal" dessa "sú cia
desenfreada", sentia sua vida ameaçada. A "degeneração destes brutos" e
sua "barbaridade" o naturalista quer demonstrar, valendo-se do suposto caso
d e uma madrasta que, dominada pelo ódio, teria negado alimento ao b e b ê
d e seis meses, além de o ter torturado com talhos em brasa, quando ele c h o ­
rava de fom e101.

A caracterização que Martius faz desses índios explicita de que forma co n -'
trapõe valores m orais do mundo ocidental cristão ao dos índios, para provai
que a "alm a desses homens primitivos decaídos não é im ortal": além de n ã o
terem "id éia do Deus,bondoso, p a i e criador de todas as coisas", sua existên­
cia é inconsciente, cuja razão é a fome e a sede. Por. isso, a vida não é u m
grande bem e a m orte lhes é indiferente. Quando morrem, restam o "ódio e
a vingança", pois o "laço do am or" é fraco:

em vez de ternura, cio; em vez de afeição, necessidade; os mistérios d a


geração, profanados às claras;. (...) em vez de pudor, vaidade; o casam en­ Ibldern, vol. III, p . 246-7/1267-8.
to, um concubinato que se desfaz, segundo o capricho; a preocupação d o
lü5ífaid em ,vo U H ,p . 247/ 1267-3.
pai de família é seu estômago, quando cheio este, crua concupiscência;
seu passatem po, glutonaria e ócio apático; (...) os seus prazeres, repug­ 103 O piruao sem elhante lê -se e m Vrei Apolôtiia: '• ■
H arto m an pensou co m ' m elan colia e u m sen ti- • : ■
nante lascívia; em vez de amizade, camaradagem; lealdade, enquanto n ã o
m ento m isto d e dor e rep u lsa (...) n o em b o ta - •
há tentação; relações subordinadas ao egoísmo; em vez de patriotismo,
w m m

m erw o,nalim itação grosseira, anim alesca desse» - •


inconsciente confiança nos parentes da mesma língua; (...) mutismo, p o r desleixad o s filh os d as selv as. C om o h avia una-
ginad o d iferentes esses filh os d a natu reza; de
pobreza de idéias; indedsãp>,por falta d e discernimento102.
acord o c o m as d escriçõ es id ealizad as d e u m ':
R o u sseau . O nde estava aq ui aquele ser íntegro/
D essa descrição depreciativa, nada sobra da "natural bondade" e da "in ata puro , u su fru in d o das van tag e n s de u m a n a tu r
reza c a rin h o s a e cu id a d o s a ? " ld.,cp. a i - , p . 118-
b o a índole" às quais se referiu anteriormente, para "imaginar o homem n o
9. E m o u tra passagem fa z alu sa o sem elh an te às: -
estado primitivo d a natureza". Ao mesmo tempo em que indiretamente re-r ‘ c ria tu ra s da fan tasia- d e um R o usseau ejn -re- •;
futa o mito d o bom selvagem, desnuda sua equivocada compreensão das idéias laçào a o s selvagens;'. ld.,op, cif.,p - 9 2 ;:.; .v - :

de Rousseau. Em um a palestra datada de 1838, sobre o passado e o futur o


,0 ,C. E P . v o n M a íh u s, ; A e t h n o g r a f i a d g A m # ■■■v;v
dos índios americãnosJM affius a i t i c a^ fdqsofq genebrino. julgarido ser "fal­ rica e s p e c í aim ente do B ra z il — O p a ssad o eo-"-
sa*^, apesarcie "encantadora", a concepção d a " inocência paraâisíãc^^dbs *'ha- futuro d o hom em am erican o ", tr a d A .U ifg re n , . :- '
revisão T . Sam paio, R1HGSP, São Paulo,/X:S35>.- -•
menu dü. mtutew'TT^natiifalistãbâvaro confessaquéTámbem compartilhava 62. 1904, p . 536-7 (gn fo n o o n g in a l). C han ujm o s ' O v; ,
■ãemelhãnfês " i déias preconcebidas", e que predsoíi viver"muitotempo” entre a ate n çã o para o subtítulo d á vejrsâo b ra sile ira ;«
õ rírn iic^ arrtes^ d ê^ ^ b eifaf^ H e uns?Tánipsém c^^ n o q u a lo ano da palestra t .M errodo 1 ^ 1 8 8 8
O c o rre to é 1838, conform e. C . F .E
tragt zur Eíl > ' -n
s e n g ã r i ^ v I n ^ ã ^ ê flg £ j^ d g g g | )g 5 3 £ ã o " d a g Q w a ? * . Com isso, n o Brasihen. le ip z ig , F m d n c h -F le is c h e r , .18é7i,v:c:.rA;;
entanto, n ão corrigiu o mal-entendido acerca do ideário rousseaumano. Prir voL L * •> *■

A viagem reLO B rasil: esboço de uma civilização 161


jlr^' '' mitivos em toda sua rudeza [ruhe Naturmenscheri}". E consegue cham á-los de
"hom ens" som ente pelo "que se encontra na sua alma como um ponto de
cristalização". Pois refere-se a esses habitantes como "inteiram ente imunes
daquela civilização, que no curso do progresso havia-se sobreposto com mil
facetas e tonalidades àquele núcleo inalterável da hum anidade"97, imagi-
n an d oestarem contatocom os "representantes" mais "prim itivos" dahistó-
ria da evolução humana.

Seria um equívoco, porém, pensar que nossos viajantes descobriram tribos


de fato isoladas do contato com os colonizadores. Os juris, povo que vivia
nessa região n ão tocada pelo "sopro da civilizarão", com o qual Martius
en tra em contato, já mantinham relações com os "brancos"98. 0 mesm o ocor­
ria com uma tribo dos miranhas, a nação mais poderosa do rio Japurá. Mar-
tíus estranha um dos chefes, que usava roupas, com ia do prato de louça e
fazia diariamente a pouca barba. Esse estado "serní-civilizado" ele teria con­
quistado pelo seu convívio com os brancos, muito provavelmente p o r nego­
ciar índios escravos. Mas os seus "súditos" continuavam em seu estado
originai.

M artius ressalta o quanto esses índios se diferenciavam dos demais que visi­
tara ao longo da expedição pelo Brasil. Ficou espantado ao ser recebido com
Lm "um a vivacidade, uma alegre, ruidosa animação, que m uito contrastava com
a gravidade soturn a" das outras tribos que conheceu. O naturalista percebe
} nesses m iranhas uma ''ingenuidade" e um "caloroso interesse" por tudo que
\dizia respeito a ele e seu guia, capitão Zani, um imigrante italiano que se
I tom ou comerciante no Amazonas. Essas características positivas o viajante
I as atribuiu ao "seu estado de primitiva liberdade, distantes dos brancos"
rI v V cf-* tv W ; Embora afirm asse serem antropófagos e "rudes até a bestialidade", não.
v Va" | tinham aquela "perfídia, timidez e mesquinhez de caráter, que fazem mui-
\ tas vezes dos índios aldeados um objeto de desprezo" dos colonos brancos5?,
1 / tf j E, amenizando qualquer juízo depreciativo, acredita que a "expressão da

i ” lbidem, vol. 01, p. 226/1234-5.


|m ais ilimitada rudez" desses índios ostentava ígualmente a "natural bonda-
j d e". Bondade que seria imprescindível para que s e pu desse "im aginar o
I homem no estado primitivo da natureza". Fala mesmo de uma "inata boa
í L w Jbidm , vol. JII,p . 226/1235.
1 índole", que também minim izava o medo que podería ter desses antropó­
,
59Ibldem vol. m ,p . 230/1242. fagos100.
,aiWtdejrt, vo l. 1U, p. 2 3 2 / 1 2 4 3 . N a v e rs ã o d e
. 1982,o "inata" está grifado, ao contrário do texto Essa visão, contudo, não se estende a outros índios da mesma região, tam- .
' original. Ibidcm, vol. M, p. 236/1250. bém miranhas. Martius é testemunha de um a "cena" que julga ser "mais de

A nova A tlAnto a de S pix e M artius

aarn e**-
N a passagem referente à despedida do Brasil, ev ocam mais uma vez a m etá­
fora do "espelho mágico": os viajantes afirmam que nos três anos em que
exploraram fisicamente o Brasil também atravessaram, "em espírito", "to ­
dos os graus do seu desenvolvimento, desde as condições de vida primitivas
e como que patriarcais, até o estado que, no novo império, haviam alcançado
burguesia, Estado e Igreja". E, reiterando o sentido pelo qual a civilização
avança, expressam o forte desejo de que o

magnífico país, tão ricamente dotado, viesse a amadurecer, demorada e


seguramente, para a meta de seu aperfeiçoamento, não por convulsões e
lutas violentas, m as com equilíbrio e reconciliação dos elementos adver­
sos, que existem em todos os estados176.

Estas palavras Martius escreve praticamente dez anos após o retorno da


viagem, ou seja, em 1830. E, considerando a situação r jlítica dos países am e­
ricanos vizinhos — "que se debatiam nas dores do lenascim ento político" —
de Portugal, a antiga "m ãe-pátria", "reduzida à impotência, pelo desenca­
dear de sucessos fatais", e da Europa, abalada pela "mais pavorosa convul­
são"—-fazendo alusão às conseqüências políticas e sociais da Revolução de
1830 —, o autor, rente ao seu conservadorismo político, corrobora que o Bra­
sil "dava passos seguros, em prol da sua organização e consolidação inter­
n a s"17'.

Embora reconheça a existência de "elementos adversos", Martius não os es­


pecifica, transmitindo a impressão de que a transição de colônia para um
país independente tivesse ocorrido sem maiores dificuldades. A "m eta de
seu aperfeiçoamento" é conduzida por um "bom gênio", sinalizando o fim
do "antigo sistema colonial", que impedia o "progresso espiritual" e opri­
mia a "força moral" dos habitantes. O autor vislumbra uma sociedade volta­
da a valores burgueses tais com o o patriotismo, o amor-próprio e um a
juventude que, motivada, procura ciência e educação. E, do ponto vista eco­
nômico, aposta num reino que pode competir com o comércio mundial. Fi­
nalmente, ao "lem e" desse "venturoso país" estaria o monarca, que, "enérgico
e querendo bem", o dirige178.

Em comparação com as colônias espanholas que sc csíacelaram em vários ííu.nm,vol.rn.p.3i0/1370, grifoiu^o.


países, Martius tem consciência de que no Brasil a presença da monarquia
f , . . . , . / - J , • , w J irrrW.ft'w;,voUII,p.?l<>/13/,9.
foi fundamental para evitar a desintegração do terntono nacional. M as da
crise de poder pela qual Pedro I arrasta 0 seu Império, desde 1824, enfren- íbidau.
A viACfAi rn.o liNASU.: csuoco tn- uma civii. i/.ai,\\o 177

.. i S L
a

tem "prazer" ao registrar, em vários lugares, os "vestígios de atividade euro­


péia": como, por exemplo, as "terras zelosamente cultivadas e bonitas casas
de cam po"145, habitações cujas janelas tinham vidraças146, vilas cujo vaivém
de viajantes e tropas de mulas carregadas e belos edifícios emprestavam
"aparência de riqueza e atividade européia"147, vendas abastecidas de pro-
dutos básicos alimentares e utensílios domésticos148, ou até onde se encon­
trariam cerveja inglesa "Porter", queijo "Chester" elingüiças e presuntos do
Alentejo149, festas "patrióticas" por ocasião da coroação do rei e de seu ani­
versário150, "cultos habitantes" dos arredores do Tejuco, a horticultura euro­
péia d o Passeio Público de Salvador151, escolas que formavam bons alunos152
e a inauguração d o novo edifício da Bolsa de Belémjdo Pará com um discur­
so solene do seu presidente153. Também a "salvação" se faria notar. Embora
esse assunto seja de maior complexidade para com a questão indígena> os
autores esposam a crença de que m esmo nas regiões "m ais desertas e dé.
beleza selvagem a doutrina do Salvador está estabelecida e o espírito cristão
(...) se desenvolverá sempre mais p u ro"1-'”1.

"• Ibidcm, vo! [, p. 83/144. Em São Paulo, um estudioso da filosofia de Kant, familiarizado com algur
mas palavras alemãs, serviu como um indicador da "civilização" (Civilisa-
Ibidcm. vol !,p . 124/202. tioií e não Cultur) que se expande rapidamente na América d o Sul, manifes­
u: Ibidcm, vol I,p. 217/355-56 í? H, p. 136/618. tando-se não som ente nos "estudos e conhecimentos chamados práticos";
mas igualmente nas "aspirações mais abstratas de ciência pura"155. Para os
Ibidcm, vol 1, p. 219/339.
autores, como r ' reino das idéias se espalha com a rapidez da luz em fluxo e
"" Ibidcm, vol 11, p. 139/621, refluxo", já t . a possível reconhecer na "vivacidade espiritual do brasileiro
(....) a tendência" do país. Chegam a essa observação a partir de uma conver­
Ibidcm, vol II, p. 46/466 c III, p. 315/1376-7,
sa com alguns funcionários num jantar na casa de um juiz de fora — homem
|!| Ibidcm, vol 11, p. 146/635. "culto", "amabüíssim o" e "grande am igo da história natural e da jurispru­
dência". Nessa conversa, Spix e M artius esforçavam-se, segundo o seu re­
Ibidcm, vol II, p. 199/713.
lato, para provar "as vantagens" de su a "p átria" sobre o Brasil, embora
|1!l Ibidcm, vo! UI, p. 315/1377. admitissem que neste país, "antes de desenvolver a herança européia em
conhecimentos m ecânicos e artísticos, já se achava estabelecida aquela das
Ibidcm, vol í,p . 125/205.
id éias"156. No interior da Bahia, conhecem um professor régio de latim, cuja
Ibidcm, vol í,p . 140/223. "erudição verdadeiramente clássica" é prova concludente de que "os frutos
do espírito também amadurecem no m al-afam ado clima dos trópicos"157.
Ibidcm, vo! 11, p. 20/420-1.

1Ibidcm, vo! II, p. 128/605. Os autores estavam convencidos de que o Brasil estaria no "caminho a suà J
maior florescência"158. No "coração do sertão" da Bahia, notam "com prazer .■w.y
1Ibidcm, vol I , p. 248/404.
(...) que o comércio e a riqueza" promoveram ali a "sociabilidade e os costu- .
1Ibidcm, vol II, p . 98/539. mes am enos"159. D e regresso do rio Am azonas, revelam suas perspectivas:

174 A nova A tiàniida dk Shx í M artius

í
j
Diante desse "enigm a", a razoável lucidez dos autores acerca das m azelas
da colonização perde a sua intensidade. Chegaram, por exemplo; a conder
nar a atitude de os diretores das aldeias considerarem os índios "irracionais"
e "inacessíveis a toda civilização". Spix e Martius, no entanto, dèstrpèm a
própria crítica ao compactuar com semelhante opinião; que outrorarepreen-
deram: a " raça indígena" detesta todas as "peias.duma civilização",:nap p o r •
razões d ê ^ rírg u lh o ^ êlu n por causa de sua "indiferença è indolência". Érv-,
fim, os viajantes advertem o leitor, reconhecendo a. sua posição contrária à
"filantropia" daquele "séculoagitadoeprovado''; ■ v

p Lastimamos dizê-lo: a nossa convicção, baseada.em alguns áríos de obH


servação dos aborígines brasileiros>não concorda com a opinião geral acer- j
ca da perfectibilidaâe da raça vermelha112. . : ■ ■■■■'■' •i

Dessa forma, aderem a uma das concepções básicas sobre o habitante ameri­
cano, formulada pelo abade prussiano.;Comelius De Pauw n a obra ítec/ier-
ches Philosophicjues sur les Amêricains ou Mémoires lnteressants pour Servir à
1'Histoire de 1'Espèce Humaine (1774)u3. E apesar de todas as ressalvas que o s”
autores articularam ein tomo da colonização, não hesitam em resgatar o pa- l
pel positivo da civilização nó contexto dà ocupação européia no Brasil em
oposição ao habitante autóctone:

Foram baldadas as mais diversas e numerosas tentativas para estabelecer


em pé de igualdade de direitos e deveres estes homens entre os demais
habitantes da América; quando, além disso, uma desproporcionada mor­
talidade faz entrever que os filhos desta parte do nuíndo, cheia d é vida
material abundante, são d e constituição tão fracamente dotada de força
vital, temos de inclinar-nos à conclusão dé que os índios não suportam a
cultura mais alta qué a Europa lhes quer inocular, e que a civilização pro­
gressiva, elem ento vital da.humanidade florescente, mesmo os destrói;
co m ou m veh en oletall11. ^

O que, portanto, deveria ser, por assim dizer, urna salvação, representada
pelo processo civilizador, transforma-se em poção venenosa. O problema 111 lindem, v a L UI, p . 47/934-5, grifo r i o s ? o . - ,

porém está nos índios qúe contraem as enfermidades dos brancos em virtu­ 113 De P a u w refere-se a o s.am erican o s: "p n v é s '
de de sua debilidade "vital", ou seja, natural; que ainda por cima contrasta;
5?
à la íq is cT in ld h g en ce e t d e perfectibditâ;;-
conforme os autores mencionam; com a própria riqueza da natureza física. Pauw apiid M ichèle V uçhel, -Upartage-des-
poirs, P a n s , É d ib c n s la D écou verle, 19 8 5 , ,p.
Da mesma forma, a "falta de desenvolvimento espiritual" atribuída aos ín­
dios explicava o alastramento das doenças européias entre eles, a duninui- IU Spix 4c M artiu s. op. cit-, v o l. IH, p . 47/935^V./

A viagem pelo Brasil: esboço de uma civjuzaçAo


meiramente, vale lembrar que o mito do. bom selvagem é anterior a Rous-
seau. Em segundo lugar, que as próprias teorias do filósofo nasceram, em
parte, de textos de viajantes, que reiteravam ou negavam tal mito. O grande
esforço de Rousseau foi justamente superar os estereótipos maniqueístas
construídos pelo olhar europeu. Estava claro para ele que as populações
1autóctones, os hommes sauvages contemporâneos, não eram um exemplo fiel
do estado original da humanidade representado pelo modelo hipotético do
homme naturel E a sua "bondade natural" não era sinônimo da inocência
paradisíaca, m as mera indiferença a valores morais, o que se compreendería
com base n o contexto histórico105.

A libertação do olhar preconcebido de Martius, pôr meio da empiria, nãó ô


conduziu, de fato, j novas propostas sobre o hom em americano., mas s er-
viu para reiterar as c oncepcoè5riletinatofasi~decadentistas^.filiando-se à
trãdlçãÕTTaTqual explicitam os n o início deste trabalho, que se articula no
pensamento naturalista do século X V T D L "A inda se m e confrartge a alm a",
exagera M artius ao lem brar da "horrível degeneração desses semi-huma-
n o s " Wé, referindo-se àqueles m iranhas "antropófagos". Segundo suas pa­
lavras, viu "todas as manifestações d e sua vida desleixada" e, se contasse
todas as "particularidades nas quais s e m anifesta a característica dos mais
rudes aborígenes brasileiros, também causaria a m esm a penosa impres­
são " aos seus leitores107. E disso ele qu er poupá-los, insinuando a omissão
de m ais horrores, que acreditava ter visto.

Para os nossos naturalistas não restavam dúvidas de que o " aborígine,jdesr


tas selvas" ^ E a riãTvivendo "no mais prim itivo grau da Humanidade"108. Em
10ja . Karl Heinz KohU/’. ri/., p. 177 e 192,195- face dos "ju sto ^ m p rein ^ b n en to s"109 encetacTos pelos europeusTenxergam
7.' "u m deplorável enigma" para o índio e para o "irm ão do oriente, em cujo

tMÍi£SÊÊ&êÊkA£$£
IUÍ N a v e r s ã o b ra s ile ira c o n sta "b r u to s", n o
peito ele não se anima, em cujos braços desvanece, tocado por humanidade
texto o rig in a l p o ré m os auto res referem -se a superior como de mau sopro, e m orre",I0._Eejustam ente èssa "humanidade .
" H a lb m e n s c h e n " , ou seja , " s e m i-h u m a n o s "; , superior", recordando o que já dissemos antenp^^nto^q^Sõhfoinftêõ^ra^ ;
S p ix & M a rtiu s, op. d {., vo l. 171, p . 247/1267.
asm ^ d aJlü stracãol/’,.de. Sprx e Marrius, define o europeu. c o m o ^ s u lta d ô '" .
"*Ibidem. da "bejmorganizada. epterfeita unidaderiasjforças hum anas", é rirprestandfi-

ÍMA # W / v o l. m , p. 247/1268. f TRe a superioridade sobre as demais .'^raças".e, por çonseguinteJegitim andíL
^ u ã w n q u is tá dom ^díi.extra-eu^pefcd^ O "enigm a" ao qual sexeportarrt~
li” / f ó ím j,v o l.n i, p. 28/905. ^ontã-pãm jr^rópria^ontradigão que observam n esse-processo, nesse em- ■
bate en£ea_"humariidade prim itiva" ê a "hum anidade superior"^cujQSva-
•,w IÍ>frfeni,yoL m,'p. 247/1268 e I, p. 131/213-4.
Iõresm oraig^e virhpdeÍliã&Js ã Õ ^ ^ ila id o s ,u .c u ía essência, portanto^qüe '
nl Ibidem, v o l. I, p . 164/259. .culminaria na "civ ilizaçãoV ^ ç^ trariad a.

162 A nova A tlântida de S pix e M aktius

c~ A r /

g 5 S * N ^ ..« w s
bendizem os "séculos futuros que verão o mais majestoso caudal d a terra
habitado por homens educados, livres e alegres"160.

Nesses votos prospectivos, ressalta-se a importância da riqueza natural, um a


vez que esta seja dominada pelo homem para dar espaço ao processo civili­
zador: em Barra do Rio N egro (atuai Manaus), apostam qu e o aum ento da
população e do comércio seriam "assegurados pela mais bela e generosa
natureza"163e que esse lugar teria todas as condições de tornar-se um a pode­
rosa cidade comercial, assim que suas férteis terras se elevassem à "civ iliz a ­
ção (Bildung) e indústria"162. U m "auspicioso futuro" é antevisto p elo olhar
do "filantropo", "quando civilização e natureza tiverem criado no m ais opu­
lento país do mundo (que traz todas as condições) uma pátria de fe liz raça
humana, cuja atividade e bem -estar reciprocamente se compensarão-"163. •.

Afinal, nesse país, com perseverante cuidado, todo ipo. de agricultura é pos­
sível, já que o "Novo Continente parece aprop^ ido pela natureza p ara h os­
pedar os produtos de todas os climas e desenvolvê-los como.na sua p átria de
origem ", advogam os autores16,5. No entanto, a natureza dos trópicos é.tão
pujante, que em poucos decênios destrói a obra humana e insurge-se contra
sua "operosidade"165, ameaçando com sua "desordenada força criad ora" a
"pacífica agricultura"166, "a s tarefas rurais" e, por conseguinte, a sobrevivên­
cia do próprio homem167. E somente o extenso cultivo do solo poderá extin- Íbidíiii, vol. III, p. 286/1326:7.

guir a "perseguição sangüinária." de insetos peçonhentos como os escorpiões, :,;i íbiám , vol. III, p. 271/1306.
cupins, formigas que tom am o país "inabitável", emprestando-lhe o asp ecto
de "selvageria". Além disso, a perfeição de uma lavoura promove o "bem - líl* Ibiibni, vol. 111, p. 143/1105.

estar" e influi favoravelmente sobre a "moralidade" dos habitantes, p rin ci­ '"Ibiiiau, vo). III, p. 306/1363.
palmente dos escravos168, acreditam Spix e Martius. Após chamar aten ção
para todas as provações e dificuldades às quais o imigrante europeu estava '•■Ubuhu, vol. I, p. 87/149.

sujeito, não somente em relação à natureza, ao clima, às doenças165, m a s tam ­ "•5 íbiikni, vol. II, p. 266/831, 1/9/ÓB2 e J1I, p .
bém à dificuldade de utilizar a mão-de-obra escrava170, os autores n ã o h esi­ 131/1088.. . .
tam em considerar o Brasil "com o o mais belo e magnífico país da terra , por
'"■/bidetit; vol. Il,.p;.179/682,..
mais que se duvide da habitabilidade da zona quente": ..
w lbiàm , 193&.Voí. Íl,p .’79/M, p. I.VL
quando os habitantes deitarem abaixo as matas, dessecarem pantanais,
>«íbiáw , vol. I, p ..184-85/301.
rasgarem estradas por toda parte, fundarem aldeias e cidades, e, assim ,
pouco a pouco, triunfarem da exuberante vegetação e dos bichos danir ,M1W<W vol. I, p. 104/173.
nhos, então todos os elementos virão ao encontro da atividade hum ana e
I7l>Ibidem, vol. II, p. 179/682.
recompensarão plenamente171.
171 lbidem,.vol. I, p. 104/173.

A viacem ra o Brasil : esboço o e uma c iv il iz a ç Aó 175


do dos homens, como um todo, quer ser visto e julgado"135. E, nesse sentido,
ambos os conceitos balizam uma visão eurocêntrica.

Para pensar o Brasil e descrever o seu "estado" na "história do gênero huma­


n o", S p ix e Martius se utilizam frequentemente do termocivilização. No texto
que acompanha o terceiro volume da Viagem pelo Brasil, "As Plantas e os
A nim ais na América Tropical"139, Martius conceitua acíuf/zzapãocombasena
oposição entre a "história da humanidade" (Geschichte des Menschengeschle-
chts) e a vida da flora e da fauna. A história, quanto mais perfeita (vollkom-
mner) e humana se mostra em cultura (Bildung), desenvolvimento e conflito-
entre os povos, tanto mais fortemente destrói a vida primitiva das plantas ê
j) dos animais. Para o autor, a "historiada hum anidade" é sinônimo de civiliza-:
j çõo (Civilisatian). A ela cabe transformar a superfície da terra, expulsando,
] modificando e extinguindo os seres mais fracos. Reconhecendo o seu poten-
j] ciai destruidor, a civilização é vista como um movimento insaciável, que, por.
[; fim, ameaçando a própria humanidade, arrasta toda a natureza em sua vo­
ragem. E a maior parte do continente americano ainda estava intocada pela
civilização e, por isso mesmo, preservava um a flora e um a fauna selvagens,
cujo "destino", no entanto, seria mudado pelo "irresistível avanço da histó­
ria dos hom ens"140.
I3S Ibiiicvi, p. 64 c 25.

IJ* Esse texto foi suprimido da edição Edusp/ U m a vez que a civilização é compreendida com o um movimento, cuja essên­
Itatiaia de 1982. Na versão de 1933, cncontra-se
cia é ultrapassar as fronteiras européias e inexoravelmente impor-se ao resto
no volume II, ao passo que na obra original está
no terceiro volume, sob o título "Díe Pflanzen do mundo, em nome da "cultura mais perfeita e hum ana" (vale lembrar que
und Thiere des tropischen America, zunáchst para os autores humanidade é um sinônimo de ser europeu, de pertencer à
ais Orklárung dor Abbildungen im Atlas". Esse
raça caucásica e desfrutar naturalmente um a superioridade psíquica e física
líitsaio foi anexado com o intuito de esclarecer
as estampas da fauna e da flora do Atlnt. em relação aos demais povos), do desenvolvim ento (provavelmente esteja
pensando em comércio, indústria, tecnologia e relações de trabalho capi-.
5pix & Martins, op. át., 1938, vol. fl, p. 26,
talistas) e da luta entre os povos, ou seja, fazer a guerra em nome da civi­
vol. ITI, p. IX-X, grifo nosso. FIA um equívoco
na tradução: "A civilização, que transforma a lização, Martius aproxima-se do conceito francês e inglês, conforme sugerido
superfície da terra, também afugenta, extingue na análise de Norbert Elias. E mais: para M artius, o gesto fundador dju áxi:
os seres mais (racos; finnlmente, mesmo amea­
lização é o domírúojfpihomens sobre a natureza. Ora, essa atitude nada-terá
çando a humanidade, a natureza intitaáwl tudo
arrasta iui tua voragem". Não é a natureza que cíê "segunda importância", tal como o conceito alemão de Zivilisation defen­
arrasta tudo nn sua voragem, e sim a civiliza­ dia, m as seria essencial para dar o primeiro passo na escalada da humani­
ção, conforme 0 texto original: "DicCiviUsntion,
welche die Oberflãche des Erdbodens umformt,
dade.
sic verfrcibt zugleich, sie verandert, vemíchtet
díe Scínvitchereii Geschõpfe; unersãttlich, am Como citado acima, não fica excluído, todavia, que a civilização, na sua ex­
Ende seíbst die Humnnitritbedrohend, reisstsíe
die ganze Matur um sich her in ihren mSchti-
pressão mais radical, destrói a própria hum anidade. Nesse aspecto, Martius
gen Strudel hinein." (Grifo nosso.) não está longe da crítica romântica às vicissitudes inerentes ao processo civi-

172 i
A nova A u .ântida oe S pix Martius
aham nenhum “significado superior de simbolismo", tampouco provavam
uma "idolatria" ou uma "mitologia desenvolvida". O naturalista convert-
ceu-se de que "fo ram feitas por índios que em índole (Sinnesart) e grau de,,
civilização ( Bildung) correspondiam totalmente aos seus atuais descenden-j \
tes", de forma q u e essas "esculturas" nada mais seriam que "restos de um a
época igual à da atualidade em incultura (Rohfteif) e simplicidade pueril"11 .
Por conseguinte, apesar de o tempo ter passado, não teriam evoluído, nem
avançado, nem feito progressos para algo mais "aperfeiçoado" e padece-:
riam de uma natureza estagnada.

No texto O Estado, do Direito Entre os Autóctones do Brasil (1.832), M artius


menciona novam ente o "enigma obscuro" que são os. índios no "m eio das
criações .da. civilização e dos costumes europeus que no Novo. M undo triun-
falmente se espalharam do litoral para o.interior do continente". Seu "es­
tranho e inexplicável estado", evidenciando a sua "incapacidade para o
progresso", fez fracassar "todas as tentativas para conçjliá-lo inteiramente
com a Europa vencedora e tomá-lo um cidadão satisfeito e feliz". Martius
identifica nessa trajetória uma "natureza dupla", que dificulta a ciência de
encontrar esclarecim ento a respeito de sua origem, O autor cogita dá possi-^l
biiidade de. os índios não representarem o "estado primitivo", tampouco
terem partilhado d o ''benefício da origem divina". Filiando-se às teorias de-
cadentistas, especula com a idéia de viverem em um "estado secundário,
degenerado", cuja história é obscura eimperscrutável120,

Distanciando-se, nesse sentido, da idéia depawniana da imutabilidade do


homem am ericano, tal qual alude na Viagem pelo Brasil, Martius não descarta
um possível passado "m ais nobre". Mesmo no Brasil, onde riãp se haviam 1l9Sp ix & Mnrtius.n^. a í-,v o l.H X p . Í56/12& 4...-

descoberto ruínas de uma "civilização", em oposição aos países andinos e


*“ C. F. R Miu:tmsr.Oestadodo.dtr&toeiltrec? a u ­
da América central, vale-se da hipótese, considerando que essa origem serjá tóctones do Brasil; trad,A lfredo Lófgren; S S o Pau-v .
remotíssima!21. M artius converge para as idéiasJDe Pauvve vários outros pen-r: Io, Itah aia/E d usp, 1982, p; 1 1 .. . v :■ -

sadores oitocentistas, ao. atribuir à iriferioridade americana um "segredq na


■ 121 Ibfdem, p .^ .^ N o romance Fr^í ÀpoIÔruo: d<i-;
natureza" decorrente de cataclismos e fortíssimos acidentes climáticos; e : fe n d e ig uahnenteessahipútese^íV i h u m a n a d a --.
geográficos. A diferença, porém, reside n o fato de Martius,perguntar ,se não, d e am ericana parece-jne s cr u m a ím eiisa r tu n a ..
Sâp o s restos, decadentes de p o d erosa consfcru- ..
foram eyenhiãim ente catastroies riaturais que causaram o desapareçimento ç ao , ergiuda h á tn u ito tempo"— h á m ilh a re s d e •
dê vestígios que provariam essgpassado "m aisn obre":u m extenso terrem of:, an o s, p rbvavelin ^té':fá'dotós^lr gTaVe| fáxitás- .
Tb convulsionando ínar e terra, como parece ter návido riãdlha Atiântída; ou: t k a ,e m éstilò. apenas çáptávelp elq s, s o n h o s " . .
.. A o conhráiÍD( po'r.éni, d ò s demais, tex to s e im q u e
gases mortíferos que asfixiaram toda população, causando tam anho terror.; p ro çu ra èxplicar essa decad ência, n e s s a p a s ­
nos habitantes que "obstruiu a inteligência e empederniu o coração", arran-. - sa g e m afin n a :"M ã o sei e nem sèq iiér im a g in o
cando-lhes os "benefícios d a sociabilidade". Ou talvez enormes incêndios ' ò que, p cssiítér. destruído". Id., op dl., p . 92.

A viagem pelo B rasil; esboço de uma çiviuzaçAo

«Báii
ção da fecundidade feminina e a degeneração da constituição robusta e re­
sistente de seus corpos115.

Finalmente, os nossos autores abstraem das críticas que fazem aos coloni­
zadores europeus e, munidos de seu conhecimento naturalista, formulam
categoricamente uma resposta ao "enigm a" do que acontece com. a "raça^
a mericana": seu destino é decompor-se, tal qual acontece com outros seres
da natureza, q u £ ^ a p a r e c e m "antes d e jergm .alcangado o m ais alto grau
H edesenvolvimento, cujo germe están eles implantado". Por nào serem do-
tadqs^J^pejr.feçtò^dàde^lisseyeram que a "raça am ericana" nada mais é
que um " ramo, atrofiado, no t r o n c o ^ . e
frutos" são meapaz^jde^groduzir116. Por conseguinte, relegados á impossiHi-
I^ a d e ^ e sV ^ p e rfe iço a r" e ating ira.^^hiimaniAade^uperior^rCpfpp m ^ ís^ _
cussãoem torno da m elhor forma de lévar^cnálhação.aQS.^selv^gens".perde
o sentido; "Quem chega a tal conceito sobre a natureza d a raça americana;
olha compassivo nos meios que restam a um hum anitário governo em prol
dos índios"I3?.

Sem sombra de dúvida, as conclusões na Viagem pelo Brasil sobre os indíge­


nas inserem-se na tradição do ideário de Com elius De Pauw. Foi ele também
quem introduziu o conceito de "degeneração natural", antes aplicado ape^
nas a animais e vegetais, para interpretar a ausência de "perfectibilidade" e
de "progresso" dos autóctones am ericanos. Para De Pauw, a "degeneração
”*Ibiciev:r vol. D, p- 248-49/805. | natural" dos índios não é um processo m as um estado original do qual jamais
saíram, correspondendo portanto ao inverso da civilização. O estado dege­
Ver ta m bém C . F. P. von M artius, op. dl., p.
560-1.
nerado, outrossím, é traduzido não som ente pela ausência de traços e vesti-
^gTos materiais que penriitam a reconstrução cté'sua' história, m as também
117 S p ix fie M artius, op. cit., vol. JTI,p . 47-8/935. p^ft^^..dê.jo^âsrãdd*do^bm eifL americànÓ~sêr'IdêftííÇb"àd*prêsente, de
C on form e M . C am eiro d a C un ha, a crença ou
n ão n a "perfe ctib ilid a d e " d o s ín dios é d ecisiva
nada ter-se transformado neles e em tom o déléífepèloFâto ãe~viverèmriüm
n a p o lítica e n a legislação índigonistas n o Bra­ iêrnpo imóvel prÓpno ftíichele DücKet,
sil. B a sfa lem brarm o s q ue, e m 1823, Jo s é Boni­ Tf3“corícÍpção^de De Fãui^‘os”ã ^ n c a n o s liã tiv o s não são donos de uma •
f á c io p le ite a v a o c o n tr á r io d a s id é i a s d o s
naturalistas bá v a ro s, afirmando serem o s Índios
"outra" história, iniciada mais tarde ou d e ritm o m ais lento, mas pertencem
capazes de ab so rv er a civilização. Suas propos­ a uma não-hisiôria, em que não há passado nem futuro110.
tas fo r a m ap rov a d a s pela C onstitu inte d e 1823,
em bora n ã o tivessem sid o incorporad as ao Pro­
je to d a C on stitu içã o . A esse respeito, q.v, M.
Visão semelhante depreende-se do com entário de M artius, ao topar com pin­
C arn eiro da C un ha, Antropologia do Brasil, 2° ed., turas rupestres à margem do rio Japurá, na bacia do rio Amazonas: servi­
SSo Páu lo , B rasiliense, 1 9 8 7 , p. 165- 73. ram-lhe como "prova" da "alta antiguidade" dos indígenas, refutando mais
"• M ich è le D u chet, op. cit., p .9 2 -3 (g rifo no ori­
uma vez a hipótese de Buffon acerca da juventude do continente e do ho­
ginal). mem americano. E também asseverava que as "figuras grotescas" não ti-

m A nova A t i Antida de S pix e M artius


lizador. O naturalista percebe que, ao mesmo tempo em que a civilização
deveria conduzir à humanidade, seus mecanismos de funcionamento são
contraditórios, a ponto de aniquilar a razão que m otiva o seu próprio proces­
so. Como contraponto, vislumbra a América como um resguardo da nature^T
za primeva, intocada pelos homens, cujos dias porém estão contados. Eessa/
incolumidade temporária, como veremos, tanto se presta para abrigar a "nos­
talgia" de um tempo e de uma sociedade não-civilizada e pré-capitalista,
apontando a dim ensão romântica do naturalista, quanto potencializa a an­
siosa projeção do advento civilizador141.

O Rio de Taneiro. no olhar desses viaiantes^Lpiovaj^bal d a possibjlid,a.de.do


processo civiíizãHornos trópicos. Apesar de osnegms-ejrLulatQS,.aQ-seu ver,
destoarenTda paisagem " c iv il^ d a " , a capital era uma cidade "européia/'
no meio da pujante mata tropicahO que contribuiupara que isso aconteçes-
J - '•-----::ri - -------------------- ------------ i.--------------1 ------------ Mticas, econô­
micas, sociais e urbanas: "‘Língua, costumes, arquitetura e afluxo dos produtos
da indústria de todas partes do mundo dão à piaça do Rio d e Janeiro aspecto
europeu"142. .

Opondo-Se aos m ovim entos libertadores e republicanos que se espalhavam


por toda América hispânica, liderados por homens como, por exem plo, Bo­
lívar, Spix e M artius acreditavam que os doze anos de permanência d e João
VI no Brasil propiciaram a rápida travessia dos "brasileiros" por diversos
"graus de cxiíhir^n^un^ssti^en)^ evidenciandÕlfü F ^ x l s t ê n a a d e um a
monarquia flesfe^país eiaritíh dan ^ i^^ paragu eas transform ações ocorres­
sem. A presencã3kifíãm\djã,cQlonia^eendetíi*msenÍ3TO
m o" na população, assim como. colQCO.ujX-Brasil no círculo;das..m tênçias
européias, atribuindo-lhe uma "nova dignidade! Ao conheceras vantagens
do país e as im perfeições do governo, o soberano criou condições para ga­
rantir a propriedade e as relações civis. Com a abertura dos portos, "fizeram
rápido progresso a riqueza e a civilização (Civilisation), graças à com petição U! A respeito cio Rom antismo c o m o v isão de
m und o que n a su a esiéncia é a n o s ta lg ia das
do tráfico e ao ininterruptocornércio com o estrangeiro, e bem assim ao apro­ sociedades pré-capitallstas e c rítica c tk o -s o c ia l
veitamento do so lo "143. E os viajantes garantiram que o porto dessa cidad e se ou cultural na capitalismo, q.v.,supra, .Capítulo
n , Nota 70, e M ichel Liivvy, op. cit., p. 12 e ss.
tomaria um dos "m ais ricos (...) do m undo", rompendo com a id éia de o
Brasil ser um "p aís totalmente agreste, sem vestígio algum da benéfica in­ 1,2 Spix &c M artius, op. cii., v o l. I , p. 7 9 / 1 3 9 e
fluência da indústria européia"144. p.48/91.

Embora não de form a tão acentuada como no Rio de Janeiro, cidade que fora ' im' v ' ' p‘'
privilegiada pela instalação da corte portuguesa, os nossos visitantes sen- jw*m, voi. i, p. 73/129.

A viacem pklo B ra sil : lsso ço i civilizaçAo 173


J-igura h.Arflijimrn(Arara-Coaro). Litografia de E Pabst segundo esboço de Martins — Atlns zurKeischt Rrnsiiiai van Dr. voa SpixwidDr.vonMnrtius (Atlasda viagem
tie Spixv Martins pala Brasil). "Kra este o ponfo mais ocidental a que eu (Martins) pedia estender a viagem. Enquanto me oprimia com Iodos os terrores de uma
solidão destituída de seres humanos, sentia indi/md saudade da companhia dos homens da cara Europa civilizada. Pensei como toda cultura e a salvação-da
humanidade tinha vindo do oriente. Dolorosomente comparei aqueles países venhirosos com esse ermo pavoroso; entretanto, mesmo assim me felicitava por
estar aqui, levantei mais mn olhar para o céu, e volví corajosamente o espírito e o coração para o oriente amigo." (SpLx & Martins, Viagem paio Brasil, vol. III, p.
240/1256). (Ilustração extraída da edição fac-simükida à o Atlas ztirRaiscin Bmilien von Dr. von Spix uud Dr. vou Martins, 1967, Stuttgait, Brockhaus, tábua 25.)

170 A xov,\ A t i .ántiu a de Snx L M arhus


zando-se do conceito de "degeneração" e da ausência de "perfectibílidade".
Mo entanto, se rvessa,obra considera a degeneração dos índios com o um esta-
do original, primitivo, im utável, segundo o quaTestão y/dbstm adpsXdècoin- '-1 Spix icMartius. op. cit.,vol. lU ,p.48/935.
por-se e sair do número d o s vivos, a n t e s ^ Jggêm^alc^cado P m ais alto grau
nos textos posteriores ao relato,, especula.com -alai- I!,C.F. R Martius, cp. cih, p. 5a0-l.

p ó tesed Q ^assadam ais-nQ faje^^ltam entm .vilizado" do habitante am ari- A esse respeito, q.v, supra, C apítulo II e A-
ça n o .jAo mesmo tempo em que pondera essa possibilidade, enfatiza s e r a Gerbi.op.fJt..p.37S-85-
decadência moral e física d a população indígena um processo paulatino c a u ­
' ' O paradeiro da coleção etnogránca traduz o
sado muito mais por caprichos "singulares.'' da natureza do que p e la bag a- desinteresse das autondades públicas'de Mu­
gem negativa da colonização. Qu seia, a perseguição e exploração dos ín d ios nique por nbbuntos indígenas. A s caixas com n$ ■
coleçots, ficaram por anos fechadas, sem lugar
desencadeada pela colonização européia jamais seria a razãniundamenfcal
e ^ondiijües técnicas para serem ordenadas e-
desse processo de ruína. Q ue a "civilização européia m ata" os in d ígen as, ex p ostas. £ v erd ad e que M axm u h an o : José i,
som ente confirma que a "hum anidade americana trazia consigo o p ressen ti- patron o da viagem de Spix e M artius/-quena
cn a r um M useum B rasihanum " p ara abrigar
m ento dá morte", conclui M artius, O desaparecimento desse povo é im puta
a s icspechvas coleções, tam bém a s n atu ralistas:
do ao seu "estado de alm a", e a colonização somente "acelerou essa catás­ C o m a sua m orte, porfim, em 1825. o p ro jeto é'
trofe prevista talve2 há m ilênios"”8. esquecid o. Em 1 8 2 6 , falece S p ix . e m c n jo ga­
b in ete de lu stúna natural — na A c a d e m ia —
ficavam bon p arte d as peças, .esp ecialm en te as
Em suma, no leque das visões ambíguas sobre aAmérica, lembremos qu e Spix gran d es m ascaras. O seu sucessor, n o 'en tan to ,
e Martius interpretam um Brasil cuja natureza física nada tem de in ferior e n ao tinha a m ínim a ahnidade c o m e s « a s coe­
s a s ; achava que n ão tinham nada q u e ve r c o m a
detratada. Negam-lhe a juventude, equiparando a idade da formação telúrica
zoologia. A coleção continuou, fech a d a , meto-
do N ovo Mundo à do Velho Mundo. Ao cotejar o ambiente natural europeu aban d on ad a.no terceiro andar d e virap sad io da
com o tropical, imprimem neste último uma superioridade no que tange à corte, em cond içoes precárias. E m 1&43: o u seja
vinte e tres anos ap ó s o retom o d o B rasil, M ar­
incontestável diversidade d e espécies, reveladóra da extrema vitalidade, pu­ tin s consegue leva-la para um h igar n u is-n d e-'
jança e uberdade. Como jã verificamos anteriormente, são fiéis seguidores dos quado, o ' Galenegebtiudeftm H ofgarteri’', ond «'
passos-de Humboldt> superando qualquer imagem que favorecesse a debili­ elabo ra a catalogr.çao d as peças. S S o 4 5 2 núm^>
ros com subdivisões a, b. c etc. M a s ,p o r falta d e
dade da natureza americana. Considerando que a "disputa do Novo M u n d o ",
espaço e d ar p rio rid ad e a outros tip o s de o b je ­
naquele momento, girava e m tomo das idéias entusiastas de Humboldt emJ tos, tais com o porcelan a clunesa e arte m e d ie ­
oposição h interpretação depreciativa dos ensinamentos de Hegel,Spix e M ar\ val eu ropéia, ela tev e d e ser retirada, v p ita n d o •
para o lu g ar antenor. U m l8S 7, c o m a ab e rtu ra
tius estão entre ambos. Pois, ao passo que Humboldt opõe-se claramente às de u m M useu d e A rte M ed iev al,a coleçSo .et-,
teses da inferioridade natural do habitante americano129, Spix e M artius as « o g ráh c ap o d e reto m a r ao ."G alen egab ciu d e"
reiteram, filiando-se ao ideário inspirado na tradição depawniana. A despeito onde, tam bém , se fu n d o u o. M useu de E tn o lo t:
gia. Em 3868, n o ano c m que M arb us m o r r e , a - .
da; riqueza de suas pesquisas etnográficas, do vasto material por eles coleta­ coleçáo fo i fin alm en te aberto ao p u b ljco .-N a >
do130 e do fato de saírem de seu s gabinetes de história natural e partirem para Segunda Guerra M und ial, quando d o s n toques- -
a experiência da viagem, da observação do mundo natural e da sociedade, n ão aéreos, p o r ter sido consid erad a d e m e n çr va«>-.
Jor, a coleção (entre outras) nao foi r e t ija d ^ e *
conseguem refutar as teses da inferioridade do habitante original. N esse as­ colocada em segurança. Por sorte, so freu-pou-x
pecto, afastam-se de Hum boldt e abeiram-se de Hegel. cos d ano s — algum as redes (oiarr\ d estrufd as.'
— e n os últim os an o s participou d e van as.-ex- v
posições tem porárias. O tto Zernes, Unler. ífldjip; ;
No entanto, se para Hegel a parte meridional do Novo Mundo está condena­ nem S rastíim s, Irwisbraclc; Putguin/. 1 980/ p .w
da, por razões primariamente geográficas, a uma natureza eternam.ente ima- 1Q1
A viacem pêlo Brasil: esuoço de uma oviuzaç Ao 167;
ou inundações que incitaram a inimizade e a antropofagia, condenando-os à
miséria122.

Mas talvez também não tenha sido nada disso, especula Martius; essa "desu-
manização" é "conseqüência de vícios inveterados e brutais com que o gênio
da nossa raça castiga tanto o inocente como o culpado". Dessa forma, a dege-
neraçao é entendida como um fenômeno geral da espécie humana, aproxi­
mando-se da concepção de Humboldt123, assentada em Rousseau. Diante das
possíveis hipóteses, o nosso autor logo retoma a explicação formulada na Via­
gem pelo Brasil, particularizando novamente o destino dos americanos autóc­
tones no processo evolutivo da humanidade. Martius resgata o pensamento
De Pauw, ao acreditar num eventual "defeito geral" na organização dèssà
“raça", justamente por ela já trazer visivelmente o "germe do desaparecimen­
to rápido". Sem "criações de seu espírito", sem "cantos", sem "epopéias", sem
"monumentos de sua arte, de sua ciência", seu destino é passar rapidamente
pela "grande engrenagem do mundo" sem deixar traços124.

Por sua vez, a falta de "história" do habitante am ericano, conforme Martius


diagnostica na palestra sobre o "Passado e Futuro do Homem Americano",
está intimamente ligada àjm sên cía de "vida espiritual" dos índios. O que
>- Id., 0 cftndo do direito..., p. 7 0 . Fran cis Bacon ocorre com eles é semelhante ao
explo ro u a lenda d e Atlflntis para entend er a
"d eb ilid a d e" d o habífante am ericano. A lcunhou
a A m érica de Nen> Mlnntis, com o M artius, em
indivíduo que teve a desgraça de perder a m emória e no qual se parali­
a lg u n s m om en to s, o faz. O naturalista bávaro saram, pouco a pouco, todas as forças das almas até cair finalmente no
talv ez tenha b u sca d o in spiração na o b ra desse ídíotísmo e na m orte intelectual125.
in glês, em bo ra n ão concorde cem a cre n ç a de­
fen did a p o r B a co n da juventude do continente
volta a reiterar que esses americanos paulatinamente esvaziados de qual*
Ê
a m erica n o e d a ausência de um a a lta civiliza­
ç ã o anterio r à s catástrofes. Antonclto G erbi, op. rer faculdade "su perior" m uito provavelmente descendem de um "povo"
cit., p. 5 6 -8 e 91. S o b re a le n d a de A flâ n fis, q. v.
supre, C ap itu lo II, N ota 87.
itrora "altam ente civilizado". Martius atém -se b tese decadentista, usando
com mais detalhes a metáfora de Atlântis, que explicaria a degeneração dos
1,3 H um b old t tam bém sugeria a existência de índios. Insiste no alastramento d e gases mortíferos, terremotos, ciclones e até:
u m p assad o " civ iliz a d o "; ao seu ver, porém , a
d eca d ên cia n ão era algo par ttculare inerente aos
"influências cósm icas" que de súbito os destruíram. Era possível cogitar e,
ín d io s, e sim u m processo q u e tam bém aconte­ fazer hipóteses, pensa Martius, mas de um aspecto estava absolutamente,
c ia entre o u tro s p o vo s. C/. K. R. IVüíhenow , Der convicto: foram "forças naturais singulares e dem oníacas" que atuaram so-,
R ásen àe nls Geschkhtssáreiber..., p. 2 4 2 .
bre os índios am ericanos, condenando-os a esse destino "deprimente e des*
I3* .C F. É M a rtiu s, up. cil., p. 70-1. consolador"126.

!“ jrf.,,'"Á ethnografia da America...", p. 559.


Martius, de fato, dá continuidade à tese de a "raça am ericana" ser um "ramo
,’** Ibidein, p, 5 5 3 -9 . atrofiado" do tronco da humanidade, expressa na Viagem pelo Brasil, utili-

166 A nova A tlàmtida o e Snx e M artius


próprios da classe média. Kant reconhecia mesmo uma antítese entre Kid-
tureZivilisation alemãs, que igualmente representava o antagonismo entre
'"v irtu d e' autêntica" e "'cortesia' externa enganadora". Após os m eados
do sécuio XVIII, Elias observa que a "autolegitirnação da classe média pela

I virtude e as realizações (Bildung)" adquirem mais precisão e ênfase, apro- -


fundando a polêmica contra a superficialidade cortesã. Finalmente, a as* ,
Í; censão da burguesia alem ã significou que essa "antítese primariamente
so cial" veio a ser "prim ariam ente n acional". Kiiltur, para os alemães, "é a
palavra pela qual (...) se interpretam", que mais expressa "o orgulho em
suas próprias realizações e no próprio ser". E, basicamente, refere-se a re­
alizações intelectuais, artísticas e religiosas, e nada tem de ver com fatos
políticos, econômicos e sociais. Á Bildung, n o sentido de formação intelec­
tu al, é, por conseguinte, parte integrante da própria Kulhir. E Z ivilisaiion-
significava algo verdadeiramente útil, m as de segunda importância, com ­
preendendo "apenas a aparência externa de seres hum anos, a superfície
da existência h u m an a"1*6.

Já para os ingleses e os franceses, seguindo os passos de Elias, civilização


representa o "orgulho pela importância de suas nações para o progresso do
Ocidente e da hum anidade", considerando a política, a economia, religião,
fatos técnicos, morais ou sociais. A "função gerai" do conceito de civilização
expressa a " consciência que. o.Qcid e n te tem de si m esm o". Trata-se de um a
espécie de "consciência nacional", uma vez que "resume tudo em que a so­
ciedade ocidental dos últimos três séculos se julga superior a sociedades
m ais antigas ou a sociedades contemporâneas 'mais primitivas'". Por m eio
d o conceito de civilização, o europeu ocidental constitui um conjunto de
características das quais se orgulha: "o nível destw tecnologia, a natureza de
suas maneiras", o desenvolvimento descí* conhecimento científico ou visão
de mundo, e muito m ais137.

Por fim, compreende-se a civilização como um processo, ou como resultado


d e um processo, que se movimenta incessantemente "para frente". Na v ira­
da do século XVIII para o XIX, esses resultados são aceitos como "expressão
de seus próprios talentos mais altos"; é a consciência de sua própria "su p e­
rioridade" servindo às nações européias conquistadoras de regiões não-eu-
ropéias como justificativa do seu domínio. Apesar das diferenças que separam i w N ç r b e r l E lias, 0 pmcesso civüizatior, trnd . Ruy
os dois conceitos, num aspecto eles são idênticos: tanto a cultura alemã-r- que Jung m ann , R io de jan eiro , Jo rg e Zohar, 1990, p.
24, 29 e 37. ...... .
igualmente representa uma "auto-imagem nacional" — como a civilização
inglesa e francesa consideram "axiomático que a sua é a maneira como o m un- w líiident, p. 23-4 (grifo no original).

A viagem pelo Brasil: esboço de uma civilização m

lkL_
tura, debilitada, e a um habitante decaído, onde consequentemente a '"luz"'
d a história e da civilização jamais brilhará, para Spix e Martius, o Brasil é a
continuidade da civilização européia, qu e aos poucos está jo g a n d o seus
degraus na h ístóiiã evolutiva da huriTãnídadêTI^o "espetáculo" desse "espe-
Iho mãgicõ^Võsm^áipntólârõ^^lllídSs dãcen a ,a priorí, pelo próprio curso
d a história da natureza. Em contrapartida, os negros, tendo ultrapassado a
fronteira entre a "selv ageria" e a "civilização", servem com o prova de que o
processo civilizador estava em pleno desenrolar. Para os nossos autores está
claro que a escravidão n ada mais era qpe um m alnecèssáxio paraairãridcrf'
e ssa-^raça in ferior"
? lÇ ^ ^ a r ü ^ q u a iit o .e r a n e 5 § s s á n o ^ iç u k ^ ^ J ^ ^ ^ ^ à ç a o ^ ^ e s c u s a s -
se a colonização d o triste destino do incola am eriçáo.Q,— -

“ Toda cultura e salvação vêm do Oriente*’

M artius chega a o ponto mais ocidental de sua viagem, n a fronteira natural


com a Colômbia, extremamente cansado, doente, m olestado pelos mosqui­
tos e pelo calor: "ju b ilo sas" exclamações dos índios remadores anunciavam
"arara-coara ické cekoi" — estamos emArara-Coara (buraco das Araras), traduz
Martius. E, precedido de uma minuciosa descrição da paisagem do lugar, o
viajante ausculta o seu sentimento:

Profundamente empolgado pelo arrepio desta solidão selvagem, m e sen­


tei para desenhá-la; m as n ão tentarei descrever ao leitor os sentimentos
que durante este trabalho comoviam minha alma. Era este o ponto mais
ocidental a qu e eu podia estender m inha viagem. Enquanto me oprimia
com todos o s terrores de uma solidão destituída de seres hum anos, sentia
indizível saudade da companhia d e homens da cara Europa civilizada
[gesitteten]. Pensei com o toda a cultura' [Bildung] e a salvação [Heil] dá
humanidade tinham vindo do oriente. Dólorosam ente com parei aqueles
países venturosos com este ermo pavoroso; entretanto, m esm o assim me
felicitava por estar aqui, levantei m ais um olhar para o céu, e volvi corajo­
samente o espírito e o coração para oriente amigo131.

Talvez essa seja a passagem que melhor elucide os extrem os de sua experiên­
cia como viajante europeu nos trópicos. Se nas matas do Rio de Janeiro, quan-
spix &Martius, op. ai, voi. iq, p. 240/1256. do de sua chegada, a saudade da terra natal dos viajantes é superada pelo

168 A nova AtcAntioa de SrtxtM


artius
; ■

acolhimento da natureza tropical que se transforma num a "segunda p á tria "


nesse momento culminante de sua expedição pela bacia doAmazonas, quan­
do de fato se depara com um ambiente natural intocado pelos hom ens, M ar-
tius se vê como um estrangeiro. A empolgação pela "solidão selv ag em "
mistura-se com uma sensação de angústia, causada p ela "solidão destituída
de seres humanos", embora tenha alcançado esse ponto com a ajuda de ín­
dios. O autor traça nítida oposição entre o "ermo pavoroso", no qual se en­
contrava, e a venturosa Europa, para a qual anseia voltar o quanto antes. O
vazio de seres "hum anos" — que não pode ser preenchido pelos índios — , a
ausência de "cultu ra" e de "salvação" determinam o seu sentimento am bí­
guo em relação ao lugar, reiteram a sua consciência de ser europeu e ju stifi­
cam a sua "rndizível saudade". A cena representada na litografia aduz a
oposição mencionada na narrativa embora esteja longe d e traduzir o senti­
m ento de opressão experimentado por Martius. O contraste expressa-se m ais 131Vide Figura 6.
pelo destaque que o explorador europeu desfruta na imagem. D ecentem en­
te vestido e arrumado, a postos para fixar o momento de sua conquista, ele 1,5 G. Stocking, op. ri/., p, 25; R. Romano, Con­
servadorismo romântico —:òrigmi do totalitarismo,
opõe-se aos índios nus, de menor tamanho e até certo ponto mais integrados
São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 25-71. :
na paisagem132.
,MSpix & Martius, op. cit., vol. U, p. 188/ 697.

Semelhantemente ao qu e alguns de seus compatriotas, como Herder, Schle- 133 Na Viagem pelo Brasil, a tradução desses ter­
gel e Hegel, por exemplo, haviam ensinado, Martius se utiliza da m etáfora mos suscita algumas dificuldades, em virtude
solar133para definir õ inexorável caminho da "cultura" e da "salvação", que, da ausência dc critério para defini-los. Para tan­
to, basta examinar alguns exemplos: "Cultur-
no entanto, ainda não haviam atingido aquele "ermo pavoroso". A despeito zustand" (p. 7) & vertido para "estada dc
de a colonização européia ter espalhado em muitos aspectos "sem entes da civilização" (i, p. 27); "hohere Bildung" (p. 90-
destruição"134, confõfm e bpix elvíartius reparam, não podênTãtraridorrara 1) e "Bildung" (p. 98,105,492, 1255,1285) tam­
bém são vertidos paxa "civilização” (1, p. 48, 53,
crença que justifica a própria superioridade dò europeu e o príriHpicTda 56; n , p. 63; III, p. 173,257). Mas "Bildung".(p.
humanidade. Se á metatora solar traduz a trajetória do que ora~cKã!iTam de 115) também pode aparecer como "cultura" (I,
Bildung (formação), de Kultur (cultura) ou deZ ívilisation (civilização), então p. 64), "curopliische Bildung" (p. 1(M, 204) como
"cultura européia" (I, p. 56,125) e "literarische
o seu olhar investigador precisa perscrutar, por onde passam, as evidências Bildung" (p. 104) como "cultura científica" (I,
dessa irradiação135. p. 56). Ibiácni Evidentemente, a tradução da
palavra "Bildung" é complexa, pois pode ser .
entendida como educação e ■formação cultural
Conforme a análise de N orbert Elias, os conceitos de Kultur e Zivilisation ou cultura. Os autores também usam o termo
apresentam, desde a Ilustração, nítida diferenciação no pensam ento ale­ "Civilisation", cuja traduçao, em sua maioria, é
m ão. O ponto de partida para a distinção desses conceitos é a oposição "civilização". Já "Cultur"!ambémpode se rusa-
do no sentido de cultivo da terra. Chamamos a
entre o com portam ento da aristocracia e^asecndent ^intelligentsia b u rg u e­ Atenção, novamente, para o fato de mantermos
sa na Alemanha. De um lado, a idéia á è ^ ivilisüH0 2 -iri.âuzia a "su p erficia ­ nas citações originais da Rase m Bmsihen e de ,
lidade, cerimônia, conversas form ais", atribuídas à nobreza. Do outro, ter- algumas outras fontes a grafia da Lmgua.aJe-:
má do século XIX, segundo a qual, por. exem­
se-ia aj^íltím^que expressava a "vida interior, profundidade de sen tim en ­ plo, escrevc-se "ÇiviJisatíon"'e ' Cultur' com.a-,
to, absorção em livros, desenvolvimento da personalidade in d iv id u al", letra C. . ,■ ... .■

A VIAGEM PELO BííASIl: ESBOÇO DE UMA CIVIUZAÇÀO 169 ' .

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