Você está na página 1de 10

Imagens da Amazônia

Gustavo Soranz

Índice fato que levaria à criação de diversos mitos


sobre a região. Entre diversas histórias de fe-
1 Notas sobre o exotismo 1 ras bestiais e povos chamados de primitivos,
2 Filmes de viagem e pioneirismo na destaca-se a das mulheres guerreiras, imedi-
Amazônia 3 atamente identificadas com o mito grego das
3 Documentário e ficção na Amazônia 4 Amazonas, que, segundo o professor Marcos
4 Estrangeiras imagens 6 Frederico Kruger “inaugura a tradição de se
5 Cinema digital no Amazonas 8 ver a região amazônica como um conjunto
6 Referências bibliográficas 10 de exotismos. E mais: um conjunto de im-
possibilidades, onde não existe a realidade
Resumo social, mas tão somente a lenda.” 1 Assim,
desde o mito inaugural do exotismo sobre a
Através deste artigo buscamos relacio- região, temos difundida a idéia de que nes-
nar os principais momentos da produção tas paragens não havia lugar para uma soci-
cinematográfica realizada no Amazonas, edade organizada, não existia cultura, senão
identificando neste percurso como a imagem barbaridade, ao menos nos moldes da cultura
da Amazônia sempre esteve relacionada aos européia de então.
mitos identificados com a idéia de Novo Para pensar o encontro dos europeus con-
Mundo do século XVI, e, como a atual pro- quistadores com os povos das terras recém-
dução cinematográfica produzida no Estado descobertas, Edgard de Assis Carvalho vai
pode realizar sua auto-etnografia através da buscar em Tzvetan Todorov os “princípios
elaboração de um olhar comprometido com fundadores da alteridade” 2 , que serviriam de
o local. chave para uma definição da idéia de estran-
geiro. São a Regra de Homero e a Regra de
Palavras-chave: Cinema; Amazônia; Re- Heródoto, nos interessa aqui a idéia da se-
presentações do exótico. gunda, que segundo Assis Carvalho é a regra
“para a qual determinadas sociedades, ba-
1 Notas sobre o exotismo 1
ALEIXO, Marcos Frederico Kruger. A Amazô-
Diversos são os relatos dos viajantes que pas- nia na visão dos viajantes. In: Congresso Brasileiro
de Tropicologia, 1, 1986, Recife. Anais... Recife:
saram pela Amazônia no início do século Fundaj, Massangana, 1987. p. 159-163.
XVI. Em comum a descrição de imagens 2
CARVALHO, Edgard de Assis. Estrangeiras
exóticas e fantásticas sobre o Novo Mundo, imagens. In: Ensaios de complexidade. p 122.
2 Gustavo Soranz

seadas em supostas supremacias econômico- expedições científicas que marcariam a his-


culturais, considerar-se-iam as melhores do tória do Vale Amazônico, explorando seus li-
mundo, passando, a partir desse critério va- mites e construindo a idéia daquilo que viria
lorativo, a julgar as outras como inferiores, a ser conhecido como Amazônia. A partir
pérfidas, incapazes, não-racionais.” 3 do século XIX, os procedimentos de inter-
Na marcha para o oeste, com o avanço ma- pretação da Amazônia são construídos por
rítimo da civilização européia para o Novo intelectuais estrangeiros, que não estão com-
Mundo, temos um verdadeiro massacre et- prometidos com uma visão científica local,
nográfico, com a imposição dos valores e da própria da região, o que contribui para a
cultura de uma determinada sociedade sobre exotização da região, transformada em de-
os valores e a cultura de outras, sob pena serto verde, idéia de lugar desabitado, sem
de todos os prejuízos de ordem simbólica. tecido social, conforme já identificou Kruger
Ainda segundo Assis Carvalho na passagem citada no início deste texto.
Na visão sobre a Amazônia temos, em es-
“Essas alteridades, cifradas pelo pa-
sência, a polarização entre um mundo civili-
norama da nudez, dos prazeres an-
zado, o do europeu, do viajante; e o arcaico e
siosos, das belezas lascivas, da não-
exótico, do nativo da região, visão que marca
mercantilidade, acabaram por produzir
e fundamenta o discurso da natureza into-
uma revolução sem precedentes no ima-
cável, que vai desaguar diretamente no dis-
ginário ocidental, abalando o suposto rei-
curso contemporâneo da biodiversidade, da
nado civilizatório e a arrogância de seus
preservação e da ecologia, discurso que pri-
súditos e mandatários, ainda que sua his-
vilegia os aspectos naturais em detrimento
toricidade fosse entendida como um dis-
do humano. Fundamento dos discursos de-
curso negativo, um somatório de ausên-
lirantes sobre a Amazônia.
cias, que as colocava fora da própria his-
O processo de construção do pensamento
tória.
social sobre a Amazônia encontra no pro-
Em virtude dessa negatividade, foi difí-
fessor Renan Freitas Pinto, um de seus me-
cil ao Ocidente entendê-las como mani-
lhores analistas. Em seu livro Viagem das
festações culturais plenas. Talvez, por
idéias, ele reúne uma série de artigos que
isso, tornou-se obsessiva a compulsão
buscam pensar a formação do pensamento
de domá-las, escravizá-las, contaminá-
social na região, além de outras questões re-
las, domesticá-las, sob a ideologização
lacionadas. Entre as questões por ele levan-
de que eram inferiores, estranhas, estran-
tadas e propostas, está a sugestão de uma ge-
geiras, mantendo-as no patamar de uma
ografia do exótico, que seria a delineação de
não-cidadania cultural, sempre espúria e
discursos e práticas referentes ao exótico e à
subalterna.” 4
exotização, presentes na literatura, artes, ci-
Do exotismo no discurso do viajante con- ência, assim como no senso comum, muito
quistador, passamos ao discurso preservaci- fortemente difundidas no século XIX, ainda
onista do naturalista colecionador, fruto das que as práticas da Antiguidade e da Idade-
3
Ibid. p 122. Média já houvessem elaborado a noção de
4
Ibid. p 124. exotismo.

www.bocc.ubi.pt
Imagens da Amazônia 3

O surgimento dos recursos de reprodução Através das mãos dos cinegrafistas o ci-
técnica da imagem no século XIX, inicial- nema tinha chegado às diferentes localida-
mente com a fotografia, depois com o ci- des mundo afora, e através de seus olhos, as
nema, permitiu que pesquisadores amplias- imagens das diferentes culturas e tradições
sem o trabalho de etnografia e antropologia, eram captadas para a exibição nos grandes
e que os viajantes avançassem com os re- centros europeus e americanos. Para Emanu-
gistros das vistas exóticas, efetuando regis- ele Toullette, “pioneiros de um mundo novo,
tros visuais das diferentes culturas e locali- os operadores desempenharam um papel ca-
dades ao redor do mundo, ampliando os li- pital: além de registrarem imagens, eles lan-
mites da geografia do exótico, conforme co- çam, no curso de suas peregrinações, as ba-
locou o professor Renan no referido texto. ses da exibição, da produção e da distribui-
ção, como fundadores das cinematografias
nacionais.”7 No Brasil não é diferente, tam-
2 Filmes de viagem e
pouco no Amazonas.
pioneirismo na Amazônia A produção cinematográfica no Amazo-
O cinema, invenção que é fruto de conquistas nas teve seus dias de pioneirismo reconhe-
de diferentes técnicos, inventores e cientis- cidos no trabalho do cineasta português Sil-
tas, que trabalhavam simultaneamente com vino Santos, que no início do século XX rea-
os desafios em registrar imagens em movi- lizou vasto registro da Amazônia. Mesmo re-
mento no final do século XIX, buscou sua alizando filmes sob encomenda para um im-
expansão e viabilidade comercial através de portante empresário da cidade de Manaus no
viagens pelo mundo a fim de registrar as atu- período, o trabalho de Silvino expressava um
alidades e vistas, atrás das imagens do des- olhar diferenciado sobre o local, sobre a pai-
conhecido, do estrangeiro, do exótico, numa sagem, sobre os povos e suas manifestações
“moderna aventura”, conforme definiu Em- culturais. Não se limitava, como outros re-
manuelle Toulet. 5 alizavam Brasil afora, a um mero trabalho
O cinematógrafo, invenção dos irmãos de propaganda ou de registro, ainda que essa
Lumière era bastante leve, diferentemente do fosse a finalidade inicial da maioria de seus
modelo de câmera desenvolvido por Thomas filmes. Para o professor Narciso Lobo, “o
Edison nesse período inicial, segundo Silvio que destaca Silvino é o fato de ter ficado em
Da-rin, “ao contrário da câmera quinetógrafo Manaus e aqui realizado a sua obra, uma
e do projetor vitascópio, o cinematógrafo era obra tão grande e rica como o rio das Ama-
um aparelho reversível, que funcionava ao zonas, um de seus grandes temas.” 8
mesmo tempo como câmera, copiadeira e Um caso que pode servir de paralelo ao de
projetor. Leve e portátil, independente de Silvino Santos é o do Major Luiz Thomaz
corrente elétrica, podia ser facilmente trans- Reis, que percorreu o Brasil junto à Comis-
portado pelo mundo afora.” 6 são Rondon, registrando povos e manifesta-
7
5
TOULET, Emmanuelle. O cinema, invenção do TOULET, Emmanuelle. O cinema, invenção do
século. p 103. século. p 103.
8
6
Da-RIN, Sílvio. Espelho partido. p 34. COSTA, Selda Vale da e LOBO, Narciso Júlio
Freire. No rastro de Silvino Santos. P.71.

www.bocc.ubi.pt
4 Gustavo Soranz

ções tradicionais, cujo trabalho foi analisado vida de Silvino Santos, localizando diversos
por Fernando de Tacca, segundo quem de seus filmes em cinematecas americanas e
européias,
“A imagem na Comissão Rondon existe
como auto-afirmação, marketing e mos- “A produção cinematográfica de Silvino
tra da ação estratégica de ocupação de Santos é um longo e completo mosaico
nossas fronteiras. Nesse roteiro, a ima- da vida amazonense e amazônica. Re-
gem do índio tribal é construída como alizou 9 longas-metragens, quatro deles
uma referência de integração e não de localizados; 57 documentários de média
exclusão no conjunto da nação. Ron- e curta-metragem, quase todos exibidos
don e Reis formam um único e insepa- comercialmente. Produziu uma série de
rável olhar articulado que fornece visi- 26 filmes “domésticos” que retratam a fa-
bilidade das diferenças étnicas e de con- mília Araújo, em Manaus e Portugal.” 10
tato no Brasil daquela época, responsável
por permanências sígnicas no imaginário Silvino Santos, um dos pioneiros do ci-
brasileiro no roteiro entre a imagem do nema no Brasil, apontou suas lentes para a
selvagem ao integrado.” 9 região amazônica lançando um olhar sensí-
vel sobre sua realidade, lançando as bases de
O cinema na comissão Rondon assume um cinema comprometido com a região e o
importância de registro e de fichamento das homem amazônico.
populações tradicionais, seus costumes e há-
bitos, do mesmo modo como os inúmeros ci-
3 Documentário e ficção na
negrafistas anônimos, que já haviam percor-
rido a Amazônia durante o final do século Amazônia
XIX e início do século XX, haviam feito. A produção de Silvino Santos é essencial-
São relatos de viagem marcados pelo signo mente uma produção documental (ainda que
do exotismo, pela exposição da alteridade a discussão sobre o que é documental, e o
como algo inferior e submisso. que é ficcional, ou até onde as duas se cru-
No caso específico do Amazonas, a per- zam e criam zonas de intersecção seja uma
manência de Silvino Santos na cidade de discussão pertinente), produzindo imagens
Manaus, onde estabeleceu residência e, du- para serem exibidas em mercados dos gran-
rante muitos anos, trabalhou para a firma des centros nacionais e internacionais, para
J.G. Araújo, possibilitou a realização de uma um público estrangeiro e, geralmente, des-
vasta e importante obra sobre os diversos as- conhecedor da região amazônica. Imagens
pectos da Amazônia, dos seus povos à natu- que buscavam divulgar as belezas e as espe-
reza. Segundo a professora Selda Vale, que ciarias provenientes da floresta a um público
realizou extensa pesquisa sobre a obra e a potencialmente consumidor.
9
TACCA, Fernando de. Luiz Thomaz Reis: etno- 10
COSTA, Selda Vale da e LOBO, Narciso Júlio
grafias fílmicas estratégicas. In. TEIXEIRA, Fran- Freire. No rastro de Silvino Santos. p. 7.
cisco Elinaldo (org.). Documentário no Brasil: tradi-
ção e transformação. p 370.

www.bocc.ubi.pt
Imagens da Amazônia 5

Segundo a antropóloga Patrícia Monte- vimento foi responsável por exibir em Ma-
Mór, naus obras fundamentais para a existência de
um cinema moderno, mais crítico e inven-
“podemos falar também dos registros fíl- tivo, plural nas idéias e nos formatos. Das
micos de cultura e de sociedades que, vanguardas dos anos 20, passando pelos fil-
como documentos, se revestem a poste- mes europeus do pós-guerra, ao movimento
riori de interesse antropológico: descri- do cinema novo no Brasil, tudo foi exibido
ções não ficcionais que são o resultado e analisado nos circuitos alternativos de Ma-
de uma vivência efetiva do cotidiano, dos naus.
rituais, das relações sociais de diferentes Essas atividades de reflexão e fruição es-
grupos, de diferentes povos.”11 tética acabaram por influenciar no apareci-
mento de jovens realizadores, que culmina-
Nesse sentido, os filmes de Silvino San- ria com a realização do I Festival de Cinema
tos são importantes trabalhos etnográficos, Amador do Amazonas, em 1966, que para
de registro dos modos de vida da região, dos os jovens realizadores do período significava
hábitos, da cultura e da sociedade de uma “o primeiro encontro em bases menos artesa-
época. nais que o costumeiro” 13 , segundo Narciso
Conforme a passagem citada anterior- Lobo.
mente, Monte-mór atenta ao fato desses re- Surgiam então as primeiras manifestações
gistros serem “resultado de uma vivência de um cinema genuinamente local, realizado
efetiva do cotidiano” 12 , o que diferencia por amazonenses, que acabou por levantar
a obra de Silvino daquela dos viajantes, questões sobre o que viria a ser um cinema
que passam pelo local recolhendo imagens amazonense. Márcio Souza, então um jovem
que permanecerão na superfície da realidade participante do movimento, lançou um livro
registrada, sem nunca entrar nas questões intitulado O mostrador de sombras (1967,
sócio-culturais, quase sempre ocupados em edição do autor), onde busca refletir sobre
desvendar mistérios e explorar a aventura, a incipiente cinematografia da região, con-
contribuindo para a difusão de um imagi- forme colocou Lobo.
nário fundado no exotismo acerca da região
amazônica. “O cinema amazônico proposto por Már-
Após longo hiato, nos anos sessenta Ma- cio pretende que o homem renasça do es-
naus teve um importante movimento de ci- quecimento. O esquecimento é a morte,
néfilos que agitou a cidade com exibições de é o isolamento, daí que ele defende que
filmes em circuito cineclubista, organização o homem amazônico ”renasça” para os
de grupos de discussão e publicação de crí- outros. Renasça como imagem-sujeito,
ticas em revistas e jornais locais. Esse mo- imagem com autonomia, imagem docu-
11 mental e não mais propaganda, a visão
MONTE-MÓR, Patrícia. Tendências do docu-
mentário etnográfico. In. TEIXEIRA, Francisco Eli- 13
LOBO, Narciso Júlio Freire. A tônica da descon-
naldo (org.). Documentário no Brasil: tradição e tinuidade – cinema e política em Manaus na década
transformação. p. 98. de 60. p. 136.
12
Idem

www.bocc.ubi.pt
6 Gustavo Soranz

idealizada, a fortificação dos mitos no lu- ado ao desgaste natural da película. Entre-
gar da análise. Um cinema que dê a co- tanto a produção do período, sua importante
nhecer “a vida íntima do fato socioló- contribuição cultural, crítica e estética, está
gico”. 14 registrada e avaliada no já citado A tônica
da descontinuidade – cinema e política em
A produção do período estava impregnada Manaus na década de 60, livro do professor
pelas diversas tendências ideológicas e esté- Narciso Lobo.
ticas muito características do contexto sócio- Nas décadas seguintes alguns cineastas
cultural daqueles anos. Particularmente as brasileiros voltaram-se à Amazônia, através
idéias revolucionárias e de um certo popu- de histórias identificadas com os mitos da re-
lismo de esquerda. Narciso Lobo observa al- gião, como é o caso do filme Ajuricaba – o
gumas características ao comentar um filme rebelde da Amazônia, dirigido por Oswaldo
do período, Igual a mim, igual a ti, de Ro- Caldeira em 1977, ou o trabalho de Jorge
berto Kahané: “o protesto juvenil. O filme Bodanzky, que desenvolve a maior parte da
que poucos assistiram. O registro e a pre- sua carreira em documentários para canais
paração para outros momentos mais duros. de TV estrangeiros, em especial para TV
Esse era o cinema amazônico, suas tenta- alemã, em parceria constante com o alemão
tivas, seu potencial, embora nas condições Wolf Gauer. Assuntos relacionados à Flo-
adversas.” 15 resta Amazônica e a região Norte do Brasil
A produção cinematográfica é uma ativi- são recorrentes no trabalho da dupla, entre
dade que no Brasil sempre enfrentou difi- eles O terceiro milênio, de 1983, onde acom-
culdades, a maior delas sempre foi a con- panham um político populista em campanha
corrência desleal e desfavorável com o pro- pelos rincões do Amazonas.
duto estrangeiro, particularmente o produto O Amazonas também já foi alvo das lentes
industrial americano. Isso, somado a alguns de Glauber Rocha, que realizou o documen-
outros fatores, contribuiu para que no Bra- tário Amazonas, Amazonas em 1965. Con-
sil nunca se instalasse uma indústria cine- tratado pelo Departamento de Turismo e Pro-
matográfica. Segundo Jean-Claude Bernar- moções do Estado do Amazonas para fazer
det “a história da produção cinematográfica um filme institucional, rodou sua primeira
no Brasil não se apresenta como uma linha produção em cores.
reta, mas como uma série de surtos em vá-
rios pontos do país, brutalmente interrompi-
dos. São os chamados ciclos, de cinco ou
4 Estrangeiras imagens
seis filmes quando muito. 16 ” Na história do cinema, a Amazônia figu-
Do ciclo de produção amazonense dos rou em uma série de filmes produzidos pe-
anos 60 pouco restou. Devido à precariedade los mercados americano e europeu. Recen-
na acomodação e manutenção dos filmes, ali- temente foi recuperada uma cópia do filme
14
Ibid. p. 107.
“O inferno verde” (“Kautschuk”), produzido
15
Ibid. p. 111. em 1938 na Alemanha nacional-socialista de
16
BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo Hitler e restaurado em 2005 pela Friederich
de cinema. p. 18.

www.bocc.ubi.pt
Imagens da Amazônia 7

Whilelm Murnau Stiftung. Segundo José Ro- que também tinha a Amazônia como ce-
cha Filho nário. Em 1937, Franz Eichhorn publi-
cou um relato de viagem das aventuras
“O filme segue a diretriz do nacional- brasileiras que se tornou amplamente po-
socialismo para a época: a narrativa de pular. O livro, que faz parte da tradição
conquista imperial com tons conserva- de relatos de desbravadores em terras dis-
dores e militaristas, conforme as regras tantes, tornou-se um campeão de vendas
ditadas pelo Ministério para o Esclare- e foi traduzido para o inglês e o francês,
cimento Social e a Propaganda (RMVP sendo reimpresso seguidas vezes na Ale-
- Reichsministerium für Volksaufklärung manha.” 18
und Propaganda”). O filme se apóia nos
preceitos do cinema de aventura clássico, Surgiram filmes que exploram a figura do
bem como no cinema etnográfico, gênero conquistador, como Aguirre, a cólera dos
muito popular na Europa dos anos 30, Deuses (Der Zorn Golles), dirigido pelo ale-
para contar como os ingleses romperam mão Werner Herzog em 1972, ou exploram a
o monopólio brasileiro de borracha natu- visão de delírio humano frente a imponência
ral, no Brasil de 1876 “ 17 da floresta, como em Fitzcarraldo, filmado
em 1982 pelo mesmo diretor. Tais produções
A produção de cinema encontra, ainda reforçam a idéia do exótico sobre a região,
hoje, imensas dificuldades na região amazô- sempre contadas do ponto de vista do estran-
nica, principalmente de ordem logística e de geiro viajante.
organização da produção. O deslocamento O olhar do colonizador europeu foi res-
na região é dificultoso devido à quase ausên- ponsável pela criação dos mitos do novo
cia de estradas de rodagem e as condições mundo enquanto um lugar selvagem e into-
climáticas são extremamente desfavoráveis cado, exótico e exuberante. Idéias que per-
à manutenção dos equipamentos e manipu- meiam até hoje o imaginário acerca da região
lação do material sensível para a filmagem. amazônica, lugar representativo por excelên-
Ainda segundo Rocha Filho, cia do mito do novo mundo. Essas idéias po-
dem ser notadas no argumento de uma série
“Para a realização de “O inferno verde” de filmes produzidos ainda hoje, a exemplo
foi necessário enviar uma expedição ao do filme Anaconda, dirigido por Luiz Llosa
Brasil, durante os anos de 1936 e 1937, em 1997. A maioria dessas produções sequer
liderada pelos irmãos Edgar e Franz Ei- pisou em solo amazônico para a realização
chhorn. Os Eichhorn foram os produ- do filme.
tores de “Urwald Symphonie” (“Sinfo- Algumas produções investem pesada-
nia da floresta selvagem”, 1931), de Au- mente nos aspectos do desconhecido, explo-
gust Brückner e Pola Bauer-Adamara - rando a violência e o grotesco como ele-
17
mentos de uma sociedade primitiva e bestial,
FILHO, José Rocha. O inferno verde:
onde encontram-se povos canibais, doen-
um filme nazista feitos no Brasil. Disponível em
http://www.uol.com.br/tropico/html/textos/2737,1.shl. ças desconhecidas e animais pré-históricos.
Acessado em 10/10/2006. 18
Ibid.

www.bocc.ubi.pt
8 Gustavo Soranz

Exemplo de filme que investe nesse tipo de Alguns cineastas vão desenvolver uma vi-
história, Canibal Holocausto, produzido em são idílica da região. Filmando freqüente-
1980 por Ruggero Deodato, tem como pre- mente em solo amazônico acabam desenvol-
missa a viagem de um grupo de jovens até a vendo trabalhos marcados pela presença dos
floresta amazônica, em busca de rolos de fil- habitantes e das comunidades, dando lugar à
mes perdidos de uma equipe que para lá teria construção de uma etnografia do lugar, ainda
se dirigido, a fim de produzir um shockmen- através de olhos estrangeiros. Entre cine-
tary (subgênero de documentário feito para astas estrangeiros que filmaram freqüente-
chocar). Os rolos são revelados e mostram mente na Amazônia podemos citar o aus-
cenas de extrema violência, estupros e cani- tríaco Herbert Brodl. Entretanto, infeliz-
balismo, promovidos pelos nativos em reta- mente, os filmes desse cineasta não foram
liação à exploração dos cineastas. distribuídos comercialmente no Brasil e são
Entretanto a modernização trouxe também de difícil acesso ao público.
a desmistificação dos aspectos mitológicos
acerca da percepção da região amazônica, o
5 Cinema digital no Amazonas
que existe hoje é em grande parte uma re-
visão dos estereótipos sobre a região. Uma O suporte videográfico é responsável por ele-
atualização para novas categorias, que agora var a produção de imagens a um nível antes
procuram diminuir a percepção acerca da nunca visto, segundo Arlindo Machado “a
região amazônica enquanto lugar desconhe- cada novo dia, multiplicam-se em progressão
cido, criando o mito de um lugar que deve geométrica as telas de vídeo ao nosso redor”
20
ser preservado, um paraíso natural. Renan , num fenômeno bastante caótico de regis-
Freitas Pinto diz que tros que vão desde as câmeras de vigilân-
cia até a produção de conteúdo para cinema,
“ quando se fala em Amazônia, estamos Machado diz ainda que “o fenômeno da ima-
diante da produção de um novo senso co- gem eletrônica é múltiplo, variável, instável,
mum sustentado pelas noções de meio complexo e ocorre numa diversidade infinita
ambiente, biodiversidade, sociodiversi- de manifestações.” 21
dade, desenvolvimento sustentável, po- O início do século XXI marca no Ama-
pulações ribeirinhas, povos da floresta, zonas uma nova fase na produção audiovi-
que são as expressões correntes e pre- sual, com o surgimento de um movimento
sentes em praticamente todos os escritos em torno da produção de vídeos, realizados
que têm sido produzidos sobre a região em sua maior parte por pequenas câmeras di-
e que freqüentemente carregam consigo gitais, numa produção grandiosa em número
conteúdos de imobilismo social e conser- de realizações, ainda que bastante modesta
vadorismo romântico, quando se trata so- na qualidade estética. É uma produção que,
bretudo de lidar com a situação e o des- apesar de realizada em suporte eletrônico, se
tino das populações locais.” 19 20
MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário.
19 p. 45.
PINTO, Renan Freitas. A viagem das idéias. In
21
Estudos avançados 19. p. 99. Ibid. p. 45.

www.bocc.ubi.pt
Imagens da Amazônia 9

autodenomina cinematográfica, e está desli- simbólico. Para Alfredo Bosi, segundo o


gada da produção televisiva que se estabele- qual “o homem de hoje é um ser predomi-
ceu aqui durante as últimas décadas. nantemente visual” 23 , “o ato de olhar signi-
O grande número de suportes de regis- fica um dirigir a mente para um “ato de in-
tro de imagem acaba por causar uma grande tencionalidade”, um ato de significação que,
confusão no que tange a diferenciação e es- para Husserl, define a essência dos atos hu-
pecificidade técnica, ignorando assim aspec- manos.” 24
tos formais e estéticos, diluídos em formu- O olhar marca a percepção do mundo ex-
lações mal conceituadas sobre as manifesta- terior, define nossa relação simbólica com
ções de linguagem audiovisual. A hibridiza- o universo dos homens e das coisas, define
ção dos formatos e o processo fragmentário nosso imaginário. Ainda segundo Virilio:
de produção acabam por definir a linguagens
contemporâneas. “Nunca a questão do olhar esteve tão no
Alguns frutos já surgiram desse movi- centro do debate da cultura e das socie-
mento que surgiu por volta de 2001. Hoje dades contemporâneas. Um mundo onde
a cidade de Manaus tem realizado regular- tudo é produzido para ser visto, onde
mente festivais de cinema voltados a produ- tudo se mostra ao olhar, coloca necessa-
ções em curta metragem, e já se esboçam ini- riamente o ver como um problema.” 25
ciativas voltadas ao financiamento das pro-
duções, através de concursos promovidos Entretanto o olhar sobre nossa própria es-
por secretarias do estado e da prefeitura, que sência nos foge ao controle. A história das
é certo precisam amadurecer e serem ampli- civilizações ocidentais demonstra que a ver-
adas. são oficial dos fatos sempre foi orientada
Após o final da segunda guerra, o mundo pelo olhar do dominador, do conquistador,
experimenta um fascinante processo de conforme assinalou Nelson Brissac Peixoto:
avanço no campo das tecnologias da infor-
mação. Os processos industriais de produ- “Situar o olhar, histórica ou psicanaliti-
ção, os aparatos técnicos de reprodução e a camente, é descrever não só os seus limi-
natureza sistêmica da produção acabam por tes, as suas determinações objetivas, mas
criar um ritmo bastante intenso de produ- também sondar a qualidade complexa da
ção de imagens, segundo Paul Virilio “desde sua intencionalidade.” 26
a década de 1960, as descobertas se enca-
Hoje, como nunca, a Amazônia é tema de
deiam no domínio da percepção visual” 22 .
documentários para TV a cabo estrangeiras,
Entramos portanto na era da informação, da
locação para filmes comerciais de produtos
negociação dos bens simbólicos, na era das
imagens, que podem ser provenientes de es- 23
BOSI, Alfredo. Fenomenologia do olhar. In O
tímulos visuais ou estímulos sonoros. olhar. p. 65.
24
Nos interessa nessa análise a noção do Ibid. p. 79.
25
PEIXOTO, Nelson Brissac, O olhar estrangeiro.
olhar enquanto um fenômeno formativo, In O OLHAR. p. 361.
26
22
VIRILIO, Paul. A máquina de visão. p. 47. PEIXOTO, Nelson Brissac, O olhar estrangeiro.
In O OLHAR. p. 361.

www.bocc.ubi.pt
10 Gustavo Soranz

importados e set de filmagem para produ- PINTO, Renan Freitas. Viagem das idéias.
ções de grandes estúdios cinematográficos. Manaus: Editora Valer/Prefeitura de
Trabalhos audiovisuais que raramente estão Manaus, 2006.
acessíveis aos amazônidas. Não retornam
para essa audiência sequer para uma possível TOULET, Emmanuelle. O cinema, invenção
reflexão sobre a sua representação nos pro- do século. Objetiva, 2000.
dutos audiovisuais.
O desafio do atual cinema produzido no
Amazonas é o de pensar o local sob sua pró-
pria percepção, revelando suas cores e for-
mas, realizando assim uma auto-etnografia a
partir da experiência local.

6 Referências bibliográficas
ALEIXO, Marcos Frederico Kruger. A
Amazônia na visão dos viajantes. In:
Congresso Brasileiro de Tropicologia,
1, 1986, Recife. Anais... Recife: Fun-
daj, Massangana, 1987.

BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em


tempo de cinema: ensaios sobre o ci-
nema brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e
terra, 1978.

CARVALHO, Edgard de Assis. Estrangei-


ras imagens. In: CASTRO, Gustavo de
(org.). Ensaios de complexidade. Porto
Alegre: Sulina, 2002.

COSTA, Selda Vale da e LOBO, Narciso Jú-


lio Freire. No rastro de Silvino Santos.
Manaus: SCA/Edições governo do ES-
TADO, 1987.

DA-RIN, Silvio. Espelho partido – tradição


e transformação do documentário. Rio
de Janeiro: Azougue editorial, 2004.

MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-


cinemas. Campinas, SP: Papirus, 1997.

www.bocc.ubi.pt

Você também pode gostar