Você está na página 1de 18

Copyright © 2005, La Découvert, segunda edição

Título Original: Au couer de l'ethnie. Ethnies, tribalisme et État en Afrique

© desta edição

Edições Mulemba da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto

Título: Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em África

Coordenadores: Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo

Colecção: Reler África

Coordenador da Colecção: Victor Kajibanga

Tradução: Narrativa Traçada

Revisão do Texto: Sílvia Neto

Design e Paginação: Márcia Pires

Impressão e Acabamento: Cafilesa, Soluções Gráficas

ISBN: 9 7 8 - 9 8 9 - 8 6 5 5 - 3 2 - 5

Depósito Legal: 3 7 3 1 0 5 / 1 4

Abril de 2 0 1 4
ELOS MEANDROS
ETNIA
A presente publicação é uma coedição das Edições Pedago e das Edições Mulemba
da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola.

Nenhuma parte desta publicação pode ser transmitida ou reproduzida por qualquer
meio ou forma sem a autorização prévia dos editores. Todos os direitos desta edição
reservados por

EDIÇÕES MULEMBA

Faculdade de Ciências Sociais da ETNIAS. T R I B A L I S M O E ESTADO EM ÁFRICA


Universidade Agostinho Neto
Rua Ho Chi Minh, 56
Caixa Postal 1649
LUANDA-ANGOLA JEAN-LOUP AMSELLE e ELIKIA M ' 9 0 K 0 L 0
emulemba@fcs.uan.ao
emulembafcsuan@yahoo.com.br
(COORD.)
facisouan@fcs.uan.ao
facisouan@yahoo.com.br

EDIÇÕES PEDAGO, LDA.

Rua do Colégio, 8
3 5 3 0 - 1 8 4 Mangualde
PORTUGAL

Rua Bento de Jesus Caraça, 12


Serra da Amoreira
2 6 2 0 - 3 7 9 Ramada
PORTUGAL
geral@edicoespedago.pt
www.edicoespedago.pt

d
edições pedago
Hútu e Tutsi no Ruanda e no
Burundi
Jean-Pierre Chrétien *

A existência das etnias hútu e tutsi no Ruanda e no Burundi insere-se


num conjunto inusitado de evidências. Trata-se de «etnias» que não se
diferenciam pela língua, pela cultura, pela história, nem pelo espaço
geográfico ocupado. Seguramente, a evolução social e política contem-
porânea dos povos ruandês e burundiano conferiu a essa clivagem uma
realidade amiúde trágica. Porém, antes dos acontecimentos de 1959-
-1963 no Ruanda e os de 1 9 7 2 - 1 9 7 3 no Burundi, a evidência da dita
oposição étnica impôs-se aos observadores num duplo registo: por um
lado, o das fórmulas estereotipadas, retomadas de um modo contumaz
em reportagens ou prospectos turísticos, e ainda em relatórios de es-
pecialistas e recensões acadêmicas; por outro, o de uma imagética fal-
samente ingênua, de que é exemplo um «ensaio fotográfico» de 1957
no qual todos os bahutu do Ruanda eram apresentados num ângulo a
plongée, sobre um fundo de vegetação ou de terra batida e vestidos em
farrapos, enquanto os batutsi se destacavam num ângulo a contre-plon-
gée, sobre um fundo de céu, com os seus perfis «etiópicos» definidos,
quais silhuetas de vacas com cornos compridos. Os «senhores tutsi»
e os «servos hútu» são colocados em cena com as posturas e o guar-
da-roupa apropriados a uns e outros, à semelhança de determinados
filmes etnográficos de época nos quais o mundo «consuetudinário»
era apresentado consoante as seqüências de um verdadeiro romance
fotográfico^ í45 Minas do Rei Salomão filme rodado no Ruanda e es-
treado em 1950, contribuiu para a reactualização do fantástico egíp-
cio - engendrado desde há um século - junto de um público europeu
alargado. No concernente a um filme do mesmo estilo, Roland Barthes
escreveu o seguinte^: «Perante o estrangeiro, a Ordem conhece apenas
duas condutas, ambas de mutilação: reconhecê-lo como guinhol ou
desarmá -Io como puro reflexo do Ocidente.»

í.' CNRS. Centre de recherches africaines.


•)•-)• Maquet, Ruanda. Essai photographique sur une société africaine en transition, Bruxelas,
1957, p. 194.
2 R. Barthes, Mythologies, Paris, 1957, p. 184.

Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi


No Ruanda, nas vésperas da independência, inclusivamente os admi- A partir de meados do século XIX, os linguistas encontraram a solução
nistradores mais rudes, os colonos mais tacanhos ou os missionários para essas incoerências através de um verdadeiro jogo de palavras: a
menos perspicazes cediam à ilusão de compreender esse exotismo tem- inversão do sentido da palavra camita - cada vez mais utilizada devido
perado, e de poder agir sobre uma «sociedade feudal» de manual esco- à influência dos filólogos alemães - sob a forma do vocábulo hamita,
lar. De qualquer modo, a abordagem adoptada relativamente a esse país a fim de designar africanos superiores, negros de alguma forma bran-
retirava-o do tempo, negando-lhe a sua história específica mas também queados - aquilo que noutro contexto apelidámos de «negros falsos"».
as repercussões do imperialismo colonial. Nessa atmosfera ideológica, A mania das classificações e dos rótulos, herdada das ciências naturais
as etnias são factos de «natureza» e a acção moderna do Estado é des- do século XVIII, foi saciada. Porém, o grande debate acerca da unidade
cartada pelo discurso teórico da «civilização». Somente uma análise da espécie humana, das raças e do destino a dar aos Filhos de Noé do
histórica rigorosa permite revelar o processo conducente à cristalização Génesis revelou-se determinante para o êxito dessa nova terminologia.
das consciências étnicas em países sem etnias dignas desse nome.
O etnólogo africanista de finais do século XIX e da primeira metade
do século XX teve como inspiração a tese das grandes migrações Norte-
-Sul, segundo a qual as mais recentes deviam ser as mais evoluídas, e
Uma herança da raciologia do século XIX: hami- o modelo sociológico das miscigenações, apresentadas como fontes de
tas e bantos culturas intermediárias situadas entre a barbárie e a civilização.
A. Lefèvre, mestre na escola de antropologia de Paris, apresenta a re-
Os europeus atravessaram ambos os países pela primeira vez em
ceita em 1892=:
1 8 9 2 (Oscar Baumann no Burundi) e em 1 8 9 4 (Conde von Götzen no
Ruanda). Antes de pisarem aquelas terras, a teoria - descrevendo os «Pretende-se seguir, remontar ao percurso dos invasores; e a distribuição
retratos antitéticos do negro da «África das trevas» e do misterioso ori- geográfica dos vencedores e dos vencidos, e sobretudo o grau de miscigena-
ental que se veio aventurar entre eles - já havia sido forjada com base ção, que permite apurar a duração das relações forçadas entre os autóc-
nos contactos com outras regiões de África e nas reflexões antropológi- tones e os últimos, acabam por suprir a ausência de dados históricos.»
cas da época.
O debate estabeleceu -se em torno da Bíblia e do Oriente Próximo O que se designou amiúde de «história» nas monografias ou nos
desde a primeira metade do século XIX: a linguística, a arqueologia e manuais da época colonial é efectivamente reduzido a essas hipóteses
a exegese racionalista conduziram ao questionamento da negritude da etnologia «difusionista». A teoria das «áreas culturais» - desenvolvida
até aí atribuída a Cam transferindo a sua linhagem para a raça «cau- em inícios do século XX por autores alemães, tais como B. Ankerm-
casiana» branca. Em virtude do poligenismo circundante, os eruditos man® e quase oficializada pelas reedições constantes do manual de
passaram a encarar «os negros enquanto tais» como os representantes Baumann e Westermann intitulado Les Peuples et les civilisations de
de uma outra «espécie» humana. Os viajantes que se aventuravam l'Afrique - constitui uma teoria dos «estratos culturais». As variações
rumo ao Níger, à Zambézia ou ao Alto-Nilo constatavam, por seu turno, são interpretadas em termos biológicos de miscigenações diferencia-
que os africanos não correspondiam todos ao modelo do negro cari- das: as expressões «hamito-nilótico», «negróide», «banto hamitizado»
catural presente nas tabuletas das tabacarias da época, o qual se de- servirão frequentemente de explicação na África Oriental.
semaranhava naturalmente enquanto antítese da estátua grega antiga, A maioria dos factos de civilização são assim atribuídos a uma in-
ideal-tipo do homem branco. As impressões estéticas desempenharam fluência estrangeira, em especial asiática, em consonância com a mi-
desde o início um papel fundamental nas construções antropológicas. ragem oriental igualmente patente na construção do mito ariano nes-
As etnias foram rapidamente classificadas - com incoerências entre os sa época. O naturalista Franz Stuhlmann, um dos especialistas mais
seus observadores - em função do seu nível de «beleza», «inteligên-
cia», «orgulho» ou organização política, sendo que os traços culturais,
politique française contemporaine, Paris, 1977, pp. 1 7 1 - 1 9 9 .
morais e físicos deviam contribuir de forma coerente para a hierar- 4. «Negros "verdadeiros" e "falsos"». Le Monde-Dimanche, 2 8 de Junho de 1981.
quização das populações^ 5. A. Lefevre, «Races, peuples, langues de l'Afrique», Revue de l'école d'anthropologie de Paris,
1892, pp. 65-66.
6. B. Ankermann, «Kulturkreise und Kulturschichten in Afrika», Zeitschrift für Ethnologie, 1905,
3. J.-P. Chretien, «Les deux visages de Cham», in P. Cuirai, E. Temime, L'Idée de race dans la pensée pp. 54-84.

172 Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.) Pelos M e a n d r o s da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado emÁfricaConjunturasétnicasnoRuanda173
ouvidos da administração alemã antes de 1914, teceu a seguinte ob- reservados, corteses, argutos. Sob a aparência de uma certa sofistica-
servação, em 1910, numa monografia acerca do artesanato na África ção, adivinha-se uma índole velhaca. As mulheres, enquanto são jo-
OrientaF: «Perante cada traço civilizacional em África, é necessário vens, são realmente belas; aliás, a sua tez é ligeiramente mais clara do
perguntar sempre se o mesmo não provém do exterior, ou seja, da que a dos homens.»
Ásia.» De acordo com o autor, seriam descendentes de uma misteriosa
Em virtude dessa visão, considerada então como científica, os au- «raça vermelha», a do próprio Adão e das primeiras civilizações (!],
tores propuseram ver nos galla os descendentes de uma incursão com base numa obra esotérica de 1 9 0 6 sobre «os adamitas»: a for-
gaulesa, nos fang uma vaga germânica, nos peul os judeus-sírios da mação médica nem sempre constitui um antídoto contra a fantasia no
Antiguidade, nas ruínas de Zimbabwe uma construção fenícia ou nos terreno das ciências humanas...
zoulou as vergônteas da Suméria. Quem seria capaz de garantir que A literatura religiosa cristã, por seu lado, continuou a desempenhar
essas elucubrações não existem nos dias de hoje? Em Maio de 1970, um papel fulcral no debate antropológico, não só em virtude da pre-
o autor de um «relato etnológico» sobre o Ruanda «tradicional» (Les sença dos missionários no local, mas também pelo facto de os pala-
Derniers Rois Mages] afirmava que a sua estadia nesse país permitira- dinos da narrativa bíblica sobre a dispersão dos povos se sentirem
-Ihe «tornar-se contemporâneo dos grandes intelectuais da Suméria» na obrigação de responder aos desafios «da ciência». Os diferentes
e descobrir uma realeza extraordinária cujas capitais «são reminiscen- manuais publicados desde a década de 1 8 8 0 pelo sulpiciano, F. Vi-
tes dos campos mongóis da Idade Média®»! gouroux, até ao seu Dictionnaire de Ia Bible de 1 9 2 6 são ilustrativos dessa
As implicações racistas do imaginário literário e científico culti- diligência. O episódio da torre de Babel relegou o da maldição de Cam
vado em torno dos povos da África Negra são demasiado evidentes. como episódio de viragem. Como castigo por esse acto de orgulho, os
A oposição entre o «negro enquanto tal» e o «hamita» tornou-se um camitas teriam sido então expulsos para as terras mais longínquas
leitmotiv nos manuais especializados dos anos 1 9 3 0 - 1 9 5 0 . A obra de e mais queimadas pelo sol. Nesse quadro, a explicação da dicotomia
1 9 3 0 de Charles Seligman, reeditada por diversas vezes nos anos 60 «hamitas» e «negros» apresenta duas versões: os primeiros proviriam
(e traduzida para francês a partir de 1 9 3 5 ] , constitui o exemplo mais da vaga mais recente desses exilados; ou, por outro lado, seriam as
célebre': vergônteas de miscigenações entre os filhos de Cam e Sem, ou seja,
«hamitas semitizados». Trata-se da teoria defendida por dois padres
«As civilizações de África são as civilizações dos hamitas [...]. Os invasores brancos influentes - o holandês Van der Burgt em 1903, e o francês
hamitas eram caucasianos que se dedicavam à pastorícia e que chegaram Gorju em 1 9 2 0 " - em relação aos bahima e aos batutsi da região dos
vaga após vaga, estando mais bem armados e exibindo um espírito mais Grandes Lagos.
dinâmico dos que os agricultores negros de pele escura.» Desse modo, verificou-se uma preservação do monogenismo bíblico
e um reconhecimento da diversidade das «raças». Além disso, as so-
Em 1948, um médico belga publica uma pequena obra redigida após ciedades industriais e urbanas contemporâneas recuperaram a lição
uma visita ao «Ruanda-Urundi» sob tutela belga^", na qual inclui um re- moral da «maldição de Cam» num sentido edificante: criadores dos
trato dos batutsi (o dos bahutu será citado mais adiante]: «Chamam-se primeiros impérios das primeiras cidades e das primeiras civilizações,
batutsi. Na realidade, são hamitas, provavelmente de origem semítica os «camitas» foram corrompidos por esse excesso de progresso. Esses
ou, de acordo com algumas hipóteses, camita, e mesmo adamita. Repre- negros, que exibem os traços da sua origem oriental, constituíam sím-
sentam cerca de um décimo da população e formam, na realidade, uma bolos de degradação, e não tanto de primitividade. O padre Vigouroux
raça de senhores. observava no seu Dictionnaire de 1 9 2 6 que: «Era sobretudo a força ao
Os hamitas têm 1,90 m de altura. São delgados. O seu nariz é direito, serviço de uma civilização material, no seio da qual reinava a mais pro-
a sua testa, alta e os seus lábios, finos. Os hamitas parecem ser distantes, funda desordem moral». Uma visão penitencial da história - própria do
catolicismo do século XIX - juntava-se assim ao pessimismo gobinista
7. F. Stuhlmann, Handwerk und Industrie in Ostafrika, Hamburgo, 1910, p. 77. nessa teoria das raças.
8. P. Dei Perugia, Les Derniers rois mages, Paris, 1970. 0 artigo citado consta das Nouvelles litté-
raires, 28 de Maio de 1970.
9. C.G. Seligman, Races of Africa, Londres, 1930, p. 96. 11. J. Gorju, Entre le Victoria, lAlbert et l'Edouard, Rennes, 1920, pp. 26-27. J.M. Van der Burgt,
10. J. Sasserath, Le Ruanda-Urundi, étrange royaume féodal, Bruxelas, 1948, pp. 27-28. Dictionnaire français-kirundi, Bois-le-Duc, 1903 (introd. de 107 p.).

172 Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.) Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado emÁfricaConjunturasétnicasnoRuanda173
Dir-se-á que remontamos ao Dilúvio. Porém, a aplicação dessa grelha tinha sido erigida em dogma a ponto de toldar por completo a obser-
de leitura à África Oriental é passível de ser identificada em diversos vação: von Götzen nota que «no Ruanda propriamente dito, senhores e
autores desde 1863 até aos nossos dias: as suas bibliografias con- súbditos encontram-se quase totalmente assimilados nos seus usos e
tribuíram para a adopção desse método regressivo. Afigura-se impos- costumes. A impossibilidade de distinguir o Mhuma^' dos agricultores
sível proceder a uma síntese da articulação das filiações intelectuais em termos de armamento ou vestuário é bastante recorrente».
que conduziram ao modelo étnico mencionado no início. Todavia, im- Porém, no meio século seguinte, a própria abordagem registou uma
porta sublinhar os eixos essenciais da construção ideológica aplicada sistematização e a hipótese de Speke consolidou-se numa verdadeira
à situação específica do Ruanda e do Burundi. vulgata «interlacustre» que transformou essa região africana numa se-
Nessa região, a ideologia hamítica encontra-se patente na hipótese gunda Etiópia e no paraíso do mito hamítico. Estribou-se na dinâmica
de uma migração galla do século XVII. Trata-se de uma ideia aventada de uma convicção dotada de quatro vertentes, de ordem simultanea-
pelo «explorador» J.H. Speke em 1863, a qual será retomada inces- mente histórica, biológica, cultural e religiosa.
santemente até aos anos 50. Vindo da índia, o referido inglês rumou - O modelo das invasões provenientes do Nordeste proporcionava
a África com o objectivo de descobrir «as nascentes do Nilo». Apre- uma ilusão gratificante de uma reconstituição histórica. As lendas
ciou a hospitalidade dos soberanos que o acolheram na região dos de origem (relativas aos heróis fundadores: Bacwezi no Uganda,
lagos [Karagwe e Buganda), a organização dos seus reinos, a beleza Kigwa no Ruanda, Ntare Rushatsi no Burundi) foram recuperadas
das pessoas do seu séquito, reminiscentes dos somali que tivera opor- nesse sentido - uma recolha de etimologias fantasistas (segundo
tunidade de observar numa expedição anterior. Espantado com esse Van der Burgt, gukara, «ser feroz» em kirundi, remeteria para os
refinamento que existia no coração do «continente obscuro», formu- galla!). Impregnados dessa literatura, os responsáveis sucessivos da
lou uma «teoria pessoal», segundo a qual os pastores bahima dessas administração ou das missões no Ruanda e no Burundi só podiam
cortes reais seriam de ascendência etíope (galla). Essa hipótese que estar convictos do carácter oriental, egípcio ou etíope - e portan-
transformava as «aristocracias pastorais» desses países (inclusiva- to estrangeiro - dos batutsi. Nos anos 20-30, o governador Pierre
mente no Buganda onde eram inexistentes enquanto tais) num povo Ryckmans compara os batutsi a Ramsés II ou a Sesóstris'^... A maior
à parte, quase asiático, viu o seu sucesso ser ampliado graças à imagé- façanha dessa ideologia residiu na obliteração do sentido inicial da
tica evocada pelas nascentes do Nilo e pelos «montes da lua» a partir sua definição: o termo «hamita» foi retirado da sua referência bíblica
de Ptolomeu de Alexandria.^^ para ser traduzido (com base no árabe, segundo o que se dizia) como
Os viajantes europeus que se seguiram a Speke, os quais leram o seu «castanho avermelhado». Esta questão é explicada pelo cónego De
relato e se mostraram fascinados pelas mesmas fantasias românticas, Lacger, um francês que se tornou no historiador oficial do Ruanda e
adoptaram o seu modelo com o intuito de explicar as realidades socio- mestre dos seminaristas de Kabgayi, numa obra publicada em 1939
culturais que lhes causavam estupefacção nessas regiões. Os comen- e reeditada em 1959'^
tários anexados por Oscar Baumann e pelo Conde von Götzen às suas - A classificação biológica confluiu em projectos sofisticados de
primeiras descrições do Burundi ou do Ruanda são esclarecedores. O mensuração. Em 1950-1951, um inquérito antropológico do IRSAC
primeiro caracteriza os batutsi como «cavaleiros salteadores» de um de Astrida, conduzido por Jean Hiernaux^®, analisa 879 indivíduos
império desaparecido, os quais se distinguiam por «feições abissínias» numa população estimada, na altura, em quatro milhões de habi-
e «uma pele mais clara do que a dos restantes habitantes"». Na corte tantes para o conjunto «Ruanda-Urundi». Assumindo como ponto
do rei guerreiro Kigeri Rwabugiri, o segundo identifica «a natureza de partida o axioma das invasões sucessivas, consideradas elementos
nómada» dos batutsi e alude à teoria de Speke como se da tradição
específica do Ruanda se tratasse: «pastores hamitas» provenientes do
«país galla» dominam uma «tribo de negros banto», os «agricultores 15. Neste caso, «Mhuma» refere-se ao mututsi, segundo o termo (muhima ou muhuma) utilizado
no Norte e no Leste da região dos lagos para designar os grupos que se dedicavam predominante-
sedentários wahutu^S). No entanto, essa clivagem etno-racial ainda não mente à pastorícia.
16. P. Ryckmans, «Des gens de toute taille». Grands Lacs, 1936, 5/6, p. 279. Rapport sur
l'administration belge du Ruanda-Urundi pendant l'année 1925, p. 34.
12. J.H. Speke, Les Sources du Nil, trad., Paris, 1865, pp. 214-215. 17. L. de Lagger, Ruanda, Kabgayi, 1959, p. 56.
13. Correspondência constante em Norddeutsche allgemeine Zeitung, 11 de Maio de 1893. 18. J. Hiernaux, Les Caractères physiques des populations du Ruanda e de l'Urundi, Bruxelas, 1954,
14. G. A. Von Götzen, Durch Afrika von Ost nach West, Beriim, 1895, pp. 186-187 114 p.

142 Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.) Pelos M e a n d r o s da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em Africa 1Hútue Tutsi no Ruanda e no Burundi
constitutivos das categorias hútu e tutsi, procedeu-se à selecr^ AC realidades políticas constituíram o principal desafio dessas alega-
de amostras adequadas desses tipos humanos, distribuídos d i s provas de desigualdades naturais. Os povos pastores das terras
pequenos lotes em todo o território, com o auxílio dos administr oltas sempre manifestaram a propensão para dominar os agricul-
dores belgas, dos chefes locais e das missões, «conhecedores d^ tores das planícies, explicava Friedrich Ratzel no século XIX. O bispo
questões nativas». Escusado será apontar que, no final, os result Léon Classe e o governador Pierre Ryckmans - inspiradores de vulto
dos corresponderam às pretensões iniciais, ou seja, a adequação d da política colonial no Ruanda e no Burundi - aderiram a essa visão
categorização social com uma classificação somática. Por conta d^ da «raça conquistadora». «O desígnio dos batutsi era o de reinar -
rigor almejado pelo investigador, as conclusões evidenciavam con" oelo que só o seu porte já lhes conferia - sobre as regiões inferiores
tudo, certas cambiantes, recebidas com surpresa pelas autoridades que os rodeavam, um prestígio considerável... Em nada surpreende
que haviam facilitado o empreendimento. Especificamente, o estudo
o facto de os bravos bahutu, menos perniciosos, mais simples, mais
abstem-se do recurso ao vocabulário estético, comummente utiliza
espontâneos e mais crédulos, se deixarem subjugar, sem nunca es-
do de molde a pintar os retratos com cores mais contrastantes A tí
boçar um gesto de revolta^'» Na Alemanha nazi, essa teoria do Her-
tulo exemplificativo, em 1902, Léon Classe [futuro bispo do Ruandal
renvolk chegou a fazer sonhar os antropólogos nostálgicos da coloni-
destacava que «os batutsi [...] são homens soberbos, de traços finos e
zação, como von Eickstedt ou Spannaus". Descritos como «hamitas»,
harmoniosos, com qualquer coisa do tipo ariano e do tipo semítico»
os batutsi eram considerados de bom grado como «arianos».
A Ideologia subjacente afigura-se nítida: recorrendo às palavras do
- Os argumentos religiosos merecem um lugar particular num espa-
padre François Ménard, em 1 9 1 7 , o mututsi «é um europeu sob uma
ço marcado, nessa altura, pelas missões cristãs. Desde a sua chegada
pele negra"».
na região em finais do século XIX, os católicos e protestantes estavam
Sem negar a recorrência relativamente significativa de certas carac- convictos da filiação «cuchita» das dinastias, bem como dos contac-
terísticas consoante os grupos humanos considerados, importa de tos remotos encetados com as cristandades antigas da região nor-
facto, reconhecer que se assiste à constituição de um verdadeiro'es- deste de África. Ainda em 1 9 3 3 , o padre Pagès, cuja obra sobre o Ru-
tereotipo racial, cuja subjectividade se reflecte no número limitado anda foi influente durante muito tempo, aflrma que os batutsi provem
das amostras consideradas como «ideal-tipo». Os aristocratas da de abissínios monofísitas que teriam esquecido a sua língua'^ Essas
corte ruandesa (a começar pelos reis Musinga e Mutara), em particu- ilusões avalizavam a política de evangelização «por cima», uma vez
lar, sao muitas vezes descritos como os modelos «do tutsi» em geral que os chefes de origem «etíope» eram associados à elevação me-
A orientação racial da ideologia colonial a respeito das «etnias» ridional de um povo de Deus!
hutu e tutsi também se manifesta claramente no plano cultural. Ao contrário desses grandes frescos, o retrato dos bahutu pintado
De facto, estabelece-se uma relação íntima entre as características pela literatura colonial afigurava-se o reverso da medalha. Aparente-
físicas e as características culturais e morais. Os antropólogos são
mente, o Ruanda e o Burundi apenas existiam oficialmente na quali-
convocados em auxílio dos linguistas, embaraçados com a homoge-
dade de entidades tutsi. Aliás, o raciocínio dos negociadores dos
neidade linguística da unidade dos barundi ou dos banyarwanda'«.
regulamentos fronteiriços pautava-se, muitas vezes, por esses ter-
Até a uma época recente, recorreu-se inclusivamente à caracterolo-
mos, tanto em 1 9 1 0 quanto depois da Primeira Guerra Mundial. A
gia fisiognómica, herdada do século XIX: os batutsi «leptossómicos»
categoria hútu devia ser apenas a sombra informe desses senhores
por oposição aos bahutu «pícnicos», segundo a terminologia de E. batutsi.
Kretschmer^i.

Um jogo de palavras de mau gosto - tomado por linguística séria


(por vezes até nos nossos dias!) - confundia bahutu e hanto. O último
19. L. Classe, in Missions d'Afrique des Pères blancs. Set. 1902, p. 385. F. Ménard, «Les Barundi» vocábulo adquirira um valor pejorativo manifesto. Forjado em mea-
[Arquivos dos padres brancos, Roma), citado por ). Gahama, Le Burundi sous administration belge. dos do século XIX por um filólogo alemão, Wilhelm Bleek, para efeitos
rans, iyb3, p. 275.
20.^Consultar o anexo de F. Von LuschaN em C. Meinhof, Die Sprachen der Hamiten. Hamburgo,
22. R Ryckmans, Dominer pour servir, Bruxelas, 1931, p. 26.
21. F M. Rodegem, «Les donateurs de vie et de bonheur dans la société rundi». Cultures et développe- 23. Consultar, por exemplo, a revista Afrika Nachrichten. Jan. 1934, pp. 6-8.
ment. 1975, pp. 3-4, p. 598.
24. A. Pages, Un royaume hamite au centre de VAfrique, Bruxelas, 1933, p. 8.

142 Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.) Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado e m Africa 1 Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi
de caracterização de uma grande família linguística, o referido termo w os conceitos e as ilusões mantidos e propagados ao abrigo do colo-

t
evoluíra rapidamente para um sentido de significação racial, uma das nialismo junto das primeiras gerações instruídas não tivessem
variantes do vocabulário aplicado aos «negros» nas classificações exercido nenhum efeito de alienação, como se a ideologia imperial não
antropológicas. Em 1948, o Doctor Sasserath, já citado, frisa: «O resto respondesse aos interesses dos conquistadores europeus, nem tivesse
(5zc) da população é banto. Os bahutu são negros que detêm todas as sido implementada na sua administração. Porventura, essa cegueira
características: nariz achatado, lábios carnudos, testa baixa, crânio histórica é fomentada por estratégias contemporâneas tanto internas
braquicéfalo. Correspondem à classe dos servos. A raça dos chefes quanto estrangeiras, mas a consciencialização política na África actual
impõe-lhes inúmeras corveias.» em nada beneficiará com a preservação de amálgamas e meadas. A
Em 1959, o manual de De Lacger contempla uma descrição análo- história social da época colonial caracteriza-se por uma racialização,
ga: «O tipo físico do muhutu representa o tipo mais comum e geral perceptível na ideologia colonial dos anos 30-40 e nas subsequentes
do negro... braquicefalia e prognatismo... propensão e aptidão para o práticas segregadoras.
domínio agronómico... sociabilidade e jovialidade...confiança ilimitada A dinâmica colonial no Congo Belga é sobejamente conhecida^*^: a
na sabedoria e na técnica sobrenaturais dos griots (sic)... língua aglu- cristalização das oposições entre agrupamentos «tribais» mais ou me-
tinante... '» nos artificiais. No «Ruanda-Urundi», essa «política nativa» traduziu-se
O desenvolvimento de uma crítica científica profunda em relação numa política «racial», arquitectada com base num modelo hierárqui-
aos conceitos de «banto» e «hamita» ocorrerá apenas nas décadas de co de natureza feudal. A imagética medieval, já presente antes de 1914
1970 e 1980, sendo que esse questionamento, ao perturbar em dema- por conta da ocupação alemã, foi implementada sobretudo nos anos
sia a praxe, esteve praticamente limitado ao nível da vulgarização. Pelo 20-30 sob a instigação de responsáveis imbuídos de um ideal católico
facto de não poderem ser caracterizadas enquanto tais, as «etnias» do tradicionalista, designadamente o Monsenhor Classe no Ruanda ou
Ruanda e do Burundi foram concebidas como «raças», mesmo no caso o «residente do Urundi», Pierre Ryckmans. Incentivados a descobrir
de serem qualificadas, por vezes, de «castas». uma espécie de Idade Média africana, envidaram esforços no sentido
de conservá-la e burilá-la através da acção combinada das missões
cristãs e da administração.
Um «feudalismo» pseudo-tradicional: senhores Tanto no Ruanda quanto no Burundi, o estudo étnico está, portanto,
tutsi e servos hútu nitidamente relacionado com uma interpretação do poder dito «tradi-
cional», segundo a qual o poder constitui um desafio entre raças inferi-
É necessário questionar quais terão sido exactamente os aspectos ores e superiores. A alusão constante a «chefes tutsi» e «massas hútu»
subjacentes a essa ideologia das raças na praxe das sociedades em afigura-se significativa: uma simplificação conveniente e uma con-
causa desde há um século, na transição das suas antigas estruturas fusão definida entre «raças» e «castas», apesar de todas as cambiantes
monárquicas para os seus Estados actuais, tendo ainda presente o e contradições reveladas por investigações minimamente sérias. Esse
episódio determinante do poder colonial. Por vezes, surge a resposta a priori manifesta-se inclusivamente nos números aventados relativa-
precipitada de que se trata apenas de uma «superestrutura», da caraça mente à distribuição de duas categorias principais da população: «Não
intelectual de uma relação de classes secular que opõe agricultores e acredito muito que haja mais de 20 mil batutsi no Ruanda», escreve
criadores de animais. Bastaria então traduzir mututsi por senhor ou Léon Classe em Agosto de 1916; numa obra acerca das crianças de
rico, e muhutu por servo ou pobre, a fim de obter uma análise clara ambos os países", o Doutor Vincent observa ainda, em 1954, que os
e satisfatória para efeitos de intelecção. Uma forma hábil de restituir batutsi - segundo o autor, senhores hamitas chegados ao país no XV
uma virgindade ideológica [social) a um modelo fundamentalmente para fins de avassalamento - representavam apenas 7 % da população.
racial assente no encobrimento da história que conduziu aos conflitos Em 1956, Victor Neesen, após um inquérito demográfico que apresentou
do século XX! Em boa verdade, essa abordagem ao presente etnográfi-
co, ou sociológico, consistiria na pretensão de mover, no tempo, peões
sobre um tabuleiro de xadrez sociocultural julgado imutável, como se 26. Para exemplos, consultar J.-P. Chretien, «L'alibi ethnique dans les politiques africaines»,
Esprit, 1981, Julho-Agosto, pp. 109-115.
27. Nota de L. Classe ao governo belga, 2 8 - 8 - 1 9 1 6 (papiers Derscheid, Bruxelas). M. Vincent,
25. J. Sasserath, op. cit., p. 27. L. de Lacger, op. cit., p. 49. L'Enfant au Ruanda-Urundi, Bruxelas, 1954, p. 6.

142 Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.) Pelos M e a n d r o s da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em Africa 1 Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi
T
as primeiras estimativas rigorosas (13 a 18 % de batutsi consoante as marcada pela dimensão religiosa da instituição monárquica, sendo
regiões), não esconde a sua admiração face ao carácter elevado des- que, no plano militar, traduziu-se pela expulsão de reinos limítrofes,
sas taxas, sem alterar, contudo, a visão estereotipada de uma minoria ao invés da destruição dos principados pré-existentes. Assim, as cliva-
étnica a viver como uma classe ociosa^". gens regionais e «étnicas» eram menos perceptíveis no Burundi. As
Essa ofuscação quanto à existência de uma massa de criadores de bases de um antagonismo entre os bahutu e os batutsi manifestaram-se
animais-agricultores batutsi desprovidos de funções de liderança não somente em finais dos anos 50, precisamente a respeito do caso ruandês.
era generalizada. O residente Albert Gille (no Burundi) e, posterior- As diligências da política colonial visavam uma fusão administrativa,
mente, o economista Philippe Leurquin, por exemplo, chamaram a social e cultural, sendo o Ruanda elevado a país-modelo. A idealização
atenção para esse facto. Porém, o estereótipo era suficientemente forte da ordem ruandesa - interpretada como um triunfo de uma hierarquia
para marcar de forma elucidativa, e até a uma data recente, as expli- sã das raças - constituiu o princípio-chave da gestão belga até às
cações apresentadas no atinente ao êxodo dos trabalhadores migran- vésperas da descolonização. Encarado como um Estado menos perfei-
tes para o Uganda, que decorrerá entre 1930 e 1960. Dizia-se^' que se to ou degradado, o Burundi foi instado a curvar-se perante o modelo,
tratava de uma fuga às «exacções dos chefes tutsi», deixando para trás a bem ou a mal. E, actualmente, quando se afirma que o caso ruan-
as corveias, os impostos, os castigos físicos, e as novas necessidades dês se revela mais «claro» ou mais «transparente», esquece-se de que
monetárias associadas à empresa colonial. Esse fenómeno também se uma sociedade não deve ser analisada à luz de definições alheias à sua
repercutiu proporcionalmente nos bahutu e nos batutsi. própria evolução^^
Nesse sentido, a integração do Burundi e do Ruanda num mesmo Noutro contexto, propuseram-se análises mais rigorosas relativa-
«território sob mandato» revelou-se determinante para o encobri- mente ao processo de manipulação social levado a cabo pelos coloni-
mento das lacunas e das contradições do modelo racial. Com efeito, zadores em ambos os países^^ importa recordar os três vectores es-
não obstante a sua parentela cultural, os dois povos tinham a sua senciais: feudalização, política de raças e segregação cultural.
própria história e, em específico, a evolução interna das relações entre A administração dita «indirecta» conduzida pelos colonizadores visa
bahutu e batutsi revelava-se diferente^». humanizar «o costume». Ora, a primazia da gestão «territorial» sobre
No Ruanda, uma dinastia tutsi, constantemente alicerçada numa sé- «os laços pessoais» culmina efectivamente, nos anos 30, na construção
rie de grandes linhagens pertencentes a essa mesma categoria, pro- de uma pirâmide de «chefarias» e de «subchefarias» cujos detentores
cedera, desde finais do século XVII, a uma verdadeira conquista mili- dispõem de meios de acção e de exacção superiores aos da antiga rede,
tar no interior, a qual culminou no desaparecimento paulatino dos dado o desaparecimento de qualquer equilíbrio. «O resultado consis-
poderes hútu, os últimos dos quais foram destruídos sob a égide da tiu numa diminuição do controlo central na região e num aumento
colonização alemã no final do século XIX. Desde 1920, era então pos- de poder para os chefes influentes localmente», constata Catharine
sível constatar a cristalização de uma aristocracia tutsi que beneficiava Newbury a respeito do Sudoeste do Ruanda. O acrescentamento das
de um monopólio político, apesar das várias matizes existentes entre prestações «consuetudinárias» uniformizadas e das prestações colo-
as duas regiões. niais de «interesse público», a caução atribuída pelos europeus aos
No Burundi, pelo contrário, a dinastia dos baganwa, instaurada desde chefes mais «eficazes», a transição da grande família para o «homem
finais do século XVII e muito provavelmente de origem hútu, desem- adulto são» para efeitos de distribuição das prestações, por fim, as
penhara um papel mediador entre as grandes linhagens tutsi e hútu, usurpações dos grandes criadores de animais em matéria fundiária e
em proveito dos príncipes do sangue. Os últimos conservaram uma das corveias, permitem associar, no cômputo global, o Estado colonial
influência considerável dentro do próprio sistema político. Por outro do Ruanda a um Estado neofeudal.
lado, a unificação em torno do mwami continuou extremamente
31. Por exemplo, R. Botte, «La guerre interne au Burundi», in J. Bazin, E. Terray, Guerres de lignages
et guerres d'États en Afrique, Paris, 1982, p. 288.
28. V. Neesen, «Aspects de l'économie démographique du Ruanda-Urundi», Bulletin de l'Institut
32. Sobre o Burundi: J.-P Chretien, «Une révolte au Burundi en 1934», Annales ESC, 1970, 6, pp.
de recherches économiques et sociales. Louvain, 1956, XXII, 5, pp. 4 8 1 - 4 8 3 .
1 6 7 8 - 1 7 1 7 ; J. Gahama, op. cit. Sobre o Ruanda: C. Nevi/bury, The Cohesion of Oppression: a Century
29. J.-P. Chretien, «Des sédentaires devenus migrants. Les motifs des départs des Burundais et
ofClientship in Kinyaga, Rvi/anda, Ph. D., Madison, 1 9 7 5 , 4 8 0 p.; G. Mbonimana, L'Instauration d'un
des RM/andais vers l'Uganda (1920-1960)», Cultures et développement, 1 9 7 8 , 1 , pp. 71-101.
royaume chrétien au Rwanda (1900-1931), tese, Louvain, 1981, 4 0 6 p.; C. Vidal, «Colonisation et
30. Para uma visão geral dos reinos dos Grandes Lagos antes da colonização, consultar E. MM/O-
décolonisation au Rvi/anda: la question tutsi-hutu». Revue française d'études politiques africaines,
roha. Peuples et rois de l'Afrique des lacs, Dakar, 1977, 352 p.
n.s 31, Julho de 1973, pp. 32-47.

172 Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.) Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado emÁfricaConjunturasétnicasnoRuanda173
Ora, esse arcaísmo calculado devia estribar-se na realidade das «ra- «A escola dos batutsi deve ter primazia sobre a dos bahutu... Prepara o fu-
ças». Em nome do «costume restaurado», uma dicotomia rígida entre turo formando e tecendo os futuros chefes, os pais e o governo '
«senhores tutsi» e «servos hútu» tende, por conseguinte, a ganhar for-
ma na vida social. Os reagrupamentos de chefarias e subchefarias re- «Através da conversão dos batutsi, firmaremos a conversão do Ruanda: um
alizados nos dois países pelo governador Voisin no início dos anos 30 país é convertido quando os seus chefes o são [...]. É necessário assegurar
proporcionaram uma eliminação em massa dos dirigentes bahutu que, que a escola mututsi inclua apenas batutsi no seu perímetro^^»
na altura, ainda estavam no poder A adopção dessa política foi discu-
tida, conforme testemunhado pelo importante inquérito administrativo Os estudantes batutsi beneficiavam efectivamente de formações
de 1 9 2 9 " acerca da «influência dos chefes batutsi» e da possibilidade complementares, nomeadamente em francês, e dispunham dos
de substituí-los por chefes bahutu, entre outros assuntos: os adminis- melhores mestres. À semelhança das antigas cortes reais, a escola tor-
tradores territoriais respondem de forma variegada, em especial no nou-se a provação constitutiva de uma aristocracia escorada no duplo
Burundi, evocando, por um lado, a existência de inúmeros batutsi princípio da hereditariedade e da selecção. E mais importante ainda, a
entre «os pobres» e assinalando, por outro, que os chefes baganwa ou noção de «nobreza» foi alargada ao âmbito de uma «raça».
batutsi podem estar próximos do seu povo e que os chefes bahutu po- Várias famílias tutsi, anteriormente afastadas pelas grandes linha-
dem adquirir uma autoridade indiscutível. Comparativamente à litera- gens próximas das dinastias reinantes, passaram, portanto, a ter aces-
tura de propaganda, as contradições patentes nesses textos dissimula- so ao grupo dos privilegiados enquanto as famílias hútu que, até então
dos exibem um menor embuço. faziam parte dessa categoria, começaram a ser excluídas. Após essa se-
Contudo, o princípio de um «poder tutsi» impôs-se como um dado lecção dos anos 30, a constituição do pessoal executivo africano torna
adquirido, particularmente graças à acção de Monsenhor Classe no a opção colonial evidente e isenta de qualquer ambiguidade. Em 1 9 5 9 ,
Ruanda. Em Dezembro de 1930, o último escreveu, na obra L'Essor co- no Ruanda, 4 3 em 4 5 chefes, e 5 4 9 em 5 5 9 subchefes eram batutsi. No
lonial et maritime, frases cuja fama permaneceu intacta^"*: Burundi, entre 1 9 2 9 e 1954, a taxa de chefes bahutu passou de 10 %
para O, enquanto a taxa de chefes batutsi aumentou de 21 para 2 6 %,
«O maior erro que o governo poderia cometer contra si próprio e contra o sendo que os príncipes do sangue (os baganwa] ficavam com a parte
país seria a extinção da casta mututsi. Uma revolução desse cariz conduzirá de leão. A «tutsização» evidencia proporções mais dramáticas a nível
o país directamente para a anarquia e para o comunismo odiosamente anti- das subchefarias^".
-europeu... Regra geral, não disporemos de chefes melhores, mais inteligen- Um verdadeiro «povo de senhores» é assim forjado com a bênção da
tes, dinâmicos, capazes de compreender o progresso, e inclusivamente mais Igreja e da administração de um país teoricamente democrático. Basta
aceites pelo povo, do que os batutsi.» folhear a edição especial publicada em 1 9 5 0 pela revista Grands Lacs
destinada a comemorar o cinquentenário da evangelização do Ruanda
Segundo o autor, a prioridade das escolas devia assentar na formação para constatar essa atmosfera: nos discursos e nas fotografias, os pa-
dos quadros exclusivamente batutsi para os diferentes níveis da ad- dres brancos e os administradores belgas estão ao lado dos príncipes
ministração local, incluindo os mais baixos. Os jovens bahutu, por seu e das princesas batutsi, apresentados como «apóstolos», sob a orienta-
turno, poderiam desempenhar cargos «nas minas e nas explorações»". ção do novo Constantino, o rei Mutara Rudahigwa. Em ambos os países,
A partir de 1928, tanto nas escolas do governo quanto nas escolas mis- a imagem do mututsi culto, francófono e bem-vestido, ao contrário do
sionárias, assiste-se a uma verdadeira segregação no Ruanda desde muhutu, rude, analfabeto e maltrapilho, instaurou-se há meio século.
o ensino primário. As directrizes de Monsenhor Classe destinadas às Os colonizadores, vítimas do seu próprio jogo, convenceram-se de que
diferentes missões são especialmente cristalinas: os desequilíbrios escolares e sociais se deviam à «passividade» dos ba-
hutu e à «massa cinzenta tutsi"». Em virtude da razão de Estado, uma

33. Papiers Derscheid, já citados. 36. Cfi Mbonimana, op. cit., p. 352 (directrizes para a missão de Kigali, 1924]).
34. Citado em de Lacger, op. cit., p. 524. 37. Ibid., p. 3 5 4 (directrizes para Rulindo, 1925).
35. Ibid., p. 523. Ver I. Linden, Church and Revolution in Rwanda, IVIanchester, 1977, p. 163 (carta 38. J.-P Chretien, «Féodalité ou féodalisation du Burundi sous le mandat belge», in Études africaines
de Classe datada de 15 de Maio de 1928}, e G. Mbonimana, op. cit, pp. 354-355. L. Classe, Instruc- offertes à Henri Brunschwig, Paris, 1982, pp. 367-388.
tions pastorales. Extraits des lettres circulaires ( 1 9 2 2 - 1 9 3 9 ) , Kabgayi, 1940. 39. Consultar X. de Wilde D'estmael, «Le Ruanda en état de révolution. La formation des élites».

142 Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.) Pelos M e a n d r o s da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em Africa 1 Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi
colonização que se pretendia modernizadora acabou por contribuir de reconstruído, senão mesmo construído, nessa época. Assistiu-se ao tri-
forma decisiva para a etnização de uma sociedade. unfo das maneiras difundidas pelas missões e pelas escolas, segundo
Porém, esses efeitos de maior pravidade reflectem-se a nível da so- o modelo neotradicionalista de Monsenhor Classe: um extenso pano
ciedade do Burundi e do Ruanda enquanto tal. As novas gerações - branco que confere às colinas do Ruanda a aparência de uma segunda
tanto hútu quanto tutsi - viram-se encurraladas numa análise étnica Etiópia, sendo que os penteados em altura das jovens transformavam
que lhes foi imputada pelos colonizadores aquando da independência, muitas «princesas» ruandesas em rainhas Nefertiti...
os quais, aliás, haviam contribuído para a sua construção. Em África, A importância dos «amanuenses», na acepção medieval do termo [os
essa interiorização de um modelo etnológico é menos rara do que se primeiros intelectuais pertenciam muitas vezes à classe clerical), foi
pensa, mas no caso em apreciação revelou-se extraordinariamente igualmente crucial nesse processo. Não é por acaso que Alexis Kagame,
profunda e perigosa, atendendo ao conjunto social e ideológico que seminarista em Kabgayi entre 1929 e 1941, tenha encetado nessa al-
se foi urdindo. Em boa verdade, os próprios visados enfrentam actual- tura investigações que o tornaram no primeiro historiador moderno
mente grandes dificuldades em discernir aquilo que proveio dos seus do Ruanda. Por vezes apresentado como descendente de uma famí-
antepassados e aquilo que foi facultado pela colonização. A própria lia de tradicionalistas biru, foi efectivamente encorajado a seguir esse
«tradição» emana simultaneamente de notáveis, de interesses calcu- caminho pelo cónego francês De Lacger e influenciado pela imagem
lados e de intelectuais inebriados pela autoridade da cultura escrita. medieval iluminada que o último fizera recair sobre o passado do seu
A aristocracia tutsi ruandesa, na sua nova definição, foi particular- país. Recebendo posteriormente o aval do rei Mutara para proceder à
mente sensível às cauções «científicas» atribuídas à sua condição de recolha das tradições dos ritualistas da dinastia, com a preocupação
«nobre». Mesmo no contexto do exílio ruandês, o mito das origens de conservar o património nacional acima referido, publica, em 1943
egípcias e da superioridade «hamítica» sobrevive ainda hoje na mente e 1947, os dois volumes da sua história dinástica Inganji Kalinga [«Ka-
das pessoas que foram suas vítimas, após terem acreditado ser suas linga» - tambor dinástico - triunfante). A obra de Kagame afigura-se
beneficiárias. A cristalização de uma verdadeira «ideologia ruandesa» indissociável desse contexto ideológico que marcou os primórdios da
sob o reinado de Mutara Rudahigwa, entre 1931 e 1959, mereceria historiografia ruandesa. Autor, nos anos 40, de um poema que enalte-
uma análise mais aprofundada. O referido soberano chegou ao poder cia conjuntamente a realeza ruandesa e a cristianização, defendeu até
graças à vontade conjunta de Monsenhor Classe e da administração ao fim o papel eminente dos batutsi definidos como «hamitas''"».
belga, recebendo o baptismo em 1943 e devotando o seu país ao Cris- Mesmo a investigação laica inaugurada em 1950 no IRSAC de Astrida
to-Rei em 1946. Tinha a consciência de estar a presidir ao desfecho de não se mostra incongruente nesse quadro politico-cultural. A «premissa
uma época, pelo que desejou preservar a tradição ao abrigo da coloni- da desigualdade», posteriormente definida por J.-J. Maquet, insere-se
zação. Porém, o seu nacionalismo ruandês coincide com a convicção na ideia - parcialmente concretizada - de um sempiterno Ruanda feu-
de pertencer a uma linhagem tutsi que teria sido responsável pela dal. Na edição de 1950 da revista Grands Lacs mencionada anterior-
construção do país. Nesse sentido, cultivou intensamente tudo aquilo mente, esse autor, na altura responsável do novo centro de Astrida,
que podia adular tanto o orgulho de uma aristocracia tutsi modernizada explica o interesse da antropologia relativamente às questões susci-
quanto os preconceitos dos seus protectores belgas. Impotente politi- tadas pela «heterogeneidade racial» no Ruanda e no Burundi, conju-
camente, consagrou-se inteiramente à dimensão cultural, fomentando gada com o «dever» civilizacional dos ocidentais". O Ruanda poderia
as actividades desportivas e artísticas em que os batutsi deviam ser tornar-se numa abadia de Thélème africana, à sombra do Cristo-Rei
pródigos, tentando atrair novos intelectuais ruandeses e mesmo bu- e ao encontro dos dois reinos iluminados da Bélgica e do Ruanda. Os
rundianos, chegando inclusivamente a alimentar a fantasia racial do malevolentes poderiam considerar que a vida cultural nesse vasto in-
«hamita» na escolha dos membros das delegações no estrangeiro sem- ternato, onde nenhum sino discordante podia retinir, deixava transpa-
pre que fosse oportuno, jogando malignamente com a sua estatura face recer alguns sinais de totalitarismo.
aos residentes belgas de envergadura inferior. No fundo, o «Ruanda
tradicional», conforme é habitualmente descrito nos dias de hoje, foi 40. Consultar I. Linden, op. cit., p. 2 0 0 e o nosso CR na Revue belge de philologie et d'histoire,
1 9 8 0 , 1 , pp. 119-123. A referência à política cultural do mwami Mutara assenta também em tes-
temunhos de contemporâneos recolhidos em Bujumbura em 1981.

1
Revue nouvelle, 1960, 5, p. 502. Outra fonte : uma correspondência privada endereçada ao centro 41. J.-J. Maquet, «L'IRSAC au Ruanda», Grands Lacs, 1950, 1, pp. 77-79. IRSAC: Institut pour la
de história de África da universidade Louvain-Ia-Neuve em Abril de 1979. recherche scientifique en Afrique centrale.

142 Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.) Pelos M e a n d r o s da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em Africa Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi
Com efeito, os primeiros estabelecimentos de ensino pós-primário A propagação do modelo étnico da «ideologia ruandesa» no Burundi
garantiram, de forma coerente, o contacto das novas elites cultas ru- realizar-se-á igualmente através da mediação escolar. Os alunos bu-
andesa e burundiana com o modelo étnico de forte conotação racial rundianos de Astrida - muitos mo indicaram - aprendiam o direito e
cuja cristalização foi testemunhada pelas análises dos europeus e pela os costumes ruandeses considerados típicos do «Ruanda-Urundi», no
prática colonial. Estão em causa dois tipos de instituições: o grupo es- seu todo. Um desses alunos mencionou inclusivamente a corveia do
colar de Astrida e os seminários. O primeiro foi inaugurado em 1932 buletwa e dos «clientes» bagaragu a propósito do seu país, apesar de
pelos irmãos da Caridade de Gand, com dotações do Estado. O irmão esses termos serem ignorados na região. De acordo com um jogo de
Secundien, director do estabelecimento até 1949, é claro quanto ao de- palavras que faz as delícias dos ruandeses, «Urundi» devia ser apenas
sígnio geral da escola: formar futuros auxiliares administrativos, che- «um outro» [urundi) Ruanda! As perspectivas mais radicais da cliva-
fes, assistentes médicos ou agrónomos, criar «uma nova classe social», gem hútu-tutsi, baseada na experiência histórica ruandesa, circulavam
constituir uma «aristocracia não-hereditária». Apesar desse panegírico ao mesmo tempo entre os jovens intelectuais burundianos. Todavia,
à «meritocracia», os números reflectem a importância da hereditarie- o grau de assimilação do modelo etno-racial no Burundi nunca foi
dade nos recrutamentos"^: em 1932, 45 alunos batutsi ou baganwa, 9 equivalente ao registado entre as elites ruandesas, o que se explica
bahutu e 14 congoleses; em 1946, 4 4 batutsi ou baganwa, 1 muhutu claramente pelo facto de se tratar de situações históricas bastantes
do Ruanda e 8 bahutu do Burundi; em 1954, 63 batutsi ou baganwa, 3 distintas tanto antes quanto depois da colonização. Contudo, é possível
bahutu do Ruanda, 16 bahutu do Burundi e 3 congoleses. Os «astridi- constatar um desvio muito significativo no âmbito da historiografia: a
anos» - os futuros recrutas da administração e, segundo Kagame, «os divulgação de uma tese sobre a origem tutsi e ruandesa da dinastia do
mais estimados dos auxiliares» - para os quais se construíram casas Burundi, a qual contraria as indicações fornecidas pelas fontes orais
especiais de «evoluídos» e que dispunham de um banco reservado nas mais numerosas e mais fiáveis. O maior chefe do país, Pierre Baran-
paróquias, receberam o epíteto de indatwa, ou seja, «as melhores ca- yanka, desempenhou um papel fundamental, juntamente com o bispo
beças» do rebanho, no vocabulário da poesia bucólica ruandesa! Esses Julien Gorju, nessa operação que se lhe afigurava lisonjeira para o seu
jovens que, regressados, por vezes fingiam já não conseguir dormir país e para a sua família"".
numa cubata nem distinguir o capim-pé-de-galinha da erva, consti- Em finais dos anos 50, assistia-se ao florescimento de uma consciên-
tuíram garantidamente os primeiros quadros competentes dos países, cia étnica nas elites dos dois países, especialmente no Ruanda, com
mas foram também portadores de um elitismo manifesto muitas vezes base numa história particularmente intrincada. Com efeito, as «et-
associado aos preconceitos étnicos, conforme atestam os artigos da nias» constituíam sobretudo fantasmas que alegadamente existiriam
sua revista. Servir, publicada entre 1940 e 1961 na mente das pessoas, nas suas genealogias, nos mitos de origem e
Os seminários criados nos dois países foram mais receptivos aos alu- acima de tudo no discurso antropológico sobre as raças denominadas
nos bahutu. Porém, o conteúdo do ensino em nada contribuiu para a bantas ou hamitas. A manutenção, o fomento ou a cristalização de uma
neutralização dessa clivagem de cariz étnico: recorde-se o papel de- clivagem antiga entre grupos predominantemente agrícolas e grupos
sempenhado pelos historiadores-missionários, designadamente De que conciliavam o cultivo com uma criação de gado significativa, e so-
Lacger ou Gorju, na asseveração das teses difusionistas e raciais. Nas bretudo a evolução política verificada no século XIX que conferia uma
vésperas das independências, as últimas constam das «aulas de mis- primazia cada vez mais acentuada a determinadas linhagens tutsi,
siologia» ou de pequenos manuais como o Essai d'histoire du Burundi eram susceptíveis de implantar junto da massa da população a ima-
publicado por volta de 1 9 5 9 e directamente inspirado numa aula gem de dois povos hútu e tutsi. Porém, as franjas de indeterminação
ministrada no seminário de Burasira. (clãs constituídos por bahutu, batutsi e batwa no Ruanda; a categoria
à parte dos príncipes baganwa no Burundi], as margens de manobra
42. Irmão Secundien, «Groupe scolaire». Grands Lacs, Outubro de 1952, p. 39 [citado por G. (alianças, vizinhanças, por vezes alterações de categoria], as situações
Mbonimana}. R. Lemarchand, Rwanda and Burundi, Nova Iorque, 1970, p. 138. Constatar-se-á
que as estatísticas belgas normalmente amalgamam os ruandeses e os burundianos, confundindo
na mesma rubrica «étnica» os baganwa e os batutsi, no que se refere ao Burundi. 44. Consultar J.-P Chretien, «DuHirsute au Hamite: les variations du cycle de Ntare Rushatsi,
43. Por exemplo, M. Piron, «Les migrations hamitiques», Servir, 1948, 6, pp. 2 8 0 - 2 8 3 : acerca dos fondateur du royaume du Burundi», History in Africa, 8, 1981, pp. 3-41 (consultar também em
batutsi, «raça excepcional e inteligente», «aristocracia nata». A noção de indatwa deve-se a G. La Civilisation ancienne des peuples des Grands Lacs, Paris-Bujumbura, 1981, pp. 254-270). Id.,
Mbonimana, op. cit., p. 363. Consultar igualmente |. Kagabo, «Les mythes fondateurs du person- «Nouvelles hypothèses sur les origines du Burundi», in L. Ndoricimpa, C. Guillet, LArbre-mémoire.
nage de l'évolué», Culture et société, Bujumbura, IV, 1981, pp. 122-134. Traditions orales du Burundi, Paris, 1984, pp. 11-52.

142 Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.) Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em Africa

1 Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi


contraditórias (chefes bahutu, pobres batutsi) e a homogeneidade lin- o aspecto social do problema racial nativo no Ruanda». A confusão en-
guística e cultural permitiam múltiplas evoluções. Ainda que os anti- tre uma problemática social e uma problemática étnica, ela própria
gos colonos teimem em negá-lo, a intrusão europeia nessas sociedades qualificada de «racial» (sendo os batutsi frequentemente denomina-
revelou-se um contributo decisivo para o reforço do sistema político dos de «hamitas») é sistemática:
(para a sua «burocratização», segundo René Lemarchand, para a sua
renovação assente num modelo neofeudal, de acordo com a nossa «Há quem pergunte se estamos perante um conflito social ou um conflito
análise), e para a sua racialização na praxe e nas consciências, fixando racial. No nosso entender, isso é literatura. À luz da realidade das coisas e
assim as relações sociais numa clivagem incontornável descrita como da percepção dos povos, trata-se de ambos. No entanto, poder-se-ia espe-
étnica. A etnicidade, em sentido estrito, foi engendrada pelo Estado cificá-lo: o problema consiste acima de tudo num problema de monopólio
colonial. A descolonização ditou a irrupção das contradições e des- político que, atendendo ao conjunto das estruturas actuais, se transforma
cortinou os impasses legados por essa evolução. num monopólio económico e social que, devido às selecções de facto no
ensino, se assume também como um monopólio cultural, para grande de-
sespero dos bahutu que se vêem condenados à condição de mão-de-obra
O álibi étnico de há vinte anos: fantasias raci- eternamente subalterna ...».
ais, razões de Estado e massacres legitimados
Logo, essa denunciação visa o sistema político que vigorou durante
Ao invés de propiciar um desmoronamento dos preconceitos «raci- os anos 50, mas toda a fracção tutsi da população ruandesa está global-
ais», a independência de ambos os países em 1962 conferiu às solidarie- mente abarcada por essa mesma censura. Mais adiante, alude-se inclu-
dades étnicas direito de cidade e, por vezes, oficializou-as. Os novos sivamente a uma intervenção de «médicos» com o intuito de solucio-
Estados seguiram a tendência da ideologia global definida durante nar a questão das eventuais «miscigenações». A par de reivindicações
a colonização, seja por conveniência política, seja por ignorância ou em matéria de direito fundiário, crédito rural, liberdade de expressão,
alienação de alguns dos primeiros líderes (aquando da independência, funcionamento da justiça, abolição da discriminação no acesso a car-
cada um contava apenas com uma dezena de licenciados), seja pela gos públicos e bolsas de estudo, importa salientar a denunciação do
influência dos medos e fanatismos relacionados com os massacres dos «colonialismo do hamita sobre o muhutu» e a recusa em eliminar as
anos 60 e 70 que assolaram primeiro o Ruanda e depois o Burundi. A referências étnicas nos documentos de identidade com vista a uma
análise ideológica e política dessa etnicidade, ora erigida em doutrina, identificação mais eficaz dos indivíduos na distribuição dos benefícios.
ora tanto mais obcecante quanto dissimulada, deve ser conduzida sem Não obstante uma cláusula de estilo sobre «o defeito inverso» que con-
descurar a abordagem externa pós-colonial, sempre pregnante, acerca sistiria em «tornar banto (s/c) o que se hamitizou», verifica-se que os
desses pequenos países dependentes das cooperações estrangeiras. problemas do Ruanda associados à obtenção da sua independência e
A presente análise deve iniciar-se com a «revolução ruandesa» de à democratização indispensável da sua sociedade são reduzidas a um
1 9 5 9 - 1 9 6 1 , o fulcro da maioria das reacções e das estratégias desde confronto de ordem étnica. Ora, o referido documento constitui o texto
há vinte anos. Aventaram-se múltiplas interpretações: golpe de Esta- fundador que preludia o nascimento do partido Parmehutu, em 1 9 5 8 ,
do manipulado por colonos belgas, revolução política, luta de classes, cujo líder, Grégoire Kayibanda, será o primeiro presidente da Repúbli-
guerra étnica... De tudo um pouco. Porém, a alusão ao papel da dimen- ca Ruandesa entre 1 9 6 2 e 1 9 7 3 .
são «étnica» nas alterações políticas e sociais é mais frequente a res- A equação entre «nobreza», «casta tutsi» e «raça hamítica», por um
peito de factos que dispensam comentários, sendo que é precisamente lado, e «massa do povo», «etnia maioritária hútu» e «raça banta», por
essa confusão entre os dois níveis - um chamado tradicional e outro outro, irrompia dos livros e das práticas de uma administração colo-
moderno - que merece uma reflexão que transcenda os sloganes. nial para se imiscuir oficialmente na vida política de um país africano
O documento fundamental que antecede e inspira os acontecimen- e, entre 1 9 5 9 e 1 9 6 2 , o parecer belga e as instâncias responsáveis das
tos ruandeses consiste num texto divulgado em Março de 1 9 5 7 e assi- Nações Unidas eram consultados constantemente mesmo em debates
nado por nove intelectuais bahutu, intitulado «Manifesto dos Bahutu». internacionais''^
O subtítulo afigura-se particularmente elucidativo: «Apontamento sobre
45. «Décolonisation et indépendance du Rwanda e du Burundi», Chronique de politique étrangère,

142 Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.) Pelos M e a n d r o s da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado e m Africa

1 Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi


Deparamo-nos com um vocabulário comum. Assiste-se, de alguma «São critérios físicos, raciais ou, pelo contrário, critérios sociais e económi-
forma, a uma vontade de introduzir uma reviravolta na «premissa da cos? [...]
desigualdade», descrita pelo antropólogo ].-]. Maquet três anos antes,
mas segundo a mesma linha de clivagem tida como imutável. De resto, «Os bahutu dirigem-se aos batutsi, não é assim? Mas isso aplica-se a todos
o próprio investigador assume essa viragem'"^. A actuação específica aqueles que ostentam o rótulo de batutsi? A um pequeno grupo? Especifi-
do Estado colonial era negada, salvo o seu contributo para o renasci- camente aos chefes de província que, no Ruanda, representam apenas um
mento dos bahutu. Seria impossível escamotear o debate mais adequa- punhado de 52 pessoas? Aos subchefes e aos seus ajudantes, cujo número
damente numa linguagem aparentemente progressista. Parafraseando praticamente não chega ao milhar?»
a análise sartriana da «questão judaica», poder-se-ia afirmar que, no
caso vertente, a redução étnica permitia a conservação da consciência O problema estava, de facto, a ser colocado nos seus verdadeiros ter-
sã do colonialismo: a eternidade de uma guerra de raças ou de classes mos através da primazia conferida ao seu aspecto social, ou seja, as
desobriga aqueles que forjaram essa sociedade durante meio século a elites e a sua promoção.
reflectir sobre a sua responsabilidade histórica. A mobilização em torno de um programa étnico realizou-se inicial-
As reacções das elites tutsi perante essa situação foram variegadas. mente numa esfera muito particular - a da primeira geração de in-
Alguns notáveis tradicionalistas próximos do rei (assinavam como telectuais bahutu (na acepção ocidental do termo), em especial, en-
«ilustres bagaragu da corte») limitaram-se a reafirmar a preeminência tre os antigos seminaristas que, após a conclusão dos seus estudos
tutsi num texto divulgado em 1 9 5 8 . Espantados com a dimensão que a secundários, apercebiam-se de que estavam a ser excluídos das fun-
mesma adquirira diante dos seus olhos, esses aristocratas descreviam- ções administrativas (julgadas as mais importantes), em prol dos an-
-na como multissecular, facto que pôde ser citado e denunciado pelos tigos astridianos, ou seja, em prol dos seus colegas batutsi que eram
seus adversários com total liberdade. Todavia, através de uma análise predominantes nessa formação. René Lemarchand alude ao caso perti-
do conteúdo do seu texto, ressaltam sobreposições culturais interes- nente de Anastase Makuza, um dos futuros líderes do Parmehutu, que,
santes''^: referindo-se explicitamente a Inganji Kalinga de Kagame, terminado o seminário de Nyakibanda, cursou no colégio universitário
baseiam-se efectivamente numa leitura racial do mito de Kigwa, herói de Kisantu (Congo Belga) mas, aquando do seu regresso, conseguiu
fundador da dinastia, o que não constitui de todo uma evidência. Es- apenas uma posição de dactilógrafo «candidato-adjunto» em Kibuye
ses notáveis, alguns dos quais mantinham um contacto constante com (um pequeno centro na região ocidental do país). Essa discrimina-
os investigadores de Astrida ou de Kabgayi, espelham devidamente ção deu azo à cristalização de uma contra-elite hútu durante os anos
a tradição oficializada durante as décadas de 1 9 3 0 , 1 9 4 0 e 1 9 5 0 nos 50. O seu descontentamento terá uma ressonância favorável junto de
moldes considerados anteriormente. Outros adoptaram uma atitude uma nova geração de missionários, inspirados pela Acção católica e o
irónica« relativamente às questões suscitadas em Setembro de 1 9 5 8 movimento social-cristão belga, mas cuja informação sobre o Ruanda
pelo bispo Bigirumwami, mutusi mas oriundo de uma região (Gisaka) assentava nas publicações coloniais. A contra-elite hútu organizou-se
que fora t a m b é m vítima da expansão guerreira da dinastia tutsi em torno das instâncias eclesiásticas: imprensa católica, como o jor-
nyiginya. Tratava-se de questões incongruentes''''? nal Kinyamateka, publicado pelo bispo de Kabgayi desde 1 9 3 3 ; mu-
tualidades que, em 1 9 5 6 , confluíram para a criação de uma rede de
cooperativas de consumo chamada Trafipro («Trabalho, fidelidade,
«Quais os critérios que devem servir de base para as definições (de muhutu
progresso»); associação de monitores escolares; Légion de Marie cuja
e mutusi)?
rede aparentemente anódina dividia o país em zonas.
lulho-Nov. 1963, Bruxelas, pp. 439-718. No final dos anos 50, os novos favores de que beneficiavam os chama-
46. J.-J. Maquet, «La participation de Ia classe paysanne au mouvement d'indépendance du Rwan- dos «evoluídos bahutu» respondiam igualmente a uma preocupação
da», Cahiers d'études africaines, 1964, n.® 16, pp. 552-568.
47. Consultar o texto em: F. Nkundabagenzi, Rwanda politique, Bruxelas (Dossiers do CRISP),
de refrear a ascensão dos nacionalismos, que atingiam o Ruanda, o
1962, pp. 35-36. Burundi e o Congo, e de travar o comunismo, um perigo que assom-
48. Por exemplo: M. D'Hertefelt, «Mythes et idéologies dans le Rwanda ancien et contemporain», brava os meios religiosos. Nos sermões, qualquer tipo de anti-colo-
in J. Vansina, R. Mauny L.V. Thomas, The Historian in Tropical Africa, Londres, 1964, pp. 219-238.
49. Carta incluída em Témoignage chrétien, ed. belga, 5-9-1958 (F. Nkundabagenzi, op. cit., pp.
nialismo era rapidamente descrito como um sinal de «bolchevismo».
37-42).

142 Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.) Pelos M e a n d r o s d a Etnia. Etnias, tribalismo e Estado e m Africa 1 Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi
A doutrina social da Igreja afigurava-se coadunável com a exaltação da de forma individualista mas sem, no entanto, serem afastados desse
Virgem de Fátima e da sua «mensagem», que poderemos classificar de mundo. Afigurar-se-ia estranho aplicar o termo «burguesia» a esses
salazarista. Nessa conjuntura, a divisão das novas elites africanas não povos humildes, principalmente no caso de se estabelecer uma com-
podia desagradar às autoridades políticas e morais de um colonialis- paração com a abastança ocidentalizada em que se encontraram os
mo em dificuldade. Essa alternativa parece estar particularmente ilus- chefes ditos «consuetudinários» associados ao sistema colonial. Con-
trada num acontecimento. Em 1951, um movimento de contestação tudo, o «Manifesto dos Bahutu» deixa efectivamente transparecer um
decorreu no grande seminário de Nyakibanda: nessa ocasião, bahutu ideal de «classe média», tal como as tomadas de posição que o acom-
e batutsi uniram-se contra os missionários europeus, e entre os «insti- panham, muito em particular dos missionários.
gadores» subsequentemente expulsos da instituição contava-se Anas- Não subsistem dúvidas de que esses elementos explicam a facili-
tase Makuza, um dos futuros redactores do «Manifesto dos Bahutu». dade com que os ocidentais acreditaram tratar-se de uma reivindica-
Após essa crise, assiste-se a uma africanização acelerada dos quadros ção de «terceiro estado». A Revolução Francesa - até então evocada
(o primeiro bispo em 1 9 5 2 ) e sobretudo a uma cristalização de uma nos seminários como uma obra do ateísmo e do Terror - foi amiúde
nova política que visava conquistar uma elite dócil, mais disposta a valorizada pelos fundadores do Parmehutu. Com efeito, os modelos de
solicitar reformas do que a sonhar com a independência. 1 7 8 9 e de 1 8 3 0 cultivavam de forma profícua o quiproquó relativo ao
A biografia de Kayibanda assume contornos quase simbólicos: semi- conceito de «classe média», o qual podia remeter para a totalidade do
narista tornado professor num «instituto» de formação artesanal, é «povo hútu», situado entre a aristocracia tutsi e a minoria pária dos
responsável pela secretaria de uma secção de «amizades belgo-con- batwa". Porém, a sua manifestação afigurava-se mais concreta entre
golesas» criada por um colono de Kigali e, posteriormente, ocupa o o grupo dos «evoluídos rurais» (termo utilizado em 1 9 5 4 na revista
cargo de redactor-chefe do Kinyamateka (em 1 9 5 4 ) ; preside ao con- LAmi), ou seja, dos intelectuais bahutu tidos como representantes do
selho de gestão do Trafipro e torna-se secretário de Monsenhor Per- campesinato. O etnismo assumia os contornos de um discurso mediador
raudin, novo arcebispo (suíço) do Ruanda a partir de 1 9 5 5 . Toda a sua entre os interesses dessa nova elite - a futura «burguesia executiva» do
carreira é seguida por sacerdotes sociais-cristãos, designadamente os Estado ruandês - e a massa popular: representava um alargamento da
padres Déjemeppe e Ernotte que o enviam para a Bélgica em 1 9 5 0 e prática do clientelismo político à nação, no seu todo. Bastava afirmar a
1 9 5 7 , e que participam, em Kabgayi, na redacção do «Manifesto» em pertença a uma ascendência hútu para ser «do povo». O desafio residia
colaboração com Kayibanda, e ainda Calliope Mulindahabi (novo se- nitidamente no controlo do futuro Estado independente, mas mobili-
cretário de Monsenhor Perraudin) e Aloys Munyangaju, todos antigos zando os fervores étnicos decorrentes de um passado recente. Apesar
seminaristas, no mês de Março de 1957=°. da maturação dessa conjuntura ao abrigo da colonização europeia, o
«feudo-colonialismo» dos batutsi tornou-se o alvo de eleição."
Por conseguinte, o desafio social do conflito «étnico» em gestação
em finais dos anos 50 apresenta uma dimensão concreta, apesar de
«O Ruanda é o país dos bahutu (banto) e de todos aqueles - brancos ou ne-
enredado num confusionismo sócio-racial herdado da ideologia colo-
gros, tutsi, europeus ou de outras proveniências - que se libertarão da mira
nial. Com uma aplicação entretanto assente num modo «democrático»
feudo-imperialista.»
(a defesa das «massas» e da «classe humilde» contra os «feudais»), o
discurso sobre «os bantos e os hamitas» passa a justificar as aspirações
Segundo esse ponto de vista, constata-se que os ruandeses de ascendên-
de uma nova classe instruída, ao invés de uma forma de imperialismo
cia tutsi eram tratados como imigrantes.
indirecto. O populismo abafa a preservação de um racismo interno
Essa escolha - largamente explicável à luz do contexto político e ide-
cuja função reside também no encobrimento dos interesses específi-
cos de uma classe média em construção. Os professores primários e os ológico do Ruanda nos anos 50 - deu azo a todo o tipo de demagogias.
trabalhadores (os «amanuenses»), a cuja manifestação se aludiu, repre-
51. Ver A. Coupez, «La linguistique et le statut des langues africaines», Zaïre, IX, 1955, pp. 707-
sentam também, nessa época, o conjunto de uma classe média baixa de 708: muhutu significa «membro da classe social média», escreve o autor criticando, e com razão,
intermediários (plantões, donos de cabaré, camionistas...) que tentam a um clérigo que havia assimilado esse termo ao mtu kiswahili (equivalente de muntu, «ser hu-
sua sorte fora do mundo rural e procuram superar as suas dificuldades mano» em kinyarwanda). E ainda: G. Cyimana na Revue nouvelle, citado por F. Nkundabagenzi,
op. cit., pp. 54-68.
52. Texto de um «apelo» da Comissão nacional do Parmehutu de 8 de Maio de 1 9 6 0 (F. Nkund-
50.1. Linden, op. cit.. pp. 2 2 9 - 2 3 1 e 249. abagenzi, op. cit., p. 252).

142 Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.) Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em Africa 1 Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi
Por conseguinte, a lealdade aos princípios democráticos da «revolução República no dia 28 de Janeiro de 1961 aquando de uma reunião geral
de 1959» foi muitas vezes mais aferida com base na intransigência an- dos representantes municipais em Gitarama, e a vitória nas eleições
ti-tutsi, do que propriamente em função do conteúdo social concreto legislativas de Setembro de 1961. O grupo mais determinado serviu-se
da política implementada. da violência para usar o trunfo da etnia, com a cumplicidade pouco
As delegações internacionais que visitaram o Ruanda nessa altura dissimulada do colonizador, sempre presente.
depararam-se com bandeirolas em riste exigindo «o regresso dos co- Três anos depois, o Ruanda (que se tornou independente em Julho
lonialistas tutsi para a Etiópia». Certamente não teriam encontrado os de 1962, tal como o Burundi) é afectado por uma nova crise. Algumas
seus antepassados mais facilmente do que os bahutu caso tivessem centenas de refugiados batutsi oriundos do Burundi (onde ascendiam
sido recambiados para o hipotético local de origem protobanto no Sul a cerca de 50 0 0 0 ) organizaram um ataque em direcção a Kigali em
dos Camarões! Porém, essa posição acarretará necessariamente con- Dezembro de 1963. O pânico suscitado na capital pela actuação desses
flitos nefastos. rebeldes (apelidados de «baratas», inyenzí) saldou-se numa repressão
Não se pretende delinear novamente a crónica sinistra dos mas- que vitimou 15 000 batutsi. As suas terras foram redistribuídas por
sacres que assolaram sucessivamente o Ruanda e o Burundi durante governadores ou burgomestres a favor dos aliados do partido. Em
uma quinzena de anos". Regra geral, o parecer internacional considerou Fevereiro de 1964, France-Soir fazia estremecer os seus leitores ao
tratar-se do ressurgimento de antigas rivalidades «tribais» e os princi- evocar os cadáveres dos batutsi, de pernas cortadas, arrastados pelas
pais meios de comunicação mostraram-se hesitantes entre uma indig- águas do rio Rusizi. Segundo um processo que se repetiu mais tarde a
nação demasiado tardia e o olhar desiludido do zoólogo que observa propósito do Burundi, a indignação internacional dissipou-se sem que
espécies em luta por um nicho ecológico. Eis o motivo pelo qual pro- os responsáveis directos dos massacres tivessem sido perseguidos,
pomos uma reflexão acerca de alguns momentos cruciais marcados tendo o governo de Kigali justificado a repressão com o «terrorismo
pelo incitamento e pela invocação dos sentimentos étnicos por parte inyenzi». De facto, o Parmehutu aproveitou o ensejo para instituir um
de interesses políticos bastante específicos. Nesses dois países, os con- poder centralizado: os principais líderes do Rader foram executados
flitos tribais constituem sempre assuntos de Estado na medida em que em 1964; os do Aprosoma, apesar de serem bahutu, foram banidos
estão no centro do poder político, e não em esferas incontroladas. de cargos dirigentes. A nova vaga de conflitos étnicos contribuiu para
No atinente ao Ruanda, a insurreição popular de Novembro de 1959 a consolidação da «solidariedade racial», em benefício das facções
(que ainda carece de um estudo aprofundado) operou-se efectiva- dominantes do Parmehutu, provenientes das regiões de Ruhengeri e
mente a nível popular entre os bahutu revoltados com as tentativas de de Gitarama. Mais do nunca, Kayibanda tornou-se a incarnação da so-
intimidação do partido monárquico UNAR, permitindo ainda ao parti- berania hútu, a fonte de legitimidade nacional e o mediador na distri-
do Parmehutu afirmar a sua preeminência face aos restantes partidos buição das funções.
reformistas - em particular no Norte e no Centro do país - liderados Em cada crise política, a minoria tutsi restante (de acordo com os
por batutsi (o Rader) ou por bahutu (o Aprosoma). dados oficiais, representava 9 % da população) constituiu o bode expi-
Em virtude da emigração de vários batutsi (em finais de 1963, o atório ideal para mobilizar a classe dirigente. Entre Outubro de 1972
número de exilados ascendia aos 130 000), do medo e da pressão e Fevereiro de 1973, grupos do Parmehutu procederam à verificação
administrativa e militar das autoridades belgas sempre presentes, os do cumprimento da taxa de 9 % nas escolas, expulsando os estudantes
quadros administrativos locais sofrem uma transformação profunda que estavam a mais, como se o numerus clausus se aplicasse automati-
e as eleições municipais de Junho de 1960 tiveram como resultado camente entre o sexto ano e a licenciatura. Em Fevereiro-Março de
160 burgomestres do Parmehutu para 229 cargos. Assistia-se à con- 1973, vários trabalhadores foram despedidos pelo mesmo motivo. Os
cretização de uma revolução política: faltava apenas a proclamação da actos de violência que acompanharam esse movimento desencadearam
uma nova vaga de emigração tutsi. A depuração étnica culminou na per-
53. Sobre os referidos acontecimentos: R. Lemarchand, Rwanda and Burundi, Nova Iorque, 1970,
seguição aos «híbridos» [ibyimanyí), nascidos de casamentos mistos,
5 6 1 p.; J.-R Chrétien, «Burundi et Rwanda, 1972-1974», Encyclopaedia universalis. Universalia e aos «trapaceiros» [abaguze ubwoko) que haviam mudado de
1975, Paris, pp. 182-184; id., «Une histoire complexe, parfois obscure, souvent tragique». Le categoria racial! Na época, os acontecimentos do Burundi (analisa-
Monde, 29 de Junho de 1977; id., «Les fratricides légitimés», Esprit, Dezembro de 1976, pp. 822-
-834; id., «Le Rwanda à la croisée des chemins», Croissance des jeunes nations. Outubro de 1974,
dos em seguida) fomentaram essa febre etnicista. Porém, o governo
pp. 11-13.

142 Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.) Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em Africa 1 Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi
de Kayibanda - debilitado por conta das querelas entre facções e Mais concretamente, o refluxo de dezenas de milhares de ruandeses
constatando a aproximação dos prazos para uma quarta eleição presi- batutsi - exilados do seu país - para o Burundi ocasionou uma tor-
dencial - permitiu a recriação do ambiente de «luta» que levara o rente de inquietação entre os seus homónimos burundianos, propícia
fundador do Parmehutu ao poder em 1960. O que não impediu a con- a todos os extremismos, à qual acresceu, por influência dos distúrbios
secução do golpe de Estado militar de Julho de 1973, graças ao qual o associados à descolonização congolesa, a dinâmica das tensões inter-
Presidente Habyarimana subiu ao poder. Não obstante o seu desejo de nacionais: as manobras dos chineses e da CIA americana".
pacificação, as lógicas do etnicismo mantiveram-se acesas. Em 1980, O ano de 1965 representa um ponto de viragem decisivo na vida
por exemplo, uma tentativa de conspiração foi neutralizada: os seus política burundiana: em Maio, as eleições legislativas resultaram em
autores exigiam a observância integral do numerus clausus e acusavam dois terços de deputados bahutu, de listas diferentes, que formaram
o governo de não publicar os resultados do recenseamento de 1979, imediatamente um gabinete «etnicamente» homogéneo. Em Outu-
uma vez que esses indicavam uma percentagem de batutsi superior bro do mesmo ano, no momento em que dois terços dos ministros do
a 9 %! Essa reactivação do racismo inseria-se num contexto político governo eram bahutu, teve lugar um golpe de Estado da gendarmaria,
complicado: descontentamento face à ascensão da negociata associa- seguida de ataques contra as famílias tutsi em vários municípios da
da ao Estado, críticas dos estudantes ruandeses na Europa contra as montanha, o que suscitou uma repressão bastante severa (uma cen-
restrições da «ideologia hutista''''». tena de execuções). O UPRONA (que perdera o seu carismático líder
A evolução do Burundi durante o mesmo período não é isenta de em Outubro de 1961, com o assassinato de Rwagasore) não resistiu
paradoxos. A herança histórica não inscrevera a oposição tutsi-hútu ao avanço de um verdadeiro entumecimento tribalista. O regime re-
na ordem do dia. Durante as eleições de 1961, a administração belga publicano instituído pelo exército em 1966 caracterizou-se rapida-
apoiou um partido designado de «democrata-cristão», liderado por mente pelo primado de uma política de auto-defesa tutsi, ao passo
chefes fortemente ligados à colonização (a família de Baranyanka, que os opositores bahutu aderiam cada vez mais ao modelo ruandês.
citado anteriormente), com um espírito particularmente aristocrata e Essa crispação culminou em duas crises: a de 1969 (uma conspiração
grandes admiradores do antigo regime ruandês. O que é verdadeiro abortada, seguida de um julgamento e de várias execuções) e sobre-
deste lado do Kanyaru (o rio fronteiriço), é errado do outro lado... tudo a de 1972, designada de «mangual» (/Wzo) pelos próprios burun-
Tanto assim é que, nesse caso, os belgas saíram derrotados das suas dianos. Um movimento hútu eclodiu em finais de Abril no Sul do país,
eleições. Com efeito, defrontaram um partido nacionalista, o UPRONA, levando ao assassinato de alguns milhares de batutsi, o que conduziu,
que encontrava simpatizantes tanto junto dos chefes de famílias prin- em Maio-Junho, a um bombardeamento de represálias contra os respon-
cipescas quanto dos bahutu e dos batutsi, tanto junto dos sacerdotes sáveis bahutu a todos os níveis. Pânico, ajustes de contas ocultados
católicos quanto dos muçulmanos das margens do Tanganica, e que era pelas autoridades, fornadas de detenções organizadas por agentes da
liderado por um filho do rei Mwambutsa, o príncipe Louis Rwagasore. polícia, militares e responsáveis judiciais: regra geral, o valor aproxi-
O último casara com uma muhutu e o seu tenente principal. Paul mado das vítimas desses massacres ascende aos 100 000. A gravidade
Mirerekano, também era muhutu. do acontecimento não se prende com o número exacto, mas sim com
Tendo em conta as analogias culturais - à falta de semelhanças - os a natureza genocida do procedimento, à semelhança do ocorrido no
acontecimentos do Ruanda desencadearam justamente um processo Ruanda, oito anos antes, mas no sentido inverso.
de etnização na sociedade burundiana. René Lemarchand aplicou o Porém, tanto no Burundi quanto no Ruanda, os observadores descu-
conceito de «profecia auto-cumprida» {^self-fulfilling prophecy^^) a esse raram em demasia os responsáveis políticos. Quer em 1969, quer em
fenómeno: «Ao apresentar, de início, uma definição falsa da situação 1972, o contexto político revela uma especificidade considerável: face
do Burundi, esses políticos hútu provocaram novos comportamentos ao governo do Coronel Micombero, que se servia inteiramente do clien-
tanto entre eles quanto entre os tutsi que tornaram verdadeiras as telismo e das rivalidades de cariz regional ou clânico, e também étnico,
imputações falsas que lhe foram atribuídas inicialmente.» assiste-se ao florescimento de correntes de oposição que juntavam ba-
hutu e batutsi num desejo comum relativamente a um regime social e
54. Associação geral dos estudantes ruandeses, «Pour un dépassement réel de l'ethnisme et du
régionalisme au Rwanda», Rwanda de demain, n.s 8, Outubro de 1980, pp. 4-58 (nomeadamente
uma análise pormenorizada da crise de 1973). 56. R. Lemarchand, «La CIA en Afrique», Revue française d'études politiques africaines, n.s 137,
55. R. Lemarchand, op. cit., p. 344. Abril de 1977, p. 87.studantes

142 Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.) Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em Africa 1 Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi
político mais progressista e desalienado da obsessão étnica. No final tentação de mobilizar essa clivagem era perceptível entre os respon-
de 1 9 6 8 , uma tomada de posição pública do Ministro da Informação, sáveis políticos ou os intelectuais. Desde há trinta anos sensivelmente,
um oficial muhutu, o comandante Martin Ndayahoze, é reflexo disso os debates infindáveis sobre a questão étnica conduzidos no Ruanda
mesmo": e no Burundi inserem-se em lutas de poder e nas grandes linhas de
orientação dos Estados: o etnismo, infelizmente, constitui uma das
«Desde logo, podemos afirmar com segurança que é a classe alta que encer- formas da modernidade em África.
ra o vírus do tribalismo. [...] A fim de se manter em, ou aceder a, determi- Em suma, constatar-se-á que a análise histórica permite questionar
nados cargos cobiçados, são os quadros pouco meritórios que necessitam as belas certezas que são geralmente repetidas. A diversidade dos
de recorrer a recomendações, truques e artifícios; com o intuito de con- argumentos colocados ao serviço da etnicidade que marcou ambos
cretizarem as suas vergonhosas ambições, também alguns responsáveis in- os países é notória: teorias raciais, políticas ora assentes no elitismo
saciáveis fazem da divisão étnica uma estratégia política. Ora, se são tutsi, ora na democracia; legitimação dos fratricidas através de uma luta
denunciam um "perigo hútu" que deve ser enfrentado, e sempre que tal se de classes. Noutra sede, fizemos referência aos «safaris ideológicos»
justifique, com a ajuda de conspirações tácticas; se são hútu, declaram um a propósito dessa questão. O elemento constante reside na estrutura
"apartheid tutsi" que deve ser combatido. Toda essa situação é orquestrada da abordagem à sociedade, numa cristalização do rosto do «outro»
num cenário diabólico para que o sentimento prevaleça sobre a razão.» em termos de marginalidade, inferioridade ou exclusão. Os confron-
tos recentes foram ocasionados sobretudo pelo primado de uma acção
Em 1971, no momento que o ascendente de um grupo extremista tutsi política em busca de bodes expiatórios ou do ideal-tipo, desde a colo-
denominado «grupo de Bururi» (na realidade, tratava-se mais de uma nização até às independências, e não tanto por uma coexistência difícil
rede de personalidades do que de uma equipa «regionalista») se aden- entre dois povos. A armadilha de um racismo interno voltou assim a
sou, valendo-se até à exaustão da ameaça hútu, observa-se novamente encelar populações inteiras.
a manifestação dessas críticas, principalmente entre os estudantes No caso em apreciação, em que os grupos tutsi e hútu não constituem
durante o seu congresso de Julho de 1 9 7 1 . A oposição tutsi liberal foi etnias propriamente ditas, caracterizadas geográfica, linguística e
desmantelada em Outubro, na seqüência de um julgamento fabricado. historicamente, o desenvolvimento de consciências étnicas significa
Mas os intelectuais bahutu que criticavam o regime, sem no entanto obrigatoriamente um questionamento radical do outro: políticas de
aderir ao modelo étnico do Ruanda, foram extremamente malvistos desprezo e políticas de exclusão, lógicas de apartheid estribadas em
pelos políticos bahutu no exílio desde 1 9 6 5 , para quem a mudança só estereótipos raciais. O «tribalismo» no Ruanda e no Burundi inspirou,
se operaria através de uma guerra civil. Em Maio-Junho de 1972, vários em geral e de forma elucidativa, descrições evocativas de uma banda
intelectuais desaparecidos aquando dos ataques de uma repressão desenhada: os «pequenos» contra os «grandes», os quais ocupam al-
racista foram, de facto, vítimas desse duplo extremismo. Acerca dessa ternadamente o lugar do bom ou do vilão de cada lado. Nessa ima-
matéria, procedi à recolha de diversos testemunhos, verbais ou escri- gética da Epinal, o bom mututsi era preferencialmente um exilado,
tos, de correspondentes burundianos da altura. Tudo se passou como dotado de tradições fascinantes mas condenado pela história, e o bom
se determinados grupos políticos tivessem tido a necessidade de pre- muhutu será encarado como um trabalhador dócil (apresentámos,
cipitar os confrontos étnicos de molde a conservarem-se ou a subir em 1 9 7 6 , um caso de expulsão num colégio protestante do Burundi,
ao poder Conforme é sabido, três anos depois do Ruanda, o Burundi devido ao facto de um aluno muhutu não ter desempenhado o papel
sofreu um golpe de Estado militar em 1 9 7 6 , o qual instaurou um re- que lhe tinha sido atribuído^'). O reflexo apresentado pelos meios de
gime igualmente preocupado em suprimir um obstáculo étnico cuja comunicação dos países industriais a esses países não é imparcial.
gravidade se revelava suicidária. Porém, relativamente a cada período Outro avatar ideológico mencionado frequentemente consiste em
de adversidade em ambos os países, e também nos países vizinhos^®, a reduzir os actos de violência dos anos 6 0 e 70 do Ruanda e do Burundi
à expressão de um conflito de classes, com o risco de aludir a um
57. M. Ndayahoze, «Le Tribalisme au Burundi», editorial para radiodifusão, 25 de Nov. de 1968, «racismo de classe». Infelizmente, a história do século XX é ilustrativa
3 folhetos, f. 1. do facto de que a deriva racista não é acessória nem circunstancial.
58. Os grupos de língua ruandesa emigrados há relativamente bastante tempo foram afectados
por crises recentes no Sudoeste do Uganda e no Leste do Zaire [Kivu]: os interesses políticos
levaram à triagem dos povos em «etnias» hútu e tutsi. 59. «Les fratricides légitimés», já citado.

172 Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.) Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em ÁfricaConjunturasétnicasnoRuanda173
o nazismo revela contradições e ilusões mais profundas no seio da so- a cada cabeça corresponde um espírito diferente: à lisa, uma lisa honradez
ciedade alemã do que uma crise conjuntural do capitalismo® Quando, e fidelidade, à bicuda uma maneira de ser ardilosa, e também astúcia e cal-
na esteira de Fourier, Alphonse Toussenel escrevia no século XIX que culismo, tendência para a intrujice. A um povo, o de cabeça redonda, Iberin
«o feudalismo industrial encontrava a sua personificação no judeu cos- designa de Tchouche, afirmando que a sua origem reside no solo de Yahoo e
mopolita^X a sua teoria social diluía-se no anti-semitismo. A confusão é de bom sangue. O outro, reconhecível pela cabeça bicuda, é um elemento
entre críticas de ordem socioeconómica e a denunciação de categorias estranho, infiltrou-se no país, não tem pátria própria. São os Tchiches.»
socioculturais hereditárias insere-se mais na linha da teoria das «ra-
ças históricas» elaborada por Augustin Thierry no século passado, do
que propriamente na linha de Marx. A etnografia interlacustre, por seu
turno, adoptou antes o pensamento de Augustin Thierry.
Logo, a cristalização de duas etnias antagonistas com base em cate-
gorias antigas de outra natureza não corresponde a uma simples su-
perestrutura cultural de conflitos sociais modernos nem a uma res-
surgência de obscurantismos exóticos. Os milhares de vítimas dos
confrontos ocorridos no Ruanda e no Burundi desde há um quarto de
século não podem ser consideradas sequelas de uma barbárie passada
nem transformadas em mártires de um futuro melhor. Tal significaria
fechar os olhos ao facto de que, tanto em África quanto na Europa, os
valores do sangue, da terra e da raça podem ganhar forma - sob um
aspecto muito moderno - no cerne das políticas. No caso vertente,
a etnicidade prende-se sobretudo com as ilusões abandonadas pela
etnografia ocidental sobre o mundo designado de consuetudinário. A
anomia das primeiras gerações escolarizadas, afastadas dos valores
do seu passado sem serem verdadeiramente integradas nos valores
das culturas ocidentais (atendendo às constrições do ensino primário
ou a dispensa do ensino pós-primário] suscitou comportamentos de
fuga para trás, simultaneamente interesseiras (com a ajuda das am-
bições) e adulteradas, lançando mão de todos os recursos e de todas
as justificações. No nosso entender, afigura-se oportuno aludir à situa-
ção retratada por Bertolt Brecht em Os cabeças redondas e os cabeças
bicudas pelo que nos despedimos do leitor com a seguinte citação":

«Este Iberin sabe bem: o povo, que não é muito dado a abstracções, e que
as dificuldades tornam também impaciente, procura o culpado desta ruína
num ser familiar, com boca e orelhas e duas pernas, com que qualquer um
se possa cruzar na rua. [...] Descobriu que este país de Yahoo é povoado por
dois grupos raciais e que são muito distintos também no aspecto exterior,
na forma dos seus crânios: redonda é a cabeça de um, bicudaa de outro, e

60. Consultar P. Aycoberry, La Question nazie, Paris, 1979, 317 p.


61. A. Toussenel, Les juifs rois de l'époque. Histoire de la féodalité industrielle, Paris, ed. de 1886,
p. 134.
62. B. Brecht, Théâtre complet, vol. VIII, trad. Paris, 1960, p. 2 1 (a obra é de 1932).

Hútu eTutsi no Ruanda e no Burundi


156 J e a n - L o u p A m s e l l e e Elikia M'Bokolo (Coord.) Pelos M e a n d r o s da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em África

Você também pode gostar