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SUMÁRIO

ARTIGOS - DOSSIÊ

Apresentação 1-2
ANA BEATRIZ DEMARCHI BAREL

Apresentação 3-6
SÉRGIO CAMPOS GONÇALVES

A política imperial nas “Cousas Políticas” e nas “Balas de Estalo” da Gazeta de 7-27
Notícias: o jornalismo dos últimos anos da monarquia (1883-1884)
ANA FLÁVIA CERNIC RAMOS

O “tom africano” da Bahia oitocentista: olhares, relatos e imagens de Salvador no 28-48


século XIX
CARLOS ANTONIO DOS REIS

As histórias literárias pioneiras no Brasil oitocentista 49-69


CARLOS AUGUSTO DE MELO

A literatura como via de reconstrução nacional: o contexto curitibano no período 70-89


posterior à Revolução Federalista (1890-1900)
CAROLINE BARON MARACH

Regeneração e decadência: História, Literatura e os Usos do Passado e do 90-104


Presente no Portugal oitocentista
CÁSSIA DAIANE MACEDO DA SILVEIRA, EVANDRO DOS SANTOS

La identidad nacional de los estados brasileño y argentino como construcción 105-119


literaria a través de las figuras del bandeirante y del gaucho
DANIEL ARRIETA DOMÍNGUEZ

Brás Cubas: o sobrinho do tio 120-139


EWERTON DE SÁ KAVISKI

A especificidade da representação dos fatos históricos em "Esaú e Jacó", de 140-149


Machado de Assis
LUDMYLLA MENDES LIMA
O tema da morte trágica de Liev Tolstói e seu impacto em Max Weber e György 150-171
Lukács: sobre a autonomia nas ciências e na arte
LUIS FELIPE DE SALLES ROSELINO

Um mundo em agonia: a Geração de 1870 em Desterro 172-188


LUIZ ALBERTO DE SOUZA
189-203
L’influence du contexte politique espagnol sur la diffusion des œuvres litteraires
entre les Pyrenees-Orientales et la Catalogne au XIXe Siecle (1808-1886)
MATHIEU LLEXA

O "Grande Mundo": mundanismo e sociabilidade na literatura academicista 204-216


brasileira durante o Pré-Modernismo
MAURÍCIO SILVA

História e imaginação histórica: a “Crônica do Descobrimento do Brasil” de 217-231


Varnhagen e as narrativas de Alexandre Herculano
MICHELLE FERNANDA TASCA

Manuelita, entre mythe litteraire et recit historique 232-252


NELLY ANDRÉ

Émile Zola: a formação de um militante 253-275


RILTON FERREIRA BORGES

ENTREVISTAS

Spatial History e humanidades digitais, uma entrevista com o brasilianista


Zephyr Frank 375-393
FREDERICO FREITAS

ARTIGOS - LIVRES

A primeira-dama Maria Thereza Goulart e o costureiro Dener: a valorização da


moda nacional nos anos 1960 276-298
IVANA GUILHERME SIMILI
A identidade dos descendentes de alemães em "Um rio imita o Reno", de 299-311
Vianna Moog
JULIANA BEZERRA OLIVEIRA SACHINSKI, MÁRCIA MARIA DE
MEDEIROS

A narrativa memorialística de Paschoal Lemme: apontamentos para uma 312-328


análise retórica
ROBERTA ALINE SBRANA, MARCUS VINICIUS DA CUNHA

Clarisse Leite: perfil biográfico e listagem temática das obras para piano 329-346
PRISCILA FOLLMANN BARBAN, MARISTELLA PINHEIRO CAVINI

Ascensão e queda da União de Kalmar 347-369


ANDRÉ NASSIM DE SABOYA

RESENHAS

GONÇALVES, Ana Teresa Marques. A noção de propaganda e sua aplicação


nos estudos clássicos. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. 284 p. 370-374
SEMÍRAMIS CORSI SILVA

A Revista História e Cultura, ISSN: 2238-6270, Franca, SP, Brasil, está


licenciada sob uma Licença Creative Commons
Apresentação

Foi com muito prazer que recebi o convite para organizar um dossiê para a revista
História e Cultura, publicação eletrônica discente do Programa de Pós-Graduação em
História da UNESP (Franca). Propus o tema ‘História e Literatura no Século XIX’,
levando em conta meus trabalhos de pesquisa sobre o período e o eixo principal de meus
escritos desde o Mestrado: as relações entre os discursos sobre a nação, a formação da
identidade nacional e as relações entre produção literária e contexto histórico numa
perspectiva que sempre prioriza os processos de transferência e de circulação de códigos
culturais entre a Europa e o Brasil.
Nestes estudos, protagonizam a elaboração discursiva – tanto da historiografia
literária quanto da histórica – os personagens históricos das elites francesas e brasileiras
que encetaram um projeto bilateral de construção da jovem nação independente.
Ferdinand Denis, Eugène de Monglave, a família Taunay, Plasson, Hercule Florence,
Pedro II, Gonçalves de Magalhães, Torres Homem e Araújo Porto Alegre têm lugar de
honra na construção de um Brasil que nasce no papel – na Revista Nitheroy (1836), na
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839) e na imprensa – mas
também no protocolo diplomático dos jovens do Grupo de Paris, na delegação
diplomática brasileira que anuncia a boa-nova transatlântica do nascimento de uma nação
civilizada nos trópicos, sob a égide da França, sua guia. Nas últimas décadas do século,
na tribuna, travam-se duelos verbais afiados entre os baluartes dos valores republicanos
e que, simultaneamente, esgrimam suas penas ácidas nos romances-folhetins cariocas e
nas charges que vão construindo um Brasil que ri de si mesmo, criticando.
Foi, também, por isso, com o mesmo prazer, que constatei, no recebimento dos
artigos, trabalhos de pesquisadores que, atraídos pelo generoso da temática do dossiê,
viram suas inquietações teóricas acolhidas nos eixos de discussão propostos. Com prazer
igual, pude ler a produção de jovens pesquisadores que concebem, no lavor intelectual, a
missão de serem os indivíduos cuja preocupação maior é a de refletir sobre o processo
histórico e o fazer estético literário, oferecendo interpretações para eles.
Este dossiê ‘História e Literatura no Século XIX’ alegra-se por ser um êxito, tendo
recebido um número importante de textos de pesquisadores que iniciam seu caminho de
investigar, desvendar, desvelar, informar, e vêm de áreas de conhecimento e de
instituições as mais díspares e de continentes diferentes, América do Sul, América do
Norte, Europa.

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Este dossiê reconhece o valor dos artigos aqui apresentados, escritos com análise
fina e observação criteriosa. Estudiosos que revelam olhar preciso e rigor teórico. Tudo
ensina que será cada vez mais profícua a colheita, prometendo, os jovens acadêmicos aqui
reunidos, talentos para uma nova geração de pensadores, amantes do século XIX.
Sejam bem-vindos.

Ana Beatriz Demarchi Barel


Doutora em Literatura Brasileira – Université Paris III Sorbonne Nouvelle
Pesquisadora Pós-Doutorado em História – FCRB (Bolsista FAPERJ)

Organizadora do Dossiê História e Literatura no século XIX

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Apresentação

Marcado pelo processo de criação dos Estados nacionais na Europa, pela definição
de suas fronteiras e pela invenção de suas identidades, o século XIX ficou conhecido
como “o século da história”. Conforme observa François Dosse (2010, p. 15-16), o
processo de construção de tal expressão encobre duas realidades diferentes e
complementares. De um lado, o Oitocentos foi o século da história porque a sociedade da
época passou a esperar que a história enunciasse um tempo laicizado e que afirmasse para
qual direção se dirigia a humanidade, atribuindo à história a função de um magistério do
futuro em missão profética, e deslocando à disciplina histórica uma expectativa que
tradicionalmente fora destinada à religião. Por outro lado, o século da história foi o XIX
porque nesse período buscou-se uma profissionalização da prática histórica, que por toda
a Europa foi dotada de um programa para seu ensino, com regras metodológicas e
imbuído de uma preocupação para diferenciá-lo da literatura.
O nascimento da história como disciplina confundia-se com a imensa confiança na
marcha progressiva das ciências. De acordo com José Carlos Reis (2003, p. 38), a busca
por integrar a história aos padrões de cientificidade não impediu que os historiadores-
cientistas continuassem a considerar a história como o desenvolvimento progressivo,
racional e contínuo do Espírito ou do Estado-nação, do povo, em direção à liberdade.
“Para a história científica”, argumenta Reis (2003, p. 39), “a Europa continua sendo o
centro e a vanguarda da história universal. Ela é guardiã e executora do ‘sentido histórico
científico’, contra o qual não há apelação nem religiosa, nem especulativa”. Dito de outro
modo, o olhar científico do século XIX significou a radicalização da confiança no projeto
moderno, estruturado pela conquista europeia da história universal e pelo controle do
sentido histórico.
Nesse contexto da afirmação do Estado-nação, das nacionalidades, enquanto o
advento da razão moderna construiu um discurso teológico e/ou filosófico no qual
chamou para si o privilégio de ser detentor da verdade, houve uma progressiva ascensão
do discurso histórico sobre o discurso ficcional. Associada ao Estado-nação, a História
havia se tornado centralmente uma história política em que a coletividade era
substituída pelo relato dos fatos e pela biografia das grandes personalidades. Conforme
explica Luiz Costa Lima (1989, p. 113-114), o domínio burguês em processo de
expansão havia se associado “à ciência, ao desenvolvimento tecnológico e concedia à
humanidade (europeia)” conceber-se enquanto uma espécie superior, cujo caminho se

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tornava sempre mais largo e promissor: “o fato histórico podia então ser tido como
natural, autoevidenciador do domínio da vida pela espécie humana”.
Se a concepção da representação histórica verdadeira, positiva e científica tem sua
origem no século XIX, antes dos Oitocentos, contudo, a historiografia era considerada
como um assunto próprio da teoria retórica, como um ramo do discurso oratório. Tal qual
Lima, Hayden White (1991, p. 24-25) também observa que a separação da historiografia
da retórica teria se dado ao longo do século XIX, notadamente com o movimento
cientificista, através de um “duplo ataque à retórica, dos poetas românticos, de um lado, e
da filosofia positivista, de outro”, o qual teria levado “ao desprezo geral da retórica por toda
a alta cultura ocidental”. Nesse movimento, argumenta White, a "literatura" teria suplantado
o discurso oratório, da mesma forma que a prática da "escrita" e da "filologia" teriam
suplantado a retórica como ciência geral da linguagem. A partir daí, a questão teórica da
escrita da história passou pela especificação da relação da história com a "literatura", o que,
no entanto, teria criado um problema insolúvel, dado que a literatura era normalmente
pensada como produto misterioso de uma "criatividade poética".
Entretanto, para White, o fato das obras clássicas da historiografia continuarem a
ser valorizadas por suas qualidades “literárias”, mesmo depois de seu conteúdo
informativo ter sido considerado ultrapassado e lhe ter sido atribuída a característica de
lugares-comuns do momento cultural em que foram escritas, confirma que o conteúdo do
discurso historiográfico é indistinguível de sua forma discursiva:

É verdade que, ao falarmos da natureza "literária" de clássicos da


historiografia como os escritos por Heródoto, Tácito, Guicciardini,
Gibbon, Michelet, Tocqueville, Burckhardt, Mommsen, Huizinga,
Febvre ou Tawney, podemos muitas vezes estar pensando em seu status
como exemplares de um estilo bem-sucedido de escrita. Mas ao
designarmos sua obra como “literária" não a estamos exatamente
removendo do domínio da produção de conhecimento, e sim indicando,
simplesmente, até que ponto se pode considerar que a própria literatura
habita esse domínio, na medida em que ela também nos fornece
modelos semelhantes de pensamento interpretativo (WHITE, 1991, p.
25).

Assim, os dois tipos de discurso, o literário e o historiográfico, mais se


aproximariam que se distanciariam, pois, como ambos operam a linguagem, seria
impossível traçar uma distinção clara entre a forma discursiva e o conteúdo interpretativo.
Imprecisa, a diferença entre os discursos literário e histórico dever-se-ia ao fato de que
seus referentes básicos são concebidos, respectivamente, mais como eventos
“imaginários” que “reais”.

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Não é aleatório que, já no século XX, precisamente no final dos anos 1970, um
estudo de Lawrence Stone (1979) detectava uma espécie de retorno à retórica da prosa
elegante do contar histórias (story-telling) “de Tucídides e Tácito à Gibbon e Macaulay”.
Diante de um desgaste da explicação monocausal da mudança histórica amparada em
determinismos econômicos, e com o reconhecimento da iniciativa do indivíduo no curso
dos acontecimentos, em suas esferas cultural e emocional, de acordo com Stone, cada vez
mais os historiadores passavam a trabalhar com seu objeto privilegiando uma perspectiva
descritiva, através da qual a narrativa histórica organiza o material de pesquisa em uma
sequência cronológica e o apresenta como conteúdo em uma única trama, ao invés – e
cada vez menos – de dispô-lo em um arranjo analítico, de perspectiva estrutural, em cujo
foco está a circunstância e não o sujeito. A história em questão era: haveria um “retorno
da narrativa”, o surgimento de uma “nova velha história”, ligada à literatura que fora
rejeitada pelo cientificismo do século XIX?
A partir disso, ao se pensar a história a partir de suas afinidades com a literatura,
criou-se um conflito entre os historiadores com os pressupostos de cientificidade que
haviam estabelecido a história como disciplina do conhecimento no século XIX,
distanciando o historiador do cientista e aproximando-o do literato. Entretanto, se por um
lado, as propriedades literárias da escrita da história, principalmente a narrativa, suscitaram
questionamentos sobre a subjetividade e o caráter interpretativo do conhecimento histórico,
evidenciando a relação complexa entre as fontes e a produção do discurso do historiador
com uma incômoda interrogação sobre as garantias de objetividade científica na análise dos
fatos do passado, por outro, a concepção da história, sobretudo enquanto narrativa, como
um constructo linguístico intertextual, ofereceu elementos para que o historiador refletisse
sobre seu ofício e para que buscasse um refinamento do seu trabalho de pesquisa e de escrita
da história.
De fato, a julgar pelo imenso volume de contribuições que este dossiê recebeu, a
compreensão interdisciplinar entre a história e a literatura deixou há muito de ser um
assunto em litígio para se tornar um recurso valioso. É sintomático que, entre os artigos
selecionados para o dossiê que se apresenta, há trabalhos nascidos no berço da literatura
que se voltam com naturalidade à história e trabalhos provenientes do berço da história
cujas reflexões encontram confortável amparo na literatura.
Assim, este dossiê é motivo de grande satisfação não apenas devido à qualidade de
cada um dos trabalhos aqui publicados, um mérito indiscutível dos autores, mas também
devido ao que ele próprio representa: é um sinal eloquente de uma tamanha afinidade da

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história e da literatura que torna indistinta a separação disciplinar tradicional dos ramos
do saber.
Que este dossiê seja uma inspiradora semente de outras possibilidades.

Sérgio Campos Gonçalves


Doutorando em História – UNESP/Franca

Organizador do Dossiê História e Literatura no século XIX

Referências Bibliográficas

DOSSE, François. História e historiadores no século XIX. In: MALERBA, Jurandir


(org.). Lições de história: o caminho da ciência no longo século XIX. Rio de Janeiro:
Editora FGV; Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. pp. 15-31.
LIMA, Luiz Costa. O Controle do Imaginário: razão e imaginação nos tempos
modernos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
REIS, José Carlos. História & Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e
verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
STONE, Lawrence. The Revival of Narrative: Reflections on a New Old History. Past
& Present, Oxford - UK, v. 4, n. 85, p. 3-24, nov. 1979.
WHITE, H. Teoria literária e escrita da história. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.
7, n. 13, p. 21-48, 1991.

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A POLÍTICA IMPERIAL NAS “COUSAS POLÍTICAS” E NAS
“BALAS DE ESTALO” DA GAZETA DE NOTÍCIAS: O
JORNALISMO DOS ÚLTIMOS ANOS DA
MONARQUIA (1883-1884)

IMPERIAL POLICY IN “COUSAS POLÍTICAS” AND IN


“BALAS DE ESTALO” OF GAZETA DE NOTÍCIAS: THE
JOURNALISM IN THE LAST YEARS OF
MONARCHY (1883-1884)

Ana Flávia Cernic RAMOS•

Resumo: A Gazeta de Notícias foi um dos principais jornais responsáveis pela grande
transformação do jornalismo brasileiro no final do século XIX. Entre as suas principais
propostas, estava a mudança na intenção dos textos que integravam suas páginas. Segundo o
desejo de seu fundador, Ferreira de Araújo, a Gazeta valorizaria a notícia imparcial e objetiva, e
a “neutralidade” política. A partir da comparação entre as colunas “Balas de Estalo” e “Cousas
Políticas”, ambas publicadas na Gazeta de Notícias e escritas pelo seu fundador, analisaremos
como foi possível construir um projeto político de crítica à Monarquia e às instituições que a
legitimavam a partir dessa nova forma de fazer jornais.
Palavras-chave: Imprensa – Política – Monarquia.

Abstract: The Gazeta de Notícias was one of the major newspapers responsible for the great
transformation of Brazilian journalism in the late Nineteenth Century. According to the
proposals of its founder, Ferreira de Araújo, the Gazeta would value the publication of news
impartially and objectively, developing a political "neutrality". From the comparison between
columns "Balas de Estalo" and "Cousas Políticas", both published in the Gazeta de Notícias,
and written by its founder, my aim is to analyze how it was possible to build a political critique
of the Monarchy, from this new concept of newspaper.
Keywords: Press – Politics – Monarchy.

Em 11 de fevereiro de 1884, na sua tradicional coluna “Cousas Políticas”,


Ferreira de Araújo, fundador e dono de um dos maiores jornais do Rio de Janeiro
naquele final de século, a Gazeta de Notícias, escrevia que uma “imprensa neutra” fazia
política “sem se filiar a partidos políticos”. Acusada pelo jornal conservador Brazil de
igualar liberais e conservadores em um de seus últimos artigos, a Gazeta, através de
Araújo, se defendia, dizendo que “a imprensa neutra” tinha “pouco a ver com essas
preposições de caráter absoluto”. Segundo Araújo, seu jornal era resultado dos novos
tempos e podia ostentar a “vantagem” de não pretender ir para um “lugar que


Doutora em História – Programa de Pós-Graduação em História – Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas – UNICAMP. Professora do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU), Campus Sta. Mônica, Bloco H, Sala 1H49, CEP: 38400-902, Uberlândia, Minas Gerais - Brasil.
E-mail: afcramos@yahoo.com.br.
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considerava mal ocupado”. Para Araújo, a imprensa deveria colocar de lado suas
“ambições pessoais”, sendo sua “missão” destruir o que a “opinião pública” julgava
mal, preparando o terreno e animando “os esforços dos que são capazes de edificar”
(ARAÚJO, 1884, p.1).
Para o autor das “Cousas Políticas”, diante da “desorganização dos partidos”,
tinha a “imprensa neutra” a responsabilidade de “formar” uma “opinião pública”, de
levar aos leitores a uma discussão de “princípios”. E se assim o fazia era porque o
interesse não estava em destruir “pelo prazer de destruir”, mas indagar se o que havia
ainda podia ser utilizado, ou se merecia “realmente ser destruído”. Para Araújo, a
Gazeta representava uma imprensa “desapaixonada”, sem “segunda intenção”, que se
configurava apenas como o “fio condutor” que poria em “comunicação” o “pensamento
da maioria dos bem intencionados”, para que estes coligassem os seus esforços e os
encaminhassem para a “obtenção do bem geral” (ARAÚJO, 1884, p. 1).
O ideal da neutralidade política foi um dos principais ingredientes das mudanças
sofridas pela imprensa no final do século XIX. Vista como um princípio de
objetividade, como elemento fundamental de uma imprensa que se imaginava
“moderna” e apartidária, que fazia política sem representar interesses particulares, a
questão da neutralidade se transformou em tópico de disputa entre importantes
intelectuais da época que, ao mesmo tempo em que debatiam as configurações do novo
jornalismo, viam também na imprensa um importante instrumento de atuação política.
Escrevendo alguns anos antes de Ferreira de Araújo, José do Patrocínio, em 27 de junho
de 1881, também nas páginas da Gazeta de Notícias, lamentava:

A fonte viva da política de um povo é a sua imprensa. É ela que


agremia as opiniões em partidos, que disciplina estes para o governo;
é que fortalece ou enfraquece os governos para sustentá-los ou
derrubá-los em nome do país. Pois bem, a capital do império, o grande
laboratório da opinião nacional, não tem uma imprensa política. A
imprensa em massa se declara neutra. [...] Significa isto a abstenção
inteira do povo quanto à marcha dos seus governos? Não, porque nos
“a pedidos” dos jornais a discussão continua; porque nas conversações
particulares a política toma o primeiro lugar. Qual a explicação do
fato? É que a imprensa da Corte vive no meio de uma sociedade em
que a propriedade poderosa, a propriedade que faz opinião, é na sua
maioria estrangeira e, por isso mesmo, neutra. Neutralidade
antipatriótica basta para demonstrar que a imprensa da capital é
estrangeira (PATROCÍNIO, 1881, p. 1).

Este foi o último artigo que José do Patrocínio publicou como colaborador da
Gazeta de Notícias. Amigo de Ferreira de Araújo, ele havia entrado para o quadro de
colaboradores da Gazeta em 1877, tornando-se um dos seus principais folhetinistas
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políticos já em 1878. Sob o pseudônimo Proudhomme, ele escrevia a coluna intitulada
“Semana Política”, publicada regularmente às segundas-feiras (FERACIN, 2006), cujo
lugar seria ocupado, alguns anos mais tarde, pelas “Cousas Políticas” de Araújo. No
entanto, pouco depois de fevereiro de 1881, quando o dono da Gazeta de Notícias partiu
para sua primeira viagem à Europa, a situação de Patrocínio naquele jornal começou a
se tornar muito delicada. Sempre com artigos inflamados, passou a não encontrar nas
páginas desta folha a liberdade de que gozava, por exemplo, no jornal de Ferreira de
Menezes, a Gazeta da Tarde. Diante disso, começou então a se desentender com os
donos e com os principais redatores da Gazeta de Notícias, tais como o português
Henrique Chaves, Elísio Mendes e Francisco Ramos Paz.
O último artigo de Patrocínio para o jornal de Ferreira de Araújo, sobre a
“neutralidade política” da imprensa carioca, registrava, entretanto, não apenas o
desencanto do articulista, como trazia para o debate o papel que a imprensa brasileira
havia se atribuído naquele momento. E o assunto não era novo. Desde o início de sua
trajetória, a Gazeta de Notícias tinha se esforçado por se caracterizar como um jornal
“não partidário”, “moderno”, que tinha como compromisso fundamental a notícia
isenta, o debate e a pluralidade de ideias. O próprio Machado de Assis, em crônica
comemorativa do aniversário da Gazeta, relembrava o avanço que o jornal de Ferreira
de Araújo havia proporcionado à imprensa ao criar uma folha que “não servia a
partidos” (ASSIS, 1996). E Machado não estava enganado, a Gazeta de Notícias, de
fato, desejou desde o seu surgimento se diferenciar dos muitos jornais efêmeros que
surgiram ao longo do século XIX e que tinham como principal propósito defender
grupos políticos.
Ao falar da Gazeta de Notícias, Machado provavelmente se remetia às mudanças
mais gerais da imprensa que ele testemunhara, como literato e integrante de importantes
jornais da época. A partir dos anos de 1870, o Rio de Janeiro, além das grandes
transformações políticas e sociais, assistia também ao surgimento das condições que se
tornaram essenciais para o desenvolvimento dessa nova imprensa, tais como o aumento
expressivo da população, a instalação do serviço telegráfico, o desenvolvimento dos
serviços dos correios e, principalmente, a construção de uma malha ferroviária que atingia
lugares cada vez mais longínquos (BARBOSA, 2000). Criadas essas condições, o Rio de
Janeiro tornou-se o grande centro de um novo jornalismo, que teve entre os seus
protagonistas a Gazeta de Notícias, fundada em 1875 (SODRÉ, 1966). Como o grande
empreendedor, Ferreira de Araújo inaugurou o sistema de vendas avulsas pelas cidades,
passou a distribuir o seu jornal a preço popular (40 réis) e revolucionou o conteúdo do seu
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periódico ao tornar os seus artigos e colunas mais leves, curtos e acessíveis ao grande
público (PEREIRA, 2004). Já em seu prospecto, publicado em 2 de agosto de 1875, a
Gazeta afirmava que seu único compromisso era com a “jovialidade”, com a “leveza” e
com o gosto do público (LULU SÊNIOR, 1875, p. 1).1
Como resultado destas transformações, um novo jornalismo se difundiu no Rio
de Janeiro. Muda-se o padrão editorial das publicações, aumenta-se a tiragem, mas,
principalmente, “[...] muda-se a intenção dos textos que integram os periódicos”,
passando-se a “[...] valorizar sobremaneira a notícia instantânea e a imparcialidade”
(BARBOSA, 2000, p. 24). Os textos agora diziam pretender, sobretudo, “[...] informar
com isenção, com neutralidade e veracidade”, o que leva à criação de colunas fixas para
informação e para opinião, ao mesmo tempo em que se privilegia a edição de notícias
informativas, em detrimento da opinião (BARBOSA, 2000, p. 24). O sentido de
objetividade passou a integrar a forma como jornais e revistas se apresentavam a partir
da década de 1870, constituindo seu discurso de legitimidade. Apresentando-se como
órgãos preocupados em fazer crítica social, em conduzir a opinião pública para o
aperfeiçoamento das instituições, eles afirmavam que sua ética estava sustentada pela
noção de imparcialidade e de independência política. Ou seja, a imprensa que nascia se
afirmava portadora de uma “missão”, se via como uma espécie de “fio condutor” da
opinião pública e da luta pelos interesses do “bem geral”, como podemos observar nas
falas de Araújo e Patrocínio. Além disso, a imprensa passou a ser constantemente
representada como um instrumento de informação que garantiria o debate, a pluralidade
de ideias e a isenção no tratamento dos assuntos, como também notamos na fala de
Machado de Assis.
Outro ponto que merece destaque é o lugar ocupado pela política nos jornais
daquele período. Respirava-se política, sendo ela assunto preponderante para qualquer
assíduo leitor de periódicos do século XIX. Os habitantes da cidade participavam da
vida política da cidade e do país de diversas formas.

Acompanhavam de perto o que acontecia no parlamento; muitos eram


contumazes frequentadores das galerias da Câmara e do Senado,
estavam bem informados a respeito das oscilações dos gabinetes e dos
atos dos ministros (BALABAN, 2009, p. 337)

prestavam atenção nos atos do imperador, consumiam uma quantidade enorme de


diários que comentavam o cotidiano político do país. Constituindo-se a nova imprensa
também como um grande empreendimento comercial, a política, fonte de grande

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interesse por parte do público leitor, obviamente representava um dos principais
ingredientes dessa receita para um novo jornalismo.
Uma vez reconhecido o importante papel da política na pauta dos periódicos, é
preciso, entretanto, reconhecer as maneiras pelas quais se discutia política nas páginas
dessas publicações. Ferreira de Araújo e José do Patrocínio, escrevendo em momentos
diferentes, viam a atuação de um dos maiores e mais populares jornais daquele
momento, a Gazeta de Notícias, de modos diferentes. Para Patrocínio, o discurso da
“neutralidade” comprometia a ação da imprensa como aquela “agremia as opiniões em
partidos”, que “disciplina estes para o governo” (PATROCÍNIO, 1881, p. 1). Para
Araújo, entretanto, era justamente a “isenção”, a crítica independente que garantia a
atuação do jornal em nome do interesse geral e da “opinião pública” (ARAÚJO, 1884,
p. 1). Partindo do “impasse” entre os dois colaboradores da Gazeta de Notícias,
pretende-se aqui abordar a forma como a política foi tema do jornal de Ferreira de
Araújo a partir da comparação entre duas colunas de bastante sucesso nos primeiros
anos da década de 1880: “Balas de Estalo” e as “Cousas Políticas”. Em um momento
em que questões polêmicas como o abolicionismo, o republicanismo e as críticas ao
poder Moderador e à Monarquia estavam na pauta do dia, comparar uma seção de
crônicas, voltada para o humor, com uma coluna política, de primeira página, que
ocupava o lugar do editorial do jornal, pode ser uma importante estratégia para
descobrir como o dono da Gazeta de Notícias solucionou seu impasse.

O projeto da “neutralidade” nas “Balas de Estalo” e nas “Cousas Políticas”

Entre os anos de 1883 e 1886 foi publicada diariamente na segunda página da


Gazeta de Notícias uma série coletiva de crônicas intitulada “Balas de Estalo”.
Composta por diversos colaboradores, a série se tornou um “confeito” que os leitores do
Rio de Janeiro pareciam ter gostado. Com mais de uma dezena de pseudônimos, que se
revezavam no ofício de comentar o cotidiano da cidade e as ações da política nacional,
“Balas de Estalo”, ao longo de mais de suas 940 crônicas, articulou um projeto de
nação, construído lentamente a partir de críticas contundentes à Monarquia, à Igreja e à
Escravidão. As principais instituições do Império tornaram-se alvos diários na coluna da
Gazeta de Notícias cujas características mais marcantes eram a pluralidade e o humor.
Evidenciando o desejo de “estalar” balas de “artilharia”, ou de “açúcar”, em direção aos
principais “homens e instituições” do país, a série se transformou em um espaço
importante no jornal de Ferreira de Araújo nos debates sobre a política nacional.
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Compondo-se de narradores que primavam pela simplicidade e pela objetividade de
seus textos, “Balas de Estalo”, publicada em espaço entrelinhado, ganhou importante
destaque na Gazeta, enfatizando que um de seus principais objetivos era agradar ao
maior número possível de leitores (RAMOS, 2005).
Fazendo da “pilhéria” seu ingrediente mais marcante, a série construiu um
significativo espaço de debate sobre os mais variados assuntos, entre os quais a política,
a religião, a escravidão, a polícia, o carnaval e a ciência médica. Seus colaboradores,
entre eles o próprio Ferreira de Araújo, revezavam-se no ofício de produzir crônicas
curtas e engraçadas, surgidas a partir de comentários rápidos de pequenos
acontecimentos e fatos inusitados, que na coluna eram transformados em crítica às
tradicionais práticas políticas do império. Comentários que, ao longo da publicação,
acabaram por elaborar um arcabouço de críticas que demonstravam o atraso em que
vivia o imperador, a monarquia e todas as instituições que a alicerçavam.
Tais críticas não podem deixar de ser analisadas sob a perspectiva do projeto de
“neutralidade” da Gazeta de Notícias. Uma vez que a série se tornou tão popular, seria
impossível desconsiderar a importante intervenção política que as engraçadas “balas de
estalo” introduziram neste periódico. Uma das maneiras possíveis de observar a forma
como “Balas” assumiu essa “missão” na Gazeta é a comparação entre a série e a coluna
“Cousas Políticas”, que também foi bastante popular e que se pautava pelos temas mais
polêmicos da política imperial.
Escrita por Ferreira de Araújo, a coluna “Cousas Políticas”, publicada entre os
anos de 1883 e 1885, aparecia todas as segundas-feiras na primeira página da Gazeta de
Notícias, comentando os acontecimentos políticos de destaque da semana anterior.
Embora aparecessem sem assinatura, todos sabiam que por detrás dos textos das
“Cousas Políticas” estava Ferreira de Araújo, que utilizava aquele espaço do jornal
como uma espécie de “editorial” da Gazeta de Notícias. Assuntos como as trocas de
ministérios, os programas dos partidos políticos, a atuação do Poder Moderador, o
incentivo à imigração, a escravidão, a defesa do casamento civil e a separação legal
entre a religião estiveram presentes em vários dos textos de Araújo e se tornaram a
marca registrada da coluna ao longo de sua publicação.
O ponto que primeiramente nos interessa na comparação entre essas duas colunas
é a questão da autoria. Em “Cousas Políticas”, apesar de não haver assinatura, sabia-se
que sua autoria cabia a Ferreira de Araújo. Em “Balas de Estalo”, todas as crônicas
escritas por Araújo vinham sob o pseudônimo Lulu Sênior, assinatura que o dono da
Gazeta de Notícias já utilizara em outras ocasiões, em especial na sua participação no
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jornal humorístico O Mosquito. Escritas pelo mesmo autor e tratando muitas vezes dos
mesmos temas, “Balas” e “Cousas Políticas”, entretanto, tinham funções diversas dentro
do jornal, sendo que a existência do pseudônimo se constituía em um instrumento
importante nessa diferenciação. Em comparação ao restante do grupo de “Balas de
Estalo”, Ferreira de Araújo mantinha uma relação bastante particular com seu
pseudônimo. Em 29 de setembro de 1883, por exemplo, na crônica em que Lulu Sênior
comentava uma denúncia que a Gazeta havia feito sobre a polícia, podemos observar
uma suposta alteridade existente entre autor e narrador:

Dias depois, o subdelegado, que tinha dado a bofetada, por modéstia,


não se gabava disso, chamou à responsabilidade o nosso gordo patrão
que tinha posto a história toda na Gazeta. O bom patrão despediu-se
da família, fez testamento, rolou pela ladeira de justiças d’ El Rei
Nosso Senhor [...] e ficou à espera que continuasse o processo para ir
gemer a referida palha úmida dos cárceres (LULU SÊNIOR, 1883, p.
2, grifo nosso).

Nesta crônica, Lulu Sênior definitivamente não é o “gordo patrão”, ou seja, não é
Ferreira de Araújo, aquele que estava sofrendo represálias por ter denunciado abusos de
poder por parte da polícia. Nessa bala de estalo, era apenas Lulu Sênior quem falava,
deixando o tema “espinhoso”, ou mesmo o “processo”, para o dono do jornal.
Diferentemente de crônicas em que Lulu Sênior falava como Ferreira de Araújo, como é
o caso da bala de estalo de 01/07/1883, em que ele assumiu ser o autor de uma peça
teatral chamada O Primo Basílio, nesta, sobre a polícia, o narrador coloca-se à frente do
cronista. A despeito do efeito humorístico que a estratégia certamente tinha, o
movimento de aproximação e distanciamento entre autor e narrador – repetido inúmeras
vezes ao longo da série - como observaremos mais adiante, constituía também uma
estratégia importante na instauração das discussões políticas feitas no jornal e na
manutenção da desejada “imparcialidade” da Gazeta.
É necessário observar que a brincadeira de Lulu Sênior estava longe do
tratamento dispensado por outros cronistas aos seus respectivos pseudônimos. Machado
de Assis, por exemplo, ao criar Lélio, outro narrador das populares “Balas de Estalo”,
jamais lidou com a sua personagem como se fosse uma mera assinatura. Ao contrário,
Machado, partindo de características previamente elaboradas e sustentadas durante toda
a publicação de “Balas”, criou um narrador que se esforçou em delimitar seus pontos de
vista e até mesmo seu particular modus operandi na abordagem dos temas que
frequentaram as suas crônicas na série (RAMOS, 2010).

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A brincadeira sobre a autoria dos textos de Araújo eram tão frequentes que ela se
torna tema de uma crônica de Lélio em “Balas de Estalo”. Em março de 1884, saía pela
gráfica da Gazeta de Notícias um volume intitulado “Cousas Políticas de 1883”, no qual
Ferreira de Araújo reunia todos os textos publicados sob aquele título. Lélio,
pseudônimo de Machado de Assis, no dia 13 de março de 1884, não deixaria de
registrar o acontecimento:

Meu caro Lulu Sênior - você que é da casa – podia tirar-me de uma
dúvida. Acabo de ler nos jornais a notícia de que estão coligidos em
livro os artigos hebdomadários da Gazeta de Notícias, denominados
‘Cousas Políticas’, atribuindo-se a autoria de tais artigos ao diretor da
mesma Gazeta. Eu até aqui conhecia este cavalheiro como homem de
letras, amigo das artes, e um pouco médico. Nunca lhe atribuí a menor
preocupação política, nunca o vi nas assembleias partidárias, nem nos
órgãos de uma ou outra das novas escolas políticas. [...] Isto posto, caí
das nuvens quando li que as ‘Cousas Políticas’ eram desse cavalheiro.
Se quer que lhe fale com o coração nas mãos, não acredito. Não
bastam a imparcialidade dos juízos, a moderação dos ataques, nem a
sinceridade das observações; e se você não fosse um pouco parente
dele, eu diria que não bastam mesmo o talento e as graças do estilo
para atribuírem-lhe tais crônicas. Acho nelas um certo gosto às
matérias políticas, que, depois do efeito produzido por uma citação de
Molière na Câmara, suponho incompatíveis às aptidões literárias. [...]
A especialização dos ofícios é um fato sociológico. Isto de ser político
e homem de letras é cousa que só se vê naqueles países da velha
civilização [...]. Se é assim, se as cousas são como tais, então
cumprimenta por mim o nosso Ferreira de Araújo, dizendo-lhe ao
mesmo tempo que continue, e cá me tem a lê-lo e relê-lo, e adeus
(LÉLIO, 1884, p. 2, grifo nosso).

Como podemos observar, Lélio também não se refere a Lulu Sênior e Ferreira de
Araújo como se eles fossem a mesma pessoa. Para o narrador de Machado, ambos são,
no máximo, apenas “um pouco parentes”. A diferenciação entre um e outro feita por
Lélio sugere que, além da piada intrínseca aos textos de “balas”, pelo menos quanto à
forma (crônica e editorial), estes narradores continuavam separados: Lulu Sênior, um
pseudônimo humorístico, e Ferreira de Araújo, dono da Gazeta de Notícias, a voz do
jornal moderno, isento e independente. Imagens reforçadas na própria maneira que
Lélio descreve Araújo: “homem de letras”, nunca visto em “assembleias partidárias”,
nem nos “órgãos de uma ou de outra nova escola política”. Ou seja, um homem
independente politicamente, representante das opiniões da Gazeta de Notícias, que se
propunha a, semanalmente, comentar a vida política do império. Para Lélio, um dos
principais méritos das “Cousas Políticas” era, então, esse espírito de isenção e
imparcialidade política.

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Seguir essas especificidades da organização do jornal significa, por sua vez,
compreender a forma como cada um dos assuntos discutidos por estes narradores foi
tratado nesses diferentes espaços. Ao longo da leitura da série, podemos perceber que
Ferreira de Araújo lidava de forma um pouco mais moderada em certos assuntos quando
a discussão ocorria em “Cousas Políticas” do que quando escrevia sob o pseudônimo
Lulu Sênior nas “Balas de Estalo”. Por outro lado, o humor desta série de crônicas e o
véu, mesmo que transparente, do pseudônimo, pareciam lhe dar mais liberdade para
discutir temas delicados referentes à monarquia e ao poder pessoal do imperador, por
exemplo, sem comprometer a “imparcialidade” do jornal. A Gazeta de Notícias,
dizendo-se uma “folha neutra”, não poderia ter em seu editorial ataques frontais ao
imperador, nem ridicularizações da figura do monarca, ou dos seus rituais e de sua
intelectualidade, sem ser considerada uma folha demasiadamente política e partidária. A
manutenção de uma imagem de “neutralidade” e de defesa apenas do bem público
norteavam a atuação de Ferreira de Araújo em sua coluna dita “mais séria”. Zig-Zag,
pseudônimo do jornalista Henrique Chaves nas “Balas de Estalo”, em crônica de 14 de
março de 1884, também se referirá, em tom de brincadeira, a essa “neutralidade” nas
“Cousas Políticas”:

Levei um ano inteiro a desviar os olhos dessas Cousas Políticas e não


fazer caso das primeiras colunas da Gazeta, às segundas-feiras.
Quando cheguei ao fim de oitenta e três, pensei que as Cousas
Políticas haviam acabado. Enganei-me. Entraram energicamente pelo
oitenta e quatro, continuando a privar-me às segundas-feiras da leitura
das referidas primeiras colunas desta folha. Agora vejo em volume as
mesmas Cousas. [...] O homem não quer somente ser lido, quer ser
meditado. [...] Tive um momento de fraqueza e li Cousas Políticas.
[...] Não direi claramente a minha opinião, com receio de arriscar o
meu lugar de baleiro honesto e trabalhador. Entretanto, quer me
parecer que as Cousas Políticas constituem um livro perigoso para a
estabilidade das nossas instituições. Em primeiro lugar, pela leitura do
livro não se fica sabendo se o autor é liberal, conservador,
monárquico, republicano, escravagista, emancipacionista,
abolicionista, ultramontano ou livre pensador. Ora, tratando-se de
Cousas Políticas, esta omissão é indesculpável. [...] Deve-se ser
liberal ou conservador” [...]. O contrário é fazer política sui generis.
Aplaudir os atos bons de uma administração e censurar os atos maus
da mesma administração é fazer-se política do sim e do não. O escritor
que faz isto não é um imparcial, é um incompetente (ZIG-ZAG, 1884,
p. 2, grifo nosso).

No jogo entre os narradores de “Balas de Estalo”, que viviam criando “duelos”, e


“polêmicas” como uma estratégia de reforçar o caráter coletivo da série para os leitores,
Zig-Zag transformara-se em uma espécie de “adversário” de Lulu Sênior. Apesar de
Henrique Chaves (o cronista responsável pela assinatura do pseudônimo Zig-Zag) ser
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amigo de Ferreira de Araújo e também um dos fundadores da Gazeta, na série, com o
propósito da pilhéria, ele, através de seu narrador, vivia a confrontar as opiniões de Lulu
Sênior sobre os mais diversos assuntos. A disputa entre os dois se tornou tão popular
entre os leitores da série que, em 1887, quando foi publicada uma edição em livro de
“Balas de Estalo”, foram as crônicas desses dois narradores as escolhidas para integrar o
volume. E é exatamente isso que está ocorrendo na “bala” de 14 de março de 1884,
citada acima. Por pilhéria, Zig-Zag satiriza a moderação do autor das “Cousas
Políticas”, chamando-o não de imparcial, mas de “incompetente”. Além disso, para
quem fosse leitor assíduo de “Balas de Estalo” e das “Cousas Políticas”, o comentário
sobre a política do “sim e do não” seria rapidamente reconhecido como uma piada de
endereço certo, pois tanto Lulu Sênior quanto Ferreira de Araújo criticaram, em vários
de seus textos, o então chefe do gabinete de ministros, Lafayette Rodrigues Pereira, de
ministro do “pode ser que sim, pode ser que não”. Ex-republicano, um dos signatários
do Manifesto Republicano em 1870, voltou a ser monarquista ao ser chamando para o
Conselho do imperador. Segundo Araújo, sem grandes pretensões políticas, Lafayette
apenas se destacava por sua importância como jurista e por sua grande ilustração. Ao
chegar à presidência do gabinete de ministros foi bastante criticado por sua fraqueza
política e pelo abandono do programa de seu partido. Questões como abolição, reforma
judiciária, grande naturalização e casamento civil foram proteladas ao longo de seu
governo, que tentou agradar a todos, liberais e conservadores, e acabou por desagradar a
ambas as forças políticas. Lafayette ficou então conhecido por sua frase típica, o famoso
“pode ser que sim, pode ser que não”, que virou motivo de críticas e chacotas por parte
da imprensa, principalmente nas “Cousas Políticas” de Ferreira de Araújo.
Zig-Zag, na crônica citada acima, estende a brincadeira feita a Lulu Sênior, em
Balas de Estalo, a Ferreira de Araújo, autor das “Cousas Políticas”, aproximando, de
certa forma, os autores das duas colunas. Além disso, o comentário sobre a
“incompetência” do autor das “Cousas”, que não se decidia pelas opiniões políticas, tal
como o ministro Lafayette, não deixava de ser um reforço da imagem da coluna como
um espaço “neutro” do jornal. Henrique Chaves, através de Zig-Zag, claramente fazia
pilhéria ao criticar a imparcialidade desejada pela coluna “Cousas Políticas”, na medida
em que sabemos que, como fundador e como um dos chefes da redação da Gazeta de
Notícias, ele também compartilhava dos anseios de Ferreira de Araújo por uma
imprensa dita “moderna”, “isenta” e “independente”. Através da piada, Zig-Zag não
deixava de explicar ao leitor o que era a coluna “Cousas Políticas”, reforçando as

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intenções desta e da própria Gazeta de Notícias de se afirmar como uma imprensa
neutra.
De fato, em nenhum dos artigos das “Cousas Políticas” Ferreira de Araújo se diz
abertamente liberal, conservador, monarquista ou republicano. Nisso Zig-Zag parecia
estar certo. Não se pode negar, porém, que o dono da Gazeta de Notícias tenha
evidenciado seus ideais liberais nas páginas de “Cousas Políticas”. Durante toda a
publicação dessa coluna, ele defendeu a reforma judiciária, a imigração, a substituição
do trabalho escravo pelo assalariado, o casamento civil, a grande naturalização, a
separação entre a Igreja Católica e o Estado Monárquico, reivindicações que, na época,
eram consideradas integrantes de um programa tipicamente liberal. É preciso lembrar,
contudo, que essas discussões eram feitas de forma mais contida e sem ferir grandes
suscetibilidades, como mostraremos a seguir. Afinal de contas, o que estava em jogo era
a imagem da Gazeta de Notícias.

A política nas “Balas de Estalo” e nas “Cousas Políticas”

Em 1883, Ferreira de Araújo (Lulu Sênior), Henrique Chaves (Zig-Zag) e


Demerval da Fonseca (Décio e Publicola) eram os principais colaboradores de “balas de
Estalo”. Juntos, eles representavam a maioria dos textos que foram publicados sob esse
título, enfatizando nessas peças de “artilharia” adocicada temas como a Monarquia, a
Religião e a Escravidão. Podemos dizer que, nesse primeiro momento da série, foram
eles que conjuntamente construíram um sentido político para as “Balas de Estalo”. Ou
seja, foram os próprios donos e fundadores da Gazeta de Notícias que deram o “tom”
daquilo que seria dito naquelas crônicas bem humoradas.
Um dos temas favoritos destes “artilheiros” era, sem dúvida, o imperador.
Chamado de “clássico pela educação e pela tradição”, D. Pedro II foi criticado na série
pelo uso excessivo do Poder Moderador, por preferir ministros que não tivessem
opinião, para mais facilmente “assimilarem” o que Ele lhes impingia (ZIG-ZAG, 1883,
p. 2) ou ainda por sua intelectualidade puramente ornamental, que cochilava tanto nas
sessões do IHGB quanto nas suas visitas à Sorbonne, como afirmara José do Egito,
pseudônimo de Valentim Magalhães na série (JOSÉ DO EGITO, 1883, p. 2). Na
crônica do dia 18 de setembro de 1883, por exemplo, quando Lulu Sênior comentava a
tradicional Fala do Trono (cerimônia que abria e encerrava as atividades parlamentares
no Império), o imperador era visto com deboche. Segundo a descrição do narrador, D.
Pedro II saía de sua casa um “carro todo cheio de feitios”, “uns feitios muito sem
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gosto”, e ia de “calção, meia de seda, manto e coroa”, como se usasse uma “fantasia” de
carnaval. Com sua “voz fanhosa”, “por causa do pince-nez encarapitado na ponta do
nariz”, ia “mascarado” dizer o que não pensava de fato, mas que havia sido escrito
anteriormente por ministros e conselheiros. Carnavalizando uma das principais
cerimônias políticas do império, Lulu Sênior, na sua bala de estalo, via na política
nacional uma grande encenação, ou ainda uma brincadeira de “mau gosto”, cujo
principal protagonista era o imperador (LULU SÊNIOR, 1883, p. 2).
Já nas suas “Cousas Políticas”, a figura do monarca aparecia com novas tintas,
coloridas agora pela função que a coluna exercia no jornal de Araújo. Um dos exemplos
disso está no artigo publicado no dia 3 de dezembro de 1883, no dia seguinte ao
aniversário de D. Pedro, no qual Ferreira de Araújo decide escrever para responder aos
boatos surgidos de que o imperador teria se recusado a comutar a pena de morte a que
havia sido condenado um escravo. Neste artigo, o autor das “Cousas Políticas” afirmava
que a abolição estava no espírito do imperador, que sua intelectualidade, e mesmo a
visita feita a Victor Hugo, um dos grandes críticos da pena de morte na França, o
livravam dessa “calúnia”. Segundo Araújo (1883, p. 1):

A abolição está em todos os espíritos e em todos os corações. O


imperador hesita em dar um passo decisivo, ou por considerações de
ordem econômica, ou por não ter tido à mão um homem capaz de
levar por diante esta campanha, indo ao encontro da onda que vem de
baixo, não para combatê-la, mas para reformá-la. Mas o tino político
de Sua Majestade, opõe-se certamente a que vá agora praticar um ato
que seria a condenação de um movimento em que se envolvem todas
as classes sociais em todos os pontos do império.

Em “Balas”, o imperador é voluntarioso e nem sempre coerente em suas


decisões políticas. Utiliza-se do Poder Moderador e não respeita a representatividade
parlamentar quando, por exemplo, decreta a dissolução da Câmara de Deputados. Já em
“Cousas Políticas”, trata-se de um governante respeitador da vontade nacional, dos
movimentos em que “se envolvem todas as classes sociais”, um monarca que só não
avança sobre a questão da abolição por falta de um homem (ministro, um líder político)
“capaz de levar adiante esta campanha”. E Araújo (1883, p. 1) prossegue:

Ora, o Imperador do Brasil é um homem de seu tempo, cultiva o seu


espírito, e vê o que lhe convém fazer. Para prova aí temos um fato. O
Imperador recebeu uma educação toda religiosa; é manifestamente um
crente, e talvez tenha mesmo alguma pontinha de superstição; do
melhor de seus afetos, daquele que consubstancia também a suas
esperanças, e representa o seu futuro, vem-lhe um reforço a essa
ordem de ideias; No entanto, durante o seu longo reinado, nunca o
clericalismo ditou leis a este país, e se hoje há uma tentativa nesse
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sentido, se procura imprudentemente preparar terreno para essa planta
absorvente, não é por influência do monarca que tal acontece.

Mais uma vez, o imperador deixa de ser o alvo das críticas para se tornar um
homem que “cultiva o espírito de seu tempo”, sem que nessa afirmação exista a ironia
ferina dos comentários de Lulu Sênior. O que em “Balas” era de responsabilidade da
omissão do imperador diante do problema da Igreja, em “Cousas Políticas” a culpa
passa a ser do próprio clericalismo, que avança independentemente da influência de D.
Pedro II. Segundo este artigo, o clericalismo não ditou leis no reinado de Dom Pedro II,
o que soa estranho à fala daquele Ferreira de Araújo, crítico contumaz da união entre
Igreja e Estado sob o pseudônimo de Lulu Sênior. Na bala de estalo do dia 3 de junho
de 1883, o narrador criado por Araújo na série critica o imperador por ser o maior
responsável pelos poderes adquiridos pela Igreja Católica no Império. Atribuindo os
atrasos do país à união entre a Igreja e o Estado, Lulu Sênior afirmava que o imperador
vivia um “engano” ao acreditar que a religião que se praticava em Petrópolis era a
mesma da que se praticava nas “classes inferiores”. O narrador afirmava:

Engano majestade, puro engano! Aquela religião que se pratica em


Petrópolis é uma exterioridade muito bonita e florida, em que os
sentidos de um amador de bom gosto apreciam o que há de melhor
neste mundo: a música, a mulher, o perfume. Mas essa religião é manjar
dos príncipes, é a primeira mesa, cá pelas classes inferiores, a religião é
o jejum, a penitência, a confissão, o óbolo de São Pedro, o nascimento
verificado pela igreja, a legitimação da família dependendo da Igreja
[...] (LULU SÊNIOR, 1883, p. 2).

No artigo publicado na coluna “Cousas Políticas” no dia 14 de julho de 1884,


Ferreira de Araújo volta a responder a alguns ataques feitos pelo Diário do Brasil2 ao
imperador e a sua atitude diante da questão da emancipação, e aproveita para expor a
posição da Gazeta de Notícias em relação à monarquia:

O que se adianta, pois, atribuindo a este ou aquele a responsabilidade


de um movimento a que o país todo se associa, e atribuindo-lhe como
se esse fosse um mal? Esta é a linguagem dos que alcunham os
propagandistas de anarquistas e desordeiros [referência ao Diário do
Brasil]; dos que dizem que a propaganda prega a desordem e a
revolução. [...] não somos suspeitos nesta folha de excessivas
simpatias, de prevenções sistemáticas pelo imperador; não tendo
pretensões pessoais, os atos do imperante tem para nós a mesma
significação dos de outro qualquer funcionário público; mas enquanto
não nos convencermos de que a atual forma de governo é um
embaraço efetivo ao desenvolvimento do país, enquanto não virmos
organizada cousa que seja ou pareça melhor, consideraremos um ato
subversivo o levantar ódios especiais contra um cidadão a quem

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apenas cabe uma parte da responsabilidade gloriosa que muitos outros
com razão querem partilhar (ARAÚJO, 1884, p. 1).

Nesse texto, Araújo afirma não ter sido convencido ainda de que a Monarquia
representava um empecilho ao desenvolvimento do país, além de censurar o desrespeito
com a figura do imperador em ataques frontais como o feito pelo Diário do Brasil no
dia anterior. Mais uma vez o autor se distancia da tônica das “Balas de Estalo”,
incorporando muito mais na sua fala o espírito “imparcial” evocado nas “Cousas
Políticas” de 11 de fevereiro de 1884, que deu início a este artigo. Em “Balas”, o
imperador muitas vezes era associado, e responsabilizado, aos principais problemas
nacionais e ao atraso que algumas instituições representavam para o país. Nas “Cousas
Políticas”, as críticas não deixavam de ser feitas, mas de forma diferente. Segundo
Araújo, o interesse do jornal era o “bem geral”, a superação das dificuldades, mantendo
uma análise “desapaixonada”. O objetivo seria, então, criticar aquilo que precisava ser
criticado na Monarquia, sem combatê-la, sem desejar ou pregar “revoltas”. No entanto,
ao analisar o conjunto da produção de “Balas de Estalo”, podemos perceber que a série
construirá sentidos políticos bem específicos para a instituição monárquica no Brasil. A
monarquia será, na série, associada ao atraso, à uma religião oficial e à escravidão. Na
série, a despeito de um projeto político definido, republicano ou não, o que fica evidente
é o esforço desses vários narradores em caracterizar a falência de antigas práticas
políticas ligadas à monarquia, tais como a forte atuação do poder Moderador. Um
esforço que se repetiu em muitos dos textos publicados na série e que faziam
abertamente uma crítica debochada das instituições e do imperador.
Ao analisarmos as duas séries, “Balas” e as “Cousas Políticas”, podemos
observar que um dos fatores que talvez permitisse à “Balas de Estalo” uma
independência em relação ao jornal, e a esse compromisso com a “imparcialidade” da
Gazeta de Notícias, fosse justamente o caráter humorístico da série. Em “Balas”, Lulu
Sênior não era o dono do jornal de maior circulação do Rio de Janeiro, mas apenas um
dos “confeiteiros” de uma série cujo objetivo mais evidente era fazer pilhéria com os
acontecimentos cotidianos. As assinaturas tinham significados bem diferentes no espaço
da Gazeta de Notícias: Araújo representava, em “Cousas Políticas”, o peso do
compromisso com jornalismo “neutro”, Lulu Sênior simbolizava a liberdade do
cronista, da série preocupada principalmente com a galhofa. Sob a assinatura de Lulu
Sênior estava também o jornalista-literato e sua “missão” com a modernidade e o seu
desejo de ser um “transformador” da sociedade (SEVCENKO, 2003). O espaço da
coluna “Cousas Políticas”, utilizado mais para censurar os atos dos ministérios que se
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revezavam no poder, não se desejava enfrentar uma guerra com a monarquia, ou talvez
não se quisesse rotular a Gazeta de Notícias de jornal republicano. Em “Balas de
Estalo”, a construção desses sentidos políticos surgia de forma mais plural, coletiva, a
partir de um debate que se dava entre muitos colaboradores que, em última instância,
diziam estar ali apenas para rir de tudo. Pulverizada na coletividade, a opinião de Lulu
Sênior era apenas mais uma no universo de cronistas que compunham a coluna “Balas
de Estalo” e debatiam os assuntos do dia, repassando as principais notícias do jornal.
Entretanto, é preciso observar que se Ferreira de Araújo parecia preferir as
páginas de “Balas de Estalo” para fazer críticas à Monarquia, ele reservava para as suas
“Cousas Políticas” as análises e comentários sobre os governos que se sucediam no
poder, bem como para criticar o abandono por parte dos partidos os seus programas
políticos. No dia 24 de maio de 1883, por exemplo, sobe ao poder o gabinete ministerial
chefiado pelo liberal Lafayette Rodrigues Pereira, substituindo o Marquês de Paranaguá,
também liberal e que estava no poder desde julho de 1882. Desde 1878, com o gabinete
Sinimbú, estavam os liberais no poder. Com Saraiva fizeram a reforma da legislação
eleitoral em 1881, mas desde então não colocaram em pauta uma das principais
discussões do momento: a abolição da escravidão.
Quando Lafayette Rodrigues Pereira se apresentou à Câmara como o novo chefe
do gabinete de ministros, ele se comprometeu a cumprir uma série de reformas da
agenda liberal. Além disso, sobre o chamado “elemento servil”, assumiu o compromisso
de discutir uma localização dos escravos nas províncias – para apoiar a Lei de 28 de
Setembro de 1871 -, além de prometer ocupar-se com o aumento do fundo de
emancipação através da criação de impostos. No entanto, um mês após a sua subida ao
governo, ele ainda não havia proposto nenhuma discussão sobre as reformas
prometidas. Diante disso, Ferreira de Araújo deu início a uma série de ataques ao
ministério – tanto em “Balas de Estalo” como em “Cousas Políticas”, ambas de formas
muito parecidas.
Para Ferreira de Araújo, dentre as críticas feitas aos liberais, Lafayette possuía
alguns “agravantes” em termos de incoerências políticas. Dono de uma trajetória
política bastante peculiar, Lafayette tinha, em sua biografia, o fato de ter assinado o
manifesto republicano em 1870, quando ainda não tinha uma carreira política
consolidada. Em 1878, quando os liberais voltaram ao poder, entretanto, ele foi
chamado para ser ministro, elegendo-se deputado logo em seguida. Nomeado Senador,
ele alcança a seguir o posto mais alto entre os cargos políticos no Império e toma seu
lugar no Conselho de Estado. Em maio de 1883, em meio à crise do Gabinete
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Paranaguá, Lafayette foi então chamado pelo imperador para organizar um novo
ministério, surpreendendo a todos. Ferreira de Araújo, perplexo com a nomeação, dizia
não compreender uma ascensão tão rápida de alguém que se mantinha tão ausente das
discussões políticas. Porém, Lafayette Rodrigues tornou-se mesmo um dos alvos
preferidos do dono da Gazeta de Notícias quando decidiu citar Molière em um de seus
discursos na Câmara dos Deputados. Vejamos uma “Bala de Estalo” escrita por Lulu
Sênior após esse discurso, em 22 de junho de 1883:

Molière, oh velho mestre, os conservadores cá da terra estão a pisar-te


nos canteiros. Pegaram em ti, os bárbaros, e, sem respeito nem ao teu
talento enorme, nem ao tempo que o consagrou, eles, os
conservadores, que se dizem amigos do classicismo, andam a
resguardar-te à maneira do urso da fábula. Os liberais, esses, estão
apenas... vexados. Há aqui um ministro liberal que parece ter lido a
sua obra, e o que parece mais! tê-la entendido. Esse ministro, que não
estava a um canto do bosque, escondido na espessura das árvores, de
carabina em punho, à espera que passasse uma pasta vaga; esse
ministro que nunca foi chefe de partido, nem o pretendia ser, estava
tranquilamente em sua casa, a ler os juristas, e a ler-te a ti, quando lhe
levaram a notícia de que era preciso ir lá para cima, [...]. O bom
homem, que sim há espírito e leitura, entendeu que estavam a zombar
dele; mas enfim, lá foi e lá está. [...] fazem-lhe uma pergunta sobre
uma questão que deitou por terra o ministério passado, e o homem
responde que não sabe ainda o que há de fazer. Mas, em vez de dizer
isso simplesmente por sua conta, o homem deitou um pouco de
literatura, e disse que, como Sganarello, respondia: - Pode ser que sim,
pode ser que não (LULU SÊNIOR, 1883, p. 1).

A citação de Molière na Câmara dos Deputados causou grande frisson na


imprensa carioca e Lafayette foi ridicularizado por usar uma citação literária naquele
ambiente parlamentar sempre tão satirizado por sua retórica simples e vazia. A frase
“pode ser que sim, pode ser que não” tornou-se sinônimo de seu gabinete,
principalmente no que dizia respeito à questão da libertação dos escravos. Lulu Sênior
aproveita-se do ocorrido para declarar sua opinião sobre o ministro, afirmando que este
não tinha uma carreira política consolidada e que sua nomeação para chefe de gabinete
era despropositada e sem coerência. E Lulu Sênior (1883, p. 2) continua:

Os barões de hoje, por serviços prestados ao Estado, com escala pela


rua do Sacramento, não te ouvem e não te leem, truão. Um deputado
moço, [...], disse em um arrebatamento de eloquência e erudição – que
Sganarello é um Tartufo, é um truão. E sabes o que lhe responderam?
– Apoiado! [...] O ministro que respondeu com as palavras do filho da
tua observação, podia ter-se comparado melhor a um dos teus
Sganarellos, dizendo que era presidente do conselho como ele fora
médico: - à força. Mas a impressão geral parece que foi que o homem
tinha tido a ideia de comparar-se àquele dos teus Sganarellos, que
constitui na tua obra a família lamentável de que é chefe Georges
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Dandin, Qui l’a voulu; nem ao menos, a digna promotoria lhe
concedeu a circunstância atenuante de dizer como o do Médicin
volant, que o seu nome de Sganarello seria trocado pelo de Cornelius.

Na crônica acima, confundir Sganarello com Tartufo seria, de fato, um enorme


engano. Tartufo não é um charlatão, mas um hipócrita e dissimulado. Lulu Sênior
aproveita-se desta crônica não só para criticar o uso superficial de Molière na Câmara,
mas para definir Lafayette através da obra do autor. Compara-o ao falso médico
charlatão. Além dessa comparação, o ministro também é comparado a Georges Dandin,
umas das personagens da peça O Marido da Fidalga. Dandin é um camponês rico que
se casa com uma mulher de origem nobre. Ao desconfiar que esteja sendo traído pela
esposa, percebe o grande equívoco que cometeu ao casar-se com alguém de origem
social tão diferente e arrepende-se da união. Ao longo da peça evidencia-se a
dificuldade que ele encontra de adentrar esse mundo da fidalguia. Para Lulu Sênior,
Lafayette, assim como o marido traído da fidalga, também cometeu um grande engano
ao ingressar num mundo do qual há tempos conservara-se distante e pelo qual nunca
havia feito nada.
No dia 25 de junho, três dias depois da publicação da crônica citada acima,
Ferreira de Araújo, agora não mais sob o pseudônimo de Lulu Sênior, volta ao assunto
da citação de Molière nas suas “Cousas Políticas”. Neste dia, ele endereça seu artigo ao
próprio chefe de ministros, explicando-lhe a necessidade de uma justificativa para a sua
rápida ascensão política:

Não há negar. Depois da assinatura do manifesto republicano, entrar


de novo nos arraias monárquicos, embora em posto muito inferior
àquele em que estava quando os deixou, era voltar atrás, era caminhar
por desvios, porque a linha reta era a que seguiam os que batalharam
durante dez anos, sempre vencidos na luta, mas lutando sempre,
repelidos do Parlamento, mas batalhando na imprensa. [...] O Sr.
Lafayette, porém, tem responsabilidades mais graves, uma que lhe
impõem sua inteligência e ilustração, outra que lhe impõem os seus
precedentes, o seu republicanismo e sua apostasia. Se o Sr. Lafayette,
depois de assinar o manifesto republicano, se prestou a ser ministro, a
fazer-se eleger deputado por eleitores que dependiam do ministro, a
fazer-se eleger senador por outros eleitores em iguais condições, a
fazer-se escolher senador por outro eleitor que queria prender mais a
si sans-culotte da véspera, a ser presidente do conselho de ministros,
só pela vaidade pessoal de ocupar esses cargos, à maneira do Comte.
Oscar da opereta de Offenbach – comme les autres – S. Ex. ilude-se,
porque não consegue ser como os outros que, apesar de medíocres,
não são renegados. [...] S. Ex. será quando muito um Monsieur
Jourdain, o Bourgeoise Gentilhomme, e dirá olhando para sua farda de
ministro – Mon tailleur m’a envoye des bas de soie que j’ai pensé ne
maittre jamais. A sua intervenção nos negócios públicos será como a
desse herói de Molière; e quando brigarem, os Sr. Corrêa, mestre de
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armas do Senado, o Sr. Ferreira Vianna, mestre de filosofia na Câmara,
com o Sr. Dantas, mestre de dança na Sibéria, o Sr. Cândido de
Oliveira, mestre de música na Cadeia Velha, S.Ex. limitar-se-á a dizer:
Oh! Battez-vous tant qu’il vous plaira: je n’y saurais que faire et je n’
irai pas galêr ma robes pour vous separer. Je serais bien fou de m’aller
fourrer par mi coux, pour recevoir quelque coup, Qui me ferait mal. [...]
Ora, o Sr. Lafayette tem o dever de ambicionar muito mais. Se não é um
ambicioso vulgar, S. Ex. tem obrigação de justificar sua carreira
política, prestando serviços reais ao país (ARAÚJO, 1883, p. 1).

Monsieur Jourdain, burguês deslumbrado com o mundo da fidalguia francesa, é


personagem da peça O Burguês Fidalgo, de Molière. Jourdain é rico e deseja ser como
um “gentilhomme”, educado, sofisticado e elegante. Para tanto, faz-se rodear de
“mestres” de dança, música, esgrima e filosofia para que estes o insiram no mundo da
nobreza. A peça de Molière se abre com Monsieur Jourdain acordando e vestindo seu
rico e ornamentado roupão, evidenciando para o público sua vaidade exacerbada e sua
excessiva preocupação com a ostentação do mundo luxuoso o qual ambicionava
participar. A cena que Lulu Sênior está citando na crônica refere-se à briga entre os
mestres de dança, filosofia, esgrima e música de Jourdain sobre qual seria a mais
importante para o refinamento de um homem. Os mestres o seduzem com a promessa de
“dinheiro fácil”, mas deixam claro que, apesar do dinheiro, Monsieur Jourdain não só
não entende de música como não tem bom gosto para apreciar a arte. O burguês é uma
espécie de “títere” nas mãos de tais mestres, que o manipulam sempre com a promessa
de torná-lo um homem elegante como um fidalgo. Para Ferreira de Araújo, tal como o
personagem do teatro, Lafayette é um homem vaidoso, ambicioso, mas sem preparo
para ocupar o cargo de destaque que lhe foi conferido. Um homem que abandonou a
luta política enquanto os conservadores estiveram no poder, mas, por vaidade, aceitou
voltar aos braços da Monarquia. Estava no poder, mas parecia ignorar o real motivo da
escolha de seu nome. O papel dos “mestres” na transposição de Ferreira de Araújo
caberia aos grandes nomes da política imperial – Dantas, com sua grande capacidade de
articulação política, e Ferreira Vianna com sua retórica poderosa – e não a ele.
Entretanto, para Ferreira de Araújo, Lafayette não poderia ser simplesmente um
Jourdain, não poderia acomodar-se na mediocridade, na superficialidade. Ele precisava
justificar e honrar a sua meteórica carreira política. Não bastava ser o vaidoso Jourdain,
era preciso “prestar serviços reais ao país”.
É interessante notar o tratamento dado a esse tema – crítica contundente ao
ministério Lafayette – em ambas as colunas. Ao contrário dos ataques à Monarquia, ao
Poder Moderador, a formação dos gabinetes ministeriais, o não cumprimento dos
programas dos partidos, as incoerências de importantes figuras da política imperial
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foram criticadas de formas muitas semelhantes nesses dois espaços do jornal. Araújo
parecia acreditar que a crítica aos atos governamentais dos ministérios podiam ser
tratados de forma mais aberta, sem comprometer seu jornal junto ao regime
monárquico, ou sem parecer panfletário em excesso. Afinal de contas, como ele mesmo
afirmava, o que se buscava era o “bem geral”, o bom governo, respaldado na “opinião
pública”. A crítica, como ele argumenta no artigo com que abrimos esse texto, não
servia simplesmente para “destruir”, mas para “edificar”.
Entretanto, o que nos chama atenção é pensar o por que de Ferreira de Araújo ter
tratado de formas tão parecidas, em um intervalo tão curto de tempo – 3 dias – o mesmo
tema. Ferreira de Araújo comentou a atuação ministerial de Lafayette partindo da
mesma abordagem, da mesma ironia, tanto em “Balas de Estalo”, quanto nas “Cousas
Políticas”. A explicação para isso talvez esteja na função que cada coluna assumia
dentro da Gazeta de Notícias. O resultado da comparação entre “Balas de Estalo” e as
“Cousas Políticas” nos mostra que é preciso estar atento à “geografia” que compõe a
Gazeta de Notícias, visando compreender como Ferreira de Araújo solucionou o
impasse com José do Patrocínio. Como intervir no debate político e nas transformações
daquela sociedade? Através de uma imprensa “neutra”, que ganhasse legitimidade pela
forma independente, ponderada e imparcial de tratar os assuntos, ou ainda através de um
jornal que se engajasse abertamente para conseguir “agremiar as opiniões em partidos”?
Para a Gazeta, parecia ser possível fazer as duas coisas, criando “funções” para
cada um dos espaços do jornal. Assim, se concluímos que se as “Cousas Políticas” e as
“Balas de Estalo” assumiam papéis diferentes dentro do jornal, entendemos a
necessidade de Ferreira de Araújo de comentar os mesmos assuntos em dias tão
próximos nas duas colunas. A estratégia parecia necessária não só porque esses espaços
talvez tivessem leitores diferentes, mas porque representavam, em princípio, objetivos
diferentes dentro do jornal. Definir a coluna de Ferreira de Araújo como uma espécie de
editorial do jornal, selecionando formas e temas específicos para ela, era garantir a
“imparcialidade” da Gazeta nos assuntos políticos. Construir uma série coletiva,
ressaltando seu caráter eminentemente humorístico, era possibilitar que fosse forjado
um projeto político mais combativo sem comprometer a linha editorial do jornal, que se
pretendia moderno e fruto da nova imprensa que nascia naquele final do século.

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Referências Bibliográficas

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FERACIN, Ana Carolina. De papa-pecúlios a tigre da abolição: a trajetória de José do
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Monteiro, Millôr Fernandes, Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
PEREIRA, Leonardo A. de Miranda. O Carnaval das Letras: literatura e folia no Rio de
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RAMOS, Ana Flávia Cernic. Política e humor nos últimos anos da monarquia: a série
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______. As máscaras de Lélio: ficção e realidade nas “Balas de Estalo” de Machado de
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SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro:
Mauad, 1966.

Documentação Textual

ARAÚJO, F. Cousas Políticas. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 25/06/1883.


ARAÚJO, F. Cousas Políticas. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 14/07/1883.
ARAÚJO, F. Cousas Políticas. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 03/12/1883.
ARAÚJO, F. Cousas Políticas. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 11/02/1884.
JOSÉ DO EGITO. Balas de Estalo. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 04/08/1883.
LÉLIO. Balas de Estalo. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 13/03/1884.
LULU SÊNIOR. Folhetim. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 02/08/1875.
LULU SÊNIOR. Balas de Estalo. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 03/06/1883.
LULU SÊNIOR. Balas de Estalo. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 22/06/1883.
LULU SÊNIOR. Balas de Estalo. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 18/09/1883.
LULU SÊNIOR. Balas de Estalo. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 29/09/1883.
PATROCÍNIO, J. Semana Política. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 27/06/1881.
ZIG-ZAG. Balas de Estalo. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 29/04/1883.
ZIG-ZAG. Balas de Estalo. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 14/03/1884.

Notas
1
Lulu Sênior era o pseudônimo utilizado por Ferreira de Araújo em muitos de seus escritos e
especialmente na série “Balas de Estalo”.
2
O Diário do Brasil, jornal do partido liberal, posicionou-se radicalmente contra a abolição da escravidão
no Ceará em 25 de março, culpou os jornais da Corte de estarem fazendo campanhas abolicionistas e

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insuflando os “ódios sociais”, foi contra o projeto Dantas e culpou o imperador pelo encaminhamento
da questão.

Artigo recebido em 14/08/2013. Aprovado em 11/11/2013.

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O “TOM AFRICANO” DA BAHIA OITOCENTISTA: OLHARES,
RELATOS E IMAGENS DE SALVADOR NO SÉCULO XIX

THE “AFRICAN THING” OF EIGHTEENTH BAHIA: VIEWS,


REPORTS AND IMAGES OF SALVADOR IN THE
NINETEENTH CENTURY

Carlos Antonio dos REIS•

Resumo: A busca pela modernidade tornou-se moeda corrente entre as elites letradas da Bahia
na passagem do século XIX para o XX. O desejo era situá-la entre as cidades de importância no
cenário nacional, livrando-a de uma imagem ligada a um tempo atrasado e refratário ao que
então se entendia por progresso. Imagem, por sua vez, muito devedora das impressões deixadas
pelos diversos viajantes estrangeiros que por lá passaram ao longo do Oitocentos e que
colaboraram para forjar uma identidade mais próxima da Costa d’África que do Brasil. Busca-se
compreender como se deu a construção dessa imagem de terra “avessa à civilização”, com a
qual a Bahia era identificada em princípios do século XX, a partir da análise das representações
efetuadas por uma vasta literatura de viajantes que por lá estiveram ao longo de todo o século
XIX e que deixaram em seus relatos diferentes apreciações da população local, sobretudo, de
sua parcela negra.
Palavras-chave: Viajantes – Bahia – Século XIX – Negros.

Abstract: The search for modernity became common among the educated elites of Bahia State
from the Nineteenth and Twentieth Centuries. The desire was to place it between the important
towns on the national scenery, ridding it of an image linked to a delayed and refractory time to
what then was meant by progress. Image, in turn, much in debt to impressions left by the
various foreign travelers who passed through during the Nineteenth Century and helped
the forging of an identity closer to the coast of Africa than Brazil. As we try to understand how
was built the image of the land “adverse to civilization” with which Bahia was identified in the
early Twentieth Century from the analysis of the representations made by a vast literature of the
travelers that were in Bahia throughout the Nineteenth Century. In this literature, different
assessments were shown in their statements on the local population, mainly about the black
population.
Keywords: Travelers – Bahia – Nineteenth Century – Black Population.

Por volta de 1896, o pastor protestante alemão Henri Shwieger desembarcava em


Salvador e, a partir de suas impressões, nos dava conta das transformações pelas quais a
cidade vinha passando na última década do Oitocentos. Relata sua surpresa ao deparar-
se com o elevador hidráulico Antonio Francisco Lacerda, popularmente conhecido
apenas por elevador Lacerda, obra considerada complexa para a engenharia daquele
período: “Na cidade negra da Bahia não esperávamos encontrar uma tal obra mestra da


Mestre em História – Doutorando – Programa de Pós-graduação em História – Faculdade de Ciências
Humanas e Sociais – UNESP, Campus de Franca, CEP: 14409-160, Franca, São Paulo – Brasil. Bolsista
CAPES. E-mail: carltonrei@yahoo.com.br.

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técnica moderna, e que despertou nossa total admiração.” (SHWIEGER apud AUGEL,
1975, p. 244). O espanto e a admiração revelados pelo religioso alemão dimensionam
bem a constante associação entre a Bahia e o atraso, presente no imaginário de muitos
homens da época.1 Como aquela “cidade negra”, que ainda se via às voltas com tantos
negros descalços carregando passageiros em suas tão características “cadeirinhas de
arruar”, tinha sido capaz de construir uma obra de tamanhas proporções? Para aquele
viajante, era como se ali a modernidade estivesse “fora de lugar”. Mas a modernidade
estava sim em seu lugar, pelo menos na mentalidade e nas aspirações das elites letradas
locais.
O referido elevador, inaugurado em 1871, fazia parte de um conjunto de
melhorias urbanas que a cidade assistiu ao longo de sua expansão na segunda metade do
XIX, que compreenderam ainda a instalação da iluminação a gás, em 1862, em “[...]
substituição do candieiro de azeite de peixe” (QUERINO, 1955, p. 211); a implantação
do telégrafo pela companhia The Western Telegraph em 1871; a reforma do porto pela
Cia. Docas e Melhoramentos da Bahia e a chegada dos primeiros trens a vapor, ambas
em 1891(TAVARES, 2001, p. 271). Para além de alcançar ares mais modernos, as
transformações urbanas eram urgentes, pois, somente a partir delas seria possível incluir
decisivamente a cidade na rota do capitalismo internacional, e até mesmo, recuperar
uma posição de destaque dentro da própria economia nacional, tendo em vista que as
regiões do centro-sul gozavam de uma melhor situação econômica devido às prósperas
exportações de sua produção cafeeira, o que lhes conferia, também, maior poder político
junto ao governo central (SAMPAIO, 2005, p.52-53). Em descompasso com o sul do
país, a Bahia vinha passando por um momento de instabilidade econômica que se
arrastava desde meados do século XIX, com o fim do tráfico negreiro e com muitas
dívidas herdadas do Império, que resultara em parca industrialização naquele estado. No
período republicano, a situação econômica oscilava de acordo com as crises e
recuperações do mercado agroexportador, mas, ainda assim, os recursos gerados dariam
impulso a novos hábitos de consumo da população e a um surto modernizador da cidade
(SANTOS, 2001).
Assim, as primeiras décadas republicanas constituíram um momento de intensa
busca da modernidade por parte das elites letradas baianas. Figuravam nesse segmento
da população os membros do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHBa), os
acadêmicos da Faculdade de Medicina da Bahia (FMBA), a imprensa e os dirigentes
políticos locais.2 O objetivo central era situar a sua terra, ou pelo menos a capital

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Salvador, entre as cidades de importância no cenário nacional, livrando-a de uma
imagem imediatamente ligada a um tempo atrasado e refratário ao que se entendia por
progresso material, cultural, moral, intelectual e social naquele momento. Imagem, por
sua vez, devedora das variadas impressões deixadas pelos diversos viajantes que por lá
passaram ao longo de todo século anterior, colaborando para forjar uma identidade para
aquela localidade. Cristalizadas, muitas cenas e cenários narrados pelos visitantes
oitocentistas ainda se mostravam presentes em princípios do século XX e,
definitivamente, guiavam-se em direção contrária ao projeto higienista vigente,
causando grande mal-estar entre a boa sociedade baiana. Neste sentido, é emblemática a
passagem de um grupo de marujos norte-americanos que, em 1917, lá desembarcou e,
debochadamente, munidos de “vassouras e regadores cheios de creolina”, puseram-se a
lavar algumas regiões da cidade por contra própria. Fato que gerou a revolta de alguns
moradores e, por outro lado, a resignação de outros que entendiam que, aos
estrangeiros, “[...] cidadãos de centros civilizados, irritavam-lhes taes aspectos de Costa
D’África, de cabilda de selvagens sem governo” (A TARDE, 1917 apud
ALBUQUERQUE, 1999, p. 22). Para além de evidenciar uma idealização do olhar
externo/estrangeiro sobre o local, a referência negativa através da qual o continente
africano é tomado como parâmetro de aproximação com a terra recém-chegada, todavia,
não trazia em si muita novidade. Ao contrário, mostrou-se recorrente numa extensa
literatura de viagens que teve lugar privilegiado ao longo dos dois séculos anteriores.
Baía de Todos os Santos, ou simplesmente Bahia, assim ficou conhecida a capital
da província, outrora também cidade mais importante da colônia. Apenas como Bahia
foi tratada pelos diversos visitantes que por aquelas terras passaram desde os primeiros
tempos coloniais. Contudo, para o presente texto, interessam os registros de alguns
homens e mulheres que por lá estiveram ao longo do século XIX. Diferentes viajantes e
itinerários guiados também por diferentes motivações: comerciais – dada a grande
importância de seu porto até pelo menos meados do século XIX, com o término oficial
do tráfico de escravos –, religiosas, pedagógicas, artísticas e científicas (AUGEL, 1975).
Esta literatura de viagens, pois, se trata de um instigante instrumento para
entendermos a situação um tanto conflituosa entre as imagens formadas por olhares
externos, idealizados como superiores, em sua relação dialógica com a autoimagem que
muitos habitantes projetam para sua terra. Nesse percurso, ao pensar o olhar dos
viajantes em sua relação com as cidades descritas, acompanhamos Sandra J. Pesavento
(2007, p. 9), quando sugere:

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Como não recorrer também aos diários e relatos de viagens, em que as
sensações são registradas e os detalhes anotados, dando ao leitor de
hoje a expressão do olhar de um outro no passado, visitante, viajante e
passante de uma urbe determinada? [...] olhares estrangeiros que
adotam, como marcos de referência para o urbano, outras cidades,
outros ethos, outros ícones para avaliar uma cidade. Por vezes cruéis,
por vezes deslumbrados, esses olhares que revelam uma alteridade
contrastante fizeram parte da construção de uma identidade nacional.
Pois, como bem sabemos, um pouco do que somos está escrito, de
forma estereotipada, na visão do outro [...].

No ano de 1909, desembarcava em Salvador o francês Latteaux – médico chefe


do laboratório de ginecologia da Universidade de Paris –, segundo suas próprias
palavras, “em meio de imundícies e detritos sem nome”, num ambiente “infecto” que o
levou a acreditar estar “[...] em certas cidades do Oriente por onde jamais passou uma
vassoura” (LATTEAUX, 1910 apud MATTOSO, 1978, p. 175). Para Latteaux, a cidade
da Bahia caracterizava-se por sua sujeira. A repugnância demonstrada pelo médico para
com a limpeza trazia em si, muito além da aparente implicância, todo um conteúdo, uma
“bagagem” impregnada de a prioris e juízos de valor resultantes de suas experiências
pessoais anteriores, que se mostraram rotineiros, verdadeiros “lugares-comuns” na
literatura que se dedicou a narrar as passagens de estrangeiros pelas cidades luso-
brasileiras.
Ao longo do século XIX, das diversas impressões que a cidade causou aos
visitantes, sobretudo aos estrangeiros, as que prevaleceram não são muito abonadoras,
tanto do ponto de vista material como moral. Além da questão do asseio das ruas, nessa
literatura são recorrentes menções ao tumulto, à algazarra dos escravos, ao barulho, ao
mau cheiro, à indolência da população local, ao primitivismo das tradições – tanto de
procissões religiosas e de festejos populares –, ao mau gosto da arquitetura e das artes –
teatro e música – e à falta de infraestrutura da cidade. Impressões que afetavam as
sensibilidades, olhos, narizes e ouvidos desses observadores que, por sua vez, remetem
a uma paisagem de Salvador assemelhada à “Costa d’África”, devido à quantidade
maciça de negros que por lá circulava.
Passemos à alguns dos viajantes oitocentistas... O comerciante francês Louis-
François Tollenare, que esteve na Bahia por volta de 1817, com o propósito de negociar
um carregamento de algodão, assim descreveu suas primeiras impressões da cidade:

Entre Bonfim e o Cabo de Santo Antônio rasga-se uma formosa baía, de


duas léguas de largura, no fundo da qual aparece a cidade de S.
Salvador, edificada em anfiteatro sôbre uma encosta muito escarpada.

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Vários edifícios consideráveis lhe dão uma aparência de grandeza e de
magnificência. [...] resulta daí um conjunto de grandeza que o olhar
abraça mais facilmente do que se a cidade fosse construída em planície.
[...] O golpe de vista que a construção em anfiteatro dá à cidade, perde
muito de seu valor quando se põe em terra. A montanha desce tão
bruscamente para o mar que na praia não há mais espaço do que o
necessário para construir uma só rua, cujas casas são banhadas pelo mar
e do outro apoiadas de encontro na montanha, que sem cessar as ameaça
com desmoronamentos (TOLLENARE, 1956, p. 280-281, grifo nosso).

A primeira reação ocorre pelo impacto gerado pela grandiosidade do conjunto da


paisagem, no qual a cidade aparece incrustada na montanha, tornando-se um
“anfiteatro”, numa quase comunhão entre seus “magníficos” prédios com a natureza
exuberante. Mera ilusão, “golpe de vista” que se desfaz à medida que se põem os pés na
terra. Aliás, essa sensação de impacto da primeira vista, da imagem que se forma de um
olhar distante, panorâmico, e que quase sempre se converte em desencanto com a
proximidade, é um traço comum nesses relatos sobre as cidades. No porto da Bahia, ao
tratar da cidade baixa, Tollenare (1956, p. 281-282, grifo nosso), muda o tom:

Esta cidade baixa é o centro dos negócios; observa-se ali uma grande
atividade: transportes contínuos de mercadorias, lojas muito
freqüentadas; gritos de negro que vão e vêm num espaço tão estreito
que ainda mais aumenta o tumulto. Se é acotovelado, fica-se
atordoado. Quando não se tem mais o que tratar nessa parte da cidade,
procura-se deixá-la com prazer mais vivo quanto ela é obscura e
muito pouco asseiada. Foge-se para a cidade alta ou antes para fora da
cidade [...].

Do fascínio provocado pela exuberância natural que, de tão grandiosa parecia,


nos dizeres de Tollenare, “engolir” o espaço destinado à rua, passa-se a um
desencantamento, desconforto gerado pela intensa e “atordoante” circulação de pessoas
– em especial os negros –, pelo barulho, pela sujeira. Consuelo N. Sampaio, ao estudar
o processo de modernização urbana ao longo do século XIX, lembra que esta parte da
cidade quase sempre causava má impressão aos que ali desembarcavam, sobretudo aos
viajantes estrangeiros. Contrastando com a beleza do “harmonioso panorama que viam
do mar: o verde exuberante da montanha, contornada [...] por casas geminadas ou então
cercadas de amplos quintais, dominadas pelo branco”, a cidade aparecia descrita, depois
do desembarque, como pobre, feia, fétida, suja. “Em terra firme, o quadro era [...]
desalentador – um aglomerado de pessoas mal vestidas, andrajosas, mendigos, escravos
e meninos de rua, entre monturos de sujeira, restos de fruta e de comida” (SAMPAIO,
2005, p. 37).

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A descrição nada edificante da cidade baixa foi uma constante, um “lugar
comum” entre muitos dos visitantes que por ali estiveram. Tollenare (1956, p. 282)
prossegue seu relato (des)qualificando-a ao apresentar mais dois aspectos nos quais a
cidade deixava a desejar: a dificuldade de locomoção, que se dava pela precariedade das
redes de comunicação entre as ruelas “[...] extremamente íngremes, incômodas e mesmo
perigosas”, e a violência, visto que “[...] de dia corre-se o risco de, perdendo o pé, rolar
até em baixo; de noite corre-se o de ser atacado por malfeitores.”
Outra viajante, a inglesa Maria Graham, esteve na Bahia no ano de 1821,
acompanhando seu marido Thomas Graham, que capitaneava a fragata Doris em viagem
pela América do Sul. Permaneceu cerca de dois meses em Salvador e deixou suas
impressões registradas em forma de diário, publicado pela primeira vez na Inglaterra em
1824. Ao avistar a cidade, também demonstra encanto

Esta manhã, ao raiar da aurora, meus olhos abriram-se diante de um


dos mais belos espetáculos que jamais contemplei. Uma cidade
magnífica de aspecto, vista do mar, está colocada na cumeeira e na
declividade de uma alta e íngreme montanha. Uma vegetação
riquíssima surge entremeada com as claras construções [...] tudo
completa um panorama encantador; depois, há uma fresca brisa
marítima que dá ânimo para apreciá-lo, não obstante o clima tropical
(GRAHAM, 1990, p.164).

É também como “espetáculo” que a cidade, a certa distância, vista do mar em


conjunto com a natureza lhe salta aos olhos. E a sua narrativa também toma rumo
oposto num contato mais próximo, ao desembarcar no Arsenal, “onde não há nada da
limpeza que se observa” em sua terra.

A rua pela qual entramos através do portão do arsenal ocupa aqui a


largura de toda a cidade baixa da Bahia, e é sem nenhuma exceção o
lugar mais sujo que eu já tenha estado. É extremamente estreita [...].
Nos espaços que deixam livres, ao longo da parede, estão vendedores
de frutas, de salsichas, de chouriços, de peixe frito, de azeite e doces,
negros trançando chapéus ou tapetes, cadeiras (espécies de liteiras)
com seus carregadores, cães, porcos e aves domésticas, sem separação
nem distinção; e como a sarjeta corre no meio da rua, tudo ali se atira
das diferentes lojas, bem como das janelas. Ali vivem e alimentam-se
animais (GRAHAM, 1990, p. 165).

Para a inglesa, a sujeira não era um incômodo observado apenas nos espaços
públicos, entre vendedores, negros e porcos; a casa, em sua privacidade, também foi alvo de
suas críticas. Em sua narrativa, incorporou a sujeira observada nas ruas ao âmbito privado
do lar, não poupando de críticas à utilização do espaço interno das casas como “depósito”

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de escravos, animais e provisões. Ao descrevê-las, afirma que “[...] na maior parte são
repugnantemente sujas”, mal organizadas, com escadas estreitas e escuras, além de uma
decoração que deixava a desejar, já que se compunha de “[...] gravuras e pinturas, as
últimas os piores borrões que nunca vi, decoravam geralmente as paredes” (GRAHAM,
1990, p. 168-169).
Graham também demonstrou bastante estranheza com relação às mulheres locais.
Em sua fala, surge, em primeiro lugar, a figura da mulher reclusa, que pouco “aparecia”;
e depois, “quando apareciam”, mostravam-se feias, desgrenhadas, sem lenços ou
vestidos de manga, ou seja, pouco alinhadas com os hábitos da moda europeia.
Mulheres, segundo seus dizeres, violentamente “deformadas” pela ação do “sujo” e do
“desleixo”. Ao discorrer sobre a mulher, reafirma alguns dos “lugares-comuns” ou
“tópicas” presentes na literatura de viagem e que também acabariam sendo incorporadas
a alguns estudos posteriores do cotidiano brasileiro: além da reclusão feminina,
aparecem ainda a sujeira e o desleixo. Reclusão que também foi apontada pelo cronista
baiano Manuel Querino como uma das principais características da cidade, pois,
naquela época, “[...] senhorinhas e matronas só saiam à rua em cadeirinhas de arruar, ou
acompanhadas de pessoas da família” (QUERINO, 1955, p.114). Gilberto Freyre
creditou esta reclusão feminina aos resquícios de um patriarcalismo “vindo dos
engenhos para os sobrados”, numa tentativa dos pais de família de proteger suas esposas
e filhas do perigo representado pelas ruas. As moças só saíam à rua para ir à missa,
ainda assim, acompanhadas e em palanquins fechados (FREYRE, 2004, p.139).
Anos mais tarde, mais exatamente em 1836, passou pela Bahia, em missão
científica, o médico e botânico escocês George Gardner. Embora tenha permanecido
apenas dois dias na cidade, de passagem para Pernambuco, deixou registrado um breve
depoimento. Ao Gardner também causou admiração a natureza e sua “vegetação
luxuriante”, mais do que a do Rio de Janeiro, ao passo que descreveu a cidade e suas
ruas como sendo “[...] estreita, mal-calçada e suja.” (GARDNER, 1975, p. 47). Pouco
depois, em 1839, chegou à Bahia o missionário metodista americano Daniel Parish
Kidder, “[...] com a finalidade de divulgar a Sagrada Escritura”. O viajante foi outro a
mencionar as ruas imundas da Bahia, particularmente as da cidade baixa que, para ele,
“[...] não ofereciam atrativos para o estrangeiro.” Quanto aos prédios, apesar de seu
“aspecto alegre”, eram antigos e a rua era

[...] muito estreita, acidentada e pessimamente calçada. Além disso, a


sarjeta fica mesmo no meio da rua se torna asquerosamente imunda.

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Atulham-na vendedores ambulantes e carregadores de tôdas as
espécies (KIDDER, 1972, p. 7).

Depois de descrever alguns outros aspectos negativos da cidade, como a


dificuldade de locomoção e transporte, tanto de pessoas como de mercadorias, que
resultavam na presença das “chusmas de negros” que ofereciam seus serviços para
resolver esse problema; o abastecimento de água, reclamando a falta de um “aqueduto
de vulto”; a pavimentação que não oferecia “uma superfície carroçável”; o estado de
“ruínas” de um velho cemitério “cujos muros caíam” e o estado de “desleixo” em que se
encontrava a velha catedral, Kidder, por seu turno, também reitera a mesma posição
presente nos demais viajantes: a cidade, de longe, impressionava.

Na verdade, poucas cidades podem apresentar uma visão de conjunto


de maior beleza que a Baía, a quem a observar de uma certa distância,
do mar. Mesmo o Rio-de-Janeiro dificilmente lhe pode ser comparado
(KIDDER, 1972, p. 37).

Para este autor, o único ponto da cidade que parecia reunir “vantagens”, a ponto
de não deixar dúvidas a um estrangeiro que quisesse ali residir, era o bairro do Morro da
Vitória. Lá, segundo Kidder (1972, p. 38),

[...] encontram-se os mais belos jardins da Baía, as mais encantadoras


alamedas e as mais vastas extensões de sombra. Aí se acham, também,
as melhores casas, o melhor clima, a melhor água e a melhor
sociedade.

O Morro da Vitória torna-se, em sua narrativa, o único lugar da Bahia digno de


ser habitado pelos europeus, uma vez que apresentava as melhores condições de
habitação e “a melhor sociedade”, na qual certamente não estavam incluídos os tipos
populares de feição negra que tumultuavam outras regiões da cidade, sobretudo, a zona
portuária.
Dezenove anos mais tarde, em fins do ano de 1858, chega à Bahia o médico
alemão Robert C. B. Avé-Lallemant, que já havia passado pelo local em 1855. Sua
estada fazia parte de um projeto de pesquisas cujo objetivo era examinar as condições
de vida de cada região do Brasil, depois de já ter realizado igual tarefa nas províncias do
Sul. As descrições que Avé-Lallemant realiza são minuciosas e repletas de
depreciações, sobretudo em relação aos negros. Novamente, como nos outros registros,
tem-se um relato que começa pelo elogio da Bahia à distância, pois esta se apresenta
“[...] realmente magnífica e imponente, sobretudo do convés da fragata francesa” (AVÉ-
LALLEMANT, 1980, p. 20), e que envereda pela crítica à disposição material da

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cidade, emitindo uma imagem generalizada de toda a Bahia pela sua primeira visão da
cidade baixa: “[...] em baixo, na praia começa a verdadeira cidade; a cidade baixa; uma
comprida faixa de cidade com casas altas, ruas estreitas e sujas e intensa vida
comercial” (AVÉ-LALLEMANT, 1980, p. 22).
Além dos aspectos materiais, Avé-Lallemant também teceu comentários
depreciativos quanto ao povo, cuja movimentação nas ruas era tão confusa quanto as
casas e vielas. Segundo este viajante, “[...] se não se soubesse que ela [Bahia] ficava no
Brasil, poder-se-ia tomá-la sem muita imaginação, por uma capital africana..., na qual
passa despercebida uma população de forasteiros brancos puros” (AVÉ-LALLEMANT,
1980, p. 22). A sua atenção volta-se, sobretudo para as parcelas negras da população. A
cidade da Bahia surgia como um lugar onde tudo parecia negro.

[...] negros na praia, negros na cidade, negros na parte baixa, negros


nos bairros altos. Tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e
carrega é negro; até os cavalos dos carros na Bahia são negros. A mim
pelo menos pareceu que o inevitável meio de condução da Bahia, as
cadeirinhas, eram como cabriolés nos quais os negros faziam às vezes
de cavalos (AVÉ-LALLEMANT, 1980, p. 22).

A constante e maciça presença do negro pelas ruas da cidade, “metrópole dos


negros”, causa em Avé-Lallemant (1980, p. 22) um misto de admiração e desconforto,
pois, como afirma, “[...] não pode haver mais soberba figura de homem que as desses
negros da Bahia”, conquanto seja uma admiração apenas física, estética, encanto de um
médico com a musculatura bem feita daqueles homens – obtida pelo rigor de trabalhos
forçados – e a “riqueza das formas” daquelas mulheres “cor de azeviche”. O que se
confirma na afirmação de que se trata de uma musculatura tão bem desenvolvida que a
torna ideal para o trabalho pesado, pois, para aqueles tipos, “[...] carregar um peso é
quase uma dança” (AVÉ-LALLEMANT, 1980, p. 23). Avé-Lallemant vai mais longe e
atribui a origem de uma certa “desmoralização” da cidade aos negros:

Essas múltiplas figuras de negros, modificando-se e movimentando-se


misturadas é que dão à cidade esse tom africano e constituem, por
certo, o seu lado sombrio, o seu lado escuro [...] a desmoralização, a
que a classe dos negros deu origem (AVÉ-LALLEMANT, 1980, p.
24, grifo nosso).

A noção de “tom africano” que emerge das impressões de Avé-Lallemant


equaciona automaticamente a cor negra de grande parte da população local ao que julga
ser seu atraso moral e material; o negro, em função de sua ascendência africana, como
que estacionando a Bahia num período de sombras. Cenários e imagens caricaturais que

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compõem discursos nos quais a remissão àquele continente – e também a muitos cantos
habitados por seus descendentes – surge de forma engessada e a-histórica, como que
fadado a repetir os mesmos ciclos viciosos que o impedem de por si só alcançar os
mesmos níveis de outros idealizados como superiores, ou como o renomado filósofo
George W. F. Hegel condenou enfaticamente na primeira metade do Oitocentos, terra
que “[...] está sempre fechada no contato com o resto do mundo, um Eldorado recolhido
em si mesmo, é o país criança, envolvido na escuridão da noite, aquém da luz da
história consciente” (HEGEL apud HERNANDEZ, 2008, p. 20). Espécie de lugar
avesso ao progresso, na apreciação hegeliana, o continente aparece de maneira a-
histórica, visto que não apresentava grandes destaques no desenrolar da história, e
incapaz de acompanhar os mesmos caminhos traçados pela evolução de outras regiões,
especialmente a Europa que, por sua vez, figura como contraponto com o qual os
viajantes aqui apreciados conferiram sentido às suas imagens da Bahia. Ao contrário, a
África – e, em certa medida, a Bahia – era por excelência o lugar da barbárie, da
selvageria e do atraso, que ainda se encontrava em um estágio primitivo, num “estado
bruto” que o aproximava mais da natureza que da civilização ocidental. O africano, por
seu turno, ao invés de portar a razão, era “um homem estúpido” e “[...] dominado pela
paixão, pelo orgulho e pela pobreza [...] em cujo caráter nada se encontra que pareça
humano” (HEGEL apud HERNANDEZ, 2008, p. 21).
Este “tom africano” causa novo incômodo em Avé-Lallemant quando, em um de
seus passeios pelos arrabaldes, depara-se com as figuras de negras-lavadeiras, muitas
delas nuas, num espetáculo que vê como “repulsivo” em meio aos “lodaçais
repugnantes” de um parque da cidade.

Tais cenas de lavadeiras deviam, sem dúvida, banir-se do parque


projetado em volta do lago. Devia-se também retirar os jacarés e
mesmo os ‘tigres’ – porquanto destes vi lá vestígios da pior espécie –
esse horrível receptáculo de porcaria (AVÉ-LALLEMANT, 1980, p.
29, grifo do autor).

A visão daquelas negras causara-lhe tamanha repulsa que o médico alemão as


coloca em mesmo nível que os jacarés e os “tigres” (barris onde se recolhia as fezes),
transformando-as numa espécie de coisa a serem removidas para o bem da paisagem do
parque, insinuando-se, assim, na fala desse viajante, a sugestão de interferência no meio
descrito.
Praticamente vinte anos após a passagem de Avé-Lallemant pela Bahia, em 1868,
outro alemão visita a cidade. Trata-se de Oscar Constatt, envolvido com questões de

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imigração de colonos alemães em Montalverne, no Rio Grande do Sul. Deixou suas
impressões registradas no livro Brasil. A terra e sua gente, publicado pela primeira vez
na Alemanha, em 1877, e só em 1954 no Brasil. Augel (1975, p. 118), a respeito do
livro de Constatt, afirma que se trata de obra onde “[...] o viajante vê essa terra e essa
gente pela primeira vez, impregnado pela surpresa e pelo encantamento, mas também
carregado de preconceito e inevitável etnocentrismo.” Contudo, ao longo da narrativa,
essa surpresa e o encantamento parecem apequenar-se diante da bagagem que traz
consigo, como podemos observar na extensa, porém elucidativa passagem.

No todo, a cidade por dentro não corresponde à sua bela aparência


exterior, e as ruas ladeirentas, tortuosas e mal calçadas, os muitos
edifícios desleixados causam uma impressão desagradável [...]. A
limpeza por si já não sendo uma virtude do tronco português a
população negra concorre ainda mais para aumentar a indiferença pela
imundície e sordidez. É preciso permanecer por muito tempo no Brasil
para perder-se um pouco de repugnância e nojo por esta raça humana
de aparência suja, mesmo exteriormente. As administrações por seu
lado nada fazem para manter a limpeza nas ruas. Em todo o Brasil
deixam só aos elementos o trabalho de remover os corpos em
decomposição, com exceção dos humanos. Cachorros, gatos, às vezes
até cavalos mortos podem ser vistos nas ruas, em todos os estágios de
decomposição sem que a ninguém ocorra a remoção desses restos
repugnantes. Logo a primeira vez que saí, chamou-me a atenção numa
das ruas mais movimentadas [...] um jumento morto (CONSTATT,
1868 apud BARREIRO, 2002, p. 74).

O trecho é bastante revelador. Mais uma vez, aparece a visão da “bela aparência
exterior”, com a rotineira mudança de tom que ocorre quando se adentra a cidade.
Novamente, a (des)qualificação das ruas e o “desleixo” dos edifícios. Porém, o que
sobressai é o caráter eminentemente etnocêntrico do relato de Constatt. O viajante
alemão associa o estado de sujeira da cidade a uma qualidade inata do “tronco
português” que a colonizou, o que se agravara com a presença do negro, segundo ele,
indiferente à “imundície”. Nota-se também a crítica ao descaso que a administração
pública demonstrava quanto ao aspecto do asseio das ruas da cidade, cabendo aos
próprios indivíduos a remoção de detritos e de “restos repugnantes”.
Os discursos, em sua imensa maioria depreciativos, que esses viajantes proferem
sobre a cidade não se limitam ao seu âmbito material. Aspectos morais, ligados ao
convívio social, observados nas tradições, nas sociabilidades e no modo de vida
cotidiano do povo local, são recorrentes na maioria dos relatos de viagem. As
impressões que revelam do baiano, conquanto seus autores reivindiquem para si certa
objetividade e neutralidade, refletem suas visões de mundo e subjetividades que se

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mostram intensamente permeadas de valores culturais e ideológicos europeus,
entendidos como modernos, que não encontram aqui correspondências, ligando tudo o
que é observado – a chamada “cor local” –, a um tempo passado, primitivo e atrasado,
ou, como diria Avé-Lallemant, a um certo “tom africano” que, por seu turno, precisa da
intervenção das “luzes” europeias para alcançar a civilização considerada ideal. Nesse
sentido, Augel (1975, p.204-205) afirma que nesses relatos predomina uma
“consciência da superioridade da civilização moderna que ao colono cabe assimilar,
imitar, admirar e reverenciar”, ou ainda, como nos lembra Miriam Moreira Leite, “[...] o
viajante traz a postura do povo civilizado diante do povo atrasado” (LEITE, 1997, p.10).
A esse respeito, Márcia Naxara afirma que

Nas narrativas de viagens em geral, que na verdade tramam uma


narrativa histórica, fica patente a superioridade do homem civilizado e
constrói-se a relação da civilização ao meio em que se desenvolve de
forma determinista, além da extensão desse determinismo à natureza
humana, dos pontos de vista físico (biológico) e moral. Os trópicos
não constituem um lugar adequado, não sendo, desse ângulo, o lugar
privilegiado da civilização (NAXARA, 2004, p. 201).

Há, portanto, um impasse entre o grau de civilização que o viajante porta – ou


acredita portar – e o do lugar por ele descrito que, por sua vez, é acompanhado, segundo
Flora Süssekind (1990, p.13), por uma “[...] sensação de não estar de todo.” Sensação
que o leva, através de sua narrativa, a uma espécie de “[...] corrida em direção ao que
este viajante entendesse por ‘civilização’, semente a ser lançada por ele nessa terra que
crê, paradisíaca ou infernalmente, em branco” (SÜSSEKIND, 1990, p.13, grifo do
autor). Torrão Filho (2008), por sua vez, acrescenta que as viagens relatadas pelos
estrangeiros nos séculos XVIII e XIX, mais do que espaciais, tinham um caráter de
fronteira temporal, ou melhor, um tempo plural que oscilava em um trânsito entre o
tempo do lugar visitado e o tempo do lugar a partir do qual o viajante falava. O
primeiro, o Brasil, em nosso caso a Bahia, situado como um “outro” que vegeta num
tempo de atraso, do arcaico, do primitivismo, de uma humanidade ainda em sua
“infância”, do passado e a necessidade de ser corrigido. O segundo, o tempo do lugar de
onde o viajante vinha e que trazia consigo em sua “bagagem”, a Europa, situada no
tempo das luzes, do presente, da civilização, do moderno, enfim, da distância e do
caminho a ser percorrido para se alcançar o progresso, evidenciando a nítida ideia de
uma “missão civilizadora” destes para com as áreas do Novo Mundo. Idealização de um
olhar externo, firmado pelas lentes da civilização e, por isso melhor instrumentado, que

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se confirmaria, por exemplo, na fala do eminente engenheiro baiano Teodoro Sampaio,
que pelos idos de 1905, foi categórico: “[...] a capital da Bahia não pode continuar com
um aspecto decadente, que nos envergonha perante o estrangeiro e nos rebaixa a nós
mesmos, como demonstração de nossa própria incapacidade” (SAMPAIO, 1905 apud
ALBUQUERQUE, 1999, p. 27-28).
Quanto ao estado do desenvolvimento cultural da Bahia, podemos analisar, por
exemplo, algumas das observações sobre as artes, ou melhor, a falta de seu cultivo ou o
que se denomina seu “mau gosto”, que não passaram despercebidos aos olhares de
muitos viajantes. Tollenare, sobre o teatro, afirma que os atores “nada valem”, sendo as
atrizes “indignas de servir de figurantes” nos mais ínfimos teatros franceses, “[...] mas,
ricamente vestidas dançam uns passos sérios de modo lamentável”, o que ameniza o
espetáculo é o fato dessas atrizes descobrirem “muitas nudezes”, agradando desse modo
“aos olhos dos amadores” (TOLLENARE, 1956, p. 289). Para ele, no teatro local nem
artistas, nem o público se equiparavam aos das produções europeias. Em uma das
encenações a que assistiu, chamou-lhe a atenção a presença do lundu, que ele descreve
como sendo a “[...] dança mais cínica que se possa imaginar [...] nada mais nem menos
do que a representação a mais crúa do ato do amor carnal” em que o “demônio da
volúpia” parece se apoderar da atriz. A sensualidade típica do lundu, “dança dos
negros”, é o motivo ao qual Tollenare (1956, p. 290) credita o fato de “as senhoras de
primeira sociedade” não frequentarem os teatros da cidade.
O francês aponta as causas para esse baixo desenvolvimento da cultura na Bahia
relacionado-as a um outro traço que, para ele, marcava o caráter do povo brasileiro,
sobre o qual discorre longamente: a indolência, que tornava o gosto pelas belas artes no
país “muito insignificante”, já que não se saía desse estado de “[...] indolência senão
para se ocupar de negócios pecuniários”, pois o brasileiro parecia-lhe “[...] demasiado
insensível ao tédio para procurar distrações delicadas”, e, em contrapartida, o gosto
refinado, “o zêlo” não era “[...] estimulado pela presença de bons modelos.
(TOLLENARE, 1956, p.360).
Maria Graham, por sua vez, também narrou sua ida à ópera. Depois de informar
que o teatro configura-se “muito grande e bem traçado, mas sujo”, diminui a qualidade
dos atores e condena a pouca civilidade do público:

Os atores são muito maus como tais; um pouco melhor como cantores,
mas a orquestra é muito tolerável. A peça era uma tragédia muito mal
representada, baseada no Maomé de Voltaire. Durante a representação
os cavalheiros e damas portuguesas pareciam decididos a esquecer o

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palco, e a rir, comer doces e tomar café, como se estivessem em casa...
Durante a algazarra provocada por isso, um capitão do exército foi
preso e expulso da platéia, dizem uns que por ser batedor de carteiras,
outros por estar empregando linguagem imoderada em assuntos
políticos quando se estava a exigir o hino nacional (GRAHAM, 1990,
p. 172-173).

Além da falta de qualidade dos atores, sua ida ao teatro também servira para lhe
reafirmar que a população local não estava em dia com as normas de civilidade
europeia, não se portando de acordo com as regras do decoro e dos bons modos das
nações “civilizadas”. Avé-Lallemant, por seu turno, também considerou o teatro palco
privilegiado para observar a população baiana. Segundo este viajante, no “muito bonito
Teatro de Ópera” da cidade, a “orquestra era excepcionalmente ruim”. Para além da
qualidade do espetáculo apresentado – Don Juan –, o que lhe causou impacto foi o
aspecto racial tanto da platéia, onde se encontravam alguns alemães, em contraste com
muitos “Peris escuros”, quanto dos atores.

Devo, todavia, consignar aqui uma horrível anomalia. Contando-se,


embora, entre os principais artistas, descendentes de europeus e
muitos deles, como, por exemplo, Dona Elvira e Zerlinda, que além de
perfeitas cantoras são figuras brilhantes, não se pode ver, em nenhum
palco, coristas de feições mais horrendas nem iguais caricaturas de
comparsas, como as que vi na Bahia... tão ruim como na Bahia nunca
houve... Realmente, nunca vira tão extraordinário conjunto de formas
e cores humanas como no fundo do palco da Bahia! [...] A raça branca
não pode estar tão escassa assim, que o principal teatro, a Ópera
italiana da Bahia tenha que recorrer a essas cores e a essas figuras!
(AVÉ-LALLEMANT, 1980, p. 50, grifo nosso).

Nesta apreciação do espetáculo, a presença em palco das “horrendas” figuras de


atores negros mostrava-se como uma “anomalia”, que diminuía o valor artístico da
apresentação. Em sua reflexão, Avé-Lallemant (1980, p. 50) vai mais longe,
relacionando a presença de “negros e de gentes de cor” no teatro, assistindo ou atuando,
à balburdia que estas camadas da população faziam nas ruas e a uma possibilidade de
tornarem-se “uma ameaça e até mesmo um perigo para a existência dos brancos”, pois
acabavam por figurar como “classes perigosas”.3
Além das artes, a religiosidade do baiano e suas manifestações (missas,
procissões, ex-votos) também foram alvo do crivo dos viajantes. Em muitos relatos,
aparecem mais como superstição, símbolo do atraso da cultura luso-brasileira ou como a
exibição de uma “religião de aparências”, do que como expressões condizentes com a fé
cristã dominante. Ideia que, por sua vez, também viria a se tornar corriqueira na
historiografia que se dedicou à compreensão da cultura brasileira, como nos mostrou

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Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil.4 Ao analisar a tópica da “religiosidade
de aparências” do luso-brasileiro presente nas narrativas dos viajantes, Torrão Filho
avalia que, nesse tipo de literatura, a superficialidade da fé é uma das bases da
construção de um discurso acerca da formação das cidades luso-brasileiras. Para o autor,
ao enveredarem pela máxima da religiosidade de aparências, os viajantes acabaram por
irmanar o material ao moral, sobressaindo uma interpretação global da sociedade na
qual o que lhes gerava incômodo não era a falta da fé, e sim, “[...] uma devoção mal
posta, inadequada e muitas vezes anacrônica” (TORRÃO FILHO, 2008, p. 224).
A preocupação com a religiosidade, ao menos no que toca sua exterioridade e
aparência, pode ser percebida na extensa descrição que muitas dessas narrativas
dispensaram à arquitetura religiosa, sempre destacada pelos viajantes. Os templos, em
sua grandiosidade descompassada com o restante dos edifícios, denotavam, na visão de
alguns visitantes, o grau de idolatria da religião local. O inglês Thomas Lindley (1969,
p. 161), em sua passagem pela Bahia em 1801, assinala que, como na maioria das
cidades católicas, ali “[...] as igrejas são os edifícios de mais relevo, e aqueles aos quais
foram dispensados o máximo cuidado e os maiores gastos.” Tollenare é outro a se
dedicar longamente à análise do catolicismo na cidade, tecendo inclusive críticas ao
comportamento moral do clero, sempre tendo como contraponto o estado da religião na
França. Por se encontrar hospedado em frente a uma igreja, o viajante francês se sente
privilegiado para avaliar o comportamento e as práticas religiosas dos baianos,
chamando atenção para o fato de a igreja estar quase sempre “na solidão”, verdadeiro
“espaço ermo” em dias ordinários. Cenário que mudava, segundo Tollenare, em dias de
festa quando cerca de “quinze ou vinte palanquins” traziam os moradores das
redondezas e então podia se observar uma “multidão” na igreja.
“Jamais se trata do dógma e fala-se do culto como um espetáculo divertido mas
fútil” (TOLLENARE, 1956, p. 337), essa é a conclusão a que Tollenare chega após
presenciar essa lotação apenas ocasional da missa. As igrejas e suas cerimônias
aparecem para esse viajante também como o lugar onde se podia observar uma “[...]
singular mistura do profano e do sagrado.” Cita, como exemplo, as comemorações do
casamento do príncipe real com a arquiduquesa da Áustria, onde pôde observar em uma
cerimônia um “[...] menino Jesus em traje de corte, rêde nos cabelos, chapéu agaloado,
espada à cinta e o bastão castão em punho”; ao adentrar à sacristia da paróquia, “rica e
elegantemente adornada”, surpreendeu-lhe a grande quantidade de imagens de Nossas
Senhoras e outros santos juntamente com as de “[...] bastantes celebridades que a França

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produziu durante a Revolução, o retrato de Napoleão em ornato imperial, os de Blücher,
Wellington, Bernadote, Platoff e dos principais soberanos da Europa”, sem falar em
“algumas molduras que encerravam lindos assuntos eróticos” (TOLLENARE, 1956, p.
320).
O caráter ornamental e de ostentação da religião católica nesta cidade também
despertou o crivo do missionário americano Kidder, para quem as festas da Igreja
normalmente reuniam uma “[...] incompreensível mescla de solenidade e ridículo [...]
pompa e esplendor” (KIDDER, 1972, p. 38). Para este, talvez mesmo por sua formação
metodista, a ideia das “aparências” e da idolatria era um traço decisivo na religião
católica na Bahia. Ressaltou a grande quantidade de fábricas de imagens de santos,
crucifixos e outros objetos litúrgicos que “[...] eram expostos nas lojas, com tal
profusão, como nunca víramos em outro lugar, indicando ser aí mais intenso que alhures
o comércio de objetos sacros” (KIDDER, 1972, p. 40). A suntuosidade dos templos
também o incomodara, afirmando ser a mesma tão excessiva quanto era exagerado o
número de igrejas naquela cidade. Na narrativa de Kidder sobre Salvador, prevalece a
ideia de uma “fé de fachada”, o que se torna claro ao lermos a indagação com que este
conclui esse seu posicionamento: “Cruzes, há as em abundância, mas quando
prevalecerá a verdadeira doutrina da cruz?” (KIDDER, 1972, p. 38).
Ao médico dinamarquês G. M. Friis, que esteve na cidade em 1861, as
cerimônias religiosas, segundo seus dizeres, na “Iglesia da nostra senhora do bom fin”,
tinham aspecto de “parque de diversões”, pois as pessoas entravam e saiam
constantemente durante o rito, vestiam roupas “festivas”, as “[...] pretas com turbantes e
as damas à moda européia”; vendiam-se coisas para comer e beber e soltavam-se fogos
(FRIIS apud AUGEL, 1975). O comportamento do sacerdote frente ao altar também
não lhe agradava, pois este não lhe parecia “[...] muito sério conversando e brincando
com as mulheres o tempo todo”, comportamento esse que já havia sido anotado
anteriormente por Tollenare. Segundo Augel, estas cenas deixaram Friis convencido de
que cerimônias como aquela “não promovem de maneira nenhuma a religiosidade”
(AUGEL, 1975, p.104-105).
A crítica dos viajantes à religiosidade brasileira, em especial à baiana, não se
limitou apenas ao catolicismo. As expressões de religiosidade dos escravos,
principalmente por suas origens africanas, não passaram despercebidas a esses
observadores. José C. Barreiro assinala que a festa anual de Nossa Senhora do Rosário,
por exemplo, tradicional por ser o momento da Coroação do Rei do Congo, em que os

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negros escolhiam um de seus pares para ser seu representante e exercer certa liderança,
ainda que simbólica, refletia nos olhares de alguns viajantes o mesmo tom de zombaria,
jocosidade, prepotência, superioridade e arrogância com que era encarada pelos
brancos, inclusive pelo padre, que parecia estar mais preocupado em saciar seu apetite
do que em realizar a cerimônia. Barreiro cita o inglês Henry Koster, que esteve no
nordeste de 1809 a 1820, e ressaltou “o ridículo das cores e das formas desproporcionais
das roupas do rei, da rainha e do secretario” utilizadas no rito (BARREIRO, 2002, p.
110). Havia, portanto, uma similaridade entre as posições dos viajantes com as das
elites locais a desqualificar qualquer reminiscência de um “tom africano” no cotidiano
da cidade.
O viajante, ao relatar o que vê, ouve, sente, colabora para forjar uma identidade
para o lugar visitado, identidade da qual também compartilha, visto que preenche a
“folha em branco” que julga ser o “outro” a partir de traços e qualidades que ele próprio
acredita deter. Identidade que esse “outro” não conseguiu atingir por razões de origem –
raciais, religiosas, culturais – e que se marca pela falta, por um vir a ser desde que um
assimile os hábitos do outro. Nas narrativas desses viajantes, a população local, o
brasileiro de modo geral, aparece, conforme observa Márcia Naxara (2004, p. 294),
inferiorizada como selvagem e desinteligente, em descompasso com a grandiosidade de
uma natureza “exótica, bela, poderosa, potente”. Descompasso constantemente
apontado pelos viajantes, como se a população nativa não fosse digna de tamanha
riqueza natural.
Não só a população local, mas também a cidade – entendida tanto como artefato,
constructo humano quanto como representação –, parece apequenar-se diante dessa
natureza hiperbolizada pelas sensibilidades dos viajantes. Daí a recorrente
caracterização das cidades luso-brasileiras – especialmente Rio de Janeiro e Salvador –
como “anfiteatro” e “espetáculo”, como pôde ser visto em relação à Bahia. Essa
descrição das cidades como anfiteatros não implica apenas em trazer ao leitor a mera
apreciação de seu panorama visto do mar por esse ou aquele viajante. Torrão Filho
assinala que esse tipo de representação das cidades “defini-lhes um caráter, uma
personalidade e uma morfologia”, através de uma “estrutura metafórica” que se
desmonta à medida que, com a aproximação, aquela “[...] beleza ilusória, percebida
apenas à distância” se perde e, com essa proximidade a real face da cidade vem à tona,
“[...] a sua mácula e a sua desordem; seu caráter cenográfico, teatral, que engana os
sentidos e que esconde por trás de seus encantos a desordem e a morte” num “[...] teatro

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de contrastes, no qual sua beleza era posta contra a miséria de muitos de seus
habitantes... espaço alegórico da queda, do pecado e da desolação” (TORRÃO FILHO,
2008, p. 202-203). Cidade, assim como seus homens, sem substância, portando apenas
uma urbanidade de aparências.
Ao refletir sobre a utilização dos relatos de viagem para a produção
historiográfica, em artigo em que estuda a atuação médica do já referido viajante
Thomas Lindley na Bahia de princípios do Oitocentos, Alarcon Agra do Ó afirma que
essas narrativas devem ser encaradas

[...] como uma operação cultural complexa, que compõe, ao mesmo


tempo, um aparato de representações para o Brasil e um conjunto de
referências para a identidade cultural do povo para quem se escreve
[...]. São triangulações, jogos de espelhos que ali se organizam. É
construído um mundo sobre o qual se narra, e é construído também
um outro mundo para o qual se narra. E nesse movimento, duplo e
complexo, são estabelecidas regras para a aproximação adequada (ou
o afastamento necessário) entre essas duas realidades (AGRA DO Ó,
2004, p. 29).

Agra do Ó prossegue seu raciocínio – em um caminho muito próximo ao


apontado por Sandra J. Pesavento (2007) em nota logo às primeiras páginas deste artigo
–, concluindo que a importância de se estudar os viajantes reside no fato de que estes

[...] foram, entre outros, os responsáveis pela montagem do imaginário


do resto do mundo sobre alguns instantes de nossa história, e esses
movimentos merecem atenção. É imprescindível lê-los, para sabermos
como éramos vistos de fora – por discursos que, depois, seriam
operados por nós mesmos na construção da nossa própria identidade
(AGRA DO Ó, 2004, p. 29)5.

Assim como Agra do Ó e Sandra Pesavento, foi também como conjunto de


representações e referências para uma identidade cultural que procuramos ver as
narrativas de viagens aqui trabalhadas. Procuramos, ainda, tratá-las como
representações que não são apenas instituídas, mas que também instituem práticas
sociais, ou como sugere Torrão Filho (2008, p. 15), utilizando-se de Roger Chartier,
como “[...] textos produtores de sentido”.6 Mesmo que a maioria desses relatos não
tenham tido uma circulação massiva entre os letrados do período – até porque a maioria
da população era analfabeta –, e grande parte deles terem sido publicados em português
para o público brasileiro somente um bom tempo depois – a maioria já no século XX –,
entendemos que constituem importante referência para as imagens da cidade e para as
possíveis autoimagens formadas por seus moradores, ao menos para a elite letrada que

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tinha acesso às publicações originais e que delineava os referenciais políticos e culturais
a serem seguidos. Desse modo, entendemos que a historicização de alguns dos muitos
relatos dos viajantes que passaram pela cidade da Bahia ao longo do século XIX
fornecem-nos um caminho instigante para se pensar a forma pela qual o povo baiano,
em consonância com os aspectos urbanos de sua capital, foi sendo moldado e também
moldou uma autoimagem. Através da descrição efetuada a partir de seus modos de vida,
seus hábitos, suas particularidades observadas no dia-a-dia de suas “mal-fadadas” ruas,
os viajantes chegaram a um quadro desalentador. Em sua maioria, relataram uma cidade
atrasada, pobre, feia – em contraste com a beleza natural sobre a qual se edificou –, suja,
pouco estruturada. O povo aparecendo como indolente, primitivo, bárbaro e
incivilizado. Cidade e povo, porque manchados por um “tom africano”, em oposição
aos ideais de civilização dominantes no período.

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de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.

Notas
1
Gilberto Freyre (1990, p. 208) ressaltou essa fama de atraso da Bahia no período. Segundo o autor, na
transição para a República, “[...] a Bahia representava, então, mais e melhor do que qualquer outra
Província do Império, além do justo, o excessivo, quer na resistência brasileira ao progressivismo
cultural de toda a espécie, quer na afirmação, se não ostensiva, pela inércia à vezes saudável, do que
fosse valor do castiçamento luso-brasileiro ou consagradamente luso-católico, contra inovações bizarras
ou estrangeirices afoitas. [...] os olhos e os ouvidos dos baianos teriam vomitado tais exotismos como se
repelissem dos seus estômagos, habituados a quitutes, também tradicionalmente luso-baianos, bifes crus
à inglesa ou lingüiças à moda mais rudemente alemã.”
2
Rinaldo Leite (2005, p. 14) afirma, ao pensar as elites baianas deste período, que estas não
configuravam obrigatoriamente um grupo homogêneo, pelo contrário, pode ser observada “[...] uma
diversidade em seu conjunto.” Eram homens basicamente de vida urbana, em sua maioria brancos,
embora houvesse alguns mestiços, que tinham por substrato comum o “letramento” a conferir-lhes “[...]
valores num nível bastante aproximado”.

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3
Sidney Chalhoub (1996, p. 24-29) historiciza a ideia de “classes perigosas” e remete seu aparecimento à
Europa de meados do século XIX, afirmando que naquele momento essa se relacionava aos indivíduos
que por algum motivo estavam à margem da lei. No Brasil, ao longo da segunda metade do mesmo
século, essa ideia sofreria alguns rearranjos a partir das falas de nossos deputados, ligando-se
claramente à parcela mais pobre da população, encarada como um contingente carregado de vícios,
como a ociosidade. Essa caracterização encontrará nos negros alvos preferenciais, tanto através de um
discurso social que suspeita de tais elementos por sua condição escrava, quanto, mais tarde, pelas
argumentações de cunho biológico das teorias raciais. Classificação que, segundo Chalhoub, fará com
que os negros se tornem “[...] membros permanentes das classes perigosas.”
4
Em sua clássica interpretação do Brasil, Sérgio B. de Holanda – numa visão muito próxima a dos
viajantes – entende que há no Brasil “[...] uma religiosidade de superfície, menos atenta ao sentido
íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em seu apêgo ao concreto e
em sua rancorosa incompreensão de tôda verdadeira espiritualidade; transigente, por isso mesmo que
pronta a acordos, ninguém pediria, certamente, que se elevasse qualquer moral social poderosa”
(HOLANDA, 1963, p. 142).
5
Não por acaso, um dos projetos fundantes de uma maneira de se pensar a história nacional no Brasil do
século XIX foi de um viajante. Trata-se do alemão Carl F. P. Martius, vencedor do concurso organizado
pelo IHGB em 1844 com o projeto intitulado “Como se deve escrever a história do Brasil?”, modelo
que deitaria raízes e se estenderia por muito tempo na produção historiográfica brasileira.
6
Em sentido análogo, em que pesem as divergências teóricas entre estes autores, José Carlos Barreiro
afirma, sobre as representações dos viajantes que: “[...] os limites entre práticas sociais e representações
são muito fluídos, constituindo-se estas últimas também em práticas com forças de intervenção e
transformação da realidade social” (BARREIRO, 2002, p. 11).

Artigo recebido em 19/08/2013. Aprovado em 11/11/2013.

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AS HISTÓRIAS LITERÁRIAS PIONEIRAS NO
BRASIL OITOCENTISTA

THE PIONEER BRAZILIAN ROMANTIC


LITERARY HISTORIES

Carlos Augusto de MELO•

Resumo: As precursoras representações historiográficas oitocentistas foram as matrizes da


Historiografia nacional. E as Histórias literárias foram institucionalmente um dos principais
veículos discursivos para a invenção e a convalidação de nossa tradição nacional,
especialmente, por trazer o selo oficial do patrocínio imperial. Nesse período, diversos
historiadores aspiravam concretizar a História oficial da Literatura brasileira. Houve três
projetos de História literária concluídos, os de Cônego Fernandes Pinheiro, de Ferdinand Wolf e
de Sotero dos Reis. Trago, então, uma leitura crítica sobre tais trabalhos precursores, a partir do
pressuposto de serem participantes do sistema historiográfico oitocentista de formação do
patrimônio nacional.
Palavras-chave: Historiografia – Histórias Literárias – Nacional.

Abstract: The Nineteenth-Century historiographical representations were the beginning of


national historiography. And the literary histories were institutionally one of the major
discursive vehicles for invention and co-validation of our national tradition, specially for
bringing the official seal of imperial patronage. During this period, many historians aspired to
achieve the official history of Brazilian literature. There were three successful projects, those
authored by Fernandes Pinheiro, Ferdinand Wolf and Sotero dos Reis. Therefore, my proposal
is to offer a critical reading of these pioneer works based on the assumption that they were
participants of the Nineteenth historiographical system of the national patrimony formation.
Keywords: Historiographical – Literary Histories – National.

[...] por outras palavras diremos que o nosso fim não é traçar a
biografia cronológica dos autores brasileiros, mas sim a história da
literatura do Brasil, que toda a história, como todo o drama, supõe
lugar da cena, atores, paixões, um fato progressivo, que se desenvolve,
que tem sua razão, como tem uma causa, e um fim. Sem estas
condições nem há história, nem drama (MAGALHÃES, 1999, p. 33).

As várias Histórias Literárias oitocentistas representaram uma diversidade do


pensamento historiográfico oitocentista, mesmo que ainda limitados às correntes
historicistas Românticas da época. Essa multiplicidade permite-nos repensar sobre
alguns dos juízos totalizantes posteriores a respeito da prática historiográfica literária
brasileira oitocentista que, por exemplo, giraram apenas em torno de retomar as


Doutor em Letras – Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária – Instituto de Estudos da
Linguagem – UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas, CEP 13083-859, Campinas, São Paulo –
Brasil. Bolsista Fapesp. Professor de Literatura do Departamento de Letras – CCAE – UFPB. E-mail:
carlosaug.melo@gmail.com.

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questões sobre o exacerbado culto nacionalista. Sabemos que, no cerne da escrita da
História Literária brasileira, houve um consenso geral de afirmação nacional; por outro
lado, as manifestações foram múltiplas e visualizavam o patrimônio literário nacional
por meio de olhares particulares, com fins específicos, pois havia “diferentes Histórias
Literárias como expressão de diferentes projetos nacionais” (WEBER, 1997, p. 18). O
critério de nacionalidade, a análise de obras e autores, a formação do cânone, a
funcionalidade da Literatura, foram constituídos a partir das especificidades críticas de
seus historiadores. Dessas particularidades é que vamos tratar neste texto1.

A Trajetória

É bem conhecida a história das estratégias brasileiras oitocentistas de afirmação


de autonomia nacional que estiveram associadas ao sentimento de nacionalidade
romântico. Nas Letras, elas são evidentes nas propostas de resgate do passado literário
brasileiro, cujo objetivo era construir a ideia de um patrimônio cultural propriamente
nacional que pudesse servir como modelo para as produções literárias vindouras. Os
textos literários escolhidos eram aqueles que tematizassem os elementos característicos
do Brasil, como, por exemplo, as belezas naturais, a “cor local” e os aborígenes. Eles
protagonizavam o quadro dos representantes nacionais.
A Historiografia Literária entra em cena para servir de instrumento oficial para a
efetivação desta proposta brasileira. Inspirados pelo pensamento de alguns críticos
europeus, mais especificamente a partir das contribuições de Ferdinand Denis e de
Almeida Garrett, os intelectuais brasileiros se convencem da necessidade urgente de
estabelecer quantitativa e sistematicamente o patrimônio cultural nacional. As diretrizes
vinham do projeto de História do Brasil do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
que Manoel Luís Salgado Guimarães compreende ser:

no bojo do processo de consolidação do Estado Nacional que se


viabiliza um projeto de pensar a história brasileira de forma
sistematizada. A criação, em 1838, do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB) vem apontar em direção à materialização deste
empreendimento, que mantém profundas relações com a proposta
ideológica em curso. Uma vez implantado o Estado Nacional,
impunha-se como tarefa o delineamento de um perfil para a ‘Nação
brasileira’, capaz de lhe garantir uma identidade própria no conjunto
mais amplo das ‘Nações’, de acordo com os novos princípios
organizadores da vida social do século XIX (GUIMARÃES, 1988, p.
6).

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Os veículos de materialização do patrimônio foram os bosquejos, os parnasos, as
galerias, os panteões, as histórias literárias, nos quais todo o corpus literário pudesse ser
(re)conhecido e divulgado. Foi Antonio Candido que, no livro Formação da Literatura
Brasileira (2007), trouxe um esquema importante para se entender a formação da
Historiografia e da crítica literárias brasileiras. Nele, podemos encontrar descritas com
exatidão as várias etapas pelas quais passamos antes da suposta efetivação de um
projeto de construção das Histórias nacionais. O autor enfatiza o caráter do trabalho
coletivo de vários intelectuais, brasileiros e estrangeiros oitocentistas, que em sintonia
historiográfica, “reuniram textos, editando obras, pesquisando biografias, num esforço
de meio século que tornou possível a sua [de Sílvio Romero] História da literatura
brasileira, no decênio de 1880” (CANDIDO, 2007, p. 663). Mesmo canonizando a figura
de Sílvio Romero, como sendo o primeiro grande sistematizador da História da
Literatura brasileira, Antonio Candido atribui também méritos aos participantes das
etapas anteriores de nossa Historiografia Literária, sem os quais Sílvio Romero não
seria tão bem sucedido, e assim afirma:

Visto hoje, esse esforço semi-secular aparece coerente na sucessão das


etapas. Primeiro, o panorama geral, os ‘bosquejos’ visando traçar
rapidamente o passado literário; ao lado dele, a antologia dos poucos
textos disponíveis, o ‘florilégio’, ou ‘parnaso’. Em seguida, a
concentração em cada autor, antes referido rapidamente no panorama:
são as biografias literárias, reunidas em ‘galerias’, em ‘panteons’. Ao
lado disso, um incremento de interesse pelos textos, que se desejam
mais completos; são as edições, reedições, acompanhadas geralmente
de notas explicativas e informações biográfica (sic). Depois, a
tentativa de elaborar a história, o livro documentado, construído sobre
os elementos citados. Na primeira etapa, são os esboços de
Magalhães, Norberto, Pereira da Silva; as antologias de Januário,
Pereira da Silva, Norberto, Adet, Varnhagen. Na segunda etapa, as
biografias, em série ou isoladas de Pereira da Silva, Antônio Joaquim
de Melo, Antônio Henriques Leal, Norberto; são as edições de
Varnhagen, Norberto, Fernandes Pinheiro, Henriques Leal, etc. Na
terceira, os ‘cursos’ de Fernandes Pinheiro e Sotero dos Reis, os
fragmentos da história que Norberto não chegou a escrever
(CANDIDO, 2007, p. 663).

No que se diz respeito à primeira fase, o primeiro trabalho brasileiro significativo


foi o Parnaso Brasileiro, de Januário da Cunha Barbosa, entre 1829 e 1831, obra
espelhada na publicação de Almeida Garrett, o Parnaso Lusitano, de 1826. Daí por
diante, a etapa antológica adquire força, principalmente com o Parnaso, de Pereira da
Silva, e o Florilégio, de Varnhagen. Vale relembrar que, nessa fase de parnasos, como
poderíamos denominá-la, os intelectuais não ficaram apenas tentando compilar textos e
escrever biografias, mas também se incumbiram da tarefa de traçar uma teoria da
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História da Literatura do Brasil, cujo precursor foi o poeta Gonçalves de Magalhães
quando publicou o “Ensaio sobre a história da literatura do Brasil”2, na Niterói, em
1836.
O desenvolvimento do trabalho de compilação do corpus literário brasileiro teve
como resultado a formatação das primeiras manifestações de História Literária, nas
quais a sistematização do patrimônio literário brasileiro evidenciava a existência do
conjunto possível de uma Literatura nacional e a possibilidade de proclamar a
autonomia cultural. Esse esforço conjunto de uma geração de estudiosos institui a
invenção da tradição literária, que figurasse como símbolo identitário da jovem nação, a
partir de elementos que, enlaçados imaginariamente dentro da linha histórica, levam
(in)voluntariamente à união e ao progresso.
Houve várias tentativas de escrita da História Literária nacional. Primeiramente,
destacam-se os trabalhos dos estrangeiros, publicados quase todos antes da
independência política da colônia brasileira. Devido ao período histórico, essas
narrativas escreviam a História da Literatura portuguesa, considerando a produção da
colônia brasileira também como suas representantes, ou seja, produtos que vinham
enriquecer ainda mais a História da Literatura lusitana. Das narrativas estrangeiras,
sobressai-se o Resumo da história literária de Portugal, seguido do resumo da história
literária do Brasil (1826), de Ferdinand Denis, devido à consistência de seu ponto de
vista em relação à representação literária brasileira. Ele trouxe um trabalho de análise
sobre os autores e obras brasileiros e, mesmo vendo a Literatura brasileira como
integrante da Metrópole, realiza sua investigação à parte do conteúdo português. Nesse
livro, a Literatura brasileira encontra-se numa parte específica destinada a nossa
Literatura. Até o momento, para muitos críticos e historiadores, a narrativa de Ferdinand
Denis protagoniza a categoria de “manifesto literário” que serviu de direcionamento e
de incentivo para o melhoramento prospectivo da situação cultural do país. Além disso,
acresce-se ao caráter de “manifesto literário” o viés ensaístico da obra, na qual se
constrói uma reflexão pessoal e individual a respeito dos aspectos específicos de alguns
dos nossos escritores e obras mais representativos.
Entre os historiadores brasileiros, a figura de Norberto é ressaltada pelo seu
esforço como historiador da Literatura e pelo projeto de construir a primeira História da
Literatura brasileira escrita por um brasileiro. Em 1840, o historiador Norberto escreveu
o Bosquejo da História da Poesia Brasileira, publicado no Despertador e, em 1841, foi
inserido em Modulações Poéticas. O bosquejo trouxe uma periodização do fenômeno

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literário nacional, valorizando especificamente à produção poética. Américo Miranda
considera Norberto “o primeiro a propor, em bases razoáveis, uma divisão da história da
literatura brasileira em períodos” (MIRANDA, 1997, p.11), aprofundando os trabalhos
de Ferdinand Denis e Gonçalves de Magalhães. Antonio Candido afirma que o bosquejo
foi “a primeira tentativa de distinguir períodos configurados em nosso passado literário”
(CANDIDO, 1971, p. 335), a partir de uma sistematização válida dentro dos propósitos
historiográficos oitocentistas. Por outro lado, Candido, Américo e outros críticos
defendem a ideia de que a proposta norbertiana não passou da escrita de bosquejo que
servia de introdução ao livro de poesias. Norberto, invejável historiador brasileiro,
considerado por Antonio Candido, “um rato de arquivo” (CANDIDO, 1988, p. 21), ou
mais, “a figura central da crítica romântica, pela operosidade e constância com que se
dedicou ao estudo da nossa história literária” (CANDIDO, 1971, p. 334), tentou
publicar, nas páginas da Minerva Brasiliense (1843-1845) e da Revista Popular (1859-
1862), os capítulos projetados da História da Literatura Brasileira. O plano foi compor
uma obra completa sobre a História da Literatura nacional que convalidasse a História
da nação brasileira, como afirma Nelson Schapochnik:

Partindo do princípio de que ‘um povo que não tem uma literatura
chegará dificilmente a ser uma nação’, Joaquim Norberto de Sousa e
Silva corroborava a utilização das obras literárias como documentos que
poderiam ser utilizados para representar a história. Desta forma, a
história da literatura passaria a ser concebida como um capítulo da
história nacional, e as obras literárias como um reflexo ou ilustração da
história (SCHAPOCHNIK, 1992, p. 51).

O historiador estava preocupado com a oficialização de uma História literária no


Brasil (e, aqui, o que pode querer dizer nas entrelinhas que ele mesmo não considerasse
o Bosquejo propriamente uma História). Norberto idealizou uma História Literária
bastante interessante do ponto de vista da reflexão e teoria nacionalistas, conforme
podemos aferir por meio de seu ensaio “Literatura Brasileira” (SOUZA E SILVA, 1862,
p. 261) na referida revista. Esse projeto historiográfico pioneiro fracassado, uma vez
que houve a impossibilidade, por razões diversas, de reunir os capítulos num volume e
de concluir os outros planejados. O trabalho conjunto de homens letrados oitocentistas
só se consolidou no momento em que houve as primeiras sistematizações consistentes e
conclusas a respeito da unidade da História da Literatura nacional. São Histórias
Literárias que, do ponto de vista de Erich Auerbach, compreendem:

cada fenômeno e cada época em sua própria individualidade, e


buscando, ao mesmo tempo, estabelecer relações que existem entre

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eles, compreender como uma época emergiu dos dados da que a
precedia e como os indivíduos se formam por via da cooperação das
influências de sua época e meio com seu caráter peculiar
(AUERBACH, 1972, p. 31).

Remetemos, então, às obras escritas pela tríade Cônego Fernandes Pinheiro


(1825-1876), Ferdinand Wolf (1796-1866) e Sotero dos Reis (1800-1871),
respectivamente: o Curso Elementar de Literatura Nacional (1862); O Brasil Literário
(1863); e o Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira (1866-1873). Elas participam
do exercício historiográfico geral a serviço do poder imperial, envolvem-se em questões
diplomáticas e políticas civilizatórias, relacionam-se com o saber didático e
institucional, trazem modelos de historiografia que combinam a tradição retórica com o
pensamento cientificista em voga naquele período. O aparecimento de Histórias
Literárias do Brasil foi estimulado pela preocupação nacionalista do poder instituído,
cujo regulamento tentava organizar o país e prepará-lo para a constituição de uma nação
brasileira ordeira e civilizada. Elas são baseadas nos parâmetros historiográficos do
grupo de historiadores oficiais do Instituto Histórico. A falta de documentação
estimulou fortemente o grupo de intelectuais do Império que, paralelamente à tarefa
historiográfica geral, coletou o material literário possível para a conclusão do projeto
nacional, realizado, como vimos em Antonio Candido, em algumas etapas sucessivas.
Outro aspecto a se considerar é que, diante da preocupação maior no que diz respeito à
consolidação efetiva da História Geral do Brasil parece ser coerente que a História da
Literatura, como apêndice subsequente da outra não se torne o centro das atenções de
nossa intelectualidade.
Poucos tiveram fôlego suficiente para assumir com seriedade a tarefa de escrever
uma História sistematizada do conjunto do passado literário brasileiro. Havia mais
manifestações ou propostas historiográficas do que narrativas históricas propriamente
ditas. Não havia materiais consistentes que pudessem fazer um estudo historiográfico
detalhado, o qual envolvia muito mais do que a tarefa de estipular datas e períodos a
respeito dos mesmos e inseri-los num quadro de periodização histórica concreto. Nesse
caso, a reflexão de Gonçalves de Magalhães, voltando à epígrafe do capítulo, demonstra
o conflito do historiador:

[...] por outras palavras diremos que o nosso fim não é traçar a
biografia cronológica dos autores brasileiros, mas sim a história da
literatura do Brasil, que toda a história, como todo o drama, supõe
lugar da cena, atores, paixões, um fato progressivo, que se desenvolve,
que tem sua razão, como tem uma causa, e um fim. Sem estas
condições nem há história, nem drama (MAGALHÃES, 1989, p. 35).

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A História da Literatura Brasileira requeria, portanto, uma metodologia própria
de estudo do material literário; e, por mais que fosse o espírito da época tratar a
Literatura como produto histórico em detrimento da literariedade do texto, a
Historiografia e os métodos da nascente crítica literária entrelaçavam-se. Havia urgência
também em função da política educacional e do funcionamento do ensino brasileiro. O
currículo de História da Literatura carecia de um material de estudo.

A Tríade

Tratando-se daqueles três pioneiros modelos de História Literária no Brasil,


quais foram algumas das soluções então que puderam oferecer? A década de 1860 foi
decisiva. Foram respostas praticamente simultâneas que tivemos. Havia três obras
recém-saídas do prelo que tentavam resolver a carência dos estudos historiográficos
sobre a Literatura nacional. Uma em 1862, outra em 1863 e, por fim, em 1866 (até
1873). Os seus autores eram personalidades distintas dentro do ambiente cultural
brasileiro e internacional, respectivamente Cônego Fernandes Pinheiro (1825-1876),
Ferdinand Wolf (1796-1866) e Sotero dos Reis (1800-1871). O primeiro era pertencente
do centro político e cultural brasileiro3 e de algumas instituições oficiais do Estado
Nacional oitocentista. O segundo, um olhar estrangeiro, pesquisador e divulgador da
Literatura brasileira e latino-americana na Europa. O último advinha dos olhares
afastados do centro fluminense e determinados pelo espírito cultural da província
maranhense.
Eles apresentaram estratégias historiográficas diversificadas para resolver os
problemas específicos de representação histórico-literária do país. Os cursos de
Literatura, tanto de Cônego Fernandes Pinheiro quanto de Sotero dos Reis, funcionaram
como caminhos alternativos para o ensino de Literatura nos institutos de ensino do
Brasil. O trabalho de Ferdinand Wolf pode ser visto como uma estratégia do poder
imperial de inserção da cultura da recém-formada “civilização brasileira” no ambiente
modelo de cultura “civilizada”, o europeu.
Com as propostas desses três historiadores, a História Literária brasileira
começou a ter um corpo mais definido. Desde 1862, os interessados pela Literatura
brasileira poderiam consultar tais obras que ofereciam propostas concretas a respeito do
processo de formação da Literatura nacional. Os brasileiros, Cônego Fernandes Pinheiro
e Sotero dos Reis, escreveram as narrativas históricas, a partir dos saberes educacionais

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de “fora”, o dos europeus, em outras palavras, o dos franceses e dos portugueses; a do
austríaco, Ferdinand Wolf, livre das amarras didáticas4, aderiu às propostas
historiográficas dos brasileiros Magalhães e Norberto. Cônego Fernandes Pinheiro
baseou-se na metodologia e periodização do compêndio português de Borges
Figueiredo e Sotero dos Reis teve influência direta da obra do professor francês,
Villemain.
Os três definiram seus métodos, tendo em vista proporcionar uma visão de
conjunto da Literatura nacional, como formadora do espírito nacional e, como queria
Ferdinand Wolf, afirmar “o lugar que lhe [a Literatura do Brasil] compete na História
das Literaturas nacionais” (WOLF, 1955, p.3). As Histórias Literárias de Cônego
Fernandes Pinheiro e de Sotero dos Reis aproximam-se enquanto postulados didáticos
gerais em defesa da educação cívica, monárquica e nacional dos estudantes brasileiros e
ainda pelo espírito nacionalista-conservador que fazia crer na necessidade do estudo
compartilhado entre as Literaturas de Portugal e do Brasil. Elas se afastam na medida
em que adotam perspectivas metodológicas diferenciadas de compêndio didático de
aplicação da leitura e análise literária das obras, ou seja, de seus postulados críticos. O
estrangeiro Ferdinand Wolf possui uma obra diferenciada em comparação às dos
professores acima, mais pelos aspectos conceituais do que metodológicos. O Brasil
Literário é uma obra sem pretensões didáticas (mesmo que, como afirmamos acima,
venha a ser compêndio escolar nos colégios brasileiros do século XIX e a diferenciação
do que seja compêndio e História Literária fosse incerta). Ele propõe historiar apenas do
patrimônio literário dito brasileiro que, conforme afirmação de Roberto Acízelo, é o
“primeiro livro inteiramente dedicado à história da literatura brasileira” (SOUZA, 2007,
p. 31).
No século XIX, havia quase um consenso por parte dos intelectuais brasileiros de
que os compêndios didáticos distinguiam-se das narrativas mais especializadas, a
História Geral, a História do Brasil e a História da Literatura. Serviam como suplentes
das Histórias mais reconhecidas. Os dois historiadores brasileiros estudados aqui
escreveram obras didáticas, mas que, aos olhos de hoje, funcionaram propriamente
como Histórias Literárias em comparação às demais produções da época, como os
bosquejos ou florilégios. A composição de compêndios didáticos parecia resolver a
carência de material historiográfica. Era urgente a adoção de manuais didáticos oficiais
de estudo sobre a Literatura nacional. O uso de manuscritos não era suficiente. Os
nacionalistas necessitavam de uma narrativa que oficializasse a História da Literatura

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nacional. Um compêndio traria a organização do conjunto literário e dos resumos
panorâmicos dentro dos princípios cronológicos nacionais que, de acordo com Carpeaux
(1959, p. 23), foi “a outra descoberta do romantismo – é puramente formal; não tem
conteúdo ontológico”. Cônego Fernandes Pinheiro e Sotero dos Reis explicitaram seus
objetivos didáticos que caracterizavam os cursos de Literatura, a partir declarações
introdutórias e expressões lexicalmente demarcadas ao longo dos mesmos.
O método escolhido foi o uso dos princípios cronológicos. Os livros de Cônego
Fernandes Pinheiro, de Sotero dos Reis e de Ferdinand Wolf são arquitetados dentro da
estrutura de periodização, organizando as mais diversas manifestações literárias
brasileiras numa sequência estanque temporal que “nos aparece através do tecido das
datas cronológicas”, demarcando a corrente herderiana do “conceito de ‘Literatura
nacional’, como a expressão mais completa da evolução espiritual do espírito de uma
nação” (CARPEAUX, 1959, p. 21). Havia o sentido histórico de que reconstituíam as
origens da Literatura nacional e estabeleciam as etapas de desenvolvimento, com o
espírito de cada época e sua atmosfera particular de cada período. A reunião de
variedades literárias condizia com a afirmação do conjunto da Literatura e alimentava o
espírito quantitativo de afirmação nacional.
Nessas três histórias literárias, percebe-se que os autores se utilizam dos padrões
históricos de classificação, ordenação e periodização de acordo com a perspectiva de
tempo da História Política. A Literatura representa um produto histórico com

causas determináveis – a subjetividade dos autores e/ou os processos


sociais -, atribuindo-se como tarefa a ultrapassagem dos textos em
busca de suas motivações primeiras, das quais eles seriam reflexos
secundários (SOUZA, 2003, p.142).

A divisão de períodos fechados é marcada por meio da sequência contínua da


Literatura no tempo histórico, dentro dos limites da “origem” até a contemporaneidade
do autor. Os períodos literários encaixam-se nos dos acontecimentos políticos
concernentes aos propósitos da constituição nacional. Trata-se da dependência da
Literatura à História Política em que os melhores ou piores momentos de expressão
literária justificam-se sempre pelo sucesso do andamento político do país. Cônego
Fernandes Pinheiro diz que “a decadencia da litteratura portugueza ao dominio
hespanhol, que por sessenta annos enervou as forças e abateu os brios dos netos de
Viriato”5 (PINHEIRO, 1862, p. 176). Sotero dos Reis também afirma que, depois do
século XVI, Portugal “começará elle a decahir de tamanho esplendor, e as lettras com
elle, pela fraqueza dos sucessores dos dous grandes reis D. João II e D. Manoel I”
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(REIS, 1866, p. 35). Ferdinand Wolf alega que, na segunda metade do século XVIII,
houve um “novo surto da literatura no Brasil sobretudo em consequência da boa
administração de Pombal” quando o “Rio de Janeiro é declarado residência do vice-rei,
o que cria um novo centro literário” (WOLF, 1955, p. 74). Tanto a ausência de
elementos da natureza brasílica quanto o culto das estruturas literárias clássicas, trazidas
dos poetas portugueses, demarcam a dependência política e literária do Brasil. Outro
fato é que, por exemplo, há o consenso de que só com a emancipação política houve
meios de se constituir, nas palavras de Sotero dos Reis, “a nascente, e já brilhante
litteratura brazileira propriamente dita” (REIS, 1866, p. 286). Cônego Fernandes
Pinheiro acredita que os eventos pós-independência chegam a atrasar o processo de
emancipação da Literatura brasileira, postergando-o para 1836. Daí que é necessário
entender o princípio de Literatura nacional que as guia na medida em que são projetos
Românticos de uma História nacional.
No Curso Elementar, a nacionalidade da Literatura define-se a partir dos estreitos
laços políticos coloniais. O Cônego acreditava que a Literatura brasileira era um ramo
da Literatura Portuguesa. A utilização do termo “literatura nacional” não possui
precisão que demarque, por exemplo, um significado mais restrito à produção brasileira
especificamente. Os escritores e as obras aparecem nos capítulos conjuntamente. Sotero
dos Reis é mais objetivo já revelado pelo título “Curso de Literatura Portuguesa e
Brasileira”. O uso do aditivo “e” entre os predicados Portuguesa e Brasileira revela a
presença compartilhada das Literaturas, mas nitidamente separadas no corpo do texto,
por meio da divisão dos volumes e dos capítulos. Dessa nacionalidade compartilhada,
possível posicionamento lusófilo, constrói-se um discurso crítico equânime, qual seja, a
nacionalidade literária é definida pelos marcos históricos da independência romântica
em 1826. O critério de nacionalidade de Ferdinand Wolf afasta-se da perspectiva
lusófila. Ele estabelece uma metodologia crítica sobre a unidade nacional, estudando
apenas as expressões literárias ditas brasileiras. O título “O Brasil Literário” adjetiva,
define e delimita a nação brasileira.
Essas Histórias Literárias reúnem as produções literárias que devem ser
enquadradas nos blocos de periodização com denominações de períodos e épocas
políticas, conforme a representação dos escritores, de nacionalidade e dos gêneros
literários. As obras dos escritores são classificadas de acordo com os padrões da retórica
e da poética. Há preferência pelo gênero poesia, justificada geralmente por se tratar de
questões históricas. Sotero dos Reis esclarece que:

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Na apreciação dos modelos propostos para estudo devem por via de
regra ter a primazia os poetas, não só pelo natural atractivo da poesia,
que convida a estudal-os, e suavisa o trabalho dos que aprendem, como
por sua precedencia na ordem chronologica de qualquer litteratura,
conforme o attesta a historia. Em quasi todas as linguas, ou antes em
todas ellas, os poetas procedêrão aos prosadores, quer historiadores,
quer oradores, quer philosophos, quer de outro genero; e em quase todas
as litteraturas forão os poetas os que mais concorrêrão para o
aperfeiçoamento da respectiva linguas. Adstrictos á regras que não
podem ser violadas, como a do metro, a da harmonia imitativa, a da
consonancia sustentada, veem-se elles obrigados a apanhar e incluir o
pensamento, si assim me posso exprimir, em certos conceitos breves; e
no que respeita ao estylo [...]. É incontestável a prioridade dos poetas
sobre os prosadores (REIS, 1866, p. 8-9).

O gênero poético engloba obras nas categorias tradicionais: poesia lírica, didática,
dramática e épica. Os outros gêneros trabalhados são romance, diálogos, oratória,
biografia, historiografia, viagens, tradução e teatro. Cônego Fernandes Pinheiro foi
quem mais esteve preso à sistematização dos gêneros poéticos, como critério rígido de
representação literária. No Curso Elementar, a classificação dos gêneros literários
seleciona os nomes de autores e obras, especificando cada época literária e permitindo
organizar os títulos das lições/ dos capítulos. Nas terceira, quarta e quinta épocas
literárias, selecionaram-se representantes dos gêneros literários, como subitens dos
capítulos nessa mesma sequência de apresentação abaixo: 1. Gênero Lírico: Espécie
bucólica; Espécie lírica, Espécie elegíaca, Espécie didática, Espécie satírica e Espécie
epigramática; 2. Gênero Didático: Espécie didática e Espécie epigramática; 3. Gênero
Épico; 4. Gênero Dramático; 5. Romance; 6. Diálogos; 7. Oratória; 8. Epistolografia; 9.
Biografia;10. Historiografia; 11. Viagens;
As Histórias Literárias de Sotero dos Reis e de Ferdinand Wolf valorizam os
nomes dos escritores como expressão literária de cada época ou período da Literatura.
Os olhares se voltam para as particularidades de produção de cada escritor estudado. No
Curso de Literatura, Sotero dos Reis sintetiza cada seção, informando que, por
exemplo:

Comprehende-se os poetas do primeiro periodo litterario que decorre


desde fins do seculo XIII até meados do século XVI. El-rei D. Diniz;
sua biographia; seu Cancioneiro; apreciação de algumas de suas
trovas; origem provavel de certos termos provençaes ou catalaes, que
nellas se encontrão. Bernadim Ribeiro; sua biographia; [...] (REIS,
1866, p. 282).

Ferdinand Wolf adota essa técnica de apresentação resumida para cada capítulo
d’O Brasil Literário. Os gêneros aparecem compartilhando espaço com outras
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características temáticas, como o elemento cristão, o caráter panegirista, a eloquência,
etc. O destaque está na “lista dos poetas brasileiros consideráveis, cujas obras chegaram
até nós [...]” (WOLF, 1955, p. 28). Bosi entende que a frequente classificação baseada
em gêneros literários demonstra a permanência do “julgamento neoclássico da
adequação da escrita aos modelos antigos ou renascentistas” num momento em que os
Românticos passavam a substituir

o critério formal de beleza do ideal clássico pelo critério histórico do


valor representativo dos autores e obras. O texto passou a valer pela
sua capacidade de reapresentar os caracteres que se supunham
próprios da sociedade que o gerou (BOSI, 2002, p. 10)

A Literatura percebida como produto histórico passa pela avaliação e julgamento


da crítica literária ainda arraigada às lições de Retórica e Poética. A nascente crítica
oitocentista “consistia apreciar a conformidade de um texto às regras do gênero
respectivo”, mas também “como decorrência da revolução romântica, a crítica se torna
pessoal e arbitrária, quando muito fixando como critério de qualidade noções vagas
como autenticidade emocional ou verismo figurativo” (SOUZA, 2003, p. 145). Os
pontos geralmente ressaltados são a correta adequação do estilo literário à proposta
poética, a variedade dos gêneros literários, o “correto” uso dos aspectos formais como
figuras de linguagem, rimas, metrificação, o grau de transmissão das emoções,
sentimentos e ideias, a apresentação de moralidade dos pensamentos, a verossimilhança
transmitida por meio da vivacidade e da beleza de imagens poéticas.

O Cânone Nacional

Além disso, podemos pensar essas Histórias Literárias como configuradoras dos
cânones literários nacionais. Geralmente, as Histórias Literárias aparecem como um
mecanismo narrativo histórico de sistematização do conjunto da produção literária do
passado, em que se adota uma perspectiva evolutiva da Literatura, em uma linhagem
temporal, organizando autores e obras por suas características em comum de um
referente intra ou extra-literário. Todo esse mecanismo fundamenta-se em um recorte
do fenômeno literário (e os critérios de seleção podem variar de narrativa para
narrativa), por meio do qual, inevitavelmente, alguns serão deslocados do seu meio e,
“gloriosamente”, serão levados ao patamar superior dos legitimados ou, pelo contrário,
caminharão em direção à margem da Literatura. Esse recorte consegue permanecer por
gerações, tendo em vista que participa de um veículo institucional próprio para o
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direcionamento da leitura de futuros leitores quando aplicados ao ensino de Literatura.
Esse fato acontece pelo fato de que, na maioria das vezes, essas narrativas históricas
funcionam como manuais de ensino de Literatura para a formação da mentalidade
cultural e literária dos estudantes em geral.
De maneira geral, o princípio de formulação historiográfica brasileira é reflexo do
momento Romântico de configuração da unidade nacional do país. As leituras
historiográficas do passado literário direcionavam-se para o resgate quantitativo dos
nomes de escritores e obras que formavam a possível tradição da Literatura brasileira. O
recorte é nacionalista. O critério de julgamento envolvia basicamente a avaliação da
expressão de nacionalidade através dos aspectos temáticos. O valor estético da obra era
a construção de imagens ou, como diziam, de “pinturas de quadros” dos elementos
característicos brasileiros que permitiam afirmar a “physionomia propria que
caracterisava os poetas americanos, e que os extremava de seus irmãos de além-mar”
(PINHEIRO, 1883, p. 567) O culto da natureza, os traços indígenas, eram o gosto
literário da época. O escritor do passado consagrava-se no cânone brasileiro se tivesse
manifestado esse gosto nacionalista.
No caso das três Histórias Literárias, a construção do cânone brasileiro esteve
condicionada aos passos desse pensamento nacionalista. A seleção envolve a expressão
literária dos escritores nacionais, que trazia assuntos especificamente brasileiros,
transmitida através das diversas formas literárias, desde a poesia à historiografia. Muitos
escritores também eram representantes dessa diversidade de gênero literário. A reunião
da variedade literária confirma novamente a concepção quantitativa de afirmação
nacional daqueles historiadores literários. Os historiadores literários Cônego Fernandes
Pinheiro, Ferdinand Wolf e Sotero dos Reis estavam cientes da prática da construção do
cânone literário que prestigiavam alguns e silenciavam outros. O mais importante é que
sabiam dos critérios de seleção. As justificativas eram sempre as mesmas. Pela
característica resumida dessas Histórias Literárias, eles eram conduzidos ao processo
classificatório da Literatura, guiado, como fez Cônego Fernandes Pinheiro, pela escolha
de escritores “que se tornárão mais notaveis pela importancia de suas obras” ou, ainda,
“o que mais digno nos parecer de estudo e imitação, preferindo sempre as obras que
gozam de mais geral e incontestada reputação” (PINHEIRO, 1862, p.195). Ferdinand
Wolf se desculpava pelo rigor da seleção e conclui:

Nossos leitores compreenderão termos passado em silêncio grande


número de nomes, e que o nosso dever de historiador poderia ter-nos
obrigado a cita. Não mencionaremos senão aqueles que se elevaram

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acima do nível ordinário, e seguiram um caminho que pode servir para
caracterizar o período (WOLF, 1955, p. 323-324).

Ferdinand Wolf não foi tão criterioso como poderia parecer. Das três Histórias
Literárias, O Brasil Literário parece ser a mais ampla em relação à reunião de
escritores. No pequeno volume, concentram-se mais de cinquenta nomes que ora são
estudados detalhadamente ora apenas mencionados em algumas linhas, sob o título de
“outros poetas”, por exemplo. Paralelamente, percebe-se então que Ferdinand Wolf
constrói dois cânones da Literatura brasileira, dos poetas “elevados” e dos “outros
poetas”. Pela idéia de cânone, diríamos os poetas “maiores” e os “menores”, ou melhor,
os “poetas cânones” e os “poetas marginalizados”. Por aparecerem, estes últimos
merecem algum grau de “elevação” ou “reputação” em comparação àqueles nem
citados, os silenciados pelo cânone wolfiano; todavia, pelo que se leva a crer, aparecem
mais devido à tentativa de ilustração da História Literária do Brasil do que valorização
literária.
Os nomes em ordem de aparição são: Bento Teixeira Pinto, Gregório de Matos,
Eusébio de Matos, Bernardo Vieira Ravasco, Manuel Botelho, Jorge Borges de Barros,
João Álvares Soares, Diogo Grason Tinoco, D. Joana Rita de Souza, João Brito de
Lima, Gonçalves Soares de França, Bartolomeu Lourenço, Fr. Francisco Xavier de
Santa Teresa, Frei Manuel de Santa Maria Itaparica, Manuel de Santa Maria, Prudêncio
do Amaral, Sebastião da Rocha Pita, Antonio José da Silva, Basílio da Gama, Santa
Rita Durão, José Francisco Cardoso, Cláudio Manoel da Costa, Tomaz Antonio
Gonzaga, Silva Alvarenga, Alvarenga Peixoto, Domingos Vidal, João Pereira da Silva,
Antonio Mendes Bordalo, Joaquim José da Silva, Domingos Caldas Barbosa, Francisco
de Melo Franco, Bento Figueiredo Terreiro Aranha, Manuel Joaquim Ribeiro, Joaquim
Ignácio de Seixas Brandão, José Inácio da Silva Costa, PE. Miguel Eugênio da Silva
Mascarenhas de Sabará, Antonio Pereira de Souza Caldas, Francisco de S. Carlos, José
Elói Otoni, José Bonifácio de Andrada e Silva, Francisco Vilela Barbosa, Marques de
Paranguá, Manuel Alves Branco, Visconde de Caravelas, Domingos Borges de Barros,
Visconde de Pedra Branca, Paulo José de Melo Azevedo e Brito, José da Natividade
Saldanha, Luiz Paulino Pinto da França, Joaquim José Lisboa, Gaspar José de Mattos
Pimentel, Januário da Cunha Barbosa, Padre Silvério de Paraopeba, Ladislau dos Santos
Titara, João Gualberto Ferreira dos Santos Reis, Álvaro Teixeira de Macedo, Francisco
Bernardino Ribeiro, Antonio Augusto de Queiroga, Monte Alverne, Mariano José
Pereira da Fonseca, Marques de Maricá, Antonio de Morais e Silva, Domingos
Gonçalves de Magalhães, Manuel de Araújo Porto-alegre, Gonçalves Dias, Joaquim
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Manuel de Macedo, Manuel Odorico Mendes, Joaquim Norberto, Teixeira e Souza,
Joaquim José Teixeira, Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Firmino Rodrigues,
Antonio Joaquim de Melo, Francisco Otaviano Almeida Rosa, PE. José Joaquim
Correia de Almeida, José Bonifácio de Andrada e Silva, João Silveira de Sousa, Martins
Pena, Ernesto Ferreira França, Joaquim Norberto, Varnhagen, Luis Antonio Burgain,
Martim Francisco Ribeiro de Andrada, Candido José da Mota, Pinheiro Guimarães,
Luis Vicenti de Simoni, Pereira da Silva, José de Alencar, irmãos Antonio Carlos e
Martim, Francisco Ribeiro de Andrada, Lino Coutinho, Bernardo Pereira de
Vasconcelos, Visconde de Jequitinhonha e Lopes Gama.
Cônego Fernandes Pinheiro seleciona um número bem menor de escritores.
Chega a vinte e dois nomes. Essa restrição é entendida pela proposta da obra. O quadro
era composto mais por representantes portugueses que brasileiros. Havia também a
rigidez dos critérios de avaliação poética que pressupunha avaliar basicamente as obras
que exemplificassem os padrões das aulas de retórica e poética. Estudando a obra de
Basílio da Gama, dizia que “Lembremos aos alumnos de rhetorica que aqui encontrarão
tambem o feliz emprego das figuras reduplicação e anaphora” (PINHEIRO, 1862, p.
419). Pela ordem, estão Manoel Botelho, Gregório de Matos, Rocha Pita, Sousa Caldas,
Tomas Antônio Gonzaga, Silva Alvarenga, Cláudio Manoel da Costa, Basílio da Gama,
Santa Rita Durão, Monte Alverne, Gonçalves de Magalhães, Porto Alegre, Gonçalves
Dias, Teixeira e Souza, Joaquim Norberto, Joaquim Manuel de Macedo, Dutra e Melo,
Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Pereira da Silva, Varnhagen, João Francisco
Lisboa. Já Sotero dos Reis reduz o cânone ao máximo, reflexo da “forma mesmo de
uma mais arguta leitura dos textos, na seleção estrita [...]” (BARBOSA, 1996, p. 29).
De todo o livro, são dez escritores brasileiros estudados, detalhados na biografia e na
análise das principais obras. A seleção revela um cânone mais regionalista em que, dos
dez escritores, quatro são maranhenses: Manoel Odorico Mendes, Gonçalves Dias,
Antonio Henriques Leal e João Francisco Lisboa. Os demais são: Santa Rita Durão,
José Basílio da Gama, Sousa e Caldas, Marques de Maricá e Monte Alverne.
Desse modo, percebe-se que, nessas narrativas, o cânone é dividido em dois
momentos. Um está no passado colonial, mais reduzido; e outro, na contemporaneidade
dos autores, mais amplo e revelador. Nessas Histórias Literárias, os quadros canônicos
são bem variados. Há, porém, os nomes mais recorrentes que oferecem dados para a
formação do primeiro cânone literário nacional. São os escritores Manuel Botelho,
Gregório de Matos, Rocha Pita, Santa Rita Durão, Basílio da Gama, Cláudio Manoel da

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Costa, Gonzaga, Silva Alvarenga, Monte Alverne, Gonçalves de Magalhães, Gonçalves
Dias, Manoel Odorico Mendes, Joaquim Manoel de Macedo, Álvares de Azevedo,
Junqueira Freire, Varnhagen, João Francisco Lisboa, Norberto, Pereira da Silva e
Teixeira e Souza.
O marco está em Manuel Botelho. Ele é o primeiro brasileiro que aparece nas
histórias de Cônego Fernandes Pinheiro e de Ferdinand Wolf. Sotero dos Reis o silencia
completamente. Para aqueles dois historiadores, o valor de Manuel Botelho é apenas
histórico pelo pioneirismo de publicação em comparação, de acordo com Wolf, a
“outros poetas brasileiros mais importantes que ele” (WOLF, 1955, p. 42). Outros
poetas como os irmãos Matos. Esse desmerecimento literário ocorre por consequência
dos vícios estilísticos do Gongorismo que impedia a independência completa dos
valores nacionais cultivados. Cônego atribui-lhe a posição de “patriarcha da poesia
brasileira e um dos precursores dos Srs. Magalhães e Porto Alegre”, porque foi quem
publicou as primeiras poesias que permitiam afirmar que a Literatura brasileira tomava
“uma physionomia propria, aspirava um cunho d’originalidade, que ainda não poude
totalmente alcançar” (PINHEIRO, 1862, p. 188 e 192). A única poesia destacada é a
“Ilha de Maré” por ser “uma descrição um pouco longa e às vezes muito prosaica da
Ilha de maré, perto da Bahia, mas onde as passagens relativas aos encantos da natureza
dos trópicos emprestam uma cor a um tempo poético e local, que não se pode deixar de
admirar” o que “lhe assegurou um lugar honroso na história da literatura brasileira”
(WOLF, 1955, p. 43).
Essas Histórias Literárias trazem cânones literários construídos pela perspectiva
de progressão nacionalista dos autores e das obras. O aparecimento deles é gradativo à
medida que se aproxima dos momentos de afirmação nacional oitocentista, com o
aparecimento das primeiras produções românticas. Dos autores do período colonial, há
uma predileção pelos poetas Santa Rita Durão e Basílio da Gama. Eles estão presentes
nas três Histórias Literárias do grupo, com certa exaltação. O motivo é claro: para esses
historiadores, eles foram os escritores brasileiros que, de maneiras mais sólidas,
apontaram soluções para a proposta de emancipação literária: resolver questões de
adaptação do estilo à temática nacionalista. A tentativa de construção de um poema
épico brasileiro pareceu tornar possível Basílio da Gama e Santa Rita Durão poetas
adequados para a concretização dos símbolos brasileiros de nacionalidade.
Dessa seleta dupla, Sotero dos Reis revela-se certo da primazia de uma epopeia
brasileira. Para Sotero, por exemplo, Santa Rita Durão é digno de exaltação, pois

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apresentou uma obra épica à História da Literatura Brasileira, mas também rompeu com
a estagnação do gênero nas Literaturas de Língua Portuguesa desde a publicação dos
textos camonianos:

Disse eu no precedente discurso, que, entre todas as epopéas de segunda


ordem escriptas em Portuguez, o Caramurú deve ser reputado uma das
melhores, não obstante os seus defeitos; e com effeito assim me parece,
ou se attenda ao merito intrinseco do poema que não é inferior ao dos
outros de sua cathegoria, ou sobre tudo á circumstancia de ser uma das
que melhor preenche o fim, pela cor local que o poeta soube dar aos
seus quadros, muitos dos quaes são eminentemente poeticos. Apesar de
ser tão fecunda a litteratura portugueza, e do Brazil, que já se achava
descoberto a mais de dois seculos, offerecer assumptos e prospectos os
mais ricos e variados a todo o genero de poesia, não havia até então
uma epopéa brazileira. Durão foi o primeiro que tentou a empreza [...]
(REIS, 1868, p. 182).

Cônego Fernandes Pinheiro atribui pioneirismo a Uraguai, de Basílio da Gama,


em função de ser “pois indubitavelmente [...] primeiro poema brasilico tanto na ordem
chronologica, como na perfeição da obra.” (PINHEIRO, 1862, p.416). Como dissemos,
essa perfeição é atingida por se centrar na História do Brasil e, também, resolver a
carência de estilo poético. Para Ferdinand Wolf:

É possível que, tratando esta matéria, José Basílio tenha atendido à sua
aversão pelos jesuítas e seu desejo de agradar a Pombal, mas não é
menos importante observar que havia escolhido um assunto patriótico e
soube encontrar em seu país os elementos de uma epopéia. Celebra, é
verdade, a vitória das armas portuguesas e espanholas mas o seu maior
interesse incide sobre os indígenas, pintando-lhes os caracteres e os
costumes, dando-nos episódios tocantes e descrições magníficas. Põe
em jogo, malgrado seu é possível, as simpatias pelos vencidos, pelas
vítimas do engodo. É certamente com toda razão que José Basílio
procurou os elementos poéticos no próprio Brasil. Conseguiu despertar
o interesse por este país e suas particularidades e contribuiu
razoavelmente par ao livre surto do sentimento nacional. [...]. Neste
poema, José Basílio distingue-se por uma versificação harmoniosa e
frequentemente imitativa, e acabou por adquirir, por suas outras poesias
também, a reputação de mestre do estilo e da harmonia (WOLF, 1955,
p. 92).

Essas considerações giram em torno sempre das mesmas constatações. As obras


épicas dos poetas Basílio e Durão são precursoras do que seria a poesia brasileira
propriamente dita, porque se preocuparam com a descrição ou a “pintura” dos
“elementos brasileiros”, cuja simbologia maior se encontra nas temáticas épicas
“indígenas”. Pelo que parece, eles só não poderiam inaugurar o momento de
emancipação literária, uma vez que, para esses historiadores, a História da Literatura

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Brasileira estava atrelada às concepções da periodização de independência política do
país.
A valorização do Indianismo permite explicar a preferência pelas expressões
contemporâneas de um Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias e Norberto, por parte
dessa tríade de Histórias Literárias do Brasil. Magalhães é aquele que emitiu o “brado
de independencia, ou morte, echoando no Ypiranga das brasilias letras” (PINHEIRO,
1862, p. 536). O marco é o volume de poesias Suspiros Poéticos e Saudades, de 1836;
mas a obra que o canoniza ou, segundo Ferdinand Wolf, “tornou o nome de Magalhães
mais ilustre ainda que em virtude de suas poesias líricas e dramáticas” (WOLF, 1955, p.
219), é a epopeia Confederação dos Tamoios. Amigo de Magalhães, pelo qual teve
acesso à produção literária do Brasil, Ferdinand Wolf o reserva um espaço significativo
nas páginas d’O Brasil Literário, levando em conta outras obras poéticas dele, como as
do gênero dramático. É possível identificar camaradagem não apenas em Wolf, mas
também em Cônego Fernandes Pinheiro e Soteros dos Reis, que ultrapassa questões de
mero culto Romântico à figura de Magalhães, como grande precursor da emancipação
literária do Brasil. Magalhães era um “escritor consagrado e protegido pelo Imperador,
chefe reconhecido da Literatura brasileira e centro de um poderoso grupo [...]”
(COUTINHO, 1968, p. 87). Da mesma forma, essa camaradagem pode esclarecer o
destaque dado, por exemplo, a Gonçalves Dias ou a Norberto nessas três narrativas e,
por outro lado, o silêncio unívoco ao também indianista daquele período, José de
Alencar. No caso do Curso de Literatura, de Sotero dos Reis, a camaradagem revela-se
ainda mais na preferência pelo círculo intelectual de seus conterrâneos. Os escritores
escolhidos pertenciam à mesma rede conservadora imperial do IHGB da qual os
elaboradores das Histórias Literárias participavam. Eles obtinham a proteção do
Imperador e recebiam cargos de confiança, voltados sempre para a atividade de
nacionalização e de civilização do país. Nada mais natural que ganhassem destaque no
aparelho canônico nacional pelos seus pares.
O caso de Norberto é ilustrativo. Como poeta, a despeito de poucas qualidades
poéticas, esse escritor ainda se manteve bem recebido pela História e crítica daquele
momento. Para muitos, ele era digno principalmente da carreia nacionalista. Ferdinand
Wolf o aprova porque “Norberto escolheu de preferência para assunto de seus cantos as
tradições, os costumes, as cenas da vida indígena e tratou-os como os das Baladas, o
que aprovamos” (WOLF, 1955, p. 294). Cônego Fernandes Pinheiro reitera a idéia que
“Naturalisou entre nos o Sr. Norberto a ballata, especie de poesia tão convinhavel á

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educação poetica do povo, tão azada a alimentar nelle os sentimentos patrioticos, e o
culto das grandes ideias” e reconhece o que os críticos posteriores confirmariam que
“Infatigavel esmerilhador das cousas patrias possuo o Sr. Norberto amplo cahedal de
conhecimentos historicos e tradicionaes, de que faz o publico confidente [...]”
(PINHEIRO, 1862, p. 553-56). Já a exclusão de José de Alencar, que de acordo com o
tempo foi equiparado por outros historiadores da Literatura à capacidade nacionalista
exemplar, é conseqüência da polêmica d’A Confederação dos Tamoios de 1856.
Combatendo rigorosamente a nobreza épica da obra de Magalhães, José de Alencar
estabelece rivalidades com parceiros do poeta d’A Confederação que saem em defesa
dele, como “Araújo Porto Alegre, D. Pedro II, Frei Francisco de Monte Alverne, e
diversos outros anônimos” (COUTINHO, 1968, p. 99). Cônego Fernandes Pinheiro e
Sotero dos Reis oferecem a José de Alencar o completo silêncio entre os poetas
indianistas como Gonçalves Dias e romancistas como Joaquim Manuel de Macedo. Fica
claro mais ainda que, nessas Histórias Literárias, à formação do cânone implicavam
condições externas ao valor literário, como se pode pressupor da afirmação de
Ferdinand Wolf - o único da tríade a mencionar rapidamente a obra de José de Alencar
– que só “o ‘Guarani’ de Alencar pode fazer exceção, mas não conseguimos lê-lo.”
Embora não explicado o porquê do impedimento da leitura, tudo leva a crer que havia as
mãos de Magalhães por trás dessa questão. Foi Magalhães que selecionou as obras que
eram enviadas a Ferdinand Wolf e, como vimos, o poeta brasileiro possuía vários
motivos para que as obras de José de Alencar não fizessem parte das correspondências.

Considerações finais

O surgimento dessas primeiras narrativas historiográficas oportuniza a confecção


da História da Literatura nacional. Essas Histórias Literárias foram exemplo de
estruturação sistemática dos discursos teóricos e metodológicos historiográficos
oitocentistas sobre a Literatura nacional com relação à periodização, à análise literária, à
conceituação de “Literatura nacional”, à formação do cânone literário, entre outros
aspectos. Elas motivaram a produção historiográfica posteriores, uma vez que se
tornaram institucionalmente o veículo discursivo mais adequado para a invenção e a
convalidação de nossa tradição literária, especialmente, por trazer o selo oficial do
patrocínio imperial.

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Notas

1
Recorte de minha tese de Doutorado (MELO, 2009).
2
Esse texto foi publicado posteriormente na edição dos Opúsculos históricos e literários (Rio de Janeiro:
Garnier, 1865, tomo VIII, p. 239-71) sob o título de “Discurso sobre a história da literatura do Brasil”.
Recentemente, as pesquisadoras Regina Zilberman e Maria Eunice Moreira publicaram-no com a grafia
atualizada nos Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS. v. 5, n. 2, Porto Alegre-RS:
EDIPUCRS, agosto/1999.
3
A expressão faz alusão ao Rio de Janeiro, à “corte da monarquia, o centro cultural, político e econômico
do território nacional – desfrutando no século XIX de uma preeminência que nenhuma outra cidade
brasileira jamais virá a ter [...]” (ALENCASTRO, 1997, p.10).
4
Em nota de rodapé à obra Introdução à historiografia da literatura brasileira (2007), o professor
Roberto Acízelo interpreta que a adoção d’O Brasil literário, de Ferdinand Wolf, demonstra “o caráter
ainda precário da presença institucional da literatura brasileira, pois é sintoma da carência de materiais
disponíveis para estudo.” Mais adiante: “O austríaco, por sua vez, além de também ter influído no meio
brasileiro por seus incentivos para a adoção de uma perspectiva nacionalista na produção e apreciações
literárias, tornou-se importante referência didática, pela circunstância de sua obra – escrita
originalmente em alemão, depois traduzida para o francês e publicada em Berlim sob os auspícios do
imperador Pedro II – figurar entre os compêndios adotados na escola brasileira do século XIX.” (p. 18 e
p. 32).
5
Nas citações, mantiveram-se a grafia original das palavras e a estrutura sintática, constantes nos textos
oitocentistas.

Artigo recebido em 10/08/2013. Aprovado em 29/09/2013.

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A LITERATURA COMO VIA DE RECONSTRUÇÃO NACIONAL:
O CONTEXTO CURITIBANO NO PERÍODO POSTERIOR À
REVOLUÇÃO FEDERALISTA (1890-1900)

LITERATURE AS A MEANS OF NATIONAL


RECONSTRUCTION: CURITIBA’S CONTEXT DURING THE
PERIOD AFTER THE FEDERALIST REVOLUTION (1890-1900)

Caroline Baron MARACH•

Resumo: O artigo objetiva tratar do impacto da Revolução Federalista sobre os discursos dos
literatos paranaenses do contexto do final do século XIX. Também busca discutir o papel do
literato naquela sociedade, explorando as fontes que tratam desse assunto. O corpo documental
deste trabalho compreende duas revistas importantes do período para o meio literato local, o
Clube Curitibano (1890-1912) e O Cenáculo (1895-1897). Além desses periódicos, a análise
também abrange obras biográficas sobre os escritores e colaboradores mais assíduos dos dois
periódicos. Tais agentes são entendidos aqui como “atores linguísticos”, expressão utilizada por
John Pocock para designar os que operam como articuladores da linguagem de uma época,
visando à defesa de interesses e à expressão de determinadas ideias e valores. Foram, portanto,
mediadores da cultura de sua época, pois assumiram, de maneira engajada, posicionamentos
referentes à vida em sociedade, nela desempenhando, a um só tempo, os papéis de atores,
testemunhas e consciências do contexto por eles vivenciado.
Palavras-chave: Revolução – Literatura – Intelectuais.

Abstract: This article intends to examine the impact of Federalistic War on the writer’s ideas in
the context of the Nineteenth Century in the Brazilian state of Parana. It also intends to discuss
the social role of the literati in that society, exploring the magazines as historic sources. The
documental corpus of this work covers the Club Curitibano Magazine (Revista do Clube
Curitibano) (1890-1912) and The Cenacle (1895-1897). Besides theses sources, the analysis
covers biographical works about the main contributors of the magazines already mentioned. We
understand that these writers are "linguistic actors", a term used by John Pocock to designate the
ones who operate as language articulators of an epoch, aimed at defending interests and the
expression of certain ideas and values. Therefore, they were the culture mediators of their time,
since they assumed, in an engaged way, positions concerning life in society, performing on it, at
the same time, the roles of actors, witnesses and consciences of the context experienced by
them.
Keywords: Revolution – Literature – Intelectuals.

Introdução

O presente artigo é desenvolvido no sentido de contribuir para as reflexões acerca


do papel social ocupado pelos literatos, escritores e jornalistas em centros urbanos
brasileiros durante a passagem do final do século XIX para o XX. Também buscamos


Doutora em História– Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências Humanas e
Sociais, Educação e Artes – Mestre em Educação – Programa de Pós-Graduação em Educação - UFPR
– Universidade Federal do Paraná, Campus Reitoria, CEP 80060-140, Curitiba, Paraná - Brasil. Bolsista
CAPES. E-mail: carolmarach@yahoo.com.br.
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refletir a respeito do anseio de alguns escritores em defender o desenvolvimento e o
progresso nacionais no contexto de consolidação da República Brasileira, em cujo
processo a literatura ocupou um papel de destaque.
Por meio da análise de dois periódicos paranaenses, a Revista do Clube
Curitibano (1890-1912)1 e O Cenáculo (1895-1897), foi possível detectar que, após o
episódio conhecido como Revolução Federalista, surge no meio literário curitibano do
final do século XIX a necessidade de se fazer da instância literária aquela que
possibilitaria a regeneração da cultura regional e nacional. A literatura foi vista como a
via que, após um contexto de conflitos, garantiria o progresso nacional pelo intermédio
da cultura.
Em razão de muitos dos escritores locais, alguns deles colaboradores da Revista
do Clube, haverem vivenciado a experiência dos conflitos armados decorrentes dessa
revolução, o episódio figurou em suas obras como uma espécie de trauma social. Do
mesmo modo, contribuiu para a mudança da postura desses agentes com relação ao
tempo vivido, levando-os ao descrédito com relação à República recém-instaurada,
além de levá-los a questionar o futuro que se apresentava paradoxal – de um lado,
permeado por uma atmosfera moderna e tecnológica com novas máquinas
incorporadas ao cotidiano da população; de outro, os conflitos armados que ocorriam
tanto na Europa imperialista como em solo nacional.
Dentro dessa perspectiva, após o término da Revolução Federalista no Paraná, o
núcleo de escritores analisados aqui se distancia das questões políticas partidárias, e
volta-se à literatura, concebendo-a como a instância que seria capaz de afastar a
população dos retrocessos que a impediam de avançar rumo ao seu desenvolvimento
moral e social. Tais agentes também buscaram legitimar-se enquanto literatos e
intelectuais, destacando o papel da literatura no processo de regeneração da pátria. Foi
nesse contexto que a literatura passou, então, a figurar como uma via de
desenvolvimento nacional, de progresso cultural e intelectual nacional.

O contexto revolucionário

Para que compreendamos esse processo que conferiu à literatura importância


social e cívica e promoveu o seu desenvolvimento no âmbito cultural de Curitiba, é
necessário recuperar em linhas gerais a Revolução Federalista que remonta ao contexto
da renúncia do presidente Marechal Deodoro da Fonseca, em 23 de novembro de 1891,

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levando ao poder Marechal Floriano Peixoto. O acontecimento foi criticado por muitos
e serviu para aumentar as tensões entre os diferentes grupos políticos.
No Rio Grande do Sul, a crise se tornara bastante aguda. Desde os tempos
imperiais, a província era governada por liberais chefiados por Gaspar Silveira Martins
(CORRÊA, 2006, p. 65). Em 1888, este foi nomeado pelo imperador presidente da
Província do Rio Grande do Sul.
Uma oposição a essa frente liberal já estava sendo organizada desde 1880, por
Júlio de Castilhos que passara a organizar a Frente Republicana Rio-Grandense,
conquistando o apoio de Deodoro da Fonseca às vésperas da Proclamação da República.
Com a instauração do novo regime, Gaspar Silveira Martins fora exilado e o governo do
Rio Grande do Sul ficou a cargo de Júlio de Castilhos (CORRÊA, 2006, p. 66). Após
uma série de eventos políticos, incluindo uma grande manifestação contra esse
governador, formaram-se, então, duas frentes políticas no Rio Grande do Sul: de um
lado, os federalistas, gasparistas ou maragatos defensores da República parlamentar
liberal, apoiados por pecuaristas da Campanha; de outro, os castilhistas ou legalistas
seguidores de Júlio de Castilhos, defensores do governo de Floriano Peixoto e que
contavam com o apoio dos empresários, pequenos comerciantes e agricultores.
Formalmente, a Revolução Federalista tem como baliza inicial a invasão de uma
coluna de maragatos de Gumercindo Saraiva (1851–1894) ao Rio Grande do Sul, em 5
de fevereiro de 1893. A partir desse estado, os maragatos iniciaram sua rota de invasões
a várias cidades dos três estados do Sul, entre os anos de 1893 e 1895. O historiador
John Charles Chasteen descreve qual seria o objetivo final da “montonera”, grupo de
guerrilheiros montados dos maragatos:

De certa forma surpreendente, dado o tamanho e capacidade do


Exército Brasileiro há apenas sete anos antes da virada do século
vinte, o plano dessa montonera era invadir o subcontinente brasileiro e
fazer o governo capitular. A montonera de Gumercindo Saraiva
apresenta-nos um problema interpretativo. Inevitavelmente, pergunta-
se: Esses homens eram loucos? Por que eles começaram uma guerra
civil sangrenta contra uma força imensamente maior? Como eles
poderiam marchar mil e cem quilômetros através dos estados
brasileiros do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná para
ameaçar, mesmo que por um instante, o governo nacional? Mais
difícil que explicar seu sucesso fugaz [...] é explicar a sua motivação
e, sobretudo, sua resolução para lutar por trinta longo meses,
animados apenas pelas maiores esperanças pouco plausíveis
(CHASTEEN, 1995, p. 9-10 apud SEGA, 2005, p. 97).

É inegável o impacto dessa revolução na produção dos escritores curitibanos,


especialmente em razão de grande parte deles haver participado diretamente das
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campanhas militares, quando a revolução chegou ao Paraná. Na época, a atitude de
muitos letrados de deixarem a pena para pegarem em armas se justifica em razão de
haver um consenso entre eles de que essa atitude representava um sacrifício a ser
realizado em nome da honra e do amor à pátria. Desde seu tempo de juventude,
defenderam acirradamente a causa republicana, como é o caso de Dario Vellozo, Júlio
Pernetta, Sebastião Paraná e Leôncio Correia2. Para tais escritores, as invasões
promovidas pelas tropas de maragatos constituíam um ataque direto à nascente
república, empreendido por forças restauracionistas advindas dos partidos de oposição
ao governo de Floriano Peixoto. Assim, tornava-se fundamental, para aqueles escritores,
abandonar temporariamente seus gabinetes e tomar as armas para defender o novo
regime, servindo de exemplo aos demais cidadãos brasileiros. Nesse contexto, “a
mocidade segue; não mede sacrifícios; quer salvar a República”, afirmara Dario
Vellozo3, alguns anos depois do episódio (VELLOZO, 1904).
Em setembro de 1893, as tropas federalistas adentraram Santa Catarina e
chegaram ao Paraná, onde Floriano concentrou suas forças. Tijucas e Paranaguá foram
conquistadas, mas, na Lapa, um cerco organizado por Gomes Carneiro reteve os
federalistas por 26 dias. Em janeiro de 1894, a revolução chegou a Curitiba.
Na Revista do Clube, comentários e artigos sobre o conflito são, no geral,
bastante esparsos, uma vez que, para se tratar dessa questão, haveria que se mencionar
questões políticas, as quais se procurava evitar tanto quanto possível naquele contexto
revolucionário de censuras e restrições.
Outra maneira de compreendermos esse silenciamento nas páginas da Revista do
Clube e, até mesmo, de outras revistas do mesmo período – que a princípio, deveriam
constituir-se em veículos de expressão de posicionamentos relacionados à Revolução –
é entender esse episódio como um evento extremamente traumático para os escritores e
para a população local. São muitas as investigações a respeito da Revolução Federalista
no Paraná, no entanto, pouco se menciona a respeito das modificações comportamentais
e culturais desencadeadas após o evento. Desse modo, a Revista do Clube e O Cenáculo
são um importante indicador desse aspecto, desafiando-nos a uma nova percepção e
interpretação da história dessa revolução, em uma narrativa que considere as percepções
individuais, silenciamentos e modificações na postura daqueles que vivenciaram esse
período de conflitos.
Renato L. Leite (2012) é um dos historiadores que tem reunido esforços para
compreender o conceito de trauma sob uma perspectiva sócio-histórica, afirmando que
este se refere a um fenômeno que “se recusa a ser representado”, já que a intensidade do
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fato que ocasionou o trauma torna esse mesmo fato impossível de ser lembrado ou
esquecido. Ainda que o passado traumático atraia o interesse historiográfico, torna-se
difícil recuperar seu sentido narrativo, já que ele não o possui e desafia os interessados a
reconstituírem uma narrativa a seu respeito. Para Jörn Rüsen (2009, p. 171):

Uma ‘crise catastrófica’ destrói o potencial da consciência histórica de


processar esse fato através de uma narrativa portadora de sentido. Pois
o trauma desafia e destrói os princípios da geração de sentido e afeta a
coerência da narrativa. Quando isso ocorre, a linguagem do sentido
histórico silencia. Ela torna-se traumática.

Dessa maneira, cabe a nós compreendermos o evento da Revolução Federalista


nas páginas das duas revistas em análise, considerando seus silenciamentos e parcas
expressões, bastante difusas, por vezes desconexas, acompanhadas de grande lirismo e
sensibilidade.
Na Revista do Clube, encontramos um depoimento bastante vívido de Dario
Vellozo que favorece a percepção de como os artistas e literatos locais, de maneira
geral, sofreram com o conflito. Segundo as palavras de Vellozo (1897, p. 5):

[...] aquellas pavorosas scenas a que todos assistimos ou soubemos,


impressionaram fatalmente a alma dos Artistas, baombando-lhes no
coração o responso da Tortura e da Agonia; e se viriam projectar –
fatalmente – na Obra dos Sensitivos e dos Intellectuaes. A revolução
terminara. Mas, a Dor ficara vibrante na alma nacional; e a Dor faria
evocar no coração do Artista os sinistros espectros do Desespero e da
Morte.

No mesmo artigo, o autor continua afirmando que

[...] a revolução vibrou-nos violentamente o organismo, acordando-


nos sentimentos nobres e indignos, há muito sustado no coração
Brazileiro. Houve actos de heroísmo e valor de abnegação e caridade,
de amor fraternal [...] (VELLOZO, 1897, p. 5).

Assim, a Revista do Clube, a partir de sua segunda fase4, inaugurada no início de


1894, no momento em que as tropas de Gumercindo Saraiva ainda cercavam Curitiba,
assumiu a função de porta-voz de novos discursos, acentuadamente literários e
melancólicos. Consequentemente, o periódico distanciou-se cada vez mais das
amenidades e do entretenimento, marca característica de sua primeira fase, passando a
não mais estar voltado, prioritariamente, às senhoras da sociedade curitibana, mas aos
artistas e àqueles cuja sensibilidade despertara para um tempo de mal-estar, de
silenciamentos e de angústias.

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Muitos estudos, que têm como foco principal a cultura paranaense do início do
século XX, trabalham com a hipótese segundo a qual os escritores, tais como os que
colaboravam para o periódico em análise, assumiram uma postura de alienação quanto à
instância política após o conflito armado.5 No entanto, acreditamos que o fato desses
escritores haverem se voltado exclusivamente para a literatura não deva ser
compreendido como uma postura de alienação com relação ao meio político. Parte do
silenciamento em relação às questões desse meio revela, primeiramente, que mesmo
passada a revolução, o contexto ainda era de tensões, temores e censura. Também
exprime certa desilusão para com o regime recém-instaurado, defendido por eles tão
arduamente na década anterior. Quem menciona essa hipótese é José Murilo de
Carvalho (1987, p. 37), para quem a República, depois de despertar uma grande
expectativa inicial, acabou por frustrar muitos intelectuais, levando-os a se concentrar
na literatura, criando para si próprios uma “República das Letras”.
A morte de Floriano Peixoto, em 1895, foi outro episódio emblemático para
muitos letrados, levando em conta que viram nesse personagem a força para a
consolidação da República no país. Sua morte, logo após a Revolução Federalista,
foi o “trágico símbolo do fracasso de uma alternativa política”, como bem explicou
José Murilo de Carvalho (1987, p. 26), motivando o afastamento de vários
entusiastas republicanos da seara política partidária.
Para aqueles escritores, a literatura tornou-se, então, uma possibilidade de
intervenção social, ainda que de maneira indireta, passando a ser concebida como uma
via de desenvolvimento nacional, de progresso cultural e intelectual de um povo.
No ano de 1894, quando as tropas de Gumercindo Saraiva tinham recém-deixado
Curitiba, Dario Vellozo, em um de seus artigos, expõe a situação da literatura
paranaense, cuja função social seria a de difundir a cultura de sua sociedade, ainda que
esta estivesse devastada. Em suas palavras:

A literatura é o mais delicado e preciso thermometro de civilização.


Por meio dela se reconstróe toda uma phase morta, toda uma época
irremediavelmente perdida. A perversa ambição dos aventureiros e
dos agiotas, e a bruptal ignorância demolidora dos medíocres podem
completar o bárbaro attilismo [...], devastando, destruindo as
maravilhas da Architetura, da Eschulptura e da Pintura; A Litteratura,
porem, atravessa as derrocadas, caminha com as gerações humanas,
perpetuando o passado, reconstituindo-o – soffra embora o insulto dos
ímpios dos fanáticos (VELLOZO, 1894, p. 1).

Nesse artigo de Dario Vellozo, chama-nos a atenção os vocábulos de forte


impacto como “reconstrução”, “brutal ignorância demolidora”, “devastação” e outros
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que nos remetem diretamente ao conflito vivenciado por aqueles escritores. Publicado
pela Revista do Clube, esse artigo torna-se a expressão do próprio periódico em sua
nova fase. Nele, fica explícito o entendimento da literatura como instância que
permitiria a reconstrução nacional, bem como o desenvolvimento das artes e da cultura,
resgatando-as da destruição ocasionada pela guerra. Escrever tornou-se, então, um ato
de civismo.

O Cenáculo: a literatura na reconstrução nacional

Como expressão do contexto pós-revolucionário, surgiu a revista O Cenáculo,


que tinha relação direta com a Revista do Clube, afinal, os fundadores da primeira
conheceram-se nos salões e biblioteca do Clube Curitibano. O periódico, que circulou
entre 1895 e 1897, tinha como redatores Dario Vellozo, Júlio Pernetta, Silveira Neto e
Antônio Braga, todos partícipes de um grupo de debates literários mais antigo, também
chamado Cenáculo6, que se reuniu pela primeira vez em 1893. Cada número da revista
apresentava “[...] dezesseis páginas, em forma de livro, contendo uma ilustração em
cada número” (NETO, 1895, p. 2).
O periódico tinha por objetivo reunir escritores para debater ideias, organizar um
ambiente cultural e manter o intercâmbio entre eles. Nasceu da proposta de despertar a
sociedade de sua época para a literatura, que ressurgia como uma reação de paz à
Revolução. Descreveu Dario Vellozo (1894, p. 1):

[...] o terminar da lucta que alarmara o Paiz, ia entrar o Cenaculo em


phase mais brilhante, ia a Litteratura iniciar outro período. De facto,
notou-se para logo a reação trazida pela Paz. Tinhamos todos, porem,
a abantesma do pezar profundo a penumbrar-nos a Idea; eramos todos
muezzins da Angustia e da Saudade.

Era claro para aqueles escritores que sem o desenvolvimento das artes e das
letras, não haveria progresso moral ou social. Por isso, a proposta de O Cenáculo era de
constituir-se na expressão dos que elegeram a literatura como via fundamental para a
reconstrução do país após o período revolucionário e que objetivavam promover o
reavivamento do âmbito literário no Paraná. Um dos desafios a ser enfrentado pelo
grupo seria o de despertar a sociedade considerada indiferente às produções literárias.
No primeiro número de 1896, o editorial de periódico lança-se ao seguinte desafio:

Queremos o auxilio e apoio dos que labutam valorosamente para que


o Paraná se não conserve alheio ao movimento scientifico literario do

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Brazil, para que o Paraná tenha litteratura, para que o Paraná reaja
contra a fratricida inercia do indifferentismo sem nervos [...]; reagindo
contra o derrocar de nossas tradições, contra o cosmopolitismo que
nos avassala, que nos corrompe, que nos esmaga e destroi (O
CENÁCULO, 1896, p. 5).

Aqui, a palavra “cosmopolitismo” surge dotada de seu sentido negativo, como


uma tendência dos novos tempos a ser combatida em defesa de uma tradição e
identidade do povo brasileiro. “Cosmopolitismo” figura ao lado do “indiferentismo sem
nervos” da sociedade da época com relação às produções literárias, sendo O Cenáculo o
periódico que iria se opor às tendências que se anunciavam naquele novo tempo,
defendendo e divulgando a literatura local como expressão genuína da cultura nacional.
Mesmo antes disso, os poemas, artigos e notas da Revista do Clube, de 1894 a
1900, já revelavam um explícito ressentimento em relação ao pequeno público que
apreciava as obras literárias e com o lugar que seus escritores ocupavam na sociedade
daquele contexto. Essa queixa pode ser observada desde os anos iniciais da República,
quando a literatura, era um negócio de poucos que interessava a poucos, para fazer
alusão a uma das expressões de José Veríssimo, escritor e jornalista carioca do período.
Em razão, principalmente, do analfabetismo crônico, a ação dos literatos e escritores
mantinha-se bastante restrita ao círculo formado por uma elite letrada, a qual se
mostrava cada vez menos aberta às produções artísticas e literárias em razão do
crescimento do mercado de entretenimento, uma tendência dos tempos modernos.
Além disso, as transformações técnicas e nos meios de comunicação nos
principais centros urbanos do Ocidente impactaram fortemente sobre as produções
literárias desse período. Como explica Sevcenko (1983, p. 97):

O novo ritmo da vida cotidiana eliminou drasticamente o tempo livre,


necessário para a contemplação literária. A diminuição do tempo, a
concorrência do jornal diário, do livro didático, da revista mundana e
dos manuais científicos, de par com as novas formas tecnológicas de
lazer, o cinematógrafo, o gramofone e a fotografia estreitaram ao
extremo o papel da literatura.

Tal fato, acreditamos, dificultou o desenvolvimento mais amplo da literatura


independente – especialmente com relação ao mercado e ao consumo – em centros
menores, como a cidade de Curitiba. São várias as passagens na Revista do Clube que
apontam para um “[...] indifferentismo por tudo quanto é elocubração do espírito, deste
nosso público que dá mais preferência a uma fatia de gruyéres e a um copo de cerveja
do que às produções intellectuaes da mocidade laboriosa” (REVISTA DO CLUBE,
1891, p. 5). Portanto, ao se mencionar a condição dos escritores e literatos, a palavra

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indiferença tornara-se lugar comum para descrever a sociedade na qual estavam
inseridos, sociedade que, em tese, não poderia “[...] comprehender os gosos moraes que
produzem os labores litterarios” (REVISTA DO CLUBE, 1891, p. 2-3).
Um dos maiores ressentimentos desses escritores dava-se com relação à lógica de
mercado e de consumo. Diante da perspectiva de traduzir sua produção em termos desse
novo valor preponderante, estranho à esfera artística, muitos dos escritores buscaram
estabelecer uma carreira paralela, já que viver da literatura era um desafio, e quem
escrevia teria, conforme as palavras da época, “[...] essa mania e sem outro lucro a não
ser o odio dos pedantes cheios de si. Não há leitores, mas não faltam detractores. A
burguezia rotineira condemna-o [o escritor] logo como estonteado [...]”
(MONTARROYOS, 1891, p. 3-4, grifo do autor).
Outro colaborador anônimo da revista afirma que:

[...] em um paiz novo, como é o nosso, a litteratura só póde ser


cultivada por decidida vocação. Ainda não tivemos noticia de que
houvesse, entre nós, quem pudesse viver: professando-a. Por isso, as
producções se resentem da falta de bons moldes por onde se possão
inspirar (REVISTA DO CLUBE, 1891, p. 2).

Por essa razão, escritores como os da Revista do Clube ocuparam aquilo que
Rosane Kaminski (2010) chamou de “espaços híbridos de atuação profissional que
surgiram com a expansão da imprensa”. Fizeram-se jornalistas, atuando em diferentes
veículos de comunicação e, a partir da década de 1900, houve uma grande concentração
deles no magistério, especialmente, nos quadros docentes das principais instituições de
ensino público da capital (MARACH, 2007).
Com relação ao fato de escrever para o mercado, essa questão nem sempre foi
aceita ou bem vista. Não se pode dizer que foi uma postura assumida por todos os
escritores que colaboraram com a Revista do Clube, podendo-se, até, afirmar que se trata
de uma condição assumida por uma minoria. No mesmo artigo já citado anteriormente,
seu autor critica aqueles:

[...] auctores que, na maioria das vezes querem ganhar dinheiro


vendendo o seo trabalho, preparão a cousa á feição do apetite dos que
a vão consumir; e auxiliados por socios, mandão para os jornaes meia
duzia de artigos, de sensação (REVISTA DO CLUBE, 1891, p. 2).

Segundo o mesmo autor, entregar-se ao mercado levaria à “[...] animalização da


nobre atividade [literária]” e conclui que

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[...] é por isso que a jornada é cruel para os que se dedicão aos labores
de uma literatura, limpa dessas intenções mercantis; é por isso que
temos visto muitas d’essas vocações, em flor, tombarem desanimadas,
em caminho (REVISTA DO CLUBE, 1891, p. 2).

Manifestando-se contra a indiferença pública, os escritores analisados passaram a


buscar maior espaço social e reconhecimento, sendo O Cenáculo uma expressão desse
anseio. Enquanto reação artística, o periódico foi considerado, na época, “[...] uma
ousadia literária, [...] uma nota rubra de protesto contra a indiferença parva d’essa
gentalha pesada e insensível á picada da Arte” (REVISTA DO CLUBE, 1895, p. 3). A
própria bibliografia contemporânea sobre o tema considera a revista “[...] o primeiro
esforço de os escritores do Paraná direcionado na busca de uma expressão local e do
intercâmbio cultural para que o estado figurasse na república das letras” (BALHANA et
al., 1991, p. 62).
Se o primeiro número de O Cenáculo data de 1895, é importante destacar,
novamente, que o grupo iniciara sua formação dois anos antes. Um depoimento bastante
completo de sua formação e consolidação foi publicado na Revista do Clube, entre 1894
e 1895, de autoria de Silveira Neto. Nele, o autor menciona seus primeiros contatos com
letrados como Dario Vellozo e os outros escritores. Reunidos, passavam “[...] horas
inteiras manuseando livros, discutindo questões de musculos e de intelligencia,
estabelecendo planos de trabalho e sonhando” (NETO, 1894, p. 2-3). Das primeiras
leituras comuns ao grupo, Silveira Neto refere-se a Bilac, Zola, Bourget e Luiz Murat,
que era especialmente admirado. Desde o início, esses escritores se reuniram com o
objetivo de “[...] collocar na reluzente ponta da espada uma penna de escrever e com
ella, durante o symetrico assalto traçar estrophes em niveo de pergaminho” (NETO,
1894, p. 2).
Ainda no ano de 1893, os integrantes de O Cenáculo (Julio Pernetta, Dario
Vellozo e Leôncio Correia) criaram a revista Azul, periódico quinzenal no formato de
oito páginas. Além dessa revista, o grupo também se reunía em palestras e conferências
literárias cujo: “[...] thema era tirado á sorte, sobre litteratura, sciencias e artes, e o
designado para a tribuna levantava-se com a intuição do latente valor d’esse trabalho,
tomava uma cadeira, colocava-a em sua frente e falava” (REVISTA DO CLUBE, 1895,
p. 2).
Com a chegada do ano revolucionário de 1893, tanto a revista Azul como a
Revista do Clube foram suspensas. Mantiveram-se apenas as reuniões, palestras e
conferências entre os integrantes de O Cenáculo. Na época, Dario Vellozo havia recém
participado de campanha militar como tenente da infantaria da Guarda Nacional, cujo
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posto deixara por se achar gravemente enfermo. Passou a residir no Retiro Saudoso nas
próximidades de Rio Negro, “longínqua chácara [...] longe dos rumores importunos da
cidade” (NETO, 1894, p. 2).
Como já mencionado, as tropas federalistas ocuparam Curitiba de janeiro a maio
de 1894. Nesse último mês da revolução em Curitiba, retornou à capital Júlio Pernetta
acompanhado das tropas militares que adentraram a cidade em cinco de maio, recebidas
com grande festa pela população (CORREIA, 1942). Pernetta também acabou
integrando o grupo de O Cenáculo e conferiu às produções dessa agremiação um maior
tom de melancolia e misticismo, por trazer, segundo Dario Vellozo (1897,p. 5), “[...] o
esquife de tantas angústias, de tantas mizerias”.
Assim, o grupo já completo se consolidou e, conforme relata Silveira Neto:

[...] começamos a dar ao nosso gremio, de quatro pessoas, o nome


definitivo de Cenáculo e, aos poucos, estabelecemos energicas normas
de trabalho para que, longe do bruhaha político, divorciados do rumor
da multidão, podessemos adiantar a perfectibilidade do espirito e do
sentimento, accumulando quotidianamente solido capital grandioso de
illustração e exemplos (NETO, 1895, p. 2, grifo do autor).

No trecho, Silveira Neto deixa transparecer a necessidade desses escritores de se


distanciarem de questões políticas partidárias em um período posterior à Revolução.
Como já destacamos, o episódio contribuiu para que assumissem uma luta provida,
antes, de um caráter ideológico, propondo-se a instaurar no Paraná uma tradição
literária. Era claro para aqueles escritores que, sem o desenvolvimento das artes e das
letras, não haveria progresso moral ou social. Por isso, sua proposta de intervenção
social era clara: pretendiam se tornar porta-vozes de um novo tempo para o estado, que,
dentro dessa pespectiva, urgia o desenvolvimento de seu âmbito artístico-cultural.
Colocaram-se à frente desse projeto, afirmando-se guias que conduziriam a população
aos patamares da civilização, aos moldes das nações europeias. Esse aspecto fica
bastante evidente em uma passagem de Dario Vellozo em um dos números de 1897, da
Revista do Clube. O escritor afirma:

Num fim de século, como este, pavoroso e sinistro, em que a Flor do


Ideal pende fanada sobre um Lethys de indiferentismo, em que as
nobres e supernas aspirações da alma humana caem cerceadas [...]
urdindo a intriga do desprezo contra os raros que ainda estudam; em
que a grande e innumera comunidade dos sensitivos e passionais
parece sufocada pelo positivismo pratico dos devotos do deos Milhão;
– faz-se urgente a palavra inspirada dos levitas da Arte, procurando
elevar acima da vaza das paixões deprimentes a alma obcecada, a
alma vencida de toda uma geração extraviada nos labyrinthos da
indiferença. E só o conseguiremos arrancando a letargia o coração dos
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homens com imprecações dilacerantes, para depois apontar-lhes esse
amanhan indefinido [...] (VELLOZO, 1897, p. 5).

Nessa passagem, fica evidente o papel social que Dario Vellozo confere ao
escritor como o de “acordar” a sociedade de sua “letargia” e de lhe apontar uma direção
no “amanhan indefinido” em um momento que todos pareciam estar regidos pelo “deos
Milhão”, ou seja, pela lógica do mercado. Também fica bastante explícita a posição que
Dario Vellozo delega a si próprio e aos seus pares, como aqueles capazes de apontar um
caminho com relação ao futuro nacional.
A concepção de intelectual beletrista como um guia da nação ou, ainda, como
alguém superior à sua sociedade, encontra-se permeando muitos dos discursos das duas
revistas em análise. Em uma das passagens, de 1891, o colaborador Elyseu de
Montarroyos, ao defender a produção intelectual de seu período indaga:

Mas tambem como poderá uma sociedade ignorante e pretenciosa


compreheder um espirito superior a toda ella? Como podem a nossa
burguezia e os nossos superficiaes comprehender a illustração, a
independencia e a abnegação d’esses [...] vultos que se destacam do
resto d’essa sociedade atrasada? (MONTARROYOS, 1891, p. 3.).

Júlio Pernetta, em 1894, na mesma linha, afirmara que são loucos “os homens
que fazem verso”, porque incompreendidos (PERNETTA, 1894, p. 1). Complementa
que:

Loucos são todos aquelles que atravessam a vida incomprehendidos,


porque o mundo é myope para poder exergar a grandeza luminosa dos
astros, e muito ignorante para [...] comprehender a magestade sublime
de uma estrophe. Como eu te admiro, sublime loucura (PERNETTA,
1894, p. 1).

Afora a importância conferida à literatura naquele contexto, é preciso considerar,


também, outras motivações que permearam discursos de enaltecimento da figura do
literato como o da passagem acima. Em decorrência de certo desinteresse público e, de
outro lado, do analfabetismo da sociedade na qual estavam inseridos, esses escritores
buscaram se valorizar, ainda que apenas perante os próprios pares. De modo a romper
com o indiferentismo, e, de maneira a não se sentirem marginalizados socialmente,
tratam, a todo o modo, de valorizar a literatura, defendendo que a atividade
corresponderia a uma missão de beleza, de justiça ou de patriotismo, como se à
literatura coubesse a tarefa de reconstrução nacional.
Antonio Cândido (1981, p. 26), ao analisar o papel dos escritores românticos no
período posterior à Independência, afirma que estes delegam a si aquilo que o autor

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chamou de “a missão do vate”. Cândido explica que “[...] os poetas se sentiram sempre
mais numas fases que noutras, portadores de verdades ou sentimentos superiores aos
dos outros homens.” E, observa que, o literato “ama e maltrata a multidão”, já que
incompreendido por ela. É aquele que se posiciona acima das classes e,
consequentemente, sente-se impelido a assumir a missão de guia das massas, como
dever poético em relação aos outros homens. E, de fato, era esse sentimento que se
encontra presente em muitos artigos da Revista do Clube e de O Cenáculo, quando
tratam da questão do literato. Um dos colaboradores da revista, Cunha Brito, em 1890,
já mencionava em um artigo póstumo que:

Está verificado que foram os cultivadores do bello que realizaram,


sem violencia nem perfidia, a grande revolução moral e intellectual de
que sahiram victoriosos os principios da civilisação moderna. Os
cultivadores do bello são incontestavelmente os iniciados na arte de
eternisar a virtude, a illustração e os grandes feitos de heroismo da
Humanidade; a elles está confiada a honrosa tarefa de serem os fieis
interpretes dos nossos merecimentos e das nossas glorias perante o
futuro (BRITO, 1894, p. 5).

Está clara nessa passagem a ideia de literato enquanto defensor dos valores e
princípios morais e éticos de sua sociedade. Ainda, destaca-se o papel desse agente
como o daquele que transmite às gerações futuras os grandes feitos heroicos da
Humanidade, como sendo, então, um perpetuador de memórias do passado.
Não por acaso, esse artigo de 1890 foi publicado logo após o findar da Revolução
Federalista, momento em que os escritores das revistas em análise voltaram-se à
instância literária, empregando seus esforços de modo a promovê-la. Dario Vellozo foi
um dos maiores entusiastas da literatura de sua época, afirmando ser possível, por
intermédio dela, o recontruir de “[...] toda uma phase morta, toda uma época
irremediavelmente perdida” (VELLOZO, 1894, p. 1). A própria revista O Cenáculo,
periódico acentuadamente literário, surgira como uma reação à época revolucionária.
Em outra passagem, Cunha Brito vislumbra:

Os factos confirmam a prophecia... a nova era litteraria não tardará


muito... Antes do seculo XX subirão as lettras mais uma
transformação progressiva, que imprimirá á litteratura nacional um
outro cunho, – sadio ou dolente, – porem menos ataviado e mais
humano... É preciso que o Paraná se lhe não conserve alheio e
silencioso. [...] Só pelo sábio desenvolvimento das faculdades do
intellecto pode o homem chegar á nitida comprehensão de seos
destinos na sociedade. E para o desenvolvimento dessas faculdades
muito contribue a litteratura [...] (BRITO, 1894, p. 5).

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Por essa razão, é fundamental entender as produções da Revista do Clube e de O
Cenáculo, além de outras que surgiram na sequencia, como a revista O Fanal, como
expressão de uma literatura que carrega, tacitamente, a ideia do recontruir a cultura de
uma época e da necessidade de reconhecimento social desses literatos, ainda que a
mesma mensagem não se faça explícita ao leitor contemporâneo. Muitos artigos, dentre
poemas, contos e crônicas, são verdadeiros jogos de significados, bastante complexos e
difusos, que tratam de subjetividades e narrativas cujas mensagens podem, por vezes,
dissimular seu sentido principal. No entanto, de maneira geral, expressam a grande
melancolia de seus escritores diante de um fututo incerto, escritores que se sentiam
imbuídos de uma bela e rara missão civilizadora, a de reconstruir a identidade cultural
de seu país por intermédio da expressão de sua subjetividade literária. Partia-se do
pressuposto de que era preciso desenvolver a literatura para viabilizar o
desenvolvimento moral do povo brasileiro. Era necessário, ainda, valorizar o literato,
pois ele seria o agente responsável por guiar a população nesse processo de
desenvolvimento intelectual e cultural.

O literato como intelectual

Em razão da discussão acima apresentada, entendemos os escritores e


colaboradores da Revista do Clube e de O Cenáculo como atores linguísticos, noção é
apresentada por John Pocock (2003). O ator linguístico é aquele que articula a
linguagem7 de sua época, visando à expressão de determinadas ideias e valores. Um
autor é tanto expropriador, tomando a linguagem de outros e usando-a para seus
próprios fins, quanto inovador que atua sobre a linguagem de maneira a induzir
momentâneas e duradouras mudanças na forma como ela é usada (POCOCK, 2003, p.
29).
O escritor é, também, um mediador da cultura de seu contexto, ou seja, um
intelectual, noção discutida por Jean-François Sirinelli (2003, p. 242). Para esse autor, o
vocáculo intelectual apresenta, pelo menos, duas acepções: “[...] uma ampla e
sociocultural, englobando os criadores e os ‘mediadores culturais’ e a outra mais
estreita, baseada na noção de engajamento”. Se para nós, está claro que os escritores dos
periódicos analisados são mediadores culturais – uma vez que a própria noção de ator
linguístico nos favorece essa percepção – a ideia de intelectual engajado, discutida por
Sirinelli, também, possibilita-nos esclarecer alguns aspectos da conduta desses
escritores, no âmbito de seus posicionamentos e da intervenção social enquanto
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literatos. Para o autor já citado, o intelectual engaja-se na vida social assinando
manifestos, publicando artigos em jornais e revistas, quando não é o próprio
responsável pela circulação dos mesmos.
Também reivindicam para si um papel de relativa superioridade com relação à
população, entendendo-a como um corpo social que necessitaria, em tese, de sua tutela
moral e intelectual. No caso dos escritores cujos discursos foram analisados a partir da
Revista do Clube, estes empregam seus esforços no sentido de recuperar a sociedade
devastada após a crise decorrente da Revolução. Nesse sentido, a importância da
literatura advém de sua função social e educativa, constituindo-se na instância que
garantiria o desenvolvimento intelectual do povo brasileiro.
Ainda com relaçãoà importância propriamente da literatura, ao defendê-la, tais
escritores estariam buscando se legitimar enquanto intelectuais, assegurando para si um
dado papel social que lhes conferia notoriedade pública e que os salvaguardava dos
oponentes, indiferentes ou detratores. Um caso que exemplifica essa questão é o
posicionamento assumido pela Revista do Clube e por seus colaboradores com relação
ao Caso Dreyfus (Affaire Dreyfus). O episódio constituiu-se na acusação do oficial
francês Alfred Dreyfus pelo governo da França como sendo responsável por uma ação
de espionagem em colaboração com o Reich Alemão. Em um momento de uma forte
onda antissemita francesa, Dreyfus foi o “traidor ideal” por ser, ao mesmo tempo, judeu
e alsaciano (região francesa ocupada pela Alemanha em 1871). Em defesa do oficial
acusado, o escritor francês Émile Zola requereu a revisão do processo, revisão que
importaria no descrédito das altas patentes do exército francês. O escritor, na ocasião,
também publicou, dentre outros documentos, o Manifesto dos Intelectuais, convocando
todos aqueles que se viam inseridos nessa categoria a lutar não apenas pela justiça
daquele caso, mas também pelos valores morais e políticos tomados como causas
universais, como a justiça, a verdade e a liberdade.
De acordo com Michel Winock (1997), é justamente durante o Caso Dreyfus que
o termo intelectual é inaugurado em seu sentido contemporâneo. Embora cada
sociedade, em diferentes épocas e regiões, pudesse contar com seu grupo de “artistas”,
“literatos”, “poetas”, “beletristas” dentre outros nomes, foi somente durante a época
contemporânea que se deu o surgimento da alcunha intelectual para designar um grupo
específico. Esse processo, que culminou com a elaboração do Manifesto dos Intelectuais
em 1898, fora resultante do desenvolvimento das forças produtivas, da formação da
sociedade civil, da organização do aparelho administrativo burocrático estatal e da
difusão do ensino público, primeiramente na Europa, e, depois, nas demais regiões do
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Ocidente (NEUNDORF, 2009). Assim, a aplicação do termo intelectual, no contexto do
Caso Dreyfus, indica uma maior participação dos intelectuais na cena pública, como
integrantes de um grupo cuja identidade se forma atrelada à participação social desses
agentes, bem como ao seu poder de intervenção na esfera pública e à responsabilidade
que tais intelectuais delegam a si mesmos de servir à sociedade de sua época como
porta-vozes de ideias e discursos (VIEIRA, 2001).
No Paraná, esse processo de torna bastante evidente com a luta assumida pelos
escritores locais em busca de legitimação e de um espaço próprio, qual seja, a literatura.
À época do caso francês, os colaboradores da Revista do Clube prestaram homenagens a
Èmile Zola, além de realizarem uma sessão, presidida por Emiliano Pernetta, em 20 de
março de 1898 no salão principal do Clube Curitibano, em solidariedade ao escritor
francês. Na Ata dessa sessão, ficou:

[...] resolvido que uma commissão de poetas e jornalistas se dirija por


carta a Emilio Zola, applaudindo a sua dignificadora attitude em o
processo Dreyfus. Assim fica definida a attitude da mocidade
intellectual Paranaense [...] (ATA DA SESSÃO DO CLUBE DE
20/03/1898, 1898, p. 1).

A adesão daqueles escritores à postura de Zola perante o caso demonstra,


primeiramente, o tamanho interesse desse grupo de escritores pelas questões políticas
europeias, buscando, a todo tempo, estar em sintonia com o que ocorria além-mar. Além
disso, evidencia a busca daqueles escritores por legitimidade enquanto intelectuais e a
necessidade de serem reconhecidos enquanto tais em sua luta por valores éticos e
universais. Ser intelectual passou a representar, portanto, um modo de conduta perante a
sociedade na passagem do século XIX para o XX.
A postura do intelectual francês, que, em um sentido figurado, deixou seu
gabinete e pena para assumir um posicionamento combativo e de intervenção direta em
sua sociedade, serviu de modelo para muitos dos escritores da Revista do Clube,
especialmente entre aqueles que, além de lutarem pelo desenvolvimento artístico e
literário do estado, lançaram-se na defesa de outras causas, como o anticlericalismo e o
desenvolvimento da Instrução Pública no estado, aspectos que permearam seus
discursos datados do último decênio do século XIX e o primeiro do XX.

Considerações

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No presente artigo, propusemo-nos a analisar os discursos presentes em dois
periódicos, a Revista do Clube (1890-1912) e O Cenáculo (1895-1897) que circularam
em Curitiba, capital do Paraná, no final do século XIX. Neles, encontramos um rico
material que nos permite identificar a concepção dos redatores e colaboradores das duas
revistas com relação à função social do literato, bem como a defesa de seus interesses,
seus principais objetivos e suas queixas frente à sociedade de sua época. Ao longo das
análises, pudemos verificar que a Revolução Federalista, episódio desencadeado no ano
de 1894 no Paraná, foi responsável por uma transformação cultural mais profunda,
expressa na postura e na produção dos letrados e escritores paranaenses do período,
transformação evidenciada nos discursos da segunda fase da Revista do Clube e na
criação da revista O Cenáculo. Considerando que muitos desses escritores participaram
diretamente dos conflitos armados decorrentes daquela revolução, o episódio foi
responsável por ocasionar um trauma social, levando tais agentes a repensarem sua
atitude com relação à própria nascente república e à própria sociedade. Com vistas ao
desenvolvimento cultural nacional, elegeram a literatura como via de intervenção social
já que partiam da premissa de que sem o desenvolvimento artístico-literário não haveria
progresso moral do povo brasileiro. Nesse processo, buscaram, ao mesmo tempo,
legitimar-se enquanto literatos e intelectuais, assumindo para si próprios o papel de
agentes responsáveis por guiar a população no processo de desenvolvimento intelectual
e cultural. A partir de então, engajaram-se em diferentes causas, como o próprio
anticlericalismo, assinando manifestos, constituindo sociedades e criando jornais de
modo a garantir a circulação de seus discursos e a viabilização de seus interesses.

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MONTARROYOS, Elyseu. Trepação. Revista do Clube, Curitiba, ano 2, n. 17, p. 3-4,
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1894.
______. O Cenáculo. Revista do Clube, Curitiba, ano 5, n. 19, p. 2, 15 dez. 1894.
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______. O Cenáculo. Revista do Clube, Curitiba, ano 6, n. 4, p. 2, 28 fev. 1895.
______. O Cenáculo Revista do Clube, Curitiba, ano 6, n. 5, p. 2, 15 mar. 1895.
______. O Cenáculo. Revista do Clube, Curitiba, ano 6, n. 6, p. 2-3, 31 mar. 1895.
O CENÁCULO, Curitiba, t. 2, p. 5-7, jan. 1896.

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PERNETTA, Júlio. Cartas Abertas. Revista do Clube, Curitiba, ano 5, n. 10, p. 1-2, 31
jul. 1894.
REVISTA DO CLUBE.
Revista do Clube, Curitiba, ano 2, n. 3, p. 2, 15 fev. 1891.
Ephêmeras. Revista do Clube, Curitiba, ano 2, n. 4, p. 2-3, 15 fev. 1891.
Reticências. Revista do Clube, Curitiba, ano 2, n. 8, p. 5-6, 30 abr. 1891.
Revista do Clube, Curitiba, ano 2, n. 17, p. 3, 15 set. 1891.
Revista do Clube, Curitiba, ano 5, n. 9, p. 1, set. 1894.
Chronica. Revista do Clube, Curitiba, ano 6, n. 15, p. 3, 15 ago. 1895.
VELLOZO, Dario. Pela Literatura. Revista do Clube, Curitiba, ano 5, n. 9, p. 1-2, 15
jul. 1894.
______. Bronzes. Revista do Clube. Curitiba, ano 8, n. 9, p. 5-6, set. 1897.
______. Obras. Curitiba: Instituto Neo-Pitagórico, 1969.
______. Da tribuna à imprensa. Curitiba: Myrto e Acácia, 1915. (Capítulo: Pátria e
República. Conferência realizada em 29 de 1904. Publicada em opúsculo).

Notas

1
A Revista do Clube Curitibano, periódico que surgiu em um momento de desenvolvimento econômico
do estado do Paraná, contou, em seu corpo de redatores e colaboradores, com literatos, jornalistas e
professores de expressiva produção na imprensa diária local, sendo que a maioria possui, além de
artigos, obras e publicações que lhes conferem destaque no âmbito da cultura paranaense da passagem
do final do século XIX e início do XX. Dentre eles, estiveram os nomes de Agostinho Ermelino de
Leão, Dario Vellozo, Emiliano e Júlio Pernetta, Leôncio Correia, Silveira Neto, Antônio Braga,
Sebastião Paraná e Francisco Ribeiro de Azevedo Macedo. Diferentemente de outros periódicos da
mesma época, a Revista do Clube buscou manter-se à distância das questões políticas, o que favoreceu
sua estabilidade ao longo de uma década.
2
Sebastião Paraná, que já havia lutado na Revolta da Armada no exército de Benjamin Constant, foi
também capitão da reserva do Exercito Nacional durante a Revolução Federalista. Dario Vellozo,
igualmente ao lado dos legalistas, serviu como Tenente do 6º batalhão de Infantaria da Guarda Nacional
(de setembro de 1893 a abril de 1894). Leôncio Correia e Júlio Pernetta também lutaram ao lado da
legalidade na cidade da Lapa, tendo esse último integrado o batalhão 23 de Novembro (CORRÊA,
2006, p. 128; BALHANA et al., 1991, p. 365).
3
Dario Vellozo foi o diretor literário da Revista do Clube entre os anos de 1894 e 1900. Desde os 15
anos, iniciou-se no ramo da produção de impressos na Capital Federal. Aos 16 anos, assumiu o cargo de
compositor de tipógrafo na oficina Moreira Maximino e Companhia. Segundo relato de época, escolheu
essa profissão em razão de seu “[...] pronunciado gosto pelas letras, manifestado ainda na infância, [...]
concorrera por certo para levá-lo á fecunda arte de Guttemberg” (NETO, 1895, p. 2-3). Em 1885, seu
pai o trouxe para Curitiba onde não tardou a se integrar ao grupo de letrados da capital. Deu
continuidade à sua atuação como tipógrafo, assumindo a função na oficina do jornal Dezenove de
Dezembro.
4
Consideramos que a Revista do Clube possui três fases bastante distintas entre si. A primeira delas, entre
1890 e 1893, apresentou uma linha editorial voltada aos interesses da elite letrada curitibana,
abrangendo temáticas voltadas ao entretenimento, curiosidades, artigos cômicos entre outras
amenidades. A segunda que data do início de 1894 até 1900 apresenta uma linha editorial
acentuadamente literária simbolista. A terceira fase, mais efêmera, do biênio de 1911 -1912, é mais
embativa, apresentando assuntos polêmicos como artigos feministas, alguns críticos com relação ao
governo e a sociedade de época, além de produções literárias. Cabe destacar que na própria revista essa
periodização encontra-se sinalizada, trazendo em seu cabeçalho a insígnia “segunda epocha” ou
“terceira época”.
5
Sobre essa hipótese, ver os trabalhos de Bega (2001) e Queluz (1994).
6
Formado desde 1893 por Dario Vellozo, Silveira Neto, Antônio Braga e Júlio Pernetta, o grupo
mantinha reuniões periódicas. Com o passar do tempo recebeu a adesão de novos integrantes como
Rocha Pombo, Leôncio Correia, Domingos Nascimento e Tito Vellozo e iniciou a elaboração de uma
revista de mesmo nome.

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7
De acordo com John Pocock (2003), um dos precursores dos estudos nessa área pela Universidade de
Cambridge, discursos do passado são expressão de um contexto político, social ou histórico, no interior
do qual a própria linguagem se situa. Por isso, a linguagem está diretamente relacionada à experiência
da qual ela provém, fazendo alusão a instituições, autoridades, configurações sociais, valores e
acontecimentos. Dessa forma, prescreve o contexto dentro do qual ela própria deverá ser reconhecida
(POCOCK, 2003, p. 37).

Artigo recebido em 14/08/2013. Aprovado em 11/11/2013.

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REGENERAÇÃO E DECADÊNCIA:
HISTÓRIA, LITERATURA E OS USOS DO PASSADO E DO
PRESENTE NO PORTUGAL OITOCENTISTA

REGENERATION AND DECADENCE:


HISTORY, LITERATURE, AND PAST AND PRESENT USES IN
NINETEENTH PORTUGAL

Cássia Daiane Macedo da SILVEIRA•


Evandro SANTOS••

Resumo: O presente artigo tem por intento apresentar uma visão panorâmica acerca de duas
noções profundamente significativas e presentes nas letras portuguesas ao longo do século XIX,
quais sejam: regeneração e decadência. Tais ideias, dadas as suas abrangências nos textos do
período, podem ser examinadas sob os mais diferentes aspectos. Com atenção a dois nomes
conhecidos do período, Alexandre Herculano e Eça de Queirós, nosso objetivo constituiu-se em,
sobretudo a partir de breve revisão bibliográfica, esboçar o contexto de discussão das
mencionadas noções e verificar seu trânsito entre história e literatura no período. Trata-se de
leitura inicial, cuja justificativa é contribuir à divulgação do tema.
Palavras-chave: História – Literatura – Regeneração e Decadência.

Abstract: This paper intends to present a panoramic approach to two deeply meaningful and
lasting notions in Portuguese literature during the 19th century, namely: regeneration and
decadence. Such ideas, considering their range in texts of the period, could be examined under
various different aspects. Paying attention to two renowned names of that period, Alexandre
Herculano and Eça de Queirós, our intent was, coming mainly from brief bibliographic revision,
to draught the context of discussion of the notions above and verify its movement between
history and literature in the period. It is an inceptive approach, and its justification is to
contribute to the circulation of the subject-matter.
Keywords: History – Literature – Regeneration and Decadence.

É que uma das funções outrora asseguradas ao romance – fazer as


vezes de sociologia – já não tem razão de ser. Em compensação, o
romance pode servir-se dos recursos do ultradescritivo próprios da
linguagem; pode, no limite, ter um alcance cognitivo, confiando na
capacidade expressiva da língua, capacidade essa que é independente
da sua função descritiva, submetida à prova de verificação.
(RICOEUR, A crítica e a convicção, 2009).


Mestre em História – Doutoranda – Programa de Pós-Graduação em História – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas – UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas, Campus Universitário Zeferino
Vaz SN, Cidade Universitária, CEP: 13083-970, Campinas, São Paulo - Brasil. Bolsista CAPES. E-
mail: cassiamsilveira@gmail.com.
••
Mestre em História – Doutorando – Programa de Pós-Graduação em História – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas – UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Av. Bento Gonçalves,
9500, Agronomia, 91509-900, Porto Alegre, Rio Grande do Sul - Brasil. Bolsista CAPES. E-mail:
evansantos.hist@gmail.com.
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Revista História e Cultura, Franca-SP, v.3, n.1, p.90-104, 2014. ISSN: 2238-6270.
Nota introdutória

Este artigo tem por objetivo examinar alguns aspectos gerais relacionados a duas
noções que, de certa maneira, organizaram as reflexões de alguns dos mais importantes
homens de letras em Portugal no século XIX. Ao longo de um percurso que começa por
volta da década de 1840 e chega ao final do referido século, as ideias de “regeneração”
e de “decadência” perpassaram a construção do Estado liberal português após as idas e
vindas da revolução de 1820.
Marcada desde cedo pelo tenso e longo período da transmigração da realeza e
independência do Brasil, do domínio inglês e das invasões francesas, uma geração que,
a partir do final dos anos 1830, dedicou-se aos problemas do presente e do passado do
país acabou por estabelecer uma particular e dominante visão sobre esta parte da
Europa. Como se sabe, o Estado moderno consolidou-se fortemente nos diversos países
do mundo ocidental através dos grandes projetos de construção das identidades
nacionais. No Brasil, caso que nos é mais próximo, embora o fenômeno da
independência, de 1822, seja frequentemente utilizado como marco instaurador da
nacionalidade, é importante afirmar que, como plano discursivo, é também no final da
década de 1830 que um esforço propriamente dominante buscará ordenar um tempo
histórico para a nação, até então ausente. A remissão necessária aqui é à fundação do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838, no Rio de Janeiro
(GUIMARÃES, 2011).
Em Portugal, desde 1779, havia a Academia das Ciências de Lisboa, que já reunia
sábios em torno de temas relativos ao pretérito do país e suas possessões ultramarinas (a
associação era um desdobramento da precursora Academia Real da História Portuguesa,
que funcionou entre 1720 e 1776). Em uma perspectiva mais ampla, o passado e o
presente passaram a ser reescritos a partir da imprensa literária que se transformou e
desenvolveu como legado das intervenções francesas em Portugal e do projeto liberal
instalado com avanços e retrocessos entre os anos 1820 e 1850, aproximadamente.
Posteriormente, com livros editados por diversos literatos, história e romance viveriam
sua aproximação e variedade de trocas mútuas, fenômeno comum em diversas partes do
mundo ocidental. É aqui que se inicia o percurso que gostaríamos de seguir.

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Alexandre Herculano e a regeneração

A fundação do jornal O Panorama, no ano de 1837, sob os auspícios da


Sociedade Propagadora de Conhecimentos Úteis, uma associação civil preocupada com
os avanços da indústria e da instrução em Portugal, marcou a fama em torno de
Alexandre Herculano (1810-1877). Este reconhecimento situou-o como o “pai da
história”, sobretudo após a publicação de sua volumosa obra História de Portugal, cujo
primeiro volume data de 1846. Envolvido desde muito cedo com questões políticas que
o levaram à condição de emigrado, recordando-se que viveu na Inglaterra e na França
durante alguns dos anos mais duros da revolução, na primeira metade da década de
1830, foi no meio jornalístico que o autor fez seu nome. A experiência de viver os
desdobramentos da revolução de 1830, em Paris, determinou muito do que o letrado
polivalente produziu.
Embora houvesse um esforço de diferenciação entre as chamadas imprensas de
“opinião” e “literária ou instrutiva”, cujos temas eram, respectivamente, matérias
políticas e de variedades, é visível o envolvimento entre os assuntos. A forte censura,
que só arrefeceu com a lei de imprensa de 1834, marcou a história dos periódicos em
Portugal. Outros impressos que guardam as características desse momento, e dos quais
participou Herculano, como a Revista Universal Lisbonense ou o Arquivo Pitoresco,
apesar de também buscarem se enquadrar dentro dos limites supostos ao periodismo de
instrução, reuniram, com frequência, assuntos que diziam respeito às pautas políticas da
época. Este contexto letrado que se seguiu de meados dos anos 1830 e vai, grosso
modo, até 1870, constitui ambiente muito rico para a percepção das relações entre
história, literatura e seus usos bastante diversificados.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que um aspecto básico é o projeto
pedagógico que envolve toda a literatura produzida em boa parte do século XIX em
Portugal e em outros espaços. Fosse através do romance de folhetim, divulgado em
profusão nas páginas de periódicos, de excertos morais ou de estudos sobre antiguidades
e pautas contemporâneas, a ideia geral que norteava a reflexão dos letrados após as
tentativas de implementação do liberalismo era mesmo a formação moral do “povo”,
categoria que passava a fazer parte do discurso dos letrados e políticos. Um Estado cada
vez mais centralizado ganhava a presença de homens interessados em intervir no novo
modelo de sociedade que enfim era instituída, especialmente, com o plano de
industrialização posto em marcha nesta conjuntura.

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Estas indicações prévias auxiliam na compreensão do que se deve destacar: a
convivência entre os produtos da pesquisa histórica e os textos de perfil ficcional que se
distribuíam lado a lado nas páginas dos periódicos antes de serem editados em versão de
livro. Se o romance, na forma do folhetim ou de livro, já ganhava respaldo no prisma de
seu impacto sobre os leitores, com a visão pedagógica e pragmática que caracterizaria o
uso dos saberes no Oitocentos, esse gênero alcançaria seu máximo reconhecimento em
sua versão histórica. O inglês Walter Scott, conclamado “pai do romance histórico”,
seria então o modelo a ser seguido neste novo compromisso didático da escrita.
Conforme lembra Maria de Fátima Marinho,

[...] a idéia de que um bom romance histórico ensinava mais do que


um livro de história preside a grande parte do nosso século XIX e
princípio do XX, chegando Herculano a afirmar que Walter Scott ou
Alfred de Vigny ensinam mais do que os historiadores [...]
(MARINHO, 1999, p. 15).

À medida que o Estado ampliava seus compromissos junto à população, a


imprensa e seus conteúdos assumiam o compromisso ético e cívico de educar a
população. Na sociedade que emergia com as concepções liberais, na qual o
chamamento dos cidadãos e sua realocação após os efeitos mais drásticos da revolução
seria uma constante, a preocupação com a transmissão de ideias políticas e morais era
permanente. Assim, a experiência de Herculano, com seu exílio na Inglaterra e,
sobretudo, na França demarcou a exposição das concepções que o interessavam quando
começou a publicar seus textos em O Panorama (CATROGA, 1998, p. 48-49). O efeito
prático das invasões francesas sobre o percurso da imprensa em Portugal encontrou
reflexos no discurso através dos conceitos que, depois, atravessariam o século nas
páginas dos periódicos e, no caso específico dos jornais literários, aos que aqui
aludimos. Por via da ficção ou da história, os dilemas institucionais seriam lançados aos
leitores.
Este viés plural da ação de Herculano expandia-se por meio de seu contato
diversificado com o igualmente amplo mundo das letras em meados do século XIX.
Ainda que a tradição das academias garantisse algum legado ao discurso histórico
propriamente dito, fato é que ele só passou a ser percebido tal como hoje o entendemos
no correr daquele século e com o trabalho de homens como o autor português em
questão. Neste sentido, alguns aspectos são interessantes. No âmbito do discurso
político e moral, os temas caros a Herculano apareciam como que condensados em três
temas aludidos por António José Saraiva: o setor religioso, o ensino público e o meio
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literário (SARAIVA, 1949, p. 57). Pela história e pela literatura, tendo como efeito
motriz as mudanças necessárias à sociedade, ele escrevia na esteira da ideia de
regeneração que aparecia com frequência quando dos paralelos entre a revolução de
1789, na França, e o movimento liberal de 1820, em Portugal. No particular, de acordo
com Maria Cândida Proença, o conceito de regeneração assumiu, no país de Herculano,
cariz nacionalista, por conta das invasões francesas (PROENÇA, 1987, p. 6).
Assim, no setor religioso, há dois exemplos que podem ser levantados a partir de
Herculano. O primeiro diz respeito às possibilidades apontadas pelo jornalista no que
tange à exploração dos temas ligados à instituição religiosa. Seu romance Eurico, o
presbítero, publicado em livro no ano de 1843 (saiu em O Panorama anteriormente),
corresponde a um uso da ficção a serviço da crítica da tradição institucional. Tal como
vivenciou na França, no começo da década de 1830, a realocação da instituição religiosa
no Estado liberal seria uma das preocupações do autor de folhetins. Por outro lado, o
romance produzido a partir de uma crítica de costumes, o que ultrapassa o discurso
político, seria apropriado por Herculano de modo declarado. Basta observar sua
explicação em uma nota de abertura anexada à versão unificada do referido romance:
“[...] a imaginação vinha ahi para supprir a historia. Da ideia do celibato religioso, das
suas conseqüências forçosas e dos raros vestigios que destas achei nas tradições
monásticas nasceu o presente livro” (HERCULANO, 1900, p. X). Como explicita na
nota, a ausência de maior número de documentos que descrevam e fundamentem a
instituição do celibato e suas consequências nefastas, foco da crítica de Herculano ao
longo do romance, a imaginação criativa seria o meio pelo qual esse questionamento
poderia ser apresentado. Aqui reside um caso, entre muitos passíveis de identificação no
Oitocentos, em que a função atribuída ao texto ficcional é correlato, mas também
complementar, ao texto historiográfico. Determinados aspectos da realidade social
poderiam ser melhor expostos e compreendidos através do romance.
Este exemplo, entretanto, não resume as complexas relações do jornalista e
historiador com a Igreja. Como parte de sua operação historiográfica, a crítica dos
argumentos oriundos de mitos e tradições foi uma marca que lhe custou a tranquilidade
quando da recepção de sua História de Portugal pelos leitores. A proximidade e
interesse do pesquisador no tocante às ditas lendas, visíveis em seus textos distribuídos
na forma do folhetim, quando participantes em sua grande obra histórica submetidas
estavam à crítica em seus moldes modernos. Na ausência de fontes, a tradição deveria
ser desautorizada:

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[...] mas importa sobretudo sublinhar que, a partir do primeiro volume
da História de Portugal e, sobretudo, da polémica acerca do milagre
de Ourique, o historiador adoptava um discurso totalmente diverso no
que respeita às tradições de Ourique e das Cortes de Lamego
(MATOS, 2008, p. 163).

A oposição à que se refere Sérgio Campos Matos é justamente entre os textos


com intenções de divulgação de um suposto passado nacional, escritos nos primeiros
anos de sua produção, e o que se seguiu à publicação de sua grande obra. Os mitos que
faziam parte da cultura oral e escrita e legitimavam o passado da nação, em vias de
“regeneração”, eram situados em outro plano, diferente da verdade da história.
Com a consciência da necessidade de uma reordenação generalizada da sociedade
após o período revolucionário, sob a égide da história, entendida como uma noção
ampla e variada, o trabalho de Herculano tentava implementar as outras das faces de seu
discurso político moral. Eis a metáfora do historiador para a definição de seu conceito
de história:

A história pode comparar-se a uma coluna polígona de mármore.


Quem quiser examiná-la deve andar ao redor dela, contemplá-la, em
todas as suas faces. O que entre nós se tem feito, com honrosas
exceções, é olhar para um dos lados, contar-lhe os veios da pedra,
medir-lhe a altura por palmos, polegadas e linhas (HERCULANO,
1842, p. 57).

Tratava-se de uma noção de história muito apropriada aos usos que esse saber
passou a ter ao longo do século XIX. Tal como os periódicos literários, entre as décadas
de 1830 e 1860, especialmente, ocuparam-se de divulgar conhecimentos os mais
variados no intuito de ilustrar parte da população, outra das preocupações de Herculano,
a sua perspectiva geral sobre a história era também aberta. A regeneração política e
moral do país só seria possível com a instrução. Desse modo, a intervenção em assuntos
de fórum religioso, tradicional e, evidentemente, histórico, por meio das artes, sejam
elas monumentais ou escritas, e também pela pesquisa nos arquivos e bibliotecas, faz
parte da agenda do letrado oitocentista.
Considerando que a própria ideia de arte era entendida dentro da lógica moderna
da história, isto é, em sentido diacrônico, com um amplo espaço de experiência a partir
do qual o presente do século XIX buscaria as bases de sua fundação, o romance
histórico, o teatro, a poesia e, inclusive, os monumentos seriam elaborados ou descritos
por Herculano como faces diversificadas do tempo histórico como ponte entre o
pretérito e as exigências dos dias que corriam. É importante observar que o mundo
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literário funda-se e funde-se com as esferas políticas e econômicas, já que a participação
das associações civis e industriais será de fundamental pertinência no desenvolvimento
das letras e das artes.
As diferentes formas de ação efetiva por meio do discurso seriam exploradas por
Herculano e outros importantes nomes do século XIX em diferentes partes do Ocidente.
Como hipótese, não podemos deixar de ter em conta as suas experiências como
emigrado, os contextos políticos e letrados da Inglaterra e, ainda mais, da França e seus
efeitos nestas primeiras décadas da produção herculaniana. Por isso, a regeneração era
um

[...] termo que envolvia uma dinâmica que encerrava o apelo à


esperança salvadora de conseguir opor à crise geral do Antigo Regime
um conjunto de reformas, de carácter predominantemente
político/institucional, que seriam capazes de promover a regeneração
da sociedade (PROENÇA, 1987, p. 7).

Não foi por acaso que os temas relacionados ao lugar e ao poder da instituição
religiosa no novo mundo liberal português interessou a Herculano. Os mesmos assuntos
ele viu serem discutidos na França, com a monarquia católica de julho na revolução de
1830. Segundo Proença (1987, p. 7-8):

[...] por essa razão, e devido à permanência dos valores cristãos


católicos no imaginário das populações, o apelo à regeneração e a toda
a série de implicações morais e religiosas nele incorporadas foram
largamente utilizados pelos políticos portugueses para perseguirem
variados objectivos de acordo com as situações conjunturais.

Portanto, vemos aqui uma rearticulação dos discursos a partir de noções que são
transferidas do vocabulário religioso ao político, mas também ao novo vocabulário
pedagógico civil. As instituições de ensino passam a contar com os letrados que
produzem conhecimentos diversos, ao passo que o discurso da regeneração nacional,
após o impasse revolucionário, ganha força. O empobrecimento e o alto índice de
analfabetismo de grande parte da população serão alguns dos impasses ao projeto de
aprimoramento da sociedade. Neste ponto, as noções de regeneração (de fundo religioso
e moral) e decadência (cuja legitimidade ganharia outro patamar com o discurso acerca
da ciência moderna) passam a conviver. A busca pelas qualidades da nação adentraria o
século XX. É importante dizer que mesmo a ditadura de Salazar, em Portugal,
apropriou-se do conceito de regeneração. Então, neste mundo de significados, o tema da

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decadência passaria a funcionar como um conceito articulador entre a política e as
letras, a exemplo do que se passou com a regeneração.

Eça de Queirós e a decadência

Com o avanço do século XIX, as relações entre história e ficção foram se


tornando diferentes e, de certa forma, foram acompanhando os debates mais gerais que
as ciências trouxeram à tona. Já nas décadas finais do século, por exemplo, cresceu a
importância das ideias darwinianas de pré-seleção biológica: vagamente orientadas
pelas teorias introduzidas por Charles Darwin, essas ideias sugeriam que, ao contrário
do que sonhavam os defensores da democratização das sociedades europeias, os homens
eram desiguais e essas desigualdades eram hereditárias (WEBER, 1988, p. 32). Por
certo que tal sorte de ideia também era derivada, precisamente, do avanço da
democratização da sociedade, o que gerava um grande receio – associado a um desprezo
por todo aquele considerado “inferior” – naqueles indivíduos acostumados aos padrões
aristocráticos de distinção. Todos os temas ligados à degeneração – que era considerada
biológica e hereditária e, portanto, tinha características de predestinação – cresceram em
importância na segunda metade do século XIX e estavam ligados, no mais das vezes, ao
medo de tornar a sociedade medíocre, ao misturar os “melhores” aos degenerados, e ao
medo da mestiçagem. Desde a década de 1840, com o crescente empobrecimento da
população urbana, especialmente em grandes centros como Londres e Paris,
popularizaram-se os estudos a respeito da miséria e de suas causas, enfatizando a
doença e o crime (BRESCIANI, 1982; WEBER, 1988, p. 32). Mais para o fim do
século, criou-se uma verdadeira “ciência da degeneração”, notabilizada nos estudos do
italiano Cesare Lombroso, que procurava em caracteres físicos as expressões da
genialidade ou do crime.
Ao mesmo tempo em que aumentava o interesse por temas ligados à decadência
e à degeneração, ciência e literatura ainda procuravam seus limites e o que as
diferenciava. Flaubert e Baudelaire, por exemplo, acreditavam que a literatura estava
num caminho intermediário entre a ciência e a filosofia, mas foi Zola – o criador do
romance naturalista – quem amplificou essa pretensão da literatura como “sociologia
prática”: o romancista acreditava estar praticando, quando escrevia suas obras, a
“verdadeira” sociologia (LEPENIES, 1996, p. 17). Para criar as regras de escrita do seu
método naturalista, Zola baseou-se no livro “Introdução ao estudo da medicina

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experimental”, do médico Claude Bernard, publicado em 1865, deixando bastante claro
as pretensões científicas que o escritor tinha para a literatura. Segundo o escritor, o
romancista deveria buscar a verdade, fazendo suas personagens “evoluírem” numa dada
história, mostrando como os fatos se sucederiam conforme as exigências do
determinismo dos eventos estudados (ZOLA, 1992, p. 31). A conduta humana, segundo
seu ponto de vista, certamente em tudo de acordo com o contexto intelectual em que
escreveu, seria determinada pela hereditariedade e pelo meio, sendo que os frutos da
degeneração poderiam ser vistos após algumas gerações (ZOLA, 1992, p. 42).
Em Portugal, o ideário científico ganhou outra dimensão com a chamada
“geração de 1870”. Formada por intelectuais como Antero de Quental, Teófilo Braga e
Vieira de Castro, ela se compõe de um grupo formado a partir da “Questão Coimbrã” –
polêmica gerada entre os intelectuais citados, os novos, e um grupo de remanescentes
dos ultra-românticos portugueses, como António Feliciano de Castilho (a base da
polêmica foi um texto escrito por Castilho, logo revidado pelo grupo mais jovem). A
principal motivação do acirrado debate travado entre eles foi de ordem literária, mas
havia ainda uma oposição profunda entre duas visões de mundo: a geração de 1870,
personificada pelos jovens intelectuais da Universidade de Coimbra, era influenciada
pelas ideias científicas e pela crença no progresso. Ao mesmo tempo, refletiam sobre
uma filosofia da história capaz de conduzir a uma sociedade mais justa, num crescente
“otimismo historicista” (NATÁRIO, 2008, p. 122).
No campo da literatura, Eça de Queirós (1845-1900) se destaca pelas narrativas
realista-naturalistas com inclinação para a busca por interpretações para a história
portuguesa, em particular, as causas de sua decadência. Como vimos, a ideia de
decadência não era uma especificidade do escritor, nem tampouco tipicamente
portuguesa. O final do século XIX foi marcado por teorias múltiplas a respeito da
decadência e da degeneração. Do mesmo modo, as teorias literárias do fim do século
XIX se prestavam ao estudo da decadência, já que a ficção era considerada, por muitos
escritores, uma fonte de conhecimento experimental aproximado da ciência. Contudo, a
literatura de Eça de Queirós tem a particularidade de vincular-se profunda e
intimamente com a escrita da história portuguesa, em especial, aquela dos trezentos
anos que precederam o fim do século XIX.
O que nos interessa, aqui, é compreender a ideia de história presente na literatura
de Eça de Queirós, que possibilita ao escritor propor uma interpretação para a
decadência portuguesa. Tal ideia de história não constitui uma idiossincrasia de Eça de

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Queirós que, ao contrário, fundamentou seus escritos nas obras de um dos mais
importantes historiadores de seu tempo, igualmente integrante, como o próprio Eça,
aliás, da “geração de 1870”: Oliveira Martins. Joaquim Pedro de Oliveira Martins foi
um historiador marcado pelo renascimento de ideias da geração de 1870 e também
muito influenciado pela concepção de história presente em Alexandre Herculano.
Orientado por uma interpretação da história de Portugal como se fosse a história
de um organismo, pensou a história portuguesa como um ciclo de quatro fases:
nascimento, apogeu, declínio e morte (PINTO COELHO, 1999, p. 258). O interessante
é observar que o declínio do império português, segundo a interpretação do historiador,
já se daria logo após as grandes navegações e os descobrimentos, advindo,
sobremaneira, das conquistas portuguesas no Oriente. Nessa perspectiva, foi justamente
durante o auge da expansão marítima portuguesa – quando poderíamos considerar um
período de glórias e de conquistas, trazendo riquezas e poder e convertendo Portugal em
um grande império – que o declínio teria se iniciado. A ideia de crise, uma crise
instituída com a empreitada no Oriente – responsável pelo declínio moral e pelo gosto
pelo luxo e pelo supérfluo – acompanha toda a interpretação de Oliveira Martins,
relacionando-a à crise própria dos organismos vivos, que envelhecem, adoecem, se
decompõem e morrem. Do mesmo modo que um organismo vivo, uma unidade nacional
também poderia vivenciar essas diversas fases de seu desenvolvimento: a ideia de
história, portanto, dos modos pelos quais as nações se transformam, estava ligada à
mesma lógica que norteia a passagem do tempo na vida de um organismo, uma lógica
biológica (ABREU, 1999, p. 341). Talvez possamos relacionar esse tipo de
entendimento a uma busca por uma interpretação típica do discurso histórico, mas ainda
muito associada aos modos pelos quais as outras ciências orientavam seu saber. É
significativo notar que Zola também fundamentaria as teorias do seu “romance
experimental” nos discursos que as ciências biológicas – no caso, a medicina –
instituíam. Nesse período, as especificidades narrativas do que comporia um discurso
tipicamente histórico – ou mesmo um discurso tipicamente literário – ainda não estavam
definidas, de modo que não se constituíam como problemáticas as metáforas de ordem
biológica.
Em Eça de Queirós, essas referências aparecem ilustradas, por exemplo, pela
genealogia de Gonçalo Mendes Ramires, protagonista de A ilustre Casa de Ramires.
Último de uma linhagem tradicional portuguesa, mais antiga mesmo do que Portugal,
linhagem que teria participado de todos os eventos importantes da história portuguesa,

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Gonçalo representa em certo sentido a culminância da decadência desta linhagem – e,
em última análise, da própria decadência portuguesa. De certa forma, essa obra é
também influenciada pelos princípios do naturalismo, já que ao apresentar a linhagem
de Gonçalo, o autor apresenta o forte papel da hereditariedade e do meio na constituição
individual. O indivíduo Gonçalo era o resultado da decadência familiar, após gerações;
ao mesmo tempo, a decadência de sua família acompanhava a decadência da pátria
(PINTO COELHO, 1999, p. 260). No bojo desta forma de compreender o indivíduo ou
um clã, a partir da qual é possível haver “degeneração”, está uma concepção evolutiva,
a qual igualmente fundamentava os trabalhos históricos de Oliveira Martins (ABREU,
1999, p. 342). Se a degeneração física de um organismo humano fazia parte do ciclo
vital desse organismo, que nasce, cresce, degenera e morre, o mesmo raciocínio servia
para pensar uma linhagem que, no acúmulo das gerações, chegou ao seu apogeu e
decaiu até estar praticamente à beira do fim – como é o caso da linhagem dos Ramires,
que tinha como seu último representante restante o próprio Gonçalo. Similarmente, a
decadência de uma dada sociedade se dava “[...] como fenómeno de desagregação e
perda das energias vitais por um todo social concebido como ser biologicamente
organizado” (ABREU, 1999, p. 343).
Se, nas teorias sobre degeneração que circulavam no final do século XIX por
todo o Ocidente, a degeneração podia ser pensada como produto de uma hereditariedade
mórbida, negativa, que corromperia o organismo de modo inescapável, até levá-lo à
doença e à morte, igualmente o organismo social, tal qual era pensado por Oliveira
Martins, poderia ser levado à doença e à morte em decorrência de falhas e inadequações
na construção de instituições por parte dos homens que compõem essa sociedade
(ABREU, 1999, p. 344). Ou seja, se era possível haver uma degeneração “natural”,
decorrente do próprio envelhecimento de uma dada sociedade, era possível também
haver a degeneração mórbida, no caso, aquela que Oliveira Martins pensava para a
história portuguesa.
Eça de Queirós, por sua vez, construiu, na saga da família Mendes Ramires, a
saga da degeneração portuguesa, tornando mais simples e ao mesmo tempo mais
concreto – no sentido de que a própria degeneração estaria representada em organismos
individuais, com nome e sobrenome, cujas ações podemos acompanhar ao longo do
romance – o modo de explicação histórica presente em Oliveira Martins. De todo modo,
Eça não estava apenas reproduzindo um modo de pensar a sociedade portuguesa e a sua
história, mas sim explorando, em novas formas narrativas, outros modos de produzir e

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de difundir conhecimento do tipo histórico. Segundo Wolf Lepenies, desde a metade do
século XIX, a literatura e as ciências sociais passaram a disputar a preferência de
fornecer os discursos mais apropriados à nova sociedade industrial (LEPENIES, 1996,
p. 11). Foi somente ao longo dos debates gerados pelas iniciativas de representantes de
cada um dos campos (quando havia distinção entre eles) é que foram sendo criadas as
diferenças fundamentais entre os modos de produção da ciência e da literatura ou da
arte.
Afirmar que as distinções entre ciências sociais, incluindo nesse rol a história, e
a literatura ainda não estavam consolidadas, não é o mesmo que afirmar, entretanto, que
não era possível distinguir entre a escrita histórica e a escrita ficcional nos tempos de
Eça de Queirós. É Maria de Fátima Marinho quem nos chama a atenção para o fato de
que, em A ilustre Casa de Ramires, Eça constrói uma narrativa dentro da narrativa que
ele próprio escreve: Gonçalo Mendes Ramires, personagem ficcional criado por Eça de
Queirós, escreve, ao longo do romance, o seu próprio texto, de enredo entre a ficção e a
realidade, já que baseado em fatos vivenciados pelos seus ilustres antepassados
(MARINHO, 2004, p. 360). Os próprios propósitos pelos quais Gonçalo Ramires é
incitado a escrever são bastante condizentes com aqueles que animam os romancistas
contemporâneos a Eça. Ao reencontrar um antigo conhecido da Universidade de
Coimbra, Gonçalo foi motivado a escrever a saga de sua família numa revista de
literatura e de história – embora a história, real, devesse figurar sob a forma de um
romance – que este pretendia lançar num futuro próximo:

É um dever, um santo dever, sobretudo para os novos, colaborar nos


Anais. Portugal, menino, morre por falta de sentimento nacional! Nós
estamos imundamente morrendo do mal de não ser portugueses!
(QUEIRÓS, 1962, p. 198).

A passagem acima demonstra, ao mesmo tempo, a correspondência encontrada


entre a realidade vivida pelo romancista e a realidade por ele escrita em seu romance –
que, por sua vez, geraria um novo romance, desta vez uma ficção dentro da ficção – e a
correspondência dos discursos de caráter organicista presentes tanto na ficção quanto na
realidade. Para o companheiro de Gonçalo, Portugal seria um menino que morria – não
devido ao envelhecimento, portanto; sua morte se dava em decorrência de uma
ausência, como a ausência de um nutriente em um corpo que lentamente definha, que se
torna incapaz de restituir a saúde: essa ausência era a ausência de sentimento nacional.
Tanta intertextualidade só nos dá uma dimensão ainda maior da complexidade da obra

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do romancista português e da complexidade da sua interpretação histórica, na qual as
imagens organicistas são apenas uma ínfima parte.

Considerações finais

Ao longo do estudo, tivemos a intenção de sistematizar algumas ideias gerais


que compuseram o ambiente letrado em Portugal no decurso do século XIX, a partir da
revolução liberal de 1820, mas, especificamente, por meio de exemplos da produção e
da crítica a Alexandre Herculano e Eça de Queirós. Assim, tivemos a oportunidade de
iniciar um caminho que foi, em geral, de meados da década de 1830 até o final do
século. Longe de ser um caminho natural e progressivo, aqui expostos em sentido
cronológico apenas por uma intenção de clareza, o que enfatizamos foram as
transformações e permanências de duas noções relevantes ao exame das intimidades
entre história e literatura naquela época.
Com Herculano, foi possível observar os primeiros movimentos no que diz
respeito aos usos do romance histórico, em meio às mais diversas formas de
convivência entre saberes no Oitocentos. Se hoje seu nome está diretamente ligado à
carreira de historiador em sua versão moderna, é comprovável que ele ajudou a fazer
com que o século XIX fosse o “século da história”, como é chamado, mas também o
século do romance. A compreensão dirigida ao romance e suas apropriações nos ajudam
a formular algumas hipóteses acerca de como o conhecimento histórico passava a ser
apreendido naquele período. É inegável que os textos ficcionais cumpriam um papel de
entreter os membros das classes médias e que havia aí um interesse inclusive
mercadológico, na medida em que tratava de assuntos que interessavam às pessoas.
Entretanto, havia outra escala, em paralelo, cujo caráter criativo era eminente, e isso
afetava o texto historiográfico, no ponto que eram produzidos pelos mesmos agentes. A
regeneração da nação era política, mas também literária.
A leitura a partir de Eça de Queirós levou-nos aos encaminhamentos advindos,
sobremaneira, da chamada “geração de 1870” e seu ideário cientificista. Foi possível a
investigação dos movimentos que, pouco a pouco, estabeleceram mais nitidamente a
separação entre os discursos histórico e ficcional. A busca de argumentos para entender
a decadência, tema comum em Portugal e em outros espaços da época, ganhou
dimensão temporal alargada e motivada pelas noções de progresso e degeneração,
típicas das teorias evolucionistas. A transposição dessa perspectiva para o romance foi

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rápida. Com o realismo e o naturalismo de Queirós, todos os investimentos no sentido
de discutir e repensar a suposta decadência da sociedade portuguesa seriam ampliados.
A literatura, como uma sociologia, lançava à sociedade os impasses evidenciados pela
história. O discurso da ciência transpassava a visão acerca do ser humano para o
conjunto do tecido social então em voga à análise.

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Artigo recebido em 10/08/2013. Aprovado em 11/11/2013.

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LA IDENTIDAD NACIONAL DE LOS ESTADOS BRASILEÑO Y
ARGENTINO COMO CONSTRUCCIÓN LITERARIA A TRAVÉS
DE LAS FIGURAS DEL BANDEIRANTE Y DEL GAUCHO

A IDENTIDADE NACIONAL DOS ESTADOS BRASILEIRO E


ARGENTINO COMO CONSTRUÇÃO LITERÁRIA ATRAVÉS DAS
FIGURAS DO BANDEIRANTE E DO GAUCHO

Daniel Arrieta DOMÍNGUEZ•

Resumen: Gran parte de las obras literarias sobre el bandeirante brasileño y el gaucho argentino
se ha escrito con posterioridad a la extinción de tales modos de vida, pero han generado sendos
mitos literarios relacionados con la creación del estado moderno y el establecimiento de sus
fronteras, especialmente en el siglo XIX. La visión épica y la supuesta democratización de los
elementos componentes de las bandeiras así como el enfoque, ya romántico, ya eurocentrista en
la caracterización del gaucho argentino en la literatura, muestran una imagen demasiado
simplista cuando no folclórica de la realidad de las empresas de exploración paulista y del papel
del gaucho en las zonas de frontera. Este trabajo se propone mostrar las similitudes y diferencias
entre ambos procesos de mitificación literarios, así como su grado de éxito en la construcción de
una identidad nacional.
Palabras-clave: Gaucho – Bandeirante – Mito Literario.

Resumo: Uma parte importante das obras literárias sobre o bandeirante brasileiro e o gaucho
argentino foi escrita após a extinção de seus estilos de vida; porém, foram gerados dois mitos
literários em relação com a criação do estado moderno e o estabelecimento das suas fronteiras,
especialmente no século XIX. A visão épica e a suposta democratização dos elementos
componentes das bandeiras, mais o enfoque, já romântico, já eurocentrista na caracterização do
gaúcho argentino na literatura, aportam uma imagem muito simplista além de folclórica em
relação com a realidade das empresas de exploração paulista e o papel do gaúcho nas zonas de
fronteira. Este trabalho se propõe mostrar as similitudes e diferenças entre os dois processos de
mitificação literária no contexto histórico em que são produzidos, refletindo sobre seu grado de
sucesso na construção duma identidade nacional.
Palavras-chave: Gaúcho – Bandeirante – Mito Literário.

Introducción

La colonización ibérica –hispano-portuguesa- de América fue distinta de la de los


anglosajones en la medida en que éstos últimos, negadores del libre arbitrio y con una
fuerte ética del trabajo, buscaron crear sus propias sociedades en aquellas nuevas tierras
partiendo de la nada, tabula rasa. Los españoles y portugueses, sin tanto orgullo de raza
–en el caso de los portugueses ya había muchos mestizos de negros en el Portugal del


Máster en Literaturas Hispánicas – University of Arkansas – Doctorando en Estudios Literarios –
Facultad de Filología – UCM – Universidad Complutense de Madrid, Ciudad Universitaria, 28040,
Madrid, España. E-mail: daarriet@ucm.es
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siglo XVI-, al menos en un primer momento histórico buscaban el enriquecimiento
rápido y la gloria personal. Como expresa Sérgio Buarque de Holanda (2006, p. 44),
“[…] existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura”, y la de los
ibéricos era del segundo tipo. Pero entre españoles y portugueses también existieron
diferencias en el modelo de conquista y colonización, las cuáles conllevaron la
extensión del modelo de conquista en el caso brasileño hasta bien entrado el siglo XVIII.
Los españoles encontraron dos grandes imperios, aprovecharon sus infraestructuras, y
donde no las había, las crearon a imagen y semejanza de las suyas propias: ciudades,
plaza mayor con iglesia, cabildo y juzgados, leyes y burocracia que impusieron a los
indios. En el caso portugués, “[…] é mais feitorização que colonização” (BUARQUE
DE HOLANDA, 2006, p. 107): no buscan tanto la creación de infraestructuras políticas
y sociales como una simple explotación comercial, especialmente en el litoral; en el
caso hispano, se establecen capitales alejadas de la costa, a cierta altitud.
En este contexto histórico surgen los bandeirantes paulistas del siglo XVI. El
objetivo fundamental de éstos será conseguir esclavos indios como mano de obra para
las ciudades, y en el XVII los robarán directamente de las misiones jesuíticas.
Posteriormente, dichos bandeirantes también se enfocarán en la búsqueda de metales
preciosos, sobre todo a partir del descubrimiento de oro en Minas Gerais en 1693, y
ocasionalmente en combatir indios hostiles o quilombos de negros fugitivos.
El gaucho es una figura que surge en la Pampa argentina de la frontera con los
indios en el siglo XVIII y se mantiene durante el XIX entre las guerras de
independencia y contra los indios, en una especie de vida nómada llevando y cazando
ganado semi-salvaje hasta que la introducción de la oveja, el cercado y la agricultura
hace inevitable su desaparición, o al menos su transformación en peón agrícola:

By the 1880, sheep had effectively displaced cattle from much of the
improved pasturage near Buenos Aires. Gauchos participated in the
sheep cycle, shearing, marking, castrating and herding on horseback.
But the old Pampa gaucho of wild creole cattle slain for hides and
tallow alone had long passed away (SLATTA, 1983, p. 141).

Bandeirantes paulistas y la formación del estado brasileño

En primer lugar, debemos distinguir entre malocas, entradas y bandeiras: las


primeras eran ataques en tierras de indios de forma no muy organizada con el objetivo
de esclavizarlos o castigarlos; las entradas eran acciones patrocinadas por la Corona
portuguesa con los mismos objetivos, y su organización y estructura tenía un cariz más

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militar. Y en el caso de las bandeiras, su diferencia con las entradas es que se trataba de
empresas privadas de captura de esclavos indios y/o prospección de metales preciosos
que, aunque no directamente promocionadas por el poder público, sí estaban aceptadas
de forma más o menos oficial. Una bandeira típica estaba formada por blancos,
caboclos –indios asimilados con cierto grado de mestizaje-, indios guerreros, y esclavos
indios o negros. Según Joaquim Ribero (1946, p. 30), la bandeira constituía una
organización cuasi militar con opresor y oprimido en la que el clan patriarcal de los
europeos se mezclaba con el caciquismo de los indios. Ello choca con el mito de la
primera sociedad democrática en el Nuevo Mundo evocada por algunos autores, o
incluso con su descripción como primer caso de fascismo, como expresa Souza (2007, p.
160), citando a Cassiano Ricardo (1940, p. xvi): “[…] comando seguro e fraterna
solidariedade dos indivíduos obedientes à firme unidade comando.”
En un ámbito más folclórico, el elemento religioso mestizo de la bandeira
mezclaría la demonología nativa -Capora, Curupira, Anhangag- con el sebastianismo
portugués (RIBEIRO, 1946, p. 41), constituyendo el antecedente de las futuras huestes
sertanejas del visionario Antonio Conselheiro en la Guerra de Canudos. Euclides da
Cunha, hablando sobre el sertanejo del nordeste brasileño expresa: “[…] a sua religião é
como ele, mestiça.” (CUNHA, 1998, p. 63). La lengua de las bandeiras será el tupí-
guaraní, lo que permitirá la comunicación fluida entre los distintos componentes de la
misma, y reforzará el argumento de la importancia del elemento indio y mestizo en ella.
De hecho, hasta el siglo XVIII dicha lengua estaba generalizada en tierras paulistas, y el
portugués se aprendía principalmente en la escuela.
Ya fuera en las bandeiras de captura de indios –como las de Manuel Preto o las
de Antonio Raposo Tavares- ya fuera en las de búsqueda de oro, plata y esmeraldas –
Fernão Dias Pais, Bartolomeu Bueno da Silva, etc.- los ejércitos bandeirantes viajaban
en ocasiones durante años vagando por la agreste región del sertão brasileño o incluso
el Mato Grosso. En su continuo ir y venir, las porosas y flexibles fronteras del Tratado
de Tordesillas irían variando a favor de Portugal frente a España. El mito de la isla
Brasil vendría a ser falso, pero para entonces Portugal ya se habría asegurado muchos
de aquellos territorios.
Desde finales del siglo XVI hasta la expulsión de los jesuitas de España y
América en 1767, las misiones jesuíticas guaraníes, mediante el sistema de la reducción,
establecieron “pueblos de indios” en una zona en el actual territorio de Paraguay,
Argentina y Brasil, que en la práctica servía de frontera entre España y Portugal. Los
bandeirantes, en su labor de suministradores de mano de obra esclava para la industria
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del palo Brasil en la costa de Río de Janeiro, aprovecharon tal concentración de indios
ya educados como objetivo de sus bandeiras, constituyéndose en los grandes enemigos
de los jesuitas, quienes a su vez, consiguieron de la Corona española en 1639, la
potestad de armar a los indios para defender las misiones. Una visión positiva del pillaje
bandeirante frente a las misiones jesuitas es mostrada por Jaime Cortesão en su
Introdução à História das Bandeiras cuando habla del bandeirante paulista: “[…]
disciplina militar, adaptação ao meio físico, rapidez, frugalidade, poder de sacrifício e
tenacidade infatigável do que o fizeram os seus maiores inimigos, os jesuítas espanhóis
do Paraguai” (CORTESÃO, 1964, v. 2, p. 198). Por su lado, Portugal, incluso en la
época de la unión con España, veía con buenos ojos las incursiones paulistas en
territorios españoles: por un lado, rompe las fronteras fijadas por los jesuitas para
España; y por otro lado, consigue una mano de obra esclava necesaria para su desarrollo
industrial-comercial. También Cortesão comenta la conexión entre bandeira y poder
público: “A bandeira foi uma maloca organizada e dirigida, nomadismo político à busca
das bases sedentárias do Estado” (CORTESÃO, 1964, v. 1, p. 102). A la larga, los
acuerdos entre España y Portugal en el Tratado de Madrid de 1750, y el miedo español a
un “imperio jesuítico” tras las guerras guaraníticas, terminaron provocando la expulsión
de los religiosos en 1767. Dos años más tarde, en 1769, el poeta brasileño y ex-novicio
jesuita Basilio da Gama escribe su poema épico O Uraguai, que trata de dicha guerra de
los portugueses y los españoles contra los indios sublevados de Sete Povos das Missões,
territorio español, que habría de pasar a manos de Portugal. Da Gama culpa a los
jesuitas de los males de los indios, y de codicia y ambición desmesurada, al intentar
usurpar un imperio que no les pertenece:

Aqui não temos. Os padres faziam crer aos índios que os / portugueses
eram gente sem lei, que adoravam o ouro. / Rios de areias de ouro.
Essa riqueza / Que cobre os templos dos benditos padres, / Fruto da
sua indústria e do comércio / Da folha e peles, é riqueza sua” (GAMA
2009, p. 42).

pero no critica las acciones bandeirantes y militares contra las misiones, que
convertirían a indios libres súbditos del imperio español en esclavos para vender en la
América portuguesa.
El bandeirante paulista, por tanto, contenía las dos facetas anteriormente
mencionadas: la de esclavista-asesino de indios, y la de conquistador de nuevas tierras
para una Corona que acabaría constituyendo en 1822 el nuevo estado brasileño. Pero la
captura de indios no fue su única ocupación sino que desde mediados del siglo XVII

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hasta finales del XVIII surge el llamado ciclo del oro. Para Ribeiro (1946, p. 25), “[…]
é o ciclo do ouro, o grande ciclo do ouro, que constitui na verdade, o verdadeiro ciclo do
bandeirante, já estruturado como tipo social”. En 1693, se descubren importantes
yacimientos de oro en las montañas de Sabarabuçu, en Minas Gerais, y en 1698 António
Dias de Oliveira descubre Ouro Preto. Esto genera una gran emigración hacia la zona y
las actividades de las bandeiras se orientan más a la búsqueda del preciado metal.
Ocasionalmente habrían de combatir indios hostiles de las áreas donde preveían
encontrar oro o metales preciosos, pero además, al requerir mano de obra esclava para
las minas, las capturas de esclavos – más la importación de negros africanos –
continuaron. También en este momento, el rudo, iletrado y mestizo bandeirante – así
considerado por las élites blancas de Río de Janeiro- volvería a ser clave para la Corona
portuguesa, proporcionando riquezas a la metrópoli y cierto desarrollo a la colonia. Con
el descubrimiento masivo de oro, comenzó realmente la colonización del interior
brasileño, aunque el aventurero y conquistador bandeirante se resistía a hacerse
sedentario. Pero las actividades mineras a gran escala requerían también actividad
agrícola: “Esse repudio do sertanista à vida agrícola era tão evidente que, por vezes, a
própria autoridade civil se via na contingência de obrigar o plantio para alimentar aos
mineiros” (RIBEIRO, 1946, p. 149).
Este ciclo del oro bandeirante –y de la plata y de las piedras preciosas-, más
tardío en el tiempo y duradero, generó más literatura que el anterior. Como explica
Carvallo Franco (1940, p. 179), “[…] a busca das esmeraldas foi a iniciativa que mais
perdurou na história bandeirante.” Olavo Bilac, en su O Caçador de Esmeraldas, de
1888, relata en forma de poema épico la muerte del bandeirante Fernão Dias Pais en su
última bandeira, desde 1674, que duraría 7 años. Bilac muestra la acción bandeirante
como algo fascinante e inevitable dirigiendo el canto a la naturaleza mediante una
prosopopeya: “De água devastadora, - os brancos avançavam: / E os teus filhos de
bronze ante eles recuavam / Como a sombra recua ante a invasão do sol” (BILAC, 2002,
p. 40). Y los caracteriza una vez más como esforzados merecedores de riquezas:

Que importa o desamparo em meio do deserto, / E essa vida sem lar, e


esse vaguear incerto / De terror em terror, lutando braço a braço / Com
a inclemência do céu e a dureza da sorte? / Serra bruta! Dar-lhe-ás,
antes de dar-lhe a morte, / As pedras de Cortez, que escondes no
regaço! (BILAC, 2002, p. 45).

Pero el poema también incluye cierta ambigüedad sobre las acciones del héroe y
su inevitable fin: “Ah! mísero demente! O teu tesouro é falso! / Tu caminhaste em vão

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por sete anos, no encalço de uma nuvem falaz, de um sonho malfazejo! / Enganou-te a
ambição! Mais pobre que um mendigo, / Agonizas, sem luz, sem amor, sem amigo”
(BILAC, 2002, p. 50). Es como si su vida personal hubiera sucumbido a la invitación a
las riquezas y la gloria. Aunque finalmente, su muerte es signo de vida, como símbolo
de que la tragedia de su fracaso individual y su muerte ha de servir a la posteridad:
“Morre! Tu viverás nas estradas que abriste! / Teu nome rolara no largo choro triste / Da
água do Guaicuí…Morre, Conquistador!” (BILAC, 2002, p. 53). Y claramente explica
los méritos y el patriotismo del bandeirante cuando concluye: “Violador de sertões,
plantador de cidades, / Dentro do coração da Pátria viverás!” (BILAC, 2002, p. 54).
Olavo Bilac representa una corriente de idealización muy común de los bandeirantes
como conquistadores valientes, duros y sufridos que descubren nuevos territorios para
la futura formación del país. Se les presume patriotismo y abnegación, aunque también
se les reconoce un exceso de ambición personal. A la hora de justificar la captura y
exterminio de los indios, se reconoce como un mal menor necesario para la
consolidación del estado brasileño.

El gaucho y la frontera en la formación del estado argentino

Para Susan Migden Socolow, el gaucho argentino representa tanto la figura por
excelencia de la frontera como una figura mítica (GUY; SHERIDAN, 1998, p. 67). En
esta rápida definición quedan resumidas las dos principales características que lo
definen. El gaucho surge en un lugar de frontera, lejos de las ciudades, donde se
suceden intercambios o luchas con indios. Desde el siglo XVII, “gauderíos” o mozos
criollos de la tierra sin asentamiento fijo, se ganan la vida llevando ganado de las
pampas a las ciudades. La palabra gaucho parece provenir del quechua guacho –
muchacho huérfano, abandonado, errante- o del vocablo árabe chaucho –conductor de
ganados- junto con la comentada gauderío. Es desde la segunda mitad el siglo XVIII
cuando surge la figura del gaucho en su esplendor y va a aparejada a la cantidad de
reses de vacuno semisalvaje de las pampas y a un concepto de tierra sin dueño que
habrá de perdurar hasta bien entrado el siglo XIX. Estos seminómadas a caballo,
criollos o mestizos de blanco e indio –y en cierta medida también de negro-, mezclarán
las supersticiones españolas con las indígenas (SCARONE, 1922, p. 35), y se adaptarán
al medio incorporando costumbres de ambas culturas. En general trabajarán sin contrato
o jefe fijo básicamente transportando ganado, herrando, en la doma, etc. En muchas
ocasiones los gauchos se instalaban en zona de indios, más allá de la frontera militar, y
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negociaban o guerreaban contra ellos. Las guerras de independencia, las guerras contra
los indios y las guerras civiles en la Argentina del siglo XIX afectaron drásticamente a
los gauchos, que eran reclutados a la fuerza en base de las promulgadas leyes de vagos
desde 1815 y sobre todo desde el presidente Rivadavia en 1822, entonces Ministro de
Gobierno. Muchos rehuían el ejército y escapaban a provincias lejanas o a tierras de
indios. Pero muchos otros acabaron integrando las montoneras, que ejerciendo guerra de
guerrillas, tuvieron tanta importancia en la independencia argentina de España. Es por
este motivo, añadido a la imagen y símbolo de libertad que evocan, por lo que el gaucho
acabará convirtiéndose también en una figura mítica.
El estilo de vida del gaucho, ya en pleno siglo XIX, con su nomadismo, su vida
agreste, su aversión a las órdenes y a la autoridad, sus payadas, sus pulperías y su
supuesta agresividad, suponía, para algunos, un obstáculo a la formación de un estado
moderno argentino basado en el orden, a imagen y semejanza de los países europeos.
Domingo Faustino Sarmiento representa esa corriente que demoniza al gaucho desde la
literatura. En su Facundo. Civilización y Barbarie, de 1845, parte relato periodístico,
parte biografía y parte panfleto político, nos presenta a los cuatro tipos de gaucho: el
rastreador, el baqueano, el gaucho malo y el cantor. La inicial y ambigua admiración
por las dotes de este hijo de la tierra, al que compara despectivamente con los tártaros,
los bárbaros, con el trovador medieval o con el guerrero árabe, concluye con la idea de
que “[…] el gaucho será un malhechor o un caudillo según el rumbo que las cosas
tomen en el momento en que ha llegado a hacerse notable” (SCARONE, 1922, p. 53).
De hecho, los protagonistas de su libro son Facundo Quiroga, caudillo gaucho riojano, y
Juan Manuel de Rosas, estanciero federalista que se convertiría en gobernador de
Buenos Aires. Sarmiento no conoce las pampas ni a los gauchos de los que habla, pero
los describe de forma hiperbólica a través de documentos u otros textos literarios: a la
hora de describir al gaucho tiene influencias literarias de su admirado James Fenimore
Cooper cuando éste describe al cowboy del norte. Pero aún así,

[…] the image of the cowboy and the gaucho evolved in profoundly
different ways. Whereas in the United States the cowboy was a hero
on a romanticized frontier…in Argentina, the gaucho was originally
seen as a political threat to national development (GUY; SHERIDAN,
1998, p. 4).

Sarmiento promulgaba la importación de cultura y maneras europeas, mientras


que los gauchos y sus caudillos como Rosas y Facundo, recelaban de dichas influencias
liberales extranjeras. Para Sarmiento, un estado centralizado y fuerte, unitario, con leyes

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muy definidas, era necesario para el desarrollo del país. Y los gauchos, federalistas e
independientes, chocaban con su sistema. Incluso en el caso de su participación en las
guerras de independencia, Sarmiento minimiza o brutaliza sus acciones:

La montonera, tal como apareció en los primeros días de la República


bajo las órdenes de Artigas, presentó ya ese carácter de ferocidad
brutal, y ese espíritu terrorista que al inmortal bandido, al estanciero
de Buenos Aires, estaba reservado convertir en un sistema de
legislación aplicado a la sociedad culta, y presentarlo en nombre de la
América avergonzada, a la contemplación de la Europa.
(SARMIENTO, 1997, p. 111).

Para Sarmiento, los gauchos, el federalismo, y Rosas, significan la barbarie


americana y del indio, mientras que Europa transmite la civilización. De ahí, su énfasis
en la inmigración europea a tierras argentinas, ya que según él “[…] las razas
americanas viven en la ociosidad, y se muestran incapaces, aún por medio de la
compulsión, para dedicarse aun trabajo duro y seguido. De esto surgió la idea de
introducir negros en América, que tan fatales resultados ha producido” (SARMIENTO,
1997, p. 64). Por todo ello, culpa del salvajismo y la indolencia del gaucho a su mezcla
racial:

La fusión de estas tres familias (blanca, india, negra) ha resultado un


todo homogéneo, que se distingue por su amor a la ociosidad e
incapacidad industrial cuando la educación y las exigencias de una
posición social no vienen a ponerle espuela y sacarla de su paso
habitual. Mucho debe haber contribuido a producir este resultado
desgraciado la incorporación de indígenas que hizo la colonización
(SARMIENTO, 1997, p. 63-64).

La ciudad, para Sarmiento, representa la civilización; los gauchos y el campo, la


barbarie: “[…] el siglo XIX y el XII viven juntos; el uno dentro de las ciudades, el otro
en las campañas” (SARMIENTO, 1997, p. 91).
Con los antecedentes de la poesía gauchesca de Hidalgo, Ascasubi y Estanislao
del Campo, José Hernández crea con su Martín Fierro en 1872 la contrapartida al
Facundo sarmientino. Ahora el gaucho ya no es el bárbaro invocado por Sarmiento sino
un pobre hombre del que se aprovechan militares y jueces. Es una figura de un mundo
cambiante que poco a poco va perdiendo su razón de ser. Ya en el comienzo el gaucho
Martín Fierro relata su vida, reclutado a la fuerza para guerrear a los indios en la
frontera, engañado y sin paga: “Tuve en mi pago en un tiempo / hijos, hacienda y
mujer; / pero empecé a padecer, / me echaron a la frontera, / ¡y qué iba a hallar al
volver! / Tan sólo hallé la tapera” (HERNÁNDEZ, 1982, p. 122). Cuando escapa y

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vuelve a su casa nada encuentra y “¡Yo juré en esa ocasión / ser más malo que una
fiera!” (HERNÁNDEZ, 1982, p. 146). Es como si el autor, gaucho en su juventud él
mismo, justificara las posteriores acciones de Martín al matar al negro y al otro gaucho
por haber sido convertido a la fuerza en fugitivo y despojado de lo poco que tenía. El
gaucho Martín Fierro, en un alarde de sincera ambigüedad de su autor, es racista, tanto
en cuanto a los indios, considerados como salvajes, como a los negros – “A los blancos
hizo Dios; / a los mulatos, San Pedro; / y a los negros hizo el diablo / para tizón del
infierno” (HERNÁNDEZ, 1982, p. 140)- y muestra sin ambages su rechazo al
extranjero: “Era un gringo tan bozal / que nada se le entendía. / ¡Quién sabe de ande
saría!” (HERNÁNDEZ, 1982, p. 141). En realidad, cinco millones y medio de
extranjeros llegaron a Argentina entre 1857 y 1924, especialmente italianos, como el
gringo del Martín Fierro. De hecho, la xenofobia de los gauchos hacia los extranjeros, y
la percepción por aquéllos de que estaban ocupando su lugar llegó a provocar en la
realidad masacres de vascos e italianos como la del año 1872 (SLATTA, 1983, p. 163).
Pero también hay solidaridad gaucha en el poema: el sargento Cruz, un gaucho huido
metido a polecía para pagar sus faltas, se cambia de bando y ayuda a Martín Fierro
cuando éste es atacado por una patrulla; y termina relatando también sus penas y la
realidad del campo argentino: “Le advertiré que en mi pago / ya no va quedando un
criollo; / se los ha tragado el oyo, / o juido, o muerto en la guerra” (HERNÁNDEZ,
1982, p. 181). Tras la primera parte del poema –al que Borges consideraba una novela
moderna por su subjetividad en primera persona- los dos amigos se internan en el
desierto, en tierra de indios. La segunda parte es a base de cantos y payadas por parte de
Martín y sus dos hijos y el hijo de Cruz –que relatan sus respectivas miserias-, más un
negro hermano del asesinado. Al final los cuatro gauchos se despiden, simbólicamente
cambian sus nombres y se separan, como mostrando el final de un mundo de gauchos y
el principio del mito.
En la época en que Hernández escribe su obra maestra, el gaucho ya es especie
casi en extinción, transformado en peón agrario a la fuerza. Las guerras civiles terminan,
pero el cercado de las pampas, el desarrollo de la agricultura y el ganado bovino, más la
llegada de ingentes cantidades de inmigrantes europeos no deja espacio para el estilo de
vida gaucho: “[...] the central social effect of fencing, the further limitation of the
gauchos’ geographical mobility” (SLATTA, 1983, p. 148). Eso sí, con esta
reivindicación del sufrimiento histórico de los gauchos, su imagen en el imaginario
argentino quedaría revalorizada y allanaría el camino para el surgimiento del mito.

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Gaucho y bandeirante: mito histórico-literario

Tras Leopoldo Lugones y su Guerra gaucha, de 1905, en la que identifica al


gaucho con el paradigma de la nacionalidad argentina por su intervención en las
Guerras de Independencia, Don Segundo Sombra, de Ricardo Güiraldes, termina de
crear el mito moderno del gaucho, idealizándolo en su novela y reencarnándolo en una
versión moderna del mismo: el paisano. En una especie de bildungsroman, Fabio
Cáceres, un joven huérfano cuenta en primera persona cómo entra bajo la protección y
aprendizaje del gaucho-paisano Don Segundo Sombra, un compendio de virtudes –
serenidad, fortaleza, camaradería, sabiduría popular, desprendimiento- y sin más vicios
que la búsqueda de libertad en una también idealizada naturaleza argentina. Con él,
aprenderá lo que significa ser gaucho:

Él me enseñó los saberes del resero, las artimañas del domador, el


manejo del lazo y las boleadoras…Me volví médico de mi tropilla, bajo
su vigilancia, y fui baquiano para curar el mal del vaso dando vuelta la
pisada…También por él supe de la vida la resistencia y la entereza en la
lucha… Y hasta en para divertirme tuve en él un maestro, pues no de
otra parte me vinieron mis floreos en la guitarra y mis mudanzas en el
zapateo (GÜIRALDES, 1926, p. 31).

Para cuando Ricardo Güiraldes escribe su novela, en 1926, ya no existían los


gauchos, y éste se puede permitir el mostrarlos con una cierta idealización romántica
despojándolos de sus defectos. El público lector argentino, por la lejanía histórica pero
al mismo tiempo por las remembranzas de un tiempo pasado idílico que quiere hacer
suyo, comienza a aceptar la figura del gaucho como lo propiamente argentino. Como
expresa Slatta (1983, p. 192),

[…] vanquished in reality, the gaucho still rides a romanticized


frontier pampa as an ideal myth and political symbol. His qualities,
real and imagined, represent an essential ingredient in the continuous
quest by Argentines to define the essence of their national character.

Incluso en Don Segundo Sombra parece existir compatibilidad entre el progreso


económico y los valores gauchos cuando al final de la novela, el personaje homónimo
le espeta al chico, que acaba de heredar una fortuna, “-Mirá –dijo mi padrino, apoyando
sonriente mi mano en mi hombro-. Si sos gaucho en de veras, no has de mudar, porque
andequiera que vayas, irás con tu alma por delante como madrina’e tropilla”
(GÜIRALDES, 1926, p. 98). De igual manera los argentinos actuales asumen su
condición de gauchos –hasta el punto de escoger como mascota para su Mundial de

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fútbol de 1978 a Gauchito- dentro de la modernidad, pero eso sí, basándose en unos
modelos idealizados que poco corresponden con la realidad histórica de un personaje
despreciado y admirado a partes iguales en su tiempo –a la manera de Sarmiento y de
José Hernández-, pero de cualquier modo incompatible con la consolidación del estado
moderno. Una fascinación semejante tiene Jorge Luis Borges por la figura del gaucho,
aunque al mismo tiempo hace referencia al binomio civilización-barbarie de Sarmiento.
En El Sur, muestra a Juan Dahlman, secretario de biblioteca y producto civilizado de la
ciudad pero con abuelo materno gaucho, al que en un viaje a sus estancias en el sur, el
destino le hace morir como tal: “Sintió, al atravesar el umbral, que morir en una pelea a
cuchillo, a cielo abierto y acometiendo, hubiera sido una liberación para él, una
felicidad y una fiesta” (BORGES, 1989, p. 527).
El caso de los bandeirantes brasileños tiene muchos paralelismos con el de los
gauchos. A partir de la segunda mitad del siglo XVIII el oro de Minas Gerais comienza
a escasear, ya no hay tantas nuevas tierras por conquistar y el modo de vida bandeirante
deja de tener sentido. Los bandeirantes acabarán asentándose en el sertão –y
convirtiéndose en sertanejos, descritos desde el naturalismo literario de Euclides da
Cunha en Os Sertões en 1902- en la zona de Minas Gerais donde tantos pueblos fueron
fundados, o en el Mato Grosso, donde la extracción de oro duró hasta principios del
siglo XIX. Con los tratados de Madrid (1750) y de San Ildefonso (1777) entre España y
Portugal, las fronteras entre ambos países en América quedaban bien marcadas y
defendidas militarmente, por lo que el bandeirante, al igual que el gaucho un siglo más
tarde, vería su libertad de acción muy limitada. Casi un siglo después de la desaparición
del personaje histórico, su memoria comienza a ser reivindicada. Según Souza, la
aparición del mito bandeirante tiene una relación directa con el ascenso económico y
político de las élites paulistas cafeteras desde la segunda mitad del siglo XIX y la
necesidad por parte de estos de buscar unas raíces más o menos legendarias:

Delineou-se com toda a clareza, enfim, uma preocupação ao mesmo


tempo historiográfica e ideológica, presente principalmente na obra de
historiadores paulistas da primeira metade do século XX, em estudar a
formação da população paulista a partir da biografia de seus
antepassados ilustres, encarnados na figura do bandeirante. Cria-se,
assim, uma genealogia na qual o paulista contemporâneo surge como o
descendente (SOUZA, 2007, p. 162).

La economía de São Paulo se convierte en el motor económico del país, y en


busca también del poder político, comienzan una reivindicación de sus orígenes y de la
importancia del bandeirante para la construcción del estado brasileño. Al igual que en el

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caso del gaucho, la romantización del personaje –una vez ya extinguido- y la
justificación de sus defectos y acciones más negativas –esclavismo y matanza de
indios- forjan un mito que habría de servir a una función específica: reivindicar el lugar
de los paulistas dentro de la civilización brasileña, lugar que, dicho sea de paso, había
sido históricamente despreciado por el poder político y cultural de Río de Janeiro.
Aún así, a pesar del surgimiento del mito bandeirante, en el imaginario brasileño,
al contrario que en el argentino, es el indio el que ocupa un lugar más universal como
forjador de la raza y de la civilización brasileña. El motivo de esto es la creación en el
siglo XIX de otro mito literario en Brasil: el del indio, una especie de buen salvaje
rousseauniano con nobleza de carácter y valentía. De ello se encargarían los escritores
del romanticismo indigenista: Gonçalves Dias, con su poema épico I-Juca-Pirama, de
1851; o José de Alencar, con su O Guarani, de 1857 -con los personajes del indio Peri y
la portuguesa Cecilia, como los originarios de la raza brasileira- y con su Iracema, de
1865 –esta vez juntando a la india Iracema con un portugués, Martim, naciendo Moacir,
el primer cearense-.
Al elevar al indio al rango de padre o madre de la raza brasileña, en ese universo
romántico al bandeirante no le quedaba sino un papel subalterno, e incluso negativo,
como aventurero que intenta aprovecharse de unos y de otros. Aún así, durante el siglo
XX, el bandeirante es ensalzado, al menos en tierras paulistas. Oswald de Andrade,
promotor de la Semana de Arte Moderna en 1922 en São Paulo, en su Manifesto da
Poesia Pau Brasil, de 1924, incluye al bandeirante como algo esencial brasileño a
exportar a través de la poesía no contaminada por las influencias extranjeras: “Bárbaro
e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O mineiro. A cozinha. O vatapá, o
ouro e a dança. Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil”
(ANDRADE, 1976, p. 1). En su Manifiesto Antropófago, de 1928, con su rechazo a lo
puramente europeo así como lo religioso pero su capacidad de asimilar lo extranjero
(antropofagia) también parece hacer referencia al carácter paulista y bandeirante
mestizo.
Con todo, a partir de los años 60 del siglo XX comienza la historiografía
brasileña a sufrir un cambio de actitud hacia el mito del bandeirante, cuestionando los
textos anteriores: “De qualquer forma, a década de 1960 pode ser tomada como divisor
de águas, assim como o processo de revisão do livro Vida e Morte do Bandeirante, de
Alcântara Machado como um dos pontos de partida” (SOUZA, 2007, p. 153).

Consideraciones Finales
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Tanto el gaucho como el bandeirante argentino han tenido gran influencia en la
formación de sus respectivos futuros países: aquél, en la frontera negociando con indios
o luchándolos, además de las guerras de independencia contra los españoles; el
bandeirante, a través del traslado de la línea de Tordesillas mediante sus bandeiras en
busca de indios y oro, y sus ataques a las misiones jesuíticas. Pero en ambos casos, el
patriotismo que parecen inventar sus hagiógrafos creadores del mito, es inexistente: en
el gaucho, se reduce a su rancho, al pueblo donde ha nacido o como mucho, a su región;
pero ni eso, ya que, como alma nómada que es, continuamente cambia de lugar, a veces
incluso a tierra de indios para huir de la leva militar obligatoria. Para el bandeirante, la
bandeira significa una especie de suerte personal, muy individual, en busca de tesoros,
riqueza, y en algunos casos, fama. Curiosamente, “[…] residents of Buenos Aires
engaged in malocas or slave-hunting expeditions to counter their chronic labor
shortages” (GUY; SHERIDAN, 1998, p. 92); con lo que podemos crear un vínculo más
entre ambas zonas geográficas, aunque a continuación los historiadores
norteamericanos aclaran: “These slaving expeditions did not have the same grand scale
as those of bandeirantes from Sao Paulo, Brazil” (GUY; SHERIDAN, 1998, p. 92).
También, las montoneras, o ejércitos de gauchos en las guerras de independencia, por el
elemento mestizo en su composición y el uso de técnicas de guerrilla frente a los
ejércitos españoles, tienen algunos puntos en común con la bandeira compuesta por
indios y caboclos. De cualquier manera, el efecto de las acciones de ambos personajes
en relación con la creación del estado, les era totalmente ajeno, ya que ambos se movían
a un nivel más individual, y en muchas ocasiones como víctimas de ese propio estado
que estaban ayudando a formar.
Ambos son producto de la tierra en la medida en que son mestizos, de blanco e
indio, y en menor medida, de negro. Por su época más tardía en el tiempo, el caso del
gaucho parece un poco más homogéneo, ya acriollado, distinguiéndose claramente del
indio, al que considera un salvaje; también existían algunos gauchos negros. En el caso
de las bandeiras, dicha homogeneidad simplemente no existía, puesto que había
algunos bandeirantes blancos, aunque gran parte la formaban los caboclos mestizos, e
incluso había indios puros y negros. El sertanejo brasileño resultante en el siglo XIX
bien podía parecerse racialmente al gaucho argentino.
El caso de la lengua es peculiar, porque el gaucho emplea un español lleno de
arcaísmos y barbarismos con algunas voces indígenas, especialmente de topónimos y
nombres propios de plantas y animales. El bandeirante emplea la lingua geral, el tupí-
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guaraní, que se utilizaba de forma generalizada en São Paulo, y ello denota la fuerte
influencia indígena en la zona. La literatura gauchesca de José Hernández y Ricardo
Güiraldes nos muestra fielmente como debían hablar los gauchos del siglo XIX. Sin
embargo, en el caso de los bandeirantes, su literatura en portugués pasa por un proceso
de traducción-invención poética y poco realista.
Tanto gauchos como bandeirantes gustaban de cantos y payadas a modo de
enfrentamientos verbales, como nos muestra la literatura gauchesca del Martín Fierro y
la historiografía bandeirante y sertaneja: “É o começo da luta, que só termina quando
um dos bandos se esgarça numa rima difícil e titubeia” (CUNHA, 1998, p. 60).
También mezclaban supersticiones y creencias de españoles, portugueses e indios,
creando un imaginario fantástico que se adaptaba a la tierra y a sus sueños. Por ejemplo,
los bandeirantes creían en la leyenda de la Sierra Resplandeciente, en la del Lago
Dorado, o en la de la Mano de Oro (RIBEIRO, 1946, p. 44). Y los gauchos las incluían
en sus relatos, como hace el personaje de Segundo Sombra en la novela de Güiraldes.
También en ambos casos, a la desaparición del tipo histórico y social es cuando
comienza la creación del mito a través de la literatura y de la historiografía. Como
ejemplos de ello tenemos al parnasianista Olavo Bilac escribiendo un poema épico
sobre el bandeirante Fernão Dias Pais doscientos años después de la muerte de éste, o a
Ricardo Güiraldes escribiendo bondades de los gauchos y omitiendo sus defectos
cuando estos ya se habían reconvertido en peones agrícolas. En ambos casos, aunque
sendos tipos históricos fueron necesarios para la formación de sus respectivos países, al
mismo tiempo sus estilos de vida eran incompatibles con el mundo moderno. Y por
distintos motivos se acierta a crear sendos mitos literarios como una forma de
recompensar su participación en la construcción del país, pero también como una forma
de reafirmarse frente a lo europeo y buscar la esencia de la argentinidad en el caso de
los gauchos; y como una forma de crearse un aristocrático pasado sin que provenga
exclusivamente de Europa, como sucede con los bandeirantes. En el caso de los
gauchos, el proceso de mitificación y de identificación con el mito por parte de los
argentinos actuales ha sido exitoso, como vemos en anécdotas como la de escoger a un
Gauchito como mascota del Mundial de fútbol en Argentina en el año 1978. Pero en el
caso de los bandeirantes, dicho éxito lo ha sido sólo a nivel local, en São Paulo, de
donde provenían los susodichos, ya que como tipo nacional ha quedado establecido el
indio –otro mito literario en sí mismo.

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Artigo recebido em 15/05/2013. Aprovado em 22/09/2013.

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BRÁS CUBAS: O SOBRINHO DO TIO

BRÁS CUBAS: NEPHEW’S UNCLE1

Ewerton de Sá KAVISKI•

Resumo: O presente artigo tem como objetivo rediscutir a posição de Memórias Póstumas de
Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, em relação ao romance oitocentista brasileiro.
Pretende-se evidenciar as rupturas e as continuidades que o romance machadiano possui em
relação à prosa de ficção anterior. Trata-se de traçar um fragmento de uma possível tradição
interna do romance oitocentista. Para tanto, analisarei A Carteira de Meu Tio (1855), Joaquim
Manuel de Macedo, de modo a evidenciar algumas relações, de continuidades e rupturas, com
Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Palavras-chave: Romance Oitocentista – Machado de Assis – Joaquim Manuel de Macedo.

Abstract: This article aims to discuss the position of Machado de Assis’ Memórias Póstumas
de Brás Cubas, regarding Brazilian Nineteenth Century novel. It aims to underline the ruptures
and continuities between Machado de Assis’ novel and previous fiction prose. The idea is to
map a fragment of a possible internal tradition in Brazilian novel. In order to do this, I will
analyze A Carteira de Meu Tio (1855), written by Joaquim Manuel de Macedo, in order to
establish some connections to Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Keywords: Nineteenth-Century Novel – Machado de Assis – Joaquim Manuel de Macedo.

Introdução

Um Mestre na Periferia do Capitalismo (1990), de Roberto Schwarz, representa


um divisor de águas na fortuna crítica sobre a obra de Machado de Assis, em especial de
Memórias Póstumas de Brás Cubas. É com a perspectiva elaborada por Roberto
Schwarz que surge uma nova forma de ler a obra machadiana, muito diferente, ainda
que complementar, das abordagens críticas até então realizadas2. Em linhas muito
gerais, a inovação da leitura está justamente na articulação entre a obra de Machado de
Assis e o andamento histórico e social do Brasil oitocentista; perspectiva em que a obra
é encarada como a “redução estrutural” desse mesmo andamento histórico e social.
A partir dessa nova perspectiva, as Memórias Póstumas de Brás Cubas, o
romance que nos interessa aqui, surgem, por um lado, como uma obra em forte diálogo
com o Brasil, revelando uma refinada reflexão de nossa experiência histórica e social;
por outro, a obra aparece também como um dos momentos altos da tradição literária


Doutorando em Letras – Programa de Pós-graduação em Letras – UFPR, Rua Gen. Carneiro, 460, CEP:
80060-150, Curitiba, Paraná – Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: ekaviski@bol.com.br.

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brasileira, em que se encontra uma síntese entre forma literária e matéria local. O valor
desse romance estaria justamente na forma de organização da narrativa em torno de uma
recorrência estilística, a volubilidade de Brás, que determinaria a estrutura romanesca
até no detalhe. A centralidade da volubilidade no romance não aponta somente para o
seu caráter estruturante, de princípio formal, para usar de uma expressão de Roberto
Schwarz, mas também para o diálogo que a obra estabelece com a experiência histórica
e social. A volubilidade também é a “redução estrutural” do andamento histórico e
social do país no século XIX, que está relacionado diretamente com a experiência de
nossas elites imprensadas entre ideologia liberal e relações de produção escravistas.
Nesse sentido, as Memórias Póstumas seriam a síntese artística de certa experiência
brasileira. Residiria aí a originalidade e superioridade de Machado de Assis em relação
a seus contemporâneos e a si próprio, no tocante a sua “primeira fase” (de Ressurreição
a Iaiá Garcia). Originalidade e superioridade são implicações da visão forjada por
Schwarz que nos interessa destacar:

Em que consiste a força do romance machadiano da grande fase? Há


relação entre a originalidade de sua forma e as situações particulares à
sociedade brasileira no século XIX? Que pensar do imenso desnível
entre Memórias póstumas de Brás Cubas a nossa ficção anterior,
incluídas aí as obras iniciais do mesmo Machado de Assis? Ou por
outra, quais as mudanças que permitiram levantar ao primeiro plano
da literatura contemporânea um universo cultural provinciano,
desprovido de credibilidade, tangivelmente de segunda mão?
(SCHWARZ, 1990, p. 9, grifo do autor).

As respostas a esta e outras perguntas estão na longa e excelente análise das


Memórias póstumas presente em Um Mestre na Periferia do Capitalismo. Se não
estivermos forçando a nota, e acreditamos este não ser o caso, a leitura de Roberto
Schwarz coloca Memórias Póstumas de Brás Cubas em um lugar sem precedentes em
nossa tradição literária, original na forma e no conteúdo; e, ao mesmo tempo, faz dessa
mesma obra um monumento suficientemente contrastante em relação ao que veio antes.
É claro que, em mais de um momento, Roberto Schwarz chama a atenção, por exemplo,
para a continuidade que há entre o uso, centralizado pela volubilidade de Brás, de
“apólogos, anedotas, vinhetas, charadas, caricaturas, tipos inesquecíveis” e “as formas
bonachonas” presentes na prosa de ficção anterior:

Curiosamente o rigor sem falha com que Machado dobrou a forma do


romance aos imperativos da volubilidade, rigor em que a parte da
amargura e da descrença em face da sociedade contemporânea é
grande, deu margem por sua vez ao aproveitamento de formas

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bonachonas e bem aceitas de espelhamento social, num espírito que
não desdiz da Moreninha de Macedo ou da crônica jornalística da
época, o que terá facilitado o êxito de um escritor tão estranho
(SCHWARZ, 1990, p. 49).

Ao reconhecer o aproveitamento machadiano de situações e figuras da tradição


literária brasileira, Roberto Schwarz acentua exatamente uma diferença de nível entre
Machado e os demais escritores – diferença esta que aquilata o poder de alcance da
visão machadiana:

As figuras e situações não eram novas, pois andavam pela ficção de


Martins Pena, Macedo, Manuel Antônio de Almeida e Alencar, bem
como pelo humorismo jornalístico do período. Mas agora, mediante
estes exercícios de futilidade escarninha, ganham altura de grande
arte (SCHWARZ, 1990, p. 57).

Nesse sentido, a questão que se coloca, do ponto de vista historiográfico, à


reflexão de Roberto Schwarz está relacionada ao rebaixamento da tradição literária
operado em seu estudo para a apreensão da originalidade e grandeza da obra
machadiana. Parece-me que ainda está por se traçar, dentro da perspectiva de Schwarz,
as linhas de continuidade entre Machado de Assis e seus antecessores. Trata-se de um
esforço em se criar uma visão que compreenda a originalidade da obra machadiana, nos
termos colocados por Schwarz, também como um aproveitamento da tradição literária
precedente, tanto no sentido de ruptura como de continuidade3.
O objetivo do presente artigo é justamente sugerir algumas reflexões nesse
sentido. Para tanto, pretendo apontar algumas relações de continuidade e ruptura entre
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e A Carteira de Meu Tio (1855), de Joaquim
Manoel de Macedo. Trata-se de sugerir possíveis relações estruturais e ideológicas entre
as duas obras de modo a se chamar a atenção para a forte relação que há entre a obra de
Machado de Assis e à obra de Joaquim Manoel de Macedo. Diríamos que uma possível
matriz nacional para Memórias Póstumas de Brás Cubas é A Carteira de Meu Tio,
romance satírico pouco lembrado pelos estudiosos da Literatura oitocentista brasileira.

A Carteira de Meu Tio

O que mais chama atenção, diria, em o narrador de A Carteira de Meu Tio (1855)
é sua retórica cara-de-pau – tradução de uma insolência e falta de escrúpulos por parte
daquele que narra –, e que enforma grande parte das digressões críticas sobre a política

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do Segundo Reinado. Essa retórica está perfeitamente formulada já nos primeiros
parágrafos da “Introdução et cetera”:

Eu digo as coisas como elas são: há só uma verdade neste mundo, é o


Eu; isto de pátria, filantropia, honra, dedicação, lealdade, tudo é peta,
tudo é história, ficção, parvoíce; ou (para me exprimir no dialeto dos
grandes homens) tudo é poesia (MACEDO, 2001, p. 10).

Note-se a impertinência enunciada: o narrador assume, claramente, uma


constelação de valores que o tornam, numa certa clave de valores oficiais, um impostor
mau-caráter – como haveria de notar seu próprio tio em conversa com o sobrinho: “[...]
tens as duas principais qualidades que são indispensáveis ao homem que quer subir: és
impostor e atrevido” (MACEDO, 2001, p. 14). Trata-se de um esforço de clara afronta,
por parte do narrador, aos leitores de seu relato de impressões de viagem, num
atrevimento revestido de uma sinceridade insolente. E é por essa “sinceridade” de “eu-
digo-as-coisas-como-elas-são”, sem nenhum escrúpulo, que o narrador literalmente joga
na cara do leitor, já no primeiro parágrafo da “Introdução et cetera”, uma regra pessoal e
que ele reputa a sua época: “[...] cada um trate de si antes de tudo e de todos”
(MACEDO, 2001, p. 9). Atente-se para a maneira como se estrutura e sustenta a retórica
cara-de-pau do sobrinho-narrador: por meio de uma insolência e atrevimento que se
revestem de um valor-desculpa – a sinceridade4.
A retórica cara-de-pau, que produz uma estridência ao longo de todo o romance,
repete-se, por exemplo, na apresentação formal do narrador ao leitor. Ele não hesita em
reduzir sua identidade como indivíduo à identidade do tio, que é rico e, portanto,
“alguém”: “Senhores, eu sou sem mais nem menos o sobrinho de meu tio: não se riam,
que não há razão para isso: queriam o meu nome de batismo ou de família?... não valho
nada por ele, e por meu tio sim, que é um grande homem” (MACEDO, 2001, p. 11,
grifo do autor). E interrogado pelo tio, páginas à frente, sobre o que pretendia ser, a
resposta saiu cinicamente pronta: “Tenho assentado que devo continuar a ser sempre o
sobrinho de meu tio” (MACEDO, 2001, p. 13). Insolência e atrevimento que são
reforçados, ainda quando o narrador se dirige ao leitor sobre isso que ele chama de seu
“estúpido vício da franqueza”, chamando-os ou de “patetas” ou advertindo-os para onde
seguir, caso o critiquem:

Aquele que enrugar a fronte com esta minha franqueza ou é um velhaco


ou um tolo: se for velhaco, não espere que eu lhe dê satisfações; pode ir
seguindo a sua derrota; abra as velas de seu barco, faça boa viagem,
pois que lhe sopra vento galerno e propício, e não se importe comigo.

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Agora se for tolo, o remédio é antigo e sabido: - peça a Deus que o mate
e... et cetera. (MACEDO, 2001, p. 9). 5

Bem observado, todas as citações que exemplificam a constância dessa retórica


cara-de-pau foram retiradas da “Introdução et cetera”, onde esse traço marcante do
narrador de A Carteira de Meu Tio é construído e explicitado propositalmente. Mais que
isso: a insistência em enfatizar, pelas citações, essa retórica cara-de-pau revela que ela, a
retórica, é, pela recorrência, um princípio de organização interna do romance, pois arma
o olhar que compõe a narração. Nesse sentido, a “Introdução et cetera” desempenha um
papel importante para o início do romance: ela demarca claramente esse ethos do
narrador. Ela funciona como a enunciação-encenação desse princípio, indicando por
qual nota os capítulos que compõe a narrativa são escritos. Se não forçamos a
comparação, estamos diante de um comportamento volúvel e caprichoso, que também
será o princípio formal das Memórias Póstumas. Adiantamos, entretanto, que ao se
assumir essa função estruturante da introdução não se deve pensar que há uma
correspondência mecânica e orgânica com a execução dos capítulos: ao contrário, como
pretendemos demostrar, os quatro capítulos do romance não sustentam o princípio
formal de organização da economia narrativa – diferença significativa para se perceber
um possível parentesco entre as duas narrativas.
Voltando ao princípio formal propriamente dito: naturalmente que toda essa
insolência e cara-de-pau do narrador possuem uma dimensão crítica dentro do romance.
Vira e mexe, o narrador complementa esses momentos de sinceridade atrevida com as
seguintes observações: “Eu gosto de cingir-me aos usos de minha terra” (MACEDO,
2001, p. 11); “A regra, à que me cingi, não tem nada de vil nem de baixa; e a prova é
que ela nos vem dos grandes, que não são vis, e se observa no poleiro político, que não
fica embaixo” (MACEDO, 2001, p. 9). O emparelhamento entre aquilo que o narrador
assume serem suas atitudes e a sintonia que essas mesmas atitudes possuem com o meio
social provoca um efeito curiosamente crítico: o momento dessa retórica cara-de-pau é o
momento também de crítica (in) direta, que, ao ser executada, faz do narrador um
falador engraçado e crítico de si mesmo e, pelo emparelhamento, dos outros. Daí os
momentos de auto-elogio, de dissertar sobre si mesmo e de exercício de insolência e
boçalidade serem galvanizados por um crivo crítico feroz. Daí, também, as reflexões,
observações e comentários-alfinetadas do narrador sobrinho-de-seu-tio terem que ser
lidos, por vezes, de trás pra frente6. O dado fundamental – para entender a organização
interna da narrativa – que se tira desse aspecto do romance é o seguinte: o arsenal

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crítico é enunciado e – o que é mais importante – convive no âmbito da retórica cara-
de-pau do narrador.
Sintetizando e explicitando tudo o que foi dito até aqui: a retórica cara-de-pau do
narrador expressa uma questão fundamental para a construção da narrativa – a
encenação de um narrador que, arrimado à sombra do tio, traz para o centro da narrativa
sua posição de classe e todas as implicações que dela derivam; armando, a princípio, um
olhar sobre a realidade local pela lógica dos de cima. Isto é, a retórica cara-de-pau é a
expressão de alguém da classe dominante assumida pelo narrador. Nesse sentido, poder-
se-ia dizer que A Carteira de Meu Tio é um exercício de ficcionalização de um narrador
e de sua posição social – mas, cabe dizer, uma ficcionalização de classe que se realiza
parcialmente, pois, há três outros aspectos que se devem levar em conta: (a) o narrador,
por vezes, perde a retórica cara-de-pau e faz realmente críticas diretas, com intenções
marcadamente corretoras e que expressam desejo de mudança; (b) a presença do
compadre Paciência, voz antagônica do sobrinho-narrador, que suspende a retórica cara-
de-pau desse narrador com suas intervenções e explicitações de sentido, imprimindo
uma direção de significado crítico àquilo que aparentemente era só um exercício de
insolência e atrevimento do narrador. O terceiro aspecto (c) está relacionado com os
dois anteriores e diz respeito a uma questão formal, fundamental para se entender o uso
da narrativa em primeira pessoa na prosa de ficção oitocentista: por trás da narrativa, ou
acima dela, há uma figura mais forte do que o sobrinho-narrador – uma instância
autoral, que controla e usa o narrador e o compadre Paciência, principalmente, de modo
que a intenção crítica do romance fique evidente. É por isso que a ambigüidade que a
retórica cara-de-pau do narrador poderia provocar é neutralizada pelas falas do
compadre Paciência que diz tudo com todas as letras. Na falta do compadre, como é o
caso do início do romance, o narrador suspende a retórica cara-de-pau e,
temporariamente, assume – ou deixa que a voz autoral assuma – uma retórica mais
politicamente correta. Nessa síntese se advinha o movimento interno do romance. O ato
de ficcionalização de um narrador – com uma posição de classe marcada e sua
insolência e atrevimento, que timbram certa cretinice e mau-caratismo – é boicotado
pela intenção de crítica social à política do Segundo Reinado. A vacilação do
movimento interno do romance revela justamente um problema de forma, como
veremos, fundamental para se entender a constituição de uma voz narrativa mais
organicamente entrosada à matéria narrada.

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Um problema formal: a dissociação entre narrador e autor

Há um duplo movimento na voz do sobrinho-narrador de A Carteira de Meu Tio


que é contraditório, porque possui orientações diferentes: por um lado, essa voz formula
comentários que revelam um descaramento e aceitação das práticas políticas e sociais
(patronagem, conciliação, corrupção, mentira), numa retórica muito cara-de-pau; de
outro, essa mesma voz faz diversas críticas corretivas que põe as mesmas práticas
políticas e sociais descaradas num limbo moral. No plano da estrutura narrativa, o duplo
movimento persiste: há um narrador insolente que nos informa de suas opiniões
políticas; e uma intenção, que circunscreve o discurso romanesco como um todo, de
crítica empenhada sobre algumas práticas políticas do Segundo Reinado. Esse duplo
movimento está registrado, por exemplo, em um parágrafo-comentário como o que se
segue. Depois de dizer que tinha “[...] a Constituição do Império na conta de uma
espécie de sorvete” (MACEDO, 2001, p. 74), o narrador comenta:

Realmente divertiu-me muito a leitura da Constituição; lembrou-me


que aquele nenê, que lia, soletrando, devia aborrecer tanto o pobre
livrinho, que o privava de estar fazendo travessuras, como certos
tamanhões, que o lêem por cima, desprezando seus ditames, atacam
suas bases, sofismam os seus princípios, exatamente porque o
orgulhoso livrinho pretende levantar imaginárias barreiras aos abusos
de poder (MACEDO, 2001, p. 74, grifo do autor).

O duplo movimento pode ser intuído pelo desnível que há entre a irreverência da
comparação com o sorvete e a constatação crítica do narrador sobre o que alguns
políticos fazem com a Constituição. Num nível mais detalhista, a evidência textual de
uma seriedade crítica no excerto, incompatível com a irreverência da comparação, está,
diria, no uso dos verbos desprezar, atacar e sofismar e dos substantivos tamanhões e
abusos de poder. É como se houvesse uma alternância de duas vozes: o narrador-
canastrão e o narrador-crítico-empenhado. Se no excerto a sensação da duplicidade do
narrador é sutil, no romance é gritante: o discurso do sobrinho narrador oscila entre a
desfaçatez de classe, para usarmos de uma expressão de Roberto Schwarz, e a crítica
empenhada das práticas políticas da mesma classe a qual ele pertence. Às vezes, essas
duas direções estão no mesmo comentário, como no excerto acima; outras vezes, estão
em comentários separados, mas não menos antagônicos, pois se contradizem ao se
tomar o romance como um todo. Deriva-se desse último caso, por exemplo, o
estranhamento que causa o defensor da política do EU, fazer críticas como a que se
segue:
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O cobrador retirou-se, dando uma risada, mas eu não fiz caso: estava
então convencido de que quem paga o tributo da barreira de uma
estrada adquire o direito de achar estrada boa, a menos que o governo,
que levanta a barreira, não queira passar por estelionatário: pobre tolo!
Tinha-me esquecido de que em honra e glória desta instituição
chamada barreira, que tem aproveitado a outras nações, e que na nossa
se acha completamente desacreditada pela incúria do governo [...]
(MACEDO, 2001, p. 32-33).

O excerto acima mostra que a cretinice dos comentários some para dar lugar a
uma crítica séria. O narrador cara-de-pau – impostor e atrevido nas palavras de seu tio –
desaparece para que outra voz apareça: oposta e preocupada em criticar severamente o
sistema político cujo eixo estruturante – a lógica do Eu –, o sobrinho-narrador
compartilha, como atestam seus comentários-cara-de-pau anteriores. É como se o
sobrinho-narrador tivesse esquecido toda a sua insolência e assumido uma nova
retórica: a retórica político-reformadora. Essa reflexão crítica, com a retórica trocada,
prossegue parágrafos à frente: “[...] Pareceu-me ver a negligência do governo da
província dormindo o sono da indiferença em um leito de lamaçal, por baixo da crosta
torrada pelo sol, que eu via cobrindo aquele tremendo atoleiro” (MACEDO, 2001, p.
33). Atente-se para o uso do narrador em primeira pessoa que resulta dessa
esquizofrenia narrativa: ainda que os verbos estejam conjugados em primeira pessoa, o
tom retórico trocado remete a outra entidade, o que faz pensarmos – levado em conta a
expressão “pobre tolo!”, na penúltima citação, e o uso passivo do verbo parecer, na
última – em uma segunda voz, cuja natureza, por vezes, parece ser de terceira pessoa7.
Dito de maneira direta: a troca de retóricas leva a ver no uso de uma primeira pessoa,
uma terceira pessoa escondida. Um descompasso, dentro da voz narrativa, muito
sugestivo: a encenação ficcional do sobrinho-narrador é suspensa e aparece na boca de
cena outra entidade narrativa séria: a pista do descompasso – a troca de uma retórica
cara-de-pau por outra político-reformadora8.
Bem observado, percebe-se que essa segunda voz aparece, enquanto formulação
clara, em momentos específicos da narrativa – embora esteja ostensivamente atrás de
cada frase. Ela surge quando se quer realmente fazer uma crítica – isto é, quando se
quer explicitar a crítica imanente ao romance. Dentro das falas do sobrinho-narrador,
essa voz aparece para explicitar a crítica que a própria retórica cara-de-pau do narrador
já veicula. É como se a crítica não pudesse subsistir no romance de outra forma que não
a dita com todas as letras. Nessa mesma linha de raciocínio, pressente-se que, quando

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uma personagem – em especial, o compadre Paciência – emite um juízo crítico
definitivo, é essa segunda voz que está por detrás da personagem.
Para quem tenha lido o romance com a mínima atenção, deve ter parecido
estranho que ainda não se tenha falado no forte intuito a provocar o riso do qual A
Carteira de Meu Tio está revestida. Com efeito, esse é um dado fundamental para
entender a presença das duas vozes narrativas. A retórica cara-de-pau e a crítica
empenhada, no que pesem as diferenças entre si e a dubiedade que timbram na estrutura
romanesca, visam claramente a imprimir no romance uma marca satírica e burlesca.
Esses dois recursos formais, que despertam o riso fácil, possibilitam a convivência, no
mesmo discurso, das duas vozes acima destacadas: a voz cara-de-pau do narrador, cujas
falas fazem rir; e aquela segunda voz, cuja seriedade e empenho crítico são marcantes.
Esse cunho satírico e burlesco reveste a estrutura do romance de uma intenção corretiva.
Machado de Assis, ao criticar a peça A Torre em Concurso (1863), de Joaquim Manuel
de Macedo – também uma crítica aos costumes políticos da época –, tocou exatamente
nesse ponto formal melindroso: “Nada menos cômico que aquela sucessão de cenas
grotescas; mas, através de todas elas, não se perde a intenção satírica do autor”, pois
“[...] sobram as tintas carregadas, acumuladas no intuito de criticar os costumes
políticos” (ASSIS, 1959b, p. 251, grifo meu). Sob essa chave, Machado de Assis
reclama muito, na peça, de um recurso que também é utilizado em A Carteira de Meu
Tio. A personagem Batista, a certa altura do entrecho, muda de partido por conta de uma
desavença e diz: “Faço o que muitos tem feito; arranjo a vida; estou passado.” Para
Machado esse é o pior tipo de observação a ser feita quando se tem por objetivo fazer
rir: “Esta maneira de repisar a observação cômica, tira-lhe a energia e o efeito; cai na
sátira; já não é o personagem, é o autor quem exprime por boca dele um juízo político”
(ASSIS, 1959b, p. 253). Essas observações que Machado faz, para além de um
sistemático trabalho de desmonte da fama de Macedo, sugerem uma conclusão sobre a
natureza da segunda voz em A Carteira de Meu Tio: é a manifestação da instância
autoral, de um Macedo-crítico dentro do discurso romanesco.
Com efeito, a segunda voz no romance parece se arrimar à voz externa
pressuposta em uma narrativa cuja intenção, destacadamente, é fazer uma sátira a algo
externo ao texto. O que faz de alguns episódios alegorias a situações históricas
concretas. Aliás, esse pragmatismo dos comentários – criticar algo realmente existente –
concorre para o reconhecimento do autor nessa segunda voz. Tamanho é o pragmatismo
do livro que a certa altura do romance – trata-se do episódio da casinha em chamas – foi

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apensa à narrativa uma nota de roda-pé, claramente voz do autor e que é similar e
complementar, em termos de orientação, a essa segunda voz:

O autor desse livro está convencido de que na Província do Rio de


Janeiro, a mais civilizada do Império, não se observam fatos como
esse que aí vai imaginado; mas, desgraçadamente, em outras
províncias, e com especialidade em algumas do Norte, têm tido lugar
não poucos atentados tão horrorosos como esse; e pois que está no
pensamento do autor atacar os abusos, e a desmoralização, acredita ele
que pode bem supor praticados nesta ou naquela província, onde fizer
viajar seu herói, as ilegalidades e os crimes que em qualquer outra
parte do Império se tem observado (MACEDO, 2001, p. 67).

Essa nota de roda-pé dá ensejo a outro aspecto da narrativa que corrobora a


aproximação entre segunda voz e autor. O recuo ideológico, que a narrativa dá a certa
altura, em seu potencial crítico reforça essa sobreposição. O recuo revela certo receito
de punição que só poderia recair no nome que o livro leva na capa: Joaquim Manuel de
Macedo9. Quando, por exemplo, o compadre Paciência se exalta em uma de suas
críticas, no final do capítulo 2; ele logo alinhava com a seguinte observação: “[...] a
monarquia brasileira é bela como uma obra do céu, e não se pode por modo algum
identificar com os tais maganões, que, se os julgarmos por suas obras, devem ser feios
como um pé de pato!” (MACEDO, 2001, p. 38, grifo nosso). O insolente sobrinho-
narrador demonstra o mesmo receio de ser mal interpretado, quando ele faz uma
ressalva ao maniqueísmo rico-desonesto e pobre-honrado:

Bem entendido: eu não trato aqui do homem honrado e rico, que teve
desde o berço honra e riqueza, nem de muitos e muitos que,
trabalhando incessantemente e ajudados sempre pela fortuna,
conseguiram chegar à opulência sem o menor sacrifício da
honestidade. Faço os meus comprimentos a todos esses senhores;
desejo-lhes uma saúde e cem anos de felicidades; mas ponham-se de
largo, que o meu negócio agora não é com eles. Homens de bem, ricos
e pobres... à retaguarda: tratantes ricos – à frente!... (MACEDO, 2001,
p. 49-50).

É quase um medo a represálias que essas passagens de recuo crítico expressam.


Daí, talvez, as críticas mais fortes estejam na boca do compadre Paciência, pois isenta,
assim, o narrador e seu “representante real”, o autor, de responsabilidade ao que se vai
criticando na narrativa10. Aliás, o recuo ideológico se reforça ao final do livro: o
compadre Paciência – que encarna a partir do final do capítulo 2 a voz contra o sistema
político vigente – serve de bode expiatório, promovendo, no plano ideológico, uma
conciliação da narrativa denunciadora com o sistema até então criticado. Após uma
longa e divertida discussão, mesclada de xingamentos e bordoadas, Paciência termina
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ironicamente preso e com a única promessa de ser solto pela intervenção de um maioral,
no caso o tio do sobrinho-narrador: “Tornando, porém, ao meu compadre, não tenho
remédio senão ir tocar os pauzinhos para tirá-lo da enxovia” (MACEDO, 2001, p. 163).
O recuo ideológico fica explícito, porque o potencial modificador do romance,
representado pelo compadre Paciência, em relação ao sistema vigente desce ralo abaixo
quando a figura que encarna a mudança é vencida por esse mesmo sistema. O conflito
que a narrativa poderia provocar acaba, no final das contas, neutralizado
ideologicamente pela prisão de Paciência e sua relocação, no sistema, como dependente
de um maioral – reforçando, no limite, o mundo de hierarquias.
Por último, interessa destacar que o pragmatismo atribuído à narrativa também é
uma razão para a existência de uma relação conflituosa entre as duas vozes narrativas. A
presença de uma segunda voz aponta para o fato de que o exercício de ficcionalização
de narrador-personagem, vil e descarado, não se sustenta no romance. As críticas ao
sistema político, que informam essa segunda voz, tornam a ficcionalização do sobrinho-
narrador cediça – isto porque não permitem que a retórica cara-de-pau se sustente,
necessitando uma alternância com uma retórica mais séria, reformadora e empenhada.
Assim, na medida em que as críticas ganham espaço na fatura dos romances, o narrador
ficcionalmente arranjado se apaga em função de outro possuidor de um tom mais sério,
quase-pragmático. No limite, já se adivinha, pode-se dizer que a ficcionalidade abre
espaço para o pragmatismo literário, típico de certa parcela de nossa Literatura
oitocentista. Vejamos a pertinência dessa observação: por um lado, a retórica cara-de-
pau é a expressão, dentro do romance, do estatuto ficcional da narrativa, pois encena um
sobrinho-narrador e uma posição social em ação; por outro, a substituição dessa retórica
por outra, político-reformadora, mais séria e direta, é a suspensão também do estatuto
ficcional da narrativa, redimensionando o romance só a uma função mais pragmática –
fazendo de A Carteira de Meu Tio um quase panfleto político.

Um episódio significativo que Machado de Assis certamente leu

Temístocles Linhares, nos três artigos intitulados “Macedo e o Romance


Brasileiro”, publicados na Revista do Livro11, foi o primeiro crítico, como já notou
Tânia Serra (1994), a tentar resgatar a obra de Macedo do limbo a que foi relegado por
Sílvio Romero, ao excluir sua produção romanesca da História da Literatura Brasileira
(1888); e José Veríssimo, que tachou seus romances de talhados por um só molde.

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Nesse resgate, A Carteira de Meu Tio (1855), juntamente com sua continuação
Memórias do Sobrinho de Meu Tio (1867-68) e A Luneta Mágica (1869), desempenham
um papel significativo, já que revelam uma faceta de Macedo ignorada pela tradição
crítica. E que minam justamente a opinião cristalizada sobre a obra do romancista.
O valor atribuído a esses romances fez com que Temístocles Linhares sugerisse
uma influência em Machado de Assis (1959b, p. 105, grifo do autor):

Mas a verdade é que muito de tais episódios lembram Machado, o que


faz supor pelo menos tenha sido Macedo uma de suas leituras
preferidas, embora muita gente possa achar desprimorosa para o autor
de Dom Casmurro essa influência de leitura12.

Flora Süssekind (1996) fez a mesma observação comparativa e aproximativa


entre os dois escritores na introdução para a mais recente edição das Memórias do
Sobrinho de Meu Tio e no ensaio O Sobrinho pelo Tio. Com efeito, se tomarmos, por
exemplo, o comentário do sobrinho-narrador, registrado naquela retórica cara-de-pau e
marcado pela insolência, sobre o despotismo com que o indivíduo da classe superior
trata alguém inferior na escala social, poderíamos lembrar o episódio, de Memórias
Póstumas de Brás Cubas, em que o negro Prudêncio, alforriado pelo pai de Brás Cubas,
é visto açoitando outro negro:

E quanto à chamada prepotência do rico sobre o pobre, entendo que


ela é muito natural. Todo o homem manda e quer ser obedecido; mas
na escala social uns mandam mais do que outros, e mesmo assim
todos mandam; até o pretinho escravo manda ao gato e ao cachorro
que tem na sua senzala; depois do escravo vem o pobre, que está dois
furos acima do cachorro e do gato, e um acima do escravo, que por
isso lhe obedece: ora, segundo a ordem natural, o pobre devia
obedecer também a alguém, e, portanto, cumpre que obedeça ao rico,
assim como o cachorro e o gato obedecem ao pretinho escravo, e este
ao pobre. Isto é lógica de ferro! Não há dúvida nenhuma, eu nasci para
ser jornalista de um ministério que pague bem! (MACEDO, 2001, p.
70).

A semelhança entre A Carteira de Meu Tio e Memórias Póstumas de Brás Cubas


não se restringe unicamente a essa lembrança de natureza temática – lembrança, diga-se
de passagem, que tomada exclusivamente em si não passa de uma mera e fraca
relação13. A relação vai muito mais além. Bem pesadas as leituras de ambos os
romances, os narradores encenam “uma desfaçatez de classe” na narração. Ou seja, o
modo pelo qual a narrativa é contada faz dos romances, irmãos: os narradores se valem
de um ethos que é associado à “classe dirigente” e que os caracteriza como impostores
de marca maior. Nesse sentido, diria que o princípio formal de organização da matéria
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ficcional em ambas as narrativas é parecido: nas duas narrativas vemos uma retórica
cara-de-pau sendo exercitada a cada observação, reflexão e comentário dos narradores –
um exercício que possui um lastro de desmascaramento crítico.
Sob essa chave, a passagem acima destacada de A Carteira de Meu Tio e o
episódio do vergalho em Memórias Póstumas de Brás Cubas parecem se aproximar de
maneira surpreendente. O denominador temático comum das duas narrativas, a
consciência de hierarquias, é informado por uma perspectiva de classe e um recurso
formal, a retórica cara-de-pau. Com efeito, em ambos os episódios, o narrador assume,
no nível do enunciado, a naturalidade e desejo de manutenção das hierarquias; ambos
possuem certo cinismo e displicência no tratamento dessa questão – comportamento
típico de quem está de cima; e, por fim, ambos os narradores filosofam sobre o tema da
hierarquia, para reforçar a verdade indestrutível de suas reflexões; e assegurar suas
posições de classe. É isso tudo que encontramos naquela passagem de A Carteira de
Meu Tio, e nas Memórias Póstumas de Brás Cubas:

Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas


conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que
sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom
capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu
fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só
exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-
lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o
Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-
a a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e
desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que
era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia
trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é
que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com
alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do
maroto! (ASSIS, 1978, p. 100).

Se parece que há similaridade entre os dois focos narrativos e a forma de


caracterização desses mesmos focos, não é menos verdade que há uma diferença brutal
nesse mesmo aspecto formal – o que faz de ambas as experiências desiguais em termos
de fatura das obras. A pista para essa diferença pode ser formulada da seguinte maneira:
aquilo que o excerto do romance de Macedo expressa diretamente; no texto
machadiano, está indiretamente presente, inscrito por baixo da narrativa, fazendo do
romance machadiano, como já notou Costa Lima (1984, p. 260), um palimpsesto. Em
outras palavras: há, no romance de Machado de Assis, um movimento de encobrimento
da lâmina crítica, o que faz tudo ser dito em meias palavras, mas não menos
ferinamente.
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Para apreender a diferença entre os dois romances – diferença sutil para a
apreensão crítica, mas gritante na leitura dos dois textos –, basta evocar o tipo de humor
formulado pelas duas narrativas: nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, domina
aquele humor “[...] mais amigo da insinuação venenosa que da denúncia” (SCHWARZ,
1990, p. 106), enquanto que em A Carteira de Meu Tio, a sátira e o burlesco tomam
conta de todas as observações, gerando o padrão inverso ao humorismo machadiano:
Macedo é muito mais amigo da denúncia com todas as letras. Essa diferença é crucial
porque revela a diferença daquele princípio formal que irmana as duas narrativas.
Embora semelhantes, os comentários críticos dos narradores se materializam na
narrativa diferentemente: na Carteira de Meu Tio, eles foram proferidos pelo narrador e
sua segunda voz; nas Memórias, eles se dispersam ao longo das situações narrativas –
estão embutidos nas ações, fatos e, principalmente, no próprio comportamento do
narrador14.
Atente-se para como se formulam nos romances as duas críticas aparentadas. Para
o humor macediano, há a necessidade de repisar aquilo que está subentendido na própria
encenação cara-de-pau do narrador, com aquela frase final: “Isto é lógica de ferro! Não
há dúvida nenhuma, eu nasci para ser jornalista de um ministério que pague bem!”
(MACEDO, 2001, p. 72). Não bastasse toda a encenação do sobrinho cretino
enunciando seu discurso de classe, “manda quem pode obedece quem tem juízo”, surge
essa frase quase de uma auto-ironia, que repete e explicita o tom de censura por detrás
das frases de sua retórica cara-de-pau. Essa frase, lembro, é manifestação daquela
segunda voz. Já nas Memórias Póstumas, Brás Cubas se limita a lembrar de uma
anedota:

Este caso faz-me lembrar um doido que conheci. Chamava-se


Romualdo e dizia ser Tamerlão. Era a sua grande e única mania, e tinha
uma curiosa maneira de a explicar. - Eu sou o ilustre Tamerlão – dizia
ele. – Outrora fui Romualdo, mas adoeci, e tomei tanto tártaro, tanto
tártaro, tanto tártaro, que fiquei Tártaro, e até rei dos Tártaros. O tártaro
tem a virtude de fazer Tártaros. Pobre Romualdo! A gente ria da
resposta dele, mas é provável que o leitor não se ria, e com razão; eu
não lhe acho graça nenhuma. Ouvida, tinha algum chiste; mas assim
contada, no papel, e a propósito de um vergalho recebido e transferido,
força é confessar que é muito melhor voltar à casinha da Gamboa;
deixemos os Romualdos e Prudêncios (ASSIS, 1978, p. 100-101).

Note-se a diferença: para a crítica existir, não há suspensão da retórica cara-de-


pau do narrador nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, como acontece n’A Carteira
de meu tio. A crítica se agudiza na mesma medida em que se acentua a desfaçatez de

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Brás Cubas. Ou seja: embora os dois romances encenem um narrador justamente para
poder desqualificá-lo – junto com os valores que esses mesmos narradores encarnam –;
as Memórias Póstumas de Brás Cubas sustentam algo que não é sustentado em A
Carteira de Meu Tio: a ficcionalidade da narrativa. Ou dito de outra forma: o romance
de Machado sustenta a retórica cara-de-pau, índice de ficcionalidade dos romances. Daí
a diferença entre a frase-crítica repisada pelo sobrinho-narrador; e a anedota contada por
Brás Cubas cuja função, no romance machadiano, é a mesma que da frase-crítica: de
desmascaramento de questões sociais. Para se testar a viabilidade dessa distinção
sugerida acima – a suspensão da ficcionalidade em A Carteira de Meu Tio – atente-se
para o alto grau de pragmatismo, já apontado mais acima, que há em algumas passagens
do relato do sobrinho-narrador e da despragmatização de todo o texto machadiano.
Bem analisado o que foi dito até aqui, todos os pontos de convergência e
divergência conduzem a uma questão formal muito importante para se entender as
diferenças entre A Carteira de Meu Tio e Memórias Póstumas de Brás Cubas, bem
como avaliar melhor a originalidade e inovação que o romance de Machado de Assis
inaugura em nossa Literatura. O burlesco no livro de Macedo produzia, como
indicamos mais acima, um efeito de dupla voz em uma narrativa em primeira pessoa.
Mais que isso, essa segunda voz poderia ser perfeitamente identificada, pela sua
função mais pragmática no discurso romanesco, a figura do autor sem necessidade de
muitas ressalvas. A substituição do burlesco pela ironia e a prevalência do estatuto
ficcional sobre o pragmático fazem ver que as Memórias Póstumas de Brás Cubas
conseguiram resolver um problema sério para o uso da narrativa em primeira pessoa.
Essa diferença parece ter sido perfeitamente apreendida por Flora Süssekind (1995, p.
18, grifo do autor):

[...] se o emprego de um narrador que conta a própria história costuma


servir de meio seguro de aproximação do leitor, a tarefa mais difícil de
Macedo, aí, parece ser, então, o exercício de um constante
distanciamento, capaz de desqualificar uma primeira pessoa narrativa
todavia onisciente. No que, não é difícil perceber, Macedo serviria de
interlocutor fundamental para que Machado forjasse o método
narrativo de seus romances pós-Memórias póstumas de Brás Cubas:
uma primeira pessoa usada ‘com intenção distanciada e inimiga’,
como o definiu Roberto Schwarz nos seus estudos sobre o romance
machadiano.

A diferença entre Memórias Póstumas de Brás Cubas e A Carteira de Meu Tio é


justamente o apagamento daquela segunda voz “estranha” encontrada na narrativa de
Macedo. Nas Memórias Póstumas, a segunda voz é substituída graças ao (a) ato de
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sustentar a retórica cara-de-pau ao longo de toda a narrativa, bem como (b) à
substituição do burlesco pela ironia – e conseqüentemente, já se adivinha, (c) à
manutenção integral da ficcionalidade ao longo do texto machadiano. Por conta dessa
diferença, o recuo ideológico que há em A Carteira de Meu Tio, como assinalei mais
acima, não existe nas Memórias Póstumas: “[...] Brás Cubas mostra que a sua
disposição escarninha não vai ficar na literatice metafísica [...]. O seu ânimo não hesita
diante do ‘mau gosto’ incisivo, e só se completa na ofensa e na conspurcação”
(SCHWARZ, 1990, p. 20-21). Essa falta de recuo ideológico mostra que Machado de
Assis adaptou a fórmula macediana para fugir daquele “medo a represálias”. As
Memórias Póstumas sustentam todo um arsenal crítico aos valores vigentes. Mas não de
peito aberto. Para isso o romance de Machado de Assis faz uso de um recurso formal,
entre outros, muito alardeado pela crítica que mascara suas intenções de “ofensa” e
“conspurcação”: a ironia. É graças a esse recurso que a retórica cara-de-pau se sustenta,
porque a associação entre primeira pessoa e autor é desfeita por essa figura de estilo.

Tradição interna

Diante das relações sugeridas aqui entre Memórias Póstumas de Brás Cubas e A
Carteira de Meu Tio, não deixa de soar muito estranho um recente comentário como o
de Alfredo Bosi (2006, p. 22, grifo do autor):

Rememorando ações sem grandeza e armando as cabriolas de uma


consciência mutável, Brás desenvolve uma tática narrativa que não
tem precedentes na história do nosso romance. Máximas ora atrevidas,
ora desenganadas, teorias extravagantes, anedotas à primeira vista sem
ligação com o contexto, digressões de vário tipo, ziguezagues com
quebras de ordem temporal e espacial, interlocuções frequentes e às
vezes petulantes com o leitor fazem parte de um estilo que lembra A
vida e as opiniões do Cavalheiro Tristam Shandy, de Laurence Sterne,
e a Viagem à roda de meu quarto, de Xavier de Maistre, obras
alegadas no prólogo das Memórias como inspiração e modelo da sua
‘forma livre’15.

O comentário desloca claramente Machado de Assis de nossa tradição literária. E


esse deslocamento, guardadas as devidas diferenças de perspectivas, também está na
visão crítica de Roberto Schwarz: a originalidade da obra machadiana rompe com a
tradição literária anterior, ainda que se encontrem resquícios aqui e acolá de certos
procedimentos humorísticos. E quando incorporados, esses procedimentos passam por
um aproveitamento estético que desmarca a sua origem na tradição literária brasileira.

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A sugestão de leitura apresentada propõe, de modo muito simplificado, outra
entrada para se compreender a obra machadiana. O movimento feito aqui possui, no
fundo, a intenção de entender a Literatura oitocentista brasileira em suas continuidades.
Assim, as observações feitas por Temístocles Linhares e Flora Süssekind, embora
esporádicas e sem grandes desdobramentos para as argumentações dos textos de onde
foram tiradas16, podem desempenhar um papel mais importante do que um mero estudo
comparativo. O papel ao qual me refiro é o de entender a obra de Machado de Assis não
só na sua dimensão excepcional e, guardados os devidos cuidados com o termo, original
– que, aliás, não negamos que haja –, mas como uma acumulação histórica da nossa
experiência literária. A aproximação entre os dois textos pode levar a um melhor
entendimento do lugar da obra de Machado de Assis em nosso sistema literário. Em
sentido amplo, trata-se de combater o problema constitutivo de nossa tradição
historiográfica em relação ao século XIX, como já assinalou Maria Cecília Boechat
(2008, p. 39):

A obra [as Memórias], e seu autor [Machado de Assis], porém,


continuam aparecendo, ainda hoje, como exceção, num contexto
geralmente considerado fraco e relegado, em bloco, à categoria de
literatura de baixa qualidade estética.

Trata-se, no limite, de um deslocamento de pressupostos para a prática


historiográfica em Literatura17, que estabeleceria uma tradição interna no romance
brasileiro. Todo esse movimento de, digamos, achar uma matriz brasileira para o
romance que inaugura a fase madura de Machado de Assis teve essa razão de ser:
buscar uma leitura onde se privilegiasse a continuidade entre os autores. O que
sugerimos aqui foi mostrar que a originalidade de Machado é devedora de nossa
tradição. Machado de Assis não foi só leitor de Sterne, Garrett e Stendhal. Ele também
leu o “honrado e facundo” Dr. Macedinho.

Referências Bibliográficas

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______. O sobrinho pelo tio. Literatura e Sociedade, São Paulo, v. 1, p. 30-43, 1996.

Notas
1
A primeira versão desse texto, ainda em seu esboço inicial, foi apresentada no XII Congresso
Internacional da ABRALIC: Centro, centros – Ética, Estética.
2
Para um panorama da fortuna crítica sobre a obra de Machado de Assis até 1968, ver o ensaio de
Antônio Candido, Esquema de Machado de Assis (1970).
3
Não se trata, obviamente, de afirmar que a visão crítica de Roberto Schwarz não considera as relações
de continuidade entre a obra de Machado de Assis e seus antecessores. O que nos parece um aspecto
aberto para discussão é a forma como se configuram essas relações de continuidade dentro das
reflexões críticas de Roberto Schwarz. Acreditamos que Schwarz, grosso modo, opera um
rebaixamento de nossa tradição literária oitocentista ao estabelecer relações de continuidade com a obra
machadiana. O célebre ensaio “A importação do romance e suas consequências em Alencar” parece ser
um bom exemplo da sombra que a obra de Machado de Assis projeta em um dos seus antecessores. E
isso se deve não porque Roberto Schwarz está interessado em chamar a atenção para certa precariedade
estética do romance oitocentista brasileiro, ainda que chame, mas porque está interessado em medir o
alcance da prosa machadiana
4
Machado parece se valer dessa mesma estrutura nas Memórias: atrevimento-insolência-sinceridade.
Entretanto, a situação ficcional para que essa estrutura apareça repousa na condição do narrador:
defunto autor.
5
O recurso de dialogar com o leitor, quase sempre em tom de deboche ou maus tratos, lembra muito a
forma de comportamento do narrador machadiano, em especial Brás Cubas. Não só esse recurso
formal: o uso de capítulos sem conteúdo ou o recurso ao pontilhado para compor todo um capítulo
também estão presentes nos romances de Joaquim Manuel de Macedo, como A Luneta Mágica (1869).
6
A retórica cara-de-pau do sobrinho-narrador é, em linhas gerais, muito similar a volubilidade de Brás
Cubas. Entretanto, os dois romances se distanciam em uma inflexão ideológica importante: a oscilação
entre desfaçatez e crítica judiciosa do sobrinho-do-tio aposta em uma base de valores moralizantes, que
apontam para a denúncia baseada na crença em mudanças a partir desses mesmos valores esclarecidos;
já a volubilidade de Brás oscila entre norma e infração, sem um direcionamento ideológico que aponte
para uma crença em soluções. O direcionamento moralizante está substituído, nas Memórias Póstumas,
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pelo processo de representação inferiorizada do narrador no exercício de sua volubilidade, como bem
nota Roberto Schwarz (1990, p. 43-46). Digamos, grosso modo, que está ausente na narrativa
machadiana o estrangulamento moralizante presente em A Carteira de Meu Tio.
7
Há diversas passagens no romance em que a voz do narrador, na medida em que avança nos comentários
e eles, os comentários, deixam da cretinice e passam à seriedade, transforma-se de primeira pessoa em
terceira. Essa “sensação” parece ter uma razão de ser: a forte tendência do narrador em comentar sua
própria fala. Um exemplo: “A Constituição do Império!... eu não sei como há insensatos que ainda
acreditam nela, e lhe rendem cultos? Não posso de modo algum compreender a espécie de adoração que
lhe tributa meu respeitável tio; pela minha parte, declaro que detesto a Constituição por três fortíssimas
razões: primeiro, porque assim me assemelho a muitos dos grandes homens da minha terra; segundo,
porque a Constituição do Império é um poema, e eu abomino a poesia; terceiro, porque ou ela há de ser
sempre letra morta, e em tal caso é melhor enterrá-la já, que é obra de caridade dar sepultura aos
mortos, ou tem de ser letra viva algum dia, e por isso mesmo é muito conveniente acabar com ela
quanto antes, para que depois não nos venha dar água pela barba. Reparem bem que estas razões não
são de cabo de esquadra; não, senhor, são razões de figurão de farda bordada” (MACEDO, 2001, p.
75, grifo meu). Após a leitura dessa passagem, fica a dúvida de quem é a fala no último período: do
narrador? Ou de uma segunda voz? Repare bem que não há marcação de uma primeira pessoa no
período...
8
A pista não se resume somente em uma troca de retóricas. Também é uma contradição na própria voz do
sobrinho-narrador. Volto ao “grande pensamento político” encontrado no lamarão pelo sobrinho-de-
seu-tio: “[...] compreendi que a tal instituição das assembléias provinciais é um traste de luxo, que para
nada presta, e que de nada serve ao país; quando muito, convém unicamente a certos meninórios, que
delas fazem escadas para subir à assembléia geral” (MACEDO, 2001, p. 35). Destaco, em termos de
contradição, que a seriedade do pensamento – e de fato, todo o episódio está registrado num tom sério –
que o narrador parece ter “esquecido” que ele é um dos meninórios em questão. Aliás, é justamente por
querer entrar na política que ele está empreendendo a viagem.
9
Trata-se de um uso problemático da narração em primeira pessoa em que há um forte receito de foco
narrativo e autor empírico serem confundidos. E, em parte, o.receio é pertinente, se atentarmos, como
Flora Süssekind (1995) já notou, que Macedo empresta muitos dados biográficos ao sobrinho-narrador.
10
Ao analisar Memórias do Sobrinho de Meu Tio (1867-68), continuação d’A Carteira, Flora Sussekind
(1996, p. 43) anota rapidamente: “Assim como o pós-escrito às Memórias do sobrinho de meu tio, por
meio do qual se troca o ponto final do sobrinho-narrador por uma pausa de suspensão, parece dar voz,
por fim, não mais a um político como o que detivera a palavra até ali, mas a alguém que pede ‘mais
juízo’ ao governo e aos políticos. A uma outra figura de autor que procura descolar dessa autocaricatura
narratorial enquanto ‘sobrinho do tio’.”
11
Ver: Revista do Livro, n° 10, junho de 1958; n° 14, junho de 1959; e n° 17, março de 1960.
12
A carteira de meu tio parece ter sido um pequeno sucesso editorial: saiu inicialmente na Marmota, de
Paula Brito, a partir de 19 de janeiro de 1855. Nesse mesmo ano, apareceu a primeira edição em livro,
seguidas de 2ª. ed. em 1859; 3ª. ed., em 1867; 4ª. ed. em 1880 e 5ª. ed. em 1896. Para além desses
dados que provam a circulação do livro de Macedo, cabe destacar que Machado de Assis parece ter sido
um leitor sistemático de sua obra, como as críticas reunidas em livro indicam. (ASSIS, 1959a, 29 v.).
13
Noto, de passagem, que há outros episódios em A Carteira de Meu Tio que possuem ecos em contos de
Machado de Assis.
14
Como nota Flora Sussekind (1996, p. 31): o modo de narração escolhido por Macedo lida com “[...]
uma forma, calculadamente problemática, de locução e de uso da primeira pessoa do singular, que
parece ter sido reelaborada por Machado de Assis, na sua prosa, a partir de Memórias Póstumas de
Brás Cubas.”
15
A crítica literária (penso especialmente nos estudos de Eugênio Gomes e Sérgio Rouanet) parece não se
ter dado conta de que os recursos formais tipicamente machadianos não remetem somente a Sterne,
Garrett, Xavier de Maistre. Seria interessante rastrear, por exemplo, a presença da “forma shandiana”,
para usar da feliz expressão de Sérgio Rouanet, na tradição literária brasileira anterior a Machado de
Assis para compreender como o autor das Memórias Póstumas lida com certas soluções ficcionais
anteriores para a construção dessa “forma livre”, presente nas Memórias .
16
Gostaria de fazer jus ao texto introdutório de Flora Süssekind. O mérito desse texto é tentar traçar uma
linhagem de nossa sátira oitocentista. Assim, ela recupera alguns textos que foram literalmente
ignorados por nossa tradição crítica. Segundo Flora Süssekind, parece que, além das Viagens em minha
terra, de Garrett, e O sobrinho Rameau, de Diderot; há outra narrativa brasileira aparentada com A
carteira de meu tio e que teria servido de “modelo”: Excertos das Memórias e Viagens do Coronel
Bonifácio de Amarante (1848), de Araújo Porto-Alegre.

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17
Esse deslocamento, em sentido amplo, foi sugerido e realizado por Luís Bueno em sua Uma história do
romance de 30. Para o leitor interessado nesse assunto, remeto a esse livro, bem como a um artigo que
resume a perspectiva adotada por Luís Bueno (2001, p. 249-259).

Artigo recebido em 10/08/2013. Aprovado em 22/09/2013.

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A ESPECIFICIDADE DA REPRESENTAÇÃO DOS FATOS
HISTÓRICOS EM ESAÚ E JACÓ, DE MACHADO DE ASSIS

THE SPECIFICITY OF HISTORICAL REPRESENTATION IN


ESAÚ E JACÓ, BY MACHADO DE ASSIS

Ludmylla Mendes LIMA•

Resumo: O presente artigo trata de analisar o modo particular como Machado de Assis constrói
a representação dos fatos históricos brasileiros no romance Esaú e Jacó. Este romance traz em
seu enredo dois importantes fatos históricos ocorridos no final do século XIX: a Abolição da
Escravatura, em 1888 e a Proclamação da República, em 1889. O tratamento literário dado pelo
autor aos fatos, imprimindo irrelevância aos mesmos no contexto do enredo, revela que para ser
Realista ‘à brasileira’, naquelas circunstâncias específicas, era necessário mostrar o curso da
História tendo como base a ausência de transformação.
Palavras-chave: Machado de Assis – Esaú e Jacó – História do Brasil.

Abstract: This paper intends to analyze the special way Machado de Assis builds the
representation of Brazilian historical facts in the novel Esaú e Jacó. This novel brings in its plot
two important historical events that happened in the late Nineteenth century: the Abolition of
Slavery, in 1888; and the Proclamation of the Republic, in 1889. The literary treatment given by
the author to the events, printing irrelevance to them, in the context of the plot, reveals that to
build a Brazilian realism, in those circumstances, it was necessary to show the course of history
based on the absence of transformation.
Keywords: Machado de Assis – Esaú e Jacó – Brazilian History.

- Confesso-lhe que tenho o temperamento conservador.


- Também eu guardo presentes antigos.
- Não é isso; refiro-me ao comportamento político [...].
(ASSIS, Esaú e Jacó, 2008)

A trama do romance Esaú e Jacó, publicado em 1904, penúltima obra de


Machado de Assis, passa-se entre 1871 e 1894. Neste intervalo ocorrem dois
importantes acontecimentos dignos de registro ligados à História do Brasil: a Abolição
da escravatura, em 13 de maio de 1888; e a Proclamação da República, em 15 de
novembro de 1889.
O modo machadiano de configurar literariamente estes acontecimentos históricos,
no entanto, caracteriza-se pela indiferença programática de que é imbuído o narrador
para abordar tais eventos e também por um apelo circunstancial que rege a organização


Doutora em Letras – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP. Professora Adjunta de
Literaturas de Língua Portuguesa – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
Brasileira – UNILAB, CEP:43900-000, São Francisco do Conde, Bahia – Brasil. E-mail:
ludmyllalima@unilab.edu.br.

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dos episódios históricos dentro da dinâmica do enredo. O autor se vale de uma bem
construída irrelevância no modo de tratar as datas políticas e suas reverberações - quase
nulas - na vida das personagens do romance em questão. Trata-se, portanto, do romance
em que Machado mais se ocupa da História do Brasil e, ao mesmo tempo, esta História
é mostrada de um modo barateado e em ritmo tedioso, características que trazem
sugestivas implicações para a especificação do ritmo histórico brasileiro.
Diante disso, o objetivo deste artigo é a análise do episódio da Queda do Império
brasileiro tendo em vista o modo como o acontecimento é configurado literariamente
em Esaú e Jacó. Outras situações históricas do período em questão também são
mencionadas, geralmente en passant, pelo narrador do romance, a saber, a queda do
Partido Conservador e a subida do Partido Liberal às vésperas do fim do Império; a
Questão Militar; o Baile da Ilha Fiscal, o último do Império; o primeiro baile da
República, o Encilhamento. Todos estes episódios, entretanto, estão ligados e
emolduram o fim de um modelo de governo já esgotado e a sua substituição por outro
mais moderno, mesmo que apenas em aparência, como o próprio ritmo da prosa tratará
de mostrar. Veremos que a análise deste fato nos ajuda a compreender de que modo
Machado utiliza recursos literários antirrealistas em seu intuito de formalizar
literariamente a experiência brasileira.
O filósofo Paulo Arantes, num artigo em que analisa o procedimento de Machado
de Assis na construção de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880), resume os
recursos antirrealistas de que o autor lança mão para construir um Realismo forte, num
exemplo de dialética entre forma e experiência social:

Derrotando a subjetividade burguesa consistente, o capricho descarta


o recorte individualista pressuposto na prosa do Realismo, arma-se em
consequência um enredo vadio sem tensão, onde a trama não é
retesada por nenhum conflito, nenhuma corrente central. Assim sendo,
o tempo é improdutivo, não pressiona na direção de qualquer
progresso, não enquadra enfrentamento algum de posições, daí a
ausência de personagens napoleônicos, enérgicos e definidores,
inviabilizados por patronagem e cooptação (ARANTES, 1996, p. 93).

O principal recurso é o barateamento do acontecimento histórico, que é tratado


sem vibração e de modo desimportante se comparado, por exemplo, às periodizações
históricas bem delimitadas do romance francês, “[...] as quais refletem embates em que
está em jogo o ser-ou-não-ser da ordem social contemporânea” (SCHWARZ, 1999, p.
112).
Vejamos mais de perto como é construída esta irrelevância no tratamento da
queda do Império brasileiro em Esaú e Jacó. É possível traçar um paralelo entre uma
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frase dita pelo Conselheiro, no Memorial de Aires, quando este visita a família Aguiar,
em 14 de maio de 1888, portanto, no dia seguinte à Abolição da Escravaturai, e o
episódio em questão. A frase “não há uma alegria pública que valha uma alegria
particular” é escrita pelo conselheiro após um mal-entendido em que este, ao notar certa
animação em casa do casal Aguiar, felicita-os, pensando ser a assinatura da lei Áurea a
razão do festejo, quando de fato, o casal recebera uma carta de Tristão, filho postiço dos
dois, após anos de silêncio.
De modo semelhante, porém invertido, em Esaú e Jacó, o episódio da Queda do
Império surge incrustado em algumas “tristezas particulares”, problemas pessoais que
tomam corpo nos capítulos que tratam do acontecimento histórico deixando-o
enfraquecido em importância frente aos conflitos individuais, os quais, apesar de serem
mencionados e trazidos à tona, também não têm condições de empolgar o leitor,
conforme o enredo esvaziado da narrativa já vinha mostrando desde o início. Os dois
principais problemas de âmbito pessoal que circundam e obnubilam a queda do Império
em si, no romance, dizem respeito aos eventos particulares tangenciados pelo evento
histórico, são eles, a ida da família Batista para o norte (e o subseqüente afastamento
entre Flora e os gêmeos); e o caso da tabuleta da Confeitaria do Império, pertencente a
Custódio, que precisa lidar a partir de então com a recente inconveniência do nome do
negócio, além do prejuízo acumulado pela compra da nova tabuleta.
Especificando um pouco mais, a “tristeza particular” de Flora surge quando esta
toma conhecimento, por intermédio de Pedro, de que seu pai havia conseguido uma
presidência de província no norte, o que faria com que a moça tivesse que se separar dos
gêmeos. O assunto relacionado à presidência ganha relevo no capítulo “De
confidências”, pois Aires é atraído para a casa de Batista depois do serão de Natividade
pela moça, a qual deseja sua ajuda no intuito de demover seu pai da aceitação da
presidência para que, assim, não se dê uma indesejável separação entre ela e os gêmeos;
ocorre, porém, que o pai de Flora também deseja o aconselhamento de Aires em relação
à aceitação ou não da presidência oferecida, apesar de já ter aceitado e assinado a
aceitação. Surpreendentemente, Aires não foge à questão e opina favoravelmente à
aceitação da presidência por parte de Batista. Fazendo assim jogo duplo com Flora,
visto ter a ela prometido ajuda para impedir a mudança da família.
A circunstância em que se encontra a família Batista neste romance mostra a
decadência da classe política brasileira no fim do regime imperial. O interesse maior de
Machado está em deixar ver as atitudes de Batista e Cláudia no momento da crise final
do Império. Há um interesse em mostrar a movimentação sutil diante da crise e como é
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preparada uma nova acomodação, mesmo que para isso seja necessário lançar mão dos
tão mencionados – e frágeis - princípios políticos, os quais ao fim não são mais do que
‘vestes’, conforme afirma o próprio Aires, “[...] também se muda de roupa sem trocar de
pele” (ASSIS, 2008, p. 1160). O capítulo “A mulher é a desolação do homem” mostra
como ambos, Cláudia funcionando como guia, agiram para mudar de time, para serem
Liberais.
Assim, a classe política brasileira do fim do Império, representada por Batista e
Dona Cláudia, no romance, pode ser caracterizada como totalmente destituída de
valores ou ideologias minimamente coerentes, seja com a difícil restauração e
manutenção do regime monárquico enfraquecido, seja com a formação de uma
República em que o conjunto da sociedade pudesse ser de algum modo levado em
consideração. Sérgio Buarque de Holanda, ao analisar as razões que levaram à
decadência do regime monárquico no Brasil, ressalta a falta de ânimo e a apatia dos
homens de governo frente à situação de debilidade do próprio Imperador, que se
encontrava doente desde 1887.
A situação política de Batista e D. Cláudia beira o desespero, pois eles – ela
principalmente – percebem que há uma fermentação ocorrendo, espécie de brincadeira
de troca de cadeiras, e eles temem ficar sem lugar. Nesse sentido importa notar que a tão
esperada presidência de província que Batista finalmente consegue arregimentar após
ser convencido pela esposa de que era um “liberalão”, apesar da casaca de Conservador
que costumava envergar, não passava de um restolho de um regime agonizante e
carcomido. A esse respeito, Sérgio Buarque de Holanda (1972, p. 354), afirma, “Mesmo
a presidência do Conselho deixara de ser um atrativo, e os que consentiam em aceitá-la
muito pelejavam para convencer outros políticos de aceitar pastas no governo.”
Sendo assim, retomando a ideia de desvio interessado do foco do evento histórico
rumo aos assuntos particulares na estruturação do romance, não deve surpreender o fato
de que o capítulo intitulado “Noite de 14” trate tão somente do anúncio de que a família
Batista deixará mesmo a Corte em função da nomeação de Batista como presidente de
província. A ironia é ainda mais profunda quando, ao fim do capítulo, o conselheiro
Aires é visto a escrever em seu Memorial sobre a inexplicabilidade e indecisão de Flora,
ao que conclui que “[...] a nossa organização política é útil”, pois faz com que a moça
seja afastada da corte e possa porventura se decidir por um dos gêmeos. A crise política
vivida pelo Império, a tentativa de adaptação às circunstâncias vivida pelo casal Batista
e o discutível sucesso da empreitada justificado pela conquista da presidência de
província importam apenas na medida em que dão ensejo a uma possível solução para a
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indecisão de Flora na escolha entre os gêmeos. Do mesmo modo, ou seja, priorizando o
aspecto particular da questão política, o capítulo que se intitula “O golpe”,
diferentemente do que se poderia pensar, não trata do golpe militar que provocou a
queda do regime imperial brasileiro, mas sim do golpe recebido por Flora ao receber a
notícia, agora confirmada, de que de fato se mudariam para o norte.
Se o objetivo de Machado é fixar a irrelevância do acontecimento histórico, como
vimos tentando demonstrar até aqui, no capítulo “Manhã de 15”, o autor o faz,
retratando o dia da queda do Império brasileiro como um episódio tímido, incerto,
inesperado e confuso, perfeitamente passível de ser confundido apenas com um boato.
Nada mais coerente para a formalização literária com o que de fato ocorreu, pois a
Monarquia, no Brasil, não caiu com um estrondo, mas com um suspiro. Assim, é pelos
olhos e impressões de Aires que o leitor toma conhecimento de que o golpe se deu: em
meio à alta Literatura lida entre a noite de insônia de Aires e a manhã seguinte, que
inclui Horácio, Cervantes, Erasmo e Xenofonte, o conselheiro decide cumprir um hábito
seu nesses casos, o de “sair cedo a espairecer”; conforme o narrador, Aires “nem sempre
acertava”, insinuando que, apesar do gosto de ver o mar crespo e bravio, “A água,
enroscando-se em si mesma, dava-lhe uma sensação mais que de vida, de pessoa
também, a quem não faltavam nervos nem músculos, nem a voz que bradava as suas
cóleras” (ASSIS, 2008, p. 1154), ele preferiria o sossego e o passeio rotineiro, sem
nenhuma espécie de atribulação nem burburinho, únicas manifestações reais
relacionadas com o evento histórico que se deixam ver no capítulo. A associação
construída entre o mar bravio e potência de luta do homem neste trecho deixa ver certo
ressentimento por parte do narrador de que nossas “revoluções” sejam tão tímidas e
pacíficas.
Diante do burburinho percebido no caminho entre o Passeio Público, o largo da
Carioca e a rua do Ouvidor, de dentro do tílburi, o conselheiro apressa-se em voltar para
casa sem, no entanto, crer no que lhe contou o cocheiro e lhe confirmou o criado. Do
mesmo modo que tantos brasileiros e até muitos dos próprios seiscentos militares que
participaram do golpe, Aires não se deu conta de que se tratava da queda do regime.

Como é que tendo ouvido falar da morte de dois e três ministros, Aires
afirmou apenas o ferimento de um, ao retificar a notícia ao criado? Só
se pode explicar de dois modos – ou por um nobre sentimento de
piedade, ou pela opinião de que toda a notícia pública cresce de dois
terços, ao menos. Qualquer que fosse a causa, a versão do ferimento
era a única verdadeira. Pouco depois passava pela rua do Catete a
padiola que levava um ministro, ferido. Sabendo que os outros
estavam vivos e sãos e o imperador era esperado em Petrópolis, não
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acreditou na mudança de regime que ouvira ao cocheiro de tílburi e ao
criado José. Reduziu tudo a um movimento que ia acabar com a
simples mudança de pessoal. ‘Temos gabinete novo’, pensou consigo
(ASSIS, 2008, p. 1155).

Somente com a retomada do problema particular de Custódio e seu drama


relacionado à tabuleta da Confeitaria do Império, Aires ouvirá com todas as letras: “A
república está proclamada”. O que, no entanto, não o impede de seguir dando conselhos
a Custódio sobre como resolver o problema da inconveniente tabuleta, sugerindo nomes
etc. A incredulidade, apatia e frieza diante da notícia da queda do Império e da
proclamação da República permanecem.

Que, em meio a tão graves sucessos, Aires tivesse bastante pausa e


claridade para imaginar tal descoberta no vizinho [Aires imagina que
Custódio saiu de sua casa aliviado e esquecido do problema das
tabuletas apenas por ter conversado com ele], só se pode explicar pela
incredulidade com que recebera as notícias. A própria aflição de
Custódio não lhe dera fé. Vira nascer e morrer muito boato falso. Uma
de suas máximas é que o homem vive para espalhar a primeira
invenção de rua, e que tudo se fará crer a cem pessoas juntas ou
separadas (ASSIS, 2008, p. 1160).

É necessário apontar também a ironia com que o assunto é tratado por Machado:
enquanto Custódio sofre as conseqüências da queda do Império pela perda da tabuleta
nova que acabou de ser pintada (gastos com tinta, mão de obra), além do fato de que
agora terá que arranjar um novo nome para o negócio, devido à ‘recente’ inconveniência
do nome antigo “Confeitaria do Império”; Aires, o ex-representante do Império
brasileiro, preocupa-se com o impacto que suas palavras e conselhos tiveram sobre o
vizinho.

Aires foi à janela para vê-lo atravessar a rua. Imaginou que ele levaria
da casa do ministro aposentado um ilustre particular que faria
esquecer por instantes a crise da tabuleta. Nem tudo são despesas na
vida, e a glória das relações podia amaciar as agruras deste mundo.
Não acertou desta vez. Custódio atravessou a rua, sem parar nem
olhar para trás, e enfiou pela confeitaria dentro com todo o seu
desespero (ASSIS, 2008, p. 1160).

Vê-se que o barateamento do acontecimento histórico atinge a ambos, nenhum


dos dois está preocupado com o que a mudança de regime poderá acarretar para o futuro
do país. Machado, ao criar uma situação ficcional nesses termos, mostra a previsão
certeira de que esses acontecimentos não iriam mesmo resultar em mudanças
significativas, não são relevantes nesse sentido e, como sabemos, não impediram o
curso das desigualdades em que ainda vivemos. Apesar da queda de um modelo político

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atrasado, o que o substitui é mais moderno apenas na aparência, pois as incongruências
e perversidades sociais de fundo permanecem intocadas.
As personagens que se mostram mais sensíveis ao acontecimento histórico estão
muito intimamente ligadas ao sistema, seja político, no caso do político de carreira e sua
esposa, Batista e dona Cláudia, seja econômico, no caso do banqueiro e sua esposa,
Santos e Natividade. Veremos que para todos eles trata-se de uma preocupação egoísta,
a queda do Império poderia resultar na perda de privilégios. Batista sempre foi um
político bastante medíocre, sem ideais ou projetos verdadeiros, para quem a política
“[...] era menos uma opinião que uma sarna; precisava coçar-se a miúdo e com força”
(ASSIS, 2008, p. 1114).
No caso do banqueiro Santos, sabe-se que ele lucrou muito com as decisões
econômicas do Império, sua fortuna foi iniciada com a Febre das ações, ele se
beneficiou também com a política do Encilhamento, por isso teme um pouco as
mudanças. Se bem que veremos que o temor não tem razão de ser, pois tudo se mantém
como antes. Nota especial para o medo de Santos (que se tornara Barão no decurso do
romance) de que se instaure o Terror no Rio de Janeiro, a exemplo do que ocorrera na
França, o que não o impediu de jogar o seu voltarete de costume, “Quis resistir; não era
bonito que no próprio dia em que o regime caíra ou ia cair, entregasse o espírito a
recreações de sociedade [...]” (ASSIS, 2008, p. 1163), e a possibilidade de
acompanharmos, pelas andanças de Paulo, a realidade da nossa “revolução”,

Trazia até o desejo de achar alguém na rua que soltasse um grito, já


agora sedicioso para lhe quebrar a cabeça com a bengala. Note-se que
esquecera ou perdera a bengala. Não deu por falta dela; se desse,
bastavam-lhe os braços e as mãos. Propôs cantarem a Marselhesa; os
outros não quiseram ir tão longe, não por medo, senão de cansados.
Paulo, que resistia mais que eles à fadiga, lembrou-lhes esperar a
aurora. – Vamos esperá-la do alto de um morro, ou da praia do
Flamengo; teremos tempo de dormir amanhã. – Eu não posso – disse
um (ASSIS, 2008, p. 1164).

Nota-se que, para Paulo, a queda do Império daria ensejo a aventuras em nada
articuladas com qualquer projeto político. Ao expor a irrelevância dos acontecimentos
históricos e o modo com que a elite carioca “reage” aos mesmos, Machado nos faz ver
que para ser Realista ‘à brasileira’, naquelas circunstâncias, era necessário mostrar o
curso da História tendo como base a ausência de transformação.
De acordo com Roberto Schwarz, as razões para o bloqueio das vibrações das
datas históricas no Brasil estão ligadas, por um lado, a um traço de nossa formação

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social, e por outro, à estabilidade das relações e injustiças de base no país. Nas palavras
do crítico:

Um tal sumiço do passado, ou, por outra, a ausência da história na


consciência presente e na autojustificação dos brasileiros é uma
peculiaridade cultural que vale ela mesma um estudo, além de deixar
no vazio as alusões sibilinas de Machado a ocasiões nacionais
(SCHWARZ, 1999, p. 111).

Assim, a abordagem da História por Machado em Esaú e Jacó revela-nos o


correspondente histórico do movimento de estruturação profunda do romance.
A representação literária dos eventos históricos feita sem ilusões de
transformação social efetiva no futuro diz respeito às decisões de gabinete sobre as
quais os acontecimentos estavam sendo conduzidos pela elite dominante. Desse modo,
não é o caso de acusar alguma espécie de apatia no povo brasileiro. Esta acusação mira
o alvo errado, conforme aponta Sérgio Buarque de Holanda. O que se nota claramente
pela própria imobilidade tediosa construída por Machado no romance Esaú e Jacó é que
o conchavo bem alinhavado entre a classe dominante não permite que haja de fato
algum conflito e, se não há conflito, não há mobilização. Mesmo quando não se chega a
um consenso, os grupos dirigentes formados por “[...] uma camada extremamente rala
de privilegiados que se sobrepõem à grande massa da população e estão unidos por
interesses, vínculos de classe social e até de sangue” (ASSIS, 2008, p. 326) buscam uma
solução “em família”, de modo a não permitir que esses conflitos tenham efeitos mais
graves, com consequências objetivas.

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2006.

Notas
i
Este artigo é uma versão modificada de uma comunicação oral apresentada no XI Encontro de Estudos
Comparados de Literatura de Língua Portuguesa – Literatura, Comparatismos e Interdisciplinaridade –
São Paulo – USP – 2011.
2
No Memorial de Aires Machado novamente mostrará estes acontecimentos, visto que o recorte feito das
páginas do diário do conselheiro para a edição do livro é justamente o que compõe os anos de 1888 e
1889.

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3
“O acontecimento que privava D. Pedro de deter em suas mãos os fios da administração, vinha aumentar
a sensação de desgoverno, produzida pelos muitos governos que sucessivamente iam subindo e iam
caindo” (HOLANDA, 1972, p. 353).

Artigo recebido em 10/08/2013. Aprovado em 01/10/2013.

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O TEMA DA MORTE TRÁGICA DE LIEV TOLSTÓI E SEU
IMPACTO EM MAX WEBER E GYÖRGY LUKÁCS:
SOBRE A AUTONOMIA NAS CIÊNCIAS E NA ARTE

LEO TOLSTOY´S TRAGIC DEATH AND HIS IMPACTS ON MAX


WEBER AND GYÖRGY LUKÁCS: ON AUTONOMY OF
ARTS AND SCIENCE

Luis F. de Salles ROSELINO•

Resumo: O tema da morte trágica, presente nos escritos de Liev Tolstói, auxiliou tanto a Max
Weber como a György Lukács a caracterizarem o pathos moderno de pressentimento da morte
como uma contemplação do vazio. Weber e Lukács encontraram, através das leituras de Tolstói,
uma interessante maneira de questionar a autonomia da arte e da ciência moderna, considerando
pela esfera estética, como se mostra sem sentido a recente realidade imanente. Ambos
assumiram o tema central das obras de Tolstói segundo uma mesma imagem, derivada do
contraste entre o mundo antigo e o moderno. Max Weber adequou esse tema a sua teoria do
desencantamento do mundo e Lukács, de modo muito semelhante, seguindo seu conceito do
paradoxo da necessidade religiosa.
Palavras-chave: Tolstói – Weber – Lukács – Desencantamento – Necessidade Religiosa –
L’Art Pour l’Art.

Abstract: The tragic death in Tolstoy's writings has helped both Max Weber and György
Lukács in characterizing the modern pathos as a tragic contemplation of the emptiness of life.
Through Tolstoy's readings, Weber and Lukács found an interesting source of denying arts and
modern sciences autonomy, considering, from the aesthetics sphere, the meaningless of this new
immanent reality. Both has assumed Tolstoy main theme from the same perspective, contrasting
ancient and modern worldviews. Max Weber presented this theme in his disenchantment of
world theory and Lukács, in a very similar way, following the paradox of religious needing as a
mainline.
Keywords: Tolstoy – Weber – Lukács – Disenchantment – Religious Needing – L’Art Pour
l’Art.

A morte trágica, tema presente nas obras de Liev Tolstói, parece possuir uma
expressão exata daquilo que Max Weber buscara designar em sua Ciência como
Profissão, um sintoma claro do “desencantamento do mundo”, condicionado pela
progressiva intelectualização e racionalização.
György Lukács também mencionou um romance breve de Tolstói, Três Mortes, o
qual seria, de fato, o mais didático para nosso tema. Ele narra como expõe o título, três
mortes: a de uma senhora nobre, a de um cocheiro e a de uma árvore, com o objetivo de


Mestre em Filosofia – Doutorando – Programa de Pós-Graduação em Filosofia – Universidade Federal
de São Carlos – UFSCar, Campus de São Carlos, CEP: 13565-905. São Carlos, São Paulo – Brasil.
Bolsista CAPES. E-mail: felipe@guns.ru.
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apresentar como os dois protagonistas lidam com a morte segundo a aceitação de sua
realidade. Embora esse tema se estenda a quase todas obras de Tolstói, nesse se vê o
caso mais elementar que diferencia o homem mais civilizado do homem em estado mais
rude e mais natural.
Na primeira fatalidade, há algo terrível, incerto, mal resolvido; na segunda, a
morte é encarada como algo mais comum, embora inevitável, menos trágico. Por fim,
nas árvores, temos algo completamente indolor e, naturalmente, até belo. A
religiosidade da senhora, que se vê questionada frente ao temor da morte faz com que
ela interrogue o padre acerca da onipotência e do perdão divino. Essa morte se apresenta
fortemente contrastada à do cocheiro, que aceita sua morte com mais naturalidade, pois,
sem mostrar qualquer apego aos bens e, logo, à própria vida, deixa um amigo levar suas
botas. Sua morte condiz com sua realidade, sendo ele alguém que planta, colhe, abate
cordeiros para fazer uso de sua carne e sua pele e, por fim, também morre como um
cristão cuja religião de fato é a natureza. A morte do camponês, contrastada à da
senhora nobre, mostra-se mais semelhante à da árvore, que morre “tranquilamente,
veraz e belamente. Belamente porque não mente, não gesticula, não teme nem
lamenta”1, como explica Lukács citando uma carta do escritor russo, “Tolstói alude à
religiosidade externa do camponês, a qual, muito provavelmente, é de caráter
predominantemente mágico e tem, interiormente, pouco a ver com o Cristianismo como
religião” (LUKÁCS, 1972, p.192)2. Não se trata, portanto, da religião do período da
Reforma e da Contra-Reforma, que rompeu com os elementos mágicos, que substituiu
esses elementos por éticas racionais e teologias sistemáticas. Por outro lado, a morte
mais sofrida é consequência do paradoxo da necessidade religiosa que se encontra em
continuidade com esse processo de ruptura das práticas mágicas. Segundo ele:

A difusão dos conhecimentos humanos nos processos extra-


mundanos, fez precisamente com que se destruísse a ilusão de sua
dominação através dos usos da magia, e em seu lugar se colocou a
religião, com sua ética humana estabelecida através da relação do
homem com a transcendência. [...] O surgimento [Entstehung] e a
consolidação da necessidade religiosa, tal como havíamos aqui
definido, se favoreceu também institucionalmente, e se insere nesse
sistema do surgimento e do desenvolvimento posterior e das religiões
(LUKÁCS, 1972, p.184-85)3.

Não é difícil verificar que o caso do camponês era predominante na Antiguidade


e que o caso da aristocrata se torna mais sintomático na Modernidade. Assim, de modo
muito semelhante, Max Weber também utilizou essa constatação de Tolstói sobre a
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morte para diferenciar a visão antiga da visão moderna, constatando que era comum
ocorrer, na Antiguidade, o que ocorrera a “Abraão ou algum camponês dos tempos
antigos, morria ‘velho e farto de viver’, pois colocava-se no ciclo orgânico da vida, pois
sua vida e também o seu sentido, lhe trouxera, então, a noite de seus dias”4. Assim
como indica a tradição judaica e segundo outras metáforas antigas recorrentes, parecia
que antes encarávamos de modo bastante distinto a morte. Ela era vista com mais
naturalidade, “a noite dos seus dias”, que a expõe como parte do ciclo natural e
orgânico. Nesse sentido, prossegue Weber a explicação de que esse pathos antigo era “o
que lhe poderia ser oferecido, sendo que não havia para ele nenhum enigma que
quisesse desvendar, lhe restava desse modo e bem podia permanecer ‘satisfeito’”
(WEBER, 1922, p.536) 5.
Essa caracterização histórica da Antiguidade cumpre, na argumentação de Weber,
o papel de contrapor-se ao Estado moderno. Desse modo, a constatação negativa sobre
não haver qualquer enigma a desvendar, só se explica, evidentemente, em face do caso
contrário ter se tornado então recorrente.

Mas um homem cultivado [Kulturmensch], tomando parte, no


contínuo enriquecimento da civilização, com os pensamentos, saberes,
problemas poderia vir a ficar ‘cansado de viver’ mas não farto de
viver. Assim como no entanto, ele poderia capturar somente uma parte
muito irrisória do renascimento constante da vida do espírito, algo
somente provisório, não definitivo, assim, a morte se torna para ele
um acontecimento sem sentido. E porque a morte é sem sentido, assim
também vem a ser a vida cultural, a qual acaba sendo rotulada, por sua
‘progressão’ à tal morte sem sentido, como um disparate. Esse
pensamento é o teor fundamental da arte de Tolstói, e pode ser
identificado em todos seus romances tardios (WEBER, 1922, p.536-
37) 6.

A vida, para o homem civilizado versado, pode se mostrar aborrecida, ele


poderia, facilmente, melancólico ou mesmo entediado, cansar-se dela, algo bastante
distinto de morrer farto de seus dias, de encarar com naturalidade que já se deu o
bastante, que deve aceitar satisfeito seu desfecho. Max Weber estava correto em
identificar como esse tema foi tomando parte em todas as obras literárias de Tolstói,
mais central em algumas, mais deslocado em outras, sem dúvida marcante como um
problema que dá o sentido mais profundo em suas obras ao mostrar, justamente, a falta
de sentido de nossa época.
Nesse trecho de Weber, a expressão “a arte de Tolstói” não se refere meramente
a seus livros, mas sim, a sua reflexão sobre a arte em geral. A posição de Tolstói sobre a

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arte é muito específica, ele se posiciona a respeito de uma questão fundamental que
passa por Baudelaire, Goethe, e se opõe à posição mais recorrente. A arte deve buscar
um sentido no mundo humano presente, justamente porque ela não possui um sentido
em si mesma. Estamos diante de uma questão fundamental, a autonomia da arte e a
posição de Tolstói se mostrava justamente contrária a essa autonomia.
Quando no trecho inicial Weber menciona a ausência de enigmas a se
resolverem na morte mais natural, comum entre os camponeses incultos e homens não
versados (ungelernte), ele aponta para a situação atual na qual o post-mortem passa a ser
encarado com uma desconfiança crescente. A evolução do conhecimento e dos saberes
na Modernidade não visa mais responder às questões fundamentais, o conhecimento
científico foi gradativamente abandonando as questões originais, existenciais, a busca
por um sentido. Tolstói, ao prefaciar a edição russa de uma obra de Edward Carpenter,
Modern Science: a criticism, expõe, a respeito da ciência moderna, essa constatação:

Mas esse esclarecimento jamais é conseguido, e o que acontece é que


ao descer em suas pesquisas, cada vez mais e mais baixo, das
perguntas fundamentais às menos importantes, a ciência chega, afinal,
a uma esfera completamente alheia para o homem, que mal lhe diz
respeito, e nessa esfera se detém sua atenção, ficando sem solução as
questões mais importantes para o homem (TOLSTÓI, 2011, p.125-26)

O esclarecimento acaba por tomar um rumo específico, passa a buscar apenas


aquilo que se mostra válido segundo suas próprias exigências, abandona assim, uma
preocupação, mais própria da sabedoria antiga, as questões fundamentais sobre a vida
humana e uma orientação para o agir. Ele considera apenas suas próprias questões como
relevantes. Os próprios sujeitos do conhecimento, os homens da ciência, omitem-se das
questões fundamentais, atribuem à própria ciência causas próprias, ela determina para
ela mesma a relevância e pertinência dos saberes, ela é considerada, erroneamente,
como autônoma e, assim, ao invés de fazê-la servir-lhes, os homens a servem. “E os
homens estão seguros de que a propriedade de ocupar-se de ninharias, desprezando o
mais essencial e mais importante, não é uma característica deles, mas da ciência”
(TOLSTÓI, 2011, p.128). Assim, conclui:

os homens da ciência de nossa época, sem nenhuma religião e por isso


sem base para escolher – pelo grau de importância – os objetos de
estudo e separá-los dos menos importantes, e afinal da interminável
quantidade de objetos que ficarão para sempre incompreendidos, por
causa das limitações da inteligência humana e por causa da infinidade

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desses objetos, estabeleceram para si uma teoria: ‘a ciência para a
ciência’ (TOLSTÓI, 2011, p.129).

Essa expressão, “a ciência para a ciência”, parece nos indicar que Tolstói estaria
nos apresentando uma variação de sua crítica à arte para a arte (l’art pour l’art). Isso
verificaremos mais adiante, antes devemos compreender o que se entendia por essas
idéias e essa suposta autonomia.
Os alemães fizeram do mote l’art pour l’art uma concepção estética filosófica
bastante particular, a “autonomia da arte”. O jovem Lukács havia abordado com muita
propriedade esse tema em mais de um de seus ensaios de A Alma e as Formas,
considerava que “há escritores para os quais só importa em seu tempo, o conteúdo de
seu isolamento; e há os estetas. Ou, para ser mais preciso, existe uma l’art pour l’art
psicológica e uma sociológica. Quem são os estetas?”7 para responder a isso Lukács
recorre a Goethe, nessa época em que Lukács não considerava tal ideia de l’art pour
l’art tão nociva, assim a apresentava, dirigindo-se a quem soube compreender esse
sentido como um sociólogo, isto é, quem soube interpretar em sua época o significado
totalizante da arte de seu próprio tempo e não simplesmente o intuiu, partindo de seu
mundo interior e verificando suas marcas em sua própria consciência. O esteta é aquele
que sabe discernir o espírito de sua época, explica Lukács expondo o que Goethe
denominava um poeta nato e acrescenta: “o esteta é aquele nascido em uma época na
qual o sentimento racional da forma já está morto” (LUKÁCS, 1911, p.177) 8. Tolstói
era, evidentemente, um desses casos, o que é sintomático em sua obra era também sem
dúvida em sua época, a ciência parecia responder a tudo, menos ao que de fato
importava, qual o sentido disso tudo? (TOLSTÓI, 2011, p.128).
A constatação de Tolstói quanto ao fato de a ciência não poder responder às
questões fundamentais, ou que ela só poderia tornar a existência humana mais
problemática, mais desamparada, mais enigmática, partia de uma constatação teórica
sobre a arte. Do ponto de vista filosófico, Tolstói negava a autonomia do conhecimento
científico pois negava também a autonomia da arte. As formas, ao se colocarem como
meio e fim em si mesmas, produziam algo desastroso: na arte, uma falsa arte; na
ciência, um mundo sem sentido. Considerar que a arte ou a ciência poderiam buscar
simplesmente um fim nelas mesmas implicaria condená-las tanto eticamente como
esteticamente. A autonomia da arte, tão exaltada até então, mostrava-se, para Tolstói,
como uma forma de sentimento já convalescente.

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Verificamos alguns traços gerais da crise do sentido dado à vida e sua relação
com a formação intelectual. O processo de intelectualização e racionalização produz
gradativamente o desencantamento do mundo e suas consequências; perde-se ao longe o
horizonte, a alma descobre-se desamparada. Max Weber buscou ir além das
constatações de Tolstói. Se por um lado a racionalização e intelectualização poderiam
ser identificadas historicamente diante do progresso técnico, pois assim designava
Weber, por outro lado esse progresso nos direciona à incerteza, ao desamparo e, no leito
da morte, ao desespero. E se pergunta:

Ora, teria, agora, esse processo de desencantamento, passado milênios


na cultura ocidental e, sobretudo, teria esse ‘progresso’ – vinculado e
pertencente à ciência como sua força de impulso, por qualquer de suas
saídas, puramente práticas e técnicas –, algum sentido? (WEBER,
1922, p.536) 9.

Para Weber, as saídas oferecidas pela ciência limitam-se a seus meios puramente
técnicos, isto é, não possuem em si um sentido, são, ao contrário, responsáveis pelo
esvaziamento da superstição e da magia, as responsáveis por abandonarmos as práticas
fetichistas, tornando assim evidente e consequente esse processo de desencantamento do
mundo. E ao indagar-se sobre haver nesse processo um sentido, Max Weber se dirige
novamente a Tolstói:

Essa questão se acha colocada como de principal importância nas


obras de Liev Tolstói. Por um caminho muito particular chegou ele até
ela. O problema definitivo de suas inquietações giraram em torno
progressivamente desta questão: Se a morte seria ou não um fenômeno
dotado de sentido [sinnvolle]. E eis a resposta assumida por ele: para o
homem cultivado – não. E não por uma causa definitiva, as vidas
individuais, civilizadas, sendo inseridas em um ‘progresso’ incessante
do sentido imanente não poderiam permitir-se rumar para qualquer
fim. Assim, como para ela está sempre por vir um progresso posterior,
ninguém ao morrer, pode se colocar à altura do que vem a ser a
infinitude (WEBER, 1922, p.536) 10.

Para Max Weber a resposta de Tolstói é simples: no caso específico do homem


com formação cultural, nega-se a possibilidade da vida possuir um sentido face a morte.
Para ele, seu desfecho é algo completamente incerto, uma interrupção desse processo
ininterrupto de perguntar, saber, descobrir e, ao fim, uma decepção com a brevidade da
vida face ao infinito progresso intelectual. Não há conclusão, não há resposta à qual
chegaríamos ao fim da vida, há simplesmente uma frustração que só se cala, não por

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que já viu o bastante, mas porque nada do que viu lhe fez entender um sentido, ou sentir
cumprida a plenitude de seus dias, seu fim.
Segundo Tolstói em seu escrito O Que é Arte?,

Para justificar a seleção dos objetos de estudo (em conformidade com


sua própria posição) os homens da ciência de nossa época acabaram
concebendo uma teoria da ciência pela ciência, muito similar à teoria
da arte pela arte (TOLSTÓI, 1899).

Expondo, desse modo bastante evidente, que de fato sua crítica da autonomia da
arte é o pressuposto da crítica à ciência. Tolstói, como um esteta, fez da observação da
decadência dos ideais Românticos, seu ponto de partida para a compreensão da
decadência de sua época. “Assim como na teoria da arte pela arte, tudo aquilo que nos
agrada é: a arte; na teoria da ciência pela ciência, o estudo do que nos interessa é: a
ciência” (TOLSTÓI, 1899, p.202-203).
Parece muito evidente que Weber leu atentamente essas considerações de Tolstói,
embora não cite nominalmente esses escritos, ele sem dúvida aponta para seu conteúdo
ao declarar “a ciência atualmente detêm-se na empresa de uma ‘profissão’, serve suas
próprias orientações e o conhecimento factual e sistemático, não a bens sagrados e
revelações de videntes e profetas”11 e identifica esse aspecto atual como uma
“inescapável atribuição de nossa situação histórica”12. De fato, Weber parece estar
citando de forma não literal os dizeres de Tolstói, indicando seus questionamentos
quanto ao sentido da ciência do seguinte modo: “e novamente Tolstói se levanta para
questionar ‘quem responderá então a pergunta, uma vez que a ciência não o pode fazer,
sobre o que devemos então fazer? E como devemos conduzir nossas vidas?’”13. E ao
citar Tolstói, Weber reconhece a pertinência de seus questionamentos, no entanto, veta
o direito de respondê-las, pois, segundo ele, isso exigiria “um profeta ou um salvador”14
e constata, de forma muito realista, “esse profeta [...] por certo não está ali” (WEBER,
1922, p.551) 15. E conclui, desmascarando os profetas de cátedra (Kathederprophetien)
que buscam assumir tal encargo deixado vago, mas que não lhes diz respeito, “o fato
fundamental que querem encobrir os suplentes, os quais são todos esses profetas de
cátedra, é que vivemos em tempos sem profetas e alheio a Deus” (WEBER, 1922,
p.551-52) 16.
Tanto para Weber como para Simmel, embora problemático e passível de
confusões, seria necessário saber separar o sentido dado à interpretação histórica e os
valores particulares pertencentes a essas esferas científicas, éticas e estéticas. A arte ou

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a ciência supostamente autônoma, criavam seu próprio sentido de modo a excluir de seu
mundo as formas anteriores e os elementos históricos reais de sua origem imanente. Nas
palavras de Simmel, a questão estaria no fato de que “essa auto-suficiência de nossos
mundos individuais só se estende a seu conteúdo imaginado quando é pensada
independente da maneira como são produzidos” (SIMMEL, 1907, p.105). Isto seria o
mesmo, em termos nietzschianos, que a afirmativa de que toda origem (Ursprung) real
apresentada como processo histórico, seu real nascimento (Geburt), seu real estado de
iminência e sua proveniência (Entstehung e Herkunft) sempre as apresenta de modo a
falsear e a insurgir contra tudo que é eterno, verdadeiro, bom e belo nesse mundo. Cada
mundo é aparentemente desconexo mas, na realidade e na sua origem histórica, eles se
contrapõem, de modo inicialmente trágico e, por vezes, cômico.
Nesse sentido Weber se opõe à suposição de um relativismo, indicando que ainda
que se tome o ponto de partida extraético, isso não dispensa uma consideração quanto à
dignidade ética desse ponto de vista. Alguns especialistas comparam a postura de
Weber ao perspectivismo, embora seja algo ainda mais específico, uma teoria dos
valores. Para Weber, todo agir está de algum modo passível de valorações, mesmo na
sua forma mais imanente, mesmo recusando qualquer valor, seja a virtude, o bom, o
belo ou verdadeiro, sempre se está numa luta de valores que se opõem tragicamente e
“entre esses não é possível relativização nem acordo” (WEBER, 1922, p.469)17.

Ainda assim se nos permitirmos pensar, contudo, numa concepção tal,


uma interpretação [Auffassung] que – acreditando por si mesma vir a
desdenhar a expressão ‘valor’ em função do concretíssimo da vivência
– viria por si mesma a constituir uma esfera, na qual se desdenharia,
considerando estranha e hostil, toda santidade ou bem, toda legalidade
ética ou estética, todo significado cultural ou valoração de
personalidade, desse modo e justamente por isso, estaria reivindicando
para si própria uma dignidade ‘imanente’ no sentido mais extremo da
palavra. Quanto a esses dizeres sempre tomaremos o seguinte
posicionamento, ela não seria de modo algum, por meio de nenhuma
‘ciência’ demonstrável ou ‘refutável’ (WEBER, 1922, p.468-69)18.

Max Weber está aqui mostrando certa desconfiança com relação a algumas
heranças nietzschianas que parecem provocar uma ilusão intelectualista muito
particular. A ciência não pode condená-las, mas será que nessa última consideração ela
própria não se condena? E levando ao extremo o caráter imanente de uma interpretação,
não está ela produzindo um outro mundo em oposição a tudo que seria para ela
condenável? Isso não o torna igualmente falso? Parece que colocar o homem ou a vida
como um substituto de tudo que se mostrou falso só poderia indicar duas coisas: de um
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lado, que estamos necessitados, pobres e miseráveis, cercados pela incerteza como um
errante no deserto, evidencia-se um paradoxo criado pela decadência das formas
religiosas. Em segundo lugar, a super-valorização do imanente e do próprio homem
parece apenas adiar uma desilusão, a mais derradeira, não mais com a religião, ou com
Deus, mas com a própria debilidade e finitude humana. Já há muitos anos, dos salmos
dravídicos ressoaram os seguintes dizeres: “meu Deus, meu Deus, por que me
desamparastes?” eles foram ouvidos outra vez e narrados pelos evangelistas e não
pararam de repercutir na forma de uma teodiceia do sofrimento19.
A relação entre a teodiceia da dor e a morte tolstoiniana não é totalmente evidente
em Weber. Porém, Lukács traça com clareza um paralelo entre as considerações de
Tolstói sobre a classe camponesa e a constatação de Max Weber da teodiceia da dor:

Já falamos a respeito das observações de Tolstói, sobre o


comportamento dos camponeses que são típicos e interessam a esse
respeito. [...] Estudando a teodiceia da dor, Max Weber cita uma
enquete do ano 1896, na qual um considerável número de operários
atestou sua incredulidade com relação à religião, explicando-se nos
seguintes termos: a maioria apelou à ‘injustiça’ do mundo, e a minoria
a argumentos científico-naturalistas (LUKÁCS, 1967, p.500-501).

Nesse trecho presente no texto de Weber As seitas Protestantes e o Espírito do


Capitalismo, não identificamos diretamente uma menção a Tolstói, nem mesmo ao tema
da morte, mas o que interessa a Lukács é que, nessa constatação, Max Weber se refere
especificamente a operários, isto é, à característica ética específica em grupos menos
intelectualizados. A própria constatação dessa enquete revela essa realidade, o fato de
que a ciência não pode revelar um sentido para suas vidas se mostra para eles muito
menos relevante. Ainda assim, consideram o mundo sem sentido, não por uma reflexão
filosófica ou intelectual, mas pela simples constatação de um sofrimento injusto. Esse
tema sempre foi, antes dos avanços científicos, a principal preocupação da teodiceia.
Embora o caso apresentado por Tolstói seja específico do homem com formação
cultural, o paradoxo da necessidade religiosa é geral e abrange diversos grupos, ainda
que, segundo significados distintos.
Na Literatura, como se nota nos romances de Tolstói, evidencia-se esse processo
histórico, suas crises, segundo traços gerais. Os dilemas éticos pessoais, evidenciam-se
diante dos resquícios da magia, podendo ser contrastados com a predominância da
religiosidade mais racionalizada, menos supersticiosa, contrária à magia. Mas,
historicamente, isso se dá, colocando elementos humanos no lugar de seu caráter
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transcendente. A arte manifesta conscientemente, no processo de desencantamento, os
aspectos mais marcantes pois os apresenta de maneira mais radical que as novas éticas
religiosas.
Para Max Weber tínhamos na tipificação religiosa a constatação de que as
concepções de um Deus onipotente e a predestinação visavam excluir a possibilidade de
um conhecimento pleno do desígnios divinos e invalidar a tentativa intelectual de
propor uma teodiceia, dado seu sentido oculto ao entendimento humano. Esses
elementos, de fato presentes no Judaísmo antigo, tornaram-se predominantes nas
religiões cristãs adaptadas à visão mais racional do mundo. Também ocorrera na arte
algo análogo e, até mesmo, mais radical. Segundo Lukács, “todas obras de arte
autênticas são, no sentido exato da palavra, antiteodiceias” (LUKÁCS, 1972, p.215)20
isso porque, explica Lukács, “a vontade e o pensamento do artista” implicam uma
“ruptura com os fundamentos da necessidade religiosa” (LUKÁCS, 1972, p.216)21.
A obra de arte aborda o caráter trágico, o sobrenatural, aquilo que é
transcendente, seja o belo, o bom, mas o apresenta como um produto humano, não
como algo autônomo. Ao contrário, como algo que só possui sentido dentro desse
mundo humano. Assim, mencionando o conteúdo trágico e a forma meramente humana
com que as previsões do oráculo se realizam no Édipo Rei, Lukács afirma:

Em tal superação [Aufhebung] anímica da falta de um sentido para os


fatos da vida, sempre se renuncia à alegação de que haveria nesses
fatos [...] uma causalidade objetiva. É em si, a humanidade que dá
sentido à própria vida dos homens: por isso toda poesia autêntica é
uma antiteodiceia (LUKÁCS, 1972, p.217)22.

Nesse sentido, Lukács, apresenta também o caso do personagem Myshkin23


diante da pintura de Hans Holbein. Neste episódio temos a imagem do corpo morto de
Cristo, retratada pelo pintor Holbein, um inovador nas técnicas retratistas do
Renascimento, iniciando uma crise de incredulidade, nascida do interior do próprio
tema religioso retratado com traços demasiadamente humanos. Não tínhamos, antes do
Renascimento, tal efeito nos quadros representativos dos personagens bíblicos, suas
formas áureas, as feições luminosas davam a imagem como um todo, um caráter
meramente pictórico, menos humano e mais santo. Só durante o Renascimento viriam a
surgir pintores que expressaram traços éticos modernos, desmistificados, retratando
santos como homens. Independente do fato, sem dúvida relevante, de que Holbein
também ilustrou Bíblias luteranas, o que mais choca esteticamente é como ele deu aos

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temas transcendentes uma expressão mundana, causando a impressão que provocou no
príncipe Myshkin, personagem de Dostoiéwiski, que sentiu haver diante dele um corpo
humano sem vida, no caso, o corpo de Cristo. Este personagem, que era um cristão
devoto, vê sua convicção abalada pelo retrato que, diferente dos demais retratos de
Cristo, não expunha beleza nem brilho, mas apenas o corpo inerte, expirado, como um
cadáver comum. A arte exporia, para Lukács, a fonte imanente do mundo transcendente
criado pelo homem.
Tanto os resquícios da magia como a religião que se afirmam em contraposição
às formas mágicas, são produtos de uma mesma situação paradoxal: a necessidade
religiosa, fenômeno que possui um fundamento histórico objetivo. Segundo Lukács,
seria um grande equívoco “subestimar a importância desses resquícios [mágicos] na
gênese e conservação da necessidade religiosa.” Novamente, Lukács menciona
diretamente a tese weberiana acerca do Calvinismo, da ética da predestinação como
sendo a “tentativa mais conseqüente de eliminar os elementos mágicos da religião”
(LUKÁCS, 1967, p.491), e sua constatação condiz precisamente com o que foi citado
anteriormente. Trata-se da substituição de uma forma ética por outra que cumpre um
papel análogo, como a Providência e a adivinhação. O paradoxo da necessidade
religiosa não se resolve, nem mesmo com o aparente desencantamento. Ao contrário,
ele só se agrava, tal como morte mais trágica de Tolstói.
Temos, no quadro geral, algo semelhante ao ímpeto camoniano frente ao temor
de se defrontar com o limite desconhecido dos oceanos, por supor um abismo
geográfico. Também o homem moderno que se aventura em qualquer busca
éticorreligiosa, conserva consigo o temor de que cedo ou tarde vai se deparar com um
abismo ético, com o vazio da existência, a morte sem sentido que coloca toda a vida
como vã.

Estas [necessidades] se mostram hoje aceitas, como é natural, de


forma bastante distinta daquelas dos tempos ideologicamente
dominados pela religião. Elas são iguais às de outrora, no entanto
requerem pela falta de sentido no aquém, o cumprimento de um
sentido no além, e desse modo desejam ver nessa vida sem sentido no
aquém, o prolongar-se de sua significação postergada no além. O
paradoxo da necessidade religiosa contemporânea se agrava pelo fato
de que em muitos casos – seja consciente ou inconscientemente – esse
para além é o nada (LUKÁCS, 1972, p.200)24.

Esse tipo de constatação tem o teor exato daquela metáfora do Grand Hotel
Abgrund em sua constatação sobre o Nihilismo, que é apresentada em relação às
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manifestações artísticas derivadas do mesmo “paradoxo da necessidade religiosa”, essa
estranha tendência a contemplar o abismo, ou o nada. Essa situação, que é fruto das
transformações éticas, mostra-se análoga ao quadro geral da “destruição da razão” que,
agora, na esfera artística, expressa-se na “destruição da forma”.

A sujeição da arte contemporânea aos princípios determinados pela


nova necessidade religiosa tem um caráter muito mais espontâneo,
sem orientação. A natureza amorfa e sem perfil da atual necessidade
religiosa apoia na arte todas suas tendências à destruição das formas
estéticas (LUKÁCS, 1967, p.254).

O que é surpreendente, é que esse paralelo entre a destruição da razão e a


destruição da forma se apresente, no seu conteúdo éticoestético, não como
“irracionalismo filosófico”, como seria o caso seguindo as leituras mais frequentes e às
vezes superficiais de Destruição da Razão [ZdV]. Ao contrário, o elemento constitutivo
da crise moderna apresenta-se segundo o aprisionamento técnico racionalista,
reiterando sua influência weberiana25 na interpretação da modernidade:

Assim que é substituída por uma transcendência contraposta ao


mundo ao qual dá forma, se rompe a determinação estética das obras,
com a única diferença de que essa transcendência, vista por seu
conteúdo, não representa um para além do real, senão uma situação
terrena; e tampouco tem a tese transcendente neste caso um caráter
irracional e niilista, mas de natureza prática e racional (LUKÁCS,
1967, p.231).

Essa forma racional permitiu a Max Weber interpretar na Modernidade um


processo encadeado, uma evolução segundo a racionalização e o desenvolvimento
intelectual e constatar que a arte e a ciência, embora se representem como autônomas,
só passaram a se caracterizar assim por terem sido condicionadas fora da esfera
religiosa. Justamente por isso Weber não as considera autônomas de fato, sendo que os
mesmos meios supostamente as libertara, ao serem tomados como meios e fins,
condicionaram-na. A racionalização, que inicialmente liberta o conhecimento da magia,
produz também um engessamento da espírito; o domínio técnico crescente que criou
infinitas possibilidades à disposição da vontade criadora, causou um empobrecimento
da forma. Por essas constatações Weber reconhece os paradoxos da vida moderna
segundo sua forma mais aguda, mas se furta a produzir, a partir dessa constatação, uma
valoração desse mundo sem sentido, como condenável eticamente ou esteticamente.
O que fundamenta a interpretação de Max Weber, e é isso que deve ser
entendido quando ele emprega a expressão “heteronomia”, é que não cabe perguntar
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sobre o dever ser ou fazer (Sollen) como um fim em si mesmo, mas unicamente o que
tem que ser feito (müssen), dado que as questões são colocadas agora de forma racional,
segundo as formas unívocas de empregar os meios práticos, e que seria por esse motivo,
verificável cientificamente sem recorrer a valorações, mas não dão um sentido ao
mundo. Ao contrário, só reafirmam a constatação evidente. A heteronomia é o que
garante em cada caso histórico sua condição técnica, ela condiz com o conceito de
técnica corretamente compreendido, o que significa em termos teóricos, apenas os
meios, ela é rigorosamente contrária à ideia de autonomia, sendo a autonomia um fim
nela mesma.
Para Weber a valoração estética não pode sobrepor-se à interpretação do
historiador,

pelo contrário: o interesse nas obras de arte e em suas particularidades


e relevância estética individual, e também: sendo seu objeto, sua
heteronomia: enquanto seu a priori, dado por ela, para ela e por seus
meios, não é, de modo algum, afirmação de valor estético (WEBER,
1922, p.483, grifo nosso)26.

O que se mostra como objeto, as obras de arte, não são em si mesmas o objeto do
historiador ou do sociólogo da arte. Seu objeto caracteriza-se, antes, segundo o interesse
do estudioso em identificar os elementos objetivos. Todo valor estético da obra de arte
deve ser desconsiderado em observância às condições puramente técnicas e da
especificidade da obra de arte em questão, sua época expõe suas condições objetivas,
“sua heteronomia” e “seus a prioris”, expondo assim, novamente em termos
especificamente kantianos, as determinações exteriores e casuais do fenômeno artístico.
Assim explica que não cabe ao historiador perguntar se a produção estética seria
virtuosa, promove o bem e a felicidade ou se ela é condenável e decadente, diz Weber
em A Ciência Como Profissão:

Não cabe colocar em questão se o reino da arte não seria talvez um


reino de principados diabólicos, um reino desse mundo, e desse modo
no sentido interior mais profundo, antidivino e, no sentido
aristocrático mais profundo que há, de espírito antifraternal. Assim
também não deve se perguntar se devem haver obras de arte (WEBER,
1922, p.542, grifo nosso)27.

Tolstói considerava exatamente isso que Weber vetava: “no lugar da arte
religiosa está sendo colocado uma arte vazia e com muita frequência, viciosa”
(TOLSTÓI, 1899, p.160). Considerava, em oposição à arte supostamente autônoma, que

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a arte deveria buscar uma orientação exterior a ela, deveria promover o amor fraternal:
“a tarefa da arte a ser cumprida é tornar o sentimento de fraternidade e amor ao
próximo, que agora se reduz apenas aos melhores da sociedade, o sentimento
costumeiro e instintivo de todos homens” (TOLSTÓI, 1899, p.211) e para Tolstói só a
arte poderia cumprir esse encargo.
Weber e, posterirormente, Lukács, compartilhavam dessa constatação de que a
autonomia da arte não correspondia a sua forma histórica. Como está sendo indicado,
Weber, embora inspirado pelas questões e problemas levantados pelo escritor russo,
considerava algo que deve ser diferenciado de Tolstói. Para ele a arte tem de ser
compreendida como heterônoma e não como autônoma. Para Tolstói a arte não deve ser
autônoma. Weber pressupõe um fundamento teórico crítico sobre a existência das obras
de arte, Tolstói propõe um ideal estético, um dever ser.
Contraditoriamente, Habermas, no primeiro volume de Teoria da Ação
Comunicativa, compreende a abordagem de Max Weber sobre os fenômenos estéticos,
segundo a ideia de “autonomia”. Em seu livro, Habermas afirma que “Max Weber leu a
racionalização cultural segundo a ciência e a técnica moderna, ancorado pelo princípio
na arte, no religioso, de diretrizes éticas autônomas [autonomer]” (HABERMAS, 1988,
p.228)28. Certamente Habermas, não sendo leigo com relação a Weber nem, muito
menos, com relação a Kant, utiliza a expressão “autônoma” com seu pleno sentido
filosófico. Isso fica evidente quando Habermas expõe, mais adiante, esse suposto
sentido weberiano da “arte como autônoma”:

Não apenas a ciência, Weber também inclui a arte autônoma


[autonome Kunst] dentre as formas de fenômenos de racionalização
cultural. Os padrões de expressão artística estilizados estavam
inicialmente integrados ao culto religioso, como adornos de igrejas e
templos, como danças e cantos ritualísticos, como encenação de
episódios significativos, de textos sagrados, etc.; por condição
inicialmente do mecenato das cortes e posteriormente pela produção
artística capitalista-burguesa, ela se emancipa: ‘a arte constitui-se
agora enquanto um cosmos sempre consciente que engloba
autossuficiente [selbständiger] seus próprios valores’ (HABERMAS,
1988, p.229)29.

Assim Habermas cita Max Weber, apresentando por que para ele a arte seria
autônoma. Nesse trecho encontramos a fonte teórica weberiana que conduziu Habermas
a compreender na modernidade30 o fenômeno artístico como autônomo, observando na
última frase, de autoria do próprio Weber, que coloca a arte na Modernidade como
havendo conquistado sua “autossuficiência” [selbständiger]. Embora não seja, a rigor,
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denominada “autônoma”, essa aparente autonomia se daria em relação ao seu passado
submisso à religiosidade. Nesses termos e ao contrário do que foi aqui desenvolvido,
Habermas compreende uma autonomia no lugar de uma heteronomia, mas isso somente
porque não identifica uma teoria dos valores separada da constatação histórica de
Weber31.
Além disso, buscamos evidenciar que Weber utiliza a expressão “heteronomia” e
também autossuficiência [“selbständiger”] ao se referir à arte emancipada na
Modernidade, mas não utilizava, a rigor, a expressão Autonomie,32 nem qualquer
derivado.
Ora, se analisarmos com cuidado a interpretação de Weber, notamos no que
emancipa a arte e a torna supostamente “autônoma” na Modernidade, dá-se justamente,
ou melhor, contraditoriamente, pelo mesmo elemento que, ao contrário, condiciona-a.
Foi, num primeiro momento, o mecenato e, posteriormente, o que mais diretamente nos
interessa, as técnicas produtivas do Capitalismo moderno que a emanciparam do meio
religioso. Torna-se evidente a seguinte questão: como poderiam as condições materiais
e técnicas torná-la autônoma uma vez que é ela própria que agora a condiciona? Algo
não pode ser condicionado e autônomo ao mesmo tempo.
Nesse trecho de Weber da Consideração Intermediária (GARS)33 citado por
Habermas, vemos o que é, por Weber identificado como um mundo, ou um cosmos,
autossuficiente. Esse conceito de autossuficiência é, de fato, sinônimo de autonomia e,
justamente por isso, Habermas, igualando-os, afirma: “autossuficiência significa, antes
de mais nada, que ela pode desenvolver ‘por si própria a legislação da arte’”34. É
possível discordar dessa afirmação, compreendendo aí que a designação mais própria,
nesses termos, seria autonomia e não autossuficiência, recorrendo às diferenças entre as
concepções de liberdade de Fichte e Kant. Além disso, pareceria bastante coerente
discordar dessa afirmativa, indicando que Weber não considera a arte autônoma de um
ponto de vista teórico-causal, apenas autossuficiente num sentido histórico muito
recente e não sem problematizá-lo criticamente.
Em seguida, Habermas comenta o texto de Weber sobre Os Fundamentos
Sociológicos e Racionais da Música, traçando um paralelo com o desenvolvimento
posterior das considerações de Adorno sobre a arte vanguardista, e seu caráter reflexivo.
Habermas dá a entender que Adorno deu continuação à reflexão de Weber, o que é
muito coerente, mas constata que Adorno divergia do mesmo por não considerar tais
manifestações artísticas como autônomas. Nas palavras de Habermas (1988):
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Adorno seguiu essa linha [weberiana], analisou e demonstrou que a
evolução artística vanguardista se torna processo e meio reflexivo de
produção da arte [...] embora ele tenha permanecido sobremodo cético
frente à ‘autossuficiência do método diante das coisas [Sache]’35.

Habermas compreendeu em Weber traços de divergências a esse respeito, traços


esses que aqui não nos parecem tão claros.
Max Weber explica que “a criação de novos meios técnicos significa, antes de
mais nada, a multiplicação da diferenciação e, no sentido da elevação do valor,
unicamente a possibilidade da multiplicação da ‘riqueza’ da arte”36. Nesse trecho fica
clara a separação da valoração estética e do progresso técnico científico. Uma obra de
arte sem o conhecimento técnico da perspectiva não se mostra esteticamente mais
limitada ou inferior, o desenvolvimento técnico permite mais possibilidades, mas não
determina o curso do desenvolvimento estético,

obras de arte com técnicas, certamente mais ‘primitivas’ – figuras


sem, por exemplo, o conhecimento pleno da perspectiva – permitiriam
[vermögen] esteticamente a mesma plenitude, sendo absolutamente
igualáveis às criadas sobre o solo de técnicas racionais (WEBER,
1922, p.485)37.

Weber grifou especificamente o radical “possível” (möglisch) da expressão


“possibilidade” (möglischkeit), para enfatizar que o progresso técnico pode
eventualmente viabilizar, mas não traz em si os elementos práticos capazes de realizar
por si próprio, i.e., de forma autônoma, o enriquecimento estético. É possível notar aqui
um sentido de autonomia que é negado, embora indique do ponto de vista valorativo
que a arte não poderia, a priori, ser determinada por elementos alheios a ela, embora
quanto à consideração causal, mostre-se sempre condicionada historicamente. Weber
apresentava, como vimos, a necessidade de se reconhecer os seus “a prioris”, no sentido
de sua heteronomia.
Max Weber considerava o progresso da diferenciação como passível de uma
ilusão intelectualista. A mesma desconfiança o faz apresentar, com relação à
diferenciação e ao progresso técnico, uma constatação bastante realista, que o coloca em
vantagem, se comparado aos que ignoram o risco de tal ilusão. A diferenciação e o
progresso técnico são entendidos segundo a possibilidade e, frisemos, não mais que
isso, de um enriquecimento do valor estético. E Weber acrescenta a seguinte opinião,
“de fato ele”, no caso, o progresso dos meios técnicos, “apresentou frequentemente o
efeito inverso, o ‘empobrecimento’ do sentimento das formas [Formgefühls]” esse tipo
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de opinião, evidentemente, não poderia ser emitido por Weber sem a típica ressalva de
que “contudo, para a consideração empírico-causal, a mais importante representação
universal do momento progressivo da arte, é a alteração da ‘técnica’ (no sentido mais
elevado da palavra)” (WEBER, 1922, p.485)38.
Desse modo, mesmo reconhecendo uma tendência muito realista no domínio
técnico como produtor do empobrecimento estético, a constatação de Weber apresenta-
se de fato muito cuidadosa em não recair no erro oposto à valoração estética da obra de
arte tecnicamente mais evoluída, o erro de considerar toda arte que se serve do domínio
técnico mais avançado, como decadente, o que seria também uma forma de valoração.
Por isso, apesar de constatar que o progresso dos meios técnicos conduz muito mais ao
empobrecimento do que ao enriquecimento, ambos diagnósticos fugiriam, para Weber,
daquilo que deveria ser evidenciado na história da arte, a fria relação dos meios técnicos
e das condições histórico-sociais com a vontade artística. Não podemos ignorar que essa
constatação de Weber condiz muito propriamente com aquilo que se diagnosticou, mais
recentemente, com ralação à “indústria cultural”, embora as ressalvas a desqualifiquem
cientificamente, esse tipo de opiniões, as ressalvas e advertências de Weber nos
conduzem a compreender que o sentido dado a essa autonomia da arte, corresponde, em
todo o caso, ao que Lukács denomina problema da totalidade, à ideia de cosmos ou
mundo, tal como fora problematizada no Idealismo e reinterpretada por Marx. Essa
suposta autonomia não é compreendida senão como problema. Ainda que Weber
critique as valorações indevidas nas considerações históricas, ele reconhecia uma
grande vantagem no uso pragmático da reflexão que apresente advertências e que
problematize questões fundamentais.
Sua posição ambígua a esse respeito confirma-se nas seguintes passagens. Para
ele não podemos fundamentar cientificamente uma constatação sobre a decadência da
arte, pois isso “conduz ao risco de, p. ex., buscar ‘esclarecer’ o resultado de uma ‘falha’
ou uma ‘decadência’, do que talvez poderiam ter sido efeito dos ideais heterogêneos do
agente, falhando assim no que seria sua tarefa mais própria: o ‘compreender’”
(WEBER, 1922, p.486)39. Ao buscar demonstrar cientificamente uma valoração, o
historiador acaba indo no sentido contrário à compreensão, confundindo a esfera
valorativa com a empírica. Para Weber, a esfera empírica, que dispõe de seus meios
teóricos e métodos, não possui por esses meios, condições de apreender ou demonstrar
características valorativas dos objetos e ao fazê-lo recai no erro que caracteriza os
profetas das cátedras.
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Os novos “profetas das cátedras” falam da vida como uma possibilidade de
superação desses limites; movidos por entusiasmo nem sempre recaem na lembrança de
que seu sentimento corresponde à necessidade religiosa. A filosofia da vida que quer
superá-lo, produz não mais que um simulacro, uma “tentativa forçosa”, diz Weber, e se
querem sacrificar o entendimento a esses valores, seria melhor que retornassem às
igrejas que lhes receberão de portas abertas.
Weber em outro texto intitulado Entre duas leis, diz que nas questões políticas,
nas decisões sobre a guerra, não cabem as considerações valorativas. “O novo
testamento tem de ser deixado totalmente de fora desse debate – ou: ser levado a sério.
E nesse caso, ser tão consequente como foi Tolstói, e não menos que isso”40. Weber está
se referindo ao final da vida de Liev Tolstói, época dos textos que foram aqui utilizados.
Já idoso ele adotara um estilo de vida radical para abandonar completamente qualquer
parte nesse mundo decadente. Seguir o novo testamento significa para Weber, agir
como Tolstói; significa reconhecer que

qualquer um que receba um centavo de receita da renda de outros, que


direta ou indiretamente necessite pagar outros por bens essenciais ou
de consumo, produtos do suor alheio e não de seu próprio, nutre sua
existência pelo mecanismo sem amor e alheio à compaixão da luta
econômica pela existência41.

Embora Weber indique que Tolstói tenha sido plenamente consequente quando
buscou se libertar de tudo quanto o impedia de viver de forma indigna, quando buscou
atrair sectários a uma vida comprometida com valores éticos cristãos e livre de toda
hipocrisia religiosa, não deixou de dar a sua vida o mesmo sentido que encontramos em
suas obras literárias. Assim, conclui Weber, “quem não leva em conta essas
consequências – e o próprio Tolstói só o fez uma vez que estava já a caminho da morte
– deve então saber que ele está atado às legalidades aqui desse mundo” (WEBER, 1921,
p.62) 42.
Max Weber não deixa de fazer notar a relação direta entre o sentido e o problema
das obras de Tolstói, e sua própria existência, a vida, sua vida, imitando sua própria
arte. Parece bastante destruidora a constatação de Weber de que Tolstói só encarou de
fato suas ideias de forma consequente quando vivenciou ele próprio a chegada da noite
de seus dias.

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Notas
1
Ruhig, ehrlich und schön. Schön, weil er nicht lügt, weil er nicht grimassiert, nichts fürchtet und nicht
bedauert.‘ No seguinte trecho, bem como em todos os trechos citados nos quais constam em nota a
versão original, a tradução para o português é de autoria do próprio autor do artigo, nos demais trechos
a tradução seguiu a edição citada nas respectivas referências bibliográficas.
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2
Tolstoi deutet zwar die äußerliche Religiosität des Bauern an, die höchstwahrscheinlich überwiegend
magischen Charakters ist und mit dem Christentum als Religion innerlich wenig zu tun hat.
3
Wonach gerade die Ausbreitung der menschlichen Kenntnisse über die Vorgänge in der Außenwelt die
Illusion ihrer Beherrschbarkeit durch Magie zerstört und an ihre Stelle die Religion mit ihren
menschlichethisch durchsetzten Beziehung zwischen Mensch und Transzendenz gestellt hat […] Die
Entstehung und Verfestigung des religiösen Bedürfnisses, wie wir es oben bestimmt haben, wird
zugleich auch institutionell gefördert und ins System der entstehenden und sich weiterentwickelnden
Religionen eingefügt.
4
Abraham oder irgendein Bauer der alten Zeit starb »alt und lebensgesättigt«, weil er im organischen
Kreislauf des Lebens stand, weil sein Leben auch seinem Sinn nach ihm am Abend seiner Tage gebracht
hatte.
5
[…] was es bieten konnte, weil für ihn keine Rätsel, die er zu lösen wünschte, übrig blieben und er
deshalb »genug« daran haben konnte.
6
Ein Kulturmensch aber, hineingestellt in die fortwährende Anreicherung der Zivilisation mit Gedanken,
Wissen, Problemen, der kann »lebensmüde« werden, aber nicht: lebensgesättigt. Denn er erhascht von
dem, was das Leben des Geistes stets neu gebiert, ja nur den winzigsten Teil, und immer nur etwas
Vorläufiges, nichts Endgültiges, und deshalb ist der Tod für ihn eine sinnlose Begebenheit. Und weil
der Tod sinnlos ist, ist es auch das Kulturleben als solches, welches ja eben durch seine sinnlose
»Fortschrittlichkeit« den Tod zur Sinnlosigkeit stempelt. Ueberall in seinen späten Romanen findet sich
dieser Gedanke als Grundton der Tolstoj sehen Kunst.
7
Es gibt Schriftsteller, die in ihrer Zeit nur inhaltlich isoliert dastehen, und es gibt Ästheten; oder um
präziser zu sein: es gibt ein soziologisches und psychologisches l'art pour l'art. Wer ist Ästhet?
8
ein Ästhet ist, wer in einer Zeit geboren ist, da das rationelle Formgefühl ausgestorben ist.
9
Hat denn aber nun dieser in der okzidentalen Kultur durch Jahrtausende fortgesetzte
Entzauberungsprozeß und überhaupt: dieser »Fortschritt«, dem die Wissenschaft als Glied und
Triebkraft mit angehört, irgendeinen über dies rein Praktische und Technische hinausgehenden Sinn?
10
Aufgeworfen finden Sie diese Frage am prinzipiellsten in den Werken Leo Tolstojs. Auf einem
eigentümlichen Wege kam er dazu. Das ganze Problem seines Grübelns drehte sich zunehmend um die
Frage: ob der T o d eine sinnvolle Erscheinung sei oder nicht. Und die Antwort lautet bei ihm: für den
Kulturmenschen — nein. Und zwar deshalb nicht, weil ja das zivilisierte, in den »Fortschritt«, in das
Unendliche hineingestellte einzelne Leben seinem eigenen immanenten Sinn nach kein Ende haben
dürfte. Denn es liegt ja immer noch ein weiterer Fortschritt vor dem, der darin steht; niemand, der
stirbt, steht auf der Höhe, welche in der Unendlichkeit liegt.
11
Daß Wissenschaft heute ein fachlich betriebener »Beruf« ist im Dienst der Selbstbesinnung und der
Erkenntnis tatsächlicher Zusammenhänge, und nicht eine Heilsgüter und Offenbarungen spendende
Gnadengabe von Sehern, Propheten.
12
das freilich ist eine unentrinnbare Gegebenheit unserer historischen Situation
13
Und wenn nun wieder Tolstoj in Ihnen aufsteht und fragt: »Wer beantwortet, da es die Wissenschaft
nicht tut, die Frage: was sollen wir denn tun? und: wie sollen wir unser Leben einrichten ?«
14
ein Prophet oder ein Heiland.
15
der Prophet […] ist eben nicht da.
16
diese Grundtatsache, daß er in einer gottfremden, prophetenlosen Zeit zu leben das Schicksal hat,
durch ein Surrogat, wie es alle diese Kathederprophetien sind, verhüllt wird.
17
Zwischen diesen gibt es keine Relativierungen und Kompromisse.
18
Es läßt sich jedenfalls eine Konzeption dieser Auffassung denken, welche — obwohl sie für das von ihr
gemeinte Konkretissimum des Erlebens den Ausdruck »Wert« wohl verschmähen würde — eben doch
eine Sphäre konstituieren würde, welche jeder Heiligkeit oder Güte, jeder ethischen oder ästhetischen
Gesetzlichkeit, jeder Kulturbedeutsamkeit oder Persönlichkeitswertung gleich fremd und feindlich
gegenüberstehend, dennoch und eben deshalb ihre eigene in einem alleräußersten Sinn des Worts
»immanente« Dignität in Anspruch nähme. Welches immer nun unsere Stellungnahme zu diesem
Anspruch sein mag, jedenfalls ist sie mit den Mitteln keiner »Wissenschaft« beweisbar oder
»widerlegbar«.
19
„Mein Gott, mein Gott, warum hast Du mich verlassen?“ na tradução de Lutero, cantada com toda
expressividade em Mathäus Passion de J. S. Bach.
20
Alle echten Kunstwerke sind im genauen Sinne des Wortes Antiteodizeen.
21
Wollen und Denken des Künstlers, ein Bruch mit den Grundlagen des religiösen Bedürfnisses.
22
[…] eine solche seelische Aufhebung der Sinnlosigkeit von objektiven Lebenstatsachen weist stets den
Anspruch ab, […] objektive Kausalität zu erblikken. Die Menschheit selbst ist es, die dem eigenen
Leben der Menschen einen Sinn verleiht: darin ist jede echte Dichtung eine Antitheodizee.

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23
Dostoiévski, O idiota.
24
Diese nehmen heute natürlich sehr oft ganz andere Formen an, als in ideologisch von der Religionen
beherrsch Perioden. Sie gleichen ihnen aber trotzdem darin, dass sie als Erfüllung einer diesseitigen
Sinnlosigkeit eine jenseitige Sinnhaftigkeit fordern, und deshalb das diesseitige sinnlose Leben durch
ein jenseitig sinnhaftes verlängert zu sehen wünschen. Die Paradoxie des gegenwärtigen religiösen
Bedürfnisses spitzt sich darin zu, dass dieses Jenseits in vielen Fällen – für den Beteiligten Bewusst
oder unbewusst – das Nichts ist.
25
Apesar de Lukács haver, em A Destruição da Razão [ZdV], acusado Weber de irracionalismo, ele
próprio reproduziu na Estética uma consideração negativa sobre a racionalidade análoga à de Max
Weber. O que sugere que aquilo que Lukács denominava “irracionalismo” em Weber não diz respeito a
essas constatações éticas. Trata-se de uma questão confusa, de certo modo, o caráter irracionalista de
Weber e de Windelband se refere ao princípio do Hiatus irrationalis, isto é evidente, mas em outros
momentos Lukács faz menção ao irracionalismo em Weber como uma fonte metafísica histórica que
não se apresenta de maneira explícita. Uma das grandes falhas na interessante interpretação de
Rockmore é não diferenciar essas nuances, reduzindo todas à idéia de antinomia do pensamento
burguês.
26
Vielmehr: Das Interesse an den Kunstwerken und an ihren ästhetisch relevanten einzelnen
Eigentümlichkeiten und also: ihr Objekt ist ihr heteronom: als ihr Apriori, gegeben durch deren von
ihr, mit ihren Mitteln, gar nicht feststellbaren ästhetischen Wert.
27
Aber sie wirft die Frage nicht auf, ob das Reich der Kunst nicht vielleicht ein Reich diabolischer
Herrlichkeit sei, ein Reich von dieser Welt, deshalb widergöttlich im tiefsten Innern und in seinem
tiefinnerlichst aristokratischen Geist widerbrüderlich. Danach also fragt sie nicht: ob es Kunstwerke
geben s o l l e.
28
Die kulturelle Rationalisierung liest Weber ab an moderner Wissenschaft und Technik, an autonomer
Kunst und religiös verankerter prinzipiengeleiteter Ethik.
29
Aber nicht nur die Wissenschaft, auch die autonome Kunst rechnet Weber zu den Erscheinungsformen
der kulturellen Rationalisie-rung. Die künstlerisch stilisierten Ausdrucksmuster, die zunächst dem
religiösen Kult als Kirchen- und Tempelschmuck, als ritueller Tanz und Gesang, als Inszenierung
bedeutsamer Episoden, heili-ger Texte usw. integriert waren, verselbständigen sich mit den
Be-dingungen der zunächst höfisch-mäzenatischen, später bürgerlich-kapitalistischen Kunstproduktion:
»Die Kunst konstituiert sich nun als ein Kosmos immer bewußter erfaßter selbständiger Eigenwerte.«
30
Embora essa ressalva não fique clara, a autonomia de modo algum poderia ser universal, uma vez que
no passado estava amalgamada com as formas de religiosidade. Somente por esquecimento,
parafraseando Nietzsche, poderia alguém considerar a arte como intrinsicamente autônoma. Mas de fato
como se pode ler na Miséria da Filosofia, de Marx, toma-se sempre como natural a forma presente e
artificial todas as demais e o historiador, assim também, assemelha-se ao teólogo.
31
Lukács soube caracterizar com exatidão essa separação em Weber e a critica no prefácio de 1965 a
Marx e Engels Historiadores da Literatura.
32
Se atentarmos à História da Filosofia, poderíamos então com clareza reconhecer que autonomia
designada como Autonomie é um conceito kantiano, o qual se compreende rigorosamente nessa
expressão que remete a “nomia”, ou melhor, “nomoi” (νόμοι) “leis”, e faz “autonomia” corresponder ao
imperativo, a capacidade legisladora universal. Quem substitui a expressão de origem grega pela
variante “Sebstständigkeit”, que se traduz igualmente por autonomia, e aqui designamos
“autossuficiência” apenas para diferenciá-las, é J. G. Fichte, atribuindo um sentido variante à liberdade
kantiana compreendida nesses termos, e reconhecido por muitos como uma compreensão inexata do
conceito de Kant.
33
GARS - Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie (1920-21).
34
Verselbständigung bedeutet zunächst, daß sich die »Eigengesetzlichkeit der Kunst« entfalten kann.
35
Adorno hat auf dieser Linie die avantgardistische Kunstentwicklung analysiert und gezeigt, wie die
Prozesse und Mittel der Kunstherstellung reflexiv werden [...] Er bleibt freilich gegen-über dieser
»Verselbständigung der Methode gegenüber der Sache« skeptisch.
36
Die Schaffung neuer technischer Mittel bedeutet zunächst nur zunehmende Differenzierung und gibt
nur die M ö g l i c h keit zunehmenden »Reichtums« der Kunst im Sinn der Wertsteigerung.
37
Kunstwerke mit noch so »primitiver« Technik — Bilder z. B. ohne alle Kenntnis der Perspektive —
vermögen ästhetisch den vollendetsten auf dem Boden rationaler Technik geschaffenen absolut
ebenbürtig zu sein,
38
Tatsächlich hat sie nicht selten den umgekehrten Effekt der »Verarmung« des Formgefühls gehabt.
Aber für die empirisch k a u s a l e Betrachtung ist gerade die Aenderung der »Technik« (im höchsten
Sinn des Worts) das wichtigste allgemein feststellbare Entwicklungsmoment der Kunst.

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39
Er kommt dann in die Gefahr, z. B. für die Folge eines »Fehlers« oder eines »Verfalls« zu »erklären«,
was vielleicht Wirkung ihm heterogener Ideale der Handelnden war, und er verfehlt so seine eigenste
Aufgabe: das »Verstehen«.
40
Das Evangelium aber möge man aus diesen Erörterungen draußen lassen - oder: Ernst machen. Und
da gibt es nur die Konsequenz Tolstois, sonst nichts.
41
Wer auch nur einen Pfennig Renten bezieht, die andere - direkt oder indirekt - zahlen müssen, wer
irgendein Gebrauchsgut besitzt oder ein Verzehrsgut verbraucht, an dem der Schweiß fremder, nicht
eigener, Arbeit klebt, der speist seine Existenz aus dem Getriebe jenes liebeleeren und
erbarmungsfremden ökonomischen Kampfs ums Dasein.
42
Wer die Konsequenzen nicht zieht – und das hat Tolstoi selbst erst getan, als es ans Sterben ging -, der
möge wissen, daß er an die Gesetzlichkeiten der diesseitigen Welt gebunden ist.

Artigo recebido em 10/08/2013. Aprovado em 01/10/2013.

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UM MUNDO EM AGONIA: A GERAÇÃO DE 1870 EM DESTERRO

A WORLD IN AGONY: THE 1870'S GENERATION IN DESTERRO

Luiz Alberto de SOUZA•

Resumo: O artigo revê a interpretação, consagrada pela História Literária, acerca do surgimento de
um movimento anti-Romântico na Província de Santa Catarina durante a década de 1880. Nele,
relativiza-se a importância tradicionalmente atribuída ao presidente Francisco Luiz da Gama Rosa
para a constituição do chamado “Grupo da Ideia Nova” e propõe-se uma explicação conjuntural
para a emergência dessa formação em Desterro.
Palavras-chave: Desterro – Geração de 1870 – Ideia Nova.

Abstract: The article reassesses the interpretation, consecrated by the Literary History, about the
emergence of an anti-romantic movement in the Province of Santa Catarina in the 1880s. In the
article, the importance traditionally attributed to President Francisco Luiz da Gama Rosa to the
formation of the so-called "Ideia Nova" group is relativized and is proposed a conjectural
explanation about their emergence in Desterro.
Keywords: Desterro – 1870's Generation – Ideia Nova.

Havia então na atmosfera, pairava por todo o Brasil a ansiedade, a


dúvida, o temor, a ameaça de movimentos misteriosos, o desamparo em
que permanecia o meio social pela aproximação do desconhecido e do
tenebroso. O Império agonizava (VARZEA, George Marcial, 1901).

No início da década de 1880, começou a ganhar visibilidade na imprensa de Nossa


Senhora de Desterro uma nova leva de escritores. Moços, quase todos nascidos na primeira
metade da conturbada década de 1860, fizeram parte dessa geração Cruz e Sousa, Virgilio
Varzea, Carlos de Faria, Araujo Figueredo, Santos Lostada, entre outros. Como elementos
de identificação, além da amizade, juventude e desejo de projeção social através da
literatura, esses rapazes compartilhavam certos valores estéticos e ideais políticos. Eram
abolicionistas, alguns simpatizantes da causa republicana e, a partir de certo momento,
inflamadamente anti-Românticos.
Muito tempo depois, já entre os anos de 1940 e 1950, ensaístas, críticos e cronistas
literários passaram a rotular aquele círculo como o “grupo” da “Ideia Nova” (JUNKES,


Doutorando em História – Programa de Pós-graduação em História – Centro de Filosofia e Ciências
Humanas – Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Campus Universitário Reitor João David
Ferreira Lima, CEP: 88.040-970, Florianópolis, Santa Catarina – Brasil. Bolsista CNPq. Pesquisador junto
ao Núcleo de Pesquisa História, Literatura e Sociedade (NEHLIS/UFSC). E-mail:
luiz_alberto82@yahoo.com.br.
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2006, p. 209). Para esses intérpretes (estudiosos da “Literatura catarinense” como Altino
Flores, Élio Ballstaedt e Osvaldo Ferreira de Melo), o chamado “Ideia Nova”
corresponderia a uma associação de “jovens literatos” interessados em adaptar, “à moda da
terra”, as “doutrinas que dominaram o período realista nas artes” (MELO, 1958, p. 83).
Na década de 1990, quando descobriu aquele grupo de escritores desterrenses, a
Historiografia assimilou muito dessas análises. Fundamentando-se mais na bibliografia
disponível do que nas fontes existentes, historiadores de ofício realizaram uma leitura em
muitos aspectos similar à dos seus antecessores. Assim, uma das primeiras caracterizações
historiográficas do “Grupo das Ideias Novas” foi a de um “movimento” de “autodidatas [...]
com pouca escolaridade”, que

[...] reconhecidos como modernos e anti-românticos, tomando para si a


causa abolicionista, [...] contribuíram para a identidade de uma geração que
se considerava mais atualizada e sintonizada com as tendências européias,
colocando em xeque a estética da geração anterior (CHEREM, 1998, p.
214).

Pois bem, guardadas as devidas proporções, sobretudo as naturezas específicas dos


estudos, pode-se dizer que crítica, crônica literária e historiografia profissional
compartilharam de uma mesma opção metodológica: todas essas análises privilegiaram a
dimensão intelectual em detrimento da dimensão política intrínseca ao objeto. Todas, em
maior ou menor grau, definiram o Grupo de Desterro como uma comunidade de estetas.
Neste artigo, buscaremos nos afastar dessa tendência. Não tomaremos a chave
intelectual como critério básico para compreender a produção e a atuação do grupo. Não
cremos que a literatura elaborada por aquele círculo de escritores visasse exclusivamente a
“renovação” estético-filosófica das letras em Desterro. Pelo contrário, aqui, nossa ênfase
recairá sobre os interesses sociais e políticos mais amplos inerentes à sua realização
artística.
Nossa escolha se baseou na experiência direta com as fontes. Nas buscas em jornais
de época, nas análises de narrativas memorialísticas e, também, na leitura dos textos
literários. Nesse processo, ao nos debruçarmos sobre os contos e poemas, bem como outros
registros deixados por remanescentes, a contradição entre uma parte significativa da
bibliografia referente ao Grupo de Desterro e o conteúdo desses testemunhos tornou-se
óbvia.

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A despeito da influência de análises “clássicas” como as de Élio Ballstaedt
(BALLSTAEDT, 1954) ou Altino Flores (FLORES, 1948), que perceberam no Grupo de
Desterro apenas um movimento de crítica e renovação estritamente formais, o que se
apreende no trato com a documentação é justamente o oposto. Isto é, o forte sentido de
intervenção social implícito, tanto na produção literária quanto nas trajetórias individuais de
seus participantes.
Nada menos surpreendente. Literatura e literatos não existem à parte dos processos
históricos nos quais estão sempre imersos. Obras e autores, mesmo que não desejem ou
tenham consciência disso, vivem em permanente interação com a “arena das polêmicas e
conflitos de sua contemporaneidade” (CHALHOUB; PEREIRA, 1998, p. 8). No caso
específico do Grupo de Desterro, engajamento político e produção estética são elementos
claramente indissociáveis. Aspectos impossíveis de serem plenamente apreendidos sem que
refaçamos a ponte entre texto e contexto.

Um “Herói Civilizador”

Tomando o ambiente social e político da década de 1880 apenas como plano de


fundo para as suas conjecturas, certos intérpretes não compreenderam a formação do
chamado “Grupo da Ideia Nova” como um fenômeno profundamente enraizado na
conjuntura do fim do Império. Pelo contrário, de acordo com esses autores, o seu
surgimento seria algo episódico, fruto de uma intervenção individual e localizada. No caso,
a nomeação do médico e político liberal Francisco Luiz da Gama Rosa ao cargo de
presidente da Província de Santa Catarina.
Um exemplo dessa leitura se encontra no livro A Literatura de Santa Catarina, de
Celestino Sachet. Reproduzindo em 1979 ideias cristalizadas desde meados dos anos 1950,
Sachet inicia assim o capítulo intitulado “Ideia Nova”: “Quando, em 29 de agosto de 1883,
Francisco Luiz da Gama Rosa se torna presidente da Província, vindo da Corte, rodeia-se
de um grupo de jovens que tomarão de assalto a inexpugnável cidadela do Romantismo
[...]” (SACHET, 1979, p. 55).
E prossegue. Numa síntese de Altino Flores, Élio Ballstaed e Osvaldo Ferreira de
Melo:

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O Presidente, homem de relativa cultura e bastante versado nas últimas
novidades filosófico-literárias, alarma-se com a indigência de nosso meio
intelectual. Nossos escritores pouco, ou mesmo, quase nada sabem de
Darwin, Zola, Comte, Spencer e Proudhon, embora esses ilustres
intelectuais estivessem revolucionando a Arte e o Pensamento nos
centros da cultura européia (SACHET, 1979, p. 55).

Desse modo, quase como um herói civilizador, um Prometeu que desce dos altos da
cultura letrada europeia o fogo da inteligência, Gama Rosa

[...] traz para Santa Catarina informações sobre aqueles sábios com suas
respectivas doutrinas. E, desde logo, o jovem médico encontra ouvidos
atentos às suas preleções, realizadas na própria residência. Ali se
proclama que Castilho e Herculano já cederam lugar a um nome por aqui
desconhecido: Eça de Queirós. E que, na França, Victor Hugo havia
perdido todo seu prestígio de outrora (SACHET, 1979, p. 55).

Com efeito; como se essas opiniões de algum modo fossem tão óbvias, tão
autoevidentes que só necessitassem ser “reveladas” por Gama Rosa; Celestino Sachet
setencia: “Não tardou muito para que os jovens Virgilio Varzea, Santos Lostada e Araujo
Figueredo deixassem de lado o Romantismo e empunhassem a nova Bandeira” (SACHET,
1979, p. 55).
Quanto a nós, não compartilhamos desta análise nem da tradição interpretativa na
qual Sachet se insere. De modo que, no presente capítulo, o surgimento daquilo que
trataremos apenas como “Grupo de Desterro” será abordado privilegiando-se não as ações
isoladas de tal ou qual agente, mas os processos sóciopolíticos em curso durante as últimas
décadas do Segundo Reinado.
Nosso ponto de vista é o de que, menos que o resultado de um encontro bem-
sucedido entre um erudito disposto a ensinar e jovens dispostos a aprender, a origem do
Grupo de Desterro esteve intimamente relacionada ao advento de um ambiente propício à
expressão pública e coletiva de descontentamentos por parte de grupos sociais até então
marginalizados pelo establishment monárquico. O que, como veremos ainda neste trabalho,
é o caso de todos os seus personagens desde Cruz e Sousa ao próprio Gama Rosa. A
existência desse grupo, portanto, seria um dos desdobramentos das transformações
econômicas e sociais que alteraram drasticamente a “estrutura de oportunidades” políticas
dos últimos vinte anos do Império.

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Sobre o conceito de “estrutura de oportunidades políticas” e sua relação com o
advento de movimentos “intelectuais”, a socióloga Angela Alonso, estudiosa da chamada
“geração 1870”, escreve:

Movimentos intelectuais são uma modalidade de movimento social. Por


sua vez, movimentos sociais são uma das formas modernas de ação
coletiva, que surgem com o enfraquecimento das formas tradicionais de
expressar demandas, seja por sua ineficácia, seja pelo aumento da
participação política. Segundo Tilly [...], estão associados a momentos
nos quais as instituições políticas falham em responder as demandas de
parte dos membros da própria comunidade política. Esta situação de crise
permite que pequenos grupos insatisfeitos com as regras de distribuição
de bens e recursos e de representação, antes silenciosos ou inaudíveis,
possam vocalizar suas demandas mesmo fora das instituições políticas
estabelecidas. Isto é, movimentos sociais surgem tipicamente em
momentos de crise política. Tarrow agrega que movimentos sociais se
formam quando há uma expansão da ‘estrutura de oportunidades
políticas’. Quando processos de crise dilatam as “dimensões consistentes
— mas não formais ou permanentes — do ambiente político que fornece
incentivos para pessoas se engajarem em ações coletivas, por afetarem
suas expectativas de sucesso ou fracasso (ALONSO, 2002, p. 41).

É o que aparentemente ocorreu em Desterro quando, entre as décadas de 1870 e


1880, começaram a circular pequenos jornais “noticiosos” e “críticos” editados fora das
grandes tipografias dos partidos Liberal e Conservador. Representando as opiniões de
grupos sociais diversos, acreditamos que a existência desses periódicos indica uma fissura
no edifício do poder imperial. Uma nova “estrutura de oportunidades políticas” sendo
explorada.
O surgimento de um periódico como O Colombo (1881), por exemplo, numa
província pobre, pouco povoada e de maioria analfabeta, só pode ser plenamente
decodificado quando reinserido no processo de crise que marcou o fim do Império. Um
processo que alterou não só o modo como os diferentes grupos sociais percebiam o Estado
monárquico e as suas instituições, mas, sobretudo, que transformou os meios e as formas de
expressão desse novo olhar.
Pode-se dizer que a “estrutura de oportunidades políticas” que engendrou o Grupo de
Desterro foi resultado de dois processos históricos amplos e complementares entre si: 1º) a
tentativa, por parte do Estado brasileiro, de realizar uma modernização controlada da
economia e da sociedade, a partir das reformas de 1870; e 2º) o colapso que estas reformas
infligiram ao sistema de poder imperial, ocasionando uma ruptura entre as elites políticas
tradicionais (ALONSO, 2002, p. 87-92).
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A seguir, repassaremos, muito brevemente, à evolução de ambas as tendências.

As Feridas Expostas do Império

O Brasil da segunda metade do século XIX sofreu alterações drásticas nas suas
feições econômicas e sociais. Dentre as principais mudanças do período, destacaram-se a
proibição do tráfico de trabalhadores negros escravizados, em 1850, e a expansão das
lavouras de café ao sul do país.
O fim do tráfico escravista acelerou a erosão da sociedade imperial. A partir de 1850
houve uma liberação de capitais até então inédita, o que desencadeou um ciclo de
crescimento econômico que, embora descontínuo, haveria de se estender século afora e
alterar significativamente as bases materiais do Império. Sobre a explosão de negócios
verificada após o redirecionamento dos capitais antes investidos no tráfico, Caio Prado Jr.
escreve:

O país entra bruscamente num período de franca prosperidade e larga


ativação de sua vida econômica. No decênio posterior a 1850 observam-
se índices dos mais sintomáticos disto: fundam-se no curso dele 62
empresas industriais, 14 bancos, 3 caixas econômicas, 20 companhias de
navegação a vapor, 23 de seguros, 4 de colonização, 8 de mineração, 3 de
transporte urbano, 2 de gás e finalmente 8 estradas de ferro (PRADO
JÚNIOR, 1965, p. 197).

Simultaneamente ao fim da importação negreira, o crescimento da lavoura de café


nas regiões sul e sudeste colocou em evidência os limites do sistema baseado no “trinômio
latifúndio-escravidão-monocultura”. A solução do tráfico interprovincial demonstrou-se
uma alternativa frágil e provisória e, em 1860, já era evidente o esgotamento do modelo
baseado na exploração da mão-de-obra escrava em várias regiões do Brasil (ALONSO,
2002, p. 77).
A decadência do modelo colonial e as transformações socioeconômicas dele
decorrentes, sobretudo a urbanização, geraram uma série de demandas não previstas pelo
velho arcabouço jurídico-político do regime. O Estado brasileiro precisaria, mais cedo ou
mais tarde, contemplar politicamente alguns dos novos grupos sociais que emergiam da
nova conjuntura. Ao mesmo tempo, necessitava atualizar suas legislações no sentido de
adequar-se ao novo momento econômico, facilitando o investimento estrangeiro, o

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desenvolvimento do comércio nacional e a atração de mão-de-obra livre estrangeira
(ALONSO, 2002, p. 78).
As elites viram-se num impasse. Era preciso “expandir as condições econômicas,
sociais e culturais” com o objetivo de racionalizar a economia e formar a nação. No
entanto, como fazer isso mantendo intactas as “estruturas de prestígio social” que lhe
legitimavam o “monopólio do poder político”? Em síntese, as mudanças precisariam ser
realizadas, sim, mas de forma controlada e, sobretudo, dentro da “ordem”. Liberais e
Conservadores divergiam frontalmente, sobretudo na questão da abolição do trabalho
escravo. O medo de uma ruptura do equilíbrio do sistema político fazia com que os debates
nesse sentido adquirissem um ritmo extremamente lento. Veio a Guerra do Paraguai e
pouco ou nada se havia definido de concreto acerca das reformas. As questões eram
levantadas, esmiuçadas teoricamente, mas jamais transformadas em objetos de deliberação
parlamentar (ALONSO, 2002, p. 79).
Em 1871 subiu ao poder o Gabinete chefiado pelo Visconde do Rio Branco.
Formado por Conservadores “moderados”, este Ministério apresentou uma pauta
inesperada. Relegando questões políticas mais óbvias ao segundo plano – como, por
exemplo, a compensação dos militares que retornavam do Paraguai, ou a administração de
rusgas eleitorais entre os partidos –, Rio Branco pôs a escravidão no centro de sua agenda
política. Seu principal tópico, a Lei do Ventre Livre, era apresentado como um dos
principais instrumentos jurídicos para a modernização econômica e social do Império.
Apartados do poder desde 1869, quando optaram pela abstenção eleitoral, os Liberais viram
as principais pautas do seu próprio programa incorporadas por uma facção hegemônica do
partido adversário. Os Conservadores moderados haviam aproveitado a conjuntura
favorável para conduzirem arbitrariamente a realização das reformas. Tal estratégia era
arriscada, pois, dentre outras coisas, infringia um dos princípios mais caros à vida política
do Segundo Reinado: o consenso (ALONSO, 2002, p. 80-81).

A estabilidade do sistema político se assentava num consenso implícito


quanto à prática política e numa confluência em torno dos princípios da
boa sociedade. Conservadores e liberais eram acordes quanto aos
recursos legítimos em cada arena, à discussão cavalheiresca nas câmaras
da Corte e a violência eleitoral no interior (ALONSO, 2002, p. 69).

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As críticas às propostas de Rio Branco partiram de ambos os espectros do poder.
Liberais e Conservadores “emperrados” viram com receio tanto o conteúdo das reformas
quanto o modo como elas eram processadas.
Do ponto de vista da crítica Liberal, a principal acusação era de que os
Conservadores roubavam-lhes partes do programa e deformavam, a seu gosto, o sentido das
reformas. Zacarias de Góes, crítico ferrenho do programa de Rio Branco, resumiu assim a
estratégia da facção moderada do Partido Conservador: “Façam-se sim as reformas liberais:
mas façam-se coadas pelo filtro conservador” (ALONSO, 2002, p. 82). Como conseqüência
desse ato, apontava Góes, viria a “desnaturação” dos partidos monárquicos e o
fortalecimento do recém-fundado Partido Republicano.
No mais, apesar de ter a abolição como uma das suas mais estimadas bandeiras, a
plataforma Liberal nunca privilegiou a emancipação como a principal reforma. Ao invés
disso seu tópico mais urgente era a reforma eleitoral. Deste modo, apesar de ser
reconhecida como necessária, a mudança do regime de trabalho deveria ser algo elaborado
pacientemente. Devagar. Se possível, ao longo de mais algumas décadas (ALONSO, 2002).
Por outro lado, dentro do próprio Partido Conservador, os chamados “emperrados”
lançavam também suas críticas. Avessos a toda e qualquer alteração na arquitetura política,
sua perspectiva era de que as instituições do Império formavam um todo que deveria ser
preservado custe o que custasse. Desta perspectiva, não haveria possibilidade de
intervenções pontuais, isoladas; alterando-se um de seus aspectos, toda a estrutura de poder
comprometia-se. O verdadeiro papel do partido conservador seria o de resistir às reformas,
não conduzi-las. Essa percepção, aliás, se comunicava intimamente com outra crítica,
também sustentada pelos Liberais: a de que Rio Branco atentara contra a “natureza” dos
partidos (ALONSO, 2002).
A despeito das resistências, Rio Branco conseguiu fazer passar pelo Parlamento boa
parte de seu programa. A Lei do Ventre Livre, a primeira medida antiescravista desde 1850,
foi aprovada com rapidez incomum em 28 de setembro de 1871 e consolidou de vez a crise
no seio da elite. No poder durante quatro anos, Rio Branco forçou ainda a passagem de uma
série de outras medidas. Sua reforma desmontou parte do “arsenal repressor saquarema” -
uma série de arranjos constitucionais que garantiam, desde o fim da Regência, o domínio
eleitoral contínuo do Partido Conservador – e transformou em tema de debate público

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diversas questões até então jamais problematizadas oficialmente ou transformadas em
pautas da agenda política imperial (ALONSO, 2002, p. 83).
Apesar de terem sido aprovadas pelo Legislativo, as reformas de Rio Branco
sofreram diversas restrições e jamais chegaram a ser totalmente implementadas. Como
resultado, produziram “um duplo efeito: geraram uma modernização incompleta, sem
concretizar inteiramente a incorporação da sociedade externa ao centro do sistema político,
e erodiram a sustentação política do regime, ao acirrar o conflito intraelite” (ALONSO,
2002, p. 86). Não obstante, apesar de “incompleta”, a tentativa de reforma iniciada em 1871
foi um estímulo importante à transformação material do país, bem como um pesado golpe
contra a sua estrutura de poder.
Caio Prado Jr. apresenta-nos um quadro geral das transformações infraestruturais
ocorridas nos últimos vinte anos do Império. Segundo o autor, no final da década de 1880.

As estradas de ferro, cujo estabelecimento data de 1852, somavam cerca


de 9.000 km de linhas em tráfego, e outros 1.500 em construção. A
navegação a vapor se estendera largamente, e além das linhas
internacionais, articulava todo o longo litoral brasileiro desde o Pará até o
Rio Grande do Sul [...] Além das vias de transporte, o império deixará
também uma desenvolvida rede telegráfica de quase 1.000 km de linhas
articulando todas as capitais e cidades mais importantes do país. Isto sem
contar os cabos submarinos transoceânicos que o ligavam a diferentes
partes da Europa e América (PRADO JÚNIOR, 1965, p. 201).

A proliferação de estradas de ferro e de redes telegráficas viabilizaram não só a


movimentação de mercadorias, mas também de pessoas, notícias, ideias e valores. O
considerável barateamento das passagens e a queda no tempo dos percursos facilitou o ir-e-
vir de uma parcela maior da população. Em meados dos anos 1880, as viagens
interprovinciais, por exemplo, já eram relativamente comuns. Conhecer a Corte ou outros
grandes centros culturais do Império já não era um privilégio de alguns poucos abastados.
Paralelamente à mudança no âmbito dos transportes e das comunicações em longas
distâncias, o aumento dos níveis de alfabetização e a disseminação de novas técnicas de
impressão, multiplicaram as tipografias. A imprensa se disseminou e a edição bibliográfica
tornou-se menos cara. No final dos anos 1870 a possibilidade de acesso à cultura letrada e
ao mundo dos debates públicos não era mais exclusividade de uma elite e chegou ao
indivíduo médio através de livros e, principalmente, dos jornais (ALONSO, 2002, p. 94).

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Como concluiu Alonso, a “resultante da crise política e da reforma conservadora da
virada dos anos 1860 para os 1870 foi, em síntese, a configuração de uma nova ‘estrutura
de oportunidades políticas’” (ALONSO, 2002, p. 95). Se, por um lado, facilitou a
emergência de novas “vias de ação política” acessível a grupos sociais apartados dos meios
de expressão política tradicionais - e dentre essas vias de ação a imprensa ocuparia um
lugar de destaque –, de outro, incluiu na agenda de debates públicos todo um leque de
temas essenciais à vida do Império.
É possível afirmar, portanto, que em seu afã de reelaborar e defender os seus
princípios, a elite política pôs a nu seus próprios dilemas. Em fins de 1870 estava claro,
para qualquer individuo medianamente informado, que havia uma crise em curso no
Império. Era impossível disfarçar as dificuldades do sistema político em acompanhar as
mudanças sociais e econômicas pelas quais atravessava o país. Monarquia e escravidão
apareciam como termos cada vez mais associados: “Esta clarificação”, diz Alonso,
“transformou os fundamentos tacitamente aceitos da ordem sociopolítica imperial em temas
de debate público nos anos 1880, transpassando o círculo parlamentar” (ALONSO, 2002, p.
94-95).
Sintomático desse processo de “clarificação”, bem como das novas possibilidades de
expressão de ideias e posições políticas oriundas de grupos à margem das instituições
tradicionais de poder do Império é o poema que se encontra na edição de 10 de setembro de
1882 do jornal desterrense A Regeneração. Nele, Cruz e Sousa, o instruído e politizado
filho de ex-escravos, publica um soneto em homenagem à Independência, porém, de
quebra, marca a sua crítica aos limites da Lei do Ventre Livre.

Liberdade! Independência!
Eis os brados grandiosos
Que raios luminosos
Fulguram lá nos céus!
Eis a mágica odisséia
que duns lábios rebentando,
foi o povo transformando,
foi rompendo os negros véus!
[...]
Mas embora, meus senhores,
Se festeje a Liberdade,
A gentil Fraternidade
Não raiou de todo, não!...
E a pátria dos Andradas
Dos Abreu, Gonçalves Dias,
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Inda vê nuvens sombrias,
Vê no céu fatal bulcão!
Muito embora Rio Branco,
Esse cérebro profundo
que passou por entre o mundo
do Brasil como um Tupá!...
Muito embora em catadupas
derramasse o verbo augusto,
da nação no enorme busto
inda a mancha existe, há!
(CRUZ E SOUSA, 1882, p. 2-3).

Repercussões na Província

Apesar de economicamente “periférica” em relação aos “centros dinâmicos”


(exportadores) do país (SOUTO, 1980, p. 42-43), a província de Santa Catarina e sua
capital, Nossa Senhora do Desterro, não permaneceram alheias às mudanças que marcaram
o Império ao longo da segunda metade do século XIX.
De acordo com o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, o cenário econômico
catarinense sofreu alterações significativas durante o século XIX. Para o autor, sobretudo a
partir da segunda metade dos oitocentos, a intensificação do fluxo de trocas entre a
província e outros mercados consumidores mais desenvolvidos, bem como o florescimento
de novos núcleos coloniais “tenderam a desencadear um conjunto de alterações na estrutura
e no ritmo de desenvolvimento da economia local”. Assim, “a economia catarinense
apresentava sinais indicativos do início de um processo de transformação [...] no sentido da
sua integração na economia capitalista de mercado” (CARDOSO, 2000, p. 94).
Essa “integração” e as suas conseqüências típicas, como a urbanização e a
industrialização, foram vivenciadas de forma mais imediata em lugares como Lages,
Joinville ou Blumenau. No entanto, Desterro, como núcleo administrativo e comercial,
acabou se beneficiando da atividade econômica comum da província. (CARDOSO, 2000,
p. 95-96) O aumento da produção em áreas de colonização alemã e italiana associada à
atuação de comerciantes “canalizavam os benefícios econômicos, advindos da imigração e
do próprio processo de urbanização, fazendo Desterro deixar sua antiga condição de
povoação militar e ganhar ares urbanos e citadinos” (CHEREM, 1994, p. 29).
Não obstante, apesar da relativa prosperidade do período, a capital de Santa Catarina
não se tornou uma cidade rica ou populosa. De acordo com o censo de 1872, Desterro
contava, naquele ano, 25. 708 moradores registrados. Era, portanto, “9 vezes menor do que
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a capital nacional e 3 vezes maior do que Aracaju, a qual era a capital com menor número
de habitantes” (CHEREM, 1994, p. 22). No mais, ainda segundo o documento de 1872, no
total de 20 capitais recenseadas, Desterro encontrava-se em 17ª posição em relação ao
número de prédios e domicílios. Os indicadores de desenvolvimento continuariam pouco
promissores ao longo das décadas posteriores. A posição da capital neste último ranking,
por exemplo, permaneceria inalterada até o censo de 1920 (p. 23).
Contudo, seria incorreto ignorar que, apesar das suas restrições, a partir de meados
do século XIX, Desterro realmente testemunhou uma mudança efetiva em seus aspectos
materiais, sociais e culturais. Nessa época, a riqueza acumulada permitiu à sociedade
desterrense adquirir novas feições. Formou-se, ao lado da já existente elite local
(constituída basicamente por funcionários públicos bem empregados), uma incipiente
burguesia mercantil, com suas próprias aspirações à distinção e ascensão social (CHEREM,
1994, p. 30). Começaram a proliferar associações culturais, recreativas e profissionais (p.
22). Intensificou-se a institucionalização de diferentes “práticas ligadas à classe letrada”,
com o investimento do governo provincial em instrução pública, a consolidação da
imprensa local, a criação da Biblioteca Pública, a inauguração do Teatro Santa Isabel e a
criação de diversos clubes e sociedades teatrais (BRANCHER; AREND, 2001, p. 280).
Mais instruída, organizada e complexa, ao fim do Império a sociedade desterrense estava
pronta para expressar certas contradições.
A “agitação” republicana, por exemplo, começou cedo na província. Já em 1870,
logo após a publicação do Manifesto Republicano, formavam-se grupos em torno dos ideais
do novo partido (CABRAL, 1987, p. 202). O comerciante Esteves Jr., um dos
representantes catarinenses no Congresso Nacional, foi mesmo um dos signatários do
documento. Em 1887, Santa Catarina contava com 15 clubes republicanos (BRANCHER;
AREND, 2001, p. 301) e, em 1885, circulava pela capital o jornal A Voz do Povo que,
apesar da sua curta existência, marcou a presença republicana na imprensa local
(CABRAL, 1987, p. 202).
Bem mais popular, no entanto, teria sido a causa abolicionista em Desterro.
Congregando políticos dos mais diversos matizes, bem como diferentes grupos sociais, a
campanha em prol da emancipação encontrou poucos obstáculos na capital. Várias
associações recreativas e entidades sociais se esforçaram em expor seu apoio à causa da
abolição. Exemplos disso são o Clube Doze de Agosto, a Sociedade Carnavalesca Diabo a

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Quatro, a Sociedade Carnavalesca Bons Arcanjos, a Sociedade Dramática Fraterna
Beneficente, a Sociedade Dramática Amadores da Arte e a Sociedade Musical União
Artística (BRANCHER; AREND, 2001, p. 301). Todas ativamente engajadas na promoção
de conferências e cerimônias de entrega de cartas de alforria, bem como outras
manifestações públicas de apoio à abolição.
Pelos idos de 1880, portanto, as transformações que alteravam o cotidiano em
Desterro desde meados do século já haviam tornado os embates políticos da Corte algo
acessível a um público local cada vez mais amplo, instruído e interessado. A “estrutura de
oportunidades políticas” havia mudado também em Desterro e essa alteração viabilizou
diferentes formas de contestação à ordem imperial. A última década do regime viu
proliferar na capital, assim como quase todas as capitais do Império, sociedades
abolicionistas, clubes republicanos, entre outras formas de associação de classes e
interesses partidários. Assim, expressando essas e outras “possibilidades e compreensões
sobre os acontecimentos políticos” (CHEREM, 1994, p. 174) a imprensa desterrense
agitou-se, durante os anos 1880, entre publicações de longo e curto fôlego.
Jornais como o Despertador, a Regeneração e Jornal do Commercio, periódicos de
vasta circulação e mantidos como veículo de propaganda dos partidos Liberal e
Conservador, dividiam a pequena esfera pública de Desterro com outros, bem menores, e
de representatividades políticas variadas. Segundo Cabral, entre os anos de 1880 e 1888,
surgiram na capital, além dos já mencionados Jornal do Commercio e a Regeneração, as
folhas o Progressista, o Aprendiz, o Operário, o Artista, o Caixeiro, o Liberal, a Matraca,
o Abolicionista, o Caturra, o Colegial, o Conciliador, o Campeão, o Constitucional, o
Independente, o Comercial, o Crepúsculo, a Folha Livre, o Júpiter, dentre outros
(CABRAL, 1987, p. 187).
Foi em meio a esse boom editorial, que Cruz e Sousa, Virgilio Varzea e Manoel dos
Santos Lostada, literatos iniciantes que, até então, só haviam publicado colaborações em
jornais “oficiosos” como A Regeneração e O Despertador, empreenderam pela primeira
vez uma incursão autônoma na imprensa local. O Colombo, cujo subtítulo era “Periódico
Crítico e Literário”, surgiu na capital em 7 de maio de 1881 e se manteve até 24 de
setembro daquele mesmo ano. Sustentando ainda uma linguagem claramente identificada
com o modelo estético Romântico, o Colombo, no entanto, já lhes servia como veículo de
crítica a certos elementos do status quo monárquico. É o que demonstra, por exemplo, a

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edição de 7 de julho de 1881, inteiramente dedicada aos dez anos de morte do poeta
abolicionista Castro Alves. Neste número, além de um editorial marcadamente
antiescravagista, diversas poesias reproduziam esse mesmo conteúdo (MAGALHÃES
JUNIOR, 1972, p. 13-18). Sobre a formação do núcleo inicial do Grupo de Desterro em
torno de O Colombo, Virgilio Varzea fez o seguinte registro em suas memórias:

Cruz e Souza apresentou-me [...] a Santos Lostada, empregado no


comércio, numa casa que passou logo a ser o nosso primeiro Cenáculo.
Aí nasceu a idéia de publicarmos um pequenino hebdomadário literário.
Imediatamente passamos à ação. E o 1° número do “Colombo” saiu, com
um artigo de apresentação da lavra dos três, um romancete inédito de
Cruz e Souza, uma poesia de Santos Lostada e uma poesia minha que era
simplesmente péssima, e da qual ainda hoje tenho remorso (VARZEA,
1923, p. 1)

E testemunhando a precariedade desse primeiro esforço editorial, relata-nos:

[...] Cruz estava sempre conosco - comigo [e] Lostada - na casa de


comércio em que este trabalhava. Os primeiros artigos para o "Colombo"
aí foram escritos, no meio da algazarra dos freguezes e das nossas
palestras literárias, tomando também parte nelas dois filhos do patrão -
Horácio e Adolpho de Carvalho [...] (VARZEA, 1923, p. 1).

Após a experiência em O Colombo, o grupo voltou a se dispersar em pequenas


colaborações pelos diversos jornais da cidade, só retornando à atividade independente
alguns anos mais tarde em O Moleque (1884-1885) e Tribuna Popular (1885-1892)
(PEDRO, 1995, p. 93-94). Referindo-se ao Tribuna Popular (periódico bi-semanal,
abolicionista e declaradamente liberal) e ao grupo que se envolveu na sua redação, Virgilio
Varzea escreveu:

Sob a névoa e o vento frigido da manhã de inverno pondo na face dos


transeuntes uma vermelhidão inflamada, cinco rapazes, metidos em
grossos sobretudos até aos pés ou envoltos em plaids de lã, desciam
lentamente o adro ajardinado da velha matriz do Desterro, que, com o
antigo casarão solarengo dos Gama d’Eça, fechava e fecha ainda hoje, ao
fundo, a vasta praça Barão da Laguna, a principal da pequena capital
catarinense. Sobraçando livros, folhetos, revistas, jornais, caminhavam
fazendo de vez em quando ligeiras paradas, numa parolagem animada e
ruidosa sobre ciência, letras e artes – o assunto favorito de todos, -
parolagem interrompida não raro por golpes de leitura feitos
nervosamente naquelas publicações e cortada sempre de gestos e palavras
enfáticas, entusiásticas, revolucionárias, contrastando com a placidez
habitual do largo, aliás, o ponto mais freqüentado da cidade e aquele para
onde convergiam as duas ruas principais e as que levavam aos arrabaldes.
De cigarros nos lábios lançavam constantemente baforadas de fumo ao ar
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frio e úmido, imprimindo uma nota pleonástica às idéias incendiárias que
esposavam e andavam a discutir a todo instante e por toda a parte. Eram
os redatores da Tribuna Popular, o flamante e revolucionário periódico
literário, feito de uma maneira toda nova e original, e que se imprimia
numa tipografia ocupando um grande prédio acaçapado que se elevava
por detrás da matriz, à ruazinha da Trindade. [...] Esse grupo representava
em Santa Catarina, como outros no Rio de Janeiro e pelas capitais das
demais províncias brasileiras, o movimento científico, literário e artístico
tão profundamente fecundo e reformador que, em todo o mundo
civilizado, assinalou o século passado: compunham-no Cruz e Souza,
Araujo Figueiredo, Horacio de Carvalho, Santos Lostada, Victor Vasques
e mais três, - ao instante ausentes – Oscar Rosas, Carlos de Faria e Lydio
Barbosa, sem falar ao [ilegível] e eminente poeta Luiz Delfino [ilegível]
de todos, que os [ilegível] cultualmente chamavam-no Hugo brasileiro
(VARZEA, 1907, p. 1).

Com relação ainda ao fragmento anterior é interessante observar o tipo de


consciência que Varzea demonstrava possuir acerca do seu próprio grupo. O escritor não o
via como um fenômeno isolado, estanque. Ele próprio o inseria num movimento mais
amplo, multidimensional e não particularizado em termos regionais. O Grupo de Desterro
parecia-lhe a expressão local de um fenômeno que abarcava todo o país, obedecendo a uma
tendência comum a todo o “mundo civilizado”.
Esse tipo de testemunho foi completamente ignorado pelas interpretações
posteriores. Análises cuja tendência seria isolar e particularizar o Grupo de Desterro,
desarticulando-o do contexto de crise que, na década de 1880, já comprometia
adiantadamente as estruturas do Império.

Filhos do Tempo

A formação de um grupo de agitação político-cultural já havia começado bem antes


da chegada de Gama Rosa à província. Pelo menos desde 1881, com o surgimento de O
Colombo, Cruz e Sousa, Virgilio Varzea e Santos Lostada já ensaiavam um foco de
polêmica dentro da imprensa desterrense. O movimento de crítica ao establishment
monárquico ao qual se costuma denominar “Ideia Nova” não foi o resultado da intervenção
de um herói civilizador, sendo, pelo contrário, um fenômeno profundamente enraizado no
contexto econômico, social e político no qual se inscrevia. Ele já estava em curso antes de
1883 e, muito provavelmente, ocorreria com ou sem a presença de Gama Rosa. De um
modo diferente, com certeza. Talvez sustentando uma retórica mais próxima à tradição

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Romântica. Mas se realizaria. Como de fato continuou a se realizar, mesmo após 1884, com
a partida do Presidente. Sobretudo depois de 1885, com a fundação do Tribuna Popular,
um jornal extremamente atuante não só na crítica a certos valores e instituições do Império,
mas também aos da República em seus primeiros anos.
Do mesmo modo, atribuir à Gama Rosa uma influência intelectual inédita e, através
disso, tomá-lo como o iniciador de um “movimento estético” ou “escola literária”, também
não nos parece adequado. Desterro, sobretudo em fins do século, não era uma ilha isolada
do resto do mundo. É muito improvável que os livros de Eça de Queirós, Darwin ou Zola
fossem completamente desconhecidos nos círculos letrados da cidade. O próprio Virgilio
Varzea, ao publicar um poema intitulado Transformismo, numa alusão às teses de Darwin,
deu provas de que já havia feito contato com essas ideias antes mesmo de se tornar
“discípulo” de Gama Rosa (GLICK, 2003, p. 182-183). O que precisaria ser
problematizado aqui não é tanto o conhecimento acerca de certo repertório cultural, mas a
opção de se dispor, num determinado contexto, de certos rótulos, vocabulário e ideias.

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Artigo recebido em 22/07/2013. Aprovado em 02/10/2013.

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L’INFLUENCE DU CONTEXTE POLITIQUE ESPAGNOL SUR LA
DIFFUSION DES ŒUVRES LITTERAIRES ENTRE LES
PYRENEES-ORIENTALES ET LA CATALOGNE AU XIXE
SIECLE (1808-1886)

A INFLUÊNCIA DO CONTEXTO POLÍTICO ESPANHOL SOBRE


A DIFUSÃO DAS OBRAS LITERÁRIAS ENTRE OS PIRINEUS
ORIENTAIS E A CATALUNHA NO SÉCULO XIX (1808-1886)

Mathieu LLEXA•

Résumé: Le contexte politique espagnol influençait la production et la diffusion des œuvres


littéraires françaises et espagnoles entre les Pyrénées-Orientales et la Catalogne au XIXe siècle.
A partir de sources inédites et de recherches menées sur le sujet, cet article propose d’en
mesurer l’impact. Par l’analyse de cas concrets, il vise à démontrer que les affaires politiques en
Espagne impulsaient l’activité de ces réseaux légaux ou clandestins.
Mots-clefs: Production Littéraire – Librairie Espagnole – Presse – Politique.

Resumo: O contexto político espanhol influenciou a produção e divulgação da literatura


francesa e espanhola da Catalunha e Pirineus orientais no século XIX. A partir de fontes inéditas
e pesquisas sobre o assunto, este artigo se propõe medir o seu impacto. A través da análise de
estudos de caso, pretende-se demostrar que os assuntos políticos em Espanha impulsionaram a
atividade dessas redes legais e ilegais.
Palavras-Chave: Produção Literária – Biblioteca Espanhola – Jornais – Política.

Introduction

Les thématiques de recherche alliant l’Histoire et la Littérature au XIXe siècle


sont abondantes. Cela s’explique par une effervescence de la vie politique, économique
et culturelle à cette période. La production et la diffusion des imprimés est l’une de ces
thématiques. Des travaux de recherches plus ou moins récents sur la diffusion des écrits
entre la France et l’Espagne ont été menés. Jean-François Botrel a réalisé de
nombreuses études sur le thème de l’Histoire et la diffusion des livres en Espagne au
XIXe siècle. La production et la circulation des livres rédigées en langue espagnole
entre 1810 et 1840 ont été étudiées par Aline Vauchelle-Haquet. A la lecture de leurs
recherches, il est intéressant de constater que la ville de Perpignan et la Catalogne,
proches de la frontière franco-espagnole, suscitait leur attention. L’imprimerie-librairie


Doutorando em História – Faculdade de Letras e Ciências Humanas, Universidade de Perpignan – Via
Domitia, Perpignan, Pyrénées-Orientales, France. E-mail: mathieu.llexa@univ-perp.fr.
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Alzine les intéressait en particulier. Une étude menée par Gérard Bonet sur leur famille
et leurs activités a permis de découvrir des aspects originaux de la production et la
diffusion des imprimés à Perpignan et en Catalogne. Quelques informations éparses ont
pu être collectées à partir d’études dédiées aux métiers du livre en France, en Espagne et
en Catalogne.
Par conséquent, l’existence et l’intérêt d’une activité transfrontalière a été
prouvée sans être totalement étudiée. Des sources d’archives inédites ont été
découvertes. Des recherches récentes ont été menées sur le sujet. Cet article vise
prioritairement à comprendre les liens entre le contexte politique espagnol et les œuvres
littéraires françaises ou espagnoles en circulation sur le territoire transfrontalier. Il serait
intéressant d’observer si le contexte politique espagnol influençait et impulsait cette
activité. Il fut très instructif de confronter les renseignements collectés aux temps forts
de l’Histoire espagnole. Les périodes retenues sont l’occupation française de Napoléon
Bonaparte et son frère Joseph, le règne de Ferdinand VII, le règne d’Isabelle II, la
proclamation de la première République et la restauration de la Monarchie. Les trois
guerres carlistes occupent également une place primordiale dans cette étude. De
nouvelles spécificités pourront éventuellement être apportées à la recherche dédiée à la
production et à la diffusion des écrits.

L’alliance de l’histoire et de la littérature

Le corpus d’archives principal se compose de quatre séries dédiées à la


surveillance de la presse à la frontière franco-espagnole au XIXe siècle. Des liasses de
vérifications de colis de librairie étrangère ont été les premières consultées. Ces
documents rédigés par les agents douaniers français sont purement administratifs. Ils
pouvaient être correctement renseignés ou lacunaires. Ils indiquaient le nom de
l’expéditeur, du destinataire, du lieu d’envoi et de réception, du nombre de colis, leur
poids et leur contenu. Les indications étaient extrêmement précises. Le nombre de
volumes et le titre complet des œuvres littéraires en circulation étaient retranscrits par
les agents douaniers sur des vérifications de colis de librairie étrangère1. Au total, près
de 370 titres d’ouvrages en langue espagnole et 73 en langue française ont été recensés
dans le cadre des échanges transfrontaliers de librairie entre les Pyrénées-Orientales et
la Catalogne. Des listes de journaux interdits étaient également tenues par les autorités
compétentes. La presse écrite connut un essor considérable dans la seconde moitié du

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XIXe siècle. Les idées politiques circulaient au travers d’œuvres littéraires,
d’illustrations de journaux ou de brochures en langue française et espagnole.
Une centaine de vérifications de colis de librairie étrangère ont été consultées.
Les données collectées ont été classées. Un recensement des expéditeurs, des
destinataires, des lieux d’envois et de réception des colis, de leur poids et de leur
nombre a été entrepris. Une liste précise des titres en circulation a pu être dressée. Les
écrits recensés ont bénéficié d’un classement par catégories selon les genres littéraires et
leur langue de rédaction. Mais le caractère standardisé des vérifications de colis de
librairie étrangère présentait un défaut. Il ne permettait pas de connaitre l’utilité de cette
activité. Le problème a été solutionné. Dans un premier temps, des informations très
instructives ont été découvertes par la consultation de séries d’archives françaises et
espagnoles, de la législation relative à cette activité et de recherches scientifiques. Les
sources bibliographiques de références sur le thème de la littérature, des métiers du livre
et des contextes historiques ont été privilégiées. Les œuvres littéraires et les journaux
étaient souvent liés aux contextes politiques. Les résultats obtenus en témoignent.

Le monopole des imprimeurs et des libraires perpignanais sous l’occupation française

Peu d’études ont été menées sur l’activité importatrice et exportatrice des œuvres
littéraires en langues françaises et espagnoles au temps de l’invasion napoléonienne. Les
législations françaises et espagnoles relative aux métiers du livre prouvaient que la
circulation des imprimés préoccupait les autorités. Les nombreux textes de lois
promulgués témoignaient d’une activité vive2. Les préposés aux douanes étaient
responsables de la surveillance des livres en provenance de l’étranger. Dans un premier
temps, leur principal souci était la perception des droits d’entrées des livres étrangers.
Le préfet des Pyrénées-Orientales était régulièrement informé de la législation en
vigueur par la Direction Générale de l’Imprimerie et de la Librairie. De nouveaux
problèmes firent leur apparition. Le désir de conquête de Napoléon Bonaparte n’épargna
pas l’Espagne et la Catalogne. L’invasion des troupes françaises affecta le secteur de
l’imprimerie et de la librairie catalane. Les répercussions étaient bien plus graves. La
présence militaire française dégradait l’image de la France aux yeux des espagnols et
des catalans. Des rébellions ont été constatées en Catalogne. A Barcelona, les catalans
luttaient contre la politique de francisation. Les révoltes ont aggravés la situation. Les
catalans paraissaient fermés à la Littérature des autres pays3. Napoléon Bonaparte ne

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comprenait pas pourquoi les catalans s‘insurgeaient contre les idées novatrices
françaises. A Gerona, la présence des troupes françaises a été néfaste à l’Histoire de
l’imprimerie de la ville4. De grandes familles d’imprimeurs solidement installées avant
le passage des troupes françaises ont cessées leurs activités. Des signes de récupérations
ont été observés dès leur retrait. Le libraire barcelonais Antoni Brusi proposait dans son
hémérothèque des journaux étrangers5.
De l’autre côté de la frontière, les professionnels du livre perpignanais saisirent
cette opportunité. Mais ce n’était pas une nouveauté. Des liens entre Perpignan et la
Catalogne étaient perceptibles depuis Gutenberg6. Les bibliographies catalanes
renfermaient des ouvrages issus des presses perpignanaises7. L’imprimerie
perpignanaise était ancrée dans l’imprimerie catalane8. Notre attention s’est portée sur
un imprimeur-libraire nommé Jean Alzine. Il fut le seul à Perpignan à ouvrir son
commerce à l’Espagne et la Catalogne à l’aube du XIXe siècle. Près de 270 titres étaient
proposés dans son catalogue. Parmi eux, neuf ouvrages en langues espagnoles ont été
publiés sous l’occupation française. Un ouvrage a été publié en 1809, deux en 1811, un
en 1812, 1813 et quatre en 1814. Ces derniers ont été imprimés à Perpignan, Mallorca,
Vilanova i Geltru, Palma et Valencia. Hormis des ouvrages tels que Metusco o los
polacos, Parafrasis de la epistola Ovidiana, Almacen de frutos literarios ineditos de los
mejores autores, ou encore La Crianza semi poeta del siglo XVIII, d’autres ouvrages
proposés dans le catalogue publiés sous l’occupation napoléonienne se revêtaient d’un
caractère militaire. En effet, ils s’intitulaient Arte general de la guerra, sus términos y
definiciones, obra muy útil para los que profesan el ejercicio militar, Arte universal de
la guerra del príncipe Raymundo Montecuculli teniente general de las armas del
emperador, lecciones de fortificación de campaña et lecciones de diseño militar9.
Hasard ou coïncidence, le seul ouvrage en langue espagnole imprimé à Perpignan en
1814 s’intitulait Bonaparte y de los Borbones y la necesidad de unirse a nuestros
legitimos principes para que la Francia y la Europa sean felices10. Les rares ouvrages
en langue espagnole imprimés à Perpignan étaient liés à l’activité politique française et
espagnole. Ils reçurent un succès considérable auprès des lecteurs.
Jean Alzine ne s’intéressait pas par hasard à la librairie espagnole. Les raisons
étaient à la fois d’ordre commercial et politique. Elles furent dans un premier temps
politiques. Suite à la signature du traité de Bâle en 1795 et de San Ildefonso en 1796,
l’Espagne de Charles IV était soumise à la France. La situation politique espagnole
provoqua un relâchement des contrôles douaniers11. A partir de cet instant, les raisons

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devinrent commerciales. Malgré l’hostilité des Espagnols et des Catalans envers les
Français, un nouveau marché des œuvres françaises traduites en castillan a été
rapidement convoité12. Jean Alzine participait à ce commerce comme un grand nombre
d’imprimeurs-libraires français. A l’inverse de ses confrères, il franchit une étape
supplémentaire. Le libraire perpignanais disposait de succursales en Catalogne et
entretenait un réseau de relations. Sa présence a été attestée à Figueras en 1809,
Barcelona en 1810 et Gerona en 181213. Il s’associa aux imprimeurs-libraires Brusi et
Carrera implantés à Barcelone, à l’imprimeur Oliva de Gerona. La production littéraire
issue des presses de Jean Alzine en Catalogne était à caractère politique. En 1810, il fut
chargé d’imprimer le célèbre Diario de Barcelona14. En 1813, il assura la publication
d’un ouvrage intitulé Historia de las conspiraciones tramadas en Cataluña contra los
ejércitos franceses15. A l’inverse de Barcelona et de Figueres, la présence de Jean
Alzine à Gerona semblait forcée. Sous l’occupation française, il fut placé au poste de
gérant de l’imprimerie préfectorale sous l’occupation des troupes françaises située à la
Plaça de Sant Narcis16. Toute la production issue de son imprimerie était à caractère
administratif ou militaire. D’après ces informations éparses, le contexte politique
espagnol favorisait la présence des professionnels du livre perpignanais en Catalogne et
la production littéraire. Dès le retour et sous le règne de Ferdinand VII, la production et
la diffusion des écrits français et espagnols était plus mouvementée.

Une diffusion des écrits mouvementée sous le règne de Ferdinand VII

La circulation de la littérature française et espagnole s’accélérait lors de crises


politiques. Dès le retrait des troupes françaises en 1814, le retour de Ferdinand VII a été
perçu comme un rétablissement de l’absolutisme17. Le peuple espagnol et catalan
exprimait sa colère en soutenant le Trienio libéral18 impulsé par Rafael de Riego entre
1820 et 1823. Il visait à rétablir la constitution espagnole de 1812, abolir l’Inquisition19
et à rétablir les libertés fondamentales. Face à une montée des idées libérales et des
tensions en Espagne, Ferdinand VII sollicita une aide militaire française pour y mettre
fin. Une telle intervention était malvenue. Le souvenir de l’’invasion napoléonienne
était encore ancré dans la pensée collective. La suite de son règne surnommée la
Decada ominosa20 divisait les groupes de libéraux pourchassés et les partisans de
l’absolutisme. La situation politique espagnole s’était rapidement ressentie sur la
production et la diffusion des écrits. Les livres illustrés, les journaux et les brochures

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étaient des vecteurs d’idées très efficaces. Un durcissement de la législation relative aux
métiers du livre et de la presse périodique était notable. Vis-à-vis de la production des
écrits, la Libertad politica de imprenta promulguée le 10 Novembre 181021 était remise
en cause. La surveillance de cette activité s’exerçait aussi sur le terrain. Les douaniers
étaient appelés à exercer une surveillance plus stricte sur l’introduction de librairie
étrangère. Les inquisiteurs aidaient les douaniers dans l’exercice de leurs fonctions.
Cette activité avait trouvé son public. De nombreux espagnols surnommés les
afrancesados22 se réfugiaient en France. Les idées libérales s’imposaient sous Louis
XVIII malgré les réactions absolutistes sous Charles X. Un nouveau marché de la
librairie espagnole a en partie été créé. Le terme de librairie espagnole comprenait
différents types d’ouvrages imprimés en France ou à l’étranger. Il regroupait les
ouvrages en langue française, les œuvres littéraires espagnoles et les œuvres littéraires
françaises traduites en langue espagnole.
La croissance des exportations françaises était jugée faible à cette période23.
Malgré tout, certains secteurs étaient dynamiques. Cette tendance était également
perceptible depuis la frontière franco-espagnole et ses abords. Les chiffres parlaient
d’eux-mêmes. Près d’une centaine de titres rédigés en langue espagnole ont franchis la
frontière entre 1820 et 1832. La plupart des imprimés a été introduite à Perpignan. Leur
contenu était lié au contexte politique espagnol. Quelques cas d’exportations vers la
Catalogne étaient aussi observables. Huit affaires ont été recensées. Chacune présentait
des caractéristiques différentes. En 1820, le curé du village d’Estagel dans les Pyrénées-
Orientales introduisait 380 feuilles d’un journal politique et littéraire intitulé l’Ami de la
religion et du roi24. De 1822 à 1832, des anarchistes menaçaient d’introduire en France
deux journaux intitulés l’Observateur espagnol et Le guide des libéraux25. Leur
caractère politique était à relier au Trienio libéral et à la réaction absolutiste. Deux
partis s’affrontaient. Chaque journal défendait leurs idées politiques. En 1824, le
catalogue de la librairie étrangère de Jean Alzine à Perpignan contrariait les autorités.
Certains libraires catalans comme les frères Oliva étaient suspectés de fraudes. L’affaire
la plus délicate eut lieu en 1828. Deux brochures hautement subversives vis-à-vis de la
couronne d’Espagne ont été dissimulées dans une diligence26. Le titre des brochures
dissimulées dans la diligence conduite par Jacques Vedel parlaient d’eux-mêmes. L’un
intitulé Tableau des maux qu’a causé le gouvernement absolu des deux derniers règnes
et de la nécessité du rétablissement des anciennes Cortes ou d’une charte
constitutionnelle donnée par le roi Ferdinand était clairement un appel au Roi

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d’Espagne à rétablir la constitution accordée sous le Trienio libéral. L’autre brochure
intitulée Jugement impartial sur les causes principales de la révolution de l’Amérique
espagnole et sur les puissantes raisons qu’a la métropole de reconnaitre son
indépendance absolue faisait référence à la difficulté de Ferdinand VII à gérer
financièrement et politiquement les colonies latino-américaines en quête
d’indépendance. Les dernières affaires recensées en 1829 étaient aussi délicates. Depuis
Barcelona, Jean Alzine et Antoine Lasserre s’expédiaient eux-mêmes une quantité
inhabituelle d’ouvrages en langue espagnole. Plus de dix milles ouvrages ont franchis la
frontière en une seule expédition et tous ont été jugés interdits27. De plus, Jean Alzine
disposait d’ouvrages à caractères libéraux dans son catalogue. Il était pourtant
monarchiste. Sous le règne de Charles X, les autorités ne l’admettaient pas. Les idées
libérales étaient mal accueillies à cette période. Malgré les contrôles, le catalogue de la
librairie étrangère d’Alzine s’était considérablement complété en 1824. Ce n’était pas
tout. Parmi les dix-milles ouvrages expédiés par Antoine Lasserre à Perpignan, issus du
magasin d’Alzine, beaucoup étaient liés à la Constitution espagnole, l’Amérique latine
et l’Inquisition. La présence en Espagne des œuvres de Montengon, Llorente,
Dulaurens, Diderot, Montesquieu, Rousseau et d’autres grands noms de la littérature
française et espagnole s’expliquait par l’attrait aux idées libérales impulsées par Rafael
de Riego. Il était moins évident de comprendre pourquoi un tel envoi a été effectué en
une seule fois. Un départ précipité serait une raison plausible. Les afrancesados comme
Jean Alzine n’étaient pas appréciés en Espagne sous Ferdinand VII. Jean Alzine étant
âgé et probablement menacé, son confère Antoine Lasserre a dû être chargé de rapatrier
le fond de la librairie à Barcelona. La situation était extrêmement tendue. L’affaire des
brochures introduites dans la diligence de Jacques Vedel n’arrangeait pas la situation.
Les autorités espagnoles voulaient les punir sévèrement. Les autorités françaises ont
insistées pour rapatrier les fraudeurs et détruire les brochures séditieuses28. Suite à la
présentation de ces liens entre le contexte politique espagnol et la diffusion des
imprimés, il serait intéressant d’observer influence française sur cette activité car la
suite des évènements prit une tournure différente.

De l’apaisement à la reprise des crises politiques

Dès le remplacement de son père, Jean-Baptiste Alzine entendait poursuivre


l’œuvre de son prédécesseur. Il ne tarda pas à mêler son commerce et sa personne au

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contexte politique espagnol. Les guerres carlistes éclataient de l’autre côté de la
frontière. L’imprimeur-libraire perpignanais se fit remarquer des autorités parisiennes et
madrilènes29. Une correspondance datée du 29 juin 1833 écrite de la main de l’intéressé
mit le feu aux poudres30. Jean-Baptiste Alzine fut chargé d’acheminer des brochures en
faveur de la loi salique. Il en fallait suffisamment pour assurer une distribution dans
toute la Catalogne. Il se proposa d’en réimprimer au besoin. Selon le chargé d’affaires
d’Espagne et le ministère des affaires étrangères, Jean-Baptiste Alzine s’est rendu
coupable d’un délit en introduisant furtivement à Barcelona des brochures destinées à
inciter le peuple espagnol à la rébellion. Rapidement, le préfet des Pyrénées-Orientales
fut informé qu’une plainte émanant de Madrid a été déposée à l’encontre de Jean-
Baptiste Alzine31. Les dîtes brochures prônaient des idées contraires au système du
gouvernement du roi d’Espagne.
Un tel acte entraîna des conséquences pour l’imprimeur-libraire perpignanais. La
librairie de la famille Alzine fut considérée comme un véritable club carliste par le
Ministre de l’Intérieur à Paris. Son brevet fut suspendu en guise d’avertissement.
L’exploitation de son commerce n’était pas interrompue. Depuis cette affaire, Jean-
Baptiste Alzine publia un nombre très faible d’ouvrages en castillan32. Néanmoins, cette
affaire était incontestablement liée au contexte politique espagnol. A cette période,
Ferdinand VII abrogeait la loi salique pour favoriser l’accès à la Couronne à sa fille
Isabelle et non à son fils Charles. Mais deux visions s’opposaient à propos des
motivations de Jean-Baptiste Alzine. La première consistait à le présenter comme un
homme engagé et partisan du carlisme. La seconde présenterait l’imprimeur-libraire
perpignanais comme un simple commerçant attiré par le gain d’argent. Peut-être était-ce
les deux réunies? Les autorités françaises et espagnoles partageaient la seconde
hypothèse. Par la suite, la production et la diffusion des œuvres littéraires entre les
Pyrénées-Orientales et la Catalogne était moins influencée par les affaires politiques
espagnoles.
En effet, la deuxième guerre carliste eut un impact moindre sur les échanges
transfrontaliers de librairie entre les Pyrénées-Orientales et la Catalogne. Aucun délit lié
au contexte politique espagnol n’a été constaté à cette période. La circulation des
imprimés semblait pérenne et sereine. Les rares interventions de Jean-Baptiste Alzine et
la démission d’Antoine Lasserre contribuaient surement à cet apaisement. Leur retrait
dans les affaires était perceptible. Les ouvrages en langue espagnole imprimés en
France étaient majoritaires dans le catalogue de la librairie étrangère de Jean-Baptiste

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Alzine. Antoine Lasserre démissionna en 184033. L’activité reprit son cours dès son
remplacement. Son successeur Hippolyte Julia présentait une activité plus intense34 et
les importations et les exportations de livres augmentaient entre la France et
l’Espagne35. De nombreux colis de librairie étrangère étaient régulièrement adressés à la
librairie d’Hippolyte Julia. Grâce à lui, l’activité était à son apogée entre 1840 et 1854.
En revanche, aucun colis expédié depuis les Pyrénées-Orientales vers la Catalogne n’a
pu être identifié. Parmi les ouvrages vérifiés à la frontière, quelques-uns étaient liés au
contexte politique espagnol. Des titres tels que Historia del emperador Carlos V, Las
revoltas intestinas, ou encore Las leyes fondamentales de la monarquía española ont été
recensés36. N’oublions pas que les réseaux du livre affectionnaient l’Amérique latine et
qu’Hippolyte Julia en faisait probablement parti. La perte des colonies était un sujet
sensible en Espagne. La population hispanophone sur le continent latino-américain se
tenait informée des affaires politiques espagnoles.
L’influence du contexte politique diminuait sur la diffusion de la littérature
française et espagnole entre les Pyrénées-Orientales et la Catalogne. Peu d’œuvres
littéraires recensés étaient liées à la troisième guerre carliste, la proclamation de la
République et la restauration de la Monarchie. Malgré la signature d’une convention
littéraire entre la France et l’Espagne37, d’autres facteurs étaient à prendre en
considération. Les œuvres littéraires ont visiblement cédées la place à la presse
périodique. Un nombre considérable de journaux à caractères politiques ont été recensés
dès la fin du règne d’Isabelle II. Les autorités françaises et espagnoles dressaient des
listes de journaux interdits. Le Diairio de Barcelona a été introduit dans les Pyrénées-
Orientales en 186838. L’année suivante, huit journaux et brochures intitulées le Paradis
Perdu, La lanterne du Canigou, El Telegrafo, Cronica de Cataluña, L’ampurdanes, El
Fomento, La Flaca ou encore Alianza de los pueblos ont été retenus à la frontière39. Des
journaux espagnols étaient introduits clandestinement en France. En 1872, la diffusion
du journal El Tiburon imprimé à Barcelona a été prohibée en France40. En 1873, lors de
la proclamation de la première République et sous la troisième guerre carliste, un
journal intitulé La solidarité révolutionnaire et imprimé à Barcelona a été intercepté41.
La diffusion de journaux espagnols en France était compréhensible. Un intérêt pour la
politique espagnole était perceptible dans l’espace frontalier français. En 1886, les
autorités madrilènes accusaient le journal l’Indépendant des Pyrénées-Orientales
imprimé à Perpignan de tenir des propos outrageants envers Alphonse XII42. Par

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conséquent, l’activité reprit sous une forme différente en matière de contenus et de
procédés.

Une activité transfrontalière aux bases fragiles

Les découvertes précédentes prouvent que les œuvres littéraires et les imprimés
diffusés entre les Pyrénées-Orientales et la Catalogne étaient liés au contexte politique
espagnol. Le principal résultat obtenu dépasse le cadre des similitudes entre le contenu
des imprimés en circulation et les affaires politiques espagnoles. Il est intéressant de
constater que cette activité s’est fondée sur des bases fragiles. Après la Révolution
française, la circulation des écrits continua sur un fond d’évènements politiques
traumatisants pour les espagnols. Cela était observable pendant l’invasion
napoléonienne, le règne de Ferdinand VII et la première guerre carliste. Les
professionnels du livre français et les réseaux clandestins avaient profités du contexte
politique difficile pour développer leurs activités. Même le marché latino-américain
résultait d’un problème politique lié aux colonies espagnoles. Autre constat, les
imprimés diffusés gagnaient en agressivité quand la situation politique s’aggravait.
Logiquement, une interruption aurait dû se produire en période de stabilité
politique. En effet, les principaux protagonistes s’étaient retirés du jeu sous le règne
d’Isabelle II. Mais l’activité s’est maintenue une dizaine d’année supplémentaire grâce à
l’arrivée d‘Hyppolite Julia. Il ne semblait pas lier son commerce aux problèmes
politiques. De nouvelles bases plus saines ont été posées dans le cadre de la production
et la diffusion des imprimés. La fréquence des transactions s’accélérait entre les
perpignanais et les catalans, professionnels du livre ou non. Seulement, une baisse
progressive de l’activité a été observée jusqu’au retrait de la librairie Julia dans ce
secteur. Il meurt à Perpignan en 187143. Entre-temps, quelques commissionnaires
assuraient la diffusion des écrits entre les Pyrénées-Orientales et la Catalogne. L’activité
connut un regain d’activité une fois les tensions politiques ravivées lors des guerres
carlistes, la proclamation de la République et la restauration de la monarchie en
Espagne. D’après ces renseignements, l’influence du contexte politique espagnol était
paradoxale. Elle était sans aucun doute bénéfique à la production et la diffusion des
écrits aux abords de la frontière franco-espagnole. Mais l’activité se maintenait grâce
aux crises politiques. Cette situation n’assurait pas une pérennité durable.

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Les faits constatés et les conclusions avancées ont permis de donner plus de sens
à cette activité. Une étude sur la diffusion des imprimés aurait pu se limiter à un simple
recensement des œuvres littéraires, des journaux et autres brochures en circulation. A ce
propos, de nouveaux écrits ont pu être découverts et les œuvres dîtes classiques ont été
revalorisées. Une étude axée sur l’influence des contextes historiques a surtout
contribué à réfléchir sur des problèmes de fonds et à dépasser la collecte de données et
les analyses statistiques. De nouvelles réflexions ont également émergées autour de la
constitution, l’organisation, la législation et la surveillance des réseaux du livre français
et espagnols. Il est également possible d’apprécier la perception des autorités à l’égard
des activités liées aux livres et aux journaux. Cette étude a permis de cerner les goûts
littéraires des lecteurs. Plus largement, cette étude met en exergue un nouvel aspect des
relations diplomatiques franco-espagnoles au XIXe siècle. Les notions d’espaces
transfrontaliers et de frontières sont également concernées. Les résultats obtenus ont
permis de réfléchir sur le rôle de la frontière et des territoires transfrontaliers.

Considérations Finales

Des liens très étroits ont été constatés entre le contexte politique espagnol et les
œuvres littéraires françaises ou espagnoles en circulation. L’alliance des sources
littéraires et historiques s’est révélée concluante. Pour chaque temps forts de l’Histoire
de l’Espagne, des imprimés à leurs sujets étaient produits et diffusés par des hommes
animés par des convictions politiques ou l’appât du gain. Le règne de Ferdinand VII et
les guerres carlistes ont été les périodes les plus denses. Il a également été prouvé que le
contexte politique espagnol impulsait cette activité, surtout en période de crises. Ce fut
un mal pour un bien. Les affaires reprenaient mais ne s‘inscrivaient pas dans la durée.
D’ailleurs, un changement majeur a pu être constaté lors des dernières décennies du
XIXe siècle. Au cours de l’article, des réflexions pertinentes sur le thème de la
production et la diffusion des écrits ont émergées. Ces dernières combinées aux résultats
obtenus incitent à poursuivre de nouvelles investigations dans ce domaine de la
recherche. Des études similaires pourraient être entreprises à l’égard de n’importe quel
espace transfrontalier dans le monde. Les sources ne manquent pas. Des réseaux
européens et internationaux liés au commerce et à la diffusion des livres ont été étudiés.
L’Amérique latine en fait partie. Les possibilités sont gigantesques. Dans le cas de la
France, les espaces transfrontaliers sont nombreux. En plus de l’Espagne, la France

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partage aussi ses frontières avec l’Allemagne, la Belgique, la Suisse et l’Italie. De telles
études offriraient autant de cas inédits et très instructifs pour la recherche dédiée aux
liens entre les contextes historiques et la production des œuvres littéraires ou leur
diffusion.

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Notas

1
Archives départementales des Pyrénées-Orientales (ADPO). Série M Administration générale et
économie du département, Dossiers 1M786 à 789 : Surveillance de l’imprimerie, de la librairie, de la
propriété littéraire, de la presse et du colportage (1808-1889).
2
DE EGUIZABAL, José Eugenio. Apuntes para una historia de la legislación española sobre imprenta
(1480-1879). Madrid: Imprenta de la revista de legislación, 1879, p. 82-123.
3
AYMES Jean-René, FERNANDEZ SEBASTIAN, Javier. L’image de la France en Espagne (1808-
1850). Paris: Presses de la Sorbonne nouvelle, 1995, p. 15-34.
4
MIRAMBELL I BELLOC, Enric. Historia de la impremta a la ciutat de Girona. Girona: Institut
d’Estudis Gironins, 1988, p. 74.
5
VELEZ, Pilar. El llibre com a obra d’art a la Catalunya vuitcentista (1850-1910). Barcelona: Biblioteca
de Catalunya, 1989, p. 39-51.
6
RUBIO I BALAGUER, Jordi. Impremta i llibreria a Barcelona 1474-1553. Barcelona: Diputació de
Barcelona, 1986.
7
AGUILO I FUSTER, María. Catálogo de obras en lengua catalana impresas desde 1474 hasta 1860,
Madrid, ediciones curial, 1923.
8
LLANAS, Manuel: Seis siglos de edición en Cataluña, Lleida, Eumo Editorial, 2007, p. 15-26.
9
ALZINE, Jean: Librairie de Jean Alzine imprimeur-libraire à Perpignan: catalogue général. Perpignan,
1829, 234 pages.

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10
Au lendemain de la capitulation de Paris, en 1814, des affiches annoncèrent la parution d’un libelle :
De Buonaparte et des Bourbons, et de la nécessité de se rallier à nos Princes légitimes pour le bonheur
de la France et celui de l’Europe, par François de Chateaubriand. Écrit en 1813 en faveur du retour des
Bourbons sur le trône de France, publié au moment où l’Empereur abdiquait, ce texte est un jugement
féroce sur « l’étranger » Buonaparte, faux grand homme et despote, vrai parvenu qui a affermi son
pouvoir sur les ruines de tout un peuple. Il tend à prouver la nécessité de rassembler les Français autour
de leur souverain légitime et historique, puis s’efforce de justifier la politique des étrangers alliés des
Bourbons, qui s’apprêtent, d’ailleurs, à envahir le territoire français. Ce texte enflammé vaut
aujourd’hui par sa vigueur polémique et stylistique.
11
BONET, Gérard: Alzine père et fils libraires – imprimeurs à Perpignan de 1792 à 1866 et hommes
engagés, dans BONET, Gérard (dir): Imprimerie, édition et presse dans la première moitié du XIXe
siècle. Perpignan: Publications de l’Olivier, 2003, p. 26.
12
BONET, Gérard. Imprimerie, édition et presse dans la première moitié du XIXe siècle. Perpignan:
Publications de l’Olivier, 2003, p. 25-28.
13
COMAS I GUELL, Montserrat. La impremta catalana i els seus protagonistes a l’inici de la societat
liberal (1800-1833). Barcelona: Bellaterra, 2009, p. 391-392.
14
Le Diario de Barcelona était un journal crée en 1792 à tendance conservatrice et catholique jusqu’en
1973. Le journal était dirigé de 1838 à 1865 par Antoni Brusi Ferrer qui exerçait le métier d’imprimeur
à Barcelone à la même période.
15
COMAS I GUELL, Montserrat: La impremta catalana i els seus protagonistes a l’inici de la societat
liberal (1800-1833). Barcelona: Bellaterra, 2009, p. 183-186.
16
Arxiu Historic de la ciutat de Girona: Arrêté concernant la formalité et les droits du timbre, Girona,
Imprimerie de J-B Alzine, place St. Narcisse, 1813.
17
PEREZ, Joseph. Histoire de l’Espagne. Paris: Fayard, 1997, p. 483.
18
LeTrienio liberal constituait une période de l’Histoire contemporaine espagnole de 1820 à 1823
marquée par de nombreuses révolutions à l’investigation de Rafael de Riego, un général espagnol et
homme politique en faveur du libéralisme.
19
L'Inquisition espagnole ou Tribunal du Saint-Office de l'Inquisition est une juridiction ecclésiastique
instaurée en Espagne en 1478, avant la fin de la Reconquista, par une bulle de Sixte IV à la demande
des Rois catholiques. Conçue à l'origine pour maintenir l'orthodoxie catholique dans leurs royaumes,
elle avait des précédents dans d'autres institutions similaires en Europe depuis le XIIIe siècle. Elle a
élargi le champ de ses justiciables, réprimé les actes qui s'écartaient d'une stricte orthodoxie et combattu
la persistance de pratiques judaïsantes. Dépendant de la couronne, qui nomma les premiers inquisiteurs
dès 1480, son pouvoir juridique était absolu pour juger et condamner. Elle fut définitivement abolie en
1834.
20
La Decada ominosa était le nom donné à la seconde restauration de l’Absolutisme de 1823 à 1833 sous
le règne de Ferdinand VII.
21
DE EGUIZABAL, José Eugenio. Apuntes para una historia de la legislación española sobre imprenta
(1480-1879), Madrid, Imprenta de la revista de legislación, 1879.
22
La dénomination d’afrancesado est apparue en Espagne pour tous les Espagnols qui, durant
l’occupation française sous Napoléon Bonaparte, ont collaboré avec les Français.
23
GODECHOT Olivier, MARSEILLE Jacques. Les exportations de livres français au XIXe siècle, dans
MOLLIER Jean-Yves: Le commerce de la librairie en France au XIXe siècle (1789-1914), Paris,
éditions de la Maison des sciences de l’Homme, 1997, p. 375.
24
Le journal L'Ami de la religion et du roi, journal ecclésiastique, politique et littéraire fondé en 1814
par Adrien Leclerc et Picot, était un journal royaliste et catholique, mais avant tout catholique, comme
son nom l'indique et comme le démontre surtout la modification que subit ce titre après la révolution de
juillet 1830, lors de l'avènement de Louis-Philippe, époque à laquelle le journal ne conserva plus que le
titre de l'Ami de la Religion. Outre les deux fondateurs, ce journal eut encore comme directeurs
Genoude et l'évêque Dupanloup. ll professait le catholicisme libéral. En 1862, il disparut et le service de
ses abonnés fut fait par le Journal des villes et des campagnes. Il avait cessé de paraître pendant les Cent
jours et n'avait reparu eau retour de Louis XVIII.
25
ADPO : 1M786 : Lettre rédigée le 8 octobre 1822 par le Directeur de la Police à l’attention du Préfet
des Pyrénées-Orientales informant de la circulation en France d’un journal interdit intitulé
l’Observateur espagnol.
26
ADPO : 1M786 : Lettre rédigée à Paris le 28 août 1828 par le Ministère de l’Intérieur au Préfet des
Pyrénées-Orientales relative au procès de Jacques Vedel.

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27
BOTREL Jean-François : La librairie espagnole en France au XIXe siècle, dans MOLLIER Jean-
Yves (dir) : Le commerce de la librairie en France au XIXe siècle (1789-1914), Paris, éditions de la
Maison des sciences de l’Homme, 1997, p. 287-294.
28
ADPO : 1M786 : Lettre rédigée à Barcelona le 2 septembre 1828 par le Consul de France au Préfet des
Pyrénées-Orientales afin de rendre compte du déroulement de l’affaire Vedel et Sales.
29
Archives Départementales des Pyrénées-Orientales. Série M Administration générale et économie du
département, Dossiers 1M786 à 789 : Surveillance de l’imprimerie, de la librairie, de la propriété
littéraire, de la presse et du colportage (1808-1889).
30
ADPO : 1M787 : Copie de la lettre écrite par Jean-Baptiste Alzine rédigée à Perpignan le 29 juin 1833
dans laquelle il s’identifiait comme le responsable de la diffusion en Espagne des brochures en faveur
de la loi salique.
31
ADPO : 1M787 : Lettre rédigée à Perpignan le 9 septembre 1833 par le Tribunal de Première Instance
au Préfet des Pyrénées-Orientales expliquant qu’une plainte émanant du Cabinet de Madrid a été
déposée contre Jean-Baptiste Alzine.
32
VAUCHELLE – HAQUET Aline. Les ouvrages en langue espagnole publiés en France au temps de la
première guerre carliste (1834 et 1840), Aix en Provence, PUP, 2003, p. 28.
33
ADPO : 2T6 : Lettre rédigée à Paris le 5 février 1840 émanant du Bureau de la Librairie informant le
Ministère de l’Intérieur qu’Antoine Lasserre a fait abandon de ses fonds à son confrère Jean-Baptiste
Alzine en l’obligeant à ne faire que de la librairie étrangère.
34
Un recensement à partir des vérifications de librairie étrangère rédigées par les douaniers du Perthus
ont permis de comptabiliser plus de 5000 ouvrages expédiés depuis la Catalogne à la librairie Julia à
Perpignan.
35
Archives Nationales de France. F12* 5648, commerce extérieur, statistiques, 1840-1850.
36
ADPO. Série M Administration générale et économie du département, Dossiers 1M786 à 789 :
Surveillance de l’imprimerie, de la librairie, de la propriété littéraire, de la presse et du colportage
(1808-1889).
37
Biblioteca Nacional de España. Documentos internacionales del reinado de Doña Isabel II desde 1842
a 1868, Madrid, Imprenta de Miguel Ginesta, 1869, p. 80-84.
38
ADPO : 1M789 : Lettre rédigée à Perpignan le 3 avril 1868 par l’Administration Générale des Postes
adressée au Préfet des Pyrénées-Orientales expliquant que le journal intitulé Diario de Barcelona a été
autorisé d’entrée en France.
39
ADPO : 1M789 : Saisie des journaux étrangers pour le mois de Juillet 1869.
40
ADPO : 1M789 : Liste dressée par le Ministère de l’Intérieur à Paris des écrits étrangers dont l’entrée
en France a été interdite depuis le 4 septembre 1870.
41
ADPO : 1M789 : Lettre rédigée à Paris le 31 mai 1873 par le Ministère de l’Intérieur adressée au Préfet
des Pyrénées-Orientales signalant la circulation en France et à Barcelona d’un journal intitulé La
Solidarité Révolutionnaire.
42
ADPO : 1M789 : Lettre rédigée à Perpignan le 27 juin 1883 par le Gouverneur Civil de Gerona
adressée au Ministère de l’Intérieur à Paris.
43
Archives Nationales de France. F18 2044 : Imprimeurs, libraires et lithographes. Dossiers des brevetés.
Départements, 1815-1870, Pyrénées-Orientales.

Artigo recebido em 09/07/2013. Aprovado em 04/10/2013.

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O GRANDE MUNDO: MUNDANISMO E SOCIABILIDADE NA
LITERATURA ACADEMICISTA BRASILEIRA DURANTE O
PRÉ-MODERNISMO

THE BIG WORLD: WORLDLINESS AND SOCIABILITY IN


ACADEMIC BRAZILIAN LITERATURE DURING
PRE-MODERNISM

Maurício SILVA•

Resumo: O presente artigo analisa o contexto cultural do Pré-Modernismo brasileiro,


destacando alguns aspectos estéticos e literários da Literatura Brasileira. Além disso, este artigo
analisa as possíveis relações entre autores Pré-Modernistas e a Academia Brasileira de Letras,
durante a passagem do século XIX para o XX.
Palavras-chave: Pré-Modernismo – Literatura Brasileira – Mundanismo – Historiografia
Literária.

Abstract: The present article analyses the cultural context of Brazilian Pre-Modernism, and
points out some aesthetic and literary aspects of Brazilian Literature. Furthermore, the present
article analyzes the relationship between the Pre-Modernist writers and the Brazilian Academy
of Letters, detaching the institutionalizations issues on the turn-of-the-century.
Keywords: Pre-Modernism – Brazilian Literature – Worldliness – Literary Historiography.

Literariamente falando, a passagem do século XIX para o XX foi marcada por


uma visão mais ou menos padronizada das artes, perspectiva perfeitamente sintetizada
na consideração da Literatura como o sorriso da sociedade, como bem percebeu o
sentido acurado de Afrânio Peixoto, representante de destaque dessa mesma tendência.
Além disso, o que logo se verificou nesse entrecho da História Literária brasileira foi
uma espécie de anseio pela novidade e pela modernidade, traduzindo-se, via de regra, na
ampla aceitação de um singular cosmopolitismo literário à D'Annunzzio e Oscar Wilde,
que, no Brasil, seria cabalmente representado pelo já citado Afrânio Peixoto e por outras
figuras célebres da mesma época, como João do Rio, Théo Filho, Arthur de Azevedo e
Henrique Coelho Neto.
Além do formalismo estético, marca prevalente da Literatura brasileira na
passagem do século, uma das mais peculiares características literárias do período foi a
estilização. Embora vago, pois que dotado de uma acepção bastante larga, o termo se
refere, em linhas gerais, a uma obstinada tendência à ornamentação e ao artificialismo


Pós-Doutor em Literatura Brasileira – Universidade de São Paulo – USP, Cidade Universitária CEP:
05508-080 – São Paulo – SP – Brasil. Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação na
Universidade Nove de Julho. E-mail: maurisil@gmail.com.
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com a finalidade de obter efeito puramente estetizante. Completa, nesse sentido, a ideia
de formalismo, por revelar uma preocupação maior com efeitos ornamentais gerais, não
especificamente voltados para o vocabulário: a plasticidade do período, a adoção de
determinadas diretrizes estéticas (como o Helenismo/Orientalismo), de uma técnica
específica (como o artificialismo) e, principalmente, o tópico do mundanismo literário,
que tem sua correspondência social nos salões, conferências e outros encontros
realizados pela sociedade letrada dos primeiros anos da República; ou ainda nas páginas
efêmeras de periódicos que ditavam a moda. Em sua versão estética, o mundanismo era
representado sobretudo pela Literatura de temática fútil, não raras vezes procurando
espelhar os costumes sociais da burguesia carioca do entre século, particularmente na
sua deliberada submissão ao ideário europeu.

O Grande Mundo e a Literatura Academicista

O romance de costumes, tanto em seu viés urbano quanto regional, foi o que mais
intensa e programaticamente tentou equacionar – a partir do século XIX - a questão da
fundação de uma Literatura nacional. Nele se exercitaram desde José de Alencar,
Manuel Antonio de Almeida e Raul Pompéia, no século XIX, até Lima Barreto, no
século XX. No período aqui estudado, o romance de costumes – que também buscava
satisfazer o mesmo anseio de independência da Literatura brasileira – assume,
contraditoriamente, ares mundanos e cosmopolitas: buscava ser autenticamente
nacional, mostrando o quanto o Brasil tinha de moderno e civilizado, portanto, de
europeu. Evidentemente, não se tratava de qualquer modelo europeu, mas o francês,
ressaltando a vinculação brasileira com nosso mais recorrente fornecedor de cultura
humanística.
Desse modo, durante a Belle Époque, o mundanismo emerge como tematização
dos costumes urbanos ligados – como disse com propriedade Coelho Neto em romances
cronologicamente tão distantes como A Capital Federal (1893) e O Polvo (1924) – ao
“grande mundo”. E por grande mundo entende-se, ainda nos dizeres de Coelho Neto, as
“seducções do luxo”, os “louvores frívolos”, o encantamento pelos “bailes, recepções,
chás, espectaculos”, o deslumbramento por “crystaes e espelhos”, a fascinação pelos
“theatros, as casas de chá, os cinemas e (as) vitrinas”, enfim, a chamada “high-life”
(COELHO NETO, 1924a, 1924b).
Essa é a sociedade retratada, preferencialmente, pelos cultores do academicismo,
temática que realiza como nenhum outro tópico literário a concepção da Literatura
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como sorriso da sociedade. Não são poucos, nesse sentido, os autores que cultivaram o
mundanismo na Literatura da época, como revela, entre outros, o exemplo de Benjamim
Costallat.
Com uma linguagem carregada de estrangeirismos, que iam dos simples
vocábulos ao nome das personagens, com uma valorização estética de tudo o que era
fútil e efêmero, com uma temática centrada no mundanismo como estilo de vida,
Benjamim Costallat – um academista que não freqüentou a Academia - construiu uma
obra que oscila entre o sofisticado e o ordinário, enfatizando ambos como elementos
constituintes de uma incipiente modernidade. A começar pelo tratamento dado às
personagens, é possível verificar que seus romances são povoados por uma quantidade
assustadora de dândis e esnobes, bem de acordo com a atmosfera Belle Epoque da
sociedade carioca do começo do século. O cenário onde os acontecimentos se
desenrolam não escapam, igualmente, à mesma atmosfera artificial, com suas luzes
feéricas ou seus automóveis luxuosos, sugerindo a irrefreável sedução urbana. A
linguagem telegráfica, profundamente marcada pelas expressões da moda, completa,
enfim, o quadro superficial que conforma os romances.
Suas obras são, além disso, povoadas por fantásticas figuras de femmes fatales,
em que se misturam a futilidade mundana e a personalização extrema do sensualismo,
marca registrada do mundanismo literário do período. Assim mesclam-se a luxúria, os
vícios e as futilidades do que ele próprio chamou uma vez – num arremedo da expressão
consagrada por Coelho Neto – de “a grande vida”, para designar, por exemplo, o estilo
de vida de Mimi, a protagonista de Gurya (1929), “jovem mundana” que vivia para
gastar “[...] na costureira, nos perfumistas e nas joalherias tudo o que a generosidade
[...] dos homens lhe ia concedendo” (COSTALLAT, 1929, p. 91).
Da mulher ao cenário, passando pelas relações amorosas, tudo parece carregado,
nos romances de Costallat, de uma representação fútil da realidade. Até a noção de
“moderno” empregada pelo autor padece de uma banalidade, já que surge associada
frequentemente a modismos pouco consistentes, como um modernismo cuja única
marca fundamental é o deslumbramento. Mas é ainda no tratamento dado à figura
feminina que Benjamim Costallat melhor representa o que aqui chamamos de sentido de
futilidade. É sintomática, por exemplo, a descrição que o autor faz de Germaine,
protagonista de um dos seus romances:

Germaine era uma mulher que se aborrecia. Não tinha, além do jogo,
outra distração e outra finalidade. Ainda moça já havia quasi gasto o
patrimonio de seu pae [...] agradavam muito mais a Germaine os

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banhos azues das tardes de Copacabana (COSTALLAT, 1934, p. 22,
28).

Fútil é também o sensualismo presente em suas obras, banalizado pela luxúria e


pelo amor devasso da prostituição, condimentos eróticos que davam aos seus romances
um sentido muito contemporâneo e popular. O obsceno, o degradante, a banalização da
figura feminina, a pornografia unem-se na tentativa deliberada de criar uma atmosfera
mundana, em que não falta ainda o amor devasso de satânicas adolescentes travestidas
de ingênuas moças de família:

Rosalina, calças de pyjama, o busto nú, seus minusculos seios de


dezesete annos, atrevidos e brancos, terminados por duas manchinhas
côr de rosa quasi imperceptiveis, olhou para a sua propria imagem,
para a sua imagem de garota adoravel e sorriu [...]. E aquellas meninas
de familia do seculo faziam os seus calculos de conquista, a somma de
novos admiradores adquiridos, o balanço de seus conquistadores,
como prostitutas entre si recapitulando extenuadas um dia de labor
sexual (COSTALLAT, 1923, p. 21, 37).

Assim, tudo o que se refere à criação do espectro feminino, mas principalmente o


que há de mais picante e sedutor nele, interessa aos romances de Costallat, denotando,
de passagem, uma admiração bastante intensa pelo mito de Salomé, eternizado por
muitos artistas, mas difundido no Brasil principalmente pela Literatura do esteta inglês
Oscar Wilde, a quem Benjamim Costallat deve mais de uma característica literária,
além, é lógico, do próprio apego aos motivos mundanos.
Mais do que Costallat, é em João do Rio que a sociedade carioca surge em todo o
seu esplendor mundano, brilhando na pena desse exímio cronista do cotidianos, que nos
legou alguns dos mais interessantes romances escritos no começo do século; mais
interessantes e, evidentemente, mais próximos da crônica de costumes mundanos do que
quaisquer outros.
Privilegiando a abordagem da realidade elitista do Rio de Janeiro, são os
costumes da alta sociedade carioca que João do Rio elege como tema por excelência de
seu romance A Correspondência de uma Estação de Cura (1918), fazendo um retrato
mais ou menos fiel de uma burguesia em plena ascensão, ávida de novidades, ciosa de
seu status e afeita aos pequenos dramas da elite, sobretudo amorosos, sem maiores
consequências para a integridade social de seus componentes. Por isso, poucas obras
como essa enquadram-se tão perfeitamente na caracterização da Literatura como sorriso
da sociedade, dada por Afrânio Peixoto no começo do século.
A história que, em sua maior parte, se passa numa estação de águas, revela uma
face muito em evidência da sociedade urbana das primeiras décadas do século XX: seu
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desprendimento em relação à realidade cotidiana, sua banalidade crônica, sua falta de
análise da realidade, enfim, sua futilidade. É a vida dos esnobes e da elite, retratada pelo
autor da vida vertiginosa do Rio de Janeiro; é também a vida da “civilização” (em
oposição à “barbárie” suburbana e miserável), a desfrutar dos prazeres de uma estação
de águas subitamente transformada em ponto de encontro e convivência da alta
sociedade. Para semelhante empreitada, o autor não pôde abrir mão de uma linguagem
correspondente, de acordo com a temática tratada: daí João do Rio empregar uma dicção
classicizante, marcada pelo purismo e pelo uso abusivo de estrangeirismos (como era
comum entre as pessoas pertencentes à classe social que procura descrever). Escrito em
gênero epistolar, formado por capítulos-cartas, o romance opta também pelo realismo, a
fim de dar maior verossimilhança aos acontecimentos. Trata-se - apesar das raras
incursões no bas fond carioca - de um romance visceralmente marcado pelo desejo de
fazer aflorar o que há de mais sorridente na sociedade brasileira, transformando uma
estação de águas numa insólita Capital Federal estilizada, cuja sociedade tem como
divisa uma frase retirada do próprio romance e que, melhor do que qualquer outra,
define bem o seu espírito: "a vida é a eterna ilusão" (RIO, 1992a, p. 22).
Ainda uma vez é a sociabilidade da alta classe urbana que o autor descreve:

[...] ao jantar, os smokings resolveram aparecer. Em seguida ao


almoço, as senhoras arvoram grandes toilettes de passeio e jóias.
Depois [...] afluem os ‘encantadores’ do Rio e de São Paulo, esses
meninos dos dezessete aos quarenta anos, que vestem com elegância
exagerada, são dados a esportes, montam, jogam o pingue-pongue e o
bridge, andam com os desenhos do Sem, falam francês e têm sempre
um ar muito superior (RIO, 1992a, p. 30).

A profusão de termos estrangeiros, o retrato de costumes mundanos da elite


carioca, certa ironia não-agressiva, que compactua com a atmosfera pernóstica em que
as personagens se inserem são alguns efeitos da passagem transcrita.
Descrevendo uma sociedade abastada e mundana, sobretudo no seu lado mais
banal - embora por meio de certa padronização estilística e evidente perspectiva
documental (SÜSSEKIND, 1992, p. XX) –, João do Rio escreve outro romance na
perspectiva que aqui estamos analisando a Literatura academicista: A Profissão de
Jacques Pedreira (1913). Trata-se da história de Jacques Pedreira, que tivera sempre
uma vida mundana e relapsa, formando-se advogado por meio de grandes gastos de seu
pai, que o pressiona a exercer uma profissão. Contrariado por ter de trabalhar ("trabalhar
quando a vida é tão bonita!"), acaba cedendo à vontade do pai apenas pelo prazer de ser
reconhecido como doutor. Durante o exercício da profissão de advogado, Jacques

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Pedreira começa a pegar gosto pelas aventuras econômicas, onde a influência, o
dinheiro, a habilidade em corromper valem mais ("uma vida aventureira de
negociatas"). Além disso, começa a obter sucesso nos amores ilícitos, marcando
encontros furtivos com mulheres casadas e tornando-se amante de Alice dos Santos.
Aos poucos, vai-se afastando da vida de trabalho, para se dedicar apenas à vida
mundana (mulheres, automóveis, bares). Faz do amor e das conquistas sua verdadeira
profissão. (RIO, 1992b) As cenas se passam principalmente em Petrópolis, refúgio
principal da burguesia carioca e que, no dizer de uma testemunha ocular, abrigava “[...]
o ambiente social e mundano do que hoje chamaríamos de grã-finismo” (MAUL, 1967,
p. 9).
São academicamente primorosas as descrições que João do Rio faz, primeiro, do
estilo de vida de Jacques Pedreira durante sua estada na Faculdade:

[...] acordava, ia para o football ou fazia ginástica sueca no quarto. Em


seguida iniciava sua toilette com cuidado. A escolha do fato, da
camisa e da gravata correspondente, punha-o muita vez perplexo.
Estas coisas absorviam sua atenção [...] Em fornecedores o seu
conhecimento era doutoral. A menor alteração no corte dos fracks,
uma insignificante mudança d’aba nos chapéus de Londres ou da Itália
tinha nele um fiel. As cores das roupas de baixo também. E a maneira
de estar conforme manda a educação dos salões [...] Após a toilette, ía
almoçar e saía. Às vezes passava pela escola. Raramente. Empregava
o tempo em namoros e flirts; [...] (RIO, 1992b, p. 17).

e, depois, do de Alice dos Santos, sua amante:

Alice dos Santos era um caso de frivolismo mundano e sensual comum.


Passara até os vinte e três anos na província, com a atenção voltada para
a vida elegante da capital. Fizera assim uma idéia exagerada de tudo: da
moda, dos divertimentos, dos homens, da liberdade, dos costumes,
acreditando em quanta fantasia lia nos jornais e em quanta invenção
narram os provincianos de volta, para se darem ares [...] [Casara] não só
para gozar os refinamentos da cidade como para dominar e ser a
primeira entre as senhoras faladas pela beleza, pela formosura e pela
posição. O cuidado com que se comparava à fotografia das grandes
damas nos jornais ilustrados para se achar melhor sempre! A pertinácia
com que estudava nos magazines mundanos a tecnologia, a língua
confusa da alta roda, aliás tão limitada! (RIO, 1992b, p. 38).

Eis aí retratos exemplares da sociedade mundana descrita por João do Rio. Afeito
à abordagem de temas picantes, prosaicos, como se fossem notícias escritas para os
periódicos com os quais colaborava, observa-se inclusive que o autor deixa de lado
certo descritivismo enfadonho (mais apropriado, aliás, aos cronistas parnasianos), para
tentar uma interpretação do quadro descrito: opina, compara, interfere abertamente no
panorama traçado.
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Aliás, esse seu apego à temática mundana não está presente apenas nos dois
romances citados, percorrendo praticamente toda a sua obra, seja ela ficcional ou
jornalística. É o caso de alguns contos de A Mulher e os Espelhos e de Dentro da Noite
(1910), este último trazendo a figura da mundana Laurinda Belfort, mulher da alta
sociedade carioca, que estudou no colégio Sion, tem uma inglesa como dama de
companhia, usa adereços de brilhantes feitos no Vevert e que, quando se casou,
inaugurou

[...] aquela grande vida artificial e custosa, com salas compostas


segundo desenhos de decoristas inglezes, os vestidos vindos de Paris e
um ar de boneca social, que para sempre lhe tirara a idéia de amar
alguém, além da sua presadissima pessoa. A grande vida um tempo
fel-a mesmo esquecer quasi o marido, porque era preciso passar o
carnaval em Nice, estar no outono em Paris, passear os hoteis
depravados do Cairo no inverno, dar opiniões sobre artistas e pintores,
falar de viagens e manter o seu salão no Rio [...] (RIO, 1910, p. 182).

Esses excertos, retirados da ficção urbana de João do Rio, tinham, com certeza, a
própria vida social carioca como modelo: retratavam-na com a fidelidade devida às
obras que se querem costumbristas. Não foi matéria de autores marginalizados pela
Academia ou que a hostilizaram, como Lima Barreto, Graça Aranha, Monteiro Lobato e
outros. Era, ao contrário, matéria eleita exatamente pelos academicistas, que tinham no
mundanismo carioca uma de suas principais fontes de inspiração. Em João do Rio,
como dissemos, esta temática extrapola os limites da ficção e atinge seu ápice – como
era de se esperar em um jornalista de primeira grandeza – em suas crônicas. É o caso
daquela intitulada “O Chá e As Visitas”, publicada em sua Vida Vertiginosa (1911). Ali
é descrito com clareza o que devia ser a verdadeira vida mundana da sociedade carioca,
não poucas vezes, como dissemos, tomada como modelo pelos mais relevantes
academicistas. Fazendo considerações gerais sobre os costumes urbanos na burguesia
carioca, relata o autor:

[...] a vida nervosa e febril traz a transformação subita dos habitos


urbanos. Desde que há mais dinheiro e mais probabilidades e ganhal-o
– há mais conforto e maior desejo de adaptar a elegancia estrangeira.
A ininterrupta estação de sól e chuva de todo anno é dividida de
accordo com o protocollo mundano [...] Todos tem muito o que fazer
e os deveres sociaes são uma obrigação; [...] (RIO, 1911, p. 47).

e, tratando das ocupações diárias de uma mulher da sociedade, escreve:

[...] a massagista, ás 9 horas, seguida de um banho tépido com


essencia de jasmin. Aula pratica de ingléz ás 10. All right! Almoço á
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ingleza. Muito chá. Toilette. Costureiro. Visita a Fulana. Dia de
Cicrana. Chá de Beltrana. Conferencia literaria. Chá na Cavé. Casa.
Toilette para o jantar. Theatro. Recepção seguida de baile na casa do
general [...] (RIO, 1911, p. 47).

Observações semelhantes, no que concerne à temática mundana, podem ser


realizadas ainda acerca da ficção de Afrânio Peixoto. Embora seja considerado por parte
da crítica um escritor com ênfase na temática rural, ele nos interessa no que sua
produção ficcional possui de mais citadino, pois é como autor de romances urbanos que
se revelou um cronista da vida mundana.
Escrevendo histórias de caráter documental, legou-nos uma série de quadros
referentes aos costumes da elite carioca nas primeiras décadas do século, criando assim
uma ficção diletante, impressionista, sem pretensões artísticas. Foi, nesse sentido, um
autêntico romancista de costumes urbanos, com obras que procuram retratar fielmente
“[...] o ambiente requintado da sociedade carioca [...] focalizando as indefectíveis
conversas do mundanismo” (SALES, 1978, p. 10).
Os próprios componentes essenciais de seus três romances de extração urbana (A
Esfinge, As Razões do Coração e Uma Mulher Como As Outras) são uma prova cabal
desse apego ao retrato mundano: as cenas passam-se tanto em Petrópolis, refúgio da
elite brasileira do começo do século, quanto no cais do porto, onde eram aguardados os
navios provenientes da Europa; as personagens são um escultor, um político ou um
embaixador (jamais um operário, um caixeiro-viajante ou um pequeno comerciante); as
tramas envolvem casos de triangulações amorosas, com um sabor algo picante, bem ao
gosto da elite frívola. De resto, seus romances apresentam-se à crítica mais exigente
formal e tematicamente padronizados, sem elevações bruscas que, afinal de contas,
tornam as situações mais dramáticas e densas; tudo flui num meio-tom bem
comportado, no compasso monótono de classes sociais que só aceitam escândalos em
surdina. E, assim, a sociedade é “despida” pela pena do romancista baiano...
A Esfinge (1908), por exemplo, assemelha-se a um panorama luminoso,
(CALMON, 1947) em que a alta sociedade carioca é mostrada nos seus momentos mais
banais, pintando-se um quadro de costumes sociais, com cenas sobre o relacionamento
amoroso, sobre a vida mundana dos salões, sobre as “modernidades” latentes, sobre
uma pretensa civilidade urbana, como se pode perceber neste trecho:

[...] na casa de Lúcia havia excesso oposto, o que dava às salas


aspecto de viveiro irriquieto e leviano: apenas frivolidade e namoro.
Com a ciência de suas várias viagens à Europa e muitas leituras de
romances e protocolos mundanos, ela aprendera a evitar estes
extremos, escolhendo com arte os convivas para cada jantar e dando
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às reuniões que se seguiam números sensacionais, guardados em
segredo até o momento da exibição: eram artistas extraordinários, de
passagem, pianistas desconhecidos, ventríloquos, prestidigitadores,
excêntricos, que entretinham e deliciavam a assistência com
espetáculos muito cômodos, porque, além do prazer da companhia, as
boas graças dos Lemos eram favor precioso na sociedade carioca
(PEIXOTO, 1978, p. 87).

Frivolidade, leviandade, mundanismo, sensacionalismo, excentricidade são,


portanto, conceitos-chave desse romance de Afrânio Peixoto, como aliás de
praticamente todos os romances de costume mundanos dos academicistas.
O mesmo pode-se dizer a respeito de As Razões do Coração (1925), onde o
mundanismo e a futilidade misturam-se - bem a propósito - com temáticas relativas à
moda, às festas, às transformações urbanizadoras e outras:

[...] lá nos vastos salões, nas recâmaras, no jardim, nos balcões,


grupavam-se os que as afinidades de gôsto, de idade, de sexo
chamavam para maior intimidade. Os políticos mais influentes, os
jornalistas mais lidos, escritores, financistas, mundanos, rapazes sem
classificação ainda, já críticos nos jornais, misturavam-se às damas
mais pomposas e belas, às meninas mais prometedoras ou ariscas, com
a alegria da gente elegante e inteligente que tem prazer em
convivência distinta, num cenário adequado de arte, a arte de receber
(PEIXOTO, 1944, p. 103).

Finalmente, Uma Mulher Como As Outras (1928) procura carregar na mescla


entre elite formal e agregada: a protagonista do romance é uma prostituta de elite, e não
faltam as cenas relacionadas aos vícios próprios de uma classe abastada ou à
frequentação de teatros mundanos:

[...] um capricho de Lili [...] levou-nos ao Apolo, onde nos demos


rendez-vous, toute la bande, para, depois, uma ceia no ‘Maison
Moderne’. O Apolo é o novo teatro do Celestino, feito ou refeito á
moderna, para genero alegre, mas elevado. O ‘mundo’ do Lirico e do
São Pedro, e o ‘meio-mundo’ do Recreio, do Sant’Ana, do Lucinda
[...] têm agora ponto chic de encontro [...] (PEIXOTO, 1940, p. 133).

Retratos de uma classe preocupada com os caprichos da sociabilidade, os


romances urbanos de Afrânio Peixoto encontram correspondência na realidade mesma
do Rio de Janeiro, onde são ambientados. Não é difícil perceber, por isso, a coerência
descritiva entre o que é relatado pelo autor e a realidade social da elite carioca da época.
Aliás, é nessa sociabilidade difusa que Afrânio Peixoto encontra a maior parte do
material que precisa para preencher tramas pouco elaboradas. Talvez não fosse exagero
considerá-lo, diante das circunstâncias, um romancista dos salões da elite carioca, como
se pode notar em A Esfinge: “[...] nos salões [...] a boa gente aperta-se, declara-se,

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namora, beija-se e, se não faz mais, é simplesmente por uma questão de mobiliário [...]”
(PEIXOTO, 1978, p. 59) em As Razões do Coração:

[...] aqui, o salão de danças animadas e indecentes, tango nostálgico,


gracioso two-steps, excitante maxixe; adiante, dois ou três grupos
numa sala de bridge, bridgistas furiosos a se descomporem,
ordinàriamente mulheres, que a paixão, qualquer paixão, descompõe
fàcilmente; grupos nos cantos, nos balcões, passeios entre gente
desatenta ou diversamente ocupada, uma fuga no jardim ou uma
excitação de álcool no buffet; já em cima, o jogo... O namôro por tôda
parte. A conversa em todos os cantos. Todos bem, cada um à sua
vontade [...] (PEIXOTO, 1944, p. 106).

ou ainda em Uma Mulher Como As Outras:

[...] entrei no salão de danças. A orquestra atacava uma valsa


langorosa, Rosita de la Plata, e alguns pares, cerimoniosamente,
faziam os compassos mesureiros, correctos, afastados, honestos, como
se não fôssem a Lola, a Pepita Aragon, a Marinette, a Poupée, a
Juliette d’Alençon... que valsavam com os seus gigolôs ou amants de
coeur [...] (PEIXOTO, 1940, p. 22).

Já na forma empregada por Afrânio Peixoto para a descrição desses quadros é


possível detectar intenções diversas. Salta aos olhos, por exemplo, no primeiro trecho
transcrito, a expressão “boa gente”, como que delimitando antecipadamente o tipo de
classe social privilegiada pelo autor nas suas produções ficcionais; no segundo trecho,
não passa despercebido um vocabulário coalhado de estrangeirismo (como a buscar um
retrato fiel, pela expressão vocabular, da classe abordada) ou ainda a atmosfera fútil e
descompromissada dos salões, que o romancista procura reproduzir no livro;
finalmente, no terceiro trecho, o autor nos lembra que, afinal de contas, o mundo da
prostituição de luxo também faz parte da civilidade mundana carioca da passagem do
século, como atestam vários estudos históricos e um sem-número de romances da
mesma época (ARAÚJO, 1993; COSTA, 1983; RAGO, 1987; ADLER, 1991;
DARMON, 1991). O emprego do advérbio “aqui”, no segundo trecho, como a
introduzir o parágrafo, revela claramente a intenção descritivista do autor.
É oportuno analisar, ainda por esta perpectiva, a descrição de algumas
personagens - anônimas ou não - das histórias de Afrânio Peixoto, como este quadro,
traçado com esmero de cronista de coluna social, das mulheres da classe alta carioca:

Pús-me a olhar as mulheres [...] Moças, a maior parte, quasi todas


belas, consteladas de joias, joias até o limite do incomportável, colares
e mais colares, pulseiras umas sobre as outras, e broches e barrétes e
bichas e aneis, tantos, tão profusos, diamantes, pérolas, esmeraldas,

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rubis, principalmente safira, que se lhes perdia o efeito, de realce e de
brilho, na profusão barbara (PEIXOTO, 1940, p. 21).

Afrânio Peixoto afirma-se, assim, como um cronista da vida mundana carioca,


dando aos seus romances uma natureza deliberadamente documental, descritivista, de
um costumbrismo que se volta preferencialmente para os hábitos da elite urbana, como
aliás já observou Agrippino Grieco, com sua proverbial mordacidade, ao se referir
exatamente aos perfis femininos traçados pelo ilustre acadêmico:

[...] sente-se a impressão de que as suas heroínas caboclas leram todos


os setenta volumes de Bourget. Sua psicologia é madrigalesca e seu
estilo é de um homem de boa sociedade que não deseja nunca pisar ou
acotovelar as damas da alta roda (GRIECO, 1947, p. 104).

Isto torna, com certeza, o romancista baiano uma das figuras que mais souberam
fazer do lema que instituíra para caracterizar a atividade literária na época em que viveu
uma realidade: foi, ao lado de seus pares da Academia, um romancista que conseguiu
levar ao limite a ideia de Literatura como sorriso da sociedade. De fato, a sociedade
brilha na pena de Afrânio Peixoto, que faz de suas personagens, protagonistas voltados
para o diletantismo e o desfrute mundanos. E a estética acadêmica acaba se firmando até
por seus modos de representação literária, pela preocupação com a descrição dos
costumes da alta sociedade, logrando o romancista construir uma obra ficcional voltada
para o detalhamento de seus hábitos: seus romances, como os de João do Rio, são
crônicas de costumes mundanos, espelhos de uma época em ebulição constante
(JUNIOR, 1947; SÁ, 1987).

Considerações finais

O mundanismo literário era caro à Academia também como padrão de


comportamento de alguns acadêmicos. É sugestiva, nesse sentido, a parábola escrita por
Humberto de Campos para seu volume de crônicas intitulado Lagartas e Libélulas
(1933): trata-se do diálogo entre dois acadêmicos a passeio pela Avenida das Nações,
em que, um deles, o mais jovem, “sólido e elegante”, mais atento para “[...] a poeira de
seu fato do que para os solecismos de sua prosa”, explica suas teorias a respeito da
Literatura e da atividade literária: “[...] eu ponho-a [a Literatura] a meu serviço, ao
serviço da minha ambição mundana, considerando-a um simples e elegante ornamento
da vida.” É esse mesmo autor, preocupado “[...] mais com a volúpia da publicidade do
que [com] o gosto de produzir”, quem descreve seu leviano way of life: “[...] eu vou ás

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festas, ás recepções, e tomo o meu chá das cinco horas, ou passo no meu alfaiate, ou
mergulho no meu banho de mar, ao contacto da natureza e da vida”, sem sacrificar
nunca “[...] a alegria das exibições mundanas” (CAMPOS, 1934, p. 17).
Processo que faz parte de um amplo programa de estilização da Literatura
nacional, levado a cabo com empenho e rigor pela Academia, o mundanismo – tal e
qual tentamos aqui demonstrar – acabava sendo um dos conceitos norteadores da
produção literária academicista, já que, como disse com propriedade Gilberto Amado,
"[...] mundanismo e esteticismo comandavam, sob o signo da Futilidade, não só o
movimento social como o literário também" (AMADO, 1958, p. 79).

Referências Bibliográficas

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Círculo do Livro, 1991.
AMADO, Gilberto. Mocidade no Rio e primeira viagem à Europa. Rio de Janeiro: José
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CALMON, Pedro. Afrânio Peixoto. Revista da Academia Brasileira de Letras, Rio de
Janeiro, ano 46, v. 73, p. 45-51, jan./jun. 1947.
CAMPOS, Humberto de. Lagartas e libélulas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1934.
COELHO NETO, Henrique. A capital federal (impressões de um sertanejo). Porto:
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COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
COSTALLAT, Benjamim. Melle: cinema: novella de costumes do momento que passa.
Rio de Janeiro: Benjamim Costallat & Miccolis, 1923.
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DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque: a medicalização do crime.
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GRIECO, Agrippino. Evolução da prosa brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio,
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______. A esfinge. São Paulo: Clube do Livro, 1978.
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______. Correspondência de uma estaçäo de cura. São Paulo: Scipione, 1992a.
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SÁ, Jorge de. João do Rio: à margem da modernidade? 1987. Tese (Doutorado em
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SALES, Fernando. Afrânio Peixoto e seu Primeiro Romance. In: PEIXOTO, Afrânio. A
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SÜSSEKIND, Flora. O cronista & o secreta amador. In: RIO, João do. A profissão de
Jacques Pedreira. São Paulo: Scipione, 1992.

Artigo recebido em 06/08/2013. Aprovado em 01/10/2013.

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Revista História e Cultura, Franca-SP, v.3, n.1, p.204-216, 2014. ISSN: 2238-6270.
HISTÓRIA E IMAGINAÇÃO HISTÓRICA: A “CRÔNICA DO
DESCOBRIMENTO DO BRASIL” DE VARNHAGEN E AS
NARRATIVAS DE ALEXANDRE HERCULANO

HISTORY AND HISTORICAL IMAGINATION: THE


VARNHAGEN’S “CRÔNICA DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL”
AND THE ALEXANDRE HERCULANO’S NARRATIVES

Michelle Fernanda TASCA•

Resumo: As fronteiras entre a História e a ficção possibilitaram a escrita de diversos textos


oitocentistas que jogavam com essa dualidade conceitual. Alexandre Herculano (1810-1877)
atuou intensamente nesse sentido, criando uma ficção histórica, característica do Romantismo
português, ao trabalhar simultaneamente com objetos históricos e a imaginação. Ao mesmo
tempo, percebemos na “Crônica do Descobrimento do Brasil” (1840) de Francisco Adolfo de
Varnhagen (1816-1878) a presença de vários elementos característicos dessa Literatura
desenvolvida por Herculano. A partir de uma leitura paralela dos textos de ambos os autores,
procura-se perceber os caminhos tomados para a elaboração desse projeto literário oitocentista,
que lançava as bases para um romance histórico lusitano, e a forma como tais elementos se
desenvolveram nas obras em questão.
Palavras-chave: Imaginação Histórica – Francisco Adolfo de Varnhagen – Alexandre
Herculano.

Abstract: The boundaries between history and fiction enabled the writing of many nineteenth-
century texts that played with this conceptual dualism. Alexandre Herculano (1810-1877)
worked intensively towards this direction, creating a historical fiction characteristic of
Portuguese romanticism while working with historical objects and imagination. In the Francisco
Adolfo de Varnhagen’s (1816-1878) “Crônica do Descobrimento do Brasil” (1840) we also
noticed the presence of several characteristic features of this literature developed by Herculano.
By a parallel reading of the texts of both authors, we seek to understand the paths taken to the
construction of the nineteenth-century literary project, which laid the foundation for a
Lusitanian historical novel, and how these elements are developed in such works.
Keywords: Historical Imagination – Francisco Adolfo de Varnhagen – Alexandre Herculano.

Introdução

O século XIX legou uma profícua gama de trabalhos históricos. É comum


ouvirmos que aquele teria sido ‘o grande século da História’, devido ao grande interesse
despertado pela arte de Clio nas mais diversas formas: nas Artes, na Literatura, nas
construções arquitetônicas e, sobretudo, nos estudos teóricos e no estabelecimento da
História como uma disciplina consolidada.


Doutoranda em História – Programa de Pós-graduação em História – Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas – Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, CEP: 13083-970, Campinas – São Paulo
– Brasil. Bolsista: CAPES. Email: michelle.tasca@gmail.com.
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Revista História e Cultura, Franca-SP, v.3, n.1, p.217-231, 2014. ISSN: 2238-6270.
Nessa imensa relação de obras e escritores oitocentistas, trabalharemos aqui com
dois autores, cujas particularidades os tornaram grandes historiadores nacionais durante
o século XIX: Alexandre Herculano e Adolfo de Varnhagen.
Herculano, historiador ícone do Liberalismo Romântico português, escreveu a
História de Portugal, grande obra de sua vida, dividido entre os estudos históricos e a
paixão pela Literatura, dualismo que culminou na publicação de seus romances
históricos, gênero de que é considerado o introdutor em Portugal. Varnhagen, da mesma
forma, escreveu sua icônica História Geral do Brasil buscando as origens de sua nação
e de seu povo, objetivos semelhantes aos que nortearam a produção histórica de
Herculano, em Portugal. No presente artigo, analisaremos os pontos de intersecção entre
os autores a partir da Crônica do Descobrimento do Brasil, escrita por Varnhagen, em
1840, e que guarda muitas características em comum com os romances históricos
desenvolvidos por Herculano.

A Crônica do Descobrimento do Brasil e as Narrativas de Herculano

Alexandre Herculano (1810-1877) foi um escritor que se dedicou integralmente


ao projeto Romântico português, desenvolvendo de forma primorosa o gênero do
romance histórico, com todas as ressalvas e especificidades que o meio português
oitocentista requer. Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), por sua vez, seguiu
por outro caminho, e não podemos dizer que tenha uma obra considerável que possa ser
definida dentro dos termos do romance histórico. Sendo assim, por que nossos olhos se
voltam, no entanto, para um paralelo entre os dois escritores no que tange suas obras
literárias e que, num primeiro momento, encontram-se relativamente distanciadas no
que se refere ao desenvolvimento estilístico?
A justificativa está na própria “Crônica do Descobrimento do Brasil”. Embora
não possa ser designada propriamente como romance histórico por uma série de
motivos técnicos, como esclareceremos a seguir, a proposta de Varnhagen nesse
momento não se afasta sobremaneira dos intentos de Herculano, ao escrever seus
romances e narrativas. Ou seja, a ideia da construção de uma identidade nacional
brasileira, mesmo que a partir de um viés português e de forma institucionalizada, já que
Varnhagen se via ligado ao IHGB, pode ser aproximada aos intuitos de Herculano ao
escrever sua obra literária. Cada um a sua maneira, estavam preocupados com a
construção das origens da nacionalidade de seu país e, para isso, retornavam ao passado

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através de um acervo documental a que ambos tiveram acesso durante seus anos de
pesquisa nos arquivos europeus.
Desse modo, podemos observar a “Crônica do Descobrimento do Brasil” e as
narrativas de Herculano a partir de uma leitura paralela que parte dos propósitos de se
narrar um evento histórico fazendo uso de recursos ficcionais para recriar as cenas e as
personagens das Histórias portuguesa e brasileira.
Um problema que se coloca nessa análise comparada refere-se ao estilo seguido
por cada autor ao compor suas obras, sendo que algumas delas adotam mais
explicitamente as acepções do romance histórico oitocentista e, outras, apesar de não
comportarem tal denominação, fazem uso de diversos recursos inerentes a ele. Alguns
textos de Herculano, num primeiro momento, são de designação mais clara e podemos
considerar suas obras mais longas (O Bobo, Eurico o Presbítero e O Monge de Cistér)
como romances históricos, mesmo com os questionamentos feitos pelo próprio autor
como veremos a seguir. No entanto, nem suas narrativas nem a “Crônica do
Descobrimento do Brasil” podem ser classificadas de tal forma, sobretudo por não se
tratarem de romances no sentido estrito da palavra.
Em meio à vasta obra literária de Herculano, Varnhagen escreve sua “Crônica do
Descobrimento do Brasil”, no mesmo período, e seguindo a ideologia Romântica
desenvolvida no Panorama1, interessado em narrar a chegada da esquadra portuguesa
ao Novo Mundo, sob a perspectiva de um narrador bastante original na época: Pero Vaz
de Caminha.
Sem adentrar no desenvolvimento etimológico da palavra “crônica”, com a qual
Varnhagen designa seu texto, é valido ao menos conjecturar a abrangência do conceito.
Embora Massaud Moisés afirme que o termo tenha sido utilizado durante o século XIX
sem as conotações historicistas dos séculos anteriores, comportando um sentido
estritamente literário, a “Crônica do Descobrimento do Brasil” apresenta-se como uma
mescla entre a documentação utilizada por Varnhagen para escrevê-la e a imaginação
inserida para criar a ficção literária. Aproximando-se talvez do sentido comportado nos
séculos anteriores, quando teria estreitas ligações com a historiografia sem, no entanto,
deixar de apresentar traços da ficção literária (MOISES, 1997, p. 101-102). Ou, ainda,
como sugere Flora Süssekind, um misto de crônica e novela (SÜSSEKIND, 1990, p.
187).
A classificação dos textos foi uma questão que mereceu alguma atenção do
próprio Herculano, e se hoje nos é difícil dividir as obras de tempos anteriores em

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categorias a fim de melhor analisá-las, não era mais fácil ao escritor definir o que
intentava fazer em seu próprio trabalho. No prefácio a Eurico, o Presbítero Alexandre
Herculano se interroga quanto a sua classificação:

Sou eu o primeiro que não sei classificar este livro: nem isso me aflige
demasiado. Sem ambicionar para ele qualificação de poema em prosa
– que não é por certo – também vejo, como todos hão de ver, que não
é um romance histórico, ao menos conforme o creou o modelo e
desesperação de todos os romancistas, o imortal Scott. Pretendendo
fixar a ação que imaginei n’uma época de transição – a da morte do
império gothico, e do nascimento das sociedades modernas da
Peninsula, tive de luctar com a dificuldade de descrever sucessos e de
retratar homens, que se por um lado pertenciam a eras, que nas
recordações da Hespanha tenho por análogas aos tempos Heroicos da
Grecia, precediam imediatamente por outro a época a que, em rigor,
podemos chamar histórica, ao menos em relação ao romance. Desde a
primeira até a ultima pagina do meu pobre livro caminhei sempre por
estrada duvidosa traçada em terreno movediço; se o fiz com passos
firmes ou vacilantes, outros, que não eu, o dirão (HERCULANO,
1867, p. 171).

O intuito de aproximar ou não seu escrito do romance histórico, assim como a


referência ao modelo scottiano e a aparente incerteza quanto à sua classificação,
evidenciada pelo título da nota: “Chronica-poema, lenda, ou o que quer que seja”,
refletem o conhecimento de Herculano sobre a obra do escritor inglês tido, desde então,
como base para essa categoria de romance. Ao visualizar sua obra ao lado dos textos de
Walter Scott, titubeia quanto à melhor forma de designar Eurico o Presbítero, não por
não saber de fato como classificá-lo, mas para inserir, através deste recurso retórico, seu
projeto de escrita de um romance histórico fora dos moldes desenvolvido por Scott.
Esses questionamentos o levam a uma tentativa de definição para justificar, a princípio,
o seu não-enquadramento:

O romance histórico, como o concebeu Walter Scott, só é possível


áquem do oitavo – talvez áquem do décimo século; porque só áquem
dessa data, a vida em família, o homem sinceramente homem, e não
ensaiado e trajado para aparecer na praça publica, se nos vae pouco a
pouco revelando. As fórmas e o estylo que convem aos tempos
wisigothicos seriam desde então absurdos, e parece-me, até, que
ridiculos (HERCULANO, 1867, p. 172).

Um dos quesitos para a existência do romance histórico aos moldes de Walter


Scott seria, portanto, a datação do enredo com base documental, ou seja, não seria
possível elaborar uma obra de tal gênero sobre um tempo anterior ao oitavo ou décimo
século, por não se ter conhecimento da vida íntima desse povo.

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O romance Eurico, o Presbítero se passa numa época de transição entre o fim do
império gótico e o nascimento das sociedades modernas da Península Ibérica. Embora
talvez se conhecesse melhor a sociedade visigótica do que a de Oviedo e Leão durante a
restauração cristã, no que se refere às leis, instituições e traços materiais e intelectuais,
seria para Herculano impossível reproduzir a vida desses povos na forma do romance
histórico tradicional, por se conhecer apenas a vida pública dos visigodos, mas não a
vida particular dessa sociedade.

Dos godos restam-nos códigos, história, literatura, monumentos


escriptos de todo o gênero, mas os códigos e a literatura são reflexos
mais ou menos pálidos das leis e erudição do império romano, e a
historia desconhece o povo. O gothicismo hespanhol ao primeiro
aspecto parece mover-se. Palpamo-lo: é uma estrutura de mármore,
fria, imóvel, hirta. As portas das habitações dos cidadãos cerram-nas
os sete sellos do Apocalypse: são a campa da família: a família goda é
para nós como se nunca existira (HERCULANO, 1867, p. 172).

Nesse sentido, vamos ao encontro das assertivas de Perry Anderson, de acordo


com o qual o romance histórico em sua definição clássica seria “uma épica que descreve
a transformação da vida popular através de um conjunto de tipos humanos
característicos, cujas vidas são remodeladas pelo vagalhão das forças sociais”
(ANDERSON, 2007, p. 205). Essa característica pode ser observada na descrição que
Herculano faz do romance histórico em Eurico, o Presbítero. Quando diz que o
romance histórico não pode ser escrito sobre o período visigótico é porque a História
dessa época “desconhece o povo”: “As portas das habitações dos cidadãos cerram-nas
os setes sellos do Apocalypse: são a campa da família: a família goda é para nós como
se nunca existira” (HERCULANO, 1867, p. 172).
Ao caracterizar o romance histórico a partir do conhecimento da vida popular,
apenas apreensível a partir do século VIII, Herculano distingue a forma literária
utilizada de acordo com o recorte temporal da História peninsular que se pretende tratar,
ou seja, a antiga Hespanha, a romano-germânica e a moderna. Como a obra se situa num
momento de transição, ele também teria intentado operar com os diferentes estilos ao
mesmo tempo, ou seja, a obra literária referente a essa mudança da Hespanha romano-
germânica para a Hespanha moderna passando pela conquista árabe deveria combinar as
duas extremidades a que se prende:

[...] fazer sentir que o descendente de Theoderik ou de Leuwighild


será o ascendente do Cid ou do Lidador; que o heroe se vae

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transformar em cavaleiro; que o servo, entidade duvidosa entre
homem e cousa, começa a converter-se em altivo e irrequieto burguez.
E a fórma e o estylo devem aproximar-se mais ou menos d’um ou
d’outro extremo, conforme a época em que lançamos a nossa
concepção está mais vizinha ou mais remota da que vae deixando
d’existir, ou da que vem surgindo. A dificultosa mistura dessas cores
na palheta do artista nenhuma doutrina, nenhum preceito lh’a diz:
ensinar-lh’a-há o instincto. Tive eu esse instincto? – É mais provável o
não que o sim. – Se a arte fôra fácil para todos os que tentam possuí-
la, não nos faltariam artistas! (HERCULANO, 1867, p. 172).

Herculano tem clara sua ideia de romance histórico, com base no modelo inglês
que se tornava muito conhecido em Portugal, sobretudo pelas traduções para o
português das obras de Scott que já eram constantes, principalmente no Panorama.
Embora resista a aceitar sua obra como romance histórico dentro de tais padrões, funda
um novo conceito para o gênero, desenvolvido com as características lusitanas. Tanto
que, na “Advertência” ao primeiro volume das Lendas e Narrativas publicado em 1851,
Herculano se refere aos textos que virão a seguir como as primeiras tentativas de
romance histórico em língua portuguesa:

Os pequenos romances e narrativas contidos neste volume foram


impressos, em epochas mais ou menos remotas, nas duas publicações
periódicas o Panorama e a Illustração, bem como o foram nestes ou
em outros jornaes os que tem de formar o segundo volume das Lendas
e Narrativas; collecção que, se trabalhos mais arduos o consentirem,
será continuada com alguns outros apenas esboçados ou inéditos no
todo ou em parte, que ainda restam ente os manuscriptos do autor.
Corrigindo-os e publicando-os de novo, para se ajunctarem a
composições mais extensas e menos imperfeitas, que já viram a luz
publica em volumes separados, elle quis apenas preservar do
esquecimento, a que por via de regra são condemnados a mais cedo ou
mais tarde os escriptos inseridos nas columnas das publicações
periódicas, as primeiras tentativas do romance historico que se fizeram
na lingua portugueza. Monumentos dos esforços do auctor para
introduzir na litteratura nacional um gênero amplamente cultivado,
nestes nossos tempos, em todos os paizes da Europa, é este o
principal, ou talvez o unico merecimento delles, o titulo de que podem
valer-se para não serem entregues de todo ao esquecimento
(HERCULANO, 1851, p. V-VI).

Essas reflexões patentes em Eurico, o Presbítero e nas Lendas e Narrativas,


podem ser ampliadas também para outros escritos de Herculano, tais como O Monge de
Cistér, que compõe a segunda parte do Monasticon, e também O Bobo, obras escritas de
acordo com a mesma ideologia Romântica da primeira metade do oitocentos. Enfim,
romance histórico ou não, tanto os romances e as narrativas de Herculano quanto a

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“Crônica do Descobrimento do Brasil” de Varnhagen seguem o mesmo princípio
constitutivo de aliar a documentação histórica a recursos imaginários.

Um Paralelo Histórico-Literário

Nesse momento nos deteremos, portanto, na discussão sobre a forma como os


autores constróem sua Literatura a partir da mesma documentação utilizada para
escrever análises historiográficas, e a forma como a ficção e a imaginação interagem
com a realidade dentro da obra literária. Coloca-se em cheque a concepção de uma
verdade histórica nos moldes como era concebida durante o século XIX e favorece a
criação de um relato verossímil, necessário para a transmissão das lendas e tradições da
nação, que invariavelmente eram objetos de tais narrativas.
Alexandre Herculano escreveu muitos textos de ficção histórica ao longo das
décadas de 1830 e 1840, mas foi em “O Bobo”2 (1843) que elegeu como tema a
constituição de Portugal como um território independente, onde localiza o berço da
nação portuguesa. A narrativa, ambientada no século XII, retrata os últimos
acontecimentos que levaram Afonso Henriques a assumir o poder e tornar Portugal uma
província independente culminando na Batalha de S. Mamede, em Guimarães, onde
vence as tropas aliadas a sua mãe, D. Teresa. Apresenta, assim, um misto entre
personagens que tiveram uma existência histórica, como o próprio Afonso Henriques,
sua mãe, D. Tereza, Fernando Perez e Gonçalo Mendes da Maia, dentre outros, ao lado
de caracteres inventados, a exemplo do triângulo amoroso composto por Garcia
Bermudes, Egas Moniz e Dulce, e o próprio bobo da corte D. Bibas, que dá o nome à
narrativa, e que é a peça-chave para o desenrolar dos acontecimentos.
Varnhagen, por sua vez, narra a origem da nação brasileira em sua “Crônica do
Descobrimento do Brasil”, publicada também no Panorama sob a forma de folhetim,
3
três anos antes de “O Bobo”, entre 18 de janeiro e 28 de março de 1840. Da mesma
forma como a Literatura de Herculano se baseava na documentação sobre a História
portuguesa, a “Crônica do Descobrimento do Brasil” relata de forma romanceada a
chegada da armada de Pedro Álvares Cabral nas terras que viriam a ser o Brasil,
fazendo uso das mesmas fontes encontradas por Varnhagen nos seus anos de pesquisa
nos arquivos portugueses. E que foi ao mesmo tempo objeto de análise e atenção
historiográfica, com destaque para a carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão oficial da
esquadra, ao Rei de Portugal. Essa fonte servirá de base tanto para a elaboração de sua

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crônica, quanto da História Geral do Brasil (1854-1857), sendo que o grande
diferencial da primeira está na recriação ficcional de um relato documentado, seguindo
o mesmo processo de Herculano, mesclando episódios reais e personagens referenciais.
Como, por exemplo, o próprio Pero Vaz de Caminha e Pedro Álvares Cabral, com
personagens ficcionais e cenas inventadas, tais como os indígenas que encontra no novo
território e outros membros da tripulação da esquadra.
Embora existam distinções entre o fazer histórico e literário, quando Varnhagen e
Herculano escrevem sua Literatura ficcional, não deixam completamente de lado sua
perspectiva de historiadores. No entanto, se dedicam a um trabalho com propósitos
distintos, que lhes exige recursos diferenciados e uma capacidade de abstração da
realidade impensável quando o objetivo era um trabalho historiográfico, o que justifica
o valor que continuam a dar às fontes que alicerçam a narração. No caso de Varnhagen,
além da carta de Pero Vaz de Caminha, que, como salienta, estaria conservada na Torre
do Tombo, local de muitas pesquisas tanto suas quanto de Herculano, promove paralelo
também com outros documentos relativos ao período narrado, como aqueles de:
Castanheda, se referindo provavelmente a Fernão Lopes de Castanheda, autor de
História do descobrimento e conquista da Índia pelos portugueses, João de Barros,
Damião de Góis, Gaspar Correa, autor de Lendas das Índias e Gabriel Soares de Sousa.
Todos eles escritores do século XVI, cujos interesses estavam voltados para os relatos
de viagem e estudo das novas terras descobertas. Dentre todas as fontes citadas,
interessa-lhe, sobremaneira, a carta de Caminha por um motivo muito claro: a
veracidade do escrito, dotado da autoridade de uma “testemunha ocular”, “sendo escrita
no mesmo local e ocasião em que se passavam os fatos”:

Cedo veio a noite de 22 de Abril de 1500 em que se realizou esse


descubrimento, segundo a narração ingênua e circunstanciada, feita a
elrei por Pero Vaz de Caminha, que ia por escrivão para a feitoria de
Calecut, e que sendo testemunha ocular, tem tambem a seu favor ser
esta sua narração uma carta particular a elrei em que até lhe fala de
negócios domensticos. E sendo escripta no mesmo local e occasião em
que se passavam os factos, e não depois de decorridos tempos em que
algumas miudezas poderiam ter escapado, é de tão ponderosa
auctoridade que estando, de mais, em harmonia com a narração do
piloto portuguez em Ramusio, deve em nossa opinião supplantar as
dos mais acreditados escriptores que não foram coevos, incluindo
nestes Castanheda, Barros, Goes, e até o mesmo Gaspar Correa, a
quem seguiremos em muitos outros pontos, por ser o escriptor
verdadeiramente original dos fastos da Índia nos primeiros doze
annos. Deste documento de Pero Vaz, já impresso, conserva-se o
veneravel original na Torre do Tombo. É o primeiro escripto de Penna
portugueza (21) no Novo-mundo, e nesta historia o seguimos por
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vezes textualmente. Quanto pois á data do descubrimento dizemos
afoitamente que erram os que seguindo a Marco, Gaspar Correa,
Barros e Soares querem, deduzindo-a do nome dado á terra, que fosse
a 3 de Maio, em que a igreja solemnisa a festa da Santa-cruz. Esta
opinião errônea produziu um anachronismo de conseqüência, que até
em actos públicos voga indevidamente pelo Brazil (VARNHAGEN,
1840, p. 21-22).

A mesma importância dada ao relato contemporâneo ao acontecimento retratado


aparece em outra passagem mais ao final da obra. Quando a esquadra retorna a Portugal,
em meio às grandes festas promovidas pela descoberta da nova terra, Varnhagen cita
que um importante astrólogo fora consultado para dar seu parecer sobre a novidade “... e
achou que ella havia de ser opulenta e servir de refugio e abrigo da gente portuguesa”, e
afiança para aqueles que não dessem crédito a tal profecia: “Quem duvidar desta
particularidade curiosa, saiba que a conta um escriptor, que viveu no mesmo século, e
que a invasão francesa foi causa de que o astrólogo não ficasse por impostor”
(VARNHAGEN, 1840, p. 103). A diferença dessa passagem está em não citar o nome
do escritor, se fiando apenas no testemunho de alguém que viveu no mesmo período
para dotar o fato de autoridade inquestionável.4
Não contente com a minúcia com que apresenta suas fontes, questionando mesmo
a opinião de alguns escritores acerca da data do descobrimento, Varnhagen cita o
trabalho de João Pedro Ribeiro, estudioso importante no desenvolvimento da crítica
documental em Portugal, a fim de confirmar suas informações:

Já no altar luziam accesas as velas e tochas: pouco tardaram os padres,


que se estavam revestindo. Segundo nos consta por documentos e
provas confirmadas pela arte de verificar as datas, e reconhecidas
valiosas pelo grande critico J. Pedro Ribeiro, a vestimenta era branca,
bem como o há-de ser este anno neste dia (VARNHAGEN, 1840, p.
44).

Quando observamos a “Crônica do Descobrimento do Brasil” ao lado dos


mesmos eventos narrados na História Geral do Brasil vemos que, em certas partes,
Varnhagen as diferencia muito pouco, apresentando inclusive trechos muito parecidos
nas duas obras, mesmo que cada uma seguisse um gênero particular. Dois pontos
merecem ser ressaltados: o primeiro é a caracterização de Caminha como um cronista
ingênuo apresentada na obra historiográfica: “Dispensa-nos dessa tarefa o minucioso
chronista deste descobrimento, o ingênuo Pero Vaz de Caminha, cuja narrativa epistolar
dirigida ao próprio rei, destas plagas virgens em tudo, tanto nos encanta”
(VARNHAGEN, 1854, p. 14). E na crônica: “segundo a narração ingênua e

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circunstanciada, feita a elrei por Pero Vaz de Caminha” (VARNHAGEN, 1840, p. 21).
Outro exemplo concomitante seria a transcrição da mesma passagem da carta de Pero
Vaz de Caminha nas duas obras:

O capitão, quando elles vieram, estava assentado em uma cadeira,


com uma altatifa aos pés por estrado, e bem vestido, com um collar de
ouro mui grande ao pescoço; e Sancho de Toar, e Simão de Miranda, e
Nicoláo Coelho, e Ayres Corrêa, e nós outros, que aqui na náo com
elle imos, —— assentados no chão por essa alcatifa. Acenderam
tochas; e entraram; e não fizeram nenhuma menção de corlezia, nem
de falar ao capitão, nem a ninguém. Pero um delles poz olho no collar
do capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para
o collar, como que nos dizia que havia em terra ouro. E também viu
ura castiçal de prata, e assim mesmo acenava para a terra e então para
o castiçal, como que havia também prata. Mostraram-lh«s um
papagaio pardo, que aqui o capitão traz, tomaram-no logo na mão e
acenaram para a terra, como que os havia ahi. Mostraram-lhes uma
gallinha; quasi haviam medo delia e não lhe quizeram pôr a mão; e
depois a tomaram como espantados. Deram-lhes ali de comer pão e
pescado cozido, confeitos, farteis, mel e figos passados; não queriam
comer daquillo quasi nada, e alguma cousa, se a provavam, lançavam-
na logo fora. Trouxeram-lhes vinho por uma taça; pozeram-lhes assim
á boca tam-a-lavez, e não gostaram delle nada, nem o quizeram mais.
Trouveram-lhes água por uma albarrada; tomaram delia senhos
bocados, e não beberam; somente lavaram as bocas e lançaram fora.
Viu um delles umas contas de rosário brancas; acenou que lhas
dessem, e folgou muito com ellas, e lançou-as ao pescoço. E depois
tirou-as e embrulhou-as no braço; e acenava para a terra, e então pára
as contas e para o collar do capitão, como que dariam ouro por
aquillo. Isto tomávamos nós assim pelo desejarmos, mas se elle queria
dizer que levaria as contas e mais o collar, isso não queríamos nós
entender; porque. lh'o não havíamos de dar. E depois tornou as contas
a quem lh'as deu. E então estiraram-se assim de costas na alcatifa a
dormir... O capitão lhes mandou pôr ás suas cabeças senhos coxins...,
e lançaram-lhes um manto em cima. E elles consentiram e jouveram e
dormiram (VARNHAGEN, 1840, p. 34).

Muitos desses recursos são utilizados por Herculano em seus escritos, sobretudo
no que se refere aos documentos de que lança mão ao elaborar suas obras sobre a
História de Portugal, que foram também a base para a escrita de seus romances
históricos e demais narrativas do gênero, ou seja, o autor abordou o mesmo evento em
diversos textos que seguiam propósitos distintos. No caso das obras analisadas, o
processo de Independência do Reino português efetivado por Afonso Henriques, ao
tomar o poder das mãos de sua mãe, D. Teresa - que causava grande desgosto a seus
súditos por governar ao lado de seu cônjuge, Fernando Peres de Trava. Assim como as
batalhas travadas contra D. Urraca, rainha de Leão e Castela e herdeira de Afonso VI,
por questões territoriais, são passagens da História portuguesa que constam tanto na

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História de Portugal e nas “Cartas sobre a História de Portugal”5 quanto nas narrativas
literárias como “O Bobo” e “O Bispo Negro”.
Nas “Cartas sobre a História de Portugal”, Herculano aborda os acontecimentos
que levaram à origem e Independência de Portugal e sua separação do Reino leonês a
partir de uma perspectiva crítica. O autor questiona a validade das fontes em que os
historiadores seus coetâneos teriam baseado a versão comumente aceita da transmissão
da terra através do casamento do príncipe Henrique de Borgonha com D. Teresa, filha
de Afonso VI, que recebera como dote a terra de Portugal. Ao mesmo tempo, coloca em
cheque o próprio costume de conceder a terra em dote para a filha que se casava.

Se Portugal foi dado em dote a D. Theresa com direito hereditario,


segundo affirma a chronica latina do imperador Affonso Raimundez,
provindo d'essa circumstancia o governo de Henrique, como se ha-de
suppor que D. Urraca, filha mais velha e incontestavelmente legitima,
não recebesse em dote tambem, jure haereditario, as terras que seu
marido governou? E se assim foi, como e porque se destruiu em parte
este direito, dando em dote de outra filha uma porção do que já era
dote de D. Urraca, e isto sem que Raimundo se queixasse, antes
fazendo pactos de concordia e mútua alliança, como o que fez com o
conde Henrique? (HERCULANO, s.d., p. 53).

Preocupado em atingir a versão mais exata possível dos acontecimentos,


Herculano discute não apenas a visão corrente dos historiadores coetâneos, mas também
a validade das fontes que embasavam tais discursos.

Ajunte-se a isso que d'esta historia apenas restavam copias incorrectas


e incompletas quando, depois de Berganza, a publicou Flores, e que
ella passou pelas mãos do celebre falsario, consocio de Fr. Bernardo
de Brito, o padre Higuera[17]. Será portanto bastante por si só para
dissolver as dúvidas apontadas? Aconselha-lo-ha a boa critica?
Parece-me que não (HERCULANO, s.d., p. 57).

Da mesma forma, o primeiro livro da História de Portugal é inteiramente


dedicado ao mesmo processo de criação do Reino de Portugal, partindo do
estabelecimento do Condado portucalense por Afonso VI e a transferência do governo
ao seu genro Henrique, esposo de D. Urraca e culminando no domínio estabelecido por
Afonso Henriques. Todo esse primeiro tomo da grande obra histórica de Herculano dá o
tom inicial em “O Bispo Negro” e é resumido nas primeiras páginas de “O Bobo”. A
narração desta última obra inicia já com a contextualização do ambiente histórico em
que toda a ação do romance irá se desenvolver, ou seja, a morte de Afonso VI, rei de
Leão e Castela e a necessidade de encontrar um marido para sua filha mais velha, D.
Urraca, que fosse digno de substituí-lo à frente do Reino:
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A morte de Affonso 6° de Leao e Castella produziu nos estados
christãos da Hespanha acontecimentos ainda mais graves do que os
previstos por elle, no momento em que ia trocar a cota e a cervilheira
de guerra pela mortalha pacifica do sepulchro, que o recebeu no
mosteiro de S. Facundo ou Sahagun. O gênio inquieto dos barões
leonezes, gallegos e castelhanos, facilmente achou pretextos, para dar
largas ás suas ambições e vinganças, na violenta situação política em
que o príncipe moribundo collocara o paiz. Costumado a considerar o
valor brilhante, a audácia desmesurada, o phrenesi das batalhas e
conquistas, como o primeiro dote de qualquer monarcha, e achando-se
orphão do único filho que o céu lhe concedêra – o infante D. Sancho
morto em annos viçosos no infeliz conflicto d’Ucles – Affonso
alongava os olhos pelas províncias do império, buscando um homem
cujo braço fosse assaz firme para fazer reluzir o seu montante ao sol
dos combates, e cuja fronte fosse assaz robusta para não vergar sob o
peso do seu diadema de ferro. Era mister escolher um marido para D.
Urraca sua filha mais velha, viúva do conde de Galliza Raymundo;
porque a ella pertencia o throno por um costume introduzido a
despeito das leis gothicas, que davam aos grandes e homens livres o
direito d’eleger os reis. Entre os ricos-homens mais illustres dos seus
vastos estados nenhum achou o velho digno de tão altos destinos.
Affonso rei d’Aragão tinha, porem, todos os predicados que o altivo
monarcha entendia serem necessários ao primeiro dos defensores da
cruz, e foi a este que no seu leito de agonia desejou que D. Urraca
desse a mão d’esposa, apenas succedesse no throno. Assim esperava
por um lado que a severidade e energia do novo príncipe contivesse as
perturbações intestinas, e que o seu esforço não deixasse folgar os
árabes com a noticia da morte daquelle que por tantos annos lhes fora
flagello e destruição. Os acontecimentos posteriores provaram,
todavia, que Affonso 6° inteiramente se enganara [...] Mas a sua
viúva, a bastarda de Afonso 6°, era digna do ambicioso e ousado
borgonhez. A leoa defendeu o antro, onde já não se ouvia o rugido de
seu fero senhor, com a mesma energia e esforço, de que elle lhe dera
tão repetidos exemplos. Durante quinze annos luctou por conservar
intacta a independência da terra que lhe chamava rainha, e quando o
seu filho lhe tirou das mãos a herança paterna, só havia um anno que a
altiva dona dobrara, até certo ponto, a cerviz á fortuna do jovem herói
Affonso Raimundez. Mas esta pedra preciosa, arrancada à força da
coroa leoneza, nunca mais devia tornar a engastar-se nella
(HERCULANO, 1843, p. 10-11).

Essas passagens não seriam mais do que a preparação para os acontecimentos que
levarão à separação de Portugal, já que D. Teresa, ao se relacionar com Fernando Peres,
Conde de Trava, dispõe-se, pela vontade do marido, a curvar-se ao jugo de Leão e
Castela e abrir mão da independência de seu território pela qual tanto lutava
anteriormente. Tal episódio provoca o descontentamento dos Barões que irão se unir a
seu filho, Afonso Henriques, na luta pela Independência do que virá a ser o Reino
português.

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A trama do romance, portanto, se desenvolve nesse breve limiar da História
portuguesa entre o governo de D. Teresa ao lado do Conde de Trava, entrando em
conflito com Afonso Henriques, a preparação da resistência ao poder de Leão e Castela,
e a vitória do Infante sobre sua mãe, na batalha de S. Mamede, marco da instauração do
Reino português como território independente. Ou seja, é o mesmo evento discutido nas
“Cartas Sobre a História de Portugal” e na História de Portugal, mas sem a
preocupação de se determinar a validade ou não da transmissão de terras e direitos de
hereditariedade e a veracidade das fontes documentais.
Diferente da forma como Varnhagen aborda a História em sua “Crônica do
Descobrimento do Brasil”, discutindo acerca das fontes mais fidedignas e apresentando
trechos documentais, Herculano atua de maneira mais sutil, narrando no corpo do texto
todo o episódio histórico que deseja ter como base. Contudo, não gasta linhas a fio
discutindo versões de historiadores e as fontes utilizadas, a exemplo de como procede,
por exemplo, nas “Cartas sobre a História de Portugal”, ao problematizar o direito de
herança e as versões históricas mais aceitas pelos historiadores em geral. Sua
preocupação com as fontes e esclarecimentos sobre certos termos utilizados, que
porventura remetam a um tempo demasiadamente remoto e outras questões do gênero
aparecem nas notas de pé de página, e refletem as preocupações eruditas do autor. Mas
como ele mesmo assevera, a ausência de referências deve-se a uma opção estilística, já
que se trata de um romance e não de um trabalho teórico, o que nem por isso torna sua
obra totalmente desprovida de uma perspectiva histórica:

Fique dito por uma vez que todos os nomes que empregamos, scenas
que descrevemos, costumes que pintamos, são rigorosamente
históricos. Fácil nos fora sumir este romance em um pélago de
citações; mas falece-nos a fúria da erudição. E não seria ella ridícula
no humilde historiador d’um humilíssimo truão? (HERCULANO,
1843, p. 37).

A utilização de temática histórica e o embasamento da narrativa em


documentação primária, aliados aos comentários críticos e à interlocução com
historiadores reconhecidos são recursos empregados tanto por Herculano quanto por
Varnhagen para sustentar o elemento de realidade dentro do texto literário. Dessa forma,
uma mesma gama documental era utilizada para construir obras de caráter distinto,
compondo, a partir da Literatura, um universo em que a realidade interagia com a
imaginação, criando uma forma de transmissão do conhecimento que não pertencia mais
ao campo da verdade, mas do verossímil.

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Referências Bibliográficas

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220, março de 2007.
HERCULANO, Alexandre. A Dama Pé-de-Cabra. In: Lendas e Narrativas. 2 ed.
Lisboa: Em casa da Viúva Bertrand e Filhos, 1859. Tomo II.
HERCULANO, Alexandre. Cartas sobre a História de Portugal. In: Opúsculos. 5 ed.
Lisboa: Livraria Bertrand, s.d.. Tomo V.
HERCULANO, Alexandre. Eurico o Presbytero. In: HERCULANO, Alexandre. O
Monasticon. Leipzig: F. A. Brockhaus, 1867.
HERCULANO, Alexandre. Lendas e Narrativas. Lisboa: Em Casa da Viúva Bertrand e
Filhos, 1851, Tomo I.
HERCULANO, Alexandre. O Bobo. In: O Panorama – Jornal Litterario e Instructivo
da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis. Lisboa, n. 55, p. 10-12, 14 jan.
1843.
HERCULANO, Alexandre. O Bobo. In: O Panorama – Jornal Litterario e Instructivo
da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis. Lisboa, n. 58, p. 37-40, 4 fev.
1843.
MOISES, Massaud. A Criação Literária – Prosa II. São Paulo: Cultrix, 1997.
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil Não é Longe Daqui: O Narrador, A Viagem. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
VARNHAGEN, Francisco A. de. Chronica do descubrimento do Brazil. In: O
Panorama – Jornal Instructivo e Litterario da Sociedade Propagadora dos
Conhecimentos Uteis. Lisboa, n. 142, p. 21-22, 18 jan. 1840.
______. Chronica do descubrimento do Brazil. In: O Panorama – Jornal Instructivo e
Litterario da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis. Lisboa, n. 144, p. 33-
35, 1 fev. 1840.
______. Chronica do descubrimento do Brazil. In: O Panorama – Jornal Instructivo e
Litterario da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis. Lisboa, n. 145, p. 43-
45, 8 fev. 1840.
______. Chronica do descubrimento do Brazil. In: O Panorama – Jornal Instructivo e
Litterario da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis. Lisboa, n.152, p. 101-
104, 28 mar. 1840.
______. História Geral do Brazil. Rio de Janeiro: Em Caza de E. e H. Laemmert, 1854.
Tomo I.

Notas

1
O Panorama foi criado em 1837 e composto por cinco séries de publicação ao longo dos anos de sua
existência: a primeira datada de maio de 1837 a dezembro de 1841 (5 volumes), a segunda de janeiro de
1842 a dezembro de 1844 (3 volumes), a terceira de setembro de 1846 a 1856 (5 volumes), a quarta que
teve início em janeiro de 1857 e a quinta e última datada de 1866. Esteve sob a direção de Alexandre
Herculano durante os três primeiros anos de existência e foi um dos principais responsáveis pela
divulgação do romantismo em Portugal.
2
Optamos por apresentar o título da obra em itálico (O Bobo) quando nos referirmos ao romance em si, e
entre aspas (“O Bobo”) quando nossos objetos forem as publicações no Panorama, que são as fontes

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utilizadas na análise. Em 1843 o texto é publicado no Panorama inicialmente na forma de folhetim,
distribuído ao longo de 15 números, iniciado em 14 de janeiro e finalizado no dia 5 de agosto. Mas, a
edição como obra única saiu apenas muitos anos depois, em 1878, após a morte do autor, ocorrida em
13 de setembro do ano anterior.
3
Posteriormente publicada no Diário do Rio de Janeiro com o nome de “O Descobrimento do Brasil:
crônica do fim do 15º século” entre 10 e 23 de junho do mesmo ano (SÜSSEKIND, 1990, p. 184).
4
Recurso que também é utilizado por Herculano em diversas ocasiões, como no início de “A Dama do
Pé-de-Cabra”, em que adverte: “Vós os que não credes em bruxas, nem em almas penadas, nem nas
tropelias de Satanás, assentae-vos aqui ao lar, bem junctos ao pé de mim, e contar-vos-hei a historia de
D. Diogo Lopes, senhor de Biscaia. E não me digam no fim: - não pode ser.”- Pois eu sei cá inventar
cousas destas? Se a conto, é porque a li n’um livro muito velho, quasi tão velho como o nosso Portugal.
E o auctor do livro velho leu-a algures ou ouviu-a contar, que é o mesmo, a algum jogral em seus
cantares. É uma tradição veneranda; e quem descrê das tradições lá irá para onde o pague”
(HERCULANO 1859, p. 7).
5
As Cartas sobre a História de Portugal foram escritas por Herculano à Revista Universal Lisbonense
entre 1842 e 1843, tratando de uma gama de temas caros à constituição da história de seu país,
sobretudo dos primórdios da formação da nação portuguesa. Compõem um total de cinco cartas, com os
títulos: “Sobre a História de Portugal” (Cartas 1 e 2); “Separação de Portugal do Reino de Leão”;
“Necessidade de uma nova divisão de épocas. Falso aspecto da História”; “Ciclos ou grandes divisões
históricas” e que posteriormente foram reunidas no Tomo V – “Controvérsias e Estudos Históricos”,
dos Opúsculos. Nessas cartas o autor delineia tanto a forma como concebia a história, críticas aos
trabalhos de estudiosos anteriores, como a maneira de interrogar os documentos e discussões acerca de
fatos e eventos tidos a priori como certos e incontestáveis. Dessa forma, também temas como Nação e
memória constituem pontos cruciais de sua abordagem.

Artigo recebido em 10/08/2013. Aprovado em 01/10/2013.

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MANUELITA, ENTRE MYTHE LITTERAIRE ET
RECIT HISTORIQUE

MANUELITA, ENTRE O MITO LITERÁRIO E A


NARRATIVA HISTÓRICA

Nelly ANDRÉ

Résumé: Bien souvent absentes des grands débats sur l’indépendance, absentes des livres
historiques et éducatifs, les femmes latino-américaines ont néanmoins joué un rôle dans les
luttes pour l’émancipation de leurs pays. Les commémorations du bicentenaire de
l’indépendance semblent revendiquer cette nouvelle image féminine.Parmi les différentes
images qui construisent l’idée de l’indépendance, celle de la "libératrice du libérateur" est
prédominante. Bien souvent son engagement politique a été passé sous silence et il faut attendre
la première moitié du XXe siècle pour voir apparaître dans les récits l’importance de son rôle
dans l’indépendance. Comment la littérature du XXe siècle aborde la complexité de ce
personnage? Manuela Sáenz apparaît-elle mythifiée ou diabolisée? Comment les propres
discours politiques utilisent l’image sublimée de Manuela Sáenz pour servir leur propos?
Mots clés: Femme – Histoire – Littérature.

Resumo: Na maioria das vezes ausente dos grandes debates sobre a independência, ausentes
dos livros históricos e educacionais, as mulheres latino-americanas desempenharam um papel
nas lutas pela emancipação de seus países. As comemorações do bicentenário da independência
parecem afirmar esta imagem feminina. Entre as várias imagens que constroem a ideia de
independência, a de "libertadora do libertador" é prevalente. Na maioria das vezes o seu
compromisso político foi esquecido e é necessário esperar a primeira metade do século XX para
ver aparecer a importância de seu papel na independência. Como é que a literatura do século
XX se aproxima da complexidade desse personagem? Manuela Sáenz aparece mitificada ou
diabolizada? Como os discursos políticos usaram a imagem sublimada de Manuela Sáenz para
servir ao seu objetivo?
Palavras-chave: Mulheres – História – Literatura.

Pero ¡qué difícil volver a ordenar la casa, después de la larga


expedición de gloria y derroche vital por todos los caminos de
América! (SALAS, Comprensión de Venezuela, 2009)1

Hay pasados que no terminan de irse; el pasado venezolano es uno de


ellos. La gloria de la Independencia, siempre dominante en nuestro
imaginario, extiende su sombra de presente perpetuo. Como quiera
que avancemos, el pasado nos espera. El futuro siempre será,
paradójicamente, pretérito. Un tiempo heroico, plagado de guerras,
revueltas y asonadas; […]. Los héroes venezolanos no descansan en el
Panteón Nacional; por el contrario, andan sueltos (TORRES, 2009, p.
11).


Docteure en littérature hispano-américaine – l’Université d’Orléans. Membre principale du groupe de
recherche SAL (Séminaire Amérique Latine), composante du laboratoire du CRIMIC – Université
Sorbonne – Paris IV. E-mail: nellyandre@gmx.fr

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La compréhension du passé et son impact sur le présent ont longtemps été au
Venezuela patrimoine des historiens. L’apport récent d’autres disciplines, comme la
Littérature, permet une analyse multiple et pluridisciplinaire de la construction
imaginaire du passé dans la société, la propre mémoire des Vénézuéliens et de tous les
Latino-américains.
Les historiens ont fait des guerres d’indépendance la période historique la plus
marquante de l’Amérique Latine, comme l’affirme Germán Carrera Damas:

La conceptualización del heroísmo, tanto en lo social como en lo


individual, por obra de la ideologización del pasado histórico, ha
llevado a concentrar ese valor en los hechos de la guerra de
Independencia, en las tres primeras décadas del siglo XIX. En
comparación con ella todas las luchas posteriores son vistas como
degradación y por consiguiente no se les reconoce como teatro del
heroísmo (CARRERA DAMAS, 1988, p.58).

Parmi les différentes images qui construisent l’idée de l’indépendance du


Venezuela, celle de la "Libératrice du Libérateur" est prédominante. “[…] en hora
oportuna nace la leyenda heroica de Nuestra América en la vida y muerte de Manuela
Sáenz y Simón Bolívar. […] esta leyenda la escribe la historia misma […]" (SÁENZ,
1993). Durant le XIXe siècle, selon les tendances pro-bolivariennes ou anti-
bolivariennes des historiens ou chroniqueurs, Manuela Sáenz a été définie comme
l’amoureuse altruiste qui a sacrifié sa vie pour accompagner son amant ou comme la
libertine sans morale engagée dans les affaires d’Etat. Sa vie est source d’inspiration et
déchaîne les passions depuis toujours. “Manuela fue mujer, amante, compañera, amiga,
guerrera, estratega, cómplice, encubridora, coronela, generala, caballeresa del sol…
bordadora, tierna hacedora que acunaba los sueños y las realidades del amor y de la
libertad” (EMBAJADA DE LA REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2011, p. 13).
Bien souvent son engagement politique a été passé sous silence et il faut attendre
la première moitié du XXe siècle pour voir apparaître dans les récits l’importance de
son rôle dans l’indépendance. Elle devient une héroïne et apparaît aujourd’hui dans le
nouveau salon des libératrices de l’Université Andine. L’évocation de son nom justifie
les campagnes actuelles menées en faveur de la femme et de la société, notamment lors
des discours de Rafael Correa Delgado en 2007 et 2010.
Ainsi, comment la Littérature du XXe siècle aborde-t-elle la complexité de ce
personnage? Manuela Sáenz apparaît-elle mythifiée ou diabolisée?
Comme le précise Yolanda Añazco, dans son ouvrage Manuela Sáenz, coronela
de los ejércitos de la Patria Grande, nul ne peut atteindre la vérité historique sans

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confronter et analyser les différentes sources et les différents écrits. En ce qui concerne
Manuela Sáenz, les analystes s’opposent sur les dates et les événements, le romantisme
qui la définirait rend difficile la compréhension de ce personnage et obscurcit sa vie.
Les témoignages autobiographiques sérieux manquent pour révéler la personnalité de
cette femme exceptionnelle.
En 1925, par exemple, Eduardo Posada a publié un essai intitulé "La Libertadora"
dans lequel il tente de reconstruire la vie de Manuela Sáenz entre légende et histoire en
utilisant les stéréotypes des chroniqueurs et essayistes: elle était l’amante de Simón
Bolívar, celle qui lui sauva la vie, déjouant par deux fois les complots contre le
Libérateur, et une femme à l’allure masculine.
Dans son article de 1828, également intitulé "La Libertadora", Posada en fait une
héroïne qui a souffert toute sa vie, une femme qui a subit, après le départ de Bolívar, les
foudres des autorités colombiennes qui l’accusèrent de mener des activités criminelles
et subversives.
Selon Inés Quintero (2000) les biographies sur Manuela Sáenz ont pour point
commun de ne pas respecter la chronologie du personnage, son parcours de vie, mais de
narrer huit années de son existence, représentation de son histoire d’amour avec Bolívar.
Les moments cruciaux de la vie de Manuela se situent donc entre le jour où elle
rencontra Bolívar le 16 juin 1822 et le jour du décès de ce dernier le 17 décembre 1830,
concluant ainsi les événements dignes d’être racontés, 26 ans avant la mort de Manuela.
Et les titres mêmes de ces ouvrages l’affirment: La Libertadora del Libertador
(ALFONSO RUMAZO GONZÁLEZ, 1944); La amante inmortal (VON HAGEN,
1958); La caballeresa del sol, el gran amor de Bolívar (DEMETRIO AGUILERA-
MALTA, 1964); La mujer providencia de Bolívar (HUMBERTO MATA, 1972) ou
encore Manuela Sáenz, el último amor de Bolívar (MERCEDES BALLESTEROS,
1976).
Le cinéma enferme également Manuela dans cette passion puisque Diego Rísquez
dans Manuela Sáenz. La libertadora del libertador (2000) reproduit la vision selon
laquelle Manuela n’a sa place dans l’histoire des indépendances que parce qu’elle était
la maîtresse de Bolívar.

Pese a anunciarse como un ejercicio de desmitificación de Manuela,


se conforma con ofrecernos a Manuela como apéndice del grande
hombre de América y no como lo que fue: una mujer para quien la
pasión por la política constituyó el motivo fundamental de su
existencia, antes y después del libertador (QUINTERO, 2000).

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Dans "La Libertadora", Posada affirme également que certaines biographies sur la
personne de Manuela présentent des exagérations, des imprécisions, voire des erreurs
qui obligent le lecteur à être vigilent et entreprendre une lecture attentive des analyses
sur Manuela puisque, bien souvent, Histoire et Littérature, légende et mythe se
mélangent dans ces études. Les noms célèbres sont alors comme "l’air du matin. Ils
deviennent des rêves"2.
Manuela Sáenz est un personnage fascinant de l’Histoire, non seulement pour son
rôle dans les guerres d’indépendances aux côtés de Bolívar mais également pour les
passions qu’elle déchaîne. Raisons pour lesquelles elle est sujette à diverses
interprétations. Les différents écrits, les diverses analyses révèlent ainsi l’existence de
deux écoles, deux représentations de Manuela Sáenz: la vision négative d’une femme
aux mœurs douteuses et au comportement déviant, et la vision héroïco-nationaliste de
cette femme au courage remarquable; représentations du personnage révélant les
extrêmes présentés par un système qui soumet la femme au domaine privé et au silence.
Ainsi, Manuela Sáenz est une patriote équatorienne, née le 28 décembre 1795 à
Quito dans une famille aisée, mais d’une relation illégitime, et morte en exil le 23
novembre 1856 à Paita au Pérou.
Lorsqu’on lit une vie, la référence à la biographie est systématique, cette
rencontre avec les fragments de ce que fut son passage sur terre, ceux qui restent intacts
et ceux qui circulent dans l’imaginaire. Manuela est née dans une période de profonds
changements, mais l’exactitude de sa date de naissance est mise en doute et les
historiens continuent à s’opposer sur ce point. La création littéraire et certains historiens
pensent que Manuela Sáenz est née un 27 décembre 1797. Sa vie, reconstruite à travers
différents genres littéraires, est le reflet non d’une légende historique mais d’une
nouvelle manière d’écrire l’Histoire de l’Amérique Latine, pour paraphraser José Martí.
Une analyse approfondie de la vie de Manuela Sáenz, De literatura e historia: Manuela
Sáenz entre el Discurso del Amor y el Discurso del Otro de la colombienne Judith Nieto
López, conclut que, même si la plupart des créations littéraires utilisent la source
historique d’une naissance le 27 décembre 1797, le véritable jour de naissance de
Manuela est le 28 décembre 1795 et non celle présente dans les écrits de Raquel
Verdesoto de Romo Dávila (1963) ou d’Ana Teresa Torres (2007), par exemple.
Sensibilisée très jeune aux idées révolutionnaires et aux espoirs de liberté par sa
famille maternelle, rejetant l’idéologie et les valeurs paternelles suite aux événements
du 25 mars 1809, Manuela déclara ainsi sa conscience et son identité américaines: "Mi
país es el continente de América. He nacido bajo la línea del Ecuador". Fruit du pêché et
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privée de sa mère, elle dut se forger un caractère fort et une personnalité propre, devenir
autonome très vite. Manuela est ainsi une jeune fille d’actions et au comportement libre.
Selon Yolanda Añazco, les femmes de l’époque, ces "Dames de la société",
étaient les esclaves de leurs maris et pères et avaient comme seule distraction les
fenêtres de leur maison, d’où elles scrutaient ce qui se passait dans la rue et ce qui s’y
disait. Manuela est l’antithèse de cette représentation de la femme:

Ser libre. Libérrima, en cuanto a moral, amar con delirio u odiar en el


mismo grado; ser rebelde, revolucionaria, bellicista, tempestuosa;
entender la vida a lo grande y conformar todos los actos a esta actitud
elevada, en la cual, por otra parte, vienen involucrados todos los
desprendimientos y aun todas las generosidades, esto fue lo que hizo
que se diga de ella: ‘Amable loca’, la llamaba Bolívar; ‘mujer
excéntrica’, O’Leary; ‘parecía una reina’, Garibaldi; ‘perfecto tipo de
la mujer altiva, mujer superior acostumbrada al mando’, Ricardo
Palma; ‘un formidable carácter, amiga de mis amigos y enemiga de
mis enemigos’, ella así misma (AÑAZCO, 2005, p. 23).

Grande défenseure de l’indépendance et des droits des femmes, elle a joué un rôle
d’espionne et de "factrice", elle a organisé des rebellions et empêché des coups d’état3.
Elle a cherché des ressources financières pour la cause patriotique. Pour cela, elle reçut
le titre de "caballeresa del Sol" des mains du général José de San Martín en juillet 1822,
après que celui-ci ait conquis Lima et proclamé son indépendance. Elle fut également la
compagne loyale et fidèle du Libérateur Simón Bolívar4, et fut en charge de ses papiers
personnels. Pour cela il la nomma colonel. Jean-Baptiste Boussingault la décrivait en
1824 comme une habile séductrice.
Elle se distingue à Quito et à Lima comme femme active dans les milieux
politiques et sociaux. Contre la volonté de son père et de son mari James Thorne
(qu’elle a épousé en 1817, un mariage arrangé selon les coutumes de l’époque), elle
défend les idéaux révolutionnaires et son journal témoigne de son implication. Véritable
antithèse de son époux, elle soutient les idéaux de libération, de Liberté pour tout le
continent mais ne se contente pas de les soutenir en esprit, elle les applique dans sa
propre vie. Elle va à l’encontre des règles sociales en vigueur et scandalise bon nombre
de citoyens lorsque, en 1822, elle devient la maîtresse du Libérateur Simón Bolívar et
abandonne son mari. Cette liberté totale se reflète dans ses lettres et souligne la passion
qui l’anime, tant amoureuse que révolutionnaire:

Si hemos encontrado la felicidad hay que atesorarla. Según los


auspicios de lo que Usted llama moral, ¿debo entonces seguir
sacrificándome porque cometí el error de creer que amaré siempre a la
persona con quien me casé? Usted mi señor lo pregona a cuatro
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vientos. ‘El mundo cambia, la Europa se transforma, América también
(…) ¡Nosotros estamos en América! Todas estas circunstancias
cambian también’ (PALADINES ESCUDERO, 2004, p. 179).

La création littéraire tend à définir Manuela comme la fidèle maîtresse qui suit
son héros et agit par amour. Les biographies et les romans soulignent son caractère
passionnel, allant jusqu’à nourrir la légende, le mythe dans un souffle poétique: les deux
biographes de Manuela Sáenz, Alfonso Rumazo González et Victor W. von Hagen,
avec l’aide d’extraits des Mémoires de Boussingault, élaborèrent une scène romantique
sur la tentative de suicide de Manuela à l’annonce de la mort de Bolívar. A l’image de
Cléopâtre, elle se fit mordre par une vipère dans le village de Guaduas, lieu où elle était
confinée sur ordre de Vicente Azuero.
Deux destins hors du commun liés par un même acte, la dernière reine d’Egypte,
Cléopâtre, vit également son destin associé à ceux des hommes puisqu’elle fut la
maîtresse de César. Aussi habile séductrice que fin politique, Cléopâtre lutta pour
sauvegarder une civilisation à laquelle elle était particulièrement attachée. Manuela et
Cléopâtre sont donc deux femmes belles, fortes et combattives, luttant pour un idéal et
détestées par ceux qui les redoutaient. Après la défaite de ses troupes, Cléopâtre préféra
se suicider pour échapper à l’humiliation du triomphe romain. Une servante lui apporta
alors un panier de figues dans lequel se trouvait un serpent. Elle y plongea la main et
succomba à la morsure de serpent. Comparer Manuela à Cléopâtre lui confère un destin
mythique associé à une vision romantique de sa vie et de sa mort liée à celle de Bolívar.
Simple coïncidence ou réelle tentative de suicide? L’imagination construit bien
souvent des récits en faveur du mythe et Manuel R. Mora semble douter de la véracité
de cette légende d’une femme désespérée se suicidant par amour.

Pero ¿ocurrió al enterarse de la muerte de Bolívar? Rumazo y von


Hagen no lo ponen duda, pero no se puede asegurar. ¿Por qué
Boussingault no relaciona el intento de suicidio con la muerte de
Bolívar? El científico francés se pregunta por qué Manuela ha querido
quitarse la vida. Si la causa hubiera sido la muerte de Bolívar, la
pregunta sería innecesaria: Manuela no habría podido ocultar que
quería acompañar a Bolívar en el otro mundo, como otra Cleopatra
enamorada y desesperada. Hay otra razón para que el ‘cronista de
sucesos’ se hiciera esa pregunta: él no estaba en Guaduas en los días
cercanos a la muerte de Bolívar. La escena tenía que haber sucedido
en otro tiempo (MORA, 2012, p. 323).

Raquel Verdesoto de Romo Dávila, dans Manuela Sáenz, affirme que


Boussingault était présent lors de cette tentative de suicide et qu’il l’a soigné. Cet
épisode conserve sa part de mystère et profite donc à la création d’un mythe.

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Son histoire d’amour avec Bolívar dura certes huit ans mais fut plus épistolaire
que physique selon Ana Teresa Torres. “En varias oportunidades Manuela se separó de
Bolívar para permanecer actuando políticamente. No se comportó como una
‘soldadera’” (TORRES, 2007 p. 323). Elle n’était pas une de ces femmes qui suivaient
leurs soldats pendant les campagnes militaires; elle avait commencé à défendre ses idées
libertaires avant de rencontrer le Libérateur et avait déjà été décorée. Elle ne luttait pas
en faveur de l’indépendance par amour pour Bolívar mais par amour pour la liberté. Elle
fut totalement fidèle au héros de l’indépendance plus qu’à l’homme (TORRES, 2007, p.
323). Ces deux héros de l’indépendance étaient mus par une idéologie commune qui
renforçait leur amour. Mais le sacrifice par amour ne les définissait pas, seul le sacrifice
pour la lutte avait un sens. Cela leurs attira des inimitiés.
Et Manuela avait des ennemis. En deux occasions, elle déjoua les conspirations
d’assassinats visant Bolívar, raison pour laquelle elle est surnommée "la libertadora del
libertador" en 1828. Manuel J. Calle, dans son manuel d’histoire Leyendas del tiempo
heroico (CALLE, n.d.), dépeint les événements de manière très sexiste, en minimisant
le rôle de Manuela. Il brosse le portrait d’une femme hystérique et capricieuse, qui ne se
laisse guider que par ses émotions. Lors de la première tentative d’assassinats, elle se
donne en spectacle lors d’un bal masqué – "la irascible é injuriada mujer corrió á
palacio á poner su queja ante Bolívar […]" (CALLE, n.d., p. 227) – et lors de la
deuxième, elle se met à pleurer, à supplier Bolívar de s’enfuir – "la Sáenz se anoja de
rodillas á sus plantas y, llorando, con la mayor de las angustias […]" (CALLE, n.d., p.
228). Les qualificatifs la décrivant offrent une image négative, les termes "blanca",
"pálida", "descompuesta", "desesperados sollozos", "vilipendiada", "golpeada",
"arrastrada", etc., n’ont font pas une femme courageuse et guerrière.
Les interprétations divergent sur ce point. Yolanda Añazco parle plutôt d’une
femme de sang froid, qui a très vite réagi face à la menace, au péril de sa propre vie.
Dans son ouvrage Manuelita, la amante revolucionaria de Simón Bolívar, Manuel R.
Mora aborde les différentes allusions aux tentatives d’assassinats de Bolívar: Florentino
González, dans ses Mémoires, fait référence à cette fameuse nuit de septembre 1828:

Nos salió al encuentro una hermosa señora, con una espada en la


mano, y con admirable presencia de ánimo y muy cortésmente nos
preguntó qué queríamos. Correspondimos con la misma cortesía, y
tratamos de saber por ella en dónde estaba Bolívar (MORA, 2012, p.
283).

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Selon Florentino, Manuela n’a subi aucune violence mais est restée ferme et forte
devant la menace. Seul Boussingault décrit les violences physiques subies par Manuela
mais s’oppose encore à Manuel J. Calle lorsqu’il décrit l’aplomb avec lequel elle s’est
opposée aux traîtres.

La derribaron, la maltrataron y uno de los conspiradores le golpeó la


cabeza con sus botas. Diez puñales le amenazaron, pero ella no cesaba
de gritarles: ‘¡Mátenme, cobardes, maten a una mujer’. Durante largo
tiempo se veía aún en la frente de Manuelita la huella del golpe que le
habían dado (MORA, 2012, p. 283).

A partir du moment où Simón Bolívar renonce à la présidence de la Grande


Colombie en 1830 et nomme le Général Domingo Caicedo président par intérim, les
attaques contre Manuela se firent plus nombreuses, notamment à travers la presse,
comme "La Aurora" ou "El Conductor": Vicente Azuero incita la population à
manifester son mécontentement contre Manuela par le biais d’affiches, de pancartes et
d’actes divers tel celui de brûler, lors de la fête du Corpus Christi, deux poupées à
l’effigie de Manuela et de Bolívar, personnifiées sous le nom de Tyran et Despote. Sa
réaction ne se fit pas attendre, elle détruisit les poupées et reçut un soutien inespéré,
celui des femmes.

Nosotras, las mujeres de Bogotá, protestamos de esos provocativos


libelos contra esta señora que aparecen en los muros de todas las
calles […]. La señora Sáenz, a la que nos referimos, no es sin duda
una delincuente (TUCKER, 2012).

Alfonso Rumazo González, dans sa biographie Manuela Sáenz, la Libertadora


del Libertador, présente Manuela comme une personne adorée des hommes (à l’image
des propos de Boussingault) mais détestée des femmes, alors que des documents
historiques prouvent que Manuela reçut les pires injures d’hommes tels que Santander,
Córdoba, Rocafuerte, etc. Rumazo écarte toutefois l’idée que des femmes aient pu
l’admirer, vouloir lui ressembler ou même vouloir sa place.
Ses ennemis inventèrent les mensonges les plus ignobles, attaquèrent sa personne,
la traitèrent de prostituée, d’étrangère, de femme vénale et nymphomane. Ils la
détestaient non pas parce qu’elle était la maîtresse du Libérateur mais parce qu’elle
avait gagné sa confiance, son respect, qu’elle était sa conseillère et confidente, parce
qu’elle était intelligente et rusée, savait déjouer tous les pièges tendus par ses
détracteurs, parce qu’elle était une femme politique influente (AÑAZCO, 2005, p. 80).
Les hommes politiques et les officiers péruviens haïssaient Manuela et la surnommaient
"aspía deslenguada". Aux dires du Chancelier, elle insultait l’honneur et la morale
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publique; le Ministre méprisait ses relations et son influence: "A pesar de estar
encerrada en un convento de monjas [1827. Convento de las Nazarenas], se reía de sus
enemigos, porque se comunicaba con quién quería y recibía visitas de funcionarios de
gobierno” (AÑAZCO, 2005, p. 97). Il est néanmoins vrai que la plupart des Généraux
de l’armée, notamment Sucre, traitaient Manuela comme si elle était l’épouse légitime
de Bolívar. Les femmes étaient, quant à elles, plus distantes mais Manuela ne faisait
rien pour s’attirer les bonnes grâces des personnes de son sexe (AÑAZCO, 2005, p. 92).
Le gouvernement de l’époque fut sur le point de mettre un terme à la persécution
mais un pamphlet de Manuela "La Tour de Babel" jeta de l’huile sur le feu. Dans cet
écrit, elle met en évidence l’inefficacité du gouvernement et révèle des secrets d’Etat.
Son caractère fort et indépendant lui valut la haine d’une partie de la population et
surtout du pouvoir. Les attaques contre sa personne redoublèrent; certains tentèrent
même de l’assassiner. A la différence de Bolívar, Manuela n’avait pas cessé de lutter, et
demandait à Bolívar de revenir au pouvoir. “Pero el Libertador se negó: ni su espíritu –
el horror a una sangrienta guerra civil – ni su cuerpo – en las puertas de la muerte – se
atrevían a la temeraria invitación de su amante” (MORA, 2012, p. 315). Elle était
perçue comme une menace, comme l’ennemi du pouvoir en place, préjudiciable pour la
nation colombienne. La peur qu’elle inspirait et la réputation acquise prouvent son
pouvoir personnel. Manuela était entière, elle aimait ou détestait ouvertement, ne savait
pas feindre l’indifférence et ignorait la froideur des sentiments; son conflit avec le
général Santander en témoigne.
Ainsi, le 1er janvier 1834, le général Santander signa le décret qui l’expulsa
définitivement de Colombie. Un an après, elle fut de nouveau expulsée d’Equateur, le
gouvernement ayant trop peur qu’elle ne ravive la flamme révolutionnaire du peuple.
Vicente Rocafuerte la considérait comme une menace à l’ordre public, une femme
incontrôlable, une insoumise. Elle s’installa alors à Paita au Pérou où elle vécut jusqu’à
la fin de sa vie dans la misère. Selon Raquel Verdesoto de Romo Dávila, Manuela a
changé et sa vie à Paita représente une antithèse de son existence aux côtés de Bolívar.
Sa petite boutique lui permet de survivre et elle offre son aide aux habitants. Fatiguée
des combats qu’elle a menés, elle finira dans un fauteuil roulant, les jambes paralysées.
Après l’agitation de sa vie, le silence devient sa seule compagnie. En 1856, victime de
diphtérie, elle fut incinérée avec toutes ses affaires pour éviter toute contagion, faisant
ainsi disparaître une grande partie de la correspondance avec Bolívar.

Manuelita está infectada, tiene alta temperatura, dolor horrible a la


garganta, incapacidad para respirar, hasta que el 23 de noviembre de
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1856 a las seis de la tarde, la difteria cerró los ojos para siempre de
esta enorme y grandiosa mujer. Los dos héroes de la independencia
fueron rumorados por las olas en gigantescas salmodias fúnebres,
Bolívar en San Pedro Alejandrino en el Atlántico y Manuelita en el
Pacífico, allá y aquí la proscripción, las ingratitudes, la pobreza
extrema, la infamia, el olvido. Pero por sobre todo, la gloria y la
inmortalidad como un ave que remonta el vuelo hacia lo infinito
(AÑAZCO, 2005, p. 161).

Le récit de sa mort est de nouveau associé à celui de Simón Bolívar et à cette


vision romantique des amants réunis dans la tombe.
La "sépulture" de Manuela Sáenz fut localisée en 1988 et ses restes identifiés
grâce à la réplique de la croix qu’elle portait et qui la définissait comme la compagne du
Libérateur. Ses restes symboliques reposent, depuis juillet 2010, auprès de Simón
Bolívar au Panthéon National du Venezuela.
Il faut attendre le milieu du XXe siècle, soit un siècle après sa mort, pour voir
apparaître les premières biographies et les premiers essais dans lesquels les auteurs
revendiquent le vrai rôle de Manuela dans l’Indépendance des actuels Equateur,
Colombie et Pérou. Yolanda Añazco parle du "silence complice des écrivains" pour ne
pas révéler la vraie nature de cette femme:

Ella demostró hasta los últimos momentos de su vida que no fue la


damisela de una noche de juerga, como otras ‘damas de ese tiempo’
que se le ofrecían al Libertador, sino la que conservó la majestuosidad
de la mujer hierática, enorme, sin dobleces, la apasionada por la
libertad, la soñadora de un mundo nuevo y mejor, la mujer de la
historia ‘la única, la indispensable, la amante, la compañera y la
consejera’ como decía el Libertador (AÑAZCO, 2005, p. 165).

En 1994, Carlos Alvarez Saá créa un musée dédié à sa mémoire. Le 24 mai 2007,
lors de la commémoration de la bataille de Pichincha, qui, le 24 mai 1822, scella
l’indépendance de l’Equateur grâce à la victoire de Sucre, le président Rafael Correa,
l’éleva au rang de général de la République d’Equateur.
Sa vie a inspiré nombre de poètes, romanciers, historiens et journalistes qui
prétendent combler le vide créé par l’histoire officielle et révéler aux sociétés actuelles
son vrai rôle dans l’indépendance et sa vraie personnalité. Elle a ainsi fait l’objet de
travaux de recherches et d’essais historiques plus ou moins rigoureux; on lui a consacré
des biographies plus ou moins romancées et des romans plus ou moins fidèles à la
réalité, des pièces de théâtre, des poèmes, des films et des opéras.
De la première biographie d’Alfonso Rumazo Gonzalez en 1944 (Manuela
Sáenz: la Libertadora del Libertador) à l’œuvre de Manuel R. Mora en 2012
(Manuelita, la amante revolucionaria) en passant par le très scandaleux roman érotique
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de Denzil Romero en 1988 (La esposa del Doctor Thorne), nous rencontrons une
Manuela entre deux discours: historique et littéraire, réel et fictif, héroïque et érotique,
etc.
Elle reste néanmoins ignorée par certains: Pedro Moncayo ne la mentionne pas
dans son ouvrage El Ecuador de 1825 a 1875: sus hombres, sus instituciones y sus
leyes; ni Juan de Mera, ni Juan Montalvo, les deux intellectuels représentatifs
respectivement du conservatisme et libéralisme du XIXe siècle, n’y font allusion.
Ces contemporains ont vivement critiqué son comportement déviant, la
considérant "folle" et "immorale", une mauvaise fille. Salvador de Madariaga, dans la
biographie qu’il consacre à Bolívar, représente Manuela comme une femme vénale, très
ambitieuse, prête à tout pour obtenir un certain pouvoir, même à supporter les infidélités
de Bolívar; une femme qui buvait, fumait, s’habillait comme un homme et parlait de
manière vulgaire (MADARIAGA, 1975, p. 299). Description colportée depuis 1954 par
le Boletín de Historia y Antigüedades. Nous sommes bien loin de la description de
Manuel J. Calle qui en faisait une femme attirante: "una hermosa dama […] con el
fulgor de sus ojos negros" (CALLE, n.d, p. 224). Il amplifia d’ailleurs cette légende
romantique autour du personnage de Manuela Sáenz en affirmant, dans ses Leyendas
del tiempo heroico, que la quitègne lança une couronne de lauriers au Libérateur Bolívar
pour qu’il la remarque. Légende reprise par plusieurs écrivains, notamment Luis Zúñiga
dans son œuvre Manuela (ZUÑIGA, 1997):

Nos preparamos para lanzarle flores. Yo tenía entre mis manos una
corona de laurel. Estaba a pocas yardas de distancia de nuestro balcón.
Luego de un beso, arrojé la corona que fue a golpear su hombro y
luego cayó al suelo; alguién la recogió y se la entregó. Bolívar levantó
la vista mirándome con sus ojos profundos, e inclinó su cabeza
cortésmente. Un poco aturdida, levanté el brazo para saludarlo.

La représentation de Manuel J. Calle ne donne pas une représentation physique


négative de Manuela, seul son caractère semble négatif, tout en étant la description du
caractère de la femme au XIXe siècle, mais semble toutefois stigmatiser le personnage:
“la providencia le tenía reservado un papel en la historia; y un momento de Heroismo
debía lavar los extravios de una juventud demasiado pecadora” (CALLE, n.d, p. 225).
Ricardo Palma, dans ses Tradiciones peruanas, dira d’elle qu’elle était une
"femme-homme", qu’elle incarnait un esprit masculin et des aspirations d’homme dans
un corps de femme, qu’elle était donc une erreur de la nature. Enfin, Alberto Miramón,
dans La vida ardiente de Manuela Sáenz, la dépeint comme une nymphomane, une
femme aux mœurs sexuelles débridées: “Esta mujer es un error de la naturaleza, dice
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Palma; Manuelita fue una Mesalina puntualiza Boussingault […] la amante de Bolívar
perteneció a cierta tipología erótica de mujeres que la ciencia moderna ha discriminado”
(MIRAMON, 1975, p.16). Cette théorie se base certainement sur la description négative
de Jean-Baptiste Boussingault dans ses Mémoires puisque selon Antonio Cacua Prada,
l’origine de toutes les calomnies proférées à l’encontre de Manuela se trouve dans ce
récit (CACUA PRADA, 2002, p. 13). Jean-Baptiste Boussingault serait en effet à
l’origine de la légende "érotique" de Manuela, cette représentation d’une femme
excentrique et sans tabou qui se laissait guider par ses désirs. Dans ses Mémoires, il
spécule sur la nature des relations entre Manuela et ses domestiques, notamment
Jonatás. Il affirme en effet que la domestique suit sa maîtresse comme son ombre,
raison pour laquelle il suppose qu’elles sont amantes. Cette spéculation suffira pour
diviser les penseurs et analystes entre la peinture d’une Manuela comme mythe héroïque
ou mythe érotique.
Les fidèles compagnes de Manuela, Jonatás et Natán, furent plus que de simples
servantes. Elles furent ses sœurs, ses amies; elles furent ses yeux, ses oreilles, ses
interlocutrices, ses fidèles compagnes et complices dans la lutte pour l’indépendance,
etc.

Las tres grandes mujeres: Manuela, Jonatás y Natán, vivieron unidas


siempre hasta la muerte, pero ahí no acabó sus vidas, sino que
desaparecieron en la arena, en el viento, y en las aguas verde azul de
ese mar inmenso de Paita, para elevarse cual gaviotas, envueltas en la
infinita pureza de las nubes, para vivir eternamente en la historia de
nuestros pueblos, y ser el faro y la energía que nos llevará un día a
vivir como verdaderos seres humanos (AÑAZCO, 2005, p. 81).

Malgré ces silences et ces critiques, Manuela est revendiquée par d’autres,
notamment le mouvement féministe dans les années 1980, en faveur de la lutte pour les
droits sociaux et politiques des équatoriennes. En 1989, lors de la Première rencontre
avec l’Histoire sur Manuela Sáenz, les participantes proclamèrent Manuela précurseure
de la femme libérée ainsi que leur volonté de suivre son exemple en tant que co-
libératrice des mouvements d’indépendance à l’égal de Bolívar. Cette déclaration voit
ainsi l’émergence de l’image de Manuela comme héroïne féministe. Pour Yolanda
Añazco, elle est la lumière qui illumine le chemin de la Femme latino-américaine.
Les commémorations des bicentenaires de l’Indépendance des différents pays de
l’Amérique Latine semblent également revendiquer une place à chaque personnage de
l’Indépendance, tel un devoir de mémoire. La vie politique récente participe à cette
remémorisation en manipulant bien souvent la mémoire historique.
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Le pouvoir politique,la politique tout court est faite d’une bonne dose
de manipulation, même quand elle est pédagogique. Le propre du
politique est de fournir un discours structurant afin d’entraîner
l’adhésion, de maîtriser l’information […] (DORNA, 1995, p. 133).

Lors des discours commémoratifs, des hommages nationaux sont organisés dans
les divers pays et notamment entre les pays où Manuela Sáenz a vécu. Le dernier
hommage, en juillet 2010, a servi à transférer les restes symboliques depuis Paita, lieu
de l’enterrement dans une fosse commune lors de son exil péruvien, jusqu’au Panthéon
National de Caracas où repose Simón Bolívar. Cette mise en scène révélait un véritable
caractère romantique et prétendait renforcer le patriotisme et sentimentalisme de la
population en réunissant les amants dans la tombe. Selon Pierre Ansart (1976), le
discours politique apporte en effet une "cohérence symbolique"; il est "donateur de sens
et lutte contre le resurgissement des doutes". Cette mise en scène permettait également
de revendiquer publiquement son rôle dans l’indépendance et ses actes et pensées
comme d’utilités publiques en ces temps de lutte pour la condition féminine et le droit
des femmes. Les présidents équatorien et vénézuélien en font un personnage actuel,
voire même socialiste, lors des discours-hommages consacrés à Manuela, soulignant
également les liens révolutionnaires qui unissent les deux pays. Ainsi les propos de
Ramón Torres Galarza, ambassadeur de la République d’Equateur au Venezuela:

Con Manuela Sáenz los pueblos latinoamericanos, recuperamos una


subversiva memoria del pasado, presente y futuro. En ella y con ella, a
partir de hechos simbólicos generamos hechos políticos: la presencia y
permanencia del valor de la mujer en la historia de nuestras
revoluciones; su participación con la fuerza, inteligencia y la
sensibilidad de quienes piensan, sienten y aman (GALARZA, 2011, p.
13).

Galarza termine sa présentation de l’ouvrage collectif sur Manuela Sáenz en


exhortant les peuples à suivre l’exemple de Sáenz et Bolívar “para seguir juntos
fecundando nuevas causas de amor y de libertad, entre los hijos de Manuela y los hijos
de Simón. Eso soy, somos y seremos” (GALARZA, 2011, p. 14); réminiscence du
mythe bolivarien d’unité continentale.
Il existe donc une vision héroïco-nationaliste du personnage de Manuela Sáenz
puisque dans Manuela Sáenz: presencia y polémica en la historia (1997), María
Mogollón y Ximena Narváez révèlent que la figure de Manuela est un symbole positif
en Equateur, notamment pour les nationalistes, un exemple de lutte et de pugnacité, la
représentation par excellence de la guerrière qui a lutté pour l’indépendance latino-

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américaine, pour reprendre la pensée de Ketty Romo-Leroux dans son essai Manuela
Sáenz. La gran verdad (2005).
L’écrivaine y retrace le contexte social et culturel de l’époque de Manuela en
abordant la condition féminine avant de s’immerger dans sa vie, dans son idéologie
libertaire, son engagement dans l’indépendance. Elle dépeint ainsi une Manuela
mythique, un être "surhumain" qui sert la cause de la liberté. Dans cet essai, Romo-
Leroux lance un appel à l’action, à la justice après avoir passé en revue toutes les
femmes qui ont défendu les intérêts de la nation. Elle conclut son ouvrage en affirmant,
comme Rafael Correa lors de son discours-hommage, que Manuela est en chacune des
femmes "¡Presente! ¡Gigante! ¡Inmortal!" (ROMO-LEROUX, 2005, p. 285). Tout
comme Hernán Rodríguez Castelo qui déclare “no hay en América en la primera mitad
del siglo XIX ninguna otra mujer de la grandeza de Manuela Sáenz”, Romo-Leroux
revendique sa présence dans l’actualité. Ces deux auteurs s’emploient également à
dénoncer les légendes sur Manuela Sáenz, personnage sujet aux inventions les plus
diverses: elle ne fut pas une révolutionnaire dès l’enfance (Castelo), elle n’a pas été
enlevée par un militaire alors qu’elle était au couvent. A l’inverse de Tania Roura qui
revendique l’écriture d’une histoire mal-dite et faisant appel aux légendes orales. Cette
dernière souhaite, comme le signale Raúl Pérez Torres dans le prologue de son ouvrage
Manuela Sáenz, una historia maldicha, “traer las costumbres y los mitos, el lenguaje,
los códigos mágicos y los ritos de la época en que se fraguó nuestro nacimiento como
Naciones” (TORRES, 2004, p. 5).
Comme l’affirme Serge Moscovici, "la fabrication des croyances extraordinaires
est telle qu’on ne peut en aucun cas la contredire"5. Denzil Romero a tenté de détourner
la figure historico-mythique de Manuela Sáenz dans son roman érotique La esposa del
doctor Thorne (1988), qui a obtenu en Espagne le prix Sonrisa Vertical, pour, selon le
jury, avoir reconstruit avec habileté la vie d’un personnage légendaire en le
démythifiant. Denzil Romero présente ainsi Manuela Sáenz sous les traits d’une
nymphomane. Selon les dires de l’éditeur Carlos Barral, Romero met l’Histoire au
service de l’imagination, amenant la parodie ou l’ironie de carnaval, la carnavalisation,
jusqu’à son paroxysme. Romero lui-même affirme que son écriture est toujours
structurée selon trois thématiques: le langage, l’érotisme et l’histoire. Il suffit de lire les
écrits sur Miranda, La tragedia del generalísimo, pour confirmer ces propos.
Cette prédominance de l’imagination est confirmée par le peu de sources
historiographiques sur lesquelles l’auteur s’appuie pour construire son récit. Le lecteur
attentif en remarque deux: l’ouvrage de Jean-Baptiste Boussingault, Mémoires (1896),
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qui décrit le caractère héroïque et autonome de Manuela mais synthétise également cette
légende noire créée sur des rumeurs qui font apparaitre une Manuela excentrique,
subversive, ayant une vie dissolue, une relation intime avec ses domestiques et allaitant
son ours; la biographie d’Alfonso Rumazo González, Manuela Sáenz. La Libertadora
del Libertador (1944), première analyse complète et sérieuse si l’on en croit les dires de
l’auteur lui-même au début de l’ouvrage. Ce dernier fait également allusion à la vie
érotique de Manuela, à ses "amoríos pecadores".
Selon Jean Franco,

On dénote le goût démesuré pour l’Histoire, une histoire revisitée,


dénaturée, malaxée, une histoire prétexte à tous les délires qu’on
n’allait tout de même pas lui pardonner. Le roman historique, sous sa
plume inventive, se pare des couleurs de la fantaisie, de
l’anachronisme. C’est ainsi qu’il s’attaque avec la plus totale
impertinence, ô dérapage inconvenant, aux figures intouchables de
l’histoire vénézuélienne, Miranda en premier lieu, Simón Bolívar et
bien d’autres. Son évocation irrespectueuse et débridée de la maîtresse
de Bolívar, Manuela Sáenz, la ‘libertadora del Libertador’, lui valut
même une interdiction de séjour en Equateur, ce qui avait rassuré
Denzil Romero sur les pouvoirs de la fiction (FRANCO, 2009, p.
243).

Denzil Romero est fasciné par l’Histoire et les personnages historiques (tels que
Miranda, Bolívar, Sáenz) deviennent la matière première de ses romans, mais pervertis
par le "délire poétique" de l’écrivain, l’image historique devenant alors pornographique
(FRANCO, 2009, p. 245). Dans le roman La esposa del Doctor Thorne (1988), pseudo-
biographie amoureuse de Manuela Sáenz (FRANCO, 2009, p. 247), il n’utilise pas
l’Histoire de manière rigoureuse mais comme prétexte pour souligner jusqu’à la
caricature un trait de personnalité de Manuela Sáenz : la liberté. Le titre évocateur est
une référence à son mariage avec James Thorne pour mieux signaler dès les premières
lignes du récit la légende noire de Manuela Sáenz. “En sus fantasías eróticas de ahora
son los rostros de los jefes patriotas del momento los que se le aparecen” (ROMERO,
1988, p. 174). Dans le récit de Denzil Romero, la liberté de Manuela se manifeste
uniquement par le sexe, cette dernière semblant vouloir à tout prix se donner en
spectacle. Romero en fait une femme ambitieuse, arrogante et d’un appétit sexuel
démesuré, insatiable, un véritable "volcan sexuel".

En las solapas del libro se pone de relieve el carácter de Manuelita


como defensora de la libertad, de la independencia de los países
andinos y de la liberación de la mujer, pero lo cierto es que nosotros
en todo ese asunto no vemos más que su hiperbólica aventura erótica,

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que podemos calificar como un caso de auténtica ninfomanía (ERAS,
1988, p. 149).

Serait-ce une métaphore de son engagement total dans la lutte pour la liberté? Ou
la conclusion d’une destinée déjà écrite: fruit du péché, elle sera pécheresse? “El sentido
heroico la tiene embargada, en la misma intensidad en que la trae poseída desde la
infancia el sentido lúbrico” affirme Rumazo González lui-même.
L’ouvrage de Romero a toutefois choqué, a créé un mal-être. Alfonso Rumazo
Gonzalez s’est offusqué de cette description qui n’est que calomnie, "presentándola
como una ramera depravada" (GONZALEZ, 1988) alors que Manuela était une femme
distinguée qui n’aurait jamais employé un langage vulgaire tel que "me cago en el
honor de los ingleses" comme l’écrit Denzil Romero dans La esposa del Doctor Thorne
(1988, p. 63).
Elle est en effet pour beaucoup un symbole de l’Equateur, une figure intouchable
de l’Histoire. Les femmes et les féministes reconnaissent l’indépendance sexuelle de
Manuela mais critiquent le fait que Romero ait exagéré, déformé ce désir de liberté.
Romero lui-même ne s’en cache pas et le revendique comme un style d’écriture à part
entière : "cierto que distorsiono de manera consciente la historia por medio de
omisiones, exageraciones y anacronismos; […] recurro a la metaficción […] a lo
carnavalesco, la parodia […]" (KOHUT, 2003, p. 187). Selon Alba Luz Mora, Romero
ne démystifie pas, ni ne démythifie, mais dénigre la figure de Manuela; il est alors
considéré comme machiste.
Pourtant, Manuela elle-même revendique cette liberté sexuelle dans sa
correspondance dans laquelle les références au corps et à l’érotisme ne manquent pas.
Elle proclame son désir, reflet de sa propre identité, comme le montrent sa
correspondance et plusieurs extraits de ses lettres destinées à Bolívar: “Le guardo la
primavera de mis senos y el envolvente terciopelo de mi cuerpo (que son suyos)”;
“Usted es el amante ideal […] no logro saciarme en cuanto a que es a usted a quien
necesito; no hay nada que se compare con el ímpetu de mi amor”; “Por su amor seré su
esclava si el término amerita, su querida, su amante, lo amo; lo adoro, pues es usted el
ser que me hizo despertar mis virtudes como mujer”; “Yo tengo ansiedad en las noches
y no amanece, como un suplicio voraz que corre y crece entre esta carne viva allí
escondida”, etc. Sa sexualité épanouie est explicite dans ses écrits, Manuela y fait
transparaitre l’intégrité de son moi. Elle s’oppose à la morale de l’époque et aux
exigences de pudeur et retenue exigées aux femmes de son rang social. Au-dessus des
critiques des autres femmes et de la société, au-dessus des conventions sociales, elle
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s’affirme comme femme libre et surtout libérée des tabous de l’époque et du système
patriarcal. Elle s’approprie ainsi l’espace de l’écriture pour affirmer sa personnalité, sa
pensée, sa manière d’être au monde. Elle "se délie des tabous de la société patriarcale et
proclame haut et fort sa personnalité et son droit au plaisir" (FRANCO, 2009, p. 247).
Et, pour conclure avec les propos de Jean Franco lors de son analyse du livre La esposa
del Doctor Thorne, "au total, on constate une prévalence du mythe et de la fantaisie
dans ces variations historiques qui de sujet deviennent prétexte, support à une projection
contemporaine" (FRANCO, 2009, p. 248).
Mythe et mystère dominent les différentes représentations littéraires du
personnage historique de Manuela Sáenz. En analysant toutes les figures de Manuela
dans les différents ouvrages pour tenter de recréer sa personnalité, nous nous retrouvons
face à une femme "surhumaine", au sens où l’entendait Nietzsche, aussi belle que
courageuse, aussi sensuelle que patriote, aussi sincère et aimante qu’exhibitionniste,
etc., mais surtout en avance sur son temps, une femme qui dérangeait par son désir de
liberté. Il paraît évident que Manuela était un être d’exception mais les diverses
approches ont laissé une part de mystère puisque l’idéologie prédominante s’insère dans
les carcans du XIXe siècle, dans les schémas et stéréotypes établis par la société,
notamment en ce qui concerne la place et le statut de la femme. Ainsi, ces œuvres nous
présentent une Manuela défigurée, une succession de légendes, une héroïne mythique –
puisque selon Platon dans La République, le mythe parle "d’un au-delà qu’il faut situer
dans un passé reculé et dans un espace lointain, différents de l’espace et du temps où
évoluent le narrateur du mythe et son public" [Luc Brisson] en faisant intervenir cinq
classes d’individus : les dieux, les démons, les morts, les héros et les hommes du passé
(GELY, 2008, p. 72).
La tendance à mythifier Manuela est évidente dès sa première rencontre avec
Bolívar, lorsque celui-ci rentre victorieux à Quito et qu’elle l’attend excitée sur un
balcon d’où elle lui lance une couronne de laurier avant que leurs regards ne se croisent.
Le mythe n’apporte pas la pure vérité sur l’existence de Manuela, source d’inspiration,
muse des poètes, des écrivains, des peintres qui ont bien souvent laissé libre court à leur
interprétation, créant parfois une réelle polémique. Les Latino-américains la connaissent
surtout comme la maîtresse de Bolívar.

Se puede afirmar, sin temor a equivocarnos, que el Ecuador no ha


valorado, en su real dimensión el inmenso aporte político que dio
Manuela para la liberación del dominio español; traicionándola así a
quien debía ser su hija predilecta, lo cual se ratifica cuando al estudiar
la historia del Ecuador, únicamente, se la conoce como amante del
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Libertador. Pero ella, como el sol que desaparece al atardecer para
lucir radiante a la mañana, así aparece hoy, después de siglos, límpida
y luchadora como siempre […] (AÑAZCO, 2005, p. 165).

"Le mythe est une parole" affirmait Barthes, puisque étymologiquement muthos
signifie "récit, fiction". Dans les Dialogues de Platon, le muthos est un point de vue non
crédible et contradictoire. Le terme "mythe" a pour synonymes, dans le dictionnaire
Larousse, "fable", "légende", "allégorie", "histoire", etc.; le Littré parlant également d’
" idéalisation", d’ "enjolivement", avant de donner la définition de "récit imaginaire
dans lequel sont transposés des événements réels". Les récits sur Manuela, qu’ils
s’agissent de romans ou de biographies, entrent dans cette catégorie; parlons alors de
romans historiques.
Les discours de Rafael Correa conservent cette vision héroïque, cette idéalisation
du personnage pour mieux faire valoir sa politique. En ces temps de récupération
historique, de devoir de mémoire, la figure de Manuela est réutilisée, après avoir
longtemps été invisibilisée, comme légende de la liberté, prémisses du féminisme et de
la libération de la femme.
Il faut signaler que les protagonistes des indépendances n’ont jamais souhaité
invisibiliser la participation féminine dans les luttes entre 1809 et 1824. Le silence sur
cette présence féminine est dû à ceux qui écrivent l’histoire plus qu’à ceux qui la font
(NIETO LOPEZ, 2006). Ainsi, dans une lettre adressée à Bolívar, le général Sucre écrit:

Se ha destacado particularmente por su valentía; incorporándose desde


el primer momento a la división de Húsares y luego a la de
Vencedores, organizando y proporcionando avituallamiento de las
tropas, atendiendo a los soldados heridos, batiéndose a tiro limpio bajo
los fuegos enemigos; rescatando a los heridos.

L’importance de sa participation, tant durant la guerre d’Indépendance que


pendant le conflit postérieur des pays qui formaient le rêve de Bolívar, la Grande
Colombie, est évidente. Mais selon Ana Teresa Torres, la seule raison d’analyser
l’importance de son rôle est qu’elle fut une pionnière du féminisme en Amérique Latine,
une femme qui s’est construite en dehors du modèle patriarcal.

Por ello, la gente de Paita después de dos siglos de ausencia, la


mantienen en su pensamiento y sienten aún el calor de ese cariño, que
ella supo brindarles. ¡Manuela no ha muerto! ¡está viva! Está presente
entre nosotras, viva como el cielo azul de los horizontes, como la
espuma de los grandes mares, como el trueno resplandeciente de los
octubres legendarios, para impulsarnos en la lucha por una nueva
Patria Americana […] (AÑAZCO, 2005, p. 174).

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Ainsi, si nous devions résumer la passion qui animait cette femme, nous
affirmerions que sa soif de pouvoir était sa vocation.
Les peintures représentant Manuela la dépeignent comme une femme sans aucun
trait de masculinité, juste une femme belle et souriante; le vitrail du salon des
libératrices de l’Université Simón Bolívar en Equateur présente une femme distinguée,
belle et très féminine, portant l’écharpe au couleur du pays en signe de sa participation
aux guerres d’Indépendance. Ainsi, sous la plume Manuela représente la masculinité et,
sous le pinceau, la féminité. Il aura donc fallu attendre la représentation iconographique
des peintres colombiens et équatoriens pour que l’héroïne se métamorphose, que le
mythe devienne humain. Le pinceau a démythifié et démystifié le personnage.

Está de otra parte la representación que merece destacarse como


hallazgo de la investigación y que muestra a un personaje en
capacidad de posesión de su palabra, la cual y sin dificultad profiere
en defensa propia y colectiva: ‘[…] le contesto con estas palabras: me
ha vituperado de la manera más vil; yo lo perdono, pero ¿me permite
una pequeña observación? ¿Por qué llaman a los del sur ‘hermanos’ y
a mí ‘extranjera’? Mi patria es todo el continente americano; nací bajo
la línea del Ecuador’. Son líneas que ilustra con claridad la forma
como asume su palabra Manuela Sáenz, en tiempos en los cuales el
discurso femenino era relegado del ámbito público (NIETO LOPEZ,
2006. p. 418).

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Notas
1
Mariano Picón Salas, Comprensión de Venezuela, dans Viejos y nuevos mundos. Selección, prólogo y
cronología de Guillermo Sucre. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1983. Cité par Ana Teresa Torres, La
herencia de la tribu: del mito de la Independencia a la Revolución Bolivariana, Caracas: Alfa, 2009,
p.21
2
Hölderlin, Patmos, cité par Daniel Madelénat, Biographie et mythographie aujourd’hui, p.70, in Yves
Chevrel et Camille Dumoulié coord., Le mythe en littérature, essais en hommage à Pierre Brunel, Paris,
PUF, 2000.
3
Avec ses deux esclaves, Jonatás et Natán, Manuela était informée de tout ce qui se tramait dans les villes
où elle résidait. Fine tacticienne, elle détecta et neutralisa l’insurrection contre Bolívar à Quito,
l’insurrection du Colonel Bustamante contre Bolívar à Lima, ainsi que les deux coups d’état contre le
Libérateur en 1828 à Bogotá dans le but de renverser son pouvoir.Yolanda Añazco, Manuela Sáenz,
coronela de los ejércitos de la Patria Grande, Quito: Láser editores, 2005, p.84
4
Leur relation épistolaire révèle un véritable amour, une admiration et une dévotion, comme par exemple
la lettre de Simón Bolívar datée du 20 avril 1825: "Mi bella y buena Manuela: cada momento estoy
pensando en ti y en el destino que te ha tocado. Yo veo que nada en el mundo puede unirnos bajo los
auspicios de la inocencia y el honor. Lo veo bien, y gimo de tan horrible situación por ti; por que te
debes reconciliar con quien no amabas; y yo porque debo separarme de quien idolatro! Sí, te idolatro
hoy más que nunca jamás. Al arrancarme de tu amor y de tu posesión se me ha multiplicado el
sentimiento de todos los encantos de tu alma y de tu corazón divino, de ese corazón sin modelo”. Cité
par Carlos Paladines Escudero, Erophilia. Conjeturas sobre Manuela Espejo, ediciones Abya-Yala,
segunda edición, Quito, Ecuador, 2004, p.178
5
Serge Moscovici, Modernité, sociétés vécues et sociétés conçues dans Penser le sujet. Autour d’Alain
Touraine, colloque de Cerisy, Paris, Fayard, 1995, pp.57-72. Cité par Nikos Kalampalikis,
‘Représentations et Mythes Contemporains’, Psychologies & Société, n°5, 2002, pp.61-86. En ligne:
http://halshs.archives-ouvertes.fr/docs/00/49/50/49/PDF/Kalampalikis_2002.pdf

Artigo recebido em 25/07/2013. Aprovado em 04/10/2013.

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ÉMILE ZOLA: A FORMAÇÃO DE UM MILITANTE1

EMILE ZOLA: THE MAKING OF A MILITANT

Rilton Ferreira BORGES•

Resumo: Este artigo tem como objetivo traçar uma biografia de Émile Zola do ponto de vista
intelectual, buscando em sua formação, trajetória pessoal e profissional, os caracteres que
possam ter contribuído para que sua obra, sobretudo a partir de Germinal, passasse a ser
reconhecida por seus contemporâneos, e também posteriormente, como uma espécie de
“militância”, termo que será utilizado em sentido amplo, como defesa de uma ideia ou causa. A
partir de documentações de diferentes ordens, tentaremos demonstrar alguns itinerários
possíveis para compreender esta questão, relacionando Émile Zola, o contexto histórico, social e
intelectual em que viveu, e alguns traços de sua obra, sobretudo a série Os Rougon-Macquart.
Para tanto, a trajetória de Zola será dividida em três momentos: a militância na arte, a militância
pelo Naturalismo e a militância política.
Palavras-chave: Zola – Militante – Intelectual.

Abstract: This article aims to draw a biography of Emile Zola by an intellectual point of view,
investigating his formation, personal and professional trajectory, the features that may
contributed to his work, mainly from Germinal, started to be known by his contemporaries, and
lately, as a kind of “militance”, term used meaning “the defense of an idea or a cause”. From
distinct kinds of documents, we will try to demonstrate some possible ways to understand this
point, relating Emile Zola's historical, social and intellectual context with some marks of his
books, especially The Rougon-Macquart series. Therefore, the trajectory of Zola will be divided
in three stages: militancy in art, militancy in the Naturalism and political militancy.
Keywords: Zola – Militant – Intellectual.

Introdução

Segundo o biógrafo Matthew Josephson, a partir da publicação de Germinal em


1885, Zola passou a ser publicamente notado como um autor socialista. Esta percepção
não causaria estranheza ao leitor familiarizado com o Zola do “caso Dreyfus”, que
facilmente associaria esta atuação política à preocupação do autor em denunciar as
péssimas condições de trabalho e de sobrevivência dos mineiros do norte da França.
Esta leitura é ainda reforçada ao se notar, em carta de 16 de março de 1884 a Édouard
Rod, que Zola conta ter reunido toda a documentação para um romance socialista, o
qual hoje sabemos ser justamente Germinal. Porém, ao olharmos para o Zola do início
da série Os Rougon-Macquart certamente teremos grande estranheza ao notar que o


Mestrando em História – Programa de Pós Graduação em História – Escola de Filosofia Letras e
Ciências Humanas – Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, Campus Guarulhos. Bolsista
CAPES. Professor da Rede Pública Municipal de São Paulo. E-mail: riltonferreira.rf@gmail.com

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autor de L'Assomoir, que retratava justamente os operários de Paris, ao defender-se das
críticas sobre esta obra, que o acusavam de se “deleitar com a imundície”, declarava ser
um bom burguês, de hábitos simples e recatados, totalmente adequado ao que se
esperava de alguém de sua posição e, sobretudo, que sua obra carregava traços
moralizantes que buscavam mostrar às autoridades o que deveria ser combatido para
que os operários pudessem trabalhar melhor e viver de forma mais virtuosa
(JOSEPHSON, 1958, p. 214). Teríamos aqui uma contradição, uma mudança de
pensamento do autor, ou apenas mais um exemplo da complexidade do pensamento de
Zola?
É certo que uma trajetória de vida dificilmente é um todo coerente, com início e
desenvolvimento orientados a um fim específico. Como nos alerta Bourdieu (1996a, p.
183), ao tentarmos encontrar uma coerência interna ao produzirmos uma biografia,
corremos o risco de estabelecer conexões arbitrárias e criar uma coerência entre certos
aspectos que, na realidade, nunca existiu. Isso, porém, não nos impede de buscar, dentro
de uma biografia, respostas para questões que surgem ao se analisar a vida de uma
determinada personagem. Cabe, neste contexto, buscar não apenas o que se realizou,
mas também as possibilidades não concretizadas, de modo a perceber, no indivíduo, sua
liberdade de ação e de apropriação das ideias que estão a sua disposição. Esta
concepção permite ao pesquisador observar a ação do indivíduo em suas possibilidades
e limitações, tornando-o plenamente um sujeito histórico.
Além da preocupação metodológica do trabalho com a biografia de um autor
como Zola, cuja ação política é escolhida como marco temporal do campo conhecido
como História dos Intelectuais (SILVA, 2003, p.15), é preciso destacar o que
chamaremos aqui de militância. Dentro de uma concepção ampla, o termo “militância”
se refere à atividade de defesa de uma ideia ou ponto de vista. Zola, ao longo de sua
trajetória, tomou partido em diferentes questões, a partir das quais tentaremos
compreender seu percurso político e intelectual. Deste modo, a construção da biografia
que se segue não se dará a partir dos marcos tradicionais de nascimento e morte, mas
terá como base o percurso de Émile Zola na defesa de suas ideias, recuando e
avançando no tempo conforme as necessidades que cada questão coloque.
Propomos aqui uma divisão do que chamamos de “militância de Zola” em três
momentos: a militância na arte, a militância pelo Naturalismo e a militância política. A
divisão que aqui propomos não se dá pela exclusão, visto que sobretudo as duas
primeiras se misturam, e a última pode ser vista como decorrência das anteriores, mas
pela predominância. Porém, como tentaremos demonstrar, cada uma destas três fases
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guarda especificidades, tanto de método, quanto de posicionamento, que podem se
relacionar tanto com a vida pessoal quanto com a obra literária de Zola.

A militância pela arte

O Salão de Arte de 1863, em Paris, teria uma novidade em relação aos anteriores.
Devido ao grande número de reclamações, Napoleão III decidira fazer uma mostra
paralela, na qual seriam expostos os trabalhos de pintores recusados para a mostra
oficial. Émile Zola e Paul Cézanne, seu amigo de infância e que tivera seu quadro
rejeitado pelo júri, receberam a notícia como uma vitória da nova arte que estava sendo
proposta por nomes como Pissarro, Claude Monet e Édouard Manet. Esta medida,
contudo, tinha outro objetivo: chocar o público acostumado à arte tradicional com estas
telas, de modo que os novos pintores fossem reprovados pelo público da mesma forma
que haviam sido reprovados pelo júri. Zola, fascinado pela nova experiência de arte que
estes pintores traziam, sobretudo o estilo de Manet, decide abraçar a causa destes novos
artistas. Através da amizade com Cézanne, Zola circulava por ateliês e exposições,
tornava-se amigo de diversos artistas, conhecia suas técnicas e formas de produção,
passava a entender a arte por dentro. Escreveu, então, um ensaio sobre as “três telas”,
tomando partido da estética realista em detrimento da clássica e da romântica, publicado
em um jornal de Aix-en-Provence. A possibilidade de uma nova arte, que Zola já
ensaiava em seus escritos, tinha nas artes plásticas também uma possibilidade.
O que mais agradava Zola nestes novos pintores era a novidade, não exatamente a
estética. Os quadros de Cézanne, por exemplo, nunca figuraram entre os favoritos de
Zola. Mas a atitude de romper com o tradicional e propor o novo era, sem dúvida, o que
mais atraía Zola. Sua concepção de arte vinha, em grande medida, de um autor que
considerava um dos mais notáveis de seu tempo, Hipollyte Taine, autor de Philosophie
de L'art, obra da qual Zola extraiu sua concepção de arte a serviço da ciência.
Mas, como atestam Troyat (1994) e Josephson (1958), nem sempre este foi o
ideal artístico deste autor. Em sua adolescência, nos campos de Aix, Zola era um jovem
entusiasmado pelo Romantismo. Via a arte como forma de embelezar o mundo, sendo o
“poeta um profeta enviado por Deus para iniciar os homens nas perfeições da natureza”
(TROYAT, 1994, p. 34). Foi na companhia de seus dois grandes amigos de infância e
colegas no Colégio Bourbon, em Aix, Paul Cézane e Jean-Baptiste Baille (futuro
cientista e professor da École Polytechnique de Paris) que Zola começou a se
aprofundar em artes e literatura, começando a projetar seu trabalho como escritor,
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justamente aproximando-se da poesia e do Romantismo, por volta dos 13 anos de idade.
Nesta época, Zola e seus amigos descobriram Rousseau, Hugo e Musset. O primeiro
trabalho de Zola, ainda aos treze anos, foi um romance de cavaleiros e donzelas
medievais inspirado em um trabalho de Michelet (JOSEPHSON, 1958, p. 24).
Esta visão de mundo teria perdurado até o fim de seus estudos, aos dezenove
anos, quando já vivia em Paris com a mãe e o avô (JOSEPHSON, 1958, p. 33). Desde a
morte de seu pai, pouco antes de Zola completar sete anos de idade, sua família
encontrava-se em graves problemas financeiros, o que obrigou sua mãe e seus avós
maternos a mudarem de residência constantemente em Aix e a investir suas economias
na educação do pequeno Émile Zola (TROYAT, 1994, p. 15). Quando a situação se
tornou insustentável, a família mudou-se para Paris, onde a mãe de Zola, Emilie, podia
trabalhar em serviços domésticos para sustentá-lo, quando Zola tinha já dezoito anos.
Na nova cidade e na nova escola, o antes aplicado aluno, apesar de preguiçoso, que
costumava figurar entre os primeiros de sua classe, passou a ser um aluno desencantado
com os estudos e empolgado apenas com a literatura de seu tempo (TROYAT, 1994,
p.26). Os clássicos, objeto de estudos em suas aulas, eram quase desprezados, o que
talvez tenha ajudado Zola a decidir-se por ciências ao invés de letras, ainda em Aix,
quando entrou para a segunda classe. Em Paris, Zola teve dois anos de estudo muito
ruins e nenhuma amizade conquistada, o que o deixava ainda menos a vontade no
ambiente escolar. Sua única dedicação era, então, a literatura (JOSEPHSON, 1958, p.
32).
Concluídos os estudos, Zola teve a resolução de que, se quisesse ser um literato,
precisava ter um diploma (ZOLA, 1907, p. 6). Entre as carreiras possíveis, o jovem que
almejava ser escritor decidiu que o Direito estaria mais de acordo com suas aspirações
(JOSEPHSON, 1958, p. 36). Prestou as provas escritas em Sorbonne e foi aprovado,
mas no exame oral recebeu uma nota baixa em História e foi considerado “inapto em
Literatura” (TROYAT, 1994, p. 29). Passando as férias em Aix, decidiu que tentaria
ingressar no curso de Direito em Marselha, que em tese seria mais fácil que em Paris.
Contudo, Zola foi reprovado ainda na prova escrita, o que o fez desistir do diploma de
bacharel e pensar em outra forma de sobreviver (JOSEPHSON, 1958, p. 38).
Aos vinte anos, Zola tornou-se uma espécie de flâneur, vagando por Paris e
experimentando suas sensações, mas sem conseguir se fixar, enquanto sua mãe
trabalhava para mantê-lo (JOSEPHSON, 1958, p. 39). Esta situação certamente o
desagradava, levando-o a ignorar sua decisão da adolescência de nunca trabalhar em
repartições e, com a ajuda de um amigo da família, conseguiu um emprego nas docas de
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Napoleão, ao norte de Paris, calculando direitos alfandegários e fretes (JOSEPHSON,
1958, p. 40). Ganhava 60 francos por mês, valor que não era suficiente para uma pessoa
se manter em 1860. Além do salário baixo, Zola não suportava o ambiente insalubre, o
que o fez abandonar este emprego apenas dois meses após ser contratado (TROYAT,
1994, p. 35).
Vivendo já sem a mãe, Zola foi experimentando cada vez mais a miséria, o frio e
a fome, mas sem nunca deixar de lado a literatura (JOSEPHSON, 1958, p. 42). Durante
os extremos de pobreza, Zola começou a ter também experiências que só conhecia
através da literatura, chegando a viver com uma prostituta (TROYAT, 1994, p. 32). Foi
neste momento, provavelmente, que sua mente romântica começou a procurar uma nova
forma de enxergar a realidade, mesmo que neste momento não fosse ainda um franco
opositor do Império e descrente de sua religião.
Voltando à relação com a arte, vemos um Zola, então chefe do departamento de
propaganda da Editora Hachette et Cie., tornar-se colaborador do jornal L'Événement,
do mesmo dono do Le Figaro, Hippolyte de Villemessant, escrevendo uma coluna sobre
literatura que teve grande sucesso (TROYAT, 1994, p. 54). Villemessant pediu a Zola,
então, uma apreciação sobre a Exposição de 1866. Sob o pseudônimo de Claude,
referência a seu primeiro romance publicado, Zola expõe sua indignação com a arte
“conservadora” e com o júri que descartou nomes como Manet, defendendo os novos
artistas e chocando os leitores (JOSEPHSON, 1958, p. 95). Os novos pintores
acolheram Zola como seu defensor na imprensa, ao passo que o autor sentia-se muito a
vontade para continuar escrevendo sobre arte ou, melhor dizendo, sobre como deveria
ser a arte (TROYAT, 1994, p. 56).
Villemessant, em princípio, gosta do resultado da polêmica iniciada por Zola, que
voltam as atenções para seu jornal. Mas, junto com a atenção, muitos protestos chegam
à redação do jornal: ameaças do cancelamento de assinaturas, negociantes de artes
retirando seus anúncios do jornal e até mesmo boatos de que a campanha de Zola contra
a “arte acadêmica” estaria incomodando a Napoleão III que mandaria investigar o jornal
(TROYAT, 1994, p. 56-57). O dono do jornal tentou equilibrar as coisas colocando um
outro colunista que elogiava os pintores consagrados e debatia com Zola, o que não se
sustentou por muito tempo. Após mais um artigo “iconoclasta”, Zola foi demitido do
L'Événement (JOSEHSON, 1958, p. 97). Após sua saída, como um último ataque, Zola
reuniu suas crônicas neste jornal em um livro publicado com o título de Mon Salon, que
dedicou a Cézanne, a quem não se referiu sequer uma única vez em seus artigos
(TROYAT, 1994, p. 57). Como podemos depreender de Troyat (1994), Zola nunca foi
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admirador da obra de Cézanne, e este nunca teve muito interesse pela literatura de Zola.
Apesar dos fortes laços de amizade na infância, os dois tinham concepções diferentes de
arte e, conforme amadureciam, iam se distanciando cada vez mais (JOSEPHSON, 1958,
p. 101).
Neste primeiro momento, percebemos Zola em busca de uma concepção de arte.
Esta ideia tinha uma premissa: o rompimento com o tradicional e consequente busca
pelo novo (ZOLA, 1908, p. 17). Isto se dava, em grande parte, por Zola não mais
conseguir dar conta do mundo a sua volta através do prisma romântico que predominou
em sua juventude e ainda em seu primeiro livro publicado, Contes a Ninon (TROYAT,
1994, p. 49-50).
Outra fonte para esta relação com o inconformismo seria uma possível herança de
seu pai (JOSEPHSON, 1958, p. 4-16). O pai de Émile Zola, o engenheiro italiano
Francesco Zola (que ao se estabelecer em Marselha adotou o nome de François) lutava
pela aprovação da construção do canal em Aix-en-Provence que se deu em 1846. Este
canal seria sua principal obra, e a realização deste projeto traria à família estabilidade e
certa comodidade financeira. Neste contexto, educado pela mãe e pelos avós maternos,
Émile Zola cresceu entre mimos (JOSEPHSON, 1958, p. 11).
Este ambiente leve no qual Émile Zola era criado começou a se desfazer em
março de 1847, pouco antes de Zola completar sete anos de idade, quando seu pai
morreu durante uma viagem de negócios em Marselha, para a qual havia levado sua
esposa, acometido por uma grave doença pulmonar que confundira, dias antes, com uma
simples gripe. A morte de François Zola acarretou à família muito mais do que a perda
do pai e do esposo: trouxe consigo a revelação de dívidas que o engenheiro italiano
acumulara na busca pela aprovação de seus projetos. A família Zola precisou
reorganizar as finanças: demitiu criados, começou a mudar de endereço e de padrão de
vida. Emilie esperava que a família recebesse o pagamento que François teria direito
pela construção do canal mas, em 1848, a crise política que a França vivia afetaria
diretamente os Zola: com a ascensão de Napoleão III ao poder, diversas obras públicas
foram paralisadas, entre elas a construção do canal de Aix. Com a interrupção da obra, o
pagamento que Emilie receberia em nome de seu falecido marido também foi suspenso.
Em 1851, quando finalmente a administração de Napoleão III chegou a Aix (após muita
resistência na região), os direitos pela construção do canal deixaram de ser
reconhecidos, o que obrigou Emilie a entrar em uma batalha judicial contra o novo
governo, cujos custos eram, para ela, quase impagáveis. Quando finalmente o novo
governo retomou o interesse pela construção do canal, ainda conhecido como Canal
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Zola, a família recebeu uma pequena indenização (JOSEPHSON, 1958, p. 12-16).
Temos aqui um primeiro momento pelo qual Émile Zola toma contato com a
política, ainda que indiretamente. Uma criança, dos 8 aos 11 anos de idade, dificilmente
teria a completa dimensão de tudo que lhe ocorria, sobretudo a relação entre a política
da França e os problemas financeiros de sua família. Contudo, não seria exagerado
imaginar que sua mãe e seus avós tenham transmitido ao pequeno Émile toda a
insatisfação com a nova administração que não reconhecia o direito que tinham e o
papel que François Zola exercera para a cidade de Aix. Tendo consciência disto ou não,
foi neste momento que Émile Zola pela primeira vez experimentou a oposição entre sua
vida e o governo de Napoleão III, que seria o pano de fundo para as obras da série Os
Rougon-Macquart.

A militância pelo Naturalismo

O que aqui chamamos de “militância no Naturalismo” é um desdobramento da


militância na arte. Após reconhecer a necessidade de se buscar um novo modelo
artístico, Zola passou a trabalhar em sua construção. Mas, para isso, precisava se
estabelecer financeiramente (ZOLA, 1907, p. 5). Com a ajuda de outro amigo da
família, Dr. Boudet, foi indicado para um emprego na editora Hachette et Cie. Durante o
mês em que esperou a vaga, Zola trabalhou para o Dr. Boudet entregando cartões de
Boas Festas a seus amigos, recebendo um pagamento simbólico, mas que já era
suficiente para ajudá-lo a sobreviver (JOSEPHSON, 1958, p. 62).
Na Hachette, em fevereiro de 1862, Zola começou como empacotador e sua
personalidade passou por uma grande transformação. Do jovem que pouco se dedicava
aos estudos e depois vagava por Paris, passou a ser um trabalhador dedicado e bem
visto dentro da empresa. Em pouco tempo a dedicação foi recompensada com uma
promoção para o departamento de propaganda e um pequeno aumento de salário. Esta
situação dava a Zola a esperança de poder, finalmente, dar a sua mãe uma nova
condição de vida, restaurando o conforto que haviam perdido com a morte de seu pai
(TROYAT, 1994, p. 43). É possível que esta disciplina de trabalho tenha ajudado a
formatar o Zola escritor, também disciplinado e metódico na produção de seus
romances, como podemos perceber em seus rascunhos (ZOLA, s.d., n.p.). O trabalho no
departamento de propaganda da Hachette, onde se tornou chefe, o colocou em contato
com o mundo da editoração. Ali teve contato com redatores, romancistas e
historiadores. Descobriu como calcular o valor dos contratos e de venda das obras.
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Conheceu os caminhos que levavam o livro ao público, passando pela propaganda nos
jornais, pela aprovação dos críticos e pelas estantes das livrarias (TROYAT, 1994, p. 45-
46). É bastante provável que este trabalho dentro da editora deu a Zola todo o
instrumental necessário para que pudesse se lançar como autor com muita segurança.
Enquanto trabalhava como chefe do departamento de propaganda de uma das
principais editoras da França, Zola se preparava para sua nova literatura. As ideias de
Darwin e Laplace circulavam pela Europa e provavelmente ajudaram a fortalecer as
esperanças sobre o poder da ciência em Zola. Sua maior influência, contudo, foi a de
Hippolyte Taine, como já citamos anteriormente. Por alguns meses, Zola frequentou a
Biblioteca Nacional em busca de informações para compor uma “filosofia” para sua
arte, e imediatamente começou a trabalhar segundo esta nova “filosofia” (TROYAT,
1994, p. 62-65). Adquirindo confiança em seu trabalho, Zola resolveu deixar sobre a
mesa de Louis Hachette, dono da editora, os manuscritos de algumas de suas poesias.
Após um sermão inicial, repreendendo Zola pela liberdade tomada, Hachette aconselhou
o novo autor a dedicar-se à prosa para que fosse mais lido, além de lhe conceder uma
promoção como incentivo a sua nova carreira (JOSEPHSON, 1958, p. 68). Este foi mais
um golpe, ainda que não o último, sobre o poeta romântico que dava lugar ao
romancista naturalista. Zola tinha consigo a pretensão de ser um escritor grandemente
lido e reconhecido, por querer se igualar a seu pai, que projetou o grande Canal Zola em
Aix (TROYAT, 1994), ou por querer se igualar a Balzac e Hugo como um dos grandes
nomes da literatura francesa (JOSEPHSON, 1958). Talvez um misto de ambos?
Hachette resolveu, então, encomendar a Zola um conto para uma revista infantil
que editava. O conto intitulado A Irmãzinha dos Pobres, porém, não chegou a ser
publicado, pois Hachette o considerou “revolucionário”. Segundo Josephson (1994, p.
69) não havia, de fato, nenhuma ideia “revolucionária” neste conto, mas alguns traços
de crítica social podem ter levado Hachette a classificar o texto dessa forma. É preciso
lembrar que a situação política da França era ainda tensa, e qualquer texto que pudesse
ser interpretado como crítica à estrutura social vigente poderia trazer problemas ao autor
e à editora. Sendo assim, o experiente Hachette preferiu não se arriscar. Em todo o caso,
um pouco do autor que buscava representar a realidade com o máximo de detalhes já se
revelava neste conto que não tinha grandes pretensões (JOSEPHSON, 1958, p. 69).
Como chefe de propaganda da Hachette, Zola faz mais uma importante descoberta: os
homens das letras precisavam sobreviver de alguma forma. A literatura é, ao mesmo
tempo, sacerdócio e ganha-pão (TROYAT, 1994, p. 46). Isso incentivou Zola a trabalhar
em busca de um dia poder viver apenas de sua pena. Mas, para isso, havia um longo
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caminho a ser percorrido.
Tendo pronto o manuscrito de seu primeiro livro de contos, o Contes à Ninon,
Zola o apresentou a Hachette, que imediatamente o recomendou ao editor Hetzel, que
junto com Lacroix havia fundado a Librarie Internacionale, livraria que editava
traduções de importantes obras estrangeiras e de autores franceses ligados à esquerda e
às “ideias revolucionárias”, como Hugo e Proudhon (Hachette provavelmente se
convenceu de que Zola estava mais próximo dos autores desta editora do que da sua
própria). Zola apresentou-se a esta editora em 1864. Segundo Henri Troyat (1994), Zola
teria se apresentado a Hetzel de forma espirituosa e quarenta horas depois recebeu um
bilhete avisando que Lacroix seria seu editor; segundo Matthew Josephson (1958), Zola
apresentou-se timidamente a Lacroix, que prometeu ler seu manuscrito, mas só o fez
após alguns dias de insistência de Zola. O que sabemos com certeza é que o primeiro
livro de Zola foi publicado por Hetzel & Lacroix em outubro de 1864, poucos meses
após a morte de Louis Hachette, fato que havia preocupado Zola a respeito de sua
continuidade na editora (ZOLA, 1908, p. 22-23). Este primeiro livro publicado era
ainda de inspiração romântica, reunindo contos de sua adolescência em Aix, de sua
juventude em Paris e ainda alguns de quando já era funcionário da Hachette. Nesta obra,
Zola era ainda um “filho de Rousseau” (JOSEPHSON, 1958, p. 72).
Aproveitando sua posição na Hachette, Zola usou seus contatos para ajudar a
divulgar, também, seu primeiro romance, pedindo aos jornais que, além dos livros que
enviava em nome da Hachette, dedicassem também algumas linhas a sua obra, o que
causou certo mal-estar com seu chefe, pois seu livro publicado por Hetzel & Lacroix era
constantemente associado à Hachette. A esta altura, com relativo sucesso como escritor
iniciante e os consequentes convites para ser colaborador em diferentes jornais, a chefia
da Hachette sugeriu que Zola “não desperdiçasse seu talento na propaganda da
Hachette” (JOSEPHSON, 1958, p. 83) e tentasse viver apenas como escritor. Era uma
forma educada de dizer que não queriam mais ter entre seus funcionários um autor a
respeito de quem um representante do Procurador Imperial havia feito perguntas
(JOSEPHSON, 1958, p. 83). Zola, então, pediu para ser demitido em janeiro de 1866
(ZOLA, 1908, p. 55). La Confession de Claude, seu primeiro romance, não fez grande
sucesso, mas ajudou a consolidar o nome de Zola como sendo um escritor profissional.
Nesta mesma época, Zola começa a conhecer os amigos pintores de Cézanne, sua futura
esposa, Éléonore-Alexandrine Meley, e passa a ter contato pessoal com Gustave
Flaubert, de quem se tornaria um grande amigo e interlocutor na literatura
(JOSEPHSON, 1958, p. 158).
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A formatação de um Zola “escritor”, contudo, dava-se principalmente através de
seu trabalho na imprensa. Seu primeiro trabalho de grande repercussão foram os artigos
sobre arte no L'Événement, mas como vimos não duraram muito tempo. No entanto,
mais do que usar os jornais como suporte para seus textos, Zola via na imprensa um
veículo de propaganda para suas ideias (ZOLA, 1908, p. 56). Conseguia frequentemente
espaço nos jornais que publicavam críticas aos seus trabalhos para suas respostas, que
geralmente causavam polêmicas ainda maiores (TROYAT, 1994). No caso de La
Confession de Claude, Zola chegou a “armar” um debate, pedindo para conhecidos que
o atacassem (JOSEPHSON, 1958, p. 116). Isto talvez não fosse necessário, visto que
esta obra chegou a ser investigada por atentado à moral e muitas das críticas se
direcionavam mais ao autor do que à obra em si (TROYAT, 1994, p. 65).
Após o pouco êxito de seu primeiro romance, Zola passou a buscar um tema
forte, que culminou em Thérèse Raquin, no qual o autor buscou fazer uma ficção que
parecesse real: começou a tratar seus personagens com o rigor de um cientista que
descreve um animal e se sentiu orgulhoso ao constatar, aos 27 anos, que o cientista
havia matado o poeta dentro de si (TROYAT, 1994, p. 64). O livro foi publicado com
cortes no texto original e acréscimos “moralizadores” por parte dos editores, o que em
muito desagradou Zola, que a esta altura assumira o compromisso em mostrar a
realidade, e não necessariamente com a aprovação do público (TROYAT, 1994, p. 64). A
crítica se dividiu, mas acabou sendo majoritariamente negativa. Para Zola, o importante,
naquele momento, era que o livro fosse comentado, e a curiosidade despertada pelas
críticas fez com que o livro tivesse boas vendas. Zola declarou que seu objetivo com
esta obra era, antes de tudo, científico, e se empenhou em defender sua obra na
imprensa. Hippolyte Taine chegou a escrever a Zola reconhecendo em Thérèse Raquin
uma genuína aplicação de suas ideias (TROYAT, 1994). Foi neste contexto que surgiu o
projeto dos Rougon-Macquart. Esta série, que teria inicialmente dez livros a serem
publicados em dez anos, e acabou tendo um total de vinte obras, seria a aplicação do
Naturalismo que Zola passara a pregar (ZOLA, s.d., n.p.).
Zola inspirou-se em Balzac: admirava-o, mas não admitia copiá-lo. Para seu
projeto estabeleceu um plano de trabalho e trabalhava a partir de um método. O autor se
aproximou das ciências exatas e acreditava que o romancista e o cientista
compartilhavam a missão de aprofundar o conhecimento sobre o real. Portanto, o
público que admirava os cientistas do século XIX deveria confiar nos escritores que
tivessem a mesma disciplina intelectual: se o século era científico, a literatura era
obrigada a sê-la (TROYAT, 1994, p. 69-71).
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Entre as principais referências para Zola no início deste projeto estavam a
Introdutión à la médicine experimentale, de Claude Bernard; o Traité de l'hérédité
naturelle, de Prosper Lucas; a Philosophie de l'art, de Taine; a Physiologie des Passions
de Charles Letourneau; estudos de Darwin então recentemente traduzidos para o francês
(ZOLA, s.d., n.p.).
Zola usou o materialismo, a fisiologia e a hereditariedade para mostrar os vícios e
a degeneração presentes no reinado de Napoleão III, o qual abominava, por considerar
um governo “antinaturalista”, o que significava dizer que, sob Napoleão III, a França
não respeitava as liberdades, sobretudo artísticas. Como mostra o importante estudo de
Bourdieu (1996b, p. 65), neste momento, os artistas franceses estavam subordinados a
“mecenas”, que por sua vez estavam subordinados ao Imperador, o que limitava
bastante a possibilidade de criação. Zola trabalhou na Biblioteca Imperial assiduamente
para criar a árvore genealógica dos Rougon-Macquart. Ao apresentar o projeto a
Lacroix, conseguiu um contrato com o editor que garantia os quatro primeiros tomos e
um salário de 500 francos por mês (TROYAT, 1994, p. 71). A partir de então,
estabeleceu uma rigorosa rotina de trabalho para dar conta deste projeto que se
pretendia monumental. O desejo de Zola era fazer o leitor ver um mundo que
desconhecia. Sua técnica fazia a obra apresentar-se como uma caricatura que, neste
caso, servia como ampliação para mostrar a essência da realidade, sendo semelhante ao
microscópio do cientista no laboratório.
A obra que inicia sua “História natural e social de uma família”, subtítulo dos
Rougon-Macquart, é La Fortune des Rougons. Esta começou a ser publicada em
folhetim em 1870, mas a publicação foi interrompida pela guerra com a Prússia, que
demandava mais espaço no jornal, sendo retomada em 1871 pelo jornal Le Siècle.
Enquanto isso, Zola observava, com dificuldades para compreender, as insurreições que
se intensificavam e os conflitos entre Versalhes e a Comuna. Todos estes
acontecimentos incentivaram Zola a trabalhar na continuação de sua série, sobretudo
quando os conflitos terminaram e Paris pareceu se preparar para um “novo reinado”: o
do Naturalismo (JOSEPHSON, 1958, p. 153). Esta esperança aumentou quando La
fortune des Rougons foi publicado em livro e elogiado por Flaubert, que recebeu um
volume enviado pelo próprio Zola.
A partir de então, o método de Zola para escrever estava estabelecido, e este só
iniciava um novo romance após a conclusão de 5 dossiês (ZOLA, s.d., n.p.):
1-características dos heróis e ideia geral do livro (“Ébauche”);
2-determinar estado civil, antecedentes hereditários, traços marcantes das
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personagens;
3-investigação sobre o meio em que se envolvem, profissão que exercem, etc.;
4-notas de leituras, jornais e entrevistas para dar autenticidade;
5-plano capítulo por capítulo.
A partir deste planejamento, Zola deixava a “inspiração fluir” e escrevia de 3 a 5
páginas por dia (TROYAT, 1994, p. 90-91). Todas as personagens da série que fazem
parte da família Rougon-Macquart receberam traços de demência ou alcoolismo,
heranças genéticas dos patriarcas da família mostrados no primeiro livro da série,
variando segundo o meio em que estavam inseridas. Ao final, Zola teria traçado um
panorama da sociedade do Segundo Império e teria dado cabo de um trabalho científico.
Em La Curée, Zola explorou o universo dos abastados de Paris, e para isso faz
uma densa pesquisa que foi de entrevistas com amigos ricos à análise de mapas de
Haussmann e livros de empréstimo de crédito imobiliário. Cabe lembrar aqui que
quando Zola chegou a Paris, com dezoito anos, a cidade estava sendo reconstruída a
cargo do Barão de Haussmann, de modo que toda a dinâmica da cidade estava se
reconfigurando. Este contexto certamente impressionou o jovem que acabara de chegar
e que até então pouco conhecia além dos campos da Provença. Publicado inicialmente
no jornal La Cloche, este romance começou a ser denunciado pelos leitores ao
procurador da república que convenceu Zola a suspender a publicação (ZOLA, 1908, p.
86). Zola escreveu um artigo defendendo sua obra dizendo que ela era um retrato dos
problemas do Segundo Império; mas o que incomodava o público era a sexualidade
violenta apresentada na obra. Quando La Curée foi lançado em livro por Lacroix pouco
se comentou, pois a imprensa estava mais preocupada com a política (TROYAT, 1994,
p. 93). Após a falência da Lacroix, Zola foi apresentado ao editor Georges Charpentier,
a quem fez a proposta quase absurda de lhe pagar um salário fixo para produzir dois
livros por ano. Charpentier, que via nele um grande potencial de vendas, não apenas
aceitou a proposta como adquiriu os direitos dos dois primeiros livros da série dos
Rougon-Macquarte (JOSEPHSON, 1958, p. 167). Zola passou a se dedicar com
tranquilidade ao Ventre de Paris, no qual sua pesquisa se debruçava sobre o mercado de
Les Halles. Segundo Troyat, a efusão de aromas e sabores que se desprendem da obra
fizeram com que o público tivesse maior aceitação a ela, vendendo mais que os dois
primeiros da série, mas sem conquistar a unanimidade da crítica (TROYAT, 1994, p. 94-
95).
Neste momento, Zola começou a estreitar laços com outros dois grandes nomes
da literatura de sua época: Edmond de Goncourt e Flaubert, sentindo-se mais amigo
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deste último. Na casa de Flaubert, teve reuniões frequentes com Goncourt, Guy de
Mupassant, Alphonse Daudet e Ivan Torgueniev, formando o “grupo dos cinco”. Estes
eram, na mesma medida, amigos e colaboradores. Em torno destes nomes começaram a
se agrupar jovens escritores que abraçaram o projeto literário proposto por estes. Aliás,
não só um projeto literário, mas todo um modo de vida que inclui a profissionalização
do escritor. Estes passaram a se dedicar à administração das receitas geradas por suas
obras, ocupando lugar de destaque em meio à sociedade e renunciando à excentricidade
dos escritores de outros tempos. Tornaram-se membros da burguesia e assumiam o
comportamento desta em oposição aos “boêmios da escritura”, com quem os
naturalistas “não têm o que discutir” (TROYAT, 1994, p. 98-101). Os autores passavam
então a ser responsáveis não apenas por entreter, mas por educar a sociedade e os novos
escritores. E estes precisavam se diferenciar dos “amadores”, pois qualquer um pode
escrever, mas um profissional vive disso (TROYAT, 1994, p. 102). É provável que os
jovens escritores que seguiam Zola tenham se inspirado muito mais em seu modelo de
“profissional de sucesso”, capaz de viver apenas da literatura, do que em seu ideal
“naturalista” de escrita, visto que, como nos lembra Bourdieu (1996b, p. 72), o campo
da literatura vivia um contexto em que a profissionalização do escritor era fundamental
para libertá-lo da subordinação a outros campos.
Zola engajou-se no romance La Conquête de Plassans e na adaptação para o
teatro de Thérèse Raquin, mas ambos fracassaram enormemente (o livro vendeu apenas
17 exemplares em 6 meses e a peça foi suspensa após 17 apresentações). Com 34 anos,
o autor começou a se questionar se alcançaria o sucesso que Flaubert, por exemplo,
havia alcançado quando tinha esta mesma idade (TROYAT, 1994, p. 104).
O projeto seguinte foi La Faute de l'Abbé Mouret, no qual sua pesquisa recaía
sobre a religião e seu embate contra a natureza. Zola, que recebeu alguma formação
religiosa por parte da mãe e descendia de uma família muito religiosa por parte de pai
(JOSEPHSON, 1958, p. 4), se dedicou ao estudo de obras religiosas, como escritos dos
jesuítas espanhóis e a Imitação de Cristo de Thomas de Kemps, além de assistir a várias
missas em companhia de sua esposa (TROYAT, 1994, p. 105-106). Para a paisagem,
buscou dicionários, exposições de horticultura e recorreu às lembranças dos arredores
de Aix. Em meio a este processo, mudou-se para uma “casa burguesa”, maior e mais
ostentosa: era necessário mostrar seu triunfo como escritor (TROYAT, 1994, p. 120-
121). Como nas outras publicações, a crítica foi pesada, sobretudo no que se referia à
“animalização” das personagens. Seus poucos defensores na imprensa foram seus
amigos e seguidores. O livro seguinte foi Son Excellence Eugène Rougon, cuja
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personagem principal já havia aparecido em La Conquête de Plassans e então se tornara
ministro do Império para mostrar um “regime resplandecente por fora, mas podre por
dentro” (TROYAT, 1994, p. 110). Os prazeres da carne dão lugar à dominação
intelectual, e as tramas amorosas dão lugar às tramas políticas. Zola utilizou-se de
entrevistas e pesquisas na biblioteca do Palais-Bourbon para compor a obra. Por
intermédio de Tourgueniev, romancista russo radicado na França, a obra foi publicada
primeiramente na Rússia pela revista Le Messager de l'Europe, onde alcançou grande
sucesso – de público e financeiro (TROYAT, 1994, p. 110). Na França não houve grande
repercussão; talvez, suporia Zola (ZOLA, 1908, p. 6), pelo fato de escrever muito em
pouco tempo: os seis primeiros volumes do Rougon-Macquart foram publicados entre
1870 e 1876. Esta produção, apesar de grande, estava aquém do combinado entre Zola e
Charpentier, que estabeleceram dois romances por ano. Mas, devido ao sucesso de seu
autor, Charpentier reformulou o contrato e, ao invés de um salário fixo, Zola teria
participação nos lucros dos livros o que, ao invés de deixar Zola em dívida com
Charpentier, fez o editor dever cerca de 10.000 francos a Zola (JOSEPHSON, 1958, p.
201). A esta altura, aliás, o projeto dos Rougon-Macquart já havia crescido para vinte
volumes (TROYAT, 1994, p. 124).
Após se aventurar pela alta sociedade, Zola decidiu buscar o operário e sua
degradação em Paris. A personagem Gervaise seria o grande nome de L'Assomoir. A
pesquisa, desta vez, foi uma observação pessoal das ruas e ambientes operários. Zola
entrou em bares, lavanderias, percorreu becos. Leu Le Sublime, de Denis Poulot, que
descreve a situação de trabalhadores e prevê a criação de sindicatos, e Dictionnaire de
la langue verte, de onde extraiu uma lista de gírias que “o encantam por sua sonoridade
brutal” (TROYAT, 1994, p. 115). Zola não se contentou em usar a linguagem dos
trabalhadores quando lhes dava a voz, mas também na narração, mergulhando o leitor
no universo operário. Zola previa as críticas, sobretudo referentes à simplificação da
psicologia das personagens para encaixá-las em suas teorias. Submeteu os manuscritos
ao jornal republicano radical Le Bien Public, que aceitou publicá-lo com cortes. Mesmo
com os cortes, os leitores protestaram e a publicação foi suspensa. Além dos protestos
do público, a imprensa conservadora acusa Zola e Le Bien Public de difamarem aos
operários. Esta manobra visava jogar os trabalhadores contra o jornal, tirando votos dos
quais dependiam os republicanos radicais (JOSEPHSON, 1958, p. 213). Recomendado
à revista Le République des lettres, de pequena circulação, Zola continuou sendo
atacado com críticas cada vez mais duras, acusado de “imundície” e “pornografia”. O
autor defendia-se dizendo que cumpria um papel moralizador: mostrava a realidade para
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mudá-la, para tirar o trabalhador desta imundície em que vivia. Chegou a declarar-se um
“bom burguês” e que as pessoas se surpreenderiam ao ver como sua vida era regrada
(JOSEPHSON, 1958, p. 214).
Para Zola, esta avalanche de críticas lhe rendeu uma boa propaganda (TROYAT,
1994, p. 119). Quando o livro foi finalmente lançado, o debate reapareceu, mas surgiram
alguns críticos importantes que deram valor ao trabalho de Zola. Os críticos o acusavam
de imundície, de desprezo ao povo, ou mesmo de plágio de Le Sublime. Toda esta
polêmica aguçou a curiosidade dos leitores e fez com que L'Assomoir vendesse rápido e
regularmente. Charpentier, seu editor, tornou Zola sócio nos lucros das vendas e o autor
passou a ganhar muito dinheiro (TROYAT, 1994, p. 119). A obra atingiu toda a
sociedade: os abastados tinham curiosidade pela novidade (era a obra a ser lida para se
ter assunto nos salões e recepções); a burguesia ficou chocada, mas se apropriou da
imagem dos operários produzida por Zola para atacá-los; e os operários, a grande
novidade no público leitor de Zola, reconheceram a verdade em que viviam e se
identificaram com a obra (TROYAT, 1994, p. 119). Zola, com o sucesso, tornou-se uma
espécie de novo rico e despertou o ciúme de amigos, como Goncourt. Contagiado pelo
sucesso, Zola sentia-se seguro para tentar escrever para o teatro, usando o humor, mas
fracassou outra vez (TROYAT, 1994, p. 120). Escreveu, em seguida, Une page d'amour,
romance que julgava ser um pouco mais modesto, em que sua pesquisa recai sobre o
amor. A obra é mais contida, foi recebida de forma simpática pela crítica, mas, talvez
por isso, não vendeu muito (TROYAT, 1994, p. 123). É interessante notar o quanto as
vendas das obras de Zola estavam atreladas à polêmica surgida na imprensa. Zola sabia
muito bem disso, e procurou aproveitar esta forma de divulgação sempre que podia.
Zola mudou-se para o campo em 1878 e formou uma imensa propriedade em
Médan, onde pôde se dedicar a escrever e a atividades corriqueiras do dia a dia, como
cuidar de suas roseiras e brincar com seus cães, além de receber seus amigos e
seguidores, apelidados pela imprensa de “senhores Zola” (TROYAT, 1994, p. 128). Sua
propriedade quase bucólica era cortada por uma estrada de ferro: único barulho que não
o incomodava, mas o inspirava por celebrar a vida moderna. Após deixar de receber
uma condecoração que dava como certa (um ministro havia declarado à imprensa que a
daria, mas voltou atrás na última hora), o autor escreveu um artigo publicado primeiro
na Rússia, depois na França no Le Figaro, em que atacava os homens de letras, mesmo
alguns nomes de peso. Este artigo foi o motivo para que perdesse uma segunda
condecoração. A partir de então, Zola passou a rejeitar toda premiação deste tipo.
Dedicou-se, então, ao trabalho em Nana. Para entrar no mundo da prostituição
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entrevistou vários amigos, que aos poucos foram lhe apresentando lugares e pessoas que
ampliaram sua visão sobre este mundo que desconhecia. Segundo Troyat (1994), sua
esposa não se sentia confortável, mas ao mesmo tempo confiava em seu marido e
respeitava seu trabalho. Para Zola, “a questão filosófica é esta: toda sociedade correndo
atrás do próprio rabo. Uma matilha atrás de uma cadela que não está no cio e que zomba
dos cães que a seguem” (ZOLA, s.d, n.p.). As descrições de Zola são cheias de uma
sensualidade carregada, nos detalhes do corpo, nos aromas, luzes e sensações. Antes
mesmo do lançamento, o livro já havia uma campanha de propaganda feroz, nunca antes
vista para um livro de Zola (JOSEPHSON, 1958, p. 246-247). Le Voltaire iniciou a
publicação em folhetim em 1879 e a crítica foi tão violenta quanto a de L'Assomoir
(TROYAT, 1994, p. 135). O lançamento do livro aumentou a polêmica. As críticas
jogaram Zola no esgoto, mas, para o público, era como se um pedestal fosse construído
para o autor: Nana não foi só um sucesso de vendas, sua heroína tornou-se um símbolo
(TROYAT, 1994, p. 135). Em seguida, uma adaptação para o teatro de L'Assomoir, que
não havia agradado a Zola, tornou-se um grande sucesso; sua centésima apresentação
foi gratuita, formando filas imensas e atraindo um público muito variado. Zola afirmou-
se, finalmente, como um grande nome (JOSEPHSON, 1958, p. 255).
Zola e Cézane mantiveram a amizade, mas não se entendiam do ponto de vista
intelectual: um criticava o trabalho do outro. Aliás, Zola se desencantara com os
pintores de um modo geral, mesmo com aqueles que outrora defendera: estes não
seguiam o espírito do Naturalismo. Em 1880, morreu Flaubert, levando Zola a refletir
sobre a futilidade de sua glória. Neste momento, foi apresentado a Schopenhauer e
identificou-se com seu pessimismo. Em seguida, sua mãe também faleceu (TROYAT,
1994, p. 142-146).
Após escrever sobre política por um período, Zola abandonou a imprensa e
passou a trabalhar em Pot-Bouille, romance no qual a burguesia seria analisada.
Acreditava que falar da burguesia era lançar a acusação mais violenta possível sobre a
sociedade. Zola escreveria, então, sobre o meio no qual estava inserido: uma manobra
bastante arriscada para um cientista que busca a neutralidade. Contudo, um incidente o
atrapalha no início da publicação em folhetim: um homônimo de uma de suas
personagens vai aos tribunais exigir que seu nome não seja usado e vence. Outros
tentaram o mesmo, mas Zola conseguiu se defender e a obra foi publicada com apenas
uma alteração. Zola parecia menos à vontade para falar sobre a sociedade que
frequentou, e a crítica não tardou em atacá-lo, conclamando a burguesia, que fez dele
um sucesso de vendas, a se revoltar contra o retrato pintado por Zola a respeito dela.
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Mesmo seus amigos acharam que a obra “ultrapassava o objetivo visado” (TROYAT,
1994, p. 150-151).
Au Bonheur des Dames, o romance seguinte, já estava sendo produzido. O alvo,
desta vez, era o comércio de Paris, representado através de uma luta entre o pequeno
comércio e uma grande loja. Zola queria mostrar a modernidade, por isso abandonou o
pessimismo das últimas obras e assumiu que o comércio a todo vapor representava o
futuro das massas populares, e o pequeno comércio, a deterioração do mundo antigo.
Não aceitava rótulos, mas se aproximava de Guesde, Fourierm, Proudhon e Marx, ainda
que seja difícil delimitar a presença destes pensadores nas anotações deixadas por Zola.
A obra foi excepcionalmente bem recebida pela imprensa, mas Zola não gostou do livro,
achando que ele não se diferenciava do que estava sendo publicado por outros autores à
época (TROYAT, 1994, p. 154-155).
Inspirado em novas leituras científicas, partiu para Le Joie de vivre. Influenciado
por Charcot e leituras médicas, se aproximou da psiquiatria. Instaurou-se um breve
debate sobre o possível plágio a uma obra ainda não publicada de Goncourt, mas a
questão se resolveu como se fosse um grande mal entendido. A crítica associou as
personagens a experiências pessoais de Zola que, segundo Troyat (1994), de fato usou
muito de si no romance, apesar de o próprio Zola não se referir ao personagem
masculino da obra como inspirado em si (ZOLA, 1908, p. 231-232).
Chegou o momento do 13º livro da série: Germinal. Para ele, Zola precisou
empreender uma densa pesquisa de campo, indo ao Norte da França para conhecer de
perto uma mina de carvão, em 1884 e, coincidentemente, chegou em meio a uma greve
que duraria 56 dias e acabaria fracassando. Assistiu a comícios, entrevistou operários,
desceu à mina e teve a sensação de que nunca retornaria à superfície, anotando tudo o
que pôde sobre o “inferno”. Observou os trabalhadores negros pelo carvão, os
corredores estreitos, os trilhos. Havia tanta informação que sentia que sua dificuldade
seria a de não transformar seu romance em uma reportagem pitoresca. Visitou também
as casinhas dos assentamentos, entrevistou médicos sobre as possíveis doenças, se
informou sobre os salários, as atividades de lazer, bebeu cerveja nos botequins. Zola
estava convencido de que não eram os trabalhadores que deviam ser atacados, mas o
sistema capitalista que os degenerava. Acreditava que o simples ato de mostrar esta
realidade teria mais efeito do que formular um ataque (TROYAT, 1994, p. 162-164).
Germinal é a história de uma revolta do Trabalho contra o Capital. Ao contrário
de Les Misérables, de Hugo, não são intelectuais que lutam por suas ideias, mas pessoas
simples obedecendo a um instinto animal que os leva a exigir mais justiça (TROYAT,
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1994, p. 166). Seu lançamento coincidiu com a atmosfera de debate social em que a
França estava inserida, incentivados pelos funerais de Jules Vallès (jornalista e político
de extrema esquerda) e Victor Hugo, em 1885. O livro chocou e causou espanto ao
mostrar que esta situação ainda existia na França em pleno século XIX. A obra não teve
o mesmo sucesso de vendas de L'Assomoir, mas vendeu bem. Zola se via como um
“despertador de consciências” e classificou sua obra como uma “obra de piedade”,
rejeitando mais uma vez o rótulo de socialista (ZOLA, 1908, p. 250). Tornou-se o autor
francês mais lido e admirado, mesmo fora da França: em Rússia, Itália, Alemanha,
Áustria, Inglaterra, Espanha e Portugal era visto como chefe de escola, de modo que seu
Naturalismo começou a se espalhar (TROYAT, 1994, p. 169).
A cada novo romance, Zola fazia uma nova crítica à sociedade capitalista,
baseando-se no retrato que pintava dos trabalhadores, fosse no campo (como em La
Terre, de 1887) ou no ritmo acelerado das ferrovias (como em La Bête Humaine, de
1890), ou ainda através do mercado financeiro (como em L'Argent, de 1891). Começou,
então, a pleitear um lugar na Academia, honra da qual anteriormente zombava. Mas não
buscava propriamente honras pessoais: queria legitimação para o Naturalismo. Em
diferentes ocasiões seu projeto foi malogrado, sempre rejeitado em detrimento a outros
nomes. Mas este desejo também causou certo desgosto entre alguns de seus antigos
aliados, como Goncourt que imaginara uma espécie de academia paralela, na qual Zola
e outros nomes da nova literatura figurariam. Octave Mirbeau, em agosto de 1888,
publicou um artigo em Le Figaro no qual denunciava que seria uma traição de Zola aos
próprios princípios ao desejar uma vaga entre os “imortais”. Com o tempo, a obstinação
de Zola em tentar uma vaga na Academia passou a ser um ataque: o autor acreditava que
a cada recusa, era a Academia que se ridicularizava ao não aceitá-lo. Sobre este ponto,
Bourdieu (1996b, p. 79) lembra que Baudelaire já havia se candidatado à Academia
como uma espécie de “ataque simbólico”, sendo plausível crer que Zola tivesse uma
intenção semelhante. Ao ser criticado por uma jornalista que o acusava de “deixar de ser
anarquista” para se candidatar à Academia, Zola respondeu no jornal L'Écho de Paris,
em 1892:

Sou pela gradativa transformação da sociedade, quero reformas, sem


violência, e creio que não se apressa o passo do progresso, que não se
resolve os problemas sociais com granadas, nem com caldeirões de
dinamite (ZOLA, 1892).

Talvez Hachette não tenha sido preciso ao definir Zola como um “revolucionário”
anos antes. Ainda que envolva uma discussão bastante complexa, podemos supor, a
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partir da análise de Eley (2005), que o termo “revolucionário” estava mais próximo de
identificar atitudes insurrecionais, que após a Comuna de Paris eram associadas aos
anarquistas, do que outros grupos de esquerda. E, ainda segundo Eley (2005, p. 129), o
anarquismo estava mais ligado aos boêmios nos anos de 1880-90, grupo o qual Zola
criticava do ponto de vista literário, mas também político e social (TROYAT, 1994, p.
101).

A militância política

Zola envolveu-se com a política por um caminho bastante peculiar. Em 1870,


tentou entrar para a guarda nacional, mas foi recusado por ser míope. Queria defender a
França na guerra contra a Prússia. Em meio à insegurança de Paris, decidiu ir com a
mãe e a esposa para o subúrbio de Marselha, onde se sentia feliz por estar seguro, mas
triste por não ser um dos que anunciava o fim do Império. Zola era um opositor
veemente de Napoleão III, ficando ao lado dos republicanos, mesmo não se
identificando totalmente com estes. Em Marselha se deparou com republicanos
divididos, chegando a ser preso por grupos diferentes. Buscando estabilidade, tentou
conseguir uma posição política, mas para isso precisou ir a Bordeaux, onde estava a
sede do governo provisório. Queria um cargo de prefeito ou subprefeito, mas acabou se
contentando com um lugar como secretário num ministério em Bordeaux, levando para
lá sua mãe e sua esposa. Zola observava o desenrolar e os resultados da guerra Franco-
Prussiana com pesar, pois cria que esta guerra poderia ser evitada. Mesmo assim, tinha
esperança de que o capítulo seguinte fosse o surgimento de uma França “naturalista”
(livre, que se entusiasmasse com a ciência e a arte) (JOSEPHSON, 1958, p. 153).
Parcialmente estabelecido, Zola retomou sua atividade como jornalista e
observou a política em Bordeaux como crítico. Chegou a ter certo desprezo pelos
deputados, “que mal sabem levantar a mão para votar” (TROYAT, 1994, p. 85). Chegou
a declarar que, em Bordeaux, “a França será executada” (TROYAT, 1994, p. 84).
Criticava, por exemplo, a “ingratidão” para com Garibaldi, que lutou pela França, mas
“quis continuar sendo italiano”. Os deputados jogavam uns aos outros a
responsabilidade pela derrota para a Prússia. Zola não se sentia bem neste meio e assim
que a Assembleia decidiu ir para Versalhes, o autor retornou a Paris com a família,
deixando a política um pouco de lado (JOSEPHSON, 1958, p. 153).
Anos depois, Zola foi eleito conselheiro municipal de Médan em 1881 e se
divertia com a função (TROYAT, 1994, p. 147). Estava mais dedicado ao jornalismo,
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contribuindo para vários periódicos, mas sem escrever romances. Escrevendo sobre
literatura, acabava escapando para a política, e se colocava como crítico violento da
República, pois esta não compreendia a importância do movimento naturalista, nem
fazia jus ao caráter de representante do povo. Zola e seus companheiros se envolveram
em embates através da imprensa, até que Zola decidiu abandonar o jornalismo, deixando
de escrever sobre política (TROYAT, 1994, p. 149).
A saída do jornalismo não representou, contudo, a saída definitiva de Zola da
política. Sobretudo após a publicação de Germinal e sua adaptação ao teatro, Zola
passou a ter entre seus defensores os representantes da esquerda. O romance que o
próprio autor considerava “socialista” (ZOLA, 1908, p. 232) tornara-o, aos olhos da
sociedade, também um “socialista”. Zola rejeitava qualquer “rótulo”, mas aos poucos
identificava seu projeto Naturalista aos ideais da esquerda (ZOLA, 1908, p. 250). Não é
de se estranhar, portanto, que quando a adaptação de Germinal para o teatro foi
proibida, em 1885, por conter uma cena na qual os grevistas lutavam com a polícia, toda
a imprensa de esquerda se solidariza contra esta “censura partidária” (TROYAT, 1994,
p. 174). Zola decidiu levar o caso ao Parlamento, com a ajuda do líder radical Geroges
Clemenceau: uma proposta de emenda foi encaminhada para a Comissão de Orçamento
com o objetivo de cortar o subsídio dos funcionários encarregados da censura teatral, o
que indiretamente acabaria com a censura. Aprovada pela comissão, a proposta foi
reprovada pela Câmara, em sessão assistida por Zola. O autor, furioso, redigiu um artigo
para atacar deputados e autores coniventes. Zola queria engajamento dos autores na luta
contra a censura (TROYAT, 1994, p. 175).
Após a publicação de La Débâcle, em 1892, Zola teve mais problemas com as
autoridades. Este romance, que retrata a guerra entre a França e a Alemanha em
formação, recebe inicialmente elogios da imprensa. Os ataques começaram a vir por seu
antigo amigo, então adversário, Goncourt, que acusou Zola de descrever algo que não
havia visto, como se conhecesse a guerra. Alguns autores que participaram da guerra
apontaram imprecisões, mas a principal crítica estava no sentido geral da obra: Zola
condenava Napoleão III e os generais incompetentes que levaram a França à derrota.
Uma onda de ataques se levantou contra o autor, vinda de autores, militares, padres e do
público: a Alemanha não era culpada; os generais haviam sido difamados; o exército,
desonrado; os bravos combatentes, desmoralizados. Enfim, a nacionalidade francesa
havia sido ferida por este “italiano”, que ainda por cima anistiava os “perversos”
agentes da Comuna (TROYAT, 1994, p. 215). Apesar de nascido na França, Zola foi
considerado estrangeiro até 1861, ano de sua naturalização, por seu pai ser italiano.
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Após o último volume de seus Rougon-Macquart, Le Docteur Pascal, publicado
em 1893, Zola estava cansado imaginava o que faria após este trabalho de anos. Decidiu
fazer com a esposa uma viagem por diversos países da Europa. Em outubro de 1894,
chegou a Roma, onde se encantou com a calorosa recepção e fez questão de dizer a
todos que tinha sangue italiano correndo nas veias (TROYAT, 1994, p. 228). Nesta
viagem, em uma recepção na embaixada francesa, Zola ouviu falar da prisão de um
certo capitão Alfred Dreyfus, acusado de espionagem. O caso, que naquele momento
não atraiu a atenção de Zola, acabou vindo em sua direção pouco tempo depois. Já
trabalhando em uma nova série de romances, “As Três Cidades”, Zola publicou, por
motivos alheios a Dreyfus, um artigo no Le Figaro contra o antissemitismo e um
nacionalismo exacerbado que tomava conta da França. Ao tomar conhecimento de
detalhes do caso, Zola e outros intelectuais estavam convencidos de que Dreyfus era
inocente e que seu julgamento tinha motivações políticas que encobriam os erros do
processo. Em 6 de novembro de 1897, os defensores de Dreyfus, preso desde 1894,
convidam Zola para ser seu porta-voz na imprensa, o que inicialmente recusou, mas em
pouco tempo acabou mudando de ideia. Como acabara de publicar o último volume das
“Três Vilas”, Zola não tinha outra ocupação literária. Zola começou, então, a publicar
artigos tomando partido de Dreyfus, despertando a ira de grande parte dos leitores. Seu
trabalho continuou até chegar ao ponto culminante: em 12 de janeiro de 1898, um grupo
de partidários de Dreyfus se reuniu para discutir qual seria a melhor estratégia de
divulgação para o texto que Zola acabara de escrever. Um dos presentes, Clemenceau,
ofereceu seu jornal, L'Aurore. O texto, que antes tinha o título absolutamente formalista
de “Carta ao presidente da República” recebeu um novo nome, dado por Clemenceau,
que se tornaria amplamente famoso e estamparia a primeira página do jornal em letras
grandes: J'accuse! (Eu acuso!). Zola sentia-se como se tivesse acabado de redigir sua
maior obra. O autor acusava explicitamente diversos nomes que estariam envolvidos na
farsa que condenara Dreyfus e libertara o verdadeiro culpado, consciente de que seria
enquadrado nos artigos da lei de imprensa que puniam a difamação. Mas esta era uma
manobra em favor de Dreyfus: para provarem que Zola estava errado, o caso Dreyfus
teria que ser reaberto (TROYAT, 1994, p. 233-243).
Em poucas horas, o jornal vendeu trezentos mil exemplares. O texto se tornou
amplamente conhecido, passeatas saíram às ruas e gritos de “Morte a Zola” se tornaram
comuns (TROYAT, 1994, p. 239). Zola, para seu descontentamento, foi condenado não
pelo artigo na íntegra, mas por apenas algumas linhas que poderiam ser facilmente
comprovadas como difamação sem a necessidade de reabrir o caso Dreyfus. Ao final do
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julgamento, Zola foi condenado a um ano de prisão, mas recorreu. Dentro e fora da
França, pensadores se manifestavam a favor de Zola (TROYAT, 1994, p. 256). Após
novo julgamento e uma segunda e definitiva condenação, fugiu antes de receber a
intimação, orientado por seus aliados (JOSEPHSON, 1958, p. 447). A fuga, para
Londres, foi extremamente penosa para Zola, por ter dificuldades em se adaptar ao
clima e ao idioma, apesar da ajuda de seu editor na Inglaterra. Durante este exílio, Zola
imaginou aquela que viria a ser sua última série, “Os Quatro Evangelhos”, e dedicou-se
a ela para ter no que pensar (JOSEPHSON, 1958, p. 456). Com mudanças no governo
da França, o caso Dreyfus foi reaberto e o ex-capitão libertado. Zola pôde, então,
retornar à França, em 5 de junho de 1899. O desfecho do processo, porém, desagradou
Zola: temendo que a absolvição de Dreyfus desagradasse à maior parte do Exército, o
Conselho de Guerra decidiu por julgar Dreyfus culpado, mas com circunstâncias
atenuantes, o que ainda lhe renderia dez anos de prisão (TROYAT, 1994, p. 279). Zola e
outros pensadores, inclusive de fora da França, manifestaram-se contra esta decisão
absurda, posto que o verdadeiro traidor já havia sido descoberto e suicidara-se. O
governo, então, decide anistiá-lo, ainda que sem revisão do processo. Ao final, Dreyfus
se livrou da prisão, mas não da culpa por um ato que não cometeu (TROYAT, 1994, p.
280).
Ao final de sua carreira, Zola acabou atraindo a atenção das associações operárias
e sindicatos. O autor já não mais escrevia com o mesmo Naturalismo de antes, mas
pensava já em agregar os trabalhadores que nele viam um símbolo. Não via mais tanta
qualidade em seu trabalho, mas não abria mão de seu papel político. Mas antes de
completar a série dos “Quatro Evangelhos”, Zola faleceu em sua casa, em 29 de
novembro de 1902, asfixiado pelos gases da lareira que não saíram pelo condutor de
fumaça entupido, enquanto dormia ao lado de sua esposa, que sobreviveu. Levantou-se
a hipótese de assassinato, mas nada foi comprovado.

Considerações finais

Ao dividirmos a biografia de Zola em três momentos, mais do que identificar


fases com limites rigidamente estabelecidos em sua vida, buscamos mostrar como Zola
lidou com as possibilidades colocadas em cada momento, e como essas diferentes fases
se interpenetram. Desta forma, podemos observar como a relação entre as escolhas do
autor e as possibilidades conferidas a ele pelo contexto em que vivia foram combinadas
para formar o agente histórico aqui descrito. Além disso, ao definir três momentos
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diferentes pelo tipo de atuação, não necessariamente cronológicos, podemos perceber
que Zola, ao longo de sua vida, lidou com diferentes possibilidades de ação ao mesmo
tempo: o Zola militante na arte ao mesmo tempo era o Zola que construía o
Naturalismo; o Zola político ao mesmo tempo defendia uma nova literatura; e mesmo,
ao final de sua vida, o Zola que se aproximava cada vez mais dos grupos de esquerda
não abandonou completamente o modo de vida burguês que construíra ao longo de sua
carreira literária, muito menos abandonou o público burguês que conquistara.
Podemos dizer, portanto, que a figura de Zola e sua literatura servem como um
importante exemplo de como um personagem, ao longo de sua trajetória, é construtor de
si e que, ao invés de buscarmos as coerências e contradições em sua vida, é mais
adequado olharmos para sua trajetória como sendo composta de complexidade e
possibilidades.

Referências Bibliográficas

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AMADO, Janaina (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da
FGV, 1996a.
______. As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996b.
ELEY, Geoff. Forjando a Democracia: a história da esquerda na Europa, 1850-2000.
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2005.
JOSEPHSON, Matthew. Zola e seu Tempo. Rio de Janeiro: Companhia editora
Nacional, 1958.
SILVA, Helenice Rodrigues da. A História Intelectual em questão. In: LOPES, Marcos
Antônio (Org.). Grandes Nomes da História Intelectual. São Paulo: Contexto, 2003.
TROYAT, Henri. Zola. São Paulo: Editora Página Aberta, 1994
ZOLA, Émile. Correspondance: les lettres et les arts. Paris: Charpentier, 1908.
______. Correspondance: lettres de jeunesse. Paris: Charpentier, 1907.
______. Œuvres d'Émile Zola. Manuscrits et dossiers préparatoires. Notes et extraits
divers. s.n., s.d. Disponível em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b530093242.r=zola.langPT.
ZOLA, Émile. La Querelle Séverine-Zola. L'Écho de Paris, Paris, 13 de nov. 1892. p. 2
Entrevista a Séverine.

Notas
1
Uma versão do trecho inicial deste artigo foi apresentado em um simpósio temático do XXVII Simpósio
Nacional de História, em julho de 2013

Artigo recebido em 10/08/2013. Aprovado em 12/11/2013.

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Entrevista

SPATIAL HISTORY E HUMANIDADES DIGITAIS, UMA


ENTREVISTA COM O BRASILIANISTA ZEPHYR FRANK•

Interview

SPATIAL HISTORY AND DIGITAL HUMANITIES, AN INTERVIEW


WITH BRAZILIANIST ZEPHYR FRANK

Frederico FREITAS••

Resumo: Entrevista com Zephyr Frank, diretor do Spatial History Project (Projeto de História
Espacial) e do Center for Spatial and Textual Analysis (Centro de Análise Espacial e Textual) da
Universidade Stanford, nos Estados Unidos, sobre spatial history e outras linhas de pesquisa
englobadas sob o rótulo das humanidades digitais. A discussão toca o tema do uso de novos
métodos digitais como o SIG histórico, a leitura à distância e a análise de redes sociais na pesquisa
em humanidades, questionando os limites e as possibilidades de tais ferramentas. Por fim, discute-
se sobre o investimento institucional e financeiro necessário para a implementação dessas novas
tecnologias de pesquisa.
Palavras-chave: Spatial History – Humanidades Digitais – Redes Sociais – Leitura à Distância.

Abstract: An interview with Zephyr Frank, director of both the Spatial History Project and the
Center for Spatial and Textual Analysis at Stanford University, on spatial history and other lines of
research encompassed by the digital humanities label. The discussion touches on the new digital
methods of research like historical GIS, distant reading, and social network analysis, which are
becoming more common among humanists. It also questions the possibilities and limits of such
tools. Finally, it presents a brief discussion on the institutional and financial resources needed for
implementing those new research technologies.
Keywords: Spatial History – Digital Humanities – Social Networks – Distant Reading.

Desde 2007 o Spatial History Project (Projeto de História Espacial -


http://www.stanford.edu/group/spatialhistory/cgi-bin/site/index.php) da Universidade


Zephyr Frank é Mestre em História pela Universidade da Califórnia em Los Angeles, Doutor em História
Pela Universidade de Illinois em Urbana-Champaign. É também Professor Associado de História Latino-
Americana na Universidade Stanford, Diretor do Spatial History Project, do Center for Spatial and Textual
Analysis e do Urban Studies Program, todos na Universidade Stanford - Department of History, 450 Serra
Mall, Building 200, Stanford University, Stanford, California, United States - 94305. E-mail:
zfrank@stanford.edu. Website: http://www.stanford.edu/group/spatialhistory/cgi-bin/site/index.php
••
Mestre em História pela Universidade Stanford e Doutorando em História da América Latina pela
Universidade Stanford – Department of History, 450 Serra Mall, Building 200, Stanford University,
Stanford, California, United States - 94305. Bolsista do Department of History, Stanford University. E-mail:
fssf@stanford.edu. Website: http://fredericofreitas.org
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Revista História e Cultura, Franca-SP, v.3, n.1, p.375-393, 2014. ISSN: 2238-6270.
Stanford tem sido um dos principais espaços de pesquisa no campo da Spatial History. O
projeto possui um laboratório no campus de Stanford onde a cada ano, diversos estudantes
de graduação, pós-graduandos, professores e post-docs, desenvolvem projetos de pesquisa
histórica que levam em conta o espaço como uma dimensão crucial para o entendimento de
fenômenos do passado. A recente criação do Center for Spatial and Textual Analysis -
CESTA (Centro de Análise Espacial e Textual) pela direção da universidade agrupou
grandes projetos de pesquisa na área das humanidades digitais sob o mesmo guarda-chuva
institucional, que inclui além do Spatial History Project, o Literary Lab
(http://litlab.stanford.edu/) e o Humanities + Design (http://hdlab.stanford.edu/).
Conversamos com Zephyr Frank, diretor do Spatial History Project e do CESTA sobre seu
envolvimento com a pesquisa em Spatial History e humanidades digitais.

Frederico Freitas: Como e quando surgiu seu interesse pelo espaço enquanto categoria
de análise histórica?
Zephyr Frank: Creio que na graduação. Na época eu estudava na Universidade do Colorado
onde havia um jovem professor, Steven A. Epstein, muito inteligente e carismático. Em um
curso que ele deu sobre Europa medieval e moderna tivemos que ler Fernand Braudel. Ler
os dois volumes do Mediterrâneo do Braudel era um desafio para os alunos de graduação,
especialmente em uma universidade considerada mediana nos Estados Unidos como é a
Universidade do Colorado. O livro causou um impacto muito grande em mim. Escrevi um
trabalho sobre a expansão e contração dos impérios europeus no século XVI o qual, lendo
hoje em dia, me faz perceber a ingenuidade do meu pensamento histórico aos 18 anos de
idade. Era um trabalho com um argumento muito mecânico: X de população vezes Y de
área significava que um império ou qualquer outra unidade política era forçado a se
expandir territorialmente. Utilizei alguns dados quantitativos e usei um pouco também do
Braudel. Ao corrigir esse trabalho o professor Epstein percebeu que eu, além de ter lido os
dois volumes do Braudel, estava interessado na aula e tinha vocação para a disciplina da
história. Ganhei uma boa nota e ele veio falar comigo, me incentivar, dizendo que eu tinha
capacidade de fazer algo bom na área. Eu acho que a partir dessa época comecei a pensar
em seguir carreira na história e acredito que foi uma boa iniciação à questão do espaço na
história. Depois, claro, eu aprendi muito sobre a questão na pós-graduação, trabalhando
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com meu orientador, Joseph L. Love, em sua pesquisa pessoal, principalmente em seu
segundo livro sobre São Paulo. Infelizmente o livro recebeu um título infeliz em português
— A Locomotiva: São Paulo na Federação Brasileira — mas o livro mesmo é um ótimo
exemplo de pesquisa histórica com foco em questões geográficas. Na minha própria tese de
doutorado tentei, e, sem falsa modéstia, consegui avançar em alguns aspectos a questão do
espaço na história do Mato Grosso. Portanto esse meu interesse pelo espaço é um interesse
de longa duração e estou aprofundando e desenvolvendo esse interesse ainda hoje.

Frederico Freitas: Então quando você terminou seu doutorado e começou a trabalhar na
Universidade Stanford, onde você está atualmente, você começou a escrever o seu livro
Entre Ricos e Pobres, sobre o Rio de Janeiro...
Zephyr Frank: Esse livro foi escrito por acaso. Há muito pouca reflexão sobre o espaço
nesse livro, apenas algumas observações superficiais sobre o espaço interior das moradias
ou sobre a distribuição de homens livres dentro do espaço da cidade por paróquias. Coisas
desse tipo. Não há mapas ou análises do espaço da maneira que venho desenvolvendo nos
projetos mais recentes.

Frederico Freitas: Após terminar esse livro você retomou a questão do espaço?
Zephyr Frank: Para falar a verdade o livro surgiu de um caso específico, o caso de Antonio
José Dutra, que a minha amiga Silvana Jeha descobriu enquanto participava da minha
pesquisa sobre a distribuição de riqueza na cidade do Rio de Janeiro no século XIX. Ela me
mostrou o caso do Dutra e decidi usá-lo como um exemplo do universo de riqueza
econômica urbana que investigava na época. Escrevi o livro no meio do caminho da
pesquisa que estava desenvolvendo, pesquisa esta que prosseguiu após a publicação do
livro. O meu interesse no espaço e em como entender o papel do espaço na cidade,
principalmente nas questões econômicas, era algo constante durante toda aquela época.
Esse meu primeiro livro foi um pequeno estudo de caso que, apesar de ter sido colocado
dentro de um contexto bastante elaborado, não era o objetivo principal da minha pesquisa à
época de sua publicação nos Estados Unidos em 2004. O projeto maior e mais abrangente
era sobre o espaço e riqueza no Rio de Janeiro no século XIX.

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Frederico Freitas: Em sua pesquisa sobre o Rio de Janeiro no XIX, o que você
conseguiu descobrir ou entender utilizando-se desse enfoque espacial sobre a realidade
da cidade que você provavelmente não teria descoberto de outra maneira?
Zephyr Frank: Existem pelo menos dois caminhos que podem ser tomados na utilização
das informações sobre o espaço para escrever a história. Um é trilhado por aqueles que
buscam ampliar a história. O outro é aquele escolhido pelos que pretendem escrever uma
nova história. Geralmente, a maioria das pessoas que pensa o espaço como uma ferramenta
para estudar a história pretende ampliar, ou entender melhor, histórias já conhecidas. Com o
enfoque espacial elas buscam aprofundar tanto o entendimento do contexto quanto a
descoberta de mais informações a respeito da realidade histórica em questão. Eu mesmo já
fiz isso. Por exemplo, ninguém tem que se voltar para as ferramentas das humanidades
digitais ou construir um SIG histórico do Rio de Janeiro para descobrir que a Rua do
Ouvidor era um local importante para o comércio e cultura daquela época. Mas ao saber
mais sobre a região no entorno daquela rua, amplia-se o conhecimento e fornece-se
contexto para uma história já conhecida. Você sabe disso... Existem livros sobre a Rua do
Ouvidor, poemas, crônicas etc. Mas geralmente estas histórias ou crônicas não vão colocar
o espaço da rua dentro do contexto geográfico da cidade, que é formado, no caso, pelas
outras ruas nos arredores. Portanto, eu acho que se pode aprender muito ao utilizar-se o
espaço para contextualização, ampliando-se o conhecimento sobre um determinado lugar e
uma determinada história que já existe. Isso tem valor. Contudo, se o historiador fizer
apenas isso os outros vão dizer, “muito bom, obrigado, você só está ampliando, dando
contexto...” Mas no final das contas esse historiador não está realmente mudando a maneira
como se pensa determinado lugar, determinado processo.
O outro caminho que os historiadores podem escolher é aquele que passa pela escrita
de uma nova história, o que é uma tarefa complicada e uma forma de pesquisa que não
podemos dizer que tenhamos dominado ainda. Acredito que as ciências sociais e as
disciplinas imbuídas de hipóteses a serem testadas e que trabalham com métodos
quantitativos possuem mais experiência e capacidade de fazer esse tipo de pesquisa. Isso
porque os pesquisadores de tais disciplinas podem juntar os dados sobre o espaço, fazer
uma análise quantitativa e construir uma hipótese para explicar a relação entre variáveis.
Contudo, nós historiadores não temos essa linguagem, não fazemos história desse modo,
pelo menos não na maioria das vezes. Claro que existem as exceções e há uma tradição de

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história econômica que trabalha nessa linha, mas a minha formação não é essa. Mesmo
assim, tenho tentado desenvolver a capacidade de fazer pesquisa utilizando esses dados
sobre espaço. Dados que são quantitativos, exatos, pois são dados georreferenciados — o
que significa que são dados que possuem um lugar específico no espaço. Esta maneira de
pesquisa pode nos ajudar a perceber novos padrões, novos processos que não
perceberíamos utilizando as fontes tradicionais da história: fontes narrativas,
governamentais, judiciais etc. Colocar os dados no espaço e fazer análises de padrões,
processos, movimentos dentro do espaço urbano — e aqui eu tenho em mente meu estudo
sobre o Rio — possibilita a oportunidade de aprendermos coisas que não saberíamos de
outra maneira. As fontes tradicionais não dizem, por exemplo, onde mora exatamente
determinado tipo de pessoa; não dizem que em determinada rua havia uma mistura
específica de tipos sociais morando e trabalhando no mesmo espaço. As fontes não
disponibilizam essas informações de uma maneira transparente de modo que o historiador
possa extraí-las utilizando suas ferramentas tradicionais. Contudo, ao localizar tais
informações no espaço utilizando as técnicas de análise espacial, o historiador pode
conectar espacialmente o que antes habitava âmbitos distintos. O historiador pode
espacializar dados sobre as condições de vida das pessoas; sobre a sua vizinhança em seus
lugares de trabalho e moradia; sobre o seu movimento através do tempo e espaço. Pode-se
seguir os movimentos de pessoas durante determinado tempo e descobrir que, por exemplo,
as pessoas moram em uma cidade mas não permanecem muito tempo em um mesmo lugar
dentro dela, o que permite descobrir que não existe um equilíbrio estável na cidade onde
pode-se dizer que a cidade é desse ou daquele jeito. Através dessas ferramentas percebe-se
que as pessoas estão se deslocando, às vezes até desaparecendo do registro histórico e do
espaço, e muita coisa está acontecendo dentro do espaço. Em suma, existe movimento e
também proximidade. E proximidade é uma maneira de entender as ligações entre as
pessoas e as ligações entre espaços. Por exemplo, no Rio havia a Rua do Ouvidor, que era a
principal rua de comércio da cidade no século XIX. Havia também outras na região com
diferentes padrões de ocupação. Entre essas ruas havia um espaço, às vezes pequeno, mas
muitas vezes, considerável, que era compartilhado entre um e outro lado. Isso significa que
existem ligações que não percebemos se pensarmos apenas em informações isoladas do
espaço, dados sem lugar, sem vizinhança, sem essas ligações que aparecem nesse tipo de
pesquisa. Não sei se isso está claro...

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Frederico Freitas: Não, está sim. Eu acho que isso faz sentido, mas vamos tentar dar um
exemplo para isso. Tenho duas perguntas. Fala-se hoje em dia, principalmente nos
Estados Unidos, de uma mudança de paradigma, um “spatial turn” ou giro espacial nas
humanidades, da mesma maneira que há vinte anos atrás se falava de um giro cultural.
Na história, por exemplo, o professor Richard White1 e outros historiadores apresentam
a “spatial history” (história espacial) como uma nova área, ou uma nova maneira de se
escrever e pesquisar história. Portanto, a minha primeira pergunta é: você acha que essa
nova área da história encaixa-se melhor em certas vertentes já existentes na história?
Por exemplo, você veio de uma tradição de história social. Você acha que incorporar o
espaço como dimensão dentro da pesquisa história é algo que, digamos, combina melhor
com a história social? Ou é algo que pode ser adotado por outras vertentes da história e
que, portanto, todos devem ter em mente que o espaço é um fator e uma dimensão a ser
levada em conta? A minha outra pergunta segue um pouco essa linha. Que tipo de
trabalho clássico da historiografia brasileira você acredita que seria beneficiado se
recebesse uma releitura, ou uma pesquisa adicional, usando o espaço como categoria de
análise?
Zephyr Frank: Bom, eu não acho que o espaço seja útil somente para a história social.
Existe pelo menos uma outra vertente da história que também combina com o “spatial
turn”: a história cultural. Muitos dos conceitos e ideias sobre o espaço que estamos
utilizando hoje em dia vêm de disciplinas interpretativas e culturais, como a antropologia e
a sociologia cultural. Alguns exemplos desse tipo de trabalho podemos encontrar nas obras
de Pierre Bourdieu e Michel de Certeau. Além disso, há também a geografia cultural
marxista, com pensadores como David Harvey e outros que pensam o espaço de uma
maneira crítica, como o próprio Milton Santos. Existem muitos pensadores que têm
desenvolvido ideias sobre o espaço que são importantes para a história cultural. Na história
cultural, como na história social, um problema recorrente é a falta de critério na utilização
do conceito do espaço. Muitos estudiosos evocam o espaço apenas devido à moda do
“spatial turn”. O espaço é uma palavra poderosa, que por um lado abre caminhos para
pesquisa e expande os horizontes intelectuais, mas que por outro lado é uma palavra que
pode gerar o vácuo, uma falta de compreensão. O espaço é um conceito com o qual muitos
1
Richard White é professor catedrático em História do Oeste Americano na Universidade Stanford e foi o
primeiro diretor do Stanford University Spatial History Project.
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se encantam e ao qual muitos recorrem, porém muitas vezes sem substância ou, pior ainda,
com uma certa promiscuidade e sem rigor. Isso já ocorreu até no meu próprio trabalho, em
momentos nos quais utilizei o espaço de três, quatro maneiras diferentes no mesmo
argumento, e sem nunca sequer explicar como esses diferentes conceitos de espaço
relacionam-se entre si. Isto é um problema. Claro que espaço é um conceito muito
importante não somente para a história social, mas também para a história cultural,
econômica e provavelmente outras vertentes também. Porém existe esse problema da
utilização do conceito sem muito critério ou de uma maneira que não gera conhecimento —
só gera poeira. Acho que isso é normal, porque o mundo acadêmico, as vezes, como a
sociedade fora dele, é um espaço onde seus integrantes têm que buscar conhecimento,
distinção, e o uso dos conceitos e palavras têm essa função também. E eu acho que o
espaço é muito mais importante do que o “spatial turn”. O que permanecerá depois que a
moda passar serão os métodos de análise e os conceitos que estamos desenvolvendo nesse
tipo de trabalho. Mas o que todos nós estamos fazendo é metade moda, metade substância.
As vezes a balança pende um pouco mais para um lado ou outro, dependendo do caso.
Respondendo a outra parte da sua questão, eu acho que uma obra que se beneficiaria de
uma dimensão espacial é o grande livro da Kátia Mattoso Bahia: século XIX. Este é um
livro cheio de informações sobre cada detalhe da vida na cidade e naquela região (Salvador)
— política, trabalho, família, casamento, vida, morte. Contudo, a leitura do livro não
permite compreender o espaço da cidade, não pelo menos de uma maneira nítida. O espaço
da cidade não aparece no livro. É claro que há referências a isso e a autora sabe tudo sobre
o espaço da cidade, mas isso não aparece de forma clara. Esse é um livro que eu amo, é um
dos livros mais importantes para a minha formação enquanto historiador daquela época,
trabalhando na mesma linha, mas em outra cidade. Eu estou tentando fazer mais ou menos
algo similar ao que ela fez. E acho que seria super interessante fazer uma pesquisa
utilizando os dados colhidos por ela para fazer uma história do espaço da cidade. Acho que
parte desse material está presente na tese dela escrito na França “Au Nouveau Monde: une
province d’un nouvel empire: Bahia au XIX siècle.”

Frederico Freitas: Que tipo de ferramentas estão disponíveis ao historiador interessado


em pesquisar a história pela dimensão espacial? Indo um pouco além, que outras
ferramentas digitais estão sendo utilizadas pelos historiadores e cientistas humanos que

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levam a pesquisa a outras searas que não são necessariamente espaciais? Quais destas
ferramentas você vêm utilizando na sua pesquisa?
Zephyr Frank: Quando as pessoas pensam em história espacial elas pensam em SIG -
Sistemas de Informação Geográfica. Aqui em Stanford, usamos um programa de SIG
chamado ArcGIS. Este programa vem sendo utilizado bastante no Brasil há muitos anos,
principalmente na área das ciências exatas, planejamento urbano e campos afins. O SIG
fornece ferramentas para medir distâncias, localizar dados no espaço utilizando um sistema
de representação projetada no planeta terra, analisar redes sociais dentro do espaço, medir
rotas (p. ex. determinar o caminho mais curto entre dois lugares) e estudar o ambiente. Se o
pesquisador quer entender o relevo, solo, vegetação, hidrografia etc., existe dentro do SIG a
possibilidade de se construir camadas onde o pesquisador pode entender a relação entre
essas diferentes variáveis “naturais” e outras mais “humanas”: tipo de produção, densidade
demográfica etc. Historiadores podem utilizar o sistema para fazer análises de uma maneira
geográfica e técnica para entender o ambiente utilizando o espaço e dados geográficos e
ambientais. Além disso, historiadores podem alimentar o sistema e seus bancos de dados
com as informações obtidas através dos arquivos e fontes históricas. Portanto, o sistema
disponibiliza ferramentas para transformar dados históricos em dados espaciais. O SIG do
ArcGIS funciona como o Windows. Ele é baseado em um GUI (Graphical User Interface),
uma interface gráfica de janelas. Portanto o usuário do ArcGIS não precisa aprender
programação para utilizá-lo. Ainda assim, é um programa bastante complexo que demanda
do usuário um certo tempo em treinamento e estudo para a utilização de suas ferramentas.
Em termos de aprendizado e operação é relativamente acessível — historiadores, as vezes
ao lado de um técnico especializado em SIG, em geral conseguem utilizá-lo para, pelo
menos, fazer alguns testes e experimentos com os dados históricos.

Frederico Freitas: Quais os riscos para os historiadores na utilização do SIG? É possível


que, ao utilizar o SIG, historiadores passem a acreditar que aquilo o que eles estão vendo
é a verdade histórica, completa e acabada? A minha impressão é que nessa passagem da
fonte primária para o ambiente virtual e geométrico do SIG historiadores podem atribuir
uma exatidão à fonte a qual ela não possui. Existe um risco aí?
Zephyr Frank: Existe um grande risco. É claro que esse tipo de risco existe em qualquer
maneira de se fazer história. Mas o problema aqui é que muitas vezes os dados fornecidos

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pelas fontes primárias são incompletos, complexos e às vezes “enganosos”. Ou seja, os
dados históricos muitas vezes não são completamente confiáveis ou então não possuem
informações exatas sobre o espaço. As fontes podem dizer que algo aconteceu em um
bairro, por exemplo, mas o historiador não sabe onde começa ou onde termina tal bairro.
Existem muitas coisas na história que não possuem um limite espacial claro.

Frederico Freitas: Isso porque a maneira como as pessoas se relacionavam com o espaço
no passado é diferente da maneira como elas se relacionam hoje em dia?
Zephyr Frank: Não necessariamente. O que estou querendo dizer é que existem espaços
humanos que não possuem limites rígidos e que, portanto, são difíceis de serem
transportados para um sistema como o SIG que requer exatidão. O que leva à sua questão
anterior: existe um risco no momento em que os historiadores colocam os dados históricos
no SIG. Muitas vezes eles o fazem apenas para ver dados históricos em um mapa, mas ao
fazer isso eles podem estar atribuindo limites e localizações precisas que não existem
realmente nas fontes primárias. Isso não é um problema grande para os historiadores que
estão no começo da pesquisa e utilizam o sistema como uma forma de experimentar os
dados e obter uma visão melhor de processos e padrões espaciais. Mas isso pode se tornar
um problema com a publicação, pois representa-se dados históricos que não possuem
lugares específicos como se assim os tivessem. Isso é um dos grandes riscos (há outros). O
programa não foi feito para trabalhar com a ambiguidade, ele requer lugares fixos e
precisos. Claro que podemos lidar com isso no pós-processamento. Pode-se exportar o
mapa do programa SIG e utilizar outros programas de edição e processamento de imagens
vetoriais, como o Adobe Illustrator, para representar a falta de exatidão e a ambiguidade.
Mas o sistema SIG sozinho não fornece ferramentas para isso, pois não foi projetado para
atender essas necessidades específicas de historiadores e outros cientistas humanos. Então
temos que complementar com outras ferramentas, principalmente no momento da
divulgação dos resultados visuais do trabalho. Uma maneira de se fazer isso é a geração, a
partir do SIG, de diferentes superfícies nas quais as informações espaciais são
representadas como mapas de gradiente, e não pontos, linhas ou polígonos. Isso é uma
maneira de mostrar ambiguidade, pois o historiador define, através de cores e matizes, a
intensidade da ocorrência em diferentes áreas da superfície e, através do gradiente,
consegue definir uma fronteira imprecisa mas provável entre ocorrência e não-ocorrência.

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Frederico Freitas: E em relação às outras ferramentas que você já utilizou ou ainda não
utilizou? Hoje em dia, mesmo no Brasil, todos estão falando muito sobre humanidades
digitais. Mas o que eu tenho visto, pelo menos lá no Brasil, é que para muitos as tais
humanidades digitais se resumem a digitalização e disponibilização de fontes primárias e
formas de educação a distância. Eu não vejo muito métodos de pesquisa sendo
discutidos, lá no Brasil, como parte das humanidades digitais. Por isso eu gostaria que
você falasse um pouco da sua experiência com esses métodos digitais além do SIG e da
história espacial.
Zephyr Frank: Existem pesquisadores no Brasil que vêem utilizando o SIG, o que podemos
considerar como algo na área de humanidades digitais. Aqui nos Estados Unidos foi mais
ou menos o mesmo processo. Nos anos 80 começou-se a utilizar as novas técnicas de
computação e a capacidade de computação que se amplia cada vez mais, e no começo foi
similar: pegar os dados, criar bancos de dados, escanear os documentos históricos, criar
arquivos digitais para pesquisa. Foi provavelmente nas letras e na análise literária que se
começou a trabalhar com os dados de uma maneira mais sofisticada, identificando-se
padrões dentro de um banco de dados sobre literatura. Começou-se a trabalhar com
conceitos como a frequência das palavras, com “topic modeling”, com processamento de
linguagem natural (PNL), que é um processo de análise que utiliza o computador para
extrair informações gramáticas e semânticas. Isso possibilita o estudo de textos de uma
maneira completamente diferente da maneira tradicional, que é a leitura do começo ao fim
do texto.

Frederico Freitas: Esta seria a diferença entre o “close reading” tradicional e o “distant
reading” (leitura à distância)?
Zephyr Frank: Pode ser. Claro que “distant reading” também trata de uma ideia de usar a
computação para ler, não somente de maneira distanciada — ou seja, ler Hamlet através do
computador e com o uso ferramentas estatísticas para análise de frequência de palavras,
temas etc. —, mas também a ideia de ler muitas obras ao mesmo tempo, jogando tudo no
mesmo corpus e utilizando o computador para analisar isso tudo. Em vez de ler mil livros
você pode processar mil livros. No final você vai acabar lendo não os livros, mas os
resultados da análise computacional. Voltando às humanidades digitais, eu acho que ela

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surgiu primeiro, aqui nos Estados Unidos, na área das letras e nas ciências ligadas à ciência
da computação e da linguística. No começo a disciplina história ficou um pouco para trás
nessa área. Creio que isso se explica pelo fato de que, geralmente, as fontes que utilizamos
na história são idiossincráticas. São fontes muitas vezes manuscritas ou fontes que se
aplicam tópicos muito específicos. Mesmo quando escrevem sobre a sociedade em geral,
historiadores acabam retraçando a vida de pessoas, ou grupos de pessoas específicas,
pessoas cujos documentos não dizem respeito a outros contextos. O processo de fazer
pesquisa e escrever história não casa muito bem com essa ideia de pegar um grande banco
de dados, processá-los para análise gramática e semântica e chegar a alguma conclusão a
partir disso.

Frederico Freitas: Parece que na literatura existe essa ideia de corpus que junta uma
categoria inteira de obras em um mesmo grupo, o qual pode ser analisado
conjuntamente. Já na história não faz muito sentido analisar o mesmo tipo de fonte
conjuntamente pois o interesse é em temas específicos e não em um gênero de material.
Historiadores, em geral, não estão interessados em analisar todas as certidões de óbito do
Brasil em um longo período pois não é esse o seu interesse. Eles estão interessados em
conhecer os padrões de nascimento e morte na cidade do Rio de Janeiro, ou na província
de Minas Gerais em um tempo determinado.
Zephyr Frank: Exatamente. E em geral historiadores juntam e analisam fontes primárias
diversas, não somente de um tipo, mas de muitos tipos diferentes. Não faz sentido fazer
uma leitura distante quando se utiliza fontes tão dispares e idiossincráticas. Os conceitos de
verticalidade e horizontalidade nos ajudam a entender essa diferença. Por horizontalidade
eu entendo a tentativa de se compreender muitos elementos ao mesmo tempo, provenientes
de diversas fontes. Por isso eu acredito que muitas vezes a história não pode utilizar essas
ferramentas, não da maneira como elas são utilizadas nas letras. É claro que existem
exceções. Há fontes que a história pode analisar com as mesmas ferramentas da literatura,
como a análise de discurso por exemplo. E essa é uma maneira na qual a história e as letras
podem estabelecer um diálogo. Mas eu acho que a disciplina história está entrando no
campo das humanidades digitais como história, de uma maneira idiossincrática. Eu não
vejo uma linha dominante, um consenso, sobre essa questão de como a história pode
utilizar essas ferramentas para avançar. Existem várias maneiras de se apropriar dessas

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ferramentas. Aqui em Stanford e em outros centros existem grupos de historiadores que
estão experimentando uma grande variedade de linhas de pesquisa e ferramentas. Por um
lado existe a história espacial e o uso do SIG. E aqui podemos dizer que a história está
utilizando o SIG e o espaço de uma maneira mais intensiva dos que as letras. Os
acadêmicos das letras descobriram a importância do espaço apenas recentemente. O Franco
Moretti, foi um pioneiro, já que vem trabalhando com conceitos espaciais na literatura faz
tempo.1 Ele trabalha com conceitos como centro, periferia. Não estou, dizendo que
ninguém na literatura tem esse tipo de interesse no espaço, mas é um interesse que está
crescendo, com algumas exceções, apenas recentemente, enquanto que historiadores têm se
interessado pelo espaço há bastante tempo já. Por outro lado, a própria história, apesar dos
seus métodos e propósitos distintos, tem se interessado cada vez mais nas técnicas de
leitura à distância, buscando padrões e processos em grandes bancos de dados. Contudo, eu
acho que ainda não existem resultados que podem ser apontados como pontos de referência.

Frederico Freitas: Você falou da história, quem tem essa afinidade com o SIG e o espaço
e das letras, que têm afinidade com todas essas ferramentas de análise de texto, grandes
corpus, análise semântica e leitura à distância. E as ferramentas da sociologia e da
teoria de redes? Eu sei que você já utilizou essas ferramentas, metodologias e teorias no
passado e gostaria que você falasse um pouco disso.
Zephyr Frank: Esse interesse na análise de redes sociais tem sido importante para uma linha
dentro da história, aquela mais ligada à sociologia. Creio que a maioria dos historiadores
até os anos 1990 trabalhava, de uma maneira ou de outra, em história social. História social
tem uma ligação — e deve ter uma ligação ainda mais forte do que na realidade existe —
com a sociologia e seus conceitos. Claro que também a antropologia e outras ciências
sociais têm contribuído para o desenvolvimento desses métodos que as pessoas usam para
analisar as redes sociais. Muitos conceitos relativos às redes sociais vêm sendo
desenvolvidos por professores daqui de Stanford, como o Mark Granovetter, que é o
sociólogo mais conhecido da nossa universidade que vem trabalhando nessa área. Ele
desenvolveu uma teoria para análise de redes sociais utilizando conceitos como
“embeddedness” [que pode ser traduzido como imersão, incrustação ou enraizamento], e
“weak ties” (laços fracos). Ele tem um artigo famoso intitulado “The strength of Weak
Ties” (a força dos laços fracos), no qual ele desenvolve uma teoria sobre a relação de

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pessoas em uma rede social. Ela trata das ligações que parecem mais tênues em grupos
sociais — aquelas ligações entre duas redes na qual apenas uma pessoa estabelece a ligação
entre os dois grupos. O que ele afirma é que essa pessoa, às vezes, devido a essa posição,
tem grande poder. Isso a despeito do fato de essa pessoa muitas vezes não ter muito
destaque em um ou outro grupo. Portanto eu creio que através dessas ideias da sociologia e
da teoria de redes os historiadores podem entender melhor a relação das pessoas em uma
sociedade do passado. Porém eu creio que os historiadores têm se concentrado em demasia
em redes sociais formadas pela elite social e política das sociedades: políticos,
comerciantes, intelectuais. Não tenho visto muito, até hoje, bons trabalhos que foquem mais
nos estratos intermediários ou mesmo no outro extremo social, em grupos de trabalhadores
por exemplo. Eu acho também que as redes sociais têm um problema similar àquele que
você apontou em relação à exatidão e o uso do SIG na história. É comum termos acesso a
listas de pessoas que assumimos terem possuído alguma ligação entre si. Contudo, muitas
vezes faltam provas substanciais que essas ligações tenham existido realmente, ou, quando
existiram, não há informações sobre a qualidade dessas ligações. Em geral é só uma lista de
nomes, o que nos leva a supor que essas pessoas talvez tivessem tido algum tipo de ligação.
Eu fiz uma experiência mais ou menos nessa linha em um artigo que publiquei há um seis,
sete anos atrás, “Layers, Flows and Intersections: Jeronymo José de Mello and Artisan Life
in Rio de Janeiro, 1840s-1880s,” no Journal of Social History, onde tento imaginar as redes
sociais de trabalhadores como latoeiros e açougueiros. Essas redes parecem ter uma
realidade advinda da representação das relações sociais reconstruídas pelo pesquisadores.
Isso tem um valor heurístico, pois nos permite perceber certas formas de relação a partir de
suas posições dentro de uma rede. O problema é que muitas vezes estamos criando ligações
entre pessoas sem saber a qualidade da ligação, estamos estabelecendo ligações sem
qualquer conhecimento sobre a temporalidade — quando tais ligações começaram ou
acabaram —, então acaba sendo uma reificação. Por um lado isto pode ter algum valor
como uma forma de representar as ligações entre as pessoas no passado. As vezes isso pode
ser melhor do que nada. Mas por outro lado ainda não tenho muita fé que esse tipo de
negócio vá funcionar, nem mesmo em áreas nas quais tais procedimentos parecem prometer
bons resultados. Vamos supor que um pesquisador queira entender as relações entre
mercadores e compradores de escravos ou entre fornecedores de crédito e devedores. Seria
muito interessante reconstruir as redes que conectam esses personagens históricos, ver que

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tipo de pessoa que está no centro da rede (isto é, aquela que tem mais conexões), quem vai
receber mais dinheiro, acesso melhor ao crédito etc. O problema é que essas redes estão
incompletas, muito incompletas. Nós como historiadores sabemos que às vezes o tio do
fulano, que não entra na rede construída a partir do nosso banco de dados, é a pessoa que
pode explicar o acesso ou não de alguém ao crédito. Ou seja, as redes sociais são
complexas e têm extensas ramificações e geralmente estamos trabalhando com fontes
primárias que, além de serem incompletas, falham em capturar toda a informação de um
rico universo de conexões entre pessoas. No melhor dos casos corremos o risco de
identificar razões e de entender as relações interpessoais de uma forma aproximada e no
pior dos casos de uma maneira completamente enganosa. Eu gosto das representações de
rede, mas ainda acho que não temos muitos resultados, pelo menos na área de história, que
sirvam para nós historiadores. O caso da sociologia é diferente: eles têm outras questões,
estão trabalhando com outras fontes e estão tentando explicar outros problemas. Mas para a
história é mais complicado.

Frederico Freitas: Fale um pouco sobre sua pesquisa atual, o que você está fazendo?
Você está terminando um livro, não?
Zephyr Frank: Estou terminando um livro, que se chamará Reading Rio de Janeiro. É um
livro sobre literatura e sociedade no Rio do século XIX. Eu cheguei a uma versão mais ou
menos final do texto e agora estou revisando. A pesquisa se realizou em duas partes. A
primeira, que levou por volta de dez anos, foi a pesquisa sobre a história social da cidade.
Foi um grande trabalho de levantar dados, criar bancos de dados, leitura de livros sobre a
cidade neste período etc. No fim eu cheguei à conclusão de que valeria a pena também
escrever sobre literatura. Então há uns quatro anos comecei o processo de pesquisa e leitura
de literatura. Eu já era bastante familiarizado com o tema, sempre gostei de ler literatura
brasileira, mas nos últimos quatro anos isso se tornou um processo mais sistematizado. Por
fim, acabei escrevendo mais sobre literatura do que história. Agora que estou revisando o
texto, decidi que vou colocar mais do meu trabalho de história social no livro. Agora que o
livro está mais ou menos completo eu posso colocar o que fiz em história intercalado com o
trabalho em literatura. Em vez de colocar história e literatura juntas na mesma medida eu
estou querendo uma divisão de 20 por cento de história para 80 por cento de literatura.
Acho que isso pode também servir de exemplo para um tipo de trabalho em humanidades

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digitais. Eu também estou tentando entender padrões dentro da literatura através de uma
leitura distante. Eu uso, por exemplo, muitas peças teatrais escritas no século XIX e analiso
a linguagem das personagens e como elas se comportam. Por exemplo, uma pessoa rica se
expressa de maneira diferente do que uma pessoa pobre, ou das classes intermediárias.
Estou terminando a fase final desse projeto. Quero colocar mais informações históricas,
alguns mapas e análise espacial. Existe um capítulo sobre os problemas da prática espacial
onde utilizo ideias do Bourdieu, Certeau e Lefebvre — esses autores franceses que
escrevem sobre o espaço de uma maneira que acho interessante. Mas esse é um estudo de
práticas espaciais sem muitos mapas, é mais um estudo interpretativo e cultural em vez de
um mapeamento. Além disso, estou também fazendo uma pesquisa sobre demografia em
Minas Gerais no século XVIII junto à colegas da Universidade Federal de Minas Gerais, e
esse projeto também tem mais de dez anos de desenvolvimento. Estamos tentando concluí-
lo com alguns livros sobre o assunto, talvez até no fim do ano que vem. Este também é um
projeto que utiliza bastante computação, é um estudo demográfico e quantitativo que trata
de um período de mais de um século, na longue durée. Eu utilizo dados de arquivos
paroquiais — óbitos, casamentos, batismos, livros notariais, etc. Mais ou menos tudo que
nós conseguimos achar estamos colocando em um grande banco de dados e fazendo
análises a partir disso. Pretendemos entender processos econômicos, demográficos, sociais,
culturais ao longo do tempo. Estamos estudando tópicos como os nomes dos escravos, o
processo de integração de escravos com a população livre, a história das famílias através
das gerações — as vezes pegamos cinco ou seis gerações e analisamos o que aconteceu nas
várias ramificações dessas famílias. Muitas dessas famílias tem uma parte branca, pelo
menos socialmente branca. Outras partes da família são compostas por pessoas livres de
cor. Muitas vezes ambos os lados da família possuem escravos, mas o lado “branco” possui
muitos escravos enquanto que o lado “de cor” possui poucos, o que sinaliza também a
distinção que a posse dá a cada parte da família.

Frederico Freitas: É interessante você ter citado as diferentes gerações de uma mesma
família. Voltando um pouco ao assunto das redes sociais e da sociologia, às vezes eu
tenho a impressão de que esse tipo de análise se foca muito em uma dimensão horizontal
— as redes construídas em um mesmo momento no tempo. A pesquisa transgeracional
que você citou assemelha-se mais a uma árvore na qual percebe-se a evolução e a

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ramificação de uma família e das condições sociais através do tempo. Mudando um
pouco de assunto, eu gostaria que você falasse um pouco sobre o que é o CESTA, como
surgiu, que tipo de estrutura vocês têm aqui. Você acha que esse é um modelo a ser
reproduzido em outros lugares?
Zephyr Frank: Eu creio que a história de como o centro se constituiu não serve de roteiro
para outros que queiram fazer algo parecido. Anos atrás o professor Richard White recebeu
uma bolsa da Fundação Mellon em reconhecimento à sua carreira acadêmica para o
estabelecimento de um projeto de pesquisa. Qualquer projeto que ele quisesse. Na época ele
estava pensando muito sobre o espaço como conceito na história e ele achou por bem
utilizar os recursos disponibilizados pela bolsa na fundação e desenvolvimento do Spatial
History Project. Desse modo, desde o início, o projeto teve uma situação financeira que
possibilitou desenvolver o laboratório nas linhas que ainda estamos explorando hoje em
dia. Sempre houve muito espaço para experimentação e flexibilidade. Eu acho que mesmo
sendo um exemplo difícil de reproduzir para aqueles que não podem garantir o mesmo
nível de recursos, a maneira na qual trabalhamos pode ser um exemplo para outros projetos.
Existem pelo menos duas maneiras nas quais o nosso centro pode servir de exemplo. A
primeira é o espaço. Aqui temos um espaço colaborativo onde as pessoas podem se juntar
para trabalhar em projetos de uma maneira similar àquela que ocorre nas ciências exatas e
biológicas, como um laboratório. Por que isso é importante? Isso é importante porque,
desde o começo desta entrevista, temos falado de pesquisas que necessitam de
conhecimento e capacidade técnica diversa, que encontramos em diferentes pessoas. Não
existe ninguém que domine todas essas técnicas, e nem vale à pena. É melhor compartilhar
e colaborar. Portanto, é preciso haver pessoas com conhecimento e técnicas que se
complementem. Por exemplo, em um trabalho de SIG histórico, é necessário haver o
historiador, que conheça as fontes primárias que tem questões históricas relevantes, mas
também faz-se necessária a existência de uma pessoa que entenda de banco de dados, ou de
outra pessoa com conhecimento de cartografia, se a criação de mapas é importante, etc.
Essa ideia de trabalhar em grupos e juntar pessoas em um ambiente colaborativo é uma das
grandes contribuições do nosso laboratório para outros projetos. Tradicionalmente a
pesquisa do historiador é uma atividade solitária. Historiadores geralmente trabalham
sozinhos em bibliotecas, arquivos ou em seus escritórios. Aqui estamos trabalhando todos
juntos, em um mesmo espaço, colaborando e utilizando o conhecimento de várias pessoas

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para avançar. Isso é algo que os outros podem reproduzir sem muitos recursos. É só questão
de achar as pessoas e interessá-las no projeto. Creio que isso já está acontecendo em vários
lugares. A outra coisa que acho importante, pelo menos para nós aqui, é que estamos
também tentando ensinar, e não apenas fazer pesquisa. Temos estudantes de graduação que
estão aprendendo como pesquisar, como trabalhar como um historiador ou pesquisador de
literatura. Eles aprendem a prática de pesquisa, mexendo com fontes primárias e
aprendendo como lidar com a tecnologia de pesquisa. Isso pode ser um bom exemplo para
outros projetos de pesquisa, pois eu acho que às vezes existe uma distinção muito grande
entre pesquisa e ensino, pelo menos nas humanidades. Aqui, talvez, as humanidades
digitais possibilitam trazer essas duas facetas da atividade acadêmica para um espaço onde
pode-se fazer ambos ao mesmo tempo. Aqui temos tido muito sucesso com esse modelo.
As vezes os alunos vêm já com alguma capacidade técnica, as vezes chegam sem saber
nada e aprendem no decorrer dos projetos. De qualquer forma, os alunos trazem ideias
quem têm grande valor. Além disso, trazem energia, criatividade. Desenvolvem sua própria
capacidade ao contribuir para o projeto. Seria enganoso dizer que esse processo é super-
eficiente; se um pesquisador quer apenas fazer pesquisa e publicar artigos, talvez esse
modelo não sirva. Mas se ele quer uma mistura entre pesquisa e ensino, eu acho que as
humanidades digitais e esse modelo de colaboração e projetos em grupo serve muito bem
para tais propósitos. É importante também reconhecer que, em geral, as universidades
valorizam muito o ensino, e se podemos mostrar resultados, não somente na área de
pesquisa, mas na área de ensino, isso facilita o processo de negociação com as autoridades
acadêmicas e a capacidade de negociar por recursos. Por fim, temos que reconhecer que o
que funciona bem aqui é a mistura de disciplinas. Podemos usar o conceito de humanidades
digitais para gerar espaço de colaboração entre disciplinas diversas. Aqui no CESTA
trabalhamos com história, letras, ciências políticas, até biologia. Têm muita gente que
percebe o valor da interdisciplinaridade. Em vez de criar um centro só para história ou
letras, estamos aqui criando algo que, mesmo respeitando as questões, limites e parâmetros
de cada disciplina, proporciona a colaboração entre várias disciplinas. É exatamente isso
que aconteceu comigo. Eu estava trabalhando na minha própria pesquisa em história social
do Rio de Janeiro no século XIX quando comecei a trabalhar com o Literary Lab e lidar
com literatura e letras. O tipo de conversa que eu tive com eles desencadeou a minha

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pesquisa atual e agora estou no processo de finalização do meu livro. Esse tipo de
colaboração é muito fértil.

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Notas
1
Franco Moretti é professor catedrático de Inglês e Literatura Comparada e é o diretor do Literary Lab.

Entrevista recebida em 08/01/2014. Aprovada em 27/02/2014.

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A PRIMEIRA-DAMA MARIA THEREZA GOULART E O
COSTUREIRO DENER: A VALORIZAÇÃO DA MODA
NACIONAL NOS ANOS 1960

THE FIRST LADY MARIA THEREZA GOULART AND


COUTURIER DENER: THE VALORIZATION OF NATIONAL
FASHION IN THE 1960s

Ivana Guilherme SIMILI•

Resumo: As transformações na cultura das aparências dos anos 1960 são examinadas por meio
da primeira-dama Maria Thereza Goulart e do costureiro Dener Pamplona de Abreu. Na
abordagem, os documentos memorialísticos e da imprensa, em específico, uma edição da
Revista Manchete de 1963, possibilitou dimensionar os processos sociais, culturais e políticos
envolvidos na criação da moda brasileira. Evidenciamos, assim, como a relação entre os dois
personagens, mediada pelas roupas da alta-costura, produziam sentidos para a moda nacional e
faziam emergir padrões estéticos que influenciavam os segmentos femininos a valorizarem a
beleza e a elegância dos corpos e das roupas “à brasileira”.
Palavras-chave: Moda – Cultura nacional – Elegância.

Abstract: The changes in the culture of appearances in the 1960s are examined by means of
first lady Maria Thereza Goulart and couturier Dener Pamplona de Abreu. In the approach,
documents and memoirs of the press, in particular, an edition of the Journal “Manchete” of 1963
enabled the scaling of social, cultural and political processes involved in the creation of
Brazilian fashion. It is evidenced how the relationship between the two characters, mediated by
the clothes of couture, produced standards for the national fashion sense and created aesthetic
standards that influenced female segments to appreciate the beauty and elegance of their bodies
and clothing “à brasileira”.
Keywords: Fashion – Culture national – Elegance.

Introdução

Ali, no comício para as reformas, no dia 13 de março de 1964, na


Central do Brasil, junto ao palanque onde Jango discursava com o
dedo em riste, eu só tinha olhos para a primeira-dama Maria Thereza
Goulart. Como era linda nossa dama... Estava um pouco atrás do
marido, com um vestido azul pavão, cabelo penteado em ‘coque’, no
estilo anos 1960, e olhava, com os seus 28 anos, para a imensa
multidão de operários da Petrobrás, com as tochas acesas ao cair da
noite. Era uma visão de filme soviético: os operários, as faixas, as
enxadas e foices dos camponeses, mas eu só via o filme americano de
Thereza Goulart (JABOR, 2003, p. 44).

•Doutorado em História – UNESP/Assis. Professora do Departamento de Educação e do Programa de


Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM) – CEP: 87020-900, Jardim
Universitário, Maringá, Paraná – Brasil. E-mail: ivanasimili@ig.com.br

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Na narrativa de Jabor, para lembrar-se de um fato que marcou um dos momentos
mais tensos da história política brasileira –o comício do presidente João Goulart (1961-
1964), na Central do Brasil – é perceptível que Maria Thereza Goulart roubava a cena e,
porque não dizer, em certos momentos e ocasiões, fazia com que a atenção do público
fosse desviada para a sua presença e beleza. O narrador se lembra da cor do vestido que
ela usava, denominada de “azul pavão”, do “coque” e da juventude de quem tem 28
anos, detalhes que lhe permitem afirmar: “como era linda nossa dama”.1
Não é somente na narrativa do jornalista que Maria Thereza Fontella Goulart –
esposa de João Goulart (1919-1976) que, como tal, ocupou a posição social e a
representação política de primeira-dama – é lembrada pela beleza, detalhada e
significada em função dos atributos físicos do corpo, da idade e das roupas. Esse é o
modo pelo qual ela se permite ver por meio da história, o que suscita leituras e
interpretações produzidas por biógrafos, memorialistas e pela imprensa, as quais se
constituem em ponto de partida para delinear o percurso visual da esposa do presidente,
de modo a determinar suas contribuições na cultura da moda e das aparências dos anos
1960.
Ferreira (2011, p. 345), biógrafo de João Goulart, menciona que Maria Thereza é
exemplo dos efeitos positivos e negativos que a beleza física proporciona a uma mulher.
Os atributos físicos, ao conformarem a aparência de “menina”, trouxeram-lhe promoção
pessoal e social, na medida em que, além de chamar a atenção das pessoas -
especialmente dos homens - sobre e para si, também fizeram que se transformasse em
objeto de interesse midiático, por intermédio de narrativas que expunham sua aparência
nas capas de revistas tais como Manchete, Fatos e Fotos, Stern e Life. A exposição fez
que, junto com a proliferação das imagens, surgissem comentários acerca de sua vida
pessoal, muitos deles, classificados pelo autor como maldosos, em particular, com
relação ao casamento e aos assuntos relativos à sua fidelidade.
Uma mulher cuja aparência proporciona a sua transformação em fenômeno
midiático em capas de revistas nacionais e internacionais. Eis uma descrição de Maria
Thereza referente às memórias de como a personagem se recorda e interpreta a posição
da qual desfrutava no passado. Nas entrevistas que concedia, em geral, uma das
questões abordadas diz respeito à percepção que a ex-primeira-dama tinha do passado e
do modo como era recordada. Em uma delas, ao ser perguntada: “A senhora gosta de ser
lembrada como a primeira-dama mais bonita do Brasil?”, respondeu:

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Olha, eu era muito jovem... É claro que me sentia lisonjeada com os
elogios. Imitavam meu penteado, aquele coque, então... Como eu já
disse antes, o Brasil vivia um momento de mudanças na moda,
cinema, música... Eu procurava estar à altura de meu marido, que
tentava mudar o país (RIBEIRO, 2011).

De certa forma, a personagem afirma que tudo o que se comenta sobre ela,
inclusive nos canais midiáticos ou pela memória fabricada por meio da imprensa em
torno de si e de sua imagem, deve ser considerado como sintoma das mudanças que se
processavam naqueles anos no país em vários setores da vida social e cultural, entre
eles, na moda. Ela se outorga a representação de alguém que desempenhou papel
importante na vida pública e política, ao exercer influências sobre as aparências das
mulheres, com poder para despertar o desejo de serem como ela, de fazerem o que fazia
mediante a imitação e a cópia de seus “modelos”, lembrados por meio da consagração
do “coque” no cabelo.
Se por meio dessas recordações ela se define como uma personalidade que ditava
moda e comportamento, por intermédio de outras narrativas a representação completa-
se. Entre as estratégias desenvolvidas pela personagem e que, no presente, alimentam a
imagem dela como personagem da moda, estiveram várias ações, dentre elas, a de
contratar, em 1963, um figurinista para cuidar do seu guarda-roupa. Entre 1963 e 1964,
aos eventos e solenidades que marcaram a vida pública brasileira, ela compareceu
vestida com as roupas da alta-costura, criadas especialmente para a primeira-dama pelo
costureiro Dener Pamplona de Abreu (1937-1978). É para o papel que ele e suas roupas
desempenharam nas imagens que, hoje, chegam até nós informações sobre Maria
Thereza, às quais o costureiro acena ao registrar em sua biografia:

Eu fiz vestidos para Maria Thereza para todas as ocasiões. Para


recepções, casamentos, para funeral, para solenidades oficiais. Só não
fiz um vestido para a deposição. Porque ela não me pediu. Mas Maria
Thereza tinha roupas apropriadas. Poderia usar um tailleur marrom,
cinza grafite, ou um tailleur preto com blusa branca. Pois não é que
ela perde a cabeça, fica nervosa ou sei lá o que aconteceu... [...] Ora o
que aconteceu! O que aconteceu é que ela foi exilada de turquesa!
(ABREU, 2007, p. 76).

Neste trecho, o que o costureiro afirma é que a fama e o poder conquistados por
Maria Thereza devem ser tributados a ele também, na medida em que a vestiu para
todas as ocasiões, menos para a deposição. Por conseguinte, os créditos das cores e dos
brilhos que amalgamavam as imagens de beleza que chegam do passado devem ser

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concebidos como produções visuais nas quais ele teve participação por meio do que ela
vestia.
A história da relação entre Dener e Maria Thereza, estabelecida em torno das
roupas e das aparências, pode ser concebida como uma aproximação entre os dois
personagens da “alta cultura” (CRANE, 2011, p. 15) na produção e difusão de
representações para a moda nacional. Ao apresentar-se nos eventos sociopolíticos com
as roupas de Dener, a primeira-dama valorizava a produção nacional, incorporando em
suas práticas de vestir os símbolos que a posicionavam como defensora do princípio de
que havia uma moda brasileira, criada pelos costureiros brasileiros e para a mulher
brasileira. Este, sem dúvida, é um princípio político-ideológico que movimenta e
confere sentido ao campo da moda como meio de romper com as influências estético-
estilísticas europeias e norte-americanas que, historicamente, haviam marcado a relação
das pessoas, em particular, das mulheres com as roupas e com as aparências.
Questões relativas à moda brasileira e às tensões peculiares aos períodos de
múltiplas transformações nos corpos, nas aparências e nas subjetividades das mulheres
são aspectos marcantes nos anos 1960, fazendo emergir novos modelos de
comportamento, novos valores estéticos e sentidos para as roupas. As mudanças
produzem uma “configuração” peculiar da moda, no sentido usado por Elias (2011, p.
240), de “[...] uma estrutura de pessoas mutuamente orientadas e dependentes”,
formando uma rede de interdependência entre elas, ligando-as à sociedade e cultura das
aparências. As mudanças processadas durante esse período nos comportamentos, nas
crenças, nos valores, portanto, nas sensibilidades e nas subjetividades das mulheres, são
acompanhadas por estratégias diversificadas que definem um campo da moda, com
práticas significantes (BARNARD, 2003) para a beleza da mulher brasileira e para a
moda nacional, modernizando e “civilizando” as aparências.
Naquele contexto, o encontro de aparências entre Dener e Maria Thereza marca
um momento dos processos sócio-culturais profundos na produção de sentido para a
nacionalidade da mulher e para as roupas nacionais. Assim, emergem novos símbolos
para a estética feminina, de modo a definir uma estilística para a brasilidade.
Grosso modo, traçamos, dessa maneira, o percurso narrativo desenvolvido no
texto. Na primeira parte, assumimos a definição de Veillon (2004, p. 7) de que a moda é
“[...] manifestação da vida sob todas as formas, maneiras de ser e de comportar”, o que
a transforma em “[...] observatório privilegiado do ambiente político, econômico e
cultural de uma época”, para analisar as transformações observadas nos anos 1960 na

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cultura das aparências, isto é, na generalização em escala coletiva (ROCHE, 2007, p.
59) de novos modelos de conduta com relação ao corpo e à roupa. Na segunda,
desenvolvemos um trabalho empírico sobre um exemplar de revista na qual a primeira-
dama foi transformada em capa, publicada em maio de 1963, o que permitiu analisar as
apropriações, os empréstimos e as trocas culturais estabelecidos em torno dos valores
estético-estilísticos para significar a beleza das roupas e da mulher brasileira.

As indústrias do corpo, da beleza e da elegância

João Goulart era o vice-presidente de Jânio Quadros, quando em 1961, assumiu a


presidência da República e governou o país até 1964, quando foi deposto pelo golpe
militar. Entre os anos 1961 e 1964, como Presidente da República, enfrentou sucessivas
crises econômicas, sociais e políticas que desestabilizaram o governo, tais como o
aumento das mobilizações e das reivindicações sociais; as constantes greves dos
trabalhadores de vários setores e segmentos profissionais por aumento de salários; a
inflação galopante que pedia por medidas e ajustes governamentais na política
econômica. Para Moniz Bandeira (1977) e Silva (2008), ao optar pelo desenvolvimento
denominado "capitalismo nacional e progressista" e pela estabilização da economia,
Goulart implementou o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social, cujos
efeitos foram a contenção salarial justificada pela necessidade de manutenção das taxas
de crescimento da economia e de redução da inflação.
No período, acompanhando as transformações econômicas, sociais e culturais, as
aparências das mulheres passaram por mudanças significativas, mediante a redefinição
das subjetividades femininas em torno dos valores da juventude e da beleza como
passaporte para o sucesso, o prestígio e a felicidade. É nesse sentido que as reflexões de
Denize Bernuzzi Sant’Anna (2008) caminham, ao mostrar que a política
desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek inaugurou um fato inédito na cultura das
aparências: o processo de rejuvenescimento e de modernização do país passava pelas
maneiras de ser dos brasileiros e das brasileiras.
A ideologia do progresso, que fundamentava a política desenvolvimentista
adquiria naquele contexto, era “civilizadora” (ELIAS, 2011), promovendo
transformações profundas nos comportamentos com relação aos ambientes domésticos e
dos corpos. Essa analogia entre progresso e corpo ganha forma nas revistas e nos
manuais de beleza. É para esse ponto que Sant’Anna (2008) acena ao revelar que perder

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peso era um dos conselhos que marcavam as propagandas da época, pois, com o corpo
magro e leve, os brasileiros e as brasileiras ganhariam charme, velocidade e juventude.
Nessa fabricação, a gordura era transformada em sinônimo de lentidão e atraso. Para as
mulheres, a celulite era considerada um problema que devia ser combatido, assim como
o ciúme. Fazia-se fundamental rejuvenescer o corpo e os sentimentos, era preciso que
cada pessoa compatibilizasse as aparências individuais com as imagens que o país
projetava para si no cenário nacional e internacional, como uma nação dinâmica, jovem,
que progredia.
A beleza, a juventude e a felicidade passaram a ser produtos do mercado e, como
tais, poderiam ser compradas. Desde 1959, a beleza foi redefinida com suporte no
conceito de que ela não era uma benção divina ou da natureza, mas que podia e devia
ser conquistada pelo esforço individual das dietas, ginásticas e por meio da aquisição de
produtos estéticos que solucionassem as feiúras da pele, do corpo, tais como os cremes,
os shampoos, as maquiagens etc. Essa redefinição é acompanhada pela ampliação do
parque industrial e comercial relacionado ao ramo, que começou a crescer a partir do
estabelecimento de indústrias de cosméticos, da criação de uma rede de lojas e de
revistas especializadas em moda e beleza.
Para Sant’Anna (2008, p. 63), a chegada da Avon ao país, em 1959, e a
transformação da cosmetologia em uma ciência independente da química e da
dermatologia são marcos das mudanças observadas na democratização do consumo e
das aparências. Nas revistas femininas, as mulheres liam os anúncios: “Ser bela não era
apenas um dever, mas também um direito de todas as mulheres [...].” De porta em porta,
as vendedoras da Avon mediavam o aprendizado desse direito: “Seja bela todos os dias,
construa sua beleza de acordo com seu tipo físico e com seus desejos.”
Na década de 1960 ampliam-se os mecanismos científicos da cosmética para que
todas as mulheres possam usufruir dos prestígios da beleza. Os primeiros congressos
internacionais e a evolução dos produtos de beleza pela indústria cosmética atribuem
novo significado para a estética feminina formulada pelo imperativo de que era
necessário “não ser, mas sentir-se bela”, ou seja, era preciso que as mulheres se
sentissem satisfeitas com a própria aparência. Por conseguinte, o sucesso ou fracasso
em sua vida pessoal passava a ser expressão do corpo e da beleza (SANT’ANNA,
2012).
Processo contíguo, a cultura da beleza ganha impulso com o mercado de
produção e consumo de roupas. A primeira Feira Industrial das Indústrias Têxteis

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(FENIT), organizada em São Paulo em 1958; o uso dos fios sintéticos, bem como a
segmentação do mercado de consumo entre a moda de luxo e o prêt-à-porter [roupas
prontas para vestir], são fenômenos que marcaram o surgimento da moda nacional e os
investimentos na elegância da mulher brasileira.
Entre os anos 1960 e 1970, no Brasil e no cenário internacional, a “consolidação
do prêt-à-porter” altera significativamente o sistema de produção e consumo da moda,
que se depura de quaisquer emblemas de classe e distinção ainda presentes no sistema
da alta- costura. Ou, conforme escreveu Lipovetsky (1989, p. 110), o espírito da moda
que surgiu naqueles anos é “[...] mais voltado à audácia, à juventude e à novidade do
que à perfeição ‘classe’.” O prêt-à-porter representaria a cultura juvenil, engajando-se
no processo denominado de rejuvenescimento democrático da moda. No entanto, alerta
o autor, o fenômeno mais notável é que a alta-costura, indústria de luxo por excelência,
contribuiu para a democratização da moda, na medida em que se tornou mais acessível
porque “imitável” pelo prêt-à-porter, diminuindo as fronteiras que separavam um e
outro sistema (LIPOVETSKY, 1989, p. 110 -115).
A democratização da moda leva à percepção da existência da juventude, categoria
incorporada ao mercado de produção e de consumo de roupas. Ela proporciona a criação
de um mercado de roupas para os/as jovens, com seus estilos próprios de viver, de amar,
de consumir e de vestir. Como afirma Zimmermann (2013, p. 21), “O mercado de
produção de roupas para jovens cresce significativamente no país, definindo e
comunicando a existência de jovens e a cultura da juventude.” Para divulgar os
conceitos e as “marcas da juventude”, surgem revistas específicas, caso da Capricho.
O significado da cultura da juventude na moda feminina e brasileira, em
específico, nas aparências das mulheres, foi que as garotas daqueles anos podiam vestir-
se de acordo com sua idade. Elas passaram a ter roupas próprias, o que lhes
possibilitava romper com a relação histórica de usar vestimentas semelhantes às
utilizadas pelas mães. Para as jovens e as mulheres casadas, donas de casa e mães de
família, modelo dominante de feminino e de feminilidade, a produção em massa de
roupas amplia os espaços de consumo de lazer, possibilitando-lhes cultuar a aparência
por meio da aquisição de roupas para si, acompanhando tendências, as mudanças de
estações, os ciclos da vida e as sociabilidades dos passeios, encontros, festas, bailes etc.
Os novos espaços de consumo permitem às mulheres casadas abastecer os
guarda-roupas da família. Se a máxima era “seja bela e cuide-se”, o mercado de roupas,
em franco crescimento, vai oferecer tudo o que uma mulher nessa condição precisa para

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vestir-se e mostrar-se bonita, nas diferentes etapas de sua vida, no público e no privado.
Não podemos esquecer de que até meados dos anos 1960, explicam Miguel e Raial
(2012), os programas de lazer para as mulheres casadas estavam concentrados no lar.
Ficar com o marido e os filhos, ocupar o tempo livre com atividades relacionadas aos
afazeres domésticos, tais como bordar, costurar, fazer crochê de artesanato eram
atividades concebidas como lazeres femininos adequados às casadas. A saída para as
compras com a finalidade de abastecer o lar e a família - com alimentos, roupas, tecidos,
objetos para enfeitar a casa ou eletrodomésticos, em um mercado de bens e produtos
que cresce a passos rápidos nas cidades brasileiras - também se tornou um tipo de lazer
privilegiado das esposas e mães.
A compreensão dessa mudança estava relacionada ao modelo de família e de
consumo que emerge naqueles anos, com o crescimento da classe média e as influências
do modelo norte-americano, american way of life, no comportamento das pessoas.
Nesse modelo, a família feliz é a consumidora. No estilo de vida da mulher casada, de
classe média, uma das medidas visíveis da felicidade era a aparência da esposa, do
marido e dos filhos e, nelas, as roupas. Por intermédio da Revista Claudia (1961) e, em
específico, da Manequim (1959) que cria, inclusive, suplementos especiais para as
grávidas, elas acompanham tendências de roupas, de decoração, bem como aprendem a
consumir vestimentas, produtos de beleza, mobiliário e utensílios domésticos para a
casa. Nesse contexto, merece destaque a ampliação de ofertas de roupas masculinas e
infantis no mercado da moda.
É importante ressaltar, ainda, os papéis desempenhados pelas revistas Claudia e
Manequim na cultura da moda e das aparências, em específico, na “civilização dos
costumes” (ELIAS, 2011), dos códigos de conduta e dos comportamentos de consumo
que deviam orientar a escolha e o uso das roupas. O público privilegiado da primeira
sempre foi a mulher casada e mãe, que consagrava seu tempo aos cuidados da família,
com poder de decidir ou ao menos influenciar a escolha dos produtos para o consumo -
roupas, cosméticos, utensílios domésticos etc. - aspecto que possibilitou a criação de
várias segmentações: Claudia Moda, Claudia Casa e Claudia Cozinha. O início da
produção de fios de nylon pela Rhodia, em 1955, e a primeira Fenit, realizada em 1958,
são fatos que explicam o surgimento da Manequim em 1959, visto que, por seu
intermédio, o consumo de moda era facilitado em razão dos moldes que explicavam
passo a passo como fazer a peça de roupa apresentada nos corpos das modelos (LUCA,
2012).

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Mulheres, fiquem à vontade para explorar as roupas e comunicarem o que são, o
que sentem, como se veem, com elegância. Eis o recado veiculado nos editoriais de
moda, que classifica tipos e estilos femininos, indicando a roupa apropriada na
composição de imagens em que a elegância é o princípio, meio e fim das aparências.
“Você é romântica?”. “Você é esportiva?”. “Você é moderna?”. “Você é ingênua?”.
“Você é sofisticada?”. “Você é equilibrada?”. Defina-se. Escolha a sua roupa para dizer
algo sobre si.
A elegância é democrática e acessível:

Seja admirada por suas amigas fazendo você mesma os mais lindos
vestidos de acordo com os modelos da última moda mundial. Bastam
cinco meses para você aprender o novo método LIDER: plissê alta-
costura e corte (REVISTA MANEQUIM, 1963, p. 29).

Com discursos dessa natureza, emergia um novo método de ensino de corte,


costura e de manuseio de tecidos para a cópia dos modelos anunciados na Manequim, os
quais transformavam os comportamentos de consumo e as aparências em consonância
com os novos códigos do bem vestir-se.
Nesse momento, as propagandas de máquina de costura e de cursos por
correspondência relacionados à área dialogam com as mulheres dizendo com todas as
letras que “estar na moda era um ato de vontade”. Em casa ou pelas mãos das
costureiras, os segmentos pobres e da classe média - jovens e senhoras - podiam
acompanhar as tendências. Nesse processo, um dos fatores que impulsionam o mercado
da moda feminina foi a maior participação da mulher no mercado de trabalho. “A
passagem da dona de casa à mulher profissionalizada teve e, ainda tem, uma dupla
implicação no mercado de roupa” (DURAND, 1988, p. 109). Com a saída de casa para
trabalhar, a mulher deixava de coser para si e para os filhos, o que estimulou o aumento
dos segmentos feminino e infantil no mercado de roupa industrializada. Além disso, ao
deixar de fazer os consertos das peças, o consumo de novas roupas era antecipado.
Acresce-se a esses aspectos que o trabalho fora de casa alimentava o consumo, na
medida em que a “boa aparência” era uma obrigação imposta pelos regimes
profissionais (DURAND, 1988, p. 109).
Sem dúvida, uma nova lógica na cultura das aparências - no sentido de que fala
Roche (2007) -, da importância e dos papéis desempenhados pelas indumentárias nas
relações humanas e sociais instala-se no Brasil nos anos 1960, motivando as mulheres a
mudarem, a se tornarem belas e elegantes. Em certa medida, pode-se afirmar que a

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moda influenciou todas as esferas da sociedade, segmentando o público e o consumo; os
comportamentos, os gostos, as ideias, as roupas, os objetos, a linguagem (CALANCA,
2008, p. 3). Enfim, ela alterou os relacionamentos das pessoas consigo, com o mundo e
com suas visualidades.

Maria Thereza e Dener: a produção da estética nacional

A moda, quando concebida como fenômeno que transforma os comportamentos,


determina a relação entre as pessoas na sociedade. Nesse processo, ela incorpora os
indivíduos e os transforma em símbolo das mudanças para influenciar as pessoas e
indicar caminhos para melhorar a aparência. Nos anos 1960, uma personagem
estratégica ao processo “civilizador” e modernizador da moda brasileira para fazer girar
o motor das subjetividades das mulheres, de modo que renovassem, atualizassem e
acompanhassem as transformações nas aparências exigidas pelos novos tempos, foi
Maria Thereza Goulart.
Nesse sentido, a produção de significados para a imagem da primeira-dama por
intermédio dos canais midiáticos, que a expunham na condição de modelo de beleza e
elegância, deve ser entendida como estratégia político-ideológica da moda nacional, isto
é, como uma prática significante desenvolvida pela imprensa para difundir crenças
acerca da nacionalidade na sociedade. Logo, os mecanismos engendrados pelos meios
de comunicação para falar dela e os recursos postos em ação na produção de sentidos
para a sua beleza devem considerar os empréstimos de símbolos, as acomodações, as
adaptações, enfim, os processos das “trocas culturais” (BURKE, 2008) que
acompanham as mudanças sócio-político-culturais.
Em poucas palavras, uma análise assim determinada sobre as imagens produzidas
e veiculadas pela imprensa sobre/para Maria Thereza deve considerar o modo como elas
foram processadas para que fizessem sentido junto às leitoras, levando-as a acreditarem
na elegância da personagem. Com base nesse pressuposto, é possível afirmar que, em
1961, quando Maria Thereza assumiu a posição social e política de primeira-dama, a
cultura da moda e das aparências no Brasil era propícia à construção de representações
de beleza para a brasileira. Havia, no cenário internacional, uma bela e jovem primeira-
dama, a norte-americana Jackie Kennedy, digna representante da moda. Na imprensa
norte-americana e no Brasil ela era a “mulher de destaque”, admirada, copiada no que
diz respeito aos cabelos e às roupas. Nas páginas da Vogue, uma revista que pode ser

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caracterizada como “[...] autoridade branca, burguesa, tão influente que o seu nome é
sinônimo de moda, mostrava-se o estilo ‘Jackie Kennedy’ de conjuntos e vestidos retos,
estruturados, de linhas trapézio, formais e bonitos na sua elegância”, comenta Rabine
(2002, p. 72). O cabelo escuro e curto, com fixador, compunha o visual e definiu um
estilo da moda típica para cabelos nos anos 1960.
O modelo de beleza e de influência de Jackie, testado e atestado tanto pela mídia
internacional quanto pela nacional, levaram a imprensa brasileira a empregá-lo na
divulgação de notícias que apresentaram Maria Thereza no cenário social como
“semelhante” e, ao mesmo tempo, “diferente” da norte-americana. Quem era a mais
bonita? Perguntava a Revista Fatos e Fotos, em 1961, e respondia: “Imprensa dos
Estados Unidos reconhece: Sra. Maria Thereza mais bonita que Jackie Kennedy”, para
destacar que as “semelhanças” existentes entre elas eram o casamento com um João; o
fato de terem dois filhos - um menino e uma menina, de serem morenas, católicas e
terem preferência pela alta-costura europeia”. A notícia informava, ainda, que o que
mais as “aproximava” era o mérito de “aliarem à suave beleza o charme da
simplicidade”.
Na continuidade da narrativa, destacam-se os fatores que são considerados
decisivos para a projeção internacional da primeira-dama brasileira como “mais bonita”
do que a norte-americana: “Menor tempo de governo e dez anos menos de idade”, bem
como o estilo de vida de uma e outra: “A Sra. Kennedy, pretende, apenas, ser dona de
casa, enquanto a primeira-dama do Brasil, escolhida para dirigir a Legião Brasileira de
Assistência, entregou-se de corpo e alma às suas novas tarefas.” Para os leitores
compararem e, de certa forma, posicionarem-se sobre quem era, de fato, mais bela, de
cada lado da página da revista que comentava sobre ambas encontravam-se as seguintes
definições: “Jackie, charme francês numa personalidade norte-americana”; “Maria
Thereza, charme gaúcho, numa personalidade bem brasileira” (REVISTA FATOS &
FOTOS, 1961, p. 8).
De maneira objetiva, os atributos valorizados em uma e em outra como
“semelhantes” são as qualidades de esposa e mãe, que formatavam os modelos de
feminilidade dominantes dos países por elas representados e que elas representavam como
primeiras-damas. A valorização da estética da juventude, da “morenice”, bem como a
subjetividade religiosa proveniente do catolicismo permitem à imprensa caracterizá-las
como mulheres simples e charmosas, com personalidades distintas, em virtude da origem
de cada uma e de seu estilo de vida. Enquanto a norte-americana tinha a vida limitada ao

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ambiente familiar; a brasileira mostrava-se ativa, já que exercia atividades fora do lar, isto
é, presidir uma instituição, a Legião Brasileira de Assistência que, historicamente, esteve
atrelada ao primeiro-damismo (SIMILI, 2008). Nas entrelinhas, fica implícito que, pelo
fato de ser mais nova e ativa, a brasileira “superava” a concorrente norte-americana. Ao
analisar esse contexto, fica claro nas descrições que “[...] elas expressam uma dada noção
de conjunto, de qualidades, de atribuições e de estratégias expressivas, da qual são
indissociáveis” (BERGAMO, 2007, p. 110).
O gosto pela alta-costura europeia como elemento comum qualifica ambas com
os símbolos da distinção social da moda e como representantes do bom gosto. Embora
Paris não seja mencionada na comparação e na similaridade identificada entre Jackie e
Maria Tereza é a ela que a imprensa se refere, na medida em que era o centro da alta-
costura “[...] que, hipercentralizada, ditava moda, tendências, e, era mesmo tempo
internacional, seguida por todas as mulheres up to date do mundo” (LIPOVETSKY,
1989, p. 74).
A partir dos anos 1960, o sistema e o funcionamento da moda mudam
significativamente. As pistas das alterações processadas estão na história que
fundamenta as explicações para a mudança no modo de vestir da brasileira, mediante a
contratação de Dener, em 1963, como o seu costureiro oficial. Nela, as aproximações
entre Jackie e Maria Thereza constituem o fio condutor para justificar o envolvimento
da brasileira com a alta-costura.
Na memória fabricada pela imprensa, para enfrentar visualmente o estilo Jackie -
que visitaria o Brasil acompanhando o presidente Kennedy – Maria Thereza chama o
costureiro para produzir as peças que usaria nas solenidades sociopolíticas que
marcariam as agendas presidenciais. Com a finalidade de se aproximar do estilo Jackie -
que, à época, tinha adotado o uso de roupas assinadas por Oleg Cassini, estilista francês
radicado nos Estados Unidos – Maria Thereza, acompanhando a tendência instituída
pela prática da norte-americana, contrata o brasileiro.
Com suporte nas fontes impressas, Luiz André do Prado e João Braga (2011, p.
285) narram de que maneira Maria Thereza chegou até Dener e porque o escolheu como
seu figurinista. A história da visita fez que os especialistas em moda, uma novidade do
período, mandassem recados para a primeira-dama brasileira.

Fala-se que Maria Thereza já encomendou os seus vestidos para a


agenda com os Kennedy com o francês Jackie Heim. Nós teríamos,
então, um recado para a primeira-dama: a especialidade de Heim são

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os vestidos de noiva e jeune fille – ele não seria, portanto, o mais
indicado. Em nossa opinião, um brasileiro poderia tomar conta do
recado.

As versões, quando confrontadas com a empiria, abrem caminho para a


compreensão do que é caracterizado nas narrativas como fenômenos “naturais”, os quais
fazem referência à mudança nas estratégias de vestir das personagens, em particular, da
brasileira, concebida como alguém que seguia a influência de Jackie e que “escutava” o
que era sugerido pelos comentaristas de moda. Nesse momento, era usado como
argumento para explicar o que se constituiu em poderosa engrenagem e instrumento da
moda nacional o fato de ela vestir-se com as roupas nacionais e, por intermédio dessa
prática, divulgar as criações dos brasileiros.
Para explorar esses argumentos, investimos na análise da Revista Manchete de
maio de 1963, na qual a imagem da personagem foi utilizada pela imprensa na capa,
acompanhada das chamadas “Moda Paris em Brasília” e “Maria Theresa, madrinha das
debutantes”.

Figura 1: Capa da Revista Manchete.

Fonte: MANCHETE. Rio de Janeiro: Bloch, ano 11, n. 576, 4 maio 1963.

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Como escreveu Malfitano (2008, p. 64), “A capa, por exemplo, constitui-se de
uma imagem, a qual, junto com a indicação de temas tratados nas suas páginas, indica o
tipo de mulher que o impresso deseja atingir.” Em nossa leitura e interpretação, a
edição, dirigida às mulheres, singulariza um momento em que a alta-costura nacional foi
transformada em assunto da política. Uma espécie de matéria e de enfoque que
combinava com as características da Revista era “[...] noticiar assuntos variados -
política nacional e internacional, artes, vida social, cotidiano, esportes, variedades e
publicidade - dosando os conteúdos com informações, formação de opinião pública e
entretenimento.” O estilo visual adotado pelo periódico, orientado pelo uso de
fotografias como recursos visuais na produção das notícias, era um aspecto que
facilitava a comunicação dos fatos e dos acontecimentos narrados (MONTEIRO, 2007)
e, também, traço marcante da Revista, identificável na capa e nas páginas da edição
selecionada como objeto de análise.
Na capa, a imagem encantadora da beleza e elegância da primeira-dama ganha
forma nos traços de um rosto maquiado suavemente, que olha de forma discreta para a
leitora, deixando ver os detalhes do vestido que usava, um dentre os muitos criados por
Dener especialmente para ela. Como afirma Lipovestky (1989, p. 95), “A alta-costura é
uma organização que, sendo burocrática, emprega não as tecnologias da coação, mas
processos inéditos da sedução que inauguram uma nova lógica do poder.” Sedução esta
que aparece nas técnicas de comercialização dos produtos, “[...] apresentando modelos
em manequins vivos, organizando desfiles e espetáculos [...].” Mais profundamente, a
sedução opera pela embriaguez da mudança, pela multiplicação de protótipos e pela
possibilidade da escolha individual.
São as técnicas de sedução desenvolvidas pela alta-costura para capturar corpos e
almas favoráveis à moda brasileira que Maria Thereza invoca e comunica. Ao folhear as
páginas da Manchete, a experiência de leitura vivenciada pelas leitoras do passado na
página da matéria sobre a personagem-capa da revista era: “A primeira-dama da
elegância”, conceito acompanhado por esta descrição:

Quando D. Maria Teresa Goulart entrou no salão do Hotel Nacional,


em Brasília, exibindo um belíssimo vestido branco, as centenas de
pessoas ali presentes aplaudiram-na de pé. A primeira-dama do País
presidiu, na semana passada, um dos mais elegantes acontecimentos
sociais da nova Capital, durante o qual o costureiro Dener apresentou
noventa modelos de sua coleção para o outono. Ao término do desfile,
D. Maria Teresa recebeu as chaves de um automóvel DKW- Vemag,
que será vendido ou leiloado em benefício da LBA. A esposa do
Presidente da República convidou para a festa onze das setenta

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debutantes que a terão como patronesse, na próxima semana, no
grande baile a ser realizado no Palácio Itamarati (promoção do
colunista José Rodolpho Câmara de MANCHETE). Dener, aliás, criou
um belíssimo vestido soirée ao qual deu o nome de ‘Debutante do
Itamarati’ e que, apresentado pela manequim Mariela, foi muito
ovacionado pelo público (REVISTA MANCHETE, 1963, p. 25).

O evento descrito foi um desfile de moda com as roupas de Dener, promovido


por Maria Thereza para as mulheres da elite de Brasília, com a participação das jovens
debutantes, o qual tinha entre suas finalidades angariar fundos para a Legião Brasileira
de Assistência, instituição que ela presidia como esposa do Presidente da República.
Essa posição social, inclusive, foi ocupada por todas as primeiras-damas, desde Darcy
Vargas, em 1942, nas cercanias do poder e na política assistencial.
O evento sinaliza para as permanências e mudanças que chancelam o campo da
moda nos anos 1960. No período, a realização de chás e festas beneficentes em clubes,
em hotéis e em vários espaços das sociabilidades femininas da elite, incluindo os
desfiles de moda, ocorria junto com os acontecimentos de grande porte, tais como as
Fenits, que, a partir de 1958 e até os anos 1980, passaram a ser anuais (DURAND,
1988, p. 76). Esses “acontecimentos” marcam o universo de privilégios e dos
privilegiados da alta cultura, fazendo circular no mesmo espaço “[...] aqueles indivíduos
que gozam do mesmo ‘privilégio’”de tomar parte dele pelo poder e prestígio
(BERGAMO, 2007, p. 103).
Entre os “privilegiados”, Dener e Maria Thereza encontram apoio para o reforço
dos símbolos de poder, prestígio e privilégio. O comentário de Dória (1998, p. 30) sobre
como o evento foi noticiado na imprensa é, naquele aspecto, esclarecedor: “[...] pela
primeira vez em nossa história, a esposa do presidente prestigia oficialmente um criador
da moda brasileira. E posso afirmar que Dener merece realmente esse privilégio, pois os
modelos exibidos são de categoria internacional.”
Uma mulher dedicada ao Brasil, às causas sociais (dos pobres), às jovens
(debutantes) e à moda brasileira (de Dener). Eis a imagem que se fabrica e difunde para
Maria Thereza, revestindo-a com os símbolos de poder e prestígio para aglutinar em
torno de si as mulheres da elite e influenciar os segmentos femininos sobre o que era ser
brasileira. Do lado do costureiro há que ser considerado que, ao costurar para a
primeira-dama, ele encontrava um corpo e uma imagem para viabilizar a projeção da
moda brasileira no cenário nacional e internacional, para sinalizar que, aqui, havia uma
moda nacional, “feita pelos brasileiros e para as brasileiras”.

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Essa face é exposta quando se considera que, nesse período, a articulação da alta-
costura com a indústria têxtil e de confecções alimenta o surgimento do sistema prêt-à-
porter, fenômeno observado desde fins dos anos 1950, processo que se intensifica e
fornece as bases para o investimento na criação de uma identidade para a moda
nacional, ou seja, de uma moda “feita aqui e para as brasileiras”. Acirram-se, assim, os
investimentos na criação de representações que pudessem caracterizar uma identidade
para a moda brasileira que vinha desde o fim da década de 1920. O propósito desses
investimentos era romper com as influências estético-estilísticas que haviam marcado a
história da moda no país, contaminada, durante séculos, pela cópia e adaptação de
modelos de costureiros renomados da Europa, em particular, da França e, a partir dos
anos 1930, também, dos Estados Unidos (NEIRA, 2008).
Os investimentos e os benefícios recíprocos na moda brasileira que se
vislumbram na configuração do encontro entre Dener e Maria Thereza; bem como os
empréstimos e as trocas simbólicas entre roupas e aparências para fazer funcionar a
moda nacional, projetando-a, divulgando-a, incentivando as mulheres da elite a se
transformarem em consumidoras do que era feito pelos brasileiros, é o que subjaz dos
noticiários e em comentários como este: “Naquele ano de 1963, Maria Teresa figurou
na lista das dez mulheres mais elegantes do país, segundo a eleição rigorosa de Jacinto
de Thormes, inventor desse termômetro da moda”, escreveu Dória (1998, p. 29).
A projeção era evidência necessária às subjetividades das mulheres, constituindo-
se em selo de garantia de que, vestidas com as roupas nacionais, elas poderiam ser tão
chiques como as mulheres de outros países; de que podiam ser tão glamourosas e
sedutoras quanto Maria Thereza. Esses foram aspectos marcantes da cultura da moda
nos anos 1960 que condicionaram a relação de consumo de bens e produtos como
cosméticos e roupas.
O resultado dos investimentos recíprocos entre Dener e Maria Thereza na moda
nacional pode ser encontrado na biografia do costureiro:

Eu criei a moda brasileira, um estilo próprio e nosso, que fez com que
nossas grandes senhoras não precisassem se vestir na Europa. Eu fiz os
brasileiros acreditarem na moda, e figurinista passou a ser assunto.
Lancei uma imagem e hoje ninguém tem vergonha de dizer que se veste
no Brasil. Antes de mim, para ser elegante, precisava usar etiqueta de
fora. Lembro-me de uma senhora que só usava Cardin, que não lhe
fazia senão cópias baratas de Courrèges, o que, aliás, é o seu forte.
Usavam cópias importadas e com grandes assinaturas, só porque a
etiqueta era francesa (ABREU, 2007, p. 99).

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O significado da declaração de Dener acerca dos papéis que ele e as suas criações
desempenharam na estética da moda nacional adquire contornos próprios quando
voltamos o olhar para a Revista Manchete e folheamos as páginas até o ponto da notícia
“Moda Paris em Brasília”:

Quando Brasília foi inaugurada, estadistas de todo o mundo


interpretaram a sua importância política e os arquitetos a sua beleza
plástica. Já os grandes costureiros franceses viram as colunas do
Alvorada como inspirador da moda. Eles não se aventuraram a lançar
uma ‘Coleção Brasília’, mas mandaram alguns belos modelos e
manequins à nova Capital, ‘para ver como ficam nossas criações
naquele insólito cenário’. O resultado foi excelente com a elegância da
primavera europeia subitamente transportada para o nosso planalto
(REVISTA MANCHETE, 1963, p. 67).

Para divulgar a moda internacional, os cenários, os espaços do poder e da política


- as colunas do Congresso Nacional, a praça dos três poderes, com destaque para as
estátuas - servem de paisagem para fazer desfilar, na forma de imagens, as roupas, os
modelos de Yves Sant-Laurent, Jean Patu, Madeleine de Rauch, Renée Lise, Georgette
Rênal, Yorn, Jeanne Lanvin, Jacqueline Godard, Anny Blatt, Lola Prusac, Grés, assim
justificados:

A imprensa europeia se referiu às coleções de primavera, lançadas em


Paris, como ‘a explosão dos taiulleurs brancos’. Realmente, todos os
famosos costureiros apresentaram dezenas de modelos nessa côr, pois,
conforme afirmam, ‘estamos cansados de ver mulheres jovens e
bonitas cobertas de tonalidades sombrias’. Por esta mesma razão, eles
praticamente aboliram o preto, dando preferência aos tecidos claros e
pastéis. Esta revolução muito beneficiará as elegantes brasileiras. A
moda parisiense da primavera lhes servirá como uma luva para o
próximo inverno (REVISTA MANCHETE, 1963, p. 68).

A justaposição das reportagens do desfile de Dener, promovido por Maria


Thereza, e dos costureiros de Paris, nos palcos de Brasília, fornecem as pistas de que a
capital do país transformou-se em espaço de disputas entre a moda nacional e
estrangeira com centro na alta- costura e na conquista do mercado tanto interno quanto
externo. No mercado interno brasileiro, a articulação da alta-costura com a indústria
têxtil e de confecções alimenta o surgimento do sistema prêt-à-porter; assim, o mercado
de consumo diversifica-se e amplia-se com a oferta de matérias-primas naturais
(algodão) e de fios sintéticos. Nesse contexto, a alta- costura, como artesanato de luxo
que produz modelos únicos e sob medida para clientes da elite, é marcada por algumas
permanências e mudanças, como a manutenção da estratégia de criação de roupas

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exclusivas para clientes que podem pagar por vestimentas provenientes do prestígio de
vestir algo feito sob medida, de acordo com o gosto e o estilo da consumidora, e a
absorção das peças de luxo pelo sistema do prêt-à-porter, em boutiques e espaços
destinados à venda de produtos para um grupo seleto de mulheres que podiam pagar
pelo custo delas.
Crane (2006, p. 274) ajuda a compreender outros significados embutidos na
passagem da alta-costura para o prêt-à-porter. Na leitura da autora, embora ela aborde
aspectos da moda norte-americana e europeia, no final do século XIX e início do XX, o
sistema da moda produziu estilos de roupa que expressavam a posição social das
mulheres que a vestiam, ou àquela a qual aspiravam. Implícitas nas regras de vestir do
período estavam as normas sobre identidade sexual, feminilidade e comportamento. “A
moda expressava ideais sociais de atitude e comportamentos femininos”. Assim, a moda
de consumo, que substituiu a de classe, em vez de orientar para o gosto das elites,
incorpora interesses de grupos sociais de todos os níveis.
Nesse contexto, um único gênero da moda – a alta-costura–foi substituído por
três categorias de estilo: a moda de luxo, o prêt-à-porter e a moda de rua. A primeira é
criada por estilistas de diversos países; a segunda, pelas confecções que vendem
produtos parecidos entre si, anunciando seus produtos em catálogos sofisticados ou
mesmo nas roupas. Vale ressaltar que, para o prêt-à-porter, a principal marca não é o
estilo, mas uma “imagem que possa competir no mundo de imagens, disseminadas entre
as massas que formam a cultura de mídia” (CRANE, 2006, p. 274), em que o
consumidor é atraído por meio da publicidade. Nessa época, as representações da moda
eram validadas e divulgadas por meio das imagens de artistas do cinema, da televisão
dos esportes etc. Finalmente, a moda de rua é criada por subculturas “[...] urbanas e
oferece muitas idéias para modismos e tendências” (CRANE, 2006, p. 274).
No Brasil dos anos 1960, o sistema da alta-costura e do prêt-à-porter
acompanham a tendência mundial em suas especificidades. Maria Claudia Bonadio
(2010) mostrou em diversos estudos que, naqueles anos, constituiu-se no Brasil o
campo da “moda nacional”, com um mercado de produção e consumo de roupas que
teve na Rhodia, uma empresa instalada no país, um dos ícones para o desenvolvimento
do parque industrial e do setor de confecções. Entre as estratégias da Rhodia para
majorar a produção e o consumo de roupas com os filamentos sintéticos de que era
produtora e, ao mesmo tempo, estabelecer concorrência com os tecidos brasileiros em
fibras naturais e os tecidos finos importados, estiveram a implementação de uma

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política de divulgação nas revistas femininas, de editoriais de moda, reportagens e
anúncios, bem como a realização de desfiles de moda.
Bonadio (2010) mostrou, ainda, que a Rhodia, para garantir a fatia de mercado
entre as confecções e indústrias têxteis, procurou desenvolver mecanismos que
penetrassem “no gosto dos brasileiros”. Um deles, e talvez o principal, conforme
apontado pela autora, foi o de tentar vender a ideia de que a empresa criava uma “moda
nacional” com qualidade internacional. Nesse projeto, para conferir “brasilidade” aos
seus produtos e marcas, a empresa produziu textos e imagens publicitárias com os
“signos de brasilidade”. Os cenários para as fotos foram buscados em elementos do
patrimônio histórico (espaços arquitetônicos, estampas e cores), os quais visavam
destacar a “riqueza e a beleza natural”, o “exotismo” e os “motivos edênicos”. O projeto
de “invenção da moda brasileira” desenvolvido pela empresa seguia, assim, o modelo da
alta-costura e envolvia, inclusive, a contratação de costureiros representantes da alta-
costura brasileira para criar coleções de roupas para a Rhodia. Entre eles, Dener foi uma
das tônicas das estratégias.
Fato é que, em um único exemplar de Revista, dois modelos de moda disputavam
as consumidoras: o nacional e internacional. Neles, encontravam-se as estratégias das
indústrias têxteis e de confecções para movimentar o mercado de tecidos e de roupas
prontas para vestir. Como escreveu Baldini (2005, p. 24), apoiando-se na reflexão de
Alberoni (1964, p. 29),

[...] a moda, no que diz respeito ao vestuário feminino, não provém de


imitações das ‘senhoras’ in loco ou alhures, mas das revistas de moda
directamente para as costureiras e para as jovens que, ao seguirem a
moda, participam do novo mundo.

Opções de roupas e de elegâncias não faltavam. Estavam na Revista Manchete,


na Manequim e em outros periódicos, bem como nas roupas de Maria Thereza e nas
coleções de Dener.
Fato é, também, que, se considerarmos a avaliação de Dener sobre os avanços na
moda brasileira dos anos 1960, pode-se concluir que os mecanismos desenvolvidos no
período, com o apoio de Maria Thereza, foram fundamentais para que a estética das
roupas brasileiras agradasse as mulheres da elite, alterando os comportamentos de
consumo delas e dos segmentos femininos, consoante ao modelo de influência de “cima
para baixo” (SIMMEL, 1998; CRANE, 2011), ou seja, aquele proveniente das camadas

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dominantes e as subsequentes apropriações, assimilações e acomodações geradas por
imitações feitas pelos outros segmentos sociais de mulheres.
Há que ser considerado, ainda, os estratagemas desenvolvidos pela moda nacional
no que tange à estética das roupas, ou o que podemos denominar de recursos
empregados, de modo que ela fizesse sentido para as mulheres como portadora de
diferencial quando comparada com o que era produzido em outros países. Com relação
ao assunto, consideramos que Maria Thereza foi peça chave.
Em 1963, Dener, por ocasião do primeiro encontro com aquela que se tornaria a
sua modelo e divulgadora, Maria Thereza, se referindo a ela e ao guarda-roupa que
criaria para o encontro com os Kennedy, disse: “Acho muito agradável costurar para
Maria Teresa. Ela possui medidas perfeitas”, ao que acrescenta:

Seu guarda-roupa, para os diversos atos da visita, será composto de


oito vestidos, em cores claras [...] os tons que melhor combinam com
seu tipo moreno, bem brasileiro, são branco, rosa, azul-claro, verde-
água, turquesa, champanhe e dourado. O gênero será a simplicidade
(DÓRIA,1998, p. 29).

Medidas perfeitas e o tipo moreno de Maria Thereza transformam-se em signos


que definem a mulher brasileira como diferente, em função da morenice e da
sensualidade das formas. Essa é a definição que promove a moda nacional e contribui
para fabricar os processos de identificação entre as roupas feita por brasileiros e para as
mulheres e, por conseguinte, uma grife e uma identidade para a moda do país. Diríamos
que, a partir dos anos 1963, os princípios de uma moda brasileira, defendidos desde os
anos 1920, que propunham a criação de uma estética e de uma estilística capaz de
contemplar a realidade brasileira e romper com as influências internacionais, ganha
força entre finais dos anos 1950 e durante os 1960, com o intuito de “revelar os aspectos
vivos de nossa cultura” e “[...] estimular a autonomia de nossa moda como expressão
das reais necessidades populares” (NEIRA, 2008). Nesse contexto, encontram-se, no
corpo de uma personagem os símbolos necessários para configurar representações da
brasilidade das mulheres e das roupas.
Importa destacar ainda que a crítica aos modelos de beleza importados que
definiam a estética feminina mediante a valorização da mulher loira, por meio da qual a
influência europeia e norte americana se fazia sentir sobre os comportamentos das
brasileiras, foi objeto da reflexão de Gilberto Freyre (1987, p. 34), levando-a a
reivindicar por modas que se “[...] ajustem a forma e cores de mulheres bronzeadas pelo

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sol de Copacabana, à revelia de modas puramente européias ou puramente ianques. Ou
puramente albinóide.”
Logo, é de se pensar que a definição de um modelo de beleza fixado a partir de
um ponto, isto é, da “morena” Maria Thereza Goulart, foi crucial para que a estética
feminina da mulher brasileira começasse a ser valorizada pela moda. Do exposto,
conclui-se que a história da moda brasileira e feminina encontrou em Dener e Maria
Thereza (e vice-versa) um ponto de apoio que possibilitasse compreender a cultura das
aparências para definir o nacional, em particular, a beleza da mulher brasileira e os
modos pelos quais as roupas podiam contribuir em sua valorização. O que o figurinista
e a cliente comunicam são imagens de roupas feitas por brasileiros e usadas por
brasileiras que se tornam estratégicas no mundo de imagens de moda e na formação das
subjetividades femininas prêt-à-porter, ou seja, na maneira como as brasileiras
passaram a se olhar e a se ver.
Em suma, o que as roupas de Dener usadas por Maria Thereza comunicam é que
a moda brasileira podia destacar e valorizar a beleza da mulher brasileira; que as roupas
feitas por brasileiros podiam tornar as mulheres tão elegantes quanto aquelas que viviam
e se vestiam em outros países. Era uma moda feita aqui, para a mulher daqui, com os
teores da brasilidade. Esse era o diferencial com o qual Maria Thereza concordava e
alimentava, porque se vestia com a moda Dener.
Destarte, Maria Thereza não apenas vestiu as roupas de Dener, mas, com elas,
viabilizou e disseminou um projeto de moda nacional brasileira, com as noções de
corpo, beleza e elegância que contribuíram para modelar as subjetividades das mulheres
e a memória visual de uma época. Se a diplomacia é inerente ao poder e à política, o
guarda-roupa de Maria Thereza transformou-se em modelo diplomático na promoção da
mulher e da moda brasileira tanto no cenário nacional quanto no internacional.
Portanto, se em algum momento Dener disse “Eu sou a moda brasileira”, Maria
Thereza respondeu: “Eu sou a mulher brasileira” ou uma representação delas e para
elas.

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Notas

1
Nos documentos consultados, o nome de Maria Thereza Goulart aparece de dois modos: com “z” e com
“s”. Optamos por usar o formato do nome com “z”, respeitando-se, porém, o modo como foi encontrado
nas fontes.

Artigo recebido em 01/10/2013. Aprovado em 11/12/2013.

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A IDENTIDADE DOS DESCENDENTES DE ALEMÃES EM “UM
RIO IMITA O RENO”, DE VIANNA MOOG

THE IDENTITY OF GERMAN DESCENDANTS ON “UM RIO


IMITA O RENO”, BY VIANNA MOOG

Juliana Bezerra de Oliveira SACHINSKI•


Márcia Maria de MEDEIROS••

Resumo: Este artigo irá abordar o âmbito das questões de integração cultural do povo alemão
na obra de autor brasileiro Vianna Moog, Um Rio Imita o Reno. O espaço do romance é
marcado pela existência de uma cidade imaginária chamada Blumental, e o próprio trabalho traz
aspectos muito representativas da cultura do sul do Brasil, marcados por estereótipos e costumes
originários das tradições dos imigrantes que viveram nesta região e seus descendentes.
Palavras-chave: Vianna Moog – Identidade – Estudos culturais.

Abstract: This article will address the scope of the issues of cultural integration of German
people in the work of Brazilian author Vianna Moog, Um Rio Imita o Reno. The space of this
novel is marked by the existence of an imaginary city called Blumental, and the work itself
brings aspects very representative of the culture of southern Brazil, marked by stereotypes and
customs originating in the traditions of immigrants who have lived in this region and their
descendants.
Keywords: Vianna Moog – Identity – Cultural studies.

Introdução

Dentre muitas formas literárias, o romance observa a relação homem versus


mundo real, e as questões relacionadas ao espaço de pertencimento de cada um. Assim,
a relação homem versus sujeito histórico e social, fica mais clara. Segundo Watt, no
gênero romance, está implícita a premissa de:

Constituir um relato completo e autêntico, de experiência humana e,


portanto, tem a obrigação de fornecer ao leitor detalhes da história
como a individualidade dos agentes envolvidos, os particulares das
épocas e locais de suas ações – detalhes que são apresentados através
de um emprego da linguagem muito mais referencial do que é comum
entre outras formas literárias (WATT, 1990, p. 31).

Desta forma, o romance interessa aos estudiosos e estudiosas enquanto


experiência humana, confirmando uma característica essencial da natureza dos homens


Mestre em Letras – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS. Pesquisadora do Núcleo de
Estudos Historiográficos de Mato Grosso do Sul (NEHMS). E- mail: julianaboliveira@hotmail.com
••
Doutora em Letras pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. Professora do curso de Turismo da
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS. Pesquisadora do Núcleo de Estudos
Historiográficos de Mato Grosso do Sul (NEHMS). E-mail: marciamaria@uems.br

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e mulheres, denotando a preocupação que aqueles e aquelas constroem em relação às
suas identidades e aos seus destinos. A inteligência desta estrutura está em saber como o
texto literário se forma a partir de um determinado contexto, sem esquecer que dele
fazem parte as vivências individuais e sociais que dão lastro ao texto literário, e o
amarram ao mundo em que se vive.
O estudo da obra literária dentro de um cunho científico carrega em si um
momento analítico, que deixa em suspenso problemas referentes ao autor, ao valor da
sua obra e a sua atuação psíquica e social: esse momento crítico indaga acerca da
validade e função da obra enquanto síntese e projeção da experiência humana, enquanto
elemento que constrói diversos processos, entre eles o de construir alicerces/definir as
identidades.

Construção da identidade

Dentro desta premissa nasceu a ideia deste artigo, qual seja ela: pensar a relação
entre a literatura e a construção da identidade na obra Um Rio Imita o Reno. O
“regionalismo”1 presente na obra, demonstrado na relação do homem com o trabalho,
com a terra, com as relações sociais e culturais, é, ao mesmo tempo, reforçado por
algumas personagens do romance, como frau Marta, e desestabilizado por outras, como
é o caso do estranhamento do engenheiro Geraldo, amazonense, ao se deparar com os
costumes dos descendentes alemães que viviam naquela cidade fictícia.
Geraldo, de acordo com o enredo do romance, não sentia a sensação de pertença
em relação à Blumental. Muitas vezes, ele se sentia como um estranho no ninho, já que
os costumes variavam muito de uma região para outra, e no comparativo o Amazonas,
região da qual ele é originário, parece ser outro país se comparado a Blumental,
conforme se aufere da citação abaixo, extraída do texto de Moog (2005, p. 36):

Blumental dava-lhe a impressão de cidade do Reno extraviada em


terra americana. Desde o gótico da igreja, até dura austeridade das
fachadas, tudo nela, à exceção do jardim, era grave, rígido, tedesco.
Os sinos plangeram dentro da noite que se adentrava. Onomatopeia da
melancolia. Como se estivesse ouvindo novamente o prelúdio do
piano, um tumulto, uma angústia interior agarrava-lhe as entranhas.
Geraldo teve vontade de chorar. Sentia saudades do Brasil.

Um Rio Imita o Reno está organizado de forma sequencial, tendo por premissa as
estações do ano, daí se poder dizer que o tempo narrativo marca o período de
aproximadamente um ano, no qual o engenheiro Geraldo permanece na cidade ficcional

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de Blumental, no sul do país. Os fatos narrados na obra permitem aos leitores e leitoras,
a percepção de que o período no qual ela se passa diz respeito ao momento em que a
Europa enfrentava os rigores do nazismo e o Brasil sofria a ação do governo do Estado
Novo, de Getúlio Vargas.
O engenheiro, protagonista da estória, chega durante o verão e logo inicia seu
trabalho na construção da usina hidráulica. Ele faz amizades com várias pessoas da
cidade e conhece Lore, uma alemã encantadora por quem Geraldo se apaixona. No
outono, assim como a natureza se transforma diante da chegada do inverno, também os
personagens passam por uma série de dificuldades e mudanças, como por exemplo, a
descoberta do namoro de Lore e Geraldo e a imediata reação negativa da família dela,
movida pelo preconceito racial.
No inverno a situação entre o casal protagonista fica mais tensa e há um
rompimento. Geraldo vai para o Rio de Janeiro e Lore é acometida por febre tifóide. E
na primavera, última parte do romance, assim como na natureza os galhos secos se
enchem de brotos e flores, a história também conta com uma espécie de florescer. Lore
escapa da morte e a família passa por alterações em hábitos do cotidiano, após frau
Marta descobrir que a sua família, considerada de “puro sangue” ariano, tem
descendência judaica.
Para a família de Lore, o engenheiro tem sangue de índio, o que exclui a
possibilidade dele pertencer àquela família. De acordo com Stuart Hall (2005), há uma
celebração móvel em relações as formas pelas quais somos representados, fazendo com
que não haja mais uma identidade unificada. Lore e Geraldo estavam no mesmo espaço
físico, mas em mundos de representação identitária completamente diferentes, devido à
negação, por parte da família de Lore, desta fluidez cultural.
Assim, pode-se afirmar que a família de tradição germânica está representada por
uma identidade que amarra o sujeito à estrutura (são brancos, arianos, simpatizantes do
nazismo, seguidores das lógicas culturais oriundas deste mundo). Essa prática
representa o elemento estabilizante dos seus “eus” e do seu mundo cultural e os unifica
a partir desse prisma, criando uma fantasia a qual eles usam confortavelmente. Sobre
isso Stuart Hall ainda afirma que: “Se sentimos que temos uma identidade unificada
desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre
nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’” (HALL, 2005, p. 13). A família
Wolf nega qualquer variedade desconcertante e mutável de identidades possíveis.
Para Zygmunt Bauman (2005, p. 11),

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[...] a questão de identidade também está ligada ao colapso social do
estado de bem estar social e ao posterior crescimento de sensação de
insegurança com a ‘corrosão do caráter’ que a insegurança e a
flexibilidade no trabalho têm provocado na sociedade.

Essa transformação no conceito identitário, segundo Bauman, afeta as condições


de trabalho, a subjetividade coletiva, a produção cultural e a vida cotidiana, bem como a
relação eu e o outro.
A chegada de Geraldo nessa área de colonização alemã traz consigo a quebra de
um protótipo identitário marcando pontos de conflito cultural e étnicorracial na área que
corresponde a Blumental e arredores. Sua presença e o seu relacionamento com Lore
marcam esses elementos e demonstram esse processo de ruptura, conforme se percebe
na citação abaixo, extraída do texto de Moog (2005, p. 95-96):

Conhecia suficientemente a mãe, os seus escrúpulos, os seus


preconceitos relativamente aos rapazes brasileiros, para não sentir-se
alarmada com a possibilidade dela já estar ao par do seu namoro e de
vir a saber que ela dançara quase toda a noite de um deles. Que não
diria então, quando soubesse que sua filha, ariana, estava apaixonada,
irremediavelmente apaixonada, por um desses seres, que ela, por
princípio, aborrecia e detestava. Ah! Não podia, nem devia fazer
ilusões: teria de atravessar momentos angustiosos, difíceis. Mas havia
de lutar, porque de nada lhe acusava a consciência. Evitou o quanto
pôde gostar de Geraldo, apesar da perturbação em que ficava quando
ele a encarava com o seu olhar insistente magnético, penetrante.

Sobre os dois, pesa o fanatismo dos preconceitos raciais e culturais, e no conjunto


do texto se percebe o quanto as pessoas do lugar possuem hábitos que imitam os
costumes europeus. Apesar de terem nascido no Brasil, diversas personagens do
romance de Vianna Moog sentem-se, ou identificam-se como sendo europeus e se
posicionam como tal. Esse processo revela outro elemento da questão da identidade,
qual seja ele a relação com o caráter da mudança dentro da modernidade tardia, o qual
permeia a questão da globalização x identidade cultural.
A sociedade moderna caracteriza-se por ser um espaço que muda de forma
constante, rápida e permanentemente. Ela não é um todo unificado, muito menos um
espaço bem delimitado, uma espécie de totalidade. Esta sociedade caracteriza-se por ser
constantemente descentrada e deslocada, pois conta com forças centrífugas que a
obrigam a mudança, caso dos imigrantes e migrantes por exemplo.
Assim sendo, encontram-se nela inseridos diversos espaços de antagonismo
social de divisões que produzem identidades diferentes (é o que a vinda de Geraldo
representa para a tão calma e tranquila Blumental). Tais grupos só não se desintegram

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porque possuem poder de rearticulação de grupos e elementos, os quais são
rearranjados, recriando o equilíbrio. Pode-se mesmo dizer, que nesse arranjo, desarranjo
e rearranjo é que se alinhavam as costuras da História com suas transformações,
permanências e rupturas.
Sobre esse posicionamento, Hall (2005, p. 17) afirma:

As sociedades da modernidade tardia são caracterizadas pela


‘diferença’; elas são atravessadas por diferentes divisões e
antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes
‘posições de sujeito’ – isto é, identidade – para os indivíduos. Se tais
sociedades não se desintegram totalmente não é porque elas são
unificadas, mas porque seus diferentes elementos e identidades
podem, sob certas circunstancias ser conjuntamente articulados. Mas
essa articulação é sempre parcial: a estrutura da identidade permanece
aberta.

Essa concepção de identidade é perturbadora porque provisória e aberta,


permitindo uma série de deslocamentos, os quais desarticulam as identidades estáveis
do passado, abrindo brechas para novas articulações, novas identidades e novos sujeitos.

A Representação da Identidade Nacional

Neste espaço social representado no romance se movimentam as seguintes


personagens: frau Marta; Paulo Wolff; Krentzer, o viajante Rubem; Armando Seixas,
fiscal de consumo de Blumental; Bem-Turpin, o italiano, as quais acabam mudando de
posicionamento quanto a sua própria cultura. Eles corroboram com a máxima de Stuart
Hall, segundo a qual a representação de identidade nacional, não é nata, e sim formada e
modificada no interior da representação (HALL, 2005, p. 9).
Seguindo essa mesma linha de pensamento, o autor afirma que a nação é uma
criação:

[...] nós só sabemos o que significa ser ‘inglês’ devido ao modo como
a ‘inglesidade’ (Englishness) veio a ser representada – como um
conjunto de significados – pela cultura nacional inglesa. Segue-se que
a nação não é apenas uma entidade política mas algo que produz
sentidos – um sistema de representação cultural. As pessoas não são
apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da ideia de
nação tal como representada em sua cultura nacional. Uma nação é
uma comunidade simbólica e é isso que explica seu ‘poder para gerar
um sentimento de identidade e lealdade’ (HALL, 2005, p. 106).

Por ter uma descendência germânica a família Wolff identifica-se com a cultura
alemã, apesar de estar distante da conjuntura alemã histórica, cultural e social da

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Alemanha. Eles se consideram alemães, se sentem e se identificam como sendo
pertencentes ao grupo, e sentem-se no direito de, uma vez pertencentes a uma raça pura
e nobre, descriminar e renegar quem não seja um dos seus. Stuart Hall (2005, p. 49)
comenta esta lealdade de identificação com a seguinte ideia:

As culturas nacionais são uma forma distintivamente moderna. A


lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna ou em
sociedades mais tradicionais eram dadas à tribo, ao povo, à religião,
foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura
nacional. As diferenças regionais e étnicas foram gradualmente sendo
colocadas, de forma subordinada, sob aquilo que Gellner chama de
‘teto político’ do estado-nação, que se tornou, assim, uma fonte
poderosa de significados para as identidades culturais modernas.

Hall parte do pressuposto de que as identidades nacionais não são coisas com as
quais o indivíduo nasce, mas sim que elas são formadas e transformadas no interior da
representação, ou seja, se sabe o que é ser inglês; ou brasileiro ou francês porque toda
uma coletividade veio a ser representada por um epíteto que se convencionou chamar de
cultura nacional (no caso inglesa, brasileira ou francesa).
A nação passa, portanto, a existir enquanto entidade política, enquanto sistema de
representação cultural: as pessoas que a constituem não são apenas cidadãos ou cidadãs
da nação tal como ela é representada, mas elas tornam-se entes participantes dessa ideia
construída (e manipulada). A ideia da construção de uma cultura nacional assim
praticada, criada na aderência ao signo de lealdade e identificação faz com que uma
série de diferenças regionais e étnicas acabe sendo subordinada ao “estado-nação”, fonte
que possui inúmeros significados para as identidades culturais modernas.
Essa formação criou padrões de constructos identitários universais, promoveu a
generalização de uma língua unificada como meio dominante de comunicação,
acarretando a criação de um arcabouço de cultura homogênea, além de manter
instituições culturais em nível nacional (como as educativas, por exemplo). Cabe aqui
perguntar, se essa (s) identidade (s) nacional (is) é (são) tão homogênea (s) e unificada
(s) quanto representa (m) ser.
Essa característica chamada por Homi Bhabha (1998, p. 1) de “[...] ambivalência
particular que assombra a ideia de nação”, engloba o discurso, a homogeneidade
cultural e até o sistema educacional. No entanto, não se percebe que na verdade,
diferentemente de uma homogeneidade, o que se encontra realmente em cada região é
uma diversidade cultural muito ampla. Além do que, a ideia de pertença que os
indivíduos podem construir/criar ou não quanto àquele local, região e/ou cultura.

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Esta ênfase nas origens é uma tentativa de manter a tradição intemporalmente.
Essa tradição, no entanto, é um produto, uma criação, como afirma Hall:

Tradições que parecem ou alegam ser antigas são muitas vezes de


origem bastante recentes e algumas vezes inventadas... tradições
inventadas significa um conjunto de práticas... de natureza ritual ou
simbólica, que buscam incutir certos valores e normas de
comportamentos através da repetição, a qual, automaticamente,
implica continuidade com um passado histórico adequado (HALL,
2005, p. 54).

Tal afirmativa de Stuart Hall vem de encontro com o que o romance Um rio imita
o Reno narra, já que na obra o narrador apresenta a apreensão de personagens
descendentes de alemães e alemães natos durante a II Guerra Mundial em relação ao
espaço sociocultural no qual estão contidos. Esse cenário preconiza a ideia da antiga
pátria considerada pura e superior ao local onde eles moram, mas do qual não se sentem
parte efetiva. Os primeiros mantêm laços afetivos com esse outro lugar, alimentando
uma espécie de tradição.
Essa ideia de pertença não afeta muito o engenheiro amazonense. Ele tenta,
inclusive, entender os teutos, e busca em autores alemães a resposta para o
entendimento desse comportamento encontrado por ele em Blumental e até então
desconhecido em outros locais que ele conheceu e frequentou.
Geraldo percebe então que Blumental é a representação de parte da Europa
incrustada no interior do Brasil. Percebendo isso, o engenheiro tenta entender os teutos,
e parte para as leituras de clássicos alemães, dentre eles Goethe. Esse processo de
tentativa de assimilação da realidade da qual ele passa a fazer parte pode ser percebido
através da citação que segue:

Olhou a serra que servia de pano de fundo à perspectiva, a torre


pontiaguda da igreja protestante, a ponte que ligava os dois braços de
terra, o pesado e o soturno monumento do cais, e uma estranha
sensação inundou-lho o coração. Tinha a impressão que não fizera
uma viagem de sete horas de trem; de que em sua vida se dera uma
brusca parada, cujo remate era aquele súbito despertar: parecia-lhe que
tinha cruzado os oceanos e estava longe da pátria (MOOG, 2005, p.
36).

A mãe de Lore, frau Marta, não era nobre, mas tinha orgulho da descendência
alemã e sentia-se superior há qualquer outro ser pertencente a qualquer outro grupo que
não fosse seu patrício. No entanto, a ideia de pertencimento a um grupo étnico
preconizada por Marta não estava ligada, necessariamente, ao local de nascimento, e
sim à origem de seu patronímico. Ela mesma se considerava alemã, sem ter nascido
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naquele país, mas por ser descendente de alemães e ostentar essa descendência na
diferença da cor da pele, no acento da sua fala e no seu nome. Lore então, de acordo
com o conceito de pertença da mãe, deveria se casar com um alemão ou ainda com um
descendente de arianos, jamais com um indivíduo pertencente a outro grupo étnico.
Assim a jovem manteria a “pureza” da sua etnia intacta. Isso pode ser percebido de
acordo com a citação abaixo transcrita:

– Não suporto a ideia de ver-te casada com um homem de raça


inferior. Era só o que faltava – afirmou Frau Marta. [...] Não. Nas
veias de Frau Marta não corria sangue nobre, mas ela tinha orgulho de
sua raça. Orgulho de descender dos alemães, de haver casado com um
filho de alemão. Ela mesma se considerava alemã. A raça nada tinha a
ver com o lugar do nascimento. Não, não havia de tolerar a ameaça de
um intruso na família, um negro. Para Frau Marta que não tivesse
sangue ariano puro estava irremediavelmente condenado: era negro.
Lore havia de casar com um filho de alemão (MOOG, 2005, p. 103).

“Negro”, no conceito de Frau Marta, era qualquer indivíduo que fosse


miscigenado, que fosse brasileiro, melhor dizendo, que não fosse alemão, e, portanto,
não sendo alemão não pertencia a raça pura, ao sangue ariano. O contato entre as duas
culturas, indígena e germânica, começa a se manifestar na descrição da fisionomia dos
personagens: “Seus olhos de tapuio se encontravam com os da feiticeira branca”
(MOOG, 2005, p. 55).
O engenheiro amazonense, pacífico, resignado e sereno, não encontra forças para
lutar pelo amor de Lore, ou ainda defender o Brasil e seus descendentes diante da sanha
germânica. Paralelo a isso os alemães de Blumental defendem a independência do Rio
Grande do Sul e demais estados do Sul, pois acreditam que sua região sustenta as
demais, sobretudo as cidades localizadas no nordeste, que segundo a ideia dos
teutodescendentes, somente dão despesas ao país e nenhuma contribuição econômica.
Esse processo fica evidenciado na passagem que segue:

– Por favor, o senhor que é engenheiro e entende de números, então


não está vendo logo? E o dinheiro que o Norte representa nas nossas
despesas, sem entrar com quase nada para a receita? Veja as obras
com a seca! [...] Quem paga diretamente são efetivamente os Estados
do Sul (MOOG, 2005, p. 81).

O amazonense até tenta defender as regiões brasileiras evidenciando a


importância de cada uma delas, discorrendo acerca de fatores positivos oriundos do
norte do país, argumentando que muitas questões governamentais, independentes do
povo, são as responsáveis pela situação de sua terra. Essa tentativa pode ser vista de
acordo com a citação abaixo transcrita:
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Tenho minhas dúvidas. Atualmente a exportação dos senhores para os
países estrangeiros é diminuta. O verdadeiro mercado consumidor do
Rio Grande é o Norte. Ele é quem fica com o excedente da produção
do mercado interno: pergunto: teria o Rio Grande à sua disposição os
mercados do país, no dia em que se constituísse Estado independente?
O promotor vacila. Geraldo responde a própria pergunta, afirmava que
não deviam fazer alusões. Na luta de concorrência contra os similares
estrangeiros, em igualdade de condições, e os similares dos demais
Estados, protegidos então por suas tarifas alfandegárias, o Sul estaria
vencido. Ficaria sem mercado. Teria dentro de pouco tempo, na
própria casa, um colapso pelo excesso, com todo o seu cortejo de
crises (MOOG, 2005, p. 82).

Geraldo, no entanto, percebe o descaso dos que o cercam acerca das questões
relacionadas a outras regiões do Brasil. O que importa aos teutos de Blumental é tão
somente exaltar o sul e ter o seu povo, a sua cultura, os seus, em alta conta perante o
povo de Blumental.
Moog denuncia na obra, a ideia de identidade sólida, inflexível, fixa, que os
teutos tentam construir. Para Bauman, essa identidade não se faz possível, pois a
sociedade se faz incerta e transitória quanto às identidades culturais, sociais e sexuais.
“Qualquer tentativa de “solidificar” o que tornou líquido por meio de uma política de
identidade levaria inevitavelmente o pensamento crítico a um beco sem saída”
(BAUMAN, 2005, p, 12).
Daí se poder dizer que o debate sobre identidade (s) hoje, deve trazer em si a
clara ideia de que tratar desse fato significa tratar de algo que é uma convenção social
necessária, e quando se fala desse processo se fala também do colapso das instituições
que construíram essa premissa e que hoje dão vez e voz aos marginalizados e
marginalizadas da globalização: esses grupos se embrenharam nos interstícios e nas
fissuras que a falência de algumas ideias e o vácuo de poder de determinados grupos
deixou.

Negação à mudanças

Em Blumental, tudo segue criteriosamente os costumes e a ideologia alemã.


Casas seguem o estilo e o padrão germânico, realizam-se desfiles e homenagens a
Adolph Hitller, a igreja tem um estilo gótico. Até o rio, é, por diversas vezes, cotejado
como se fosse o Reno. A viagem de Geraldo, no trem que seguiu da Amazônia até o sul
do país, parecia por vezes ter sido mais longa, cruzado os oceanos até chegar à
Alemanha. O engenheiro sentia saudades do Brasil, mesmo estando nele.

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Para Hall, a atitude de negação a mudanças, a necessidade de manter-se numa
representação da antiguidade, é a tentativa de manter a tradição. Isso faz parte de uma
estratégia discursiva. De acordo com o autor:

O que Hobsbawm e Ranger chamam de a invenção da tradição:


‘Tradições que parecem ou alegam ser antigas são muitas vezes de
origem bastante recente e algumas vezes inventadas... tradição
inventada significa um conjunto de práticas [...], de natureza ritual ou
simbólica, que buscam incultar certos valores e normas ao
comportamento através da repetição, a qual, automaticamente, implica
continuidade com um passado histórico adequado’ (HALL, 2005, p.
53).

No romance de Vianna Moog, pode-se notar a tentativa de manter a tradição por


aspectos culturais relacionados aos costumes alemães, como por exemplo, os desfiles e
as quermesses e ainda o tiro ao alvo. Costumes alemães que se preservam naquela
comunidade na tentativa de não perder o vínculo com o seu local de origem, mantendo
assim a tradição.
As diferenças entre a cultura, o amor impossível por Lore, e a ordem para a
paralisação das obras, fez com que o engenheiro Geraldo partisse para o Rio de Janeiro.
“O amazonense sente-se magoado e parte ao Rio de Janeiro, sem despedir-se de Lore:
Estranho destino o seu, pensou tristemente. Do Amazonas, onde todos o queriam, ele
fugira. De Blumental, onde queria ficar, tinha sido expulso” (MOOG, 2005, p. 178).
O discurso dos alemães forma uma preleção da cultura nacional, onde se constrói
uma identidade que está posta, de modo ambíguo, entre passado e futuro. Assim, há uma
espécie de equilíbrio entre as glórias que orgulham um povo, ou uma nação, e a vontade
de prosseguir, avançando assim para a modernidade. Sobre o assunto afirma Hall (2005,
p. 56) que:

As culturas nacionais são tentadas, algumas vezes, a se voltar para o


passado, a recuar definitivamente para aquele ‘tempo perdido’,
quando a nação era ‘grande’; são tentadas a restaurar as identidades
passadas. Este constituiu o elemento regressivo, anacrônico, da estória
da cultura nacional. Mas frequentemente, este mesmo retorno ao
passado oculta uma luta para mobilizar as ‘pessoas’ para que
purifiquem suas fileiras, para que expulsem os ‘outros’ que ameaçam
sua identidade e para que se preparem para uma nova marcha para a
‘frente’.

Essa representação conforme aufere Hall que coloca a identidade como que a
admirar um passado perfeito começa a ruir entorno dos alemães de Blumental e em
especial, entorno da família de Lore quando o sobrinho de frau Marta chega da
Alemanha. Ela acreditava que poderia casar a filha Lore com Otto, um verdadeiro
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ariano, médico, assim, a família permaneceria, na visão da matriarca, pura, intocada
quanto a sua raça e, portanto, digna. A seguinte passagem, extraída do texto de Moog
(2005, p. 218) referenda a questão:

Imaginam receber em casa um homem forte, destemido, não aquele


sujeito homem de fala branda que está na frente deles: ‘Frau Marta
ficou a contemplar o primo. Estava decepcionada. Achava-o taciturno e
sem aprumo marcial. Esperava um rapagão de postura rígida, ar
esportivo e ceio daquela alegria de aço que tem a mocidade da nova
Alemanha. Ali, entretanto, estava um homem prematuramente
envelhecido, de olhos medrosos e ar arredio’. Frau Marta acha que o
primo esconde algum segredo.

E o cenário se pinta em tons ainda mais escuros, dadas às informações trazidas


pelo rapaz, que fugiu de Alemanha enquanto podia, antes que fosse expulso, uma vez
que o governo descobrira antepassados judeus em sua família.

De fato, ele surpreende a todos quando afirma não pertencer ao


partido de Hitler. A família se decepciona, pois espera um emissário
do führer e se depara com um inimigo do regime que, interrogado,
revela a verdadeira situação na qual a Alemanha se encontra, ocultada
pelos jornais censurados pelos nazistas, que circulam em Blumental:
‘Vive-se num regime de apertos... tantos gramas de manteiga e de
carne por semana... Tudo rações medidas... É horrível’. Frau Marta e
Karl enchem-se de ódio, não entendem o que Otto quer dizer,
descrevendo o ídolo deles dessa maneira. Desconfiam até que Otto
seja um traidor, expulso do Partido Nacional-Socialista. O primo,
entretanto, mantém a calma, tenta justificar sua posição: ‘Os maiores
pensadores da Alemanha estão exilados. Os nazistas ainda toleram
Goethe, mas um dia ainda vão acabar descobrindo que ele era judeu...
Frau Marta fuzilou sobre ele um olhar feroz: Goethe era ariano. Otto
encolheu os ombros. Depois que descobriram que nós temos sangue
judeu, não duvido de mais nada’ (MOOG, 2005, p. 219 - 220).

Esta informação de Otto deixa os primos estarrecidos frente à novidade, uma vez
que sempre acreditaram que pertenciam à “raça” ariana. Os primos no Brasil
desconheciam os sofrimentos de Otto na Alemanha, assim como a real situação de
precariedade e abandono, que assolava aquela nação.
Embora a novidade atinja a todos, frau Marta é quem mais sofre, já que
costumava expressar seu ódio pelos judeus. E em uma guinada, ela que acreditava ser o
sobrinho portador de boas novas da terra ariana, se percebe casada com um descendente
de judeu, e que seus filhos carregam o sangue hebraico, e assim, seu discurso
preconceituoso e cheio de razão, as intermináveis discussões com o doutor Stahl, sobre
questões étnicas, perdem totalmente o valor.

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Frau Marta sempre arquitetou planos de “manter a família pura”, casando os
filhos com alemães, sentia orgulho de ter desposado um alemão, e desejava o mesmo
aos seus descendentes. Para ela, esta era uma identidade fixa, indissolúvel. Não
mutável, e desta forma, ela não aceitava outra condição.
Descobrir que ela também, de alguma forma pertencia a uma raça “inferior”, a
fez perder o chão e até achar aceitável que a filha desposasse do engenheiro de sangue
indígena, que há pouco ela discriminou e achou ser indigno de pertencer a sua família
por ser católico e eles protestantes, por ser amazonense e sua filha, mesmo nascida no
Brasil, alemã pura e ariana, sem hibridismos.
A dificuldade de aceitar que todas as nações modernas são híbridos culturais, e
que a raça é apenas uma categoria discursiva e não biológica, gerou na obra diversos
conflitos de raça e ideologia. Stuart Hall (2005, p. 62), sobre o assunto afirma:

Em vez de pensar que as culturas nacionais como unificadas,


deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo
que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são
atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo
‘unificadas’ apenas através do exercício de diferentes formas e poder
cultural/Entretanto – como nas fantasias do eu ‘inteiro’ de que fala a
psicanálise lacaniana – as identidades nacionais continuam a ser
representadas como unificadas.

É importante salientar que o estudo do texto em questão deixa muito claro que o
tema identidade (s) traz em si muitas ambivalências e revelações, como por exemplo,
denotar a nostalgia que alguns grupos (no caso os alemães de Blumental) sentem em
relação a um passado distante e que tal processo deve se conjugar, na
contemporaneidade, à concordância com a fluidez da modernidade.
Vale ressaltar que este tema envolve uma série de preocupações e que a busca por
uma identidade propriamente dita, talvez se constitua em uma tarefa muito difícil
(mesmo impossível) de alcançar. Assim, ficou claro nesse estudo que a (s) identidade
(s) é (são) apresentada (s) como uma invenção quando deveria (m) ser um
descobrimento.
Assim, o grupo de indivíduos “compra” ou segue um determinado padrão tido
como aceitável, sem nem ao menos questionar de onde ele veio, que alternativas foram
dadas para que tal padrão fosse escolhido e não outro. E é daí que se erguem bandeiras e
se traçam suportes (políticos, sociais, de gênero, econômicos etc.) para lutar por esse
padrão e defendê-lo. Mesmo protegê-lo.
Como a personagem frau Marta percebeu, e os leitores e leitoras do texto de
Moog também perceberam, as condições em torno das quais esses protótipos são
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construídos, na maioria das vezes são precárias e a sua manutenção torna-se impossível
no contexto da contemporaneidade.

Referências Bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.


BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Humanitas, 1998.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob regime
de economia patriarcal. 51. ed. São Paulo: Global, 2007.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós- modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2005.
HOBSBAWM, Eric. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2012.
HOFFMANN, Geraldo. “Brasil Alemão” comemora 180 anos: alemães no Brasil:
história. 25 jul. 2004. Disponível em: <http://www.dw-
world.de/dw/article/0,,1274817,00.html>. Acesso em: 28 nov. 2011.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 13. ed. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio, 1979.
MEDEIROS, Márcia Maria de. Cultura e identidades - alguns apontamentos para uma
discussão sobre o tema. História. Debates e Tendências (Passo Fundo), v. 8, p. 388-
398, 2010.
MOOG, Clodomir Vianna. Um rio imita o Reno. Porto Alegre: Ed. IEL/Corag, 2005.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Tomás
Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Notas

1
Conjunto de particularidades de uma local ou região geográfica que inclui cultura, culinária,
comportamento, etc.

Artigo recebido em 23/07/2013. Aprovado em 08/12/2013.

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A NARRATIVA MEMORIALÍSTICA DE PASCHOAL LEMME:
APONTAMENTOS PARA UMA ANÁLISE RETÓRICA

THE MEMORIAL NARRATIVE OF PASCHOAL LEMME:


NOTES FOR A RHETORICAL ANALYSIS

Roberta Aline SBRANA•


Marcus Vinicius da CUNHA••

Resumo: O ponto de partida deste trabalho são os resultados de duas pesquisas sobre a obra
Memórias de Paschoal Lemme publicada na década de 1980, tendo por objetivo discutir as
narrativas memorialísticas como fontes historiográficas. A primeira parte do trabalho apresenta
um resumo dos fatos políticos e educacionais abordados por Lemme. A segunda parte procura
respostas para algumas indagações decorrentes da referida narrativa, buscando esclarecer os
posicionamentos filosóficos, políticos e educacionais do autor. A terceira parte problematiza o
uso de narrativas autobiográficas como recurso historiográfico, propondo uma nova
investigação, a ser desenvolvida mediante os referenciais teórico-metodológicos da análise
retórica, metodologia adotada pelo Grupo de Pesquisa Retórica e Argumentação na Pedagogia
(USP/CNPq).
Palavras-chave: Memória – Análise retórica – Educação brasileira.

Abstract: The starting point of this work are the results of two studies on the work of Memories
Paschoal Lemme published in 1980, aiming to discuss memorial narratives as historiographical
sources. The first part of the paper presents a summary of the facts addressed by political and
educational Lemme. The second part seeks to answer some questions arising from that
narrative, seeking to clarify Lemme’s philosophical, political and educational ideas. The third
part discusses the use of autobiographical narratives as historiographical resource, proposing a
new research, to be developed by the theoretical and methodological principles of rhetorical
analysis, methodology adopted by Rhetoric and Argumentation in Pedagogy Research Group
(USP / CNPq).
Keywords: Memory – Rhetorical analysis – Brazilian education.

Introdução

O presente trabalho é decorrente de investigações desenvolvidas entre os anos de


2010 e 2012 em dois projetos de pesquisa que tiveram como foco a narrativa
memorialística de Paschoal Lemme, ambos vinculados ao Grupo de Pesquisa Retórica e
Argumentação na Pedagogia (USP/CNPq) e subsidiados pelo CNPq. Esses projetos


Mestranda em Educação – Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP. CEP: 14040-901, Ribeirão Preto, São Paulo – Brasil.
Bolsista FAPESP. E-mail: any.bobys@hotmail.com
••
Doutor em Educação – USP. Livre-Docente em Psicologia da Educação – UNESP. Professor
Associado da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP. Pesquisador do CNPq.
FFCLRP-USP, CEP: 14040-901, Ribeirão Preto, São Paulo - Brasil. E-mail: mvcunha@yahoo.com

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foram motivados pelo fato de haver poucos trabalhos sobre o autor, embora ele tenha
tido intensa atuação no campo educacional brasileiro durante várias décadas.
A principal pesquisadora que tomou Lemme como tema específico de estudo foi
Zaia Brandão, cuja tese de doutorado foi publicada no formato de livro com o título A
intelligentsia educacional (BRANDÃO, 1999), dela resultando dois capítulos em
coletâneas, “Paschoal Lemme, marxista e pioneiro da educação nova” (BRANDÃO,
2002) e “O sentido de uma trajetória: Paschoal Lemme, do Manifesto dos Pioneiros
(1932) ao Manifesto dos Inspetores (1934)” (BRANDÃO, 2003).
No primeiro projeto, intitulado “Paschoal Lemme e a Escola Nova no Brasil”,
foram analisados os três primeiros volumes da obra Memórias, de autoria de Lemme,
publicados pela Editora Cortez/INEP (1988a; 1988b; 1988c), com o intuito de situar o
educador no âmbito do movimento escolanovista vigente no Brasil entre as décadas de
1920 e 1960. Ao término daquela pesquisa, evidenciou-se a necessidade de aprofundar a
investigação acerca das concepções filosóficas, políticas e educacionais do autor, o que
deu origem ao segundo projeto, denominado “Concepções filosóficas e políticas de
Paschoal Lemme”, dedicado ao estudo dos documentos reunidos nos volumes 4 e 5 da
mesma obra (LEMME, 2004a; 2004b) e também a estudos que analisam as referidas
memórias.
Retratando os resultados das duas pesquisas acima descritas, a primeira parte
deste trabalho apresenta um resumo dos fatos políticos e educacionais abordados por
Paschoal Lemme em suas memórias, que tiveram como alicerce diferentes episódios de
sua vida profissional. A segunda parte procura respostas para algumas indagações
decorrentes da referida narrativa, com a intenção de esclarecer os posicionamentos
filosóficos, políticos e educacionais de Lemme a partir do exame de documentos
produzidos por ele na época em que os fatos narrados se passaram. A terceira parte
problematiza o uso de narrativas autobiográficas como recurso historiográfico, com
vistas a projetar uma nova investigação, a ser desenvolvida mediante os referenciais
teórico-metodológicos da análise retórica, metodologia adotada pelo Grupo de Pesquisa
Retórica e Argumentação na Pedagogia.

A narrativa memorialística e seu contexto

No relato autobiográfico de Paschoal Lemme, destaca-se a intensa participação


do autor em diversos momentos relevantes da história da educação brasileira, bem como
os seus posicionamentos acerca de temáticas políticas e educacionais. Os episódios por
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ele descritos vão de sua infância ao ano de 1982, sempre expondo a busca por uma
educação renovada e a defesa de preceitos contrários aos que eram defendidos pela
maioria dos educadores que atuaram no movimento de renovação educacional
denominado Escola Nova.
Na infância, Lemme foi um menino tímido, amante dos livros, que auxiliava o
pai, que era dentista, em seu consultório. Desde muito cedo, seus interesses giravam em
torno de questões educacionais, ao passo que o desejo de seu pai era vê-lo formado em
odontologia. No primeiro volume de suas memórias o autor aborda seus tempos da
meninice e afirma sentir saudades daquela época. Lemme (1988a, p. 29) assim define
sua infância: “Aqueles bons tempos que não voltam mais, tragados pela tecnologia, pelo
‘progresso’, pela angústia, pela vida que passa e não é vivida.”
Na adolescência, o autor foi conquistado ainda mais pelos temas da educação,
sendo despertado pelo desejo de lutar por aquilo em que acreditava, mesmo
contrariando a vontade paterna. Segundo Lemme (1988a, p. 92), seu comportamento
introspectivo de então estava intimamente ligado às “[...] contingências dos hábitos e
práticas da educação da época e também da essência repressiva da própria civilização”.
Paschoal Lemme (1988a, p. 105) mantinha vivas em sua memória lembranças
até mesmo dos ensinamentos que lhe foram proferidos quando adolescente, os quais
visavam a “[...] um aproveitamento e desenvolvimento de todos os aspectos da
personalidade de cada um”, com o objetivo de banir, de todas as formas, pensamentos e
atitudes indesejáveis àquele momento da vida. Mesmo jovem, Lemme já mostrava
grande interesse e preocupação com assuntos referentes à política e à educação
brasileiras.
Adulto, Lemme tornou-se um homem profundamente envolvido nas questões
educacionais e cada vez mais próximo do magistério, enfrentando preconceitos tanto de
ordem familiar quanto social, por ser essa profissão essencialmente feminina na época.
Na tentativa de superar esses preconceitos, ele pensou em trilhar outro caminho, quem
sabe a engenharia? Mas a educação já o havia conquistado. Por fim, não podendo mais
negar sua paixão, resolve assumi-la e seguir seu coração.
O autor também relata que, durante sua infância e adolescência, e mesmo na fase
adulta, sofreu expressiva influência paterna quanto a definições políticas, profissionais e
religiosas, mais precisamente no que se refere ao espiritismo. Lemme (1988a, p. 55) diz
ter herdado do pai o “[...] interesse pela coisa pública e pelos destinos da pátria de
adoção, seu espírito progressista e liberal, seu anticlericalismo, no sentido de não
permitir qualquer manifestação de obscurantismo”, visão esta que o levou a
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compreender a importância de lutar pelo que se acredita. Lemme afirma não ser adepto
do espiritismo como seu pai, porém, em determinados momentos de sua narrativa
autobiográfica, deixa transparecer alguns preceitos gerais defendidos por essa religião.
Após cursar o magistério na Escola Normal do Distrito Federal, Lemme recebeu
sua primeira nomeação, como professor de matemática, para o ensino público do
Distrito Federal em 1924, na administração de Carneiro Leão durante o governo de
Arthur Bernardes. No mesmo ano foi fundada no Rio de Janeiro a Associação Brasileira
de Educação (ABE), que segundo Lemme (1988b, p. 99) era “[...] uma agremiação de
educadores que deveria desempenhar um papel da maior importância” tanto “no estudo”
quanto “[...] no debate dos problemas mais relevantes de educação e do ensino em nosso
país”.
Em 1926, Paschoal Lemme tornou-se membro da ABE devido à sua
concordância com os princípios gerais defendidos pelos que pretendiam renovar a
educação brasileira. Posteriormente, em virtude de sua intensa participação nas
atividades desenvolvidas por essa Associação, ele passou a integrar o seu conselho
diretor. Carvalho (1998, p. 54-55) informa que o principal objetivo da ABE era
promover “[...] a difusão e o aperfeiçoamento da educação em todos os ramos e
cooperar em todas as iniciativas” que satisfizessem “[...] direta ou indiretamente” essa
meta. Para isso, eram organizadas anualmente, em diferentes estados brasileiros, as
Conferências Nacionais de Educação. Segundo Lemme (1988b, p. 47), a Associação
poderia ser considerada uma “[...] verdadeira universidade, pela qualidade de seus
professores, expositores e conferencistas, brasileiros ou estrangeiros”.
Lemme (1988b, p. 34) também elogia a reforma do ensino comandada por
Fernando de Azevedo no Distrito Federal entre 1927 e 1930, a qual, segundo analisa,
instituiu uma administração repleta de “atividades criadoras” e um “[...] trabalho
completamente antiburocrático, antirrotineiro”. Nagle (2001, p. 134) considera que a
atuação de Azevedo era motivada pelo “otimismo pedagógico” e pelo “entusiasmo pela
educação”, pensamentos característicos do ideário liberal ascendente na década de 1920,
razão pela qual norteou suas ações pelo objetivo de formar o “novo homem brasileiro”,
pois a educação era vista, naquele momento, como o verdadeiro “motor da história”.
Ao lado de Azevedo, Paschoal Lemme assumiu inúmeras responsabilidades,
sempre com o intuito de contribuir para a verdadeira renovação educacional. Mesmo
com o aumento gradativo de suas tarefas e a sobrecarga de trabalho, Lemme (1988b, p.
60) chegou à conclusão de que sua participação como colaborador na reforma
empreendida por Fernando de Azevedo, assim como sua inevitável aproximação de
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assuntos referentes à pedagogia e aos “problemas de educação e ensino”, somente
contribuíram para o seu ingresso definitivo “na ‘profissão’ de educador”, a qual o
conquistou definitivamente.
A Revolução de 1930 trouxe vários percalços à atuação do autor, que defendia
ideias políticas e educacionais contrárias, na maioria das vezes, aos diversos atores da
vida pública. Lemme (1988b, p. 75-76) diz que a direção instituída pela Revolução era
“[...] inteiramente adversa a todos” que faziam parte do “[...] movimento de
modernização do ensino público no Distrito Federal”, inclusive ele, que, ao cumprir as
funções que lhe foram destinadas pela administração anterior, tornou-se alvo de “[...]
um verdadeiro ‘batismo de fogo’”, iniciando assim sua “[...] carreira na instrução
pública”. De modo geral, todos os colaboradores de Fernando de Azevedo passaram a
“[...] enfrentar um ambiente de verdadeiro revanchismo por parte de quantos se
consideraram prejudicados” pelas medidas então instituídas.
Mesmo destacando certas mudanças empreendidas pela Revolução de 1930 no
que concerne a propostas políticas, econômicas e sociais, Paschoal Lemme (1988b, p.
80) ainda considera que a reforma de Fernando de Azevedo “[...] antecipara os anseios e
propósitos da Revolução, como frequentemente tem acontecido na história da
humanidade: a luta das ideias antecedendo a luta das armas”.
Por causa das frustrações sofridas com a Revolução, durante o ano de 1931
Paschoal Lemme (1988b, p. 88-89) tentou conduzir sua vida por novos rumos,
aventurando-se em parceria com Dona Julieta Arruda, sua amiga e professora do
magistério primário do Distrito Federal, na criação de um colégio com “[...] as
aquisições mais recentes da chamada ‘escola nova’”. Lemme (1988b, p. 90) lembra que
o intuito era criar “[...] um estabelecimento que empregasse os métodos mais modernos
de educação e ensino.” Após inúmeras discussões, o estabelecimento de ensino foi
nomeado Instituto Brasileiro de Educação. Apesar de muito esforço, Paschoal Lemme
(1988b, p. 89) viu em pouco tempo o Instituto fracassar, pois o ensino ali ministrado
configurou-se “[...] inteiramente fora dos padrões dos colégios comuns”.
Durante o período revolucionário, um dos episódios em que Lemme participou
foi a IV Conferência Nacional de Educação promovida pela ABE no Rio de Janeiro em
dezembro de 1931. Segundo Lemme (1988b, p. 102), tal evento destacou-se por ter sido
palco do pedido feito pelo então Chefe do Governo Provisório, Getúlio Vargas, aos
educadores ali presentes, para que estabelecessem o “sentido pedagógico” da Revolução
de 1930, levando-os assim a se comprometerem com a “obra de reorganização do País”,
tendo em vista os “problemas de educação e ensino” brasileiros. Xavier (2004, p. 26)
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destaca que naquela ocasião Vargas pediu aos intelectuais que elaborassem uma
“fórmula mais feliz” que visasse à “unidade da educação nacional”, a ser apoiada
inteiramente pelas instâncias estatais.
Tal pedido deu origem ao Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, elaborado
por Fernando de Azevedo e publicado em 1932 com o aval de outros 25 educadores,
inclusive Paschoal Lemme, que ficou encarregado de obter as assinaturas que constam
no documento. O Manifesto surgiu com o título “A Reconstrução Educacional no
Brasil”, acompanhado do subtítulo “ao povo e ao governo” (CUNHA, 2008, p. 129).
Segundo Mate (2002, p. 133-134), tal documento continha “[...] diretrizes para uma
política educacional”, apresentando um texto “[...] claramente matizado pelas ideias
defendidas pelos renovadores” de tendência liberal.
Outro episódio marcante na trajetória de Paschoal Lemme foi a reforma do ensino
comandada por Anísio Teixeira no Distrito Federal entre 1931 e 1935, a qual, segundo
Pagni (2008, p. 26), teve como objetivo primordial a defesa de uma “[...] educação
laica, pública e gratuita, como meio de promoção da democracia”. Ao assumir o setor
da instrução pública no Distrito Federal, Anísio buscou “[...] dar continuidade à reforma
da educação” iniciada por seu antecessor, Fernando de Azevedo (PAGNI, 2008, p. 26).
Para tanto, Teixeira procurou cercar-se de colaboradores que lutavam por uma
nova educação, dentre os quais Paschoal Lemme (1988b, p. 134), que considera tal
gestão como “[...] a mais criativa, corajosa e também controvertida administração de
ensino” já realizada no país. Apesar da constante colaboração com Anísio, Lemme
(1988b, p. 134) não hesitou, em alguns momentos, em discordar do amigo sobre
questões de ordem política, assinalando que tal administração exibia alguns “[...]
possíveis ‘pecados’ da ‘americanização’”.
Entre 1936 e 1937, Lemme (1988b, p. 252) esteve preso sob a acusação de
ministrar cursos de cunho marxista, quando na realidade apenas organizava “[...] cursos
de alfabetização e extensão cultural” para adultos, a pedido do Prefeito Pedro Ernesto.
Naquele período, criou com a ajuda dos companheiros de cárcere uma Universidade no
presídio, sendo ele mesmo eleito reitor; seu objetivo era “[...] aproveitar os
conhecimentos e talentos de muitos dos presos” ali presentes, “[...] alguns até de alta
cultura, para ensinar e aprender tudo o que fosse possível” (LEMME, 1988b, p. 275).
Lemme (1988b, p. 292) informa que, em junho de 1937, “[...] depois de um rápido
interrogatório de praxe”, acabou sendo “[...] absolvido do grave ‘crime’ que praticara”.
Retornando à vida pública, enfrentou diversos obstáculos devido à instituição do Estado

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Novo, regime norteado por concepções educacionais e políticas muito diferentes das
suas.
No ano de 1938, Paschoal Lemme ingressou por intermédio de concurso público
no recém-criado Instituto Nacional de Estudos Pedagógico (INEP), dirigido por
Lourenço Filho. Cunha (1989, p. 143) informa que naquela época o objetivo do INEP
era “[...] oferecer aos estudiosos da educação Brasileira farta documentação”, além de
“diversos estudos e inquéritos educacionais” por intermédio de publicações que
enfatizassem conhecimentos sobre questões gerais relativas ao ensino. A passagem de
Lemme pelo Instituto teve curta duração, pois ele logo se demitiu devido a
discordâncias com Lourenço Filho.
As atividades do autor só foram plenamente reestabelecidas em 1945, com o fim
do Estado Novo. Segundo Lemme (1988b, p. 168), somente então momento, com “[...]
o impacto da reação e do fascismo em ascensão” e sua “derrota próxima”, é que todos
puderam “ressurgir para a atividade”. Na década de 1950, Lemme (1988b, p. 202, grifo
do autor) foi nomeado para o cargo de professor de ensino normal, “[...] na cadeira de
história e filosofia da educação”, fato que o levou a dedicar-se à formação de futuras
professoras, na busca por mostrar-lhes que essa profissão exige dedicação e paixão. No
ano de 1961, ele se afastou definitivamente do serviço público, em função de sua
aposentadoria.
Em 1975, Lemme passou a enviar cartas aos principais jornais diários do Rio de
Janeiro, O Globo e o Jornal do Brasil, “para serem divulgadas” caso fossem
consideradas “úteis e oportunas”; e assim aconteceu com muitas delas (LEMME, 1988c,
p. 189). Além dessas correspondências, o autor elaborou diversos textos durante sua
vida profissional, dentre os quais os manifestos intitulados “A Reconstrução
Educacional no Estado do Rio de Janeiro” e “Os Inspetores de Ensino do Estado do Rio
de Janeiro – ao Magistério e à Sociedade Fluminense”, que ilustram “[...] suas
atividades na Inspetoria de Ensino e tinham por objetivo acabar com a má impressão
formada” sobre os novos inspetores, dentre eles Paschoal Lemme, que havia ingressado
na Inspetoria de Ensino em 1933 por intermédio de concurso público (BRANDÃO,
2003, p. 66-67).

A narrativa memorialística e algumas indagações

Paschoal Lemme atuou na vida pública sempre em órgãos públicos e em


consonância com as iniciativas dos líderes do movimento escolanovista, Fernando de
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Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho, manifestando alguma discordância em
relação aos dois últimos. Apoiou todas as ações e manifestações da Escola Nova entre
os anos de 1920 e 1960, mostrando-se favorável ao espírito democrático nelas contido.
No entanto, declarava-se comunista, adepto do humanismo que entrevia nas
formulações marxistas. Ao que tudo indica suas divergências com o ideário
escolanovista eram de natureza política e doutrinária, pois entendia que a educação
brasileira só seria verdadeiramente renovada, em benefício de todas as classes sociais,
particularmente as mais pobres, após o advento de uma transformação política e
econômica do país.
Brandão (1999, p. 107) sugere que Paschoal Lemme via a atuação de Anísio
Teixeira como orientada pelo espírito do “reajustamento democrático”, tendo como
exemplo os Estados Unidos, assumindo a crença na educação como produtora de uma
nova sociedade e uma “política sã”, concepção esta que naturalmente contrariava a
defendida por Lemme. Brandão (1999, p. 86) considera que Lemme tinha conhecimento
da influência de alguns teóricos americanos sobre Anísio Teixeira, os quais defendiam o
“[...] modelo de educação para a democracia” idealizado por John Dewey.
Para Teixeira, a renovação escolar era a única solução para alcançar uma
“sociedade verdadeiramente democrática”, possibilitando assim a superação do atraso
da sociedade em relação ao mundo desenvolvido; somente a educação poderia cumprir a
tarefa de preparar o povo para a democracia (BRANDÃO, 1999, p. 86). Brandão (1999)
entende que Anísio, ao contrário de Lemme, acreditava no poder renovador e
transformador da educação para gerar o desenvolvimento social, sem valorizar,
portanto, as transformações de base como fator necessariamente antecedente.
Sobre esse tema, Brandão (1999, p. 81) comenta que, ao contrário de Teixeira,
Paschoal Lemme “[...] não acreditava na equalização das oportunidades sociais pela
democratização do acesso à escola”, atribuindo esse fenômeno às transformações
sociais. No entender de Lemme, Anísio era portador de uma visão equivocada acerca da
realidade dos pobres, por acreditar que bastava ensinar a ler e escrever para solucionar a
condição desumana de sobrevivência daquela classe social. Para Lemme, essa
concepção expressava um olhar característico da classe média. Tais divergências, no
entanto, nunca abalaram a amizade entre ambos, o que lhes permitiu uma convivência
pacífica por vários anos.
Quanto a Lourenço Filho, Brandão (2002, p. 47) comenta que a divergência de
Lemme deveu-se à “orientação imprimida à Política de Educação” pelo diretor do
INEP, que apoiava as “orientações do Estado Novo”. Brandão (1999) sugere que
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Lemme aceitou a liderança dos escolanovistas, mesmo discordando deles, devido à sua
crença ativista; ele acreditava ser inútil ficar parado à espera de mudanças sociais, ou
mesmo iniciar sozinho uma luta contrária à da maioria, o que apenas despertaria
aversão.
Brandão (1999) explica que, no entender de Lemme, era mais sensato agir, e para
isso, naquele momento, era necessário associar-se aos escolanovistas, para assim
permanecer no interior das repartições públicas e lutar por melhores condições de
educação e ensino juntamente com os reformadores, demonstrando a eles e ao povo em
geral a necessidade de uma luta mais ampla, não somente no campo educacional, mas
principalmente na base econômica, política e social, para que verdadeiras
transformações fossem geradas na sociedade.
Brandão (1999) entende que, assim como foi no Partido Comunista Brasileiro, a
presença de Paschoal Lemme no movimento de renovação educacional ocorreu de
maneira parcial. Seu apoio à Escola Nova era limitado à necessidade de renovar a
educação brasileira, pois a ênfase dos renovadores em organizar o ensino com base na
técnica o contrariava; ele preferia associar o campo educacional às questões políticas
mais gerais.
Brandão (1999, p. 112) ainda destaca que a presença de Paschoal Lemme entre
os pioneiros tinha o objetivo de criar uma nova intelligentsia educacional, uma
“intelligentsia de esquerda” que priorizasse a união das temáticas políticas e
educacionais para a organização da educação brasileira. Segundo Brandão (1999, p.
138), Lemme sempre buscava mostrar aos professores, e aos brasileiros em geral, que a
luta pela educação também era uma luta de caráter político, sendo necessário, portanto,
ir além da mentalidade vigente entre os educadores, a qual se pautava em uma
“representação relativamente apolítica”, baseada na ideia de “[...] organizar a educação
da futura nação sem vínculos político-partidários”.
De acordo com Brandão (1999, p. 138), Paschoal Lemme acreditava que o
posicionamento da maioria dos educadores brasileiros resultava na “marginalização” da
educação perante as “[...] decisões maiores a respeito da sociedade”, tornando-se, assim,
um alvo do “novo governo”, que pretendia mantê-la “[...] submissa, disciplinada e
controlada, no típico modelo de ‘modernização pelo alto’”.
Tais ideias de Lemme devem ser vistas no interior do quadro mais amplo que
inclui a sua adesão ao comunismo, uma vez que ele mesmo declara ser adepto das teses
marxistas. Sobre esse tema, Brandão (2003, p. 73) comenta que Lemme sempre esteve
próximo de “[...] partidos e outros grupos organizados, mobilizando e organizando os
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setores mais prejudicados pela estrutura social injusta” e “[...] agremiando os setores
capazes de encaminhar, com mais consistência, reivindicações específicas”. Sua
conduta era “contra a má-política”, a que seguia “os interesses de uma minoria, fruto da
imposição das elites dirigentes tradicionais”.
No núcleo do ideário de Lemme (2004a, p. 40) encontra-se uma severa crítica
aos educadores brasileiros que analisavam os problemas educacionais “em termos
simplesmente ‘escolares’”, pois pretendiam fazer “[...] da escola o instrumento principal
das transformações econômicas e sociais que o País urgentemente” reclamava.
Diferentemente da maioria de seus contemporâneos, Lemme não acreditava que a
renovação do ensino pudesse determinar alterações na vida social e econômica;
contrariando essa tese tão frequentemente afirmada, ele defendia que somente a
transformação radical das bases econômicas e sociais poderia levar às almejadas
transformações no âmbito escolar.
Afirmando enfaticamente esse princípio decorrente do “marxismo-leninismo” ou
“materialismo dialético e materialismo histórico”, filosofia política que considerava a
“verdadeira interpretação do universo”, bem como “do homem e de sua vida em
sociedade”, Lemme (2004b, p. 163-164) defendia a União Soviética, dizendo que
faltava aos educadores brasileiros o conhecimento correto acerca do que se passava
naquele país. Segundo seu ideário, era imprescindível uma transformação social que
construísse uma escola movida por preceitos educacionais estritamente democráticos,
tal como afirma ter presenciado em suas viagens à URSS.
Paschoal Lemme (2004b, p. 73) defende em suas memórias o aprofundamento da
democracia, regime que via como o mais adequado para obter a reconfiguração da vida
econômica, assim como as mudanças verdadeiramente necessárias à renovação
educacional, pois “[...] somente sob um regime democrático pode ser empreendida a
educação do povo”, uma vez que constitui “[...] falsidade evidente toda a doutrina
educacional ou política que pretende formar bons cidadãos num ambiente onde foi
anulado o exercício dos deveres cívicos elementares”, tais como o “de escolher os
representantes da Nação”, e o exercício de “discutir e fiscalizar os atos dos detentores
do poder”.
Lemme entendia que somente a fusão entre democracia e educação poderia
proporcionar a todos os indivíduos a garantia de seus direitos e o efetivo acesso ao
ensino. De nada adianta “[...] existirem escolas em número suficiente e devidamente
aparelhadas”, pois o estudante precisa “[...] ter condições de chegar até a escola”; a
criança necessita de “[...] boas condições físicas e mentais”, e de permanecer na escola
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“[...] pelo tempo considerado necessário para obter, em cada caso, o desejado
aproveitamento no ensino” (LEMME, 2004a, p. 157).
Para tanto, segundo Lemme (2004a, p. 157), é essencial que haja uma “sociedade
organizada democraticamente”, tendo em vista que “[...] educação e ensino são direitos
e necessidades fundamentais do homem e do cidadão, de acordo com o princípio básico
da igualdade de oportunidades para todos”. Para Lemme (2004a, p. 157), “[...] dizer que
educação e ensino são direitos e necessidades fundamentais de todas as pessoas
humanas” é reconhecer a prioridade dos “problemas político-sociais” sobre as “[...]
questões apenas de caráter pedagógico, de didática ou de técnica de ensino”.
Seguindo esse ponto de vista, Lemme (2004a, p. 102-103) criticava também o
“[...] imperialismo e sua ação tentacular”, que explorava “[...] as economias nacionais,
em aliança com as oligarquias nativas”, banindo “[...] a liberdade de comércio, pondo
entraves à industrialização, comandando a opressão política e a repressão aos
movimentos de libertação nacional”, ameaçando assim as “[...] culturas nacionais, pela
ampla penetração de padrões estrangeiros, através da imprensa, do livro, do cinema e do
rádio”.
Para Lemme (2004a, p. 123), a influência do imperialismo sobre a educação dos
países latino-americanos, em especial o Brasil, era a grande responsável pela existência
de professores “[...] cegos quanto aos fatores externos, econômicos, políticos e sociais”,
situação que conduzia ao “[...] desalento, criando um ambiente de todo impróprio para a
formação das novas gerações”. Segundo Lemme (2004a, p. 123), a influência
imperialista levava o professorado a uma “[...] atitude quase mística de portadores de
uma panaceia milagrosa” que acreditava na “educação em abstrato”, alimentando a
ilusão de que a escola “[...] transformará a sociedade, corrigirá todas as injustiças
sociais, fará da Terra um paraíso”.
Lemme (2004a, p. 123-124) acrescenta que o imperialismo americano vinha
promovendo a “[...] segregação dos professores em suas escolas, e até em suas salas de
aula”, distanciando-os das “[...] lutas econômicas, políticas e sociais, onde se decide a
sorte do povo e o futuro das novas gerações”. Os imperialistas visavam à “[...]
permanência dessa situação em seu beneficio”, fazendo todo o possível para manter os
professores distanciados das “lutas”, convencendo-os de que possuem uma “[...] missão
à parte, que não comporta compromissos com esses ‘conflitos mesquinhos’, ou
perseguindo atrozmente os que ousam olhar além das paredes de sua classe”.
Essa “missão” do imperialismo americano assume “[...] o caráter de uma
verdadeira ideologia”, ou seja, a falsa tese de uma “[...] educação pura – irmã gêmea da
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ciência pura ou da arte pura, como poder independente, regido pela comunidade como
um todo homogêneo, acima de quaisquer interesses e conflitos”. Um “[...] corpo de
técnicos, quase desumanizados”, administra uma “panaceia” que leva as novas gerações
a acreditarem que basta dar a cada indivíduo “[...] as condições para revelar exatamente
as suas capacidades”, para que cada um ocupe seu “lugar exato na sociedade” e tudo
estará resolvido, enquanto persiste a distinção entre dirigentes e dirigidos, “[...] tudo
caminhando na melhor harmonia, sem atritos, sem lutas desnecessárias” (LEMME,
2004a, p. 124).
Por essa razão, Lemme (2004a, p. 124) recomenda “[...] a cada educador
progressista e consciente desses problemas” que explique, “[...] pacientemente, a seus
colegas, essa dependência em que sua vida, seu trabalho e suas aspirações estão das
condições econômicas, políticas e sociais reinantes fora da escola”, porque é “[...] seu
dever, perante as novas gerações, atuar em ação unida com as outras forças
progressistas, empenhadas em modificar essas condições”.
Na visão de Lemme (2004a, p. 242), “[...] a função da escola é mais do que nunca
preparar para a vida”, tendo em vista que uma “[...] consequência primordial da
transformação social que vivemos é o enfraquecimento da ação educativa do lar e da
comunidade em geral”. Por isso, “[...] a escola deve suprir esta ação”, pois tal “[...]
enfraquecimento se dá pelas razões expostas”, a saber, “[...] a divisão do trabalho pela
superindustrialização, a complexidade social crescente, e a atitude científica do homem
moderno em face da vida”.
Lemme (2004a, p. 242) defende que um “[...] homem novo surge, portanto,
dentro de uma nova sociedade que se afirma, dia a dia, em marcha para uma sociedade
futura”, a qual é “[...] caracterizada pela divisão racional do trabalho e, em
consequência, pela mais estrita interdependência entre os homens”. Esse processo “[...]
redunda necessariamente em maior coesão, maior solidariedade entre esses homens”,
possibilitando “[...] que todos, extintas as castas e classes que hoje os dividem e se
combatem entre si, tenham oportunidade igual para se afirmarem como valores sociais”.
Lemme (2004b, p. 151) conclui que “[...] o problema fundamental do Brasil é a
democratização da sociedade”, e que “[...] lutar por esse objetivo é, portanto, a
obrigação maior de todos os brasileiros, principalmente daqueles que, por suas próprias
atividades, devem possuir uma consciência mais clara dessa questão”, ou seja, [...] os
chamados intelectuais, de modo geral, e, particularmente, os professores e educadores,
uma vez que sua responsabilidade específica” é “[...] preparar as novas gerações”.

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Memória: um problema metodológico

Narrativas memorialísticas como as que se encontram nas obras de Paschoal


Lemme representam importante contribuição para a pesquisa historiográfica, na medida
em que a memória, tal como afirma Le Goff (2003, p. 419), tem a “[...] propriedade de
conservar certas informações”, consistindo em um “conjunto de funções psíquicas” que
permite ao homem “[...] atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele
representa como passadas”. Le Goff (2003, p. 471) ressalta que a “[...] memória, na qual
cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao
presente e ao futuro”.
De acordo com Alberti (2004, p. 34), “[...] conceber o passado não é apenas selá-
lo sob determinado significado”, ou seja, não é somente “[...] construir para ele uma
interpretação”, mas é “[...] também negociar e disputar significados e desencadear
ações” presentes na memória dos sujeitos que vivenciaram fatos e processos já
ocorridos. As narrativas memorialísticas trazem informações e dados que não podem ser
acessados por intermédio de outros métodos de investigação.
Nunes (2011, p. 73) destaca que a utilização de biografias e autobiografias na
pesquisa historiográfica é essencial “[...] para romper com o excesso de coerência”
emanado pelo “[...] próprio discurso histórico” visando “[...] interrogar não apenas o que
ocorreu no passado”, mas primordialmente, “[...] todas as outras possibilidades
perdidas”, a saber, “[...] aquelas que não se concretizaram como futuro”. Contudo, ao
lidar com processos mnemônicos, o pesquisador precisa ter em mente que adentra um
território que é propriedade de determinado autor, uma vez que a “[...] memória é um
elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva” (LE
GOFF, 2003, p. 469).
Mesmo considerando que as memórias apresentam inegáveis contribuições para a
pesquisa historiográfica, alguns autores apresentam objeções ao seu uso como fonte
para a realização de pesquisas dedicadas a esclarecer o passado, tendo em vista que as
informações assim obtidas exprimem forte componente pessoal, sendo, em última
instância, a expressão do ponto de vista de um narrador que, em boa parte dos casos,
tem ou teve compromisso com os fatos que descreve. Sobre essa questão, Le Goff
(2003, p. 29), fundamentado nas ideias de Heidegger, afirma que a história é “[...] não
só a projeção que o homem faz do presente no passado, mas a projeção da parte mais
imaginária do seu presente”, ou seja, “[...] a projeção no passado do futuro que ele
escolheu”, resultando assim “uma história-desejo às avessas.”
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Bourdieu (2006, p. 184-185), por sua vez, assinala que o “[...] relato
autobiográfico se baseia sempre, ou pelo menos em parte, na preocupação de dar
sentido, de tornar razoável”, e na necessidade de “[...] extrair uma lógica ao mesmo
tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância”, e assim
estabelecer “[...] relações inteligíveis, como a do efeito à causa eficiente ou final, entre
os estados sucessivos”, os quais são “[...] constituídos em etapas de um
desenvolvimento necessário”. As narrativas memorialísticas contêm uma “propensão”
do autor a “[...] tornar-se o ideólogo de sua própria vida, selecionando, em função de
uma intenção global, certos acontecimentos significativos e estabelecendo entre eles
conexões para lhes dar coerência”.
Bourdieu (2006, p. 185) destaca também que produzir “[...] uma história de vida,
tratar a vida como uma história”, como “[...] o relato coerente de uma sequência de
acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão
retórica”, ou seja, “[...] uma representação comum da existência que toda uma tradição
literária não deixou e não deixa de reforçar”.
Uma solução para os problemas aqui levantados seria confrontar a narrativa
autobiográfica com outros documentos, mas tal medida significaria simplesmente
interpor uma narrativa à outra, sem a garantia de que a segunda, chamada para
confirmar ou infirmar a primeira, não seja igualmente marcada pela subjetividade de
quem narra. Essa crítica considera que a verdade histórica é sempre uma versão dos
fatos, pois “[...] as estruturas de poder de uma sociedade”, que incluem “[...] o poder das
categorias sociais e dos grupos dominantes”, deixam “[...] testemunhos suscetíveis de
orientar a história num ou noutro sentido”, e assim acabam influenciando a construção
de quaisquer documentos (LE GOFF, 2003, p. 110).
Sendo assim, não há meios inquestionáveis para julgar a veracidade das
memórias, mas é possível tentar compreendê-las por intermédio da elucidação do
contexto em que são produzidas e publicadas; de acordo com Bourdieu (2006, p. 190),
“[...] não podemos compreender uma trajetória [...] sem que tenhamos previamente
construído os estados sucessivos no campo o qual ela se desenrolou”. O pesquisador
deve se ocupar com “[...] o conjunto de relações objetivas que uniram o agente
considerado ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e
confrontados com o mesmo espaço dos possíveis”. Assim, “[...] os acontecimentos
biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço social”, sempre de
acordo com as “[...] diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo
considerado” (BOURDIEU, 2006, p. 190).
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Segundo Nunes (2011, p. 70), essa forma de conceber biografias e autobiografias
sugerida por Bourdieu permite “[...] trabalhar não apenas sobre a experiência individual,
mas sobre a experiência social” do biografado. Nunes (2011, p. 71), seguindo as ideias
de Eco, ainda salienta que a obra biográfica precisa ser entendida pelo pesquisador “[...]
como estrutura comunicativa, plural, ambígua, inacabada, aberta a múltiplos sentidos”
para que não caia na corriqueira “armadilha” do “[...] fechamento da compreensão
biográfica”.
Em consonância com Bourdieu, Nunes (2011, p. 72) destaca também que, no
trabalho com biografias e autobiografias, é importante “[...] ampliar as fronteiras do já
conhecido” e, portanto, incluir nesses “[...] relatos também as incoerências, as
censuras, os caminhos escolhidos” e os “[...] abandonados, as possibilidades
recusadas, os fracassos e as dúvidas, as avaliações incorretas do campo e de suas
relações de força, as disputas veladas ou explícitas”. É preciso que o pesquisador
esteja atento “[...] à objetividade das práticas subjetivas e à possibilidade de elaborar
certas constantes, que podem ser historicizadas” (NUNES, 2011, p. 72).
Seguindo Le Goff (2003, p. 110), podemos concluir que todo documento deve ser
examinado, pois “[...] nenhum documento é inocente”. Sejam “[...] conscientes ou
inconscientes (traços deixados pelos homens sem a mínima intenção de legar um
testemunho à posteridade)”, as “[...] condições de produção do documento devem ser
minuciosamente estudadas”. Ao tomar um documento memorialístico como fonte de
pesquisa, a primeira questão com a qual nos deparamos é metodológica, e para enfrentá-
la devemos, antes de tudo, estabelecer os termos em que ela se apresenta.
A problemática das narrativas memorialísticas pode ser assim formulada: as
memórias são documentos elaborados por um autor que, em determinado momento da
história, traça uma narrativa sobre o passado, buscando conferir-lhe certa coerência e
significado, com o intuito de situar a si mesmo e os fatos de que participou perante
determinado conjunto de leitores; mesmo que adote um estilo documental isento de
apreciações pessoais, o memorialista permeia a sua narrativa com elementos subjetivos,
próprios de quem tomou partido nos acontecimentos relatados; assim, torna-se
imprescindível situar as memórias no contexto em que são produzidas, considerando as
circunstâncias que cercam tanto o autor quanto os leitores a quem se destina a narrativa.
A formulação de tal problema permite projetar a continuidade da pesquisa sobre
Paschoal Lemme por meio da análise retórica, metodologia que consiste em examinar
os qualificativos do autor (que na retórica se denomina orador), o contexto de
formulação do discurso (denominado ethos) e as disposições dos leitores/auditório
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(pathos) a quem se destina o discurso (logos), tendo por meta elucidar as estratégias
argumentativas presentes em discursos que veiculam proposições educacionais. Sem
emitir juízos valorativos, a análise retórica pretende discutir de que modo um
autor/orador articula argumentos para persuadir seus leitores/auditório acerca de
determinada tese e, assim, desencadear ações que visam manter ou transformar
determinada situação – no caso em estudo, a situação educacional brasileira (CUNHA,
2010).
Aplicando essas definições ao assunto do presente trabalho, podemos considerar
que a narrativa autobiográfica de Paschoal Lemme contém estratégias argumentativas
que visam persuadir os educadores brasileiros da década de 1980 – quando foram
publicadas as memórias do autor – acerca de uma tese relativa às mudanças necessárias
para transformar a educação. Pelo que vimos neste estudo, a referida tese diz respeito a
um modo de conceber as relações entre a vida social e a educação: Lemme defende
enfaticamente que os educadores adotem o ponto de vista marxista que concebe a
mudança política, social e econômica como anterior às mudanças educacionais.
A continuidade desta investigação, por meio da análise retórica, consistirá em
buscar resposta às seguintes questões: Quais foram as estratégias argumentativas
utilizadas por Paschoal Lemme para persuadir seus leitores/auditório? Quais eram as
disposições dos leitores/auditório de Paschoal Lemme no momento da publicação de
suas memórias? Qual era o contexto geral – político, cultural e educacional – que
envolvia tanto o autor/orador quanto sua audiência/leitores?
Os resultados dessa pesquisa poderão contribuir para elucidar aspectos
metodológicos relevantes para a história da educação, particularmente relativos ao
modo como fatos do passado podem ser revistos em momento posterior com o objetivo
de persuadir e mobilizar determinadas audiências no campo da educação. Além disso,
poderão também auxiliar na ampliação do horizonte da própria análise retórica,
discutindo a inclusão das narrativas memorialísticas no rol dos objetos de estudo dessa
metodologia.

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Artigo recebido em 12/02/2014. Aprovado em 20/02/2014.

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CLARISSE LEITE: PERFIL BIOGRÁFICO E LISTAGEM
TEMÁTICA DAS OBRAS PARA PIANO

CLARISSE LEITE: BIOGRAPHICAL PROFILE AND LISTING


OF PIANO WORKS1

Priscila Follmann BARBAN•


Maristella Pinheiro CAVINI••

Resumo: O objetivo deste artigo é construir um perfil biográfico da compositora, pianista e


professora de piano Clarisse Leite (1917-2003) e elaborar uma listagem de sua obra para
piano, de forma a redigir um registro formal e sistematizado de seu legado, já que sua
atuação foi de notada relevância no cenário musical da época e região em que viveu. Como
compositora, escreveu para diversos instrumentos e formações, com destaque para o piano.
Como pianista, se apresentou em diferentes cidades e estados brasileiros, além de concertos
internacionais na Áustria e Hungria. Como professora de piano, criou o método da ginástica
anatômica. Os concursos de piano Clarisse Leite, realizados anualmente, e por ela
organizados, revelaram diversos talentos da música do nosso país.
Palavras-chave: Clarisse Leite – Música Brasileira – Piano.

Abstract: The aim of this article is to write a short biography of the Brazilian composer, pianist
and piano teacher Clarisse Leite (1917-2003), as well as to make a list of her piano works and
writing a formal register of her work, since her professional work was of relevance to the time
and area she lived. As a composer, she wrote to various instruments and formations, but
especially for the piano. As a pianist, she performed in many different cities and states of Brazil
and also in Austria and Hungary. As a piano teacher, she developed her own technique, which
she called “ginástica anatômica” (anatomic gym). The Clarisse Leite piano contests she
organized happened every year and revealed many talents of Brazilian piano music.
Keywords: Clarisse Leite – Brazilian Music – Piano.

O objetivo deste artigo é redigir um perfil biográfico da compositora, pianista e


professora Clarisse Leite (1917-2003) e demonstrar os resultados obtidos através do
levantamento das partituras para piano já editadas da compositora, construindo uma
listagem de sua obra para piano, de forma a elaborar um registro formal e sistematizado
de seu legado.


Graduada em Instrumento: piano – Universidade Sagrado Coração – USC, CEP: 17011-160, Bauru, São
Paulo - Brasil. Integrante do NEMUSC (Núcleo de Estudos Musicais da USC). Professora de piano na
Four C Bilingual Academy (Bauru, São Paulo) e tutora virtual da disciplina Teclado 2 no Curso de
Educação Musical – EaD-UAB-UFSCar. E-mail: priscila.follmann@gmail.com
••
Doutora em Ciências sobre Arte – Especialista em História, Teoria e Crítica da Música pelo Instituto
Superior de Arte de Havana, com reconhecimento pela ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo). Docente nos Cursos de Música da Universidade Sagrado Coração - USC
CEP: 17011-160, Bauru, São Paulo - Brasil. Integrante do NEMUSC (Núcleo de Estudos Musicais da
USC) e Professor Colaborador na disciplina de História da Música no Curso de Educação Musical –
EaD-UAB-UFSCar. E-mail: stella.cavini@travelnet.com.br
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Clarisse foi uma compositora de notada relevância no cenário musical de sua
época e região de atuação. No entanto, nenhum estudo de cunho acadêmico foi redigido
até o presente momento sobre sua vida e obra, sendo somente possível encontrar
informações sobre sua biografia em verbetes de dicionários de música brasileira ou em
obras biográficas sobre seus filhos. Também não há um registro completo de suas
composições musicais, apenas informações dispersas em catálogos temáticos das
editoras que publicaram suas peças, acervos de bibliotecas e coleções particulares.
Para a realização desta pesquisa, foram utilizadas fontes documentais primárias
como: artigos da imprensa local, anotações particulares referentes à vida e obra da
compositora; fontes documentais secundárias abrangendo análises, interpretações e
discussões de musicólogos e estudiosos sobre as questões da estruturação de catálogo de
obras e perfil biográfico e dicionários de música que contivessem verbetes sobre a
referida compositora.

Perfil biográfico e atuação profissional

Clarisse Leite Dias Baptista (1917-2003) veio de uma família de tradição


musical. De acordo com Calado (1995), a irmã Zilda que, dez anos mais velha, foi
responsável por sua iniciação ao piano e a tia Benedita Borges de Moraes, eram
pianistas. O avô materno, Laurentino Mendes de Moraes, era arranjador e a sobrinha
Nelly Rizzo era soprano.
Calado (1995) também menciona que em 1923, aos seis anos de idade, Clarisse
ingressou no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, do qual saiu formada
em 1930, aos treze anos, com menções de distinção e louvor.
Nesta instituição teve entre seus mestres o escritor e musicólogo Mário de
Andrade, responsável pela disciplina História da Música:

[...] que estranhou ver uma garotinha sentar-se entre as moças, para
assistir sua aula inaugural. ‘Menina, seu lugar não é aqui’, custando a
acreditar que aquela era Clarisse Leite, a talentosa pianista que ele
apreciava ouvir em programas de rádio (CALADO, 1995, p. 27).

Cacciatore (2005) afirma que neste mesmo ano, Clarisse foi premiada pelo
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo com uma bolsa de estudos para a
França. Em mensagem pessoal, Baptista (2012) nos conta que Clarisse não pôde realizar
esta viagem, talvez impedida pelo desenvolvimento da Revolução de 1932, tendo doado
sua medalha de ouro como contribuição aos soldados paulistanos.
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Em Duprat (2000) obtemos a informação de que dois anos depois Clarisse
recebeu a medalha de ouro Gomes Cardim por ter ocupado a primeira colocação em um
concurso de piano. No programa do Concurso Clarisse Leite de 1979, consta a
informação adicional de que esta medalha de ouro foi concedida com unanimidade de
votos da banca avaliadora. Nenhuma das duas fontes consultadas menciona se os
prêmios foram referentes à composição ou execução pianística, mas tendo em vista a
idade da compositora na época, é provável que os prêmios tivessem sido concedidos por
sua execução ao piano.
Cacciatore (2005) coloca que participaram também da formação musical de
Clarisse: José Kliass e Ascendino Theodoro Nogueira na área de composição e Orestes
Farinello na de orquestração. De acordo com programa do Concurso Clarisse Leite de
1979, José Wancolle foi seu professor de piano e João Sépe de harmonia.
Para Calado (1995), foi também a habilidade musical de Clarisse que a uniu ao
seu marido, César Dias Baptista, escritor, poeta, jornalista e um tenor com uma grande
extensão vocal. Os dois se conheceram em agosto de 1943 no apartamento da família
Leite, na Praça Marechal Deodoro, centro de São Paulo. Apresentados por um amigo
comum, Clarisse e César se casaram em 19 de outubro do mesmo ano.
Esta união deu fruto a três filhos: Cláudio César Dias Baptista, Arnaldo Dias
Baptista e Sérgio Dias Baptista. Calado (1995) ainda comenta que os filhos de Clarisse
e César cresceram ouvindo Chopin, Bach e Beethoven, peças destes compositores que
Clarisse tocava quase o dia todo, estivesse estudando ou dando aulas particulares.
Também foi com a mãe que os três aprenderam os fundamentos musicais e tiveram as
primeiras aulas de piano. Juntos, eles formaram o conjunto musical “Os Mutantes”, com
uma trajetória de quase 15 anos entre os anos de 1966 e 1978, do qual também fez parte
a cantora Rita Lee.
Como concertista, Clarisse tocava com frequência em São Paulo e no Rio de
Janeiro. De acordo com o programa do Concurso Clarisse Leite de 1980, em 1959 ela
foi jurada em Viena, no Concurso Internacional para Pianistas, a convite do Governo
Austríaco, onde também se apresentou no Grosser Kowzertscal e na embaixada da
Áustria. Em mensagem pessoal, Baptista (2012) informa que a própria Clarisse contou a
ele que foi aplaudida de pé pelo público nesta ocasião.
Em Cacciatore (2005), consta que Clarisse foi integrante do júri internacional de
um concurso de piano realizado na Hungria, onde também realizou concerto, porém a
autora não menciona data nem nome dos eventos.

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De acordo com o programa do Concurso Clarisse Leite de 1980, em 1976 a
compositora realizou tournée pelo interior do Estado de São Paulo, nas cidades de
Ribeirão Preto, Assis e Avaré e alguns municípios de Santa Catarina e Mato Grosso,
tocando composições próprias.
Nas palavras do filho Sérgio, transcritas do documentário Loki (2008),

Mamãe foi uma grande concertista e uma grande compositora, era


impossível não viver isso. A gente ia pro teatro municipal e ficava
vendo ela voltar pro palco 12 vezes aplaudida de pé, quer dizer, ela
era da pesada, tocava muito

Figura 1: Clarisse ao Piano. Teatro Municipal de São Paulo

Fonte: BAPTISTA, 2012.

Como compositora, Clarisse se destacou na escrita de peças para piano. De


acordo com o programa do concurso Clarisse Leite de 1979, ela escreveu também para
outros instrumentos e formações: cravo, balé, canto e violão e orquestra, editados pela
Edições Ricordi, Musicale e Fermata.
Em entrevista pessoal, Baptista (2012) comenta que Clarisse compunha
principalmente por gostar da atividade, além de ser motivada por seus alunos de piano, que
gostavam de executar suas composições. Este último fator influenciou diretamente seu
trabalho, que apresenta peças de cunho didático para alunos iniciantes e peças mais
complexas tanto para alunos intermediários e avançados como para pianistas profissionais.
De acordo com Cacciatore (2005), com a colaboração do Consulado do Japão,
Clarisse divulgou música erudita japonesa no Brasil, fato que pode ser ilustrado pelos
títulos em japonês de algumas de suas peças, como Hyôga (tradução: Gelos Flutuantes)

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e Anata o Aisuru (tradução: Eu te amo). Em troca, seu Concerto nº 1 foi apresentado no
Festival da Primavera, em Tóquio no ano de1977.
Clarisse compôs dois concertos para piano e orquestra. A estreia do Concerto n. 1
para piano e orquestra em mi bemol se deu em maio de 1971, no Teatro Municipal de
São Paulo, em homenagem ao então presidente da república Emílio Garrastazu Médici,
com a Sinfônica Municipal, regida pelo maestro Armando Bellardi. De acordo com
Baptista (2012), em entrevista pessoal, foi ela mesma quem fez a orquestração desta
obra.
Em mensagem pessoal recebida em 01 jul. 2012, Baptista afirma que possui uma fita
de áudio que ele próprio gravou de um ensaio de Clarisse com a Orquestra Sinfônica do
Teatro Municipal de São Paulo, para um concerto que outro pianista apresentaria ali. No
entanto, este material foi gravado de forma não profissional em aparelho de fabricação
japonesa, em sistema não compatível com os aparelhos de reprodução brasileiros e não
conta com autorização da Orquestra Sinfônica para que a gravação seja divulgada, correndo
o risco de ser perdida. Ainda na mesma mensagem, Baptista diz que além da fita com o
Concerto n.1, tem também outra fita com gravações que fez de material diverso com sua
mãe tocando piano. Em mensagem pessoal, Baptista (2012) afirma que não sabe em que
estado se encontra essa outra fita nem se poderá ser reproduzida; comenta ainda que tem se
limitado a conservar esse material como pode, ao longo de décadas e com as dificuldades
que em parte apresenta em seu site pessoal.
Em outra mensagem pessoal, Baptista (2013) conta que a partitura do Concerto
n.2 para pianoforte, orquestra, órgão e coral em fá menor (que nunca foi tocado) está
em posse de um concertista para quem, segundo ele, sua mãe entregou para que pudesse
orquestrá-lo, não tornando a ser devolvida.
De acordo com o programa do Concurso Clarisse Leite de 1979, em 1972, as
obras de Clarisse para piano foram adotadas nos Conservatórios do Canadá e no Santa
Cecília de Roma.
Em dois extratos retirados do jornal “Diário Popular” sobre recitais de piano
ocorridos na época, o primeiro de maio de 1979 e o segundo de fevereiro de 1980,
obtemos algumas críticas sobre o trabalho de Clarisse como compositora.
No primeiro extrato, publicado em 13 de maio de 1979, em matéria sobre recital
do pianista Amaral Vieira, que havia acontecido no Sesi em 20 de março de 1979:
“‘Dois Novos Poemas’, de Clarisse Leite, dedicados ao recitalista, páginas mui bonitas,
repassadas de nostalgia e sentimento” (OLIVEIRA, 1979)

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O segundo extrato comenta sobre a performance do pianista Francisco Silva em
uma das “Segundas Musicais” que aconteciam no Teatro Municipal de São Paulo.

Veio Francisco Silva revelar-nos uma peça de Clarisse Leite que até
agora ignorávamos. Tratava-se de Minuano (Estudo de Concerto), no
qual a compositora, felizmente desvinculada de constâncias,
limitações obsessivas nacionalistas, redigiu música de grande efeito e
inspiração; valorizada de maneira notável pela digitocussão límpida,
segura, bem urdida de um recistalista cuja musicalidade, seriedade e
compenetração de estilo constituem outras tantas virtudes que poderão
levá-lo rapidamente a um lugar de primeira plana entre os pianistas de
sua geração (QUATRO, 1980, p. 22).

A pianista brasileira Luciana Soares escolheu a Suíte Nordestina de Clarisse Leite


para ser gravada no CD Brasileira: Piano Music by Brazilian Women, 2004, da Centaur
Records. A peça selecionada pela intérprete ocupa as faixas 24 a 26 do CD, sendo: I.
Baticum, II. Prece para Maria Bonita e III. Jagunços, respectivamente.
Neste mesmo ano, Clarisse é mencionada no composer índex (índice de
compositoras, em tradução livre), na página 297 do livro A Guide to Piano Music by
Women composers, Vol. II, (Um Guia da música para piano de mulheres compositoras,
v. II, em tradução livre), de Pamela Youngdahl Dees, o que vem a corroborar na
relevância de seu legado.
Cacciatore (2005) comenta que, como professora, Clarisse deu curso de técnica e
ginástica anatômica na Escola Superior de Música Santa Marcelina de São Paulo; na
Faculdade de Música Pio XII, em Bauru; no Conservatório de Lavignac, em Santos; no
Conservatório Dramático e Musical de Tatuí e no Instituto Beethoven, em São Vicente,
além de cursos de interpretação pianística em Criciúma, São Paulo, Bauru e Ribeirão
Preto.
De acordo com mensagem pessoal de Baptista (2012) a ginástica anatômica foi
desenvolvida pela própria pianista que a aplicava com seus alunos. Em entrevista
pessoal, Baptista (2012) descreveu a técnica, que consistia em levantar o braço em
movimento circular e deixar cair sobre uma tecla um dos dedos com o peso do braço.
Isso deveria ser feito com todos os dedos, até que a intensidade sonora resultasse a
mesma.
Na mesma entrevista, Baptista conta que ele mesmo teve aulas de piano com
Clarisse e que com os alunos iniciantes ela utilizava um repertório bastante tradicional,
como estudo de escalas, estudos de Carl Czerny, peças de Johann Sebastian Bach, além
de composições próprias e o método por ela criado e acima descrito.

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Outro traço marcante de sua carreira musical foi a promoção dos Concursos
Clarisse Leite, realizados anualmente em São Paulo e no interior paulista, responsáveis
pela descoberta de vários músicos que viriam a se destacar no cenário musical
brasileiro, como Joaquim Prado do Espírito Santo, José Henrique Cabral Duprat, Fúlvia
Escobar, Achille Guido Picchi e Magalena Romagnolo.
De acordo com as diretrizes dos Concursos, disponíveis nos programas de 1979 e
1980, os alunos deveriam realizar a execução das peças de memória, e era exigido o uso
de edições impressas, estando vedado o xerox; o nome dos professores da banca
avaliadora eram divulgados apenas no início das provas e os professores dos alunos
participantes subiam ao palco com seus alunos. Todos os finalistas recebiam um
certificado de participação.
As provas eram divididas em turnos de acordo com as faixas etárias e cada uma
contava com uma etapa eliminatória e uma etapa final. As faixas etárias eram: Extra
mirim (4 e 5 anos); Infantil, dividido em quatro turnos: 1º (6 e 7 anos), 2º (8 e 9 anos),
3º (10 e 11 anos), 4º (12 e 13 anos); Juvenil, dividido em três turnos: 1º (14 e 15 anos),
2º (16 e 17 anos) e 3º (18 a 20 anos), além de um turno separado para pianistas
profissionais.
Na prova eliminatória era pedido repertório de cunho técnico, contemplando peças
polifônicas de J. S. Bach, estudos de velocidade de Carl Czerny e uma peça pré-
determinada de Clarisse Leite. Na etapa final era solicitada a execução de duas peças:
uma de livre escolha da própria compositora e uma de outro compositor, geralmente
previamente sugerido. Na edição 1979, os compositores escolhidos para esta etapa foram
Anton Diabelli e Robert Schumann. Em 1980, o compositor escolhido para os turnos
Infantis foi Dmitry Kabalevsky e para os turnos Juvenis e Pianistas Profissionais, Frédéric
Chopin. Os últimos deveriam também tocar uma obra de livre escolha de autor brasileiro.
As formas de premiação do Concurso eram troféu e quantia em dinheiro para os
primeiros colocados de cada turno, medalha de ouro para os segundos colocados e
medalha de prata para os terceiros. A Editora Ricordi oferecia uma coleção de partituras
de Clarisse Leite aos primeiros colocados de cada turno e o vencedor do turno Pianistas
Profissionais era convidado a dar um concerto.
Os candidatos podiam concorrer, também, a um Prêmio oferecido pelo Consulado
Geral do Japão. Esta categoria era dividida em turnos iguais aos do Concurso Clarisse
Leite e para participar os candidatos deveriam tocar uma peça de compositor japonês e
uma peça de Clarisse Leite, conforme pré-determinado nas diretrizes do Concurso, de
forma correspondente a cada turno. Este Prêmio ocorria de forma independente ao
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Concurso Clarisse Leite e eram oferecidos troféus para os candidatos com ascendência
japonesa e melhores intérpretes de música de autoria japonesa e também para os
candidatos brasileiros que melhor interpretassem a peça do compositor japonês. Um
prêmio extra em dinheiro era oferecido ao melhor intérprete de música japonesa.

Figura 2: Capas dos Programas “Concurso Clarisse Leite”

Fonte: BAPTISTA, 2012.

Além das atividades já mencionadas, Clarisse ocupou outras posições de


destaque, como: o cargo de inspetora da fiscalização artística do Estado, em Bauru-SP
de 1963 a 1977 e a participação como membro efetivo fundador da Academia
Internacional de Música, a partir de 1983.

Listagem das obras para piano de Clarisse Leite

Para a realização da listagem das obras foram consultados os acervos da


Biblioteca Cor Jesu da Universidade Sagrado Coração (USC), que abriga o acervo da
antiga Faculdade de Música Pio XII de Bauru; a biblioteca do Conservatório Musical
Carlos de Campos de Tatuí; o acervo conservado pelo filho da compositora, Claudio
Cesar Dias Baptista, em Rio das Ostras; os programas dos concursos Clarisse Leite;
catálogos das editoras Ricordi e Irmãos Vitale, além dos Guias Temáticos publicados
pelas editoras mencionadas. O conteúdo se encontra disponível para consultas nestas
instituições.

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Em primeiro lugar, foram criadas três subdivisões: 1. Piano Solo; 2. Piano a quatro
mãos e 3. Piano e orquestra. Em seguida, as peças foram organizadas por ordem
cronológica da data de publicação, visto que a maioria delas não apresenta registro da data
de composição. Dentro da divisão em anos, elas estão separadas por ordem alfabética. No
caso de ciclos, a palavra inicial foi considerada a partir do nome do ciclo, não da peça
individual. As peças com data ignorada foram colocadas ao final de cada subdivisão. Os
campos marcados com “?” são referentes a informações que ainda não foram encontradas.

Tabela 1: Piano Solo

Ano Ano
Títulos e movimentos Editora Dedicatória
Edição Composição
Ricordi
À mamãe Judith Borges
1956 19?? Transmigração Brasileira2
de Moraes Leite
Ricordi
Valsa Etérea (Obs.: revisão de Arnold
1956 19?? Brasileira
Glückmann)
Suíte Exótica
1. Guerra de brinquedo 1. À pianista Lina Pires
2. E o caboclo ficou só de Campos
3. Tranquilamente feliz Irmãos 2. À Ninfa Glasser
1968 1968
4. Página d’uma vida Vitale3 3. À Nellie Braga
5. Vitral (Reminiscência 4. À Lydia Kliass
Bachiana) 5. À Irene Maurícia de Sá

1. À minha irmã profa.


5 Poemas para Piano Zilda Leite Rizzo
1. Distância 2. Ao Maestro Souza
2. Nuvens Ricordi Lima
1968 1968
3. Displicência Brasileira 3. À Madalena Tagliaferro
4. Obsessão 4. À Ninfa Glasser
5. Mar 5. À Ana Stella Schik

1. Sem dedicatória.
2. À Stefania Gomes de
Coleção Trilogia Sideral Araújo (Diretora
19?? 1. Primeiros passos na Artística do
Irmãos
1970 Lua Conservatório
Vitale
2. Um circo em Marte Dramático e Musical de
3. Carnaval em Vênus São Paulo)
3. Sem dedicatória

Dona Flor – cena


Ricordi À profa. Yolanda da
1970 1970 nordestina
Brasileira Silva Campanella
Irmãos
1970 19?? Ói a saia dela, Inderê Vitale Para Ninfa Glasser

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Rabiscos na areia o mar
Ricordi À profa. Olga
1970 1970 apaga
Brasileira Normanha
Tombam estrelas no
Ricordi
1970 Set. 1969 espaço – valsa lírica À Yolanda Rigonelli
Brasileira
1971 Aboiado – cena nordestina Ricordi
1971 À Nair Tabet
n. 2 (maxi slide) Brasileira

Ano Ano
Títulos e movimentos Editora Dedicatória
Edição Composição
1971 1971 Careca o pai (mini slide) Ricordi À Vera Redondo
Brasileira
1971 1971 Dança dos esquilos (maxi Ricordi À Zulmira Elias José
slide) Brasileira

1971 1970 Era uma velha que tinha Ricordi À Daisy Lemmi Ribeiro
sete filhas... (mini slide) Brasileira

1971 1971 Essa ternura imensa... Ricordi À Odette Cheida Motta


Brasileira

1971 1971 Feche os olhinhos, que o Ricordi À pianista Regina


soninho vem... – berceuse Brasileira Normanha Martins

1971 1971 Hyôga – gelos flutuantes Ricordi À Maria Albertina


(maxi slide) Brasileira Souza Lima

1971 1971 Minuano – estudo de Ricordi Homenagem à Sua


concerto Brasileira Excelência, o presidente
Emilio Garrastazú Médici

1971 19?? O jumentinho perdido em Ricordi À Ercília Boggi


Jerusalém (mini slide) Brasileira

1971 19?? Suíte Nordestina Ricordi 1. À pianista Eudóxia de


1. Baticum Brasileira Barros
2. Prece por Maria Bonita 2. Sem dedicatória
3. Jagunços 3. Sem dedicatória

1971 1971 Vendaval – fantasia Ricordi À pianista Eda Fiori


Brasileira

1972 19?? Anata o aisuru – eu te Ricordi À Helena Bindoal


amo Brasileira Nagliki (Diretora do
Conservatório Musical
Ypiranga)

1972 19?? Chamego – cena Ricordi À profa. Dylce Oliveira


nordestina Brasileira Carvalho (Diretora do
Instituto Musical
Beethoven, São Vicente)

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1972 19?? Eli, Eli, lamma sabactâni Ricordi Sem dedicatória
– Pai, por que me Brasileira
abandonas?

1972 19?? Gatinho Cetim Ricordi À Irmã Ângela e à Irmã


Brasileira Cecília (Professoras do
Conservatório de Música
Santa Marcelina)

Ano Ano
Títulos e movimentos Editora Dedicatória
Edição Composição
1972 19?? E a cabocla não ficou só Ricordi À Irmã Carmen Pinto
Brasileira (Diretora da Faculdade de
Música Pio XII, Bauru)

1972 19?? Lendas... e nada mais Ricordi 1. Ao pianista José


1. O curupira pula na Brasileira Antônio Bezzan
brasa 2. Sem dedicatória
2. A nuvem e o lago 3. Sem dedicatória
3. O Duende louco

1972 19?? Oi Xente! – Cena Ricordi À profa. Letícia Pagano


Nordestina n. 4 Brasileira

1972 19?? Pra creança chorar – ou Ricordi À profa. Vilma Satiko


Pelegrina Brasileira Kondo

1972 19?? Ressurrectio Ricordi Ao pianista José


Ressurreição – 3º Coral Brasileira Antônio Bezzan

1972 19?? Suíte Ouro Verde Ricordi 1. Sem dedicatória


1. Jongo Brasileira 2. À pianista Heloisa
2. Você Helena Rezende
3. Eu nunca vou dizer... 3. Sem dedicatória
4. Esse encanto que você 4. Sem dedicatória
tem

1972 19?? Tóto e Tínin – Numa Ricordi À Adriana Oliveira


caixinha iluminada Brasileira Ribeiro (Diretora do
Conservatório Lavignac,
Santos)

1972 19?? Vocês que são Ricordi Aos Mutantes


românticos e não sabem Brasileira

1973 19?? Capinando no asfalto – Ricordi ?


fantasia paulista Brasileira

1973 19?? Domingo no engenho – Ricordi ?


bate pé Brasileira

1973 19?? Guerra dos Palhaços Ricordi Às meninas Vera Silvia


Brasileia Grama Pompílio e
Marinês Rodrigues

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Azenha (Bauru)

1973 1973 Impressões Fugazes Ricordi 1. Ao pianista Gilberto


1. Horas de minha vida Brasileira Tinetti
2. Um pouco de mar em 2. Ao pianista Ciro
meus olhos Gonçalves Dias Junior
3. Se eu duvido de ti... 3. Ao pianista Attilio
4. Era uma vez um país Mastrogiovanni
distante... 4. À pianista Fulvia
Escobar
Ano Ano
Títulos e movimentos Editora Dedicatória
Edição Composição
1973 1973 Incompreensão Ricordi Ao pianista Marcos
Brasileira Antonio de Almeida
(Londrina)

1973 Out. 1973 Intimidade – noturno Ricordi Ao pianista Paulo Gori


Brasileira

1973 1973 Marquesa de Santos – Ricordi Ao jornalista e poeta Dr.


Minueto Braileira Silveira Peixoto
1973 1973 Na casaca do vovô Ricordi À profa. Honorina
Brasileira Escobar (Bauru)

1973 1973 Na praça menino Deus – Ricordi À profa. Elce Pannain


recordações de Lisboa Brasileira

1973 1973 Napolitana – tarantela Ricordi À Adélia de Jesus


Brasileira Gomes (Ribeirão Preto)

1973 19?? N’uma cidade muito Ricordi À minha aluna Carmem


antiga Brasileira Lucia Duarte Maluf

1973 19?? O Bezouro Azul Irmãos Aos talentosos alunos:


Vitale Isabel Cecilia Santos e
Marchese (Mococa) e
Antonio Luiz Barker
(São Paulo)

1973 19?? O Chefe da tribo Tabarú Irmãos À profa. Esther Martini


Vitale

1973 19?? Requinte – gavota Irmãos À profa. Wilma Del


Vitale Gesso

1975 1975 Ascensão em dó menor Ricordi 1. À Francisco Piu da


1. Ascensão em dó menor Brasileira Silva (São Paulo) e
2. Ascensão em dó maior Renata Mingoci
3. Ascensão em mi menor (Ribeirão Preto)
2. À profa. Diva Tariá de
Carvalho (Diretora da
Faculdade de Música
de Ribeirão Preto)
3. À profa. Irene de
Couto Tavares Paes

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(São Paulo)

Ano Ano
Títulos e movimentos Editora Dedicatória
Edição Composição
1975 1975 Coleção vocês do Ricordi 1. Aos meninos
(1973)4 (1973) amanhã Brasileira Germano Antônio
1. O Gênio Mau dos Rios Destefano (São Paulo)
2. Onde Karen mora e Ana Cristina
3. Mitsuko em Kyoto Kawagushi (Bauru)
4. Quem há de ser o meu 2. À Karen Dias
amor 3. À menina Miriam
5. Dança das areias Mitsuko Shimohirao
6. Antes do Simum (minha aluna)
7. Contempla o horizonte, 4. Ao menino Flávio
filho! Augusto Cardoso de
8. Meu Dick Faria (Bauru) e à
minha aluna Laura
Filomena dos Santos
Araújo (Mato Grosso)
5. À menina Emmy
Komatsu (São Paulo)
e a Miguel Rosselini
Alpino (Londrina)
6. Aos alunos Wirley
Maria Sampaio
Francini (São Carlos)
e Cristina Tieko
Komatzú (São Paulo)
7. ?
8. À menina Adriana de
Almeida Penna
(Londrina)

1975 1975 De Norte a Sul Ricordi 1. À Ercília Castilho


1. Sertão Brasileira Cardoso (Diretora da
2. Rixa Faculdade de Música
Maestro Julião)
2. Ao pianista Fábio
Luiz Caramurú (São
Paulo)

1975 1975 Quilombo dos Palmares Ricordi 1. Ao pianista André


1. Banzo Brasileira Luis Rangel (Rio de
2. A Fuga Janeiro)
3. Libertação 2. Ao pianista Achille
Guido Picchi
3. Ao pianista Achille
Guido Picchi

1976 19?? Ciclo de Jazz Musicalia5 1. Ao pianista Joaquim


1. Spiritual Dance Paulo do Espírito
2. São Paulo Blues Santo
3. Clarleston 2. Sem dedicatória
3. Sem dedicatória

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Ano Ano
Títulos e movimentos Editora Dedicatória
Edição Composição
1976 19?? Trovas d’além Mar Irmãos ?
Vitale

1977 1975 Impressões de Espanha Musicália À Ana Maria de Abreu


(Bauru)

1977 1977 Miniaturas Musicália 1. À Rozinha Lerner


1. Lullabye6 (profa. da Faculdade
2. Onde Kelly Dança de Música Maestro
3. Rozinha e o pobre Julião, São Bernardo
4. Dança de outros do Campo)
tempos7 2. À minha nora e meu
filho Ana Maria e
Claudio Cesar Dias
Baptista
3. Ao prezado amigo
Augusto J. Cleuto
4. À profa. Iracema
Barboza (Escola
Superior de Música
Santa Marcelina, SP)

1977 1977 Paisagens Musicália 1. À Saloméa


1. O canto ingênuo do Gandelman (Diretora
arroio da Pró-Arte, RJ)
2. Alma dos rios 2. ?
1980 1980 Brasileirando (da Série ? 1. Ao amigo Thomaz
Brasileira n. 1) Verna
1. Vestido azul de chita 2. Ao compositor
2. Minha rede e meu Siegfried Schmitt
violão 3. Ao amigo Roberto
3. Dengue Randy (Diretor da
Faculdade de Música
Marcello Tupinambá)

197? 197? Novas Miniaturas Ricordi ?


1. Riso Espontâneo Brasileira
2. Hamed
3. A Caminho de Cashbah
4. Na Areia deixei meus
passos

197? 197? Últimas Miniaturas ? ?


1. Você partiu sem me
dizer adeus
2. Baixinho amado

197? 197? 3 Danças ? ?


1. Dança Etrusca
2. Dança Eurasiana
3. Vaudeville

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Ano Ano
Títulos e movimentos Editora Dedicatória
Edição Composição
19?? 19?? Angústia – estudo de ? ?
concerto

19?? 19?? Suíte Barroca (para Irmãos ?


piano ou cravo) Vitale
1. Allemande
2. Gavota
3. Pavana
4. Bourrée
5. Sarabanda
6. Giga

19?? 19?? Consumatum est Ricordi ?


Brasileira

19?? 19?? Dorotéia Irmãos ?


Vitale

19?? 19?? Impressões de Viena Ricordi ?


Brasileira

2. Piano a quatro mãos

Ano Ano
Títulos Editora Dedicatória
Edição composição
1975 Folguedos na Calçada Ricordi À Rachel Peluzo
1. Lá vem ela Brasileira (Diretora do Instituto M.
2. Quem há de ser o meu José Mauricio SP)
amor
3. E a última há de ficar
1973 1973 Duo Concertante n.1 Ricordi Para Atilio
para 2 pianos Brasileira Mastrogiovanni e José
Antônio Bezzan

3. Piano e Orquestra

Ano Ano
Títulos e movimentos Editora Dedicatórias
Edição composição
? 19?? Concerto n. 1 para ? ?
piano e orquestra em
mi bemol

? 19?? Concerto n. 2 para ? ?


pianoforte, orquestra,
órgão e coral em fá
menor

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Particularidades

A obra de Clarisse Leite foi inspirada por três temas que aparecem de forma
recorrente em suas composições: infância, Japão e Brasil.
Outra nítida motivação da compositora foram seus alunos de piano. As peças
apresentam diversos níveis de dificuldade de execução, sendo acessíveis a estudantes
iniciantes, intermediários e avançados, bem como para pianistas profissionais. Aquelas
peças voltadas para o aprendizado do instrumento vêm acompanhadas de orientações de
estudo. Por exemplo, em Quem há de ser o meu amor, da Coleção Vocês do Amanhã,
aparece uma nota ao pé da página com o conteúdo: “Usem o metrônomo, para não haver
engano nos andamentos”. Em Prece por Maria Bonita, aparece: “na repetição deve-se
dar mais profundidade na esquerda, sem que a doçura melancólica do canto da mão
direita seja prejudicada”.
São utilizadas indicações de andamento e dinâmica bastante incomuns. Para ilustrar
esta afirmação podemos mencionar: em Transmigração: batidas d’um coração, e em N’uma
cidade muito antiga: cálido, macio, aveludado, acariciante. Até nas peças mais avançadas,
como no estudo de concerto Minuano aparecem indicações como: exaltadamente,
revoltado, contido, com infinita amargura, magoado, confidenciando, com revolta,
meigamente, violentamente, ainda mais, angústia, com tristeza, sentidamente, o que revela
uma preocupação com o entendimento da interpretação das obras.
Além de se dedicar à escrita musical, Clarisse também escrevia poemas e textos
curtos. Ela utilizou este recurso de forma complementar a sua música, já que muitos
destes textos eram impressos junto com a edição da partitura com a intenção de dar
“ambiência” a cada peça.
Clarisse dava grande importância às dedicatórias dentro de sua obra. Quase todas
as peças foram dedicadas a algum aluno, ganhadores dos Concursos Clarisse Leite ou
músicos de relevância da época. Em várias obras não aparece o ano de composição,
somente o de edição, mas através da observação daquelas em que constam as duas
datas, pode-se afirmar que o intervalo temporal entre elas costuma ser curto.

Considerações Finais

Ainda há vasto campo para estudo sobre a compositora Clarisse Leite, pois
nenhuma de suas facetas foi ainda devidamente explorada dentro do estudo acadêmico
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musical. No âmbito da musicologia, há possibilidades para trabalhos com as análises
estruturais de suas obras, elaboração de um catálogo das peças para outras formações
instrumentais ou de um trabalho voltado especificamente para os concursos Clarisse Leite,
por exemplo.
Um estudo específico sobre a aplicação de suas obras no ensino do piano é outra
linha a ser explorada, já que Clarisse se dedicou à composição de obras didáticas, criou
ela mesma uma técnica pianística e exerceu a atividade de professora de piano durante
muitos anos, tendo uma atuação pedagógica relevante na época.
Vemos também que um trabalho de conservação do material audiovisual
existente também se mostra necessário. As gravações, por exemplo, estão em estado
inadequado de conservação, correndo o risco de serem perdidas.

Referências Bibliográficas

BAPTISTA, Cláudio César Dias. Clarisse Leite. [17 jul. 2012]. Entrevistadora: Priscila
Follmann Barban, Rio das Ostras, 2 vídeos digitais. Entrevista particular.
______. Clarisse Leite. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por
priscila.follmann@gmail.com em 1 jul. 2012.
______. Clarisse Leite. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por
priscila.follmann@gmail.com em 16 jul. 2012.
______. Clarisse Leite. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por
priscila.follmann@gmail.com em 24 maio 2013.
______. Músicas de Clarisse Leite. Disponível em:
<http://www.ccdb.gea.nom.br/musicas_clarisse.html>. Acesso em: 20 abr. 2013.
______. Homepage CCDB - Géa, CCDB Livros, c2004. Apresenta obras do autor e
dados familiares, especialmente fotos e materiais sobre sua mãe, Clarisse Leite.
Disponível em: <http://www.ccdb.gea.nom.br/musicas_clarisse.html>. Acesso em: 16
jul. 2012.
BRASILEIRA: Piano music by brazilian women. Baton Rouge: Centaur Records, 2004.
CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário biográfico de música erudita brasileira:
compositores, instrumentistas e regentes, membros da ABM (inclusive musicólogos e
patronos). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. 536 p.
CALADO, Carlos. A divina comédia dos mutantes. São Paulo: Ed. 34, 1995. 358 p.
CONCURSO CLARISSE LEITE. Programa do X Concurso de Piano Clarisse Leite.
São Paulo, 1979. 17 p.
______. Programa do XI Concurso de Piano Clarisse Leite. São Paulo, 1980. 14 p.
DEES, Pamela Youngdahl. A guide to piano music by women composers: vol. II women
born after 1900. Westport: Praeguer Publishers 2004. 325 p.
DUPRAT, Régis. Enciclopédia da música brasileira. São Paulo: Art/Publifolha, 2000.
280 p.
GUIA TEMÁTICO: piano: autores brasileiros. São Paulo: Irmãos Vitale, 1983. 379 p.
LIMA, Souza (Org.). Guia temático. São Paulo: Irmãos Vitale, [19--]. 333 p.
LOKI Arnaldo Baptista. Direção: Paulo Henrique Fontenelle. Roteiro: Paulo Henrique
Fontenelle. Brasil: Canal Brasil, 2008. 1 DVD (120 min), son., color.

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Revista História e Cultura, Franca-SP, v.3, n.1, p.329-346, 2014. ISSN: 2238-6270.
OLIVEIRA, José da Veiga. Diário Popular, São Paulo, 13 maio 1979.
QUATRO mãos para um piano. Diário Popular, São Paulo, 6 fev. 1980. p. 22.

Notas

11
Agradecimentos a Claudio Cesar Dias Baptista, filho primogênito da compositora estudada, pela
colaboração de grande valia através da disponibilização de diversos materiais pessoais, tais como:
fotografias, partituras, histórias e, principalmente, lembranças, atenção e calorosa acolhida; ao amigo
Rovanir Baungartner pela companhia nesta aventura.
2
Ricordi Brasileira S.A.E.C. (R. Cons. Nébias, 773, 1º and. – S. Paulo, Brasil).
3
Irmãos Vitale S/A IND. e COM. – São Paulo – Rio de Janeiro – BRASIL.
4
Onde Karen Mora, Mitsuko em Kyoto e Dança das areias foram compostas e publicadas separadamente
em 1973, passando a integrar, posteriormente, o conjunto Miniaturas, publicado em 1975.
5
Musicália S/A – CULTURA MUSICAL – São Paulo – Brasil.
6
Composta em parceria com o filho Arnaldo Dias Baptista.
7
Composta por Arnaldo Dias Baptista em 1976.

Artigo recebido em 14/10/2013. Aprovado em 18/02/2014.

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ASCENSÃO E QUEDA DA UNIÃO DE KALMAR

RISE AND FALL OF THE KALMAR UNION

André Nassim de SABOYA•

Resumo: Em 1397, foi formalizada, na cidade de Kalmar, na Suécia, a união das coroas da
Dinamarca, Suécia e Noruega, sob um mesmo rei dinamarquês, que durou, intermitentemente,
até 1523. O propósito desse artigo é indicar por que essa união escandinava começou e por
que ela se desfez, em definitivo, 126 anos depois. A hipótese é que a disputa pelo controle do
mar báltico foi preponderante para a formação de uma união forte contra a Liga Hanseática,
que se apresentava como uma ameaça aos interesses comerciais dos escandinavos, e a
dissolução teria ocorrido, principalmente, por causa de disputas de poder endógenas, entre a
nobreza da Suécia e o monarca da Dinamarca. Argumenta-se que os custos da união,
principalmente os custos de guerras, tornaram-se muito altos para a insatisfeita aristocracia
sueca em contraposição aos benefícios de uma união forte para controlar o Mar Báltico.
Palavras-chave: Kalmar – União Hanseática – Estados-nacionais.

Abstract: In 1397, was formalized in the city of Kalmar, Sweden, the union of the crowns of
Denmark, Sweden and Norway under one Danish king, which lasted intermittently until 1523.
The purpose of this paper is to indicate why this Scandinavian union began and why it fell
apart, finally, 126 years later. The hypothesis is that the battle for control of the Baltic Sea
was instrumental in the formation of a strong union against the Hanseatic League, which was
presented as a threat to the commercial interests of the Scandinavians, and the dissolution
occurred mainly because of endogenous power struggles between the Swedish nobility and
the Danish monarchs. It is argued that the union costs, mainly the costs of wars, had become
too high for the dissatisfied Swedish aristocracy versus the benefits of a strong union to
control the Baltic Sea.
Keywords: Kalmar – Union Hanseatic – Nation-states.

Introdução: a união pessoal formalizada em Kalmar

O começo da União de Kalmar poderia ser explicado por uma série de sucessões
dinásticas um tanto quanto independentes entre si, ou um acidente que parecia uma
decisão pensada, como afirma o historiador Geijer (apud GUSTAFFSON, 2006, p. 207).
Em 1363, Margarete, a filha do rei Valdemar IV da Dinamarca, casou-se com o rei
Hakon VI, da Noruega, filho de Magnus Eriksson, rei da Noruega e da Suécia. Com a
morte do rei Valdemar, em 1375, o filho de Margarete, Olaf, foi aceito como rei da
Dinamarca, com Margarete como regente. Após a morte de Hakon, em 1380, Olaf
tornou-se também rei da Noruega, onde o direito à coroa era hereditário. Olaf, no


Mestrando em Relações Internacionais – Programa de Pós Graduação em Economia Política
Internacional – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, CEP 21941-901, Rio de Janeiro - RJ -
Brasil. E-mail: andresaboya@gmail.com
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Revista História e Cultura, Franca-SP, v.3, n.1, p.347-369, 2014. ISSN: 2238-6270.
entanto, morreu em 1387, como último herdeiro varão do trono; Margarete permaneceu
como regente das coroas da Dinamarca e da Noruega. Em 1389, Margarete tornou-se,
de fato, regente da coroa da Suécia, após uma rebelião da aristocracia contra o rei
Albrecht, de Mecklenburg (GUSTAFFSON, 2006, p. 205).
A união dos três Estados só foi formalizada em 1397, com a coroação em Kalmar,
na Suécia, do sobrinho neto e, depois, filho adotivo de Margarete, Érico, da Pomerânia. A
União celebrava a união pessoal das coroas, mas garantia a autonomia de cada país, da
mesma maneira que outros exemplos de uniões dinásticas que ocorreram na Idade Média,
como a União Lituânia-Polônia (GUSTAFFSON, 2006, p. 206).
O advento de Kalmar não deve ser pensado somente como um acidente, sem um
projeto político. Enquanto é verdade que as circunstâncias históricas permitiram a
união em torno das relações de parentesco da rainha Margarete, deve-se salientar que
a escolha de Olaf como rei da Dinamarca foi aceita pela nobreza dinamarquesa, que
Margarete permaneceu como regente da Noruega após a morte de Olaf, ainda que
existissem outras famílias reais capazes de assumir o trono norueguês, e que a
aristocracia sueca aceitou Érico como rei da Suécia. Existiam escolhas a serem feitas
pela classe dominante que privilegiaram uma família real ao invés de outra. Além
disso, os tratados celebrados em Kalmar estabeleceram os direitos do poder real da
família dinamarquesa e os limites desse poder frente às aristocracias autônomas
(GUSTAFFSON, 2006, p. 207). Existia, portanto, uma disputa por poder que
determinou tanto o começo da União de Kalmar como as condições em que se
operaria essa união.
A União de Kalmar acabou pela primeira vez em 1448. O controle da Suécia por
um rei da união só foi possível a partir de então, por breves períodos, entre 1457 e 1464,
entre 1498 a 1501, e entre 1520 a 1523. A partir dessa última data, a união das três não
foi mais possível, embora Dinamarca e Noruega permanecessem unidas até 1814.
A primeira pergunta de investigação seria, portanto, por que a União de Kalmar
começou? Entre os fatores que podem ser levados em consideração para que se
explique o tratado celebrado em Kalmar, pode-se citar a disputa de poder com a
dinastia Mecklenburg pelo controle da Escandinávia e com a Liga Hanseática pelo
controle do Mar Báltico, uma importante rota de comércio à época. Houve, segundo
essa hipótese, uma convergência de interesses entre a corte da Dinamarca com a
aristocracia sueca, que liderou uma rebelião contra o próprio rei, Albrecht de

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Mecklenburg, e que essa convergência se centrou em torno dos benefícios de um
Estado forte conquistar as rotas de comércio da Liga Hanseática.
Há muitas variáveis a serem investigadas, para corroborar essa primeira
hipótese. Deve-se identificar a natureza institucional da Liga Hanseática e como ela
feria os interesses desses Estados, definir como a União de Kalmar combateu o poder
da Liga Hanseática e determinar se ela foi bem-sucedida nesse objetivo.
A segunda pergunta investigativa seria por que a União de Kalmar terminou, em
definitivo, 126 anos depois. Os principais interesses dentro da união escandinava
permaneciam centrados na coroa dinamarquesa e na aristocracia sueca. Sustenta-se
como hipótese que esses interesses tornaram-se cada vez mais divergentes e que a
aristocracia sueca progressivamente se ressentia dos custos da política externa
comandada pela coroa dinamarquesa, para garantir o controle do Mar Báltico. Nesse
sentido, para se corroborar essa segunda hipótese, deve-se asserir o combate pelo
controle do Mar Báltico à insatisfação da elite sueca.
No presente artigo, verificar-se-ão as principais variáveis que serviram de
anteparo à expansão de poder da Dinamarca. Primeiramente, a Liga Hanseática, e se
ela feria os interesses da Dinamarca e da Suécia. Em seguida, se a relação entre a
coroa dinamarquesa e a aristocracia sueca se deteriorou e por que motivo.

A distribuição de forças na região escandinava e do Mar Báltico

A grande disputa de territórios no século XIV localizava-se na região de Öresund,


que englobava territórios estratégicos como a Zelândia, Escania e Gotland, por ser o canal
de passagem entre o Mar Báltico e o Mar do Norte, e também onde estavam as feiras de
comércio da região, como a feira de arenque, muito lucrativa especialmente durante o
período de quaresma, em que era proibido o consumo de carne vermelha (ETTING, 2004,
p. 25-29, 39; OLESEN, 2003, p. 712-713).
Entre os interessados pelo controle e pelo comércio da região, além dos reinos
da Dinamarca, da Noruega e da Suécia, estavam ainda atores germânicos: a Liga
Hanseática, que era uma associação de cidades do norte da atual Alemanha, com o
centro em Lübeck; os condes de Holstein, ao sul da Dinamarca, que possuíam outro
interesse na região vizinha de Schleswig; os duques de Mecklenburg, de uma região
também ao norte da Alemanha que incluía as cidades de Rostock e Wismar, e os
cavaleiros teutônicos, que possuíam uma base territorial extensa desde a Lituânia até a

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Prússia. Além desses atores, ainda deve-se levar em consideração o papel de forças
internas aos reinos, principalmente na Suécia e na Dinamarca. Esses eram os estados
mais poderosos à época e onde a aristocracia e o clérigo desempenhavam papel
relevante para a consolidação do poder interno (BECK, 2009; OLESEN, 2003).

A Liga Hanseática, o rei Valdemar Atterdag e a situação sueca

Criada no século XIII, a Liga Hanseática era uma federação multinacional de


cidades independentes, majoritariamente alemãs, localizadas ou na costa ou à margem
de um grande rio trafegável. A Liga Hanseática conseguiu uma posição de quase
monopólio das vias de comércio do Norte e do Centro da Europa, principalmente por
meio do mar e dos principais rios europeus. No Báltico, a Liga Hanseática assumiu
uma posição estratégica em Gotland, na cidade de Visby, onde se trocavam produtos
advindos de diferentes paragens da Europa, desde Rússia, Alemanha, Dinamarca,
Suécia, França e Itália, com contatos de mercadores advindos do oriente, via Gênova e
Veneza, com especiarias (ETTING, 2004, p.26-29; ØSTERGÅRD, 2011).
A Liga Hanseática não era, contudo, somente uma associação comercial, como
também uma união política e militar destinada à proteção mútua de seus membros,
principalmente em viagens de longa distância e contra a pirataria (ØSTERGÅRD, 2011).
Desse modo, o poder político e militar da liga também serve de substrato para a
acumulação econômica dos comerciantes. A atuação diplomática permitiu o
estabelecimento de privilégios comerciais em várias cidades não associadas, como
Londres, Bruges, Bergen, na Noruega, e Novgorod, na Rússia, cidades onde lhes era
permitido escritórios comerciais. Os navios seguiam suas rotas bastante armados para
proteger a mercadoria (ETTING, 2004, p. 26-27).
O rei Valdemar Atterdag, da Dinamarca, entraria em confronto com a Liga
Hanseática devido ao poder e o controle comercial da mesma sobre o Mar Báltico, que
impunha obstáculos à expansão econômica dinamarquesa. Valdemar foi entronado em
1340 e, desde então, buscou fortalecer o poder da Dinamarca – que se encontrava
desintegrada econômica e territorialmente – com nobres alemães, principalmente os
duques de Holstein, controlando boa parte do território (BØGH, [2013]).
Progressivamente, a coroa dinamarquesa recuperava o seu poder, por meio de uma
associação com a Igreja. A aproximação com a Igreja, devido às lutas de Valdemar
contra os cismáticos do Oriente (cruzada), gerava maior concentração de terras à

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Igreja e, em contraposição, a Igreja garantia empréstimos e dízimos ao monarca.
Valdemar ainda vendeu a Estônia aos Cavaleiros Teutônicos para conseguir mais
rendas (JENSEN, 2007). A centralização e fortalecimento do poder real ocorreram
ainda por meio da associação com alguns nobres, que se privilegiariam do voto de
lealdade, e com campanhas militares àqueles que se opunham à política
centralizadora, principalmente os nobres de Holstein, que haviam se beneficiado
bastante pelo enfraquecimento anterior do reino dinamarquês. Depois de ter
recuperado o território continental, Valdemar voltou-se para o estratégico território de
Scania, que se encontrava sob o domínio da Suécia. O controle desse território
garantiria o controle da via de acesso ao Mar Báltico pelo Mar do Norte (ETTING,
2004, p. 3-7, OLESEN, 2003).
A Suécia era reinada, em conjunto com a Noruega, pelo rei Magnus Eriksson desde
1319, data do começo do período de uniões escandinavas (OLESEN, 2003, p. 711).
Magnus Eriksson teve dois filhos: o mais velho Érico, administraria a Suécia
conjuntamente com o pai; enquanto o mais novo, Hakon, reinaria a Noruega. Em
1359, em uma disputa de poder entre pai e filho pelo controle de toda a Suécia,
Valdemar entrou em uma aliança com Magnus Eriksson, com o consequente
casamento entre sua filha Margarete e o filho mais novo de Magnus, Hakon. Valdemar
ocupou Scania, como parte da aliança com Magnus. A aliança e o casamento, no
entanto, foram rompidos, devido à morte inesperada de Érico (OLESEN, 2003, p. 719;
ETTING, 2004, p. 4-5).
Valdemar não abdicou da Scania e rumou para o estratégico território de
Gotland e sua principal cidade, Visby, que era usada pela Liga Hanseática, em 1361.
O rei preocupava-se com as restrições ao comércio dinamarquês imposto pela Hansa.
Os mercadores alemães reagiram à invasão, mas perderam essa primeira guerra, já em
1363. Para consolidar a posição dinamarquesa, Valdemar promoveu o casamento entre
sua filha Margarete e o filho do rei da Suécia e da Noruega, Hakon, ainda em 1363.
Antes do final da guerra, no entanto, como parte da aliança contra Valdemar, Hakon
havia assegurado totais privilégios aos mercadores da Liga Hanseática na Noruega,
um país já fraco e empobrecido à época (OLESEN, 2003; BØGH, 2013; BOYESEN,
1886).
Em 1364, o rei da Suécia e da Noruega, Magnus Eriksson, e seu filho, Hakon,
foram destronados pela nobreza sueca. Como na Dinamarca, a aristocracia sueca
elegia o rei e impunha limites a sua atuação. Como resultado da guerra pelo trono,

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Magnus Eriksson foi feito prisioneiro e Hakon fugiu para a Noruega, onde ainda era
rei. Os suecos recorreram ao Conde Albrecht II, de Mecklenburg como sucessor do
trono, mas lhe impôs uma carta de obrigações a serem respeitadas com relação à
aristocracia (OLESEN, 2003).
Em 1367, a Liga Hanseática buscou atacar o poder de Valdemar, com o apoio
da dinastia Mecklenburg e dos condes de Holstein, que foram prejudicados pela
retomada de territórios promovida por Valdemar. Dessa vez, a Liga Hanseática foi
vitoriosa. Em 1370, foi assinado o acordo de Stralsund, que garantiu o controle do
báltico pela Liga. Várias cidades e castelos na região de Öresund e na Scania foram
entregues à Liga por um período de quinze anos, como reparação de guerra. Os
mercadores teriam direito à extraterritorialidade para serem julgados, ao principal da
renda do mercado de arenque da Escânia, a terem suas mercadorias devolvidas em
caso de naufrágio e de manterem seus privilégios comerciais na Dinamarca. Além
desses termos, Valdemar também estava obrigado a consultar a Liga para apontar um
sucessor. Os termos do acordo estavam diretamente de acordo com os anseios da Liga
Hanseática por monopólio comercia. Ao mesmo tempo, o território dinamarquês não
foi dividido, como esperavam os Mecklenburgs e os condes de Holstein. Dessa forma,
a Liga Hanseática também atrelou a garantia de monopólio no Báltico com a
permanência do Reino da Dinamarca. Os Mecklenburgs fizeram um acordo em
separado com o rei Valdemar, que em parte contradizia o Acordo de Stralsund, em
que o rei dinamarquês indicaria como sucessor o neto de Albrecht II, Albrecht IV,
neto também de Valdemar. Este tratado, no entanto, nunca foi aceito pelo conselho
dinamarquês (ETTING, 2004; OLESEN, 2003, p. 8-13).

O começo da regência de Margarete

Em 1375, com a morte de Valdemar, uma disputa de poder se seguiu pelo trono
dinamarquês, visto que ele havia morrido sem herdeiro homem. De um lado, os
Mecklenburg reivindicavam o direito de Albrecht IV; do outro, Margarete defendia a
sucessão de seu filho, Oluf. Os Mecklenburg tinham a vantagem de Albrecht IV ser o
filho da filha mais velha de Valdemar, de ser mais velho que Oluf, e também tinha o
apoio do sacro imperador romano germânico e dos condes de Holstein (OLESEN,
2003). Margarete conseguiu o apoio de influentes membros do conselho e da Igreja e
também da Liga Hanseática, devido ao receio desta de que o reino unido sob os

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Mecklenburg poderia pôr em xeque os direitos da Liga Hanseática no Báltico (BECK,
2009; ETTING, 2004, p. 12-16). Hakon celebrou um acordo de paz com a Liga que
confirmava o apoio dos hanseáticos. De maneira geral, os eleitores começaram a
pender mais para Oluf, e este foi confirmado no trono em 1376. Devido à pouca idade,
a regência do trono foi dada a Hakon e Margarete, mas esta foi mais atuante do que
aquele (ETTING, 2004, p. 16).
Ainda ao final da década de 1370, a Dinamarca encontrava-se em novo
confronto com a Liga Hanseática. Pelo tratado de Stralsund, a Scania deveria
permanecer sob o controle da Liga até 1785, mas a Dinamarca ressentia-se de não
possuir uma parte tão importante do seu território. Ataques de piratas começavam a
ficar cada vez mais comuns às mercadorias dos comerciantes alemães (ETTING,
2004, p. 29-34). Estes suspeitavam que os ataques eram patrocinados pela coroa
dinamarquesa. Além dos ataques, após a morte de Hakon, em 1380, os privilégios da
Liga Hanseática na Noruega foram suspensos. A pressão contra a possessão da Scania
da Liga Hanseática continuou com mais ataques de piratas que infligiam grandes perdas
econômicas aos comerciantes alemães (KOPPMAN, 1877). O objetivo que a Liga
Hanseática entregasse Scania antes da data estipulada ou que, quando chegasse 1385, a
Liga não desistisse de seus compromissos. A Liga, no entanto, queria compensações
pela carga destruída, e seus representantes não saíram dos castelos da Scania na data
estipulada para a entrega do território. Os Mecklenburg queriam a guerra, devido às
reivindicações antigas ao trono dinamarquês, mas tanto a rainha quanto a Liga
procuraram uma solução amigável. A Liga pediu por maior combate à pirataria e
privilégios na Noruega, os quais foram aceitos e implementados com facilidade – o
número de ataques piratas diminuiu consideravelmente após o acordo, aumentando as
suspeitas sobre o apoio anterior da coroa dinamarquesa à pirataria. A Liga ainda
demandava compensações, que não foram aceitas pelos dinamarqueses. Ao final, a
Dinamarca conseguiu retomar a Scania sem prejuízo econômico e em paz com a Liga
(ETTING, 2004, p. 33-38; OLESEN, 2003, p. 720).
Um revés menor ocorreu em 1386. À época, os condes de Holstein, senhores do
norte da Alemanha, aproveitaram-se da morte do duque de Schleswig e dos
compromissos militares dinamarqueses no Báltico para invadir e controlar o território
vizinho. A rainha negociou o controle perpétuo e hereditário do território aos condes
de Holstein em troca da lealdade da casa à coroa dinamarquesa. Era uma solução
satisfatória, pois garantia a paz na fronteira sul para liberar o esforço de diplomático e

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militar no Mar Báltico e também diminuía as possibilidades de uma aliança entre os
Mecklenburgs e os condes de Holstein. Como resultado, a nobreza de ascendência
alemã ganhava proeminência em Schleswig (OLESEN, 2003; ETTING, 2004).
A Dinamarca recuperava-se e fortalecia-se como país econômica e
politicamente após a ascensão de Margarete ao poder. Politicamente, ela manteve o
processo de reorganização e centralização política que vinha desde o reinado de seu
pai, com o fortalecimento da coroa em associação com a Igreja, a partir da cobrança
de mais impostos, e o enfraquecimento relativo da nobreza, mas garantiu a paz interna
do reino – além de manter um bom relacionamento com a Igreja Católica, que
reiterava o poder central da coroa. Economicamente, a Dinamarca garantia maiores
rendas com o fim dos privilégios à Liga Hanseática na Noruega, com a incorporação
da Scania e do mercado de arenque e com a manutenção da política do pai de
incorporação de propriedades de terra pela coroa. Militarmente, a Dinamarca também
se expandia, contra o condado de Holstein, e com a construção de uma forte esquadra
para a projeção do país sobre o Mar Báltico (MAARBJERG, 2000, 2004; BØGH,
2013; ØSTERGÅRD, 2002).

A disputa pela Suécia

Oluf era filho de Hakon, rei da Noruega e da Suécia; por isso, a rainha
Margarete não se esquecia das reivindicações sobre este último país, ainda que a
nobreza sueca houvesse destronado seu marido (ETTING, 2004, p. 50).
A ascensão dos Mecklenburg ao trono sueco gerou uma situação de permanente
estado de guerra entre Suécia e Dinamarca. A situação complicara-se ainda pelo fato
de que cada família real reivindicava o trono ocupado pela outra, devido aos laços
familiares explicitados anteriormente (MAARBJERG, 2004; OLESEN, 2003). Ao
final do século XIV, a Dinamarca ampliava sua posição no Báltico, estabelecendo-se
na Scania, e preparava-se para o confronto contra a Suécia.
Os eventos na Suécia também indicavam um caminho fácil para a entrada no
poder de Margarete. A nobreza e o clérigo suecos gradualmente se insatisfaziam com
a política de Albrecht, que beneficiava seus compatriotas alemães em detrimento dos
suecos (BØGH, [2013]). Postos governamentais e feudos estavam sendo distribuídos
para os alemães, irritando a aristocracia. Um dos opositores ao rei foi o seu próprio
conselheiro, Bo Jonsson, que chegou a controlar quase metade das terras da Suécia.

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Em seu testamento, Bo Jonsson determinou que suas terras seriam administradas por
dez aristocratas, fora do controle do rei (OLESEN, 2003).
O governo perdia sua base de legitimidade. A crise piorou quando o rei buscou
conferir impostos sobre uma nobreza antes isenta. Uma insatisfação geral da
aristocracia sueca irrompeu contra o rei, que fugiu para Mecklenburg para conseguir
arregimentar tropas para combater os rebeldes (ETTING, 2004, p. 52, 61).
Antes de promover a guerra contra Albrecht, Margarete teve que lidar com uma
crise institucional provocada pela morte prematura de seu filho, Olaf, legítimo
sucessor do trono. O próximo na linha de sucessão deveria ser Albrecht IV, de
Meckelenburg; no entanto, de forma inédita na história, o conselho de Estado
dinamarquês elegeu uma mulher, Margarete, como regente da Dinamarca, a que se
seguiu também sua confirmação no trono da Noruega, contra a constituição desse país,
que previa a sucessão hereditária. Ao mesmo tempo, Margarete deveria indicar um
sucessor, a ser aceito pelos respectivos conselhos estatais. Entregar o trono para a
dinastia Mecklenburg representaria o enfraquecimento do reino em benefício dos
alemães, de modo que o pragmatismo e o receio da escolha de Albrecht para o futuro
desses países preponderaram para a permanência de Margarete como rainha
(ETTING, 2004, p. 54-58; BECK, 2009).
Em 1389, Margarete reuniu com os aristocratas insatisfeitos, muito deles
executores das terras de Bo Jonsson e prometeu respeitar as leis do país e os direitos
dos aristocratas em troca de sua lealdade (OLESEN, 2003). Aponta-se que muitos
aristocratas suecos também possuíam direitos feudais sobre terras localizadas em
território dinamarquês e norueguês, e vice-versa, principalmente na região de fronteira
– devido à laços matrimoniais que uniam as famílias aristocratas escandinavas –, de
modo que havia um interesse comum de parte das aristocracias por maior estabilidade
política e, nesse contexto, da união com um rei que respeitasse seus direitos feudais
(MAARBJERG, 2000).
Margarete promoveu uma ofensiva militar contra Albrecht, que havia voltado
da Alemanha com um exército preparado para a batalha. Albrecht, por fim, sofreu
uma grande derrota e foi preso. Estocolmo, no entanto, permaneceu sob o controle de
pessoas leais ao rei Albrecht, pois grande parte da população dessa cidade era de
origem germânica e, por a cidade estar localizada em uma ilha, possuía difícil acesso
para combate (ETTING, 2004, p. 61, 67-69).

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Estocolmo encontrou-se em sítio pela esquadra dinamarquesa e, para que esta
fosse combatida, a população da cidade formou grupos piratas, chamados
vitaliebrüder, que atacaram não somente os navios dinamarqueses como também
seriamente prejudicaram o comércio no Báltico e o mercado de arenque de Gotland
(KOPPMAN, 1877). Essa medida piorou as relações entre aqueles leais a
Mecklenburg e os mercadores da Liga Hanseática, de modo que estes não se
apresentavam mais como um aliado possível para a causa de Albrecht. Os ataques
piratas continuaram por um longo período, prejudicando toda a paz no Mar Báltico.
Os vitaliebrüder conseguiram inclusive o controle sobre a ilha de Gotland, o que
afetou todo o comércio da região. Outro antigo aliado, o condado de Holstein, não se
encontrava disponível para o rei Albrecht, pois já havia concluído um acordo de paz
com a Dinamarca (OLESEN, 2003).
A situação final foi mediada pela Liga Hanseática, 1395. Albrecht seria
libertado e teria até três anos para pagar a quantia de sessenta mil marcos de prata (um
valor muito alto), para não retornar a prisão. Estocolmo permaneceria sob o domínio
da Liga Hanseática como garantia. Se não pagasse, ou Albrecht voltaria à prisão ou
cederia Estocolmo às forças dinamarquesas. Nesse meio tempo, aparentemente a
rainha apoiou novamente a pirataria contra a Liga Hanseática para que esta não
escolhesse continuar controlando Estocolmo por muito tempo. Ao final dos três anos,
sem o pagamento do resgate, Estocolmo foi entregue à Margarete. Quanto à Gotland,
os Cavaleiros Teutônicos invadiram e controlaram a ilha para garantir a paz e o
comércio na região, a partir de 1398, gerando preocupação para a rainha se a ordem se
retiraria ou não de lá (OLESEN, 2003).

União da Escandinávia

Antes da união oficial em 1397, a Rainha Margarete já havia consolidado seu


poder nos três reinos. Ao mesmo tempo, a rainha também indicou seu sucessor. Este
seria seu sobrinho-neto e, portanto, com o sangue de seu pai, chamado Bugislav, da
Pomerânia. Margarete adotou-o como filho, e seu nome foi mudado para o mais
nórdico Érico (Erik).
Margarete era, desde 1389, regente, na prática, de todos os três países e continuou
o processo de centralização de poder da coroa. Com o apoio da Igreja e com o objetivo de
assegurar a paz social após longos anos de conflito, Margarete aprovou uma legislação em

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1396 que enfraquecia a nobreza e aumentava os recursos financeiros da coroa
dinamarquesa. Na Dinamarca, essa legislação ampliou as terras reais, ao obrigar a
devolução de terras invadidas por nobres antes pertencentes a Coroa; coibiu aqueles que
não pagavam impostos, ao determinar a prisão dos fraudulentos e daqueles que ajudavam
os sonegadores; proibiu a criação de novas fortificações e castelos, o que prejudicou a
nobreza; não permitiu a compra de terras de camponeses, com o objetivo de que estes
pagassem o imposto à coroa; coibiu a propina e o contrabando; incentivou os
comerciantes nórdicos que estavam em disputa com os hanseáticos (a estes foi dado o
direito de passagem sem risco de pirataria e o direito de resgatar mercadorias perdidas no
mar); e promoveu uma reforma monetária, que, por meio da colheita de novos tributos,
permitiria a recunhagem da moeda dinamarquesa; antes, a maioria da população usava
moeda estrangeira, o que diminuía os recursos da coroa, visto que o país estava
constantemente em falta das mesmas. A nova moeda garantiu uma estável fonte de
recursos e repercutiu negativamente entre os mercadores da Liga Hanseática, que perdiam
recursos em meio à arbitragem (ETTING, 2004, p. 80-95; HYBEL; POULSEN, 2007, p.
334-335; OLESEN, 2003, p. 727; BØGH, 2013).
Na Suécia, a legislação foi ainda mais dura com a nobreza. Todos os feudos
passados para a administração da nobreza a partir do momento da coroação de
Albrecht de Mecklenburg, em 1363, seriam retomados pela coroa, sem compensação
financeira. Os feudos de posse da nobreza a partir de 1363 também poderiam ser
retomados. Todos aqueles enobrecidos durante o reino de Albrecht teriam seus títulos
revogados e todas as fortificações e castelos criadas no mesmo período poderiam ser
postos a baixo, caso a coroa assim o desejasse. Na Suécia, a coroa ainda conseguiu
novas receitas a partir do recebimento do dote de casamento da rainha Margarete com
o rei Hakon e com a taxação das ricas minas de ferro no país (ETTING, 2004;
HYBEL; POULSEN, 2007, p. 311-318).
Em ambos os reinos, os feudos em que se verificaria abuso de poder das
autoridades feudais, com o sequestro indevido das propriedades dos camponeses,
poderiam ser confiscados pela coroa, essa medida tinha o apoio da Igreja, que
excomungava as autoridades abusivas. Em ambos os reinos houve um grande confisco
de terras que enfraquecia a nobreza em prol da coroa, sendo que na Suécia esse
confisco foi muito maior. Nesse país, a nova nobreza, especialmente germânica, saiu-
se muito mais prejudicada, embora toda a nobreza tenha perdido poder relativo. Deve-
se ressaltar que todas as reformas foram feitas a partir de uma posição militar mais

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proeminente da Dinamarca com relação a Suécia, que havia se enfraquecido durante o
governo de Albrecht (ØSTERGÅRD, 2002). Margarete I, manteve de maneira geral o
processo de aumento das terras reais e, portanto, da arrecadação, expandindo o poder
real (HYBEL; POULSEN, 2007, p. 311-312).
Em 1397, em Kalmar foi formalizada a união entre Dinamarca, Noruega e
Suécia, chamada posteriormente de União de Kalmar. Há dois documentos que
sobreviveram desse período. Um é a carta de coroação, outra é a carta de união. A
primeira sugere um regimen regale, uma carta monárquica de como o estado deve
funcionar e o papel da rainha ou do rei; enquanto a segunda determinava explicitava
um regimen politicum, ou uma monarquia limitada pelos conselhos dos respectivos
países; segundo essa interpretação, de Lönnroth (1934 apud OLESEN, 2003), a rainha
ganhou essa disputa, com maior centralização do poder nas mãos da coroa, pois a
carta monárquica foi aceita legalmente, enquanto a carta da união, não. Lönnroth
argumenta que esta não foi aceita, pois feria os interesses de Margarete. Os interesses
dinamarqueses foram impostos, devido à maior capacidade militar e à vitória na
guerra (OLESEN, 2003).

Kalmar e a política externa sob o comando de Margarete (1397-1412)

Margarete I permaneceu preponderante na condução da política no âmbito da


União de Kalmar, mesmo após a coroação de seu filho Érico, até sua morte, em 1412.
Esse período foi de relativa estabilidade interna e de centralização de poder na
Dinamarca.
A relação da rainha Margarete com a Igreja era especialmente cordial. A rainha
mantinha o controle das indicações sobre as dioceses do país, em troca de
bonificações e terra para Igreja. Bispos e arcebispos faziam parte do conselho de
Estado da Dinamarca, de modo que a rainha aproveitava-se das disputas de poder
internas, inclusive com propina, para conseguir indicar bispos apoiadores da Coroa no
momento de vacância dos assentos. Devido a seus esforços, Margarete conseguiu a
nomeação do bispo de Vexjö na Suécia, contra a indicação da indicação local, ainda
em 1382, quando o país estava sob o controle dos Mecklenburg. Durante o papado de
Bonifácio IX (1389-1404), a Igreja garantiu grandes isenções à Coroa, permissão para
o confisco de terras e ainda concedeu indulgência a todos que protegessem o reino da
Dinamarca, da mesma forma que se concedia àqueles que protegessem a Terra Santa.

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A rainha, que defendeu o papado de Roma durante o cisma da Igreja até 1410,
reclamava que seu reino estava desprotegido e era de fácil acesso pelo mar; o papa,
então, em 1401, comandou os arcebispos locais a pregarem uma cruzada contra todos
os inimigos da Dinamarca, inclusive cristãos. A relação estável com a Igreja
permaneceu mesmo depois que a lealdade da rainha se transferiu para outro papa, que
começava a ser mais reconhecido (JENSEN, 2007).
A política com relação aos outros reinos da União de Kalmar parece confirmar
um fortalecimento da monarquia dinamarquesa (ØSTERGÅRD, 2002). A ingerência
da monarquia fez-se sentir nos clérigos locais, em que muitos bispos foram nomeados
contra a indicação do clérigo local, sueco ou norueguês o que demonstra que a
influência da monarquia dinamarquesa no Vaticano manteve-se forte mesmo após a
união. A indicação de bispos leais garantia a influência da monarquia nos conselhos
locais em que os bispos também participavam (ETTING, 2004, p. 109-111). Houve
também favorecimento da nobreza dinamarquesa no momento de indicação de cargos
públicos e cobradores de impostos tanto na Noruega quanto na Suécia, sendo neste
país os efeitos terem sido mais sentidos, por ser um país com mais recursos e com
maior capacidade de pagamento (BOYESEN, 1886; ETTING, 2004, p. 90-94).
Confirma-se também que a carga de impostos na Suécia foi mais alta que na
Dinamarca (HYBEL; POULSEN, 2007).
O fortalecimento da monarquia também ocorreu quando do casamento do rei
Érico com a princesa da Inglaterra Philippa, que significou um acordo de aliança
defensiva entre os dois países. A atitude também significaria um beneficiamento dos
mercadores ingleses na região de Öresund (OLESEN, 2003, p. 727-728).
No começo do século XV, a rainha conseguiu retomar o controle de Gotland dos
Cavaleiros Teutônicos. O temor de que os Cavaleiros não sairiam de lá tão facilmente
foi confirmado, quando os mesmos se recusaram a se retirar, mesmo após o
enfraquecimento dos vitaliebrüder e do rei Albrecht. Primeiro, a rainha tentou retirá-los
à força e quase conseguiu, mas as forças teutônicas resistiram dentro das muralhas da
cidade de Visby e os dinamarqueses tiveram que recuar. A rainha voltou às mesas de
negociação com os cavaleiros. O controle de Gotland foi garantido à Dinamarca depois
de um acerto de pagamentos (ETTING, 2004, p. 134-135; ØSTERGÅRD, 2002).
Outro território que a rainha Margarete buscou reconquistar foi o do ducado de
Schleswig, que estava sob o controle dos condes de Holstein, desde 1386. Quando o
duque de Schleswig e conde de Holstein morreu, em 1404, a rainha Margarete

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aproveitou-se da situação para retomar o controle do território. A viúva do duque
permitiu que o rei Érico e a rainha administrassem o território como representantes
legais de seus filhos, ainda crianças. A rainha aproveitou-se da situação para adquirir
castelos e fortificações da região por meio da compra, do pagamento de penhoras
anteriores e mesmo da extorsão, o que demonstra o estilo agressivo da política externa
da rainha. Aos poucos, a coroa conseguiu quase todo o território de volta. Os nobres
de Holstein, então, se revoltaram. Holstein começou uma guerra a partir de 1410, sem
impedir, contudo, o avanço dinamarquês. Por meio da guerra e da negociação, a
rainha preparava-se para controlar todo o ducado, a partir de 1412. No mesmo ano, no
entanto, a rainha morreu (ETTING, 2004, p. 150-154; BOYESEN, 1886;
HEDEMANN, 2011).

Período de Érico da Pomerânia (1412-1440)

Érico, a partir de então, herdava de sua mãe adotiva o controle do reino e uma
guerra contra Holstein.
Érico tinha como primeiro objetivo de política externa o controle de Schleswig.
Érico acusou os condes de não prestarem os devidos serviços a seu senhor, e o
conselho do reino da Dinamarca apoiou a retomada do controle do ducado, em 1413.
A decisão foi posteriormente confirmada pelo Sacro-Imperador Romano Germânico, a
quem os contes deviam subserviência. Ainda assim, a guerra permaneceu até 1432
(HEDEMANN, 2011; OLESEN, 2003).
A guerra estendera-se para incluir a Liga Hanseática também. O rei acusava as
cidades hanseáticas de favorecerem o comércio com Holstein; em contrapartida, a
monarquia dinamarquesa buscou fortalecer o comércio da Dinamarca com a Inglaterra e
com a Holanda, passando pelo Öresund, e não cumpria com os benefícios acordados
anteriormente da Liga. A Liga Hanseática ainda promoveu um bloqueio comercial nessa
região, como forma de garantir seu quase monopólio no comércio do Báltico. Dessa
forma, os hanseáticos, preocupados com o expansionismo do rei dinamarquês, entraram
na guerra na área naval apoiando financeiramente os esforços de guerra de Holstein
(OLESEN, 2003, p. 718).
Da mesma forma que sua mãe e seu predecessor fizeram, Érico continuou o
processo de aquisição de terras e castelos, principalmente na região de Öresund. Érico
também indicou nobres próximos a ele, dinamarqueses e alemães, como cobradores de

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impostos na Suécia. A relação especial com a Igreja, no entanto, não se manteve, em
parte devido ao período de incertezas vivido pela Igreja, em parte por falta de
habilidade política de Érico, que queria controlar a indicação de bispos na união
(JENSEN, 2003). Devido aos esforços de guerra e ao bloqueio em Öresund, os
impostos também aumentaram, principalmente sobre os camponeses, mas também
para os clérigos, que não pagavam impostos. Os nobres também se insatisfaziam com
a dificuldade de se manter o comércio, devido ao bloqueio da Liga (OLESEN, 2003,
p. 730-731).
A insatisfação alcançou o estopim em 1435 com a revolta de Engelbrekt
Engelbrektson, um camponês que trabalhava nas minas e que foi obrigado a pagar
crescentemente mais impostos a partir da União de Kalmar e da guerra contra
Holstein. A revolta espalhou-se pela Suécia, ganhando a adesão de nobres, membros
do conselho da Suécia e membros eclesiásticos. Queriam que o rei aceitasse direitos e
limites constitucionais (MURRAY, 1947).
Receando que os revoltosos pudessem se associar com os hanseáticos e com os
condes de Holstein, o rei começou a celebrar tratados de paz e armistícios. Aceitou o
comando de Shleswig por Holstein, aceitou os privilégios da Liga Hanseática em
Öresund e ainda concedeu ao conselho da Suécia, para conseguir recuperar o controle
de castelos (MURRAY, 1947; OLESEN, 2003, p. 733).
As negociações estavam somente no começo. Os nobres da Suécia pressionaram
por uma posição mais constitucionalista e convenceram os nobres da Dinamarca a
exigirem as mesmas demandas. Recorreram ao Ato de União, de 1397, que não havia
sido validado, como fundamento para uma série de compromissos que o rei deveria se
ater para com seus súditos; o rei deveria se submeter às decisões dos conselhos locais.
Entre 1436 e 1438, os conselhos de Dinamarca e da Suécia continuaram negociando
com o rei. Este não cooperava com os conselhos, e fazia algo como uma greve ao
retirar na ilha de Gotland como formas de pressionar os conselhos a negociarem
(BØGH, 2013). Érico queria garantir o controle de mais castelos e que os conselhos
aceitassem o seu parente Duque Bugislau como sucessor o que não foi aceito. Érico
voltou a morar em Gotland e a ganhar seus rendimentos por meio da prática de
pirataria e com a ajuda de holandeses, que haviam ganhado privilégios comerciais
durante seu reino (OLESEN, 2003, p. 734-736).
Os conselhos de Dinamarca e Suécia firmaram um novo acordo de união, em
1438, e, mesmo que aceitassem a possibilidade de deposição do rei, que se encontrava

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ausente, ainda concordavam em manter a união e a aliança entre os dois países
(OLESEN, 2003). Érico foi deposto em 1439, na Dinamarca e depois na Suécia,
somente depois de 1440 ocorreu sua deposição na Noruega, em parte devido à
pirataria promovida por seus aliados holandeses na costa norueguesa (BØGH, 2013).
Primeiro Dinamarca e, depois, Suécia ofereceram a coroa a Cristóvão, da
Baviera, sobrinho de Érico, que somente pôde aceita-la depois de comprometer-se
com os desejos constitucionalistas. A união entre os três reinos concretizou-se
novamente somente em 1442, com a aceitação do conselho da Noruega (OLESEN,
2003, p. 737).

1440-1523: uma união instável e a dissolução final

O fim do reinado de Érico marcou o fim do período absolutista da união que


havia começado com a regência de Margarete oficialmente em 1397 (GUSTAFFSON,
2006). A partir do reinado de Cristóvão, o rei esteve obrigado a aceitar às reivindicações
de limitações ao seu poder real. Nesse momento, o conselho dinamarquês ainda
conseguiu evitar mais imposições por parte da Suécia, devido ao receio de perda de
poder sobre as políticas da Dinamarca, de modo que não foi acertada uma constituição
comum, em que garantia explicitamente a independência dos três reinos e da vontade
dos conselhos nacionais sobre o rei (OLESEN, 2003, p. 738).
Ainda assim, na prática, a união funcionou de forma bastante livre entre os
diferentes reinos. A figura do rei perdeu a importância, senão para mediar as relações
entre os conselhos nacionais (OLESEN, 2003, p. 738). O desejo de independência
sueca era confirmado (BOYESEN, 1886). A união funcionava, dessa forma, como
uma aliança entre os reinos centrada na figura do monarca. O rei conseguia manter o
diálogo entre as partes (OLESEN, 2003, p. 738).
Em matéria de política externa, Cristóvão mantinha o diálogo para um
armistício entre Suécia e seu tio Érico da Pomerânia, que permaneceria no exílio em
Gotland, e entre a Noruega e a Liga Hanseática com relação a disputas alfandegárias.
Nesse âmbito também, os escandinavos ganhavam a opção de comercializar com os
holandeses, que cresciam seu poder comercial no Báltico, em contraposição a Liga
Hanseática, assim como os ingleses. Ao longo do século XV, o poder monopólico da
Liga começava a diminuir (OLESEN, 2003, p. 738).

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Cristóvão morreu precocemente em 1448, sem herdeiros, e abriu o caminho
para uma nova disputa do trono. Os conselhos dos reinos não decidiram
conjuntamente o novo rei. Na Dinamarca elegeu-se Cristiano, de Oldenburg, e na
Suécia, o nobre Karl Knutson. Ambos reivindicaram o controle de Gotland e da
Noruega, sendo que o rei dinamarquês obteve maior êxito em suas empreitadas,
inclusive conseguindo o controle da Suécia por breve período de tempo entre 1457 e
1463, com o apoio de nobres constitucionalistas que julgavam Karl muito autoritário,
além da nobreza localizada na região de fronteira, que procurava manter a união e paz
como forma de manter suas riquezas. Cristiano foi destronado por Karl em 1464
(GUSTAFFSON, 2006; BØGH, 2013).
Em todo período entre 1464 até 1481, quando da morte de Cristiano, mantiveram-
se disputas entre parte da nobreza sueca e por dinamarqueses por territórios estratégicos,
particularmente Gotland, além de disputas intra-oligárquicas principalmente na Suécia,
mas também na Dinamarca. Guerras e negociações continuaram a ser travadas para que
Cristiano voltasse a ser rei da Suécia, mas sem sucesso (GUSTAFFSON, 2006;
OLESEN, 2003).
Em 1483, depois da morte de Cristiano, seu filho, Hans, foi aceito como rei na
Dinamarca e na Noruega, e também aceitou a carta de acessão ao trono na Suécia,
porém, a coroa sueca foi rejeitada pelos partidários de Knutson. Hans conseguiu impor
seu controle sobre a Suécia por meios militares, em 1497, e refazer a união de Kalmar.
Essa união, no entanto, foi extremamente instável, sendo já dissolvida em 1501, devido
a mais descontentamentos com relação à política centralizadora do rei dinamarquês. Até
sua morte, em 1513, Hans engajou-se em guerras não somente pelo controle da coroa
sueca, mas também contra a Liga Hanseática, pois era hostil à presença desta no Báltico
(OLESEN, 2003).
Seu filho, Cristiano II, que acedeu ao trono da Dinamarca em 1513, manteve a
política hostil contra a Liga Hanseática e a centralização de poder. Em 1520, ele
engajou-se em campanha militar para finalmente conquistar Suécia e reestabelecer a
união pela última vez. Em 1521, ocorreu o episódio conhecido como o massacre de
Estocolmo, em que o rei ordenou a morte de oitenta aristocratas, considerando-os
hereges de seus seguidores – além de muitos outros no interior, para garantir o seu
controle sobre o país (MAARBJERG, 2000; JENSEN, 2007). O episódio deu início a
nova rebelião, que expulsou o rei. O jovem nobre Gustav Vasa foi colocado como

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regente, já em 1521 e aclamado rei em 1523, marcando o fim decisivo da união
escandinava (MAARBJERG, 2004).
Cristiano foi deposto também em 1523 na Dinamarca devido a suas políticas
centralizadoras, a sua batalha contra a Liga Hanseática e sua simpatia pelas reformas
luteranas que prejudicaram os interesses de nobres e bispos.
O período entre 1440 a 1523 não deve ser visto de forma linear, como a busca
do controle de um rei dinamarquês pelo controle do território sueco. Havia muitos
interesses em jogo (GUSTAFFSON, 2006). O desejo constitucionalista havia
aumentado de maneira crescente desde a deposição de Érico da Pomerania. Na carta
de acessão ao trono de Cristiano I havia treze cláusulas restritivas; na de Hans,
cinquenta e uma; na de Cristiano II, sessenta e oito; e na Frederico, que sucedeu
Cristiano II, setenta e seis. Cláusulas essas que eram constantemente ignoradas pelos
soberanos, que buscavam ao máximo a centralização de poder e a conquista de
território, mas que explicitam bem as tentativas de contenção de poder real
(MAARBJERG, 2000; BØGH, 2013). Na Suécia, onde a figura monárquica era ainda
mais contestada, os conflitos intra-oligárquicos eram permanentes, existindo uma
situação de quase anarquia no país e de multiplicidade de interesses que convergiam e
divergiam sobre a possibilidade de uma união e o papel do rei (GUSTAFFSON, 2006;
MAARBJERG, 2000). Além das oligarquias, na Suécia havia ainda uma força
desestabilizadora que era o campesinato, principalmente que trabalhava nas minas e
liderava revoltas como a de Engelbrekt Engelbrektson, ainda contra Érico da
Pomerânia (MURRAY, 1947). Outros temas envolviam as disputas pelo comércio no
Báltico e os consequentes conflitos e negociações com a Liga Hanseática
(HEDEMANN, 2011). Os custos da guerra e da busca por centralização política
influenciavam para a insatisfação de grande parte da nobreza, principalmente na
Suécia, mas também na Dinamarca, de modo que minaram as bases da monarquia.

Considerações Finais

A primeira hipótese respondia à pergunta por que a União de Kalmar começou e


sustentava que havia uma convergência de posições entre a aristocracia sueca e a
coroa dinamarquesa pelo controle do Mar Báltico. Apesar de a rainha Margarete ter
promovido definitivamente uma centralização de poder, em contraposição à Liga
Hanseática, com o controle de Scania, com o fim dos privilégios na Noruega e com o

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recurso à pirataria, não há indícios que a Liga Hanseática foi preponderante para o
começo da União de Kalmar. A convergência entre a aristocracia sueca e a coroa
dinamarquesa não ocorria por causa da Liga Hanseática.
Desse modo, parece mais evidente que a União foi promovida devido ao
crescente aumento do poder dinamarquês e pela insatisfação da aristocracia sueca com
o governo de Albrecht. Esse aumento de poder ia ao encontro com as pretensões da
Liga Hanseática por livre acesso no mar báltico, porém não houve convergência de
posições entre as partes envolvidas – coroa dinamarquesa e aristocracia sueca – contra
a Liga Hanseática, mas contra a casa Mecklenburg, que, ao final da guerra, também
não via a Liga Hanseática como aliada, devido à ação dos vitalie-brüder.
Durante todo o período analisado, a Liga Hanseática não deixava de ser um ator
relevante para o cálculo político tanto internamente para a consolidação de poder,
como se pode observar pelo apoio do mesmo à nomeação de Oluf como rei, quanto
internacionalmente, como se observa pelo papel relevante dos mesmos para guerra e
para a mediação de paz. Assim, sempre que possível, a rainha manteve uma posição
de cooperação com relação à Liga de modo a não tê-la como inimiga em seus
objetivos políticos.
O começo da União de Kalmar deve ser explicado pela crescente centralização
de poder que ocorrera na Dinamarca desde o período de Valdemar Atterdag. A
unidade política dinamarquesa foi forjada por meio de guerras ou da preparação para a
guerra, seja contra os nobres alemães e de Holstein que controlavam a maior parte do
território dinamarquês, seja contra a Liga Hanseática ou contra os Mecklenburgs.
Havia um claro objetivo de projeção de poder internamente e depois externamente, em
direção ao Báltico. Essa projeção demandou recursos econômicos, de modo que os
impostos aumentaram, e conciliação interna, em que se verificou aliança entre a coroa
e a Igreja.
Em contraposição, na Suécia verificava-se um constante enfraquecimento da
coroa com relação aos nobres, como pode ser observado pelos sucessivos
destronamentos tanto dos reis Magnus Eriksson quanto de Albrecht, com os conflitos
entre o rei e o clérigo, a perda de controle sobre Scania e sobre as terras de Bo Jonsson,
além das divergências entre os antigos nobres e a nova nobreza alemã.
Houve uma confluência de forças que permitiram a união: a insatisfação com o
rei Albrecht, o objetivo claro de política externa da rainha Margarete e a identidade
comum escandinava que se expressa tanto nas relações de sangue entre as famílias

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reais e a nobreza quanto também na língua e nos costumes comuns. A participação da
Liga Hanseática no processo pode ser feita de modo negativo, no sentido de que ela
não se opôs à União.
A segunda hipótese responde à pergunta de por que a União de Kalmar acabou
e mantém que as lutas de poder endógenas entre a aristocracia sueca e a monarquia
dinamarquesa, principalmente em torno dos custos das guerras pelo controle do Mar
Báltico tornaram a união insustentável. Essa hipótese pode ser considerada correta,
embora incompleta.
Não se pode dizer em um conjunto de interesses claramente definidos que
contrapõem, de um lado, a coroa dinamarquesa, e, de outro, aristocracia sueca, de
modo que não há uma linearidade à história, em que a aristocracia conquistava mais
força frente aos interesses da coroa dinamarquesa e, assim, a união acabou. Muitos
aristocratas suecos sustentaram por muito tempo a ideia de uma união e não queriam a
separação, mesmo após o destronamento de Érico ou depois da morte de Cristóvão.
Além disso, considerando um período de 126 anos de união, ainda que
intermitente, a postura dos governantes e da aristocracia mudou muito durante todo
esse tempo. Os reinos de Margarete e Érico, embora configurem a época das
monarquias absolutas, de centralização, de conquista de territórios e de castelos, de
aumento das receitas do Estado, diferiram muito em termos de estabilidade para
governar. Margarete conseguiu fortalecer sua monarquia por meio de aumento do
aparato militar e com o aumento do apoio da Igreja que ela considerava essencial para
conseguir a base de legitimidade para o governo e para a união, de modo que ela
conseguia interferir na indicação de bispos e de cobradores de impostos na Suécia, não
sem problemas, mas mantendo a legitimidade da união. Ao mesmo tempo, a rainha
teve habilidade política para não confrontar a Liga Hanseática e ganhar um novo
inimigo, como já fizera antes da união. Não se sabe se a insatisfação da aristocracia
sueca geraria o eventual destronamento de Margarete, caso ela permanecesse viva –
visto que ela começava a expandir o território para incorporar Schleswig e Holstein –
mas não há como provar essa teoria, visto que seria um exercício contra factual da
história.
Érico, por sua vez, aprofundou as causas de ressentimento para com a
monarquia dinamarquesa, sem garantir um mínimo de autogoverno na Suécia,
aumentando os impostos para custear as guerras contra Holstein e a Liga Hanseática, o
consequente bloqueio naval imposto pela Liga e, além disso, não ter sucesso nessas

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investidas. A monarquia perdeu castelos e perdia centralidade política, gerando
insatisfação não somente na Suécia com também na Dinamarca. O episódio da
destituição de Érico seria o que melhor confirmaria a hipótese apresentada nesse
trabalho sobre o fim da união, se se considerasse esse o começo do fim.
O reino de Cristóvão também pode ser considerado um período de maior
estabilidade institucional, mas a união encontrava-se enfraquecida sob a figura do rei.
Este possuía um papel pequeno como mediador entre os países da união,
principalmente acerca do controle de Gotland, por Dinamarca e por Suécia. Ao
mesmo tempo, o rei também não se indispôs contra a Liga Hanseática ou buscou
maior expansão territorial.
Após 1448, houve períodos de curtos de nova União Escandinava, mas a
políticas centralizadoras dos reis da união se mantinham. Mesmo com compromissos
de maior respeito aos direitos dos nobres, os reis seguidamente iam contra seus
juramentos no momento da coroação, para buscar a acumulação de poder. Nesse
processo, os reis também iam contra os interesses da Liga Hanseática, que prejudicava
a capacidade tributária da Dinamarca. Na Suécia, o movimento contrário ao rei era
mais forte que na Dinamarca ou na Noruega, mas não havia uma coalizão unificada de
nobres ou clérigos insatisfeitos, que reivindicavam mudanças e muito menos o fim da
união. Havia disputas grandes internamente, principalmente dos nobres localizados na
fronteira, que defendiam o rei da união, mesmo se custasse alguma centralização
política. Mesmo quando a Suécia esteve governada por reis próprios, também houve
grande insatisfação interna e conflito contra a política da coroa.
De maneira geral, a história do começo e do fim da União de Kalmar possui um
mesmo componente central, que é o fortalecimento da coroa dinamarquesa em
contraposição à monarquia fraca e sem legitimidade da Suécia. O fortalecimento da
Dinamarca, que posteriormente englobou também a Noruega, havia começado desde o
período de Valdemar Atterdag que, como descendente legítimo do trono dinamarquês,
propôs um movimento de centralização da Dinamarca em conformidade com parte da
nobreza insatisfeita e com o apoio da Igreja; seu grande obstáculo para a consolidação
do poder encontrava-se na Liga Hanseática, que apoiou uma guerra contra o mesmo.
O fortalecimento da coroa dinamarquesa permaneceu sob o comando de Margarete,
que buscou não prejudicar as relações com a Liga, aumentando as receitas do Estado
por outros meios. Os conflitos com a Liga seriam desestabilizadores para o futuro da
união nos próximos governos, como no de Érico, Hans e Cristiano II.

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Na Suécia, por outro lado, a estrutura de poder encontrava-se cada vez mais
fragmentada. Os reis não eram fortes o suficiente para imporem o seu governo, nem os
aristocratas eram homogêneos para concordarem num plano de governo capaz de
satisfazer a todos com relação às mais diversas questões, seja o comércio no Báltico, o
controle da Escânia e de Gotland, seja o imposto sobre o ferro extraído ao norte do
país, que também afetava as condições de vida do campesinato. Seguidamente, os reis
da Suécia foram destronados, Magnus Eriksson, Hakon, Albrecht de Mecklenburg,
Érico da Pomerânia, Karl Knutsson, Cristiano, Hans e Cristiano II, o que indica uma
falta de consenso e uma instabilidade interna muito maior do que existia na
Dinamarca, onde, no mesmo período analisado, somente Érico da Pomerânia e
Cristiano II foram destronados e, em grande medida, devido às consequências da
guerra contra a Suécia.

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Artigo recebido em 02/12/2013. Aprovado em 21/02/2014.

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Semíramis Corsi SILVA•

Durante muito tempo a historiografia apresentou a Dinastia dos Severos, que


governou o Império Romano de 193 a 235 d.C., como uma Monarquia Militar,
considerando que tais imperadores buscaram elementos de sustentação de seu poder
essencialmente nas legiões de soldados. Dentre os historiadores que seguiram essa
tendência podemos citar alguns autores clássicos da historiografia sobre Império
Romano, como Mikhail Rostovtzeff em Social and Economic History of the Roman
Empire (1957), Roger Rémondon em La crise de l’Empire Romain de Marc-Aurèle à
Anastase (1967), Paul Petit em La crise de l’Empire des derniers Antonins à Dioclétien
(1974), entre outros. No entanto, uma historiografia mais atual tem se proposto a revisar
essa ideia, mostrando-a como fruto de uma leitura acrítica da documentação escrita,
especialmente daquela de origem senatorial com autores do período severiano como
Dião Cássio e Herodiano. Neste sentido, tais historiadores mostram como esta dinastia
criou outras formas de legitimar seu poder, uma vez que tal legitimação se fazia
extremamente importante, sendo uma nova dinastia no poder após um período marcante
de guerra civil (193 a 197). Além disso, os Severos configuram-se como a primeira
dinastia de origem oriental do Império Romano, com imperadores sem nenhum vínculo
familiar com a Península Itálica. Há ainda no período severiano uma série de
transformações como a origem cada vez maior de provinciais adentrando o senado
romano, equestres ascendendo a esta ordem e a real importância do exército na
aclamação dos imperadores. Essas características reforçavam a necessidade da criação
de uma propaganda dos atributos severianos para estarem no poder do Império.
No Brasil, uma das principais historiadoras empenhadas em desenvolver
pesquisas sobre a temática severiana é Ana Teresa Marques Gonçalves, professora da


Doutoranda em História – Programa de Pós-graduação em História – Faculdade de Ciências Humanas e
Sociais – UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Franca, CEP:
14409-160, Franca, São Paulo – Brasil – Sob orientação da Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho.
Membro do Grupo do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano – G.LEIR, UNESP/Franca.
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Foi Bolsista do
Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior – PDSE/CAPES, na Universidad de Salamanca –
Espanha. E-mail: semiramiscorsi@yahoo.com.br.

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Universidade Federal de Goiás (UFG), que desde seu mestrado, defendido na
Universidade de São Paulo (USP), dedica-se aos estudos sobre o período, apresentando-
nos agora o livro A noção de propaganda e sua aplicação nos estudos clássicos. O caso
dos Imperadores romanos Septímio Severo e Caracala. Este livro é resultado de sua
tese de doutorado, defendida também na Universidade de São Paulo (USP), e tem como
objetivo perceber como uma série de imagens, símbolos e ações de propaganda foram
utilizadas pelos dois primeiros imperadores severianos a fim de consolidarem seus
governos, criando artifícios que os ligavam não apenas ao exército, mas também ao
Senado, à plebe de Roma e aos grupos provinciais.
Como suporte teórico-metodológico para compreensão dos elementos simbólicos
do poder, Gonçalves utiliza as reflexões sobre poder de cunho sociológico de Georges
Balandier e também as percepções sobre a construção monárquica de Luís XIV de Peter
Burke em A fabricação do Rei (1994). Na representação do rei francês a autora percebe
certas consonâncias com a construção da imagem imperial de Septímio Severo e
Caracala. No entanto, por falta de documentação disponível, a autora não analisa a
recepção das imagens em si, centrando-se em identificar como as imagens imperiais
eram construídas, como suas mensagens eram passadas e, algumas vezes, quais
elementos sociais eram atingidos. A autora também utiliza o conceito de
representações, dentro dos moldes do que é proposto pela Nova História Cultural e o
conceito de Estado de Teatro, utilizado por Burke tendo como referencial o antropólogo
Clifford Geertz. Em relação a esse último conceito, que visa “a comparação da arena
política como palco de espetáculos, e a atuação de homens públicos com aquela
fornecida pelos atores” (GONÇALVES, 2013, p. 14), a autora mostra como o mesmo
está presente na própria documentação da antiguidade romana, em Cícero e Dião
Cássio. Esta observação, a nosso ver, é algo muito importante de ser feito pelo
historiador da Antiguidade que não deve aplicar conceitos propostos diante de objetos
de estudo contemporâneos sem, no entanto, perceber suas possibilidades para o estudo
das sociedades antigas.
Para atingir seus objetivos, a autora desenvolve a análise de um grande repertório
de documentos de natureza variada, como textos escritos, inscrições, moedas e
monumentos. O livro está dividido em três capítulos, além da Apresentação, Prefácio
(de Norberto Guarinello, orientador de doutorado da autora) e Considerações finais.
No primeiro capítulo, Imagem e propaganda no estudo do início do período
severiano (193 a 217 d.C.), Gonçalves faz, inicialmente, um balanço historiográfico
sobre o conceito de Monarquia militar associado aos Severos e mostra que estes
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deveram de fato seu poder ao exército, mas não foram os primeiros imperadores a
buscarem apoio no segmento militar, sendo o apoio do Senado complementar ao das
tropas. A autora elenca novas abordagens e uma historiografia com visões inovadoras
sobre o período, destacando, entre outros, Anthony Birley (1971), Marcel Le Glay,
Jean-Loius Voisin e Yann Le Bohec (1991) e Jean-Michel Carrié e Aline Rousselle
(1999). Desta forma, a autora desenvolve argumentos contra a ideia dos Severos serem
uma Monarquia militar. Um deles é sobre os dispendiosos gastos destes imperadores
com os militares, tão acentuado nas fontes textuais, que a autora analisa criticamente.
Outro argumento defendido por Gonçalves, neste capítulo, é a apresentação de Septímio
Severo menos ligada ao exército e a uma carreira militar e mais próxima do aparato
jurídico de seu governo, tanto que é no período severiano que temos a ação reconhecida
de três juristas romanos muito conhecidos: Papiano, Paulo e Ulpiano. Depois apresentar
uma longa discussão teórica sobre o conceito de propaganda, Gonçalves (2013, p. 46)
define como o conceito de propaganda se operacionaliza na sua análise severiana:

[...] a construção e a difusão sistemática de mensagens, por intermédio


de vários suportes disponíveis, destinados a um público difuso (ou
vários grupos sociais que integram a sociedade imperial romana nos
governos de Septímio Severo e Caracala), e visando criar uma
imagem positiva de determinados fenômenos, articular uma imagem
do governante e estimular determinados comportamentos ligados à
adesão dos súditos a este governante.

Ainda no primeiro capítulo, a historiadora se propõe a discutir sobre algumas


formas de propaganda da era severiana, voltando especial atenção para a iconografia por
meio de estátuas que, segundo ela; eram adequadas ao tempo e ao espaço, variando,
portanto, com o passar dos anos de governo e idade do governante e com a região onde
foram encontradas. Analisa também as inscrições nas bases destas estátuas. Outro meio
de propaganda imperial eram as moedas, sendo as mesmas, para ela, úteis em conjunto
com outros meios. Lembremos que as moedas traziam elementos sobre a casa imperial,
cunhados em seus dois lados e chegavam primeiramente nas mãos dos soldados como
pagamento de seus soldos, mas também circulavam entre outros extratos da população,
levando a mensagem de propaganda política.
No segundo capítulo, As várias facetas das imagens imperiais de Septímio Severo
e Caracala, a autora começa analisando a divulgação da imagem de Severo ligada a de
Pertinax. Pertinax, a saber, foi um imperador cujo governo foi muito curto (oitenta e
sete dias), posterior a Cômodo e anterior a Septímio, mas que, no entanto, era
considerado pela tradição senatorial como um homem extremamente integro. Assim, ao

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associar-se a Pertinax e autointitular-se vingador de seu assassinato pela Guarda
Pretoriana, o imperador se ligava a sua imagem de integridade, especialmente em
relação ao Senado romano, o que ajudava a enfatizar a retomada de uma ordem
quebrada com as guerras civis que antecederam a dinastia severiana. Outra ação muito
importante feita pelos Severos, a fim de se mostrarem como continuadores da
tradicional política romana, foi a associação com os imperadores da dinastia que lhes
antecedeu, os Antoninos, o que é bem analisado no livro em questão. Também são
analisadas neste capítulo outras ações visando à legitimação severiana, tais como: a
imagem de formação da domus imperial e o papel da imperatriz Júlia Domna, esposa de
Septímio Severo, a divulgação da existência de uma concórdia interna no Império
romano, especialmente entre os sucessores de Septímio (Caracala e seu irmão Geta), a
realização de cerimônias e festas públicas, o desenrolar de um grande programa de
reformas nos monumentos romanos, a divulgação de sonhos premonitórios, oráculos e
presságios (omina imperii e omina mortis) e a vinculação da imagem imperial ligada a
de grandes generais romanos e heróis do passado grego e romano. Destaca a construção
das termas no período Severiano uma vez que as Termas de Caracala, cuja construção
foi iniciada com Septímio e finalizada com Caracala, foram as maiores de Roma até a
construção das Termas de Dioclesiano em 306. Estas termas reuniam pessoas de
diferentes extratos sociais de Roma, sendo as construções, por si só, uma forma de
propaganda imperial.
Para explicar como cada elemento funcionava enquanto forma de manipulação da
opinião pública a favor dos imperadores, a autora faz análises de diferentes tipos de
documentos e apresenta interessantes discussões conceituais e historiográficas, como a
respeito do conceito de concórdia no mundo antigo. Alguns das ações severianas
configuram-se como artifícios de legitimação política muito diferentes dos de nossa
contemporaneidade. Outras apresentam pontos que podem nos trazer certas
semelhanças, o que, a nosso ver, nos leva a uma interessante percepção dos feitos do
passado como um exercício de reflexão sobre as diferenças, algo importante que este
livro nos proporciona.
No terceiro e último capítulo, A contrapropaganda ou a obliteração das imagens
concorrentes, é desenvolvido um estudo sobre como as imagens dos opositores de
Septímio durante as guerras civis (Pescênio Nigro e Clódio Albino) e o opositor de
Caracala (seu irmão Geta), foram construídas também como contra-imagens na busca de
afirmar a imagem positiva de Septímio e Caracala. Uma das associações dos inimigos
que destacamos é como Septímio, apesar de ter nascido na África romana e ser casado
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com uma imperatriz síria, usou da associação de seu inimigo Nigro com o Oriente e
com os bárbaros. Para finalizar este capítulo é analisado o processo de damnatio
memoriae (danação da memória) de Geta por Caracala. Neste processo todas as imagens
e referências sobre uma pessoa eram apagadas por ordem do Senado (senatus
consultum) como uma espécie de castigo. Este ato é interpretado, no livro em questão,
recorrendo a Balandier e sua idéia de que: “A linguagem do poder estabelece uma
comunicação muitas vezes restrita, implica o segredo, exprime-se, por vezes, pelo
silêncio” (p.220). Sendo assim, é como forma de obter o silêncio sobre Geta que
Gonçalves interpreta a ação de Caracala.
A obra de Gonçalves conta ainda com uma extensa bibliografia sobre o Império
Romano severiano, fruto principalmente dos estágios de pesquisa da historiadora no
exterior, cuja consulta é imprescindível para estudantes desse contexto. O livro interessa
especialmente aos estudantes de História Antiga, área que tem crescido
consideravelmente no Brasil nos últimos anos, mas não apenas. Pela riqueza de
informações, pelo cuidado com o tratamento documental e pela operacionalização de
importantes conceitos envolvendo as facetas do poder, o livro interessa ainda a
professores e pesquisadores de outras áreas da História, mas também sociólogos,
antropólogos, cientistas políticos e outros estudiosos de áreas relacionadas.
Por fim, cabe-nos considerar que a autora é coordenadora regional do Laboratório
de Estudos sobre o Império Romano (LEIR-GO, UFG), colaborando com suas
pesquisas e de seus orientados (entre graduandos, mestrandos e doutorandos) para uma
nova interpretação do Império Romano e para o maior desenvolvimento da História
Antiga no Brasil.

Resenha recebida em 27/02/2014. Aprovada em 22/03/2014.

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