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O CONCEITO DE IDENTIDADE NACIONAL NA, ARTE MINEIRA DO PERIODO COLONIAL* Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira** RESUMO- Definido a partir de 1920 por Mério de Andrade ¢ os moderistas, 0 conceito de identidade nacional no chamado “‘barroco mineiro’’, tema ainda controverso na historiografia artistica brasileira, é fundamental para o estudo da questao da origi- nalidade da arte produzida no Brasil colonial face ds importacdes européias. O pre~ Sente artigo faz wn balanco da situacdo atuai da pesquisa relativa ao tema e propée novas abordagens e perspectivas de andlise. Unitermos: barroco mineiro ~ Brasil colonial ~ historiografia artitica brasileira — identidade nacional E fato geralmente estabelecido e aceito, mesmo fora do cfreulo restrito dos estudiosos da histéria da arquitetura e das artes plasticas no Brasil, que a arte mineira do perfodo colonial se destaca por caracterfsticas diferenciadas no quadro geral da arquitctura luso-brasileira da época. Com efeito, em mea- dos do século XVIII sao adotados na regiao os planos curvilineos de tradi- Go borromfnica, associados a uma exuberante decoragdo rococé, tanto no que se refere aos interiores, quanto as fachadas dos edificios religiosos. Neste contexto viveu e trabalhou Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, mestigo, doente e praticamente autodidata, reconhecido como o principal ar- tista luso-brasileiro da época, pela originalidade de seu génio criador, tanto no campo da arquitetura, quanto nos da escultura e relevos omamentais. (*) Retomamos e descnvolvemos neste artigo o texto da comunicagdo que apresentamos no “XXVI International Congress of the History of Art”, Washington, 10-15 de agosto de 1986, sob 0 tftulo de ‘Discussion du concept d'identité nationale dans Fart de Ia région de Minas Gerais/Brésil au XVIITe sitcle”. (*) Professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janciro ¢ Historiadora de Arte do SPHAN = Pr6-Mem6ria. Rev.Inst.Est Bras.,SP,30 : 117-128,1989 7 Depois da pesquisa pioneira de Rodrigo Ferreira Bretas em 1858,! fonte basica de informagées tanto sobre o Aleijadinho, seu objeto principal, quanto sobre a arquitetura e escultura mineiras setecentistas, constata-se um longo hiato na historiografia desses temas, indicador de um certo desinteres- se que pode ser relacionado ao preconceito antibarroco do neoclassicismo e ecletismos diversos. Como bem observou Fernando Correia Dias, foi so- mente a partir dos anos 20 do nosso século, que se iniciou no Brasil ‘‘o pro- cesso de revalorizagao critica do barroco mineiro’’,? tendo como marco ini- cial 0 conhecido artigo de Mario de Andrade, publicado em 1920 na Revista do Brasil, no qual j4 aparece de forma definida 0 ‘‘concito de identidade na- cional da arte mineira’’: Foi nesse meio oscilante de inconstAncias (Minas Gerais sete- centista) que se desenvolveu a mais caracteristica arte religiosa do Brasil. A igreja péde af, mais liberta das influéncias de Portugal, proteger um estilo: mais uniforme, mais original, que os que abrolhavam podados, dulicos, sem opiniao prépria nos dois outros centros. Estes viviam de observar o jardim luso que a miragem do Atlantico lhes apresentava continuamente aos olhos; em Minas, si me permitirdes; 0 arrojo da expressdo, o estilo barroco estilizou-se. As igrejas construfdas quer por portugueses mais aclimados ou por autéctonos algumas, prova- velmente, como o Aleijadinho, desconhecendo até o Rio e a Bahia, tomaram um cardter mais bem determinado e, poderfa- mos dizer, muito mais nacional.3 Considerando-se 0 surto de nacionalismo emergente que caracterizava o contexto politico e-cultural do pafs nas vésperas de celebrar o 1° centensrio da Independéncia, justificava-se plenamente esta busca de um “‘cardter na- cional”” na arte do passado levada a efeito pelos modemistas, paralelamente aos ideais de “retorno ao nacional’’ ou “valorizagao do nacional” na arte do presente, que constitufam preocupagées fundamentais dos promotores da “Semana de 1922”. A tese nacional de M4rio de Andrade filia-se portanto, em wiltima instfncia, a quase totalidade dos autores brasileiros (principal- mente mineiros e¢ paulistas) que nos sessenta anos seguintes dedicaram-se 4 pesquisa da arte colonial mineira, de Lourival Gomes Machado a Affonso vila, incluindo mesmo especialistas do estudo da arquitetura e das artes plisticas como 0 arquiteto Sylvio de Vasconcelos e o muse6logo Orlandino Seitas Fernandes. (1) BRETAS, Rodrigo José Ferreira. Tragos biogrificos relativos ao finado Anténio Francisco Lisboa, distinto escultor mineiro, mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho, Correio Oficial de Minas, Ouro Preto, n. 169 ¢ 170, 1858. Republicado diversas vezes, notadamente in: AN- ‘TONIO Francisco Lisboa, 0 Aleijadinho. Publicacées da Diretoria do Patrimdnio HistOrico Artistico Nacional, Rio de Janciro, (15):23-57, 1951. (2) Versobretudo: A REDESCOBERTA do barroco pelo movimento modemnista. Revista Barro- co, Belo Horizonte, (4):7-16, 1972. (3) ANDRADE, Mério Mornes de. Arte religiosa no Brasil. Revista do Brasil, Sio Paulo, 14(54):103, jun. 1920, 118 Rev Inst Est Bras_SP,30 : 117-128, 1989 Sao geralmente invocados como agentes determinantes do cardter ou identidade nacional desta arte fatores de ordem geogrdfica (afastamento do litoral, isolamento entre montanhas, clima frio) ou histérico-sociais como o processo répido de urbanizacdo, o autoritarismo do sistema administrativo gerando vocacio precoce de independéncia politica e ainda o modelo carac- teristico de estratificacao social, favorecendo ‘a ascensiio’ dos mesticos e a laicizagéo do culto religioso em conseqiiéncia das leis de interdigao das or- dens regulares na regifio. Nesta linha de reflexdo'0 socilogo Fernando Cor- reia Dias chega mesmo a estabelecer os fundamentos de uma “‘subcultura mineira’’, com tracos regionais fortemente acentuados, constituindo a mani- festagdo mais ‘‘artisticamente brasileira’ da civilizagio colonial do século XVIII e tendo como principal produto a arte que se convencionou chamar genericamente de ‘‘Barroco Mineiro”’.4 Adicionaimente, as pesquisas do musicdlogo Francisco Curt Lange e as do ensafsta e poeta Affonso Avila demonstraram que as manifestag6es do barroco mineiro ultrapassam os setores da arquitetura e das artes plasticas para abranger também os da miisica e literatura, tendo o segundo formaliza- do a aplicag4o /atu sensu do conceito a todo um “estilo de vida’’, gerador de um tipo de sensibilidade especifica, “uma maneira propria de ver e de sen- tir”, caracterfstica das populagées da antiga Capitania das Minas Gerais.5 Ha portanto um consenso firmemente estabelecido na historiografia ar- tistica brasileira com relagao a originalidade nacional da arte mineira sete- centista. Todavia, os tragos especfficos do fenémeno estilfstico propriamente. dito sao ainda mal definidos, nenhum dos autores citados tendo conseguido demonstrar de forma satisfatéria em que consistiria esta propalada originali- dade mineira na concepgdo e decoracao dos edificios religiosos, em face da producio de outras regiées brasileiras ou européias no mesmo perfodo. Por outro lado, a confrontagao dos textos de autores brasileiros com os de historiadores da arte estrangeiros que também analisaram a arquitetura mineira setecentista, como os franceses Germain Bazin, Victor Lucien Tapié e Yves Bottineau, o norte-americano Robert Smith ou o inglés John Bury, revela nesses tiltimos uma 6tica diversa. Com efeito todos eles omitem ou enunciam de forma restritiva a tese brasileira da originalidade nacional do barroco mineiro, tendo ao contrario como objetivos principais os de situar as manifestag6es desta arte no contexto geral da arte européia dos periodos bar- Toco € rococé e atribuir-lhe protétipos definidos. Partindo da constatagao dessa dualidade de vis6es, sem diivida instigante para o pesquisador da histéria da arte no Brasil, resulta essencial a elabora- Gao de uma sfntese complementar para uma visao totalizante do fenémeno, pois como observou André Chastel, a histéria da arte se faz geralmente em dois nfveis, um interna- cional e outro local. E preciso abragar o panorama geral para situar corretamente o detalhe, mas esse ultimo s6 pode ser es- (4) DIAS, Fernando Correia. O' movimento barroco. In: DIEGENES JUNIOR, Manuel (coord.). Histdria da cultura brasileira. Rio de Janciro, 1973. v. 2, p. 243-57. (5). Ver principalmente: AVILA, Affonso. Iniciacdo ao barroco mineiro. Sio Paulo, Nobel, 1984. . Restduos seiscentistas em Minas. Belo Horizonte, 1967.2 v. Rey Inst EstBrasSP,30 : 117-128, 1989 119

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