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ICONOGRAFIA

OLHANDO PARA O

OUTRO
Registro de 1893,
intitulado Canibais
carregando
Ihillandit seu
ut ariaspel
mestre, de
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84 | MAIO DE 2021
VERSÃO ATUALIZADA EM 08/07/2021

A partir de fotografias, pesquisadora


analisa fenômeno dos zoológicos humanos

Diego Viana

A
exibição de seres humanos como pode reconstruir muito do contexto e do subtexto
atração é reconhecida como um em que o registro visual surgiu.
episódio histórico que expressa o “Uma fotografia, por si só, não conta uma histó-
peso do racismo nos impérios colo- ria, mas ela dá ao pesquisador a oportunidade de
niais, ao longo do século XIX e até persegui-la”, afirma Koutsoukos. “É preciso olhar
meados do século XX. O estudo do o que está no retrato, notar a expressão e a pose do
fenômeno, que vem sendo tratado modelo, sua indumentária, os objetos e o arranjo
por meio do conceito de “zooló- de cena, mas também perceber o que não foi regis-
gicos humanos”, ganhou impulso trado, pensar no extracampo”, explica. À análise
em todo o mundo nas últimas duas formal de escolhas, como composição, cenário e
décadas e traz à tona um campo de pose, soma-se o estudo do contexto histórico, dos
práticas de dominação, classificação e estigmati- princípios científicos e das ideias sociais do perío-
zação do outro. Ao mesmo tempo, revela que os do. “Trabalhar com imagens é sempre um caminho
mecanismos dessas práticas mobilizavam o discur- multidisciplinar, englobando história, antropologia
so científico, o gosto pelo espetáculo e a aplicação e, claro, história da fotografia, já que essa mídia ser-
de novas tecnologias, em particular a fotografia. viu de instrumento para registrar diversos estudos
A partir de imagens produzidas no auge do perío- considerados científicos na época, para o registro
do dos zoos humanos, a historiadora da fotografia do mundo colonial e das exibições de pessoas, e pa-
Sandra Koutsoukos sistematiza no recém-lançado ra a produção de fotos-souvenir”, diz Koutsoukos.
Zoológicos humanos: Gente em exibição no tempo Para o livro, o ponto de partida foi um conjun-
do imperialismo (Unicamp) as vidas e as relações to de fotos encontrado na biblioteca pública de
de indivíduos exibidos como curiosidade e vistos Chicago, nos Estados Unidos, em 2007, durante
como objeto de estudo. Sua pesquisa, resultado de pesquisas sobre a Exposição Universal de 1893.
estágio pós-doutoral financiado pela FAPESP, trata “Foi quando notei os grupos colocados em exi-
não só dos fenômenos mais claramente inspirados bição, em particular os 67 daomeanos [oriundos
em jardins zoológicos, mas também dos “espetá- do atual Benin] instalados em uma vila ‘nativa’ e
culos de variedades” e dos pacientes de hospitais exibidos como o povo mais ‘primitivo’ da mostra”,
CORTESIA DA LIBRARY OF CONGRESS, WASHINGTON

apresentados à indiscrição do público. recorda. No acervo da Biblioteca do Congresso,


Na segunda metade do século XIX, a fotogra- em Washington, havia uma que retratava quatro
fia tornou-se uma ferramenta comum a vários daomeanos carregando uma rede e, sentado nela,
profissionais para registrar o próprio trabalho: o um organizador da exposição. “O homem branco
cientista que media pessoas e seus crânios para estava sendo carregado da mesma forma que vemos
classificá-las segundo aquilo que considerava raças; em nossa iconografia dos tempos da escravidão,
o empresário de espetáculos que buscava atrair o quando os escravizados carregavam os senhores.
público por meio de cartões-postais; o médico que O título dado foi: Canibais carregando seu mestre”.
catalogava casos incomuns. Com esse material de O zoológico humano e práticas semelhantes fre-
documentação ou publicidade, a pesquisa histórica quentemente tratadas sob a mesma designação

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Imagem de grupo
de indígenas que
integrou a Exposição
Antropológica
Brasileira, no Rio
de Janeiro, em 1882

compõem uma extensa tradição de “fazer da al- O Brasil não passou ao largo do fenômeno. Em
teridade humana um troféu”, segundo o historia- 1882, a Exposição Antropológica Brasileira, no Rio
dor italiano Guido Abbattista, da Universidade de de Janeiro, contou com a exibição de um grupo de
Trieste, na Itália. Exploradores europeus que che- indígenas conhecidos à época como Botocudos.
garam às Américas a partir do fim do século XV ha- Os sete indivíduos foram levados do aldeamento
bitualmente levavam indivíduos e famílias inteiras Mutum, na região do rio Doce, à então capital do
do continente para exibi-los em seus países natais. Império e colocados à mostra, com grande afluên-
Um dos casos mais conhecidos é o de Sa- cia de público. Foram submetidos a testes antro-
rah Baartman (1789-1815). Integrante da etnia pométricos e, segundo relatos da época, emagre-
Khoikhoi, da África do Sul, Baartman foi toma- ceram a olhos vistos.
da como objeto tanto pelo mundo do espetáculo Diferentemente das exposições da Europa, no
quanto pela ciência: exibida em Londres e Paris, caso brasileiro não se tratou da representação do
suscitou o interesse de naturalistas na França e império colonial erguida em continentes distan-

O
foi submetida à dissecação após sua morte. tes. O Brasil, independente havia meros 60 anos,
expunha residentes de seu próprio território. “Aí
“zoológico humano” em seu sentido surgem as contradições da exibição de um ‘outro’
mais literal, ou seja, com a exibi- interno”, diz a cientista social e antropóloga Marina
ção de indivíduos, famílias e grupos Cavalcante Vieira, da Universidade do Estado do
maiores em espaços elaborados para Rio de Janeiro (Uerj). Na Europa, os espetáculos
simular seus ambientes originais de trabalhavam com a oposição entre “civilizados”
vida remete sobretudo ao alemão e “primitivos”. Já no Brasil, a Exposição Antro-
Carl Hagenbeck (1844-1913). For- pológica “buscou construir a imagem de um país
necedor de animais selvagens para moderno, opondo-se aos Botocudos, tidos como
jardins zoológicos e circos, Hagen- bravios, atávicos, avessos à civilização”.
beck é conhecido como o criador A antropóloga assinala que a mesma exposição Cartão-postal de 1899
desses espaços “modernos”, em que foi apresentada em Londres, no ano seguinte, com registra exibição
as exibições se dão em ambientes simulados, em impacto sobre a opinião pública brasileira, que se em feira de diversões
vez de jaulas. Em 1874, no entanto, Hagenbeck foi 2

um passo além: exibiu em Hamburgo populações


da Lapônia (Samis) e de Samoa.
Dois anos mais tarde, o naturalista Albert Geof-
froy Saint-Hilaire (1835-1919) organizou “espetá-
culos etnológicos” no Jardim da Aclimatação, em
Paris, com esquimós e nubianos levados do Sudão.
O sucesso de público incentivou a realização de
30 eventos desse tipo na cidade até 1912. Segundo
Abbattista, essa modalidade de exibição introduziu
novas formas estéticas e um aspecto de racismo
típico da época, mas “todos os elementos princi-
pais têm origem no início do período colonial: a
reificação dos seres humanos, seu uso para satis-
fazer a curiosidade, mas também como evidência
de discursos ideológicos, religiosos ou seculares,
e como troféus a serem exibidos em procissões”,
disse, em entrevista a Pesquisa FAPESP.

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incomodou com o fato uma arte nascente no final do século XIX, centra-
de o país ser represen- da nas tecnologias da imagem: o cinema. “Os zoos
tado por meio dos in- humanos eram espetáculos de massa consolidados.
dígenas. “A imagem é O que os pioneiros do cinema fazem é apontar suas
cindida. Se a exposição, câmeras para temas que já chamavam a atenção
quando acontece no do público”, observa.
Rio de Janeiro, cria um “Desde a origem, há uma simbiose com os zoo-
espelho a partir do qual lógicos humanos, que antecipam narrativas, rotei-
o Brasil passa a se ver ros e cenografias posteriormente explorados pelo
em oposição aos Boto- cinema. As turnês de exibição de trupes estrangei-
cudos, a exibição lon- ras permitiam ao público viajar sem sair de casa. A
drina apresenta um se- invenção do cinema radicaliza essa possibilidade”,
gundo espelho que per- afirma, acrescentando que a crise econômica após a
turba a autoimagem: ‘O Primeira Guerra Mundial, na Alemanha, reduziu o
que pensarão de nós lá público das exposições e levou empresários e trupes
fora?’”, observa. a migrarem para a produção cinematográfica, “in-
A justificativa apre- corporando os conhecimentos de seu antigo métier”.
sentada para exibir se- O fenômeno dos zoológicos humanos é asso-
res humanos como atra- ciado ao período anterior à Primeira Guerra, o
ção era, em geral, a difu- auge do colonialismo e época de vastas exposições
são do saber. As plateias universais. No entanto, ainda em 1958 uma capital
europeias eram convi- europeia testemunhou um episódio: Bruxelas, na
dadas a ver como aque- Bélgica. Com o protesto de estudantes congoleses,
les povos e indivíduos a exposição foi rapidamente desmontada.
exóticos viviam e com A rigor, esse não foi o último caso. Nas últimas
que se pareciam. “Os décadas, uma série de episódios que guardam se-
zoológicos humanos melhança com as antigas exibições foi registrada.
Souvenir de Abomah: eram ambientados em teatros, circos, museus, exi- Em 2005, em Augsburg, na Alemanha, diferentes
a mulher mais bições universais e jardins zoológicos, mas anuncia- grupos étnicos foram apresentados em uma “vila
alta do mundo
dos não só como forma de entretenimento. Também africana”. Em 2007, em Seattle, nos Estados Uni-
diziam ser fontes de conhecimento”, observa Vieira. dos, a seção do jardim zoológico que tratava da
Segundo a antropóloga, a indistinção entre ciên- savana também apresentou uma aldeia artificial
cia e espetáculo não é uma avaliação feita poste- com membros da etnia Massai. Casos semelhantes
riormente ou uma abstração, mas um elemento ex- ocorreram no Congo e na Tailândia.
plorado pelos próprios organizadores dos eventos: Para Koutsoukos, esses episódios mostram que
nos registros de exposições em arquivos alemães, “a história contada em Zoológicos humanos não
encontram-se relatórios de visitas escolares às ex- faz parte de um passado longínquo”. A pesquisa-
posições de pessoas de Hagenbeck. dora considera que sua investigação é um convite
FOTOS 1 JOAQUIM AYRES / MUSEU ETNOGRÁFICO DE BERLIM  2 E 3 AUTOR DESCONHECIDO / WIKIMEDIA COMMONS

Apesar de não terem o mesmo componente colo- à reflexão sobre “a relação entre o racismo de ho-
nial e racial, os casos de “espetáculos de aberrações” je e o daquela época”. Essa reflexão é também um
e de patologias apresentam um funcionamento se- elemento de fundo no interesse que as ciências
melhante. Koutsoukos cita a história de Joseph Mer- humanas têm demonstrado pelo tema nos últimos
rick (1862-1890), acometido de neurofibromatose, 20 anos, segundo Abbattista. O foco principal tem
que viria a ser retratado no filme Homem elefante sido o debate sobre o legado colonial. Dois marcos
(1980), de David Lynch. Merrick era exposto em importantes são franceses. Em 2004, foi publicado
freak shows da Inglaterra, mas suas apresentações pela La Découverte o livro Zoos humains: Au temps
foram consideradas de excessivo mau gosto e a des exhibitions humaines (Zoos humanos: No tempo
polícia os interrompeu. Instalado em um hospital das exposições humanas), editado por um grupo de
de Londres, passou a ser exibido para médicos e historiadores de diversas universidades do país. Em
visitado por integrantes da alta sociedade, curiosos 2011, ocorreu a exposição A invenção do selvagem:
com suas deformações. “Na saída, assim como nos Exposições, no museu do Quai Branly, em Paris. n
shows de aberrações, o visitante podia adquirir uma
foto-souvenir”, comenta Koutsoukos. Projeto
Em sua tese de doutoramento, “Figurações pri- Exibindo gente: Espetáculo e ciência em fotografias das exposições
mitivistas, trânsitos do exótico entre museus, ci- do século XIX e início do XX (nº 08/56372-5); Modalidade Bolsa de
Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Iara Lis Franco Schiavinatto
nema e zoológicos humanos”, defendida em 2019 (Unicamp); Beneficiária Sandra Sofia Machado Koutsoukos; Investi-
na Uerj, Vieira também aborda os zoos humanos mento R$ 190.829,78.
a partir da imagem. A antropóloga demonstra a O livro e os artigos mencionados nesta reportagem estão listados
existência de fortes vínculos entre as exposições e na versão on-line.

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