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- Boletim Bibliográfico 4 - O Escritor do mês - fevereiro - Luís Sepúlveda -

“[s vezes, os excessos de submiss~o diante do poderoso ativam os mecanismos de resistên-


cia que dignificam a pessoa humana” - Luís Sepúlveda, Últimas Notícias do Sul. Luís Sepúlve-
da é um dos grandes escritores da América Latina e tem uma obra interessante e rica em
memória daquilo que o move como cidad~o. De estudante do Maio chileno de 69, a compa-
nheiro e guarda pessoal de Salvador Allende, a guerrilheiro na Nicar|gua, a preso político, a
ativista da Amnistia Internacional, o escritor tem tido uma vida cheia de experiências, emo-
ções e de recordações de um tempo histórico violento, mas rico em vivências.
A sua obra é um testemunho de uma estética que procura na vida construir uma ética sobre
os valores humanos e sobre os sonhos de minorias e especialmente sobre um território que
é o Chile. A Patagónia, imenso território que atravessa a Argentina e o Chile, tem um clima
difícil, extremo, onde o vento e o gelo isolam os espaços desse território. É um dos últimos
locais da Terra que envolve os aventureiros e os sonhadores pela viagem, pela descoberta,
pela caminhada na respiraç~o de pessoas e de uma cultura própria e n~o muito divulgada.
Território de lendas, sedutor nas possibilidades de descoberta, berço dos índios Pehuen-
ches, Mapuches, Tehuelches, Onas e Yamanas, que foram sucessivamente dizimados pela
civiliza-ç~o das armas e das doenças. Dotada de uma costa de difícil acesso, onde os ventos
do Pacífi-co acostam com força, nela Magalh~es também conheceu grandes dificuldades de
navegaç~o. Território ainda em estado selvagem, naquilo que este adjetivo tem de belo por
estar mais perto da natureza inicial das coisas, foi tardiamente explorado e é em certo senti-
do indom|vel. A Patagónia é um território de dimensões continentais, com paisagens mile-
nares, esculpidas pelos elementos naturais, é um santu|rio { evas~o, dos que ainda acredi-
tam que a natureza do homem reside, como dizia Pascal, “no movimento”. Encontramos na
Patagónia os desenhos coloridos da estepe semi-desértica, onde os Andes projetam as cores
das baías azuladas, por lagos que fazem deslizar icebergues numa graciosidade selvagem. É
nessa Patagónia dos p}ntanos rodeados de vulcões, das |rvores desenhadas pelos elemen-
tos naturais, dos bosques e das praias de pinguins, que acedemos a uma das mais belas pai-
sagens da Terra. Luís Sepúlveda d|-nos, nas suas p|ginas, as memórias de um território, os
sonhos de pessoas que face aos elementos criaram uma cultura generosa de hospitalidade.
Uma cultura em extinç~o e a sua particular respiraç~o é o que Luís Sepúlveda nos oferece
em livros fascinantes como Patagónia Express, Mundo do Fim do Mundo ou Últimas Notícias
do Sul.

“Enquanto espero, penso naqueles dois gringos velhos que


moveram os fr|geis fios do destino e conseguiram que Bruce
Chatwin e eu nos encontr|ssemos certo meio-dia invernoso na
esplanada do café Zurich de Barcelona. Um inglês e um chile-
no. E, como se n~o fosse suficiente, dois tipos com pouco cari-
nho pelos fonemas «p|tria». O inglês, nómada, porque n~o po-
dia ser outra coisa, e o chileno, exilado por idênticas razões.
Demónios! Alguém deveria proibir este tipo de encontros, ou
pelo menos garantir que n~o aconteçam na presença de meno-
res. O encontro, organizado pelo editor espanhol de Bruce, era
ao meio-dia e fui com absoluta pontualidade. O inglês chegara
primeiro; estava sentado diante de uma cerveja a ler um dos perversos livros de banda dese-
nhada de El Víbora.
Para lhe chamar a atenç~o dei umas pancadinhas na mesa. O inglês levantou a cabeça e be-
beu um gole antes de falar. - Um sul-americano pontual é qualquer coisa que consigo supor-
tar, mas um tipo que depois de viver v|rios anos na Alemanha vai a um primeiro encontro
sem trazer flores é simplesmente intoler|vel. - Se quiseres volto dentro de quinze minutos e
com flores - respondi. Com um gesto indicou-me uma cadeira. Sentei-me, acendi um cigarro,
“Do conglomerado de crenças que compõe a fé de um e fic|mos a olhar um para o outro sem dizermos palavra. Ele sabia que eu sabia dos dois
escritor, ele cria sobretudo numa delas: naquela que nos gringos, e eu sabia que ele sabia dos dois gringos. - És da Patagónia? - perguntou, quebrando
adverte do perigo de confundir a vida que flui nas p|gi- o silêncio. - N~o, de mais a norte. - Melhor. N~o se pode confiar nem num quarto daquilo que
nas de um livro com a outra, a que fervilha do outro lado os Patagónicos dizem. S~o os maiores mentirosos da Terra - comentou, pegando na cerveja.
das capas. Quando lemos ou escrevemos, realizamos um Senti-me obrigado a devolver o toque. - É que aprenderam a mentir com os Ingleses. Conhe-
ato de fuga, a mais pura e legítima das evasões. Delas ces as mentiras que Fitzroy inventou ao pobre do Jimmy Button? - Uma a uma - disse Bruce,
saímos mais fortes, renovados e até melhores”. e deu-me a m~o. A cerimónia de apresentaç~o acabava satisfatoriamente e desat|mos a fa-
lar daqueles dois gringos velhos que talvez nos observassem de algum lugar desconhecido
Últimas notícias dos sul /Luis Sepúlveda, Daniel Mordzins- nos mapas, contentes por serem testemunhas daquele encontro. “
ki ; trad. Henrique Tavares e Castro. - 2ª ed. - Porto : Porto
Editora, 2012. - 153, *6+ p. : il. ; 20 cm. - Tít. orig.: Últimas Patagónia Express: apontamentos de viagem / Luis Sepúlveda ; trad. Cristina Rodriguez, Artur
noticias del sur. - ISBN 978-972-0-04369-6 Guerra. - 2ª ed. - Lisboa : Porto Editora, 2011. - 157, *1+ p. : il. ; 20 cm. - Tít. orig.: Patagonia ex-
press. - ISBN 978-972-0-04090-9
-- Boletim
Boletim Bibliográfico
Bibliográfico 2
4 -- O
O Escritor
Escritor do
do mês
mês -- novembro
fevereiro -de
Luís
2019
Sepúlveda
- Sophia- -

“A literatura transformou-se na minha profissão. Primeiro sou um cidadão e depois sou


um escritor. Como cidadão veiculo-me de um ponto de vista rigorosamente ético para
com a vida e como escritor vinculo-me com a literatura de um ponto de vista muito esté-
tico. Mas sou as duas coisas, escritor e cidadão. E tento dar à literatura a mesma ética
com que me confronto com a vida e tento dar à vida a mesma carga estética que me con-
fronto com a literatura. Tenho claro muitas coisas. Tenho claro que sou um poeta. Todos
os meus livros têm uma carga poética muito forte. Sou um cidadão e sou um escritor. A
literatura fundamentalmente tem que possibilitar ao leitor aquilo que se chama “as pos-
sibilidades de evasão”. Quando lemos um livro desligamo-nos da realidade e quando re-
gressamos voltamos à realidade em melhores condições, um pouco mais inteligentes, um
pouco mais alegres. Enfim, essa é a grande função do livro. Comprometemo-nos sempre
como cidadãos, não como escritores. Escrevo acima de tudo pelo enorme prazer da escri-
ta. Não procuro os temas, espero que eles cheguem até mim. Ao escrever aprendo sem-
pre algo novo. Sobre o que estou a escrever ou sobre mim. Isso é a coisa mais fascinante
do ofício da escrita. Tento ser muito rigoroso com os meus livros. Gosto de uma lingua-
gem com grande precisão, gosto de escrever com frases precisas, gosto que os meus li-
vros tenham uma musicalidade e penso que isso tenha atraído os leitores. E também por-
que os meus livros são livros que passam entre gerações”. in Encontro de Escritores

"Sonhava que os livros me falavam na sua linguagem silenciosa, me mostravam cada uma
e todas as palavras impressas nas suas páginas e exigiam de mim uma promessa: a de me
transformar no fiel depositário, no zelador, no amoroso protetor das palavras. E eu pro-
metia fazer com que nunca perdessem o seu valor intrínseco, a sua capacidade de nomear
todas as coisas e, com isso dar-lhes existência”. (…)

O poder dos sonhos / Luis Sepúlveda ; trad. Henrique Tavares e Castro. - 3ª ed. - Porto :
Asa II, 2009. - 119, *10+ p. ; 20 cm. - (Asa literatura). - Tít. orig.: El poder de los sueños. -
ISBN 978-972-41-4870-0

“Daí sai o mais austral dos caminhos-de ferro, o verdadeiro


Patagónia Express, o qual, depois de duzentos e quarenta qui-
lómetros de andamento que unem cidades como El Zurdo e
Bellavista, chega a Rio Gallegos, na costa atlântica. O comboio,
formado por duas carruagens de passageiros e dois vagões de
carga, é arrastado por uma velha locomotiva a carvão fabrica-
da no Japão no princípio dos anos trinta. Cada carruagem de
passageiros tem dois longos bancos de madeira que a percor-
rem de uma ponta a outra. Numa delas há um fogão a lenha
que os passageiros têm de ir alimentando e, por cima dele, um
quadro com a imagem de Nossa Senhora de Luján.”

Patagónia Express: apontamentos de viagem / Luis Sepúlveda ; trad. Cristina Rodriguez,


Artur Guerra. - 2ª ed. - Lisboa : Porto Editora, 2011. - 157, *1+ p. : il. ; 20 cm. - Tít. orig.: Pa-
tagonia express. - ISBN 978-972-0-04090-9

Ficha Técnica
Redação: Equipa da Biblioteca
Biblioteca: Agrupamento de Escolas António Rodrigues Sampaio
Periodicidade: Mensal (fevereiro.2020)
Distribuição/Publicitação: Redes digitais

(Afixação na Biblioteca / Plataformas digitais)

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