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Boletim Bibliográfico - O 1.

º Modernismo - Fernando Pessoa e Almada Negreiros

1. A sociedade em Portugal nos finais do século XIX


“Somos portugueses que escrevem para a Europa, para toda a civili-
zação; nada somos por enquanto, mas aquilo que agora fizermos “Pertenço a uma geração que ainda está por vir, cuja alma não conhece já, realmente, a
será um dia universalmente conhecido e reconhecido. (…)A uma sinceridade e os sentimentos sociais". (Fernando Pessoa, Orpheu, Nº1)
arte assim cosmopolita, assim universal, assim sintética, é evidente
que nenhuma disciplina pode ser imposta, que não a de sentir tudo A História contemporânea portuguesa foi marcada por um conjunto de acontecimen-
de todas as maneiras, de sintetizar tudo, de se esforçar por de tal tos que criariam no país profundas dificuldades de arranque industrial e de construção
modo expressar-se que dentro de uma antologia da arte sensacio- de uma sociedade moderna. Na 1ª metade do século XIX, houve uma grave crise do in-
nista esteja tudo o que de essencial produziram o Egipto, a Grécia, dústria e do comércio, agravada pelas invasões francesas, pela ida da corte para o Brasil,
Roma, a Renascença e a nossa época. A arte, em vez de ter re- pela perda do exclusivo do comércio com o Brasil e pela crescente influência da econo-
gras como as artes do passado, passa a ter só uma regra - ser mia inglesa nos mercados portugueses. Até 1850, falharam muitas das ideias de industri-
alização para o país.
a síntese de tudo."
Na 2ª metade de Oitocentos, a Regeneração tentou modernizar o país através de um
(Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação,
conjunto de planos de reforma educativa, fomento industrial e novas vias de comunica-
p.124) ção. É o país que Eça nos deu nos seus romances e artigos de opinião. No final de Oito-
centos, Portugal era predominantemente agrícola, com um défice acumulado por um
maior número de importações e por uma indústria pouco competitiva em quantidade e
qualidade. O Estado recorria a frequentes aumentos de impostos. A crise económica e
financeira de 1890 veio juntar-se ao Ultimato Inglês para consolidar a ideia de uma crise
da Monarquia. No início do século XX em Portugal há um confronto entre um partido re-
publicano em ascensão e as posições monárquicas em queda de influência na sociedade.
Foi neste contexto que o regicídio e a implantação da República criaram focos de es-
perança para uma sociedade mais desenvolvida. Registaram-se sinais de profunda divisão
na sociedade, ainda dominantemente rural e sem grupos sociais capazes de uma mudan-
ça de fundo. É com este enquadramento e com a agitação social e política da 1ª Repúbli-
ca que as ideias do Modernismo tentam, pela Arte e pela Literatura, romper com um Por-
tugal antigo e propor uma nova ideia sobre o país e sobre o mundo. Elementos essenciais
deste 1º Modernismo foram diferentes artistas como os pintores Santa-Rita, Amadeo de
Souza-Cardoso, Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa.

2. Arte e Sociedade
As ideias do futurismo e do sensacionismo organizaram os dois números da Orpheu,
revista que, em 1915, procurou agitar a sociedade portuguesa. A Orpheu foi a expressão
do movimento modernista, uma ideia nascente de um Portugal Futurista. Procurou res-
ponder esteticamente a um país em convulsão social, uma 1ª República em grandes difi-
culdades com a sua instabilidade política, com as suas ideias de anticlericalismo e tam-
bém uma ideia de nacionalismo que atravessa esses tempos.
A Orpheu apresentou-se como uma estética de rutura para afirmar, pelas ideias, pela
cultura, pela arte e pela literatura, uma forma esclarecida e criativa de pensar o País. A
Orpheu tentou canalizar os movimentos vanguardistas que chegavam da Europa e foi,
sem dúvida, um grande objeto cultural que sintetizou a estética dos seus criadores e in-
corpora as ideias do seu tempo, o Modernismo.
No início do século XX, o Modernismo iniciou uma abordagem nova ao que deveria ser
a Arte. Movimento introduzido em Paris, centro de uma vanguarda cultural europeia,
onde diferentes figuras experimentavam ideias e experiências, criando correntes estéti-
cas que mudaram a cultura no século XX. O Modernismo português nesta sua primeira
fase organizou-se à volta das chamadas Vanguardas. Acreditavam que tinham um papel
histórico de romper com o passado e inventar um futuro, criando um mundo novo. Os
seus valores são de luta contra a tradição e futurista.
A geração do Orpheu foi influenciada pela arte que veio de França e que logo na ex-
posição de 1905, no salon d’ Automne introduzia novas formas de expressão e criação e
que deu lugar a diferentes correntes dentro da arte europeia. A cor expressava de forma
intensa uma emoção, sobrepondo-se muitas vezes sobre a forma. A correspondência
Ficha Técnica: entre o representado e o real deixava de ser importante. A afirmação do mundo das má-
Redação: Equipa da Biblioteca quinas, o sentimento do indivíduo, as manchas de cores contrastantes, ou a introdução
Biblioteca: (Aears) - Agrupamento de Escolas António Rodri- de materiais de uso do quotidiano, abria portas a outras formas de expressão, o futuris-
gues Sampaio mo. O apelo a uma libertação do pormenor representativo, às emoções fez surgir o Abs-
tracionismo. A par destas correntes, destaca-se também o Futurismo desenvolvido em
Periodicidade: Mensal
Itália por Filippo Marinetti, em que se rejeita o passado e se glorifica o futuro pela ação
Distribuição/Publicitação: Redes digitais
das máquinas, onde a velocidade é um culto. Todo este enquadramento influenciou Al-
(Afixação na BE / Plataformas digitais) mada Negreiros como artista plástico e Fernando Pessoa como poeta.
Boletim Bibliográfico - O 1.º Modernismo - Fernando Pessoa e Almada Negreiros

Almada Negreiros foi um dos artistas do século XX que esteve ligado ao 1.º Modernismo. Fer-
“Atravessa esta paisagem o meu sonho de um porto infinito nando Pessoa também dele participou, nomeadamente através da Revista Orpheu, onde foi
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios colaborador, tendo escrito alguns textos para essa importante revista.
Que largam do cais arrastando nas aguas por sombra “Retrato de Fernando Pessoa” de Almada Negreiros é o título de dois quadros pintados por Al-
Os vultos ao sol daquelas arvores antigas... mada Negreiros. O primeiro quadro é de 1954 e foi pintado para o restaurante Irmãos Unidos,
que era um antigo ponto de encontro da geração do Orpheu. O segundo quadro é de 1964 e foi
O porto que sonho é sombrio e pálido realizado, a partir de uma encomenda da Fundação Calouste Gulbenkian. O segundo quadro
E esta paisagem é cheia de sol deste lado... representa a imagem invertida do representado no primeiro quadro. Almada Negreiros já tinha
Mas no meu espirito o sol deste dia é porto sombrio pintado a figura de Fernando Pessoa por duas vezes, uma na primeira década do século XX, jus-
E os navios que saem do porto são estas arvores ao sol... tamente em 1913 e outra nos anos trinta, em 1935. A primeira para Exposição dos Humoristas e
a segunda, aquando da morte do poeta, publicada no Diário de Lisboa.
Liberto em duplo, abandonei-me da paysagem abaixo... “Retrato de Fernando Pessoa” é um duplo quadro de grande importância por diversos moti-
O vulto do cais é a estrada nítida e calma vos. Em primeiro lugar pelo grande valor de Fernando Pessoa como poeta e de Almada Negrei-
Que se levanta e se ergue como um muro, ros como um importante artista. “Retrato de Fernando Pessoa” é na obra de Almada Negreiros
E os navios passam por dentro dos troncos das arvores que foi extensa e diversificada, uma das suas mais importantes criações. Quando os quadros
Com uma horizontalidade vertical, foram produzidos a geração do Orpheu já não existia, o que também lhe dá a importância de
E deixam cair amarras na agua pelas folhas uma a uma dentro... religar duas gerações na arte em Portugal no século XX.
O quadro apresenta-nos algumas características curiosas. Fernando Pessoa aparece sentado
Não sei quem me sonho... a uma mesa num lugar a que ficou especialmente ligado, podendo ser “o Martinho da Arcada”,
Súbito toda a agua do mar do porto é transparente ou “a Brasileira do Chiado” e na mesa o número dois da revista do Orpheu. Na representação do
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse poeta o olhar revela uma determinada fragilidade no olhar, onde se percebe um sentido de in-
desdobrada, trospeção, de pensamento, onde a emoção não se pressente e com a curiosa apresentação de
Esta paisagem toda, renque de arvores, estrada a arder em uma figura que se assemelha com um arlequim. O quadro apresenta-se-nos como um olhar do
aquele porto, poeta parado em direção a um pensamento, onde se vislumbra uma atmosfera de pouca tran-
E a sombra de uma nau mais antiga que o porto que passa quilidade.
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
Fernando Pessoa criou um conjunto de figuras poéticas, os seus heterónimos com caracterís-
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
ticas diversas no seu olhar sobre o mundo e a sociedade. Um dos poemas de Fernando Pessoa,
E passa para o outro lado da minha alma…”
“Chuva Oblíqua” conduz-nos a algumas das ideias que o quadro de Almada Negreiros expressa.
Se lermos Chuva Oblíqua e observarmos alguns dos detalhes do quadro vemos a ideia do in-
“Chuva Oblíqua”, in Poemas Interseccionistas de Fernando Pes-
terseccionismo que se apresenta de modo comum.
soa, 1914, in Orpheu 2, junho de 1915, pp. 160-161.
No quadro encontramos essa ideia (interseccionismo) através dos pontos que fazem essa
intersecção e que são apoiados pela luz de tons quentes. A luz é marcada pelos tons alaranjados
que se interpõem no espaço onde aparece a figura de Fernando Pessoa. Essa luz desdobra-se
em outras cores, como os vermelhos, ou os amarelos. A estrutura pictórica é também marcada
por zonas de sombras, com tons acastanhados e vermelhos escuros. Existem ainda outras tona-
lidades com tons de cinzento e de azuis que marcam as zonas onde se definem a luz e a cor. E
neste tons encontramos objetos como o açucareiro, os punhos da camisa, a chávena do café ou
a folha de papel. Todo o quadro é construído segundo a ideia de uma conceção geométrica do
espaço, onde se cruzam planos quadriculados de linhas perpendiculares com as linhas diagonais
que se cruzam no pavimento em ladrilho.
O poema destacado enquadra-se com as ideias expressas no retrato, pois nos dois, as ideias
de interseccionismo estão presentes de diversos modos. Nos dois vemos as ideias do futuris-
mo, com as sobreposições dinâmicas e a confluência de um mundo exterior em diálogo com
um eu interior. Dessa contemplação e intersecção de paisagens surge a fragmentação dos pla-
nos, que no poema é muito clara.
Fonte: A arte em Portugal no século XX / José-Augusto França. 4ª ed. - Lisboa : Livros Horizonte,
2009.

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