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(1859-1861)
1
Doutoranda em História Social (Universidade Federal do Ceará). Este artigo conta com financiamento
do Programa de Orientação em Operacionalização da Pós-Graduação Articulada à Graduação (Propag).
poder e influência nas disputas nacionais por novos territórios, produtos e mercados em
plena era industrial.
Os produtos trazidos no retorno à Corte foram objeto de várias exposições
públicas, tendo sido incluídos na mostra de produtos nacionais levada para a Exposição
Universal de 1862, em Londres de pesquisas ulteriores e na formação de coleções de
animais, plantas, minerais e artefatos indígenas. O diário de viagem, assim como outros
escritos do botânico, permaneceu em posse da família2 e depois transferido para a
Biblioteca Nacional, com acesso restrito a pesquisadores.
Considerada a primeira viagem científica composta exclusivamente por
brasileiros, a Comissão Científica reuniu alguns dos intelectuais e naturalistas mais
renomados da época, participantes ativos de uma comunidade acadêmica que vinha se
estabelecendo no país ao longo do século XIX, apoiada em redes institucionais de
ensino, pesquisa, belas-artes e formação de coleções arqueológicas e do mundo natural,
abertas e/ou mantidas pelo mecenato do governo, num processo iniciado com a
instalação da Corte joanina na colônia americana e seguida após a independência por
seus descendentes, Pedro I e Pedro II. Por seu turno, tal política de fomento era
associada ao estabelecimento de novas nações e nacionalismos no cenário mundial,
tanto na Europa quanto nas antigas regiões coloniais, tendo na história natural um braço
estratégico importante para reforçar a posse de novos territórios e para a descoberta de
materiais e técnicas que ampliassem os ganhos na Revolução Industrial em curso.
Aos perigos e incômodos próprios da experiência do deslocamento,
somavam-se na experiência travada durante a viagem ao Ceará os desgostos diante das
suspeitas locais, das desarmonias entre os companheiros de viagem, dos repasses de
verba em atraso, da incompreensão ou mesmo da distorção da missão exploratória a ser
empreendida nos sertões. Mas Freire Alemão escreve, malgré tout. Redigidos de forma
meticulosa e disciplinada, seus escritos não tencionam apenas “atravessar o serão das
2
No suplemento ao catálogo Manuscritos do Botânico Freire Alemão, consta que em 29 de novembro de
1913 a viúva de Freire Alemão, Maria Angélica, vendeu por 1:548$000 parte da documentação
pertencente ao botânico (correspondência ativa e passiva, documentos biográficos e papéis da expedição
ao Ceará). Já a sobrinha Maria Freire Alemão doou uma coleção de escritos botânicos em 28 de dezembro
de 1947. Outros documentos e desenhos foram adquiridos, mas sem identificação da origem. In Anais da
Biblioteca Nacional, vol. 114, 1994, p. 199.
noites”,3 mistura de dever burocrático e válvula de escape da realidade circundante.
Ao englobar o público e o privado, sem deixar claro onde estaria a fronteira entre eles
ou se esta existe de fato, o diário atende a diversas funções em simultâneo: pode ser
trincheira ou anteparo, mas ao mesmo tempo via de acesso, ponto de comunicação
com os fragmentos contraditórios de um mundo em princípio estranho.
A prática da composição diarística, seja como exercício de introspecção e
autoanálise, seja como registro ditado pelas demandas da pesquisa de campo, tinha
alcance e difusão entre personagens tão díspares quanto irreconciliáveis no século XIX,
desde exploradores de terras distantes, mocinhas casadoiras e crianças bem-educadas.
No caso do diário de viagem de Freire Alemão, temos o registro do trabalho de campo
de um botânico imbuído de certos sentidos do fazer científico, no contexto de uma
missão exploratória ordenada, em que é possível divisar referenciais da racionalidade
iluminista, com sua pretensão de apreender o mundo natural em sua totalidade, e de
matriz romântica, em que a ciência é colocada a serviço do engrandecimento da nação.
Temos o servidor do império, cuja presença, ainda que de passagem, ensejava
solicitações as mais variadas numa província com poucos letrados, fazendo com que
fosse solicitado como médico, subscritor de casamentos, alforrias e até como agente da
caridade imperial, na prática de conceder esmolas. A escrita do viajante-naturalista
moderno evidencia “na própria essência de sua função, (...) a consciência e a
valorização da distância, ele é aquele que vê, ouve, analisa, entende e transmite os fatos
e as paisagens de terras distantes, através da escrita de uma narrativa de viagem — de
um diário de viagem.”4
Mas há ainda o desvelamento de um determinado tipo de individualidade,
tributário do período moderno: um homem melancólico, em confronto com ambientes e
populações distantes da sua realidade cotidiana, que se submete à disciplina da escrita
também como forma de não esquecer suas próprias referências, de reforçar para si sua
origem, sua capacidade e suas ambições em situações difíceis, por vezes limítrofes. Um
homem que dá vazão no papel às incertezas quanto ao resultado da empreitada, à
3
ANÔNIMO. Livro das mil e uma noites, volume 1 — ramo sírio. Tradução do árabe por Mamede
Mustafa Jarouche. São Paulo, Globo, 2003.
4
MACHADO, Maria Helena Pinheiro Toledo. “A sensualidade como caminho. Notas sobre diários e
viagens”. Revista USP, dossiê Brasil Império, junho/ julho/ agosto de 2003, p. 140-141.
sensação de isolamento mesmo entre seus pares e até a atos de uma sexualidade latente,
moralmente inconfessáveis para um homem de sua idade e posição. Comportamentos
tornados possíveis longe da esfera das relações sociais do botânico, em ambientes
incultos e de penumbra, com costumes mais frouxos. “Estava a sala ainda sem luz e o
Cândido, com o seu desembaraço, fez que a filha e as duas sobrinhas me abraçassem, o
que eu aproveitei apertando-as bem; são três mulatinhas bonitas, sérias, espirituosas e
requestadas por toda a boa rapaziada do Icó.”5
Por que legar à posteridade uma lembrança tão rarefeita, um ato quase pueril
de excitação lúbrica, mas que perante outros olhos poderia manchar inefavelmente sua
reputação de homem público, seu caráter simples e modesto de naturalista desafeito a
mundanidades, que tanto procurou cultivar? Por que se expor a esse risco? Segundo
Foucault, formular em termos de repressão relações fadadas à proibição, à inexistência e
ao mutismo pode proporcionar e quem fala/escreve um sentimento de transgressão
deliberada, de estar fora do alcance do poder e da lei, pelo simples fato de falar dele e de
sua repressão. Ao mesmo tempo, inscreve-se na tradição confessional religiosa do
Ocidente (presente tanto na confissão interpessoal do catolicismo quanto na a prática do
exame individual de consciência incentivada pelo protestantismo), legando ao indivíduo
a obrigação infinda de colocar o sexo em discurso, bem como “a tarefa, quase infinita,
de dizer, de se dizer a si mesmo e de dizer a outrem, o mais frequentemente possível,
tudo o que se possa relacionar com o jogo dos prazeres, sensações e pensamentos
inumeráveis que, através da alma e do corpo tenham alguma afinidade com o sexo.”6
Pelo menos em princípio, os diaristas em geral encontrariam nesses
caderninhos um lugar seguro e livre para depositar seus mais profundos desejos,
principalmente na esfera da sexualidade, ao enquadrá-los nas práticas discursivas a
partir do relato de “desvios e perversões”, permitindo aos pesquisadores do presente
divisar experiências que costumam ficar à margem do que era socialmente aceitável.
Esses diários são, portanto, exemplares da construção de um novo tipo de sensibilidade,
tornando-se uma das marcas da cisão entre esfera pública e privada na era vitoriana: um
demarcador entre nós e os outros, que no caso do nosso objeto de pesquisa valoriza o
5
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 124, grifo meu.
6
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 11ª edição. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1988, p. 12 e 24.
culto ao autor-viajante e o fascínio pela natureza como alteridade a ser apreendida por
seu olhar treinado.
O fato de se identificar o registro científico e o relato íntimo não implica,
entretanto, que estes se apresentassem em separado na escrita do diário. Um exemplo
disso são as descrições detalhadas de momentos íntimos ou literalmente escatológicos,
em relação a si ou a outras pessoas. Na povoação de Catinga do Góes, alta noite, Freire
Alemão sente um incômodo, cujos sintomas tenta disfarçar balançando-se na rede,
diante da presença de Lagos e do pintor da expedição, Reis Carvalho. Mas por volta da
meia-noite o botânico sentiu “de súbito necessidade de evacuar”. Procurou fazê-lo na
praça, mas “vendo ainda algumas pessoas sentadas a porta de suas casas”, voltou para a
casa na tentativa de alcançar o quintal, mas no meio do corredor não pôde mais se
conter:
(…) abaixei-me e fiz um despejo horroroso, tanto por baixo como por
cima com ânsias, com um sentimento de desfalecimento, angústias de
vomitar, copioso suor e por um momento tive uma síncope que foi
instantânea, mas que eu senti a interrupção do sentimento saindo
como de um sonho, mas tendo a cabeça encostada não caí.7
7
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 79.
mãos na mesma água”8 —, a dificuldade de encontrar condições mínimas para se
recuperar das agruras do caminho, já que nem mesmo com o refrigério da água de beber
poderia contar. São elementos que a escrita permite entrever, para além do que se diz.
8
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 106.
9
MACHADO, Maria Helena Pinheiro Toledo. “A sensualidade como...”. Op. cit., p. 142.
10
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 240.
11
ARIÈS, Philippe. Por uma história da vida privada. In: ARIÈS, Philippe e CHARTIER, Roger (Orgs.).
História da Vida Privada, 3: Da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras,
1991, p. 11.
12
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 433.
diário crônica e o diário íntimo) e as condições físicas dessas folhas oferecidas à escrita
permitiria, nas palavras de Jean Hébrard, entender tais relações como formas de resolver
as contradições nascidas da descontinuidade do diário, cuja escrita avança ao ritmo de
uma escritura ocasional (ou cotidiana). Evidenciam, ainda, a preocupação do escritor em
se proporcionar, com a continuidade desse mesmo texto, os meios para alcançar não só
um domínio do tempo fugidio, como também uma representação estável de si.
14
GOULEMONT, Jean Marie. As práticas literárias ou a publicidade do privado. In: ARIÈS, Philippe e
CHARTIER, Roger (Orgs.). História da Vida Privada, 3: Da Renascença ao Século das Luzes. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 392.
15
A classificação da Biblioteca Nacional inclui na rubrica “Diários” um conjunto textual intitulado pela
instituição como Notas sobre Fortaleza e Pacatuba, que compreende o período de 30 de março a 3 de
agosto de 1859, quando os científicos permaneceram em Fortaleza para arranjar os preparativos da
viagem e fazer pequenas incursões nos arredores da capital da província. A característica deste texto,
porém, nos indica uma formatação mais própria de uma memória em separado, que o botânico também
compôs, e não uma série de registros datados com certa continuidade, como classifica Philippe Lejeune.
Nesse sentido, consideramos o início do diário de Freire Alemão o conjunto textual identificado pelo
próprio autor como Viagem de Fortaleza a Aracati, que registra o início de expedição científica.
plural. Um exemplo disso são os trechos em que discorre sobre o próprio trabalho de
escrita memorialística (diário, memórias, ofícios, correspondências) e as circunstâncias
em que ocorria. Nas 56 referências que o autor faz sobre escrita ao longo do diário,
nove empregam a primeira pessoa do plural:
16
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 161, 293, 319, 335, 410, 437, 451, 471.
informação objetiva e verdadeira. Uma “alternancia que refuerza el doble carácter del
Diario, informe oficial y testimonio de primera mano.”17
À vista da primeira folha do diário, o procedimento de registro parece seguir
o formato tradicional, de escrever-se tudo o que ocorreu ao final de cada dia,
organizando o texto numa ordem cronológica, já que o relato é iniciado com o registro
da data de saída: “Agosto. 16: Terça-feira, (...)”. Ao dar continuidade à leitura, porém,
percebe-se ter ali uma narrativa organizada não pela sucessão fragmentada dos dias,
mas por uma unidade em que a descrição do percurso e dos pousos é permeada por
registros de quadrinhas populares, observações sobre topônimos, informações históricas
colhidas dos locais, o sentido de palavras e objetos inteiramente novos (cacimbão e
caponga, referindo-se a reservatórios de água) e até um desenho.
Próximo aos córregos da Amarela, onde os científicos encontraram pouso
numa palhoça, Freire Alemão diz que o dono da casa estendeu redes para ele, Lagos e
Reis Carvalho, “(...) e nós, estendidos e balançando-nos nas redes, conversávamos e nos
divertíamos com uns rapazes que chegaram depois e algumas raparigas, que vieram para a
sala, aí se contou muita história, se tomaram muitas notas e se gracejou bastante (grifo
meu)”18 — o que deveria indicar, em princípio, uma apreensão mais imediata do que
ocorria. É somente ao final da folha 20 do diário que o autor esclarece de vez o formato
de escrita adotado: “Foi esta narração feita às pressas e sobre apontamentos tomados a
lápis durante a viagem; e por isso muito incompleta, e muito mal escrita”.19
Apesar de o comboio ter partido no dia 16, a escrita de seu diário de viagem
só é efetivamente iniciada oito dias depois, mais precisamente às 11 horas da noite de
24 de agosto (quarta-feira), segundo seu registro, quando os expedicionários já estavam
na cidade de Aracati, chegados no dia anterior. O mais provável é que o botânico tenha
escrito as 20 primeiras páginas deitado numa rede, ainda a descansar das agruras do
caminho, tendo como base as notas, tomadas a lápis, quase concomitantemente aos
acontecimentos. Esta primeira incursão no hábito diarístico não o agradou, uma vez que
ele próprio a julga incompleta e mal escrita, num tomem que parece se justificar perante
17
PENHOS, Marta. Ver, conocer, dominar: imagenes de Sudamerica em fines del siglo XVIII. 1ª ed.,
Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2005, p. 37.
18
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 49.
19
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 51.
um eu-ideal (ou um leitor em potencial). Percebe-se nessas 20 folhas uma tentativa do
autor em estabelecer um formato de escrita que pudesse ser efetivado tendo em conta as
questões inerentes ao deslocamento, a composição de uma escrita minimamente
elaborada e a necessidade pessoal de apreender no detalhe as experiências exteriores e
as impressões interiores.
Após a “Viagem de Fortaleza ao Aracati”, vemos Freire Alemão se
debatendo entre uma escrita totalizante e outra, baseada na sucessão dos dias. Das
folhas 21 a 50, o botânico tece as “Notas sobre a vila de Aracati”, com considerações
sobre o local onde a vila está assentada, as relações sociais das famílias, produtos e
negócios, a convivência dos comissionados com os locais, entre outros tópicos. O texto
se desenvolve inicialmente de forma dissertativa, na já referida discursividade típica do
texto científico, que procura eliminar as marcas do tempo e do trabalho da redação.
Mas, no decorrer da leitura, vamos percebendo que esta pretensão
totalizante se trai por algumas referências temporais. “Como ontem nos disse aqui o
boticário”;20 “Anteontem, quando íamos para o Cumbe”;21 “Ainda agora estiveram aqui
conversando conosco”;22 até chegarmos a uma referência, na folha 28, que especifica
uma data: “Ontem, domingo (4 de setembro), vi algumas mocetonas (...)”. 23 Depreende-
se desses vestígios que as folhas 21 a 28 foram escritas no dia 5 de setembro (segunda-
feira), 12 dias após o primeiro registro. Da mesma forma o texto entre a folha 28 e o
primeiro parágrafo da folha 32 foi escrito no dia 5, dada as referências “Ontem à noite”
e “Hoje de tarde.”24
Há, porém, um esforço em estabelecer rigor numa escrita fugidia. Uma
evidência disto é a utilização majoritária de verbos no tempo presente ou no particípio
para descrever a vila: “[Aracati] Tem quatro bons templos, mas nenhum está
concluído”; “Nas grandes cheias do Jaguaribe, como uma de 39 e [outra] de 42, toda a
cidade fica embaixo d’água, há casas que ficam com água pelas vergas das juntas e
pelas ruas andam canoas e lanchas, e de circunstância mui forte” (grifos meus).25 São
20
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 53.
21
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 54.
22
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 56.
23
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 57.
24
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 59.
25
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 52.
procedimentos que, segundo Marta Penhos, a partir de uma ideia de permanência
essencial, marcam a atemporalidade do espaço descrito e transmitem a ideia de um
espetáculo estático. Indicariam também um texto composto mediante parâmetros que
evocam experiências visuais, em que a paisagem é tomada pelo autor-observador de um
ponto aparentemente fixo e a uma altura capaz de abarcar grandes extensões de espaço,
como neste caso da vila de Aracati. Percebe-se, pela última citação sobre as enchentes,
que mesmo tratando de um fenômeno que não viu com os próprios olhos, a referência às
enchentes anteriores, a observação das habitações (certamente a água havia deixado sua
marca na altura das vergas26 das janelas) e as notícias que colheu dão-lhe a
confiabilidade necessária para tratar do tema como algo marcante e característico da
vida em Aracati. “Es más, la apelación a varios observadores a través de su testimonio
[‘como deponenlos que desde aquellas eminencias han observado el país’] daria cuenta
de una construcción unificada a partir de vistas parciales.”27
Nos relatos de viagem que pesquisou,28 Penhos identifica uma alternância
na utilização de países (no plural) e país (no singular). Tal utilização poderia marcar,
pela dupla acepção do termo, a ideia de variadas e diversas paisagens unidas por uma
vista ampliada de um único território. Não há, no diário de Freire Alemão, este uso
alternado em relação ao termo país, ou mesmo paisagem — mas, curiosamente, isso
ocorre em relação ao uso dos termos sertão e sertões. Com um detalhe: além de se
referir, no singular e no plural, a este lugar localizado no “coração das terras” ou o
“sertão da calma i. e. o lugar onde ella he mais ardente”29— “Esta é a razão da secura
dos sertões, porque quase em todos eles o terreno é este: árido, incapaz de absorção e
26
O termo verga é utilizado por Freire Alemão no sentido de “peça colocada horizontalmente sobre as
ombreiras de portas e janelas”. Dicionário Aulete
Digital:http://www.aulete.com.br/verga#ixzz3ekQJxIWD (consultado em 28/06/2015).
27
PENHOS, Marta. Ver, conocer, dominar... Op. cit., p. 47. Traduzi por: “Além disso, o recurso a
váriosobservadoresatravés deseu testemunho [‘como depõemos que desde aquelas eminências têm
observado opaís’] daria conta deuma construçãounificada a partir devistas parciais.”
28
Marta Penhos trabalha com relatos da dominação espanhola na região hoje correspondente à Argentina
Paraguai e Uruguai, como a entrada do governador Gerónimo Matorras no El GranChaco em 1774 (que
até então se mantinha às margens de um domínio efetivo), as viagens de Félix de Azara entre 1782 e 1801
(como parte de uma comissão bilateral incumbida de estabelecer os limites coloniais entre as colônias
portuguesa e espanhola) e a Expedição Malaspina (1789-1794), a última grande viagem de circum-
navegação científica espanhola.
29
SILVA, Antônio de Morais. Diccionario da língua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau,
reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro (Volume 2: L - Z). In:
http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00299220 (acesso em: 12/06/2014).
impróprio para a lavoura, porque não é arável, exceto em alguns tabuleiros, vargens da
beira dos rios, onde há terrenos de aluvião”30 —, o termo sertões também é utilizado
para contrapor o Ceará às províncias limítrofes. “A respeito dos sertões do Rio Grande
disse que eram semelhantes aos do Ceará”.31 Ou: “Fazendo-lhe algumas questões sobre
os sertões da Paraíba, disse-nos ele que nesses sertões não há serras, apenas serrotes”.32
Note-se que nesta última citação, sertões é utilizado tanto na forma de um lugar mais ou
menos específico (o interior da província da Paraíba) quanto faz as vezes de paisagem
inculta, caracterizada por suas formas geográficas. Sertões dá conta ainda de nomeações
que escapavam à nomenclatura oficial que nomeava a região das províncias do Norte:
“Contou o Sr. Franklin como o padre Alencar, andando fugitivo, com ele e outros, foi
preso pelos cabras e como um chefe dos cabras o livrou da morte que lhe preparavam
pelos sertões do rio de São Francisco”.33
Ambígua, situada a um só tempo em espaços internos (um lugar outro,
desconhecido, rebelde a enquadramentos e medições) e externos (componente de uma
unidade complexa, porém coesa chamada nação brasileira), a categoria sertão tem um
largo histórico de acepções, que se confunde com a colonização da terra brasilis ou
mesmo antes, quando os portugueses a utilizavam desde o século XIV para designar as
áreas distantes de Lisboa. Janaína Amado observa que, mesmo não existindo no
vocabulário dos viajantes estrangeiros, sertão estava tão incorporado à língua usada no
Brasil — e, a meu ver, à própria forma de conceber a ambiguidade desses espaços não
litorâneos, dada a possibilidade de unificar sob um só nome áreas geográfica e
naturalmente distintas como o interior do Paraná, a floresta Amazônica ou o atual
semiárido nordestino — que estes viajantes registraram a palavra em seus relatos.
30
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 227.
31
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 96.
32
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 172.
33
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 287.
vésperas da independência, “sertão” ou “certão”, usada tanto no
singular quanto no plural, constituía no Brasil noção difundida,
carregada de significados.34
34
AMADO, Janaína. Região, sertão, nação. Estudos históricos, v. 8, n. 15, Rio de Janeiro, 1995, p. 148.
35
AMADO, Janaína. Região, sertão... Op. cit., p. 148.
36
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem... Op. cit., p. 120.
viajar para terras longínquas, impelido por mera curiosidade de observar um país e seus
habitantes.
37
PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império. Relatos de viagem e transculturação. Bauru: EdUSC,
1999, p. 151.
BIBLIOGRAFIA
ANÔNIMO. Livro das mil e uma noites, volume 1 — ramo sírio. Tradução do árabe por
Mamede Mustafa Jarouche. São Paulo, Globo, 2003.
ARIÈS, Philippe. Por uma história da vida privada. In: ARIÈS, Philippe e CHARTIER,
Roger (Orgs.). História da Vida Privada, 3: Da Renascença ao Século das Luzes. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991.
HÉBRARD, Jean. “Por uma bibliografia material das escrituras ordinárias: a escritura
pessoal e seus suportes”. MIGNOT, Ana Chrystina Venancio; BASTOS, Maria Helena
Camara; CUNHA, Maria Teresa Santos (org.). Refúgios do eu: educação história e
escrita autobiográfica. Florianópolis: Mulheres, 2000.
PENHOS, Marta. Ver, conocer, dominar: imagenes de Sudamerica em fines del siglo
XVIII. 1ª ed., Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2005