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João da Cruz e Sousa (1861-1898) foi um poeta simbolista brasileiro, vivo na

segunda metade do século XIX, herdeiro da tradição simbolista e, nas palavras de


Antônio Cândido, “o único escritor eminente de pura raça negra na literatura
brasileira, onde são numerosos os mestiços”1. Cruz e Sousa, dentre os grandes
poetas da língua portuguesa, encarna o mito da missão civilizadora que permeia
a cultura nacional, mais especificamente na sua manifestação na relação entre a
raça branca e negra socialmente construídas no Brasil, ao qual seria possível
chamar pelo nome do poema homônimo, o fardo do homem branco. Cruz e Sousa
era filho de escravizados, povos que foram obrigados a abandonarem seus vínculos
culturais, valorativos e científicos, para serem colocados sob correntes de opressão
e trabalho forçado. Era um homem sem ancestralidade, pois sua ancestralidade
fora apagada, reduzida a uma mera realidade coletiva de exploração: a ida coletiva
de seus ancestrais da África até os portos brasileiros. Mesmo assim, aparte de
todos os pesares, seus pais conseguiram ser alforriados pelo ato de Guilherme
Xavier de Sousa, marechal abolicionista vindo da Guerra do Paraguai, quando
Cruz e Sousa portava apenas quatro anos. Nisso, Xavier de Sousa decidiu junto de
sua esposa tratarem o pequeno escravo alforriado como filho, dando-lhe uma
educação da alta intelectualidade europeia, fazendo com que aprendesse línguas
vivas como o francês, o inglês e, provavelmente, já que foi discípulo do naturalista
alemão Fritz Muller, o alemão, além de línguas mortas, como o latim e o grego
arcaico, de modo a conhecer tanto as ciências modernas, quanto a filosofia e a
literatura clássica.

Aqui já é possível ver, ainda na formação do poeta, uma profunda manifestação


do mito d’o fardo do homem branco em sua vida, já que ele, que fora despojado de
suas raízes culturais negras, foi civilizado dentro dos padrões culturais europeus
da época, aprendendo línguas e ciências eurocêntricas, como que acobertando toda
possibilidade de uma formação cultural efusivamente de fundamentos negros.
Outro ponto de tremenda relevância a ser observado é o fato de Cruz e Sousa ter
sido adotado por uma família de elite branca, o que remete a imagem do branco
como o tutor do negro, como a figura paterna que precisa corrigir e recriar a
cosmovisão do tutelado, sem levar em conta os valores tradicionais do povo negro,
algo que é reforçado pela própria estrutura de poder inerente às funções sociais
das partes: um que está na posição de pai, enquanto o outro está na posição de
filho; um que está na posição de alforriador, enquanto o outro está na posição de
alforriado; um que está na posição de militar branco, enquanto o outro está na
posição de civil negro. Essas oposições formam um mosaico de dicotomias que,
junto, permite que se veja a realidade do negro enquanto povo integrante da
cultura brasileira, sendo inicialmente esvaziado de si e de sua cultura, tida como
tribalista, ao mesmo tempo que, subalterno a um branco, reaprende a ser um
humano plenamente social, ou seja, a ser parte de uma grande narrativa de
construção de conhecimentos e feitos, já dentro de uma cultura eurocêntrica.

Cruz e Sousa, mesmo sendo educado em moldes europeus, sofreu durante sua
vida dores relativas ao racismo, como ter sido negado como promotor de justiça em
Laguna-SC em 1883 pela cor de sua pele, ou ter perdido os quatro filhos para a
tuberculose, doença que afetava majoritariamente negros e boêmios da época, que
não tinham acesso aos meios de higiene e prevenção necessários, fato que o
acarretou uma melancolia profunda e crises que, em sua vida, foram descritas
como loucura. Isso nos revela o destino do negro descendente de escravos no Brasil:
sofrer a agressão de perder toda sua cultura e, uma vez inculturado, perder sua
dignidade material também, enquanto ser humano portador de necessidades de
trabalho, físicas e de saúde.

Não por menos, Cruz e Sousa tinha uma fixação profunda no jogo de significados
que participam da imagem de luz e sombras, falando em “depravações” e
“escravidão”, como elementos de sombra, e “arcangélicas” e “pura”, como elementos
de luz, em sua poesia, que se revela muito no poema que se segue:

Livre

Livre! Ser livre da matéria escrava,

Arrancar os grilhões que nos flagelam

E livre penetrar nos Dons que selam

A alma e lhe emprestam toda a etérea lava.


Livre da humana, da terrestre bava

dos corações daninhos que regelam,

Livre! bem livre para andar mais puro,

mais junto à Natureza e mais seguro

do seu Amor, de todas as justiças.

Livre! para sentir a Natureza,

para gozar, na universal Grandeza,

Fecundas e arcangélicas preguiças.

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