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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

Critical race studies

1. História

Estudo de como surgiu as teorias racistas


As primeiras manifestações de racismo (com o sentido moderno que lhe atribuímos)
surgem contra o povo judaico. Sempre houve manifestações de etnocentrismo ou xenofobia,
claro, mas os alvos destes sentimentos tinham a opção de assimilação (inclusão cultural e
religiosa na sociedade de origem), e, uma vez assimilados, deixavam de ser alvos de hostilidade.
Antes dos judeus havia a chamada assimilação em que todas as pessoas se integravam.
Ainda assim, e embora os judeus tenham sido perseguidos e excluídos da sociedade ao
longo de toda a história europeia (a inquisição espanhola foi um dos momentos mais
devastadores, só suplantado pelo holocausto nazi) - excluídos das guildas profissionais e
relegados para os empréstimos usurários - era lhes geralmente dada a possibilidade da
conversão ao catolicismo (conversão ou morte).
Com o crescimento e domínio do cristianismo na europa, gera-se a convicção do povo
judeu era herdeiro de uma mácula ou dívida de sangue - Deicidio - inexpurgável, mesmo com a
conversão a Cristo.
Sécs. XII-XIII - exclusão dos judeus da maioria da guildas profissionais e concentração
em guetos (circulação de boatos e rumores sobre natureza demoníaca dos judeus e atribuição
aos judeus de crimes hediondos, cristãos (filhos de deus) v. judeus (filhos do demónio)).
Sécs. XIV - peste negra, atribuição de responsabilidade aos judeus, com vários
massacres.
Sécs. XV - Inquisição espanhola (expulsão ou conversão de judeus), doutrina da
"limpieza de sangre", com certificados de origem étnica cristã - inicia-se a perseguição aos
convertidos e estão lançadas as bases para o moderno sentido de "racismo".
Séc. XX - Holocausto
A convivência entre os europeus e os africanos não foi linear ao longo da história, sendo
de ponderar múltiplos fatores, bem como própria diversidade cultural das pessoas racializadas
(mouros, asiáticos, negros).
Esta história interliga-se com a história da escravatura, que sempre havia existido, e que
sofreu mudanças profundas após a fase das "Descobertas".
A escravatura não estava associada à cor da pele, tendo havido sempre convivência
entre escravos brancos e racializados. Durante a Idade Média, a escravatura continua a ser
praticada, mantendo-se, embora em menor número a posse de escravos brancos (negros e
brancos trabalhavam lado a lado, quer como esravos, quer como servos livres, como mostra a
arte da época). Pensa-se que a maior fonte de trafico vinha, na altura, da tradição árabe, mas
também os arábes tinham escravos negros e brancos.
Ao longo da Idade Média, pessoas racializadas libertadas (pois a escravatura seria
muitas vezes uma condição passageira) chegaram a ter posições de destaque na europa (e na
sociedade portuguesa). A negritude foi moda em certas cortes da Europa (corte francesa). Na
altura, as pessoas negras eram vistas como selvagens, mas nem sempre de um modo negativo,
mantendo-se sempre a possibilidade de assimilação através da conversão ao cristianismo.
Este cenário muda radicalmente com as descobertas.
As "Descobertas" marcam o início do processo que conduz ao conceito moderno de
racismo, pois o confronto entre o homem branco (civilizado) e os povos africanos (selvagens)
faz pender a balança para uma visão negativa dos segundos. A escravatura era já praticada em

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quase toda a África, mantida ao longos dos séculos pelos mercadores e monarcas muçulmanos,
pelo que os traficantes de escravos (essencialmente, portugueses e espanhois) aproveitaram a
organização já existente. Inicialmente, os escravos foram levados para a Europa, mas com os
progressivos receios de miscigenação do povo europeu (medo dos casamentos mistos e da
ascensão dos escravos negros), as rotas foram desviadas para a américa. Assim se inicia a
associação intrínseca entre a cor e a submissão à escravatura.
Quando a sociedade europeia absorve os valores do iluminismo (todos os homens são
iguais), confronta-se com a contradição axiológica da escravatura e precisa de encontrar um
fundamento ético ou moral para a manter. Na mesma altura (sécs. XVIII e XX), as ciências
naturais ganham força, e os estudos da biologia e da antropologia dão uma cobertura
conveinente para a associação entre a cor(raça) e a natureza intrínseca de escravo.
Nas disputas "científicas" sobre a existência de raças, debatiam-se duas grandes teses:
as monogenistas e as poligenistas. Para os monogenistas, todos os homens descendiam de uma
fonte comum (inicialmente, de Adão e Eva, de acordo com a bíblia), sendo as diferenças
explicadas por razões climáticas ou geográficas. Os poligenistas entendiam que havia diferentes
linhagens originais (com fundamentos bíblicos ou "científicos"), que eram intrínsecas e geravam
as várias raças. Uma vez que estas teses eram oriundas de europeus, não fugiram à tentação de
hierarquizar as raças, havendo consenso em designar a "raça branca" (caucasiana) como raça
modelo e superior, sendo a "raça negra" qualificada de inferior. Para poligenistas de fundamento
bíblico, Adão e Eva eram caucasianos, sendo que os restantes povos já residiam na terra, em
estado selvagem (Georges Cuvier). Voltaire e David Hume são exemplos de poligenistas
científicos, pois fundavam a existência de várias origens rácicas nas diferenças - que
consideravam substanciais - entre os homens de caga grupo. O consenso mantinha-se, porém, na
qualificação das pessoas negras como quase não-humanas, mais próximas do macaco do que do
homem, incapazes de se auto-governarem, dominadas por instintos e incapazes de sensibilidade
humana, indolentes, feias, brutas.
Em 1950, a UNESCO lançou um comunicado "The race question" concluindo pela falta
de fundamentos para qualquer teoria de superioridade racial. Em 1978 lançou novo
comunicado, reforçando esta mensagem.
O racismo científico (e, mais tarde, cultural), foi a linha condutora dos processos de
exclusão e discriminação das pessoas racializadas, desde a escravatura ao apartheid.
Embora a escravatura tenha sido abolida, formalmente, em Portugal, em 1761 (Marquês
de Pombal), na verdade apenas foi abolida a remessa de novos escravos para a metrópole. A
escravatura manteve-se, na clandestinidade, tendo apenas sido abolida em 1869.

2. Conceitos

Critical Race Theory


Movimento social e construção teórica que combinam o ativismo e a academia em torno
do estudo (tendente à transformação) das relações sociais relativas à raça, ao racismo e ao
poder. Concentram-se também no estudo do Direito (partem dos critical legal studies) quer
como fator de segregação, ainda que sobre aparente neutralidade, quer como instrumento de
mudança.
Combinam estudos sobre a perspetiva da filosofia (pós-moderna), sociologia crítica,
psicologia social, economia e direito

Xenofobia

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Odio ao estrangeiro. É por ser estrangeiro, não se concentra nas características do


estrangeiro.

Etnocentrismo
O percurso do racismo começa no etnocentrismo, que corresponde apenas à idealização
da nossa identidade étnica como boa, moral (a melhor), relegando as outras identidades étnicas
para o mau, o injusto (o pior). O Etnocentrismo encontra-se associado à xenofobia, pois o
estrangeiro (com uma cultura e religião diferente) é visto como ameaça à identidade cultural da
sociedade residente. Este fenómeno ocorre porque temos uma (falsa) perceção de que as
culturas sociais são estáticas e imutáveis. Assim, sendo a minha cultura vista como estática e
imutável, a sua identidade rígida é algo que pretendo manter, e qualquer contacto com culturas
distintas é visto como ameaça à minha integridade cultural.
A este fenómeno pode chamar-se de "faux évolutionnisme" - errada perceção da
natureza estática das identidades culturais.
Na verdade, a cultura é uma realidade social viva, fluida, e em constante
mutação, podendo beneficiar com o multiculturalismo.

Assimilação
O estrangeiro apenas é admitido caso abdique da identidade cultural e seja assimilado
(absorve e é absorvido) pela identidade cultural do local onde reside. Pode ser admitida a
expressão de identidades culturais distintas, mas apenas nos espaços privados (sem
visibilidade).
Tolerância
São admitidas expressões culturais distintas nos espaços privados e públicos, desde que
estas não coloquem em causa a orem pública ou suscitem polémica (caso francês).

Multiculturalismo (integração)
Recusa uma escolha rígida entre o relativismo cultural e o (falso) universalismo cultural
ocidental. Implica reconhecimento dos particularismo culturais diversos num plano de
igualdade, tentando que possam conviver. Parte da presunção de neutralidade cultural (ponto de
partida), tentando encontrar espaços de consenso e limites (não se reconhecem como legítimas
culturas manifestamente contrárias aos direitos humanos).

Comunitarismo
Coexistência de comunidades culturalmente diversas autónomas (tendencialmente
fechadas) dentro do mesmo espaço político, com algumas regras comuns de convivência.

Racismo biológico/cientifico/cultural
O racismo biológico ou científico consiste na crença pseudocientífica de acordo com a
qual existem raças distintas, havendo uma hierarquia entre raças, sendo a raça caucasiana
superior, e sendo a restantes raças inferiores. Atualmente, há quem ainda defenda - agora com
base na genética - associações entre genética e características superiores, como a inteligência
(sem que haja base cientifica para tal.
Mais comum atualmente é o racismo cultural, assente em argumentos culturais (de
atraso no desenvolvimento) a hierarquização entre raças. É neste contexto que surgem as
reações contrárias ao fenómeno da "apropriação cultural", que consiste numa manifestação de
racismo subtil omnipresente e institucional. Há apropriação cultural quando um certo traço,
característica, ou tradição de uma certa identidade cultural racilizada e discriminada é

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simultaneamente vista como negativa quando exibida pela pessoa racializada, e positiva quando
"apropriada" por uma pessoa branca.
Racismo institucional/microagressões
O conceito de racismo institucional resulta de tudo o que foi exposto até agora: as
pessoas racializadas, principalmente as pessoas negras, foram excluídas, durante séculos
(escravatura, trabalho forçado, negação de cidadania plena, negação do direito ao voto, exclusão
do acesso a educação e propriedade, negação de acesso a cargos públicos ou eletivos, exclusão
social em guetos, etc.) de uma vivência plena, em plano de igualdade com as pessoas não
racializadas, não puderam acumular riqueza, nem herdar propriedade, dificilmente conseguiam,
salvo pela misceginação e casamento, aumentar o seu status económico e social, foram expostas
a um discurso racista que as definida como raça inferior, indolentes e incapazes, pelo que temos
séculos de atraso e de preconceitos embrenhados no funcionamento da sociedade. Assim, ainda
hoje, são preteridas no acesso a certos empregos, e são alvo de comportamentos racistas.
As microagressões são comportamento subtilmente racistas que mantêm as pessoas
racializadas consciêntes do seu lugar na sociedade (lugar inferior), e continuam a ter um efeito
muito negativo na autoestima individual e de grupo. P.e.: "é bonita, para preta", mudar de lugar
em transportes públicos para evitar uma pessoa racializada, etc.

Patriarcado e machismo – Estudo da formação dos estereótipos de género e


evolução histórica da discriminação de género

Breve história da misoginia

A primeira constituição francesa foi aprovada em 1791. Dois anos antes, em 1789, tinha
sido aprovada a "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", que fazia tábua rasa da
existência da mulher como titular de direitos ou da condição de cidadã. Só em 1945, puderam
votar as mulheres francesas.
Em Portugal, no Estado Novo, Virgínia Quaresma OSE (Elvas, 28 de dezembro de 1882
— Lisboa, 26 de outubro de 1973) foi a primeira jornalista repórter portuguesa. Para além de
redigir notícias, distinguiu-se nos dois géneros que fazem a "passagem" para o jornalismo
moderno, a reportagem e entrevista, e foi, juntamente com Berta Gomes de Almeida, uma das
primeiras mulheres a licenciar-se em Letras em Portugal. Notabilizou-se também pelo seu
activismo em várias causas de cariz social e político, nomeadamente no republicanismo,
pacifismo e feminismo, sendo uma das mais conhecidas e activas vozes da luta pelos direitos
das mulheres, a igualdade de género e a livre expressão sexual. Foi um dos rostos mais
conhecidos do feminismo negro e da comunidade LGBT em Portugal, durante o início do século
XX.

Evolução histórica
Origens históricas do feminismo
 1.ª Vaga: luta pelo direito ao sufrágio feminino (sécs. XVIII-XX)
 2.ª Vaga: igualdade perante a lei (desafios à cultura dominante) (anos 60 e 70
do séc. XX)
 3.ª Vaga: paridade - igualdade na diversidade (1990 em diante)

1. 1ª Vaga: sufrágio feminino


1.1. O movimento sufragista e a propaganda misógina

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A 1.ª vaga feminista não se limita à luta pelo direito ao sufrágio feminino, mas esta luta acabou
por assumir uma lugar predominante. O início do movimento feminista - considerado como um
movimento coletivo, pois sempre houve homens e mulheres feministas - caracteriza-se pela
reação aos condicionamento legais da mulher e seu papel secundário na sociedade, sendo
especialmente focados a propriedade da mulher pelo marido, os impedimentos de direito civil (o
direito ao divórcio), e o estatuto de cidadã (em especial, o direito ao voto), e os direitos laborais
(direito a trabalhar e primeiras reivindicações salariais). Porém, na transição do séc. XIX para o
séc. XX, o movimento feminista fica marcado pelas lutas sufragistas e pelo progressivo
reconhecimento do direito ao voto na maior parte dos países do mundo. O movimento sufragista
foi recebido com violência e propaganda (especialmente nos Estados Unidos e Reino Unido,
onde a luta foi mais intensa).

1.2. O movimento sufragista: realidade e conquistas

O movimento sufragista inglês foi o mais ativo (liderado pela National Union of Women's
Suffrage Societies NUWSS) e violento (através do seu braço radical, o Women's Social and
Political Union, WSPU), tendo incluído um ataque com explosivos (o que hoje seria definido
como ataque terrorista) à casa de férias de um parlamentar inglês no governo, e o ato suicida de
Emily Davison, que - sendo que não se sabe se foi por acidente ou se havia realmente uma
intenção suicida - numa corrida de cavalos em 1913, na presença do Rei (Jorge V), avançou
para a pista perto da passagem do cavalo do Rei (possivelmente para colocar um cartaz no
cavalo ou para perturbar o evento), e foi atropelada pelo cavalo, morrendo dos ferimentos dias
depois.
A principal líder do movimento feminista britânico (WSPU) foi Emmeline Pankhurst, que
cunhou o ponto de viragem para o movimento com o seu slogan: “Deeds, not words”. Para
Emmeline, o tempo dos discursos tinha acabado, começava o tempo dos atos de resistência
pacífica, desobediência civil, ou mesmo atos que já iam para lá da mera resistência pacífica.
Seguiram-se manifestações e protestos em que as mulheres eram recorrentemente presas,
fazendo greves de fome (foi utilizada a alimentação forçada como forma de tortura).
Nos textos legais (constitucionais e legislativos) a assunção implícita de que as mulheres não
contavam era tão forte, que o direito ao voto era referido a pessoas e não "homens" (decorrência
inerente de que as mulheres não eram pessoas, pelo menos para estes efeitos). Desta forma,
algumas mulheres acabaram por ir exercendo o direito ao voto antes do reconhecimento do
sufrágio feminino, o que motivou (como sucedeu no Reino Unido e em Portugal) a provação de
leis especiais que, expressamente, limitavam o direito ao voto aos homens.
No Reino Unido, o sufrágio feminino foi reconhecido em 1918. Nos EUA, o movimento
sufragista está associado ao abolicionismo e aos movimentos anti-esclavagistas. A nível
nacional, Alice Paul liderou um conjunto de protestos e manifestações junto à Casa Branca, os
quais tiveram forte impacto no processo político que esteve na origem na emenda de 1920 à
constituição. O primeiro Estado a reconhecer o sufrágio feminino foi a Nova Zelândia, a
19/09/1893.

1.3. Movimento sufragista em Portugal

O Movimento sufragista em Portugal foi liderado pela Liga Republicana das Mulheres
Portuguesas (fundado em 1908, por Ana de Castro Osório), que elegia como bandeiras, o direito
ao voto, o direito à instrução, ao trabalho e à administração dos bens, o combate à prostituição e

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à mendicidade infantil; e pelo o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, fundado em


1914, por Adelaide Cabete, como uma secção portuguesa do International Council of Women.
A instrução foi um dos campos de ação mais significativos da Liga, uma vez que, só instruída, a
mulher se poderia tornar uma cidadã reconhecida, com um novo posicionamento na sociedade.
Anna de Castro Osório, uma das principais e prestigiadas dirigentes da Liga, afirmava: “uma
das nossas maiores vergonhas nacionais é, por certo, o analfabetismo, mas o que agrava essa
vergonha é que, no continente, é a grande maioria das mulheres que eleva pavorosamente a cifra
dos analfabetos” (1905, p. 21).
O CNMP, após a extinção da Liga, assumiu-se como líder do movimento feminista até 1947,
quando foi encerrada arbitrariamente pelo Estado Novo.
A República, grande esperança das feministas portugueses, acabou por lhes falhar, pois não só
nunca foi reconhecido o sufrágio feminino como, após o voto destemido de Carolina Beatriz
Angelo (1911), o Código Eleitoral de 1913 veio determinar que «são eleitores de cargos
legislativos os cidadãos portugueses do sexo masculino maiores de 21 anos ou que completem
essa idade até ao termo das operações de recenseamento, que estejam no pleno gozo dos seus
direitos civis e políticos, saibam ler e escrever Português, residam no território da República
Portuguesa». As mulheres portuguesas teriam de esperar pelo ano de 1931 para lhes ser
concedido o direito de voto e, ainda assim, com restrições: apenas podiam votar as que tivessem
cursos secundários ou superiores, enquanto para os homens continuava a bastar saber ler e
escrever. A lei eleitoral de Maio de 1946 alargou o direito de voto aos homens que, sendo
analfabetos, pagassem ao Estado pelo menos 100 escudos de impostos e às mulheres chefes de
família e casadas que, sabendo ler e escrever, tivessem bens próprios e pagassem pelo menos
200 escudos de contribuição predial.
Em Dezembro de 1968 foi reconhecido o direito de voto político às mulheres, mas as Juntas de
Freguesia continuaram a ser eleitas apenas pelos chefes de família. Só em 1974, já depois do 25
de Abril, seriam abolidas todas as restrições à capacidade eleitoral dos cidadãos tendo por base
o género.

2. 2ª vaga
2.1. Direito e Cultura
"The personal is political", slogan cunhado por Carol Hanisch em 1968-1970 (o termo surfe em
1970 em artigos), é a melhor forma de sumariar o que foi a 2.ª vaga feminista. Concentrada nos
direitos reprodutivos da mulher, o movimento passa a questionar, não apenas exemplos de
desigualdade e discriminação inseridos na lei, mas, principalmente, as fontes culturais de
descriminação e violência. Para tal, o movimento assume como crucial a construção de uma
consciência feminista, através da partilha de experiências pessoais de desgualdade e
silenciamento, e da eleição de assuntos dogmaticamente vistos como íntimos ou pessoais como
assuntos cimeiros do debate político (direitos reprodutivos, crimes sexuais, violência doméstica,
papel da mulher em casa e no trabalho).
O feminismo dos anos 60 e 70 procura desafiar as noções de feminibilidade e do que é ser
mulher face às tendência culturais da época, lutando, não apenas pela eliminação de qualquer
resquício de lei ou regrs discriminatória, mas também pela igualdade real de oportunidades da
mulher na sociedade, na política e no trabalho.
Principais conquistas:
 Direito à interrupção voluntária de gravidez como cuidado de saúde universal;
 Proteção da mulher na intimidade através de programas contra a violência doméstica;

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 Liberalização do divórcio e proteção da igualdade na atribuição da guarda dos filhos;


 Alargamento das normas penais sobre crimes sexuais para incriminação neutra da
violação, independentemente das qualidades da vítima (virgem, casada, homem,
mulher);
 Igualdade no acesso a todas as profissões;
 Licenças de parentalidade e diminuição do abismo salarial em função do género;

3. 3ª vaga
3.1. Identity politics
A terceira vaga do feminismo começa por se caracterizar como uma reação à 2.ª vaga, alegando
estar a fazer um corte na tradição feminista (a 2.ª vaga teria sido mera continuação da primeira).
A principal crítica das feministas de 3.ª vaga aos movimentos anteriores reside na falta de uma
perspetiva de interseccionalidade, alegando que as feministas de 2.ª vaga eram, na sua maioria,
mulheres brancas de classe média, e que se haviam apenas concentrado nas lutas que lhes
interessavam. Esta crítica tem grande validade, embora possa ser vista como relativamente
injusta, já que a maioria das conquistas da 2.ª vaga aplicam-se universalmente a todas as
mulheres. A 3.ª vaga traz, então, uma perspetiva transversal que associa o feminismo às
questões de raça e classe, concentrando-se na luta das mulheres invisíveis (mulheres e mulheres
brancas pobres).
Pode ainda caracteriza-se a 3.ª vaga por acolher os feminismos plurais, por se concentrar na
liberdade de género e por associar ao feminismo a questão da emancipação identitária da mulher
(inicialmente) e, mais tarde, a identidade e liberdade de género como foco do feminismo.
Enquanto as feministas de 2.ª vaga procuraram mostrar que eram "tão boas ou melhores do que
os homens nas mesmas funções" (assumindo comportamentos masculinizados para vencer as
normas culturais que as condicionavam e limitavam, os "glass ceilings"), as feministas da 3.ª
vaga abraçam a sua feminilidade, argumentando com esta riqueza na diversidade na luta pela
igualdade (paridade: igualdade na diversidade).
Principais causas:
 Combate à violência doméstica;
 Combate à violência sexual, assédio sexual e crimes sexuais (redefinição dos crimes
sexuais em torno da ausência de consentimento, criminalização do assédio sexual, etc.)
 Luta pela manutenção ou alargamento dos direitos reprodutivos (incluindo a IVG)
 Luta contra a violência obstetrícia e pelos direitos da parturiente;
 Luta pela identidade e liberdade de género (com os movimentos LGBTI)
 Desconstrução dos estereótipos de género e linguagem inclusiva (luta por um modelo
de educação inclusivo e sensível à igualdade)
 Luta pela igualdade real de oportunidades (igualdade salarial, representação política,
paridade na parentalidade, etc.).

Igualdade ou paridade?
Feminismo socialista/marxista: Rosa Luxemburg (1870–1919 Germany), Alexandra Kollontai
(1873–1952 Russia), Emma Goldman (1869–1940 United States). Parte do feminismo que
assenta na igualdade entre os sexos, mas concentra-se na luta das mulheres operárias, apoiado
pelos movimentos sindicais. Foi uma voz crítica fundamental na transição para a 2.ª vaga (e no
contexto da 2.ª vaga) ao "feminismo de classe média". Enquanto as mulheres brancas de classe
média e alta lutavam para exercerem o direito ao trabalho, as mulheres pobres sempre tinham
trabalhado e lutavam por condições de trabalho minimamente dignas; enquanto as mulheres

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brancas de classe média lutavam pela igualdade salarial, as mulheres pobres lutavam por uma
salários que lhes permitisse sobreviver, etc.

“difference second-wave feminism”: Parte do princípio da diferença entre homens e mulheres,


podendo recorrer a argumentos biológicos ou meramente culturais (perpectiva dominante no
feminismo). Nem que seja porque são educados de modo diferente (distintos processos de
aculturação/socialização), homens e mulheres sentem-se e vivem de modo diferente (Beauvoir -
"não se nasce mulher, faz-se mulher/cresce-se mulher"), pelo que os seus contributos para a
construção e evolução social são intrinsecamente distintos. Assim, para que haja equilíbrio de
identidades na sociedade, para que haja uma sociedade mais justa, melhor, são necessárias as
contribuições paritárias de homens e mulheres. Com a 3.ª vaga, a diversidade alargou-se a
multiplicidade paritária (identidades LGBTI, étnicas e culturais) - hoje referida como "identity
politics", ou política identitária.

Girl feminism: new feminism, feminismo de 3.ª vaga, novo conceito de feminino, apropriação
dos termos negativos (girls), transversalidade, diversidade.

“equal-opportunities feminism”/“equity feminism: Parte do princípio da igualdade tendencial


entre os sexos, admitindo que as diferenças biológicas não determinam quaisquer outras
diferenças relevantes de carater, temperamento, inteligência, força ou capacidade, pelo que
sustentam a igualdade de oportunidades, de direitos e de deveres entre homens e mulheres.

Internalização/Machismo internalizado
Uma vez que cada um/a de nós é aculturado/socializado num contexto mainstream, dominante,
face ao que é considerado "cultura dominante", são as mensagens da cultura dominante que são
ser assimiladas na construção da nossa identidade e formação da nossa personalidade. Assim,
uma mulher educada de acordo com uma cultura dominante de pendor machista, irá assimilar as
mensagens machistas e discriminatórias da sociedade, fazendo destas parte dos pilares da sua
identidade. Se a sociedade diz que as mulheres gostam, intrinsecamente, de tratar da casa e
cozinhar, a mulher vai assumir esta característica e formar juízos negativos sobre as mulheres
"desleixadas", que não cozinham (mesmo que este juízo negativo seja dirigido contra si
própria). Assim, é natural que o machismo sistémico provoque nível de baixa-autoestima mais
elevados nas mulheres.
O mesmo se passa com qualquer fenómeno cultural dominante, pelo que também existe racismo
internalizado e homofobia internalizada.
A internalização, porque gera baixa auto-estima, falta de confiança, e problemas sérios de
valorização pessoal (self-loathing and self-hatred), está associada à baixa produtividade, a
problemas de saúde mental e ao suicídio (principalmente entre jovens LGBTI).
Internalização

Affirmative action
Discriminação positiva: legitimidade e limite

Começamos na Idade Média, e temos quatro jogadores: dois homens da nobreza (média e alta
nobreza), um artesão/escudeiro, e um servo de gleba (ficam de fora as mulheres e os escravos).

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Os nobres começam o jogo com maior fortuna, e não pagam impostos. O artesão/escudeiro
começa com alguma poupança, mas paga impostos. O servo da gleba começa sem nada e paga
impostos sobre o que produz (que entrega ao nobre que é dono da terra). Quando o jogo
começa, as terras são todas propriedade da nobreza.
Ao fim de alguns séculos, várias famílias nobres conseguiram acumular, ao longo de gerações,
grandes fortunas, quer em bens, quer em liquidez, deixando-as preparadas para enfrentar a
revolução industrial. Uma minoria das famílias nobres não sobreviveu à morte do regime feudal.
Vai surgindo uma nova classe forte: a burguesia. Parte do povo (artífices e antigos servos da
gleba) conseguiu acumular algumas poupanças e adquirir terras.
Revolução industrial, fim do regime feudal, transição das monarquias para regimes
constitucionais, eliminação dos privilégios formais da classe, alargamento do direito ao voto a
todos os homens (dependendo dos rendimentos em alguns sistemas). Assiste-se a uma maior
mobilidade social, a nobreza perde algum do seu domínio, entrando em decadência económicas
as famílias nobres mais dependentes da terra, passam a dominar as classes que investem na
industria e no comércio. A esmagadora maioria das pessoas vive no limiar da pobreza ou
abaixo. Excecionalmente, algumas mulher brancas consegue deter fortuna (heranças). Algumas
mulheres e homens negros consegue alguma poupança.
Sec. XX: fim das discriminações formais (legais) e afirmação (teórica) da igualdade de
oportunidades. Exércitos de pessoas em exclusão social (mulheres brancas e pessoas
racializadas) podem finalmente ter acesso ao jogo.

Affirmative action: Affirmative action is a policy of favouring qualified women and minority
candidates over qualified men or non-minority candidates with the immediate goals of outreach,
remedying discrimination, or achieving diversity, and the ultimate goals of attaining a colour
blind (racially just) and a gender-free (sexually just) society. ( James P. Sterba, p. 659).
(exemplo do ciclista no passeio, numa subida)
Soft AA: promoção da igualdade através da remoção de obstáculos, sensibilização, formação e
campanhas de promoção da igualdade;
Hard AA: imposição de quotas e de critérios de preferência.

Diversity affirmative action: Diversity affirmative action is not grounded in the ideal of
remedying discrimination, whether that discrimination is present or past. The goal of this type
of affirmative action is simply diversity, which in turn is justified either in terms of its
educational benefits or its ability to create a more effective workforce in such areas as policing
and community relations. The legal roots of this form of affirmative action in the United States
are found in Regents of the University of Calif ( James P. Sterba, p. 680)

Affirmative action v. diversity: begin from the implied premise that there is an injustice or an
inequality that needs to be remedied, such as sexism, racism, homophobia or disablism:
‘diversity’ obscures the issue of inequality which is at the heart of the matter (Cf. Gaze 1999,
151). Just as equality is blanched of meaning in the absence of a dialectical relationship with
inequality, diversity is reduced to empty rhetoric in the absence of an antinomy. Without a
reactive element, diversity is incapable of producing little more than a comforting feel-good
glow (Thornton, p. 94).
Quotas raciais/de género?
Regents of the University of California v. Bakke: A universidade da California (Faculdade de
Medicina) tinha um sistema dual de quotas para admissões, estando 16 vagas de 100, reservadas
para monitorias étnicas. Um candidato branco excluído impugnou o processo em tribunal, tendo

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o Supreme Court concluído que o sistema de quotas violava o princípio da igualdade, pois os
candidatos às 16 vagas eram apenas avaliados entre si, com critérios autónomos e distintos dos
aplicáveis aos candidatos às restantes 84 vagas. O SC não exclui que a raça ou étnia possam ser
ponderadas ou escolhidas como critérios de preferência em admissões, desde que o sistema
implique que todos os candidatos sejam avaliados em conjuntos (modelo holístico).

Quotas partidárias - de natureza voluntária, decididas internamento pelos partidos, sem


obrigação ou consequências legais ou constitucionais (O PS tinha uma quota interna desde
1999);
Quotas eleitorais - quotas decorrentes da lei ou da constituição que se aplicam a todos os
partidos candidatos, estabelecendo mínimos de representatividade (X% de mulheres) ou de
paridade (X% de ambos os sexos), aplicando-se sanções (financeiras ou rejeição das listas) em
caso de incumprimento. Este modelo apenas é eficaz se for conjugado com o "método de
zipper", u seja, quando se garante a presença de mulheres em lugares cimeiros das listas (não
pode exisitir mais de dois nomes do mesmo sexo seguidos, na lista.
Lugares reservados: assentam numa obrigação de igualdade de resultados (ao invés de mera
igualdade de oportunidades), garantindo um certo número de lugares eleitos para minorias (não
limitados às mulheres). (mais comuns em países africanos e asiáticos)

Enviesamento: “Uma inclinação ou preferência sobre um grupo de pessoas (abstratamente


consideradas) sem justificação objetiva ou justificável que pode colocar em causa a objetividade
ou imparcialidade na realização de juízos de valor sobre o grupo.”
Feminismo (2ª vaga): “Movimento social que surge nos anos 60 e 70 e procura desafiar as
noções de feminilidade e do que é ser mulher face às tendências sociais da época, lutando pela
eliminação de normas discriminatórias e pela criação da real igualdade de oportunidades entre
os géneros”.
Discriminação: “Prática social de transformação de atitudes preconceituosas numa forma de
segregação de grupos sociais. Parte do pensamento enviesado e concretiza-se num
comportamento dirigido a uma pessoa ou grupo de pessoas. Trata-se de um comportamento
motivado pelo preconceito que tende a excluir ou desfavorecer a pessoa integrada no grupo
alvo.”

HOMOFOBIA

A discriminação em função da orientação sexual como parte do sistema machista (moderno).

1. Homoafetividade e História
Sabemos que sempre houve manifestações de homossexualidade, em todos os momentos
históricos e em todas as civilizações, por duas razões:
 pelas culturas que as aceitaram e incorporaram
 pelas culturas que as proibiram.
Afinal, não é necessário proibir o que não existe, nem mesmo que existem de modo apenas
muito marginal, não gerando qualquer ameaça a sistema dominante.
Nas culturas africanas e indígenas pré-colonização, bem como no império da dinastia Safavid
(que regeu a Pérsia durante quase dois séculos), a homossexualidade era parte integrante da
sexualidade, bem como a transexualidade ou o que chamamos hoje de "gender fluid". Alguns
autores gregos viam na homoafetividade a forma mais digna de expressão da sexualidade (a
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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

heterossexualidade era apenas utilitária) e mesmo na Europa medieval houve quem desafiasse o
heteronormativismo imposto pela religião.

2. Evolução histórica em Portugal


 Penalização nas ordenações, perseguição e condenação à morte no período da Inquisição;
 Desaparece a incriminação no Código Penal de 1852. Não existe qualquer criminalização da
homossexualidade nos códigos penais portugueses. Porém:
o Lei de 20 de julho de 1912: são previstas medidas de segurança e penas
correcionais (sob pretexto da repressão da mendicidade e da vadiagem), incluindo a
pena de 1 mês a 1 ano para "aquele que se entregar à prática de vícios contra a
natureza";
o O Estado Novo, com a reforma penitenciária de 1954 (Decreto-Lei nº 39.688, de 5
de Junho), manteve a penalização dos vícios contra a natureza, desta feita
sujeitando estas pessoas a medidas de segurança, que podia chegar ao internamento.

3. LGBT+(QIAP)
Atualmente o termo LGBT é o mais utilizado, representando: lésbicas, gay, bissexuais, travestis
e transsexuais.
 Lésbica: Mulheres que sentem atração romântica ou sexual por outras mulheres.
 Gay: Homens que sentem atração romântica ou sexual por homens. O termo também pode
ser utilizado para mulheres homossexuais.
 Bissexual: Pessoas que sentem atração (afetiva ou sexual) por ambos os sexos.
 Transgênero: Pessoas que não se identificam com seu sexo biológico e estão em trânsito
entre gêneros.
 Transsexual: São pessoas que se identificam com um sexo diferente do seu nascimento. Por
exemplo: uma pessoa que nasceu homem, mas se identifica como mulher, é uma mulher
transgênero.
 Queer: pode significar muitas coisas, não é sobre uma orientação sexual específica ou
identidade de gênero, é sobre se identificar como algumas das letras da sigla, mas também
fazer parte de todas elas. Confuso? Queer engloba todas as orientações e identidades, sem se
especificar em apenas uma delas.
Por muito tempo o termo “Queer” foi considerado algo ofensivo (e ainda pode ser), por
isso não devemos falar que alguém é “queer”, mas sim que ela se identifica como Queer
— assim focamos na pessoa em primeiro lugar e sua identidade como uma
particularidade, não fator principal.
 Intersexo: É uma variação de características sexuais que incluem cromossomos ou orgãos
genitais que não permitem que a pessoa seja distintamente identificada como masculino ou
feminino.
 Assexual: É a falta de atração sexual, ou falta de interesse em atividades sexuais — pode ser
considerado a “falta” de orientação sexual.
 Aliado: São pessoas que se consideram parceiras da comunidade LGBTQ+.
 Pansexual: É a atração sexual ou romântica por qualquer sexo ou identidade de gênero.

4. O caminho para a igualdade


 2001 - Reconhecimento das uniões de facto entre pessoas do mesmo sexo
 2004 (1974) - Constituição da República, art. 13.º igualdade; o artigo passa a prever a
proibição de discriminação em função da orientação sexual;

11
Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

 2007 (1982) - Código Penal, na versão original, punia de modo distinto os atos hétero e
homossexuais com adolescentes, exigindo o abuso da inexperiência para os atos
heterossexuais apenas. O Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 247/2005, considerou esta
distinção inconstitucional. Em 2007, foi eliminada do CP a distinção (foram ainda
neutralizadas outras normas, no plano dos crimes sexuais e da violência doméstica, para
abarcar todos as orientações sexuais);
 2007 - Incriminou-se a discriminação e discurso de ódio, art. 240.º, que inclui a homofobia;
 2010 - Alargamento do casamento a pessoas do mesmo sexo;
 2016 - Alargamento da adoção e da procriação medicamente assistida a casais de pessoas do
mesmo sexo (mantém-se de fora a gestação de substituição);
 2018 - Nova lei da identidade de género mais ampla e garantística.

O DISCURSO DE ÓDIO E O CRIME DE DISCRIMINAÇÃO

1. Discurso de ódio
1.1. Conceito sociológico
 Conceito amplo: tribunal europeu dos tribunais europeus: any kind of communication in
speech, writing or behaviour, that attacks or uses pejorative or discriminatory language
with reference to a person or a group on the basis of who they are, in other words, based
on their religion, ethnicity, nationality, race, colour, descent, gender or other identity. Há
uma proteção contra o discurso que lembre os momentos de discriminação.
 Conceito restrito: decisão-quadro 2008/913/JAI do conselho de 28 de novembro de 2008
relativa à luta por via do direito penal contra certas formas e manifestações de racismo e
xenofobia. Ódio deverá ser entendido como referindo-se ao ódio baseado na raça, cor da
pele, religião, ascendência ou origem nacional ou étnica.
Illegal hate speech, as defined by the Framework Decision 2008/913/HA of 28
november 2008 on combating certain forms and expressions of racism and xenophobia
by means of criminal law and national laws transposing it, means all conduct publicly
inciting to violence or hatred directed against a group of persons or a member of such a
group defined by reference to race, colour, religion, descent or national or ethnic origin.

2. Meros conflitos interpessoais e Discurso de ódio


Tese do Professor Tariq Modood
Sempre que há um insulto que seja homofóbico, racista, machista, transfóbico ou xenófobo deve
sempre ser considerado como discurso de ódio. Porquê? Porque se eu tiver a discutir com uma
pessoa gorda e disser “cala-te, gorda”, essa pessoa vai sentir-se ofendida, mas essa ofensa não a
vai fazer sentir excluída da sociedade onde se insere por essa característica.
Por causa dos fatores históricos e por causa de ainda existirem fortes correntes de ódio sobre
estas categorias de pessoas, elas ainda se encontram em perigo agora, então porque aquela
pessoa tem consciência do peso e do perigo da exclusão social, quando se está a insultar, mesmo
que a pessoa que está a insultar esteja irritada e aquilo lhe saia da boca para fora, ainda assim é
discurso de ódio.
Nunca pode ser colocado no mesmo plano insultar alguém por ter óculos, por ser gordo, por ser
alto com insultar alguém por causas da raça, etnia, religião...

12
Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

Professora Inês Ferreira Leite


Pré-critério: quando se trata das características protegidas, como raça, etnia, género, orientação
sexual, deve-se partir de uma presunção de um problema de ódio. E só se respondermos
negativamente a tudo é que não será crime de ódio.
Naturalmente, nem toda a violência ou insultos (ou ameaças) dirigidas contra pessoas que fazem
parte de grupos com características especialmente protegidas por lei pode ou deve ser
qualificada como discurso/crime de ódio. Desde logo, porque faz parte da normalidade
patológica do comportamento humano utilizar características individuais vistas como negativas
ou potencial alvos de gozo no contexto de conflitos interpessoais.
Assim, é importante tentar delinear alguns critérios para fazer a distinção entre conflitos que são
ou se vêm a transformar em crimes de ódio, ou meros conflitos interpessoais em que (por acaso)
podem surgir manifestações ofensivas semelhantes ao discurso de ódio.
1. O conflito interpessoal iniciou-se por razões que são inteiramente alheias à qualidade dos
intervenientes (pode ter-se iniciado ainda antes de se conhecerem tais características)?
2. O conflito diz respeito a uma questão que é totalmente alheia a características étnicas,
culturais, de género, etc. (ou esta questão é mero pretexto para um ataque motivado pelo ódio
grupal)?
3. O conflito manteve-se centrado na questão que o suscitou, sendo que as eventuais
características protegidas surgem no conflito apenas de modo acessório ou acidental?
4. Houve, desde o início ou a partir do momento em que o conflito se centra nas características
protegidas, uma estalada desproporcional da violência contra a pessoa protegida?

3. Discurso de ódio vs. Crítica razoável


Os critérios são do professor Tariq Modood
1. O comentário ou crítica assenta numa estereotiparão do grupo e na assunção rígida de
que todos os membros do grupo merecem a crítica ou o comentário (ou seja, na
afirmação, através da critica, de que a característica vista como negativa faz parte
intrínseca do grupo criticado)?
2. O comentário ou crítica pretende iniciar um diálogo com o grupo alvo (sendo adequado
para esse efeito), ou corresponde apenas a um monólogo contra o grupo criticado, sem
expectativa ou espaço para o diálogo (podendo resultar da critica a inutilidade de
qualquer diálogo com o grupo alvo)?
3. Existe disponibilidade para reciprocidade na análise critica (ou seja, o grupo autor do
comentário está disponível para aceitar uma resposta critica do gripo alvo e um diálogo
assente na autocrítica recíproca)?
4. A linguagem utilizada no comentário ou crítica encontra-se dentro dos limites de um
discurso razoável e adequado (ou seja, sem recurso a termos gratuitamente pejorativos
ou similares)?
5. Trata-se de uma critica sincera, que revela preocupações efetivas e honestas, ou serve
apenas de pretexto (pela sua real irrelevância) para denegrir o grupo alvo?

Não é necessária uma resposta negativa a todas as questões para estarmos perante discurso ódio,
bastam duas negativas, por exemplo, dependendo do contexto e características para ser discurso
de ódio.

4. Origens da incriminação
Art.240º Código Penal – discriminação e incitamento ao ódio e à violência
 Pacto Internacional sobre os Direitos civis e políticos: 1966 – art.20º/2

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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

 Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racional:


1965 – art.4º
 Protocolo adicional à convenção sobre o cibercrime relativo à incriminação de actos de
natureza racista e xenófoba praticados através de sistemas informáticos
o ‹Material racista e xenófobo> qualquer material escrito, imagem ou outra
representação de ideias ou teorias que defende, promove ou incita ao ódio, à
discriminação ou violência contra um qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos
em razão da raça, cor, ascendência, origem nacional ou étnica e religião, se for
utilizado como pretexto para qualquer um destes elementos.
 Difusão de material racista e xenófobo através dè sistemas informáticos
 Ameaça por motivos racistas e xenófobos
 Insulto por motivos racistas e xenófobos
 minimização grosseira, aprovação ou justificação do genocídio ou dos
crimes contra a humanidade
 Declaração universal de Direitos Humanos – art.29º
 Convenção Europeia dos Direitos Humanos - art.10º
 CRP – art.37º

5. Critérios do TEDH
Art. 10. °, n.º 2: é necessário tomar providências necessárias, numa sociedade democrática para
evitar danos sérios (segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa
da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção de honra ou dos
direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a
autoridade e a imparcialidade do Poder Judicial") em cumprimento de critérios de
proporcionalidade. Exemplo: Erbakan v Turkey (2006) - a prisão de 1 ano por declarações
preconceituosas em função da religião, feitas num discurso público por um político de topo (já
havia sido PM), passados mais de 4 anos, foi considerada excessiva.

"Efeito guilhotina" Art. 17.° da CEDH (Nenhuma das disposições da presente Convenção se
pode interpretar no sentido de implicar para um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de
se dedicar a atividade ou praticar actos em ordem à destruição dos direitos ou liberdades
reconhecidos na presente Convenção ou a maiores limitações de tais direitos e
liberdades do que as previstas na Convenção).

O TEDH recorre a dois tipos de análise de critérios:


- the approach of exclusion from the protection of the Convention, provided for by
Article 17 (prohibition of abuse of rights), where the comments in question amount to
hate speech and negate the fundamental values of the Convention;
and
- the approach of setting restrictions on protection, provided for by Article 10, paragraph
2, of the Convention (this approach is adopted where the speech in question, although it
is hate speech, is not apt to destroy the fundamental values of the Convention).

Decisão-quadro 2008/913/jai do conselho de 28 de novembro de 2008 relativa à luta por


via do direito penal contra certas formas e manifestações de racismo e xenofobia

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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

Para efeitos do n.º 1, os Estados-Membros podem optar por punir apenas os actos que forem
praticados de modo susceptível de perturbar a ordem pública ou que forem ameaçadores,
ofensivos ou insultuosos.

A Lei n.° 94/2017, de 23 de Agosto eliminou este requisito típico do art. 240. ° Cpenal,
tornando-o mais abrangente. ("com a intenção de incitar à discriminação racial, religiosa ou
sexual, ou de a encorajar, é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos.)

A proteção da liberdade de expressão aconselha, porém, a que se faça uma interpretação


restritiva do art. 240.°, conforma à constituição, punindo apenas os comportamentos que sejam
objetivamente idóneos (com ou sem dolo específico) a colocar em causa o bem jurídico:
dignidade (em segurança) da identidade de grupo (maioria da doutrina defende que o bem
jurídico é a igualdade). Ficam de fora as críticas razoáveis, e os conflitos interpessoais (podem
constituir injúria ou ofensas à integridade física, sempre como crimes comuns). Deverá exigir-se
que os comportamentos sejam de molde a provocar uma visão generalizada estereotipada
negativa do grupo alvo que seja, potencialmente, adequada a sentimentos de medo/ódio
generalizado contra o grupo alvo.

LIBERDADE DE RELIGIÃO E LIBERDADE DA RELIGIÃO

Art.1º, 2º, 13º, 19º e 41º CRP


Lei da liberdade religiosa: lei 16/2001
Art.9º CEDH
Art.19º DUDH

O que é que falta nos artigos?


Freedom from religion - liberdade da religião (face à religião). Liberdade de não ter religião, de
não ser afetada por qualquer religião, de não ser perseguido por se ser ateu, ...

1. A incriminação da blasfémia
Inconstitucionalidade do art.252º/b) CRP
Os sentimentos religiosos, em abstrato e de uma forma geral, não constituem bem jurídico
suficiententemente forte para estas incriminações. Esta alínea é um resquício de um modelo de
Estado não laico (Estado Novo), de um código feito, na verdade, em 1962. O que está em causa
- e é a única coisa que pode estar em causa - nestas incriminações é a liberdade religiosa.
Portanto, há que fazer uma leitura atualista conforme à constituição, quer do bem jurídico, quer
dos arts. 251.º e 252.º. Não existe qualquer ofensa ou lesão da liberdade de religião quando,
ainda que publicamente, se vilipendia ou escarnece de religião. Por outro lado, tais atos estarão
quase sempre cobertos pela liberdade de expressão e de consciência (liberdade face à religião),
pelo que não seria legítimo aplicar-lhes qualquer censura/pena. Apenas pode fazer sentido punir
condutas deste tipo quando estas visam um ataque à pessoa (ou grupo de pessoas) que se
identifica com a religião. Ora, para isso, já temos o art. 240.º, n.º 2, b) ("Difamar ou injuriar
pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência,
religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica"), que
tutela estes casos. Identificando, e bem, o bem jurídico como "identidade cultural e integridade
pessoal". Em suma, esta norma deveria estar enquadradas no Título III.

2. Porta dos fundos e apertos de mãos

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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

Contrastes
"Concluiu o presidente do Supremo: "Não se descuida da relevância do respeito à fé cristã
(assim como de todas as demais crenças religiosas ou a ausência dela). Não é de se supor,
contudo, que uma sátira humorística tenha o condão de abalar valores da fé cristã, cuja
existência retrocede há mais de 2 (dois) mil anos, estando insculpida na crença da maioria dos
cidadãos brasileiros." (Janeiro 2020 - 03/11/2020)
E a 7 de Junho de 1988, catorze anos após o 25 de Abril, sem lápis azul mas com uma secura
cortante, o sketch de uma entrevista à Rainha Santa Isabel é cortado do 11.º episódio (só se vê o
momento em que a personagem de Manuela Maria entra em cena e pergunta se correu bem a
entrevista) e logo depois o Conselho de Gerência da RTP anuncia a suspensão do programa,
sem motivos claros, a não ser umas queixas de "alguns telespectadores" e alegações de que o
programa atentava "contra os valores histórico-culturais do País". Foi uma das maiores
polémicas envolvendo o maior humorista nacional e que durante algum espaço de tempo foi
tido como persona-non-grata na RTP, com o seu programa seguinte, "Casino Royal" (1989), a
só ser aprovado depois de todos os episódios gravados e editados. Herman teria de esperar pela
"Roda da Sorte" para voltar a cair nas boas graças da RTP. Os dois últimos episódios de
"Humor de Perdição" só foram transmitidos em 1996, no âmbito do programa "Herman Total"
que passava em revista a sua carreira até então, incluindo a dita entrevista histórica à Rainha
Santa. À luz de oito anos mais tarde e um país mais evoluído, a reação unânime foi de que o
sketch era inofensivo e que não justificava de maneira nenhuma a censura de que o programa
foi alvo.
“O provedor de justiça abriu um inquérito ao último Herman Zap”. Foi assim que em 1996 José
Rodrigues dos Santos abriu as notícias de um telejornal. O fundamento do gesto veio logo a
seguir: “Tudo porque dois cidadãos anónimos apresentaram queixa, um deles ainda antes do
programa Parabéns ir para o ar.” Explica-se depois que a Provedoria esteve a visionar o
programa que inclui “uma sátira” que a igreja considerou como sendo “uma ofensa gratuita”.
A sátira em causa chamava-se “A Última Ceia” e além de parodiar, tornando-a mundana, a
derradeira refeição de Jesus e dos seus apóstolos satirizava o tipo de reportagem praticada pela
SIC numa fase inicial das suas emissões. Maria Rueff fazia de repórter que começa por aludir ao
excessivo entusiasmo dos comensais e à sua escassa superstição. “É que não sei se já repararam,
mas são treze à mesa.”
Pouca gente se lembrará mas o presidente da República eleito, Marcelo Rebelo de Sousa,
conhecido pelo seu sentido de humor, durante uma visita ao cardeal patriarca de Lisboa na
altura em que o sketch “A Última Ceia” foi exibido, reagiu com fortes reservas perante o
momento de humor: “Vejo com preocupação que num canal de serviço público se encontrem
mensagens que podem ser consideradas ofensivas de valores partilhados pela maioria dos
portugueses e também ofensivas de instituições particularmente relevantes como a Igreja
Católica.”

Etnocentrismo
The man aced the German naturalization test, but refused to shake hands with the female
official handing over his citizenship. Despite claims he will not shake hands with men either, his
citizenship has been rejected. A German court ruled on Friday that a Muslim man who refused
to shake the hand of a woman should not receive German citizenship.
The 40-year-old Lebanese doctor, who came to Germany in 2002, said he refuses to shake
women's hands for religious reasons.

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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

The Administrative Court of Baden-Württemberg (VGH) ruled that someone who rejects a
handshake due to a "fundamentalist conception of culture and values" because they see women
as "a danger of sexual temptation" was thereby rejecting "integration into German living
conditions."
A motivação para recusar o aperto de mão é insindicável, pois não sendo o aperto de mão
condição exigível para obter a cidadania, não poderia, por esta via, ser-lhe recusada. O aperto de
mão, o beijinho, a vénia, etc., são meras manifestações culturais, não podendo ser impostas
como dever ou condição de acesso ao exercício de direitos. Poderia haver uma recusa de aperto
de mão por se tratar de um germofóbico, p.e. Por outro lado, os Hasidic Jews (Judaísmo
chassídico) também têm esta regra quanto ao toque numa mulher fora da família. E, no entanto,
existe uma extensa comunidade chassídica na Alemanha.

Casos Charlie Hebdo e Samuel Paty


Massacre do Charlie Hebdo foi um atentado terrorista que atingiu o jornal satírico francês
Charlie Hebdo em 7 de janeiro de 2015, em Paris, resultando em doze pessoas mortas e cinco
feridas gravemente. O ataque foi perpetrado pelos irmãos Saïd e Chérif Kouachi, vestidos de
preto e armados com fuzis Kalashnikov, na sede do semanário no 11º arrondissement de Paris,
supostamente como forma de protesto contra a edição Charia Hebdo, que ocasionou polêmica
no mundo islâmico e foi recebida como um insulto aos muçulmanos. Mataram 12 pessoas,
incluindo uma parte da equipe do Charlie Hebdo e dois agentes da polícia nacional francesa,
ferindo durante o tiroteio mais outras 11 pessoas que estavam próximas ao local. No mesmo dia,
outro francês muçulmano, Amedy Coulibaly, ligado aos atacantes do jornal (ele conhecia bem
Chérif Kouachi) matou a tiros uma policial em Montrouge, na periferia de Paris, e no dia
seguinte invadiu um supermercado kasher perto de Porte de Vincennes fazendo reféns, quatro
deles são mortos pelo Coulibaly no novo ataque que terminou após a invasão do
estabelecimento pela polícia francesa. No dia 11 de janeiro, após as acções e a morte de
Coulibaly, um vídeo é publicado na Youtube para reivindicar os actos: A Coulibaly confirma a
sua responsabilidade no ataque a Montrouge; ele também se reivindica como membro do Estado
Islâmico do Iraque e do Levante. No total, durante os eventos entre 7 a 9 de janeiro, ocorreram
17 mortes em atentados terroristas na região de Île-de-France, em Paris.
Samuel Paty, um professor de história e geografia, foi assassinado com uma arma branca e
posteriormente decapitado, pouco depois de ter saído da escola onde dava aulas, por um jovem
de 18 anos, russo com ascendência chechena, que estava em França desde os seis anos com o
estatuto de refugiado. O homicida viera da cidade de Évreux nessa mesma manhã, o que supõe
uma premeditação do crime. Este foi abatido alguns minutos depois, pela polícia, na cidade
vizinha de Éragny.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA E CARACTERIZAÇÃO DO POPULISMO PENAL

1. Populismo (origem e conceito)


O termo tem origem no movimento agrário (pequenos agricultores empobrecidos e esmagados
pelas hipotecas bancárias) norte-americano do séc. XIX, tendo sido abandonado até ressurgir no
pós 2.ª GG.
Essencialmente, o populismo apela à união do "povo" contra as elites (responsabilizando as
elites pelo estado das artes, através da corrupção e do nepotismo), que identifica com os/as
titulares de cargos públicos eleitos/as, por vezes defendendo a redução do número de
parlamentares ou membros do governos, de salários públicos e similares (o cargo político é

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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

visto e descrito como "tacho", lugar de privilégio e abuso, devendo ser fortemente restringido e
controlado).
A partir dos anos 60/70, o populismo associa-se ao conservadorismo religioso e dos costumes,
reagindo especialmente ao direito ao abordo e aos direitos LGBTQ+.
Nos anos 90 e primeira década do séc. XXI, os escândalos de corrupção dão novo fôlego ao
populismo, que passa a identificar o exercício de cargos políticos com a corrupção, exercendo
forte pressão nos movimentos de hipercriminalização de condutas associadas à corrupção e
tráfico de influências. Na transição da década de 10 para a década de 20, com a crise migratória,
o populismo associa-se aos movimentos nacionalistas, xenófobos e racistas.

2. Antecedentes do populismo penal


O conceito de expansão penal (movimento neocriminalizador do fim do séc. XX/início do séc.
XXI):
(i) Pela relativização das garantias penais básicas oriundas do Direito Penal ilustrado,
tais como: a intervenção mínima do direito penal e a proporcionalidade das penas;
(ii) Pela descoberta de novos bens e interesses jurídicos merecedores da tutela penal
(bens estes supostamente revelados ao legislador graças à intensificação do
processo de complexibilização das relações sociais)
(iii) Pela flexibilização das “regras de imputação jurídico-criminais”;
(iv) Pela construção de uma legislação penal carente de orientação dogmática e baseada,
no limite, em demandas sociais conjecturais, episódicas e superficiais;
(v) Pela difusão e inculcação da crença de que a legislação penal representa uma
solução viável para a resolução de uma ampla variedade de problemas sociais e,
finalmente;
(vi) Pelo implemento de reformas penais inspiradas, no limite, pela ideologia do
movimento de lei e ordem e marcadamente simbólicas, isto é, desprovidas de
qualquer compromisso efetivo com o desenvolvimento do sistema jurídico-penal
com vistas ao aprimoramento das funções de proteção e garantia comumente
atribuídas à pena

Conceito de pânico moral: «A disproportionate public reaction in response to actions deviating


from established social and cultural norms; such actions range from acts of provocation of
cultural and historical sensibilities to criminal offenses. Moral panics often arise in relation to
subcultural groups and youth culture, addiction and religious deviations such as satanic rituals.
Further targets of moral panics have been other marginalized or disadvantaged social groups
such as welfare recipients or refugees. (...) as Stanley Cohen observes in Folk Devils and Moral
Panics (1972), they are based on an exaggerated threat: exaggerated either because the actions
that trigger moral panic are represented inaccurately or because the threat itself is portrayed as
more serious than it is in comparison to other problems.» The Cambridge Dictionary of
Sociology

Os pânicos morais dependem em grande linha de dois fatores: discurso político e narrativas
mediáticas. Caracterizam-se pela "gross exaggeration" de um problema real (geralmente, ou de
pequena dimensão ou de dimensão maior, mas culturalmente tolerado até então), a partir do
qual se identifica/m um grande inimigo comum de uma sociedade (os pedófilos, os corruptos, os
terroristas), ocorrendo a radicalização do discurso (quem pretender diminuir-lhe importância é
visto como aliado ao inimigo) e pode conduzir à adoção de medidas securitárias fortemente

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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

restritrivas de direitos fundamentais. Ex: Casa Pia e pedofilia / Sócrates e corrupção / ataque à
Alcochete

3. Populismo penal
O conceito foi primeiro trabalhado por Anthony E. Bottoms (1995) que, embora falasse de
"populist punitiveness", estava já a estabelecer as bases nucleares do que é hoje
consensualmente entendido como populismo penal. Bottoms analisa as tendências legislativas
de alguns países e associa ao populismo penal três transformações ou características:
a) crença numa relação de proporcionalidade retributiva entre o crime e a pena (próxima
da lei de talião);
b) crença na ineficácia do sistema de justiça;
c) crença na necessidade de penas mais severas (three strikes/perpétua/morte)

‘Complexo do Crime da pós-modernidade’, a qual é caracterizada por um conjunto específico


de atitudes e crenças:

 altas taxas de criminalidade são tidas como um facto social normal; o investimento
emocional no crime é disseminado e intenso, abrangendo elementos de fascinação
como também de medo, raiva e indignação;
 temas criminais são politizados e regularmente representados em termos emotivos; a
preocupação com as vítimas e com a segurança do público dominam as políticas
públicas;
 o sistema penal é visto como inadequado ou ineficaz;
 rotinas defensivas privadas são comuns, existindo um grande mercado de segurança
privada;
 a consciência do crime está institucionalizada na média, na cultura popular e no
ambiente circundante (perpétua/morte) (David Garland).

Pratt, outro autor que se dedicou a esta matéria, tem uma visão ligeiramente distinta, fazendo
uma análise mais progressiva e abrangente da implementação do populismo penal:

a) progressivo convencimento do público de que existe um grande desfasamento entre a


cultura judiciária e a cultura social atual (justiça deixa de estar em contacto com a
realidade);
b) progressivo convencimento de que as penas aplicadas são tendencialmente baixas e
insuficientes, não representam os clamores sociais (início de um forte escrutínio público
das sentenças e das penas aplicadas / aprovação de leis de penas mínimas);
c) descredibilização das "elites académicas" (advogados, juristas, professores
universitários) na narrativa sobre justiça, sendo estes vistos como meros peões do
sistema, e entraves no que toca à opinião do público em geral (ou supostos clamores
sociais);
d) substituição do discurso científico (análise estatística) pelo discurso emocional assente
em experiências pessoais de casos excecionais;
e) repúdio dos direitos fundamentais dos suspeitos/condenados, vistos estes direitos como
o privilégio de uma minoria que oprime a maioria (público);
f) Eleição da "vítima" como figura simbólica (abstraída e generalizada) da prevalência dos
direitos dos criminosos sobre os direitos da vítima - a vítima (ou seus familiares) passa

19
Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

a constituir-se como lobby poderoso no sentido da aprovação de leis penais mais


severas;

4. Heranças genéticas medievais no populismo atual


Em 1867, por carta de lei de 1 de julho, Portugal tornava-se um país pioneiro na abolição da
pena de morte para todos os crimes, com exceção dos militares. A extensão da abolição a todo o
território ultramarino, por decreto de 19 de junho de 1870, dará uma maior dimensão
internacional a esse pioneirismo. Um século depois, em 1976, o regime democrático incluiu
definitivamente a abolição da pena de morte para todos os crimes no seu texto constitucional
(artigo 25. °), como já ocorrera em 1911, na vigência da I República, pelo decreto de 16 de
março de 1911, com consagração constitucional posterior (título II, artigo 22. °).
Durante, pelo menos, todo o período medieval, a reação ao crime era pública, exigia a atenção
do público e integrava a publicidade na natureza da pena. Esta dimensão (de forte prevenção
geral através da retribuição), manifestava-se em quatro pilares:

 Natureza pública das penas (uso do pelourinho para penas corporais e outras
penas infamantes - cortes de partes do corpo, corte da barba, exposição em
gaiola, etc.)
 Execuções publicas da pena de morte (a pena e a morte como espetáculos
públicos)
 Uso da tortura e confissão (a confissão, ainda que forçada, era uma das bases
cruciais da legitimação das penas bárbaras e fundamental para fomentar a
resposta do público)
 Infâmia (mesmo para as penas não irreversíveis, o condenado ficava exposto à
infâmia, marcado para sempre - a infâmia manteve-se até à Constituição de
1822).

5. Da proteção da vítima ao “tough on crime”

Conceptualização da "vítima": a vítima do populismo penal não é a vítima do crime


(estatisticamente considerada), mas representa uma parte maioritária da sociedade que se
sente deixada para trás (homem branco, classe média baixa), que é seduzida pela abordagem
securitária do "tough on crime" (aumento das penas dos crimes tradicionais), embora seja
tendencialmente contra a tutela penal das minorias: é possível notar que, assim como a
classe política possui características um tanto quanto homogêneas – sobrerrepresentação de
homens, adultos, brancos e de classe média ou alta –, também a população prisional é
homogênea – são homens, jovens, pobres, semi-analfabetos e, de maneira
sobrerrepresentada, negros. Daí a conclusão de que, dada a total invisibilidade política
desses que são os maiores afetados pelas políticas penais adotadas, em nada suas razões
serão ouvidas. A imposição de penas duras a condutas típicas das classes mais baixas da
população – como os crimes contra o patrimônio individual – representa justamente um
valor que é, sobretudo, caro aos proprietários.

New Zealands 1999 justice referendum: «[S]hould there be a reform of our criminal justice
system placing greater emphasis on the needs of victims, providing restitution, and
compensation for them and imposing minimum sentences and hard labour for all serious violent
offences?». Ganhou com 91% dos votos. No mesmo ano, um referendo para baixar o número de
deputados ganhou com 81% dos votos. Nenhum dos referendos era vinculativo. O número de
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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

deputados manteve-se, mas entre 2002/2007 (governo trabalhista que aposta doutrina "tough on
crime") foram aprovadas reformas penais que geraram um aumento de 20% da população
prisional e penas mais longas, sem possibilidade de liberdade condicional. A Nova Zelândia
tornou-se o segundo pais com mais taxa de encarceração (USA em 1.º lugar). A esmagadora
maioria dos reclusos é Maori. Simultaneamente, a criminalidade tinha vindo a decrescer
sustentadamente na NZ desde 1996.

6. O Direito à perceção de segurança como bem jurídico

A segurança jurídica é, indiscutivelmente, um bem jurídico, e, em teoria, merecedor de tutela


penal (exemplos: incriminação do porte de arma proibida, incriminação da tentativa, de alguns
atos preparatórios, etc.). Porém, a partir do atentado às torres gémeas (9/11), gerou-se a
convicção de que existe um direito à perceção de segurança jurídica. Isto é, não basta que se
estejam a tomar as medidas necessárias e razoavelmente possíveis para garantir a segurança
jurídica, passa a ser exigido do Estado que tome medidas tendentes a reduzir o risco de
insegurança - potencial - a 0 valores. Obviamente, esta redução é - teórica e praticamente -
impossível. Nem mesmo com um polícia para cada cidadão poderá reduzir a criminalidade a 0
(pois também a polícia pratica crimes). Em nome desta angústia existencial criada pelo atentado
e pelos eventos que lhe têm sucedido (atentados de Londres, Madrid, Paris, Orlando,
Estrasburgo, Viena, etc.), a sociedade torna-se progressivamente mais disponível para aceitar a
legislação de medidas fortemente restritivas de direitos fundamentais (prazos de detenção
longos, sem acesso a advogado, buscas à noite, etc.) e da criminalização de atos potencialmente
inócuos (hipercriminalização das associações terroristas), ou cuja utilidade é muito diminuta
(direito penal simbólico). Ora, a constituição não prevê o direito à perceção de segurança, nem
pode este ser considerado um bom jurídico merecedor de tutela penal. O que implica que, na
ausência de um claro bem jurídico identificável, incriminação de possíveis atos preparatórios
muito longínquos do bem jurídico que efetivamente se pretende proteger ou atos potencialmente
inócuos (de sentidos misto (organização de viagens ou tentativa de viagens para fins associados
ao terrorismo), são inconstitucionais.
Por outro lado, por causa da intervenção distorsora dos media - sobrerepresentação falseada da
criminalidade - a perceção de segurança tende a ser mais negativa do que as condições reais de
segurança, o que transforma a sociedade num fonte eterna de exigências cada mais intensas de
intervenções coercivas e punitivas.

7. A responsabilidade dos media

A partir do início do séc. XXI - um dos casos paradigmáticos é o caso "Casa Pia" - o crime
passa a transformar-se em assunto de conversa geral, de forte interesse mediático. No caso
"Casa Pia" (2002), pela primeira vez, esbatem-se as linhas entre a investigação jornalística e o
processo penal, havendo recolha de "prova" por parte de jornalistas (Felícia Cabrita), com
diretos com as potenciais vítimas e contaminação da prova. Em 2016, uma televisão filmou em
direto (com recurso a drone) o funeral de duas crianças mortas pela mãe (comentado por
apresentadores Daytime TV). Em 2019, uma televisão fez diretos num possível local do crime
ainda antes do local ter sido definitivamente analisado pela polícia científica (caso Luis
Grilo/Rosa Grilo). Em menos de 20 anos, o crime passou de tema sério de jornalismo da
especialidade, para assunto de conversa banal e quotidiana, para produto de entretenimento. A
partir do momento em que o crime se transforma em produto de entretenimento, está instalada a
última fase do populismo penal - a manipulação da vontade do povo permite a construção de um

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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

grupo/lobby forte no sentido da neocriminalização, aumento das penas, defesa das atuações
policiais (quaisquer que sejam), restrição das liberdades individuais, aumento da vigilância e
diminuição da privacidade, redução dos direitos dos condenados, etc. Qualquer reforma que vá
em sentido inverso (ainda que cientificamente mais válida) será vista e descrita como
irresponsável, no mínimo, e corrupta e criminosa, no máximo.

8. A morte da racionalidade cientifica


“os princípios do populismo e da retórica penal (política) têm dominado o discurso punitivo em
vários espaços do globo terrestre e assentam na ideia de que o Direito penal garantista ou
assente em primados do garantismo é incapaz de prevenir e reprimir os fenómenos
criminógenos, badalados em toda a imprensa mundial: terrorismo, tráfico de armas, tráfico de
droga, tráfico de seres e de órgãos humanos, corrupção, crimes previdenciários ou tributários,
crimes ambientais, crimes cibernéticos, crime económico-financeiro, sendo de destacar o
branqueamento de bens (mais conhecido por branqueamento de capitais)

9. Direito penal simbólico e populismo penal


As leis penais são um dos meios preferidos do Estado-espetáculo e de seus operadores
‘showmen’, em razão de serem baratas, de fácil propaganda e pela facilidade e frequência com
que enganam a opinião pública sobre sua eficácia. Trata-se de um recurso que obtém alto
crédito político com baixo custo. Daí a reprodução de leis penais, a decodificação, a
irracionalidade legislativa e, sobretudo, a condenação de todos os que duvidem da sua eficácia
(Aniyar de Castro, 2005).

Esses exemplos demonstram que a luta dos movimentos que buscam o reconhecimento das
minorias parece passar necessariamente por esse direito penal simbólico, a despeito de todos os
argumentos que demonstram ser o sistema penal o meio mais injusto e ineficaz através do qual
se possa buscar alguma inclusão. Sabe-se que a agência política não está isolada e que as
agências policial e judicial, realizam a criminalização secundária e efetivamente decidem quais,
daquelas condutas simbolicamente previstas como criminosas, serão perseguidas. A busca do
crime onde se espera encontrá-lo – nos bairros pobres – sempre levará a que lá ele seja
rencontrado. Como uma profecia que se auto-realiza, o estereótipo do criminoso levará a que
sejam sempre as mesmas pessoas perseguidas, processadas, condenadas e, por fim, presas.

Embora tanto se possam qualificar como populistas penais movimentos de extrema direita
(contra o terrorismo, imigração, refugiados, p.e.) como movimentos vistos como de extrema
esquerda, como o movimento ambientalista nos anos 80/90 (o chamado eco-terrorismo do
Greenpeace e o ataque do Governo Francês ao Rainbow warrior), o movimento pelos direitos
dos animais (o IRA - Intervenção e Resgate Animal pratica atos que estão no limite do
terrorismo) e o movimento feminista (que, na verdade, é transversal aos espectros políticos) -
ambos existem como grupos de pressão social política para a aprovação de medidas legislativas
de direito penal simbólico (medidas grátis na ótica do governo, ou de aumento de penas)
existem algumas diferenças fundamentais (bem como semelhanças):

Semelhanças:

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 Insistência no desfasamento entre a narrativa do sistema (atuação politica e judicial) e a


realidade social e opinião do "povo" (que alegam representar, ou na generalidade, ou
um certo sector)
 Insistência (quase sempre com exagero face à realidade estatística) na gravidade de um
certo problema social
 Defesa da criminalização/aumento de penas como única solução adequada para a
resolução do problema social

Diferenças:

 Representação e aumento da visibilidade de setores sociais (minorias étnicas, religiosas,


sociais, etc.) face às narrativas oficiais do sistema;
 Colocação em causa de tradições, costumes ou hábitos sociais vistos como lesivos da
dignidade (ou outros bens jurídicos) das minorias antes silenciadas ou invisíveis;
 Aceitação da integração ou diálogo com o sistema (constituição em associações ou
partidos políticos democráticos, cumprimento do jogo democrático);
 Abertura para a intersecionalidade e o diálogo conjugado;
 Defesa da Constituição e dos valores constitucionais.

Conclusões (características essenciais):

a) Narrativa assente na opinião do povo, do cidadão, das pessoas, do homem comum, etc.,
por oposição ao discurso do sistema que é visto como sendo dominado por elites
(corruptas, nepotistas);

b) Transição de um discurso racional assente na ciência, na estatística, em factos, para um


discurso de base emocional não suportado por qualquer base factual;

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c) Aproveitamento de momentos de crise (financeira, económica ou social) para introduzir


um discurso redutor divisório da sociedade entre o nós (os cidadãos de bem, geralmente
homens brancos de classe média/média baixa) e o "eles" (criminosos, reclusos, minorias
étnicas/religiosas, imigrantes, ...);
d) Utilização do medo como instrumento de controlo, com apoio dos media, através de
uma sobresepresentação mediática do crime, principalmente dos crimes excecionais, o
que gera uma falsa perceção de aumento da criminalidade ou de vivência em contexto
de criminalidade muito grave (embora, estatísticamente, a criminalidade tenha vindo a
diminuir de um modo geral);
e) Utilização da figura simbólica da vítima como instrumento de propaganda de
securitismo penal;
f) Transformação da mera perceção de segurança jurídica em bem jurídico legitimador de
neocriminalizações (as constituições reconhecem o direito à segurança jurídica, e é um
bem jurídico,
g) Transformação do crime em produto de entretenimento (transição do debate para o
daytime TV)
h) Defesa (e aprovação) da política criminal "tough on crime": aumento de penas, penas
mínimas, redução de direitos processuais, etc (colocação em causa de valores
constitucionais seculares).

Meios de combate: sensibilização dos media e construção de plataformas de compromisso;


sensibilização do contribuinte para o custo económico das medidas legislativas populistas face à
sua ineficácia na prevenção do crime (conversa de cabeleireiro).

JUSTIÇA: PILAR ESSENCIAL DA DEMOCRACIA


A tensão entre o direito à informação e à critica e o populismo a propósito da justiça
penal: perspetiva dos “critical legal studies”

 Democracia formal, como mera aparência de democracia: exercício fútil do voto (ausência
de alternativa ou mera alternância entre escolhas semelhantes); falta de informação
(controlo estatal da informação); faIta de consciência histórica (ausência de memória
histórica ou de debate sobre o contexto histórico).

 Incompatibilidade entre a democracia (Estado de Direito Democrático pluralista) e uma


"verdade oficial" (rejeição de verdades apriorísticas) e necessidade de livre circulação da
informação e de livre debate sobre a informação: em democracia, toda a verdade é uma
verdade construída a partir do debate e do compromisso (paralelismo com a tortura em
processo penal);
 O "fardo" de democracia e a alienação da população nas complexas sociedades modernas: a
democracia é tão forte quanto o menos informado dos seus cidadãos. O risco da alineação
dos cidadãos face ao cansaço e ao peso da informação constante e da tensão para,
constantemente, formarem uma opinião é uma das maiores ameaças à democracia;
 A reserva no exercício de cargos políticos (e públicos) e o voyeurismo populista: a ditadura
das agendas mediáticas na construção da agenda política e a perturbação da formação de
decisões políticas em prejuízo do interesse público.

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Caso Amanda Knox: a desgraça do ego

Amanda Knox estava a estudar em Itália, estava apaixonada e tinha um namorado novo, quando
a companheira de quarto, Meredith Kercher, foi violentamente morta no apartamento que
partilhavam Amanda Knox estava no pátio enquanto os polícias revistavam o apartamento;
estava com o namorado e deu-lhe um beijo na boca, enquanto aguardava. O beijo foi visto por
Giuliano Mignini, um Procurador do Ministério Público Italiano convencido de que é a
reincarnação do Sherlock Holmes.

No momento em que a despreocupada e inocente Amanda Knox deu um beijo na boca do


namorado, o seu destino ficou selado. Giuliano Mignini convenceu-se que aquele beijo era a
prova inequívoca da frieza assassina da Amanda e iniciou uma campanha mítica para conseguir
a condenação de Amanda e do seu namorado, Raffaele Sollecito, pelo homicídio da Meredith.
Giuliano descobriu que Amanda não era virgem, que mantinha relações sexuais com o
namorado de uma semana e que já tinha tido relações sexuais anteriormente. Para Giuliano, uma
rapariga de 20 anos que mantinha relações sexuais sem ser casada era uma tarada capaz de tudo,
até de matar. Giuliano descobriu que Amanda detinha um vibrador. Daí para a conclusão de que
a morte de Meredith foi um resultado de uma orgia ou de um jogo sexual malsucedido foi um
saltinho.

A influência judicial

Os serviços prisionais obrigaram (ilegalmente) a Amanda a fazer testes de deteção de HIV,


obrigaram-na (ilegalmente) a fornecer uma lista de todas as pessoas com quem tinha tido sexo, e
depois cederam esta informação ao Nick, que a publicou (já houve uma condenação civil em
Itália que deu tudo isto como provado e atribuiu uma indemnização à Amanda). É possível que
os serviços prisionais tenham dado a entender a Amanda que esta teria HIV como tática de
pressão e quebra emocional, para que esta confessasse (o Tribunal Europeu condenou em
Janeiro o Estado Italiano por violação do art. 3.° da CEDH). A Amanda mantinha um diário
onde registava estas informações e respetivos dilemas emocionais. O diário foi entregue pelos
serviços prisionais ao Nick, que publicou excertos (estrategicamente escolhidos) no tabloid
inglês.
Amanda foi condenada duas vezes (em primeira instância) e absolvida duas vezes (depois da
anulação do primeiro julgamento, foi absolvida da segunda condenação na Relação e no
Supremo).

Caso McCann

No caso McCann, a principal razão pela qual a investigação criminal entendeu concentrar-se na
linha de investigação que imputaria a morte (acidental) da criança a Kate McCann residiu no
facto de um dos investigadores ter concluído que uma mãe desesperada pelo desaparecimento
de uma filha não reagiria assim. A semelhança com o caso Amanda (para além do restante,
claro) é esta: efeito da normalização que é imposta à pessoas (em especial, às mulheres) no
contexto das reações emocionais expectáveis. A partir daqui a ciência (a prova é, também uma
ciência) torna-se secundária e as crenças transformam-se em provas. Claro, como uma crença
não é demonstrável, torna-se impossível a demonstração da inocência.

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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

Caso Joana

«O tribunal de júri tem uma legitimidade acrescida, pois a sua constitucionalização para o
julgamento dos crimes mais graves, embora a sua participação não seja obrigatória (art. 207.° da
lei fundamental), se inscreve nos princípios fundamentais do Estado de direito democrático no
que toca à democratização da organização judiciária. (..) neste caso, a convicção, para A
além de estar escudada numa fundamentação exaustiva, tem a suplementar garantia de nesse
processo ter intervindo um tribunal de júri, assegurando-lhe uma maior democraticidade, o que
quer dizer, uma base mais ampla e diversificada, de composição plural e heterogénea, com
expressão concentrada da própria fonte de onde emana a soberania e, portanto, uma maior
fiabilidade», STJ, 2006.
Uma análise fria dos factos que se podem dar como provados neste caso impõe uma conclusão:
não há provas, sequer, de homicídio doloso. A prova apenas permite sustentar - na melhor das
hipóteses - a prática de ofensas à integridade física agravadas pelo resultado morte (homicídio
acidental), sendo esta, aliás, a narrativa que melhor se enquadra na globalidade dos factos.

“White Bear” – Black Mirror

O episódio "White Bear", da segunda época da série "Black Mirror", uma mulher acorda num
quarto estranho numa cidade estranha e descobre que está a viver numa distopia em que a
esmagadora maioria da população se transformou em meros "observadores" e que uns poucos
humanos não afetados pela alienação se dedicam a caçar pessoas para alimentar a sede de
espetáculo dos "observadores" (todos agarrados aos seus telemóveis ou câmaras, vão filmando
as caças, as torturas e as mortes).
No final, o episódio revela a distopia dentro da distopia: a nossa protagonista é afinal uma
condenada pelo rapto, tortura e morte de uma criança, tendo ajudado o namorado e filmado a
tortura da criança. Como "pena", foi condenada a permanecer no "Parque Prisional White Bear"
onde, todos os dias, recomeça a história (é lhe sistematicamente apagada a memória) de
perseguição e terror, terminando na exibição da condenada ao público (os tais observadores,
são-no, realmente).
«An exciting and efficient piece of narrative rug-pulling that mocked, above all, our insatiable,
voyeuristic, neo-Medieval thirst for supposedly "real-life" pain and humiliation repackaged as
entertainment» - Crítica do The Telegraph.

Execução ao vivo

Se a distopia do "White Bear" nos choca - e deveria chocar! - temos que compreender que não é
totalmente infundada face à realidade.
A execução da pena de morte nos EUA é feita com assistência - familiares do condenado,
familiares das vítimas, testemunhas, grupos de interesse - entendendo-se que, principalmente
para os familiares das vítimas, assim se obtém a satisfação da vítima e a pacificação social
(prevenção geral).
O episódio poderá ter sido inspirado num caso real - Moors Muders, década de 60 – muito
semelhante, em que um casal raptava, violava e matava jovens, tendo a parte feminina do casal
(Myra Hindley) tirado fotografias e gravado os gritos de uma das vítimas. Myra - que morreu na
prisão em 2002 - tornou-se um símbolo do mal e alvo de ódio nacional em Inglaterra. lan Brady,
declarado mais tarde como doente mental, mantém-se preso.

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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

Por outro lado, o voyeurismo penal e a força popular das redes sociais podem estar já hoje a
gerar feitos semelhantes

Reflexões

 O sistema do pelourinho: Com a consolidação do Estado de Direito Democrático -


compreensão de que ao Estado não cabe a reformação moral dos seus cidadãos - a
prevenção geral tornou-se o substituto simbólico da retribuição. É possível que o EDD
se tenha esquecido da importância simbólica da retribuição como forma de catarse
social. Existe, também, grande confusão entre prevenção geral e alarme social
(especialmente o que é criado pelos media). Prevenção geral não visa a satisfação dos
clamores sociais.
 A pacificação social, o voyeurismo penal e as redes sociais: A insistência dos media -
mas, principalmente, a forma medieval como é feita a abordagem mediática do crime,
os termos utilizados, a demonização, os comentadores do crime a pedirem sangue e a
apontarem o dedo - cria uma perceção social distorcida da realidade e do fenómeno
criminal.
 Trial by media e justiça penal: a construção de uma narrativa – quase sempre falseada -
de culpabilidade pelos media cria um ambiente persecutório de convicção popular
extremamente difícil de contrariar. A justiça deixa de ser exercida com distanciamento e
racionalidade probatória, passando a corresponder a uma versão mais sofisticada
(porque conduzida num tribunal, com juízes de beca, que utilizam linguagem jurídica)
de meros julgamentos populares.

CRITICAL LEGAL STUDIES: CONCEITO (S)

Os "Critical legal studies" foram um movimento jurídico/sociológico/filosófico dos anos 70/80.


Trata-se de um movimento e não de uma corrente doutrinária unívoca e homogénea. Como
movimento, ele tem alguma dispersão e heterogeneidade, pelo que não é possível oferecer um
conceito precisamente delimitado ou exato dos estudos críticos do direito.

Características fundamentais:
a) Critica ao "legal liberalism" (falsa conceção neutra da lei fora de um contexto de luta
política, associado à negação de uma função da lei de intervenção na sociedade ou
como instrumento de manutenção/correção de injustiças sociais);
b) Consciência da importância da metodologia e da teoria do direito como condutoras
desta falsa neutralidade.

Crítica ao legalismo positivista (liberal legalism): para compreender a crítica, é necessário


conhecer os pilares do legalismo positivista que dominava a doutrina à época (e, de certo modo,
ainda domina):
a) Separação da lei de outras formas de controlo social (lei como categoria neutra ou
consensual);
b) A norma como reguladora de algo e de si própria;
c) A norma como entidade neutra e obietiva:
d) Previsibilidade e uniformidade de aplicação judicial da norma.
Os estudos críticos do Direito procuram, então e essencialmente, demonstrar que não é possível
regular os conflitos sistemáticos e persistentes entre os interesses individuais e os interesses

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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

sociais através de um sistema de normas neutras e objetivas. Para este movimento, o uso de um
modelo "neutro" de normas como mediador destes conflitos teria como resultados apenas o
reforço do desequilíbrio dos poderes já existente na sociedade e a manutenção de um status quo
de profunda desigualdade (na distribuição de recursos e rendimentos). Deste modo, o
movimento acaba por colocar em causa, criticamente, a pretensão de racionalidade do
movimento iluminista.

Os "Critical legal studies", enquanto movimento, colocam em causa uma visão hegemónica do
direito, da lei e da aplicação judicial do direito, apelando às "fundamental contradictions" e à
relevância cultural das perceções sociais sobre a juridicidade ("legal conscientiousness"),
sugerindo que a aplicação da lei de acordo com a metodologia vigente apenas permite a
manutenção do status quo e dos desiquilibrios de poder. Em substituição, sugerem que os juízes
recorram (mais) à equidade e ao sentido de justiça (fairness).

Critical Legal Studies: o pensamento de UNGER


Vocação maior do Direito: Caracterização e regulação do funcionamento do Estado à luz de um
sistema idealizado (de justiça, democrático, ou não, oligárquico, ditatorial, etc.)
Vocação menor do Direito: resolução de disputas e conflitos entre cidadãos ou entre estes e o
Estado;
Coerência do sistema: «A recusa em sacrificar a vocação maior à menor não nos autoriza a
negar a importância da última. Se a questão de como juízes (e outros solucionadores de disputas
e intérpretes quase ou extrajudiciais) devem decidir casos não pode ser o tema central da teoria
jurídica, é, não obstante, uma questão que qualquer teoria do direito precisa responder. Nossa
visão da vocação menor, todavia, não pode contradizer nosso entendimento sobre a vocação
maior. Deve repousar sobre os mesmos pressupostos e servir aos mesmos fins, se nossa
compreensão do direito for coerente.»

Três elementos da história do pensamento jurídico:


a) Busca doutrinária incessante por uma ordem natural ou imanente de organização social;
b) Emanação da vontade de um soberano;
c) O direito como estrutura da sociedade

«Como pode o direito ser uma ordem normativa imanente, de uma só vez revelada e refinada
pelo labor da doutrina, mas também ser o que quer que o poder soberano no estado haja
decidido que ele deve ser?», p. 75.
«Não podemos entender ou implementar qualquer sistema de doutrina exceto por referência ao
mundo social e cultural a que ele pertence. Suas categorias são sem significado e sem vida se
fracassam em tomar vida e significado desse contexto, e especialmente dos arranjos e
pressupostos formadores de uma sociedade. Aqueles que organizam suas atividades
econômicas, políticas e culturais rotineiras, incluindo as atividades pelas quais ela constrói o
futuro no presente. Tais pressupostos e arranjos compreendem a estrutura da vida social: o
terceiro elemento na história universal do pensamento jurídico e o parceiro silencioso dos outros
dois elementos.», p. 76

Critical legal studies - estudos críticos do Direito: assentam, essencialmente, na crítica ao


formalismo (noção de que o método lógico de decisão de casos ou de aplicação da norma ao

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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

caso é o único método admissível) e ao objetivismo (noção de que a aplicação do direito é


neutral face às disputas políticas que estão na base da criação do direito). (pp. 142 e ss,)

Legal conscientiousness: conceito(s)

Pergunta metodológica dificil dos estudos críticos: Como é que tantas pessoas que são histórica
e sistematicamente desfavorecidas por um sistema construido e assente na manutenção desta
desigualdade, ainda assim aceitam acriticamente a legitimidade de tal sistema?
*Central to this concern is ideology, conceived as a mechanism which forms the consciousness
of agents. Underlying this preoccupation with ideology is a concern with the question: how is it
that those who are systematically disadvantaged by the existing order nevertheless accept the
legitimacy of the institutions and values which perpetuate their subordination? The concept of
ideology, and its associates "legitimation' and 'hegemony, provide the means through which the
persistence of relations founded on inequality and subordination are explored. The initial
hypothesis is that law can be fruitfully analysed as an ideological form, and that legal ideology
plays some contributory role in the reproduction of human subordination. (...) The leap is made
from the legal consciousness of judges and lawyers to the consciousness of those outside the
institutional apparatus of law. This leap' is well caught in a characteristic formulation by Karl
Klare. 'Legal discourse shapes our beliefs about the experience and capacities of the human
species, our conceptions of justice, freedom and fulfilment, and our visions of the future (my
emphasis AJH). The leap is enshrined in the innocent but problematic term 'our; if 'our' refers to
judges, lawyers or legal academics then the formulation entirely uncontroversial. If 'our' is used
as the or popular consciousness then the claim made controversial.», Alan Hunt, 11/12

Legal conscientiousness (conceção estrita): De acordo com uma conceção estrita, o termo
aplica-se ao conjunto de ideias, pressupostos, premissas, pre-juízos (narrativa inconsciente) que
são - inconscientemente - partilhados pelos atores judiciais (juizes, advogados) e que constituem
uma espécie de experiência inconsciente comum dos membros desta profissão/categoria. Estas
ideias são geralmente inconscientes, embora possam ter um papel forte na rejeição ou aceitação
imediatas (incontestadas - sem questionamento crítico) de determinadas proposições.

«The notion behind the concept of legal consciousness is that people can have in common
something more influential than a checklist of facts, techniques, and opinions. They can share
premises about the salient aspects of the legal order that are so basic that actors rarely if ever
bring them consciously to mind. Yet everyone, including actors who think they disagree
profoundly about the substantive issues that matter, would dismiss without a second thought
(perhaps as "not a legal argument" or as " simply missing the point") an approach appearing to
deny them.», Duncan Kennedy, p. 6.

Legal conscientiousness (conceção ampla): De acordo com uma conceção ampla, o termo
aplica-se à narrativa inconsciente sobre o Estado, Direito, e as instituições sociais reguladas pelo
direito que é partilhada pela generalidade da população. Esta narrativa não é construída pela
população, espontaneamente, ela é criada pelas elites que dominam as profissões jurídicas e o
Estado, mas acaba por ser aceite (inconscientemente e, tantas vezes, sem reservas), pela restante
população.

Legal conscientiousness: mediação cultural

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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

Estudos feitos com vítimas de discriminação (pessoas que integram minorias, pessoas com
deficiência, etc.) demonstram uma consciência jurídica fortemente marcada pela mediação
cultural, mais distante da lei. A maioria destas pessoas não apresenta queixa quando é alvo de
uma atitude ou ação discriminatória, enquadrando tais comportamentos de modo defensivo ou
negacionista (rejeita a ideia de que não reagiu a uma ofensa), atribuindo tais comportamentos a
brincadeiras, praxes, ou demonstrando indiferença (falsa).

Exemplo real português omnipresente: a reação tradicional (táticas de resistência) da mulher


portuguesa ao assédio sexual de rua (ordinário):
a) "Mulher séria não tem ouvidos" (tática negacionista que reprime o direito à indignação e à
revolta, assente na crença profundamente resignada de que estes comportamentos são
inevitáveis;
b) "sentido de humor/elogio" ("defection", distorção do que é sentido instintivamente como uma
agressão, mas, por ser culturalmente tolerado, "deve" ser visto como humor e descontração (sob
acusação de ser puritana, demasiado sensível);
c) "reciprocidade" (devolução do insulto, ou reação agressiva - recurso à autodefesa, ainda
assente na premissa da ausência de um enquadramento legal e/ou do total falhanço do sistema
em conter tais comportamentos).

Fundamental contradictions: conceito


Fundamental contradictions: a expressão expressa simultaneamente a rejeição, por parte dos
estudos críticos, da ideia de que a lei poderia assentar numa composição harmoniosa de
interesses (consciências da profundas e talvez irresolúveis contradições de interesses na
sociedade), e, ainda, o sentido primário das contradições mais nucleares: "eu e o outro",
"público e privado", "Estado e sociedade civil, etc. Para alguns autores, estas contradições
resultam do liberalismo legalista (podem ser resolvidas por modelos alternativos), para outros,
são inerentes à condição humana (qualquer modelo alternativo apenas as podera atenuar). O
consenso surge em torno da incapacidade (falhanço) que o modelo legalista liberal tem para
resolver estas contradições (ou conflitos).

Reflexões finais
Relações umbilicais entre Democracia e Justiça:
 - A eficácia da justiça é um dos pilares da estabilidade democrática (confiança nas
instituições e pacificação social)
 - A insegurança (o medo do futuro) é um dos fatores centrais na instabilidade
democrática (e si, revelador da falta de confiança nas instituições, sendo também
gerador de fenómenos de irracionalidade social)
 - A perceção social distorcida da insegurança e falência da justiça constitui uma ameaça
concreta à estabilidade democrática
 - A pressão popular por justiça (assente numa visão destorcida da injustiça, instigada
pelos media) está diretamente relacionada com o endurecimento dos discursos políticos
(políticas de "tolerância 0"), a aprovação de leis penais excessivas, simbólicas,
violadoras de direitos fundamentais, ou seja, em geral, com o empobrecimento do
Estado de Direito.

30
Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

Em 1946, Winston Churchil faz um discurso nos EUA sobre a "ameaça soviética", mais
conhecido como o "Iron Curtain Speech", em que, no meio da demonização do comunismo,
afirma o seguinte:
«Here is the message of the British and American peoples to mankind. Let us preach what we
practice - let us practice what we preach. Though I have now stated the two great dangers which
menace the home of the people, War and Tyranny, I have not yet spoken of poverty and
privation which are in many cases the prevailing anxiety. But if the dangers of war and tyranny
are removed, there is no doubt that science and cooperation can bring in the next few years,
certainly in the next few decades, to the world, newly taught in the sharpening school of war, an
expansion of material well-being beyond anything that has yet occurred in human experience»

 A democracia é tão forte quanto o mais desinformado (ou mal informado dos seus
cidadãos);
 Os media têm uma influência determinante na perceção social (sobre a realidade, o que
inclui a política e a justiça) e na tomada de decisões dos mais altos responsáveis
(políticos e juizes);
 Estamos a evoluir muito depressa e que as inovações tecnológicas (que trazem
profundas mudanças sociais) estão a suceder-se demasiado depressa não nos deixando
tempo para refletir, para que se possa construir uma resposta social (e moral) a tais
inovações;
 Regressar ao passado do ponto de vista tecnológico não é uma opção (neste momento,
pensável);
 Restringir a liberdade de expressão/imprensa não é uma opção (compatível com o
Estado de Direito);
 Só nos resta apostar no mais difícil: a educação e a pedagogia (de crianças e de adultos)
 Sabendo também que o calcanhar de Aquiles da Democracia é a sua vulnerabilidade à
conversão num modelo totalitário - o pior cenário da Democracia é deixar de o ser -
tornando-se absurdo encontrar uma solução para este problema em alternativas não
democráticas (não podemos proteger a democracia com instrumentos anti-
democráticos)

Filha mata mãe e outras histórias de género

O efeito d’ “O Homem que mordeu o cão”


O "homem que mordeu o cão" é um aforismo jornalístico, cunhado por Alfred
Harmsworth (não, não foi o Nuno Markl), que expressa o seguinte: um acontecimento invulgar,
de algo raro, surreal, improvável, tem muito maiores probabilidade de ser noticiado do que
acontecimentos, ainda que graves ou preocupantes, regulares ou frequentes.
Este aforismo tem um peso especial na interseção entre o crime e o género (feminino),
como se vê por este exemplo gritante: 21 mulheres mortas pelos companheiros homens em
2018; uma única mulher morta por outra mulher em 2018. Numa notícia sobre as mortes de
mulheres, quase todas por violência doméstica, o destaque da capa é o caso da filha que matou a
mâe.
Ora, como a maioria das pessoas apenas vê as fotografias e lê "as gordas" (oS títulos), a
junção do efeito do aforismo com os estereótipos e preconceitos de género é perversa para a

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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

mulher, gerando uma perceção (falsa) de que as mulheres são mais


perigosas ou que matam mais.

O populismo penal nos media – Efeitos na decisão judicial

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/06/2011, processo n.° 1584/09.3PBSNT.L151

Não ficam por aqui as perplexidades suscitadas pela decisão recorrida que se potenciam
com afirmações nela constantes a justificar a perspectiva permissiva na apreciação do tipo legal
de homicídio e que são inexactos. Assim, reportando-nos aos dados das Nações Unidas relativos
a 2004 (últimos publicitados pela mesma entidade e lembrando que, desde essa data tem
aumentado o número de homicídios dolosos no nosso País) Portugal é um dos países europeus
com maior taxa de homicídios como se constata de estatística anexa.
Portugal não era em 2004, e muito menos será agora (de acordo com os Relatórios de
Segurança Interna de 2005 e anos seguintes), o paradigma do país de brandos costumes que a
decisão recorrida pretende encontrar
A segunda inexactidão é uma pretensa quota de homicídios "passionais» que,
pressupondo uma prévia definição concreta do conceito, abarca uma realidade que não está
estudada e quantificada.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-07-2011, processo n.° 432/09.9]ALRA.C1.S1

«No caso dos autos, ponderam-se as exigências de prevenção geral e especial, sendo as
necessidades de prevenção geral muito elevadas, numa sociedade em que se assiste a um
constante aumento da criminalidade, que conduz, necessariamente a um incremento da
insegurança que se verifica actualmente (agravada como, quando é o caso, se utilizam armas de
fogo), com todas as consequências e sequelas daí decorrentes. Por isso, é legítima a expectativa
da sociedade na reafirmação da vigência das normas violadas pelo arguido, através de uma
punição rigorosa e firme.
As necessidades de prevenção especial afiguram-se elevadas pois, não obstante o
arguido não ter antecedentes criminais, os factos provados revelam uma personalidade não
respeitadora de valores elementares e fundamentais, quer de natureza jurídica, quer de natureza
moral.»

Conclusão: A/Os juízes não são, obviamente, imunes ao efeito que os media exercem sobre a
perceção social do crime. Mais, o modo como a comunicação social retrata a criminalidade em
Portugal pode ter - e teve nestes dois acórdãos - um efeito direto, mensurável, na decisão
judicial, especialmente no que respeita à determinação da medida da pena, sendo esta influência
inserida na análise das necessidades de prevenção geral

Justiça tabloide

Contudo a mediatização da justiça pode também servir para manter o statu quo, sob a
ilusão da participação e da transparência, reduzindo a vivência democrática a níveis inferiores,
sem que tal se afigure perceptível aos cidadãos. Esta *comodificação*da justiça ocorre, por
exemplo, pelo facto de a cobertura mediática de casos criminais ser frequentemente formatada
para consumo e entretenimento enão necessariamente como contributo para a educação e

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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

formação cívica das audiências (Fox et al. 2007; Surette, 1998). Certo e, como referem Fidalgo
e Oliveira (2005: 1), que a justiça e os média terão que encontrar plataformas de mutuo
entendimento, em prol da própria democracia. Nas palavras dos autores, A Justiça e a
Comunicação Social estão «condenadas» a viver em conjunto. Assim, o exigem os princípios de
transparência e de publicidade da administração da justiça, bem como o escrutínio democrático
dos cidadãos relativamente aos poderes do Estado, que
é em boa medida feito indiretamente através dos media. Dramatização da justiça e mediatização
da criminalidade: Que rumos para o exercício da cidadania? Helena Machado e Filipe Santos.
Ray Surette (1998), num estudo aprofundado acerca das interações entre a justiça e os
média, sintetiza da seguinte forma o conjunto de preocupações levantadas pela dramatização
mediática do crime e da justiça: ®) a maioria da cobertura mediática diz respeito a crimes
violentos ou extraordinários cuja representação é desproporcional face aos dados oficiais; i) as
explicações das causas do crime" provêm principalmente da parte de indivíduos ligados ao
sistema de justiça e são geralmente simplistas e individualizadas; ii) a ênfase exagerada sobre os
crimes violentos e as falhas ao nível da divulgação de medidas e técnicas de prevenção do risco
pessoal leva a medos exagerados de vitimização; iv) a cobertura mediática tende a incrementar a
comodificação do crime as custas de escaladas nas divisões raciais e no medo do crime
(Surette:1998:78) .Dramatização da justiça e mediatização da criminalidade: Que rumos para o
exercício da cidadania?, Helena Machado e Filipe Santos

"justiça tablóide*. Este conceito procura caracterizar o fenómeno em crescimento nos Estados
Unidos da América, pelo qual o interesse dos média por julgamentos e investigações é mais
derivado de interesses comerciais do que educacionais ou informativos, consistindo em três
principais características: Em primeiro lugar, o papel educacional dos média é preterido em
favor do entretenimento. Desse modo, a cobertura de um caso judicial acaba, muitas vezes, por
se dedicar aos pormenores e características dos indivíduos envolvidos, mais do que abordar as
questões de fundo. O segundo elemento tem que ver com o frenesim que afecta os média na
cobertura de determinado caso, isto é, o volume excepcional de espaço (no caso dos jornais),
tempo, energia e recursos que são devotados pelos diferentes órgãos de comunicação social. A
terceira característica do ambiente de justiça tablóide* aponta para a presença de um público
ansioso por assistir aos procedimentos, podendo com isso adquirir compreensão acerca do
sistema de justiça e avaliar o mesmo. O que o referido estudo vem demonstrar é que a cobertura
mediática de estilo tablóide de alguns casos criminais tem essencialmente a ver com decisões de
pendor comercialista, com prejuízo para a qualidade da cobertura jornalística. Dramatização da
justiça e mediatização da criminalidade: Que rumos para o exercício da cidadania?. Helena
Machado e Filipe Santos

Mulheres mentirosas e falsas queixas

Impacto da exposição à violência doméstica na infância:

• Diminuição das capacidades cognitivas (problemas na vinculação e mentalização, e


emocionais exposição nos primeiros anos de vida);

• Maior risco de aprendizagem de comportamentos violentos e futura vitimização (mulheres) ou


agressão (homens) (exposição na infância e adolescência).

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Estudos de Criminalidade Ana Figueiredo

Existem falsas queixas, obviamente, como em qualquer crime. Poderão até ser
ligeiramente superiores a crimes frequentemente praticados por desconhecidos (furtos, pe.). Mas
nada indica que haja uma percentagem esmagadora ou muito superior de falsas queixas nestes
crimes. O que implica que as perceções judiciais de falsas queixas se expliquem de outro modo:
policias e magistrados não acreditam nas mulheres vítimas. E isto sim, aliado à aplicação
abusiva de penas suspensa, está causalmente relacionado com a morte de mulheres.
Por outro lado, muitas das alegadas "falsas queixas" resultam de problemas de perceção
cultural, valorização e desvalorização de conflitos conjugais (com violência real depois negada
ou bilateral) e da posterior negação da vítimas por medo ou arrependimento.
Um agressor doméstico não é um bom pai nem pode ser tratado como um bom pai pelo
tribunal. Um agressor doméstico (mesmo que apenas agrida a/o cônjuge) nunca é um bom pai,
pois está a colocar a saúde e o desenvolvimento dos filhos em risco. Pode vir a ser um bom pai,
no futuro. E pode vir a ser beneficiário da residência alternada, caso demonstre ter mudado as
razões que motivaram o comportamento agressivo e dê provas de ser, de novo, uma influência
positiva na vida da criança. Não pode recair sobre a mãe/mulher agredida todo o fardo de "gerir
as suas emoções" (conter o medo, o trauma e a preocupação) numa situação de conflito em que
tenha sido comprovada a existência de VD praticada pelo companheiro.
Existem, efetivamente, preconceitos contra a Residência Alternada na magistratura,
muito assentes na ideia - também falsa - de que a mãe é a melhor cuidadora, principalmente
para crianças pequenas. Estes preconceitos são resultado de uma sociedade machista, não culpa
do feminismo...

Em suma:
Excessos e discursos absurdos em nada contribuem para o debate, fundamental, em
torno do machismo e do impacto dos estereótipos ou preconceitos de género na sociedade
(incluindo na vida policial e judicial)
Qualquer revolução cultural - e o feminismo é, talvez, a revolução cultural mais
dramática e assustadora de sempre, pois não deixa nada por mexer, nem a intimidade - provoca
fortes reações, fortes resistências e fortes movimentos antagónicos
Os movimentos neo-machistas ou simplesmente conservadores querem que o
feminismo se reduza à censura da violência doméstica (o único assunto considerado legítimo
para a causa feminista). Assim, as feministas devem poder lamentar as mulheres mortas
anualmente (repetindo-se à exaustão, "que grande flagelo social é a violência doméstica"), mas
quando ousam atacar as razões mais profundas da violência de género são sistematicamente
descredibilizadas (recorrendo-se à mentira e à falsificação ou descontextualização de dados
estatísticos), e violentamente atacadas como "feminazis" ou o equivalente do machismo. Ou
seja, somos todos contra a violência doméstica, mas nada de ousar questionar os "porquês" ou
mudar a realidade social que a promove, para que tudo fique na mesma: mais de 20 mulheres
mortas, todos os anos, e tantas outras mera sobreviventes.

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