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Willem Dafoe e o compositor sérvio Marko Nikodijević.
“Quanto tinha 14 anos, estava sentada na cozinha da
minha avó” — com quem viveu até aos seis anos — “a
tomar o pequeno-almoço. O rádio estava a tocar, de lá
saía a voz mais pura que tinha ouvido na vida. Não fazia
a mínima ideia de quem era aquela mulher, não sabia o
que estava a cantar, não sabia que era em italiano,
nada, mas levantei-me da cadeira, aproximei-me do
rádio e comecei a chorar, sem conseguir controlar-me.
Só chorava, chorava, chorava. Era uma voz tão forte que
me atingiu diretamente o coração. Até que o radialista
disse que o que tinha acabado de tocar era uma ária
cantada por Maria Callas, nem me lembro de que ópera
era, não interessava, ela era a melhor a cantar. Fiquei
fascinada pela sua voz, pelo carisma. Só depois conheci
a sua vida e encontrei uma série de semelhanças
comigo. Era uma mulher muito curiosa, tinha tido uma
relação complicada com a mãe, como eu tive, e relações
caóticas com os homens. Apaixonei-me por ela e pelo
seu coração despedaçado, tal como o meu que, quando
o meu ex-marido me deixou, quase parou de bater,
partiu-se. Ela morreu de amor, de coração partido. O
que eu queria era fazer uma verdadeira ópera e morrer
nela”, diz de forma dramática. Por isso, transformou-se
nas personagens femininas de óperas em que as
mulheres acabam por morrer. Escolheu sete óperas
onde isso acontece: “La Traviata”, “Tosca”, “Otello”,
“Madame Butterfly”, “Carmen”, “Lucia de Lammermoor”
e “Norma”. “São sete mortes diferentes, uma morre
esfaqueada, outra estrangulada, outra queimada, outra
de loucura, por saltar de um edifício... Todas mortes que
incluem dor física.” Uma dor que espalhou pelas
performances que a tornaram conhecida mundo fora,
numa tentativa constante de esmagar os limites do
corpo e as capacidades da mente.
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“Tenho uma vida interessante, dolorosa, cheia de
dramas, muitos medos, altos e baixos. Pensei no meu
passado, venho da ex-Jugoslávia, vivi no regime de Tito,
passei por um período difícil com a minha família,
construí o meu trabalho, criei o meu nome a partir do
nada”
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escrever a minha biografia posso inspirar outros: se eu
consegui, eles também podem conseguir.”
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no deserto de Gobi. O percurso, mais uma performance
de êxito, “The Lovers” de seu nome, chegou a acontecer
em 1988, mas em vez da boda, o mundo assistiu à
separação dos dois. Seguiram-se 22 longos anos sem se
verem e sem se falarem. Até que, há dez anos, Ulay se
apresentou na inauguração da mais bem sucedida
performance de Abramović, “The Artist Is Present”, no
MoMA, em Nova Iorque, e se sentou à frente dela, dando
lugar a um dos momentos mais comoventes da história
da arte performativa. “Essa foi a peça mais simples de
fazer. Bastou-me ficar sentada numa cadeira. No
entanto, foi a mais exigente mentalmente”, lembra.
Marina esteve oito horas por dia, durante três meses,
sentada no átrio daquele museu a receber pessoas que
se sentavam à sua frente e para quem olhava sem dizer
palavra ou sequer mexer-se. Não havia espaço para
comida, água, ou intervalos para a casa de banho.
Foram “visitá-la” 850 mil pessoas.
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performances senti-me tão satisfeita e realizada. No
entanto, foi tudo menos fácil, foi tão difícil. Na altura, a
performance era tudo menos uma arte, não era aceite
como hoje, foi preciso passarem 30 anos para que fosse
considerada como arte. Quem fazia arte performativa
era tido como um louco, era alguém que devia estar num
hospital psiquiátrico. Diziam que era ridículo, que era
exibicionismo. Fui muito, muito criticada, insultada,
espezinhada. Foi um tempo horrível, desse ponto de
vista. Mas eu acreditava tanto na performance. Acreditei
na arte performativa toda a minha vida. É uma felicidade
fazer agora este programa de televisão e poder mostrar
o trabalho de 73 artistas de vários países com
perspetivas diferentes sobre o mundo e sobre a arte.
Sinto-me orgulhosa e tento ao máximo tornar as coisas
mais fáceis para os artistas mais jovens. No meu tempo
era totalmente inaceitável.”
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Marina Abramović passou a vida a quebrar barreiras, a
mudar de território, a fazer mais e mais difícil, mais e
mais forte, tanto a nível mental como físico. Foi sempre
esticando a corda o mais que conseguia. Envelhecer
para ela é algo que “não é de todo fácil”. Mas sorri.
“Acordo de manhã e dói-me o pescoço ou as costas, aqui
e ali. Faço exercícios para compensar isso. Também faço
uma dieta constante. Só que depois como, adoro comer,
especialmente chocolates. O meu problema são os
doces. Porém, quando tenho uma performance para
apresentar entro numa dieta restrita e faço exercícios
rígidos. O pior é que não tenho controlo sobre mim,
quebro a regra. Sou preguiçosa, como chocolates e vejo
televisão na cama...”, conta, a cozinha lá de casa em
pano de fundo.
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histórias”, sublinha. “Nos ensaios estava sempre a
chorar porque me era muito difícil fazer aquilo. ‘Porque
estás a chorar?’, perguntava-me Robert Wilson. ‘Isso é
um disparate, não tens que chorar, estás bem, não
estás?’ Eu estava a mostrar e a partilhar todos os meus
segredos com o público. A infância difícil e até a mãe
com quem tive uma relação tão rígida e fria. Tive de me
consciencializar de que aquilo era um trabalho artístico,
que não era o raio da minha vida.” A peça começa
precisamente com a sua infância, revela a sua
intimidade e põe a nu a sua estrutura emocional.
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E também daquilo que aprendeu ao longo da carreira.
“Primeiro aprendi a nunca desistir. Aprendi a seguir a
minha intuição e o meu coração, mesmo que tudo e
todos estivessem contra mim.” Depois da tempestade
vem a bonança, acredita. “Depois de maus tempos vêm
sempre tempos bons. Aprendi a nunca ficar presa a
nada, a seguir apenas os sonhos.” Por outro lado, na
mesma linha de pensamento, considera que “é muito
importante não deprimirmos, não nos sentirmos isolados
e sós”, sobretudo aos 70 anos. “Digo sempre aos meus
amigos que na idade deles, que é a minha, a depressão
é um luxo a que não nos podemos permitir. Quando se
é mais novo pode-se entrar em depressão, mais velho
nunca. Temos menos tempo para gastar. Temos de viver
o mais possível.”
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Quanto às performances de longa duração, a sua prática
performativa, Marina não tem dúvidas, “esta é a forma
de arte mais importante que existe. Não é possível fingir,
é a vida que ali está, temos de ser nós próprios. Numa
performance que dure um mês, dois meses, oito horas
por dia, todas as aparências desaparecem, partem-se,
caem. A eletricidade vem ao de cima e o diálogo entre
as pessoas nasce”. Mesmo que isso implique um
gigantesco nervoso miudinho antes de cada
performance ter início. Aquela angústia da espera, a
vontade de que comece, quer vá correr bem ou mal.
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de procurar novos territórios, não gosto de me repetir,
gosto de me surpreender. Gosto de explorar.” Em palco
ou onde quer que seja, Marina mostra-se como um todo.
“É mais fácil mostrar força do que vulnerabilidade. E é
importante cometer erros, falhar, quando falhamos
aprendemos.”
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aquilo que fizemos. Simboliza toda e qualquer guerra,
não só a Guerra dos Balcãs.”
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Hoje, já o repetiu mais do que uma vez, acredita “que
os artistas são o oxigénio da sociedade, que a arte só é
entendida no futuro e que é por isso que muitos artistas
são incompreendidos pela sociedade em que vivem.”
Acha que “o corpo é a casa da alma e que a alma pode
ser muitas vidas”. Crê no corpo que morre, na alma que
vive sempre. “A alma é a única coisa que pode dar
energia”, afirma, a fé da avó ao frequentar a Igreja
Ortodoxa a bater-lhe ainda no coração, a convocação
das energias a chamá-la sem dó nem piedade, o fluxo
da vida a correr-lhe em sangue eslavo. “Sou uma mulher
determinada.”
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