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Perfil de uma guerreira

FILIP VAN ROE

A BBC acabou de lhe traçar o perfil em documentário.


Há seis anos, a revista “Time” já a considerava uma das
100 pessoas mais influentes do mundo. Agora, a Royal
Academy of Arts convida-a para ser a primeira mulher a
expor na instituição com mais de 250 anos de história.
Marina Abramović, 40 e muitos anos de carreira,
continua a fazer da performance uma arte carregada de
energias que levam ao limite o corpo e a alma

texto ALEXANDRA CARITA

É o primeiro dia de neve no norte do estado de Nova


Iorque. Marina Abramović, 74 anos acabados de fazer
(30 de novembro), mostra a paisagem que a rodeia,
naquela casa em forma de estrela de cinco pontas, que
comprou no início dos anos 2000, o comunismo ainda a
tocar-lhe a vida. “Foi um ano difícil”, diz do outro lado
do ecrã, “mas um milagre absoluto” também. Conseguiu
levar a cabo três projetos de grandes dimensões e em
meios completamente diferentes uns dos outros. Em
setembro estreou a ópera “The Seven Deaths of Maria
Callas”, em Munique; o canal Sky Arts já a tinha
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convidado para fazer a curadoria de uma série de horas
de performances, para passarem na televisão; e a
tecnologia tinha tomado conta da sua arte em “Life”,
uma obra de realidade virtual e realidade aumentada,
cuja versão três, foi leiloada em outubro pela Christie’s.

Agora a notícia é outra e já corre mundo. Marina vai ser


a primeira mulher a expor na Royal Academy of Arts, em
Londres, em 252 anos de história. A exposição deveria
realizar-se este fim de ano, mas devido à covid-19, foi
adiada para a próxima temporada. “É uma grande
responsabilidade. Lá, só mesmo os grandes artistas é
que têm exposto, artistas gigantes como Anselm Kiefer,
Anish Kapoor ou Georg Baselitz. Todos homens. Deram
esta oportunidade a uma mulher e tenho de fazer algo
de muito, muito bom, tão bom que possa abrir as portas
a outras mulheres. Há artistas maravilhosas. O convite
apanhou-me de surpresa, mas depois veio o medo. É um
lugar enorme, onde toda a gente quer chegar.”

A exposição vai chamar-se “After Life” e inaugura a 25


de setembro de 2021. Supersticiosa, “não vou contar
nada sobre o trabalho”, afasta as expectativas dos que
querem vislumbrar o novo passo da maior artista
performativa do mundo. Estrela à escala global, com
milhões de seguidores, Marina deixa antever, porém,
que a par dos inéditos que apresentará, poder-se-á
revisitar as obras mais icónicas que ofereceu ao público
em 40 e muitos anos de carreira. A avó da performance,
como lhe chamam carinhosamente, prefere falar do
passado. Começamos pelo mais recente.

“The Seven Deaths of Maria Callas” espelha o seu


enorme fascínio pela soprano grega. Um trabalho
magnífico, que mistura teatro, canto, cinema e
performance, no qual colaboram também o amigo

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Willem Dafoe e o compositor sérvio Marko Nikodijević.
“Quanto tinha 14 anos, estava sentada na cozinha da
minha avó” — com quem viveu até aos seis anos — “a
tomar o pequeno-almoço. O rádio estava a tocar, de lá
saía a voz mais pura que tinha ouvido na vida. Não fazia
a mínima ideia de quem era aquela mulher, não sabia o
que estava a cantar, não sabia que era em italiano,
nada, mas levantei-me da cadeira, aproximei-me do
rádio e comecei a chorar, sem conseguir controlar-me.
Só chorava, chorava, chorava. Era uma voz tão forte que
me atingiu diretamente o coração. Até que o radialista
disse que o que tinha acabado de tocar era uma ária
cantada por Maria Callas, nem me lembro de que ópera
era, não interessava, ela era a melhor a cantar. Fiquei
fascinada pela sua voz, pelo carisma. Só depois conheci
a sua vida e encontrei uma série de semelhanças
comigo. Era uma mulher muito curiosa, tinha tido uma
relação complicada com a mãe, como eu tive, e relações
caóticas com os homens. Apaixonei-me por ela e pelo
seu coração despedaçado, tal como o meu que, quando
o meu ex-marido me deixou, quase parou de bater,
partiu-se. Ela morreu de amor, de coração partido. O
que eu queria era fazer uma verdadeira ópera e morrer
nela”, diz de forma dramática. Por isso, transformou-se
nas personagens femininas de óperas em que as
mulheres acabam por morrer. Escolheu sete óperas
onde isso acontece: “La Traviata”, “Tosca”, “Otello”,
“Madame Butterfly”, “Carmen”, “Lucia de Lammermoor”
e “Norma”. “São sete mortes diferentes, uma morre
esfaqueada, outra estrangulada, outra queimada, outra
de loucura, por saltar de um edifício... Todas mortes que
incluem dor física.” Uma dor que espalhou pelas
performances que a tornaram conhecida mundo fora,
numa tentativa constante de esmagar os limites do
corpo e as capacidades da mente.

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“Tenho uma vida interessante, dolorosa, cheia de
dramas, muitos medos, altos e baixos. Pensei no meu
passado, venho da ex-Jugoslávia, vivi no regime de Tito,
passei por um período difícil com a minha família,
construí o meu trabalho, criei o meu nome a partir do
nada”

Abramović é uma mulher obcecada, obcecada pela vida


e pela morte, pelo amor e pelo trabalho. “Tudo é vida,
morte e amor. A única coisa que podemos fazer é
analisar a nossa própria experiência pessoal, ela estará
sempre lá. Toda a gente pode contar a sua história, eu
contei a minha. Está lá, na ópera, o meu casamento, o
meu coração partido, os homens que tanto amei, os
meus amigos. No meu trabalho está a vida de toda a
gente, todos temos desgostos de amor.” Mais, “misturei
sempre a minha vida com o trabalho, de tal maneira que
nem sei o que é o quê”.

Por isso mesmo, e porque queria inspirar os outros,


resolveu escrever a sua biografia. Estávamos em 2014,
o ano em que a revista “Time” a elegeu uma das 100
pessoas mais influentes do mundo, ao lado de Barack
Obama e do Papa Francisco. O livro sairia dois anos
depois, quando encontrou o biógrafo perfeito, espécie de
ghostwriter, que a convenceu a contar tudo. Estava
sentada num sofá, na festa de um amigo, quando James
Kaplan apareceu e lhe perguntou porque é que não
escrevia a biografia dela. Ele já tinha escrito a de Frank
Sinatra e Jerry Lewis, dois best-sellers imediatos. Foi
para casa e começou a pensar, porque não. “Tenho uma
vida interessante, dolorosa, cheia de dramas, muitos
medos, altos e baixos. Pensei no meu passado, venho
da ex-Jugoslávia, vivi no regime de Tito, passei por um
período difícil com a minha família, construí o meu
trabalho, criei o meu nome a partir do nada, a pulso. Se

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escrever a minha biografia posso inspirar outros: se eu
consegui, eles também podem conseguir.”

O livro, “Walk Through Walls”, a puxar-lhe a memória


para o tempo que “já lá vai”. “Nasci num país comunista
onde havia restrições para tudo. Tinha de chegar a casa
antes das dez da noite, por exemplo. Fiz todas as minhas
performances iniciais, antes dessa hora, muito cedo. Foi
um pesadelo. Sei que com determinação podemos
chegar a circunstâncias muito melhores, com objetivos,
com o coração. Este livro quer ser uma inspiração para
os outros. Dediquei-o aos meus amigos e inimigos, é que
os amigos podem tornar-se inimigos e o contrário, os
inimigos em amigos.”

Tão certo como “apaixonar-me sempre pelos homens


errados”. Ulay, artista alemão batizado Frank Uwe
Laysiepen, falecido em março deste ano, surge como
exemplo indiscutível. Marina conheceu o amor da sua
vida em Amesterdão, em 1975, já depois de ter sido
casada com um membro do coletivo Group 70, a
associação artística onde começou a carreira, em
Belgrado. “Tinha acabado de fugir de casa, aos 29 anos,
e a minha mãe de ir à polícia dizer que eu tinha
desaparecido, ao que lhe responderam, ‘camarada
Abramović, estava mais do que na hora, ela devia ter
mais que fazer’.” A liberdade e cumplicidade que Ulay
lhe propunha atirou-a para os tempos mais felizes da
sua vida. Doze anos pela estrada fora, os dois, numa
carrinha Citroën e com um cão por companhia. Quase
amor e uma cabana, não fora a performance a dar-lhes
uma existência mundana, de palco em palco, de
experiência em experiência. Até à apoteose final: um
casamento a meio da Muralha da China, depois de cada
um ter percorrido 2 mil quilómetros a pé em três meses
de caminhada. Ela a partir do Mar Bohai, ele a começar

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no deserto de Gobi. O percurso, mais uma performance
de êxito, “The Lovers” de seu nome, chegou a acontecer
em 1988, mas em vez da boda, o mundo assistiu à
separação dos dois. Seguiram-se 22 longos anos sem se
verem e sem se falarem. Até que, há dez anos, Ulay se
apresentou na inauguração da mais bem sucedida
performance de Abramović, “The Artist Is Present”, no
MoMA, em Nova Iorque, e se sentou à frente dela, dando
lugar a um dos momentos mais comoventes da história
da arte performativa. “Essa foi a peça mais simples de
fazer. Bastou-me ficar sentada numa cadeira. No
entanto, foi a mais exigente mentalmente”, lembra.
Marina esteve oito horas por dia, durante três meses,
sentada no átrio daquele museu a receber pessoas que
se sentavam à sua frente e para quem olhava sem dizer
palavra ou sequer mexer-se. Não havia espaço para
comida, água, ou intervalos para a casa de banho.
Foram “visitá-la” 850 mil pessoas.

“Perdoar é importante para toda a gente. A única


maneira de acabar com a guerra é aprender a perdoar,
disse-me um dia o Dalai Lama. Toda a sociedade, a raça
humana, devia aprender a perdoar, perdoar ao inimigo.
É muito fácil dizer, muito difícil de fazer, eu sei. Aprendi
a perdoar. Fi-lo com o homem da minha vida”, com
quem voltou a conviver depois desse episódio.

E perdoou a mais gente. Quando era criança queria ser


pintora. Mas rapidamente enveredou pelo caminho que
a tornou a mulher que é hoje. “Achava que a
performance era um suporte artístico muitíssimo
importante. Tive a minha primeira exposição como
pintora aos 14 anos. Depressa percebi que pintar não
era suficiente, tinha de expandir as minhas ideias, não
podia ficar-me pela tinta e pela água, tinha de
ultrapassar o bidimensional. Quando comecei a fazer

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performances senti-me tão satisfeita e realizada. No
entanto, foi tudo menos fácil, foi tão difícil. Na altura, a
performance era tudo menos uma arte, não era aceite
como hoje, foi preciso passarem 30 anos para que fosse
considerada como arte. Quem fazia arte performativa
era tido como um louco, era alguém que devia estar num
hospital psiquiátrico. Diziam que era ridículo, que era
exibicionismo. Fui muito, muito criticada, insultada,
espezinhada. Foi um tempo horrível, desse ponto de
vista. Mas eu acreditava tanto na performance. Acreditei
na arte performativa toda a minha vida. É uma felicidade
fazer agora este programa de televisão e poder mostrar
o trabalho de 73 artistas de vários países com
perspetivas diferentes sobre o mundo e sobre a arte.
Sinto-me orgulhosa e tento ao máximo tornar as coisas
mais fáceis para os artistas mais jovens. No meu tempo
era totalmente inaceitável.”

A força para continuar veio do seu background e de uma


motivação profunda. “Não podemos desistir de nada. Se
me disserem não, para mim isso é só o início, irei sempre
quebrar a regra, ultrapassá-la.” Só o coronavírus a fez
parar de trabalhar, abrandar o ritmo. “Só uma força
superior. Sou workaholic, adoro trabalhar. Não tenho
jeito para ter filhos e uma família. Isso comigo não
resulta. Eu só trabalho. Acordo de manhã já com ideias
na cabeça, sou obcecada pelas ideias, só tenho ideias de
coisas das quais tenho medo. Aquelas que me agradam,
não as ponho em prática. O que me proponho fazer são
coisas mesmo difíceis, precisam de uma coragem
tremenda para se concretizarem. Acho que nunca cresci.
Ainda sinto a curiosidade de criança. Acabei de fazer 74
anos e não sei como aconteceu, é uma idade tão séria,
mas não me sinto nada dessa forma.”

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Marina Abramović passou a vida a quebrar barreiras, a
mudar de território, a fazer mais e mais difícil, mais e
mais forte, tanto a nível mental como físico. Foi sempre
esticando a corda o mais que conseguia. Envelhecer
para ela é algo que “não é de todo fácil”. Mas sorri.
“Acordo de manhã e dói-me o pescoço ou as costas, aqui
e ali. Faço exercícios para compensar isso. Também faço
uma dieta constante. Só que depois como, adoro comer,
especialmente chocolates. O meu problema são os
doces. Porém, quando tenho uma performance para
apresentar entro numa dieta restrita e faço exercícios
rígidos. O pior é que não tenho controlo sobre mim,
quebro a regra. Sou preguiçosa, como chocolates e vejo
televisão na cama...”, conta, a cozinha lá de casa em
pano de fundo.

Personagem Marina Abramović diz já não saber o que é


vida e o que é trabalho. As duas coisas tornaram-se uma
só DUSAN RELJIN

“Aceito as minhas imperfeições. Aceito as minhas


contradições. Os artista gostam de se apresentar de
uma certa forma ao público e secretamente são
diferentes dessa maneira como se apresentam, mas
depois alguém descobre a diferença e os fãs ficam
desapontados. Eu mostro sempre tudo, apresento-me
como sou, da forma como pareço, mostro as minhas
vulnerabilidades, as coisas de que tenho vergonha, não
tenho segredos, escrevo-os, conto-os, exponho-os, vivo
com eles, cresço com eles, a minha vida é como um
ensaio da peça ‘A Vida e Morte de Marina Abramović’.”
A obra é uma encenação de Robert Wilson e ela própria,
espécie de documentário, onde o teatro, a ópera e as
artes visuais se cruzam em palco. Um trabalho, realizado
em 2011, que foi apresentado pela primeira vez no
Manchester Film Festival. “Ainda sou a mesma a contar

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histórias”, sublinha. “Nos ensaios estava sempre a
chorar porque me era muito difícil fazer aquilo. ‘Porque
estás a chorar?’, perguntava-me Robert Wilson. ‘Isso é
um disparate, não tens que chorar, estás bem, não
estás?’ Eu estava a mostrar e a partilhar todos os meus
segredos com o público. A infância difícil e até a mãe
com quem tive uma relação tão rígida e fria. Tive de me
consciencializar de que aquilo era um trabalho artístico,
que não era o raio da minha vida.” A peça começa
precisamente com a sua infância, revela a sua
intimidade e põe a nu a sua estrutura emocional.

“Quando era criança tinha a noção de que era uma


privilegiada. Os meus pais eram heróis nacionais, eram
comunistas, o meu pai trabalhava com o Governo”,
ambos tinham feito parte dos Partisans, durante a II
Guerra Mundial, e defendido os aliados contra os nazis.
No pós-guerra, Danica Rosić e Vojin Abramović
passaram a trabalhar para o Estado. A mãe no Museu da
Arte e Revolução de Belgrado, o pai nas instâncias
militares. Enquanto isso, Marina tinha lições de francês
e inglês e aprendia ainda a tocar piano. “Fui criada pela
minha avó até aos seis anos, nessa idade ainda não tinha
memória dos meus pais, para mim eram como
estranhos, nunca tive uma relação que se pudesse
chamar emocional com eles. Tinha, sim, uma relação
muito forte com a minha avó, que era uma mulher
extremamente religiosa, ao passo que os meus pais
eram pessoas frias e deles recebi uma educação muito
mais militar. Em miúda, passava a maior parte do tempo
na igreja, eu e a minha avó. Quando cresci percebi que
tinha um poder, uma força e uma coragem enormes, que
partilhava a espiritualidade e a disciplina militar em
simultâneo. Mais tarde fui ainda budista e tantas outras
coisas... Sou um misto de tudo isto.”

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E também daquilo que aprendeu ao longo da carreira.
“Primeiro aprendi a nunca desistir. Aprendi a seguir a
minha intuição e o meu coração, mesmo que tudo e
todos estivessem contra mim.” Depois da tempestade
vem a bonança, acredita. “Depois de maus tempos vêm
sempre tempos bons. Aprendi a nunca ficar presa a
nada, a seguir apenas os sonhos.” Por outro lado, na
mesma linha de pensamento, considera que “é muito
importante não deprimirmos, não nos sentirmos isolados
e sós”, sobretudo aos 70 anos. “Digo sempre aos meus
amigos que na idade deles, que é a minha, a depressão
é um luxo a que não nos podemos permitir. Quando se
é mais novo pode-se entrar em depressão, mais velho
nunca. Temos menos tempo para gastar. Temos de viver
o mais possível.”

Em 2007, Abramović comprou um teatro em Hudson, no


estado de Nova Iorque, para aí sediar o seu instituto,
MAI — Marina Abramović Institute. Uma série de
complicações, porém, por causa da angariação de
fundos, do projeto arquitetónico, que seria desenhado
por Rem Koolhaas, e do custo estimado para o seu
financiamento, cancelou definitivamente a criação de
uma sede fixa. O MAI nasceu, então, como uma
organização que viaja de sítio em sítio, tendo já passado
pela Grécia, pelo Brasil, pela Austrália e pela Turquia. O
propósito: preservar o legado da artista e fomentar a
performance, sobretudo a de longa duração. “Quero
deixar o meu legado espalhado pelo mundo. Comecei
com a ideia de construir um edifício para albergar o
instituto. Percebi que era melhor não o aprisionar a um
sítio, mas torná-lo móvel. O lema é não venham até nós,
nós vamos ter convosco. É só arte o que partilhamos e
cabe num museu aberto ao público.”

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Quanto às performances de longa duração, a sua prática
performativa, Marina não tem dúvidas, “esta é a forma
de arte mais importante que existe. Não é possível fingir,
é a vida que ali está, temos de ser nós próprios. Numa
performance que dure um mês, dois meses, oito horas
por dia, todas as aparências desaparecem, partem-se,
caem. A eletricidade vem ao de cima e o diálogo entre
as pessoas nasce”. Mesmo que isso implique um
gigantesco nervoso miudinho antes de cada
performance ter início. Aquela angústia da espera, a
vontade de que comece, quer vá correr bem ou mal.

Para qualquer lado que vá — e percorre o planeta numa


investigação contínua sobre a vida, sobre o Homem e
sobre a sua relação com o outro —, o “Método Marina”,
assim denominado pela própria, é ensinado a todas as
pessoas que queiram frequentar as “aulas ou
experiências” que a artista disponibiliza. O primeiro
passo é a libertação dos ruídos do mundo. Antes de cada
experiência, todos têm de deixar à porta telemóveis,
relógios, computadores, tablets, etc. Nada que não os
deixe flutuar na sua concentração e na sua energia.
“Quando ensino o público e os jovens artistas a
concentrarem-se, a esvaziarem a cabeça e a acalmarem
a mente, ensino-lhes a sentirem as emoções, sem
ouvirem e sem falarem, só com exercícios, para terem a
noção do que é fazer uma obra de arte.” A vontade e a
disponibilidade têm de ser totais. “É uma open call aos
artistas para trazerem ideias e mostrarem do que são
capazes de fazer em performance de longa duração,
performances que durem oito horas por dia, durante
dois meses, num museu”, explica Marina. Do total dos
artistas que se apresentam em cada sítio, normalmente
300 ou 400, Abramović escolhe “oito ou 12, 15, treino-
os e ajudo-os a executarem o trabalho a que se
propuseram”.
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“Quando comecei a fazer performances senti-me tão
satisfeita e realizada. Na altura, a performance era tudo
menos uma arte, não era aceite como hoje, foi preciso
passarem 30 anos para que fosse considerada como
arte”

As técnicas utilizadas no “Método Marina”, surgiram de


ideias que a artista teve em diferentes países em todo o
mundo, por onde passou e experienciou a vida dos
locais, “dos aborígenes australianos ao xamanismo
brasileiro, do Sri Lanka a todo o lado”. “Vi tantos
exercícios mentais e físicos que nos são benéficos e nos
ajudam. Escolhi os melhores, os mais seguros e os mais
fáceis mas que permitam a mudança no espírito de cada
um.” Contar bagos de arroz ou separá-los de lentilhas,
por exemplo, é um dos exercícios que exige endurance
mental. “Olhar para trás no espelho para verem a
realidade como uma ilusão”, é outro. “O método existe
para aumentar o nível de consciência. Não podemos
mudar o mundo se não nos mudarmos a nós próprios.
Ao mudares-te a ti próprio consegues mudar milhares.
A consciência pode mudar o mundo. Disso estou
convencida a 100%.”

O público é definitivamente o seu alvo, quanto mais


melhor. Assim foi em “512 Hours”, na Serpentine
Gallery, em Londres, em 2014, onde eram as pessoas os
grandes protagonistas da peça, movendo-se com uma
venda nos olhos e uns tampões nos ouvidos, para criar
uma enorme “energia coletiva”. É ao público que quer
passar uma mensagem: “O confronto com os meus
medos é o que faço. E é muito importante. O que faço
no palco deve refletir-se num espelho para o público.
Quero ser um espelho para o público. Se consigo vencer
os medos, eles também conseguem”. Chamam-lhe
artista radical, ela não se compromete com isso. “Gosto

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de procurar novos territórios, não gosto de me repetir,
gosto de me surpreender. Gosto de explorar.” Em palco
ou onde quer que seja, Marina mostra-se como um todo.
“É mais fácil mostrar força do que vulnerabilidade. E é
importante cometer erros, falhar, quando falhamos
aprendemos.”

“Todos os artistas têm um statement diferente a fazer”,


diz. “A performance é o meu meio de comunicar, afirmar
o meu pensamento. Tem uma estrutura física e mental
que está compreendida num tempo específico e num
determinado espaço.”

Política e socialmente ativa, Abramović tem feito


trabalhos muito diferentes com o intuito de chamar a
atenção para a necessidade de enfrentar o outro, para
criticar a falta de diálogo, para mostrar as capacidades
espirituais de cada um, para dar a conhecer problemas
sociais, atrocidades políticas. “Balkan Baroque”, a peça
com que o mundo inteiro a conheceu, em 1997, deu-lhe
um Leão de Ouro na Bienal de Veneza, e foi um dos seus
gritos mais fortes. “É uma obra sobre a guerra. A guerra
da Jugoslávia que tinha deflagrado uns anos antes.
Tinha tanta vergonha da guerra, vergonha dos sérvios,
dos croatas, de como matavam civis. Queria fazer um
trabalho sobre a guerra mas não sabia o quê. Estava tão
perturbada emocionalmente. Fui convidada para ir à
Bienal de Veneza e pensei fazer um statment
verdadeiramente forte. Fui a Belgrado, achei que devia
fazer alguma coisa relacionada com a minha mãe, com
o meu pai, os meus, a minha família, e um caçador de
ratos...” Filmou as mãos do pai a pegarem numa arma,
a mãe de mãos vazias, a história do homem que caçava
ratazanas. E acabou “por fazer o impossível, limpar
sangue, o sangue de 2,5 toneladas de ossos de vaca. O
sangue nunca desaparece. Fica ali, a marcar a ação,

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aquilo que fizemos. Simboliza toda e qualquer guerra,
não só a Guerra dos Balcãs.”

Foi um trabalho duro, pesado, quase impraticável e


irracional, insuportável mesmo. Ela com uma escova e o
próprio vestido branco a limpar o sangue daqueles ossos
enormes. “Era junho, estava calor em Veneza, a
temperatura era alta, não havia ar condicionado. O
cheiro era fortíssimo, inebriante. Foi difícil.” Nada,
porém, a que não estivesse habituada. Numa
performance tudo pode ser usado, uma faca, uma
lâmina de barbear, uma pistola carregada, uma rosa, um
martelo, uma tesoura, um corpo. O dela esteve entre 72
objetos, os citados incluídos, a serem nele usados como
o público bem o entendesse. Foi em 1974. Marina
deixou-se ficar em cima de uma mesa à mercê dos
outros, que com ela e aqueles objetos podiam fazer o
que quisessem. Cortaram-na, despiram-na, e quase a
mataram. Arriscou completamente a vida numa prova
de endurance mental e física, um teste ao público
também, uma proposta inédita que nunca mais
desapareceu do seu currículo. Como o fez, outra vez, há
40 anos (1980), em Dublin, na Irlanda. Tinha ainda Ulay
como amante e parceiro artístico, os dois, ofereceram
ao público um espetáculo de vida e morte. Com um arco
e uma flecha apontada ao coração, sustiveram a
respiração em equilíbrio um no outro durante quatro
minutos. Qualquer movimento poderia ter sido fatal.
Nesse currículo performativo imenso, destaque ainda
para o dia em que inscreveu a estrela comunista no
ventre com uma lâmina, se chicoteou a ela própria e se
deitou depois numa cruz feita de blocos de gelo. Ou
quando queimou a mesma estrela e se atirou para
dentro dela enquanto ardia, tendo perdido os sentidos
com a falta de oxigénio.

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Hoje, já o repetiu mais do que uma vez, acredita “que
os artistas são o oxigénio da sociedade, que a arte só é
entendida no futuro e que é por isso que muitos artistas
são incompreendidos pela sociedade em que vivem.”
Acha que “o corpo é a casa da alma e que a alma pode
ser muitas vidas”. Crê no corpo que morre, na alma que
vive sempre. “A alma é a única coisa que pode dar
energia”, afirma, a fé da avó ao frequentar a Igreja
Ortodoxa a bater-lhe ainda no coração, a convocação
das energias a chamá-la sem dó nem piedade, o fluxo
da vida a correr-lhe em sangue eslavo. “Sou uma mulher
determinada.”

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