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ALICE

para lá da vida

E-Mail

Exposição I “Pomona” (retrato de Alice Liddell), de Julia


Margaret Cameron, 1872 Victoria & Albert Museum
Em Londres, uma maravilhosa exposição a partir da
Alice de Lewis Carroll traz — em segurança — as
multidões de volta ao Victoria & Albert Museum

texto Jorge Calado em Londres

A Alice no País das Maravilhas e Do Outro Lado do


Espelho era uma menina de carne e osso — como se
dizia nos tempos em que os animais falavam — e foi
também uma mulher notável. Conheci-a, por interposta
obra, tinha eu 10 anos, quando a minha prima Lô,
professora primária, me ofereceu o livro no dia do meu
aniversário. Alice não escreveu o livro, mas inspirou-o;
ouviu a história da boca do seu amiguinho Charles
Lutwidge Dodgson, tutor de Matemática em Christ
Church, numa “tarde dourada” de julho de 1862 em
Oxford e arredores, e gostou tanto da narrativa que lhe
pediu para a passar a escrito. O que ele foi fazendo, a
tempo de lhe oferecer o manuscrito ilustrado de 90
páginas como prenda de Natal em 1864. O livro seria
publicado um ano depois, então sob o pseudónimo de
Lewis Carroll, com ilustrações de John Tenniel
fortemente inspiradas nos desenhos originais de
Dodgson (que, além de ser um fotógrafo genial, era
também um desenhador talentoso).

Um passeio histórico

Embora pelo nome não pareça, Christ Church é um dos


mais reputados (e ricos) colégios da Universidade de
Oxford, com a particularidade de a sua capela ser a
catedral da cidade. Tom Tower, a torre sineira que coroa
a entrada principal do colégio, foi riscada por
Christopher Wren, professor de Astronomia da
universidade e arquiteto da Catedral de São Paulo, em
Londres; o sino pesa 6,25 toneladas e é o maior e mais
sonoro de Oxford. Alice era uma dos 10 filhos do deão
(reitor) do colégio, Henry Liddell. Amigo íntimo da
família, Dodgson organizou com o reverendo Robinson
Duckworth, seu colega do Trinity College, uma passeata
e um piquenique num barco a remos, Isis arriba, até
Godstow, a cerca de 4 quilómetros de Oxford. (Isis é o
nome que o Tamisa toma em Oxford.) Como convidadas,
três filhas do dean Liddell: Lorina (13 anos), Alice (10
anos) e Edith (8 anos). Para as entreter durante a
viagem, Dodgson foi inventando e contando uma
história esquisita, onde a protagonista, Alice,
mergulhava num mundo maravilhoso habitado por
personagens meio malucas e animais bem-falantes.
Nota pessoal: nos meus tempos oxonianos fiz muitas
vezes aquele desvio até Godstow para apreciar as ruínas
da abadia onde a Bela Rosamunda, amante de Henrique
II, viveu os últimos anos (século XII); seguia-se, em
geral, um jantar na Trout Inn local, quase sempre de
truta acabada de pescar.

Pensar fora da caixa

Dodgson era gago e às vezes tinha dificuldade em


pronunciar o seu apelido, Do-do-dodgson — o que o
levou a introduzir na história o dodó, uma ave grande e
canhestra, incapaz de voar, nativa da ilha Maurícia (no
oceano Índico), extinta no século XVII por prazer, sem
proveito. Os culpados foram os marinheiros (também
portugueses) que aportavam à ilha e as matavam por
desporto, mesmo sem lhes apreciar a carne rija. Sucede
que os últimos restos de um dodó, ainda com tecido
epidérmico, são a cabeça e um pé do bicho, no
University Museum de Oxford, que muitas vezes
admirei, extasiado. Quanto ao pseudónimo Lewis
Carroll, deriva da forma latina do nome verdadeiro:
Carolus (Charles) Ludovicus (Lutwidge). Dodgson era
um hábil manobrador de palavras e engenhoso a
inventar trocadilhos. O significado do título da grandiosa
exposição no Victoria & Albert Museum (V&A), “Alice:
Curiouser and Curiouser”, é qualquer coisa como “Alice:
Cada Vez Mais Esquisita”. É verdade que Alice era uma
menina extremamente curiosa, mas aqui o sentido é
outro, sendo a palavra curiouser um neologismo criado
por Carroll. “Curiouser and curiouser”, exclamava Alice
— chorando copiosamente a ponto de se esquecer do
que era falar em bom inglês — quando se viu a crescer,
com o pescoço a esticar como se fosse um telescópio a
abrir-se e a cabeça a bater no teto; os pés, esses,
ficavam cada vez mais longe, a perder de vista. Ou seria
a contração do espaço, antecipando a teoria da
relatividade? Em Londres, o mundo maravilhoso da
exposição abre espetacularmente com o lago de
lágrimas de Alice (onde ela receava afogar-se).
Exposição II Fotograma de “Curious Alice”, uma
experiência de realidade virtual criada pelo V&A e HTC
Vive Arts a partir de arte original de Kristjana S Williams,
2020

Foi com a “Alice no País das Maravilhas” que aprendi a


pensar e a tirar conclusões fora da caixa. “Porque é que
um corvo é parecido com uma escrivaninha?”, pergunta
o Chapeleiro Maluco. Seria uma alusão ao poema
narrativo “O Corvo” (1845), de Edgar Allan Poe? Ou ao
facto de o bater das asas do corvo se assemelhar ao
abrir e fechar do tampo da escrivaninha? Jogando com
os múltiplos significados das palavras, o próprio Carroll
arriscou uma solução em 1896: tanto o corvo como a
escrivaninha produzem notas (desafinadas). (Em inglês,
flat significa desafinação para baixo, mas também plano,
como uma folha de papel.) Se a curiosidade é a raiz de
toda a inovação, o raciocínio lateral e o nonsense
aparente são as molas da imaginação. Aposto que o
público — que inclui muitas crianças — sai desta longa
mas ludicamente interativa exposição a pensar melhor!

Oxford don

Em Oxford, dons são os membros das Senior Common


Rooms (SCR) dos colégios, isto é, o conjunto de
professores-tutores das várias disciplinas (que em Christ
Church tomam a designação de students; os estudantes
propriamente ditos são os undergraduates). Charles L.
Dodgson (1832-98) era um génio polivalente com uma
memória prodigiosa. Como tutor de Matemática parece
que era sóbrio e tímido, a roçar o chato, mas no convívio
diário revelava uma mente aguçada e irrequieta.
Ficamos a conhecê-lo melhor na apresentação que inicia
o percurso expositivo. Além dos seus vários interesses
criativos (matemática, lógica, literatura, fotografia,
jogos de palavras e números, xadrez, etc.), Dodgson
também era um ilusionista amador, colecionava caixas
de música e frequentava avidamente o teatro. Entre os
seus amigos contavam-se o pintor pré-rafaelita John
Everett Millais, o físico-químico Michael Faraday e a atriz
Ellen Terry. É esta salgalhada de temas que nos introduz
no País das Maravilhas. Instrumentos de observação,
relógios complexos, modelo do esqueleto do dodó, bule
de chá, um álbum de fotos dos membros das SCR de
Christ Church tiradas por Dodgson, etc. Mas também
surpresas como o grotesco retrato da “Velha” (c. 1513),
de Quentin Matsys, que terá inspirado a figura da
Duquesa Feia, a antagonista da terrível Dama de Copas
(ou Rainha dos Corações, em inglês).
Quanto ao pseudónimo Lewis Carroll, deriva da forma
latina do nome verdadeiro: Carolus (Charles) Ludovicus
(Lutwidge)

O supremo encanto da beleza é o encontro com o retrato


de Alice aos 20 anos como “Pomona”, a deusa romana
dos jardins e das árvores de fruto. A autora é uma das
maiores retratistas da história da fotografia, Julia
Margaret Cameron. No meio de um enquadramento
foliáceo, enfeitada com flores, Alice Liddell revela-se
uma jovem determinada que sabe o que quer. A
propósito: em 1988 adquiri para a Coleção Pública de
Fotografia o mais belo dos retratos de Alice Liddell, em
grande formato, também da câmara de Cameron; desta
vez apanhara Alice de perfil e dera-lhe o título de
“Aleteia” (1872), que em grego significa “Verdade”. O
curioso (ou “curiouser”, como diria Alice) é que esta joia
das coleções fotográficas portuguesas nunca mais foi
aproveitada por quem a detém — o Estado! Nem sequer
no centenário da morte de Dodgson, em 1998, ou no
sesquicentenário da publicação do livro de Alice (2015),
celebrado em todo o mundo, ou mesmo este ano, em
que se comemoram os 150 anos do que Alice encontrou
do outro lado do espelho... Será que a fotografia ainda
existe e continua em bom estado de conservação?

Personagens

O país maravilhoso de Alice é um labirinto, ou melhor,


uma toca sem fundo como aquela onde a protagonista
se enfia quando vai a correr atrás do apressado Coelho
Branco. “Alice no País das Maravilhas” (1865) e “Do
Outro Lado do Espelho, e O Que Alice Lá Encontrou”
(1871) são outras tantas galerias de personagens
excêntricas que desafiam as regras da lógica mas
antecipam o futuro de uma sociedade em rápida
transformação industrial, graças ao progresso da ciência
e da técnica. Suspeita-se que todas elas e eles sejam
caricaturas de pessoas reais, a começar pelos
participantes no passeio a Godstow. Se a Dodgson coube
o Dodó, o Pato (duck, em inglês) referia-se ao seu colega
Duckworth; Lorina ficou com o Lori (um papagaio
australiano de cores vivas) e Edith com a Aguieta
(eaglet, em inglês).

Exposição III Imagem da instalação de realidade virtual


em “Alice: Curiouser and Curiouser”, Victoria & Albert
Museum
A história da Tartaruga Falsa está cheia de alusões à
educação das meninas Liddell (que, à moda vitoriana,
eram educadas em casa). Por exemplo, o “velho
congro”, que é mestre de Drawling (corruptela de
Desenho, significando uma fala arrastada), não era
outro senão o crítico de arte e futuro professor real de
belas-artes na Universidade de Oxford, John Ruskin, que
todas as semanas vinha ensinar Desenho, Esboceto e
Pintura a Óleo às irmãs Liddell. Nas falas da melancólica
Tartaruga, Sketching/Esboceto passa a
Stretching/Esticando e Painting in Oils/Pintando a Óleo
a Fainting in Coils/Desmaiando em Hélice, isto é, com a
cabeça a andar à roda. Quanto ao apressado Coelho
Branco, de olhos cor de rosa e relógio no bolso do colete,
seria o deão Liddell, conhecido por chegar sempre
atrasado às reuniões, ou talvez o professor régio de
Medicina, Henry Acland, grande amigo de Ruskin. Afinal,
o mundo das maravilhas de Alice é pequeno: emana da
cabeça de um don com uma imaginação fértil e cabe
quase todo num colégio; o seu significado, porém,
transcende a origem. Nota suplementar: Christ Church
funciona com um atraso de cinco minutos em relação à
hora de Greenwich, por estar 1° 15’ 24” a oeste do
meridiano padrão. O sino Tom continua a tocar as 101
badaladas da praxe — em honra de cada um dos
membros originais do colégio; o 101º foi acrescentado
em 1663 —, todas as noites, pelas 21h05. A partir de
1973, a minha base oxoniana passou a ser Christ
Church, em aposentos paredes-meias com os ocupados
por Dodgson um século antes.
A outra Alice

Um dos aspetos mais gratificantes do mito é que Alice


Liddell viveu o suficiente para assistir à globalização do
seu alter ego ficcional. Em 1872, com 19 anos e
seguindo a melhor tradição da classe alta inglesa,
completou a educação fazendo o Grand Tour da França
e Itália, na companhia das irmãs Lorina e Edith.
Visitaram mais de 20 cidades, admiraram monumentos
e museus, subiram várias vezes à cratera do Vesúvio
(que entraria em erupção poucos meses depois), etc.
Alice aproveitou para esboçar e pintar o que via. Em
1880 casou na Abadia de Westminster com um ex-aluno
de Dodgson, Reginald Hargreaves, homem de leis e
famoso jogador de críquete, de quem teve três filhos:
Alan, Leopold e Caryl (cujo nome poderá ter sido, ou
não, uma homenagem a Carroll). Os dois filhos mais
velhos morreram na I Guerra Mundial, mas Alice reagiu
estoicamente: “Temos de nos lembrar que as crianças
são-nos apenas emprestadas por Deus.” Dois anos após
a morte do marido, em 1926, viu-se obrigada a vender
o manuscrito de Carroll, inicialmente intitulado
“Aventuras Subterrâneas de Alice”. A venda em leilão, a
um colecionador americano, rendeu 15.400 libras
(equivalente a mais de um milhão de euros em moeda
atual), um recorde para um manuscrito literário; seria
recomprado por um grupo de filantropos americanos em
1946 e oferecido ao British Museum, num gesto
simbólico de gratidão ao “nobre povo que sozinho
resistiu a Hitler durante muito tempo”. (Os EUA só
entraram na Guerra no final de 1942.)
Recriando Alice

Tudo o que é universal tem uma origem local. Alice é


uma ideia tipicamente oxoniana que se tornou um
conceito global. A prová-lo está o facto de os livros de
Alice terem sido traduzidos em cerca de 180 línguas
(quando existem 193 países no mundo, com vários
partilhando a mesma língua). Depois da Bíblia e das
peças de Shakespeare, não há obra mais popular. A
imaginação científica e artística de Dodgson era
primariamente visual. Tanto o manuscrito como a
primeira e segunda edições de “Alice no País das
Maravilhas” distinguem-se por um grafismo inovador.
Por exemplo, ‘O Conto do Rato’ é um poema concreto,
com as palavras serpenteando pela página em letras
cada vez mais pequenas. A exposição de Londres usa
truques semelhantes que distorcem o espaço e
desorientam os visitantes: espelhos anamórficos,
gravuras e objetos que saltam das paredes, outros que
voam pelo ar, etc. É, de facto, um universo de pernas
para o ar, como nos piores pesadelos, mas vamos sendo
guiados pelo famigerado Coelho Branco, que surge nos
locais mais imprevisíveis.
Exposição IV “Uma Merenda Maluca”, de Salvador Dalí,
1969 Salvador Dalí, Fundació Gala-Salvador Dalí, DACS
2019. Dallas Museum of Art

Alice depressa transcendeu a literatura para contaminar


a pintura, a escultura, o teatro, o cinema emergente, o
bailado e a ópera, as artes gráficas (incluindo a
publicitária), a moda, a cultura popular, todas as
ciências... No “Manifesto Surrealista” (1924), André
Breton valorizou o “sentimento infantil de maravilha”
que é peculiar a Alice. Várias obras de Max Ernst,
inspiradas pelos livros de Carroll, como “O Rei a Jogar
com a Rainha” (bronze, 1944), ilustram a exposição.
Salvador Dalí está presente com a recriação do “Mad Tea
Party” — a merenda de malucos que junta Alice com o
Chapeleiro, a Lebre de Março e o Arganaz dorminhoco —
, uma de 12 pranchas para uma nova edição da obra de
Carroll; à sua moda, a mesa é um relógio mole, a
derreter-se. Jorge Luis Borges escreveu um prefácio
para a tradução espanhola das obras do criador de Alice;
considerava-as “fantasia autêntica”. James Joyce trouxe
o espírito de Carroll para a literatura moderna; em
ambos, o som das palavras é tão (ou mais) importante
do que o respetivo significado. Josef K, o protagonista
de “O Processo” (1915-35), de Franz Kafka, é um
personagem à procura de si próprio, tal como Alice.
“Quem sou eu?”, pergunta repetidamente Alice; sabe
muito bem quem não é... Outro fã indefetível das obras
de Dodgson era Vladimir Nabokov, que lhe chamava
Lewis Carroll Carroll, por ter sido o primeiro Humbert
Humbert, numa referência ao seu romance “Lolita”
(1955). Estava enganado. Embora Mrs. Liddell tivesse
descontinuado a amizade entre Dodgson e Alice, esta
assegurou até ao fim da vida que a relação fora sempre
sã e inocente. Não podemos julgar os comportamentos
do passado pelos critérios do presente (entre outras
razões, para não comprometer o futuro).

Os vários episódios das aventuras de Alice são


eminentemente teatrais, cinematográficos, até, 30 anos
antes da invenção do cinema. A pequena heroína abre
portas e corre cortinas, viaja, interatua com dezenas de
carateres, argumenta, joga, diverte-se e tem medo. O
don de Oxford era um ‘teatrófilo’ consumado. Em miúdo
brincara com um teatro de fantoches, inventando vários
espetáculos, e ao longo da vida assistiu a mais de 300
peças de teatro com os maiores atores da época (Kean,
Irving, Terry, etc.). Ambicionava ver a sua Alice em
cena, mas não sabia escrever para o teatro. Em 1876
autorizou a produção de uma revista musical,
“Aventuras de Alice, ou a Dama de Copas e as Tortas em
Falta”, que pouco tinha a ver com a sua criatura, mas
10 anos depois a “Alice no País das Maravilhas” subia ao
palco do Prince of Wales Theatre, em Londres. Com
música ou sem música, a febre ‘aliceana’ nunca mais
parou. Ainda em 2015, o musical de Damon Albarn (dos
Blur e Gorillaz) e Moira Buffini, “wonder.land”, estreado
no National Theatre, transportou a história para as
maravilhas online. A toca onde diariamente nos
enfiamos e corremos atrás do Coelho Branco é, afinal, o
ecrã do telemóvel! Ajudando à festa, havia ecos de
Alexander McQueen nos figurinos. A moda, sempre
gulosa, há muito que se aproveitara de Alice — o Alice
look, de mulherzinha poderosa.
Exposição V Zenaida Yanowsky na Rainha Vermelha do
bailado “Alice’s Adventures in Wonderland”, de
Christopher Wheeldon, Royal Ballet Johan Persson/ROH

Nos anos 1970, o americano David Del Tredici compôs


várias obras inspiradas por Alice, incluindo “Final Alice”,
uma “ópera escrita em forma de concerto”, mas o
prémio da mais bem-sucedida ópera vai para a “Alice”
da sul-coreana Unsuk Chin, estreada em Munique em
2007, com design e encenação do brechtiano Achim
Freyer. Os ‘balletómanos’ apreciaram as “Alice’s
Adventures in Wonderland”, coreografadas por
Christopher Wheeldon para o Royal Ballet (2011), em
Covent Garden, com o sapateado do Chapeleiro à Gene
Kelly e as fantasias geométricas à Busby Berkeley. Há
também grande expectativa quanto à estreia mundial do
bailado “Alice” com música de Philip Glass, programado
pela Opéra National du Rhin para fevereiro próximo.

Efeitos especiais

Século e meio após a publicação das aventuras de Alice,


existem mais de 300 edições ilustradas por artistas de
todo o mundo. Todavia, são as imagens iniciais de
Carroll-Tenniel que continuam a marcar. A inspiração
fora mútua. Sabe-se que Dodgson decidiu retirar o
episódio da ‘Vespa com Peruca’, de “Do Outro Lado do
Espelho”, quando Tenniel lhe disse que não via como
ilustrá-lo! De resto, os desenhos de Tenniel antecipavam
os pesadelos mais absurdos do surrealismo e também
os espetaculares efeitos especiais de um cinema por
nascer. Observe-se, por exemplo, a sua realização de
Alice a atravessar o espelho, metade do corpo de um
lado e metade do outro.

Exposição VI Imagem da instalação de entrada em


“Alice: Curiouser and Curiouser”, Victoria & Albert
Museum

A primeira adaptação cinematográfica, por Percy Stow e


Cecil Hepworth, data de 1903. Com quase 10 minutos
de duração, era o mais longo filme britânico produzido
até então. É uma das relíquias da exposição.
Infelizmente, Dodgson tinha morrido cinco anos antes.
Nos EUA, houve um filme de 10 minutos produzido em
1910 pela Companhia Edison e depois outro de 50
minutos realizado por W. W. Young em 1915. Filmes
mudos, claro, embora recheados de efeitos especiais. O
cinema sonoro só arrancou em 1927 com a grande-
metragem “O Cantor de Jazz”, de Alan Crosland.
Entretanto preparava-se o centenário de Charles
Lutwidge Dodgson em 1932, que proporcionaria o
segundo Grand Tour — desta vez, à América, e triunfal
— de Alice Hargreaves (née Liddell): nada mais nada
menos do que um doutoramento Honoris Causa em
Letras pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque.
Para uma mulher a quem tinha sido negada uma
educação universitária, receber, aos 80 anos, o grau de
doutora seria sempre uma experiência arrasadora. No
discurso de agradecimento assinalou que, “se Lewis
Carroll me tivesse contado a história que hoje estou a
viver aqui, ter-me-ia parecido tão estranha como as
histórias extravagantes que ele costumava contar-me,
usando-me como a sua Alice”. Um ano depois, a
Paramount contratava-a como consultora do filme “Alice
no País das Maravilhas” (1933), de Norman Z. McLeod;
Cary Grant fazia de Tartaruga Falsa. Quanto a Alice
Hargreaves, morreu em 1934, presume-se que feliz, em
Lyndhurst, naquele que é hoje o Parque Nacional da
Floresta Nova, em Inglaterra. O seu arquivo pessoal de
cartas, diários de viagem, cadernos de desenhos, álbuns
de fotografias (por Carroll) e objetos íntimos — como o
anel de noivado e um vestido — foi leiloado pela neta e
única herdeira, Mary Jean, em 2001 (para não ter de o
dividir pelos três filhos). Rendeu mais de dois milhões
de libras!

O meu encontro com Alice no cinema deu-se no princípio


da minha adolescência, com o filme (1951) de desenhos
animados de Walt Disney. Lembro-me que saí
desapontado; ficara preso ao mundo de Dodgson-
Tenniel e não imaginava uma Alice loura de vestido azul
e bibe branco nem as cores berrantes das maravilhas...

O estado da arte (da exposição)

A questão era: como irá o V&A resolver a quadratura do


círculo que é dar vida ao contrassenso e à imaginação
delirante? Sentia-me confiante, porque não há como os
ingleses a produzir e a montar exposições. Mesmo sem
fazer as contas, posso afirmar que, das 10 melhores
exposições que vi em toda a minha vida, pelo menos
nove foram em Londres, a começar com “The Art of
Hollywood”, também no Victoria & Albert Museum, em
1979. Imaginem o que era, há mais de 40 anos, entrar
numa exposição por baixo de uma piscina de fundo
transparente, ver um cadáver a flutuar e perceber logo
que estávamos dentro do set de “Sunset Boulevard” (“O
Crepúsculo dos Deuses”, 1950), de Billy Wilder, prontos
para ouvir em flashback a história do guionista Joe Gillis
(William Holden)!

Um dos aspetos mais gratificantes do mito é que Alice


Liddell viveu o suficiente para assistir à globalização do
seu alter ego ficcional. Em 1880 casou com um ex-aluno
de Dodgson, homem de leis e famoso jogador de
críquete, de quem teve três filhos

Agora, em “Curiouser and Curiouser”, as soluções foram


ainda mais espantosas, porque se tratava de refundar o
espaço à medida do universo desvairado de Carroll. Logo
ao descer as escadas que dão acesso à Sainsbury Gallery
do V&A, tive a sensação premonitória de que me estava
a enfiar pela toca do Coelho Branco. (Atenção: há a
alternativa do elevador.) Na versão original, a história
era sobre o mundo subterrâneo de Alice; no V&A, a
exposição desenrola-se no subsolo do museu. O sucesso
expositivo deve-se, por um lado, ao designer Tom Piper,
nas três dimensões da enorme caverna que acolhe Alice
nas suas várias encarnações, e, por outro, à islandesa
Kristiana S. Williams, na bidimensionalidade das
ilustrações para o catálogo, também usadas nas
experiências de realidade virtual. (Piper ficou famoso em
2014 como cocriador da instalação de 888.246 papoilas
de cerâmica — uma por cada soldado britânico morto
durante a I Guerra Mundial — junto à vetusta Torre de
Londres.)

Enquanto o ambiente inicial da exposição é clássico e


bibliotecário, a traduzir as rotinas e convenções da
época vitoriana, o espaço vai-se curvando e alterando à
medida que nos envolvemos no mundo maravilhoso da
mente de Carroll. O célebre Gato de Cheshire — o
condado natal de Dodgson — aparece e desaparece,
sempre sorridente, num espaço curvilíneo — ao mesmo
tempo que ouvimos a canção ‘White Rabbit’ (1967), dos
Jefferson Airplane. Mais adiante, a mesa posta para o
Chá e Merenda vai mudando de cor — do tenebroso
preto e branco para uma paleta floral iridescentemente
cromática. Na mente de Carroll, a vida é um jogo, às
vezes perigoso: de cartas, no País das Maravilhas; de
xadrez, Do Outro Lado do Espelho. A preto e branco?
Nem pensar! A vermelho e branco, que o rouge era o
novo noir. No final da história, Alice, mero Peão, é
promovida a Dama/Rainha, com coroa na cabeça, mas
tudo não passara de um sonho, e ela acorda com um
gatinho preto no regaço (que será, talvez, a Dama de
Copas vermelha).
Exposição VII Fotografia tirada durante uma
manifestação contra o ex-Presidente da África do Sul
Jacob Zuma, Cape Town, 7 de abril de 2017 Ashraf
Hendricks

Ao longo de “Curiouser and Curiouser”, as montras, os


espelhos e os múltiplos ecrãs de cinema são outras
tantas janelas abertas sobre as impossibilidades vividas
por Alice. Verdades alternativas? Não, apenas realidades
virtuais. No Jardim das Flores Vivas (que falam)
podemo-nos sentar e jogar virtualmente croquet com a
Rainha Vermelha, usando ouriços-cacheiros, bem
enrolados, como bolas. Lembrei-me dos jogos de
croquet com Lady Hayter, mulher do warden (diretor) do
New College de Oxford, a minha alma mater fundada em
1379; quanto aos ouriços, encontrei vários quando
passeava nos prados de Christ Church, os mesmos
frequentados por Carroll.

A ciência moderna

Os livros da Alice são infindos e nunca estão


completamente lidos. À medida que crescia e estudava,
relia-os e descobria coisas novas, por exemplo as
propriedades químicas e fisiológicas das substâncias
alucinógenas. Ou a explicação da maluquice do
Chapeleiro, sempre de cartola, por envenenamento com
mercúrio devido ao uso de nitrato de mercúrio no fabrico
do feltro. Em Oxford corria o boato de que tal
envenenamento era detetado por três sintomas: “Um
deles a perda de memória e os outros dois já não me
lembro...” A relatividade do espaço-tempo é uma
constante ao longo de ambos os livros; a incerteza
quântica é outra; a reversibilidade do tempo, rebatendo
a causalidade, é mais outra. Por exemplo, a Rainha
Branca — a mesma que antes do pequeno-almoço
consegue acreditar em seis coisas impossíveis — grita
antes de lhe picarem o dedo, e o seu sangue brota antes
da picada. Por outras palavras, a causa segue-se ao
efeito, como em certos fenómenos quânticos. E por aí
fora, até aos dias de hoje.

Século e meio após a publicação de Alice, existem mais


de 300 edições ilustradas por artistas de todo o mundo.
Mas são as imagens de Carroll-Tenniel que continuam a
marcar

Não terá sido por acaso que o CERN (Conselho Europeu


para a Investigação Nuclear) deu o nome de ALICE (A
Large Ion Collider Experiment) a um dos grandes
detetores do Grande Colisor de Hadrões, em
funcionamento desde 2010. Com uma envergadura de
26 x 16 x 16 metros e 10 mil toneladas de massa, ALICE
é usado para estudar as colisões entre iões de chumbo
em condições equivalentes a temperaturas 100 mil
vezes maiores do que a do centro do Sol. A essas
temperaturas, os neutrões e protões do núcleo
desfazem-se num plasma de quarks e gluões, cujo
estudo permitirá esclarecer a natureza da força forte que
mantém o núcleo coeso. Cerca de 1500 cientistas de
mais de 150 institutos de física de quase 40 países estão
envolvidos no projeto. (Quark é uma palavra inventada
por James Joyce — grande fã de Alice — em “Finnegans
Wake”, de 1939: “Three quarks for Muster Mark”, que
pode ou não significar “Três cuartos [de cerveja?] para
o Sinhor Mark”.)
Mulher para todas as épocas

Com o correr dos anos, Alice foi crescendo e adaptando-


se às novas circunstâncias. Em 1966, a Alice onírica de
Jonathan Miller, adaptada para a TV com música de Ravi
Shankar, já era uma rapariga em vias de se tornar
mulher. Passado um século desde o célebre passeio de
barco até Godstow, os psicadélicos anos 1960 dariam
um novo impulso ao mito. A ideia era “vaporizar a
mente... bombardeando os sentidos”. A prosa de Carroll
vinha mesmo a calhar. John Lennon revelou que a
famosa ‘Lucy in the Sky with Diamonds’ (LSD), do álbum
“Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” (1967), tinha
sido inspirada pela leitura dos livros de Carroll. Três anos
depois, o artista pop Peter Blake, autor da capa do disco
dos Beatles, representava Alice com uma coroa na
cabeça: a Rainha! A menina-mulher para quem tudo era
possível, e que no princípio do século fora a porta-
estandarte das sufragistas, tornava-se agora a
representante das causas feministas e libertárias. Hoje,
Greta Thunberg é outra reencarnação de Alice. As
histórias de Lewis Carroll são, afinal, parábolas para
todos os tempos.

Regresso ao princípio: “Curiouser and Curiouser” abre


com uma citação (1844) de Benjamin Disraeli, ministro
das Finanças e duas vezes primeiro-ministro da época
vitoriana: “Alimenta a tua mente com grandes
pensamentos.” Infelizmente, não consta que os políticos
de hoje visitem museus ou exposições...
“Alice: Curiouser and Curiouser”, Victoria & Albert
Museum, Londres, até 31 de dezembro

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