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O autorretrato como espelho do mundo

Sem título, Nova Iorque, 1954 fotografias Cortesia da Maloof Collection e


Howard Greenberg Gallery, NY

Coube ao Centro Cultural de Cascais revelar em Portugal


a obra de Vivian Maier, a fotógrafa da segunda metade
do século XX que passou do anonimato ao estrelato
póstumo

texto jorge calado

Fotografar é exercitar a memória; não é congelar o


tempo num instante, mas sim construir um futuro para
o passado. Um caso exemplar é o da americana Vivian
Maier (1926-2009), que se autorretratava
constantemente mas não queria ser conhecida. Ama de
profissão, sem família própria, fotografava quase
sempre sozinha e não mostrava as fotografias a
ninguém. Ampliava poucas. No fim da vida, tal como o
seu contemporâneo Gary Winogrand, nem se dava ao
trabalho de mandar revelar os rolos de filme que
expusera ao mundo que a circundava. Filha de pai
austríaco e de mãe francesa, nasceu em Nova Iorque.
Pai desapareceu para parte incerta, deixando mulher e
dois filhos, Vivian e um irmão. Uma família disfuncional:
nenhum dos seus membros se interessava por qualquer
dos outros. Vivian passou a juventude em França, mas
regressou sozinha aos EUA em 1951, estabelecendo-se
em Chicago. Fotógrafa de rua por escolha e vocação, o
trabalho de ama em lares abastados proporcionava-lhe
a segurança indispensável à sua liberdade de flâneuse,
com uma Rolleiflex pendurada ao pescoço. Uma das suas
obrigações era passear as crianças. A câmara era
apenas um acessório que completava a indumentária,
como as botas que marcavam o seu andar marcial.

Cenas de Rua

Vivian Maier

Centro Cultural de Cascais, até 18 de maio

A obra fotográfica de Vivian Maier começou a ser


descoberta em 2007 quando um estudante de história
local, John Maloof, comprou num leilão em Chicago, por
380 dólares, um conjunto de caixotes com os pertences
da fotógrafa desconhecida: milhares de rolos, negativos,
alguns positivos, filmes caseiros e toda uma série de
faturas/recibos, bilhetes de transportes, jornais, trapos
e quinquilharia. Maier era uma ajuntadora nata, e no fim
da vida, pobre e sem espaço, colocara as suas
possessões em cacifos alugados. A falta de pagamento
do aluguer levara a empresa a leiloar a tralha. A
dissimulação era o seu forte. Por exemplo, a maior parte
dos recibos estava em nome (falso) de V. Smith — o
mais vulgar dos apelidos — às vezes de Mayer ou Meier,
sem qualquer morada ou telefone. Mesmo assim, ao fim
de dois anos Maloof conseguiu identificar a verdadeira
dona, que morrera três dias antes! Seguiu-se a missão
de mostrar ao mundo a obra de um dos mais notáveis
fotógrafos da segunda metade do século XX. São mais
de 150 mil imagens, feitas ao longo de quatro décadas
em Chicago e Nova Iorque — que visitava
frequentemente —, mas em 1959 também correu
mundo e fotografou durante oito meses no Médio
Oriente (Egito, Iémen, etc.), Índia, Tailândia e América
do Sul.

Auto-retrato, Nova Iorque, 1953


Contei a estória e analisei as fotos então reveladas num
texto do Actual/Expresso (24 março 2012), atualizado
na coluna Tabela Periódica (27 setembro 2014).
Apreciada hoje nas Américas, Europa e Ásia, Vivian
Maier chegou finalmente a Portugal numa iniciativa da
Fundação Dom Luís I. Após a passagem pelo Centro
Cultural de Cascais (CCC), a exposição “Vivian Maier:
Street Photographer”, com curadoria de Anne Morin,
seguirá para o Museu do Luxemburgo, em Paris (15
setembro 2021-16 janeiro 2022). Assinale-se que o CCC
se tem destacado na revelação em Portugal de
fotógrafos importantes como Jessica Lange, Nicolás
Muller, Herb Ritts, Sam Shaw, etc.

Organizada em meia dúzia de secções onde se destacam


as fotografias de rua, autorretratos, formalismo e cor, a
exposição tem registado um merecido sucesso público
desde a reabertura. Para surpresa de todos, o livro de
John Maloof esgotou no CCC (mas aviso que há cerca de
uma dezena de livros publicados sobre Vivian Maier,
além do documentário “Finding Vivian Maier”, nomeado
para cerca de 30 prémios, ganhando alguns, mas
falhando por um triz o Óscar). Perturbante para qualquer
observador é a obsessão da artista em se autorretratar
nas mais variadas situações urbanas. Espelhos e outros
refletores públicos, montras de lojas, portas
envidraçadas, silhuetas e sombras próprias, etc. são
outros tantos pretextos para premir o botão e afirmar a
sua identidade (que escondia de todos, mesmo das
famílias para quem trabalhava). Maier não se limitava a
fotografar o que via à sua frente; queria também
registar a retaguarda, aquilo que estava atrás de si, e
qualquer superfície refletora permitia-lhe fazer isso. Um
dos achados desta exposição é um conjunto de
fotografias dos traseiros de transeuntes (com a
vantagem de assim não ter de enfrentar o olhar
surpreendido e interrogador, às vezes furioso, do
fotografado). Note-se que a Rolleiflex permite ao
fotógrafo olhar para baixo, ao nível da cintura, evitando
o confronto direto, olhos nos olhos, com quem
fotografava. Os pobres e desafortunados mereciam-lhe
profunda empatia, e respondiam com aceitação e
confiança; os ricos e emproados, atingidos na sua
privacidade, reagiam mal, circunstância logo
aproveitada por Maier. Uma geração antes, Lisette Model
fizera o mesmo, em Nova Iorque tal como na Promenade
des Anglais, em Nice. “Sou uma espécie de espiã”, a Big
Sister que observava tudo, dissera Vivian a um dos seus
patrões.

O estilo é reconhecível, mas a versatilidade é


surpreendente. A exposição talvez sobrevalorize o
retrato (em ampliações exageradas), mas fica a
lembrança de uma soberba vista aérea de Manhattan
dominada pela beleza ereta do Chrysler Building, e da
meia dúzia de abstrações, a começar por um amontoado
de caixotes (que apontam para o seu perfil de
colecionadora de inutilidades) e a terminar com as
geometrias de arames entrelaçados ou das diagonais
marcadas numa parede após demolição da casa
adjacente. No princípio dos anos 1970, Maier adquiriu
uma Leica e começou a fotografar a cor. Fê-lo com
desembaraço. A cor é usada como elemento dinâmico,
capaz de imprimir ainda maior ritmo — e inquietude —
à imagem.

Leitora ávida de jornais e revistas, conhecia certamente


o trabalho de muitos colegas. Hoje sabemos que Vivian
Maier tinha consciência de que era uma fotógrafa
talentosa — o que torna ainda mais intrigante a sua
recusa em partilhar com outrem a sua obra. Tal como a
ciência não divulgada ou publicada não existe, também
a arte escondida definha e morre. John Szarkowski,
fotógrafo e diretor de fotografia do Museu de Arte
Moderna (MoMA) de Nova Iorque, organizou em 1978
uma exposição, “Mirrors and Windows”, em que se
interrogava se a fotografia seria um espelho que refletia
o retrato do artista ou uma janela aberta à descoberta
do mundo. Na câmara de Vivian Maier, era ambas as
coisas. A ama de Chicago vivia para fotografar e
fotografava para viver! Como explicara a uma das suas
crianças, “os pobres são demasiado pobres para
morrer”. Talvez pensasse, como Florbela Espanca no
poema “Cantigas leva-as o vento...” (1920), que as
imagens são como as palavras ou as lembranças dos
beijos de um amante longínquo — uma espécie de
“perfume perdido,/ Nas folhas dum livro triste”. Doze
anos após a sua morte, o mundo continua à procura das
fotografias de Vivian Meier. Creio que era esta a sua
ambição: a mulher escondeu-se e apagou-se, mas as
suas memórias continuam vivas nas imagens que nos
legou.

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