Vivian Maier foi uma fotógrafa americana do século XX que viveu em anonimato. Sua obra foi descoberta após sua morte e revelou-a como uma talentosa fotógrafa de rua. Ela costumava se autorretratar em suas fotos de forma obsessiva, usando espelhos e superfícies refletoras. A exposição no Centro Cultural de Cascais é a primeira de sua obra em Portugal e destaca suas fotos de rua, autorretratos e imagens em cores.
Vivian Maier foi uma fotógrafa americana do século XX que viveu em anonimato. Sua obra foi descoberta após sua morte e revelou-a como uma talentosa fotógrafa de rua. Ela costumava se autorretratar em suas fotos de forma obsessiva, usando espelhos e superfícies refletoras. A exposição no Centro Cultural de Cascais é a primeira de sua obra em Portugal e destaca suas fotos de rua, autorretratos e imagens em cores.
Vivian Maier foi uma fotógrafa americana do século XX que viveu em anonimato. Sua obra foi descoberta após sua morte e revelou-a como uma talentosa fotógrafa de rua. Ela costumava se autorretratar em suas fotos de forma obsessiva, usando espelhos e superfícies refletoras. A exposição no Centro Cultural de Cascais é a primeira de sua obra em Portugal e destaca suas fotos de rua, autorretratos e imagens em cores.
Sem título, Nova Iorque, 1954 fotografias Cortesia da Maloof Collection e
Howard Greenberg Gallery, NY
Coube ao Centro Cultural de Cascais revelar em Portugal
a obra de Vivian Maier, a fotógrafa da segunda metade do século XX que passou do anonimato ao estrelato póstumo
texto jorge calado
Fotografar é exercitar a memória; não é congelar o
tempo num instante, mas sim construir um futuro para o passado. Um caso exemplar é o da americana Vivian Maier (1926-2009), que se autorretratava constantemente mas não queria ser conhecida. Ama de profissão, sem família própria, fotografava quase sempre sozinha e não mostrava as fotografias a ninguém. Ampliava poucas. No fim da vida, tal como o seu contemporâneo Gary Winogrand, nem se dava ao trabalho de mandar revelar os rolos de filme que expusera ao mundo que a circundava. Filha de pai austríaco e de mãe francesa, nasceu em Nova Iorque. Pai desapareceu para parte incerta, deixando mulher e dois filhos, Vivian e um irmão. Uma família disfuncional: nenhum dos seus membros se interessava por qualquer dos outros. Vivian passou a juventude em França, mas regressou sozinha aos EUA em 1951, estabelecendo-se em Chicago. Fotógrafa de rua por escolha e vocação, o trabalho de ama em lares abastados proporcionava-lhe a segurança indispensável à sua liberdade de flâneuse, com uma Rolleiflex pendurada ao pescoço. Uma das suas obrigações era passear as crianças. A câmara era apenas um acessório que completava a indumentária, como as botas que marcavam o seu andar marcial.
Cenas de Rua
Vivian Maier
Centro Cultural de Cascais, até 18 de maio
A obra fotográfica de Vivian Maier começou a ser
descoberta em 2007 quando um estudante de história local, John Maloof, comprou num leilão em Chicago, por 380 dólares, um conjunto de caixotes com os pertences da fotógrafa desconhecida: milhares de rolos, negativos, alguns positivos, filmes caseiros e toda uma série de faturas/recibos, bilhetes de transportes, jornais, trapos e quinquilharia. Maier era uma ajuntadora nata, e no fim da vida, pobre e sem espaço, colocara as suas possessões em cacifos alugados. A falta de pagamento do aluguer levara a empresa a leiloar a tralha. A dissimulação era o seu forte. Por exemplo, a maior parte dos recibos estava em nome (falso) de V. Smith — o mais vulgar dos apelidos — às vezes de Mayer ou Meier, sem qualquer morada ou telefone. Mesmo assim, ao fim de dois anos Maloof conseguiu identificar a verdadeira dona, que morrera três dias antes! Seguiu-se a missão de mostrar ao mundo a obra de um dos mais notáveis fotógrafos da segunda metade do século XX. São mais de 150 mil imagens, feitas ao longo de quatro décadas em Chicago e Nova Iorque — que visitava frequentemente —, mas em 1959 também correu mundo e fotografou durante oito meses no Médio Oriente (Egito, Iémen, etc.), Índia, Tailândia e América do Sul.
Auto-retrato, Nova Iorque, 1953
Contei a estória e analisei as fotos então reveladas num texto do Actual/Expresso (24 março 2012), atualizado na coluna Tabela Periódica (27 setembro 2014). Apreciada hoje nas Américas, Europa e Ásia, Vivian Maier chegou finalmente a Portugal numa iniciativa da Fundação Dom Luís I. Após a passagem pelo Centro Cultural de Cascais (CCC), a exposição “Vivian Maier: Street Photographer”, com curadoria de Anne Morin, seguirá para o Museu do Luxemburgo, em Paris (15 setembro 2021-16 janeiro 2022). Assinale-se que o CCC se tem destacado na revelação em Portugal de fotógrafos importantes como Jessica Lange, Nicolás Muller, Herb Ritts, Sam Shaw, etc.
Organizada em meia dúzia de secções onde se destacam
as fotografias de rua, autorretratos, formalismo e cor, a exposição tem registado um merecido sucesso público desde a reabertura. Para surpresa de todos, o livro de John Maloof esgotou no CCC (mas aviso que há cerca de uma dezena de livros publicados sobre Vivian Maier, além do documentário “Finding Vivian Maier”, nomeado para cerca de 30 prémios, ganhando alguns, mas falhando por um triz o Óscar). Perturbante para qualquer observador é a obsessão da artista em se autorretratar nas mais variadas situações urbanas. Espelhos e outros refletores públicos, montras de lojas, portas envidraçadas, silhuetas e sombras próprias, etc. são outros tantos pretextos para premir o botão e afirmar a sua identidade (que escondia de todos, mesmo das famílias para quem trabalhava). Maier não se limitava a fotografar o que via à sua frente; queria também registar a retaguarda, aquilo que estava atrás de si, e qualquer superfície refletora permitia-lhe fazer isso. Um dos achados desta exposição é um conjunto de fotografias dos traseiros de transeuntes (com a vantagem de assim não ter de enfrentar o olhar surpreendido e interrogador, às vezes furioso, do fotografado). Note-se que a Rolleiflex permite ao fotógrafo olhar para baixo, ao nível da cintura, evitando o confronto direto, olhos nos olhos, com quem fotografava. Os pobres e desafortunados mereciam-lhe profunda empatia, e respondiam com aceitação e confiança; os ricos e emproados, atingidos na sua privacidade, reagiam mal, circunstância logo aproveitada por Maier. Uma geração antes, Lisette Model fizera o mesmo, em Nova Iorque tal como na Promenade des Anglais, em Nice. “Sou uma espécie de espiã”, a Big Sister que observava tudo, dissera Vivian a um dos seus patrões.
O estilo é reconhecível, mas a versatilidade é
surpreendente. A exposição talvez sobrevalorize o retrato (em ampliações exageradas), mas fica a lembrança de uma soberba vista aérea de Manhattan dominada pela beleza ereta do Chrysler Building, e da meia dúzia de abstrações, a começar por um amontoado de caixotes (que apontam para o seu perfil de colecionadora de inutilidades) e a terminar com as geometrias de arames entrelaçados ou das diagonais marcadas numa parede após demolição da casa adjacente. No princípio dos anos 1970, Maier adquiriu uma Leica e começou a fotografar a cor. Fê-lo com desembaraço. A cor é usada como elemento dinâmico, capaz de imprimir ainda maior ritmo — e inquietude — à imagem.
Leitora ávida de jornais e revistas, conhecia certamente
o trabalho de muitos colegas. Hoje sabemos que Vivian Maier tinha consciência de que era uma fotógrafa talentosa — o que torna ainda mais intrigante a sua recusa em partilhar com outrem a sua obra. Tal como a ciência não divulgada ou publicada não existe, também a arte escondida definha e morre. John Szarkowski, fotógrafo e diretor de fotografia do Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova Iorque, organizou em 1978 uma exposição, “Mirrors and Windows”, em que se interrogava se a fotografia seria um espelho que refletia o retrato do artista ou uma janela aberta à descoberta do mundo. Na câmara de Vivian Maier, era ambas as coisas. A ama de Chicago vivia para fotografar e fotografava para viver! Como explicara a uma das suas crianças, “os pobres são demasiado pobres para morrer”. Talvez pensasse, como Florbela Espanca no poema “Cantigas leva-as o vento...” (1920), que as imagens são como as palavras ou as lembranças dos beijos de um amante longínquo — uma espécie de “perfume perdido,/ Nas folhas dum livro triste”. Doze anos após a sua morte, o mundo continua à procura das fotografias de Vivian Meier. Creio que era esta a sua ambição: a mulher escondeu-se e apagou-se, mas as suas memórias continuam vivas nas imagens que nos legou.