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Escola de Belas Artes - UFBA

EBA155 – FOTOGRAFIA II-A


Discente: Maui Noronha de Almeida

O SONHO INTERROMPIDO

A partir da análise do Surrealismo como um movimento de vanguarda e das obras


da fotógrafa e membra do grupo, Dora Maar, este ensaio pretende explorar sua
trajetória artística, mediante duas fotografias feitas em diferentes momentos da sua
carreira.
Tendo fim o otimismo intelectual e artístico da belle époque, a primeira guerra
mundial acende a carga revolucionária que constrói e dá forma a um novo cenário
artístico. E é desse período de insatisfação e contradições que surgiram diversos
movimentos voltados para a subversão dos valores existentes, a partir de uma nova
interpretação e expressão da realidade. Assim, em 1924 o surrealismo se consagra
como uma vanguarda através da publicação do Manifesto do Surrealismo por André
Breton.
Uma de suas principais influências foi o Movimento Psicanalítico, criado pelo
neurologista e psiquiatra Sigmund Freud, e que se tornou base para diversos
estudos da década de 20, inclusive para a revisão dos próprios conceitos
psicanalíticos tidos até então, como o de fantasia, angústia e ego. Sendo médico,
André Breton é convocado durante a primeira guerra para servir em um centro
neuropsiquiátrico, onde tem seus primeiros contatos com a teoria de Freud.
Para o pai da psicanálise, os sonhos eram manifestações do inconsciente sobre os
sentimentos e traumas mais profundos. E na visão surrealista, esses campos eram
áreas negligenciadas da vida humana, que deveriam ser exploradas. Assim, o
manifesto declara que o surrealismo deve abranger toda a atividade humana, a fim
de explorar e unificar a psique. Essa posição mostra o desinteresse desses artistas
na interpretação do sonho, do significado, já que seu objeto de estudo era a
imaginação em seu estado primitivo puro, onde o homem estava livre de toda a
crítica, da censura e principalmente da lógica.
Outra característica marcante é sua oposição, mesmo que em teoria, à burguesia e
às formas tradicionais de arte. Esse pensamento foi herdado de seu antecessor, o
Dadaísmo, e surge como uma provocação ao tradicional, do dito como bom gosto,
almejando a libertação da racionalidade e do materialismo capitalista.
Mesmo sendo inicialmente um movimento literário, o Surrealismo impacta diversas
esferas da arte, atingindo as artes plásticas, a fotografia, a moda, entre outros
campos.
Fotógrafa profissional, pintora e poetisa, Dora Maar se tornou uma personalidade
artística ofuscada no tempo por seu casamento com Picasso. Nascida em Paris,
cresceu em Buenos Aires, e voltou à capital francesa durante os anos 20, onde inicia
seus estudos em arte e fotografia.
Os trabalhos que precedem seu envolvimento com o grupo surrealista, entre os anos
20 e 30, costumam apresentar uma iluminação teatral, que explora das zonas claras
e sombras para criar dramaticidade e tensão. Seu interesse pela fotografia a faz
criar, em 1931, um estúdio comercial com Pierre Kéfer, diretor de arte
cinematográfico. Lá, ela faz todo trabalho que envolva fotografia, tendo contato com
a moda, publicidade para campanhas de revistas tradicionais, editoriais, arquitetura,
retratos etc., experiência que a faz se diferenciar de outros artistas surrealistas. E já
nesse período, Maar desenvolve um estilo próprio que perpassa o campo do
editorial e documental.
Ainda em 1931, o historiador Germain Bazin lhe encomenda fotografias do
monastério Mont-Saint-Michel, localizado em uma comuna francesa, para seu livro
ilustrado de história da arte. No trabalho, Dora utiliza da fotografia de registro para
documentar o espaço e elementos arquitetônicos do monastério, ao mesmo tempo
que lhe confere um forte contraste e uma exploração do efeito de luz e sombra,
características que lhe são marcantes em outros trabalhos fotográficos. Esse efeito
traz à fotografia um teor dramático e inquietante, que se alia ao ritmo criado pela
composição das colunas. Ao fim, temos um registro que cumpre sua função
documental, mas que é sutilmente distorcido em sua perspectiva, através de uma
dupla exposição.
Os anos seguintes são marcados pelo seu desenvolvimento como fotógrafa
comercial, mas também como artista surrealista. Através de suas experimentações
com a fotomontagem, ela cria “cenários absurdos” que desafiam o olhar do público e
questionam a realidade ao utilizar do próprio princípio fotográfico de representação
do real.
Porém, o que a diferencia de outras fotomontagens do período, além da sua atuação
no mercado editorial e a subversão à imagem fotográfica, é sua crítica à
representação da beleza e do corpo feminino.
“Os anos que lhe restam” ou “The years lie in wait for you” integra uma campanha
publicitária feita em 1935 para o mercado de beleza, provavelmente de cosméticos.
Infelizmente, não se tem informações sobre o produto anunciado e nem sobre a
revista em que foi publicada. A modelo é Nusch Éluard, esposa de um dos
surrealistas e amiga íntima da artista. Na foto, ela possui um semblante pensativo e
distante que é evidenciado pela presença de uma aranha.
De forma similar ao trabalho em Mont-Saint-Michel, Maar utiliza do retrato, um dos
tipos de fotografia mais consagrados da época, para suas “pequenas” interferências.
Só que de forma não tão sutil, ela sobrepõe dois negativos que compõe uma única
imagem.
O interessante desse trabalho é sua ousadia e liberdade de criação, dentro de um
mercado mais contido do que o artístico. Nele, a teia de aranha sobrepõe o rosto de
uma mulher e se divide entre os seus olhos, percorrendo toda a face. Já suas mãos,
a tocam como se estivessem sentindo suas “marcas”. A dramaticidade do momento
é refletida tanto pelo olhar da modelo quanto pelo jogo de luz. Ao mesmo tempo em
que a composição e o título da obra revelam um olhar aguçado sobre o processo de
envelhecimento e não mostram o produto anunciado.
As imagens tiradas no auge da sua carreira fotográfica, entre 1934 e 1936, servem
como exemplo de seu sucesso nos mais diferentes mercados e tipos de fotografia.
Mas, é em 1936, que ela conhece Pablo Picasso e se torna uma de suas amantes.
Servindo como musa e colaboradora artística, Maar se envolve na produção do
famoso quadro “Guernica” e inicia um trabalho de documentação da obra, do início
ao fim. Nesse período, ela se distancia de seus trabalhos mais surrealistas e retorna
a fotografia documental ao registrar ativamente o trabalho do pintor e momentos de
sua intimidade. Além desses, também fez retratos e registros das ruas de Paris,
através de um viés mais social e político.
Ainda durante a relação, e incentivada por Picasso, ela para de fotografar e retoma a
pintura. Mesmo assim, seu contato com os artistas surrealistas não para e
permanece expondo em galerias até 1946, quando tem um colapso mental.
A interrupção da sua carreira fotográfica não é somente uma perda para o
movimento surrealista, mas também para a fotografia em si. Suas colagens e
fotomontagens não foram os primeiros trabalhos do gênero, mas se consagram pela
investigação do processo fotográfico e de sua linguagem simbólica. A apropriação
dos cenários e ambientes cotidianos através da câmera trazem uma reflexão sobre a
realidade da artista, seu contexto cultural, histórico, e de um sistema de signos que
lhe são muito individuais. Por isso, muito mais que a mulher de Picasso, Dora Maar
foi uma importante membra do grupo surrealista, íntima de seus diversos expoentes,
e ativa na construção do que seria, mais tarde, as vanguardas europeias.

Sem título, Mont Saint Michel, Dora Maar, 1931. Museu de Belas Artes de Hudson.

Os Anos que lhes Restam, Dora Maar, 1935. Fotografia em preto e branco,
impressão em gelatina de prata, papel 355 × 254 mm. The William Talbott Hillman
Collection, Tate Modern.

REFERÊNCIAS:

ALEXANDRIAN, Sarane; O Surrealismo, nº ed. 815; Tradução de Adelaide Penha e


Costa; Editora Verbo, 1973.

BRADLEY, Fiona; Surrealismo - Coleção Movimentos da Arte Moderna;


Tradução de Sérgio Alcides, 2a. ed.; Editora Cosac & Naify Edições, 2001.

AMAO, Damarice; MADDOX, Amanda; LEWANDOWSKA, Karolina Ziebinska.


DORA MAAR. In: DasArtes. [S. l.], 2019. Disponível em:
https://dasartes.com.br/materias/dora-maar/. Acesso em: 19 maio 2023.

GLAUCO, Adorno. Dora Maar. In: Glauco Adorno. [S. l.], 2020. Disponível em:
https://glaucoadorno.com/portugues/dora-maar. Acesso em: 17 maio 2023.

HERNANZ, Clara. Why artist Dora Maar was much more than Picasso’s
‘Weeping Woman’. 2019. Revista DAZED. Disponível em:
https://www.dazeddigital.com/art-photography/article/46781/1/why-artist-dora-maar-
was-much-more-than-picassos-weeping-woman. Acesso em: 18 maio 2023.

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