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Ensaio acadêmico: a reinterpretação do destino de personagens

teatrais femininas na peça “Shakespeare em Chamas”

Fernanda Zibordi Paulo


fernanda.zpaulo@usp.br
Universidade de São Paulo

Palavras Chave: William Shakespeare; Teatro; Personagens femininas;

1. Introdução

William Shakespeare (1564-1616) é considerado o maior dramaturgo da história. Suas


peças teatrais são encenadas até os dias de hoje e vistas como o legado do escritor inglês para
a humanidade. Elas são responsáveis por emocionar, chocar e, principalmente, inspirar outros
artistas a desenvolverem histórias sobre a complexa psique humana. É a partir dessa
concepção que atores e alunos do Teatro Escola Macunaíma de Campinas elaboraram e
encenaram a peça Shakespeare em Chamas. A obra, apresentada durante o início do mês de
julho de 2023 no Teatro Escola Sia Santa, vai além de uma homenagem ao grande
dramaturgo do final do século XVI: é uma reinterpretação crítico-reflexiva do conjunto das
suas históricas obras, levantando discussões atuais sobre o destino do feminino e a
diversidade do poder de fala no meio lírico e teatral. Por meio da narrativa de um William
Shakespeare em desespero pelo fim do seu trabalho, a peça suscita o debate da superação da
monossemia pela polissemia, levando o escritor, agora personagem, a revisitar seus escritos,
sentimentos e vivências.

2. Desenvolvimento
2.1 Desdobramentos da peça teatral

Uma das características primordiais da peça Shakespeare em Chamas é sua


interatividade com o público: do ínicio ao fim da apresentação teatral, os atores entram em
contato com a plateia, de forma a extrapolar a presença no palco. O primeiro ato se inicia na
entrada do teatro, com uma peregrinação de diversos personagens de William Shakespeare,
convidando os visitantes a participarem da história a ser narrada. Ao aproximar-se do palco, é
possível observar um cenário com o escritor-personagem em um bloqueio criativo,
completamente sem memória a respeito de suas histórias. A partir do sentimento de revolta
compartilhado pelas personagens femininas escritas pelo dramaturgo, as “musas de
Shakespeare” se rebelam contra seu criador, na busca de serem relembradas.
William Shakespeare, ao fundo, em seu conflito mental, enquanto a personagem de Lady Macbeth vasculha a
luz de velas algo que não pode ser encontrado.
[Arquivo pessoal: Fernanda Zibordi]

Com o decorrer da narrativa, há um constante fluxo de figuras femininas clássicas das


peças shakespearianas entrando em contato com o escritor de diversas maneiras. Um exemplo
é Cleópatra (Antônio e Cleópatra, 1606), que, com sua personalidade forte e espírito
audacioso, confronta Shakespeare sobre a dor que lhe foi imposta ao perder o amante e a
própria vida. Outro é Julieta (Romeu e Julieta, 1597), sonhadora garota que relembra com
tristeza e melancolia o seu amado morto. O enredo não se limita apenas a obras do gênero da
tragédia, trazendo personagens como Catarina (A Megera Domada, 1594) e Rosalinda (Como
Gostais, 1598-1600), que inserem tanto toques de comicidade e ironia para as cenas quanto
perspectivas diferentes sobre o lugar da mulher nas histórias dramáticas e na própria
sociedade. Exemplo disso é que ambas as personagens, partindo das suas desacreditadas
experiências, zombam e desprezam a ideia de amor perfeito ambicionado por Julieta.

“Pelo menos eu fui uma das que você não matou. Enxergam as mulheres como bonecas,
úteis apenas como obedientes”
Fala de Catarina em diálogo conflitivo com William Shakespeare.

Em síntese, o elemento central presente em grande parte da peça é o limbo de


sofrimento no qual quase todas as personagens shakespearianas estão presas. Apesar da
agonia e do desespero trazidos à tona para o dramaturgo, esse permanece convicto sobre os
destinos das figuras femininas em suas obras. Dessa forma, a trama se aprofunda, revivendo
mais histórias de mulheres que não tiveram outra escolha a não ser serem eternizadas por
suas tragédias. A loucura de Lady Macbeth (Macbeth, 1606), o estupro e morte de Lavinia
pelo próprio pai (Tito Andrônico, 1594) e o afogamento de Ophelia (Hamlet, 1603) são
encenados de modo a agregar ainda mais na proposta crítica do enredo. A reflexão e,
finalmente, a compreensão da angústia feminina por Shakespeare são os pontos de virada da
narrativa, os quais encaminham a peça para seu ato final.
“Se não existissem histórias minhas mãos não estariam assim!”, grita Lady Macbeth com as mãos sujas de
sangue, na companhia de Julieta e Rosalinda. O figurino da peça se baseia em vestimentas comuns do século
XVI e das próprias histórias de Shakespeare.
[Arquivo pessoal: Fernanda Zibordi]

2.2 Análise da peça teatral

A principal reflexão suscitada pela peça Shakespeare em Chamas parte,


primeiramente, da ideia de que um autor deve possuir uma conexão com seu objeto artístico.
“Shakespeare, diferente de muitos autores, não viu sua obra tendo continuidade. Viu durante
um período muito curto, e depois faleceu. E ele é o mais montado em todos os continentes,
grupos e escolas. Mas ele não pôde ver isso. A gente começou a pensar a partir desse aspecto:
como seria o autor não deixando sua obra para trás?” discorre Barbosa Neto, diretor da peça.
O grande conflito inicial do enredo é a desconexão do dramaturgo inglês com a dor e o
sofrimento de suas personagens femininas. E é a partir desse elemento que a reviravolta de
roteiro se apresenta: a peça teatral não se concentra em Shakespeare, mas sim em suas
personagens em busca de uma identidade.
Isso não apenas demonstra uma renovação temática a partir da reinterpretação de
narrativas já consagradas, como também abre discussão para uma série de relações. A
primeira seria a da crítica exposta na obra com os conceitos de monossemia e polissemia.
Enquanto William Shakespeare é irredutível em suas escrituras, a monossemia prevalece ao
omitir-se as vozes de denúncia das musas shakespearianas. Com a progressão e a condução
da história dando-se por parte das personagens femininas, a polissemia passa a ocupar espaço
ao trazer as várias vozes de figuras que desejam mais dignidade e representatividade em seus
enredos.

“Eu odeio William Shakespeare por matar todas nós! O melhor de todos os homens,
para no fim voltarmos ao nada, ao limbo.”
Fala de Lavinia ao relembrar do seu destino cruel na peça Tito Andrônico.
Outra que poderia ser citada é a questão da utopia presente na condição inicial dos
registros teatrais de Shakespeare, já que esta apenas engloba a visão de um dramaturgo
satisfeito com seu trabalho, ignorando a dor pela qual as mulheres de suas narrativas
experienciam. Por fim, deve-se ressaltar a relação da peça com a pauta de diversidade pelo
fato de Shakespeare em Chamas reinterpretar obras teatrais clássicas, de modo a criar uma
abertura do espaço de fala e escolha do destino para mulheres silenciadas em suas próprias
histórias. Não apenas as versões dessas personagens ganham mais relevância, como também
elas fortalecem umas as outras por meio do sofrimento compartilhado. “Ao longo de como
vamos nos lembrando das histórias, vamos interagindo e nos aproximando. Têm cenas super
fortes como a da Ophelia com o Hamlet e isso causa uma comoção feminina. Então a gente
vai se unindo cada vez mais.”, afirma Flávia Möller, atriz que interpreta a personagem
Rosalinda na peça.

As mulheres das diversas obras de Shakespeare rodeando seu criador, enquanto o cenário ao fundo projeta peças
do artista sendo performadas ao redor do mundo inteiro.
[Arquivo pessoal: Fernanda Zibordi]

3. Conclusão

Shakespeare em Chamas se apresenta como uma possibilidade de reinvenção teatral a


partir do legado de um dos maiores escritores da história. Trata-se de uma obra que busca
homenagear o seu mentor, mas ainda assim levanta pontos importantes a serem debatidos na
realidade atual. A abordagem crítico-reflexiva do lugar e destino das mulheres numa
sociedade essencialmente machista e patriarcal possui como resultado final a exposição de
uma dramaturgia que não apenas imerge o público na narrativa por meio da grande presença
da interatividade, mas também pela qualidade na ambientação geral. Esta última é baseada
em aspectos como cenário, figurinos e trilha sonora. Temáticas como a transitoriedade entre
monossemia e polissemia, a unilateralidade de um cenário utópico e a diversidade por meio
do poder de fala feminino são relacionáveis aos simbolismos presentes na peça. Em síntese, a
apresentação teatral cumpre seus objetivos artísticos e políticos ao englobar características de
autenticidade, criticidade e esteticidade.
Referências
MANGUEL, Alberto. Shakespeare e Cervantes, essa é a questão. EL PAÍS, 2016. Disponível
em:<https://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/14/cultura/1460640879_175928.html?outputTyp
e=amp>. Acesso em dia: 12 de julho de 2023.

SHAKESPEARE, William. Antônio e Cleópatra.

https://g1.globo.com/mundo/blog/helio-gurovitz/post/shakespeare-400-anos-depois.html?UT
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https://super.abril.com.br/historia/shakespeare/mobile

O Livro da Literatura
Obras de shakespeare citadas no texto

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