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A CRIAÇÃO DO TEATRO NACIONAL ESPANHOL: LOPE DE VEGA E OS CAMPONESES EM CENA

In: GONZÁLEZ, Mario Miguel. Leituras de Literatura Espanhola. São Paulo: Letra Viva/Fapesp, 2010.

O teatro espanhol em língua castelhana chega ao seu auge no século XVII e


constitui uma das manifestações culturais de maior relevância nessa centúria. É interessante,
no entanto, que, desde a sua formação no século XVI, o modelo que ora atinge seu apogeu
aparece na contramão do teatro erudito. Prevalecerá, assim, um modelo dramático que se
afasta da preceptiva renascentista e de sua pretensão de restaurar o modelo clássico apoiado
nas unidades de tempo, ação e espaço e na distinção radical entre tragédia e comédia. O
ponto de partida é o segmento da obra de Lope de Rueda (?-1565) constituído pelas suas
obras menores, conhecidas como “pasos”. Nelas, coloca-se a semente de um teatro voltado
inicialmente para divertir o público e que depois carregar-se-á também de um sentido didático
subjacente. Esse teatro, nessa sua fase inicial, caracteriza-se pelo predomínio da ação, pela
não sujeição à preceptiva clássica, pela temática popular e pela presença do “bobo”, forma
elementar do trapalhão. As obras de Rueda são ainda em prosa, forma que cederá lugar ao
predomínio absoluto do verso, no século XVII, quando também teremos a transformação do
“bobo” na peculiar figura do “gracioso”. Este é uma criação estritamente teatral, sem
correspondentes na realidade alheia ao palco. O gracioso está a serviço do autor, não apenas
para divertir o público com seus comentários ou atitudes. Além disso, é muitas vezes o porta-
voz do autor, que faz com que uma personagem que contrasta com aqueles colocados no
plano mais sério da obra, comicamente, acabe dizendo o que o autor quer que o público
enuncie mentalmente como comentário aos fatos representados. O gracioso, assim, acaba
sendo o portador da mensagem ideológica que se quer sublinhar.

Um outro segmento do teatro do século XVII estará constituído pelos “Autos


sacramentales”, forma dramática voltada para a encenação alegórica de temas religiosos e que
se apoia na tradição dos autos religiosos provindos da cultura medieval. É habitual distinguir
no teatro do século XVII dois ciclos centrados nas figuras dos dois dramaturgos mais
importantes do século: Félix Lope de Vega Carpio (1562-1635) e Pedro Calderón de la Barca
(1600-1681), no entanto, pode-se considerar que, a partir de 1625, ambos os ciclos coexistem
durante algum tempo. O ciclo de Lope de Vega significa a criação do chamado “teatro
nacional” espanhol a partir da ruptura com a preceptiva clássica, o que acontece em função do
contato de Lope em Valência, em 1589, com um grupo de dramaturgos (dentre os quais o mais
conhecido é Guillén de Castro) que produzia obras com um sentido fundamental de espetáculo
e, assim, alheias à preceptiva. Além dessa ruptura e da transformação do “bobo” no
“gracioso”, Lope incorpora elementos populares líricos e musicais, além de danças, no intuito
de uma plena ambientação da trama na realidade do povo. Essa exploração do popular leva a
que, às vezes, uma canção ou um ditado possam ser o ponto de partida ou o eixo de uma peça
teatral, ou de que o próprio Lope crie canções no estilo daquelas tradicionais para melhor
ambientar a trama de suas peças. Igualmente, como veremos, Lope de Vega chega a atribuir a
personagens da classe popular o sentimento de “honra”, habitualmente reservado à nobreza,
dando lugar, assim, a conflitos inovadores e de grande atração entre o seu público provindo
daquele segmento. Do ponto de vista formal, a rejeição da preceptiva clássica permite que,
além de não respeitar as unidades prescritas por aquela (com exceção da unidade de ação),
Lope misture indistintamente os gêneros dramáticos e as classes sociais no cenário, bem como
os mais diversos metros, já que a versificação passa a variar conforme sua maior ou menor
adequação ao caráter de cada cena ou personagem. Assim, a polimetria será um dos traços
mais marcantes do modelo, ao mesmo tempo em que a opção pelo verso permite a criação de
uma linguagem própria para o cenário, onde passou a ser aproveitado plenamente seu poder
de síntese significativa e de economia expressiva, como aponta Francisco Ruiz Ramón. O teatro
instaurado por Lope gira fundamentalmente em volta da ação que, habitualmente, aparece
iniciando-se abruptamente já no começo da representação. Dessa maneira, o predomínio dos
acontecimentos, acumulados habitualmente numa forte condensação temporal, deixa num
segundo plano os caracteres das personagens. Trata-se de um teatro produzido com base na
enorme capacidade de improvisação que caracteriza Lope de Vega, marcado pela leveza, pela
agilidade e pelo seu caráter ameno, mas carregado por uma tendência à superficialidade. Do
ponto de vista temático, uma outra inovação lopesca é uma amplíssima abertura que lhe
permite levar ao palco os mais diversos assuntos. Com base em sua fórmula, são dramatizados
os mais diversos temas de origem literária, lendária, bíblica ou histórica, bem como assuntos
vinculados à realidade contemporânea. Graças a isso, o teatro espanhol será o caminho para a
incorporação de muitos temas por outras literaturas dramáticas da Europa. As peças do teatro
clássico espanhol são designadas habitualmente como “comédias”, sem que isso signifique sua
vinculação à comicidade. O termo indica apenas o destino explicitamente teatral do texto, já
que nele não se interpõe a distinção de gêneros literários. Às vezes, a designação pode tentar
explicitar a mistura de elementos próprios da tragédia e da comédia mediante o termo
“tragicomédia”; há casos em que aparecem designações menos felizes, como “comédia
dramática” ou “comédia trágica”; mas o que parece ter ficado excluído desse teatro, tanto na
nomenclatura como na realização plena, é a tragédia como tal. Um outro aspecto formal
característico do teatro espanhol clássico será a opção pelo modelo que fragmenta a obra em
três atos, modelo esse que se apoia na tripartição do conflito dramático em apresentação,
desenvolvimento e desfecho. Essa forma opõe-se tanto às oscilações anteriores entre a
fragmentação em três, quatro ou cinco atos quanto à opção do teatro inglês e do teatro
francês pela divisão em cinco atos; será também a fórmula que, com posterioridade ao
Romantismo, o teatro europeu privilegiaria até o século XX.

Lope de Vega Lope Félix de Vega Carpio foi filho de um bordador, Félix de Vega
Carpio, vindo para Madri com sua mulher, Francisca Fernández Flores, no momento em que
Felipe II, em 1561, declarara a pequena vila capital da Espanha. O casal provinha das
montanhas de Santander. Essa origem seria o fundamento das pretensões nobiliárias de Lope
de Vega. Este nasceu em novembro de 1562. O seu primeiro biógrafo, Juan Pérez de
Montalbán – bastante favorável a Lope, diga-se – recolheria amostras de grande precocidade
intelectual de Lope. Ele, após ter feito estudos elementares, ingressou, em 1572, no Colégio
Imperial dos Jesuítas; nesse ambiente favorável, teria escrito suas primeiras peças de teatro.
Em 1577, teria ingressado na Universidade de Alcalá, para estudar Filosofia, lá permanecendo
até 1582, sem que haja certeza de que chegasse a se graduar. Nesse mesmo ano, teria passado
pela Universidade de Salamanca. Mas no ano seguinte participou da expedição à ilha Terceira,
dos Açores, destinada a submeter essa ilha à autoridade de Felipe II. Ao voltar a Madri, três
meses depois, integra-se, como poeta já conhecido, na vida intelectual da cidade. Mas
começam também as aventuras amorosas que marcarão sua existência. Em 1587, seus amores
com Elena Osório (designada como Filis na obra de Lope), casada, culminaram num processo
por injúrias, aberto contra ele pela família dela. Lope foi preso e, em 1588, desterrado por oito
anos de Madri, e do reino de Castela por dois anos. Mas, de imediato, viola a pena de desterro
para raptar Isabel de Urbina, de família nobre, que aparecerá em sua obra sob o nome de
Belisa. Denunciado, deve casar-se por procuração. Poucos dias depois, no entanto, Lope alista-
se como voluntário na Armada Invencível, que partiria de Lisboa. Na volta da desastrada
expedição à Inglaterra, Lope reúne-se com Isabel e se estabelece em Valência, em 1589. Lá
tem romances seus recolhidos no Primero Romancero General, o que lhe proporciona uma
certa fama. Mas o mais importante é o contato de Lope com um grupo de autores teatrais
marcados por uma certa heterodoxia com relação às convenções teatrais e voltados mais para
o espetáculo. Lope, que se identifica com essas características, passa a escrever, já não apenas
por diversão, mas como uma fonte de recursos. Envia suas comédias para Madri, tem sucesso,
e isso retroalimenta a orientação do grupo valenciano. Em 1590, já pode voltar a Castela
(porém não a Madri, onde sua fama como dramaturgo não para de crescer) e se instala em
Toledo. Lá, continua escrevendo teatro, atua como secretário do duque de Alba, residindo
temporariamente em Alba de Tormes e, talvez, ocasionalmente, como estudante em
Salamanca. Dessa época é sua primeira obra narrativa mais famosa, uma novela pastoril
intitulada La Arcádia, publicada em 1598, seu primeiro livro impresso. Em 1595, ao morrer
Isabel de Urbina, é indultado e volta para Madri. E, no ano seguinte, Lope é processado por
amancebamento com uma bela, rica e desenvolta viúva, Antonia Trillo. Nessa época, também,
começam a aparecer os sonetos dirigidos a Camila Lucinda, na realidade Micaela de Luján. Em
1598, Lope casa-se com Juana de Guardo, filha de um rico açougueiro – o que motivaria as
burlas dos seus inimigos, como Góngora –.que, à diferença de outras mulheres, pouco aparece
mencionada nos poemas de Lope. Em 1597, a morte de Catalina Micaela, filha de Felipe II,
provocou a proibição de representações teatrais por um ano. Assim, Lope se sustenta como
secretário do duque de Sarria, futuro conde de Lemos, que seria o favorito do rei Felipe III, ao
chegar este ao trono, com a morte do seu pai, em 1598. Em 1599, acompanha o duque a
Valência por ocasião da boda do rei com Margarita de Áustria. Nos festejos, são representadas
peças e recitados poemas de Lope. Nessa época se intensificam as relações de Lope com
Micaela de Luján, bela atriz casada com o ator Diego Díaz; este residia no Peru e lá morreria
em 1603. Dos sete filhos de Micaela, cinco eram de Lope, o último nascido em 1607, batizado
com o nome de Lope e por este reconhecido como filho publicamente. Em todos esses anos,
até 1610, Lope alternaria entre os dois lares e, assim, entre as cidades de Madri, Toledo e
Sevilha. Com Juana de Guardo, Lope teria um filho, Carlos Félix, morto com sete anos em 1605,
e uma filha, Feliciana, nascida em 1613, ano da morte de Juana. A relação com Micaela
esfriaria em 1608. Desses anos e das permanências em Sevilha é a origem da amizade de Lope
de Vega com Mateo Alemán. E de 1608 data sua designação como “familiar” da Inquisição. A
função liberava Lope do pagamento de impostos, em troca da denúncia de suspeitos. Em 1609,
Lope publica seu Arte nuevo de hacer comedias, em defesa do seu sistema teatral e contra os
preceptivistas. Em 1610, Lope estabelece-se definitivamente em Madri, já na casa própria
(hoje reconstituída como museu) onde escreveria o mais significativo de sua produção teatral.
Mas, nessa casa, Lope amargaria não apenas a morte de Juana, mas a do filho Carlos Félix, de
sete anos. Por outro lado, apesar da fama de Lope e da riqueza do avaro sogro, a situação
econômica da família era de penúria. Lope, então, traz para a casa os dois filhos mais novos
que teve com Micaela de Luján: Marcela, de oito anos, e Lope Félix, de seis. A filha
acompanharia o pai até 1622, quando ingressou no convento. O filho, após dar algumas dores
de cabeça ao pai, ingressaria na carreira das armas e acabaria morrendo num naufrágio, em
1634. Em 1613, há o registro de amores passageiros de Lope com Jerónima de Burgos, atriz,
mencionada em suas obras como Gerarda. Mas, no ano seguinte, Lope é ordenado sacerdote.
O primeiro conflito que ocasiona o novo estado de Lope deve-se ao fato de que ele atuava,
vários anos antes, como secretário do duque de Sessa, para cujos amores adulterinos Lope
escrevia cartas a pedido do duque. Lope teve que interromper esse serviço, mas o duque
continuaria a favorecê-lo. Lope, no novo estado, tem uma intensa atuação pública e continua
vinculado ao teatro e escrevendo comédias. Em 1616, volta, porém, às aventuras amorosas.
Viaja a Valência para encontrar-se com Lúcia de Salcedo, também atriz. Parece ter sido uma
paixão ocasional. Volta para Madri e volta a atuar como secretário do duque de Sessa, que lhe
arruma um cargo eclesiástico. Nasce por essa época a última paixão de Lope: Marta de
Nevares, mencionada por ele como Amarilis ou Marcia Leonarda. Ela tem uns vinte e seis anos
e Lope cinquenta e quatro. Mulher erudita, com estudos em Alcalá, de bom gosto e cultura
artística. Casara-se aos treze anos com um homem de negócios. O novo amor de Lope é
motivo de chacota por parte dos seus inimigos. Em 1617, nasce Antonia Clara, batizada como
filha do marido de Marta. Um escândalo judicial motivado por isso acaba graças à morte deste
último. Marta influenciará notadamente a obra de Lope, que lhe dedica mais de uma de suas
obras teatrais. E a carreira de Lope não para de obter sucessos. Mas o infortúnio não deixaria
Lope em paz. Em 1622, Marta ficaria cega; e, dois anos depois, enlouqueceria; recuperar-se-ia
da loucura, mas para morrer em 1632. Lope continuaria produzindo obras teatrais e literárias e
colhendo fama e sucessos, mas ainda assim as estreitezas domésticas eram grandes e muito
parcialmente cobertas pelo duque de Sessa. Em 1633, casaria sua filha Feliciana. No ano
seguinte, porém, novamente o infortúnio abater-se-ia na vida de Lope, com a morte de seu
filho Lope Félix, primeiro; e, depois, ironicamente, com o rapto de Antonia Clara, a filha de
Marta de Nevares, de dezessete anos, por Cristóbal Tenório, protegido do conde-duque de
Olivares, favorito do rei. Lope não superaria esses fatos e morreria no dia 27 de agosto do ano
seguinte, 1635, aos setenta e três anos. O duque de Sessa custeou o funeral, que foi
apoteótico. Mas o mesmo duque deixou de pagar as taxas pelo túmulo de Lope na igreja de
São Sebastián e os restos mortais do dramaturgo foram jogados na fossa comum. No meio
dessa existência de ritmo alucinante, Lope ainda encontrou tempo para uma enorme produção
literária. Não apenas obras narrativas abrangendo os gêneros idealistas, como a novela
pastoril, a amorosa, a religiosa ou a novela curta. Todas as formas e temas possíveis à poesia
lírica da época foram igualmente trabalhados por Lope de maneira impressionante; só os
sonetos chegam a três mil. Mas é no teatro onde a produção chega aos limites da
credibilidade. Conservam-se 470 obras comprovadamente suas, fora as que lhe são atribuídas.
A crítica costuma aceitar que Lope possa ter escrito por volta de 800. O seu teatro dá a pauta
fundamental do chamado teatro nacional espanhol do século XVII, o qual já caracterizamos. O
ponto de partida de Lope seria a exaltação da natureza ante a arte, sendo que a natureza se
define por oposição à arte ao considerar esta como o artifício, produto de uma preceptiva
julgada inútil. Essa rejeição da preceptiva (da qual se salva, essencialmente, a doutrina da
verossimilhança) é explicitada em Arte nuevo de hacer comedias, de 1609, em que Lope
preconiza a mistura de gêneros e estabelece o deleite do público como o objetivo que o leva a
prescindir das unidades de tempo e lugar consagradas pelo preceptivismo. O fundamental
para Lope é satisfazer o “vulgo”, mesmo que isso não seja o mais “justo”. Anos depois, o vulgo
seria substituído pelo “povo”. Lope, no entanto, para atender a esse objetivo, nunca cairia em
facilidades que rebaixassem suas comédias, nem levaria a extremos o uso dos recursos
estilísticos barrocos, conseguindo, assim, atingir a heterogeneidade do seu público. Lope
conseguiria, assim, consagrar uma fórmula teatral revolucionária para a época e que, na
medida em que supõe a falência da imitação dos modelos clássicos, coloca as bases da
modernidade teatral, do ponto de vista formal. Esse deleite do público devia começar, para
Lope, pela qualidade de seus textos, do verso que escolhera como forma fundamental dos
seus dramas. Nestes, aliás, geralmente a poesia popular, na forma de canções, junto com a
dança, facilitava a identificação do público popular com a representação. A linguagem,
propondo amiúde jogos de palavras, procura sempre ser atraente. A comicidade está presente
com muita frequência. Particularmente, o bobo do teatro precedente assume características
especiais ao evoluir para a figura do “gracioso”, como já consideramos. Parte do deleite
também está na fórmula de teatro de ação, que predomina e que se pauta pelo forte
dinamismo dos acontecimentos numa pluralidade espacial. Isso sacrifica a elaboração dos
caracteres dramáticos que, em geral, carecem de maior aprofundamento psicológico. Junto a
esse deleite, Lope, porém, sempre teve presente o objetivo de ensinar seus espectadores. O
ensinar de Lope não passa por discursos moralizantes, mas decorre particularmente da
solução exposta para os conflitos apresentados. Normas de conduta são dadas mediante a
premiação ou a condenação dos indivíduos pelos seus atos, levando em conta o respeito
implícito neles por um sistema de bases religiosas e nacionalistas. Assim sendo, esse objetivo
didático de conteúdo doutrinário e político é o que, paradoxalmente, junta aos aspectos
revolucionários do teatro de Lope uma vertente fortemente conservadora. Lope de Vega
identificou-se sempre com a defesa do sistema. Viveu em função da corte e, nela, ao mesmo
tempo em que buscou o apoio dos poderosos, desenvolveu um teatro que não apenas exalta a
ideologia da Contrarreforma, mas enfatiza o papel do povo como aliado da monarquia, com
exclusão de todos aqueles que, política ou ideologicamente, signifiquem qualquer tipo de
desvio. O teatro de Lope destinar-se-á, em boa medida, a levar ao palco não apenas todas as
categorias sociais, mas a exaltar os valores religiosos que fundamentam uma sociedade
estamental e excludente, mediante a idealização desta. Nela, predominantemente, são
salientados os valores que o seu público cultua; obtém-se, assim, a adesão deste que, por sua
vez, recebe a carga emotiva da representação teatral que, assim, retroalimenta a adesão
popular a esses valores. O parâmetro que define os indivíduos nessa sociedade é
fundamentalmente a honra-opinião. E esta tem como base fundamental a “limpeza do
sangue”, que exclui como perigosas as atividades ou os sujeitos que pelas suas características
pareçam alheios ao sistema de alianças entre o povo, a Igreja e a monarquia. Nesse esquema,
o camponês (preferentemente analfabeto), que oferece a garantia de não se ter misturado
com os judeus, é exaltado ante o habitante das cidades, às classes médias, aos baixos setores
da nobreza, sempre suspeitos. Por esse caminho, Lope produzirá algumas de suas melhores
obras, centrando-as numa aparente defesa democrática do camponês injustiçado. Mas a
rebelião exposta é legitimada dentro de um sistema conservador, que acaba por consagrar o
esquema que produz a injustiça. Quatro dramas de Lope de Vega significam
fundamentalmente levar pela primeira vez os camponeses a protagonistas da cena sem que
isso significasse explorar o ridículo. Tais são Peribáñez y el Comendador de Ocaña,
Fuenteovejuna, El mejor alcalde el rey, e El alcalde de Zalamea (atribuída a Lope e de qualidade
inferior, será reelaborada por Calderón de la Barca). Todos eles giram em volta de uma
proposta tão inovadora quanto sedutora para o segmento mais popular do público de Lope:
defender o direito do camponês a pautar-se pelo código da honra. É necessário, aqui, levar em
conta que Lope utiliza os termos “honra” e “honor”, indistintamente, embora sua opção seja
claramente pela “honra” fundamentada na opinião alheia. Caberá, no entanto, perceber que
os camponeses podem aparecer pautados (independentemente do sentido que Lope queira
dar ao tema) bem mais por um sentimento de dignidade pessoal (“honor”) do que por uma
simples questão externa, como a honra-opinião. Em El alcalde de Zalamea, o camponês,
detentor do mínimo poder civil, deve utilizar este em defesa de sua dignidade, perante o
abuso de que é objeto por parte do poder militar. Em Fuenteovejuna, a principal peculiaridade
estaria em que a defesa contra o abuso do poderoso acontece na forma de uma rebelião
popular, cuja legitimidade acabará sendo declarada pelos monarcas, os reis Católicos. Já em El
mejor alcalde el rey, a dignidade individual ofendida é objeto da justiça por parte do rei. Em
Peribáñez, o camponês preserva sua dignidade e a da sua esposa mediante a violência contra o
nobre, violência que o monarca justiceiro não tem como não legitimar. São quatro variantes
das quais surpreendem especialmente a segunda e a quarta, já a primeira seria retomada por
Calderón de la Barca na obra homônima em que ele soube levar as possibilidades do assunto a
um patamar de grande qualidade dramática.

Peribañez y el Comendador de Ocaña

A peça inicia com a boda de Peribáñez, camponês de Ocaña, com a bela camponesa
Casilda. Acidentalmente, logo após a cerimônia, dom Fadrique, comendador local da ordem
religioso-militar de Santiago (um nobre, portanto), conhece Casilda e apaixona-se por ela. A
rejeição desta perante as tentativas de sedução do Comendador na ausência do marido, levam
o Comendador a tramar uma maneira de afastar Peribáñez do povoado; quando julga ter
conseguido isso, o Comendador invade a casa e o quarto de Casilda; quanto está a ponto de
tentar possuí-la pela força, chega Peribáñez e o mata, assim como seus cúmplices imediatos. O
casal foge. O rei coloca a prêmio a cabeça de Peribáñez, mas, quando este se apresenta
entregando-se e pedindo que o prêmio seja outorgado à sua mulher, a digna defesa que ele
faz do seu ato comove o monarca, que o perdoa. A simplicidade do argumento, no entanto,
está enriquecida por aspectos formais e, especialmente, pelo polêmico caráter do direito que
se concede ao camponês de agir em defesa de sua honra. A honra foi, tradicionalmente, um
bem comunitário, a responsabilidade de cuja defesa cabia a todos os integrantes da
comunidade. Mas a comunidade com direito à honra estava implicitamente restrita ao
segmento social que, hereditariamente, transmitia bens e, particularmente, que transmitia o
nome que se apoiava na possessão desses bens, isto é, a nobreza. Assim sendo, os
camponeses estariam fora dos deveres e direitos que o código de honra significava. Em
princípio, portanto, a atitude de Lope de colocar em cena um camponês protagonizando um
drama de honra era revolucionária. Mas há dois aspectos a considerar: primeiro, que
Peribáñez age, na verdade, acima do código convencional da honra; e, segundo, que é possível
que houvesse segundas intenções por parte de Lope, nessa exaltação do camponês, que, na
verdade, estaria atacando os que julgava inimigos do sistema que ele defendia. Para explicitar
melhor isso, será necessário analisar as personagens centrais e, particularmente, os
mecanismos de legitimação das ações de Peribáñez, mecanismos esses que, no entanto,
podem escapar às intenções decorrentes da base ideológica da obra. Peribáñez é um
camponês. Mas Lope acumula nele traços aparentemente contraditórios. Por uma parte,
Peribáñez aparece inicialmente como um indivíduo simplório, completamente obnubilado pelo
seu casamento com Casilda, moça de grande beleza e virtudes. Há críticos, como Noé
Salomon, que entendem que a personagem teria uma origem folclórica, em que Peribáñez
equivaleria exatamente a tonto, pouco precavido. De fato, a copla que dá origem à peça
permite pensar que esse nome evocaria um ser ínfimo, radicalmente oposto ao ser poderoso
que, se supõe, caberia imaginar na figura de um comendador:

“Más quiero yo a Peribáñez con su capa, la pardilla, que no a vos, Comendador, con la vuestra
guarnecida.” Isso criaria nos espectadores a expectativa de assistirem a um episódio cômico,
em que o camponês teria tudo para ser vítima dos enganos do Comendador e de sua mulher.
Dentro dessa possível expectativa, o único objetivo de Peribáñez, no primeiro ato, seria o de
agradar Casilda, que parece controlá-lo por completo (I, 3). Isso leva Peribáñez não apenas a
atender a todos os mínimos desejos de sua mulher, mas a dirigir-se ao Comendador para obter
tapete e reposteiros para enfeitar o carro em que levará aquela a Toledo. Mas Lope caracteriza
igualmente a Peribáñez com outros traços que o distinguem positivamente, no contexto da
obra. Por uma parte, é um cristão velho. Luján qualifica-o como um “homem de bem” e
“honrado” (I, 12); e Leonardo o define explicitamente como “cristão velho” (I, 16); e, aos
poucos, verificamos que é relativamente rico: não apenas vemos a festa com que celebra seu
casamento (I, 1), mas percebemos que possui recursos para atender ao desejo de sua mulher
de ir à festa da Assunção em Toledo e para presenteá-la (I, 9); finalmente, Leonardo o define
como “rico” (I, 16). Ou seja, aos poucos, vemos Peribáñez, mesmo que carente de qualquer
arrogância, crescer como indivíduo. Mais ainda quando, pelo mesmo Leonardo, sabemos que
seus conterrâneos lhe guardam respeito (I, 9). Essas qualidades irão sendo confirmadas e
enfatizadas nos atos seguintes. Mais ainda, o camponês, aparentemente bobo, dá cada vez
mais e melhores provas de sua astúcia, único recurso de que disporá para descobrir a trama de
que está sendo vítima e para defender sua dignidade em perigo. Uma mínima amostra dessa
astúcia, como saber natural que o leva a optar pelo que lhe convém, aparece na cena 14 do
primeiro ato, quando Peribáñez não aceita pedir ao Comendador um chapéu, como sugere
Casilda, pois compreende o papel ridículo que se arrisca fazer enfeitando-se de maneira
imprópria. Isso, fora o possível sentido malicioso que o uso de um chapéu poderia incorporar.
Dessa maneira, Peribáñez crescerá ao longo da obra, tornando-se cada vez mais uma
personagem que ganha as simpatias do público como digno contraponto da vilania do
Comendador. Essa evolução de Peribáñez permite distingui-lo como uma personagem não
plana, à diferença dos demais, o que contribui para outorgar-lhe a relevância adequada ao
papel protagonista que Lope lhe confere. No segundo ato, o prestígio de Peribáñez entre seus
pares é confirmado pela escolha de seu nome para mordomo da confraria local de São Roque
e pela missão que lhe é confiada de fazer reparar a imagem do santo (II, 1 e 2). A astúcia de
Peribáñez confirmar-se-á logo depois, nas cenas na casa do pintor que, em Toledo, por uma
parte prepara o retrato de Casilda solicitado pelo Comendador e, por outra, conserta a
imagem de São Roque (II, 13 a 15). Sutilmente, consegue que seu companheiro Antón veja o
quadro e confirme que a retratada é muito parecida com Casilda; de imediato, dispensa Antón
para, a sós com o pintor, sem revelar sua relação com a retratada, obter a confirmação de que
o retrato fora feito a pedido do Comendador e certificar-se da inocência de sua mulher; por
muito pouco, aliás, não consegue também se apoderar do quadro. No meio desses diálogos,
pela primeira vez, num aparte, Peribáñez fala em desonra (II, 15). Esse sentimento novo cresce
na minuciosa análise da sua situação que ele faz, a sós, num primeiro monólogo (II, 16).
Embora Lope leve o camponês a expor um conhecimento de um código de honra, que
pareceria impróprio, o que vemos crescer na personagem é um sentido de dignidade que a faz
sentir-se vítima de uma afronta e lhe permite buscar no diálogo com sua mulher o caminho
para resolver a situação. Além do que, esse primeiro monólogo nos permite ver na
personagem uma capacidade nova, a da reflexão, que reaparecerá depois; neste caso, há um
organizado discurso que coloca o problema, analisa as causas e consequências da situação e
formula um plano depois de descartar outros. Em conformidade com isso e com a astúcia que
o caracterizará cada vez mais, Peribáñez separa-se de Antón ao chegar a Ocaña, no intuito de
refletir antes de entrar em sua casa. Essa nova reflexão (II, 20 e 21) constitui um segundo
monólogo, dividido em duas partes pelo canto que ele escuta dos segadores, canto relativo
precisamente aos fatos acontecidos em sua ausência e à inocência de sua mulher. O monólogo
inicia-se com a constatação de que sua fortuna, ou seja, a beleza de Casilda, teria motivado a
atitude do Comendador, o que o leva a confidenciar sua situação com a terra e com o trigo que
está para ser colhido. O canto dos segadores fornece-lhe uma maior certeza da inocência de
Casilda e o informa sobre o acontecido em sua ausência. Mas não por isso deixa de sentir-se
afrontado. Conhecedor do que Casilda ignora que ele sabe, volta à sua casa sabendo quais
cartas deve jogar. Assim, não diz uma palavra sobre o que sabe, mas encontra uma maneira de
tirar de sua casa os presentes do Comendador, símbolo de um poder econômico que está na
base da desigualdade que o impede de tomar satisfações sem mais. E aproveita para enfatizar
o que separa o senhor do vassalo, no intuito de marcar distância entre a indignidade daquele e
a sua dignidade, que pretende preservar. O início do terceiro ato significa a consagração da
astúcia de Peribáñez. Na segunda cena, estamos ante as consequências do fato de o
Comendador ter designado Peribáñez como capitão de uma companhia de cem camponeses
que participarão da empreitada do rei contra os mouros, no intuito de afastá-lo de Ocaña.
Temos Peribáñez armado de adaga e espada, à testa dos seus subordinados, que, segundo se
indica, vão armados graciosamente, isto é, de maneira grotesca. Isso começa a dar o tom de
farsa que a cena toda tem. Peribáñez dialoga com o Comendador num tom muito diferente da
quase que servil subordinação do diálogo de ambos no primeiro ato. Na cena 2, o diálogo de
Peribáñez com o Comendador apresenta o camponês numa atitude ridícula, ao tentar falar de
igual para igual com o Comendador, de quem pareceria sentir-se aproximado pelo simples fato
de ir armado e comandar um grupo de soldados; Peribáñez parece querer imitar a fala do
nobre, mas mistura todas as formas de tratamento possíveis: “su señoría”, “vos”, “su mercé”,
tudo isso misturado a termos próprios da fala mais vulgar, como “pardiez”. O Comendador
incentiva essa atitude, elogiando a semelhança no vestir de ambos. Mas Peribáñez vai além:
pede ser armado cavaleiro. O Comendador acede a praticar o que, sem dúvida, é uma farsa
dentro da farsa: jamais caberia armar cavaleiro quem não fosse nobre; o Comendador aceita,
sabendo da intranscendência da cerimônia, apenas para agradar o camponês e enganá-lo
melhor. No meio da cerimônia, o diálogo dos camponeses-soldados (dentre os quais Belardo,
supostamente representação do próprio Lope de Vega) torna mais cômica a cena. Mas,
“armado cavaleiro”, Peribáñez aproveita o juramento que deve pronunciar para recitar ao
Comendador todo o código de honra, que ele devia conhecer, pelo qual o senhor era
responsável pela guarda das propriedades e da honra do subordinado, honra à qual ele diz ter
direito agora, depois de tornado cavaleiro. O Comendador, como ficará implícito no seu
monólogo na cena seguinte, não consegue associar esse discurso tão coerente com a imagem
do camponês ridículo que conversara com ele um momento antes. Mas, Peribáñez precisa
alertar sua mulher sem revelar o que sabe. E faz isso, à cena 5, ao despedir-se. A partir do jogo
em volta da palavra “soldados”, que de substantivo passa a ser adjetivo aplicado a “celos”
(“ciúmes”), o camponês faz um discurso carregado de duplo sentido, mas que deixa claro que
ela terá que se guardar por si mesma, para depois deixa ver que de fidalgo só tem a aparência
da fala (logo depois não aceita ser chamado “capitán” por sua mulher), e que se fecha com um
enigmático jogo de palavras que faz Casilda pensar. Peribáñez parte. Quando voltar a aparecer
(III, 10), será, surpreendendo o espectador, essa mesma noite, numa rua de Ocaña, explicando,
num novo monólogo, que, após fazer seus soldados acamparem, voltou ao povoado para
defender sua honra, que ele não subordina à condição de “cavaleiro”, mas que diz ser-lhe
inata. Logo depois, Peribáñez bate à porta da casa do seu vizinho Antón, sabendo que deve
atuar astuciosamente para surpreender o Comendador; e expõe seu drama ao amigo sem
invocar jamais o fato de ser agora um “cavaleiro”. Essa consciência do camponês evidencia-se
depois, na cena 17, quando Peribáñez, após se esconder em sua própria casa para deixar que
os fatos cheguem ao limite, ao interromper o que pareceria ser uma tentativa de estupro pelo
Comendador, confessa-se camponês e fere de morte o Comendador, invocando a sua honra
como categoria que o iguala ao nobre. Ao Comendador só restará, antes de morrer (III, 18),
aceitar que merece a morte, dizer que perdoa Peribáñez e, mais ainda, reconhecer que ele
caiu na própria armadilha: não pode reclamar, já que Peribáñez foi armado cavaleiro por ele
próprio. Peribáñez foge. Sua cabeça é posta a prêmio. E reaparece (III, 27), mais uma vez
inesperadamente, perante o próprio rei. É importante observar que a marcação cênica indica
que Peribáñez chega vestido como camponês (e não mais como soldado). Ao estar a ponto de
ser executado sem mais, Peribáñez invoca o apelido de “justiciero” dado ao rei, para conseguir
ser ouvido. E, na sua fala, jamais invoca o que parece saber que foi uma farsa, a cerimônia de
ser armado cavaleiro. Pelo contrário, identifica-se como camponês, de “sangue limpo”,
prestigiado pelos seus pares. E narra sua história recente, de maneira singela, porém digna,
sem pedir clemência, mas, num último gesto de astúcia, solicita que o prêmio seja dado a
Casilda, que o acompanha e pretende entregá-lo. O rei, comovido e surpreendido de que um
camponês possa apreciar tanto sua fama, não pode, em justiça, senão poupar-lhe a vida,
nomeá-lo capitão e premiar Casilda. Em síntese, há uma evolução em Peribáñez, pela qual ele
vai de quase ridículo apaixonado pela mulher, crescendo na descoberta de sua dignidade que
lhe é inata e deve ser defendida, mesmo que chamada de “honra” ou “honor” indistintamente
por Lope. Isso põe em andamento no camponês os mecanismos de sua astúcia; finge ser bem
mais simplório do que parecia ser e explora o jogo do Comendador. Flagra este de modo a
fazer inapelável a legitimidade de seu ato em defesa de Casilda e foge, voltando não para pedir
justiça (pois ele entenderia que a justiça já estava feita), mas para expor o sentido de defesa da
dignidade e de proteção de sua mulher que seu gesto teve; e para pedir uma última proteção
para esta. Nessa altura, o camponês aparece como uma figura agigantada pela coragem e
dignidade, acima das falsas e hipócritas atitudes do nobre por ele justiçado. Entendemos que
Peribáñez foge à convenção da defesa da “honra-opinião”, que é o mais frequente no teatro
clássico espanhol. Ele não alude a isso, senão de maneira secundária, quando, após ouvir que
os segadores cantam uma canção sobre a tentativa do Comendador de seduzir Casilda,
entende que não corresponde que seu nome ande na boca dos demais. Mas, no geral, fica
claro que Peribáñez não apela a nenhum código social. Apenas vê ameaçada a mulher que
ama; e vê ameaçada sua dignidade, na medida em que entende que, como homem, não deve
sofrer esse atropelo, mas deve atender à sua obrigação de proteger Casilda. Resta saber se
Lope de Vega teve consciência de que, mesmo invocando o código de honra, na verdade
estava construindo uma personagem bem acima das convenções sociais. Os fundamentos
explícitos e implícitos que legitimam para o público da época o direito à defesa da honra por
parte de Peribáñez acabam revelando o viés conservador da aparente atitude revolucionária
de Lope. Esses mecanismos passam pela consideração da figura de dom Fadrique, o
Comendador, e das alusões em volta de sua figura e de sua classe, feitas na obra. Por um lado,
cabe a possibilidade, como sustentou Noé Salomon, de que Lope pretendesse aludir
explicitamente a alguém com sua obra. De fato, a canção popular que embasa a obra (acima
citada) não identifica o Comendador. Lope, ao especificar que se trata do Comendador de
Ocaña, apontaria para um inimigo seu, Rodrigo Calderón, protegido do duque de Lerma,
favorito do rei Felipe III (o que explicaria a apresentação de um Enrique III, apelidado de
“justiciero”, quando, na verdade, foi conhecido como “el doliente”); o qual chegou ao cargo de
Secretário de Estado do rei e valeu-se disso para acumular benefícios pessoais, sendo atacado
por Lope de Vega, Tirso de Molina, Quevedo, Góngora e outros. Diversos detalhes na obra de
Lope parecem permitir essa identificação, especialmente o fato de que, entre 1611 e 1613
(época possível de redação da obra), o Comendador de Ocaña era, precisamente, Rodrigo
Calderón. O fato de ter sido armado cavaleiro e nomeado para o cargo fez com que seus
inimigos levantassem diversas acusações contra ele, como a forte suspeita de que seria de
origem conversa. Particularmente, a farsa da cerimônia de armar Peribáñez cavaleiro estaria
aludindo à dignidade outorgada a Calderón. E, no meio dessa cerimônia falaciosa, o
comentário de Belardo, que representaria Lope de Vega, alude a esse cerimonial, ao mesmo
tempo em que fala de sua “burra manchada”, expressão com o que estaria evocando o caráter
converso de Calderón, pois a designação “manchado” servia precisamente para referir-se ao
sangue dos descendentes de judeus. Mas não apenas o Comendador de Ocaña é atacado.
Toda sua classe de fidalgos com pretensões de nobreza é objeto de burla. Não apenas porque
o camponês Peribáñez proclama seu caráter de cristão velho, mas porque os fidalgos são
explicitamente identificados, como grupo, como descendentes de conversos. Isso acontece
explicitamente na cena 6 do ato III, quando os fidalgos que integram a companhia que desfila
são chamados pela camponesa Constanza de “hidalgos cansados”. O adjetivo (que algumas
edições corrigem impropriamente como “casados”) alude claramente ao sangue dos fidalgos,
já que “sangre cansada” era habitualmente uma maneira de designar a origem judia dos
conversos. Se isso fosse pouco, logo depois, o próprio Lope, na figura de Belardo, refere-se à
totalidade dos fidalgos que desfilam chamando-os de “judíos”. A ênfase dada na obra ao
caráter de cristão velho que fundamenta a personagem Peribáñez (III, 27) contrasta
claramente com a dúvida sobre o fato de que essa qualidade possa ser atribuída aos fidalgos e,
mais ainda, ao Comendador. Muito mais quando a explicitação “de Ocaña”, acrescentada à
copla original, levaria o público a pensar em Rodrigo Calderón, cujas pretensões chocavam-se
com a possível origem conversa. Isso, mesmo que a ação fosse colocada no reinado de Enrique
III (1390-1406). Com efeito, o “III” levava também a pensar em Felipe III – no trono, nesse
momento – de quem pareceria solicitar-se justiça, ao trocar o cognome de Enrique – “el
doliente” – por esse outro: “el justiciero”. Atualizam-se, assim, os fatos. Com isso, ataca-se
diretamente o desafeto Rodrigo Calderón. Mas também se explicitam as bases ideológicas
desse ataque. Trata-se de defender dos suspeitos cristãos novos – concentrados no grupo
social intermediário – um sistema apoiado na aliança do monarca com a massa de cristãos
velhos, representados pelos camponeses que, mesmo que analfabetos e ignorantes do ritual
(III, 2), desqualificam os fidalgos suspeitos (III,6). Em síntese, a atitude formalmente
revolucionária de Lope de Vega de levar os camponeses ao palco no papel de protagonistas
aponta para um pensamento conservador que exclui do sistema qualquer desvio da ortodoxia
católica. A aliança monarca-povo tem esse sentido, explicitamente. A mesma proposta deve
ser levada em conta na leitura das restantes obras com essa característica, particularmente no
caso de Fuenteovejuna, alguma vez lida como exposição de um marxismo “avant la léttre”.
Nela, como em Peribáñez y el Comendador de Ocaña, Lope consagra, na verdade, a defesa de
um sistema conservador pelas massas cuja cooptação seu teatro ajuda a preservar ao
estimulá-la.

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