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O TEATRO DE SHAKESPEARE NA INGLATERRA ELISABETANA

Prof. Dra. Flávia Regina Marquetti

Vista Interna do Teatro The Swan (O Cisne)


Londres 15961

Ao final da Idade Média toda a Europa observa uma transformação na arte cênica,
o fim dos grandes Ciclos, dos Mistérios ou Milagres. Sobreviveram aos Ciclos, na
Inglaterra, as Moralidades e as Farsas. As Moralidades eram exercícios didáticos, com a
presença de personagens alegóricos, que incentivavam a abstenção do vício e a prática da
virtude, foram apresentados da segunda metade do século XV ao início do reinado de
Elizabeth I. Ao contrário dos Mistérios, as Moralidades não eram apresentadas em carros,
mas em plataformas permanentes dispostas ao redor de um local. Enquanto espetáculo,
as Moralidades eram bem menos espetaculares que os Mistérios ou Milagres. A mais
famosa Moralidade da época é o Auto de Todo-o-mundo, do século XV.
Já a Farsa ou Interlúdio era um prolongamento do humor presente nos últimos
Ciclos ingleses. Plenos de humor, os Interlúdios tinham como única preocupação a
diversão, John Heywood, antecessor de Shakespeare, foi o grande autor inglês do período,
como as Moralidades, as Farsas também eram representadas sobre plataformas
permanentes. Shakespeare ao chegar a Londres, com certeza, assistiu às apresentações
das peças de John Heywood, que nesta época contava com seus oitenta anos.

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Este é o único registro gráfico conservado de um Teatro Elizabetano, com exceção de mapas, foi
encomendado pelo holandês Jan de Witt, que visitou Londres em 1596. (BERTHOLD, 2000, p.318)
LONDRES À ÉPOCA DE SHAKESPEARE

Em 1590 quando Shakespeare chega à Londres, a cidade contava com três teatros
públicos, The Theater (O Teatro), The Curtain (A Cortina) e The Rose (A Rosa),
localizados do outro lado do Tâmisa, em uma área destinada às diversões, entre arenas de
açulamento de cães contra ursos e touros. Quando havia espetáculo os barqueiros
apressavam-se em conduzir o público numeroso que acorria à margem direita do rio,
tremulando sobre os telhados dos teatros uma bandeira branca indicava a comédia, uma
negra a tragédia.
De 1595 a 1613, Londres ganha mais cinco teatros: The Swan (O Cisne); 1600
The Fortune (A Fortuna); The Globe (O Globo); 1605 Red Bull (Touro vermelho); 1613
The Hope (A Esperança). Sendo destes o mais famoso entre nós, The Globe, por ser o
teatro no qual Shakespeare se apresentava.
A Inglaterra sob o governo de Elizabeth I era um país orgulho de si, livre da França
e do papado, detentor do domínio marítimo, enfim, uma potência colonizadora e
mercantilista. Este poderio econômico e político também se fez refletir no teatro,
sobretudo na escolha dos temas. O indivíduo consciente de si mesmo, tema principal da
Renascença, alcançou seu apogeu no Teatro Elisabetano. Shakespeare e outros
dramaturgos do período valorizaram em suas peças a reflexão sobre os heróis da história
nacional, dando relevo ao drama histórico.

O PALCO ELIZABETANO

Ao contrário da Itália que fez largo uso de cenários em perspectiva, com seus
teatros fechados construídos nos palácios, o teatro inglês apresenta uma construção
diferente, a estrutura do prédio é circular ou cilíndrica, com três fileiras de
arquibancadas e palco ao ar livre 2, só depois de 1620 é que os teatros abertos
desapareceram, dando lugar aos prédios fechados. As encenações são grandiloquentes
e o “cenário falado” é um traço estilístico do palco elisabetano, a iluminação era
natural com as peças geralmente encenadas entre três e seis horas. Os teatros
contavam ainda com maquinários e músicos.

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Como se pode observar na representação do teatro The Swan na abertura do texto.
As peças da época não tinham necessidade de serem inéditas, muitas eram
baseadas em textos anteriores, o interesse do público residia na (re)elaboração criativa
do dramaturgo.
O custo do ingresso era de um penny, para a arena (Pit), ou pátio interno, onde os
groundlings elevavam suas vozes em aprovação ou desaprovação de uma peça, para
as arquibancadas ou galerias havia um acréscimo correspondente ao lugar almejado.
Todas as peças sofriam a “censura” do Mestre-de-cerimônias, ou Lorde
Chanceler, nomeado pela rainha. Passavam pela censura não só as peças levadas no
teatro da corte, mas todos os espetáculos que desejassem ser apresentados nos teatros
do reino, isto perdurou de 1581 até 1968, quando foi revogada a censura teatral.
Muito se sabe sobre a produção teatral deste período pelo trabalho meticuloso de um
desses censores, que catalogou todas as peças, indicando o nome do autor, dos atores
e fazendo um pequeno resumo das mesmas.

HERANÇA MEDIEVAL E INFLUÊNCIAS DO PERÍODO

No período em que Shakespeare surgiu como grande estrela do teatro inglês havia
uma forte influência dos autores latinos, como Sêneca, Ariosto e Petrarca, além de Plauto
e Terêncio, na comédia; encontra-se uma forte presença da mitologia greco-latina; e o
Teatro Medieval contribuía com a sua estrutura épica, desrespeitando as unidades
aristotélicas de tempo, espaço e ação. A leitura, geralmente equivocada dos clássicos
antigos, levou alguns autores, como Marlowe, a identificar o trágico com o sanguinolento
pura e simplesmente. Esta interpretação vem de autores que precederam e conviveram
com Shakespeare e que tiveram grande influência no período, embora muitos não fossem
ingleses, como Giovanni Battista Giraldi, que tentando superar a tragédia grega, dá início
ao que os críticos chamam de “teatro do horror” com sua peça Orbecche (1541), repleta
de incestos, parricídios, assassinatos. Giraldi é também o autor do Moro di Venezia, fonte
para Othelo de Shakespeare.
A Comédia Humanista, com seu verso livre e forte influência latina é outra
herança, bem como a Peça Pastoral que recupera a imagem do homem simples, feliz,
integrado à natureza mítica com seus faunos, ninfas e sátiros. Foi explorada por diversos
autores de diversas nacionalidades: Gil Vicente (Portugal); Lope de Rueda (Espanha) e
George Peele (Inglaterra) com O Julgamento de Paris. Peele retoma o episódio que deu
origem à guerra de Tróia e concede o prêmio, a maçã de ouro disputada pelas deusas
Hera, Atena e Afrodite, a Elizabeth I; o hábito de enaltecer um governante ou nobre
poderoso era bastante comum desde a Renascença, usando-se o teatro como forma de
obter favores. O teatro fazia parte, assim, de um jogo político-econômico que todos
jogavam nas cortes.
Os Cortejos mitológicos ou alegóricos da Renascença retomavam os Triomphi
romanos e deram origem ao ballet na França. A Itália difunde os cenários com o uso da
perspectiva e apresenta os maiores nomes nesta arte: como Rafael e Da Vinci.

VIDA E OBRA DE WILLIAM SHAKESPEARE


A vida de William Shakespeare possui inúmeros pontos obscuros, ao que se sabe
ele teria nascido por volta de 1564, em Strastforf-on-Avon, filho de John Shakespeare,
pertencente à classe média. Os primeiros anos da vida de Shakespeare se passaram com
conforto e prosperidade, seu pai conquistara posição e atingiu os altos posto municipais
de regedor e bailio de Stratfort. Shakespeare recebeu educação elementar e frequentou o
curso básico de humanidades, onde aprendeu um pouco de latim e grego, mas não
frequentou a universidade, pois aos seus treze ou catorze anos o pai perde sua fortuna e a
família fica arruinada. William deixa a escola e passa a trabalhar com o pai no matadouro
da família, aos dezoito anos se casa com uma mulher mais velha, teve três filhos com ela:
Susana, Hamnet e Judith; trabalhou como mestre-escola no campo; e em 1592 já se
encontra em Londres trabalhando como ator profissional, produtor e dramaturgo
Ao que se sabe ele possuiu três companhias teatrais, ou fez parte delas: Lord
Hunsdon’s Men; Lord Chamberlain’s Men e The King’s Men. Foi ator e, sobretudo, autor
de sucesso, segundo A.C. Bradley, em seu livro Shakespearean Tragedy, sua carreira
pode ser dividida em quatro momentos: no primeiro ele compôs comédias (sonhos de
uma noite de verão), peças históricas (Ricardo III) e “tragédia pura” (Romeu e Julieta);
no segundo peças históricas e comédias “românticas” (com final feliz), no terceiro as
maiores tragédias (Hamlet, Otelo, Rei Lear, Macbeth, etc.) e por fim nos últimos anos de
vida compôs apenas peças românticas (Cimbelino; O conto de inverso).
Nas tragédias ou dramas históricos shakespearianos encontra-se a reflexão sobre
os heróis da história nacional, o interesse pelos fatos históricos se deve em parte à situação
político-econômica privilegiada ocupada pela Inglaterra, em parte pelo tema herdado da
renascença do “indivíduo consciente de si mesmo”, pois para Shakespeare e os de sua
era, a chave da vida é a afirmação do individualismo e ele criou personagens altamente
individualizadas com mais abundância que qualquer outro dramaturgo, e os conflitos em
suas peças são produzidos invariavelmente pelo exercício da vontade humana. “O homem
luta contra o homem e não contra o destino, deus, a hereditariedade ou os distúrbios
glandulares. O drama shakespeariano é o drama da vontade individual” (Gassnes, 1974,
p. 250).
A relação entre poder e destino é uma constante em suas peças, a ascensão
repentina e a queda abrupta, a embriaguez do poder, o crime, a vingança e o assassinato
dão vazão a imagens plenas de linguagem, com rápidas mudanças de cenas fragmentárias,
sem respeitar as unidades aristotélicas, que culminam em uma brilhante síntese dos
acontecimentos. O sofrimento surge como resultado dos atos do herói e dos outros, com
ou sem verdadeira culpabilidade. A ação de suas tragédias não se encontra apenas no
conflito exterior entre pessoas ou grupos, mas, sobretudo, no conflito interno das
personagens, o que lhes confere uma densidade maior.
Enquanto a tragédia clássica francesa aprisionou o drama nos grandes monólogos,
com o uso do alexandrino, Shakespeare o explodiu em diálogos curtos e poderosamente
delineados, com o uso do verso livre e apelando para a “força da imaginação” do público
em seus prólogos, tornando o “cenário falado” mais rico que o apresentado em cena.
A representação grandiloquente da época encontra em Shakespeare um crítico
mordaz, em Hamlet ele se diverte ao arrolar um irônico catálogo dos gêneros exemplares
do drama, ao mesmo tempo, instrui, pela boca do jovem príncipe da Dinamarca, os atores
convidados à representação de como devem pronunciar o texto, Shakespeare faz dessa
forma uma crítica a seus adversários de palco e à encenação de excessos patéticos.
Em suas comédias pode-se observar a forte influência clássica de Plauto e
Terêncio, com reaproveitamento de diversos textos ou argumentos; também é notável a
presença da tradição pastoral do medievo, com sua magia poética, repleta de imaginação
e fantasia, como em Sonhos de uma noite de verão. Suas comédias de erros estão repletas
de humor e jovialidade, enquanto que nas comédias românticas ele alterna o deboche com
a presença de figuras femininas encantadoras, muitas delas marcantes em toda a história
da dramaturgia. Em resumo, suas comédias são um misto de bufonarias e lirismo,
somados à crítica social e de costumes.
A última peça escrita por Shakespeare foi A Tempestade, William Shakespeare
morre em 23 de abril de 1616, deixando na voz de Próspero a solicitação, ao público, de
sua prece e sua graça.
Agora os meus sortilégios estão todos desfeitos
...................
Como quereis ser perdoados
de todos vossos pecados,
permite que sem violência
me solte vossa indulgência.
(Próspero - A Tempestade, William Shakespeare)

BIBLIOGRAFIA

BRADLEY, A.C. Sahkespearean tragedy. Hamlet, Othello, King Lear, MacBeth. New
York: Meridian Books, 1955.
BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2000.
GASSNER, John. William Shakespeare. IN: ___. Mestres do teatro I. São Paulo:
Perspectiva, 1974. p. 243-73.
MORETO, Fulvia M. L. Alguns aspectos do teatro ocidental. UNESP - Campus de
Araraquara, 1982.

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