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GUIA DE LEITURA

O REI LEAR

FEMINILIDADE BÍBLICA A
PARTIR DA LITERATURA
SUMÁRIO
Quem foi William Shakespeare? 3
Por que O Rei Lear? 4
A Subtrama presente na trama 6
Influências e Deslizes 7
Diferentes versões 8
O Gênero Dramático 9
A Tragédia 10
Curiosidades 11
Cronograma de leitura 12
GUIA DE LEITURA -O REI LEAR

Quem foi William Shakespeare?

Embora esteja entre os mais renomados e ilustres talento e ardoroso trabalho. Nosso querido bardo
poetas da história, William Shakespeare figura escreveu 39 peças teatrais, dentre elas pelo menos
também entre os mais populares. Enquanto 10 obras-primas; todas sobreviveram, como a obra
autores como Flaubert, Tolstói, Eurípides e Virginia de poucos, à passagem do tempo e às mudanças
Woolf (para citar alguns dentre os já lidos por nós culturais ocorridas ao longo de 4 séculos.
até aqui) sejam hoje desconhecidos da população Shakespeare continua atual 400 anos depois de
em geral – mesmo entre aqueles com formação sua morte (1616), tendo lançado as bases para
universitária – Shakespeare é unanimidade. toda a literatura inglesa produzida depois dele,
Dificilmente encontraremos entre a população sendo considerado, inclusive, fundador da tradição
considerada “instruída”, quem nunca tenha ouvido literária que viria a orientar boa parte de toda a
falar deste dramaturgo inglês, quem não conheça literatura ocidental até os dias de hoje.
o enredo de Romeu e Julieta (ainda que jamais o
tenha lido) ou quem não tenha escutado, ao menos O Livro da Literatura, lançado no Brasil pela
uma vez na vida, o emblemático questionamento Globo Livros em 2015, diz que “a genialidade de
de Hamlet: “Ser ou não ser: eis a questão”; ainda Shakespeare está em seu talento para segurar um
que não saiba de onde ele veio. espelho em frente à natureza e refletir seu público
nele; as pessoas reconhecem a si e aos outros
Conhecido também como “o bardo inglês” – em suas obras. (...) Parte do encanto está em sua
uma referência aos antigos poetas, cantores e habilidade de capturar em palavras como é o ser
contadores de histórias da Europa, que viajavam humano. Seu domínio de linguagem lhe permitiu
por aquelas terras levando narrativas colhidas que transmitisse emoções complexas com grande
dos mais diversos lugares – William Shakespeare impacto e economia”.
nasceu na pequena cidade de Stratford-upon-
Avon em abril de 1564. Terceiro de 8 filhos, aos 18 Além de peças, Shakespeare escreveu também
anos casou-se com Anne Hathaway, com quem poemas, aos quais se dedicou com maior afinco
teve 3 herdeiros: Susanna e os gêmeos Hamnet durante os anos de 1593 e 1594, quando (ora, vejam!)
e Judith, Hamnet faleceu aos 11 anos, de causa por conta de uma epidemia de peste bubônica,
desconhecida, quando Shakespeare já vivia em os teatros de Londres fecharam suas portas por
Londres e desfrutava de relativo sucesso. cerca de 18 meses. Como não poderia deixar de ser,
Shakespeare recebeu fortes influências da Bíblia
Shakespeare é o grande expoente daquele que (especialmente da Bíblia de Genebra, publicada em
ficou conhecido como período elisabetano. inglês em 1560) e das mitologia e cultura clássica
Coroada rainha da Inglaterra em 1558, Elizabeth I gregas, sendo que As Metamorfoses de Ovídio
imediatamente determinou que as artes tivessem figuram entre suas mais patentes referências. No
lugar central em seu reino. Erudita e interessada teatro, Shakespeare transitou entre a comédia, a
em aprender sobre diversas culturas, a rainha, que tragédia e peças históricas e diz-se que não existe
assumiu o trono quando tinha apenas 25 anos, cidade no mundo com um teatro que não tenha
percebeu que o teatro poderia ser um grande aliado: representado uma peça do bardo inglês.
ofereceria entretenimento de primeira grandeza
tanto para nobres quanto para o povo em geral, Apesar de toda a sua popularidade e perenidade
além de ser uma excelente maneira de intervir na existe ainda uma aura de dificuldade e temor diante
política. Ela apoiou atores e dramaturgos (inclusive de uma obra de Shakespeare. O leitor moderno
o próprio Shakespeare, que por muitos anos exerceu receia a não compreensão e desiste antes de
ambas as funções) e ajudou a construir arenas começar; todos conhecem a história de Romeu e
e teatros, dentre os quais está também O Globo, Julieta, sabem quem foi Hamlet e lembram-se da
do qual Shakespeare foi sócio. Mesmo após a sua novela O Cravo e a Rosa (baseada em A Megera
morte em 1603, o legado cultural de Elisabeth I se Domada), mas não se atrevem a folhear nenhuma
manteve presente na figura de seu sucessor, o rei dessas peças. O resultado é que Shakespeare,
Jaime I, que continuou apoiando os palcos e a arte como disse Camila Abadie, “tornou-se um famoso
em geral. desconhecido, muito citado, mas muitíssimo
temido”. Aqui no Entre Sapatos e Livros já estamos
A primeira obra prima de nosso autor foi a peça mudando isso, não é mesmo? Em 2020 conhecemos
Ricardo III, escrita em 1592 e que obteve sucesso Macbeth, em 2021 Hamlet, e agora chegou a vez de
imediato; ao contrário do que acontece com muitos O Rei Lear. Vamos juntas?
gênios da arte em geral, Shakespeare desfrutou
de reconhecimento em vida e ainda muito jovem,
tendo tido o privilégio de usufruir financeiramente
daquilo que obteve como paga por seu genial

3 ENTRE SAPATOS E LIVROS


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Por que O Rei Lear?

Em meio às tragédias escritas por Shakespeare, há quatro principais, que figuram entre as obras
primas do autor, são elas: Otelo, Macbeth, Hamlet e O Rei Lear. Coincidentemente já lemos duas
aqui no Entre Sapatos e Livros e com a escolha de O Rei Lear para o Ano da Filha, faltar-nos-á
apenas Otelo para completar a “quadrilogia”.

Macbeth foi lida no Ano da Esposa, em que conhecemos a rainha inescrupulosa que levou seu
marido a sujar as mãos do sangue do Rei em busca de poder, guiando-se por uma profecia
duvidosa recebida por Macbeth no início da peça. Hamlet foi lida no Ano da Mãe e conhecemos
a passiva e apática Gertrudes, mãe do protagonista e, até certo ponto, vítima do vilão Cláudio,
que como um fantoche é conduzida por ele ao longo de toda a trama, sendo incapaz de se
levantar para auxiliar o filho único. No Ano da Filha, O Rei Lear nos apresentará três princesas:
Goneril, Regana e Cordélia, as duas primeiras personificando o mal e a impiedade, a terceira
sendo sinônimo de lealdade e doçura. É impensável que um Clube de Leitura dos clássicos que
se propõe a ter como tema a filha furte-se de se debruçar sobre O Rei Lear, peça na qual o
protagonista é o rei que a nomina, mas que tem nas três princesas características humanas que
qualquer filha pode carregar.

Rei Lear é uma peça sobre cegueira – cegueira para as motivações dos outros, cegueira para a
própria natureza verdadeira, cegueira para o vazio do poder e dos privilégios e cegueira para a
importância do amor altruísta. O único desejo de Lear é desfrutar de uma velhice confortável e
despreocupada, mas ele não consegue ver o papel que seu poder absoluto desempenhou na
formação de seu relacionamento com as filhas, de quem ele espera receber cuidado e atenção
totais. Ao perder seu poder, Lear ganha a visão de sua própria natureza e percebe suas deficiên-
cias, admitindo que “meus olhos não são os melhores”. Tragicamente, esse autoconhecimento
chega tarde demais, em um ponto em que Lear perdeu o poder que poderia tê-lo capacitado
a mudar seu destino. Ele finalmente vê o mundo como realmente é, mas é impotente para fazer
qualquer coisa a respeito. Ele morre depois de dizer as palavras finais, “olhe lá, olhe lá”, um co-
mando literal para que os outros olhem para Cordélia, mas também um apelo simbólico para
que os sobreviventes vejam a si mesmos e ao mundo com mais precisão.

A peça se abre (Cena I, Ato I) com um vislumbre da subtrama que espelha a ação principal,
quando Gloucester explica que tem dois filhos, um legítimo e um ilegítimo, mas tenta amá-los
igualmente. Os personagens discutem os planos de Lear de dividir seu reino, fica claro que ele
já decidiu dividí-lo igualmente (talvez até tenha reservado a maior parte a Cordélia) entre suas
filhas, e seu teste de amor será apenas uma performance, que na verdade não decidirá nada. O
Rei espera que as três filhas tentem superar uma à outra com declarações de amor, pelas quais
ele as recompensará com porções de terra, mas Cordélia se recusa a bajulá-lo e Lear sente-se
humilhado publicamente pela pretensa desobediência da caçula. Enfurecido com a teimosia de
Cordélia, Lear a repudia e divide o reino entre as duas filhas restantes. A incapacidade de Lear de
entender que, apesar da relutância de Cordélia em bajular publicamente seu pai, ela realmente
o ama mais é o erro trágico que incita a ação do resto da peça.

O público entende que as outras duas filhas de Lear, as enganadoras Goneril e Regana, são os
antagonistas do desejo de Lear de manter seu poder, e a ação crescente da peça vê essas duas
personagens frustrando ativamente seu pai e acelerando sua queda. Depois de dividir o reino
entre Goneril e Regana, Lear continua a exigir que suas filhas cuidem dele, esperando manter
os privilégios da coroa sem as responsabilidades. Lear nunca reconheceu o papel que o poder
desempenha em sua família, então ele espera que as filhas o tratem exatamente como faziam
quando ele era seu rei. Em vez disso, Regana e Goneril tratam Lear de acordo com seu novo sta-
tus de velho impotente. Lear é privado não apenas do cuidado amoroso que esperava de suas
filhas, mas também de seus cavaleiros assistentes e, finalmente, até mesmo do abrigo de seus
telhados.

4 ENTRE SAPATOS E LIVROS


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O desfecho da peça envolve a morte de muitos dos personagens, a maioria deles de forma vio-
lenta (o que já se espera de uma tragédia). O final fatídico ecoa o fatalismo de toda a peça: um
erro, uma vez cometido, não pode ser desfeito e Lear sofreu todas as consequências de ter dado
seu reino às filhas erradas. Muito mais que nos dar exemplos simplistas de filhas más e ingratas,
Regana e Goneril – esta ainda mais do que aquela – produzem alegorias, símbolos de certas
partes integrantes da natureza humana que se traduzem pura e simplesmente em egoismo,
crueldade e ambição. Já Cordélia, por seu lado, além de personificar a integridade, a honra, a
bondade, a verdade e a beleza, dá-nos exemplo factível de como uma boa filha pode e deve ser,
mesmo vivendo no século XXI.

Não tenho a intenção de fazer com vocês uma análise exaustiva de O Rei Lear, além de exigir
tempo e dedicação praticamente exclusiva, um intento como este hoje seria praticamente im-
possível. Para fazê-lo, teríamos que ler quase tudo o que foi escrito sobre o Rei da Britânia e suas
três filhas ao longo dos últimos séculos e em todas as línguas para as quais esta história foi
traduzida. Há muitos assuntos periféricos girando em torno do enredo de O Rei Lear, certamen-
te não alcançaremos todos em nossa análise, mas o que é principal e atemporal nesta intriga
ficará evidente e terá muito a nos ensinar.

Goneril e Regan, por Edwin Austin


Abbey (1852-1911)

5 ENTRE SAPATOS E LIVROS


GUIA DE LEITURA -O DIÁRIO DE ANNE FRANK

A SUBTRAMA PRESENTE
NA TRAMA

Há na peça um segundo enredo que se descola do principal, trata-se do destino de Gloucester e de


seus dois filhos, Edgar e Edmundo; aquele, legítimo e nobre em todas as suas ações, este, bastardo
e ingrato, pois apesar de acolhido e amado conspira contra o pai e o irmão, demonstrando a
coerência de afinidades que desenvolve com Goneril e Regana à medida que a história avança.

Gloucester e seus filhos são o “drama-espelho” de Lear e suas filhas. Este “subenredo” realça os
mesmos erros afetivos e morais da autoridade paterna: nem Lear nem Gloucester conseguem
controlar seus afetos naturais e deixam-se guiar pelas preferências do coração e do corpo, ao invés
de recorrerem à razão e ao dever moral. Tais falhas abrem caminho para a cegueira na percepção
da realidade, turvando a visão e atrapalhando as escolhas e decisões, levando ao rápido processo
de deterioração da ordem familiar, culminando com o fracasso da ordem patriarcal e monárquica.

A metáfora da cegueira se materializa em Gloucester, que a certa altura da peça torna-se


fisicamente cego e só depois disso e de algumas outras quedas metafóricas recupera a visão
espiritual, que o faz enxergar a realidade como ela é. Quase como Paulo, que só enxerga a Verdade
depois de passar 3 dias em completa escuridão, ou como o cego de Jericó, que apesar de não ver,
sabia distinguir quem era o verdadeiro Mestre.

Felizmente, tanto Lear quanto Gloucester conseguem reconciliar-se com os filhos injustiçados,
Cordélia e Edgar, antes do fim da peça.

6 ENTRE SAPATOS E LIVROS


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Influências e
Deslizes

Shakespeare não foi o primeiro a tratar da temática


do lendário rei Leir, que data do século XII, encontrada
na coletânea História dos reis da Bretanha, atribuída
ao monge Geoffrey de Monmouth. A narrativa de
Leir foi retomada inúmeras vezes, inclusive por
contemporâneos de Shakespeare como Raphael
Holinshed, em Crônica da Inglaterra, Escócia e
Irlanda (1577) e Edmund Spenser em A Rainha das
Fadas (1590). Outros textos nos quais Shakespeare
certamente se inspirou são: Espelhos para os
magistrados e a peça A verdadeira crônica histórica
do rei Leir e suas três filhas Gonorill, Ragan e Cordella,
ambos de autoria desconhecida. Embora o tal rei
Leir despertasse tanta curiosidade e interesse, todas
essas narrativas se originaram de contos e lendas
antigas de sabor folclórico, portanto, Lear não pode
ser considerado uma figura histórica.

Poder-se-ia argumentar que Shakespeare não


foi original ao reescrever um texto tão conhecido
e algumas vezes também encenado, contudo,
a genialidade do bardo inglês supera quaisquer
críticas neste sentido. Apesar de não ter criado
propriamente o enredo sobre o qual é construída
a peça, Shakespeare foi o único capaz de traduzi-
la a uma linguagem que é, além de extremamente
poética, universal. Após 4 séculos, cá estamos
lendo O Rei Lear e aprendendo com personagens
que Shakespeare (e apenas ele) tornou imortais,
dando a eles consistência psicológica e falas que
transitam entre o dramático e o cômico, o profundo
e o insensato, o espirituoso e o ininteligível.

Shakespeare é conhecido por deslizes indisfarçáveis


presentes em quase todas as suas peças e com
O Rei Lear não é diferente. Há no texto inúmeras
improbabilidades, imprecisões e incoerências e
em alguns momentos tem-se a impressão de que
questões menores são simplesmente abandonadas
para privilegiar-se o objetivo de momento, sem
que haja preocupação com nada mais além desse
instante. Isso certamente é um defeito que não
pode ser ignorado em dramaturgo tão célebre, mas
é justamente pelo prestígio do autor que podemos
“passar por cima” de tais erros de Shakespeare:
nenhum deles mancha terminantemente a
genialidade da obra. Além disso, podemos sempre
nos utilizar daquilo que Coleridge chamou de
suspensão da descrença (suspension of disbelief),
isto é, um leitor pode, voluntariamente, aceitar como
verdadeiras as premissas de um trabalho de ficção,
mesmo que elas sejam fantásticas, impossíveis ou
contraditórias.

7 ENTRE SAPATOS E LIVROS


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Diferentes versões

O Rei Lear possui três versões publicadas no século XVII que são relevantes para as edições modernas:
o primeiro Quarto, de 1608, o segundo Quarto, de 1619 e o primeiro Fólio (primeira edição das obras
completas de Shakespeare), de 1623. O segundo Quarto é essencialmente uma reedição do primeiro,
com algumas poucas modificações. Entre a versão do primeiro Quarto e o primeiro Fólio há diferenças
relevantes quanto ao número de linhas; quanto a trechos ausentes em uma versão, presentes na
outra e vice-versa; quanto a ortografia; quanto a pontuação; e quanto a passagens modificadas.

As versões atuais, inclusive aquelas traduzidas para o português, são editadas em um único texto
e trazem trechos do primeiro Quarto fundidos a outros do primeiro Fólio, com prejuízo mínimo para
a compreensão do leitor e total fidelidade ao que foi escrito por Shakespeare. Tal observação é
importante, pois após o período da Restauração Inglesa a peça foi frequentemente revisada para
que se agradasse o público daquele tempo, inconformado com o final que julgavam sombrio e
deprimente. Porém, desde o século XIX, a peça original de Shakespeare tem sido considerada uma
de suas conquistas artísticas supremas e tanto o papel-título quanto os papéis coadjuvantes
foram cobiçados por atores talentosos de todo o mundo. O texto tem sido amplamente adaptado
para o teatro, cinema, música e outros meios, embora haja quem acredite que sua densidade só é
claramente captada por quem o lê e que Shakespeare poderia muito bem tê-lo escrito em forma de
prosa, poesia, ou ter pelo menos sugerido a sua “não-montagem” teatral.

Edição Quarto de Rei Lear (1608)

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O Gênero Dramático

Não é a primeira vez que lemos uma peça de incidentes e de coisas que caracteriza o
no Entre Sapatos e Livros. Depois de Alceste, romance, não existe no drama, onde tudo se
uma tragédia grega 5 séculos anterior a Cristo, subordina às exigências da dinâmica do conflito:
já visitamos Macbeth, também de Shakespeare a atmosfera do drama é rarefeita, as figuras
e voltamos a Eurípides com Medeia. No final do supérfluas são eliminadas, os episódios laterais
ano passado lemos Hamlet e agora voltamos abolidos, defrontando-se as personagens
a Shakesperare com O Rei Lear, outro clássico necessárias e desenvolvendo-se entre elas uma
inglês do período elisabetano, escrito na transição ação que conduz, sem desvios, ao conflito.
entre o Renascimento e o Iluminismo, mas ainda
preenchido pela força helênica da mitologia grega Durante a leitura de uma peça teatral é importante
e pela indispensável cosmovisão cristã ocidental. ter em mente que ela foi escrita não para um
O texto abaixo é praticamente uma repetição do leitor – como no caso do romance, e sim para
que foi dito sobre o Gênero Dramático nos Guias um espectador, que se congrega com outros
de Leitura de Alceste, Macbeth, Medeia e Hamlet, homens e mulheres para assistirem juntos à
com pequenas modificações. Sugiro a releitura representação da obra dramática. Sendo assim,
para evocar o que foi esquecido e encontrar o exercício imaginativo do leitor de teatro é ainda
detalhes que, porventura, tenham passado mais exigente que aquele do leitor de textos
batido. narrativos, ter esta clareza é fundamental para
uma precisa compreensão da obra. No passado,
Drama, em grego, significa “ação”. Ao gênero dificilmente espectadores tinham acesso ao
dramático pertencem os textos feitos para serem texto encenado a que assistiam, hoje temos
representados. As principais manifestações essa possibilidade e não devemos desprezá-
dramáticas são as seguintes: tragédia, comédia, la; diferentemente do frequentador de teatro de
tragicomédia e farsa. alguns séculos, que não podia voltar às cenas
de difícil compreensão, podemos fazê-lo com
Há muitas semelhanças entre o romance e o facilidade, apenas voltando algumas páginas.
drama, mas há também importantes diferenças Não deixemos de exercer este aprazível privilégio.
e ambas merecem ser aqui elencadas. Tanto
um quanto o outro apresentam personagens
situadas num determinado contexto, em certo
lugar e em certa época, mantendo entre si
mútuas relações de harmonia, de conflito, etc.
Estas personagens revelam-se através de uma
série de acontecimentos, podendo contar-se a
“história” de um romance ou de um drama.

Contudo, a narrativa representa a interação


do homem e do meio histórico e social que
o integra e, por isso, a representação do
ambiente, dos costumes da época, dos simples
aspectos da existência e dos pequenos fatores
que caracterizam uma situação, assumem
valor relevante. O drama, por sua vez, procura
representar também a totalidade da vida, mas
através de ações humanas que se opõem, de
forma que a base daquela totalidade reside na
colisão dramática. Assim, a profusão de figuras,

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A Tragédia

Subgênero do gênero dramático, a tragédia tem origem muito antiga e não se referia, em seu
início, à encenação de um drama com final terrível e irreversível como conhecemos hoje, mas
de alegres festividades em honra ao deus grego Baco. Com o passar do tempo ela foi tomando
a forma mais próxima desta citada acima e teve seu apogeu em Shakespeare, o autor que
leremos este mês. Hoje a tragédia praticamente extinguiu-se e podemos desfrutá-la apenas por
meio do que foi produzido ao longo da história.

É clássica a definição de Aristóteles em A Poética para a tragédia:

“É a imitação de ações de caráter elevado, completa em si mesma, de certa extensão, em


linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas
partes do drama, imitação que se efetua, não por narrativa, mas mediante atores, e que,
suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação desses sentimentos”.

Esta “purificação de sentimentos” é aquilo que o próprio Aristóteles chamou de catarse e ela
pode acontecer ainda que não haja um desfecho terrível, mas mesmo em finais neutros, dúbios
ou felizes. Esta é uma afirmação polêmica no meio literário, já que alguns sustentam que
qualquer história com um final triste é uma tragédia, enquanto outros exigem que ela preencha
um conjunto de requisitos (em geral baseados em Aristóteles) para ser considerada tragédia.

A tragédia clássica é formada por personagens de elevada condição e caráter (heróis, reis,
nobres e deuses) e que passam por situações complexas e dolorosas, é contada em linguagem
elevada e deve necessariamente levar o espectador à já citada “purificação de sentimentos” ou
catarse, seja por meio da identificação com o que foi encenado e seu desfecho, seja por meio do
alívio de saber-se distante de circunstâncias semelhantes.

O Rei Lear traz em si todos estes elementos e apesar da ausência de eventos transcendentais (não
há interferência de deuses ou seres metafísicos no desenrolar da trama), a atmosfera pesada de
ingratidão, traições, castigos e a presença quase onisciente de uma forte tempestade, além das
mortes violentas e da loucura pela qual Lear é acometido, demonstram tratar-se verdadeiramente
de uma tragédia. É impossível não perceber no texto a desgraça humana, todos os conflitos que
a imaturidade e o orgulho trazem quando colocados sob a luz de uma cosmovisão cristã, todas
as dores que podem advir da ânsia desenfreada pelo poder, desencadeada pela ingratidão.
Não é à toa que O Rei Lear é um clássico.

Em Alceste e Medeia, alertei-lhes à presença do Coro como personagem importante da peça.


Séculos depois, ele não mais existe nas tragédias, que têm mais personagens, está dividida em
atos e cenas e tem uma trama muito mais complexa, porém, em O Rei Lear há um personagem
que faz as vezes de coro. O Bobo da Corte – que acompanha Lear até certa altura do enredo
e é a ele leal mesmo diante das piores circunstâncias – personifica a voz da consciência. Ele
verbaliza as verdades difíceis de serem ouvidas por quem, deliberadamente, ignora a realidade
e traz um certo alívio à plateia, dando voz a ela, que encontra-se incapaz de se manifestar.

10 ENTRE SAPATOS E LIVROS


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CURIOSIDADES

• Tendo já lido duas outras obras de Shakespeare, podemos • Tanto Goneril quanto Regana
traçar paralelismos interessantes entre as peças, como é o lembram uma outra personagem
caso da comparação inevitável entre Kent e Horácio (de de Shakespeare sobre a qual nos
Hamlet). Ambos são homens leais, fieis à Coroa e capazes de debruçamos no primeiro ano de
entregar a própria vida, sem pestanejar, em favor do Reino e Clube. Como Lady Macbeth, elas
de seu representante legítimo, ainda que sejam injustiçados. são ambas más e inescrupulosas,
Ambos recebem missões de continuidade ao fim da trama. capazes de matar o rei (ainda que
este seja o seu pai) pelo prazer de
governar. Lady Macbeth, Goneril e
Regana são a Hécate (deusa grega
• Cordélia aparece em apenas quatro das vinte e seis cenas de das trevas) de Shakespeare e ele
O Rei Lear, ela fala pouco mais que cem linhas e mesmo assim deixa isso claro nas descrições que
é uma das personagens mais marcantes de Shakespeare. faz das três.
Há nela encanto e profundidade, mas há, principalmente,
mistério, em contraste com a absoluta certeza, por parte do • O Bobo da Corte, ou simplesmente
leitor/expectador de sua bondade e integridade. A natureza de Bobo, é personagem importante da
Cordélia é elevada e a escolha de seu nome não foi aleatória. peça. Como já dito, ele personifica
Cordélia sugere sua raiz latina: cor, cordis, coração; o cerne o coro da tragédia grega, a voz da
não apenas do sentimento, mas do que há de mais essencial consciência, a catarse da plateia
no ser humano. que não pode se manifestar. Apesar
disso, ele desaparece, sem maiores
explicações, no meio da peça. Uma
falha terrível de Shakespeare, não
• Ainda sobre Cordélia, podemos nos lembrar do nome pelo
se sabe se por esquecimento ou
qual uma outra personagem que conhecemos este ano
negligência, mas ainda assim uma
gostava de ser chamada no início de sua história. Anne falha. Poucos leitores de O Rei Lear
Shirley Cuthbert, a Anne de Green Gables, pedia a Marilla que conformam-se com o “não-fim” do
a chamasse de Cordélia, um nome aleatório para quem não Bobo.
conhece Shakespeare, mas extremamente significativo para
a autora L.M. Montgomery e seus leitores mais atentos.

É isso, queridas!
Desejo boas-vindas às novatas e reitero meus agradecimentos à
veteranas.

Aproveitem a leitura!
Deus nos abençoe.
Com carinho.

Priscilla Aydar
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CRONOGRAMA DE LEITURA

12/08 – Aula sobre o Ato I

19/08 – Aula sobre o Ato II

26/08 – Aula sobre o Ato III

02/09 – Aula sobre o Ato IV

09/09 – Aula sobre o Ato V

10/09 – Bate-Papo

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