Você está na página 1de 288

2

Francisco Suárez

Defesa da

Fé Católica
Edição
Ediçã o compilad
compiladaa

Tradução:
Luiz Astorga &
Tiago Gadotti

4
Defesa da Fé Católica
Católi ca (edição compilada),
compilada), Francisco Suárez
© Editora Concreta, 2015
Título original:
Defensio F idei Catholicae et Apostolicae adversu
adv ersuss Anglicanae Sectae error
errores
es
Os direitos desta edição pertencem à
EDITORAC ONCRETA
Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus – CEP: 90050-330
Porto Alegre – RS – Telefone: (51) 9916-1877 – e-mail: contato@editoraconcreta.com.br
EDITOR:
Renan Martins dos Santos
COORDENADOR
OORDENADOR EDIT ORIAL:
Marcus Boeira
TRADUÇÃO:
Luiz Astorga e Tiago Gadotti
REVISÃO:
Emílio Costaguá
CAPA& D IAGRAMAÇÃO:
Hugo de Santa Cruz
PINTURA DE CAPA:
O encontro de Papa Leão e Átila (séc. XVIII),
de Francesco Solimena (1657-1747)
DESENVOLVIMENTO DE EBOOK
Loope – design e publicações digitais
www.loope.com.br
FICHAC ATALOGRÁFICA

Suárez,
Suárez, Francisco, 1548-1617
1548-1617
S9393d Defesa da Fé Católica (edição compilada) [livro eletrônico] / tradução de Luiz Astorga, edição de Renan
Santos. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2015.
ISBN 978-85-68962-09-1
1. Filosofia política. 2. Teologia. 3. Filosofia moderna. 4. Catolicismo 5. Contra-Reforma. 6. Pensadores jesuítas.
I. Título.
Título.

CDD-261.7
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer
reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica
ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.

www.editoraconcreta.com.br

5
COLEÇÃO SALAMANCA

C
omposta de intelectuais que povoaram o cenário das universidades da Península
Ibérica, a Escola de Salamanca foi predominantemente um movimento teológico
caracterizado pela ampla produção em vários campos do espírito humano como
a filosofia, a economia, o direito e a moral. Os salmanticensis
salmanticensi s, como são chamados os
membros da Escola de Salamanca, representam a continuação da escolástica nos tempos
modernos.
Podemos levantar quatro aporias que inquietaram os escolásticos ibéricos: os
descobrimentos do Novo Mundo, a Reforma Protestante, a formação do incipiente
Estado moderno e a propagação do direito internacional. Essas áreas abriram novos
horizontes para a pesquisa racional e exigiram um tratamento sofisticado, que partisse
dos cânones teológicos e mergulhasse na raiz mesma das transformações pelas quais o
mundo da época – e a Europa em particular – passava.
O resultado foi um gigantesco arcabouço teórico, notabilizado pela profundidade
filosófica e forte sintonia com a produção escolástica da geração anterior. Francisco de
Vitória, Domingo de Soto, Bartolomé Medina, Martim de Azpilcueta Navarro, Domingo
Bañez, Melchior Cano, Luís de Molina, Francisco Suárez, para citar apenas alguns dos
membros da escolástica ibérica, emergiram no cenário cultural europeu como autênticos
porta-vozes do magistéri
magistérioo eclesi
eclesiásti
ástico
co em meio a um continente
continente marcado por mudanças
em todos os fronts
fronts. Não resumiram suas respectivas atividades intelectuais apenas ao
reduto salamantino, mas atuaram como catedráticos e professores em outras
universidades peninsulares, chegando até mesmo aos confins de Portugal, como é o caso
das Universidade de Évora e Coimbra.
A produção assombrosa do período permite afirmar que os salmanticensis
salmanticensi s ocuparam
o posto de soldados intelectuais da Contra-Reforma, não só pela erudição que
demonstraram, senão pela exímia capacidade de esmiuçar os dilemas teológicos que eram
suscitados pelas questões práticas então correntes. Exemplo claro disso é o tratamento
conferido por muitos dos pensadores do período à justiça econômica dos preços e à
complexidade teológica do livre-mercado, temática importantíssima para a era moderna.
Ou ainda a questão do tiranicídio e da desobediência civil, em atenção ao contingente
políti
político
co das monarquias
monarquias absoluti
absolutistas.
stas. Enfim,
Enfim, são muitos
muitos os impasses que surgem
surgem nesse
período.
Os séculos XVI e XVII, assim, radicalizaram a metamorfose pela qual passou a
sociedade ocidental, encurtando as distâncias entre o antigo e o hodierno. Disso,

7
irrompem novos institutos nas diversas áreas do conhecimento e da existência humana,
dando vazão a novas formas de vida e novos desafios no campo social. O Estado e o
direito internacional, respectivamente, legaram ao homem moderno modalidades de vida
talhadas dentro de um horizonte burocratizado, condicionado pelas correntes
institucionais do período e com maior amplitude em seus paradigmas, já que agora o
ovo Mundo passava a ser um destino possível para o europeu.
A proliferação de novas formas de existência humana dentro de um cenário mais
vasto reclamou a urgência de novas instituições, capazes de dar conta das dificuldades
nascentes. Não somente o Estado e o Direito das Gentes, como também o
aprimoramento missionário da Igreja e a crescente relevância do comércio entre os povos
advieram para satisfazer tais necessidades. A análise rigorosa desses institutos pelos
pensadores europeus abriu
abriu diversas
diversas concepções teóricas
teóricas sobre o direi
direito,
to, a políti
política
ca e a
sociedade. Na Península Ibérica, a escolástica renascia como movimento teológico, mas
igualmente como escola apta a conferir a cada uma dessas aporias respostas refinadas
pela
pela profundidade e pelo método herdado da geração de outrora.
Dentro disso, a Escola de Salamanca promoveu uma verdadeira conciliação entre a
teologia medieval e os institutos da era moderna, ocupando o epicentro cultural do Siglo
de Oro espanhol como mensageira da tradição católica em meio à revolução cultural pela
qual perpassou a sociedade ocidental no período em questão.
MARCUSB OEIRA
Coordenador
Coordenador da Coleção Salamanca

8
AGRADECIMENTO AOS COLABORADORES

Através de campanha no website da Concreta para financiar a Defesa da Fé Católica,


348 pessoas fizeram sua parte para que este livro se tornasse realidade, um gesto pelo
qual lhes seremos eternamente gratos. A seguir, listamos aquelas que colaboraram para
ter seus nomes divulgados nesta seção:
Adalberto Salvador Perillo Kühl Jr.
Adilmar Antonio Mota de Camargo
Adriano Giacomelli da Silva
Adriel Akário
Alberto de Paula
Alex Catharino
Alexandre de Luca
Alexandre Petersen
Alexandre Varela
Alvaro Cesar P estana
Ana Silveira
Andre Arthur Costa
Andre Assi Barreto
André Caniné de Oliveira Machado
André Cassil
C assilha
ha
Andre Couto
André Florcovski
André Luiz Ecker Costa
Andrey Gomez Kopper
Antonio Afonso Ribeiro
Arthur Dutra
Aruan J. Freitas
Augusto Carlos Pola Jr.
Bernardo Brandão
Bernardo Cunha de Miranda
Bruce Carneiro
Carneiro
Bruno Diniz
Bruno Dornelles de Castro

9
Bruno José Queiroz Ceretta
Caio Moysés de Lima
Carla Andrade
Carlos A. Crusius
Carlos Alberto Leite de Moura
Carlos Alexander de Souza Castro
Carlos Eduardo C. Ribeiro Machado
Carlos Guilherme Silveira
Cezar Martins Fiorio
Chirlei Matos Santos
Cláudio Araújo
Daniel Cerviglieri
Daniel Henrique Cavalcante
Daniel Palma
Davi Lemos
Davide
Davide Lanfranchi
Delania Gomes Vieira
Diego Gomes Ferreira
Diogo de Almeida Fontana
Diogo Ferreira Ribeiro Laurentino
Dionisio Pedro de Alcântara Lisbôa
Douglas Castro
Dyêgo Martins
Ederson Lima Oliveira
Eduardo Fernandes
Eduardo Gabriel
Eduardo Gomes
Eduardo Jardim
Eduardo Mohallem
Elaine Cristina Moreira Batista
Elaine Egidio
Elaine
Elaine Rizzato
Elpídio Fonseca
Érick Luiz Wutke Ribeiro
Erico de Almeida Console Simões
Érico Raoni Santos da Silva
Evandro Cássio Maraschin
Fábio Augusto Leal da Costa
Fabio Nascimento
Fábio Salgado de Carvalho
Fábio Tomkowski
Felipe Aguiar

10
Felipe Corte Lima
Felipe Mazzarollo
Felipe Santos
Felipe
Felipe Zarpelon
Fernando Pio de Almeida Fleck
Flavia Silva Barros Ximenes
Flávio
Flávio Montenegro
M ontenegro
Francisco
Francisco de P aula
aula Fischer Ferraz
Francisco Escorsim
Francisco Igor de Souza e Silva
Gabriel Pereira Bueno
Gabriel Schaf
Geciel Rangel Costa
Gilberto Luna
Gilmar Siqueira
Gio Fabiano Voltolini Jr.
Giordano Bruno Meireles de Andrade
Giselle Alexandrino S. Franco
Grazielli
Grazielli Pozzi
P ozzi
Guilder da Costa Studart
Guilherme Batista Afonso Ferreira
Guilherme Meirelles de Paula Botelho
Guil
Guilherme P öttker
Guilherme
Guilherme Stein
Gustavo Bertoche Guimarães
Gustavo Cesquim
Gustavo Costa
Haberlandt
Haberlandt Pereira
P ereira Duarte
Hélcio
Hélcio Madeira
Helder Madeira
Henrique Montagner Fernandes
Henrique Simões
Héres Drian de Oliveira Freitas
Hermano Zanotta
Hilário da Silva
Iara Lisboa
Igor Silveira Santos
Ivanor Bochi
Jaime Fidalgo Ferrà Filho
João Marcelo Silva Zigurate
Joel Arosi
Joel Gracioso

11
Jonas Henrique Pereira Macêdo
Jorge Ferraz
José Antonio Donizetti da Silva
José Arthur Oliveira Silva
José Francisco Lemos Oliveira
José Maurício Nogueira Leite
Julieta Antônia Brito Arrais
Julio Cesar Amorim de Albuquerque
Julius Lima
Karlos Guedes
Ken Bansho Neto
Laércio Dias
Larissa Maria Guedes
Laura Stein
Lenon Sabino
Leonardo Ferreira Boaski
Lucas Cardoso da Silva
Lucas Ferreira Pinheiro
Lucas Lagasse Corrêa
Lucas Monachesi
Luciana Antoniolli
Lucio Medeiros
Luiz Cezar de Araujo
Luiz Vergilio Dalla Rosa
Lysandro Sandoval
Manoel Valquer Oliveira Melo
Marcelo Assiz
Marcelo Ferreira Conde
Marcelo Luis Rossa
Marcelo O. Souza
Marcio Antonio de Castro Campos
Márcio Cenci
Marcos Concei
C onceição
ção
Marcos P. V. Zurita
Marcos Rangel Caetano
Marcus Matos Michiles
Maria Rita Sulzbach de Aguiar
Mário Gentil
Mário Jorge Freire
Mateus Colombo
Mateus de Paula
Mateus Messinger

12
Matheus Ferrari Hering
Matheus Hainzenreder Schaf
Matheus Ruff
Matheus Todeschini Lopes
Mauri Benedito de Paula
Maykon Motta Marins
Odair Silva
Paulo de Tarso Irizaga
Paulo Eduardo Galindo
Paulo Henrique Brasil Ribeiro
Paulo Renato Ghetti Frade
Pedro Henrique Folchito Mendes
Pedro Theil Melcop de Castro
Priscilla Silva
Rafael de Almeida Martin
Rafael de Brito
Rafael Henrique
Henrique P ereira
Rafael
Rafae l José Diegoli
Diegoli
Rayane Sonda Cassel
Raylson Aquino
Renato Emydio da Silva Jr.
Ricardo Fazolini
Ricardo Gonçalves Silva
Ricardo
Ricardo P opien
opien
Roberto Cajaraville
Rodrigo de Menezes
Rodrigo
Rodrigo Descalzo
D escalzo
Rodrigo Dubal
Rodrigo Fernandez Peret Diniz
Rodrigo
Rodrigo Lacroix
Rodrigo Naimayer dos Santos
Rodrigo
Rodrigo Santana
S antana Silveira
Silveira
Roger Assunpção
Roger S. Eger
Ronaldo Lucas da Silva
Roney Silva
Rosele Martins dos Santos
Sandro de Freitas Ferreira
Ferreira
Sideval Ramos de Paula
Suellen Caprara
Tácito Garcia Scorza
Tarcio Sotte

13
Tatiana Ramos Prado
Tharsis Madeira
Thiago
Thiago Pal
P alacio
acio L. Frazão
Tiago Arno Saldanha Kloeckner
Tiago Toledo
Ulysses Pereira de Siqueira
Vanessa Reis
Vicente Do Prado Tolezano
Victor Alves Fernandes
Vinícius Krupp
Vinicius
inicius Scorte
Sco rtegag
gagna
na
Vitor Colivati
Vitor Fonseca de Melo
Vitor Montenegro
Vitor Parodi
Vítor Sampaio
Wagner Marchiori
Wanderson Pereira
Weber Soares
Wendell Ramos Maia
William Torquato
Wilson de Paula Ramiro
Wilson Junior
Xavier Peixoto

14
SUMÁRIO

Capa
Folha de Rosto
Rosto
Créditos
Coleção Salamanca
Salamanca
Agradecim
Agradecimententoo aos colaboradores
colabor adores
Apresentação
Apresentação
I. Aposição de Fra ncisco Suárez ante a modernidade e o contexto histórico
da Defensio
Defensio Fidei
Fid ei
II. A cont
c ontrovérs
rovérsiaia sobre o juram
j urament
entoo de
d e fidelidade e a Defensio Fidei
III. O problema
problema da origem e da natureza do poder: excursus excurs us sobre o
Principatus
Principatus Politicus (Livro III da Defensio Fidei)
IV. Apontamentos
Apontamentos sobre a presente edição
Nota
Nota docoordena dor editorial
Defesa da Fé Católica
Abertura
Proêmio
Parte I - A soberania civil
ci vil (Livro III - caps.
ca ps. I-IX)
Da excelência
excelência e poder do Sumo Sumo Pontífice
Pontífice sobre
sobr e os reis temporais
temporais
Capítulo
Capítulo I — Se o principado
pri ncipado político
polí tico é legít
le gítim
imo,
o, e se procede de Deus
Capítulo II — Se o principado político provém imediatamente de Deus, isto
é, se procede por instituição divina
Capítulo III — Resposta aos fundamentos e objeções do rei da Inglaterra
contra a doutrina do capítulo anterior
Capítulo IV — Se entre os cristãos há um legítimo poder civil ao qual
estejam obrigados a obedecer
Capítulo V — Se os reis cristãos têm soberania nas coisas civis e
temporais
temporais,, e por que direito
Capítulo VI — Se há na Igreja de Cristo um poder espiritual de jurisdição
externa, como que político, distinto do temporal
Capítulo VII — Prova-se por autoridade que não há nos reis ou príncipes o
poder de regre ger a Igreja
Igreja em assunt
assuntos
os espirituais
espi rituais ou eclesiásticos
ecles iásticos

15
Capítulo VIII — Confirma-se a mesma verdade por argumentos de razão
Capítulo IX — Refutam-se algumas objeções contra a verdade provada nos
capítulos anterior
anteriores
es
Parte II - O juramento de fidelidade (Livro VI - caps. I-X e XII)
Do jurament
juramentoo de fidelidade do rei re i da Inglat
Inglaterra
erra
Capítulo
Capítulo I — O escopo
esc opo da present
pr esentee controvérsia, o estado desta causa e o
método de disput
dis putaa que nela
nela se
s e deve observar
Capítulo II — Se na primeira parte da fórmula do juramento se propõe algo
para além
al ém da obediência civil
ci vil e con
co ntrário à obediência
obedi ência eclesiástica
eclesi ástica
Capítulo III — Na segunda parte do juramento se apresenta também algo
para além
al ém da obediência civil
ci vil e con
co ntrário à eclesiás
ecl esiástica
tica
Capítulo IV — Se a terceira parte do juramento contém algo para além da
obediência civil e contra a doutrina católica
Capítulo V — Da última parte do juramento e dos erros nela contidos
Capítulo VI — Consideram-se as razões por que o juramento é defendido
Capítulo VII — O Sumo Pontífice não só podia, mas também devia afastar
com seu aviso os católicos ingleses
ingleses da profissão
profissã o do referido
r eferido jurament
juramentoo
Capítulo VIII — Podem os ingleses que admitem o juramento escusar-se de
culpa por alguma
alguma razão
r azão ou de algum modo?
Capítulo IX — Se é lícito aos católicos ingleses ir aos templos dos hereges
e comungar com eles nos ritos, sem intenção de culto ou de cooperação com
eles, apenas para evitar as penas temporais
Capítulo X — Se o acossamento que os católicos padecem na Inglaterra é
uma verdadeira perseguição da religião cristã
Capítulo XII – Resposta ao que o rei objeta contra o segundo breve
pontifício
pontifício e contra a epístola do cardeal
carde al Belarmino
Belarmino
Conclusão
Con clusão da obra
Bibliografia citada
Francisci Suarez Opera Omnia

16
APRESENTAÇÃO
Suárez e os problemas
políticos da modernidad
mod ernidadee
MARCUS BOEIRA[ i]

17
I.
A posição de Francisco Suárez ante a modernidade
e o contexto histórico da Defensio Fidei

A
literatura política dos séculos XVI e XVII é caracterizada pela diversidade de
perspectivas
perspectivas sobre o sentido
sentido e a final
finalid
idade
ade do poder políti
político.
co. As tendências
tendências
teóricas predominantes, a saber, o contratualismo, o realismo político, a teoria
protestante e a doutrina
doutrina católi
católica sobre a justifi
justificação
cação da autoridade
autoridade buscavam oferecer,
cada qual, teorias axiológicas sobre a origem e a constituição[ ii ] do poder. Nesse
intento, cada uma dessas filosofias se apresentava como a ultima ratio em matéria
políti
política,
ca, influenci
nfluenciando
ando a formulação
formulação de narrativas
narrativas atinentes
atinentes a realidades
realidades sociais
sociais diversas,
marcadas por figuras e classes políticas que, embora ocupassem postos diferentes em
contextos sociais específicos, brotavam como forças sociais hegemônicas em todo o
continente, tal como o rei, o príncipe, a nobreza, a assembléia, as cortes, as
magistraturas, a burguesia e o campesinato. Uma investigação rigorosa sobre o campo
políti
político
co no período, portanto, deve levar em consideração
consideração que os esquemas teóricos
teóricos
elegidos como explicativos sejam flexíveis e transitivos, capazes de percorrer cenários
sociais plurais, ainda que unificados por identidade de gênero social. Os aspectos
particul
particulares
ares das sociedades
sociedades do ciclo
ciclo em questão, assim,
assim, se articul
articulam
am em uma visão
visão mais
abrangente, sublinhada pela religião, pela cultura e por instituições sóciopolíticas. A
expansão do horizonte de consciência sobre a Europa do período para além do âmbito
local das comunidades torna possível que temáticas como o direito e a política sejam
alocadas para o interior de um marco mais amplo, englobando áreas específicas dentro
de uma cosmovisão assinalada pelo humanismo. Muitos são os matizes do período. No
campo das artes, destaca-se o barroco, primando pela superlativização de formas e
desenhos, denotando intensidade e profundidade. Na literatura, livros biográficos e
espirituais transitam em meio à produção do épico e do drama modernos, destacando-se
a composição heróica. Na filosofia, a metafísica e o nominalismo roubam a cena. No
campo jurídico, o direito consuetudinário e o direito civil se desenvolvem gradualmente,
sobretudo após a articulação entre as fontes do direito romano e canônico. Em suma, o
tempo em questão é sinal de transformações.
Na políti
política,
ca, são os Estados modernos que despontam como grande novidade. novidade. As
antigas comunidades políticas – reinado, república ou império – assistiam à erupção de
uma nova modalidade de organização do poder, distinta em pressupostos e mecanismos
institucionais. O Estado, novo edifício político da modernidade, figurava como espaço
limítrofe da jurisdição soberana, unificando a nação dentro de um território específico,
concentrando institucionalmente o monopólio da decisão e reivindicando a summa
otestas, qualidade política até então pertinente às cortes e à personalidade do monarca.
O sedimento da burocracia estatal, contudo, não ocorreu de imediato. O longo caminho
da transferência do poder local para o poder nacional foi lento e gradativo. Nessa
transição entre modelos de dominação, da autoridade tradicional para a autoridade
racional-legal, para usar a classificação de Weber,[ iii ] diversas obras políticas foram
publi
publicadas e divulg
divulgadas por toda a Europa.

18
Na Espanha, a formação do tipo tipo particul
particularíssi
aríssimo
mo de unidade
unidade políti
política
ca que estava a
nascer rivalizou com a persistente tradição hereditária. A força do antigo regime, da
monarquia e das dinastias nobiliárquicas serviu de contrapeso para o desenvolvimento de
uma forma mecanicista de institucionalização do poder. Não se pode afirmar que o
Estado era a modalidade par excellence de organização do poder nas Espanhas do
período. A presença da autoridade
autoridade real e das Cortes sempre imprimi mprimiuu o caráter pessoal
nas relações políticas internas. No que tange à ação política típica em um ambiente assim
caracterizado, doses de realismo político de caráter maquiavélico sofriam os anticorpos
homeopáticos da tradição das cortes, da força social na participação das decisões reais,
da fortíssima classe guerreira e nobre que fazia frente à Coroa nas Cortes. É possível
afirmar que a formação do Estado na Espanha foi um processo sui generis em
comparação com o restante da Europa, dado o equilíbrio entre forças sociais diversas
que contrabalanceavam as atitudes e decisões propriamente políticas.[ iv ]
Na órbita
órbita internacional
nternacional,, o entrechoque entre reinos
reinos católico
católicoss e reinos
reinos protestantes,
como também a presença de populações católicas em terras reformadas e vice-versa,
ocasionou conflitos de todos os tipos entre a população minoritária adepta de uma linha
teológica e a respectiva autoridade real aderente da perspectiva diversa. Foi nesse
contexto que se sucedeu a redação da Defensio Fidei , tratado o qual temos a honra de
apresentar.
Em nenhuma das áreas afetadas pelas transformações do período o impacto foi tão
profundo quanto na religreligiião. A Reforma P rotestante, em meio ao ardor do humanismo, humanismo,
trazia a perda da unidade religiosa até então existente no ocidente europeu. Frente a isso,
a justificação da autoridade política perdia os laços com a tradição católica e com as
teorias medievais do direito das Cortes reais. Em razão da sola scriptura, princípio
teológico-hermenêutico fundamental para o Luteranismo e, mais tarde, para praticamente
todas as confissões protestantes, a busca pela fundamentação do poder encontraria vazão
no Antigo Testamento, notadamente nos livros históricos de Samuel, Reis e Crônicas, em
que os reis são ungidos por Deus. A tese aqui presente aduz ser o próprio Deus – Iavé –
quem transmite o poder diretamente aos reis e monarcas, com a intermediação
meramente simbólica do sacerdote espiritual. Assim, a resposta da Reforma para o
problema
problema da fundamentação do poder estava em assumi a ssumirr a interpretação literal
literal dos livros
livros
citados, reivindicando que reis e monarcas dos novos Estados europeus adeptos da
Reforma não necessitariam da chancela papal, nem tampouco do consentimento social
para sua desig
designação ao posto real.
real. A tese, em outros termos, prezava pela pela transmissão
transmissão
direta do poder divino para os monarcas, sem a intermediação da sociedade e da
autoridade espiritual do Sumo Pontífice. Dentre os resultados dessa tese, residia a
chamada teoria do direito divino dos reis. Segundo esta tese, a soberania da autoridade
políti
política
ca justificava-se
justificava-se não na deleg
delegação
ação ou transmissão
transmissão social do poder, mas na aceitação
aceitação
pacífica
pacífica e azafamada de que a autoridade
autoridade secular
secular é constituída
constituída por Deus diretamente
diretamente e
que seus atos, independentemente dos efeitos que possam produzir, são reconhecidos
como válidos espiritual e temporalmente. O legitimismo presente no escopo dessa teoria
políti
política,
ca, assim,
assim, torna irrelevante
rrelevante qualquer
qualquer indag
ndagação
ação acerca do modo de desig designação do

19
soberano, desde que cumpridas as exigências jurídicas formais. Apropriando-se dessa
tese, alguns dos soberanos do período ascendiam ao posto monárquico sem qualquer
mediação com as demais camadas sociais, como a nobreza, a classe produtiva ou mesmo
o clero, em alguns casos.
Na Ingl
Inglaterra, com a morte de Eli Elizabete I assumia
assumia o trono o então rei da Escócia
Escócia
Jaime VI, recebendo o título de Jaime I. Na regência da Escócia desde 1567, o monarca
ascendia ao trono inglês em 1603, permanecendo até sua morte, em 1625. Foi por
ocasião do reinado de Jaime I e no contexto cultural em questão que Suárez redigiu a
Defensio Fidei .
Francisco Suárez nasceu em Granada em 1548 e foi professor de Teologia em
Valladolid, Roma e Salamanca, tendo ingressado na Companhia de Jesus quando ainda
estudava nesta última cidade, no ano de 1561. Após destacado período em Segóvia entre
os anos de 1571 e 1574,[ v ] onde se notabilizou como professor de Filosofia[ vi ] residiu
em Valladolid, Alcalá, Salamanca e Roma, desempenhando diversas atividades
intelectuais e eclesiásticas nessas localidades.
Foi requisitado pela Universidade de Coimbra em 1597, onde permaneceu como
professor até 1616, quando transferiu-se para a casa da Companhia
Companhia de Jesus em Lisboa,
Lisboa,
local de seu falecimento, em 1617. No período conimbricense, regeu durante quase vinte
anos a cátedra-prima de teologia e redatou boa parte de suas opera omnia, destacando-se
a composição dos tratados jus-políticos. Foi, portanto, um pensador original em muitos
campos, tendo grande destaque nas áreas da teologia, filosofia, direito e política. Além
das obras teológicas e filosóficas, que preenchem a maior parte de seus escritos, Suárez
confeccionou inúmeros pareceres nas áreas de ciências canônico-eclesiásticas e jurídicas
durante o tempo em que lecionou em terras lusitanas.
Antonio de Vasconcelos, um de seus principais biógrafos, nos diz que
“(...) todos os autores, que tem escrito sobre história da Filosofia e da Teologia, ao ocuparem-se do período
moderno, que se segue à explosão da Reforma, nos apontam Suárez como um dos mais notáveis, entre os
que promoveram e realizaram o movimento, que, iniciado na península, e tendo por principais centros as
Universidades de Salamanca, Alcalá e Coimbra, elevou as ciências teológico-filosóficas ao mais subido grau
de desenvolvimento e esplendor.”[ vii ]

E complementa:
complementa:
“A Coimbra tinha chegado a fama dos talentos de Suárez. O seu nome tornara-se conhecido por toda a
Europa desde o seu professorado em Roma; além disso, a Universidade de Salamanca admirava-o, e esta
admiração forçosamente havia de transmitir-se desde logo à de Coimbra, porque as relações entre as duas
eram estreitas, e muito freqüentes as suas comunicações.”[ viii ]

No que diz
diz respeito
respeito à sua obra jurídico-pol
jurídico-políti
ítica,
ca, fig
figuram com amplo
amplo destaque os
tratados De Legibus ac Deo Legislatore (1612)[ ix ] e Defensio Fidei Catholicae et
postolicae adversus Anglicanae
Angli canae sectae errores(1613), ambos publicados originalmente
errores
em Coimbra, o segundo ora traduzido na presente edição compilada.
É indubitável que as doutrinas políticas de Suárez fizeram escola e deixaram um
extraordinário legado em Portugal, nas Espanhas e em todo o resto da Europa. Eventos
marcantes como a Restauração de 1640 e a formatação dos regimes políticos no Novo

20
Mundo a partir dos movimentos de emancipação no século XIX foram amplamente
devedores do pensamento político suarista.[ x ]

21
II.
A controvérsia sobre o juramento de fidelidade e a Defensio Fidei
O Siglo de Oro ibérico é marcado pela assombrosa produção filosófica nas mais
variadas áreas do conhecimento. São inúmeros os tratados teológicos, filosóficos e
políti
políticos,
cos, em disputa
disputa contra as posições
posições adotadas pela
pela Reforma quanto aos temas da
formação do Estado e da legitimação da autoridade. A profusão de esforços intelectuais
voltava-se para a análise detalhada da origem do poder político e suas conseqüências
institucionais, frente à tendência irresistível de alguns reinos para a monarquia absolutista.
É nesse cenário que Suárez figura como o maior filósofo político católico da Contra-
Reforma. Do ponto de vista político, sua importância pode ser entendida sob dois
vetores: por um lado, pelo aprimoramento que promoveu na noção de lei . Baseando-se
em S. Tomás de Aquino, adaptou a teoria da lei natural para enquadrá-la no contexto
moderno, no qual o Estado e o Ius Gentium já eram realidades em desenvolvimento,
focalizando o papel da vontade na promulgação do direito positivo; em segundo lugar,
aperfeiçoou a concepção já pré-existente na tradição romana de corpus mysticum
oliticum, em frontal oposição às demais teorias políticas modernas.
A composição da Defensio Fidei adveio mediante um convite para que Suárez
oferecesse uma resposta aos dilemas enfrentados pelos católicos da Inglaterra frente às
persegui
perseguições
ções levadas a termo pela Coroa.
Concretamente, os séculos XVI e XVII foram marcantes para a história da Igreja
Católica naquele país. Desde a promulgação pelo Parlamento da Ata de Supremacia de 3
de novembro de 1534, documento que firmava a autonomia da Igreja Anglicana frente à
Romana, as relações entre a monarquia inglesa e a Santa Sé restaram cada vez mais
conturbadas. Dentre as medidas tomadas pela Coroa da Inglaterra estavam o livro de
Oração Comum, imposto aos súditos em 1549 tendo em vista a uniformidade da
profissão
profissão de fé ang
angllicana, as variadas
variadas fórmulas
fórmulas de juramento de fidel fideliidade à Coroa em
detrimento da autoridade espiritual da Igreja de Roma, amplamente exigidas nos reinados
de Elizabete e Jaime I, bem como o fortalecimento do poder monárquico, notadamente
pela
pela posição
posição anti-catól
anti-católiica adotada por Eli
Elizabete ante a excomunhão
excomunhão decretada pelo pelo Papa
Pa pa
Pio V, através da Bula Regnans in i n Excelsis
Excelsi sde 25 de fevereiro de 1570.[ xi ]
No long
ongoo reinado
reinado de EliElizabete, os católi
católicos ing
nglleses enfrentaram problemas
problemas de
persegui
perseguição
ção e obrig
obrigação de consciência.
consciência. O próprio
próprio Suárez exp expõe
õe com clareza
clareza no prólog
prólogoo
ao livro VI da Defensio Fidei ( De Iuramento Fidelitati
Fi delitatiss) a fórmula exigida por Elizabete
aos súditos da Inglaterra, requerendo-lhes fidúcia em assuntos espirituais: “Eu, N.N.,
inteiramente testifico e declaro em minha consciência que a rainha é a única soberana
governadora tanto deste reino da Inglaterra quanto de todos os outros domínios e regiões
de Sua Majestade, não menos em todas as coisas e causas espirituais e eclesiásticas do
que nas temporais, e que nenhum príncipe, pessoa, prelado, estado ou potentado
externos têm, de facto ou de jure, alguma jurisdição, poder, superioridade, preeminência
ou autoridade eclesiástica ou espiritual neste reino. E por isso renuncio e repudio todas as
urisdições, poderes, superioridades e autoridades externas”.[ xii ] Obviamente, a
exigência em questão implicava na renúncia de qualquer outra autoridade espiritual em

22
favor da rainha,[ xiii ] auto-intitulada suprema governadora e fiel signatária do reino de
Henrique VIII.
A tese central da legitimação da autoridade segundo a versão anglicana centrava-se no
ideário de que o monarca reunia em si a autoridade espiritual e o poder temporal sobre
toda a sociedade, obrigando a consciência dos súditos mediante a assinatura de uma
confissão juramentada. Para os católicos da Inglaterra, a subscrição do pacto
uramentado implicava em reconhecer a supremacia real sobre a papal nos assuntos
atinentes aos bens espirituais. Em ouras palavras, o juramento de fidelidade ao rei
simbolizaria o rompimento dos católicos com a Santa Sé e adesão à Igreja Anglicana.
Com a morte de Elizabete e a ascensão de Jaime I, a perseguição se intensificou e a
fórmula do juramento de fidelidade foi ampliada.
Jaime VI da Escócia, filho de Maria Stuart (católica), foi erigido ao trono com o título
de Jaime I, após longa expectativa dos católicos ingleses, desejosos de que o reinado de
Elizabete terminasse. A esperança dos fiéis de Roma se justificava ante as promessas
feitas pelo monarca em carta endereçada a Henry Howard, conde de Northampton,
importante personagem do período e defensor da casa dos Stuart, onde prometia “atuar
em conformidade com o direito e respeitando todos aqueles que lhe obedecessem e
aceitassem estar ao seu serviço”. Acrescentava-se a isso o fato de que Robert Cecil era o
princi
principal
pal articulad
articulador
or e defensor dos direi
direitos
tos hereditári
hereditários
os de Jaime
Jaime VI ao trono, tendo
negociado amplamente com os católicos ingleses, particularmente com os jesuítas, a
ascensão pacífica do monarca escocês ao reinado, em troca de liberdade de consciência e
tolerância religiosa.[ xiv ]
A subida ao posto real, todavia, frustrou a expectativa dos católicos. Por trás da
imagem de rex pacificus, ocultava-se um monarca com pretensões absolutistas, posição
antes mesmo assumida em seu The trew law of free monarchies, texto publicado em
1598, onde expunha sua preferência pela doutrina do direito divino dos reis e um ataque
à tese da divisão entre os bens espirituais e temporais. Para o rei, a autoridade política
deveria cumular a jurisdição espiritual e civil, tendo sua legitimidade justificada por
delegação divina direta, sem o intermédio da comunidade civil na designação do poder
políti
político.
co.
Acreditando que a submissão dos católicos da Inglaterra à autoridade espiritual do
Papa representaria a obediência a um poder externo, Jaime I viu nisso um risco à sua
autoridade. No plano teórico, sua adesão à teoria do direito divino mostrava-se ameaçada
pela
pela força tradicio
tradicional
nal da teoria
teoria católi
católica da autoridade
autoridade políti
política,
ca, segundo
segundo a qual o poder
temporal dos reis e príncipes não é constituído diretamente por Deus, senão pela
intermediação do corpo social. De acordo com isso, o rei estaria limitado por direito
natural ao pacto que estabeleceu com a sociedade, por direito comum e das gentes.
Acrescente-se a isso a popularização da teoria do tiranicídio exposta por Juan de
Mariana em seu De Rege et Regis Institutione
Instituti one (1598), coincidentemente publicado no
mesmo ano da obra do monarca escocês. Segundo essa tese, os monarcas podem ser
depostos por violações aos direitos da república, como ensina o próprio Mariana:

23
“A dignidade real tem sua origem na vontade da república. Se assim o exigem as circunstâncias, não só há
meios de chamar o rei à jurisdição como também despojar-lhe o cetro e a Coroa caso se negue a corrigir
suas faltas. Os povos lhe transmitiram seu poder, mas conservaram outro ainda maior para impor tributos, e
para ditar leis fundamentais é indispensável
indispensável o seu consentimento.
cons entimento. Não disputaremos agora como
c omo isso
iss o se
s e deva
ocorrer, mas que fique consignado que os povos podem levantar novos impostos e estabelecer leis que
revoguem as antigas. Conste, e isso é o mais importante, que os direitos reais, ainda que hereditários, só
restam confirmados no sucessor pelo juramento desses mesmos povos. É preciso ter em conta que
mereceram aplausos aqueles que atentaram contra a vida de tiranos em todos os tempos (...) tanto os
filósofos quanto os teólogos estão de acordo que se um príncipe se apoderou da república à força de armas,
sem razão, sem direito algum, sem o consentimento do povo, pode ser despojado por qualquer um da coroa,
do governo, da vida; que, sendo um inimigo público e provocando todo gênero de maldade à pátria,
tornando-se poderoso e notoriamente tirano, não só pode ser destronado, senão que pode sê-lo com a
mesma violência com que tratou os súditos, arrebatando para si um poder que não lhe pertence, mas que é
da sociedade que ele oprime e escraviza”.[ xv ]

Frente a esse prognóstico adverso e convicto de seu direito divino de reinar sem
acidentes e independentemente de seus atos, Jaime I empreendeu uma campanha de
persegui
perseguição
ção aos católico
católicoss da Ilha,
Ilha, princi
principal
palmente
mente aos jesuítas, considerados
considerados
conspiradores e traidores. Não nos ocuparemos aqui dos eventos históricos que se
sucederam à subida de Jaime I ao trono da Inglaterra. Apenas salientamos que os
acontecimentos convergiram para fortalecer o poder político e religioso do monarca,
levando-o a revigorar a perseguição aos católicos, por meio dos mais variados
expedientes, como penas e castigos. Um desses expedientes foi a ampliação do
uramento de fidelidade anteriormente prescrito por Elizabete. Em sua Apologia pro pro
Fideli tatis (1609), Jaime I transcreve uma fórmula de juramento de
Iuramento Fidelitatis
fidelidade que, em princípio, não comprometia a autoridade espiritual do Sumo Pontífice.
O texto apenas salientava a exigência de se guardar fidelidade à Majestade real, bem
como a seus herdeiros e sucessores. Todavia, mais adiante, por ocasião dos
acontecimentos que marcaram a conspiração da pólvora, requereu o rei que Richard
Bancroft, primaz de Canterbury e defensor da doutrina do direito divino, redigisse uma
terceira fórmula de juramento, ainda mais ampla que a anterior e que visava fortalecer a
posição
posição do monarca frente aos súditos.
Eis o texto do terceiro juramento:
“Eu, N.N., verdadeira e sinceramente reconheço, professo, testifico e declaro em minha consciência perante
Deus e o mundo, que nosso soberano senhor, o rei Jaime, é rei soberano e verdadeiro deste reino e de todos
os outros domínios e terras de Sua Majestade, e que o papa, nem por si mesmo, nem por outra autoridade
qualquer da Igreja, ou da Sé Romana, nem por qualquer intermédio com quaisquer outros, não tem poder
nem autoridade para depor o rei, ou para dispor dos domínios ou dos reinos de Sua Majestade, ou para
conceder a algum príncipe estrangeiro autoridade para danificá-lo ou para invadir suas terras, ou para
exonerar nenhum de seus súditos da obediência e sujeição à Sua Majestade, ou para dar licença a nenhum
deles para portar armas contra ele, semear o tumulto, ou causar qualquer violência ou dano à pessoa de Sua
Majestade, ao Estado, ao regime, ou a quaisquer de seus súditos sob os seus domínios. Igualmente juro de
coração que, não obstante qualquer declaração ou sentença de excomunhão ou privação, feita ou concedida –
ou que haja de ser feita ou concedida – pelo papa ou por seus sucessores, ou por qualquer autoridade
derivada, ou que alega ser derivada dele ou de sua Sé, contra o dito rei, seus herdeiros ou sucessores, e não
obstante qualquer absolvição dos ditos súditos com relação à sua obediência, ainda assim prestarei fidelidade
e verdadeira obediência à Sua Majestade, aos seus herdeiros e sucessores, (...) creio, e resolvo em minha
consciência, que nem o papa, nem outro qualquer, tem poder de isentar-me deste juramento ou de qualquer

24
parte sua. Juramento que reconheço
rec onheço ter sido legitimamente
legitimamente apresentado a mim por uma autoridade justa e
plena
plena (...
(. ..)”.[
)”.[ xvi ]

Os católicos ingleses divergiram quanto à adesão ao juramento, cada qual


interpretando o texto à sua maneira. A situação de dúvida foi compensada quando o Papa
Paulo V emitiu o Primum Breve Breve Pontifici
Ponti ficium
um, documento voltado para explicitar aos fiéis
romanos da Inglaterra sobre as condições, os critérios e os limites que deveriam seguir
perante a situação
situação em questão. No breve, o P apa assevera, dentre outras questões, que
os católicos não poderiam assinar o juramento “sem detrimento do culto divino e da
própria
própria salvação”,
salvação”, razão pela
pela qual os admoestava a que se abstivessem
abstivessem em absoluto
absoluto de
prestar aquele
aquele juramento e outros semelhantes.[
semelhantes.[ xv
xviii ] Ainda
Ainda receosos de que o
documento em questão não fosse autêntico, alguns católicos da Ilha relutaram em
reconhecer sua autoria, o que levou o Papa a formular um Secundum Breve, onde
atestava a posição adotada no primeiro, ratificando a proibição do juramento e a
fidelidade à Santa Sé.
Em paralelo, o cardeal Roberto Belarmino redigia uma resposta a Jaime I intitulada
pologia Bellarmini pro Britanni ae Regis,
pro responsione sua ad librum Jacobi Magnae Britanniae
onde contestava a tese ventilada pelo monarca sobre a legitimidade do juramento,
afirmando tratar-se de um juramento de infidelidade e uma profissão de negação do
poder pontifício
pontifício,, a despeito
despeito da obediência
obediência ao poder civil
civil ali presente.[ xvii
xviii ]
Em tréplica, o rei alegou que o cardeal não tocava o ponto central da questão, pois na
pologia apenas defendia um juramento de fidelidade que aludia tão-somente ao âmbito
da obediência civil e política, o que estaria em sintonia com a tradição romana e que, por
direito natural, seria compromisso devido de todos os súditos aos seus soberanos. E
dizia, para arrematar, que tal potestade civil fora usurpada injustamente pelos pontífices.
Ante esse episódio, uma verdadeira guerra apologética se instaurava entre a Coroa inglesa
e a Santa Sé. No terreno intelectual, as posições de Jaime I e do cardeal Belarmino
ecoavam por toda a Europa, em um clima de franca oposição e polêmica.
Foi nesse contexto, diz Hubeñák, que o núncio apostólico da Espanha, Decio
Caraffa, em nome do Papa Paulo V, pediu ao renomado Padre Francisco Suárez para
que fizesse uma crítica às teses de Jaime I, refutando seus argumentos quanto à teoria
políti
política
ca do direi
direito
to divi
divino
no dos reis
reis e ao juramento de fidel
fideliidade. O granadino,
ranadino, embora
enfraquecido pela saúde comprometida e com pouco entusiasmo, levou adiante o pedido,
de modo que já no fim de 1611 a primeira parte da obra estava nas mãos do Sumo
Pontífice. Como gratidão, o Papa Paulo V envia-lhe uma carta agradecendo-lhe pela
incessante defesa da fé católica em seus escritos, demonstrando afeto por sua pessoa. Já
em 20 de junho de 1612, a segunda e última parte do tratado era recebida em Roma,
com o título Defensio Fidei Catholicae et Apostolicae adversus Anglicanae sectae
errores cum responsione ad Apologiam pro Iuramento Fidelitatis et Praefationem
Monitoriam Serenissimi Iacobi Magnae Britanniae Regis (“Defesa da Fé Católica e
apostólica contra os erros da seita anglicana, com uma resposta à Apologia ao
uramento de Fidelidade e à Carta dirigida aos príncipes cristãos pelo sereníssimo
Jaime, Rei da Inglaterra”).[ xix ]

25
Curiosamente, por toda a Europa a publicação da Defensio Fidei foi amplamente
acatada. Na Universidade de Coimbra e em toda a Península Ibérica os elogios e estimas
não foram poupados. Vasconcelos, em seus Escritos vários sobre as fontes documentais
da Universidade de Coimbra, expõe uma carta endereçada a Suárez pelo rei Filipe III de
Espanha, em setembro de 1613, onde tece elogios ao granadino: “ Presentóseme Presentóseme por
vuestra parte el Libro que imprimisteys en respuesta de el del Rey de Inglaterra: y
orque en èl defendeys tan doctamente la libertad, y pureza de nuestra Santa Fé
Catholica, y autoridad de la Iglesia Romana, le he estimado mucho: y me pareció por
esto daros las debidas gracias, y deziros, que podeys tener por bien empleado el
trabajo, y tiempo, que pusisteys en esta obra, de que se deve tener por cierto resultará
mucho servicio a Dios”.[ xx ]
Em estilo apologético, Suárez confecciona a Defensio Fidei , onde expõe a tese já
assentada na tradição política católica, dentre outras tantas, do livre consentimento da
comunidade acerca da legitimidade do rei, em contraste com a tese de Jaime I, para
quem o rei era soberano e absoluto, posto diretamente por Deus, sem a necessidade de
responder por seus atos à sociedade. Tal obra veio a complementar o que já havia sido
exposto, em linhas gerais, pelo próprio Suárez no De Legibus
Legi bus, onde já estavam contidas
luzes sobre a teoria da origem popular do poder político. Todavia, é na Defensio Fidei
que a tese aparece de forma mais contundente, sobretudo no livro III, como veremos a
seguir. Na acepção de Suárez, o soberano recebe seu poder indiretamente de Deus, por
referência ao que ensina São Paulo na Carta aos Romanos, cap. 13, e diretamente do
povo, de quem recebe parcial
parcialmente
mente a legiti
egitimidad
midadee para exercer o governo civicivill para a
utilidade pública, dentro dos limites traçados no pactum subjectionis
subjectioni s,[ xxi ] documento
fundacional da constituição política da república, bem como na lei natural (participação
da lei eterna na criatura racional), que move o agente político ao bem comum.
No principatus politi cus, assim, o príncipe só poderia exigir dos cidadãos fidelidade
princi patus politicus
sobre os temas políticos, acordados no pacto de fundação da cidade e dentro dos limites
do direito natural. Os assuntos espirituais, por outro lado, não poderiam ser exigidos pela
autoridade política, vez que transcenderiam o espaço de sua competência.
Nesse sentido,
sentido, os católi
católicos ing
nglleses poderiam
poderiam jurar fidel
fideliidade ao rei apenas quanto
aos temas atinentes aos assuntos políticos e de natureza temporal, dentro dos limites
reconhecidos pelo direito natural e pelo direito civil. A autoridade espiritual, reservada ao
Papa, jamais poderia ser reconhecida ao rei, devendo os católicos negar o juramento
nesses termos.
Primoroso produto do barroco católico, a Defensio Fidei foi recebida com fervor
pelo
pelo Papa
Pa pa P aulo
aulo V e serviu
serviu como instrumento apolog
apologéti
ético
co formidável
formidável na luta contra o
absolutismo dominante nas nações reformistas, particularmente na Inglaterra de Jaime I.
No Livro
Livro VI, Suárez demonstra que a fórmula obscura do juramento exig exigido pelo
pelo
monarca escondia heresias e ataques camuflados à jurisdição eclesiástica do Sumo
Pontífice sobre os católicos, como se aduz: “A não ser que creiam que o rei, só com seus
ministros, tenha maior autoridade para confirmar seu erro, e para exigir fidelidade a ele,
do que a Igreja Romana e universal, com os Sumos Pontífices que ensinaram este tema

26
com uma tradição e um consenso tão constantes.Pois, se é isto que tenciona o rei, e se
obriga seus súditos a esta fidelidade, é necessário que reconheça que neste juramento ele
não contende apenas pela jurisdição temporal, mas pelo primado espiritual.”[ xxii ]
A pretensão oculta de Jaime I ao invocar a jurisdição espiritual estava na raiz de sua
teoria do direito divino. De acordo com isso, os reis e monarcas são instituidos por Deus,
sem qualquer intermediação civil ou social na constituição de sua autoridade.
Contrapondo essa tese, Suárez expõe no livro III posição contrária, como veremos a
seguir.

27
III.
O problema da origem e da natureza do poder: excursus sobre
o Principatus Politicus (Livro III da Defensio Fidei )
O livro III do Tratado visa apresentar argumentos que atestam o direito e o primado
do Sumo Pontífice sobre matérias atinentes à jurisdição espiritual e eclesiástica, segundo
o magistério apostólico da tradição católica. Pretende-se, com isso, invalidar o argumento
de Jaime I sobre a suposta usurpação do Sumo Pontífice quanto ao âmbito da jurisdição
civil e política, como também demonstrar a ilegitimidade da teoria do direito divino dos
reis no que diz respeito ao fundamento do poder político. Dentro disso, o livro em
questão toca, dentre outros pontos, no tema central da filosofia política e jurídica de
Suárez, qual seja a origem e a natureza do poder político.
Para tal, começa por reconhecer que a origem do poder está em Deus, em
conformidade com o que ensina São Paulo na Carta aos Romanos, capítulo 13, versículo
1: “Cada um se submeta às autoridade constituídas, pois não há autoridade que não
venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus”.[ xxiii ]
Todavia, Deus não constitui diretamente a autoridade política, como se transferisse
diretamente a ela o poder soberano sobre a cidade. Na realidade, é na Criação que se
manifesta a primeira transferência de poder à humanidade. Ao imprimir no ser humano
(criatura racional) a vontade, Deus constituiu no homem a primeira modalidade de poder:
o domínio sobre os próprios atos. Na sociedade, porém, o exercício do próprio domínio
exige a existência de uma instância detentora do poder de jurisdição, para os casos em
que os conflitos não possam ser resolvidos pela via pacífica. Por isso, Deus constituiu as
cidades dando à comunidade o poder soberano e direto sobre sua própria organização.
Em outras palavras, a transferência do poder à sociedade manifesta-se naquilo que é
comum a todos os seres humanos envolvidos na cidade: a natural sociabilidade. Assim, o
primeiro
primeiro ato de transferência do poder divino
divino não se deu ao soberano, mas à cic idade.
Era comum no mundo antigo e medieval a utilização do termo república para
designar não uma forma específica de governo, mas a própria comunidade política
tomada pelos fundamentos de sua ordem. Uma das expressões designadas para explicitar
o espírito da república era principatus
princi patus politicus
politi cus. Suárez emprega esse termo composto
para simboli
simbolizar a ordem política
política nos seus fundamentos origi
originários.
nários. Corresponde ao corpo
místico político, isto é, aos elementos constitutivos do nascimento da comunidade
políti
política.
ca. P or isso, principatus politi cus pode significar tanto cidade como república,
princi patus politicus
naquilo que diz respeito aos seus rudimentos primordiais.
Para Suárez, Deus transfere diretamente seu poder às repúblicas. Ora, sendo a
república um corpo político formado pela unidade existente entre a comunidade civil e
sua autoridade, tem-se que a comunidade transfere ao soberano o poder por pactuação,
limitando-o às condições exaradas no acordo. Por essa razão, é só indiretamente que o
soberano recebe seu poder de Deus. Na realidade, seu poder direto advém por um ato de
designação da cidade, ou nas palavras do próprio granadino, por translação. O poder
constituído na autoridade – seja um rei, um órgão deliberativo ou uma assembléia – tem
em Deus sua fonte indireta, e na comunidade, sua fonte direta.

28
No terceiro
terceiro livro, assim,
assim, o granadino
ranadino começa por expor expor a orig
origem divi
divina
na da
autoridade, tal como demonstramos acima: “Além da razão proveniente do fim e da
necessidade de tal poder, devemos mostrar sua justiça a partir de sua origem. Por este
motivo, aduza-se que o príncipe político recebe seu poder do próprio Deus.”[ xxiv ]
Mais adiante, começa por perscrutar a origem concreta da autoridade política,
especulando sobre a obra criativa de Deus. Sendo Deus a origem do poder, cabe à razão
investir sobre a obra do Criador para extrair certezas quanto aos fundamentos da política
e da sociedade. Conclui ser o poder político um atributo do ser humano e pertinente à
sua natureza social, imposto às repúblicas como exigência de direito natural, conforme a
seguir: “Primeiro: todas as coisas que pertencem ao direito natural provêm de Deus como
autor da natureza. Ora, o principado político pertence ao direito natural. Logo, provém
de Deus como autor da natureza”.[ xxv ]
Suárez, assim, encontra o nexo de justificação para o poder político: se é ele
necessário para a conservação da sociedade humana, bem como legítimo e justo, não há
dúvida de sua relação com o direito natural, do qual Deus é fonte. Sendo Deus o autor
do direito natural, é também autor originário do poder soberano, de onde se infere a
existência da relação constitutiva entre o direito natural e o poder político.
A formulação dessa tese teve três objetivos: primeiramente, expor de forma
organizada e sistematizada o entendimento da tradição católica a respeito da origem e da
natureza da autoridade política, oferecendo, assim, a autêntica exegese da passagem
supracitada da Carta aos Romanos; em segundo lugar, fortalecer o entendimento sobre a
separação entre a jurisdição espiritual e eclesiástica e a autoridade civil e política, já
presente na tradição
tradição católi
católica, simbol
simboliizada na figu
figura
ra medieval das duas espadas; por fim,
responder aos problemas da Reforma Protestante quanto aos excessos de jurisdição,
particul
particularmente
armente no caso
c aso da Inglaterra.
Inglaterra.
Nesse caso específico,
específico, como já aludi
aludimos
mos acima, Suárez pretendeu, no livro III,
combater os excessos contidos na teoria do direito divino dos reis exposta por Jaime I,
segundo a qual a autoridade política recebe seu poder diretamente de Deus, cabendo às
repúblicas a mera obediência civil pacífica, independentemente dos atos do soberano. O
monarca pretendia, como restou provado por Suárez, alargar seu próprio poder temporal
em detrimento da autoridade espiritual, em particular através da obrigação de
consciênciaproduzida contra os católicos ingleses, dos quais exigiu o já citado juramento
de fidelidade, em combate à autoridade espiritual do Papa sobre os fiéis da Ilha. Assim,
defende a idéia de que o soberano recebe seu poder não da comunidade civil, mas
diretamente de Deus, do que se deduz não existir qualquer relação entre o povo e a
causalidade do político.[ xxvi ] Com isso, Jaime I atacava a tradição da Igreja e assumia
uma nova posição frente à teoria da origem do poder político, entendendo-a como uma
doutrina radicalmente contrária à jurisdição eclesiástica separada do monarca e voltada,
no plano concreto, a abolir a autoridade espiritual do Papa sobre os católicos ingleses.[
xxvii ]
No livro III, Suárez chama a atenção para o caso, com a citação citação do cardeal
Belarmino de que “a autoridade não é concedida por Deus aos reis imediatamente, à

29
maneira como o é aos pontífices”[ xxviii ] e afirmando que “tal poder não se diz proceder
imediatamente de Deus simpliciter
simpli citer , mas apenas secundum quid. Pois é concedido
proxi
proximamente pelo pelo homem, e deledele depende”.[ xxix
xix ] De acordo com isso, a causa
eficiente do poder político é Deus, mas a causa próxima reside no homem e decorre do
mesmo. Sim, pois se o homem é um animal social e político, sua dimensão sociológica
acarreta a necessidade de que haja uma conservação do agrupamento dos homens, o que
é realizado pela autoridade política. Daí, o poder decorre, proximamente, da natureza
social do ser humano.
Uma autêntica teoria da translação, portanto, está em assumir que o poder somente
pode ser transferido
transferido imediatamente
mediatamente por Deus em alg alguns casos excepcion
excepcionais
ais;; porém, em
nenhum deles o poder originado em Deus é diretamente conferido a um homem ou grupo
social. Apoiado em Belarmino, Suárez aduz que “o principado político de fato procede
imediatamente de Deus, mas não é dado aos reis e senados supremos imediatamente por
Ele, e sim pelos homens”.[ xxx ]
E, se o foi por homens, é forçoso reconhecer que “a soberania civil, vista em si
mesma, é dada imediatamente por Deus aos homens congregados numa comunidade ou
sociedade política perfeita”,[ xxxi ] no ato de sua fundação. O poder não pode residir em
uma pessoa única, como pretendeu Jaime I, mas habita na totalidade de todos os
homens, reunidos na comunidade civil em vista de um fim comum. É no corpo político
da comunidade que reside o poder, e não em uma isolada parte desse mesmo corpo. Para
a conservação da própria comunidade, o poder político se faz necessário. As repúblicas
são constituídas por Deus, que lhes transmite o direito natural e com ele a tendência
inexorável para a convivência comum de seus membros. É o poder, então, derivado de
Deus, mas manifesto a partir da natureza social de cada homem reunido na comunidade
políti
política,
ca, à qual o próprio
próprio autor da Criação
Criação o transfere, sem qualquer
qualquer espécie
espécie de
intermediação, para que, unificada por laços constitutivos de ordem eleja o melhor
regime para a cidade, a melhor forma de organização social.
Como prova o próprio Suárez, não apenas em Belarmino como em toda a tradição da
Igreja está claramente exposto que o poder tem origem em Deus, mas que Ele o transfere
ao corpo político, do qual participam todos os homens, enquanto partes constitutivas da
comunidade política. Combatendo, assim, a tese do direito divino dos reis ao trono por
instituição direta do Criador levantada por Jaime I, adere à tese, já levantada por
Belarmino na Responsio ao texto da Apologia, de que é a partir da república que o rei
recebe seu poder de Deus, e não por via “direta”.[ xxxii ] Sim, pois o poder político
como tal é inferido da comunidade civil para sua conservação, finalidade que representa
a própria pretensão do autor da Criação no ato de fundação da própria comunidade de
homens. Em outras palavras, é por direito natural que as cidades tendem à própria
conservação. E, para tal, é atributo do mesmo direito natural que tenham um governo
civil, apto a isso.
É por razão natural,[ xxxiii ] afirma Suárez, que o poder, por corresponder a cada
homem concreto dentro da comunidade, não se encontra imantado em uma só pessoa,
ou em um grupo de pessoas dentro da comunidade, senão em todo e qualquer membro

30
dela. A ninguém é permitido, per si , reputar-se superior a qualquer outra pessoa na
sociedade, de forma que, se todos são politicamente iguais, depreende-se que o poder
reside na comunidade, procedendo de Deus.
A razão se projeta sobre a comunidade política perfeita in abstrato, conduzindo a
partir
partir daí à uma racional
racionalid
idade
ade políti
política
ca segundo
segundo a qual a autoridade
autoridade concreta, em si, é
investigada com base em suas causas originárias e teleológicas, algo que Francisco de
Vitória já havia traçado em sua Relectio de Potestate Civili Civi li[ xxxiv ] e que foi
amplamente investigado por Suárez. O granadino vale-se dos escritos de Vitória e da
tradição como um todo[ xxxv ] para explanar uma análise ontológica do poder a partir de
seus primeiros princípios, concluindo que a comunidade perfeita[ xxxvi ] – in abstrato –
pressupõe que o poder encontre-se na comunidadecomunidade – in concreto –, por origem divina.
Porém, no que tange ao plano concreto não há um regime político perfeito e universal. É
tarefa da razão prática inferir qual o melhor regime para cada principatus princi patus politicus
politi cus em
particul
particular.
ar. Cada comunidade
comunidade no tempo e na históri históriaa e segundo
segundo o direit
direitoo consuetudinári
consuetudinárioo
possui a plenitudo potestatis para deliberar e decidir sobre sua modalidade particular de
organização política, ainda que possua, como as outras, o mesmo princípio de origem e a
mesma natureza criada.
Suárez insiste que não há uma forma política universal capaz de representar a forma
de governo própria da comunidade perfeita. Sustenta que a eleição quanto à forma de
governo corresponde ao plano concreto, segundo a particularidade de cada comunidade
políti
política.[
ca.[ xxx
xxvi
viii ] Por isso, se é de direi
direito
to natural que a soberania políti
política é – in abstracto
– uma
um a soberania
soberania popular,
popular, enquanto poder que pertence à totali totalidade da comunidade
comunidade civi
civill,
também é mister reconhecer, segundo a mesma razão natural, que a forma concreta de
organização do poder seja definida pela comunidade mesma.
Resgatando os regimes tradicionais, Suárez demonstra que a monarquia, a
aristocracia e/ou a democracia são igualmente aceitáveis enquanto formas políticas da
república. Todas podem ser eleitas individual ou sincreticamente, constituindo, assim,
um sistema ora unitário ora misto de governo. A institucionalização de uma forma
políti
política
ca pela
pela repúbli
república simbol
simboliiza o fato evidente
evidente de que a soberania
soberania reside
reside na própria
própria
comunidade política, que a recebe do próprio Deus.
A teoria suareziana do principatus politi cus representa o ponto culminante da tese
princi patus politicus
católica sobre a origem e a natureza da autoridade política. Não é fruto único e exclusivo
do gênio teórico de Suárez, mas de uma longa tradição herdada dos pensadores gregos,
romanos e medievais que desemboca em Salamanca e contamina a produção intelectual
dos salmanticenses. Em Suárez, entretanto, ganha um escopo doutrinário formidável em
comparação com os antigos mestres dessa universidade. A grande marca do granadino
está em sistematizar todo o arcabouço notável da tradição e conferir-lhe um sentido
atual, aproximando as investigações teológicas e filosóficas dos temas práticos da vida
políti
política
ca e social
social de seu tempo. Rompe não só com a teoria teoria do direi
direito
to divi
divino,
no, como
também com qualquer resquício do que viria a ser pouco tempo mais tarde o
contratualismo de tipo hobbesiano.[ xxxviii ] Nesses dois tipos de justificação do poder
políti
político
co a autoridade
autoridade civil
civil é origi
originada no “contrato social”
social” ou por institui
instituição
ção divina
divina direta.

31
Enquanto a tese contratualista nega-se a aceitar a natural sociabilidade da pessoa como
condição para a vida política,[ xxxix ] a teoria do direito divino se recusa a reconhecer a
inclusão do povo como sujeito jurídico e natural do poder. Assim, a base teórica do
Estado de natureza adotada pelo contratualismo leva a anarquia como premissa prévia
ao principatus politi cus, ao passo que a teoria do direito divino funda um sistema teo-
princi patus politicus
autocrático de poder, sustentado à moda das religiões políticas[ xl ] da antiguidade.[ xli
]
Para Suárez, a autoridade política tem no povo seu personagem central. Quem quer
que tenha recebido legitimamente o poder, o recebeu por direito humano e político, isto
é, por consentimento popular. A teoria da translação, exposta no livro III do tratado,
busca referendar a convicção
convicção de que a transferência
transferência direta
direta do poder para a autoridade
autoridade é
realizada pela comunidade civil; e a transferência indireta, por Deus. Se o contratualismo
nega a dimensão social da pessoa em sua antropologia filosófica, a teoria do direito divino
ignora o povo enquanto fonte do poder. Suárez introduz o povo como categoria de
direito natural, para invalidar qualquer uma dessas correntes. A primeira, posterior ao
próprio
próprio Suárez. A segunda,
segunda, contemporânea e atuante na vida vida e obra do autor.
Para ele, o povo é elemento fundamental de direito natural, sendo indispensável para
a ordenação constitutiva das relações sociais e políticas.[ xlii ]A teoria política de Suárez
se centra basicamente na compreensão de que a raiz da autoridade civil reside naquele
que detém o poder de decidir ou transferir, por direito natural, segundo sua necessidade
de conservação. Não há dúvida de que o poder procede de Deus. Porém, apenas sob o
ponto de vista
vista do direit
direitoo natural neg
negati
ativo.
vo. Sim,
Sim, pois
pois o próprio
próprio Deus transfere o poder
para a comunidade
comunidade civicivill e esta, enquanto detentora do poder civi
civill, pode transferi-l
transferi-loo a
outrem, seja uma pessoa, ou grupo, ou mesmo uma instituição, a fim de estabelecer a
autoridade política, necessária para sua própria conservação, de acordo com o direito
positi
positivo.
vo. Como afirma
afirma Rommen,
“o poder do Estado enquanto tal procede imediatamente de Deus. Seu sujeito jurídico-natural é a comunidade
civil em sua totalidade; mas unicamente segundo o direito natural negativo. Por conseguinte, pode ser cedido
voluntariamente pela comunidade e transferido a um indivíduo ou a um senado, e também pode ser quitado
por um motivo legítimo.
legítimo. Mas, em qualquer
qualquer desses casos,
cas os, o novo portador do poder o possui
poss ui por direito
direito
humano, e só indiretamente o recebeu de Deus. Indiretamente, porque, diretamente, o poder havia sido dado
por Deus a toda comunidade, a qual,
qual, por sua parte, o delegou
delegou para uma só pessoa (monarca)
(monarc a) ou um grupo
(aristocracia). Indiretamente, por outra razão ainda; porque Deus aprova essa translação por parte do povo e,
como causa primeira e universal, coopera a mesma e, em virtude da natureza da comunidade civil, a
sanciona e quer ser respeitado. Assim, pois, a teoria da translação se segue necessariamente da teoria que
considera toda a comunidade como sujeito jurídico-natural do poder do Estado.”[ xliii ]

O novo delegatário[ xliv ] do poder é legitimo portador enquanto recebe o poder da


comunidade, e serve a ela no cumprimento dos fins dados para sua conservação. É por
virtude do direito político que a autoridade se assenta institucionalmente na atividade de
mando. Não um mando ilimitado, mas exercido dentro do conjunto das condições
necessárias para a manutenção da comunidade civil. Suárez diz que “o poder civil,
sempre que se encontre em um indivíduo ou príncipe em virtude de um direito legítimo e
ordenado, procede do povo e da comunidade, e não pode, se sua possessão for justa,

32
adquirir-se de outro modo. (...) A razão é que esse poder, por sua mesma natureza,
radica diretamente na comunidade; por conseguinte, para que alguma pessoa possa
começar a exercê-lo como príncipe soberano, é necessário que o poder lhe seja
transferido pelo consentimento da comunidade”.[ xlv ]
Outro ponto central da teoria da translação reside na noção de pacto de sujeição. A
legitimidade da autoridade política, nesses termos, está na constatação de que o poder
reside na comunidade, e que o exercício do poder está limitado pelos parâmetros
sedimentados no pactum subjectionis
subjectioni s. É salutar afirmar que Deus aprova a delegação
popular,
popular, sendo o delegatári
delegatárioo – rei, imperador,
imperador, senado, ou qualquer
qualquer que seja a autoridade
autoridade
políti
política
ca – sustentado legi
legitimamente
timamente em seu cargo tanto por direito
direito humano como também
por direit
direitoo natural negati
negativo
vo ou indireto.
ndireto. A transl
translação
ação impõe que o portador do poder não
é livre para mandar, mas vinculado ao pacto originário firmado, segundo o qual exerce o
poder nos limites
imites traçados pela
pela própria
própria comunidade
comunidade no ato da transferência, governando
com a cooperação divina e social na missão de favorecer a distribuição e coordenação do
conjunto de condições para a realização do bem comum da república.
No ato de translação,
translação, forma-se o corpo políti
político,
co, integrado
ntegrado pela comunidade
comunidade e sua
autoridade, unidos com o objetivo de conservar o bem comum. O pactum subjectionis subjectioni s
dispõe o conjunto dos limites e fins do governo político. Nesse pacto, subsume-se não
apenas a cristalização de um contrato entre as partes do corpo político, senão também os
limites da autoridade, em vista da conservação da própria comunidade política. É nesse
sentido, portanto, que o pacto é a revelação da translação, sua constituição escrita
fundamental. É sub conditione
conditi one firmata que o governo exerce o poder e não por
instituição divina direta.
Como se viu, há dois momentos na constituição da sociedade política: primeiramente,
a comunidade civil; depois, a translação e a correspondente constituição da autoridade
políti
política.
ca. No primei
primeiro
ro caso, há um pacto de associação, segundo o qual se forma a
unidade comum entre os seres humanos. Por fim, o pacto de sujeição, em que a
autoridade vincula-se aos limites traçados pela comunidade soberana.
A limitação ocorre, em primeiro lugar, pelo respeito devido aos preceitos do direito
natural. Aqui, a dimensão política do direito natural aparece sob a forma do bem devido
à comunidade, ou melhor, do conjunto de bens relativos ao aperfeiçoamento da natureza
social dos seres humanos ali envolvidos. Apoiado no magistério da Igreja, Suárez utiliza
termos como bem comum e utilidade pública[ xlvi ] para designar o compromisso da
autoridade quanto ao cumprimento desses bens. Filosoficamente, o bem comum
representa o bem particular de cada pessoa naquilo que possui de universal, de maneira a
corresponder aos valores partilhados pelos membros da comunidade política. É aquela
fração presente na natureza humana, condizente com a sociabilidade e politicidade de
nossa natureza animal.
Além do aspecto social, o bem comum também alude ao plano espiritual, assumindo
a feição de conjunto das condições espirituais que favorecem a salvação das almas. Por
isso, simboliza o bem da comunidade naquilo que condiz com o aperfeiçoamento coletivo
dos seres humanos e ao bem de cada alma em particular, enquanto participante de uma

33
comunidade mais ampla denominada Igreja. A dupla face do bem comum tem o condão
de articular a ordem social à ordem celeste, mantendo cada esfera dentro de um âmbito
autônomo e particular, mas assumindo que a ordem espiritual é tributária da ordem
políti
política
ca na medida
medida em que esta é condição
condição para que os seres humanos possam, através
da vida social, alcançar a vida espiritual.
Para costurar essa idéia, Suárez evoca a separação escolástica das duas ordens de
representação: a Igreja, a quem cabe a jurisdição sobre os assuntos espirituais, e o corpo
políti
político,
co, cristali
cristalizado
zado na autoridade,
autoridade, a quem corresponde o cuidado
cuidado quanto aos assuntos
temporais. Não cabe à Igreja intervir em assuntos temporais, senão indiretamente,
quando a autoridade política não for capaz de perseguir o bem comum político. Por isso,
tal ingerência só é possível, de acordo com a perspectiva suarista, quando determinado
bem temporal tocar de forma diretadireta os bens espiri
espirituai
tuais.
s. A ing
ngerência
erência se justifi
justifica
ca em
virtude do bem comum, conforme se deduz da passagem do tratado De Legibus Legi bus exposta
a seguir:
“Com efeito, o poder do governo que reside nos homens procede diretamente de Deus, como ocorre com a
potestade espiritual,
espiritual, ou nasce
nasc e imediatamente
imediatamente dos próprios homens, como
com o sucede
suc ede com o poder puramente
temporal. Em ambos casos, contudo, essa potestade tomou assento em ordem ao bem comum da sociedade.
Portanto, no outorgamento das leis terá sempre que buscá-lo. A premissa menor, em sua primeira parte
referente à potestade espiritual, resulta evidente pela Sagrada Escritura. Porque os prelados se chamam
pastores
pastores em razão a que precisam dar a vida por suas ovelhas; e, administradores,
administradores, não donos;
donos; e ministros de
Deus,
Deus, não causas primeiras.
primeiras. Logo, no exercício do poder, estão obrigados a acomodar-se aos propósitos
divinos. Por outra parte, Deus busca fundamentalmente o bem comum dos homens mesmos. Logo, também
seus ministros têm o dever de servir a esse fim. Por isso na Sagrada Escritura recebem as mais severas
repreensões aqueles que abusam desse poder em proveito próprio. Quando os homens outorgam diretamente
a potestade, não cabe a menor dúvida de que não é para o benefício do príncipe, senão do bem comum
daqueles que a conferiram; daí que os reis se denominem ministros da comunidade. São, ademais, por
adição, ministros de Deus. (...) Hão de usar, portanto, esse poder em vista do bem da comunidade do qual e
para qual o rec eberam”.[ xlvii
xlvii ]

Para Suárez a sociedade é um organismo vivo[ xlviii ] cuja existência se organiza a


partir
partir de níveis
níveis estruturados em conformidade
conformidade com os fins.fins. Diversas
Diversas esferas e
competências se coordenam em direção a um fim excelente. Não obstante, há também
fins específicos, relativos aos níveis mais inferiores e intermediários, que por sua própria
natureza são subordinados ao fim mais excelente. Toda a sociedade humana existe em
razão de um fim. Todos os níveis intermediários possuem bens específicos, que se
subordinam a um fim último mais perfeito e cuja preservação é tarefa da Igreja. Porém,
a Igreja não mantém com as demais instituições sociais e políticas uma relação de
submissão, senão de harmonia, coordenação e inter-relação.[ xlix ] Então, se o corpo
políti
político
co cuida diretamente da esfera
e sfera temporal e, assim,
assim, do bem comum político,
político, cabe por
outro lado à Igreja a curatela da salvação das almas, objetivo eterno e, por isso, mais
excelente em comparação ao desenvolvimento da pessoa na história.[ l ]
Explicando o que é a potestade indireta da Igreja sobre bens temporais, Moliá
esclarece que “a potestade indireta é a mesma potestade espiritual da Igreja quando se
exerce sobre as coisas temporais por sua conexão com o fim espiritual. É o poder que
assiste a potestade superior (o Papa) para dirigir, apoiar e corrigir o poder inferior

34
(príncipes e reis) em ordem aos fins espirituais. Ou de outra forma: é a superioridade da
potestade que intenta um fim de ordem mais excelent excelentee sobre a potestade que persegue
persegue
um fim de ordem inferior, menos excelente e diverso, em virtude da conexão e
subordinação de fins”.[ li ]
Para Suárez, o corpo político não é subordinado ao Papa, mas uma unidade
representativa da ordem temporal, com natureza e autonomia derivadas da natureza
social e política do homem. A potestade da autoridade procede de Deus pela comunidade
civil – “sed potestas prelatorum
prelatorum non est a Deo mediante papa sed immediate,
immedi ate, et a
opulo eligente vel consentiente”,[ lii ] e não do Papa, diferentemente do que
pretenderam muitos
muitos teocratas na históri
históriaa da Igreja, argüi
argüindo sobre a potestade temporal
direta dos Papas.[ liii ]
O corpo político mantém uma autonomia frente à Igreja, constituindo-se em autêntico
organismo vivo e dinâmico na consecução do bem comum. Em razão dessa persecução,
a autoridade portadora do poder delegado não pode tiranizar, mas governar política e
socialmente a comunidade civil, ofertando o conjunto das condições para que seus
membros possam se realizar como seres humanos.
Percebe-se, assim, que em Suárez já há o esboço de um regime jurídico-político das
liberdades. A autoridade política é limitada por todos os lados, vinculada ao pacto de
sujeição, ao consentimento do povo, ao direito natural e, no terreno espiritual, aos limites
dados pela jurisdição eclesiástica. No livro III, Suárez apresenta as fronteiras da
soberania política, promovendo uma teoria incipiente das liberdades civis e políticas e
antecipando o que pouco mais tarde viria a ser o coração do constitucionalismo moderno.
[ liv ]
O principatus politi cus, assim, apresenta um prelúdio do que viria a ser a
princi patus politicus
representação política moderna, sustentada pela gênese institucional do Estado de Direito
e pela defesa e promoção das liberdades fundamentais. Não foi outra a finalidade de
Suárez senão contrapor-se às pretensões absolutistas de Jaime I quanto ao tratamento
dispensado aos católicos ingleses. Buscando tratar de um problema específico, todavia, o
autor acabou por oferecer à civilização um dos principais edifícios teóricos de promoção
da paz e defesa dos direitos humanos, formulando uma teoria jurídica promotora dos
direitos políticos e das liberdades fundamentais.

35
IV.
IV.
Apontamentos sobre a presente edição
A presente edição oferece a tradução de partes selecionadas da Defensio Fidei .
Apresenta apenas os capítulos dos livros III e VI que tratam, respectivamente, dos
fundamentos do direito político e eclesiástico das repúblicas e do primado do Sumo
Pontífice, bem como dos aspectos teológicos e civis do juramento de fidelidade. Ambos
os temas ocupam o posto de maior relevância na estrutura do tratado, pois tangenciam os
dois argumentos centrais da disputa entre a Santa Sé e o rei da Inglaterra. Os livros em
questão visam mostrar a ilegitimidade do tratamento conferido por Jaime I aos católicos
britâni
britânicos,
cos, particul
particularmente
armente quanto ao abusivo abusivo juramento de fidel fideliidade exig
exigido pelo
pelo
monarca em âmbitos que excediam sua jurisdição real, atitude sustentada por uma teoria
políti
política
ca cuja premissa
premissa estava em defender a instituinstituição
ção divi
divina
na direta
direta da autoridade
autoridade sem a
intermediação da sociedade e usurpando a jurisdição eclesiástica do Sumo Pontífice.
A Defensio Fidei , contudo, não se resume aos dois livros selecionados. Como já
mencionamos, é um tratado. Originalmente dividido em seis livros, expõe temas
teológicos e disputas eclesiásticas destinadas a provar a autenticidade da Igreja Católica e
de sua tradição. Suárez admite, já no proêmio, que não abandona o estilo escolástico de
exposição, preferindo o método da disputa para demonstrar os erros teológicos e
filosóficos do rei Jaime I expostos no Prefácio Admonitóri oe na Apologia.
Prefácio Admonitório
Na estruturação da obra, o granadinoranadino preferiu inici
niciar
ar pela
pela apresentação dos erros
anglicanos e descer, a partir daí, aos problemas suscitados no caso inglês, terminando
pela
pela análi
análise do juramento de fidel fidelid
idade.
ade. Segui
Seguindo a tendência
tendência de seu tempo, Suárez
submete os temas concretos ao recurso teológico, tomando a teologia como o fecho
axiomático da abóbada analítica. Na Defensio Fidei , a teologia é o ponto de partida, de
onde se deduzem argumentos filosóficos, políticos e jurídicos, destinados a robustecer o
conjunto de provas e afirmações, tendo em vista a solução da disputa.
No primeiro
primeiro livro,[ lv ] Suárez demonstra que o cisma cisma ang
angllicano não pode ser
escusado de heresia e infidelidade à fé católica. Afirma que o rei usurpou o título de
defensor da fé, mostrando que tal ato carece de fundamento jurídico e teológico. Disso,
conclui não ser a seita anglicana fundada na verdadeira fé de Cristo.
No segundo
segundo livro,
livro, exp
expõe
õe que os artig
artigos impugnados
mpugnados pelopelo rei Jaime
Jaime I são antig
antigos e
católicos, o que o torna praticante de heresia segundo esta confissão de fé.
No terceiro, argúi
argúi sobre o direit
direitoo e o primado
primado do P ontífice,
ontífice, provando que não
praticou
praticou a usurpação de jurisdi
jurisdição
ção aleg
alegada
ada pelo
pelo monarca. Ademais, tece argumentos
argumentos que
comprovam a ilegitimidade da doutrina do direito divino, contrária à teoria católica sobre
a origem e a natureza do poder político.
No quarto, trata do direi
direito
to de imunidade
munidade das pessoas eclesieclesiásti
ásticas
cas contra a indevida
ndevida
ingerência dos reis temporais no âmbito dos assuntos atinentes à Igreja.
No quinto,
quinto, exp
expõe
õe razões sobre o combate espiri espiritual
tual do Anticrist
nticristoo contra a Sede
Apostólica, bem como as leviandades de seu oficio.
Por fim, no sexto e último livro discorre acerca das vicissitudes do juramento de
fidelidade e de sua fundamentação jurídica e eclesiástica.

36
Optamos pela seleção dos livros III e VI por serem suficientes para o correto
entendimento dos problemas cruciais levantados na disputa. Ambos focalizam as teses
centrais dos ataques de Jaime I contra a Igreja Católica e a defesa da Santa Sé contra os
erros anglicanos. Tal opção não inutiliza os demais livros do tratado. Pelo contrário. A
riqueza de detalhes em cada um deles é notável. Porém, frente aos impeditivos de
patrocinar
patrocinar a tradução completa,
completa, fomos impeli
mpelidos a selecio
selecionar
nar as partes mais relevantes
relevantes
da obra, oferecendo ao leitor as considerações mais importantes sobre a disputa.
A tradução que ora se almeja para a língua portuguesa introduz em nossa cultura
calejada de modernismos um dos monumentos de nossa civilização, permitindo ao
públi
público gaúcho e brasil
brasileiro
eiro o acesso a um dos tratados de apolog
apologéti
ética
ca mais eficazes
eficazes da
história da Igreja católica. E, como toda obra do século XVII, o espírito político
predominante
predominante permite-nos
permite-nos dizer,
dizer, sem pestanejar,
pestanejar, que trata-se de um autêntico
autêntico tratado de
teologia política.
Agradecemos imensamente ao editor-chefe da Editora Concreta, Renan Martins dos
Santos, que aceitou tornar o sonho deste humilde coordenador editorial uma realidade,
topando buscar patrocínio para a publicação deste monumento da civilização ocidental.
Agradecemos também aos mais de 300 colaboradores-patrocinadores que possibilitaram
a concretização do projeto, e que têm por isso a honra de serem os primeiros leitores a
colocar as mãos neste livro. Igualmente, somos gratos ao tradutor Luiz Astorga pela
exímia competência no trato de um autor tão profícuo e erudito, realocando o sentido e o
espírito da obra diretamente do latim para o português, conservando o espírito
apologético e cirúrgico do granadino. Finalmente, agradecemos ainda ao co-tradutor
Tiago Gadotti, cujo esforço e dedicação foram de vital auxílio na produção desta obra.

[ i ] Coordenador editorial do selo Salamanca da Editora Concreta, professor de Filosofia do Direito da UFRGS,
Doutor e Mestre em Direito pela USP, e membro do Conselho editorial da revista Communio.
Communio .
[ ii ] Empregamos o termo "constituição" no sentido latino – constitutio –, buscando significar a fundação da
ordem política concreta. A partir do século XVIII o termo "Constituição", com inicial maiúscula, passou a
designar a Carta Política fundamental dos Estados Liberais, isto é, um texto normativo dispondo sobre direitos e
garantias individuais e separação de poderes. A utilização da palavra "constituição", com inicial minúscula, tem
como objetivo simbolizar que as doutrinas políticas aludidas pretendiam ofertar explicações sobre a origem da
sociedade e do poder político, a saber, teorias sobre a formação originária da sociedade política.
[ iii ] MAXW EBER, Economia y Sociedad, 2ª ed., México, Fondo de Cultura, 1964, p. 170 e seguintes.
[ iv ] Sobre isso, é interessante observar o que diz Maravall: “La f orma política
polí tica del Estado moderno que no en
balde tiene en España una de sus más tempranas manifestaciones, llevaba a esta difusión de la idea de la razón
de Estado, en cuanto se produjera un primer enfrentamiento del Estado con sus necesidades operativas. Esto es
lo que había visto Maquiavelo, sin acertar a darle nombre, y de ahí que la naturaleza conflictiva del poder
olítico quede claramente revelada en él. Todos tienen que practicar, en medio de las tensiones que la nueva
orma política del Estado provoca – y que se manifestarán en el fenómeno nuevo de las constantes guerras
interestatales –, esa especie de maquiavelismo de receta, que se hace común en la época y que se integra en el
cuerpo de doctrina de la razón de Estado”.
Estado”. JOSE
OSE A NT ONIO M ARAVALL , Estudios de historia del pensamiento
español – serie tercera,
tercera, 2ª ed., Madrid, Cultura Hispanica, 1984, p. 61.
[ v ] ANT ÓNIO DE V ASCONCELOS, Escritos Vários – Volume II, 1ª ed., Coimbra, arquivo da Universidade, 1988, p.
169. Diz Vasconcelos que “foi na regência dos cursos de Segóvia que a fama de Suárez começou a dilatar-se por
toda a Espanha. Tratava os altos problemas da filosofia com tal largueza e sublimidade de vistas, e encarava-os
sob aspectos tão cheios de novidade, que os cadernos de seus discípulos, onde se continham as lições por ele
ditadas, foram procurados com empenho: deles se extraíram cópias, que em breve se difundiram por toda a
parte. Além disso, a sua aula era freqüentada por numerosos ouvintes,
ouvintes, entre os quais
quais se contavam os mais

37
notáveis religiosos de todos os Conventos e Colégios de Segóvia. Não admira pois, que a inveja aguilhoasse os
ânimos de alguns, até então apontados como abalizados mestres; misérias da vaidade humana! A novidade das
idéias e opiniões sustentadas por Suárez foi o pretexto que se tomou para o ataque”.
[ vi ] Em uma época de transição entre a primeira e a segunda escolástica, mergulhado na atmosfera do barroco
espanhol e amplamente influenciado por mestres de Salamanca como Domingo de Soto e Francisco de Vitória,
Suárez foi injustamente acusado de simpatia por filosofias reativas ao escolasticismo tomista, como o pensamento
de John Duns Scotus e Guilherme de Ockham. O próprio Suárez em diversas passagens de suas opera omnia
esclarece ser um fiel discípulo de S. Tomás de Aquino, ainda que com ele não compartilhe alguns pontos
específicos.
[ vii ] Op. cit.,
cit., p. 162.
[ viii ] Op. cit.,
cit., p. 182.
[ ix ] No diário
diário de Vasc
Vasconcelos,
oncelos, consta
cons ta que entre 1601 e 1602, na regência regênc ia da cadeira de Direito,
Direito, “Suárez
cumpriu pontualmente, não dando falta nenhuma. As suas lições este ano versaram sobre as matérias de legibus. legibus.
Na escolh
esc olhaa deste assunto
ass unto influíra
influíra o Reitor
Reitor da Universidade,
niversidade, Afonso Furtado de Mendonça,
Mendonça, que, sendo doutor
canonista e reconhecendo a conveniência de ser aquele assunto estudado e explorado pelo grande talento de
Suárez, lhe pediu que para ele dirigisse as suas atenções e publicasse depois um livro sobre a matéria. Assim se
fez. O tratado De Legibus foi o objeto das preleções de Suárez durante este ano e o seguinte; o livro, que é uma
verdadeira obra-prima, saiu do prelo em 1612 apenas”. Op. cit., cit., p. 245.
[ x ] Sobre isto, sugerimos três obras: 1) LUIS R EIS DE T ORGAL, Ideologia política e teoria do Estado na
restauração,
restauração, 1ª ed., Coimbra, Universidade, 1981, vol. 1; 2) CARLOSS TOETZER, Las raíces escolásticas escolásticas de la
emancipación de la América Española,Española, 1ª ed., Madrid, CEPC, 1982; e, por fim, o nosso trabalho: 3) MARCUS
PAULO R YCEMBEL B OEIRA, A Legitimação do Imperador segundo a Constituição do Império de 1824:
undamentos e translação,
translação, tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em
maio de 2012, disponível na Biblioteca da FADUSP.
[ xi ] Hubeñak nos diz que “Isabel [Elizabete] publicou em 15 de julho de 1580 um edito pelo qual todos (...) os
esuítas que se encontrassem livres – ou ocultos – no reino deviam abandoná-lo dentro de 40 dias, exceto se
urassem a obediência anti-romana. Pouco mais tarde, por outro edito, proibia o ingresso na Ilha aos jesuítas
alegando que ‘somente iam à Inglaterra para instigar ao povo contra seu soberano’, advertindo que ‘qualquer que
desse ouvidos aos jesuítas, seminaristas e curas católicos devia considerar-se como faltante e cúmplice de
traidores, e castigado como tal’”. FLORENCIOH UBEÑAK, "La Defensio Fidei en el contexto histórico-ideológico de
su época", in La Gravitación
Gravi tación de la
l a Ley según Francisc
F ranciscoo Suarez
Suarez,, 1ª ed., Navarra, Eunsa, 2009, p. 149.
[ xii ] V. prólogo do livro VI nesta edição, p. 181.
[ xiii ] Com base em Sanders, o próprio Suárez aduz que “ela, sendo mulher, ou tinha temor ou pudor de usurpar
o nome de cabeça da Igreja, que Henrique arrogara a si, e por isso mudou o nome para soberana soberana governadora.
Porém na realidade não havia diferença senão no nome", conforme p. 181.
[ xiv ] FLORENCIOH UBEÑAK, op. cit., cit., p. 150.
[ xv ] J UAN DE M ARIANA, De Rege et Regis Institutione, Institutione, in Obras completas do Padre Juan de Mariana
(Biblioteca de Autores Españoles), 1ª ed., Madrid, Rivadeneyra, 1854, pp. 481-2. Tradução livre do coordenador
editorial.
[ xvi ] V. prólogo do livro VI nesta edição, pp. 182-3.
[ xvii ] V. prólogo
pr ólogo do livro
livro VI nesta
nes ta edição, p.
p . 185.
185 .
[ xviii ] O próprio Suárez ensina que “em nenhum dos dois breves pontifícios encontra-se uma repreensão de tal
uramento, nem pode o rei alegar algum autor católico que julgasse que tal tipo de juramento não condiz com a fé
católica. Por isso, é em vão que se esforça o rei, em sua Apologia, Apologia , para provar pelas Escrituras, concílios e
Padres que se deve aos reis obediência civil em consciência, e que é lícito o juramento pelo qual se a promete,
porque todos confessamos
confes samos que isto é não apenas verdadeiver dadeiro,
ro, mas também dogma c atólico.
atólico.”” V.
V. cap. I do livro VI
desta edição, p. 190.
[ xix ] P. 47 desta edição.
[ xx ] Carta do rei Filipe III de Espanha ao professor Francisco Suárez S.J., lente de Leis e Cânones da
Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra. Publicada por ANT ONIO DE V ASCONCELOS, Escritos Vários,p.
274. Note-se que a redação exarada acima foi mantida na língua castelhana tal como conhecida ao tempo do
reinado de Filipe III.
[ xxi ] A doutrina pactista tem origem medieval. O tipo de representação política característico do período era o
mandato, ou seja, um acordo entre o titular do poder e seu mandatário, que o exercia em seu nome. Todavia, na
era moderna, a transição do mandato particular e bilateral para o terreno da filosofia política se tornou comum. O
pacto passou a ser usado para explicar explicar a origem da socie soc iedade
dade e os limites
limites da soberania, ampliando
ampliando o raio de

38
abrangência do pacto, como também sua importância para a narrativa social. Pacto, nesse sentido, simboliza o
acordo fundamental entre os membros de uma comunidade e, assim, a origem do convívio humano. Suárez
emprega o termo com esse significado, embora não reduza a origem da sociedade política ao pacto em si, senão
que o submete ao direito natural e à criação da humanidade segundo a teologia católica.
[ xxii ] P. 234 desta edição.
“Omnis anima potestatibus sublimioribus subdita sit. Non est
[ xxiii ] O texto original da Bíblia Nova Vulgata diz: “Omnis
enim potestas nisi a Deo; quae autem sunt, a Deo ordinatae sunt”.
[ xxiv ] P. 65 desta edição. A redação original dispõe: “Praeter rationem sumptam ex f ine et ex necessitate necessitate huius
otestatis, iustitiam eius ex illius origine ostendere necesse est. Propter quod addimus principem politicum
otestatem suam a Deo ipso recipere”.
recipere”.
[ xxv ] P. 66 desta edição. Redação original a seguir: “Primo, quia omnia quae sunt de iure iure naturae, sunt a Deo ut
auctore naturae; sed principatus politicus est de iure naturae; ergo est a Deo ut auctore naturae”.naturae”.
[ xxvi ] Como se viu anteriormente, foi em sua The trew law of free monarchies que Jaime I sustentou sua tese
sobre a origem do poder segundo instituição divina direta – origem de direito divino –, contra a posição da Igreja
Católica – em especial àquela sustentada pelo cardeal Belarmino – segundo a qual o poder é de direito natural,
tendo sua origem em Deus, mas sua origem próxima na comunidade civil, de onde procede diretamente, sendo
apenas indiretamente derivado do Criador.
[ xxvii ] A posição de Jaime I intensifica o conhecido conflito entre a autoridade papal e o poder real. Segundo
uma interpretação contrária à posição católica, a atitude protestante de ruptura com a autoridade papal deve-se à
invasão operada por alguns Papas na esfera temporal. Assim, os dois reinos reduziam-se à espada temporal, no
sentido de preservar a esfera dos assuntos políticos da interferência indevida do papado. Nesse sentido, ver
EVELYNEP ISIER, História das idéias políticas,
políticas, 1ª ed., São Paulo, Manole, 2004, p. 42 e seguintes.
[ xxviii ] P. 69 desta edição.
[ xxix ] P. 70 desta edição.
[ xxx ] P. 72. A redação original tem o seguinte teor: “principatus politicus poli ticus sit immediate a Deo, et nihilominus
regibus et senatibus supremis non a Deo immediate, sed ab hominibus commendatus sit”.
[ xxxi ] Ibidem.
Ibidem. O texto latino diz: “suprema
suprema potestas civ ilis, per se spectata, immediate quidem data est a Deo
hominibus in civitatem seu perfectam communitatem politicam congregatis”.congregatis”.
[ xxxii ] P. 74. Afirma Suárez que: “quia “quia non inter populum et Deum medium posuit, sed inter regem et Deum
voluit populum esse medium, per quod rex talem accipit potestatem” potestatem” [“pois não postulou nenhum intermediário
entre Deus e o povo; ao contrário, quis que entre o rei e Deus fosse o povo o intermediário pelo qual o rei recebe
tal poder”].
[ xxxiii ] Suárez, apoiado na tradição e concordando com Santo Tomás de Aquino e Domingo de Soto, como ele
mesmo cita, define a razão natural como uma faculdade da natureza racional para “discernir entre as obras que
são convenientes ou não para a natureza”. E completa dizendo que a natureza racional é a “mesma lei natural que
ordena ou proíbe a vontade humana quanto ao que deve fazer por direito natural”. FRANCISCO S UÁREZ, De
Legibus ac Deo legislator
l egislatoree, 1ª ed., Madrid, CSIC – Corpus Hispanorum de Pace, 1974, Vol. II, V, caps. 8-9, p.
66. A redação original é exposta a seguir: “Est ergo ergo secunda sententia, quae in natura rationali duo distinguit:
unum est natura ipsa, quatenus est veluti fundamentum convenientiae vel disconvenientiae actionum humanarum
ad ipsam; aliud est vis quaedam illius naturae, quam habet ad discernendum inter operationes convenientes et
disconvenientes illi naturae, quam rationem naturalem appelamus. Priori modo dicitur haec natura esse
undamentum honestatis naturalis. Posteriori autem modo dicitur Lex ipsa naturalis, quae humanae voluntati
raecipit vel prohibet quod agendum est ex naturali iure”. iure”.
[ xxxiv ] FRANCISCO DE V ITÓRIA, Relectio de Potestate Civili Civil i, 1ª ed., Madrid, 1765, p. 119 e seguintes, trecho
citado por Suárez na edição aqui cotejada, na nota 62, p. 77.
[ xxxv ] Dentre os autores citados por Suárez, figuram, além do próprio Vitória, Alfonso de Castro, cardeal
Tomás Caetano, Domingo de Soto, João Driedo de Turnhout, Aristóteles, S. Agostinho, Tertuliano, S. Irineu, S.
João Crisóstomo, Orígenes, S. Gregório Nazianzeno, dentre outros.
[ xxxvi ] Suárez defende que a comunidade perfeita é aquela que se constitui em um verdadeiro corpo político
governado através de uma autêntica jurisdição, com força coativa, oriunda de sua capacidade de estabelecer leis.
Portanto, é aquela comunidade capaz de se autogovernar politicamente, sendo auto-suficiente dentro desses
propósitos. Cf. De Legibus ac Deo legislatore
legislatore, 1ª ed., Madrid, CSIC – Corpus Hispanorum de Pace, 1971, vol. I,
VI, c. 21, p. 123. A redação original é exposta a seguir: “quia “quia omnis communitas perfecta est proprium corpus
oliticum et gubernatum per propriam iurisdictionem habentem vim coactivam, quae est legum lativa”. lativa”. Cf.
também nota 55, p. 72.
[ xxxvii ] “(...) a razão natural não determina como necessária a monarquia ou a aristocracia, tampouco o faz

39
quanto à democracia”, p. 75.
[ xxxviii ] THOMASH OBBES, Leviatã:
Levi atã: ou a matéria, f orma e poder de um estado eclesiástico e civil civi l, 3ª ed., São
Paulo, Ícone, 2008, p. 123 e seguintes. Sobre o contratualismo, diz Hobbes que enquanto a institucionalização da
comunidade entre os animais “é natural, entre os homens surge apenas através do pacto, isto é, artificialmente.
Não causa
caus a espanto saber que se requer algo algo mais, além
além de um pacto, para tornar constante
cons tante e duradouro seu
acordo, isto é, o poder comum capaz de fazê-los respeitar e dirigir ações para o bem comum”. E termina: “O
Estado é considerado instituído quando uma multidão de homens concorda e pactua, que a qualquer homem ou
assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja,
de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele,
deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens, como se fossem seus
próprios atos e decisões,
dec isões, a fim de poderem conviver pacifi pac ificamente
camente e serem
ser em protegidos dos restantes homens”.
[ xxxix ] HANNAH A RENDT , A condição humana humana,, 10ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001, p. 61 e
seguintes.
[ xl ] A expressão é de Voegelin, que afirma que as teocracias da antiguidade eram verdadeiras “religiões
políticas”. Nesse sentido, ver ERIC V OEGELIN, La politica: dai simboli alle esperienze
políticas”. esperienze,, 1ª ed., Milão, Giuffrè,
1993, p. 25 e seguintes.
[ xli ] Não se nega, nesse caso, que alguns sistemas políticos teoricamente baseados na tradição não tenham
caído em práticas absolutistas em suas experiências concretas. O que afirma-se aqui é, antes, o necessário
vínculo entre a experiência real das formas políticas e suas correspondentes filosofias subjacentes. Nesse sentido,
argumenta-se o quão influentes são as bases teóricas sobre os sistemas políticos a elas vinculados.
[ xlii ] Interessante notar que a idealização de uma comunidade política perfeita, sedimentada na noção de que a
comunidade política é – no plano abstrato – detentora da soberania em razão de uma vocação universal e
transcendental, já estava presente na obra tanto de Aristóteles – na figura da politeia – como também em Cícero
– no mito da patrios politeia.
politeia. Cf. ARISTÓTELES, A Constituição
Constituição de Atenas,
Atenas, 1ª ed., São Paulo, Hucitec, 1995, p.
23 e seguintes. A esse respeito, como exemplo, Aristóteles expõe com clareza sobre a legitimidade de Sólon
enquanto mediador e Arconte da pólis para a conservação da eudaimonia – da vida boa da comunidade política
grega. O Estagirita demonstra que Sólon veio a ser o líder do povo em seu tempo, e que, “com o acirramento do
conflito, e como se enfrentassem há já longo tempo, elegeram em comum Sólon como mediador e Arconte,
confiando-lhe o governo após ele ter composto aquela elegia” (p. 21). E mais adiante, quanto à possibilidade de
Sólon se tornar um tirano frente às duas agremiações políticas de Atenas, sustenta que ele “contrapôs-se a
ambos, e estando em seu alcance tornar-se tirano compondo-se com o lado por que optasse, preferiu incorrer na
hostilidade de ambos mas salvar a pátria e promulgar a melhor legislação” (p. 31). Dentro do quadro indicado,
percebe-se
percebe-s e que Aristóteles buscava,
busc ava, nesse particular,
particular, dizer
dizer que em Sólon verificou-
verificou-se
se – na história de Atenas –
uma atualização da comunidade política perfeita – ordem transcendente da boa pólis – no plano material da
comunidade política imperfeita – dos homens concretos; e que o fim dessa última é o de “ser se r a primeira”.
[ xliii ] HEINRICH R OMMEN, La teoria del estado y de la comunidad internacional en Francisco Suarez Suarez,, 1ª ed.,
Madrid, CSIC – Instituto Francisco de Vitória, 1951, vol. I, p. 299. Tradução livre do espanhol pelo coordenador
editorial.
[ xliv ] Posição contrária à qual sustentamos pode ser encontrada em ANDRÉ DE M URALT , La estructura estructura de la
ilosofia política moderna: sus orígenes medievales en Escoto, Ockam y Suarez, Suarez, 1ª ed., Madrid, Istmo, 2002, p.
155. Muralt entende que em Suárez não há, na translação, uma “delegação” de poder, mas uma “quase-alienação”,
em que o povo perde sua capacidade política ativa. Datamaxima venia v enia,, discordamos dessa posição. Entendemos
que em Suárez há uma autêntica “delegação”, conforme exposto aqui.
[ xlv ] FRANCISCO S UÁREZ, Opera Omnia – Tomus Quintus Complectens, Complectens, De Legibus III , 1ª ed., Paris, Editio
Nova, 1856, cap. IV,IV, nota 2, p. 184. A redação
redação origi nal é a seguinte: “potestatem civ ilem, quoties in
or iginal i n uno homine
vel principe reperitur legitimo et ordinario iure a populo et communitate manasse vel proxime vel remote, nec
osse aliter haberi ut iusta sit. (...) Ratio est quia haec potestas ex natura rei est immediate in communitate; ergo,
ut ista incipiat esse in aliqua persona tanquam in supremo principe, necesse est ut ex consensu communitatis illi
tribuatur”.
[ xlvi ] O termo utilidade pública foi amplamente utilizado pelos escolásticos de Salamanca anteriores a Suárez.
Francisco de Vitória utiliza o termo em profusão em suas Relectiones.Relectiones. A substituição da expressão bem comum
por utilidade públicaé uma amostra da flexibilidade etimológica corrente ante o predomínio da cultura moderna.
[ xlvii ] FRANCISCO S UÁREZ, De Legibus
L egibus I: de natura
nat ura legis,
legis, 1ªed., Madrid, CSIC – Corpus Hispanorum de Pace,
1971, VII, c. 5, p. 133. A redação original é exposta a seguir: “quia “quia potestas gubernativa, quae est in hominibus
vel est immediate a Deo, ut contingit in potestate spirituali, vel est immediate ab ipsis hominibus, ut in potestate
urê temporali, utroque autem modo talis potestas est praecipue data propter commune bonum communitatis.

40
Ergo
Ergo hoc bonum debet intendii ntendi in
i n legibus f erendis.
erendis. Minor
Mi nor quoad priorem
priorem partem de spirituali potestate est evidens
ev idens
in Scriptura. Nam propterea praelati vocantur pastores, quia animam suam debent ponere pro ovibus suis, et
dispensatores, non domini, et ministri Dei, non causae primariae. Ergo tenentur divinae intentioni conformari in
usu talis potestatis. Deus autem commune bonum ipsorum hominum principaliter intendit; ergo etiam ministri ad
hoc tenentur. Et ideo gravissime in Scriptura reprehenduntur qui hac potestate in suum privatum commodum
abutuntur. Quando vero potestas data est immediate ab ipsis hominibus, evidentissimum est non esse propter
rincipis utilitatem, sed propter commune bonum eorum qui illam contulerunt, et ideo reges ministri reipublicae
appellantur. Adde etiam esse ministros Dei (...) Debent ergo ea potestate uti in bonum reipublicae a qua et
ropter quam illam acceperunt”.
[ xlviii ] Inúmeros autores sustentam que Suárez tinha uma visão organicista do corpo político. Dentre esses,
podemos destacar
des tacar:: Elías
Elías de Tejada,
Tejada, Antonio
Antonio Molina
Molina Meliá,
Meliá, Antonio-En
Antonio-Enriquerique Perez Luño e Lucia
Luc iano
no Pereña Vicente.
[ xlix ] É inegável que até o século IX não havia nas relações entre a Igreja e os sistemas políticos uma definição
clara acerca das jurisdições, ainda que já existisse desde os primórdios da era cristã uma divisão institucional
entre autoridade espiritual e poder temporal.
tempor al.
[ l ] S. T OMÁS DEA QUINO, Do governo gov erno dos príncipes,
príncipes, 1ª ed., São Paulo, Anchieta, 1946, p. 101 e seguintes.
[ li ] ANT ONIO M OLINAM OLIÁ, Iglesia y Estado en el siglo de oro oro español: el pensamiento de Francisco Suarez
Suarez,,
1ª ed., Valencia, Universidad, 1977, p. 205.
[ lii ] "Ora, o poder dos prelados não procede de Deus por intermédio do Papa, mas de forma imediata, e do povo
enquanto elege ou consente", citação de JOÃO DE P ARIS in De potestate regia et papali, papali, apud JEAN L ECLERCQ,
Jean de Paris et l'ecclésiologie du XIIIe X IIIe siècle,
siècle, Paris, 1942, p. 235.
[ liii ] Trata-se do cesaropapismo.
cesaropapismo. Nesse sentido, ver NICOLASB OÉR, Relação entre entre a Igreja
Igreja e o Estado
E stado no f im do
século XIII
XII I e no início do século XIV nos escritos escritos de f ilósofos
ilósof os de Estado e de canonistas, São Paulo, Tese
(Doutorado em Educação), Universidade de São Paulo, 1972, pp. 2 e 3.
[ liv ] Diz Pereña que “a união política tem seu fundamento em um contrato humano”, contrato esse segundo o
qual os direitos dos membros da comunidade são mantidos, ainda que restringidos, frente à eleição de uma
autoridade, vinculada ao pacto constitutivo. E, assim, completa: completa: “os direitos e deveres do cidadão voltam a
untar-se com os direitos e deveres dos governantes. Liberdade da pessoa e soberania do Estado se conciliam na
concepção democrática do poder político que se personaliza através de um pacto constitucional (...). Sujeito
natural da soberania, a comunidade política entregou seu poder ao rei ou governante para garantia e proteção dos
direitos dos cidadãos. Essa defesa e proteção dos direitos pessoais e comunitários definem os limites do abuso do
poder.
poder. Os cidadãos têm direito direito a rebelar-se contra
contr a o tirano (...).
(.. .). Porque o governante, como qualquer
qualquer cidadão,
tem o dever de respeitar e não violar o direito dos demais. Os direitos individuais se convertem em direitos civis e
políticos
políticos porquanto conservam
cons ervam o próprio direito
direito dos outros. A concepção
conc epção patrimonial
patrimonial do poder político
político (...)
(.. .) dá
passo a uma conc epção essenc ialmente ialmente democrática (.. .)”. LUCIANO P EREÑA V ICENTE, Estudio preliminar
democrát ica (...)”. preliminar y
edición critica bilíngüe ao De Legibus III – De civile potestate, potestate, Madrid, Instituto Francisco de Vitoria, 1974, p.
xxii.
[ lv ] Para um brevíssimo resumo dos livros pelo próprio Suárez, v. o Proêmio desta edição, pp. 53-54.

41
NOTA DO COORDENADOR EDITORIAL

Na presente edição da Defensio Fidei procuramos conservar com a máxima


máxima acuidade
o texto original, cotejando-o com as edições de Nápoles e com as traduções para o inglês,
francês e espanhol.
espanhol.
Igualmente, inserimos algumas notas explicativas em passagens controversas da obra,
como também em temáticas que pudessem despertar no leitor dúvidas sobre problemas
de teologia política, procurando esclarecê-las com base em posições ratificadas entre os
comentaristas, como também apoiadas nos preambula
comentaristas, preambula fidei
fi dei .
Quanto às notas do próprio Pe. Suárez, seguimos as referências da Patrologia
Patrologia
Graeca e da Patrologia
Patrologia Latina, ambas editadas por J. P. Migne, como também as
publi
publicações de editoras
editoras antigas
antigas de Lyon, Veneza, Roma, bem como edições
edições do Corpus
Hispanorum de Pace, Taurinorum, Vivès, Iurisconsultorum, dentre outras. Além disso,
também utilizamos em profusão as Decretales
Decretalesde Graciano e Gregório IX, bem como as
Institutas de Justiniano. Por fim, pinçamos passagens da Suma Teológica de Santo
Tomás quando citadas no texto original e documentos conciliares em geral, além de
sumistas, juristas e comentaristas antigos, a fim de manter integralmente o propósito do
autor.

42
Defesa da Fé
Católica e Apostólica
contra os erros da seita anglicana

com uma resposta à Apologia ao Juramento de


Fidelidade e à Carta aos Príncipes Cristãos , do
sereníssimo
sereníssimo Jaime,
Jai me, rei da Inglaterra
Ingl aterra[[ 1 ]
[ 1 ] Por tal nome também se fez conhecer a Praefatio
Praef atio Monitoria
Moni toria (literalmente, Pref
Pref ácio Admonitório)
Admonitório) publicada
por Jai me I juntamente com a Apologia ao Juramento.
J aime Juramento. [Nota do tradutor; doravante, N. T.]

43
Aos sereníssimos
sereníssimo s reis
reis e príncipes,
prínc ipes, filhos
e defensor
defenso res da Igr
Ig reja
eja Romana
Roman a e Católica,
felicidade
felicidad e temporal
tempo ral e eterna
etern a
FRANCISCO S UÁREZ, DAC OMPANHIA DEJ ESUS

E
m livro editado recentemente, Jaime, rei da Grã-Bretanha, quase como ao toque
de um clarim amigo, convocou os reis e príncipes católicos a comungar de sua
religião. Fê-lo no intuito de que, mediante o comunicado de tal conselho, aqueles
que Cristo, Rei dos Reis e Senhor dos Senhores, armou com soberania para defender a
Igreja Romana – a qual Ele adquiriu com seu sangue – fossem incitados a atacá-la.
Mas com sua pluma o sereníssimo rei executou vã tentativa. Pois as portas do inferno
não prevalecerão contra ela, nem poderá a gelada tormenta do Aquilão remover aqueles
que o Cristo, pedra angular, fixou na rocha romana com o firmíssimo elo da verdadeira
piedade.
piedade.
Antes ele conspirasse – seguindo convosco as pegadas de seus antepassados, os mais
invictos dos reis – para adornar a majestade da Igreja Católica! Assim não seria, em zelo
pela
pela piedade
piedade verdadeira,
verdadeira, inferior
nferior àqueles
àqueles de quem é par em poder e comando. MaisMais ele
ele
desejaria contar-se entre os que a divina autoridade constituiu como seus alentadores, do
que entre aqueles que contra o Senhor e o Cristo foram inflamados pela loucura de sua
própria
própria impiedade.
impiedade.
Visto que, quando publicou seu livro, o índice de sua religião, não moveu guerra
contra a Igreja Católica valendo-se da majestade real que o abrilhanta, nem com o
estrondo e poder das armas – contra os quais não pode resistir um sacerdote de Cristo e
homem religioso – mas munido apenas da agudez da pena e do engenho humano, julguei
próprio
próprio de meu ofício e institui
nstituição
ção avançar à linha de combate, não para pôr em xeque o
esplendor e nome de tamanho rei (coisa que nem posso, nem desejo), mas para que as
névoas exaladas das fétidas covancas dos inovadores, com as quais se tenta obscurecer a
católica verdade, dissipem-se em ar e vapor, dissolvidas por raios de verdadeira
sapiência.
Para fazê-lo, roguei resolutamente a Deus, pai das luzes, para receber aquela luz que
é o conhecimento da sincera verdade, que de Cristo Senhor nos chega mediante os
apóstolos, que é exposta em vigílias pelos Santos Padres, e que deve ser seguida por
quem deseja manter-se no caminho reto do viver e do crer. Que inspire esta empresa
aquele Nume em cuja mão se encontram os corações dos reis.
E vós, reis e príncipes católicos do mundo, que com afeto fraterno desejais que Jaime
seja tal qual vós, recebei esta nossa obra sob vosso patrocínio, para defendê-la com
vossa autoridade. Pois é vosso o dito: fazemos nossas as coisas em que investimos
investi mos

44
nossa autoridade.[ 2 ] Que seja vossa então esta obra, para que, defendida pela
autoridade régia de vosso patrocínio e adornada por vosso brilho, vá a público com
segurança, surja ilustre no mundo, e não seja julgada indigna dos olhos de reis. Pois não
de outro modo senão sob vosso nome poderia esta nossa obra, na qual defendemos a
causa de Deus, opor-se ao livro do rei sereníssimo.
Não é outro o pensamento que me impele a dedicar-vos
dedicar-vos este nosso trabalho,
trabalho, com
solícita submissão de espírito – vós que sois herdeiros do poder e da piedade de vossos
ancestrais, e que vos ocupais religiosamente da tutela da Igreja Católica.
A outros este nosso labor pode servir de antídoto; já vós não necessitais de antídoto
(que é a suprema piedade de Deus) contra a loucura dos inovadores, cujos venenos
extraídos dos riachos do Estige não vos podem fazer mal, vós que, na virtude de Deus,
preservam-se sujeitos e unidos
unidos à verdadeira
verdadeira e católi
católica fé – tal como belíssi
belíssimos
mos membros
m embros
o estão à sua cabeça – pela unidade do Cristo Senhor e de seu vigário romano na terra, o
Sumo Pontífice. Enquanto vossa soberania se firma em Deus, que ela cresça para a
maior glória de vosso império e contribua para vossa eterna felicidade.
Coimbra, 13 de junho de 1613

[ 2 ] “Vosso”, isto é, de um imperador, como vós: J USTINIANO,Corpus Iuris Civilis, Codex Iustiniani , I, tit. XX,
Lyon, Hugues de la Porte, 1558-1560, col. 125.

45
Proêmio

1. Intenção do autor. 2. Resumo das asserções do sereníssimo rei Jaime.


3. Em que ordem devem ser impugnadas. 4. O método que se observará

1. INTENÇÃO DO AUTOR.[ 3 ] – Preferiri


Prefeririaa eu, como prefaciou Ambrósio em causa não
muito diferente, assumir a empresa de exortar à fé a encarregar-me do dever de sobre
ela disputar. [ 4 ] Porém, como o próprio direito natural exige e todas as leis divinas e
humanas postulam que, na defesa contra qualquer injúria, lute tanto quanto possível o
filho por seus pais, o sacerdote pela Igreja, o teólogo pela religião, o religioso pelas coisas
sagradas, e enfim todo e qualquer membro (não importa quão vil) pela sua cabeça, sou
por isso compeli
compelido a não desprezar este novo gênero de escrita.
Pois o sereníssimo Jaime, rei da Inglaterra, em sua Apologia e seu Prefácio Prefácio
dmonitório aos príncipes do mundo cristão, procura coagi-los todos, enquanto dá à sua
seita os nomes de “católica” e de “primitiva fé”, ao passo que à nossa verdadeira religião
impinge a desonra de desertor
des ertora; enquanto arroga para si o nome de Defensor da Fé
Católica , ao passo que marca com o sinal de tirania e apostasia anticristã o Pontífice,
Sumo Pastor de todos os fiéis e sua cabeça suprema sob Cristo; enquanto ataca muitos
mistérios e sacramentos de nossa fé, cuja impugnação perturba os corações da gente
piedosa.
piedosa.
E induziu a mim, no rastro de outros homens doutíssimos (embora eu lhes seja muito
desigual tanto em erudição quanto em eloqüência), a acercar-me deste trabalho; forçou-
me a descer a esta arena, à qual não estou acostumado. Não me intimidou a majestade
de sua dignidade régia; antes estimulou-me muito mais a verdade por ela impugnada, e
que não se ofusquem os olhos dos mais fracos com o brilho de tamanho nome.
Principalmente porque nesta causa parece ele haver-se despojado de seu esplendor de
realeza, quando, agindo mais como doutor que como rei, tenta defender a autoridade
soberana que usurpou para si sobre os assuntos eclesiásticos. Recordo-me de haver lido
em Ambrósio[ 5 ] [em carta endereçada ao Imperador Teodósio] que não é próprio do
imperador o negar a liberdade de falar, nem do sacerdote o não dizer o que sente.
ada nos reis é mais amável do que também amar a liberdade naqueles que são seus
súditos por obediência,
obediênci a, e nada no sacerdote
sacerdote é mais perigoso ante a Deus – e torpe
ante os homens – do que não expressar livremente o que sente. Pois está escrito:
“falarei dos teus testemunhos perante os reis, e não me envergonharei”.[ 6 ] Portanto,
movido por estas palavras divinas e sagradas, não por confiança em minhas capacidades,

46
[ 7 ] mas apegado à verdade e confiante na própria causa, em prol desta não temo falar
livremente.
Esforçar-me-ei, porém, em dizer apenas aquelas coisas que não possam ofender o
excelso ânimo do rei, a não ser que a luz que ostende a própria verdade ofenda olhos
maldispostos. Pois propus-me a elucidar a fé católica e protegê-la; não a combater a
majestade régia, mas antes – o que desejo – a servi-la na exposição da verdadeira e
católica fé.
2. RESUMO DAS ASSERÇÕES DO SERENÍSSIMO REI J AIME. – Portanto, alentado pelo favor
divino, procederei a expor a verdade da fé – ensinada pelo Cristo Senhor, legada
integralmente pelos apóstolos e Santos Padres e incorruptamente conservada – acerca de
alguns pontos principais tocados pelo sereníssimo Jaime. Mas, para que se abra uma via
mais ampla em direção ao que queremos dizer, e tudo se entenda mais facilmente, sugiro
que examinemos antes o escopo e o propósito do rei, e depois a ordem de resposta que
seguiremos.
Pois, ao considerar atenta e cuidadosamente a obra deste monarca, facilmente
concluí que o intuito essencial do autor é principalmente defender com todos os seus
esforços o juramento de fidelidade que recentemente instruiu seus súditos a prestar-lhe.
E por este motivo, empenhou-se em combater tanto os rescritos pontifícios quanto as
cartas do ilustríssimo cardeal Belarmino ao arcipreste.[ 8 ]
Depois, recebida a resposta sobre tais temas, o rei, irritado, agregou à sua Apologia
um Prefácio
Prefácio a todos os príncipes do mundo cristão, no qual procura exasperá-los contra
o Sumo Pontífice como contra um inimigo comum, usurpador do direito e do poder
régios, e movê-los a uma deserção geral da Igreja Romana – seja seduzindo-os com a
esperança de maior liberdade e de poder mais excelente, seja incutindo-lhes também o
temor de que, enquanto permitem com excessiva e indulgente leniência – é ele quem o
diz – um crescimento desmedido da dignidade papal, ou se apagaria absolutamente o
esplendor régio, ou se o obscureceria mais do que é justo. E, para que não se pense que
esta guerra se move contra o vigário de Cristo, chegou mesmo a tratar de persuadi-los de
que o Pontífice não é defensor de Cristo, mas o próprio Anticristo.
Finalmente, para que os verdadeiros filhos da Igreja, admirados com esta gigantesca
novidade, não a detestem, professa a si próprio como Defensor da Fé Católica, de modo
que, por tal razão, a seita que defende não pareça constituir uma heresia, mas apenas
uma discordância com o Romano Pontífice. E agrega ainda uma extensa profissão de sua
fé, pela qual tenta persuadir que permanece na fé primitiva e antiga, enquanto – diz ele –
renega apenas artigos novos e recentes, inventados pela Igreja Romana.
3. EM QUE ORDEM DEVEM SER IMPUGNADAS. – Portanto, para que procedamos na devida
ordem de doutrina que sirva tanto à claridade quanto à utilidade a que visamos nesta
obra, dividi-la-emos em seis livros, que responderão aos mencionados pontos, alterada
apenas a sua ordenação.
Pois primeiro mostrarei que aquele cisma – que nem o próprio rei nega em seu livro –
não pode ser escusado de modo algum de heresia e infidelidade totalmente opostas à fé

47
verdadeiramente católica, e que o título usurpado em seguida pelo sereníssimo rei, o de
Defensor da Fé Católica, não só foi assumido sem fundamento, mas é também
claramente contrário àquilo que ele professa. Tomamos este título como ponto de partida
de nosso discurso, não apenas porque, posto no frontispício da obra do rei, produz
admiração imediata, mas também porque nos dará oportunidade de estabelecer certos
princípi
princípios
os pelos
pelos quais faci
fa cillmente se pode conclui
concluirr que a seita
seita ang
angllicana não está fundada
na verdadeira fé de Cristo. A isso dedicaremos o primeiro livro.
Já no segundo, daremos prova de que todos os artigos da fé romana que o rei
impugna são antigos e católicos, e que artigos opostos não podem ser defendidos sem
aberta heresia.
heresia.
Em seguida, se passará ao terceiro livro, em que defendemos – conforme nossas
forças – o direito e o primado do Pontífice. Não pretenderia percorrer tudo que se
poderia
poderia dizer
dizer de sua excel
excelente
ente dig
dignidade
nidade e poder (pois(pois esta obra se exp expandi
andiri
riaa
indefinidamente), mas apenas expor que o Romano Pontífice não usurpou o poder dos
reis temporais, e sim reclamou apenas a dignidade de sumo sacerdote, da qual, como
diz Jerônimo, depende a salvação da Igreja,[ 9 ] e preservou seu direito, contra o qual
as portas do inferno nunca prevaleceram nem jamais jamais prevalecerão.
E, visto que o rei deplora freqüentemente em seu Prefácio Prefácio a isenção dos clérigos
quanto ao poder temporal e a jurisdição dos leigos, e lamenta que – como diz – uma
terça parte dos súditos tenha sido arrebatada dos reis temporais, adicionaremos um
quarto livro, no qual se demonstra o direito de imunidade das pessoas eclesiásticas.
No quinto
quinto livro, procuraremos comprovar não apenas que todas estas conjecturas
propostas acerca do Anticrinticristo
sto são levianíssi
evianíssimas,
mas, mas também que o Anticri nticristo
sto se
empenhará ao máximo na destruição da Sede Apostólica – e que por isso tal nome antes
conviria àqueles que esforçadamente tomam para si o ofício do Anticristo. Pois, como
disse Jerônimo a Dâmaso,[ 10 ] quem não junta contigo, espalha, ou seja: quem não é
do Cristo, é do Anticristo; e, como diz Bernardo[ 11 ] a Hildeberto, bispo de Tours,
sobre o Papa Inocêncio, os que são de Deus voluntariamente juntam-se a ele; quem
ermanece em oposição, ou é o Anticristo, ou é do Anticristo.
No sexto
sexto livro,
ivro, acerca do juramento de fidel
fideliidade exporemos
exporemos brevemente o que de
injustiça e de ofensa à Sé Apostólica se encontra no rei que o exige, e diligentemente
explicaremos o que ele implica de perjúrio ou infidelidade aos súditos que o prestem.
4. O MÉTODO QUE SE OBSERVARÁ. – Não abandonarei o estilo de proceder e disputar, nem
o método escolástico ao qual estou acostumado, que pelo próprio hábito já me é quase
conatural, ainda que ele comumente seja pouco agradável àqueles que de nós dissentem
na fé; talvez porque seja o método mais apto a abrir caminho das trevas à verdade, e o
mais eficaz para combater erros.
E, por isso, embora pretendamos usar principalmente os testemunhos das sagradas
Escrituras, dos concílios e dos Padres, examinaremos o peso dos argumentos e – tanto
quanto pudermos – iremos no encalço de sua força e eficácia. Reuniremos não apenas os
que procedem dos referidos fundamentos da fé, mas, conforme ditar a ocasião, também
os que partem da própria luz natural; não porque os mistérios de nossa sacrossanta

48
religião precisem deles para defender-se, mas porque podem demonstrar de modo nada
obscuro para quão longe se desviam de toda a prudência e da própria razão aqueles que
não temem dissentir da Igreja Católica Romana em assuntos pertinentes à salvação, nem
dela
dela separar-se.
separar -se.

[ 3 ] Na versão espanhola de J OSÉ OSÉ R AMÓN E GUILLOR (Madrid, Instituto de Estudios Políticos, 1970), as notas
laterais são incorporadas ao texto como subtítulos. Julgamos também útil o procedimento do tradutor inglês
PETERS IMPSON (Nova York, Lucairos Occasio, 2012) de reuni-las à cabeça de cada uma das principais divisões
desta obra. Na presente edição, somamos os dois procedimentos. [N. T.]
[ 4 ] De Fide,
Fide, I, Prologus, 4 (PL 16, 529B).
[ 5 ] Epístola 40, 2 (PL 16, 1101D-1102A).
[ 6 ] Salmos, 119:46.
[ 7 ] “Proprio
Proprio ingenio diff
dif f isus”.
isus”. In S. AMBRÓSIO, De Virginibus
Virginibus ad Marcellinam
Marcellinam,, I, 1, 2. (PL 16, 188A-B): “Et
quidem ingenio diffisus, sed divinae misericordiae provocatus exemplis, sermonem meditari audeo” audeo” [“E
certamente sem confiança em minhas capacidades, mas movido pelos exemplos da misericórdia divina, ouso
meditar sobre este tema”]. Depois prossegue o humilde Ambrósio, referindo-se ao episódio de Balaão: “Nam
volente Deo etiam asina locuta est” [“Pois, querendo Deus, até uma jumenta falou”]. [N. T.]
[ 8 ] Trata-se de George Blackwell, arcipreste da Igreja da Inglaterra entre 1597 e 1608. [Nota do coordenador;
doravante, N. C.]
[ 9 ] Dialogus contra Lucif erianos,
erianos, 9 (PL 23, 165A).
[ 10 ] Epístola 15, 2 (PL 22, 356).
[ 11 ] Na verdade, uma carta de Hildeberto a Bernardo: HILDEBERT
ILDEBERT O DE T OURS, Epístola 44, 1 (PL 171, 269A).

49
Parte I
A soberania
soberania civil
civil

(Livro III - capítulos I a IX)

50
LIVRO III
III

Da excelênc
exc elênciaia e poder
po der do
d o Sumo
Su mo
Pontífice
Pontífice sobre
so bre os reis tempo
temporais
rais

A
té agora expusemos em que heresias e graves erros incorreu a Inglaterra, uma
vez desprezado o fundamento da fé católica. Resta-nos tratar da origem de toda
esta derrocada, isto é, da devida obediência negada ao Sumo Pontífice e da
usurpação, pelo rei temporal, do falso título de cabeça soberana nos assuntos espirituais
de seu reino. Pois foi este o início de todo o cisma, e do cisma chegou-se à heresia,
como vimos acima.[ 12 ]
Mas não é necessário recordar novamente este triste e torpe assunto, que deu ocasião
a tamanha mudança e tão horrendo cisma: a verdade desta história se descreve com
clareza suficiente no início do primeiro livro; também o argumento evidente que ali se
apresenta – o de que aquele movimento anglicano não nasceu do Deus verdadeiro, mas
do príncipe das trevas – consta suficientemente inculcado naquele mesmo livro.
Portanto, deixando omitidas estas coisas que dizem respeito ao fato ocorrido, resta-nos
tratar, no presente livro, do direito do rei e do direito do Pontífice.
E, embora não se tenha movido nenhuma contenda ou controvérsia sobre o poder
absoluto do rei temporal, mas apenas sobre sua subordinação, dependência e devida
obediência ao Romano Pontífice, não obstante, para que todo o tema se entenda de
maneira mais precisa e satisfaçamos mais plenamente ao rei da Inglaterra (que em seu
Prefácio
Prefácio reclama de que o Pontífice injustamente usurpou dos reis tamanho poder, que à
vontade poderia mudar, conceder e tomar reinos[ 13 ]), explicaremos antes o que ensina
a fé sobre o cargo e a jurisdição dos reis temporais; em seguida, trataremos do primado e
do poder que, em razão de seu cargo, o Romano e Sumo Pontífice pode exercer sobre
quaisquer príncipes temporais. Uma vez observada a ordem doutrinal, apontaremos e
refutaremos – conforme haja oportunidade – os vários erros que, respectivos a este
ponto, o rei apresenta aqui e ali ali em seu Prefácio
Prefácio e sua Apologia; além disso,
satisfaremos a cada uma das objeções que ele indica. Isso, porém, sem que nos
percamos nos muitos
muitos outros pormenores que ainda ainda se poderiam
poderiam mencionar
mencionar sobre tal
tema.[ 14 ]

51
[ 12 ] Isto
Is to é, conforme
c onforme desenvolvido
desenvolvido nos livros
livros I e II, ausentes desta
des ta compil
com pilação.
ação. V.
V. apresentação,
apres entação, pp. 43-4.
[ 13 ] J AIMEI, Apologia pro pro Iuramento Fidelitatis,
F idelitatis, Praefatio
Praefat io,, Londres, Opera Regia, 1609, p. 5.
[ 14 ] A Apologia pro pro Iuramento Fidelitatis
F idelitatis foi publicada em conjunto com o PræfatioPræfati o Monitoria
Monit oria em 1609, por
ocasião da disputa entre o rei Jaime I e o cardeal Roberto Belarmino. O Pref Pref ácio foi endereçado ao imperador
Rodolfo II, aos reis e príncipes cristãos. Historicamente, pode ser entendido como um chamado à guerra contra a
Igreja Católica Romana, advogando a reivindicação dos direitos e privilégios das coroas e monarquias da Europa
sobre assuntos eclesiásticos, sujeitos à jurisdição do Sumo Pontífice. Em resposta, o cardeal Belarmino, em sua
Apologia Roberti S.R.E.
S.R .E. Cardinalis
Cardinalis Bellarmini pro pro responsione
esponsione sua ad librum Iacobi Magnae Britanniae Regis, Regis,
publicada
publicada em Roma no ano de 1610 e também dedicada dedicada aos monarcas , procurou
procur ou invali
invalidar
dar os argumentos de
Jaime I, rebatendo-os ponto por ponto. A obra foi dividida em dezessete capítulos e restou caracterizada pelo
gênero polemista, tal como a Apologia e o Pref Pref ácio do monarca inglês. Nela, Belarmino contrapõe as teses
ventiladas pelo rei, defendendo a jurisdição espiritual do Sumo Pontífice sobre bens eclesiásticos, como também a
incompatibilidade entre a atitude do rei e a tradição da Santa Sé quanto aos limites da autoridade política. [N. C.]

52
Capítulo I
Se o principado político[ 15 ] é legítimo,
e se procede de Deus
1-2. O erro de alguns judeus que não reconhecem nenhum principado humano. 3.
Primeira
Primei ra asserção: o principado
princi pado político, se devidamente
devi damente intr
i ntroduzido,
oduzido, é justo. 4.
Prova
Prova de nossa asserção mediante
medi ante argumento.
argumento. 5. Para o principado
pri ncipado político, basta
uma só cabeça mística. 6. Segunda asserção: o poder político do príncipe provém de
Deus. 7. A razão de nossa asserção. 8. Desfaz-se o fundamento do err e rroo afirmado
afi rmado no
princípio.
princípi o.

1. O ERRO DE ALGUNS JUDEUS QUE NÃO RECONHECEM NENHUM PRINCIPADO HUMANO. –Aqui
podemos citar
citar o antig
antigo erro de alg
alguns judeus que diziam
diziam que apenas Deus deveria
deveria ser
reconhecido como príncipe e senhor, pois pareciam rechaçar todo e qualquer principado
humano, e, por isso, recusar também qualquer reino político como algo contrário à
liberdade humana. Isso nos conta Flávio Josefo em suas Antigüidades
Antigüi dades Judaicas, livro
XVIII, capítulo 1, onde indica como autor deste erro a Judas Gaulanita, talvez assim
denominado em razão de sua origem; já no capítulo 2, chama-o Judas Galileu,
provavelmente
provavelmente por sua pátria. capítulo 2 da Guerra dos Judeus, chama-o
pátria. No livro II, capítulo
Simão Galileu. Nos Atos dos Apóstolos [5:37], parece fazer-se-lhe menção pelo nome de
Judas Galileu, do qual se diz: Depois deste, levantou-se
levantou-se Judas, o galileu, nos dias do
recenseamento, e arrastou o povo consigo; mas também este pereceu, e todos os que
lhe deram ouvidos foram dispersos. Desta sedição também nos recorda Josefo no local
á citado, e no livro VII, capítulos 29 e 31 da Guerra dos Judeus; alguns julgam tratar-se
daqueles galileus cujo sangue Pilatos mesclou aos sacrifícios que faziam, conforme
narra Lucas [13:1] e o expõem Ecumênio[ 16 ] e Anastácio de Nicéia[ 17 ] sobre a
Escritura.
Visto que o Cristo Senhor era galileu, e congregou discípulos da Galiléia, talvez por
isso houvessem tentado urdir-Lhe calúnia sobre tal erro, quando O interrogaram: Acaso é
lícito dar tributo a César? É isso o que pensa Agostinho,[ 18 ] ao comentar aquelas
palavras
palavras do Salmo
Salmo 118: Príncipes me perseguiram sem razão;[ 19 ] também Jerônimo,
no Comentário à Epístola a Tito, no início do capítulo 3.[ 20 ]
2. Não me está claro se aquele Judas Galileu referiu-se com sua sentença apenas ao povo
udeu, ou se a todos os homens. Pois poderia pretender que especialmente aos judeus
não caberia ser submetidos por imperadores pagãos, nem ter que lhes pagar impostos,
nem dever reconhecê-los como senhores, uma vez que aquele povo estava sujeito ao

53
regime particular de Deus. Talvez por isso, após os apóstolos, também os cristãos
tenham sido no início suspeitos deste erro ante os gentios, como o apontam Justino[ 21 ]
e Clemente de Alexandria,[ 22 ] e como explicaremos no capítulo III.
Se Judas se referiu absolutamente a todos os homens e a todos os príncipes
humanos, talvez tenha se fundamentado na dignidade natural do homem. Pois este foi
criado à imagem de Deus, de próprio direito, e submetido apenas a Deus; por esta razão,
não pareceria justo poder reduzi-lo à servidão ou à sujeição a outro homem. Assim, um
homem não poderia ser justamente compelido a reconhecer outro como seu príncipe e
senhor temporal; portanto, o principado político, que usurpa este domínio, não é legítimo
nem procede de Deus.
3. P RIMEIRA ASSERÇÃO: O PRINCIPADO POLÍTICO, SE DEVIDAMENTE INTRODUZIDO, É JUSTO. –
Porém a verdade católica é que o principado político, se devidamente introduzido, é
usto. Digo devidamente introduzido para excluir aquele poder usurpado pelo tirano, por
tratar-se de violência, não de verdadeiro e justo poder, uma vez que carece de justo
título. Sobre o que seja um justo título, discorreremos no capítulo seguinte.
A referida solução assim explicada encontra-se expressamente na Sagrada Escritura,
em Provérbios [29:4]: O rei justo estabelece a terra; também [29:14]: O rei que julga os
obres com eqüidade terá seu trono firmado para sempre. Em Sabedoria [6:24]: Um rei
prosperidade de um povo. Nestas passagens, portanto, e em outras
sensato é a prosperidade
semelhantes, presume-se abertamente que os reis temporais são verdadeiros e legítimos
príncipes
príncipes ou senhores. Por tal motivo
motivo temos em I Pedro
Pe dro [2:13]:
[2:13]: Por amor ao Senhor,
Senhor,
sujeitai-vos,
sujeitai -vos, pois, a toda ordenação superior, etc. E mais
ordenação humana, seja à do rei como superior,
abaixo [2:17]: Honrai ao rei. ei . Também São Paulo, em Romanos [13:1]: Toda a alma
esteja sujeita às potestades superiores. E pouco depois [13:5]: Não somente pelo
castigo, mas também pela consciência. Ora, ninguém está obrigado a obedecer por
consciência, a não ser a quem possui poder legítimo para ordenar. Além disso, dentre os
Padres ensinou esta verdade Clemente de Roma: sede sujeitos a todo rei e poder
naquelas coisas que agradam a Deus, assim como aos ministros de Deus e aos juízes
dos ímpios. E depois: ofereçam-lhes todo o devido temor, todo imposto, todo tributo,
etc. E conclui: esta é a lei de Deus.[ 23 ] E o mesmo se lê em passagem posterior.[ 24 ]
Também Basílio de Cesaréia, em suas Regras Morais , observa aquilo dito na Epístola a
Tito [3:1]: adverte que sejam sujeitos aos principados e poderes.[ 25 ] Jerônimo
também o confirma[ 26 ] com exemplos tomados dos seres brutos, dizendo que também
os animais mudos e os bandos de feras seguem seus líderes. Entre as abelhas há
rainhas, e os grous seguem um dos seus em ordem literata. Um só é o imperador; um
só é o juiz da nação, etc. E parece tê-lo tomado de Cipriano, de seu livro Sobre a
Vaidade dos Ídolos.[ 27 ]
4. P ROVA DE NOSSA ASSERÇÃO MEDIANTE ARGUMENTO. – Também dos seguintes
testemunhos pode coligir-se em primeiro lugar a razão dessa verdade, que se toma da
necessidade desse principado e de seu poder, e conseqüentemente de seu fim, que é a
conservação da república civil e humana. Pois o homem é propenso por natureza à

54
sociedade civil, e dela carece sobremaneira para a conveniente conservação desta vida,
como bem o ensinou Aristóteles, na Política , livro I, capítulos 1 e 2.[ 28 ] Que isso
também é ordenado por Deus para conciliar entre os homens a concórdia e a caridade,
expõe-no Crisóstomo em longo discurso (Homilia 34) sobre a Epístola aos Coríntios.[ 29
] Pois uma comunidade de homens não pode conservar-se sem justiça e paz, nem estas
podem preservar-se sem um governador que possua o poder do ordenamento e da
coerção. Portanto, na cidade humana é necessário um príncipe político que a mantenha
na prática de seu dever. Por isso diz-se em Provérbios [11:14]: Onde não há governador,
o povo se arruína; e em Eclesiastes [10:16]: Ai de ti, terra cujo rei é uma criança
cri ança, pois
não basta haver um príncipe, se este não é apto a governar. E como pena ameaça-nos
Isaías [3:4]: E dar-lhes-ei meninos por príncipes,
prínci pes, e efeminados ei narão. Logo, visto
efemi nados os reinarão
que a natureza humana não poderia ser destituída dos meios necessários à sua
conservação, não se pode duvidar que, pela natureza das coisas, e observado o direito e
a justiça naturais, na sociedade civil pode haver um príncipe político que detenha poder
legítimo e suficiente. Este discurso pode ver-se em Agostinho ( Proposições
Proposições sobre
sobre a
Epístola aos Romanos, n. 72)[ 30 ] e é imitado por Anselmo ( SobreRomanos 13),[ 31 ]
Primásio[ 32 ] e Lourenço Justiniano ( Sobre a Agonia Triunfal de Cristo, capítulo 12).[
33 ]
5. P ARA O PRINCIPADO POLÍTICO, BASTA UMA SÓ CABEÇA MÍSTICA. – Podemos demonstrar o
mesmo ponto mediante o exemplo natural do corpo humano, que não pode conservar-se
sem cabeça. Pois a humana república existe à maneira de um só corpo, que não pode
subsistir sem os vários ministros e ordens de pessoas que fazem as vezes de membros.
Donde muito menos poderia conservar-se sem um governador e príncipe, ao qual cabe
buscar o bem comum de todo o corpo.
O mesmo se explica por – digamo-lo assim – exemplos extraídos da arte, como o do
navio, que sem timoneiro necessariamente afundará. O mesmo vale para um exército que
carece de comandante, e exemplos similares. Também apontam nesta direção os
exemplos de outros animais, aduzidos por Cipriano e Jerônimo, que (e isto é digno de
nota) não apenas tendem a concluir que é necessário haver um príncipe na república,
mas que deve haver somente um. Pois, di-lo Cipriano, nunca a associação no mando
começou com confiança, nem terminou sem sangue. Ao contrário, fala-se de um
princi
principado
pado soberano, pois
pois sob ele pode haver vários
vários governantes em diversas
diversas partes do
reino, mas é necessário que todos se subordinem a um só, no qual repousa o poder
supremo. Pois, se fossem vários, não subordinados entre si nem a outro, de nenhuma
maneira se poderia fazer que a unidade ou a concórdia, assim como a obediência, fossem
preservadas com justiça
justiça e paz – como é suficient
suficientemente
emente evidente.
evidente. Mas também isto
acerca de um só príncipe se deve entender não quanto à pessoa propriamente dita, e sim
quanto ao poder, e conseqüentementequanto à pessoa, seja ela física, mística ou política.
Pois para a regência e preservação de uma sociedade civil humana não é absolutamente
necessário que haja só um monarca (pois há outros regimes de governo suficientes,
embora talvez não tão perfeitos, como veremos mais abaixo); quando falamos de um só
princi
principado
pado políti
político,
co, entenda-se um só tribunal
tribunal ou poder único,
único, quer ele exista
exista numa

55
pessoa natural, quer num conselho ou congregação
congregação de muitos
muitos numa só pessoa fictíci
fictícia,
a, tal
como numa só cabeça.
6. S EGUNDA ASSERÇÃO: O PODER POLÍTICO DO PRÍNCIPE PROVÉM DED EUS. – Além da razão
proveniente
proveniente do fim e da necessidade de tal poder,
poder, devemos
devem os mostrar sua justiça
justiça a partir
partir de
sua origem. Por este motivo, aduza-se que o príncipe político recebe seu poder do
próprio
próprio Deus. Também isso, falando-se
falando-se absolutamente,
absolutamente, é verdade de fé; pois
pois São P aulo
aulo
(em Romanos 13) agrega expressamente, em razão da obediência devida a tal príncipe,
que não há poder que não venha de Deus, e os que existem são estabelecidos por Deus.
E mais abaixo: Pois ele é ministr
mini stroo de Deus. Também em Provérbios [8:15] diz-nos a
sabedoria divina: Por mim
mi m reinam os reis. Também Sabedoria [6:1]: Ouvi, ó reis, etc., e
[6:3]: é do Senhor que recebestes vosso poder, é do Altíssimo a vossa soberania. O
mesmo consta em I Reis 10:9: Bendito seja o Senhor teu Deus, a quem aprouve aprouve elevar-
te ao trono de Israel;[ 34 ] também Daniel [2:37] disse a Nabucodonosor: O Deus do
céu deu-te o reino, a força e o império. Vemo-lo também em Jeremias [27:6].
É esta mesma a doutrina comum dos Padres que expuseram as passagens anteriores
de São Paulo, especialmente Crisóstomo[ 35 ] e Orígenes, nos seus Comentários à
Epístola aos Romanos, livro 9.[ 36 ] Também Ecumênio[ 37 ] afirma que, como a
igualdade em todos era coisa sediciosa, Deus agregou a potestade. Na homilia ao
Salmo 148,[ 38 ] acerca daquelas palavras: “Os reis da terra, todos os povos, príncipes e
todos os juízes da terra”, diz-se, entre outras coisas, que foi obra da providênci
providênciaa de
Deus o haver dividido
divi dido o universo entre
entre aqueles que gerem
gerem as magistraturas e aqueles
que os obedecem. Igualmente o diz Gregório de Nazianzo, em sua Oração 17;[ 39 ]
Epifânio, em Contra Arcônticos, 40,[ 40 ] entre outras coisas, diz do poder do príncipe:
não provém de outro lugar senão de Deus. Também Isidoro de Pelúsio afirma que o
império é formado e instituído por Deus.[ 41 ] Teófilo de Antioquia[ 42 ] igualmente diz:
adorarei a Deus, não a César, mas ciente de que César foi ordenado por Ele ; e mais
abaixo defende que o rei (ou César) deve ser honrado, e que se deve orar a Deus por
isso, pois o reino, ou império,
i mpério, assim como a administração
admini stração das coisas, foi confiado ou
demandado por Deus. O mesmo ensina extensamente Irineu,[ 43 ] ao expor neste
sentido diversos pontos da Escritura (especialmente São Paulo) e refutar outras
interpretações. E principalmente Tertuliano,[ 44 ] na obra A Escápula, II, capítulo 2: o
cristão não é inimigo de ninguém, muito menos do imperador, a quem também é
necessário que ele ame, reverencie, honre e deseje que se salve, por saber que o
imperador foi instituído pelo próprio Deus. Finalmente, diz Agostinho, na Cidade de
Deus: Não atribuamos o poder de conceder reino ei no e império
impéri o a ninguém senão ao Deus
verdadeiro, etc.[ 45 ] O mesmo se confirma na leitura dos Padres citados na asserção
anterior, e também em outros a que me referirei no capítulo seguinte.
7. A RAZÃO DE NOSSA ASSERÇÃO. – A razão de nossa asserção muito depende do modo em
que se deve crer que Deus dá tal principado e poder, o que devemos estudar no capítulo
seguinte. Portanto, agora a provaremos brevemente. Primeiro: todas as coisas que
pertencem ao
a o direito
direito natural provêm de Deus como autor da natureza. Ora, o principado
principado

56
políti
político
co pertence ao direito
direito natural. Logo, provém de Deus como autor da natureza.[
natureza. [ 46 ]
E assim esta asserção se fundamenta na precedente, pois, visto que este principado é
usto e legítimo, não pode senão ser condizente com o direito natural; e, sendo ele
necessário à conservação da sociedade humana – a qual a própria natureza humana
deseja –, por esta mesma razão ele decorre do direito natural, que exige tal poder.
Portanto, assim como Deus, que é autor da natureza, é também autor do direito natural,
assim também é autor desse primado e poder. Pois, como afirma o Filósofo, aquele que
dá a forma, dá as coisas que dela decorrem.[ 47 ]
Esta mesma ilação também se poderia fazer da seguinte maneira: como todo o bem
emana de Deus como de seu autor principal, consta em Tiago [1:17] que toda a boa
dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto; ora, o principado político é bom e honesto,
como já mostramos. Portanto, procede de Deus.
Finalmente: por esta razão, os reis terrenos são chamados na Escritura “ministros de
Deus”, como vimos. Logo, seu poder é ministerial com respeito a Deus. Assim, Ele
próprio
próprio é o autor princi
principal
pal de tal regime.
regime. E isso se diz
diz princi
principal
palmente
mente daquele
daquele poder que
o príncipe político tem para punir os maus, ainda que privando-os da vida, caso seja
necessário. Pois isso não poderia ser feito sem o assentimento divino, pois apenas Deus é
senhor da vida do homem, e a isso fez menção São Paulo, ao dizer (em Romanos 13:4)
que não traz a espada sem motivo, porque é ministro de Deus, e vingador para
castigar o que faz o mal. Daí também Agostinho[ 48 ] dizer que até o poder dos que
azem dano não procede senão de Deus; e cita ainda aquela passagem: Por mim reinam
os reis, etc.
8. D ESFAZ-SE O FUNDAMENTO DO ERRO AFIRMADO NO PRINCÍPIO. – Assim, facilmente se vê
a resposta ao fundamento do erro contrário – entendido no segundo sentido que se
afirmara acima – no qual se propunha algo contrário à verdade católica. Pois, por mais
que o homem tenha sido criado livre, não o foi sem capacidade e aptidão para, com
causa justa e afim à razão, poder sujeitar-se a outro homem. Certa sujeição é até natural
ao homem, quer consideremos o modo natural da geração, como o é a sujeição do filho
ao pai, quer consideremos certo pacto, como o é a sujeição da esposa ao marido. Assim,
posta a sociedade civil
civil, é natural a sujeição de cada uma das pessoas ao poder público
público ou
ao principado político, enquanto conseguinte à reta razão natural e necessária à
conveniente conservação da natureza humana. Por isso, esta sujeição nem repugna à
condição do homem, nem redunda em injúria a Deus, pois, embora o príncipe político
seja rei, legislador e senhor em seu próprio patamar, é-o de modo muitíssimo diverso e
inferior ao de Deus. Pois do homem apenas dizemos estas coisas por certa participação,
na medida em que as dizemos de um ministro de Deus; só a Deus elas convêm
princi
principal
palmente
mente e por essência.
Já se entendemos o erro no primeiro sentido acima afirmado, então não se opõe à
asserção católica por nós proposta. Pois, embora o povo judeu, por privilégio divino
particul
particular,
ar, fosse
f osse isento de sujeitar-se
sujeitar-se com justiça
justiça aos reis
reis pag
pagãos,
ãos, ainda
ainda assim
assim na própria
própria
república dos judeus pudemos encontrar legítimo principado político, como de fato
houve em seu tempo; e o mesmo principado se via também nos outros reinos e nações

57
gentias, e em cada príncipe soberano havia poder semelhante sobre os povos que lhe
estavam sujeitos.
Não obstante, também neste sentido
sentido a referida posição
posição careceu
carec eu de fundamento sólido
sólido
– mas agora
agora não temos condições
condições de ponderar,
ponderar, nem tampouco de examinar
examinar,, se foi com
ustiça e legitimamente que eles estiveram sujeitos aos romanos e tiveram de pagar-lhes
tributo, ou se o foram por injustiça e tirania. Pois tais questões nada têm a ver com o
tema presente.

[ 15 ] A expressão “principatus politicus”


politicus” pode ser entendida como a estrutura formal de uma comunidade
política,
política, constituída
cons tituída por suas instituições,
instituições, práticas e normas. A palavra palavra república,
república, originada do latim, foi
amplamente utilizada na Antigüidade para designar a mesma idéia. Outro termo normalmente empregado para tal
fim é pólis,
pólis, derivado da língua grega. [N.C.]
[ 16 ] Commentaria in Acta Apostolorum,
Apostolorum, c. 6 (PG 118, 122A).
NAST ÁCIOS INAÍTA, Quaestiones et Respons
[ 17 ] ANAST R esponsiones
iones,, q. 146 (PG 89, 799D-802A).
[ 18 ] Enarrationes in Psalmos[
Psalmos[2], 118, 31, 2 (PL 37, 1590).
[ 19 ] Salmos, 119:161.
[ 20 ] Comment. in epist. ad Titum 3, 3, vv. 1- 2 (PL 26, 590C-D).
[ 21 ] Apologia,
Apologia , I, c. 17 (PG 6, 354C-355A).
[ 22 ] Stromata,
Stromata, VI, 7 (PG 9, 275-284B).
[ 23 ] Constitutiones Apostolicae,
Apostolicae, IIV
V, c . 13 (PG
( PG 1, 826A).
[ 24 ] Constitutiones Apostolicae,
Apostolicae, VII, c. 16 (PG 1, 1010A).
[ 25 ] Moralia,
Moralia, reg. 79, c. 2 (PG 31, 859B).
[ 26 ] Epístola 125, 15 (PL 22, 1080).
[ 27 ] S. CIPRIANO DEC ARTAGO,De idolorum vanitate, v anitate, VIII (PL 4, 576B).
[ 28 ] 1253a2.
[ 29 ] S. J OÃOC RISÓSTOMO,InEpist. I ad Corhomil.
Corhomil. XXXIV
XXX IV, 3 (PG 61, 290).
[ 30 ] PL 35, 2083-2084.
[ 31 ] Na verdade, comentários de HERVÉ DEB OURG-DIEU , exegeta beneditino francês, contemporâneo de Santo
Anselmo: Comment. in Epistolas Pauli – In Epist. ad Rom, Rom, XIII (PL 181, 774-782).
RIMÁSIO DEA DRUMETO, In epist. ad Romanus,
[ 32 ] P RIMÁSIO Romanus, 13 (PL 68, 496).
[ 33 ] LOURENÇOJ USTINIANO,De Triumphali
Triumphali Christi agone,
agone, Opera omnia, Basiléia, Froben, 1560, pp. 462-467.
[ 34 ] No original, consta III Reis. Reis. À época da composição desta obra, eram quatro os livros dos Reis.
Posteriormente, os dois primeiros foram separados e se tornaram os dois livros de Samuel. Portanto, III e IV
Reis equivalem hoje a I e II Reis. Nesta tradução já incluiremos as referidas atualizações. [N. T.]
[ 35 ] InEpist. ad Rom.homil.
Rom. homil. XXIII
XX III, 3 (PG 60, 613-622).
[ 36 ] PG 14, 1226C-1227A.
[ 37 ] Comment. in Epist. ad Rom.,
Rom. , XXVII (Rom. XIII, 1-8) (PG 118, 575B-562B).
[ 38 ] S. J OÃOC RISÓSTOMO,Expositio in i n Psalmum CXLVIII
CXLVII I, 5 (PG 55, 491).
[ 39 ] Oratio17, 3 (PG 35, 976).
[ 40 ] S. EPIFÂNIO DES ALAMINA,AdversAdv ersusus Haereses
Haereses,, I, 3, 40, 4 (PG 41, 684).
[ 41 ] Epistolarum, II, 216, ad Dionysium(PG 78, 659).
[ 42 ] Ad Autolycum,
Autolycum, I, 11 (PG 6, 1042A).
[ 43 ] S. IRINEU DEL YON,Contra Haereses
Haereses,, V, 24 (PG 7, 1186).
[ 44 ] Ad Scapulam,
Scapulam, II (PL 1, 700A).
[ 45 ] De Civitate
Civi tate Dei,
Dei, V, 21 (PL 41, 167).
[ 46 ] A expressão “natureza” empregada por Suárez não condiz com a noção naturalista tão contestada por
Hume e outros filósofos modernos. Antes, natureza aqui corresponde à forma substancial, um dos sentidos
possíveis
possí veis de seu significado,
significado, conforme Aristóteles na Metaf ísica,
confor me ensina Aristóteles ísica, V, 4. Iss
I ssoo significa
significa que o direito natural
para o granadino
granadino não c oincide
oincide com a posiç
pos ição
ão estóica, segundo a qual o direito
direito natural aproxima-se de um direito
direito
da natureza. Quer dizer, sim, que o principado político é de direito natural por pertencer ao âmbito da criação
divina enquanto forma adequada para a comunidade humana. Por isso, não é possível afirmar que Suárez tenha
incorrido em falácia naturalista. [N. C.]

58
[ 47 ] De cariz tipicamente aristotélico e difundida largamente na escolástica tardia, esta sentença deriva mais
diretamente – se escolhemos ater-nos ao formato específico utilizado acima – dos comentários de Santo Tomás
ao Estagirita. Cf. De Caelo et Mundo,
Mundo, III, lect. 7, n. 8.: “aquele que gera (...), quando dá a forma, dá por
conseqüência o movimento natural, assim como todos os acidentes naturais que se seguem à forma”. Cf.
também Contra Gentiles,
Gentiles, III, c. 99, n. 4: “pois aquele que gera, que é o que dá a forma, dá todas as propriedades
que dela se seguem”. [N. T.]
[ 48 ] De Natura Boni contra Manichaeos,
Manichaeos, 32 (PL 42, 561).

59
Capítulo II
Se o principado político provém imediatamente de Deus,
isto é, se procede por instituição divina
1. O rei Jaime opina que o principado político procede imediatamente de Deus. 2-4. O
que se requer para que um poder seja imediatamente concedido por Deus. 5. A
soberania civi
c ivill só é conferida i mediatamente por Deus à comunidade perfeita.
Provamos
Provamos a primeira
pri meira parte da asserção com um primeiro
pri meiro argumento.
argumento. 6. Provamo-la
Provamo-la
com um segundo argumento. 7. Prova-se a segunda parte da asserção. 8. Objeção.
Solução. 9. De que modo se diz que a democracia procede do direito natural. 10.
Nenhum principado
pri ncipado político procede
procede imediatamente
i mediatamente de Deus. 11-12. Confirmação
Confi rmação
pelos Santos Padres. 13. Prova-se
Prova-se a conclusão medi ante a razão. 14. Demonstra-se a
mesma conclusão mediante exemplos. 15. Objeção. 16. A vontade humana pode
intervir de dois modos na transferência de um poder que emana de Deus. Primeiro
modo. 17-20. Segundo modo.

1. O REI J AIME OPINA QUE O PRINCIPADO POLÍTICO PROCEDE IMEDIATAMENTE DE D EUS. – A


questão do capítulo precedente foi tratada em razão desta que agora proponho. Nela não
tínhamos nenhuma contenda com o rei da Inglaterra, mas foi necessário apresentá-la
para que se possa entender o tema presente. Nele,
Nele, o sereníssimo
sereníssimo rei não só opina
opina de
modo novo e singular, mas também investe acerbamente contra o cardeal Belarmino, por
este haver dito que a autoridade não é concedida por Deus aos reis imediatamente, à
maneira como o é aos pontífices.[ 49 ] Afirmou Jaime, então, que o rei recebe seu poder
não do povo, mas imediatamente de Deus, e procura provar sua posição com alguns
argumentos e exemplos, cuja eficácia exporemos no capítulo seguinte.
2. O QUE SE REQUER PARA QUE UM PODER SEJA IMEDIATAMENTE CONCEDIDO POR D EUS. –
Mas, embora esta controvérsia não pertença diretamente aos dogmas da fé (pois dela
nada de definitivo se pode demonstrar a partir da divina Escritura ou da tradição dos
Padres), ainda assim deve ser diligentemente tratada e explicada, não só porque pode
gerar ocasião de erro em outros dogmas, mas porque a referida asserção do rei – da
maneira em que a assevera e quer que seja entendida – é coisa nova e singular e parece
haver sido elaborada para exagerar o poder temporal e atenuar o espiritual; e, finalmente,
porque julgamos
julgamos que a antig
antiga sentença recebida
recebida do ilustríssi
ilustríssimo
mo Bel
B elarmino
armino é verdadeira
verdadeira e
necessária. Para que o mostremos, é necessário antes esclarecer o que significa um poder
proceder imediatamente
mediatamente de Deus, ou – o que é o mesmo – Deus ser causa imediata mediata e
autor de um poder.

60
Pois, para que Deus seja causa próxima, requer-se especialmente que Ele confira tal
poder por sua própria
própria vontade; não basta que Deus atribua
atribua o poder à maneira de causa
primeira
primeira e universal
universal.. P orque, embora também possamos dizer dizer de certo modo que Deus
realiza ou provê imediatamente tudo aquilo que d’Ele decorre como de causa primeira,
quer sob razão de virtude próxima, quer como supósito imediato (como o distinguem os
filósofos), ainda assim este modo de realização não nos basta no caso presente, pois não
há nenhum poder que deste modo não provenha de Deus como causa primeira, e (por
conseqüência) imediatamentesegundo tal gênero.
Pois também assim aquele poder conferido imediatamente pelos homens, pelo rei ou
pelo
pelo Pontífice é dado por Deus enquanto
e nquanto causa primei
primeirara que influi
nflui imediatamente
imediatamente em tal
efeito e no ato da vontade criada, pela qual o poder é dado proximamente. Ora, tal poder
não se diz proceder imediatamente de Deus simpliciter
simpli citer , mas apenas secundum quid .[ 50
] Pois é concedido proximamente pelo homem, e dele depende.
Portanto, só se diz de modo absoluto que um poder é dado imediatamente por Deus
quando apenas Deus é causa próxima mediante sua própria vontade e dá per setal poder.
E é desta maneira que falamos no presente âmbito; do contrário seria frívola e inútil esta
disputa.
3. Além disso, cabe ainda distinguir dois modos pelos quais Deus pode e costuma
conceder um poder imediatamente, isto é, somente por sua própria capacidade e
vontade. Um deles é dando um poder que está conectado necessariamente, pela natureza
das coisas, a alguma natureza criada pelo próprio Deus. E isto pode considerar-se
facilmente nas faculdades físicas. Pois, criando Deus a alma, dá-lhe imediatamente
intelecto e vontade – uma vez que, embora estas potências fluam naturalmente da
própria
própria alma, apenas Deus cria cria a alma
alma imediatamente,
mediatamente, e por isso dizemos
dizemos que Ele
Ele
confere imediatamente as potências que dela derivam.
E o mesmo se dá – guardadas as proporções – no poder moral: o poder do pai sobre
o filho é um poder moral, e é conferido imediatamente por Deus enquanto autor da
natureza; não como um dom peculiar totalmente distinto da natureza, mas como
conseqüente a ela por necessidade, suposto o fundamento da geração. Igualmente, em
sentido inverso, a sujeição do filho ao pai é natural e procede de Deus imediatamente,
não por uma instituição peculiar acrescentada à natureza, mas como conseqüente por
necessidade à natureza racional assim produzida.
Do segundo modo, o poder é imediatamente dado por Deus per se (por assim dizer)
e por doação particular, não enquanto necessariamente conectada com a criação de uma
coisa, mas enquanto voluntariamente acrescentada por Deus a certa natureza ou pessoa.
Disto podemos dar exemplos como que físicos[ 51 ] e exemplos morais. Pois o poder
próxi
próximo para realizar
realizar mil
milagres é alg
algo como físico,
físico, mas Deus o confere a quem Ele
Ele quer,
quer,
não por algum dever, senão por determinação de sua própria vontade. Também o poder
de jurisdição dado a Pedro, por exemplo, era moral, mas Deus o conferiu imediata e
diretamente, per se. A razão da distinção, pois, não é outra senão que os próprios
poderes podem ser de variados
variados tipos
tipos e ordens, e que Deus é capaz de operar de dois
dois
modos: conaturalmente
conaturalmente e preternatural
pre ternaturalmente
mente (ou sobrenaturalmente).

61
4. Portanto, como pretende o monarca que Deus dá imediatamente aos reis o poder
temporal, deve-se ver se tal asserção poderia ser verdadeira de algum dos modos
mencionados. Antes, porém, devemos tratar do sujeito ao qual se diz que Deus daria
imediatamente esse poder, e para que governo (e qual tipo de governo) se julga que Ele o
daria. Pois pode-se considerar tal poder, ou na medida em que ele está (ou pode estar)
em todo o corpo político da comunidade ou sociedade humana, ou enquanto ele existe
(ou pode existir) nestes ou naqueles membros de uma mesma comunidade.
Ademais, pode-se considerá-lo ou de modo precisivo[ 52 ] e abstrato, ou determinado
a certa espécie de governo político. Ora, como consta na doutrina moral comum dos
filósofos, três podem ser os regimes da república[ 53 ] humana: o monárquico, com um
príncipe
príncipe soberano que corresponde a uma só pessoa; o aristocráti
aristocrático,
co, com um conselho
conselho
ou tribunal soberano composto de vários optimates; e o democrático, regido pelos
sufrágios de todo o povo. Estes são os três modos simples, mas deles podem também
compor-se outros que participem de dois deles, ou ainda dos três; tais são os chamados
governos mistos. Portanto, o principado político pode considerar-se, ou per se e
precisi
precisivamente,
vamente, como certo poder soberano de reger civi civillmente uma repúbli
república, com
abstração deste ou daquele modo de regência (quer simples, quer misto), ou enquanto
determinado
determinado a certa espécie de regime
regime dentre os que enumeramos.
Assim propostas e distintas as coisas, poderemos estabelecer – sem qualquer
ambigüidade e com razão evidente – de que forma o principado político de fato procede
imediatamente de Deus, mas não é dado aos reis e senados supremos imediatamente por
Ele, e sim pelos homens.
5. A SOBERANIA CIVIL SÓ É CONFERIDA IMEDIATAMENTE PORD EUS À COMUNIDADE PERFEITA.
P ROVAMOS A PRIMEIRA PARTE DA ASSERÇÃO COM UM PRIMEIRO ARGUMENTO. – Em primeiro primeiro
lugar, a soberania civil, vista em si mesma, é dada imediatamente por Deus aos homens
congregados numa comunidade ou sociedade política perfeita, não em razão de uma
instituição particular e como que positiva, ou de uma doação totalmente distinta da
produção da natureza humana, mas m as antes pela conseqüência
conseqüência natural da força[ 54 ] de sua
criação primeira. Assim, pela força de tal doação não resulta esse poder numa só pessoa,
nem numa peculiar congregação de muitas, mas em todo o povo perfeito,[ 55 ] ou seja,
no corpo da comunidade.
Esta posição, com respeito a todas as suas partes, é comum não apenas aos teólogos,
mas também aos jurisperitos, que prontamente mencionarei. Agora demonstrarei pela
razão cada uma de suas partes.
A primeira e a segunda se dão porque esse poder político é natural. Pois, mesmo sem
qualquer intervenção da revelação sobrenatural ou da fé, e apenas pelo ditame da razão
natural, esse poder seria reconhecido na república humana como absolutamente
necessário para sua conservação e eqüidade. Isso é sinal, portanto, de que se encontra na
comunidade como propriedade conseqüente à sua natureza ou criação, e à sua instituição
natural. Pois, se além disto fosse necessária uma doação ou concessão especial de Deus,
sem conexão com a natureza, ela não poderia constar pela pura razão natural; antes seria

62
forçoso que fosse manifestada mediante revelação aos homens, para que dela pudessem
ter certeza. E isso é falso, como se vê pelo que dissemos.
6. P ROVAMO-LA COM UM SEGUNDO ARGUMENTO. – Que seja necessário afirmar que tal
poder procede imediatamente
mediatamente de Deus ao menos desta maneira,maneira, isto concluímos
concluímos
facilmente a partir dos mesmos princípios; pois aquilo que se segue imediatamente à
natureza é dado pelo autor próprio e imediato desta natureza, como afirmei. Ora, esse
poder é certa propriedade
propriedade conseqüente à natureza humana enquanto congcongregada
regada num só
corpo político, conforme demonstramos. Logo, é dada imediatamente por Deus,
enquanto autor e provedor de tal natureza.
Isto se pode provar, ademais, porque esse poder procede de Deus (como o
expusemos no capítulo anterior), e com respeito a tal comunidade não intervém entre
Deus e ela nenhum meio (por assim dizer) pelo qual o poder lhe seja atribuído; pois, pelo
próprio
próprio fato de que os homens se cong congregu
reguem
em no corpo de uma só sociedade
sociedade ou
república, cria-se nela o referido poder, sem intervenção de qualquer vontade criada – e
isso com tamanha necessidade, que não poderia ser impedido pela vontade humana. Isso
é sinal, portanto, de que procede imediatamente de Deus, intervindo apenas aquela
resultância natural (ou conseqüência da natureza) e o ditame da razão natural, a qual
mais demonstra esse poder do que apenas o exibe. Ora, a imediata emanação desse
poder por parte de Deus, se declarada
declarada deste modo, jamais foi negnegada
ada pelo
pelo cardeal
Belarmino: antes ele a supôs, pois não postulou nenhum intermediário entre Deus e o
povo; ao contrário,
contrário, quis
quis que entre o rei e Deus fosse o povo o intermediári
intermediárioo pelo
pelo qual o
rei recebe tal poder. E são muito diferentes entre si estas posições, como prontamente
explicarei.
7. P ROVA-SE A SEGUNDA PARTE DA ASSERÇÃO. – Disto temos também como evidente –
como dizíamos na última parte de nossa asserção – que esse poder, considerado de modo
precisi
precisivo,
vo, enquanto procede do autor da natureza como por conseqüência
conseqüência natural,
natural, não
reside numa só pessoa, nem em qualquer comunidade particular, seja de optimates, seja
de quaisquer facções do povo. Isso porque, pela natureza das coisas, este poder só se dá
na comunidade inteira, não numa só pessoa ou senado. Logo, visto que procede
imediatamente de Deus, só se o concebe como existente em toda a comunidade, não em
alguma parte dela. E entenda-se “parte da comunidade” não apenas no sentido individual
ou material (por assim dizer), mas também enquanto concebida formal, indeterminada ou
vagamente. Ou seja, não ocorre imediatamente numa determinada pessoa (Adão, Tiago,
Filipe), nem exige por natureza que se encontre num única pessoa – e o mesmo vale
proporcional
proporcionalmente
mente para um senado, quer se o considere
considere materialmente
materialmente (como constando
de tais ou quais pessoas), quer formalmente, enquanto congregação de certo tipo ou
número de pessoas.
O motivo disto é manifesto: por força da razão natural, não se pode conceber motivo
algum pelo qual este poder se determine a uma só pessoa, ou a certo número de pessoas
inferior a toda a comunidade, ou a este número mais que qualquer outro. Logo, no que
deriva da concessão natural, ele se encontra apenas na comunidade.

63
Afirmamos, por fim, que pela mera força da razão natural não se determina um
princi
principado
pado políti
político
co como monarquia,
monarquia, nem como aristocraci
aristocraciaa simpl
simples
es ou mista,
mista, pois
pois não
há nenhum motivo que convença ser necessário um modo específico de regime. E
confirma-o o próprio uso, pois diversas regiões ou nações elegeram diversos modos de
governo, e nenhuma delas opera diretamente contra a razão natural ou contra a imediata
instituição divina. E isso nos sinaliza que o poder político não procede imediatamente de
Deus para ser dado a uma só pessoa, seja príncipe, rei ou imperador – o que, do
contrário, seria uma monarquia instituída imediatamente por Deus – nem a um senado
em particular, ou congregação específica de uns poucos príncipes – o que, do contrário,
seria uma aristocracia instituída imediatamente por Deus. E o mesmo argumento poderia
mover-se contra qualquer dos governos mistos.
8. O BJEÇÃO. S OLUÇÃO. – Mas dirás que, se esse raciocínio fosse eficaz, provaria também
que Deus não deu o poder político imediatamente a toda a comunidade, pois de outro
modo a democracia surgiria imediatamente por instituição divina, tal como, em oposição
a nós, inferiu-se sobre a monarquia e a aristocracia.
Mas isso não é menos falso e absurdo na democracia do que nas demais formas de
governo: primeiro, porque, assim como a razão natural não determina como necessária a
monarquia ou a aristocracia, tampouco o faz quanto à democracia; e muito menos ela,
que é a mais imperfeita de todas, como o atesta Aristóteles e é evidente por si. Segundo,
porque, se tal insti
institui
tuição
ção fosse divina,
divina, não poderia
poderia ser al
a lterada pelos homens.
Respondemos, então, negando a primeira ilação, pois do fato de que tal poder não
seja dado por um Deus que institui uma monarquia ou aristocracia, antes se conclui
necessariamente que foi dado a toda a comunidade, uma vez que não resta nenhum
sujeito humano (por assim dizer) a quem se poderia dá-lo.
À segunda ilação – a saber, a de que a democracia nasceria por instituição divina –
respondemos que, se se a entende enquanto instituição positiva, negamos tal conclusão.
Se, por outro lado, se a entende enquanto instituição como que natural, isso pode e deve
admitir-se sem nenhum inconveniente. Pois é muito notável a diferença entre estas
formas de governo político: a monarquia e a aristocracia não puderam introduzir-se sem
alguma instituição divina ou humana, visto que a pura razão natural, por si mesma, não
determina qualquer destas formas como necessária, conforme foi dito. Portanto, como
na natureza humana – considerada sem a fé ou a revelação divina – não tem lugar uma
instituição positiva, conclui-se necessariamente que tais formas de governo não procedem
imediatamente de Deus.
Já a democracia pode existir sem instituição positiva, por mera instituição ou
emanação natural, quando da mera negação de uma instituição nova ou positiva; e isso
porque a própria razão natural determina
determina que a soberania
soberania política
política se segue naturalmente à
comunidade humana perfeita, e que, por força desta mesma razão, pertence a toda a
comunidade – a não ser que mediante nova instituição ela se transfira a outro, uma vez
que por ditame da razão tampouco tem lugar outra determinação, nem se postula outra
mais imutável.

64
9. DE QUE MODO SE DIZ QUE A DEMOCRACIA PROCEDE DO DIREITO NATURAL. – Esse poder,
portanto, na medida
medida em que é imediatamente dado por Deus à comunidade,
comunidade, pode dizer-
dizer-
se (segundo a maneira de expressar-se dos jurisperitos) pertencer ao direito natural à
maneira negativa, não positiva – ou melhor, ao direito natural concessivo, não simpliciter
simpli citer
preceptivo.
preceptivo. P ois
ois com certeza o direi
direito
to natural dá per se e imediatamente esse poder à
comunidade, embora não prescreva absolutamente que ele nela permaneça sempre, nem
que por ela tal poder seja exercido imediatamente, mas apenas enquanto esta mesma
comunidade não determina outra coisa, ou enquanto uma mudança não houver sido feita
legitimamente por alguém dotado de poder. Seja exemplo a liberdade do homem, que se
opõe à servidão: ela é de direito natural, porque pela mera força do direito natural o
homem nasce livre, e não pode ser levado à servidão senão a título legítimo. O direito
natural não prescreve que todo homem sempre permaneça livre, ou (o que é o mesmo)
não proíbe simpliciter
simpli citer que seja levado à servidão, mas apenas que isso não ocorra sem
seu livre consentimento, ou sem justo título e poder. Assim, portanto, a perfeita
comunidade civil é livre por direito natural e não se sujeita a nenhum homem fora dela.
Ela inteira possui em si um poder que, caso não se altere, permanece democrático; não
obstante, pode privar-se de tal poder e transferi-lo a uma pessoa ou senado, seja por sua
própria
própria vontade, seja por [vontade de] outro que possua poder e justo título.[
título.[ 56 ]
10. NENHUM PRINCIPADO POLÍTICO PROCEDE IMEDIATAMENTE DE D EUS. – Assim,
concluímos que nenhum rei ou monarca obtém ou obteve (segundo lei ordinária) o
princi
principado
pado político
político imediatamente
imediatamente de Deus, mas mediante vontade e institui nstituição
ção humanas.
É este um egrégio axioma da teologia, não como o proferiu o rei, à maneira de chiste,[
57 ] mas verdadeiramente: pois é maximamente verdadeiro se bem compreendido, e
maximamente necessário para entender os fins e limites do poder civil. E não é algo
novo, nem inventado pelo cardeal Belarmino, como o referido monarca parece atribuir-
lhe.[ 58 ] Pois muito antes ensinou-o o cardeal Caetano, em sua Apologia, ou Tract. 2
de Auctoritat. Papae, p. 2, c. 10;[ 59 ] também Castro, no livro I de De Leg. Poenal., c.
1;[ 60 ] e Driedo, no livro I de De Libertat. Chri st., c. 19;[ 61 ] e Vitória, em Relect. de
Li bertat. Christ.
Ci vil. , n. 8 e ss.;[ 62 ] o mesmo consta também em suas Relect. 2 De Potestat.
Potestat. Civil.
Eccles., concl. 3 e ad. 1.[ 63 ] Ainda o diz Soto, no livro IV de De Iustit.Iusti t., q. 2, art. 1, no
discurso de conclusão 1, e de modo geral na questão 4, art. 1.[ 64 ] Seguiu-os Luís de
Molina, no Tractat. 2 de De Iustit. , disp. 21.[ 65 ] E insinua-o Tomás de Aquino, na
Summa Theologica Ia-IIae, q. 90, art. 3, e q. 97, art.3, e mais claramente em IIa-IIae, q.
10, art.10.
E não só entre os teólogos, senão também entre os juristas sustenta-se comumente
essa doutrina, tal como exposto no Digesto ;[ 66 ] entre os modernos, veja-se Azpilcueta
avarro[ 67 ] e também Covarrubias,[ 68 ] que também citam outros autores.
11. CONFIRMAÇÃO PELOS S ANTOS P ADRES. – Além disso, essa verdade pode depreender-
se dos santos Padres. Primeiro, porque freqüentemente afirmaram que o homem foi
criado por Deus nobre e livre, e que apenas recebeu imediatamente de Deus o poder de
dominar os animais brutos e as coisas inferiores; já o domínio do homem sobre outros

65
homens pela vontade humana foi introduzido pelo pecado ou por certa adversidade.
Ambrósio no-lo explica em Sobre Colossenses 3,[ 69 ] ao fim; e de modo mais extenso o
faz Agostinho, na Cidade de Deus XIX, 15,[ 70 ] e no livro Questões sobre o Gênesis,
q. 153;[ 71 ] também Gregório, na Moral, XXI, c. 10 (11 em outras fontes)[ 72 ] e na
Pastoral, parte II, cap. 6.[ 73 ] Pois o que dizem da liberdade de cada homem – e da
servidão, que é o seu oposto – é, pelo mesmo raciocínio, também verdadeiro da pessoa
mista ou fictícia de uma comunidade ou sociedade humana. Pois, na medida em que é
regida imediatamente por Deus pelo direito natural, ela é livre e sui iuris
iuri s, e sua liberdade
não exclui, mas antes inclui o poder de reger a si própria e de imperar sobre seus
membros, ao passo que exclui a sujeição humana a outro homem, o que se dá em razão
do direito natural, pois Deus a nenhum homem deu imediatamente tal poder, enquanto
não for transferido a alguém por instituição ou eleição humana. Confirma-o ainda
egregiamente Agostinho, nas Confissões, livro III, capítulo 8,[ 74 ] ao dizer que é pacto
eral da sociedade humana obedecer a seus reis. Pois com tais palavras afirma que o
princi
principado
pado régio
régio e a obediênci
obediênciaa a ele devida
devida têm fundamento no pacto da sociedade
sociedade
humana, e que portanto não resulta de instituição imediata de Deus, uma vez que o pacto
humano se contrai mediante a vontade humana.
12. E talvez seja este o pacto que recebe o nome de lei régia no livro I de De Constitut.
Princi p., onde afirma Ulpiano[ 75 ] que o beneplácito do rei tem vigor porque mediante
Princip
a lei régia, que se deu sobre seu governo, o povo lhe transferiu todo o mando e poder
que possuía. Estas palavras foram aprovadas e transcritas pelo imperador Justiniano, no
parágrafo
parágrafo Sed et Quod Principi , em suas Instituições.
Institui ções.[ 76 ] Pois tal lei não se diz “régia”
porque tenha sido
sido proclamada
proclamada por alg algum rei, mas porque versa sobre o poder régi régio,
como consta da mesma obra, livro I, onde também se a entende como constituída pelo
povo, o qual criou e institui
nstituiuu a dign
digniidade do rei,
rei, transferindo-l
transferindo-lhe
he seu poder – e assim
assim o
expõem igualmente os doutores e as glosas sobre este ponto.
Tampouco pôde aquela lei dar-se à maneira de mero preceito, pois por ele o povo
abdicaria da soberania de jurisdição. Portanto, deve entender-se como constituída à
maneira de pacto, pelo qual o povo transferiu o poder ao príncipe sob o ônus e a
obrigação de promover os cuidados da república e administrar-lhe a justiça – e o rei
aceitou tanto este poder quanto sua condição. Por esse pacto fez-se firme e estável a lei
régia, ou lei de poder régio. Portanto, não é imediatamente de Deus, mas do povo, que
os reis recebem este poder. Por isso, em 1. 2, no parágrafo NovissimeNovissi me, de De Origine
Origi ne
Iuris ,[ 77 ] diz-se: Visto que o senado não podia reger bem todas as províncias, uma
vez instituído um príncipe foi-lhe concedido o direito de estabelecer como norma o que
ele constituísse.
13. P ROVA-SE A CONCLUSÃO MEDIANTE A RAZÃO. –Do que foi dito, facilmente coligimos os
motivos de tal asserção; pois diz-se que um poder chega a alguém diretamente de Deus,
seja porque lhe advém unicamente pela vontade de Deus, seja por força da mera razão
natural ou de alguma instituição divina. Mas o poder do qual tratamos não provém de
Deus aos reis por nenhum destes modos (falando-se em termos de lei ordinária), porque

66
nem é dado imediatamente pela vontade especial de Deus (pois tal lei nem nos foi
revelada, nem deu-se a conhecer aos homens), nem tampouco o direito natural dita por si
que deva haver nos reis tal poder, como demonstramos. Finalmente, Deus não realizou
nenhuma instituição, determinação ou transferência de tal poder aos reis, o que consta do
próprio
próprio costume. Mesmo porque, do contrário, contrário, tal insti
institui
tuição
ção seria
seria imutável,
mutável, e seria
seria
iníqua toda mudança nela feita pelos homens; todas as cidades, reinos e repúblicas
deveriam observar uma mesma instituição, pois a razão não é maior para uma do que
para outra, nem uma recebeu mais do que a outra tal institui nstituição
ção mediante
mediante revelação
revelação
divina. Ela é, portanto, uma instituição humana, porque feita imediatamente por homens.
Logo, é pelos homens que o poder chega aos reis, cuja dignidade é criada com tal
instituição.
Mas diz-se que mediatamente Deus dá este poder aos reis: primeiro, porque
imediatamente o deu o povo, que ao rei o transferiu; segundo, porque Deus consente
com tal transferência feita proximamente pelo povo e com ela coopera enquanto causa
primeira
primeira e universal
universal;; terceiro, porque a aprova e a quer preservar.
Assim também o faz a lei humana: tanto obriga imediatamente pela vontade do
príncipe
príncipe humano que a proclama,
proclama, quanto mediatamente pela força da vontade de Deus,
que deseja que se obedeça aos príncipes legítimos, conforme o que diz Pedro, em sede
submissos, etc. , pois
poi s tal é a vontade de Deus.
14. DEMONSTRA-SE A MESMA CONCLUSÃO MEDIANTE EXEMPLOS. – Finalmente, nossa
posição
posição pode demonstrar-se mediante
mediante este exempl
exemploo do domínio
domínio humano sobre as coisas
coisas
inferiores. Falando simpliciter
simpli citer , todas as coisas das quais o homem tem domínio foram-
lhe dadas por Deus, mas não do mesmo modo. Pois Deus não deu imediatamente
(refiro-me à lei ordinária) o domínio de algo a um homem próprio e particular; ao
contrário, Ele imediatamente fez comuns todas as coisas.
Os domínios privados foram introduzidos em parte pelo direito das gentes, em parte
pelo
pelo direi
direito
to civi
civill, e não obstante também estes domínios
domínios privados
privados provêm mediatamente
mediatamente
de Deus: primeiro, porque têm origem na doação primeira de Deus; segundo, porque em
sua providência geral Ele concorre para eles; terceiro, porque deseja conservá-los, uma
vez constituídos. E assim o diz Agostinho, ao final do tratado 6 sobre João:[ 78 ]Por que
cada um possui o que possui? Acaso não é pelo direito humano? Pois, pelo direito
divino, é do Senhor a terra e sua plenitude, enquanto pelo direito humano dizemos “é
minha esta fazenda, é minha esta casa, é meu este servo”. E em seguida conclui: Deus
distribuiu todos os direitos humanos ao gênero humano mediante os imperadores e reis
temporais. Ora, também assim, guardadas as proporções, é Deus quem distribui os
reinos e principados políticos, mas mediante os homens, ou o consentimento dos povos,
ou outra instituição humana semelhante.
15. OBJEÇÃO. – Mas dirá talvez alguém que, segundo esta posição, apenas podemos
provar que o poder régio
régio não é dado por Deus a uma pessoa sem a intervenção da
vontade ou da ação humana, o que não bastaria para afirmar que não é dado
imediatamente por Deus – pois também a dignidade apostólica foi dada a Matias

67
mediante a ação de outros apóstolos, e ainda assim ela lhe foi dada imediatamente por
Deus. De modo semelhante, o Sumo Pontífice é eleito pelos cardeais, e ainda assim
recebe o poder imediatamente de Deus. Algo parecido também ocorre no morgadio[ 79 ]
por hereditariedade:
hereditariedade: este direi
direito
to se obtém do último
último antepassado, e ainda assim
assim se diz que
os bens são obtidos imediatamente do primeiro instituidor do morgadio, pois uma pessoa
consegue o morgadio apenas por força da vontade deste, por menos que o possa desejar
o parente próximo. Assim, portanto, embora os reis temporais obtenham a dignidade
régia por sucessão, recebê-la-iam imediatamente de Deus, por força da instituição
primeira.
primeira.
16. A VONTADE HUMANA PODE INTERVIR DE DOIS MODOS NA TRANSFERÊNCIA DE UM PODER
QUE EMANA DED EUS. P RIMEIRO MODO. – Ora, tal objeção não debilita, mas antes confirma
as afirmações que fizemos: primeiro, porque os exemplos não são semelhantes; segundo,
porque não afirmamos que basta qualquer
qualquer vontade ou ação humana interposta para que a
cessão de poder por Deus deixe de ser imediata, mas isso apenas foi dito de uma
mudança e transferência particular feita por uma nova instituição humana.
Pois dois são os modos em que a ação ou vontade humana pode intervir na
transferência de um poder que tem origem em Deus. Primeiro, apenas designando ou
constituindo a pessoa que sucederá na dignidade instituída por Deus, mas mantendo-a no
modo em que foi instituída e sem autoridade ou poder para mudá-la, aumentá-la ou
diminuí-la. Este modo se observou na Lei Antiga no tocante à dignidade pontifícia
segundo a sucessão carnal. Na Nova Lei, faz-se por legítima eleição, pela qual é
designada uma pessoa.
Logo, quanto a este modo de sucessão, nada se opõe a que o poder seja conferido
imediatamente por Deus; e é apenas isso o que provam os referidos exemplos. A razão
disto é que sempre se confere o poder por força da instituição primeira e da vontade de
Deus – e disto é sinal ele haver sido conferido íntegra e imutavelmente tal como foi
instituído, e que também a sucessão tenha origem no mesmo poder e pela mesma
instituição: na Lei Antiga, a sucessão no pontificado era mediante geração carnal, pois
assim fora instituída por Deus. Agora, a designação da pessoa faz-se de outro modo,
mais espiritual, pois a tradição eclesiástica ensina que assim o instituiu Cristo, que
determinou a seu vigário o definisse mediante a eleição ou designação de uma pessoa.
17. SEGUNDO MODO. –Mas a transferência de poder pelo homem também pode dar-se de
outro modo: mediante uma nova doação ou instituição, que transcende a mera
designação da pessoa. E assim, embora o poder tenha seu fundamento numa doação
anterior feita a outro, aquela transferência que se dá posteriormente é simpliciter
simpli citer de
direito humano, não divino, e procede imediatamente do homem, não de Deus. Seja
exemplo a servidão: se algum homem se vende ao serviço de outro, aquela servidão é
simpli citer de direito humano, e o poder que o senhor recebe sobre o servo foi dado
simpliciter
imediatamente pelo próprio servo, mediante o poder e liberdade naturais que este
recebeu imediatamente do autor da natureza. E o mesmo se dá no nosso caso, acerca da
sujeição de toda a comunidade humana a um só príncipe; pois procede imediatamente da

68
vontade da comunidade, e portanto procede imediatamente do homem e do direito
humano, embora tenha origem no poder natural sobre si que esta comunidade recebeu de
seu autor. E a razão é clara: nestes e noutros casos semelhantes, nem basta a designação
da pessoa, nem é tal designação separável da doação ou contrato (ou quase-contrato)
humano, para que tenha o efeito de conceder o poder. Pois a mera razão natural não
induz a uma transferência de poder de um homem a outro unicamente pela designação
da pessoa, sem o consentimento e a eficácia da vontade daquele a partir do qual o poder
deve ser transferido ou concedido.
Por tal motivo, não se pode conceber uma transferência de poder feita imediatamente
por Deus – seja mediante
mediante geração, elei
eleição
ção ou semelhante
semelhante desígni
desígnioo humano – exceto
exceto se
tal sucessão procede de uma instituição divina positiva. Ora, o poder régio não procede
de instituição divina positiva, mas tem origem apenas na razão natural mediada pela livre
vontade humana; portanto, é necessário que proceda do homem que a confere
imediatamente,
mediatamente, não de um que apenas designe
designe a pessoa.
18. Disto também provém – o que é claro indício da verdade dessa posição – que esse
poder régi
régio não seja igu
gualal em
e m todos os monarcas, nem possua as mesmas propriedades
propriedades
de duração, perpetuidade, sucessão e semelhantes. Pois nalguns o poder é uma
monarquia simpliciter
simpli citer , já noutros há certa mescla de aristocracia, ou certa dependência
de um senado no tocante a sufrágios decisivos, às vezes apenas em certos casos, às
vezes com respeito a todos os casos mais graves, às vezes com muitos votantes, às vezes
com poucos. Ademais, no caso de alguns reis foi dado o poder não apenas à pessoa, mas
à sua geração (por assim dizer), de modo que possam transferir sua dignidade aos filhos
e netos; noutros casos, o poder é dado à pessoa, sem sucessão carnal, de modo que,
morto o rei, outro seria eleito, tal como vemos no reino da Polônia e no próprio Império
Romano. Poderia ainda o rei ser eleito para um determinado tempo, caso nalgum lugar
isso fosse assim introduzido no princípio, uma vez que tal coisa por natureza não
repugna [à razão]. Logo, temos sinal manifesto de que se trata de uma instituição
humana imediata, e que portanto pode receber toda a variedade que não repugne à razão
e pôr-se sob o arbítrio humano.
19. Disto temos finalmente que o poder ou domínio régio pode obter-se de vários modos
– que aqui também nos é necessário
necessário regi
registrar, para que a solução
solução que propomos seja
mais perfeitamente entendida.
O primeiro modo de conferir o poder a um só príncipe, quando da instituição
primeira,
primeira, é pelo
pelo consentimento
consentimento voluntári
voluntárioo do povo. Ora, este consentimento
consentimento pode
entender-se de vários modos. Um deles é que ocorra paulatina e quase sucessivamente, à
medida que o povo cresce. Por exemplo, na família de Adão ou de Abraão, ou outra
semelhante, no princípio se obedecia a Adão enquanto pai de família; depois, crescendo
o povo, pôde continuar aquela sujeição, e pôde aquele consentimento estender-se a
obedecer a Adão como a um rei, à medida que aquela comunidade começava a tornar-se
perfeita.
perfeita. E talvez
talvez muitos
muitos reinos
reinos (e em particul
particular
ar o primei
primeiro
ro reino
reino da sociedade
sociedade romana)

69
tenham assim começado. E deste modo, se considerarmos corretamente, o poder régio e
a comuni
c omunidade
dade perfeita
perfeita podem começar simul
simultaneamente.
taneamente.
Um segundo modo é quando uma comunidade já perfeita elege voluntariamente um
rei, ao qual transfere seu poder. Trata-se do modo mais conveniente e mais afim à razão.
Depois que essa transferência se estabelece de maneira firme e perpétua, não é então
necessária uma nova eleição ou um novo consentimento do povo: basta o que se deu nos
primórdi
primórdiosos do reino, para que, por força
f orça daquele
daquele fato, a própria
própria dig
dignidade
nidade e poder rég
r égiios
se transfiram por sucessão. E deste modo nos reinos sucessivos pode-se dizer que os reis
obtêm poder imediatamente do povo, não por um novo consentimento, mas por força do
antigo. Pois os filhos obtêm dos pais os mesmos reinos em virtude da primeira
instituição, mais do que pela vontade dos pais: ainda que não o queira o pai, o
primogêni
primogênito to o sucede no reino,
reino, e portanto o pai se encontra na condição
condição de apli
aplicante ou
constituinte desta pessoa à qual seu próprio poder é transferido, por força daquele
primeiro
primeiro contrato.
20. Além deste modo voluntário, às vezes certas regiões ou povos livres sujeitam-se
involuntariamente aos reis por meio da guerra. Isso pode dar-se justa ou injustamente.
Pois, se a guerra teve justo título, o povo realmente se priva do poder que possuía, e o
príncipe
príncipe que prevaleceu
prevaleceu contra ele obteve verdadeiro
verdadeiro direito
direito e domínio
domínio de tal reino:
reino:
suposta a justiça de uma guerra, é justa a sua pena, tal como ocorre aos prisioneiros que
numa guerra justa são privados da liberdade concedida pela natureza e tornam-se
verdadeiramente servos por justa pena. E por isso afirmei acima que o poder régio se
funda num contrato ou num quase-contrato. Pois a justa punição de um delito faz as
vezes de contrato quanto ao efeito de transferir domínios e poderes, e portanto deve ser
igualmente observado.
Por outro lado, é mais comum que se ocupe um reino por guerra injusta, e em geral
foi por este modo que os impérios mais ilustres do mundo se engrandeceram. Neste caso,
em princípio não se adquire o reino nem o poder verdadeiros, visto que falta o título de
ustiça; já com o passar do tempo, ocorre que o povo consinta livremente, ou que por
seus sucessores o reino prescreva com boa fé; então cessará a tirania e começará o
verdadeiro domínio e poder régio.
Assim, sempre se obterá o poder por algum título humano, ou imediatamente pela
vontade humana.

[ 49 ] Apologia pro
pro Iuramento Fidelitati
F idelitatis,
s, Praefatio
P raefatio,, Londres, Opera Regia, 1609, pp. 139-140.
[ 50 ] Simpliciter e secundum quid correspondem à versão latina dos termos aristotélicos ἁπλός e κατὰ τί.
Herdados pela escolástica como um todo e utilizados normalmente sem tradução vernácula, significam
respectivamente em sentido absolutoe segundo algo (ou seja, sob certo aspecto).
aspecto). Cf. Topica,
Topica, B, 11, 115a25-b35.
[N. T.]
“(...) quasi physica”.
[ 51 ] “(...) physica”. O lat. “quasi
“quasi”” não nos indica algo que está “no limiar” ou “à beira” de ter certa
característica, mas algo que dela participa em certa medida ou sentido limitado. Vertê-lo por “como” ou “como
que” é solução que, embora não seja a ideal para a fluidez de leitura, evita falhas de compreensão. Já nos casos da
aplicação deste advérbio a substantivos, o circunlóquio é desnecessário, por nos valermos do hífen; vejam-se, por
exemplo, termos como “quase-contrato” e “quase-prova”. [N. T.]

70
[ 52 ] O advérbio latino praecise
praecisenão tem aqui o sentido de “exatidão”, mas refere-se àquela consideração em que
prescindi
presc indimos
mos das condições particulares em que algo algo se encontra
encontr a imerso. Este modo de conside cons ideração
ração é também
significado na escolástica pelo termo praecisive praecisive,, e preferimos vertê-lo a partir desta variante, para evitar
confusões derivadas de traduzi-lo como “precisamente” ou “de modo preciso”. [N. T.]
[ 53 ] Naturalmente, o termo repúblicadeve aqui ser lido no contexto clássico e amplo de coisa pública, pública, ou seja,
a comunidade e sua estrutura de governo. [N. T.]
[ 54 ] O lat. vis vi s significa “força” no sentido amplo de poder, virtude, capacidade. Utilizamos “força” em vez de
“poder” para evitar homonímia com o tema onipresente do poder político. [N. T.]
[ 55 ] O adjetivo “perfeito”, aqui presente em expressões como “povo perfeito” e “comunidade perfeita” não
indica uma moralidade imaculada de seus membros, nem a ausência de todo e qualquer defeito. Compreendê-lo
assim nos levaria a desvios de teoria política (e de antropologia e teologia) completamente estranhos ao
pensamento de Suárez. Suár ez. A perfeição à qual o autor se refere é aquela de tipo estrutural,
estr utural, c om a qual podemos dizer
dizer
que algo não carece do que lhe seja essencialmente imprescindível. Pode-se dizer que, no âmbito da política, uma
comunidade perfeita é um conjunto auto-suficiente de famílias reunido em torno de uma finalidade comum (Cf.
Politica
Politi ca,, A, c. 1, 1252a-1253a). Seu modelo mais fundamental é o da cidade-estado clássica. Ademais, sendo as
leis um elemento imprescindível para a auto-suficiência e para a ordenação a um fim, vale mencionar a maneira
complementar na qual, posteriormente a Aristóteles, bem descreveria Cícero a própria noção de “povo” (De Re
Publica,
Publica, I, 39): “Não chamamos ‘povo’ a um conjunto de homens reunido de qualquer modo, mas àquele
congregado mediante o consenso do direito e a comunhão da utilidade”. [N. T.]
A expressão “comunidade política perfeita” é alusiva ao tratamento conferido à pólis no Livro I da Política Polít ica de
Aristóteles, para quem a cidade é a mais excelente das formas de vida humana, já que é na comunidade política
que a vida boa é alcançada plenamente. Coincide com o termo “principatus politicus”, politicus”, explicitado acima, na nota
15. O termo “comunidade política perfeita”, além disso, designa o modo de vida política necessário para que o
corpo social possa receber de Deus a transferência do supremo poder civil (“Em primeiro lugar, a soberania civil,
vista em si mesma, é dada imediatamente por Deus aos homens congregados numa comunidade ou sociedade
política
política perfeita”).
per feita”). [N. C.]
[ 56 ] Dado o sentido aqui empregado, a palavra democracia se diz de dois modos: no primeiro, a palavra é
tomada no seu sentido literal – poder do povo. A democracia natural deve ser entendida nesta acepção. No
segundo, a democracia é tomada como uma modalidade de regime político, em comparação com a monarquia ou
a aristocrac
aristocrac ia.ia. [N.
[ N. C.]
[ 57 ] J AIMEI, Apologia,
Apologia, p. 140.
[ 58 ] S. ROBERTO B ELARMINO, Recognitio librorum librorum omnium,
omnium, Recognitio Libri Tertii Tertii ( de laicis),
laicis), Ingolstadt,
1608, pp. 56-64.
[ 59 ] T OMÁSC AETANO, De comparatione autoritatis autoritati s Papae et Concilii,
Concilii, in Opuscula omnia, Lyon, 1562, trat. 2,
c. 10, ad. 5 e ad 2ª confirm., p. 39.
[ 60 ] ALFONSO DEC ASTRO, De Potestate Legis Poenalis, Poenalis, Lyon, 1556, I, c. 1, pp. 5-21.
[ 61 ] J OÃOD RIEDO DET URNHOUT , De Libertate Christiana, Christiana, Louvain, 1540, I, c. 2, pars 3, p. 98.
[ 62 ] F RANCISCO DEV ITÓRIA, Relectiones theologicae,
theologicae, Lyon, 1586, III, De potestate civili, 8, p. 108.
[ 63 ] Op. cit.,
cit., II, De potestate Ecclesiae, p. 63.
[ 64 ] DOMINGO DES OT O, De iustitia et iure,Lyon, Lyon, 1559, IV,
IV, pp. 207-9; pp. 218-221.
[ 65 ] De Iustitia et iure,Mainz, 1602, vol. I, trat. II, disp. 21, p. 109.
[ 66 ] Corpus Iuris Civilis Romani, Digesta, Nápoles, 1828, lib. I, tit. II e IV, pp. 214-221; p. 224.
[ 67 ] MARTÍN DEA ZPILCUETAN AVARRO, Commentarii et tractatus, tractatus, Veneza, Nicolinus, 1601, t. III, Relectio cap.
Novit
Novit de Iudicis, Notabile
Notabile tertium, n. 41, fol. 67.
[ 68 ] DIEGO DEC OVARRU OVARRUBI AS EL EIVA, Practicae Quaestiones,
BIAS Quaestiones, Lyon, 1558, cap. 1, n. 6, fol. 7.
[ 69 ] Comment. in epist. ad Col., c. 4 (PL 17, 439B).
[ 70 ] De Civitate
Civi tate Dei,
Dei, 19, 15 (PL 41, 643).
[ 71 ] Quaestiones in Heptateuchum,
Heptateuchum, I, 153 (PL 34, 589-590).
[ 72 ] S. GREGÓRIOM AGNO, Moralia, Moralia, lib. 21, 10 (11) (PL 76, 203).
[ 73 ] Regula Pastoralis
P astoralis,, c. 6 (PL 77, 34B-38C).
[ 74 ] Confessiones,
Confessiones, III, 8, (PL 32, 690).
[ 75 ] Corpus Iuris Civilis Romani, Digesta, Nápoles, Nápoles, 1828, lib.
lib. I,
I , tit. IV,
IV, 1, p. 224.
[ 76 ] Op. cit., Institutiones,lib. I, tit. II, 6, p. 4.
[ 77 ] Op. cit.,
cit., Digesta,
Digesta, p. 216.
[ 78 ] In Ioannis
I oannis evangelium tractatus,
tractatus, 124, trat. 6, n. 25 (PL 35, 1437).
[ 79 ] Cf. ANT ONIO L UIZ M. C. C OSTA, Títulos de Nobreza Hierárquicas, Hierárquicas, São Paulo, Draco, 2014, in “Títulos

71
hereditários da pequena nobreza”: “O morgado era o detento de uma propriedade alodial (absoluta, não feudal)
instituída pelo rei a pedido de uma família, chamada morgadio( majorat em francês, inglês e alemão; mayorazgo
em castelhano, ordynacja em polonês) que não podia ser vendida ou dividida sem autorização do rei (embora
pudesse ser ampliada)
ampliada) e tinha de ser legada
legada na íntegra ao primogênito.
primogênito. Surgiu com a decadência e abolição
abolição do
feudalismo, como forma de evitar a fragmentação das propriedades e proteger o status de linhagens tradicionais.
A instituição surgiu na Espanha, onde durou de 1505 a 1820. Em Portugal, surgiu em 1521 e durou até 1863,
exceto pelo morgadio da própria casa real de Bragança, que permaneceu até a proclamação da República, em
1910 (no Brasil, onde chegou a ser aplicado às propriedades de senhores de engenho, foi abolido na década de
1820). Na Polônia, foi instituída no século XVI e durou até a reforma agrária comunista após a II Guerra
Mundial. Na França, foi criada por Napoleão em 1808 e abolida com a revolução de 1848.”

72
Capítulo III
Resposta aos fundamentos e ob
objeções
jeções do rei da Inglaterra
Inglate rra
contra a doutrina do capítulo anterior
1-2. Primeiro fundamento do rei, que parte de inconvenientes.
i nconvenientes. 3. Faz-se justiça ao
ilustríssimo Belarmino ante a refutação do rei. Quando pode o povo insurgir-se contra
o monarca e eximir-se de seu poder. 4. Uma vez transferido o poder ao rei, o povo não
pode restringi-lo, nem revogar leis justas. 5-6. Segundo fundamento do rei e sua
solução. 7-8. É mais
mai s provável que Saul tenha recebido seu poder do povo. 9. Matias
Mati as
recebeu seu apostolado imediatamente de Deus. 10. Os exemplos aduzidos pelo rei
Jaime não convencem que o principado
pri ncipado político proceda
proceda imediatamente
i mediatamente de Deus. 11.
Terceira objeção. 12-13. Solução.

1. P RIMEIRO FUNDAMENTO DO REI, QUE PARTE DE INCONVENIENTES. – Dois parecem ser os


princi
principai
paiss fundamentos do rei Jaime
Jaime para crer que os reis não recebem
rec ebem o poder do povo,
mas imediatamente de Deus.
Propõe o primeiro redargüindo a Belarmino e deduzindo certos inconvenientes. O
primeiro
primeiro inconveni
inconveniente
ente é que nossa tese, à qual o rei se opõe, seria uma base de sedições
avidissimamente proveitosa a facciosos e rebeldes. Porque, se o príncipe recebesse seu
poder do povo, poderia este insurgir-se contra o príncipe e reclamar sua liberdade a
qualquer momento que lhe parecesse, certamente apoiando-se no direito e poder que
transferiu ao rei. Sobretudo porque Belarmino afirma que o povo nunca transfere o seu
oder ao rei sem que o retenha para si em hábito,[ 80 ]para que possa em certos casos
recebê-lo também em ato.
E, do mesmo modo, o monarca pode inferir que seria justo aos súditos restringir o
poder rég
r égiio, revogar
revogar suas leis
leis e fazer coisas
coisas semelhantes,
semelhantes, próprias
próprias de um poder superior
superior..
Pois, se o rei recebe seu poder do povo, então dele sempre depende. Logo, o poder do
povo seria
seria superior
superior e, portanto, este poderia
poderia fazer de tudo, que é o que se inferiu.
inferiu. Ora,
tais coisas seriam absurdas, porque dão ocasião a sedições, ferem o princípio do poder e
não permitem preservar a integridade e o rigor da justiça.
2. Respondemos que nenhum destes inconvenientes se segue da solução ou sentença que
propusemos. Pois, primeiro,
primeiro, negamos que por ela
ela se dê ao povo ocasi
oca sião
ão de rebeli
rebeliões ou
sedições contra legítimos príncipes. Porque, depois que o povo transferiu seu poder ao
rei, não pode com justiça, apoiado neste mesmo poder, reclamar a liberdade para si por
arbítrio próprio ou sempre que quiser.

73
Ora, se foi concedido o poder ao rei e este o recebeu, por este mesmo fato ele
adquiriu o domínio. Logo, ainda que o rei tenha recebido do povo o domínio mediante
doação ou contrato, não será por isso lícito ao povo retirar-lhe tal domínio, nem usurpar
sua liberdade novamente – do mesmo modo que uma pessoa particular que renunciou à
sua liberdade e vendeu-se ou entregou-se como servo não pode, em seguida, eximir-se da
servidão por arbítrio próprio. E o mesmo vale para uma pessoa fictícia ou comunidade,
depois de haver-se sujeitado plenamente a algum príncipe. Depois que um povo
transferiu sua liberdade ao rei, já se encontra privado dela; não pode, apoiado nela,
insurgir justamente contra o rei, pois depende de poder que não possui. Isso não seria um
uso justo, mas uma usurpação do poder.
3. F AZ-SE JUSTIÇA AO ILUSTRÍSSIMO BELARMINO ANTE A REFUTAÇÃO DO REI.Q UANDO PODE O
POVO INSURGIR-SE CONTRA O MONARCA E EXIMIR-SE DE SEU PODER. – Isto que disse
Belarmino, apoiado em Azpilcueta Navarro, que o povo nunca transfere o seu poder ao
rei sem que o retenha para si em hábito, para que possa em certos casos usá-lo, nem é
contrário à nossa posição, nem dá fundamento aos povos para que reclamem sua
liberdade por mero desejo. Pois Belarmino não diz simpliciter
simpli citer que o povo retém o poder
em hábito para quaisquer atos a seu mero desejo, e sempre sempre que tenha vontade de
exercê-los; ao contrário, expressou-se com grande limitação e circunspecção: em certos
casos, etc. Tais casos devem entender-se, ou quanto às condições do contrato anterior,
ou quanto à exigência da justiça natural, pois os pactos e convênios justos devem ser
observados.
Portanto, se o povo transferiu seu poder ao rei, reservando-o para si para causas ou
negócios mais graves, neles poderá licitamente usá-lo e conservar seu direito. Mas será
necessário que este direito conste suficientemente de documentos antigos e certos, ou de
costumes imemoráveis. Por esta mesma razão, se o rei convertesse em tirania o seu justo
poder,
poder, dele
dele abusando para a mani
m anifesta
festa ruína da sociedade, poderia
poderia o povo usar do poder
natural para defender-se, pois dele nunca se privou. Fora estes casos, porém, nunca é
lícito a um povo faltar para com o rei legítimo apoiando-se em seu próprio poder. E
assim elimina-se o fundamento ou ocasião de toda sedição.
4. U MA VEZ TRANSFERIDO O PODER AO REI, O POVO NÃO PODE RESTRINGI-LO, NEM REVOGAR
LEIS JUSTAS. – Mas por essa mesma razão não é lícito ao povo, uma vez sujeito ao poder
do rei, restringi-lo mais do que o foi naquela primeira transferência ou convenção, pois
não o permite aquela lei de justiça que ensina que os pactos legítimos devem ser
observados, e que uma doação absoluta feita validamente não se pode revogar, nem no
todo nem em parte, principalmente se ela for onerosa.
Tampouco pode o povo, assentado em seu poder, revogar as leis justas do príncipe,
mas apenas apoiado no consenso tácito ou expresso do próprio príncipe, como o ensinou
Tomás de Aquino,[ 81 ] e como o afirmamos mais extensamente em outra obra.[ 82 ]
Daí não ser verdadeiro simplici terque o rei depende do povo para seu poder, ainda que
simpli citer
dele o tenha recebido: pois pode depender do povo para sua geração (como dizem),
embora não dependa depois para sua conservação, se foi o caso de havê-lo recebido

74
plena
plena e absolutamente.
absolutamente. Portanto, depois
depois que o rei foi legi
egitimamente
timamente constituído,
constituído, possui
soberania em todas as coisas para as quais a recebeu, ainda que a tenha recebido do
povo – e isso o exig
exige a lei da justiça,
justiça, como
c omo antes afirmamos.
5. SEGUNDO FUNDAMENTO DO REI E SUA SOLUÇÃO. – Em segundo lugar, o rei aduz-nos o
exemplo de Saul e David, que não receberam o principado do povo, como o alega
Belarmino, mas imediatamente de Deus. E isso se confirma especialmente em Saul, que
foi eleito por Deus mediante sorteio, o que ele nos diz haver sido sinal certo de um poder
recebido imediatamente de Deus. Também nos persuadiria com o exemplo da escolha de
São Matias, do qual sabemos recebeu a dignidade apostólica imediatamente de Deus,
visto que a obteve mediante sorteio, conforme consta nos Atosdos Apóstolos [1:21-26].
Acerca dos exemplos de Saul e David, respondemos que de ambos os lados se pode
disputar se estes reis receberam o poder imediatamente de Deus ou do povo. Pois
nenhum dos dois se depreende claramente a partir da sagrada Escritura. De fato, embora
conste certamente da própria Escritura que essas duas pessoas foram instituídas reis pelo
assentimento, vontade e revelação divinos, disto não se segue que Deus também lhes
tenha dado o poder imediatamente. Pois trata-se de duas coisas distintas, e de uma não
se deduz corretamente a outra. Porque, assim como Deus às vezes concedeu aos
homens a faculdade de designar uma pessoa à qual Ele haveria de dar imediatamente o
poder,
poder, assim
assim também, ao contrário, Deus pôde reservar a si o poder de designar
designar a pessoa
à qual o povo o daria imediatamente.
6. E que isso assim ocorreu no caso daqueles reis, elabora-o com suficiente
verossimilhança o cardeal Belarmino,[ 83 ] a partir de Deuteronômio [17:14-15]: Quando
entrares na terra que te der o Senhor teu Deus, e a possuíres, e nela habitares, e
disseres: ‘Constituirei sobre mim um rei, assim como o têm todas as nações ao meu
redor’, constituirás como rei aquele que o Senhor teu Deus escolher dentre teus
irmãos; não poderás fazer rei um homem de outra gente, que não seja teu irmão. Com
estas palavras afirmam-se como distintas duas coisas: primeiro, eleger quem há de ser rei;
segundo, constituí-lo rei. Aquele, Deus o reserva para si. Este, Deus o concede ou
entrega ao povo, como o vemos com aquelas palavras: constituirás como rei aquele que
o Senhor teu Deus escolher; e também o que consta em Deuteronômio [28:36]: O
Senhor levará a ti e a teu rei, que constituíres sobre ti, a uma gente que desconheces,
etc. Ora, constituir um rei não significa apenas pedir um rei, tal como depois o povo o
pediu
pediu em I Samuel [8:10-22],
[8:10-22], mas sim
sim fazê-lo rei, tanto pelo
pelo que se exp
expõe
õe em
Deuteronômio [17:15]: não poderás fazer rei um homem de outra gente, quanto pelo
fato de que ali mesmo se ordena ao povo que constitua como rei aquele que Deus
elegesse. Ora, a petição por um rei não podia referir-se a uma particular pessoa escolhida
por Deus, pois
pois ela foi anterior
anterior a esta escolha.
escolha. P ortanto, a constitui
constituição
ção do rei não era
senão a própria criação dos reis, e uma imediata transferência de dignidade e poder
régios.
Assim, a eleição da pessoa que Deus reservou para si não era outra coisa senão a
designação desta pessoa. Logo, supõe-se que naquela passagem o povo tinha, pela

75
própria
própria natureza da coisa, o poder de constituir
constituir para si um rei.
rei. P ois
ois Deus não o concebeu
ali, àquele povo em particular, mas o supôs como algo comum aos demais povos – e
permiti
permitiuu àquele povo que o usasse, ou predisse que nalg
nalgum momento o usaria, conforme
se cumpre em I Samuel [8 e ss.]. E, por mais que o poder de designar uma pessoa
também convenha naturalmente a qualquer povo, Deus reservou para si o poder de
eleger a pessoa, como favor particular àquele povo, para que a pessoa mais apta fosse
sempre a escolhida.
7. É MAIS PROVÁVEL QUE SAUL TENHA RECEBIDO SEU PODER DO POVO. – Portanto, a partir
daquela passagem, a melhor das conjecturas é a de que assim se observaram as coisas
quando da criação do primeiro rei daquele povo, Saul. E o mesmo podemos coligir da
história de sua eleição. Em I Samuel [10:24], depois que a sorte caiu sobre Saul, disse
Samuel ao povo: vedes a quem o Senhor escolheu?, como quem pede e espera pelo
consentimento deste povo, que então clamou, dizendo: Viva o rei! Em seguida, já
constituído o monarca, agrega-se que escreveu Samuel a lei do reino, etc. E não importa
que no mesmo capítulo, antes que houvesse tirado a sorte, se diga que Samuel tenha
ungido a Saul: Eis que o Senhor te ungiu príncipe sobre
sobre sua herança, pois (como o diz
Belarmino, e é provável) não foi isso uma transferência de poder ou a entrega de um
reino, mas uma promessa e predição certeira – à maneira profética – de um efeito futuro,
e algo como uma preparação do ânimo de Saul para sua dignidade futura. Ou ainda: visto
que após a escolha divina e a aclamação do povo ainda muitos o recusavam, agrega-se
no capítulo 11 que Samuel convocou novamente o povo a Gálgala para renovar o seu
poder.
poder. E complementa:
complementa: todo o povo dirigiu-se a Gálgala, e ali fizeram rei a Saul
erante o Senhor. Com tais palavras não se significa uma nova eleição do reino, mas
uma confirmação da anterior, para que esta se estabelecesse mais firmemente junto ao
povo, e para que os ânimos
ânimos de todos os súditos
súditos melhor
melhor aquiescessem,
aquiescessem, de modo que
cessasse toda a divisão e dissensão, como retamente o afirma Alonso de Madrigal,[ 84 ]
e o confirma Flávio Josefo em suas Antigüidades
Antigüi dades Judaicas, livro XI, capítulo 6, ao
agregar que ali, observando-o toda a multidão, Samuel novamente ungiu a Saul com o
óleo sagrado – algo que não relata a Escritura, mas que pode entender-se do fato de que
nem sempre este tipo de unção era simultânea à entrega do reino: ao contrário, podia
também ser sinal de uma entrega já feita ou por fazer.
8. Por isso, no mesmo livro de I Samuel [16:1 e ss.], de modo semelhante David foi
ungido secretamente por Samuel com a promessa do reino, o qual em seguida Saul
possuiu
possuiu pacificamente
pacificamente por muitos
muitos anos. Isso é sinal
sinal claro
claro de que por aquela
aquela unção David
não foi feito rei, mas designado para a sucessão do reino. Por isso tem-se depois em II
Samuel [2:7 e ss.] que ele é novamente ungido pela tribo de Judá, para que reinasse
ei nasse
sobre a casa de Judá; e ali também se relata haver dito David que: Embora esteja morto
sobre
vosso senhor Saul, ungiu-me a casa de Judá para reinar sobre ela, sinalizando que a
promessa de Deus se completara
completara mediante
mediante o consentimento
consentimento do povo. E por isso não
começou a reinar sobre as outras tribos (como nos conta o capítulo 5 do mesmo livro)

76
enquanto não vieram os anciãos de Israel a David em Hebron, e com eles travou pacto
o rei David em Hebron perante o Senhor, e ungiram David como rei sobre Israel.
9. MATIAS RECEBEU SEU APOSTOLADO IMEDIATAMENTE DE D EUS EUS. – Nossa posição é,
portanto, provável,
provável, e contra ela
ela pouco vale
vale o argumento
argumento do rei acerca do sorteio,
sorteio, pois
pois
or si a eleição por sorteio direto mediante especial providência de Deus apenas prova
que a designação da pessoa pelo próprio Deus foi feita imediatamente.
Mas não ocorreu por isso que Matias, eleito por sorteio, não recebesse imediatamente
de Deus a dignidade e o poder apostólicos. Porque, embora isso não se colija
suficientemente pelo mero modo de eleição por sorteio, colige-se do tipo e da excelência
de sua dignidade e poder. Pois a dignidade apostólica era sobrenatural e instituída
imediatamente pelo Cristo, e portanto apenas Ele mesmo podia concedê-la, e
imediatamente. Portanto, ainda que os apóstolos houvessem elegido a Matias sem sorteio
– o que poderiam haver feito,
feito, se soubessem com certeza
ce rteza que ele
ele era o mais digno,
digno, como
freqüentemente insinuam-no os Santos Padres – ele mesmo assim receberia
imediatamente do próprio Cristo a dignidade e o poder. Logo, não é pelo sorteio, mas
pelo
pelo tipo de poder,
poder, que se deve concluir
concluir se Deus
De us o confere imediatamente
mediatamente ou não.
10. OS EXEMPLOS ADUZIDOS PELO REI JAIME NÃO CONVENCEM QUE O PRINCIPADO POLÍTICO
PROCEDA IMEDIATAMENTE DE D EUS. – Ante esta exposição, portanto, é nossa a tese que
mais se confirma mediante as passagens e exemplos aduzidos. Porém, como tal
exposição não é preceito de fé , nem absolutamente necessária, concedamos ao rei Jaime
ser provável que Saul e David tenham recebido o reino e o poder imediatamente de Deus
– pois
pois facilmente
facilmente poderia
poderia alguém,
alguém, se quisesse,
quisesse, acomodar as palavras
palavras da Escritura
Escritura neste
sentido. Quanto a David, afirma-o abertamente Soto;[ 85 ] quanto a ambos, di-lo
Azpilcueta Navarro,[ 86 ] e o mesmo opina Alonso de Madrigal, como indicado acima.
Ainda assim, estas posições não apenas não se opõem à resolução que propusemos, mas,
ao contrário, a partir delas podemos confirmá-la com igual eficácia. Primeiro, porque
exemplos específicos pouco valem para inferir uma regra universal: antes costumam
constituir exceções à regra, e delas sói produzir-se aquele argumento que os juristas
chamam de “caso excepcional”, para inferir uma regra em contrário. Segundo, porque
naquelas mesmas passagens supõe-se manifestamente haver no povo livre o poder de
constituir para si um rei, e mesmo de escolher e designar a pessoa a quem entregar o
direito do reino – e o provam abertamente os testemunhos da Escritura que acima
ponderei.
ponderei.
E portanto Deus particularmente reservou para si a escolha da pessoa a quem
constituir rei daquele povo, visto que, sem a revelação e o preceito divinos, tudo isso se
constituía pelo arbítrio do povo. Logo, daí não se pode inferir uma regra geral para todos
os reinos, a saber, que pertenceria a Deus o designar ou escolher imediatamente a pessoa
constituída no trono régio, quer no início do reino, quer em sua continuação. (Do
contrário, que nos mostre o rei inglês quando Deus, mediante particular revelação ou
sinal singular, teria elegido a ele ou algum de seus progenitores como rei da Grã-
Bretanha.)

77
Tampouco se pode disso inferir que Deus concede ou concedeu ordinariamente o
princi
principado
pado aos reis temporais – ainda
ainda que, talvez,
talvez, no início
nício do reino
reino de Israel, devido
devido a
um especial cuidado que tivera para com este, tenha-o feito uma e outra vez; também
isso pode depreender-se da outra proibição feita àquele povo, em Deuteronômio [17:15]:
não poderás fazer rei um homem de outra gente. Porque tal proibição foi certamente
positi
positiva,
va, não natural,
natural, pois
pois consta que outros povos e nações podiam
podiam fazer para si reis
oriundos de qualquer região ou nação, e também nos próprios imperadores romanos isso
se observou sem qualquer injustiça ou violação do direito natural. Tal proibição foi,
portanto, positi
positiva
va e específica.
específica. Logo,
Logo, supôs haver naquele
naquele povo o poder de constitui
constituirr
para si reis
reis oriundos
oriundos de qualquer
qualquer gente, exceto se estabeleci
estabelecida
da uma proibi
proibição
ção divi
divina;
na;
conseqüentemente, havia este livre poder no povo de Israel antes de tal proibição, e o
houve sempre naqueles povos sobre os quais ela não recaiu – e foi mediante este poder
que tiveram início os reis.
11. T ERCEIRA OBJEÇÃO. – Terceiro, em favor do rei Jaime e da confirmação de suas
opiniões poderíamos instar com passagens da Escritura e dos santos, pelos quais antes
provamos que os reis
reis são mini
ministros de Deus, e que dele
dele próprio
próprio recebem o poder.
poder. P ois
ois
naquelas mesmas passagens atribui-se apenas a Deus tal concessão. Portanto,
deveríamos entender que o poder procede de um Deus que o doa imediatamente, pois é
esta a mais pura e mais simples interpretação. Assim, pelo mesmo motivo o poder régio
procederia
procederia diretamente de Deus.
12. SOLUÇÃO. – A isso respondemos, primeiro, que o próprio poder régio procede
imediatamente de Deus, como já afirmamos. Porém, como isso não ocorre mediante
revelação ou doação especial, mas por certa conseqüência natural (demonstrada pela
razão natural), o poder apenas é dado imediatamente por Deus àquele sujeito no qual ele
se encontra por exigência da mera razão natural. Ora, tal sujeito é o próprio povo, e não
qualquer de suas pessoas, conforme indiquei. Porém, visto que o povo transfere o poder
a um rei, e que a própria escolha deste rei não ocorre sem a cooperação divina (nem sem
sua particular providência), o poder régio se diz concedido por Deus. E isso o declarou
egregiamente Crisóstomo, na homilia 23 sobre a epístola as Romanos;[ 87 ] ali, ao tratar
daquelas palavras: Não há poder que não venha de Deus, assim se expressa: Que dizes?
Que todo príncipe foi constituído por Deus? Isso não o digo. Pois agora não me refiro
a qualquer príncipe que seja, mas à própria coisa – isto é, ao próprio poder. Por isso
acrescenta: O fato de que existam principados, e que imperem estes homens e sejam
súditos aqueles, e que as coisas
coi sas todas não se conduzam de modo simplóriosimplóri o e
irrefletido, digo ser obra da sabedoria divina. E, em razão disto, não nos disse que não
há “príncipe” que não venha de Deus; antes referiu-se à própria coisa, dizendo: não há
oder que não venha de Deus. E o mesmo nos ensina Teofilacto.[ 88 ]
Ora, tampouco é necessário que todas estas coisas sejam explicitadas ponto a ponto
na Escritura. Pois nela própria consta que muitos efeitos se atribuem a Deus quase com
essas mesmas palavras, e é a partir da matéria em questão que se deve deduzir, segundo
a reta razão, o modo pelo qual há de dizer-se que eles procedem de Deus. Pois também

78
se diz freqüentemente que Deus concede reinos mediante permissão especial, embora
estes sejam usurpados mediante injustiça e sedição – o que parece ser a opinião do
próprio
próprio rei da Ingl
Inglaterra acerca de Jeroboão,[ 89 ] e que se dá com muito
muito mais
mais certeza
em outros reis, conforme observou Agostinho, no livro V da Cidade de Deus, cap. 21, e
também Orígenes, na Homilia 4 sobre Juízes.
E, para que os reis sejam chamados de ministros de Deus, basta que possuam poder
sob Ele mas mediante o povo, pois trata-se do modo mais conatural e perfeito que se
pode cogitar
cogitar no âmbito da razão natural.
natural.
13. Já quanto à comparação ou equiparação que nisso se faz entre o Pontífice e os reis,
respondo que são casos muito dessemelhantes.
dessemelhantes. P rimei
rimeiro,
ro, porque a monarquia
monarquia pontifícia
pontifícia é
instituída e ordenada imediatamente pelo próprio Deus para toda a Igreja de uma maneira
tal que não pode ser mudada. Por outro lado, o modo do regime temporal não foi
definido nem ordenado por Deus, mas deixado à disposição dos homens.
Por isso, o poder espiritual nunca existiu na comunidade de toda a Igreja: Cristo não
o conferiu ao corpo da Igreja, mas à sua cabeça, seu vigário; portanto, não pode a Igreja
concorrer na escolha do Pontífice à maneira de quem dá o poder, mas apenas enquanto
designa a pessoa. Já o poder civil encontra-se por natureza na própria comunidade, e
mediante ela é transferido a este ou aquele príncipe, por vontade da própria comunidade,
à maneira de quem – por assim dizer – dá a outro uma coisa que é sua.
Disto decorre também que a jurisdição espiritual soberana do Pontífice lhe seja
conferida por direito divino de maneira tal que não possa ser limitada, aumentada ou
reduzida, seja por consentimento universal da Igreja, seja pela vontade do próprio Papa.
Este, enquanto retém tal dignidade, não pode diminuí-la nem alterá-la em si. Já o poder
régio – ou o de qualquer tribunal temporal supremo – pôde no princípio constituir-se
como maior ou menor, e, com o transcurso do tempo, poderá ser alterado ou diminuído
por aquele que tiver
tiver autoridade para fazê-lo, conforme for conveniente
conveniente ao bem comum.

( habitus)) corresponde à disposição intermediária entre a potência e o ato pleno,


[ 80 ] Em termos breves, o hábito (habitus
condição na qual a realização de algo encontra-se ao alcance do sujeito, embora este possa não exercê-lo. Num
paralelo
paralelo com a teoria do c onhecimento, ao não sabermos s abermos o que é um triâng
tr iângulo, encont ramo-nos em potência para
ulo, encontramo-nos
sabê-lo. Se apenas conhecemos o triângulo, mas não o estamos considerando efetivamente, nossa mente
encontra-se em hábito com respeito a ele. Se não apenas o conhecemos, mas efetivamente mantemos o triângulo
em nossa consideração, sua forma encontra-se em nossa mente em ato pleno. pleno. [N. T.]
[ 81 ] S. Th.,
Th., Iª-IIae , q. 97, a. 3.
[ 82 ] Tractatus de legibus ac Deo legislatore,
legislatore, Antuérpia, 1613, lib. VII, c. 18, pp. 553-9.
[ 83 ] S. ROBERTOB ELARMINO, Opera Omnia, Paris, A. L. Vivès, 1870-1874, t. III, c. 3, p. 7.
[ 84 ] Commentaria in Primam Partem I Regum, Regum, Veneza,
Veneza, 1596, c . 11, questões 12 e 13, fol. 191. O gentílico
gentílico
latino Abulensis – “de Ávila” – nos remete a Alonso Tostado (Alonso Fernández de Madrigal), bispo daquela
cidade.
[ 85 ] DOMINGO DES OT O, De iustitia et iure, iure, Lyon,
Lyon, 1559, IV
I V, q. 2, art. 1, pp. 207-9.
[ 86 ] MARTÍN DEA ZPILCUETAN AVARRO, Commentarii et tractatus, tractatus, Veneza, Nicolinus, 1601, t. III, Relectio cap.
Novit
Novit de Iudicis, Notabile
Notabile tertium, nn. 33 e 147, ff. 67 e 74.
[ 87 ] S. J OÃOC RISÓSTOMO, In Epist. E pist. ad Rom. Homil. XXIIIXX III (Rom. 13:1) (PG 60, 613-622).
[ 88 ] T EOFILACTO DEÁ CRIDA, Expositio in i n Epist.
Epi st. ad Roman.,
Roman., c. 13, 1 (PG 124, 514).
[ 89 ] J AIMEI, Praefatio
Praefat io,, p. 143.

79
Capítulo IV
Se entre
entre os cristã
cri stãos
os há um legítimo
le gítimo poder civil
civi l
ao qual estejam obrigados a obedecer
1-2. O erro dos antigos hereges e o primeiro fundamento deste erro. 3. O segundo
fundamento. 4. Rejeita-se a referida heresia com as Escrituras
Escri turas e os Padres.
Padres. 5. Rejeita-
se a mesma heresia
heresia com um argumento de Tomás Tomás de Aquino.
Aqui no. 6. Explica-se a força do
argumento de Tomás. Não é lícito aos fiéis criar voluntariamente para si um novo rei
infiel. 7-8. O rei gentio que por guerra justa ocupa uma cidade cristã também obtém
sobre
sobre ela domínio
domíni o verdadeiro. Quando a sujeição
sujei ção ao príncipe
prínci pe inclina
i nclina ao detrimento
detri mento da
fé, os fiéis
fiéi s podem dela se eximir
exi mir.. 9. Quando pode dissolver-se
di ssolver-se um matrimônio
matri mônio entre
entre
infiéis em razão da conversão de um deles à fé. 10. Conclusão: é verdade de fé que
entre os cristãos há verdadeiros reis e príncipes. 11-14. Uma evasiva, e sua refutação.
15. Prova-se a tese com um argumento. 16-17. Responde-se a uma evasão tácita. 18.
Em que consiste
consi ste a liber
li berdade
dade cristã.
cri stã. 19. Refuta-se o primeiro
pri meiro fundamento daquele
primeir
primei ro erro. 20. Expõe-se a passagem de Mateus 17. 21-22. Refuta-se o segundo
fundamento.

1. O ERRO DOS ANTIGOS HEREGES E O PRIMEIRO FUNDAMENTO DESTE ERRO. – Embora nesta
questão não haja controvérsia entre nós e nossos adversários, muitos deles – como ouvi
dizer, e como o reitera várias vezes o rei da Inglaterra em seu PrefácioPrefácio – acusam o
Romano Pontífice de defender uma doutrina que destrói os direitos e domínios devidos
aos príncipes. Portanto, julguei haver-se de explicar o que a fé católica estabelece sobre
este ponto e o que nos ensina a opinião mais sã dos doutores, para que deste modo abra-
se um caminho mais claro e apto a esta controvérsia principal acerca do primado do
Sumo Pontífice.
Ora, de duas maneiras julgou-se e afirmou-se que os reis cristãos não possuiriam
soberania civil para baixar leis, punir delitos e definir o direito político. Uma delas foi a
dos que afirmaram que na Igreja de Cristo não pode haver tal poder, nem seu uso
legítimo, pois os cristãos não podem estar sujeitos a nenhum domínio temporal. A outra
maneira foi a dos que, embora confessem haver na Igreja poder temporal, negam que ele
seja soberano nos reis temporais; ele apenas o seria no Pontífice, do qual o poder dos
reis se deriva por concessão ou tolerância. Deste segundo ponto, trataremos no capítulo
seguinte. Por outro lado, como ele supõe o primeiro, aqui exporemos este primeiro
brevemente – também pela pela razão de que os novos sectários
sectários não opinam
opinam sobre ele
ele
retamente.

81
2. Muitos dos antigos hereges, à maneira de quem seguiria ou imitaria o erro dos galileus
indicado no capítulo I, afirmaram que os cristãos não seriam sujeitos a príncipes
temporais, especialmente se estes fossem pagãos. Isso disseram alguns (como os
begardos[
begardos[ 90 ]) somente acerca dos cristãos
cristãos perfeitos
perfeitos e maximamente
maximamente espiri
espirituai
tuais;
s; já
outros o disseram de todos os justos, ou de todos os cristãos, de modo que julgo
supérfluo enumerar tais erros de modo mais extenso. Daí falaram parvamente os
anabatistas e seus semelhantes que o principado político não é lícito aos cristãos,
especialmente se o exercerem sobre outros cristãos.
Podem cogitar-se diversos fundamentos para tais erros. O primeiro deles (e
específico acerca dos príncipes pagãos) é o de que é indigno e perigoso que um infiel
domine sobre fiéis. Pois adverte-nos Paulo, em II Coríntios [6:14-16]: Não vos prendaisprendais
a um jugo desigual com i nfiéis. E explica-nos a razão disto de vários modos, dizendo:
com os infiéis
Porque,
Porque, que sociedade tem a justiça com a injustiça?
injusti ça? E que comunhão tem a luz com
as trevas? E que concórdia há entre Cristo e Belial? Ou que parte tem o fiel com o
infiel? E que consenso tem o templo de Deus com os ídolos? Portanto, visto que o
primado
primado políti
político
co procede de Deus, não se deve entendê-lo
entendê-lo como concedido
concedido contra a
devida ordem e com perigo para a fé – porque as coisas que procedem de Deus são
ordenadíssimas. Logo, pela mesma razão de que alguém é batizado e recebe a fé, torna-
se imune à sujeição aos príncipes pagãos.
E isso pode confirmar-se por aquelas próprias palavras de Mateus [17:25] em que,
como Cristo interrogasse a Pedro: De quem cobram os reis ei s da terra os tributos, ou o
censo? Dos seus filhos, ou dos alheios?, e Pedro lhe respondesse “dos alheios”,
concluiu o Senhor: Logo, estão livres os filhos, a saber, livres dos tributos, e
(conseqüentemente) do poder do príncipe, pois estas duas coisas são correlatas. Ora,
pelo
pelo nome de “fil
“filhos” o Cristo
Cristo referiu-se
referiu-se a todos os seus irmãos e, por conseqüência,
conseqüência, a
todos os fiéis, pois todos são filhos daquele reino sob o qual estão todos os reinos
terrenos, como afirmou Agostinho.[ 91 ]
Ou também por este outro título participariam da referida liberdade: o de que são
todos, de maneira especial e excelente, da família de Cristo, que é filho natural. Ora,
quando se diz que o filho é livre, inclui-se nisto também a sua família, como afirma
icolau de Lira,[ 92 ] em passagem repetida por outros autores. E o mesmo opinou
Jerônimo, ao dizer: Por nós, Ele suportou a cruz e pagou os tributos. Nós, por sua
honra, não pagamos tributos, e estamos imunes de impostos tal qual filhos de um rei. [
93 ] Tais palavras não se podem restringir, como o desejam alguns, apenas aos
sacerdotes e clérigos, pois os dois elementos nos vêm em conjunto: por nós suportou a
cruz e pagou os tributos. Se suportou simpliciter
simpli citer a cruz por todos, tanto leigos quanto
clérigos, foi também por todos que pagou os tributos. Logo, libertou a todos de pagar
tributos aos reis temporais. Portanto, eximiu-nos todos de seu domínio e jurisdição, visto
que uma liberdade implica a outra.
3. O segundo e mais geral fundamento desse erro é o de que os cristãos estariam livres
do poder de príncipes cristãos porque o postularia a liberdade cristã – a qual entendem
neste sentido e a exageram maximamente Lutero e outros sectários destes tempos, que

82
nesta interpretação distorcem variadas passagens da Escritura. Sobre elas já discorremos
o suficiente,[ 94 ] e portanto agora as omitimos.
Pois bem: partindo desse princípio – a liberdade cristã assim compreendida – inferem
retamente que tampouco nos príncipes cristãos haveria poder civil ou político sobre os
fiéis. Pois, se estes não estão obrigados à obediência, aqueles não têm o direito de
ordenar, uma vez que estas duas sentenças são correlativas e, tolhida uma, tolhe-se a
outra necessariamente. Disto nos apresentam testemunhos do Novo Testamento, em que
se diz que aos cristãos é proibido tanto o dominar quanto o submeter-se. Pois do
domínio afirma-se em Lucas [22:25-26]: Os reis dos gentios dominam sobre eles, etc.,
mas não sereis vós assim; ou, como se diz em Mateus [20:26], não será assim entre
vós. Sobre isso diz-nos Crisóstomo[ 95 ] que Cristo quis estabelecer essa distinção entre
gentios e cristãos.
Já sobre a sujeição, afirma São Paulo, em I Coríntios [7:23]: Não vos façais servos
dos homens – e indica-nos o motivo, antepondo que: Fostes comprados por bom preço preço,
como quem diz que seria indigno dos redimidos de Cristo o sujeitar-se a poderes
terrenos.
4. REJEITA-SE A REFERIDA HERESIA COM AS E SCRITURAS E OS P ADRES. – No entanto, toda
essa posição é, sem dúvida, herética. Pois, em primeiro lugar, os apóstolos ensinaram aos
fiéis já convertidos a Cristo que obedecessem aos reis e potestades, não somente para
evitar castigos, nem porque eram então incapazes de resistir-lhes, nem somente para
evitar escândalo, mas também por consciência, e porque eles são ministros de Deus,
como o demonstramos no capítulo I a partir de São Pedro e São Paulo. Ora, falavam
estes apóstolos na época em que seus imperadores e reis, seus prefeitos ou potestades,
eram infiéis e idólatras. Portanto, depreendemos de sua doutrina que os cristãos
sujeitavam-se aos príncipes embora estes fossem gentios; por conseqüência, reis infiéis
verdadeiros detinham poder sobre os cristãos que viviam em suas terras.
E foi assim que tais passagens foram entendidas e ensinadas por Padres
antiquíssimos, como Crisóstomo, Ambrósio, Orígenes, Epifânio e outros, citados no
capítulo I; também o faz claramente Justino, em sua Segunda Apologia[ 96 ] a Antonino
Pio, imperador pagão: pouco depois do início, por intenção própria Justino exime os
cristãos dessa calúnia, dizendo que: Sempre e em primeiro lugar nos esforçamos para
agar os tributos e impostos àqueles que haveis constituído, conforme Ele nos ensinou.
E aduz-nos as palavras de Cristo em Mateus [22:21]: Dai pois a César o que é de César,
César,
e a Deus o que é de Deus. Em seguida, conclui Justino: Por isso adoramos apenas a
Deus, mas nas outras coisas vos servimos alegres,
alegres, e confessamos que vós sois reis
ei s e
ríncipes dos homens, e rogamos para que com vosso poder régio tenhais mente boa e
sã. Com estas palavras, confessa em nome de todos os cristãos haver infiéis que são reis
verdadeiros e príncipes de cristãos, uma vez que são homens, e que pode em tais infiéis
haver poder, ainda que não tenham mente sã. O mesmo opinam Inácio[ 97 ] e Optato,[
98 ] e este diz expressamente: ainda que o imperador fosse alguém que vivesse à
maneira gentia.

83
Finalmente, podemos agregar a este tema as palavras de Ambrósio,[ 99 ] que, ao
ponderar as palavras
palavras de Cristo
Cristo em Mateus 17, diz-nos:
diz-nos: É grande e espiritual
espiri tual aquela
doutrina pela qual se ensina aos cristãos que devem submeter-se às potestades mais
sublimes, para que ninguém julgue ter-se que dissolver a constituição
constitui ção de um rei
terreno. Nesta passagem, alude também às palavras de São Paulo em Romanos 31. Daí
falar-se manifestamente de um rei legítimo, ainda que não seja cristão; pois assim o disse
São Paulo, assim falava Cristo acerca de César, imperador pagão, e no mesmo sentido se
expressavam os demais Padres, os quais logo citaremos.
5. R EJEITA-SE A MESMA HERESIA COM UM ARGUMENTO DET OMÁS DE A QUINO. – Alcançou a
razão desta verdade Tomás de Aquino, que afirma: O domínio ou a prelazia são
introduzidos pelo direito humano; já a distinção entre fiéis e infiéis é de direito
divino. Ora, o direito divino, que procede da graça, não tolhe o direito humano, que
rocede da razão natural. Portanto, a distinção entre fiéis e infiéis, considerada em si
mesma, não tolhe o domínio e prelazia dos infiéis sobre os fiéis.[ 100 ] Este argumento
é excelente, e pode explicar-se da seguinte maneira: quando os súditos de algum rei
gentio convertem-se à fé, não estão eximidos ipso facto (nem por força do direito divino)
da jurisdição temporal de seu príncipe legítimo, pois não podem por autoridade própria
privar
privar a outro de seu domínio
domínio e direi
direito.
to. Tampouco lhes é dado que o façam pela pela
autoridade divina, pois isso nem lhes foi revelado, nem o dita a razão natural – na
verdade, a Escritura e a reta razão ensinam o contrário.
Primeiro, porque, sem intervenção da concessão divina, isso seria (falando per se)
contrário à justiça; segundo, porque se daria escândalo entre os infiéis e certa ignomínia
da religião cristã, cuja propagação poderia assim ser maximamente impedida. Isso se
confirma e se explica pelo exemplo do matrimônio entre infiéis, que não se dissolve ipso
acto pela conversão (por exemplo) da esposa à fé; ao contrário, a esposa permanece
submetida ao esposo infiel, pois este retém a potestade sobre ela, como o ensina São
Paulo em I Coríntios 7, e como o explica amplamente Agostinho.[ 101 ] Mas a razão é
aquela que apontou Tomás de Aquino: o matrimônio entre infiéis consiste no direito
natural, enquanto a profissão de fé não altera por si o direito da natureza, nem o contrato
humano nele fundado. Tal argumento também foi indicado pelo Papa Inocêncio, nas
Decretais
Decretais.[ 102 ] Portanto, pelo mesmo motivo, não se tolhe o legítimo poder civil em
razão da conversão dos súditos à fé.
6. EXPLICA-SE
A FORÇA DO ARGUMENTO DE T OMÁS. N ÃO É LÍCITO AOS FIÉIS CRIAR
VOLUNTARIAMENTE PARA SI UM NOVO REI INFIEL. – Não obstante, há algo muito digno de
nota acerca da doutrina de Santo Tomás naquela passagem citada: tal razão apenas
procede quando o domínio
domínio e poder do príncipe
príncipe pag
pagão
ão preexistem
preexistem à fé dos súditos,
súditos, caso
em que também parecem proceder perfeitamente os testemunhos de São Pedro e São
Paulo e a tradição dos Padres. Por isso agrega Santo Tomás: se se trata de instituir ou
atribuir a infiéis um novo poder sobre os que já são fiéis, tal coisa não se deve permitir
de modo nenhum: Pois isso geraria escândalo e perigo para a fé, uma vez que os
súditos, se não são de grande virtude, facilmente seguem o império do príncipe e também

84
a sua religião. E, igualmente, os infiéi
infi éiss desprezarão
desprezarão a fé ao saber de seu abandono por
arte dos fiéis.
Deve-se entender, porém, que esta doutrina se refere a quando a nova sujeição dos
fiéis a um príncipe infiel depende do consentimento e vontade daqueles. Pois neste caso
procedem eficazmente
eficazmente as razões de Santo Tomás e do testemunho de São Paul Pa uloo em I
Coríntios [6:1]: Ousa algum de vós, tendo algum negócio contra outro, ir a juízo
erante os iníquos (isto é, os infiéis, como o diz Tomás) e não perante os santos (ou
seja, os fiéis) ? E, mais abaixo, declara-o o próprio apóstolo São Paulo, ao dizer: Mas o
irmão vai a juízo com o irmão, e o faz perante infiéis![ 103 ] Portanto, se até nos
uízos privados entre fiéis não se há de escolher voluntariamente juízes infiéis, muito
menos pode um povo cristão pôr à sua frente um príncipe infiel. E é por isso que, como
ensina Santo Tomás, a Igreja não o permite de nenhum modo.
7. O REI GENTIO QUE POR GUERRA JUSTA OCUPA UMA CIDADE CRISTÃ TAMBÉM OBTÉM SOBRE
ELA DOMÍNIO VERDADEIRO. Q UANDO A SUJEIÇÃO AO PRÍNCIPE INCLINA AO DETRIMENTO DA
FÉ, OS FIÉIS PODEM DELA SE EXIMIR. – Se, porém, ocorresse a um povo de fiéis ser
submetido involuntariamente e a justo título por um príncipe infiel, então procederiam a
asserção e o argumento que se expuseram.
Por exemplo, se um rei gentio ocupasse uma cidade cristã mediante guerra justa,
adquiriria verdadeiro domínio, pois este procederia do direito das gentes, o qual deriva do
direito natural, que a fé não tolhe. Tampouco o impede a Igreja (falando per se), quando
o príncipe infiel é um gentio e não um súdito dela, como atualmente dizemos.
E o mesmo ocorreria caso um rei infiel, por legítimo direito de sucessão, recebesse
sob si um povo cristão antes sujeito a um príncipe cristão; pois então também a fé dos
súditos não impede a aquisição do domínio, nem depende da vontade daquele povo. Ao
contrário, procede de uma instituição anterior e justa.
Mas estas coisas devem ser entendidas por si mesmas, ou seja, enquanto previnem os
escândalos e perigos dos fiéis, que também podem seguir-se da sujeição destes a seus
antigos príncipes infiéis. E, por isso, se em ambos os casos se temesse com probabilidade
o surgimento de tais incômodos, e não se os pudessem evitar senão recusando um
príncipe
príncipe ou deixan
deixando
do de apoiá-l
apoiá-lo,
o, tal ação poderia
poderia e deveria
deveria ser empreendida,
empreendida, pois
pois a
Igreja não carece de direito nem poder para fazê-lo. E por este motivo afirma Santo
Tomás, na passagem citada, que a Igreja pode por direito instituir que os infiéis sejam
privados
privados do domínio e prelazia
prelazia sobre os fiéi
fiéis,
s, que são transformados em fil
filhos de Deus –
embora a Igreja, para evitar escândalo, não se valha deste poder junto a príncipes infiéis,
que de outro modo não lhe estão sujeitos.
8. Há que considerar também que alguns infiéis são sujeitos à Igreja apenas
temporalmente, como os judeus que habitam terras sujeitas a príncipes cristãos; de tais
infiéis não tratamos, pois estes não são os príncipes soberanos dos quais agora falamos
princi
principal
palmente
mente – embora seja certo que a Igreja ou os príncipes
príncipes cristãos
cristãos podem assim
assim
governá-los nas coisas temporais, principalmente nas que dizem respeito à liberdade e

85
segurança dos fiéis, da maneira em que julgarem ser convenientes ao bem da fé. Isso,
porém, é outro tema.
Há outros infiéis que estão sujeitos à Igreja espiritualmente, ainda que sejam
príncipes
príncipes temporais supremos – como é o caso de hereges batizados,
batizados, que são cristãos
cristãos em
nome mas em realidade são infiéis, visto que carecem da verdadeira fé, embora estejam
sujeitos à Igreja em razão do caráter do batismo. E destes é verdadeira a doutrina que
apresentamos, não apenas para evitar o perigo dos fiéis, mas também em razão do poder
direto que tem a Igreja para punir os hereges, ainda que estes sejam reis, como veremos
mais abaixo.
Já outros infiéis não estão de nenhum modo sujeitos à Igreja, nem temporalmente,
nem espiritualmente, nem de direito, nem de fato. E nestes a doutrina de Santo Tomás só
procede com relação ao poder indireto,
ndireto, pelo
pelo qual a Igreja pode libertar e defender seus
súditos féis de perigos morais e de ocasiões de abandono da fé. Pois a Igreja não tem
urisdição sobre esses reis infiéis, como nos ensina São Paulo em I Coríntios [5:12]: Dos
que estão fora não nos cabe julgar;[ 104 ] portanto, assim como não pode forçá-los à
fé, tampouco pode puni-los por crime de infidelidade. E por este mesmo motivo não
pode privá-l
privá-los
os do domínio
domínio e jurisdi
jurisdição
ção que tenham sobre cristãos.
cristãos. A Igreja
Igreja apenas pode
fazê-lo em razão do governo e necessária providência que tem sobre seus súditos fiéis.
Mas julgo muito verdadeiro que o possa fazer a este título: pois aquele que dá o poder de
governar, dá conseqüentemente o que é necessário para o uso conveniente de tal poder,
como em seguida o mostraremos mais detalhadamente.
9. QUANDO PODE DISSOLVER-SE UM MATRIMÔNIO ENTRE INFIÉIS EM RAZÃO DA CONVERSÃO
DE UM DELES À FÉ. – Neste momento podemos tomar um excelente argumento daquela
doutrina recebida e aprovada pela Igreja, proveniente de São Paulo em I Coríntios 7: a
de que, se um cônjuge antes infiel é agora convertido à fé, e o outro não quer converter-
se, nem coabitar sem ofensa ao Criador, pode-se deixá-lo e dissolver-se o matrimônio.
Portanto, com mesma razão (ou ainda maior) é dado à Igreja o poder de libertar os fiéis
do jugo de quaisquer infiéis, quando a fé sofre perigo com tal sujeição. Pois aqui urge
igualmente o argumento de São Paulo: Neste caso o irmão ou irmã não está sujeito à
servidão.
E mais: nisto podemos notar ainda uma distinção, pois, como o vínculo do
matrimônio é indissolúvel por sua própria natureza, e subsiste apenas entre duas
determinadas pessoas, para que se o possa dissolver a tal título é necessário haver
claramente, no âmbito particular, o perigo do cônjuge fiel. Já o poder régio recai sobre a
multitude dos homens, e por si mesmo não é tão imutável; portanto, basta um perigo
comum e geral no qual vivam os fiéis submetidos (moralmente falando) a príncipes
infiéis, para que a Igreja possa libertá-los de tal submissão – ainda que não conste
claramente, no âmbito particular, o perigo de cada um. E isso porque as leis morais, que
tratam do que é universal, consideram as coisas que se dão na maioria dos casos, ainda
que estas possam não ocorrer em casos particulares.
Ainda assim, a Igreja raramente faz uso desse poder – e isso se dá licitamente,
embora ao deixar de fazê-lo ela exponha seus fiéis a algum perigo. Pois, às vezes, ou ela

86
não tem forças para exercer seu poder com eficácia e resultado, ou teme dar origem
provável a maiores
maiores escândalos.
escândalos. Isso não obstante, cada um dos seus súditos
súditos fiéi
fiéiss poderá
licitamente fugir ou valer-se de outro meio para escapar do perigo, se for probo este
meio, tanto porque estão mais obrigados a cuidar de suas almas do que do direito alheio,
quanto porque então sofrem injúria e violência do referido príncipe, e por isso não estão
obrigados a obedecê-lo.
10. CONCLUSÃO: É VERDADE DE FÉ QUE ENTRE OS CRISTÃOS HÁ VERDADEIROS REIS E
PRÍNCIPES. – Disto também concluímos que é um dado certíssimo e de fé o haver na
Igreja de Cristo príncipes cristãos, assim como reis que detêm poder político ou civil
verdadeiro sobre os seus súditos, também fiéis e cristãos. Esta doutrina não se encontra
expressa em todo o Novo Testamento com as palavras “príncipes fiéis e cristãos”, talvez
porque no tempo em que este foi escrito
escrito não havia
havia ainda reis temporais convertidos
convertidos à fé,
e assim não havia ocasião de falar deles. Porém os testemunhos aduzidos provam a tese
suficientemente, tanto por comparação (ou certamente por razão maior), quanto porque
as palavras dos apóstolos são vastamente irrestritas e universais.
Pois diz São Pedro: Sujeitai-vos, pois, a toda ordenação humana por amor ao
Senhor, quer ao rei, como soberano, etc., e mais abaixo: Honrai ao rei. E depois ordena
aos servos que sejam sujeitos a seus senhores – não somente aos bons, mas também aos
maus.[ 105 ] (E estes não podem dizer-se bons sem que sejam fiéis.)
Veja-se também aquela advertência de São Paulo, dada em Tito [3:1]: Admoesta-os a
que se sujeitem aos principados e potestades, e apresentada mais extensamente em
Romanos 13; ela não nos foi dada pelo Apóstolo somente para aqueles tempos da Igreja
primiti
primitiva,
va, mas para que nela perdurasse para sempre. Logo,
Logo, ela
ela também tem lugar
lugar agora,
com respeito aos príncipes cristãos.
O mesmo pode também confirmar-se pelos testemunhos do Antigo Testamento, dos
quais consta que príncipes fiéis tiveram um regime político sobre súditos fiéis, a cujo
império estes estavam obrigados a obedecer. É o que se colige de Moisés, Josué e outros
uízes até Samuel, e posteriormente Saul, David e seus sucessores, em Deuteronômio 1 e
17, assim como em Juízes e Reis, e em II Crônicas 19, onde faz-se também menção aos
uízes e magistrados inferiores.
Portanto, com muito mais razão devemos observar aquela subordinação e sujeição na
lei da graça, pois ela não diz respeito aos cerimoniais da Lei Antiga, nem pertence
(falando em sentido geral) aos procedimentos judiciais próprios daquela lei, mas à lei
moral do direito natural: seja imediatamente, seja mediante algum direito humano – e
estes direitos perduram na lei da graça e obrigam mais perfeitamente.
11. UMA EVASIVA, E SUA REFUTAÇÃO. – Mas dirá talvez alguém que esse fundamento que
defendemos conclui-se retamente a partir da hipótese de que na Igreja de Cristo há
verdadeiros reis e príncipes temporais, possuidores de verdadeiro domínio e jurisdição
sobre os cristãos. Pois, postulado isso, as leis da justiça natural e da obediência
evidentemente obrigam os súditos a obedecer. Mas os adversários que defendem o erro

87
contrário negam tal princípio, ao afirmar que ele repugna à instituição de Cristo e à
liberdade cristã, ou seja, à perfeição da lei da graça.
Contra isso, no entanto, nossa tese pode ser provada a partir da tradição imemorial da
Igreja, desde os tempos em que imperadores e reis começaram a converter-se a Cristo e
batizar-se.
batizar-se. P ois
ois sempre foram tidos como rei r eiss e príncipes
príncipes verdadeiros, e não menos, mas
mais perfeitos e excelentes do que eram antes. Isso consta da História Eclesiásti ca de
Históri a Eclesiástica
Eusébio e das de outros autores, especialmente acerca de Constantino, Teodósio e
semelhantes. E o mesmo sempre confessam os concílios gerais, como o I de Nicéia (ao
qual assistiu Constantino) e outros.
Ademais, os Sumos Pontífices que escreveram a reis e príncipes cristãos os
reconheciam como verdadeiros príncipes e senhores temporais, como é patente em
muitas epístolas de Leão e Gregório, assim como de outros que mencionaremos no
capítulo seguinte. Por agora, apenas citamos as palavras do Papa Símaco,[ 106 ] na
pologia ao Imperador Anastácio. Diz ele: Nós aceitamos as potestades humanas em
seu lugar,
lugar, enquanto não erguem
erguem suas vontades contra Deus.Também o XII Concílio de
Toledo, capítulo 1, declarou sob pena de excomunhão que Eríngio era verdadeiro rei da
Espanha;[ 107 ] no Concílio de Meaux, capítulos 15 e 16, lançava-se anátema sobre os
que presumissem contradizer a potestade régia;[ 108 ] falava-se dos reis Cristãos, e deles
se dizia que tinham de Deus o seu poder, segundo a frase do Apóstolo – a qual
igualmente se entende acerca dos reis cristãos.
12. E da mesma maneira entenderam os testemunhos apostólicos Crisóstomo,[ 109 ]
Ambrósio[ 110 ] e outros Padres – especialmente Agostinho. Este, acerca das palavras:
Toda alma esteja sujeita às potestades superiores,[ 111 ] adverte-nos corretissimamente
a que ninguém, pelo fato de que foi chamado pelo Senhor à liberdade ao fazer-se
cristão, erga-se em soberba e deixe de pensar que nos caminhos desta vida devemos
observar cada um o seu lugar; nem se julgue livre de submeter-se às potestades
superiores, às quais foi confiado por agora o governo das coisas temporais.[ 112 ] E
mais abaixo: Portanto, se alguém julga que por ser cristão
cri stão não deve render
render imposto ou
tributo, ou que não deve dar a honra devida às potestades que disto se ocupam,
encontra-se em grande erro. Ali, Agostinho fala de seu tempo, quando na Igreja já havia
príncipes
príncipes cristãos, e assim adequa as palavras de São P aulo
aulo ao caso de todos os príncipes
que então reinavam.
reinavam.
E tais palavras de Agostinho foram tomadas por Anselmo ao comentar São Paulo, e
mais brevemente por Primásio. O próprio Agostinho, em Contra Cresconium,[ 113 ]
explica o quão necessário é o ofício do rei também entre os cristãos, e como ele é
exercido de modo melhor e mais salubre pelos bons – isto é, piedosos e fiéis – monarcas
do que por aqueles que são maus e infiéis.
13. Além disso, confirmam-no os títulos honoríficos com os quais os antigos Padres
escrevem aos príncipes fiéis: Cirilo de Alexandria,[ 114 ] no livro Sobre a Reta Fé,
dedicado a Teodósio, primeiro o chama de rei cristianíssimo, e depois lhe diz: Vós sois
a fonte das mais altas dignidades, e sobre toda e qualquer eminência sois origem e

88
rincípio da felicidade humana. Mais abaixo: É de vosso tão piedoso
pie doso e ilustre império
impéri o
a maior defesa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pois por ele reinam os reis, etc. Em
seguida, promete demonstrar que a gloriosa piedade ante Deus é o fundamento sólido
das honras régias. Coisa semelhante se pode ver em Ambrósio,[ 115 ] na Epístola a
Graciano que antepõe aos seus livros Sobre a Fé, onde também o chama príncipe
cristianíssimoe o mais cristão dos príncipes. O mesmo o faz em seus discursos quando
da morte de Teodósio e Valentiniano, e em várias epístolas aos imperadores cristãos de
seu tempo. Isso foi igualmente reconhecido por Gregório de Nazianzo,[ 116 ] cujas
excelentes palavras citarei depois, em lugar mais oportuno.
14. Além disso, agrego um testemunho mais antigo, o de Marcial, bispo de Limoges, que
viveu quase no tempo dos apóstolos. Na sua Epístola aos Tolosanos,[ 117 ] narra que
converteu à fé um príncipe da Gália, ao qual chama de rei e cuja fé elogia muito. E
adiciona: Ao qual deveis obedecer em prínci pe vos é constituído por Deus,
e m tudo, pois o príncipe
etc. Podemos também citar a passagem de Tertuliano,[ 118 ] na qual diz primeiro que
deve dar-se a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, como ensina o Cristo;
por isso, agrega depois: No que diz
agrega depois: di z respeito, portanto, às honras dos reis e imperadores,
temos como suficientemente ordenado o ser-nos necessária, em todos os obséquios, a
submissão aos magistrados, príncipes e potestades, conforme o precei preceito
to do Apóstolo.
as dentro dos limites da disciplina, naquela medida em que nos mantemos afastados
da idolatria. E embora ali se fale do tempo dos imperadores gentios, o autor entende tal
doutrina de maneira geral; por isso adiciona que os cristãos naquela época podiam
acolher a dignidade e a administração do poder civil por parte dos imperadores, desde
que o fizessem sem qualquer mancha de idolatria.
Por isso, escreveu corretamente Próspero da Aquitânia, em seu [poema no]
Epigrammaton, capítulo 34: Deve-se render tudo que bem postula a ordem ordem do mundo e
não viola o propósito da piedosa fé. Dos mansos e santos nenhum poder merece o
desprezo: é justo servir aos reis e senhores. Para que aos servos de Cristo lhes sirva,
ara honra verdadeira, haver amado os bons e tolerado os maus.[ 119 ]
15. P ROVA-SE A TESE COM UM ARGUMENTO. – Também pela razão podemos facilmente
provar esta verdade. P ois
ois a fé cristã
cristã e o batismo
batismo não tornam alguém
alguém incapaz para a
dignidade régia e o principado, nem para a potestade política. Logo, se alguém os possuía
antes de ter a fé, não os perde em razão do batismo ou da fé, caso se converta a ela. Ou
se, já cristão, alcança-os verdadeiramente mediante eleição ou outro justo título,
constitui-se como verdadeiro rei, príncipe ou magistrado. Portanto, também os súditos
fiéis e cristãos estão obrigados a obedecer-lhe. Estas conclusões são evidentes por si e
pelo
pelo que já foi dito. E o antecedente se prova porque aquela incapacidade,
incapacidade, ou proviria
proviria de
uma particular instituição de Cristo, ou proviria da natureza da coisa e de alguma
incompatibilidade natural. Pois nenhum outro argumento se pode cogitar, e aqueles dois
apresentados são totalmente falsos e irracionais.

89
16. RESPONDE-SE A UMA EVASÃO TÁCITA. – Sobre o primeiro, o tema é claro. Antes de
tudo, porque em nenhum lugar lemos que Cristo proibiu o principado régio aos fiéis,
como facilmente o mostraremos abaixo, satisfazendo os argumentos da opinião contrária.
Em segundo lugar, porque, sobre o Cristo e o tempo da graça, previa-se sobretudo que
os reis da terra creriam em Cristo e o adorariam. Vemos em Salmos [72:10]: Os reis de
Tarsis e das ilhas trarão presentes, os reis da Arábia e de Sabá lhe farão tributo, e o
adorarão todos os reis da terra. Por isso diz-se em Salmos 2 que, primeiramente, os reis
da terra ergueram-se contra Cristo, mas depois agrega-se: Agora, pois, ó reis, ei s, sede
rudentes; deixai-vos instruir, juízes da terra. Servi ao Senhor com temor, etc.
Também Isaías [49:23]: Os reis serão os teus aios, e as suas rainhas as tuas amas;
diante de ti se inclinarão com o rosto em terra, e lamberão o pó dos teus pés. E
saberás que eu sou o Senhor, mi m não serão confundidos.E em
Senhor, que os que confiam em mim
seguida [60:3]: Os gentios caminharão à tua luz, e os reis ao resplendor que te nasceu,
etc.
Tampouco pode dizer-se ou cogitar-se que os reis que vêm à fé de Cristo por este
mesmo fato perdem seus reinos e deixam de ser reis; pois, como canta a Igreja, não
tolhe reinos mortais quem os dá celestiais.[ 120 ] De outra maneira, a providência não
haveria sido tão suave e conveniente: se os reis, uma vez convertidos a Cristo, logo
perdessem os reinos
reinos que detêm justamente, decerto haveria
haveria poucos que desprezariam
desprezariam
seus reinos a ponto de querer tornar-se cristãos. Portanto, não é crível que Cristo, que
chama para si todas as classes de homens, e dispôs sabiamente os meios aptos à sua
conversão, tenha imposto tamanho impedimento à conversão dos príncipes temporais, e
relegado à sua Igreja tal instituição.
17. Sobretudo porque tal instituição não seria pertinente ao esplendor da Igreja, nem ao
bom regime
regime temporal,
temporal, nem à perfeição
perfeição espiri
espiritual
tual.. Quanto ao primeiro
primeiro:: muito
muito mais
mais faz
resplandecer a fé e a Igreja de Cristo o fato de que a Ele e a seu vigário sujeitem-se os
reis, imperadores e príncipes da terra; e isso é sem dúvida o que se designa nas profecias
antes citadas. Quanto ao segundo: o argumento postulado acima, acerca da necessidade
do principado político para a conservação da sociedade humana, não tem menos lugar
dentro da Igreja de Cristo do que fora dela, pois também os cristãos necessitam de uma
comunidade política na qual se observem a paz e a justiça, e para isso também eles
precisam
precisam de direção
direção e coação civi
civis, como é evidente
evidente por si.
si. Logo,
Logo, como nas coisas
coisas
temporais Cristo não desejaria governar mal sua Igreja – nem, por outro lado, haveria
determinado regê-la milagrosamente – não era devido que lhe tolhesse um regime como
que natural, nem (conseqüentemente) o principado político. Quanto ao terceiro: o
princi
principado
pado políti
político
co não é contrário
contrário à perfeição essencial
essencial da Igreja, que consiste
consiste na
verdadeira e viva fé, a qual opera mediante a caridade. Visto que tal principado é afim à
ustiça e à razão natural, não pode ser contrário à caridade. Tampouco é contrário à
perfeição
perfeição dos conselhos
conselhos escriturai
escriturais,
s, pois
pois para esta não se impõeimpõe como necessário
necessário o
abandono do domínio e jurisdição temporais; isso é deixado ao arbítrio da vontade livre,
quando se diz: se queres ser perfeito
perfei to, etc.[ 121 ] E assim a perfeição evangélica e a graça

90
de Cristo mostram-se com ainda mais força pelo fato de que muitos imperadores e
príncipes
príncipes abdicaram lilivremente de seus impérios
mpérios e rei
re inos.
18. EM QUE CONSISTE A LIBERDADE CRISTÃ. – Com isso se prova de modo suficiente o
segundo ponto: que os cristãos certamente não são incapazes do principado político em
razão da natureza da coisa, ou por certa incompatibilidade natural. Primeiro, porque pela
natureza da coisa se demonstrou com ainda mais força o ser esse regime necessário aos
cristãos, aos quais também é muito melhor ser governado por príncipes cristãos do que
por não-cristãos
não-cristãos – alg
algo que já se exp
expôs,
ôs, e que é evidente
evidente por si mesmo. Portanto, com
especial razão foi necessário aos cristãos, pela natureza da coisa, que fossem capazes dos
reinos e magistrados temporais.
Segundo, porque, se houvesse alguma incompatibilidade, ou seria com a liberdade
cristã, ou com a fé. Mas a liberdade cristã não consiste na isenção das justas leis
humanas, nem na imunidade da justa coação ou punição pelos pecados, quando estes se
cometem contra a paz e a justiça. Ela antes consiste na isenção da lei de Moisés, ou do
temor servil, ou – o que é o mesmo – consiste numa servidão livre movida pelo amor e a
caridade, à qual o regime humano não repugna; ao contrário, auxilia-a quando ela existe.
Quando não existe,
existe, supre sua carência mediante a coação.
Quanto à fé, tampouco a ela repugna o referido poder ou a sujeição que lhe
corresponde, pois ambos são conformes à razão natural, a qual não é contrária à fé. Isso
o confirma suficientemente São Paulo, em sua Epístola a Filêmon, na qual claramente
pressupõe – em razão da fé que FilêmonFilêmon possuía, e que seu servo Onésimo
Onésimo havia
havia
recebido – que nem àquele havia sido tolhido o direito de domínio, nem a este se havia
anulado a servidão. Logo, o mesmo se deve dizer a fortiori da jurisdição política e da
submissão que lhe corresponde.
19. REFUTA-SE O PRIMEIRO FUNDAMENTO DAQUELE PRIMEIRO ERRO. – Quanto ao primeiro
fundamento do erro contrário, respondemos com aquelas palavras de São Paulo, em II
Coríntios [6:14]: Não vos prendais
prendais sob um mesmo jugo com os infiéisinfi éis, entendendo-se
“infiéis” literalmente, enquanto infiéis, ou seja: não participeis com os infiéis nas obras
que lhes são próprias, que realizam na medida em que são infiéis. E todos os argumentos
de São Paulo comprovam este sentido.
Mas de tal posição conclui-se que os fiéis só não devem obedecer a príncipes infiéis
se estes ordenam algo contrário à fé ou à verdadeira religião. E desta maneira
entenderam aquela passagem Ambrósio,[ 122 ] Teodoreto,[ 123 ] Santo Tomás[ 124 ] e
também Agostinho, em Contra os Donatistas. [ 125 ] É fato que Jerônimo[ 126 ] entende
por jugo o vínculo matrimonial, e opina que ali se proíbe à mulher cristã contraí-lo com
um gentio; mas sem qualquer dúvida o Apóstolo não fala ali especialmente do vínculo
matrimonial, pois nem faz dele menção, nem há em todo aquele contexto ocasião para
tratá-lo especificamente.
É antes provável o que nos disse Crisóstomo: que São Paulo adverte os fiéis a evitar
excessiva convivência e familiaridade com os infiéis, decerto pelo perigo de que sejam
corrompidos por eles na fé ou nos costumes.[ 127 ] Neste sentido, o Apóstolo não aduz

91
ali um novo preceito positivo, mas explica o natural, pelo qual cada um está obrigado a
evitar o perigo, para que nele não pereça. Da mesma maneira, também a república cristã
está obrigada a evitar o príncipe infiel, seja não o aceitando – caso dependa de seu
próprio
próprio consentimento –, seja repelindo-o
repelindo-o – se em razão de seu império
mpério se teme o perigo
perigo
moral de que ela seja arruinada. Este segundo recurso, no entanto, não deve ser utilizado
por autoridade privada,
privada, mas públi
pública, quando ademais o príncipe
príncipe detém direito
direito legíti
legítimo
mo de
reinar. E assim preserva-se a devida ordem e evitam-se os perigos.
20. EXPÕE-SE A PASSAGEM DE M ATEUS 17. – Quanto a Mateus 17, como depois
consideraremos mais extensamente o tema da imunidade eclesiástica, agora apenas
afirmo brevemente que, pela palavra “filhos”, não se entendem ali todos os fiéis, nem
todos os justos. Pois Cristo ali fala literalmente dos filhos naturais, como consta do
contexto e da exposição feita por todos os exegetas.
Ao que diz Agostinho, responde Santo Tomás[ 128 ] que ali se falou em sentido
espiritual, e que assim os filhos do reino estavam livres da servidão do pecado, e do
tributo que deviam pagar em razão dele. Tal resposta não agrada a Caetano,[ 129 ] que
por isso expõe
expõe que por “filhos
“filhos do reino”
reino” (ao qual se subordinam
subordinam os reinos
reinos terrenos)
Agostinho haveria entendido não todos os justos, mas o que têm precedência à maneira
de filhos, como o são os bispos e outros eclesiásticos. Mas tampouco estes são filhos
naturais e, por isso, se nos atemos à exatidão das palavras, não estão compreendidos sob
o nome e a razão de filhos. Por isso julga Jansênio[ 130 ] que Agostinho falou
unicamente do Cristo, embora falasse de “filhos”, no plural, pois Cristo Senhor falava de
“filhos naturais” de uma maneira geral.
Tampouco estão compreendidos todos os cristãos sob aquela liberdade senão a título
de pertencer à família do Cristo, como o explica suficientemente São Paulo em Romanos
13, pois aquela união com Cristo numa mesma família – ou seja, a Igreja – é muito
ampla e de outra ordem (isto é, espiritual), que não tolhe a submissão ou servidão
corporal, e conseqüentemente tampouco tolhe a ordem de justiça que dela nasce.
Se em razão de tal título se estenderia ou não aquela imunidade a todas as pessoas
eclesiásticas pela força das palavras de Cristo, vê-lo-emos depois. E exporemos as
palavras
palavras de Jerônimo, que parecem aplicar-se
aplicar-se a este assunto.
21. REFUTA-SE O SEGUNDO FUNDAMENTO. – Quanto ao segundo fundamento, já se
respondeu que a verdadeira liberdade cristã não exclui a honesta submissão a legítimos
príncipes
príncipes temporais,
temporais, sejam cristãos,
cristãos, sejam infiéi
nfiéis,
s, como foi abundantemente declarado
declarado a
partir
partir da doutrina
doutrina dos apóstolos,
apóstolos, e tratado de modo mais detalhado
detalhado no referido livro
Sobre as Leis.[ 131 ] Finalmente, quanto às palavras de Nosso Senhor, Cristo não teve a
intenção de com elas tolher o justo principado entre os cristãos, mas apenas ensinar-lhes
a não imitar a ambição e tirania dos príncipes gentios. E por isso não se refere aos reis
simpli citer , mas diz sob certa determinação: Os reis dos gentios dominam sobre eles,[
simpliciter
132 ] onde também a palavra “dominar” indica o intenso desejo e o modo ambicioso de
governar, como o afirmou São Pedro: Tampouco dominando sobre a herança de Deus.[
133 ] E foi assim que o expôs Crisóstomo na Homilia sobre Mateus[ 134 ] e em outra
Homili a sobre

92
breve alocução sobre Mateus 20. Tanto pela ocasião em que o Senhor expressou-se para
repreender a ambição de seus discípulos e sua contenda pelo primado, quanto pelas
palavras
palavras que aduziu
aduziu – a saber,
saber, Mas não sereis
sereis vós assim; antes o maior entre
entre vós faça-
se como o menor – consta claramente que Cristo não aboliu a ordem, nem os graus de
maior e menor, mas quis moderar a cupidez de seus discípulos.
22. Quanto ao que diz São Paulo: Não vos façais servos dos homens,[ 135 ] responde-se
que ali não se trata da sujeição civil, nem da servidão penal ou rigorosa, pois nenhuma
delas repugna ou derroga o preço da redenção de Cristo. De fato, no mesmo ponto diz o
Apóstolo: Foste chamado preocupes com isso. E até agrega que se
c hamado sendo servo? Não te preocupes
pode preferir a servidão
servidão à liberdade – e isso em razão da humil
humildade, como o interpreta
Santo Tomás,[ 136 ] com Ambrósio e Gregório. Portanto, quando nos diz que não nos
façamos servos dos homens, São Paulo se refere à servidão pela qual o homem é
preferido
preferido ao Cristo,
Cristo, por servir
servir ao homem naquelas
naquelas coisas
coisas que são opostas à servidão
servidão a
Deus. E, porque isso seria contrário ao efeito da redenção de Cristo, o Apóstolo avança
uma razão nobilíssima: Fostes comprados por bom preço preço. Logo, servir aos homens
daquela maneira deve ser algo alheio aos redimidos por Cristo. Mas não é indigno
sujeitar-se a príncipes legítimos nas coisas que não repugnam a Deus; ao contrário, isso é
uma obrigação, conforme às próprias palavras do Redentor: Dai a César o que é de
César, e a Deus o que é de Deus.

[ 90 ] Seita existente no início do séc. XIII. [N. C.]


[ 91 ] Quaestionum Evangeliorum,
Evangeliorum, I, q. 23 (PL 35, 1327).
[ 92 ] Bibliorum
Bibli orum sacrorum
sacrorum cum glossa ordinaria
ordinaria,, Lyon, 1545, t. V, fol. 55.
[ 93 ] Commentariorum in Evangelium Matthaei, Matthaei, III, 17, v. 26 (PL 26, 127C).
[ 94 ] Tractatus de legibus ac Deo legislatore,
legislatore, Antuérpia, 1613, I, caps. 18-19; III, c. 31, pp. 53-61 e pp. 221-2.
[ 95 ] Segundo levantamento de Pereña, trata-se da Homilia 65 e não 56, como Suárez refere. Cf. S. JOÃO
CRISÓSTOMO, In Matthaeum
M atthaeum Homil. LXVI LXV I(PG 58, 622).
[ 96 ] Na verdade, na PrimeiraApologia.
PrimeiraApologia. V. nota 21 supra supra.
[ 97 ] S. INÁCIO DE A NT IOQUIA , Epístola Interpolatae, Ad Smyrnaeos Smyrnaeos,, IX (PG 5, 854). As epístolas interpoladas
de S. Inácio de Antioquia são hoje consideradas espúrias.
PTAT O DEM ILEVI, De schismate Donatistarum,
[ 98 ] S. OPTAT Donatistarum,III, 3 (PL 11, 1000A).
[ 99 ] Expositio ev ang. Secundum Lucam,Lucam, IV, 73 (PL 15, 1634B).
[ 100 ] S. Th.,
Th., IIª-II , q. 10, art. 10, corpus.
ae

[ 101 ] De coniugiis adulterinis,


adulterinis, I, cap. 18 (PL 40, 462-3).
[ 102 ] Decretales
Decretales Gregorii
Gregorii IX, Paris,
P aris, 1511, lib.
lib. IV t ít. 19 (De Divortiis
I V, tít. Div ortiis), (Gaudemus),
), cap. 8 (Gaudemus ), fol. ccccxxv.
[ 103 ] Trata-se, naturalmente, de uma censura a seus destinatários. [N. T.]
[ 104 ] O texto diz erradamente II Coríntios. [N. T.]
[ 105 ] I Pedro 2:13-18.
[ 106 ] Mansi 8, 215.
[ 107 ] Mansi 11, 1029.
[ 108 ] Mansi 14, 822A-B.
[ 109 ] S. J OÃOC RISÓSTOMO, In Epist.E pist. ad Rom. Homil. XXIII XXI II (Rom. 13:1) (PG 60, 613-622).
[ 110 ] Comment. In epist. ad Rom. 13, 1 (PL 17, 162-166).
[ 111 ] Romanos 13:1.
[ 112 ] Quarumdampr
Quarumdampropositionum
opositionum ex Epistola ad Romanos,
R omanos,prop. 72 (PL 35, 2083).
[ 113 ] Contra Cresconium grammaticum Donatistam,
Donatistam, III, c. 51. (PL 43, 527).
[ 114 ] De recta f ide,
ide, I, 1 (PG 76, 1134A-5B). A tradução latina citada por Suárez pode ser encontrada em Divi
Cyrilli
Cyrilli Archiepiscopi
Archiepiscopi Alexandrini
Al exandrini Opera: in tres
tres partita,
partita, Basiléia, 1528, t. 3, fol. 94.

93
[ 115 ] Na edição Migne a referida epístola está publicada separadamente do De Fide, Fide, sendo a primeira da série
Epistolarum Classis
Classis I (PL 16, 876C). Em edições antigas (como in Operum Ambrosii Mediolanensis Episcopi, Episcopi,
Colônia, 1616, t. IV), essa epístola prefaciava o De Fide. Fide.
[ 116 ] Oratio 17, 8 (PG 35, 976).
[ 117 ] P SEUDO-MARCIAL, Orthodoxographa theologiae sacrosanctae ac sincerioris fidei Doctores LXXVI,
Basiléia, 1555, Epist ad tolosanos, cap. 8, pp, 278-9.
[ 118 ] De Idololatria,
Idololatria, cap. 15 (PL 1, 684B).
[ 119 ] “Reddendum est quidquid mundi bene postulat ordo, ordo, / Propositumque
Propositumque piae
pi ae non violat
vi olat f idei. / Mitibus et
sanctis nulla est spernenda
spernenda potestas: / Aequum servire est regibus
regibus et dominis. / Ut Christi f amulis ad verum prosit
prosit
honorem / Dilexisse bonos et tolerasse malos.”
malos.” P RÓSPERO DAA QUITÂNIA, Epigrammata,
Epigrammata, I, c. 34 (PL 51, 509).
[ 120 ] CÉLIOS EDÚLIO, Hymnus,
Hymnus, vv. 31 e 32 (PL 19, 765).
[ 121 ] Mateus 19:21.
[ 122 ] Commentaria in Epist. ad Corinth. Secundam.,
Secundam., VI, 14 (PL 17, 301C-D).
[ 123 ] T EODORETO DEC IRRO,Interpretatio
Interpretatio E pist. II
I I ad Cor.
Cor. Cap. VI
V I, 14 (PG 82, 416D).
[ 124 ] In epist. II Cor, 6, 14.
[ 125 ] Ad Donatistas post collationem,
collationem, c.6 e 21 (PL 43, 657 e 673).
[ 126 ] Advers
Adv ersus
us Iovinianum
Iov inianum,, I, 10 (PL 23, 223A-224B); também Epístola 123, 5-6 (PL 22, 1049).
[ 127 ] In Epist.
E pist. II ad Cor.
Cor. Homil. XIII
XII I(PG 61, 493).
[ 128 ] S. Th.,
Th., IIª-II , q. 104, a. 6.
ae

[ 129 ] Secunda Secundae Sancti Thomae, cum commentariis Cardinalis Caietani, Caietani, Lyon, 1554, q. 104, 6, ad. 1,
fol. 179.
[ 130 ] Commentarii in suam Concordiam ac totam Historiam evangelicam, evangelicam, Louvain, 1577, c. 69, pp. 539-540.
[ 131 ] V. nota 82 supra.
supra.
[ 132 ] Lucas 22:25.
[ 133 ] I Pedro 5:3.
[ 134 ] In Matthaeum
M atthaeum Homil. LXVIII
LXV III (al. LIX) (PG 58, 622).
[ 135 ] I Coríntios 7:23.
[ 136 ] In Epist.
E pist. ad Corinthios,
Corinthios, VII, lectio IV.

94
Capítulo V
Se os reis cristãos têm soberania nas coisas
civis e temporais, e por que direito
1. O que é a soberania. 2. Dupla é a submissão: direta e indireta. Em que elas
consistem. 3. O sentido da questão. 4. A primeira opinião, negativa. 5. O primeiro
fundamento. 6. A opinião
opi nião verdadeira.
verdadeira. 7-8. O imperador não tem soberania
soberani a temporal
sobre
sobre toda
toda a Igreja. 9-10. Prova-se a asserção pela autoridade dos Sumos Pontífices.
11. Chega-se à mesma conclusão pela via da razão. 12-13. A soberania civil não
compete ao Sumo Pontífice pelo direito humano. 14-16. Prova-se o mesmo pelo direito
divino. 17-18. Objeção. Solução. 19. Objeção e uma primeira resposta. 20-21.
Segunda solução, e rejeição da resposta. 22. Refutam-se os fundamentos da opinião
contrária.

1. O QUE É A SOBERANIA. – Diz-se que um poder é soberano quando não reconhece outro
superior. Pois a palavra “soberano” denota a negação de um superior ao qual este que se
diz soberano deveria obedecer. Mas entenda-se um superior na terra, ou humano, pois
com Deus não se faz nenhuma comparação: qual príncipe, exceto se ateu ou demente,[
137 ] presumiria tentar subtrair-se ao poder divino? Portanto, com aquela negação exclui-
se a sujeição a um superior humano mortal. Mas tal negação pode dar-se de várias
formas, e, portanto, para que o título dessa questão possa ser entendido e discernido de
outras questões que aqui poderia haver, é necessário expor o modo e sentido dessa
negação.
Primeiro, pode-se negar simpliciter
simpli citer qualquer sujeição a um homem superior, tanto
em matéria espiritual quanto civil. Segundo, pode-se negar a sujeição numa mesma
matéria temporal e civil.
Embora no primeiro modo haja enorme dissensão entre nós e o rei da Inglaterra –
pois
pois este não deseja submeter-se a ning
ninguém
uém na terra, mesmo em matéria espirit
espiritual
ual (o que
cremos ser contra a fé e a obediência cristã) – não trataremos agora desta questão, pois
ainda não nos pronunciamos sobre o poder espiritual, sem cujo conhecimento não se
pode de maneira nenhuma entender sua solução.
solução. Por isso a remetemos à últi
última
ma parte
deste livro, e, por agora, chamamos soberano aquele poder temporal que numa mesma
ordem ou matéria não seja sujeito a outro.
2. DUPLA É A SUBMISSÃO: DIRETA E INDIRETA. E M QUE ELAS CONSISTEM. – Ademais,
costumam-se distinguir dois tipos de sujeição: a direta e a indireta. Chama-se “direta”
aquela que se encontra dentro do fim e dos limites de um mesmo poder, e chama-se

95
“indireta” a que só nasce da orientação a um fim que é mais alto, e pertinente a um
poder superior e mais excel
excelente.
ente.
O poder civil propriamente dito, considerado por si, apenas se ordena diretamente a
um estado conveniente e à felicidade temporal da república humana para o tempo desta
vida presente, e por isso este poder também é chamado de “temporal”. Por esta razão, o
poder civi
civill se diz
diz soberano na sua própria
própria ordem quando, nesta ordem e com respeito
respeito a
seu fim, toma para este fim uma resolução em última instância dentro de sua esfera, ou
dentro de toda a comunidade que lhe está sujeita – de modo que pendem de tal príncipe
soberano todos os magistrados que nela (ou em parte dela) detêm poder, ao mesmo
tempo em que o príncipe soberano não se subordina a nenhum superior na ordenação ao
mesmo fim do governo civil.
Mas, como a felicidade temporal e civil se remete à espiritual e eterna, pode ocorrer
que a própria matéria do poder civil deva ser governada e dirigida, em sua ordenação ao
bem espiritual
espiritual,, de manei
m aneira
ra disti
distinta
nta à que parece
parec e postular a mera razão civi
civill. E assim,
assim, por
mais que o príncipe temporal e seu poder não dependam diretamente em seus atos de um
outro poder de mesma ordem e relativo apenas a este mesmo fim, pode fazer-se
necessário que ele seja dirigido, ajudado ou corrigido em sua própria matéria, por um
poder superior
superior que go governa
verna os homens em ordem a um fim mais excelente
excelente e eterno – e
tal dependência é a que se chama de “indireta”, porque aquele poder superior às vezes
versa sobre as coisas temporais, não por si nem em razão de si próprio, mas como que
indiretamente e em razão de outra coisa.
3. O SENTIDO DA QUESTÃO. – Disto resulta que aquela negação de sujeição nas coisas
temporais, que a prerrogativa soberana do poder temporal crê incluir, deve ser
subdistinguida em dois sentidos. Pois ela pode negar, ou toda a sujeição (tanto direta
quanto indireta), ou apenas a direta. E assim surgem duas situações. Numa, o poder do
rei cristão seria soberano do primeiro modo (ou seja, não reconhecendo superior direto
nem indireto em matéria civil e temporal); noutra, seria soberano do segundo modo (isto
é, não reconhecendo superior
superior direto em matéria temporal).
Entre estas duas a diferença é tão grande, que a primeira constitui dogma de fé e a
seu redor gira o eixo de quase toda a controvérsia entre nós e o rei da Inglaterra; já a
segunda não pertence a matéria de fé, nem sobre ela haveria dissensão entre nós. Não
obstante, tampouco há lugar para considerar a presente questão no sentido anterior,
acerca da sujeição (ou, melhor dizendo, isenção de sujeição) indireta. Isso porque, se a
observamos atentamente, ela diz respeito ao tema do poder espiritual – uma vez que
aquela sujeição indireta só pode dar-se com relação a um poder espiritual, ou (o que é o
mesmo), se podemos conceber um poder ao qual se sujeitaria indiretamente o temporal,
este só poderia ser o espiritual. Isso o veremos ao tratar deste poder, e portanto
deixaremos esta questão para seu lugar próprio.
4. A PRIMEIRA OPINIÃO, NEGATIVA. – Foi a opinião de alguns católicos, principalmente
urisperitos, que na Igreja de Cristo é monárquico não apenas o regime espiritual, mas
também o temporal; por isso, haveria em toda a Igreja Católica apenas um príncipe

96
temporal supremo, possuidor de soberania civil em toda a Igreja. Este seria, por
instituição de Cristo, o Sumo Pontífice. Por conseqüência, concluíram que nenhuma
república e nenhum rei ou imperador teria soberania em assuntos temporais, pois não
pode haver duas cabeças supremas numa mesma ordem. P ortanto, se o Pontífice tem
soberania temporal diretamente e por si, é necessário que o poder em todos os demais
príncipes
príncipes temporais
temporais não seja soberano, pois
pois não haveria
haveria nenhum que não reconhecesse
um superior em assuntos temporais.
temporais.
Alguns chegam mesmo a afirmar que todos os direitos e domínios dos reinos foram
entregues a Pedro enquanto vigário de Cristo, que assim o Romano Pontífice o sucedeu
naquele direito, e que, portanto, a soberania civil em hábito (como eles mesmos o dizem)
só existe no Pontífice, embora este o administre mediante outros reis, por tácita ou
expressa concessão. Isso dizem os principais entre os antigos intérpretes do direito
pontifíci
pontifício:
o: afirma-o
afirma-o a Glosa,[
Glosa,[ 138 ] Inocêncio,[ 139 ] o cardeal Hostiense,[ 140 ] João de
Andrea,[ 141 ] o Panormitano,[ 142 ] Felino,[ 143 ] Décio[ 144 ] e outros.[ 145 ] Entre
os intérpretes do direito romano, Bártolo de Sassoferrato,[ 146 ] Oldrado,[ 147 ] Paulo
de Castro[ 148 ] e outros, que citam Azpilcueta Navarro[ 149 ] e Covarrubias,[ 150 ]
que mencionaremos depois. A estes agregam-se Antonino,[ 151 ] Álvaro Pais,[ 152 ]
Agostinho de Ancona[ 153 ] e muitos outros por eles citados.
5. O PRIMEIRO FUNDAMENTO. – Primeiro, apóiam-se em vários decretos dos sumos
pontífices,
pontífices, que parecem afirmá-lo;
afirmá-lo; indicá-los
ndicá-los-emos
-emos abaix
abaixo, quando expl
expliicarmos seu
pensamento.
Segundo, apóiam-se no costume e nos variados efeitos que demonstram este poder,
tais como: transferir o império dos gregos para os germanos, instituir o modo de eleger o
imperador e confirmá-lo, e instituir o modo de, às vezes, depô-lo. Todos estes são atos
de um poder temporal superior. Ora, se o imperador não é soberano, tampouco o seriam
os demais reis. Por isso também os reis foram às vezes depostos por pontífices.
Terceiro, para aduzir também as Escrituras como prova, supõem que Cristo teve
poder direto
direto não apenas espirit
espiritual
ual,, mas também temporal,
temporal, tanto porque diz
diz [Mateus
28:18]: Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, quanto porque era filho natural de
Deus. Disto inferem que Ele concedeu ambos estes poderes igualmente a seu vigário. Em
primeiro
primeiro lug
lugar,
ar, porque Ele
Ele próprio não o disting
distingue
ue em nada, senão que diz
diz absolutamente
a Pedro [João 21:16]: Apascenta as minhas ovelhas. Sob o verbo “apascentar” não
menos se compreende o regime civil do que o espiritual. Pois consta acerca de David, em
II Samuel [5:2]: Disse-te o Senhor: tu apascentarás o meu povo de Israel. Em segundo
lugar, haveria concedido os dois poderes porque isso era conveniente ao bom regime da
Igreja, assim como à sua unidade e paz.
Quarto: aduzem uma razão natural, a saber, que num corpo deve haver uma só e
suprema cabeça, da qual todas as ações vitais procedem como de fonte primária, quer
sirvam ao corpo, quer sirvam ao espírito. Ora, a Igreja é um só corpo místico, como já
se declarou acima. Portanto, exige um só governante supremo para ambas as ordens, e
exige mesmo os dois poderes numa só pessoa – pois, se residirem em duas diversas,

97
nascerão infinitas dissensões e litígios, que, como a própria experiência o demonstra, mal
poderão ser contidos pela
pela dili
diligência
ência e razão humanas.
6. A OPINIÃO VERDADEIRA. – Não obstante, devemos dizer que os reis cristãos têm
soberania civil em sua ordem, e não reconhecem nenhum outro como diretamente
superior – nesta mesma ordem temporal e civil – do qual dependam nos atos de sua
potestade. P or isso, resulta
resulta não haver na Igreja
Igreja um único
único e supremo príncipe
príncipe temporal
seu, ou de todos os seus reinos; ao contrário, há tantos deles quantos reinos ou
repúblicas soberanas houver. É esta a posição mais admitida e aprovada entre os
católicos, que em seguida citaremos.
Ora, a prova da primeira parte desta asserção depende da segunda: se provamos que
não há uma só cabeça temporal, é conseqüência necessária que haja muitos reis
soberanos, conforme propusemos. Pois agora não tencionamos deter-nos em casos
particul
particulares
ares sobre se este rei ou aquele
aquele seriam soberanos, nem comparar os própriospróprios
príncipes
príncipes temporais entre si; tal coisa
coisa é de todo alheia
alheia ao presente objetivo.
objetivo.
7. O IMPERADOR NÃO TEM SOBERANIA TEMPORAL SOBRE TODA AI GREJA. – Em razão disto,
não trataremos agora daquela questão de se o imperador seria superior em jurisdição em
todas as regiões e reinos cristãos, e se conseqüentemente seria monarca soberano de toda
a Igreja; isso porque, embora possa ser pertinente à segunda parte da asserção, em nada
contribui para explicar os dogmas da fé. Portanto, brevemente suporemos que o
imperador não possui domínio ou jurisdição temporal soberana sobre toda a Igreja (o que
quer que pensem Bártolo e alguns outros jurisperitos), seja porque nunca o possuiu, seja
porque, embora o tivesse possuído, perdeu-o em sua maior parte.
O mais provável é que nunca o tenha possuído, pois nunca o obteve de modo
sobrenatural ou extraordinário de Cristo Senhor ou do Romano Pontífice (o que constará
a fortiori a partir do que diremos), nem o adquiriu mediante algum direito humano, visto
que nunca o imperador sujeitou a si o mundo inteiro ou toda a Igreja, quer por eleição,
quer por guerra justa. Ainda que concedamos que os antigos imperadores cristãos
tenham sido príncipes legítimos de todo o seu domínio, disto não se conclui que tenham
sido príncipes de todos os cristãos, pois fora de seu território muitos povos puderam ser
cristãos.
Porque, como diz retamente Próspero,[ 154 ] a graça cristã não se contentou com
ossuir os mesmos limites que os de Roma, e com o cetro da cruz submeteu a muitos
ovos que não domou com suas armas. Por isso nos disse acerca de Roma o Papa Leão:
[ 155 ]Para que presidi
presidisses
sses mais extensamente com a religião
eligi ão divina
div ina do que com a
dominação terrena.
terrena.
Ocorreu que o próprio Império Romano fosse dividido em Oriental e Ocidental, e que
depois o Império Ocidental (o único que permaneceu entre os cristãos, estando ocupado
por pag
pagãos
ãos o Oriental
Oriental),
), embora se encontrasse sob uma só pessoa quanto à dig dignidade,
nidade,
quanto à jurisdição foi dividido em muitos príncipes e reis. Destes, embora alguns sejam
sujeitos ao imperador, vários se julgam legitimamente isentos pelo direito de prescrição,
ao que se soma o consentimento do povo ou o título de uma guerra justa.

98
E, portanto, além do imperador, agora supomos que haja monarcas temporais
totalmente livres de sua jurisdição, tais como o rei da Espanha, o da França e o da
Inglaterra.
8. Assim, apenas resta por provar a asserção sobre o Sumo Pontífice. Pois, se ele não
tem domínio próprio de jurisdição temporal soberana sobre todos os reinos da Igreja, de
nenhum outro se pode imaginar que teria tal primado, e conseqüentemente haverá vários
reis temporais soberanos. Ora, entre os teólogos, a opinião de que o Pontífice não possui
tal jurisdição temporal sobre toda a Igreja foi algo sustentado sobretudo por Maior,[ 156 ]
Caetano,[ 157 ] Vitória,[ 158 ] Soto[ 159 ] e Belarmino,[ 160 ] que aduz vários outros
autores. Entre os jurisperitos,
jurisperitos, defendem-na Covarrubias,[ 161 ] Azpilcu
Azpilcueta
eta Navarro,[
Navarro, [ 162
] Pedro Bertrand[ 163 ] e – o que é o mais importante – os próprios Sumos Pontífices,
que reconhecem simpliciter
simpli citer essa verdade em muitas passagens.
9. P ROVA-SE A ASSERÇÃO PELA AUTORIDADE DOS S UMOS P ONTÍFICES. – Assim, devemos
primeiro
primeiro provar nossa asserção mediante o estudo dos direi
direitos
tos pontifícios.
pontifícios.
Escreveu ao arcebispo Albino o Papa Nicolau: A santa Igreja Igreja de Deus não tem
ládio senão o espiritual. [ 164 ] Ora, por “gládio” costuma-se significar no direito
canônico o poder temporal. Portanto, esta frase deve entender-se maximamente acerca
do poder direto e da jurisdição que a santa Igreja possui per se, por sua razão intrínseca
– pois
pois a Igreja
Igreja ou um prelado
prelado eclesi
eclesiásti
ástico
co podem ter em seu próprio
próprio territóri
território,
o, por outro
título, o gládio temporal, tal como o Romano Pontífice o detém em seu domínio
particul
particular.
ar.
Além disso, Nicolau,[ 165 ] na Epístola ao Imperador Miguel, assim se expressa:
em o imperador arrebatou os direitos do pontificado, nem o pontífice usurpou o
nome de imperador; pois Cristo, por atos próprios e dignidades distintas, assim
discerniu os ofícios de poder de cada um.
Também nos ensina o Papa Gelásio,[ 166 ] quando, em sua Epístola 10 ao
imperador Anastácio, escreve serem duas as coisas pelas quais o mundo se rege
rincipalmente: a autoridade sacra dos pontífices e o poder régio. Também o Papa
Gregório[ 167 ] diz ao imperador Maurício: Para isto foi dado o poder sobre sobre todos os
homens à piedade de meus senhores: para que o reino terrestre sirva ao reino celeste.
E ainda o Papa João, na epístola ao imperador Justiniano, reconhece seu principado
soberano e potestade régia.[ 168 ]
10. Além disso, Inocêncio III, no capítulo Novit , em De Iudicii
Iudi ciiss,[ 169 ] claramente julga
que o rei dos francos possui jurisdição temporal soberana, a qual o Papa não quer
perturbar nem minorar;
minorar; por isso, diz
diz em segui da: Pois não tencionamos julgar sobre
seguida: sobre o
eudo cujo juízo cabe a ele, manifestamente indicando que isso não lhe diz respeito –ao
menos não diretamente, como em acerto o indicaram a Glosa[ 170 ] e o Papa Inocêncio.
E o declara mais extensamente, quando agrega que: Exceto se por acaso o direito
comum for derrogado mediante algum privilégio especial ou costume. Pois, mediante
tal exceção, declara que o direito régio não é abolido mediante o direito divino. Além

99
disso, Inocêncio, no capítulo Per Venerabilem (título Qui filii sint legitimi ),[ 171 ] diz
expressamente sobre o rei dos francos que este não reconhece superior em assuntos
temporais. E da Sé Apostólica diz ele que pode dispor livremente – isto é, direta e
absolutamente – no patrimônio de São Pedro, em que se exerce tanto a autoridade de
Sumo Pontífice quanto a de sumo príncipe (temporal),[ 172 ] claramente julgando que,
nos outros reinos, não pode dispor dos assuntos temporais com a mesma liberdade.
Também no capítulo Solitae (título De Maioritate
Maiori tate),[ 173 ] diz-nos que, nos assuntos
temporais, o imperador é o mais excelso em seu domínio; diz ainda que ele está à frente
nos temas do mundo.[ 174 ] Ademais, no capítulo Causam 2 ( Qui filii sint legitimi ),
Alexandre III diz expressamente ao rei que não cabe à Igreja julgar sobre as posses
temporais, e fala em particular do rei da Inglaterra.[ 175 ]
Portanto, consta suficientemente que os próprios Romanos Pontífices nunca se
arrogaram este tipo de poder – o que será demonstrado ainda melhor pelo que
exporemos em seguida.
11. CHEGA-SE À MESMA CONCLUSÃO PELA VIA DA RAZÃO. – Em segundo lugar, esta verdade
se demonstra principalmente porque ninguém pode indicar um justo título que conceda
ao Sumo Pontífice o domínio direto de jurisdição temporal sobre todos os reinos da
Igreja. Portanto, não a possui, nem a pode obter sem justo título.
Provemos a assertiva anterior: ou tal título seria de direito divino positivo, ou de
direito humano. Ora, pelo que foi dito, é evidente que não pode proceder imediatamente
de direito natural: pois provou-se que de direito natural imediato apenas a comunidade
humana perfeita (e congregada politicamente no corpo de uma mesma república) possui
urisdição temporal soberana sobre si própria; e a congregação da Igreja, embora seja um
mesmo corpo espiritual (ou místico) de Cristo, e possua neste gênero unidade de fé,
batismo
batismo e cabeça, não está unida
unida em razão de uma mesma cong congregação
regação políti
política,
ca, senão
que em si contém vários reinos e repúblicas que no gênero político não têm qualquer
unidade entre si. Portanto, por força do direito natural não se encontra imediatamente em
toda a comunidade da Igreja uma mesma jurisdição temporal e universal sobre ela inteira;
ao contrário, há tantas jurisdições temporais soberanas quantas comunidades políticas
houver, as quais não são membros de um mesmo reino ou república civil.
12. A SOBERANIA CIVIL NÃO COMPETE AO S UMO P ONTÍFICE PELO DIREITO HUMANO. – Disto
se conclui, com evidência não menor, que a soberania civil não se encontra num príncipe
eclesiástico em razão de algum título humano pelo qual tal potestade temporal lhe tenha
sido transferida.
Pois este título poderia haver sido a eleição e o consentimento dos povos – o que
aqui não tem lugar, como é evidente por si, visto que nunca todos os povos cristãos se
submeteram por própria vontade e consentimento a um só homem enquanto príncipe
temporal soberano.
Poderia haver sido o título de guerra justa, que claramente tampouco tem lugar num
príncipe
príncipe eclesiásti
eclesiástico.
co.

100
Poderia haver sido o de legítima sucessão, que tampouco se aplica aqui (apoiando-se
precisi
precisivamente
vamente no direit
direitoo humano), pois
pois pressupõe ter havido
havido legíti
egítimo
mo título
título e domínio
domínio
no predecessor, e assim, ascendendo, necessariamente exige ancorar-se em alguém que
tenha obtido aquele domínio por outro título humano que não fosse a sucessão – o que
não teria podido dar-se senão pelo consentimento dos povos, ou por uma guerra que a
princípi
princípioo tivesse sido justa, ou uma que se tivesse
tivesse feito justa pelo
pelo consentimento popular
tácito ou pela passagem de um tempo legítimo.
Ora, nenhum destes casos acima ocorre com qualquer dos pontífices em que
possamos pensar, em qualquer dos tempos ou séculos que se tenham passado.
Por fim, poderia ser esse título o de alguma doação feita por homem, o que é quase
idêntico ao título de sucessão acima descrito: pois ninguém pode doar o que não é seu, e
nenhum príncipe temporal possuiu jamais a jurisdição temporal soberana direta sobre
todas as regiões e reinos cristãos, como já observamos. Assim, não há ninguém que
tivesse podido fazer tal doação à Igreja ou ao Pontífice.
13. E todas essas coisas são confirmadas pelo direito canônico,[ 176 ] que ensina que o
Romano Pontífice recebeu mediante doação do imperador Constantino o direito e
domínio temporais sobre o reino romano – o chamado “patrimônio de São Pedro”. Disto
se vê claramente que por título de doação o Papa só tem jurisdição temporal direta sobre
o reino e as cidades que constituem o patrimônio de Pedro, o qual compreende todo o
domínio temporal que possui agora o Romano Pontífice, quer tenha sido inteiramente
doado por Constantino, quer este o tenha iniciado e outros reis e príncipes o tenham
aumentado.177[ 178 ]
14. P ROVA-SE O MESMO PELO DIREITO DIVINO. – Falta que tratemos do título de direito
divino positivo, o qual só pôde ter tido início por doação de Cristo Senhor, e em seguida
perdurado por sucessão legíti
legítima.
ma. Ora, por Cristo
Cristo Senhor não foi fei
fe ita nenhuma doação
de tal tipo, e conseqüentemente nenhuma sucessão legítima pode haver em tal jurisdição
temporal. Portanto, por este título tampouco convém ao Pontífice tal jurisdição.
Prova-se, primeiro, que Cristo não a deu à Igreja: se a tivesse dado a alguém, o teria
feito sobretudo a Pedro, segundo agora suponho, em razão do que depois diremos sobre
o primado do Romano Pontífice. Mas que a Pedro não se a doou, conclui-se por Mateus
[16:19], onde, antes das palavras “ o que atares e o que desatares”, faz-lhe Cristo a
promessa: A ti darei
darei as chaves do reino dos céus. Logo, não prometeu Cristo a Pedro as
chaves do reino terreno – e portanto não lhe prometeu domínio nem jurisdição
temporais, mas poder espiritual.
Por isso, o que logo adiciona Cristo – a saber, “ o que atares e o que desatares” –
deve sem dúvida ser entendido segundo o poder que prometera com a expressão das
“chaves”. Também as palavras “Apascenta minhas ovelhas” devem ser entendidas com
respeito ao mesmo poder, pois ali cumpre o Cristo a promessa antes feita. Em nenhuma
outra passagem indicou Cristo que daria a Pedro ou à sua Igreja domínio temporal ou
reino próprio direto, nem tampouco o demonstra a tradição eclesiástica – em verdade,
viu-se o contrário. Portanto, nenhuma via sobrenatural pode constar-nos para uma

101
urisdição temporal e direta do Pontífice. Logo, não se lhe pode atribuí-la com
fundamento, pois Pedro
P edro não poderia
poderia obtê-la senão sobrenaturalmente.
15. Além disso, há excelente indício de que o próprio Cristo, em sua humanidade, não
assumiu para si nenhum reino terreno ou temporal com o domínio e jurisdição temporal
diretos que residem no imperador ou nos demais príncipes humanos. Portanto, tampouco
os atribuiu a seu vigário na terra. Supomos a antecedente a partir do que dissemos sobre
o reino de Cristo [em outra obra de nossa autoria],[ 179 ] e que agora brevemente se
demonstra a partir disto que diz a Escritura sobre a pobreza de Cristo Senhor: Conheceis
a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, por nós fez-se pobre, para que
or sua pobreza fôsseis ricos [II Coríntios 8:9]. Por isso João XXII, na Extravagante
Cum Inter Nonnullos (título De Verborum Significati one),[ 180 ] ao ensinar que Cristo
Signi ficatione
teve, apesar de sua pobreza, domínio sobre algumas coisas poucas e ordinárias,
abertamente supõe que não obteve domínio de reinos ou de outros bens cuja posse torna
ricos os homens.
Isto indicou-o o próprio Senhor, quando disse em Mateus 8[:20] e Lucas 9[:58] que
O Filho do homem não tem onde repousar a cabeça. E mostrou-nos o mesmo acerca da
urisdição temporal, quando, em Lucas 12, a quem lhe pedia: Dize a meu irmão que
divida comigo a herança, respondeu: Homem, quem me constituiu constitui u juiz ou repartidor
sobre vós? – como se dissesse não ter recebido aquele poder de julgar, nem ter vindo ao
sobre
mundo para exercer jurisdição temporal, como o comentam retamente Ambrósio,[ 181 ]
Teofilacto[ 182 ] e Eutímio.[ 183 ]
16. Confirmou-o também o próprio Senhor, em João [18:36], dizendo: O meu reino não
é deste mundo, ou seja, não é temporal e terreno como o reino de César, como o expõem
Cirilo,[ 184 ] Crisóstomo[ 185 ] e (de modo excelente) Agostinho, que diz: Ouvi todos
vós, reinos terrenos: não impeço vosso domínio no mundo, meu reino não é deste
mundo.[ 186 ] Por isso, todos os Padres ensinam que Cristo recebeu o reino espiritual,
que não exclui a verdadeira pobreza.
Em razão disto se prevê em Zacarias 9 que viria um salvador que seria rei e pobre, o
que em Mateus 21 e João 12 declarou-se haver sido cumprido em Cristo. Também nos
Salmos [2:6] diz-se de Cristo: Por ele me constituí rei em Sião,
Si ão, seu monte santo – e logo
depois agrega-se:
agrega-se: para pregar a sua lei , assim significando que tal reino é espiritual, não
terreno. Por isso Agostinho diz acima que não é deste mundo aquele monte sobre o qual
Cristo foi constituído rei, pois os que crêem em Cristo, os que são de seu reino, não são
deste mundo. Hilário,[ 187 ] por sua vez, diz não se tratar da Jerusalém terrestre, mas da
celeste. Também neste tom deu-se a previsão feita pelo anjo acerca de Cristo [Lucas
1:32-33]: E lhe dará o Senhor o trono
trono de David, seu pai; e logo agrega: E reinará
ei nará para
sempre fi m.Isso porque não havia de ser um reino
sempre na casa de Jacó, e seu reino não terá fim.
temporal, mas espiritual, como o observaram Epifânio[ 188 ] e Jerônimo,[ 189 ] ao
comentar Jeremias 22 e Zacarias 6. A razão disto é que o reino temporal não foi
necessário a Cristo para sua honra e majestade, e foi mais conveniente à nossa redenção
que ele não o tomasse.

102
17. OBJEÇÃO. SOLUÇÃO. – Assim, facilmente provamos a primeira conclusão. Pois Cristo
não conferiu a seu vigário um poder que Ele mesmo não tomou para si. Mas dirás:
embora Cristo não tenha possuído um reino temporal caduco e imperfeito, possuiu
também em sua humanidade – devido à graça unitiva – um domínio ainda mais
excelente, pelo qual podia por sua vontade valer-se de quaisquer coisas ou reinos
temporais; conseqüentemente, teria também podido dar a seu vigário reinos temporais e
direta jurisdição temporal.
A isso respondemos que não se nega que Cristo poderia fazê-lo, assim como pôde
tomá-lo para si, mas concluímos que, como não o tomou para si, tampouco o deu; pois
não deixou na terra senão um vigário daquele reino que de fato assumiu – a saber, o
espiritual (como demonstramos), que se consuma perfeitamente na glória, e que começa
neste mundo, na Igreja militante.
Ademais, como Cristo possuiu perfeito poder espiritual sem qualquer jurisdição
temporal direta, pôde também comunicar a seu vigário perfeita (ou suficiente) jurisdição
espiritual sem dar-lhe outra diretamente temporal.
Finalmente, assim como foi conveniente que o próprio Cristo não houvesse assumido
urisdição temporal, assim também o foi que não a comunicasse a seu vigário, tanto para
não perturbar os reis da terra, quanto para não parecer mesclar as coisas espirituais com
as seculares.
18. Donde podemos, por último, argumentar mediante a razão. Pois um domínio
temporal com jurisdição direta e civil sobre toda a Igreja não era algo necessário ao
regime espiritual da Igreja – o que é evidente por si. Tampouco era útil a esse mesmo
fim; em verdade, ter-lhe-ia podido ser um grande impedimento. Logo, não é verossímil
que tivesse sido dado por Cristo.
Prova da asserção menor: em primeiro lugar, o regime temporal é muito diverso do
espiritual, e implica os homens em negócios seculares que maximamente os desviam das
coisas espirituais, como dizia São Paulo em II Timóteo [2:4]: Ninguém que milita mili ta para
Deus se implica
i mplica com negócios
negóci os da vida ci vil. Logo, não é crível que Cristo Senhor tenha
vi da civil
fundido essas duas potestades supremas e universais num só Sumo Pontífice da Igreja,
por ser moralmente
moralmente impossível que um só homem baste para o peso de ambos esses
governos universais.
19. OBJEÇÃO E UMA PRIMEIRA RESPOSTA. – Mas dirás que com esse raciocínio se provaria
que o Sumo Pontífice ou os demais bispos não poderiam nem deveriam ser
simultaneamente príncipes temporais. Respondemos, primeiro, que é verdadeiro que
Cristo Senhor não instituiu tal coisa nem a ordenou, nem deu principado temporal a
algum de seus ministros ou pastores; o raciocínio que realizamos o prova, e confirmam-
no as coisas que dissemos acerca do reino de Cristo, pois Ele não assumiu magistratura
secular nem principado temporal sobre todo o mundo, nem sobre parte deste. Portanto,
tampouco o comunicou a qualquer bispo ou vigário seu, e o que Ele disse acerca de si –
a saber, Quem me constitui juiz ou repartidor sobre vós? – vale para cada um dos

103
bispos.
bispos. Isso também o demonstra Bernardo,[ 190 ] com outros testemunhos e long ongoo
raciocínio.
Não obstante, acrescento que Cristo não proibiu
proibiu que o Pontífice ou um bispo
bispo pudesse
ser também senhor temporal; isso pelo fato de que tal proibição não pode ser
demonstrada, como apontamos acima, e sobretudo pelo que constará do que ainda
diremos. Tampouco tal coisa se deduz do raciocínio proposto, pois não é algo mal em si
que uma mesma pessoa seja pastor eclesiástico e príncipe temporal. Ao contrário,
embora um cuidado temporal muito constante e universal não convenha retamente à
solicitude espiritual, certo principado temporal moderado pode não só ser lícito, mas
também conveniente para conservar o esplendor e a autoridade da Igreja, assim como
para os gastos necessários
necessários e outros fins
fins honestos semelhantes,
semelhantes, como se diz
diz com acerto
no capítulo Fundamenta (título De Electione ).[ 191 ] E por isso Cristo Senhor não o
proibi
proibiu,
u, mas deix
deixa-o à humana disposi
disposição,
ção, regul
regulada
ada pela
pela reta razão e segundo
segundo a
conveniência dos tempos.
20. SEGUNDA SOLUÇÃO, E REJEIÇÃO DA RESPOSTA. –Também se poderia responder de outra
maneira ao argumento que apresentamos. Dir-se-ia que ele apenas prova que o exercício
de ambas as jurisdições universais não deve ser entregue a uma mesma pessoa, mas que
ambas podem ter sido dadas em hábito ao Pontífice, e que foram dadas segundo tal lei e
condição: que a jurisdição espiritual se exerça por si, ao passo que a temporal seja
exercida ordinariamente mediante outros.
Mas isso se refuta facilmente, não apenas porque tal jurisdição em hábito não se
demonstra segundo nenhum título nem modo provável, mas também porque ela é
impertinente ou profundamente odiosa. Ou, ainda, porque aquele que possui tal
urisdição nunca deverá empregá-la per se (e assim será ociosa e inútil), já que nunca
pode alguém
alguém usá-la
usá-la mediante
mediante outros sem antes a usar per se, ainda que seja para delegá-
la ou concedê-la ordinariamente. Mas, se se diz que ela é dada para tal uso, pergunto-me
se (por exemplo) o Pontífice abdicaria totalmente de tal jurisdição ao conferi-la, e
abandonaria doravante todo o seu respectivo cuidado, ou se a conferiria de maneira a
sempre permanecer temporalmente superior e dotado do poder de revogar tal concessão
– ou limit
limitá-la,
á-la, ou corrigi
corrigi-la,
-la, ou emendar os atos
a tos por ela realizados.
realizados.
Se considerada do primeiro modo, ela é estéril e ociosa: que importa que o Pontífice
tenha em hábito tal poder, se necessariamente deveu dá-lo a outros por quem ele seria
exercido – e se, depois de dado, já não pode exercer atos de um superior naquela ordem?
Antes se conclui que ele agora já não o tem, e que apenas se imagina que ele o teve
nalgum momento, no intuito de atribuir ao Pontífice a emanação de tal poder aos
príncipes
príncipes seculares
seculares – situação
situação abundantemente promovedora de inveja e maximamente
maximamente
odiosa, ademais de infrutífera e infundada.
21. Por outro lado, se tal jurisdição for considerada do segundo modo – enquanto algo
em hábito que pode passar ao ato quando se queira ou quando for oportuno – tornam-se
ainda maiores o ódio e a inveja, pois assim os príncipes temporais não serão reis
soberanos, e será falsa aquela canção de Sedúlio,[ 192 ] acolhida e muito celebrada pela

104
Igreja: Não tolhe reinos mortais quem os dá celestiai s. E poderia o Papa, ao seu
arbítrio, subtrair ou alterar os reinos temporais, assim como reclamar para si os juízos,
dispensações e atos semelhantes sobre as coisas temporais – e isso de maneira ao menos
válida, pois, embora talvez não atuasse bem (em razão da perturbação da ordem), teria
vigor a sua ação, pois procederia de uma jurisdição soberana, da qual depende a inferior.
Ora, isso é não apenas odioso e capaz de perturbar (não sem motivo) os ânimos dos
reis, mas é também algo incrível em si, por contrário à paz universal da Igreja e à sua
prática
prática universal
universal e perpétua. Daí não o admiti
admitirem
rem nem mesmo aqueles
aqueles jurisperi
jurisperitos
tos que
dizem ter o Sumo Pontífice jurisdição temporal soberana. Ao contrário, quanto a muitas
ações de jurisdição temporal, tais jurisperitos negam absolutamente que o Pontífice possa
usurpá-las fora de seu próprio domínio, como o ensinam comumente os doutores no
capítulo Per Venerabilem.[ 193 ] Finalmente, se deste modo tivesse o Pontífice
urisdição temporal de toda a Igreja, sua atenção pessoal a um bom regime temporal
sobre todos os reinos da Igreja não seria menos necessária do que sua atenção pessoal ao
regime espiritual de todos os episcopados; pois trata-se de uma mesma razão e obrigação,
guardadas as devidas proporções. E assim procede o argumento que movemos, de que
esta dupla solicitude universal excede moralmente as forças e capacidades humanas, e é
contrária a toda a razão e à prática costumeira.
22. REFUTAM-SE OS FUNDAMENTOS DA OPINIÃO CONTRÁRIA. – Entre os fundamentos da
opinião contrária, o primeiro e o segundo têm validez apenas acerca do poder indireto. E
certamente muitos dos autores aduzidos em prol da referida sentença apenas falam desse
tipo superior de poder, conforme exporemos no fim deste livro.[ 194 ]
O terceiro fundamento, por sua vez, procede de um princípio falso, pois Cristo
Senhor não assumiu reinos temporais, como já dissemos.
Da mesma maneira, o quarto fundamento é deficiente, pois a Igreja não é uma só
república temporal, como o é espiritual. Portanto, não carece de um poder temporal
único diretamente soberano, mas de um único poder espiritual que se estenda às coisas
temporais,
temporais, como
c omo também veremos mais adiante.

[ 137 ] Vale notar o giro de linguagem que consta da redação original latina. A frase “atheus “ atheus vel amens”
amens”, que
repete o mesmo prefixo negativo, nos indica que um príncipe que adotasse tal posição seria, ou sem Deus, Deus, ou sem
mente.
mente. [N. T.]
[ 138 ] Decretales
Decretales Gregorii
Gregorii IX, Paris, 1511, lib. II, tít. I, cap. 13 (De Iudiciis), fol. cxlix.
[ 139 ] P APAI NOCÊNCIO IV, Commentaria super Libros Quinque Decretalium,
Decretalium, Frankfurt, 1570, II, tit. 27, c. 27,
pp. 317-8.
317- 8.
[ 140 ] HENRIQUE DES EGÚSIO, Summa aurea, aurea, Veneza, 1574, lib. IV, col. 1385.
[ 141 ] In Secundum Decretalium
Decretalium librum
li brum Novella commentaria
commentaria,, Veneza, 1612.
[ 142 ] NICOLAU DE T UDESCO (chamado P ANORMITANUS), In primam secundi decretalium decretalium libri partem,
partem, Veneza,
1591, cap. XIII, 6, fol. 32.
[ 143 ] F ELINO S ANDEU, Commentariorum Felini Sandei Ferrariensis in Decretalium libros V pars secunda, secunda,
Veneza, 1570, tit. 1, cap.
c ap. XIII, 3b-c,
3b-c , col.
c ol. 92.
[ 144 ] FELIPE D ÉCIO, In Decretalium
Decretalium volumen perspicua
perspicua commentaria,
commentaria, Veneza,
Veneza, 1576, fol.f ol. 71 (causam
(c ausam quae);
173-6 (novit de iudiciis).
[ 145 ] Cf. Decretum
Decretum Gratiani,
Gratiani, Veneza,
Veneza, 1595, I, d. 10, c. c . 8 (Quoniam idem);
idem); d. 96, c. 6 (Cum ad verum), pp. 30-
31.

105
[ 146 ] Consilia, quaestiones et tractatus,
tractatus, Veneza,
Veneza, 1585, Tract. super Const. ad reprimendum, 8, fol. 95.
[ 147 ] OLDRADO DE P ONTE, Consilia seu Responsa et Quaestiones aureae, aureae, Veneza, 1571, Consilium CLXXX,
fol. 75.
[ 148 ] In Primam
P rimam Codicis partem Commentaria
Commentaria,, Lyon, 1585, ff. 25-7.
[ 149 ] MARTÍN DEA ZPILCUETAN AVARRO, Commentarii et tractatus, tractatus, Veneza,
Veneza, 1601, t. III, Relectio
Relectio cap.
c ap. Novit de
iudiciis, ff. 60-84.
[ 150 ] DIEGO DEC OVARRU OVARRUBIABIASS EL EIVA, Regvlae
Regv lae Peccatvm.
P eccatvm. De Regul.R egul. Iur.
Iur. Lib. VI. Relectio,
Relectio, Veneza, 1568, II, §
9, 7, pp. 211-5.
[ 151 ] ANT ONINO DE F LORENÇA, Tomus Tomus Summe Sancti Antonini Archiepiscopi
Archiepiscopi Flor
F lorentini
entini Ordinis
Ordinis Praedicator
P raedicatorum
um,,
Lyon, 1529, III, tit. 22, cap.5 §13 e 17, ff. 202-4.
[ 152 ] De Planctu Ecclesiae,Veneza, Sansovinus, 1560, lib. I, c ap. 37, ff. f f. 14-5.
14- 5.
[ 153 ] Summa de ecclesiastica potestate, potestate, Roma, 1479, qq. XXXV-XLV.
[ 154 ] De Vocatione
Vocatione omnium gentium,gentium, II, cap. 16 (PL 51, 704A).
[ 155 ] S. LEÃOM AGNO, Sermones, Sermones, 82, c. I (PL 54, 423A).
[ 156 ] J OÃOM AIOR, Joannis Maioris M aioris doctoris Theologi In Quartum Sententiarum,
Sententiarum, Paris, 1519, IV, IV, d. 24, q. 3,
ff. ccxi
cc xiiii-ccxvi.
[ 157 ] Secunda Secundae Sancti Thomae, cum commentariis Cardinalis Caietani, Caietani, Lyon, 1554, q. 104, a. 6, fol.
178.
[ 158 ] F RANCISCO DEV ITÓRIA, Relectiones theologicae, theologicae, Lyon, 1586, II, De potestate Ecclesiae, 6, pp. 36-8.
[ 159 ] DOMINGO DES OT O, De iustitia et iure,Lyon, 1559, IV, q. 4, art. 1, pp. 218-221.
[ 160 ] S. ROBERTOB ELARMINO, De Summo Pontif Ponti f ice,Ingolstadt, 1599, lib.lib. V,
V, c.
c . 1 e seq.,
seq. , p. 600.
[ 161 ] Loc. cit.
[ 162 ] Loc. cit.
[ 163 ] Tractatus
Tractatus de origine iurisdictionum,
iurisdictionum, Paris, 1520, q. 3, fol. ix.
[ 164 ] Decreta
Decreta ex Gratiano collecta,
coll ecta,De matrimonio (tit. XVIII), VIII (PL 119, 1198D).
[ 165 ] Epistolae et decretae
decretae,, LXXXVI (PL 119, 960D).
[ 166 ] Epistolae et decretae
decretae,, Epistola VIII (PL 59, 42A).
[ 167 ] Epistolarum Lib. III, Indict. XI, Epist. 65(PL 77, 663B).
[ 168 ] Corpus Iuris Civilis, Codex Iustiniani , Lyon, Hugues de la Porte, 1558-1560, I, tit. IIII, col 14.
[ 169 ] Innocentii III I II Pp. Regestorum Lib. VII, Pontificatus Anno VII, Christi 1204, XLII (PL 215, 325D-326C).
[ 170 ] Decretales
Decretales Gregorii
Gregorii IX, Paris, 1511, II, tít. I, cap. 13 (De Iudiciis), fol. cxlix.
[ 171 ] Op. cit.,cit., IV,
IV, tít. 17, c.13
c. 13 (Per venerabile
venerabilem),
m), fol.
f ol. ccc cxxi.
[ 172 ] Idem,
Idem, fol. ccccxx.
[ 173 ] Op. cit.,cit., I, tít. 33, c.6 (Solitae), fol. cxx.
[ 174 ] Literalmente, “nos temas da carne”. [N. T.]
[ 175 ] Op. cit.,cit., IV,
IV, tít. 17, c. 7 (Causam quae quae 2), fol. cc ccxi
cc xix.
x.
[ 176 ] Decretum
Decretum Gratiani,
Gratiani, Veneza,
Veneza, 1595, I, dist. 96, c an. 13 e 14, pp. 443-6.
[ 177 ] Sextus liber Decretalium,
Decretalium, Paris, 1513, I, tit. 6, cap. 17, ff. xliii-xlv.
[ 178 ] Decretum
Decretum Gratiani,
Gratiani, Veneza,
Veneza, 1595, II, c ausa 12, q. 1, can. 15, p. 915.
[ 179 ] De Incarnatione,
Incarnatione, Veneza,
Veneza, 1745, p. I, Disput. 48, sect. sec t. 2, p. 607.
[ 180 ] Extravagantes XX X X Johannis XXII
XXI I, Paris, 1513, tít. 14, c. 4, ff. li-liii.
[ 181 ] Expos. Evang.E vang. Sec. Lucam,
Lucam, VII (vv. 13, 14) (PL 15, 1730B).
[ 182 ] T EOFILACTO DE Á CRIDA,Ennarratio in. Evang. Ev ang. Matt.,
Matt., 8 (PG 123, 221C-D), e Ennarratio in. Evang. Ev ang.
Luc.,
Luc., 9 (PG 123, 831C-D).
[ 183 ] EUTÍMIOZ IGABENO, Comment. in Matthaeume Comment. in Lucam (PG 129).
[ 184 ] S. CIRILO DEA LEXANDRIA, In Ioannis I oannis evangelium,
evangelium , XII, cap. 18, 36 (PG 74, 620C-621A).
[ 185 ] S. J OÃOC RISÓSTOMO, Homilia In I n Ioannem,
Ioannem, 84, 1 (PG 59, 455).
[ 186 ] In Ioannis
I oannis evangelium tractatus CXXIV , 115, 2 (PL 35, 1939).
[ 187 ] S. HILÁRIO DEP OITIERS, Tractatus super psalmos, psalmos, 124, 4 (PL 9, 681C).
[ 188 ] Advers
Adv ersus us Haereses
Haereses,, I, II, 29, 3 (PG 41, 392).
[ 189 ] Commentaria in Ieremiam, Ieremiam, 22 (vv. 29, 30) (PL 24, 819A).
[ 190 ] S. BERNARDO DEC LARAVAL,De Consideratione Consideratione ad Eugenium Tertium, Tertium, I, c. 6, n. 7 (PL 182, 735C-736B) e
II, cap. 6 (PL 182, 747A-750B).
[ 191 ] Sextus liber Decretalium,
Decretalium, Paris, 1513, I, tit. 6, cap. 17, ff. xliii-xlv.
[ 192 ] CÉLIOS EDÚLIO, Hymnus, Hymnus, vv. 31 e 32 (PL 19, 765A).
[ 193 ] Decretales
Decretales Gregorii
Gregorii IX, Paris, 1511, IV, tít. 17, c.13c. 13 (Per venerabilem),
venerabilem), fol. cccccc cc xxi.

106
[ 194 ] Seção ausente desta edição compilada.

107
Capítulo VI
Se há na Igreja de Cristo um poder
espiritual de jurisdição externa, como
que político, distinto do temporal
1. O poder eclesiástico é de outra ordem e jurisdição. 2. Também é dupla a jurisdição
eclesiástica. O sentido da questão. 3-4. A heresia de Marsílio e o fundamento do cisma
anglicano. 5. O fundamento desta heresia. 6. Primeira asserção, de fé. Sua prova pela
Escritura. 7-8. Também
Também com a razão se demonstra a mesma verdade. 9. Uma evasiva
evasi va
do rei da Inglaterra e seus argumentos. 10. Refuta-se a evasiva do rei. 11. Responde-se
à primeira prova do rei. 12. Responde-se à segunda razão do rei. 13-14. O Espírito
Santo não se pode dizer propriamente vigário de Cristo. 15-16. Cristo Senhor conferiu
a Pedro verdadeira jurisdição espiritual. 17. Distinção entre poder espiritual e
temporal. 18-19. Refutam-se os fundamentos dos erros mencionados no início deste
capítulo.

1. O PODER ECLESIÁSTICO É DE OUTRA ORDEM E JURISDIÇÃO. – Até agora tratamos do poder


temporal, para que conste que nenhum príncipe cristão pode com razão argumentar que
a Igreja e a doutrina católicas lhe subtraem arbitrariamente seu devido poder. Agora,
devemos tratar do poder espiritual, para mostrar que também neste âmbito os reis
cismáticos fazem indevida usurpação, e para explicar em que coisas eles se recusam a
obedecer e submeter-se – contra o direito divino – à potestade eclesiástica.
Como é múltiplo o poder eclesiástico, em nosso título restringimos a questão ao
poder de jurisdi
jurisdição
ção espiritual
espiritual e externa. P ois
ois sói disting
distingui
uir-se
r-se dois poderes eclesiás
eclesiásti
ticos,
cos, a
saber, o de ordem e o de jurisdição
jurisdi ção; a estes dois ramos reduzem-se os demais que se
costumam enumerar, como bem o observou Azpilcueta Navarro.[ 195 ]
Não trataremos aqui do poder de ordem, pois pois não é pertinente
pertinente à presente
controvérsia, uma vez que não consiste no poder do superior sobre os súditos, mas em
certa faculdade moral ordenada ao culto religioso de Deus, seja pela oblação do
sacrifício, seja pela administração ou dispensação dos sacramentos instituídos para a
santificação dos fiéis, seja por quaisquer outras cerimônias que, para ornar o sacrifício ou
os sacramentos, devem realizar-se conveniente e ordenadamente. Donde tampouco os
protestantes parecem neg negar
ar de todo tal poder,
poder, por mais que o interpretem
interpretem de modo a
confessá-lo mais nominal do que realmente. Isso, porém, há de ser examinado no tratado
sobre os sacramentos.

108
2. T AMBÉM É DUPLA A JURISDIÇÃO ECLESIÁSTICA. O SENTIDO DA QUESTÃO. – Igualmente, o
poder de jurisdi
jurisdição
ção se divi
divide
de na jurisdi
jurisdição
ção do foro interno de penitênci
penitênciaa e na do foro
externo eclesiástico. A primeira constitui proximamente os sacerdotes como superiores e
uízes em certo foro divino e secreto, que se exerce no sacramento da penitência. E
embora sobre ela haja também grande contenda dos hereges de nossos tempos contra a
Igreja Católica, agora a omitimos, pois nem o rei Jaime a aborda, nem ela diz respeito ao
governo externo ou eclesiástico. Assim, omitidos estes poderes, trataremos do poder de
urisdição externa dada para o governo da Igreja, na medida em que ela é certa república
espiritual e corpo místico de Cristo; a tal jurisdição chamamos “espiritual” para distingui-
la da temporal. Nossa intenção é, portanto, investigar se existe tal jurisdição, e se ela é
distinta da temporal.
3. A HERESIA DE M ARSÍLIO E O FUNDAMENTO DO CISMA ANGLICANO. – Em torno desta
questão revolveu a heresia de Marsílio de Pádua, que há quase quinhentos anos[ 196 ]
disse, entre outras heresias, que Cristo não deu nenhuma jurisdição sobre sua Igreja aos
bispos
bispos ou ao Romano Pontífice, nem sobre leig eigos nem sobre clérig
clérigos, nem para
preceituar
preceituar nem para obrig
obrigar, nem para coagi
coagir nem para punir
punir. Apenas teria
teria dado aos
sacerdotes o poder de ministrar os sacramentos e pregar a palavra de Deus; em todo o
restante, teria deixado seus súditos à disposição e jurisdição dos príncipes temporais.
Assim descrevem este erro vários autores, mas o faz mais precisamente que outros
Alberto Pighi.[ 197 ] E neste erro parece haver-se fundado Henrique VIII, rei da
Inglaterra, para fomentar seu cisma contra a Igreja Romana. Pois, para negar obediência
ao Pontífice, negou também (por conseqüência) haver na terra um superior seu, tanto em
assuntos temporais quanto espirituais – por isso afirmou possuir em seu reino toda a
soberania que respectivamente pode haver na Igreja. E o mesmo parece haver pensado
acerca de qualquer outro rei cristão, pois não pôde encontrar em si, mais do que em
outros reis soberanos, maior razão ou título para tal poder – e é isso que clara e
freqüentemente o rei Jaime afirma ou supõe em seu PrefácioAdmoni
PrefácioAdmonitório
tório aos Príncipes
Cristãos.
4. Portanto, estão manifestamente convencidos de não reconhecer na Igreja outro poder
urisdicional além daquele que existe nos reis temporais ou que dele emana, pois não
podem alegar
alegar nenhum outro título
título com que usurpá-lo.
usurpá-lo. P or consegui
conseguinte,
nte, assim
assim como
antes dissemos que o poder régio emanou do povo aos reis, relatam por sua vez as
crônicas anglicanas que o rei Henrique arrogou para si este poder mediante
consentimento do reino em parlamento, e que com consenso semelhante declarou-se o
mesmo quanto a Eduardo, seu sucessor imediato,
imediato, afirmação
afirmação renovada sobre Elizabete.
Elizabete.
Logo, isso é sinal de que acerca desse poder não pensam de outro modo senão sobre
o poder político; e o mesmo dá a entender abertamente o rei Jaime, quando professa tê-
lo por direito hereditário e título de sucessão carnal. Ora, tampouco foram alheios a este
erro Calvino ou Lutero, porque, embora Calvino não tenha aprovado o primado de
Henrique, ainda assim foi levado por outro princípio a negar tal poder espiritual. Pois
Lutero e ele constituem todos os cristãos como iguais no sacerdócio, e tolhem a distinção

109
entre o clero e o povo leigo – e assim não põem nenhum poder especial na Igreja para
seu governo, exceto aquele que reside no magistrado político, ou o que existe em uma
sociedade para, partindo da natureza das coisas, preservar a reta ordem.
5. O FUNDAMENTO DESTA HERESIA. – São vários os fundamentos deste erro. Pois estes
homens que citei por último puderam fundamentar-se em sua crença de não haver na
Igreja sacrifício verdadeiro e próprio, e conseqüentemente tampouco sacerdócio
verdadeiro e próprio, mas apenas um espiritual e metafórico, comum a todos os cristãos,
dos quais se diz em I Pedro [2:5]: Vós também, como pedras vivas, sois edificados
como casa espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais
aceitáveis a Deus por Jesus Cristo. E mais abaixo: Vós sois a geração eleita, o
sacerdócio real.
sacerdócio
Marsílio, por sua vez, embora não tenha negado o sacerdócio e tenha distinguido o
clero (ou presbíteros) do restante do povo, negou no entanto a ordem hierárquica no
clero, e disse que todos os presbíteros são iguais aos bispos, e os bispos ao Papa; donde
inferiu não haver entre eles – nem com respeito ao povo – sujeição ou prelazia. Ao
contrário, disse que todos estão sujeitos ao magistrado político. E aduzia aquela
passagem em Lucas [22:25-26]: Os reis dos gentios dominam sobre eles, mas não sereis
passagem
vós assim, por cujas palavras julgou ser proibido aos clérigos todo domínio ou jurisdição.
E introduzia outros testemunhos da Escritura que afastam os clérigos dos cuidados
seculares, como: Ninguém que milita
mi lita para Deus se implica
impli ca com negócios
negóci os da vi da civi
ci vill
(II Timóteo 2:4), ou: Se tiverdes negócios seculares em juízo, constituí como juízes os
mais desprezíveis que houver na Igreja. (I Coríntios 6:1)
Sobre os reis da Inglaterra, não me consta outro fundamento em que se baseiem,
exceto que, distorcendo o sentido das Escrituras, negam que o poder espiritual encontre-
se nelas fundado, e exageram que elas ordenam a todos os cristãos o submeter-se aos
príncipes
príncipes e magistrados.
magistrados. Com isso igualam
ualam a Igreja
Igreja de Cristo
Cristo à Sinag
Sinagog
ogaa ou a uma
república fiel que pudesse existir na lei da natureza, nas quais julgam não haver outro
poder de gogoverno
verno além daquele
daquele que é dado aos reis
reis na Lei Antig
ntiga, ou do que, noutro
estado, poderia dar-se pela natureza das coisas numa sociedade ordenada pela fé ao culto
e religião do Deus verdadeiro, e ser transferido do povo aos príncipes – ou (o que é o
mesmo) aos primogênitos – mediante consentimento do povo, como um só e mesmo
poder conatural.
6. P RIMEIRA ASSERÇÃO, DE FÉ. SUA PROVA PELA E SCRITURA. – Não obstante, a verdade
católica é que na Igreja há poder espiritual de jurisdição verdadeira e própria, pelo qual o
povo cristão
cristão pode ser go
governado
vernado convenientemente
convenientemente em ordem à salvação
salvação da alma. Esta
afirmação é certeza de fé, ensinada pelos católicos em consenso comum, e provada –
primeiro
primeiro – com testemunhos claríssimos
claríssimos da Escritura.
Escritura. Os principai
principaiss são estes dois: O que
atares, etc. (Mateus 16:19), e: Apascenta as minhas ovelhas (João 21:15-17), pontos
que comentaremos detalhadamente
detalhadamente mais
mais adiante.
adiante.
Há também ponto semelhante em Mateus [18:17]: Se não escutar a Igreja, que ele
seja para ti como um gentio ou um publicano; e agrega: Em verdade
verdade vos digo que tudo

110
o que atardes na terra será atado no céu, e tudo o que desatardes na terra será
desatado no céu. Ora, atar e desatar são atos manifestos de jurisdição, e aí não se fala
apenas de jurisdição do foro interno ou secreto de penitência, como é evidente, nem de
urisdição temporal, uma vez que a excomunhão, que é o ponto de que ali se trata, é
censura eclesiástica, a qual o próprio rei Jaime também chama às vezes de “espiritual”
em seu Prefácio
Prefácio .
Há também aquelas palavras expressas de São Paulo, em II Coríntios [13:10]:
Portanto, escrevo
escrevo estas coisas
coi sas estando ausente, para que, estando presente, não use de
rigor, segundo o poder que o Senhor me deu para edificar, não para destruir. Ora, este
poder era espiritual
espiritual,, pois
pois não havia poder temporal ou régio
régio em P aulo.
aulo.
E refere-se ao mesmo poder o que também diz o Apóstolo em Atos [20:28]: Olhai,
ois, por vós, e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos
ara reger a Igreja de Deus, que Ele adquiriu com seu sangue. Aí diz-nos
expressamente que aos bispos foi dado poder para reger a Igreja. Ora, regime e governo
são a mesma coisa. Portanto, a não ser que se faça grande violência a tais palavras, o
Apóstolo trata ali do poder jurisdicional. E, de modo a significar que tal regime é
espiritual, adiciona em referência à Igreja: Que Ele adquiriu com seu sangue. Pois não
adquiriu Cristo com seu sangue o reino temporal, mas o espiritual.
7. T AMBÉM COM A RAZÃO SE DEMONSTRA A MESMA VERDADE. – Por isso, pode-se confirmar
esta verdade não apenas com os testemunhos da Escritura, mas também com muito boa
razão. Pois temos das Escrituras que pelo Pai foi prometido a Cristo, Deus e homem, um
reino eterno: Do fruto do teu ventre
ventre porei
porei sobre trono(Salmos 132:11), e Sobre o
sobre o teu trono
trono de David e sobre seu reino se sentará (Isaías 9:7). E acrescenta o anjo, em Lucas
[1:32]: E lhe dará o Senhor o trono de David
Davi d seu pai, e reinará para sempre
sempre na casa de
acó, e seu reino não terá fim.
E este reino prometido a Cristo não haveria de dar-se nem de iniciar-se apenas no
céu, como vemos em Daniel [7:13]: Eu olhava na minha
mi nha visão
vi são da noite, e eis
ei s que vinha
nas nuvens do céu um como o filho do homem. E mais abaixo: E foi-lhe
foi -lhe dado o poder,
poder, a
honra e o reino, e todos os povos, tribos e línguas o servirão; seu poder é poder
eterno, que não se acabará; seu reino, um que não se corromperá. Ora, todos entendem
que o filho do homem é Cristo (que assim se chama muitas vezes no Evangelho).
Quanto ao fato de que seu reino haveria de iniciar-se na terra depois de outros
impérios
mpérios e durar para sempre, isso se prediz
prediz abertamente tanto naquela passagem,
passagem, quanto
em Daniel 1. E disso vemos concordância em Ezequiel [37:22]: E deles farei farei uma só
nação na terra, nos montes de Israel; e um só rei será rei de todos eles, e seu supremo
rei será um senhor a imperar sobre todos eles, e não serão mais duas nações.
Evidentemente entende-se que tais palavras se referem a Cristo e à sua Igreja, como
consta de todo o contexto até o fim do capítulo. Ora, este reino de Cristo não é corporal
ou temporal, mas espiritual e eterno, como afirmamos no capítulo IV, e como se
depreende das palavras do próprio Ezequiel ( E os livrarei de todas as habitações em
que pecaram, etc.) e de Jeremias [23:5-6]: Eis que vêm dias, diz o Senhor, Senhor, em que
levantarei a David um rebento justo, que, sendo rei, reinará sabiamente e praticará o

1111
11
uízo e a justiça na terra. Nos seus dias Judá será salvo, e Israel habitará seguro; e
este será o seu nome, com o qual Deus o chamará: O Senhor, Justiça Nossa. Isso
confirmam também outros testemunhos da Escritura e dos Padres, aduzidos no referido
capítulo IV.
8. Assim concluímos, ademais, que esse reino de Cristo não é senão a sua Igreja, na qual
Ele reina espiritualmente, como diz Gregório.[ 198 ] Também Agostinho: O que é o seu
reino senão os que n’Ele crêem? Aos quais diz: “não sois do mundo”.[ 199 ] E mais
abaixo: Portanto, não diz “Meu reino
ei no não está neste mundo”, mas “Meu reino não é
deste mundo”. Nem diz “Não está aqui”, mas “Não é daqui”. Porque aqui ele está até
o fim dos tempos. Portanto, assim como o reino é espiritual, deve ser espiritual o poder
que o rege.
Mas tal reino é perpétuo não apenas no céu, como também na terra, enquanto durar
o mundo – conforme relatei a partir de Agostinho, e demonstrei no livro primeiro,[ 200 ]
ao tratar da Igreja. Portanto, também o poder espiritual para reger este reino foi
concedido por Cristo à Igreja, para que ela dure para sempre, uma vez que não pode
conservar-se um reino sem um poder governador que lhe seja proporcionado. Por isso
diz corretamente Epifânio:[ 201 ] O trono de David – e sede régia – é o sacerdócio na
Santa Igreja, que, enquanto dignidade real e também pontifícia, foi concedido
conjuntamente como dádiva de Cristo à sua Santa Igreja, tendo sido transferido a esta
o trono de David que perdurará para sempre. E mais abaixo: Da casa carnal de Judá e
de Israel foi transferida a dignidade real, mas seu trono se assenta firmemente na
Santa Igreja de Deus, para sempre.
9. UMA EVASIVA DO REI DA I NGLATERRA E SEUS SEUS ARGUMEN TOS. – Entretanto, a esta razão
RGUMENTOS.
responde tacitamente o rei Jaime em seu PrefácioPrefácio (páginas 5 e 7) com as seguintes
palavras:
palavras: Ainda que os reinos terrestr
terrestres
es devam ser regidos por monarcas
monarcas terrestres,
terrestres, nem
or isso se segue que a Igreja deva ser governada por um monarca terrestre. E, para
que seja assim, dá-nos duas razões. A primeira é que tampouco é um só o moderador e
monarca de todo o mundo e todos os reinos. A segunda é que Cristo é o monarca de
sua Igreja, e em seu lugar já está o que Ele nos prometera
prometera que viria:
viri a: o Espírito Santo.
E agrega: Os reis dos gentios dominam sobre eles, mas não sereis vós assim.
Com estas palavras, porém, o rei toca outra questão referente à monarquia, que ainda
estudaremos, e que é distinta da presente. Pois agora apenas tratamos da soberania
espiritual necessária para reger o reino de Cristo (que é a Igreja), e afirmamos que tal
poder deve existi
existirr na própria
própria Igreja segundo
segundo ela se encontra na terra, quer eleele resida
resida
numa só pessoa, quer em muitas, ou numa congregação delas composta – o que veremos
depois. Mas as palavras do rei tencionam não ser necessário nesse reino de Cristo
nenhum poder que o governe em seu lugar, como vemos claramente na segunda razão
que nos dá, em que indica a função do Espírito Santo. E por isso não pudemos aqui
omiti-la.

112
10. REFUTA-SE A EVASIVA DO REI. – Sobre a primeira equiparação do reino espiritual da
Igreja com o reino terreno, dizemos que, se se faz a comparação de modo proporcional,
não é menos necessário haver na Igreja um governante terrestre soberano, isto é, um
homem visível e mortal, que exista no reino terrestre.
Pois a Igreja universal de Cristo não é menos una – um reino uno, em sua própria
ordem – do que qualquer reino temporal em seu respectivo âmbito. E, embora a Igreja
seja um reino espiritual quanto ao fim e a seus meios principais, ainda assim é também
terrestre no que tange às pessoas das quais se constitui – e as ações nas quais deve ser
regido, dirigido e corrigido são também terrestres, isto é, externas e sensíveis, e mediante
elas deve preservar-se a paz, a unidade, a religião e todas as demais coisas necessárias ao
conveniente governo deste corpo. Logo, não é menos necessário neste reino um poder
soberano que governe e dirija de modo sensível e humano os seus membros e as ações
destes, em ordem à salvação eterna. Portanto, Bonifácio II[ 202 ] e Gregório[ 203 ]
dizem retamente, ao tratar da Igreja, que: Para isto a provi providência
dência da dispensação
divina constituiu diversos graus e ordens distintos: para que da diversidade brotasse o
laço de uma só concórdia, e se gerisse retamente a administração de cada um dos
ofícios. Pois tampouco a totalidade poderia subsistir de outra maneira se não a
reservasse esta grande ordem de difer enças.[ 204 ] Ora, como não se pode proceder ao
di ferenças
infinito nesta diversidade e ordem de graus, nem pode neles haver divisão, é necessário
que terminem ou encontrem-se unidos numa cabeça suprema. Por isso, complementa
Gregório: Cada um cumpre sãmente seu ofício quando há algum superior a quem se
ossa recorrer. E, assim como isso é certamente verdadeiro em cada congregação
espiritual ou eclesiástica, e em cada episcopado ou igreja particular ou província, assim
também isso é necessário – e com muito maior razão – na Igreja inteira.
E por isso nos diz o Papa Anastácio, na Epístola ao Imperador Anastácio:[ 205 ]Se
todo poder procede de Deus, então mais ainda aquele poder que está posto à frente das
coisas divinas – o qual chamamos aqui de poder espiritual. Logo, é muito acertada esta
conclusão, que o rei rejeita. Se um reino terreno deve ser regido por um monarca
terreno, também foi necessário que a Igreja possuísse na terra seu monarca ou
governante soberano.
11. RESPONDE-SE À PRIMEIRA PROVA DO REI. – O primeiro argumento do rei não apenas não
refuta a nossa posição, mas antes a comprova, se consideramos outra diferença que há
entre a Igreja e o mundo inteiro no tocante aos reinos terrenos. No mundo todo, não há
uma só república ou um só reino temporal, mas variados e numerosíssimos que entre si
não compõem um corpo político único; por isso, tampouco foi necessário haver um
monarca apenas, nem um comando apenas (falando de modo mais geral), nem apenas
um tribunal supremo político e humano para todo o mundo. Em verdade, nem poderia
ter sido assim, tanto moral quanto humanamente.
Por outro lado, a Igreja de Cristo é um só corpo místico perfeito, e um só reino
simples – por assim dizer – difundido por todo o mundo, como dissemos no livro
primeiro,[
primeiro,[ 206 ] ao tratar da Igreja Católi
Católica; portanto, é necessário
necessário um único
único poder
soberano que a governe inteira. Assim, se supomos que o regime da Igreja é monárquico

113
(o que se mostrará adiante), sua comparação com o reino temporal não se deve fazer
ante o mundo inteiro, mas junto a cada um de seus reinos, de modo que, assim como
cada reino temporal é regido por um só monarca terreno – digo “terreno” quanto à
pessoa, ao poder,
poder, à matéria
matéria e ao fim
fim próxi
próximo – assim
assim também todo o reino da Igreja
Igreja
igualmente seria regido por um só monarca, terreno quanto à pessoa, mas celeste quanto
ao poder, à matéria, e a seu fim próximo e principal. Pois, por esta razão, a Igreja
militante de Cristo, embora possa dizer-se um reino terreno por constituir-se de homens
mortais que vivem na terra, ela é muitas vezes chamada na Escritura de “reino dos céus”
– e Cristo
Cristo dela
dela diz:
diz: Meu reino não é deste mundo. Como observa Agostinho,[ 207 ] não
disse Cristo que: Meu reino
ei no não está neste mundo, mas que: Não é deste mundo; pois,
embora esteja no mundo, não é do mundo, mas vem do céu. E portanto tal reino
necessita de um governador que seja ao mesmo tempo terrestre e celeste.
12. RESPONDE-SE À SEGUNDA RAZÃO DO REI. – Quanto ao segundo argumento, certamente
concedemos que Cristo Senhor é monarca primeiro de sua Igreja. Por isso, enquanto
esteve na terra e conviveu com seus apóstolos, governou-a por si enquanto seu rei e
Pontífice soberano, escolheu os apóstolos, consagrou sacerdotes e bispos e os enviou
para pregar,
pregar, proveu-os com discípul
discípulos,
os, e proveu todas as demais coisascoisas necessárias
necessárias à
situação da Igreja nas circunstâncias daquele tempo. Mas, visto que agora está ausente
da Igreja militante no que tange à sua presença visível, não pode como antes exercer por
si e proximamente a função de seu pastor; por isso, para compensar sua presença visível,
proveu um governante vigvigário
ário ao qual confiou o regime
regime de sua Igreja.
E não o nega o rei da Inglaterra, mas – o que é surpreendente – diz que este vigário é
o Espírito Santo, pois, Cristo não prometeu que deixaria Pedro para guiar e ensinar os
apóstolos, mas o Espírito Santo. Mas isso, ou não foi dito propriamente, ou não o foi
verdadeiramente com respeito ao tema e causa de que tratamos. Sei que Tertuliano às
vezes referiu-se ao Espírito Santo como vigário de Cristo,[ 208 ] mas o fez com
expressão imprópria e metafórica, apenas porque Cristo disse, em João [14:16]: E vos
dará outro Consolador, para que permaneça entre vós para sempre o Espírito da
verdade. E abaixo: Isto lhes disse, estando convosco. Mas o Consolador,Consolador, o Espírito
Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará
lembrar de tudo quanto vos tenho dito. Com tais palavras envia Cristo o Espírito Santo,
para que por sua graça confira
confira a seus fiéis
fiéis a virtude interi
interior,
or, a ilumi
iluminação
nação e a orientação.
13. O ESPÍRITO S ANTO NÃO SE PODE DIZER PROPRIAMENTE VIGÁRIO DE C RISTO. –
Entretanto, tal operação não pode ser atribuída ao Espírito Santo enquanto vigário de
outrem, se falamos de maneira própria, pois um vigário é ministro de outro agente
princi
principal
pal,, que faz gestão em seu lugugar,
ar, e usa o poder que lhe foi concedido.
concedido. Ora, o
Espírito Santo ensina e inspira internamente enquanto causa próxima e principal da graça
e da virtude interna, como nos diz São Paulo: Não é algo o que planta, nem o que rega,
mas Deus, que dá o crescimento.(I Coríntios 3:7)
Assim, não se pode dizer propriamente que o Espírito Santo é vigário de Cristo.
Tertuliano expressou-se de modo lato e impróprio, e isso porque o Espírito Santo foi

114
enviado para que, no lugar de Cristo, consolasse os apóstolos e lhes ensinasse ou
explicasse muitas coisas que, pelas circunstâncias e pela brevidade do tempo, não era
possível ou necessário
necessário que fossem expli
explicadas pelo
pelo próprio
próprio Cristo.
Cristo. Por isso,
isso, falou-nos
falou-nos
[João 14:16]: Eu rogarei outro Consolador, como se dissesse:
ogarei ao pai, e Ele vos dará outro
“Em mim tínheis um Consolador, mas, embora me vá, não estareis carentes, pois o Pai
vos dará outro, que os consolará em meu lugar.” E, noutro sentido (que nos indica
Eutímio[ 209 ]), falou sobre o Espírito Santo: Aquele que o Pai enviará
envi ará em meunome
[João 14:26], ou seja, para que termine o que comecei, guiando-vos e explicando-vos o
que ensinei, tanto agregando o que agora não podeis receber, quanto dando testemunho
de mim.
Por esta razão, pode dizer-se de certo modo que o Espírito Santo geriu ou explicou
no lugar de Cristo, não por virtude vicarial ou ministerial, que seria inferior, mas
enquanto causa principal que perfaz o que Cristo não pôde levar a termo no breve tempo
de sua vida. Logo, qualquer um que deste modo sucede a outro num ofício, ou perfaz o
que ele começou e não pôde terminar, pode chamar-se seu suplente e vigário, ainda que
não seja propriamente vigário, nem opere mediante um poder inferior e participado,
dependente do outro.
14. Se o rei da Inglaterra entendeu que o Espírito Santo atuou no lugar do Cristo apenas
desta maneira, não tem fundamento para crer que tal operação do Espírito Santo baste
para um regi
regime eclesial
eclesial externo e adaptado aos homens, pois
pois aquela
aquela virtude
virtude e operação
do Espírito Santo é invisível, e meramente interna e espiritual. Ora, aos homens também
é necessário um regente externo e visível.
Ademais, se aquele influxo invisível do Espírito Santo fosse suficiente para a Igreja
visível, não apenas o Espírito Santo, mas também o próprio Cristo, ausente e agora
invisível para nós, poderia dizer-se vigário presente ou visível de si mesmo, pois também
prometeu-nos [Mateus 28:20]:
28:20]: Eis que eu estou convosco todos os dias, até a
consumação dos séculos, ou seja, com proteção e auxílio invisíveis, como antes
expliquei.
Além disso, se Cristo, que é monarca primeiro da Igreja, não lhe conferiu um regente
visível para que a governasse em seu lugar, por que o rei da Inglaterra, em seu Prefácio
Prefácio ,
chama a si e aos demais reis “vigários de Cristo?” Pois – de acordo com sua opinião, na
qual ele se crê cabeça da Igreja em seu reino, também nas coisas espirituais – é
necessário que, ao chamar a si próprio “vigário de Deus”, isso se entenda não apenas
com relação ao reino temporal, mas também quanto à Igreja Britânica. Logo, contradiz-
se o rei ao afirmar que Cristo não nos deixou um vigário além do Espírito Santo.
15. CRISTOS ENHOR CONFERIU A PEDRO VERDADEIRA JURISDIÇÃO ESPIRITUAL. – Finalmente,
é falso que Cristo não nos prometeu um Pedro para reger-nos e ensinar-nos. Pois não só
o prometeu, como também o deu, por confiar-lhe as chaves do governo e da ciência.
Também quando lhe disse: Roguei por ti,
ti , para que tua fé não desfaleça, logo agregou: E
tu, quando te converteres, confirma os teus irmãos. (Lucas 22:32) E por fim, ao dizer:

115
mi nhas ovelhas, abarcou manifestamente tanto a doutrina quanto o regime e a
pascenta minhas
direção, como veremos mais abaixo.
Além disso, em muitos outros lugares Cristo indicou que haveria na Igreja um
governo espiritual, e alguém – ou alguns ministros seus – que a gerissem em seu lugar
enquanto vigários próprios e visíveis. Assim entendem os Padres isto que se diz em
Lucas [10:16]: Quem ouve a vós, a mim me ouve; quem rejeita a vós, a mim me rejeita.
Assim comentam esta passagem Ambrósio,[ 210 ] Hilário[ 211 ] e Crisóstomo.[ 212 ]
Pois, visto que Cristo, na parábola do pai de família que deseja ser aguardado e
obedecido por seus súditos com grande vigilância e solicitude, explicara como se deve
servir ao senhor, e Pedro o interrogou [Lucas 12:41]: Senhor, dizeis a nós esta parábola,
ou a todos?, respondeu-lhe Cristo: Qual é, pois, o dispensador fiel e prudente? Com
isso indicou que os apóstolos haviam sido especialmente chamados para ser como servos
princi
principai
pais,
s, de quem se exi
exigia a atenção aos demais; e princi
principal
palmente
mente P edro, que seria
seria
constituído sobre toda a família de Cristo, estava obrigado não só à vigilância de todos,
mas a uma especial fieldade e prudência.
E eram este cuidado e obrigação de que se recordava São Pedro, ao dizer: apascentai
o rebanho de Deus que está entre vós provendo-lhe não por força, mas voluntariamente,
segundo Deus. E são consoantes as palavras de São Paulo, em I Coríntios [4:1]: Que os
homens nos considerem como ministros de Cristo, e dispensadores dos mistérios de
Deus. E é isto o que se exige fiéi s, etc. E no capítulo 3
exi ge dos dispensadores: que sejam fiéis
dissera: Quem é Apolo e quem é Paulo? Ministros daquele em quem crestes, isto é,
vigários d’Ele, e regentes da Igreja em seu lugar. Em Romanos 13, chamou um príncipe
ou juiz temporal de “ministro de Deus”.
16. Pois que aquele ministério foi apostólico e dotado de poder e jurisdição para julgar,
declara-o claramente o próprio São Paulo, no fim do capítulo 4, ao dizer: Que quereis?
Que vá a vós com a vara?E no capítulo seguinte: Eu, na verdade, ainda ai nda que ausente no
corpo, mas presente no espírito, já determinei, como se estivesse presente, que o que
tal ato praticou, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, etc., seja entregue
entregue a Satanás
ara a destruição da carne, para que o espírito seja salvo, etc. E em II Coríntios
[13:2]: Se eu for outra vez, não usarei de perdão! E, claramente, em Hebreus [13:17]:
Obedecei aos vossos pastores, e sujeitai-vos a eles, pois velam por vossas almas. E
ainda I Timóteo [5:17]: Que os presbíteros que bem governam sejam tidos por dignos de
dupla honra. Também em Tito [1:7]: Convém que o bispo seja irrepreensível, como
dispensador da casa de Deus, etc. E no capítulo seguinte [2:15]: Fala disto, exorta e
repreende autori dade. Finalmente, a isso se referem as palavras de Paulo em
epreende com toda a autoridade
que descreve a unidade do corpo da Igreja e seus vários membros, como em Romanos
12[:8], onde, entre outras coisas, diz-nos: O que preside, faça-o com zelo, etc.; também
remeto a II Coríntios 12 e Efésios 4[:11-12], onde fala: Constituiu apóstolos, profetas,
evangelistas, pastores e doutores (...) no ofício do ministério, para a edificação do
corpo de Cristo. E diz que tal modo de governo há de durar até a consumação dos
santos, isto é, até o fim do mundo, como foi explicado em seções anteriores.

116
17. DISTINÇÃO ENTRE PODER ESPIRITUAL E TEMPORAL. – Do que dissemos se conclui
manifestamente que este poder espiritual é totalmente distinto do temporal. Primeiro (e
princi
principal
palmente)
mente) pelo
pelo seu fim:
fim: o poder temporal se ordena a conservar a paz e a
integridade moral da república, conforme as palavras de São Paulo em I Timóteo [2:2]:
Para que possamos vivervive r uma vida calma e tranqüila, em toda a piedade e castidade.
Já o poder eclesiástico se ordena a alcançar a salvação eterna; diz-nos o Apóstolo, em
Efésios [4:12]: Até a consumação dos santos, etc., e em Hebreus [13:17]: Obedecei aos
vossos pastores, e sujeitai-vos a eles, pois velam por vossas almas e delas deverão dar
conta.
A segunda diferença reside em sua origem. O poder temporal tem origem em Deus
enquanto autor da natureza, por intermédio da razão natural. Considerado em si mesmo,
pertence ao direito
direito natural;
natural; na medida
medida em que se encontra num rei ou num senado,
pertence ao direit
direitoo humano. Já o poder eclesiásti
eclesiástico
co é de direito
direito divino
divino positivo,
positivo, mediante
mediante
promessa e concessão especiai Cristo: A ti darei
especiaiss de Cristo: darei as chaves; Apascenta minhas
ovelhas; Assim como o Pai me enviou, envi ou, eu vos envio
envi o a vós. Pois, assim como o fim ao
qual se ordena este poder – e também os atos e meios que lhe dizem respeito – estão por
sobre a natureza e as forças humanas, é necessário também que o próprio poder tenha
origem superior ao direito natural ou humano. E desse modo explicam tal distinção os
Papas Gelásio[ 213 ] (em Sobre o Vínculo do Anátema) e Nicolau I,[ 214 ] em sua
Epístola ao Imperador Miguel, próximo ao fim, quando diz: Jesus Cristo, o mediador
entre Deus e os homens, distinguiu os ofícios destes dois poderes com atos próprios e
dignidades diversas – por desejar que com sua própria humildade medicinal fossem
levados às alturas, e não imersos no inferno pela soberba humana – de modo que os
imperadores cristãos necessitassem dos pontífices para a vida eterna, e os pontífices se
valessem apenas das leis imperiais para o curso das coisas temporais, ao passo que a
ação espiritual permanecesse à distância das incursões terrenas. Tais diferenças foram
comentadas por Gregório VII,[ 215 ] que as confirma pelas palavras de Anastácio[ 216 ]
e de Gregório, em sua Pastoral.[ 217 ] O mesmo ensina Símaco,[ 218 ] na Apologia
dirigida ao imperador Anastácio, ao dizer: Comparemos a honra do imperador com a do
Pontífice; elas distam entre
entre si na medida em que aquele se ocupa das coisas humanas
e este, das divinas. E mais abaixo: Tu administras os assuntos humanos, aquele
dispensa a ti as divinas. Símaco diz o mesmo no sínodo de Roma,[ 219 ] e trata-se
deste tema extensamente no capítulo Bene quidem.[ 220 ] Muitas outras coisas também
se mencionarão nos dois capítulos que se seguem.
18. REFUTAM-SE OS FUNDAMENTOS DOS ERROS MENCIONADOS NO INÍCIO DESTE CAPÍTULO. –
Tampouco obstam contra essa católica doutrina os fundamentos dos demais erros
baseados em outras heresias
heresias – as quais
quais não nos é possível refutar neste lug
ugar
ar da melhor
melhor
maneira. Pois, no fundamento do primeiro erro, é herético dizer que na Igreja de Cristo
não há sacrifício verdadeiro e visível, nem sacerdócio verdadeiro e próprio. De modo
semelhante, é herético dizer que todos os fiéis são iguais no sacerdócio. Noutro lugar já
refutamos e pusemos à prova todas essas coisas.

117
Também Marsílio de Pádua erra na fé ao supor que todos os bispos e clérigos ou
sacerdotes são iguais pelo direito divino. Pois, quanto ao poder de ordem, por instituição
de Cristo, o bispo excede ao presbítero, o presbítero ao diácono, etc., como se mostra
em maior detalhe no tratado Sobre o Sacramento da Ordem. Já quanto ao poder de
urisdição, há, no que tange aos apóstolos, uma claríssima diferença, que facilmente pode
coligir-se dos testemunhos já aduzidos; com respeito a Pedro e seus sucessores, a
questão se mostrará em detalhe mais abaixo.
Ademais, isto que ele diz, que Cristo proibiu aos pontífices o reinar temporalmente é
de todo falso e errôneo, conforme mostraremos no capítulo VIII; além disso, tal coisa de
nada importaria para o tema que agora tocamos, pois, ainda que o admitíssemos, daí
apenas se poderia inferir que os bispos e pontífices – pelo poder que têm enquanto tais –
não reinam temporalmente, mas espiritualmente, coisa que afirmamos de modo resoluto
quando dizemos que seu poder não é temporal, mas espiritual.
19. E prova-o em grau máximo aquele testemunho, que tampouco o rei da Inglaterra
omitiu [Lucas 22:25-26]: Os reis dos gentios dominam sobre eles, mas não sereis vós
assim; pois tampouco neste sentido Cristo proíbe os apóstolos de reinar, mas sim de
reinar como os gentios, isto é, temporalmente. Ora, é necessário que reinem
espiritualmente ao menos aqueles que têm soberania nesta esfera. A não ser que digamos
que nem mesmo o Sumo Pontífice reina espiritualmente, mas que vice-reina, por não
fazê-lo como rei soberano, mas como vigário do Rei Altíssimo.
Mas a verdade é que o Senhor não proibiu o reinar, mas o governar dominando as
pessoas com jactância,
jactância, antepondo-se a elas,
elas, tratando desumanamente os súditos.
súditos. Isso o
diz Gregório, que em sua Pastoral[ 221 ] explica as palavras de Cristo mediante as do
Eclesiástico [32:1]: Se te constituíram chefe, ou, em outra versão, Se te puseram como
regente, não te jactes: comporta-te entre eles como um deles. Também estas: Tampouco
dominando sobre a herança de Deus, mas servindo de exemplo ao rebanho.[ 222 ] E
ainda estas, de São Paulo: Não porque
porque dominemos sobre
sobre a vossa fé, mas por sermos
cooperadores para vossa alegria.[ 223 ] Por fim, dizem-nos coisa semelhante Gregório[
224 ] e Bernardo.[ 225 ]
Portanto, com isto respondemos aos fundamentos que neste ponto toca o rei da
Inglaterra. Sobre as outras objeções que move contra primado do Pontífice e contra o
verdadeiro sentido das Escrituras pelas quais ele busca provas, disto falaremos em
seguida.

[ 195 ] MARTÍN DE A ZPILCUETA N AVARRO, Commentarii et tractatus,tractatus, Veneza, Nicolinus, 1601, t. III,. Relectio
cap. Novit de Iudicis, Notabile tertium, n. 83, fol. 69.
[ 196 ] Mais corretamente, trezentos anos. MARSÍLIO DE P ÁDUA publicou originalmente seu Defensor Pacis em
1324. Defensor Pacis,
Pacis, Frankfurt, 1612, Dictio II, caps. 4 e 26, pp. 117-131 e pp. 388-396.
[ 197 ] Hierarchiae
Hierarchiae Ecclesiasticae Assertio,
Assertio, Colônia,
Colônia, 1544, lib V, c.c . 14, ff. cc cii-cccxiii
cii-cc cxiii.. Cf. também ÁLVARO
PAIS.De Planctu Ecclesiae, Veneza,
Veneza, Sansovinus, 1560, lib.lib. I, cap. 68, ff. 92-5, e N ICHOLAS S ANDER ( OU
SANDERS). De visibili
v isibili monarchia
monarchia ecclesiae,Louvain, 1571, VII, n. 166, p. 342.
[ 198 ] S. G REGÓRIOM AGNO,Commentarii in librum I Regum, 6,3, 31 (PL 79, 468A).
[ 199 ] In Ioannis
I oannis evangelium tractatus CXXIV , 115, 2 (PL 35, 1939).
[ 200 ] Ausente desta edição compilada.

118
[ 201 ] Advers
Adv ersus
us Haereses
Haereses,, I, 2, 29, 2 e 3 (PG 41, 391 e 393).
[ 202 ] P SEUDO-BONIFÁCIO II, Mansi 8, 732.
[ 203 ] P APAG REGÓRIO VII, Registrum,
Registrum, VI, Epist. 35 (PL 148, 539D).
[ 204 ] Decretum
Decretum Gratiani,
Gratiani, Veneza,
Veneza, 1595, I, dist. 89, can. 7, pp. 404-5.
[ 205 ] P APAS ÍMACO, Apologetica adv ersus ersus Anastasii Imperator
I mperatoris
is libellum f amosum,Mansi 8, 215.
[ 206 ] Ausente desta edição compilada.
[ 207 ] V. nota 186 supra
supra.
[ 208 ] De praescriptionibus
praescriptionibus adversus haereticos
haereticos,, c. 13 (PL 2, 26A) e 28 (PL 2, 40B).
[ 209 ] EUTÍMIOZ IGABENO, Comment. in Ioannem, 14, 26 (PG 129, 1403).
[ 210 ] Expositio ev ang. sec. Luc. Lib. VII, 9 (PL 15, 1710-1721).
[ 211 ] Commentarius in Matthaeum Cap. XVI, 7 (PL 9, 1009, 1010).
[ 212 ] Provavelmente in Opus Imperfectum,
Imperfectum, In Matthaeum Homil. XVII XV II (PG 56, 727), obra erroneamente
atribuída a S. João Crisóstomo.
[ 213 ] De anathematis vinculo
vi nculo,, Mansi 8, 93 (PL 59, 109A). Cf. PAPA N ICOLAU I, Decretum Decretum Gratiani,
Gratiani, Veneza,
1595, I, dist. 96, can. 6, pp. 432-4.
[ 214 ] Ad Michaelem imperatorem
imperatorem,, Mansi 15, 214-5. Cf. Decretum
Decretum Gratiani,
Gratiani, Veneza,
Veneza, 1595, I, dist. 10, can.
c an. 7, p.
30.
[ 215 ] Registrum,
Registrum, IV, Epistola 2 (PL 148, 455B).
NAST ÁCIO II, Epistola I Anastasii
[ 216 ] P APAA NAST A nastasii Papae II I I ad Anastasium Augustum,
Augustum, Mansi 8, 188.
[ 217 ] Na verdade, é S. Ambrósio quem Gregório VII cita como autor dessa “Pastoral” (loc. cit.). cit.). Trata-se de
uma obra espúria, embora até mesmo na citação presente no Decretum Decretum Gratiani (dist. 96, 10) o bispo de Roma
tenha se consagrado como seu autor. A passagem original provavelmente seja de GERBERTO DE A URILLAC (P APA
SILVESTRE II), in Sermo de informatione episcoporum(PL 139, 170C).
[ 218 ] V. nota 106 supra
supra.
[ 219 ] Apologetica adversus Anastasii Imperatoris libellum f amosum, amosum, Mansi 8, 215B.
[ 220 ] Decretum
Decretum Gratiani,
Gratiani, I, d. 96, c. 1, pp. 436-9.
[ 221 ] Regula Pastoralis,
P astoralis,p. II, c. 6 (PL 77, 37B).
[ 222 ] I Pedro 5:3.
[ 223 ] II Coríntios 1:24.
[ 224 ] Loc. cit. (PL 77, 34D); cf. também Epistolarum Lib. I, indict. IX, epist. 25 (PL 77, 475).
[ 225 ] De Consideratione
Consideratione ad Eugenium Tertium,
Tertium, II, c. 6, nn. 10 e 11 (PL 182, 747D e 748B).

119
Capítulo VII
Pr
Prova-se por autoridade que não há nos reis
ou príncipes o poder de reger a I greja
greja em
assuntos
assuntos espirituais ou eclesiásticos
ecl esiásticos
1-2. De que modo os poderes espiritual e temporal relacionam-se entre si no que tange
a seu sujeito. O erro da seita anglicana sobre o sujeito do poder espiritual. 3.
Primeira
Primei ra conclusão: não cabe aos reis temporais,
temporai s, enquanto tai s, nenhum poder
espiritual. 4-5. Prova desta conclusão pelas Escrituras. 6-11. Prova-se a asserção
mediante os Sumos Pontífices. 12. Estabelece-se esta mesma verdade pelos escritos dos
imperadores.

1. DE QUE MODO OS PODERES ESPIRITUAL E TEMPORAL RELACIONAM-SE ENTRE SI NO QUE


TANGE A SEU SUJEITO.O ERRO DA SEITA ANGLICANA SOBRE O SUJEITO DO PODER ESPIRITUAL. –
Além das diferenças entre o poder espiritual e o temporal relatadas no capítulo anterior,
há outra que, por ser origem e fundamento principal do cisma anglicano, reservamos para
exame neste capítulo, por mais que dela já se obtenha evidente conclusão a partir dos
princípi
princípios
os expostos no anterior
anterior..
Tal divisão consiste no seguinte: que os poderes temporal e espiritual não dizem
respeito por si a umas mesmas pessoas que devam recebê-los, senão que são separáveis
quanto ao sujeito – o que claramente supõe haver entre elas uma distinção, e a indica.
Ora, de dois modos totalmente contrários é possível errar acerca desta divisão.
Primeiro, afirmando que esses poderes não apenas são distintos, mas são também tão
opostos entre si que seria contrário ao direito divino que se encontrassem juntos numa
mesma pessoa. E assim parece haver errado Marsílio de Pádua,[ 226 ] por mais que ele,
ou confunda o poder espiritual com o temporal, ou negue ser possível que estes
convirjam simultaneamente – não em qualquer sujeito, mas somente nos sacerdotes.
Mas, entendido neste sentido, tal erro carece de fundamento, e será brevemente
impugnado no capítulo seguinte, visto que ele pouco nos importa para o momento
presente.
Já o outro modo de errar é o próprio da seita anglicana, cujo princípio e fundamento
é que o poder espiritual não se separa do temporal, senão que é algo anexo ao cetro
régio. Isso o quis Henrique III, a quem seguiram seus sucessores Eduardo e Elizabete,
como expõe extensamente Sander[ 227 ] nos três primeiros livros de Sobre o Cisma
nglicano, no qual descreve também várias das leis promulgadas por estes príncipes
para amplifi
amplificar
car seu poder naquele
naquele reino.

120
2. Por fim, persistiu neste erro o rei Jaime, como consta claramente de suas ações, e o
professa várias vezes em seu Prefácio
Prefácio , ao dizer: De fato, tampouco me crerei
crerei inferior
inferi or
ao Pontífice no que quer que seja. No mesmo sentido refere-se pouco antes aos reis
temporais, que Deus colocou em seu trono, no mais alto dos graus de dignidade, quase
como vigários e legados seus, para exercer a justiça. E ainda sobre eles: Os que Deus
mandou ser na terra seus principais vigários na administração da justiça.
No mesmo sentido
sentido diz
diz que a controvérsia
controvérsia que tem com seus súditos
súditos católi
católicos não
parte de outro ponto senão da ambiciosa tirania dos pontífices, que, contra a
autoridade das Escrituras e contra a sentença dos concílios e dos antigos Padres,
usurparam para si injustamente os direitos temporais dos reis. E nesse mesmo ponto
conclui que foi para afirmar esta autoridade dos reis – ao menos neste sentido – que
dedicou toda a sua Apologia.
Mas o fundamento deste erro parece ser apenas o fato de que ele não reconhece a
diferença entre poder espiritual e temporal, e nega o primado de Pedro e de seus
sucessores. Disto trataremos nos capítulos seguintes.
3. P RIMEIRA CONCLUSÃO: NÃO CABE AOS REIS TEMPORAIS, ENQUANTO TAIS, NENHUM PODER
ESPIRITUAL. – A verdade católica, portanto, é que os reis temporais, enquanto tais, ou
seja, em razão de sua jurisdição soberana no principado político, não possuem nenhum
poder espiritual
espiritual sobre a Igreja.
Igreja. Esta asserção pode provar-se pela
pela autoridade da Escritura
Escritura
de dois modos.
Primeiro, porque no Novo Testamento esse poder é prometido e dado por Cristo a
pessoas que não eram reis reis temporais.
temporais. Segundo,
Segundo, porque não se encontra dado a reis
temporais. Destes dois pontos, tanto tomados isoladamente quanto em conjunto,
retamente conclui-se que ele não existe nos reis temporais, uma vez que não pode
encontrar-se senão naquele
naquele a quem foi dado por Cristo,
Cristo, ou em seus sucessores legíti
egítimos.
mos.
A primeira parte se prova suficientemente pelos testemunhos aduzidos no capítulo
anterior, pelos quais consta que Cristo prometeu e deu esse poder particularmente a
Pedro. Também em João 20 mostra-se que Ele o deu a todos os apóstolos, aos quais (e
aos seus sucessores) este poder foi prometido sob o nome de Igreja Igreja em Mateus 18. Há
ainda outros testemunhos que mostram que São Paulo comumente fez uso de tal
potestade, que elaela se encontra nos bispos
bispos e superiores
superiores da Igreja,
Igreja, e que é exercida
exercida por
eles. Ora, nenhum destes era rei, nem administrava qualquer jurisdição temporal.
Donde se tem adicionalmente um argumento eficacíssimo: antes que na Igreja
houvesse reis temporais, nela havia pastores dotados de verdadeira jurisdição espiritual
para regê-la,
regê-la, o que se conclui de modo patente pelopelo uso que fizeram deste poder,
poder, e pelos
testemunhos que citamos. Portanto, este poder não depende por si da potestade régia,
nem se encontra atado a ela por ser o que é; pois os reis temporais de então não o
possuíam, e deles
deles não o haviam
haviam recebido aqueles
aqueles homens que o exerciam
exerciam legi
legitimamente.
timamente.
4. P ROVA DESTA CONCLUSÃO PELAS E SCRITURAS. – Deste modo, com clareza prova-se
também pelas Escrituras (ponto que tocamos no capítulo anterior) que este poder é de
origem diversa do temporal. Pois o poder temporal, na medida em que se encontra no rei

121
ou noutra pessoa semelhante, seja proximamente, seja por sucessão ou outro título
humano, provém da multitude do povo, que confere ao príncipe sua autoridade. Já o
poder espiritual
espiritual não tem esta origem:
origem: na Igreja
Igreja primiti
primitiva,
va, os apóstolos
apóstolos o obtiveram não do
povo cristão,
cristão, mas do próprio
próprio Cristo,
Cristo, e o comunicaram
comunicaram aos demais
demais bispos
bispos por autoridade
autoridade
sua, independentemente do povo, como se vê em São Paulo, em Tito [1:4]: Deixei-teDeixei -te em
Creta por esta razão: para que termines de organizar o que falta, e constituas
resbíteros pelas cidades, da maneira que te ordenei. E em I Timóteo [4:14]: Não
desprezes a graça que há em ti, que te foi dada. Logo depois, no capítulo seguinte
[5:19], mostra-nos que tal graça vinha acompanhada de jurisdição episcopal, ao dizer:
Contra um presbítero não recebas acusação, exceto sob duas ou três testemunhas, etc.
Ora, visto que, pelos capítulos precedentes, estabelecemos que todo poder régio
emana proximamente do povo, é portanto evidente que pela via deste poder régio o
monarca não possui qualquer jurisdição ou potestade espiritual.
5. Ademais, pelo mesmo princípio e fundamento é aqui eficaz uma segunda prova, que
procede da autoridade
autoridade escritural
escritural a que chamamos “negati
“negativa”.
va”. P ois,
ois, como diz
diz retamente
Santo Tomás, nestas coisas que estão por sobre a natureza, só se crê pela autoridade.[
228 ]As coisas que procedem
procedem unicamente da vontade de Deus, por cima de toda
exigência da criatura, não podem ser conhecidas por nós senão enquanto reveladas
divinamente.[ 229 ] Ora, o poder espiritual da Igreja é um dom que supera a natureza, e
que depende da vontade e instituição divina tanto para existir quanto para existir nesta
pessoa, por tal modo ou sucessão. E não há nenhuma revelação ou autoridade
autoridade divina
divina que
mostre que Cristo deu tal poder aos reis temporais. Portanto, como disse acima Santo
Tomás, onde está ausente a autoridade, devemos seguir a condição da natureza. E, no
presente âmbito, a condição
condição da natureza é que o rei temporal só possua aquela
aquela potestade
que os homens, guiados pela razão natural, puderam conferir-lhe – e por isso tenha
apenas e estritamente
estritamente o poder temporal.
Que a divina autoridade não dá testemunho em favor de um poder maior dos reis,
isto é algo evidente. Primeiro, porque nossos adversários não admitem nenhuma palavra
de Deus para além das Escrituras, e, ainda que a admitissem, não há nenhuma tradição
sacra ou apostólica que indique nos reis tal poder – antes o contrário, como constará no
decorrer deste capítulo e de todo o livro presente.
No que tange
tange à Escritura,
Escritura, já o provamos o sufici
suficiente
ente ao demandar um testemunho de
onde Cristo teria conferido aos reis tal poder, o que sem dúvida não se poderia
apresentar, nem no Antigo nem no Novo Testamento. Pois são frívolos os testemunhos
que sói aduzir-se, nos quais somos instruídos a obedecer aos reis, pois eles nada contêm
deste novo poder supostamente concedido por Cristo aos reis, mas apenas nos advertem
sobre aquela obrigação natural pela qual estamos obrigados a obedecer-lhes nessas coisas
que pertencem à sua jurisdição, como explicaremos mais abaixo, ao responder a
objeções.
Aqui se poderia também considerar o fato de que São Paulo, sempre que descreve a
hierarquia eclesiástica e distingue seus fundamentos, ministérios e ofícios de governo,
enumera seus apóstolos, profetas, pastores e doutores, mas não faz nenhuma menção a

122
reis e imperadores – não porque não houvessem de existir na Igreja, mas porque não
constituem grau próprio no que diz respeito à ordem hierárquica eclesial, e são contados
unto com o povo leigo; não se os conta entre os constituídos para edificar
edifi car o corpo de
Cristo nas coisas espirituais até a consumação dos santos, mas apenas entre aqueles
que devem ser edificados
edificados e consumados.
Por fim, podemos ter em mente que Cristo Senhor, indagado sobre se cabia dar
tributo a César, respondeu com precisão: Dai a César o que é de César,César, e a Deus o que
é de Deus, indicando claramente que a César, isto é, ao rei ou imperador, deve dar-se
apenas aquilo que é devido em razão do poder de César, isto é, do poder régio. Portanto,
como ponderadamente observou Salmerón,[ 230 ] assim como Cristo não tolheu o poder
régio, tampouco o aumentou, nem lhe atribuiu o direito peculiar de apascentar suas
ovelhas.
Agrega também Crisóstomo:[ 231 ] Quando ouves que se há de dar a César o que é
seu, não duvides que issoi sso se refere
refere apenas às coisas que em nada se opõem à piedade
pi edade e
à religião. Pois aquilo que obstaculiza a fé e a virtude não é tributo nem paga de
César, mas do diabo. Ainda mais claramente o diz Ambrósio,[ 232 ] na Epístola a
arcelina: Alega-se que ao imperador tudo é lícito, que são dele todas as coisas.
Respondo: não te agraves, imperador,
imperador, de modo a pensares
pensares ter algum direito i mperial
sobre
sobre as coisas divi nas. Não te jactes; se queres
queres imperar divinamente,
divi namente, submete-te a
Deus. Está escrito: dai a Deus o que é de Deus, a César o que é de César. César. Ao
imperador pertencem os palácios, aos sacerdotes a Igreja. Foi-te confiado o direito
sobre edi fícios públicos, não os sagrados.
sobre os edifícios
6. P ROVA-SE A ASSERÇÃO MEDIANTE OS S UMOS P ONTÍFICES. – Em terceiro lugar, devemos
provar nossa asserção com os testemunhos dos pontífices
pontífices e do direit
direitoo canônico, os quais,
embora pareçam obrar em causa própria, nela possuem máxima autoridade, tanto pela
chave da ciência que detêm para ensinar a Igreja, quanto porque nos apresentam a
tradição certa e imutada da Igreja. Pois desta verdade deram testemunho os pontífices
(não apenas os modernos, mas também os mais antigos), assim como os santos e os
mártires.
Poderíamos aduzir, primeiro, todas as coisas que escreveram sobre o primado da
Igreja Romana, mas isso se recapitulará depois; agora apenas as citaremos naquilo em
que se comparam ambos os poderes entre si, ou em que exigem obediência também dos
imperadores e reis – algo que, se nos príncipes temporais houvesse poder espiritual
soberano, não se poderia fazer.
Assim se expressa o Papa Anastácio II ao imperador Anastácio:[ 233 ] Pelo amor de
vosso império e pela felicidade que seu reino pode alcançar, de acordo com nosso
ofício apostólico, rogamos – como é correto, e o dita o Espírito Santo – que se preste
obediência às nossas admonições. Mais abaixo: Que tua piedade não despreze a mim
or freqüentemente sugerir estas coisas a ti, tendo ante teus olhos as palavras do
Senhor no Evangelho: “Quem ouve a vós, a mim me ouve; quem rejeita a vós, a mim
me rejeita, e rejeita aquele que me enviou.”

123
Também o Papa Gelásio,[ 234 ] na Epístola 10 ao mesmo imperador Anastácio,
ensina reiteradamente que aquele poder convém a ele, não ao imperador; entre outras
palavras,
palavras, escreve-lhe estas: Há duas coisas,
coi sas, augusto i mperador,
mperador, pelas quais o mundo é
regido principalmente: a autoridade sacra dos pontífices e o poder régio, etc. Diz o
Papa Símaco[ 235 ] ao mesmo imperador: Se és príncipe cristão, deves escutar
acientemente a voz de qualquer superior apostólico. E mais abaixo: Comparemos a
honra do imperador com a do Pontífice, etc. E ainda: Se todo poder procede de Deus,
então mais ainda aquele poder que está posto à frente das coisas divinas. Obedece a
obedeceremos a Deus em ti. Donde abertamente indica não haver
Deus em nós, e nós obedeceremos
poder espiritual
espiritual no imperador,
imperador, mas sim no pontífice.
pontífice. E depois agrega:
agrega: Todos os príncipes
príncipes
Católicos, seja quando tomaram as rédeas do império, seja quando reconheceram novos
superiores instituídos pela Sé Apostólica, enviaram-lhe escritos prontamente, para
informar-lhe que a apoiavam. Isto nos escreveu Símaco há mil e cem anos, e vemos que
esta prática foi preservada até nossos tempos.
7. Ademais, isso também confirma a definição do próprio Papa Símaco[ 236 ] no IV
Concílio de Roma: Não cabe aos leigos, ainda que reli reli giosos, nem aos poderosos
poderosos de
qualquer cidade, decidir de qualquer modo sobre os recursos eclesiásticos, pois o
cuidado de dispô-los ensina-se haver sido confiado por Deus indiscutivelmente apenas
aos sacerdotes. Esta razão e determinação tem validade em toda e qualquer causa
eclesiástica. Para confirmar esta verdade, Graciano também coligiu muitos documentos.[
237 ]
Sobretudo, corrobora-a extensamente o Papa Nicolau[ 238 ] na sua Epístola ao
Imperador Miguel, onde, entre outras coisas, diz-nos: Quando se chegou ao [que é]
verdadeiro (isto é, à verdade evangélica), nem o imperador arrebatou os direitos do
ontificado, nem o pontífice usurpou o nome de imperador; pois o mediador entre
Deus e os homens, Jesus Cristo, distinguiu
disti nguiu os ofícios destes dois poderes
poderes com atos
róprios e dignidades diversas, de modo que os imperadores cristãos necessitassem
dos pontífices para a vida eterna, e os pontífices se valessem apenas das leis imperiais
ara o curso das coisas temporais.
O mesmo nos explica detalhadamente Gregório VII, em sua epístola a Herimano,
bispo
bispo de Metz,[
Metz, [ 239 ] onde confirma tal verdade com ditos e fatos de outros pontífices e
imperadores. Também Inocêncio III,[ 240 ] no capítulo Solitae, afirma que o imperador
precede o pontífice
pontífice nos assuntos temporais,
temporais, enquanto nos espirit
espirituai
uaiss se dá o contrário.
contrário.
Igualmente Bonifácio VIII,[ 241 ] em sua Extravagante De Maioritate Obedi entia, diz
Mai oritate et Obedientia
que na Igreja há o gládio espiritual, a ser empunhado pelo sacerdote, e o gládio temporal,
a ser empregado pelos leigos em prol da Igreja, com a vontade e o consentimento do
sacerdote. E é isto que nos confirma de modo tácito Clemente V, em sua Extravagante
eruit – De Privilegiis,[ 242 ] embora declare, mediante a Extravagante de Bonifácio,
que o rei e o reino da França não se encontravam em maior sujeição à Sé Apostólica do
que aquela que já tinham.
Finalmente, Graciano, na distinção 63,[ 243 ] baseando-se no Papa Adriano,
confirma-nos este ponto: Para que príncipes ou potentados lei gos não intervenham em

124
eleições eclesiásticas, pois em coisas eclesiásticas não possuem nenhum poder.
A mesma posição se tem no IV Concílio de Constantinopla (ou VIII Concílio Geral),[
244 ] capítulo 22, e também no capítulo 12 não apenas se nega aos príncipes temporais o
poder de criar bispos,
bispos, mas se diz
diz ainda
ainda que deve ser deposto quem houver sido sido
introduzido mediante tal tirania. Também no VII Concílio,[ 245 ] capítulo 3, declara-se
inválida a eleição de um bispo feita por príncipe temporal – o que é citado por Graciano,
na referida distinção 63, capítulo Omnis.
Assim também se expressa Inocêncio III,[ 246 ] no capítulo Ecclesia (título De
Constitutionibus): Aos leigos não é conferido nenhum poder sobresobre as i grejas
grejas e pessoas
eclesiásticas; a eles cabe a necessidade de obedecer, não a autoridade de imperar. Tal
posição
posição se reitera no capítulo Tua 1(título De Decimis
Deci mis),[ 247 ] com palavras tomadas do
IV Concílio, presidido pelo Papa Símaco III.
Poderíamos citar muitos outros escritos do direito canônico nos quais se prescreve a
isenção das causas eclesiásticas com relação ao poder dos leigos, pois em tais escritos se
supõe não haver poder espiritual nos magistrados temporais. Mas reservamos todas estas
referências para o livro Sobre a Imunidade Eclesiástica.[ 248 ]
8. A esses testemunhos podem agregar-se as sentenças de outros Padres, que, embora
não tenham sido pontífices, foram bispos, arcebispos, patriarcas ou santos doutores da
Igreja, e viveram em seus primeiros séculos. Entre eles, temos Crisóstomo,[ 249 ] que,
entre muitas outras coisas, disse egregiamente: Por mais que pareça
pareça admirável o trono
trono
régio, foi seu quinhão administrar as coisas terrenas, e não possui qualquer
autoridade para além deste poder. E, em sua homilia sobre Mateus, diz a um diácono:
Tens poder maior do que ele – isto é, do que o príncipe secular, no âmbito da
administração eclesiástica. Sobre isto temos também várias passagens no livro III de
Sobre o Sacerdócio.
E Cirilo de Jerusalém:[ 250 ] Acaso não tem a Igreja Igreja o novilho e o leão se
alimentando juntos, como até os dias de hoje vemos os príncipes do mundo ser regidos
e instruídos pelos eclesiásticos? Ali refere-se à passagem de Isaías [11:6]: O lobo e o
cordeiro se alimentarão juntos; o leão e o boi comerão palha; e, sob a palavra
“alimentar-se”, inclui o ser regidos e instruídos. Também Cirilo de Alexandria,[ 251 ] na
Epístola 31 a João de Antioquia e ao concílio desta cidade, faz referência ao concílio
anterior, de Éfeso, em que advertia os bispos a que escutassem aqueles a quem queriam
acusar de heresia, para que não se causassem tumultos junto aos tribunais externos. E
agrega: É muito melhor e mais justo que as questões eclesiásticas
eclesiásti cas sejam discutidas
discuti das e
elaboradas nas igrejas, e não ante estranhos, aos quais decerto não convém de nenhum
modo o trato com tais causas.
9. É também célebre aquela sentença de Gregório Nazianzeno,[ 252 ] movida a cidadãos
perturbados por grande temor; nela,
nela, após haver discursado
discursado aos súditos,
súditos, adici
adiciona:
ona: E que
de vós, ó príncipes e governantes? Pois é a vós que se dirige nossa fala. E depois:
caso me tolerareis com ânimo justo, se eu lhes falar livremente? Porque também vós
a lei de Cristo submeteu a meu comando e trono; sim, também nós gerimos comando e,

125
digo ainda, um comando mais elevado e perfeito, salvo se for justo que o espírito se
terrenas. Dessas palavras, considero
submeta à carne, e as coisas celestes cedam às terrenas.
especialmente as seguintes: “ a lei de Cristo submeteu”. Sobre elas, temos a opinião do
azianzeno, para quem esta instituição e divisão de poderes é divina e procede da lei de
Cristo. E muitas afirmações semelhantes podem tomar-se da mesma fonte.[ 253 ]
Também o diz de modo excelente Damasceno,[ 254 ] no Discurso 1 Sobre as
Imagens: Pois tampouco é próprio de reis ei s piedosos despedaçar os estatutos
eclesiásticos. E mais abaixo: Não cabe aos reis decretar
decretar nem estabelecer sobre
sobre essas
coisas, etc. No Discurso 2, logo no início: Não é quinhão dos monarcas
monarcas o decretar
decretar leis
da Igreja, o que se confirma com os testemunhos de São Paulo em II Coríntios 12 e
Hebreus 13, já comentados.
Em Teodoreto,[ 255 ] vemos narrar-se a egrégia resposta do presbítero Eulógio, ao
ser advertido pelo governador do imperador herege Valente: “Vai ter com o imperador”,
responde Eulógio, de modo dissimulado mas muito espirituoso, “Acaso ele obteve com
seu império
impéri o também a dignidade
digni dade de sacerdote?”
sacerdote?” E, como o governador se irasse ao
perceber tal ironia,
ironia, o próprio Eulógi
Eulógio lhe respondeu novamente que ele tinha um pastor a
cuja vontade obedecia.
obedecia.
Fato semelhante nos narra Suidas,[ 256 ] sobre Leôncio, bispo de Trípoli da Lídia.
Enquanto Constâncio presidia a reunião de bispos e muito escrevia, recebendo a
anuência de todos, Leôncio calava; quando lhe perguntou o imperador por que calava,
respondeu: Admira-me que tu, destinado a cuidar
c uidar de uns assuntos, te ocupes de outros,
outros,
e que, estando à frente dos temas militares e da república, ordenes aos bispos coisas
que apenas dizem respeito aos próprios bispos.
10. Além disso, na já mencionada Epístola a Marcelina
Marcelina ,[ 257 ] Ambrósio nega que o
imperador tenha algum poder de mando nas coisas divinas. E ensina-o expressa e
reiteradamente no Discurso 1 contra Auxêncio,[ 258 ] onde diz, entre outras coisas:
Também vós mesmos sabeis que aos imperadores costumo fazer deferência, mas não
ceder, e que me ofereço livremente aos suplícios, mas não temo o que me preparam.
Mais abaixo: Respondi o que é próprio do sacerdote;
sacerdote; que faça o imperador o que cabe
ao imperador. E, sobre os arianos que pediam ao imperador uma igreja, diz ele: Vede
quão piores são os arianos do que os judeus: estes perguntavam sobre se era devido
agar a César o direito de tributo; já aqueles querem dar ao imperador o direito
eclesial. E ainda: O bom imperador encontra-se dentro da Igreja, não sobre ela. Pois o
bom imperador não recusa o auxílio da Igreja, mas antes o busca. E, assim como
dizemos isto humildemente, assim também o expomos constantemente.
Também nas atas do Concílio de Aquiléia[ 259 ] temos que, como o herege Paládio,
ao fugir da condenação dos bispos, chamasse à sua ajuda os leigos presentes, assim lhe
respondeu Ambrósio: Os sacerdotes devem julgar os leigos, não estes os sacerdotes. E
mais abaixo: Ainda que seja descoberto em muitas impiedades,
impi edades, ruborizamo-nos que
alguém que clama para si a condição do sacerdócio se veja condenado por leigos. E é
or este mesmo fato que o declaro indigno do sacerdócio: porque merece condenação

126
quem espera receber sentença dos leigos, quando antes deveriam os leigos ser julgados
elos sacerdotes.
11. Confirma esta verdade de modo excelente Atanásio,[ 260 ] na Epístola aos que
Solitári a, primeiro citando e depois elogiando as palavras de Hósio a
Levam a Vida Solitária
Constâncio: Desiste, peço-te, e recorda-te
ecorda-te que és mortal; teme o dia
di a do juízo, preserva-
preserva-
te puro para aquele dia, e não te metas nos assuntos eclesiásticos, nem ordenes a nós
neste tema. Ao contrário, aprende-o de nós. A ti Deus confiou o império; a nós, as
coisas da Igreja. Da mesma maneira que contradiz a ordem divina quem se queixa de
teu império com olhos malignos, assim também cuida para que, trazendo para ti as
coisas da Igreja, não te faças culpado de um grande crime. Está escrito: “Dai a César
o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” Logo, nem é justo que tenhamos um
império sobre a terra, nem que tu, imperador, tenhas poder sobre os incensos e
sacrifíci os. Mais abaixo, assim escreve Atanásio, com palavras próprias: Se se trata de
sacrifícios
um juízo de bispos, que tem o imperador em comum com isso? Se, ao contrário, e em
afronta a estas regras, movem-se os processos pelas ameaças do imperador, qual a
serventia destes homens com título de bispos? Quando, desde o começo dos tempos, se
ouviu coisa igual?! Quando foi que o juízo da Igreja recebeu sua autoridade do
imperador? Quanto a “com título de bispos”, refere-se àqueles que Constâncio criara
por sua autoridade,
autoridade, e que, como dizi
diziaa mais abaix
abaixo, eram bispos
bispos apenas em título,
título, mas
não em verdade – o que corresponde de modo admirável aos bispos anglicanos.
Finalmente, Agostinho[ 261 ] repreende os donatistas, que, em matéria eclesiástica,
ousaram apelar da sentença dos bispos ao imperador Constantino: Tampouco ousou um
imperador cristão tomar para si desta maneira as suas tumultuosas e falazes querelas,
ara julgar ele próprio a sentença dos bispos que se reuniram em Roma. E mais
abaixo: Neste assunto, já ouvistes o quanto ele os detesta. E, visto que Constantino,
vencido pela importunidade dos hereges, passou sentença sobre este ponto, escusa-o
tacitamente Agostinho, dizendo: Este cedeu a eles, por haver julgado sobre sobre esta causa
após os bispos, mas depois tencionou pedir perdão aos santos prelados, que nada mais
tiveram a lhe dizer. Agostinho está, ademais, em concordância com o que afirma sobre
este tema Optato de Milevi:[ 262 ] Donato acreditou
acreditou que devia apelar da sentença dos
bispos, e a esta apelação o imperador Constantino assim respondeu: Ó audácia raivosa
da loucura! Assim como sói fazer-se nas causas dos gentios, interpuseram-me uma
apelação!
12. ESTABELECE-SE ESTA MESMA VERDADE PELOS ESCRITOS DOS IMPERADORES. – A isto
podemos adici
adicionar
onar os testemunhos e declarações
declarações dos próprios
próprios imperadores. P oisois
Justiniano[ 263 ] (nas Autênticas, no início do título Quomodo oporteat episcopos),
assim nos diz: Os maiores de todos os dons de Deus, concedidos pela clemência
celeste, são o sacerdócio e o império – aquele administra as coisas divinas, este
reside às humanas e lhes presta cuidados. Ambos procedem de um só e mesmo
rincípio, e adornam a vida humana. O próprio imperador Justiniano, portanto,
entendeu que no imperador não se encontra o poder espiritual sobre as coisas divinas. E

127
o mesmo sentia Constantino, o Grande, que recusou emitir juízo entre os bispos no
Concílio de Nicéia, e reconheceu que isto não lhe cabia, ao dizer: Deus vos constituiuconstitui u
sacerdotes,
sacerdotes, e nos fostes dados por Deus como juízes; não convém, portanto, que um
homem julgue a deuses, mas apenas Aquele de quem está escrito: “Levanta-se Deus na
congregação dos deuses, e entre os deuses emite seu julgamento”, conta-nos Rufino de
Aquiléia.[ 264 ] E diz-nos o Papa Adriano[ 265 ] (em cujo texto se menciona também
Teodósio, que escrevia uma epístola ao Concílio de Éfeso): É ilícito ilíci to que quem não
ertence à ordem dos santíssimos bispos se mescle aos assuntos eclesiásticos .
Conta-nos também Sozomeno[ 266 ] que, como certos bispos enviassem um legado
ao imperador Valentiniano, para solicitar-lhe o direito de reunir-se em concílio e tratar dos
temas da fé, ele próprio respondeu-lhe que, por contar-se entre entre os leigos, não lhe era
lícito interpor-se tai s coisas. Este episódio é também narrado por Nicéforo.[ 267 ]
interpor-se em tais
Do mesmo Valentiniano conta-nos Sozomeno:[ 268 ] foi a tal ponto piedoso pi edoso no amor
a Deus, que nem ordenava nada aos sacerdotes, nem inovava nas instituições da Igreja
quanto ao que lhe parecesse bom ou ruim; pois, por mais que fosse excelente
imperador, e muito competente para gerir o reino, estimava que estas outras coisas
excediam de longe o seu julgamento. Na História riparti te,[ 269 ] refere-se ainda a
Históri a Tripartite
Valentiniano, que, quando, com a morte do herege Auxêncio de Milão, desejava que se
ordenasse um bispo católico, disse aos demais bispos: Conheceis bem, ó eruditos nas
alavras divinas, como deva ser um pontífice. E mais abaixo: Estabelecei na sé
ontifícia um homem a quem também nós, que governamos o império, curvemos
sinceramente nossas cabeças, e cujas advertências recebamos necessariamente como
remédios de quem nos cura, quando em nossa condição humana tenhamos delinqüido.
E, como os bispos lhe pedissem que ele próprio, piedoso e sábio, o indicasse, respondeu:
Tal escolha nos supera.
Resta também, entre as epístolas de Inocêncio I, uma do imperador Honório Augusto
a Arcádio,[ 270 ] na qual, ao escrever sobre a causa de Crisóstomo, diz: Visto que,
quando se trata de alguma causa religiosa entre prelados, é necessário que o juízo seja
episcopal – pois é a eles que cabe a interpretação das coisas divinas –, cabe a nós a
obediência à religião. E pouco depois: Pelas próprias coisas se vê o que pensou disso
a majestade divina, etc.
Finalmente, entre as atas do VIII Concílio Geral, Súrio cita-nos o discurso do
imperador Basílio,[ 271 ] em que muito piedosa e fielmente fala aos leigos: Sobre vós,
nada mais há por dizer, exceto que de nenhum modo vos é lícito emitir pareceres sobre
as causas eclesiásticas. Pois investigá-las e inquiri-las é próprio dos patriarcas,
ontífices e sacerdotes, que foram escolhidos para o ofício de governar, que detêm o
oder de santificar, atar e desatar, que receberam as chaves eclesiais e celestes; não é
algo próprio de nós, que devemos ser apascentados. E prossegue com seu discurso de
modo detalhado, sábio e piedoso.

[ 226 ] Defensor Pacis,


Pacis, Frankfurt, 1612, Dictio II, c. 4, § 4, p. 119.
[ 227 ] NICHOLASS ANDER, De Origine ac progress
progressuu schismatis anglicani libri
li bri tres
tres,, Roma, 1586.
[ 228 ] S. Th.,
Th., I, q. 101, a. 1, co.

128
[ 229 ] Op. cit.,
cit., III, q. 1, a. 3, co.
[ 230 ] ALFONSOS ALMERÓN, Commentarii Commentarii in Evangelicam
Ev angelicam Historiam, et in Acta Apostolorum,
Apostolorum, Colônia, 1602, t.
VIII, tract. LIX, pp. 460-6.
[ 231 ] In Matthaeum
M atthaeum Homil.,
Homil. , 71, n. 2 (PG 58, 656).
[ 232 ] Epistolarum classis I, Epist. XX , 19 (PL 16, 999C).
[ 233 ] Epistola I Anastasii
A nastasii Papae II I I ad Anastasium Augustum,
Augustum, Mansi 8, 190.
[ 234 ] Epist. 8 ad Anastasium Imperatorem
Imperatorem,, Mansi 8, 31.
[ 235 ] Apologetica adversus Anastasii Imperatoris libellum f amosum, amosum, Mansi 8, 215.
[ 236 ] Synodus Romana IV , Mansi 8, 266C.
[ 237 ] Decretum
Decretum Gratiani,
Gratiani, Veneza,
Veneza, 1595, I, d. 96, c. 6 (Cum ad verum), pp. 30-31.
[ 238 ] Ad Michaelem imperatorem
imperatorem,, Mansi 15, 214E-215A.
[ 239 ] Registrum,
Registrum, IV I V, Epistola
Episto la 2 (PL 148, 454)4 54) e VIII, Epistola 21 (PL 148, 594).
[ 240 ] Decretales
Decretales Gregorii
Gregorii IX, Paris, 1511, I, tít. 33, c.6 (Solitae), fol. cxx.
[ 241 ] Extravagantes Communes,Paris, 1511, lib. I, ff. x-xii.
[ 242 ] Op. cit.,
cit., lib. V, fol. lii.
[ 243 ] Decretum
Decretum Gratiani,
Gratiani, I, d. 63, c. 1, p 296.
[ 244 ] Actio X, c. 22, Mansi 16, 167.
[ 245 ] Decretum
Decretum Gratiani,
Gratiani, I, dist. 63, can. 7, p. 299; Mansi 13, 748.
[ 246 ] Decretales
Decretales Gregorii
Gregorii IX,
IX ,lib. II, tit. 16, cap. 3, fol. clxxxviii.
[ 247 ] Op. cit., lib. III, tit. 30, cap. 26, fol. cccxxxvii.
[ 248 ] Trata-se do Livro IV da Defesa da Fé Católica, Católica, não traduzido na presente edição.
[ 249 ] In Illud
I llud Vidi Dominum,Homil. 5 (PG 56, 130); In Matthaeum Mat thaeum Homil.,
Homil. , 82, 6 (PG 58, 744); De sacerdotio
sacerdotio,,
III, 6 (PG 48, 641).
[ 250 ] Catechesis XVII De Spiritu Sancto II, 10 (PG 33, 981).
[ 251 ] Epist. 67 (PG 77, 337).
[ 252 ] Oratio 17, 8 (PG 35, 976A-B).
[ 253 ] Oratio 36, 11 (PG 36, 277-280).
[ 254 ] S. J OÃO D AMASCENO, De Imaginibus Oratio I (PG 94, 1281); De Imaginibus Oratio II, 12 (PG 94,
1295).
[ 255 ] T EODORETO DEC IRRO, Ecclesiasticae Historiae, Historiae, IV, cap. 15 (PG 82, 1155C-D).
[ 256 ] Suidae Historica, Basiléia, 1564, cols. 542-3.
[ 257 ] V. nota 232 supra
supra.
[ 258 ] Epistolarum Classis I, Sermo contra Auxentium, 2; 18; 31; 36 (PL 16, 1008A; 1013A; 1016C-D; 1018B).
[ 259 ] Mansi 3, 611C-D.
[ 260 ] S. ATANÁSIO DEA LEXANDRIA, Historia Arianorum, Arianorum, 44 e 52 (PG 25, 746C-D e 755C-D) e Mansi 3, 246A-
B.
[ 261 ] Epistolarum Classis II, 43, 20 (PL 33, 169).
[ 262 ] De schismate Donatistarum,
Donatistarum, lib. I, cap. 25 (PL 11, 934-5).
[ 263 ] Corpus Iuris Civilis Romani, Novellae, Nápoles, 1830, lib. lib. V,
V, tit. VI, pp.
p p. 35-6.
35- 6.
[ 264 ] Historia Ecclesiastica,
Ecclesiastica, I, c. 2. (PL 21, 467C-468C).
[ 265 ] Ad Michaelem imperatorem
imperatorem,, Mansi 15, 215A-B.
[ 266 ] Historia Ecclesiastica,
Ecclesiastica, lib. VI, c. 7 (PG 67, 1312A).
[ 267 ] NICÉFOROC ALISTOX ANTÓPULO, Ecclesiasticae Historiae, Historiae, lib. XI, c. 30 (PG 146, 671C-682A).
[ 268 ] Op. cit.,
cit., lib. VI, c. 21 (PG 67, 1345B-C).
[ 269 ] CASSIODORO, Historia Tripartita,
Tripartita,VII,
VII, cap. 8 (PL 69, 1073B).
[ 270 ] Exemplum Sacrae Honorii Augusti Missae ad Principem orientis Ar A rcadium,
cadium, Mansi 3, 1122.
[ 271 ] LOURENÇOS ÚRIO, Concilia omnia tum generalia tum provincialia, provincialia, Colônia, 1567, III, p. 543.

129
Capítulo VIII
Confirma-se a mesma verdade
por argumentos de razão
1-2. Primeiro argumento. 3. Segundo argumento. A evasiva dos protestantes e sua
refutação. 4-5. Impede-se uma segunda evasiva e mostra-se que a cabeça soberana da
Igreja
Igreja deve ser uma só. 6. Objeção. Solução. Instância.
Instânci a. 7-8. Resposta. 9. Refutação de
uma evasiva. 10. Terceiro argumento. 11. A resposta dos hereges e sua refutação. 12.
Refuta-se cabalmente aquela mesma resposta a partir
parti r dos princípios
pri ncípios dos protestantes.
protestantes.
13. Impugna-se a mesma resposta pelos inconvenientes que se dariam. Primeiro
inconveniente. 14. Segundo inconveniente. 15. Evasiva e refutação. 16. A evasiva
anterior repugna ao próprio rei Jaime.

1. P RIMEIRO ARGUMENTO. – Visto que a verdade católica já foi suficientemente


fundamentada pela autoridade, podemos demonstrá-la facilmente pela razão, partindo
dos mesmos princípios. Ora, como o poder de reger não pode encontrar-se em homem
algum sem justo título – princípio pelo qual antes provamos que não há no pontífice
soberania temporal direta –, mostramos claramente por este mesmo princípio que não há
no rei temporal poder para o governo espiritual. Assim, os que aceitam livremente o
primeiro,
primeiro, forçosamente aceitarão
aceitarão o segundo,
segundo, a não ser que queiram
queiram falar
falar sem razão, ao
capricho
capricho de suas vontades.
Ora, encontramos muito menos justo título de poder espiritual no príncipe temporal,
do que de poder temporal no pastor espiritual. E provamos brevemente o princípio que
presumimos:
presumimos: ou aquele
aquele título
título seria
seria de direito natural ou de direito positivo – divino ou
humano.[ 272 ] E todas estas posições facilmente se rejeitam pelo que já dissemos: de
fato, não pode ser de direito natural, tanto porque esse poder não é natural (como já o
provamos), quanto porque, por procedência
procedência imediata do direito natural, nenhum poder
de dominar ou reger outros encontra-se numa pessoa em particular, mas apenas na
comunidade. Ora, esse poder espiritual não se encontra na comunidade humana
enquanto algo que dela flui naturalmente, nem – na medida em que se encontra numa
pessoa em particul
particular
ar – pode fundamentar-se na vontade desta mesma comunidade
comunidade de
ceder ou transferir a outrem esse poder, que é de ordem muito mais elevada. Portanto,
não pode encontrar-se no rei pelo direito natural.
E pela mesma razão se mostra que não pode provir de um direito humano que se
fundamente apenas no natural, ou tenha origem neste, como é o caso do direito das
gentes ou do direito civil. Pois, se o próprio direito natural não alcança tal poder, muito
menos o fazem os outros direitos que nele se fundamentam.

130
2. Acerca do direito divino, o tema é manifesto pelo que já foi dito, pois tal direito deve
ser comprovado mediante autoridade divina. Ora, não há nenhuma autoridade que o
comprove, nem divina, nem humana; não há autoridade que demonstre que tal direito foi
dado aos reis.
Ademais: embora se possa às vezes persuadir mediante a razão que algo procede do
direito divino, é necessário que isto se colija suficientemente dos princípios revelados, ou
ao menos que, suposta a instituição da Igreja, demonstre-se que este algo é o mais
consoante com a divina providência. Nada disso se tem no caso presente, pois não há
nenhum princípio revelado pelo qual se comprove com verossimilhança o haver nos reis
tal poder espiritual. Ao contrário, rechaçam esta doutrina todos os princípios revelados,
como expusemos.
E, com efeito, todo argumento baseado na conveniência providencial e na disciplina
eclesiástica nos indica que não se deveu confiar esse poder celeste aos reis temporais.
Primeiro, porque estes se encontram envolvidíssimos nos cuidados temporais e negócios
seculares; segundo, porque não podem dedicar tempo aos textos sagrados e à ciência
divina, doutrina maximamente necessária nos pastores eclesiásticos. E é por isso que
Paulo dizia a Timóteo [em I Timóteo 4:16]: Atende a ti e à doutrina. Nisto, indica-nos
também este outro argumento: visto que tal poder se confere para uma finalidade
espiritual e para a salvação das almas, ele requer, neste a quem se o confere, um estado
de vida espiritual e perfeita, para que possa auxiliar os seus súditos não menos com a
palavra
palavra do que com o exemplo.
exemplo. Ora, os reis
reis temporais,
temporais, falando
falando em termos morais
morais e em
virtude de seu estado, não possuem nem confessam esse tipo de vida, e por isso não
eram aptos para tal ofício.
Finalmente, por este motivo o sacerdócio na Igreja de Cristo não é unido per se ao
governo, pois não foram os reis os escolhidos para, em prol dos homens, ser postos à
frente desses assuntos divinos. Logo, pela mesma razão, tampouco eram aptos ao
governo espiritual.
Desta feita, exclui-se conseqüentemente qualquer título fundamentado no direito
canônico: primeiro, porque o direito canônico deriva do direito positivo divino; segundo,
porque mesmo assim
assim os argumentos
argumentos que expexpusemos
usemos ainda procedem; terceiro, porque se
mostrou que o direito canônico se opõe absolutamente a tal presunção por parte dos reis.
Isto que dissemos se tornará mais evidente no capítulo seguinte, no qual mostraremos
como são levianos os fundamentos que o rei Jaime aduz para seu direito.
3. SEGUNDO ARGUMENTO. A EVASIVA DOS PROTESTANTES E SUA REFUTAÇÃO. – Podemos
ainda produzir outro argumento, da seguinte maneira: se houvesse poder espiritual nos
reis temporais, haveria tantos príncipes espirituais soberanos na Igreja quanto há de
príncipes
príncipes soberanos temporais – o que é absurdo e repugna
repugna muito aos princípi
princípios
os da fé.
Tal conclusão é manifesta. Primeiro, porque, se o poder para reger a Igreja em
matéria espiritual é algo unido ao poder régio, ele nem se reduz a um princípio mais
elevado sob Deus, nem depende de outro poder mortal. Segundo, porque, não há maior
razão pela qual um rei se submeta a outro em matéria espiritual, ou vice-versa.

131
Talvez os protestantes anglicanos não apenas o concedam, mas o desejem como
princi
principal
pal.. Tampouco julgam
julgam haver nisso
nisso qualquer inconveni
inconveniente,
ente, pois
pois não admitem
admitem várias
cabeças espirituais de uma Igreja universal inteira, mas sim de várias igrejas particulares
que existam nos diversos reinos como partes da Igreja universal – por essa razão
poderiam
poderiam ter várias
várias cabeças parciais
parciais.. Ora, que isso seja absurdo e monstruoso na Igreja
Igreja
militante de Cristo, facilmente o entenderá aquele que, partindo das Escrituras,
considerar que a Igreja de Cristo é um só corpo místico perfeitamente constituído. Pois
tal corpo requer um só poder soberano, que tenha eficácia sobre todos os seus membros
– quer tal poder se encontre numa pessoa física,
física, quer numa cong
congreg
regação
ação (o que veremos
depois) – uma vez que sem tal poder não pode haver a devida união e conformidade
entre os membros do corpo.
4. IMPEDE-SE UMA SEGUNDA EVASIVA E MOSTRA-SE QUE A CABEÇA SOBERANA DA I GREJA DEVE
SER UMA SÓ. – Mas dirão, talvez, que basta todas as igrejas particulares estarem unidas
sob uma só cabeça, o Cristo.
Ora, contra isto está o fato de que a Igreja militante, conforme se encontra neste
mundo, é um só reino espiritual e corpo místico, perfeitamente uno em seu próprio
gênero. Logo, requer também neste mundo um só tribunal soberano que o governe; de
outro modo, não se poderia dizer que, tal como habita este mundo, esse corpo possui
unidade.
Isto se esclarece com uma comparação. Muitos reinos que militam sob reis ou
imperadores distintos não são apenas um reino ou império, porque não possuem apenas
um regime soberano na terra, por mais que se encontrem unidos sob um só rei, Deus,
que é monarca soberano – e também temporal – de todos os reis. Assim, segundo tal
posição,
posição, vê-se claramente
claramente que as várias
várias igrejas que há no mundo não constitui
constituirão
rão uma
Igreja universal propriamente una, da mesma maneira que os vários reinos temporais não
formam apenas uma república temporal ou apenas um império ou reino.
E isso também se demonstra com este outro exemplo apropriado: se em duas regiões
diversas houvesse dois exércitos do rei da Espanha, sob dois comandantes soberanos e
de nenhuma maneira subordinados entre si, não se poderia dizer que há um só exército,
ainda que se encontrem unidos sob um mesmo rei, e deste recebam um influxo de outro
tipo. Portanto, o mesmo se deveria dizer dos diversos reinos, enquanto neles houvesse
igrejas distintas que militassem sob cabeças eclesiásticas soberanas.
5. Ocorre também que a unidade da Igreja não pode preservar-se sem unidade de fé e de
sacramentos. Ora, esta unidade de fé não poderia conservar-se nos diversos reinos e
províncias
províncias sem enorme mil
milagre, se as partes da Igreja e suas cabeças na terra estivessem
estivessem
totalmente divididas entre si e desprovidas de qualquer subordinação a algum poder
soberano, ao qual todos na terra estejam obrigados
obrigados a obedecer.
E demonstra-o suficientemente a experiência, pois foi dessa situação que nasceram
todos os cismas e divisões das igrejas. A razão disso é clara: se dois reis temporais são
soberanos em matéria espiritual, e um escolhe em seu reino um modo de religião e outro
escolhe outro; se um, por juízo próprio, toma da Escritura uma fé, enquanto outro toma

132
uma fé contrária, como poderão reduzir-se à unidade? E assim conclui-se ser moralmente
impossível que duas igrejas soberanas (isto é, não reconhecedoras de um superior
espiritual na terra) sejam também unidas em Cristo: pois elas não se unem a Cristo senão
pela
pela verdadeira
verdadeira fé, e, assim,
assim, por uma só e mesma fé, pois
pois a verdadeira
verdadeira fé não é senão
uma só. Ora, tais igrejas não poderiam conservar-se em apenas uma fé, como já
demonstramos. Portanto, tampouco poderiam preservar a união em Cristo.
6. O BJEÇÃO. S OLUÇÃO. I NSTÂNCIA.
NSTÂNCIA. – Mas dirás que este raciocínio procederia igualmente
contra os bispos ou apóstolos, ainda que se diga haver neles a soberania espiritual.
Respondo: é verdade que também eles devem ser reduzidos a uma cabeça suprema,
para que se possa preservar a unidade
unidade da Igreja.
Igreja. Qual e de que tipo seja esta cabeça, vê-
lo-emos mais abaixo, pois, pela força de nosso argumento anterior apenas se conclui que
ela deve ser uma só, quer seja um só bispo, quer seja uma congregação de bispos.
Mas insistirás que, diriam os anglicanos, embora o rei temporal também seja em seu
reino um soberano espiritual em comparação com qualquer outra pessoa particular, ainda
assim poderia reunir-se em concílio ou congresso com todos os reis cristãos, no qual haja
um poder espiritual superior ao de cada um dos reis, e por cuja autoridade a unidade da
Igreja
Igreja possa preservar-se.
O rei da Inglaterra não parece ser alheio a esta resposta, pois também parece
reconhecer a autoridade de um concílio legítimo – uma vez que dá fé aos quatro
primeiros
primeiros concíli
concílios, reclama que não se costume empregá-los,
empregá-los, e defende que cabe aos
reis, não ao pontífice, o poder de convocá-los.
7. R ESPOSTA. – Não obstante, tal evasiva não apenas é ineficaz, mas complica ainda mais
sua posição. Primeiro porque, se antes da convocação daquele concílio ou congresso
nenhum rei tem condição superior em matéria espiritual, quem terá o poder de convocá-
los? Pois, se alguns se recusam, ninguém os poderá coagir. E, se há de convocar-se os
bispos,
bispos, nenhum rei poderá intiintimar
mar a tal encontro os bispos
bispos não sujeitos
sujeitos a ele,
ele, nem
autenticamente convocá-los. Logo, tratar-se-á de coisa moralmente impossível, e
insuficientemente providenciada pelo Autor da Igreja. Da mesma maneira, se, para dispor
em matéria política o necessário para o bom governo de todo o mundo, fosse forçoso
que todos os reis e príncipes temporais soberanos se reunissem em assembléia, seria
certamente impossível haver tal convocação, e se trataria de algo totalmente alheio a
qualquer providência prudente.
Finalmente, quem presidiria a tal encontro? Pois nenhum deles quereria ceder ao
outro, visto que é igualmente soberano, e especialmente se o assunto fosse relativo à fé:
se houvesse discordância, cada um julgaria dever crer em seu próprio espírito, em
detrimento das opiniões dos demais. Sobretudo se fosse verdadeira a norma do rei da
Inglaterra, pela qual propõe a todos os reis a ciência de cada um como fundamento de
sua própria fé.
8. Além disso, admitido tal congresso ou concílio monstruoso, se ele fosse superior a
cada um dos reis, já não seria nenhum deles soberano em matéria espiritual, como o

133
defendia com pertinácia o rei da Inglaterra. E portanto creio que não era sua intenção
admitir como superior o poder de algum concílio, mas apenas que servisse a certa
consulta prudente e a um exame mais público das coisas.
Por isso, não fala coerentemente daqueles mesmos concílios, mas aprova o que quer
e rejeita o que não quer, constituindo-se juiz deles.
Ainda mais: em certo ponto de seu Prefácio
Prefácio , discerne por seu próprio arbítrio entre
os que se haveria de convocar a um concílio geral, se agora se devesse reuni-lo.
9. REFUTAÇÃO DE UMA EVASIVA. – Finalmente, se em seus reinos os monarcas soberanos
temporais têm também poder espiritual soberano sobre os demais monarcas, então não
resta nenhum fundamento para afirmar que uma congregação destes monarcas teria na
Igreja um poder sobre ela inteira, e sobre todos os seus príncipes, pois pela própria
natureza das coisas isso não procede, nem se pode afirmar.
Em matéria temporal, ainda que se fizesse uma assembléia, esta não teria jurisdição
soberana sobre aqueles reis, exceto se cada um deles livremente renunciasse a seu direito
e alterasse o regime anterior, constituindo das várias monarquias uma só aristocracia – o
que seria algo voluntário, e mais um fruto da imaginação do que algo realmente existente.
Ora, as coisas seriam da mesma maneira no tocante ao poder espiritual, se este por sua
natureza estivesse unido ao temporal.
E, caso alguém imagine que Cristo, por instituição particular, tenha desejado que em
assuntos espirituais haja vários reis sujeitos a uma assembléia deles próprios, será
necessário demonstrar algum vestígio desta instituição. Principalmente porque tudo que
dissemos contra tal poder em cada um dos reis (considerado individualmente) procede
igualmente contra qualquer multidão ou assembléia deles.
Portanto, é fictícia e monstruosa essa soberania espiritual dos príncipes temporais,
qualquer que seja a maneira em que se a invente ou conceba.
10. T ERCEIRO ARGUMENTO. – Por fim, podemos elaborar um terceiro argumento, a partir
de inconveniências. Primeiro que, se partimos de tal posição, segue-se que é possível aos
reis cristãos, se quiserem, exercer por si mesmos todas as ações próprias dos sacerdotes
e bispos, tais como oferecer sacrifícios a Deus, ou (se não admitem a anterior)
administrar os sacramentos, ligar mediante excomunhões e censuras, absolver delas e dos
pecados, e outras ações que pertencem ao cultoculto públi
público de Deus. Ora, tais
tais coisas
coisas são
inauditas na Igreja de Cristo.
Até mesmo na sinagoga dos judeus foi dito ao rei [II Crônicas 26:18]: Não é teu
ofício, Ozias, oferecer incenso ao Senhor. E, como não cessou de fazê-lo, acometeu-o a
lepra. Que isto não se aplica menos a um rei cristão, ensina-o Crisóstomo,[ 273 ] em sua
Epístola 5, ao comentar as palavras de Isaías.
Além disso, se um rei temporal, pelo mero fato de ser rei, pode administrar
legitimamente por si mesmo tais ações, será também lícito a uma mulher exercê-las por
si, pois a mulher é capaz de potestade régia. Assim, segundo a opinião dos protestantes,
com tal potestade ela terá a soberania espiritual. Ora, São Paulo nem permitiu às

134
mulheres falar na Igreja, nem exercer as atividades sacras; ao contrário, ordenou que
calassem e se submetessem.[ 274 ]
11. A RESPOSTA DOS HEREGES E SUA REFUTAÇÃO. – Mas podem nossos adversários,
discernindo entre as ações que requerem poder de ordem ou apenas de jurisdição,
responder que é possível ao rei exercer por si todo ato de jurisdição eclesiástica e ter
soberania para isso, muito embora não possa exercer por si outras ações que requerem
poder de ordem.
Mas, primeiro, isso é contrário à instituição de Cristo, pois Ele quis que a Igreja fosse
regida por aqueles que desejou fossem os principais ministros da palavra e dos
sacramentos de Deus, ou seja, pelos bispos, nos quais existe por excelência o poder de
ordem.
Finalmente, é bastante absurdo que o governante mais alto da Igreja não possa
exercer seus atos principais, que se ordenam ao culto divino e à santificação dos fiéis.
Pois, numa república civil, não há nada que os magistrados inferiores possam fazer –
com ordem à finalidade de seu poder – que não possa também ser feito pelo rei ou
imperador, com seu poder mais elevado, dentro da ordem a esta mesma finalidade.
Portanto, no caso da república cristã, visto que o poder, a ordem e a jurisdição
eclesiástica se referem à finalidade espiritual e à santificação das almas, com muito mais
razão estes dois poderes[ 275 ] deveram ser ordenados entre si e instituídos de modo que
no príncipe soberano da Igreja eles se encontrassem unidos, com toda a perfeição e
excelência – e, por isso, no que depende de seu poder, um superior (ou o soberano) pode
fazer tudo que está ao alcance dos inferiores.
12. REFUTA-SE CABALMENTE AQUELA MESMA RESPOSTA A PARTIR DOS PRINCÍPIOS DOS
PROTESTANTES. – Podemos também refutar os protestantes partindo de seus próprios
princípi
princípios.
os. P ois,
ois, entre eles,
eles, o poder de ordem nada é senão a nomeação de ministros
ministros
feita pelo rei ou magistrado temporal. Pois, dizem eles, se é o caso de que na Inglaterra
se realizam outras cerimônias para constituir ministros, não as reputam necessárias, nem
instituídas por Cristo, mas inventadas ou preservadas pelo arbítrio humano em vista de
certo ornado exterior. Portanto, sem elas poderia o rei instituir ministros para essas
mesmas funções. Logo, com muito mais razão poderia exercer todas elas por si mesmo.
Assim, a rainha Elizabete teria podido igualmente fazê-lo, em virtude dessa mesma
dignidade; e, pelo mesmo raciocínio, poderia então constituir mulheres como ministros de
sua Igreja. Ora, quem acreditaria que uma mulher pode ser cabeça da Igreja, mas não
pode ser ministro?
ministro? Longe estejam da cabeça de Cristo governo
governo e hierarquia
hierarquia tão absurdos!
13. IMPUGNA-SE A MESMA RESPOSTA PELOS INCONVENIENTES QUE SE DARIAM. P RIMEIRO
INCONVENIENTE. – Se a jurisdição espiritual soberana se segue à temporal, e não requer de
nenhum modo o poder de ordem, decerto ela também poderá se encontrar num rei
pagão,
pagão, sobre toda a Igreja
Igreja em seus domínios
domínios – pois
pois este tem poder jurisdi
jurisdici
cional
onal tão
perfeito
perfeito quanto o de um rei cristão, e pela
pela Escritura
Escritura não se pode provar que, para o uso
de tal jurisdição, o batismo seja mais necessário do que a ordenação clerical.

135
Explicamo-lo melhor: na Igreja Romana, Constantino, por exemplo, possuía
soberania temporal desde antes de se haver convertido à fé. Logo, ou já possuía também
a espiritual – e assim se admite o inconveniente que já aduzimos, um absurdo sem igual
–, ou Constantino
Constantino não a possuía. Neste segundo
segundo caso, certamente a possuía então
Silvestre. Portanto, também depois de batizado Constantino, Silvestre reteve consigo tal
soberania, não Constantino. Afinal, quem realizaria tal transmutação ou transferência de
poder de SilvSilvestre
estre para Constantino?
Constantino? Ou por que palavra
palavra de Deus se fez que
Constantino, pelo mero batismo, de ovelha passasse a pastor, e de filho espiritual
passasse a pai soberano e governante? Tais coisas
coisas são certamente incríveis
ncríveis e absurdas.
E, se Constantino, já batizado, reteve consigo apenas o poder temporal, foi com
certeza apenas este que transmitiu a seus sucessores, e apenas este que foi dividido entre
os outros reis e príncipes que hoje existem. E, se há outros reis que não têm origem nele
e depois se tornaram cristãos, o mesmo raciocínio pode (guardadas as proporções)
aplicar-se a eles.
E, da mesma maneira, se, depois do batismo de Constantino, Silvestre perseverou em
seu pontificado com o mesmo poder espiritual, foi este que chegou a seus sucessores até
os dias de hoje. E, guardadas as proporções, o mesmo vale para a Inglaterra e qualquer
outro reino cristão.
14. SEGUNDO INCONVENIENTE. – Há ainda outro absurdo que podemos inferir. Se com a
soberania temporal vem unida a espiritual, por que não se encontram igualmente em
qualquer magistrado ou príncipe temporal inferior – embora estes reconheçam seu
superior – os dois poderes unidos, com a devida proporção e subordinação ao superior?
Pois o raciocínio é o mesmo, e não se pode fazer distinção por força do direito natural. E
a Escritura não dá mais poder espiritual aos príncipes soberanos do que a seus inferiores;
onde a Escritura fala da obediência devida aos príncipes temporais, de modo geral fala
tanto de reis quanto de outros magistrados. Pois assim se entende São Paulo, quando diz
em Romanos [13:1]: Toda alma esteja sujeita às potestades superiores – e o explicou
mais claramente São Pedro, ao falar: Quer ao rei, como superior, quer aos
overnadores, como enviados seus.[ 276 ]
Ora, se se concedesse tal absurdo, toda a hierarquia eclesiástica seria necessariamente
arruinada no tocante a seu regime de governo externo. Pois, onde se crê que o rei
temporal é governante supremo em matéria espiritual, por isso mesmo ali se exclui o
Sumo Pontífice. Logo, se o prefeito régio de uma cidade também tem nela a prefeitura
espiritual, conseqüentemente ali haverá de se excluir do regime espiritual o bispo, porque
não pode haver duas cabeças de uma mesma ordem; porém a fortiori estão ali também
excluídos todos os demais prefeitos ou governantes eclesiásticos – e assim, queira ou não
o rei da Inglaterra, cairemos na anarquia dos puritanos no tocante ao regime eclesiástico.
15. EVASIVA E REFUTAÇÃO. – Poder-se ia responder que o mesmo raciocínio não vale para
o rei soberano e seus magistrados anteriores, porque o rei tem por si e quase que por
necessidade ambos os poderes conjuntos, mas os inferiores derivam seu poder do rei, e

136
portanto ele pode por seu arbítrio divi
dividi
dirr tais poderes: comunicari
comunicariaa o temporal ao prefeito
civil, e o espiritual ao bispo.
Primeiro, porém, tudo isso não transcende a mera vontade e instituição humana, a
qual o rei também poderia mudar à vontade, assim como a constituiu. Logo, pode
demolir toda a hierarquia eclesiástica no tocante ao regime da Igreja.
Segundo, o rei não é coerente nessa sua posição, se a concedemos. Porque então
admite que são distintos os poderes espiritual e temporal, e separáveis quanto ao sujeito,
e também separados nos magistrados inferiores. Logo, por que não se separariam essas
duas ordens em seu ponto mais alto? Com que título pode demonstrar-nos que possui
ambos esses poderes?
16. A EVASIVA ANTERIOR REPUGNA AO PRÓPRIO REIJ AIME. – Há ainda outra razão pela qual
a proposta acima contradiz as afirmações do rei. Pois ele repreende Belarmino por este
haver negado que os bispos recebam seu poder imediatamente de Deus; assim, tem que
crer que os bispos obtêm sua jurisdição imediatamente de Deus.[ 277 ] Logo, como pode
o rei agora dizer que é ele quem lhes dá jurisdição, e que está a seu arbítrio dá-la não a
eles, mas a seus magistrados temporais? A não ser que também se queira superior ao
próprio
próprio direito
direito divino...
divino...
Ademais, o rei da Inglaterra confessa na mesma passagem que discorda dos puritanos
acerca da jurisdição dos bispos. Pois bem: os puritanos afirmam que a jurisdição
eclesiástica é conferida pelo magistrado temporal. Portanto, se o rei se diz conferir
urisdição aos bispos, não difere dos puritanos neste tema da jurisdição episcopal, pense
o que pensar sobre a diferença em dignidade de ordem.
Assim, para que o governo da Igreja pelos bispos (e não por magistrados temporais)
seja firme e estável, é necessário que esta seja uma instituição divina, e que também a
urisdição dos bispos derive de Cristo – quer mediante o Papa, como pensa com mais
probabil
probabilidade Belarmino,[
Belarmino,[ 278 ] quer imediatamente,
mediatamente, como também com probabili
probabilidade
dade
pensam outros católi
católicos. P or agora,
agora, porém, este últi
último
mo detalhe
detalhe é irrelevante.
rrelevante. E dig
digo-o
porque, de qualquer
qualquer maneira
maneira que essa jurisdi
jurisdição
ção proceda de Cristo
Cristo mediante
mediante institui
nstituição
ção
positi
positiva,
va, não pode proceder do rei temporal, temporal, nem depender dele dele per se.
Conseqüentemente, não pode o poder régio ser diretamente e per se superior ao
episcopal, nem tampouco soberano no âmbito da jurisdição eclesiástica.
Talvez guiado por seu espírito de contradizer a Belarmino, o rei não percebeu essa
contradição em seus ditos e opiniões, apesar de ela ser bastante clara, como exporemos
novamente no capítulo seguinte.

[ 272 ] Seguindo a tradição tomista, Suárez separa duas classes de direito positivo: direito divino e direito
humano. Cf. De Legibus ac Deo Legislatore
Legislatore, Antuérpia, 1613, II, cap. X, pp. 90-8. [N. C.]
[ 273 ] In Illud
I llud Vidi Dominum,
Dominum, Homils. 1-5 (PG 56, 97-131).
[ 274 ] I Coríntios 14:34.
[ 275 ] Isto é, o de ordem e o de jurisdição. [N. T.]
[ 276 ] I Pedro 2:13-14.
[ 277 ] Apologia pro
pro Iuramento Fidelitatis,
F idelitatis, Praefatio
Praef atio,, Londres, Opera Regia, 1609, p 54.
[ 278 ] S. ROBERTOB ELARMINO, De Summo Pontif Ponti f ice, Ingolstadt, 1599, lib.
lib. IV,
IV, c.
c . 25, resp.,
res p., p. 596.

137
Capítulo IX
Refutam-se algumas ob
objeçõe
jeçõess contra a verdade provada nos
capítulos anteriores
1. Três objeções sobre o poder de reger a Igreja. 2. Primeira objeção. 3. Resposta. O
poder régio
régi o não está unido ao sacerdotal
sacerdotal pelo dir
di reito
ei to natural. 4. Na lei natural não
houve poder sobrenatural de ordem. Tampouco houve jurisdição espiritual. 5. Objeção.
Solução. 6. Segunda objeção. 7. Terceira objeção, tomada do Novo Testamento. 8.
Solução aos dois primeiros testemunhos. 9. Do terceiro texto, em Timóteo, nada se
deduz contra a verdade que estabelecemos. 10. Do testemunho em Mateus, conclui-se o
contrário. Mostra-se também que João e Lucas confirmam a doutrina que defendemos.
11. Quarta objeção. 12. Solução. Agostinho é citado sem razão para apoiar o erro
contrário. 13. Resposta às palavras de Isidoro. 14. Quinta objeção, tomada dos
Padres.
Padres. 15. Solução. Esclarece-se a verdadeira opinião
opi nião dos Padres. 16. Exposição
Exposi ção
autêntica do Concílio de Arles.

1. T RÊS OBJEÇÕES SOBRE O PODER DE REGER AI GREJA. – São muitas as razões pelas quais o
rei da Inglaterra esforça-se para persuadir-nos de que é com justo título que ele se
arroga, em seu reino, o poder espiritual e o nome de cabeça ou governante espiritual
soberano. Tudo que aduz são objeções contra a verdade por nós já provada; embora não
sejam difíceis, não podemos desconsiderá-las e daremos satisfação a todas elas. Porém,
como muitas destas objeções tomam-se dos feitos dos reis e imperadores, e não dizem
respeito ao ponto presente, é necessário distinguir aqui três questões, para que mais
claramente se entenda cada uma das referidas objeções nos lugares em que foram
propostas.
A primeira delas é a de que agora tratamos: sobre se no príncipe o poder espiritual
encontra-se necessariamente unido ao temporal. A segunda é se, supondo-se que estes
poderes se encontram em diversas
diversas pessoas, uma delas seria superior
superior à outra, e qual delas
o seria – um ponto de que trataremos a partir do capítulo XXI. A terceira é uma questão
geral, sobre se os clérigos estão isentos do poder temporal também nas causas civis,
criminais e tributárias; tal questão é sem dúvida bem diversa das outras duas, e será
discutida a partir de outros princípios, no capítulo seguinte.
Assim, portanto, se há quaisquer eventos ou ações de príncipes católicos que de
algum modo possam objetar-se contra a jurisdição eclesiástica, estes pertencem
sobretudo à terceira questão, sobre a imunidade dos clérigos, como então veremos, e
também tocaremos nalgnalguns poucos pontos acerca da segunda
segunda questão.

139
Quanto ao ponto presente, creio que, antes de Henrique VIII, a muito custo se
encontrará exemplo de um príncipe cristão – mesmo só de nome, embora herege – que
por força de seu próprio
próprio e inato poder tenha tentado usurpar um ato de jurisdijurisdição
ção
espiritual, nem muito menos tentado arrogar-se a soberania e o primado do poder
espiritual. Por isso, deixando de lado estes exemplos, consideraremos brevemente outros
títulos com os quais o rei tenta fortalecer ou aparentemente defender o seu direito.
2. P RIMEIRA OBJEÇÃO. – O primeiro é que, por direito natural, esses dois poderes – o régio
e o sacerdotal – estão unidos. Logo, este direito natural permanece unido na lei da graça,
pois
pois a graça não destrói a natureza, nem a lei de Cristo foi dada para tolher
tolher a lei natural,
natural,
mas para perfazê-la. E tal asserção assim se prova: antes da lei de Cristo e de Moisés,
apenas se observava o direito natural; de fato, aquele período é chamado de “tempo da
lei natural”. Ora, naquele tempo eram um só o rei e o sacerdote, como consta de
Melquisedeque, Abraão, Isaac, Jacó, e geralmente pela norma então aceita de que os
primogêni
primogênitos
tos e herdeiros
herdeiros do reino eram também sacerdotes, como vemos em Jerônimo[ Jerônimo[
279 ] e Ruperto.[ 280 ] Por isso São Paulo, em Hebreus 12, chama de sacrílego a Esaú
por haver vendido sua primogeni
primogenitura,
tura, que era sagrada em razão do sacerdócio.
3. R ESPOSTA. O PODER RÉGIO NÃO ESTÁ UNIDO AO SACERDOTAL PELO DIREITO NATURAL. – O
título acima não é algo que se encontre formulado expressamente pelo rei, mas julguei
que não deveria omiti-lo (embora seja realmente frívolo), para fins de complemento da
doutrina, e também porque o rei parece supô-lo ao alegar em seu favor alguns
testemunhos do Novo Testamento. Em primeiro lugar, ainda admitindo-se certo costume
antigo, que parece ter vigido não apenas entre os fiéis, mas também entre os gentios,
negamos que ele proceda do direito natural (isto é, que seja comandado pela lei natural),
ainda que tenha origem em princípios gerais do direito natural, mediante a razão e a
vontade humana.
Pois, embora o sacrifício pertença de algum modo ao direito natural, e
conseqüentemente também o sacerdócio, não está prescrito pelo direito natural que ele
seja instituído de tal modo, nem por estas ou aquelas pessoas; ao contrário, isto necessita
definir-se mediante algum direito positivo. E assim, antes da lei de Moisés, seja pelo
direito das gentes, seja pelos costumes do povo, introduziu-se que a dignidade sacerdotal
mais elevada estivesse unida à dignidade régia. Tal regra, assim como foi mudada na Lei
Antiga, pode também ser mudada na Nova Lei. E que isto foi feito e pertence à perfeição
da lei da graça, ensinou o Papa Nicolau ao imperador Nicolau,[ 281 ] ao dizer: Antes do
advento de Cristo, às vezes ocorreu que alguns tenham sido reis e sacerdotes
simultaneamente, e conta-nos a históriahistóri a sagrada que um deles foi o santo
elquisedeque, etc. E mais abaixo: Mas, quando se chegou à verdade, verdade, nem o
imperador nem o Pontífice usurparam a condição de ser rei e Pontífice
simultaneamente.
4. NA LEI NATURAL NÃO HOUVE PODER SOBRENATURAL DE ORDEM. T AMPOUCO HOUVE
JURISDIÇÃO ESPIRITUAL. – Em segundo lugar, se se trata do sacerdócio quanto ao poder de

140
ordem, a diferença é manifesta: pois na lei natural não havia poder sobrenatural de ordem
propriamente
propriamente dito,
dito, mas somente o mini
ministéri
stérioo de sacrificar
sacrificar e interceder pelo
pelo povo, para o
qual alguém podia dedicar-se por vontade própria ou consentimento – uma vez que Deus
naquele momento não havia prescrito nada em particular sobre o sacerdócio ou o
sacrifício. E assim o Papa Anacleto[ 282 ] nega que Melquisedeque, Abraão ou outros
homens daqueles tempos houvessem oferecido sacrifício com qualquer autoridade
sacerdotal instituída particularmente por Deus. Já na Lei Antiga, assim como Deus
determinou os sacrifícios, também o fez com o sacerdócio ou pontificado, sem
intervenção do povo ou consentimento deste. E também na Nova Lei instituiu-os Cristo,
de modo mais elevado e excelente.
Se, por outro lado, trata-se do sacerdócio quanto ao poder de jurisdição, aquela
objeção supõe primeiramente algo falso ou muito incerto, a saber, que o sacerdote ou
Pontífice tivesse possuído jurisdição espiritual na lei natural – coisa que, ou é falsa, ou
incerta. Pois tal poder nem foi dado especialmente por Deus naquele estado, como é
evidente por si, nem pode caber aos homens por direito natural. O poder governativo do
homem não transcende a ordem humana, e institui-se sobretudo para ordenar os homens
entre si, de modo que, embora também possa dar atenção ao culto divino, em seu modo
e determinação ele dirá sempre respeito ao bem comum da república humana, como em
passagem
passagem semelhante
semelhante nos diz
diz Santo Tomás.[ 283 ] P or essa razão, não foi correta a
comparação entre a lei natural e a da graça. Na lei natural, todo o poder de governo era
abarcado pelo poder temporal, pois este era capaz de dispor das coisas referentes ao
culto de Deus da forma que conviesse ao bem comum da república humana. Mas não é
isso que ocorre na lei da graça, que é lei divina: ela principalmente ordena os homens a
Deus, e orienta o bem da própria república à amizade dos homens com Deus; por isso,
nesta lei o poder sacerdotal é espiritual e de ordem mais elevada, e não pode proceder
dos homens ou da comunidade, mas deveu emanar apenas do próprio Cristo – o que
realmente
realmente foi o caso, como antes exp
expusemos.
usemos.
5. OBJEÇÃO. S OLUÇÃO. – Mas dirás que isto vale apenas para os homens considerados
enquanto homens (pois assim é evidente que neles não pode haver senão poder natural),
e não para homens cristãos enquanto cristãos, e enquanto compõem uma comunidade
não apenas política, mas também cristã. Pois, assim como tal comunidade se funda na fé
e na religião sobrenatural, também destas obtém poder de tipo mais elevado, conatural à
própria
própria graça, para dispor
dispor aquelas
aquelas coisas
coisas respectivas
respectivas ao culto
culto divi
divino,
no, e consentâneas à
verdadeira fé e amizade de Deus. Portanto, é desse modo que devemos entender agora o
poder eclesiásti
eclesiástico;
co; conseqüentemente, foi possível que uma comunidade
comunidade inteira
nteira o
conferisse a seu rei temporal.
Respondo: isso poderia haver ocorrido, se Cristo Senhor não houvesse instituído sua
Igreja e seu regime de modo particular, e se este regime não pudesse, numa sociedade de
homens cristãos (ainda que enquanto cristãos), existir de modo muito mais excelente do
que apenas a partir da natureza das coisas. Mas Cristo, por particular instituição,
adiantou-se – por assim dizer – e sublimou o regime espiritual da Igreja.

141
Primeiro, instituiu-a ao modo de um só corpo místico espalhado por todo o mundo,
no qual pudesse conservar-se a unidade da fé e a concórdia no rito substancial da
religião, ordenado ao culto divino e à santificação dos homens. Ora, isto não podia
realizar-se sem soberania espiritual, como antes mostrei. Mas o poder universal sobre o
mundo inteiro não pôde proceder dos próprios homens, dispersos por toda parte.
Portanto, deveu proceder de Cristo.
Ademais, Cristo instituiu uma Igreja que, na fé, seria uma coluna de verdade, e seria
sempre santa nos costumes. Por isto deu-lhe tal poder espiritual: para que ela pudesse,
mediante Ele, ser guiada a ambos esses fins retamente e sem defeito substancial. Logo,
tal poder deve ser necessariamente
necessariamente sobre-humano.
Finalmente: ainda se se consideram os homens da Igreja enquanto cristãos, não seria
pela
pela mera natureza das coisas
coisas que haveria
haveria a necessidade
necessidade de a Igreja ser regi
regida por bispos
bispos
ou pastores semelhantes, incumbidos do cuidado especial das almas. Ora, a Igreja
necessariamente deve ser regida por bispos e sacerdotes, cujas instituição e distinção
descendem sem dúvida do direito divino. Portanto, o poder governativo da Igreja de
Cristo em matéria espiritual não procede do povo cristão, ainda que iluminado pela fé,
mas do próprio Cristo, seja imediatamente, seja por participação daquele a quem Cristo o
comunicou imediatamente.
6. SEGUNDA OBJEÇÃO. – A segunda objeção se toma de algumas passagens do Antigo
Testamento, nas quais se indica que os pontífices da Lei Antiga foram inferiores e
submissos aos reis.
Agora omito esta objeção, pois, no que se refere ao ponto presente, é evidente no
Antigo Testamento que a dignidade pontifícia e o poder régio se encontravam em pessoas
distintas, e é apenas disso que temos tratado.
Quanto à comparação destes poderes, dela trataremos mais adiante, quando então
veremos melhor se há ou houve necessariamente uma só e mesma disposição entre essas
leis (isto é, a antiga e a nova), ou se uma relação de inferior e superior.
7. T ERCEIRA OBJEÇÃO, TOMADA DO N OV O T ESTAMENTO. – A terceira objeção foi tomada
OVO
dos testemunhos do Novo Testamento, nos quais se ordena aos cristãos a obediência a
todos os reis temporais, como vemos nas passagens anteriormente aduzidas, e
compiladas pelo rei Jaime na página 129 de sua Apologia: Romanos 13 e I Pedro 2, às
quais agrega I Timóteo 2, em que São Paulo ordena que se ore por todos, mas
princi
principal
palmente
mente pelos
pelos reis
reis e por todos os que estão em posição
posição elevada.
elevada. Também Mateus
22 (dai a César o que é de César, etc.), João 18 ( Meu reino não é deste mundo), Lucas
12 (Quem me constituiu juiz sobre vós?) e Lucas 22 ( Os reis dos gentios dominam
sobre eles, etc.).
sobre
8. S OLUÇÃO AOS DOIS PRIMEIROS TESTEMUNHOS. – Mas nenhum destes testemunhos serve
à sua causa, e alguns deles podem mesmo servir de provas contra a intenção do rei.
Primeiro, porque em nenhum deles fala-se particularmente do poder espiritual, nem neles

142
se insinua que tal poder foi concedido aos reis temporais, ou que se lhes deve obedecer
ao darem ordens em tal matéria.
Quando São Paulo diz [Romanos 13:1]: Toda alma esteja sujeita às potestades
superiores, fala de modo geral de todos os superiores, como consta do teor de suas
palavras.
palavras. Donde se pode entendê-l
e ntendê-las
as corretamente se feita
feita a devida
devida divi
divisão,
são, ou seja, que
aqueles que estão submetidos devem obedecer a seu superior naquela matéria em que
ele é superior. Pois assim também diz, mais adiante: Dai a cada um o que deveis; a
quem tributo, tributo; a quem honra, honra. (Romanos 13:7) Portanto, esta distribuição
geral deve ser aplicada a cada um segundo a medida de seu poder, mas ali não se explica
qual ela seja em cada um dos poderes.
Mas concedamos que ali São Paulo nos fale particularmente do poder temporal, do
qual pouco depois nos diz [Romanos 13:4]: Não traz debalde a espada. Que outra coisa
se pode depreender desta passagem, assim entendida, senão que devemos obedecer aos
príncipes
príncipes temporais
temporais naquil
naquilo que ordenam justa e retamente? Ora, e quem o neg nega?
a? Mas
como podemos daí concluir que se lhes deve obedecer também em matéria espiritual e
eclesiástica?
Certamente o Apóstolo não se referia apenas aos príncipes cristãos, mas também
(principalmente naquele tempo) aos reis gentios, aos quais os cristãos também estavam
obrigados a obedecer como a senhores temporais; mas nem por isso uma pessoa
prudente dirá
dirá que eles
eles eram então as cabeças das igrejas em seus reinos.
reinos. P ortanto, tudo
que ali dizem Pedro e Paulo em suas epístolas refere-se a um só e mesmo sentido: ou se
entendem proporcionalmente, de modo que a cada um seja dado o direito ou obediência
devida a seu grau de poder, ou, se se entendem de modo determinado acerca dos
senhores temporais, devem entender-se também no foro e matéria deles, conforme o
exige a própria razão de justiça. Pois ali os apóstolos não fundam um novo direito, mas
ordenam que se observe o próprio direito natural. Pois é da mesma maneira que se
advertem os servos a que sejam submissos a seus senhores, e as mulheres aos seus
maridos,
maridos, etc.
9. DO TERCEIRO TEXTO, EM TIMÓTEO, NADA SE DEDUZ CONTRA A VERDADE QUE
ESTABELECEMOS. – Quanto ao terceiro testemunho, admitimos que Paulo pede que se
façam orações por todos os homens, e em seguida agrega especialmente [I Timóteo 2:2]:
Pelos reis e por todos em posição elevada, para que possamos viver
vi ver uma vida
vi da calma e
tranqüila. Mas que tem isso a ver com o primado espiritual dos reis temporais? Acaso
diz que os reis são as cabeças das igrejas em matéria espiritual, apenas porque os
antepõe? É claramente frívola esta conclusão, e Crisóstomo[ 284 ] lhe dá outro sentido
completamente distinto, a saber: Daí haver agregado
agregado “pelos reis”: porque
porque então os reis
ei s
não cultuavam a Deus, e por muito tempo ainda persistiriam na infidelidade que
herdaram da seqüência de suas sucessões. E mais abaixo: Mas, como percebia
percebia que os
Cristãos logicamente seriam morosos para fazê-lo, e que não aceitariam tais
advertências, uma vez que se haveria de oferecer preces a um gentio no instante dos
sacramentos, observa o que agregou
agregou em seguida, para que, pensando eles em seu

143
róprio bem, mais fácil e solicitamente acolhessem tal admonição: “para que
ossamos viver uma vida calma e tranqüila”.
Logo, na opinião de Crisóstomo, o Apóstolo não fez menção aos reis porque fossem
cabeças espirituais das igrejas – o que então seria de todo impossível, pois eram gentios
–, mas para que por essa razão os fiéis
fiéis não deix
deixassem de orar
ora r publicamente
publicamente por eles.
Tampouco disse Paulo “principalmente pelos reis” – o termo “principalmente” foi
agregado pelo próprio rei Jaime –, mas falou sem distinções, como se dissesse que
também os reis gentios encontravam-se abarcados naquele todo. Pois, embora fossem
gentios, havia que orar por eles para que se convertessem à fé. E deu-o a entender o
Apóstolo sobretudo pela razão que agregou [I Timóteo 2:3-4]: Pois isto é bom e
agradável a Deus nosso Salvador, o qual deseja que os homens sejam salvos e cheguem
ao conhecimento da verdade.
Finalmente, ainda que São Paulo houvesse agregado o termo “principalmente”, de
nada importaria, pois a conversão dos reis era a mais difícil, e é a mais necessária para o
bem comum da Igreja; Igreja; portanto, também se pôde encomendá-la
encomendá-la especial
especial e
princi
principal
palmente.
mente.
10. DO TESTEMUNHO EM M ATEUS, CONCLUI-SE O CONTRÁRIO. M OSTRA-SE TAMBÉM QUE
JOÃO E L UCAS CONFIRMAM A DOUTRINA QUE DEFENDEMOS. – Quanto às seguintes palavras
de Cristo: Dai a César o que é de César, já se demonstrou acima, pela sentença de
Crisóstomo, Ambrósio e Atanásio, que elas na verdade provam o contrário: a César, isto
é, ao rei temporal, deve dar-se aquilo que é de César, a saber, o poder temporal, uma
resposta precisiva que tem o efeito de excluir, como indicou Teofilacto,[ 285 ] ao dizer:
Por estar na moeda a i magem de César,
César, Jesus persuade-os de que devem dar a César o
que lhe cabe, isto é, as coisas que têm a sua imagem; pois nas coisas corpóreas e
externas devemos obedecer ao rei, ao passo que, nas internas e espirituais, a Deus;
entende-se, decerto, ou obedecer imediatamente ao que ordena, ou fazê-lo mediante seus
pastores, conforme as palavras
palavras de São P aulo:
aulo: Obedecei aos vossos pastores, e sujeitai-
vos a eles.[ 286 ]
Quanto àquelas outras palavras de Cristo [João 18:36], a saber, O meu reino não é
deste mundo, dizemos que também provam o contrário do que se alega, o que se conclui
sem dificuldade a partir do que já foi dito. Pois, segundo a doutrina de Agostinho e dos
demais Padres, delas deduzimos três pontos: primeiro, que Cristo tem reino também
neste mundo, embora tal reino não seja deste mundo; donde se conclui o segundo, a
saber, que os reis deste mundo, apenas por sê-lo, não têm poder no reino de Cristo, que
é de origem mais elevada; por fim, em terceiro lugar, inferimos conseqüentemente que
este reino de Cristo não está privado de governantes, os quais, embora não sejam reis
deste mundo, são pastores espirituais e sacerdócio régio.
O mesmo raciocínio vale para estas outras palavras de Cristo [Lucas 12:14]: Quem
me constituiu juiz ou repartidor sobre vós? Pois elas provam que as causas temporais
não pertencem per se ao reino de Cristo ou ao seu vigário. Disto, por via contrária (ou,
invertida a comparação), bem se deveria inferir que as causas espirituais não cabem ao
rei temporal.

144
Finalmente, dizemos o mesmo destas últimas palavras citadas [Lucas 22:25]: Os reis
dos gentios dominam sobre eles. Pois Cristo não acrescentou: “Vós, ao contrário, não
governeis”, ou: “Não ordeneis nem corrijais vossos súditos”, mas antes supôs que eles
haveriam de ser pastores ou reitores, e portanto disse [v. 26]: Mas não sereis
sereis vós assim,
quase que pressupondo um regime, distinguindo-o do reino temporal, e nele
estabelecendo um tipo diferente de comando – que São Pedro explicitou,[ 287 ] e que já
comentamos acima.
11. QUARTA OBJEÇÃO. – Uma quarta objeção pode tomar-se do título de “vigário de Deus”
que o rei da Inglaterra atribui a todo rei temporal.
Para que não pareça novidade essa maneira de falar, já antes de Jaime ela foi usada
por Eduardo, rei da Ingl
Inglaterra[ 288 ] (conforme encontramos no capítulo capítulo 19 de suas
leis), o qual não obstante se conta entre os santos. E podemos igualmente confirmá-lo
pela
pela autoridade de AgAgosti
ostinho,
nho, em Questões Sobre o Antigo e o Novo Testamento,[ 289 ]
onde fala do rei: Ele é adorado na terra como vigário vi gário de Deus. Também se diz que
Eleutério,[ 290 ] em certa epístola a Lúcio, rei dos bretões, assim se expressou:
Recentemente recebestes no reino da Britânia
Britâni a por misericór
miseri córdia
dia divina
divi na a lei e a fé de
Cristo; tendes neste vosso reino ambas as páginas. Tomai delas a lei, pela graça de
Deus e conselho de vosso reino, pois nele sois vi gário de Deus.
soi s vigário
Portanto, por cima deste vigário não é necessário outro que se encontre
imediatamente sob Deus; assim, reside no rei todo aquele poder que é vigário do poder
divino, tanto espiritual quanto temporal.
E podemos ainda expandir essa objeção citando Isidoro,[ 291 ] que afirma: Deus
concedeu aos príncipes a prelazia, para o governo dos povos. Ora, “prelazia” é nome
de poder espiritual, pois não se diz “prelado” senão aquele que rege em matéria
espiritual.
12. SOLUÇÃO. A GOSTINHO É CITADO SEM RAZÃO PARA APOIAR O ERRO CONTRÁRIO. –
Respondo brevemente que a conclusão acima não tem nenhum peso, o que quer que se
pense sobre a forma de exp expressão
ressão que foi empregada,
empregada, sobre a qual não haveremos de
disputar, ainda que sejam apócrifos os pontos que se alegam em seu favor. Porque,
segundo o parecer de todos os doutores, o livro Questões Sobre o Antigo e o Novo
Testamento não é de Agostinho, pois não são seus o estilo nem – em muitos pontos – a
doutrina, ainda que seja verdadeira aquela sentença bem explicada, na qual o rei é
certamente adorado, isto é, cultuado e venerado, pela dignidade na qual de certo modo
ele representa a Deus, de quem faz as vezes.
Também é apócrifa aquela epístola de Eleutério, pois dela não encontramos menção,
nem entre as cartas pontifícias, nem nos tomos dos concílios, nem entre os autores
católicos; ao contrário, foi forjada por algum herege, como observou Sander.[ 292 ] E
demonstram-no o suficiente aquelas mesmas palavras que dela se citam, pois tal frase é
própria
própria de inovadores, e completamente
completamente alheia
alheia aos pontífices romanos.

145
13. RESPOSTA ÀS PALAVRAS DE I SIDORO. – Não negamos que um rei possa, em sentido
bom e são, ser chamado de vigári
vigárioo de Deus. P ois,
ois, em Romanos 13, São PaulP auloo os chama
de “ministros de Deus”, o que é quase o mesmo. Por isso diz Ambrósio,[ 293 ] sobre tal
passagem,
passagem, que o príncipe
príncipe age no lug ugar
ar de Deus, e que portanto devemos prestar-lhe
prestar-lhe
submissão.
Ora, agir no lugar de alguém é o mesmo que ser seu vigário, mas não por isso se
conclui retamente que os reis são vigários de Deus em matéria espiritual. Pois Deus é
monarca principal, tanto no reino temporal quanto no espiritual da Igreja, e em ambos
pôs vigário
vigárioss seus: no temporal, reis;
reis; no espiritual
espiritual,, bispos, e sobretudo o Sumo Pontífice.
Assim, pelo fato de que o rei é vigário num dos reinos, infere-se mal que ele o seja
em ambos. Pois igualmente os reis gentios, dos quais também falava Paulo, são ministros
de Deus e, portanto, vigários; mas não nos assuntos espirituais, senão apenas nos
temporais.
Logo, o mesmo se deve dizer acerca dos reis cristãos, ainda que possam também ser
denominados vigários de Deus por título especial, para defender a Igreja e proteger os
prelados,
prelados, de modo que estes possam mini ministrar
strar as coisas
coisas espirituai
espirituaiss em paz e eficazmente.
eficazmente.
E foi nesse sentido que falou Eduardo.
Quanto a Isidoro, foi com certa liberdade que este denominou “prelazia” qualquer
prefeitura
prefeitura ou poder de regência,
regência, como também o fez no capítulo 49 antecedente [na obra
citada], onde pôs sob o título de “prelados” os reis e demais poderes seculares, tanto fiéis
quanto infiéis. Logo, está claro que não falava de “prelados” com aquele rigor pelo qual,
no uso comum, se significa com tal palavra o superior eclesiástico; ao contrário, usa-a de
modo geral, enquanto deriva do verbo preferirpreferir , e pode significar qualquer superior ou
governante principal.[ 294 ]
14. QUINTA OBJEÇÃO, TOMADA DOS P ADRES. – Em quinto lugar, podem objetar-se alguns
testemunhos dos Padres, que costumam atribuir o primado ao rei ou imperador. Alguns
destes lidam com a comparação entre uma jurisdição e outra, tema que trataremos
posteriormente,
posteriormente, como disse.
disse. Já outros referem-se ao ponto em que estamos, pois pois neles
neles
parecem atribui
atribuir-se
r-se aos reis
reis atos próprios do poder espi
e spiri
ritual
tual,, a saber: ensinar
ensinar a verdade,
rechaçar os erros, e atos semelhantes.
Epifânio[ 295 ] diz que os reis nos foram dados por Deus para bem dispor e
administrar todas as coisas, e para a boa ordenação da terra: onde as mortes, onde as
lutas, onde a ignorância e a boa doutrina, etc., indicando que tudo isso recai sob os
cuidados do rei.
E assim também fala Alcuíno[ 296 ] a Carlos Magno, no prefácio a seu livro sobre a
Trindade: a sabedoria lhe havia sido dada para que regesse e ensinasse seus súditossúdi tos com
ia solicitude. E, mais abaixo, diz que lhe cabe discernir as coisas justas, ordenar o
que foi determinado e advertir sobre coisas santas, para que cada um retorne feliz a
seu lar com sentença de salvação perpétua. E adiciona em seguida: É conhecidíssima
conhecidíssi ma a
necessidade de que o príncipe de um povo cristão saiba e ordene todas as coisas que
agradam a Deus. Pois tampouco é apropriado que alguém conheça mais ou melhores

146
coisas que as conhecidas pelo imperador, cuja doutrina deve auxiliar a todos os
súditos , etc.
E até mesmo o [VI] Concílio de Arles,[ 297 ] sob o próprio Carlos Magno, no último
capítulo, agrega após todos os decretos: Decretamos
Decretamos estas coisas que havemos de
apresentar a nosso senhor, o imperador, pedindo-lhe sua clemência; para que, se algo
aqui for insuficiente, ele o supra com sua prudência; se contrário à razão, que o
emende com seu juízo; se razoavelmente repreensível, que o aperfeiçoe com seu
auxílio,
auxílio, adjuvante
adjuvante a divina
divi na clemência.
clemência.
Poderiam agregar-se aqui também as objeções procedentes dos atos de congregação
dos concílios gerais, de neles presidir, ou criar ou depor pontífices. Pois estes e outros
atos semelhantes são de jurisdição eclesiástica, e, nada obstante – defende o rei da
Inglaterra em seu Prefácio
Prefácio – exerceram-nos freqüentemente os imperadores.
15. SOLUÇÃO. E SCLARECE-SE A VERDADEIRA OPINIÃO DOS P ADRES. – À primeira parte
respondo que os Padres nunca atribuem aos reis seus próprios atos de jurisdição
espiritual, mas às vezes, à maneira de exortação, louvor ou honra, estimulam-nos a
exercer alguns atos que possam levar a cabo sem jurisdição, ou a procurar que outros
atos na Igreja se realizem eficazmente por seus pastores, os quais podem exercê-los
legitimamente.
Um desses atos pode ser o cuidar para que a ignorância seja eliminada da Igreja, e
para que a boa e santa doutrina
doutrina se conserve e cresça, que é do que fala Epifâni
Epifânio.
o. P ois
ois há
também espaço para isso dentro dos limites da república política – o que é evidente por si
–, e portanto tais
tais atos estão na capacidade
capacidade do rei em razão de seu poder próprio.
próprio. Já com
respeito à Igreja e no que tange à doutrina da fé, o rei pode ter a atribuição de exercer
estes atos, não pregando publicamente por si mesmo, nem dando a autoridade para fazê-
lo, mas cedendo auxílio aos prelados e pregadores católicos, fundando centros de estudo
das letras sagradas, e coibindo com seu poder os disseminadores de má doutrina.
E foi nesse sentido que se expressaram os Padres do [III] Concílio de Tours[ 298 ]
sob Carlos Magno, no início; depois que elogiaram a piedade e a sabedoria do imperador,
agregaram: Atento a estas coisas, portanto, ele advertiu com salubérrimas exortações
os piedosos e religiosos sacerdotes que, no reino que pelo favor divino lhe fora
concedido, detinham as rédeas da Igreja de Deus, para que se empenhassem e se
sobressaíssem
sobressaíssem com ações pelas quais guiassem bem, tanto a si mesmos (com boas
obras) quanto os que lhe foram confiados (instruindo-os com palavras e exemplos). E o
mesmo indica antes Alcuíno,[ 299 ] dizendo: Grande é a razão para que todos os fiéis
regozijem em vossa piedade, enquanto a solicitude de vossa clemência tem vigor
sacerdotal
sacerdotal na pregação da palavra de Deus, como convém.
16. EXPOSIÇÃO AUTÊNTICA DO C ONCÍLIO DE A RLES. – Já todo o restante do que
mencionamos são palavras de honra e louvor, pois também o imperador cristão pode ser
douto e bem instruído na sacra doutrina, e pode privadamente, numa ou outra ocasião,
ensinar a verdade. E é nesse mesmo sentido que se expressam as palavras dos Padres no
[VI] Concílio de Arles:[ 300 ] para pedir ao imperador proteção e auxílio à execução de

147
seus decretos, como consta no texto da última cláusula. As demais palavras são de
modéstia e urbanidade, das quais não se pode depreender nenhum juízo ou submissão
por parte do concíli
concílio, nem poder espiritual
espiritual do imperador.
imperador.
Quanto à outra parte da objeção, dizemos resumidamente que aqueles não são
propriamente
propriamente atos de poder imperial;
mperial; ao contrário,
contrário, podem (ou algu
alguma
ma vez puderam)
exercer certa cooperação ou disposição preparatória, ou condição que não requeira poder
como que espiritual, conforme exporemos adiante.

[ 279 ] Epistolae,
Epistolae, 73, 6 (PL 22, 680).
[ 280 ] RUPERTO DED EUTZ, De Trinitate Trinitate et operibus eius,
eius, in Gen. Lib. V,V, c.
c . 12 (PL
( PL 167, 378).
[ 281 ] Na verdade, ao imperador Miguel. Ad MichaelemM ichaelem imperatorem
imperatorem,, Mansi 15, 214D-E.
[ 282 ] Epistola II Anacleti Papae,
Papae, 2, Mansi 1, 611B.
[ 283 ] S. Th., Iª-II ae , q. 99, a. 3, resp.
[ 284 ] In Epist.
E pist. I ad Timoth. Cap. II, Homilia 6 (PG 62, 530-1).
[ 285 ] T EOFILACTO DEÁ CRIDA, Enarratio in Evangelium
Ev angelium Matthaei
Matt haei,, c. 22, 16-22 (PG 123, 389B).
[ 286 ] Hebreus 13:17.
[ 287 ] I Pedro 5.
[ 288 ] S. EDUARDO OC ONFESSOR, Leges Edwardi Edwardi Confess
Conf essoris
oris,, MS Additional 24066, Londres, 1190, fol. 216r.
[ 289 ] Quaestiones Veteris et Novi Testamenti,
Testamenti, 91 (PL 35, 2284).
[ 290 ] PAPA S. E LEUTÉRIO,Epistola II Eleutherii Papae Rescriptum ad Lucium Britanniae Regem, Regem, Mansi 1,
698B.
[ 291 ] S. I SIDORO DES EVILHA, Sententiarum,
Sententiarum, lib. III, cap. 49, 3 (PL 83, 721A).
[ 292 ] NICHOLAS S ANDER, De Clave David seu regno Christi: contra calumnias Acleri pro pro visibili
vi sibili Monarchia
Monarchia,,
Roma, 1588, lib. V, cap. 6, pp. 328-9.
[ 293 ] Na verdade, AMBROSIASTER, Commentaria in Epistolam ad Romanos, Romanos, 13, 6 (PL 17, 163D).
[ 294 ] O lat. praefero
praefero, cuja herança hoje encontramos no verbo “preferir”, tinha não apenas o sentido moderno,
mas também um mais geral, de “levar à frente” (prae+ prae + fer
f eroo). Como o verbo fer f eroo é irregular, seus derivados de
supino se formam com o radical na forma lat-. lat-. Praelatus é, portanto, aquele que é posto ou levado à frente de
algo, e, por extensão de sentido, aquele que lidera. [N. T.]
[ 295 ] Advers
Adv ersus
us Haereses
Haereses,,I, 3, 40, 4 (PG 41, 684).
[ 296 ] De fide
f ide S. Trinitatis
Trinitatis,, Epistola nuncupatoria (PL 100, 12A).
[ 297 ] Concilium Arelatense VI, can. XXVI, Mansi 14, 62E.
[ 298 ] Concilium Turonense III, Mansi 14, 83C.
[ 299 ] Op. cit. (PL 100, 13B).
[ 300 ] Concilium Arelatense VI, Mansi 14, 57-62.

148
Parte II
O juramento de fidelidade

(Livro VI - capítulos I-X e XII)

149
LIVRO VI

Do juramento
juramen to de fidelidade
fidelida de
do rei da Inglaterra

E
mbora o presente livro se situe na parte posterior desta obra – porque assim o
postulam
postulam a conexão
conexão entre próprios assuntos, a clareza
clareza da doutrina
doutrina e a ordem que
o rei da Inglaterra manteve em seu livro –, sua matéria e seu argumento deram
fundamento e ocasião a esta controvérsia inteira, como o próprio rei o declara largamente
no início de seu Prefácio
Prefácio . Por esta razão, para que se tenha diante dos olhos o escopo da
disputa, considerei também necessário pôr à vista o início e a origem de tal juramento, e
o seu progresso até ao presente estado. Mas em primeiro lugar suponho que nem os
católicos nem os cismáticos põem em dúvida que o juramento de fidelidade devido ao rei
temporal, e prestado de forma conveniente, é em si honesto e afim à razão, de tal modo
que é lícito ao rei exigi-lo de seus vassalos – e estes santamente podem, ou antes devem,
prestá-lo,
prestá-lo, quando é pedido
pedido segundo
segundo o modo e a razão convenientes,
convenientes, e são depois
depois
obrigados a observá-lo e a cumpri-lo. Como, de fato, os súditos de cada rei estão
obrigados, segundo o testemunho de São Paulo, a acatá-lo, a observar a fidelidade e a
obedecê-lo em tudo que diz respeito ao poder régio (como se mostrou no livro III), é
manifesto por si que o juramento acerca da observância desta obediência e fidelidade
(que chamamos de juramento de fidelidade
fideli dade) é honesto em si e por seu objeto, e,
ademais, que o rei também pode postulá-lo para sua maior segurança e estabilidade, caso
em que os súditos devem prestá-lo e observá-lo. Por isso, também se deixa explicado de
passagem
passagem que a fórmula
fórmula deste juramento, para que seja honesta, deve ser tal que não
exceda os termos do poder régio, porque nem o rei pode justamente exigir uma promessa
de obediência indevida, nem os súditos estão obrigados a fazê-la ou a jurá-la. Pelo
contrário, se tal promessa prejudica os direitos de outros, não podem fazê-la em boa
consciência, como diremos mais detalhadamente em seguida.
2. Mas este juramento de fidelidade, embora seja honesto em si, não se reputa tão
necessário que seja exigido de cada um dos vassalos e das pessoas de todas as ordens,
em todos os reinos. Ao contrário: nas repúblicas bem instituídas, que vivem quietamente
e em paz, e principalmente nos reinos católicos, aceita-se como costume que nas

150
assembléias públicas os procuradores das cidades, e outros príncipes e magistrados, em
nome de todo o reino, prestem ao príncipe esse juramento de obediência e de fidelidade,
quer quando ele por primeiro receba o poder do reino, quer também depois, em tempos
prescritos,
prescritos, segundo
segundo o costume de cada reino. Mas não se costuma postulá-lo
postulá-lo de cada um
dos da plebe; não porque não o possam fazer, mas porque os próprios príncipes, que
reinam na paz e na tranqüilidade e que confiam na fidelidade dos súditos, julgam-no
desnecessário, inoportuno ou inconveniente. Mas no reino da Inglaterra, desde o tempo
em que nele os cismas e as heresias começaram a ser semeados, também começou a
introduzir-se o costume de exigir dos súditos um juramento particular. Por isso, assim
como Henrique VIII foi autor do cisma, também foi ele o primeiro que começou a
propor a seus súditos
súditos uma nova forma de juramento, pela
pela qual postulou uma promessa
não só de obediência civil, mas também daquela que é devida somente ao Romano
Pontífice.
3. Na obra Sobre o Cisma Anglicano, próximo da metade do livro I, relata Sander[ 301 ]
que o rei Henrique, quase no início do cisma, pediu em assembléias públicas a todas as
ordens do reino que se exigisse dos eclesiásticos um juramento pelo qual lhe prometeriam
a obediência que anteriormente costumavam prestar ao pontífice romano; e embora no
princípi
princípioo isto tivesse
tivesse sido
sido admiti
admitido – não simpliciter
simpli citer , mas com certa limitação (como
direi abaixo) – o rei assim obteve finalmente o que apetecia.
Sander não nos conta, porém, que Henrique tenha promulgado uma forma especial
para a prestação do juramento, mas que apliaplicou simpliciter
simpli citer a si mesmo a forma usual do
uramento de obediência ao Papa, ou seja: deveriam prometer-lhe obediência com
palavras
palavras de mesmo teor e deveriam
deveriam confirmá-la
confirmá-la por juramento.
Tampouco nos narra que todos do povo tenham sido coagidos a prestá-lo, mas
apenas as pessoas eclesiásticas – e nem todas elas, mas só as que podiam ter sufrágio nas
assembléias, como se pode coligir de sua história. Tampouco encontro no tempo de
Eduardo algum juramento similar que tenha sido proposto ou postulado ao povo ou aos
eclesiásticos.
Já Elizabete, logo no início de seu reinado, ou nas primeiras assembléias, que eles
chamam de Parlamento, apresentou uma nova forma de juramento, e ordenou que
todos, exceto os primazes laicos, o prestassem solenemente. Ora, a forma do juramento
é a seguinte, como nos relata Sander[ 302 ] no livro III de sua obra, acerca do início do
reinado de Elizabete:

FORMA DO JURAMENTO PRIMEIRO PROPOSTA PORE LIZABETE


A SEUS SÚDITOS E DEPOIS EXPANDIDA SOBJ AIME

Eu, N.N., inteiramente


intei ramente testifico
testifi co e declaro
declaro em minha consciência
consciênci a que a rainha é a
única soberana governadora tanto deste reino da Inglaterra quanto de todos os outros
domínios e regiões de Sua Majestade, não menos em todas as coisas e causas
espirituais e eclesiásticas do que nas temporais, e que nenhum príncipe, pessoa,

151
relado, estado ou potentado externos têm, de facto ou de jure , alguma jurisdição,
jurisdi ção,
oder, superioridade, preeminência ou autoridade eclesiástica ou espiritual neste
reino. E por isso renuncio e repudio todas as jurisdições, poderes, superioridades e
autoridades externas.
4. Ora, Sander adverte retamente que ela, sendo mulher, ou tinha temor ou pudor de
usurpar o nome de cabeça da Igreja, que Henrique arrogara a si, e por isso mudou o
nome para soberana governadora. Porém na realidade não havia diferença senão no
nome, pois o que o rei dissera com termo metafórico Elizabete declarou com um nome
mais próprio. Posteriormente muitos até suspeitaram de que a rainha tencionava algo
mais pela fórmula de juramento, ou seja, arrogar a si todo poder espiritual, mesmo na
administração dos sacramentos. Mas ela própria declarou que por aquelas palavras não
queria atribuir a si nada além do que fora concedido pelas ordens a seu pai e a seu irmão
sob o nome de cabeça da Igreja.
5. Assim, essa forma de juramento foi conservada no tempo de Elizabete, mas
posteriormente
posteriormente Jaime
Jaime a expandi
expandiu,
u, acrescentando uma promessa especial
especial de observância
observância
da fidelidade e da obediência ao rei, razão por que já podia ser chamado de juramento de
idelidade – pois o primeiro parecia ser apenas uma confissão ou profissão jurada do
primado,
primado, quase como um artig artigo da fé ang
angllicana. P ortanto, a forma do primeiro
primeiro
uramento apresentado pelo rei Jaime (que ele mesmo refere na Apologia) acrescenta,
para além da fórmula anterior,
anterior, apenas a seguinte
seguinte promessa:
Eu, N.N., etc., também prometo
prometo de agora em diante que prestarprestarei
ei fidelidade
fideli dade e
obediência verdadeira à majestade régia, e a seus legítimos herdeiros e sucessores, e
segundo minhas forças, favorecerei
favorecerei e defenderei
defenderei todas as jurisdições,
jurisdi ções, privilégios,
privi légios,
reeminências e autoridades concedidas ou devidas à majestade régia, a seus
herdeiros e sucessores, ou unidas e anexas à coroa imperial deste reino. Assim me
ajude Deus, etc.
6. Mas depois, como o rei salienta no início do Prefácio Prefácio e da Apologia, e
freqüentemente em seu livro, o rei criou uma nova forma de juramento por ocasião da
traição ou conjuração, através de um ataque de pólvora,[ 303 ] dirigida contra ele e
contra as ordens públicas de seu reino que se reuniam. Sancionou esta nova forma por lei
e decreto público, para que fosse exigida e prestada por todos os seus, tanto para que, se
ainda restassem ali sócios de tamanho crime, pudessem ser apreendidos, quanto para
aumentar a sua segurança e a dos seus contra semelhantes perigos e maquinações. Ora, a
forma do juramento é a que segue:

TERCEIRA FÓRMULA DE JURAMENTO, CONCEBIDA


E DEFENDIDA PELO REIJ AIME

Eu, N.N., verdadeira


verdadeira e sinceramente reconheço, professo,
professo, testifi co e declaro
declaro em
minha consciência perante Deus e o mundo, que nosso soberano senhor, o rei Jaime, é

152
rei soberano e verdadeiro deste reino e de todos os outros domínios e terras de Sua
ajestade, e que o papa, nem por si mesmo, nem por outra autoridade qualquer da
Igreja,
Igreja, ou da Sé Romana, nem por qualquer intermédio
i ntermédio com quaisquer
quai squer outros, não tem
oder nem autoridade para depor o rei, ou para dispor dos domínios ou dos reinos de
Sua Majestade, ou para conceder a algum príncipe estrangeiro autoridade para
danificá-lo ou para invadir suas terras, ou para exonerar nenhum de seus súditos da
obediência e sujeição à Sua Majestade, ou para dar licença a nenhum deles para
ortar armas contra ele, semear o tumulto, ou causar qualquer violência ou dano à
essoa de Sua Majestade, ao Estado, ao regime, ou a quaisquer de seus súditos sob os
seus domínios .
Igualmente juro
juro de coração que, não obstante qualquer declaração ou sentença de
excomunhão ou privação, feita ou concedida – ou que haja de ser feita ou concedida –
elo papa ou por seus sucessores, ou por qualquer autoridade derivada, ou que alega
ser derivada dele ou de sua Sé, contra o dito rei, ei , seus herdeiros
herdeiros ou sucessores,
sucessores, e não
obstante qualquer absolvição dos ditos súditos com relação à sua obediência, ainda
assim prestarei fidelidade e verdadeira obediência à Sua Majestade, aos seus herdeiros
e sucessores, e defendê-los-ei a ele e aos outros com todas as minhas forças contra
todas as conspirações, e contra quaisquer atentados ou outras coisas que se fizerem
contra a sua pessoa, ou contra a pessoa deles, ou contra a sua coroa e dignidade, quer
tenham sido cometidas pela doutrina ou pelo tom de alguma sentença ou declaração,
quer de outra maneira, e me empenharei de todo para revelar e manifestar à Sua
ajestade, e a seus sucessores e herdeiros, todas as traições e conspirações
traiçoeiras contra ele ou contra os seus, que me vierem ao conhecimento ou ao ouvido.
Ademais juro
juro que de todo o coração aborreço
aborreço e abjuro
abjuro como ímpia e herética esta
doutrina e proposição: que os príncipes excomungados ou privados pelo papa podem
ser depostos e mortos por seus súditos quai squer outros.
súdi tos ou por quaisquer
E por fim crei
creio,
o, e resolvo
resolvo em minha consciência,
consciênci a, que nem o papa, nem outro outro
qualquer, tem poder de isentar-me deste juramento ou de qualquer parte sua.
Juramento que reconheço ter sido legitimamente
legiti mamente apresentado
apresentado a mim por uma
autoridade justa e plena, e renuncio a todas as concessões e dispensas em contrário.
Tudo isto reconheço claramente e sinceramente, e juro segundo as palavras assim
expressas por mim, e segundo o sentido e o entendimento chãos e comuns das
alavras, sem nenhuma equivocação, ou evasão mental, ou qualquer reserva secreta.
Faço de coração este reconheci
reconhecimento
mento e esta corroboração,
corroboração, voluntariamente e
verdadeiramente, na veraz fé de varão cristão, e assim me ajude Deus.
7. Ora, por ocasião deste juramento nasceram não só dúvidas, mas também opiniões
várias e dissensões entre os católicos da Inglaterra.
De fato, a muitos aborreciam prestá-lo, porque em sua fórmula, ainda que não de
modo claro, negava-se direta e implicitamente a obediência devida ao pontífice e se a
prometia
prometia ao rei – além disso, o arti
a rtiggo do primado
primado do rei estava nele
nele virtualmente
virtualmente contido
contido
e reconhecido.
reconhecido.

153
Outros, porém, diziam ser possível prestar o juramento sem escrúpulo de
consciência, enquanto fosse feito com a mente e a intenção de prometer ao monarca
apenas a obediência civil. Pois as demais coisas, como não estão contidas no juramento,
não se podem atribuir a quem jura, se sua intenção é reta – porque, embora outros
porventura possam suspeitar
suspeitar de alg
algo, isso procede apenas da ignorânci
ignorância,
a, que pode ser
removida suficientemente por uma admonição e uma protestação feitas antes diante dos
católicos. E assim se pode evitar todo o escândalo. Pois, removido isso do caminho,
parecia
parecia não inerir
inerir ao juramento nenhuma malícia
malícia interna.
Mas, porque alguns, mesmo entre os principais católicos e eclesiásticos, enganados
por essas cores e porventura induzidos
nduzidos por alg
algum temor humano, não só consentiam
consentiam
nessa sentença, mas também adiantavam-se na prestação do juramento, foi necessário
em matéria tão grave e exposta a perigos que o Sumo Pontífice, em virtude de seu
cuidado pastoral, aplicasse um remédio oportuno. Por isso, nosso Santíssimo Senhor
Paulo V admoestou os católicos da Inglaterra ao que deveriam pensar e observar em
coisa tão árdua, dando-lhes cartas em forma de breve. A forma de tais cartas é a
seguinte:

PRIMEIRO BREVE PONTIFÍCIO

Filhos diletos, saudação e bênção apostólica. Com grande pesar de espírito,


sempre
sempre nos afligiram
afligi ram as tribulações
tri bulações e calamidades
calami dades que conti nuamente suportastes para
reter a fé católica. Mas, como sabemos que neste tempo tudo se exacerbou, nossa
aflição aumentou de modo admirável.
De fato, soubemos que vós soissoi s compelidos,
compeli dos, sob ameaça de gravíssimas
gravíssi mas penas, a ir
ir
aos templos dos hereges, a freqüentar suas assembléias, e a assistir a seus sermões.
Cremos com certeza e sem dúvida alguma que aqueles que com tanta constância
suportaram até agora acerbíssimas perseguições e misérias miséri as quase infinitas
infi nitas para
andarem sem mancha na lei do Senhor, jamais se juntarão à comunhão dos desertores
da lei divina para se mancharem.
Contudo, impulsionados pelo zelo de nosso dever pastoral, e pela solicitude
aterna com a qual laboramos assiduamente para a salvação de vossas almas, somos
coagidos a advertir-vos e a conjurar-vos que por nenhuma razão vos aproximeis dos
templos dos hereges, nem ouçais seus sermões, nem comungueis com eles em seus
ritos, para não incorrerdes na ira de Deus. De fato, não vos é lícito fazê-lo sem
detrimento do culto divino e de vossa salvação.
Razão por que tampouco podeis, sem evidentíssima
evi dentíssima e gravíssima injúria
injúri a à honra
divina, vos obrigar pelo juramento que vos foi proposto – como ouvimos com
semelhante dor para nosso coração –, e que tem este teor, teor, a saber: Eu, N.N.,
verdadeira sinceramente, etc. , como acima
verdadeira e sinceramente, aci ma.
Sendo assim, deve ser transparente a vós que tal juramento não se pode prestar,
ara que se resguardem a fé católica e a salvação de vossas almas, pois contém muitas
coisas que adversam abertamente a fé e a salvação.

154
Por isso vos admoestamos a que eviteisevi teis de todo a prestação
prestação deste e de outros
outros
uramentos similares. E de fato pedimo-lo de vós com mais veemência, porque, tendo
experimentado a constância de vossa fé, que foi provada como o ouro na fornalha pelo
ogo da perpétua tribulação, temos como certo que com espírito disposto suportareis
os tormentos mais atrozes, e por fim sofrereis com constância a própria morte, antes
de lesar a majestade de Deus em qualquer coisa.
E nossa confiança é confirmada pelo que se nos anuncia diariamente
diari amente acerca de
vossas egrégias virtude e fortaleza, que não resplandeceram menos nestes últimos
tempos por vossos mártires do que nos primórdios da Igreja.
Portanto, estejam vossos rins cingidos
ci ngidos com a verdade,
verdade, vesti a loriga da justiça,
tomando o escudo da fé: confortai-vos no Senhor e na potência de sua virtude, para
que nada vos detenha. Ora, aquele que vos há de coroar observa do céu vossos
combates, e terminará a boa obra que começou em vós. Sabeis que ele prometeu a seus
discípulos que nunca os deixará órfãos. Pois Aquele que prometeu é fiel.
Retende, portanto, a sua doutrina,
doutri na, isto é, radicados e fundados na caridade, o que
izerdes, o que empreenderdes, fazei-o unânimes em simplicidade de coração e em
unidade de espírito, sem murmuração ou hesitação. Porquanto é por isto que todos
conhecerão que somos discípulos de Cristo, se tivermos mutuamente amor entre nós.
Este amor,
amor, embora deva ser maximamente desejado por todos os fiéis fiéi s de Cristo,
certamente vos é, filhos diletíssimos, de todo necessário. Pois esta vossa caridade
enfraquece a potência do diabo, que agora insurge tanto contra vós, porque ela brota
rincipalmente das contendas e dissídios de nossos filhos.
Exortamos-vos, pois, pelas vísceras de Nosso Senhor Jesus Cristo, por cuja
caridade fomos soltos das fauces da morte eterna, para que antes de tudo tenhais
mútua caridade entre vós. O Papa Clemente VIII, de feliz memória, prescrevera
sabiamente a vós precei
preceitos
tos maximamente úteis sobresobre o exercíci
exercícioo mútuo da caridade
raterna, por cartas em forma de breve a seu amado filho, o mestre Gregório,
arcipreste do reino da Inglaterra, e datadas do dia 5 de outubro de 1603. Portanto,
segui-os diligentemente
dili gentemente e, para que não vos tardeistardeis por nenhuma dificuldade
difi culdade ou
ambigüidade, preceituamos a vós que observeis à risca todas as palavras daquelas
cartas, e que as aceiteis e entendais simples e absolutamente, como soam e como estão
ostas, removida qualquer possibilidade de interpretá-las de outro modo.
Neste ínterim, nós nunca cessaremos
cessaremos de deprecar
deprecar a Deus, Pai das misericór
miseri córdias,
dias,
que considere clementemente vossas aflições e vossos labores, e que vos custodie e
defenda com uma proteção contínua, aos quais comunicamos clementemente nossa
bênção apostólica.
Dado em Roma, em São Marcos,
Marcos, sob o anel do pescador,
pescador, no dia 22 de setembro
setembro de
1606, no segundo ano de nosso pontificado.
8. Porém, como naquele tempo alguns espalharam rumores na Inglaterra – porventura
para enganar os católi
católicos, para que não recusassem o juramento naquela
naquela ocasi
oca sião
ão – pelos
quais punham em suspeita a veracidade das cartas, dizendo que o breve nem era
verdadeiro nem tinha sido escrito pelo Papa, mas que tinha sido forjado por outrem, o

155
Sumo Pontífice redigiu um segundo breve no qual tornava mais certa a verdade do
primeiro.
primeiro. O seu teor é o seguinte:
seguinte:

Segundo breve pontifício

Filhos diletos, saudação e bênção apostólica. Embora tivéssemos tivé ssemos declarado
suficientemente
sufici entemente por nossas cartas, do dia 22 de setembro
setembro do ano anterior,
anterior, dadas em
orma de breve, que não podíeis prestar em sã consciência o juramento que era então
exigido de vós, e, ademais, embora tivéssemos estritamente preceituado que de
nenhum modo o prestásseis, relatou-se-nos que se encontram entre vós alguns que
ousam dizer agora que tais cartas sobre a proibição do juramento não foram escritas
segundo a opinião
opini ão de nosso espírito e por nossa própria vontade, mas antes foram
escritas segundo o intuito e pela indústria de outros. E, por esta causa, os mesmos
tentam persuadir-vos que não se deve atender ao que mandamos nas ditas cartas.
Esta notícia certamente nos perturbou ainda mais porque,porque, tendo experimentado
vossa obediência, ó filhos nossos singularmente diletos, na qual para seguir a esta
Santa Sé reputastes como nada – piedosa e generosamente – as riquezas, os recursos, a
dignidade, a liberdade, e mesmo a vida, nunca poderíamos suspeitar de que vós
oríeis em dúvida a veracidade de nossas cartas apostólicas, para que, sob tal
retexto, vos eximísseis de nossos mandatos. Mas reconhecemos a astúcia e a fraude
do adversário da salvação humana, e atribuímos esta renitência antes a ele do que à
vossa vontade.
Por esta razão decidimos
deci dimos escrever-vos
escrever-vos novamente, e dar a conhecer que nossas
cartas apostólicas sobre a proibição do juramento, datadas de 22 de setembro do ano
assado, foram escritas não só motu proprio e com ciência certa, mas também após
tomarmos longa e grave deliberação acerca das coisas nelas contidas; e por isso estais
obrigados a observá-las totalmente, rejeitando toda interpretação que vos queira
ersuadir do contrário. Ora, esta é nossa mera, pura e íntegra vontade, nós que,
solícitos de vossa salvação, sempre pensamos no que vos é maismai s conveniente.
conveni ente.
E para que nossas cogitações
cogi tações e conselhos sejam iluminados
ilumi nados por Aquele que prepôs
prepôs
nossa humildade para custodiar a grei cristã, oramos incessantemente; a quem
também deprecamos sem cessar que aumente em vós, filhos nossos mui diletos, a fé, a
constância, a caridade e a paz mútuas entre vós, aos quais abençoamos amorosamente
com todo o afeto da caridade.
Dado em Roma, em São Marcos,Marcos, sob o anel do pescador,
pescador, em 22 de setembro
setembro de
1607, no terceiro ano de nosso pontificado.
9. Tendo sido escritos este breve pontifício e a epístola do ilustríssimo cardeal Belarmino
ao arcipreste da Inglaterra, o rei da Inglaterra, irritado, escreveu ou mandou escrever,
ocultando seu nome, um livro contra ambos, o breve e a epístola, e em defesa desse
último juramento.

156
Nele
Nele tenta princi
principal
palmente
mente mostrar que pelo
pelo juramento nada se exiexige dos súditos
súditos
senão a obediência e a fidelidade civis, e por isso deplora veementemente que sejam
dissuadidos de prestar-lhe tal obediência.
De fato, assim afirma no princípio do Prefácio
Prefácio , na pág. 13. Também noutro lugar da
pologia assim se expressa: Quanto ao atinente ao próximo capítulo do breve, em que
roíbe aos papistas o entrar em nossas igrejas e o freqüentar nossos ritos e
cerimônias, não é tanto minha intenção tratar destes temas, já que a única coisa
importante que agora me incumbe é expor ao mundo as injúrias e injustiças do
ontífice ao proibir seus súditos de professar sua obediência a mim.
E em outro lugar, com grande peso e exagero nas palavras, afirma: Pois creio, até
onde minha mente pode alcançar, que o céu não dista tanto da terra, quanto a
rofissão de obediência civil a um rei civil difere de todas as coisas que de algum
modo são afins à fé católica ou ao primado de São Pedro.
10. Mas todas estas coisas (e muitas outras similares contidas na Apologia) não foram
deixadas sem suficiente resposta e impugnação da parte do cardeal Belarmino. De fato,
logo que a Apologia chegou à sua mão, escreveu contra ela um antídoto – embora tenha
encoberto o seu nome – provando que o juramento não era de fidelidade, mas de
infidelidade, e que era uma profissão não apenas de obediência civil ao rei, mas também
de negação do poder pontifício.
O rei, como quem desprezasse esta resposta, não julgou que devesse acrescentar algo
à sua última edição da Apologia. Mas, quase no início do Prefácio Prefácio , após investir
amargamente contra o autor da resposta, e após queixar-se gravissimamente das injúrias,
das afrontas, e de outros defeitos quanto ao modo em que foi escrita, o rei concluiu
dizendo que nunca respondeu diretamente àquilo que era o eixo da questão. E, nesta
ocasião, declara que houve apenas dois capítulos sobre os quais dissertou na Apologia:
Primeir
Primei ro, para provar
provar que no juramento de fidelidade
fideli dade não se contém nada senão a
obediência meramente civil e secular que os súditos devem aos príncipes soberanos.
Segundo, para mostrar que este poder sobre os reis, iniquamente usurpado pelos
ontífices, conflita com as Escrituras, os concílios e os Padres.
Ora, destes dois capítulos, tratamos extensamente sobre o último nos livros III e IV,[
304 ] onde respondemos de modo assaz direto a tudo que o rei aduz naquela parte da
pologia e no Prefácio
Prefácio ; por isso, não mais tocaremos neste tema.
Já o outro, que julgamos ser mais breve e claro, perseguiremos resumidamente
também neste livro. Mas, para que tampouco o rei nos objete que nos afastamos do
escopo, propô-lo-emos novamente de modo um pouco mais extenso e distinto.

[ 301 ] NICHOLASS ANDER, De Origine ac progress


progressuu schismatis anglicani libri
li bri tres
tres,, Roma, 1586, I, pp. 104-5.
[ 302 ] Op. cit.,
cit., III, pp. 368-9.
[ 303 ] O famoso episódio da “conspiração da Pólvora”, protagonizado pelo católico inglês Guy Fawkes.
[ 304 ] Este último ausente desta compilação.

157
Capítulo I
O escopo da presente controvérsia,
o estado desta causa e o método de disputa
que nela se deve observar
1. Os tipos de juramento de fidelidade. 2. É dogma a licitude de um juramento de
obediência civil católica. 3. Vários concílios ensinaram o mesmo dogma. 4. Prova-se
pelo Concílio de Aachen a diferença entre o primado eclesiástico
eclesiásti co e o leigo. A sentença
de Constantino sobre a jurisdição dos bispos. 5. Outrora era inaudito que um príncipe
leigo tivesse jurisdição espiritual. 6. A presente questão não é sobre o segundo ou
terceiro tipo de juramento. 7. O quarto tipo de juramento. 8. Estado e divisão da
controvérsia.

1. OS TIPOS DE JURAMENTO DE FIDELIDADE. – Para que tenhamos diante dos olhos o


próprio
próprio escopo da disputa
disputa e o estado da controvérsia,
controvérsia, é necessário
necessário disti
disting
ngui
uirr os vários
vários
tipos de juramento que podem ser exigidos pelo rei temporal, e que se podem coligir do
que foi dito.
O primeiro pode dizer-se juramento civil
civi l, porque refere-se apenas à obediência civil
em coisas meramente temporais e verdadeiramente pertencentes ao poder do rei.
O segundo é o juramento sagrado ou eclesiástico, ou seja, de obediência somente
eclesiástica ou espiritual, que se presta ao rei temporal como se tivesse o supremo poder
eclesiástico e espiritual. Por este juramento conseqüentemente se abjuram o poder do
pontífice
pontífice e a devida obediência
obediência a ele.
O terceiro pode dizer-se juramento misto
mi sto clara e abertamente, porque por ele se faz
expressamente profissão dos dois poderes no rei temporal, e se lhe prometem as duas
obediênci
obediências;
as; conseqüentemente, também ambas são abjuradas ao pontífice.
O quarto pode dizer-se juramento misto velado, porque por ele jura-se
expressamente a obediência civil, mas, veladamente e sob palavras menos claras, nega-se
a obediência devida ao pontífice e se a atribui ao rei.
2. É DOGMA A LICITUDE DE UM JURAMENTO DE OBEDIÊNCIA CIVIL CATÓLICA. – Sobre o
primeiro
primeiro tipo
tipo de juramento, como
c omo disse, não há nenhuma controvérsia
controvérsia entre o pontífice e
o rei da Inglaterra. Embora de fato o rei se queixe de que o pontífice lhe fez injúria e
injustiça ao proibir seus súditos de lhe prometer e observar a obediência civil, na verdade
isto não é assim, como observou com razão Belarmino na resposta ao PrefácioPrefácio [ 305 ]
régio e à Apologia, ao responder às objeções contra o primeiro breve pontifício.[ 306 ]

159
Pois em nenhum dos dois breves pontifícios encontra-se uma repreensão de tal
uramento, nem pode o rei alegar algum autor católico que julgasse que tal tipo de
uramento não condiz com a fé católica. Por isso, é em vão que se esforça o rei, em sua
pologia ,[ 307 ] para provar pelas Escrituras, concílios e Padres que se deve aos reis
obediência civil em consciência, e que é lícito o juramento pelo qual se a promete,
porque todos confessamos que isto é não apenas verdadeiro,
verdadeiro, mas também dogdogma
ma
católico.
Mas os testemunhos alegados pelo rei provam isto e não outra coisa, como
mostramos no livro III,[ 308 ] discorrendo ex professo sobre cada um deles. E os
testemunhos dos Padres que ele mesmo aduz indicam-no claramente, pois, ou distinguem
as duas obediências, ou expressam-se moderando e delimitando.
Por exemplo, quando Agostinho dizia que os soldados cristãos obedeciam a Juliano,
embora fosse apóstata e infiel, acrescentou em seguida: Mas, quando se tratava de
Cristo, não reconheciam senão o que estava no céu.[ 309 ] Também Tertuliano, ao
dizer: Cultuamos o imperador, acrescenta em seguida: do modo que nos é lícito e que
lhe convém.[ 310 ] E encontramos coisas semelhantes em Graciano.[ 311 ]
3. VÁRIOS CONCÍLIOS ENSINARAM O MESMO DOGMA. – Tampouco é menos supérfluo o que
o rei colige dos IV, V, VI e X Concílios de Toledo em sua Apologia, no início da resposta
à epístola de Belarmino, para provar que seu juramento de fidelidade deve ser observado
por todos os súditos.
Pois aqueles concílios tratam do juramento de fidelidade puro, lícito, e honesto, que
então se fazia na Espanha aos seus reis, e que ainda hoje se faz e se observa
fidelissimamente. Realmente, não ocorreu aos padres daqueles concílios que pudesse
haver na Igreja Católica outro tipo de juramento, pelo qual prometeriam obediência
eclesiástica ao príncipe temporal, ou lhe reconheceriam algum poder espiritual, ou o
abjurariam com relação ao pontífice.
Por isso, no X Concílio de Toledo,[ 312 ] capítulo 2, diz-se expressamente: Se há
algum religioso, desde o bispo até o clérigo de ordem ínfima, ou um monge, que violou
com vontade profana os juramentos gerais para o bem do rei, da gente ou da pátria,
seja ele imediatamente
imedi atamente pri vado da própria dignidade
digni dade e excluído de seu posto e de sua
honra. Estas palavras declaram suficientemente que o discurso trata dos juramentos
gerais, que se costumam fazer em qualquer república humana para a sua conservação,
para a obediência
obediência civil
civil, e para assegurar ao rei a vida e as suas coi
c oisas.
sas.
De modo semelhante, os outros concílios falam abertamente do juramento que se
costumava fazer não só entre os fiéis, mas também entre quaisquer gentios. Daí que o IV
Concílio de Toledo,[ 313 ] capítulo 75, afirme o seguinte: De fato, é um sacrilégio
sacrilégi o as
entes violarem a fidelidade prometida a seus reis, porque não só transgridem o pacto
contra eles, mas também contra Deus, em cujo nome se oferece a própria promessa. E
os demais falam do mesmo modo.
Tratam, portanto, do pacto comum entre rei e reino, firmado por juramento de
fidelidade, que é juramento puramente civil e político, sobre o qual não há controvérsia.

160
Portanto, aqueles concílios parecem ter sido aduzidos mais para aparência e aparato do
que para provar a causa.
Tampouco pertence ao escopo da disputa o cânon 12 do II Concílio de Aachen[ 314
] sob o rei Luís e sob Gregório IV, em seu segundo artigo ou parte, onde são condenados
em geral os que se insurgem contra o rei, ou que não lhe observam o juramento de
fidelidade. Pois também este concílio fala do simples juramento civil, seja porque até
então não se ouvira na Igreja outro juramento feito aos reis, seja também porque o
concílio propõe como fundamento: É evidente que qualquer um que resi resi sta ao poder
dado por Deus resiste à ordenação de Deus, segundo o ensinamento apostólico. Ora, o
poder do rei é apenas civi
civill. Logo, o concíli
concílio fala de juramento deste mesmo tipo.
4. P ROVA-SE PELO C ONCÍLIO DE A ACHEN A DIFERENÇA ENTRE O PRIMADO ECLESIÁSTICO E O
LEIGO. A SENTENÇA DE C ONSTANTINO SOBRE A JURISDIÇÃO DOS BISPOS. – Mas se o rei da
Inglaterra, como convém, põe fé neste soleníssimo concílio, peço-lhe antes que considere
atentamente o primeiro fundamento lançado.
Pois logo no princípio os padres assim dizem:[ 315 ] Primeiramente,
Primei ramente, pareceu
pareceu que a
norma da religião universal e da disciplina eclesiástica consiste em duas pessoas, isto
é, na pontifical e na imperial. E este primeiro fundamento se confirma com a
autoridade de Gelásio,[ 316 ] que antepunha a autoridade do Papa ao poder dos reis; daí
o testemunho de Fulgêncio: Quanto ao pertinente à vida deste tempo, não se encontra
na Igreja nenhum superior ao Papa, nem no século nenhum superior ao imperador
cristão.[ 317 ]
E na terceira parte do mesmo concílio transmitem-se muitas coisas sobre o ofício e o
poder régio
régios;
s; no capítulo
capítulo 5 da referida parte, relata-se
relata-se o dito
dito de Constantino[
Constantino[ 318 ] aos
bispos:
bispos: Deus vos deu o poder de julgar também a nós, e por isso nós somos retamente
ulgados por vós, mas vós não podeis ser julgados pelos homens.
Portanto, quando os concílios decretam que se devem observar os juramentos de
fidelidade feitos aos reis, não confundem a obediência civil com a eclesiástica, mas
estabelecem que se deve render a cada um o que é seu, a César o que é de César, e a
Deus o que é de Deus.
E assim não há controvérsia nenhuma sobre o primeiro juramento de fidelidade e de
obediência apenas
ape nas civil.
civil.
5. OUTRORA ERA INAUDITO QUE UM PRÍNCIPE LEIGO TIVESSE JURISDIÇÃO ESPIRITUAL. –
Sobre o segundo tipo de juramento, porém, pelo qual um vassalo fiel de um rei cristão
reconhece-o como suprema cabeça ou governador da Igreja em coisas eclesiásticas e
espirituais, e lhe promete obediência nas mesmas coisas espirituais, não houve outrora na
Igreja Católica nenhuma controvérsia, porque nunca se ouviu nela tal juramento, uma
vez que sua matéria sempre foi julgada sacrílega e contrária à doutrina da fé.
Mas, a partir do tempo de Henrique VIII, aquele juramento começou a ser
introduzido no reino da Inglaterra. A princípio o próprio rei não ousou propô-lo nas
assembléias do seu reino, porque era coisa nova e inaudita, e sabia que seria acerbíssima

161
aos homens católicos e especialmente aos eclesiásticos. E por isso ele coagiu Rochester,
homem de grande autoridade, a propô-lo e a persuadir os outros com sua autoridade.
Mas ele, embora não ignorasse a iniqüidade do juramento, foi induzido por temor ou
por razões humanas, e obedeceu então ao rei;rei; propôs aos outros bispos o juramento não
simpli citer , mas com certa limitação acrescida, a saber: No que lhes seja permitido
simpliciter permiti do e
lícito pela palavra de Deus.[ 319 ] Depois, porém, ele se arrependeu gravissimamente
deste erro procedente da fragilidade humana, e protestou publicamente que não deveria
haver admitido o juramento com aquela exceção, como se se tratasse de coisa dúbia;
antes deveria, pela palavra de Deus, haver manifestado a verdade para que outros não
fossem induzidos ao engano.
E assim, desde então, os cismáticos e tímidos começaram a aprovar e a prestar o
uramento; mas os católicos, a detestá-lo e evitá-lo. E o mesmo dissídio entre os católicos
e os heréticos dura até agora, e perdurará perpetuamente enquanto os cismáticos
permanecerem em seu erro, pois pois para nós é certo que a fé católi católica condena tal
uramento.
6. A P RESENTE QUESTÃO NÃO É SOBRE O SEGUNDO OU TERCEIRO TIPO DE JURAMENTO. –
Contudo, a questão de que se trata agora não é sobre este juramento, pois o rei da
Inglaterra bem sabe que a fé romana o condena, e que seus verdadeiros e constantes
súditos católicos não devem prestá-lo.
Ainda mais (como veremos adiante), por esta razão disse ele que mudara a fórmula
do juramento: para que seus súditos não fossem induzidos com ingente perigo a tais
angústias. Embora, de fato, ele e outros protestantes anglicanos opinem, segundo seu
erro privado, que aquele juramento é lícito, porque consideram tal promessa como de
coisa lícita e devida, não negam nem podem negar – se querem valer-se da razão natural
– que é iníquo prestar tal juramento contra a consciênci
consciência,
a, seja com intenção
intenção de não
cumpri-lo, seja crendo que tal obediência só se deve render ao Sumo Pontífice.
Por tal razão, sobre este ponto não resta entre nós controvérsia sobre o juramento,
mas sim sobre a sua matéria, que coincide com a controvérsia sobre o primado, que foi
tratada no livro III.
7. O QUARTO TIPO DE JURAMENTO . – E pela mesma razão não há questão acerca do
terceiro juramento, que compreende abertamente ambas as obediências, civil e
eclesiástica.
Como, efetivamente, o bem procede de causa íntegra e o mal de algum defeito, e
uma parte da matéria de tal juramento é perversa, é manifesto que todo o juramento é
iníquo. Pois, assim como uma proposição copulativa que tem uma parte falsa é
simpli citer falsa, assim também este juramento é simplici
simpliciter ter iníquo e detestável, porque
simpli citer
por ele se promete copulativamente
copulativamente (por assim
assim dizer)
dizer) obediênci
obediênciaa ci
c ivil
vil e eclesiásti
eclesiástica
ca ao
a o rei
como suprema cabeça.
Finalmente, quem crê que o rei temporal é supremo nas coisas temporais e
espirituais, embora não erre na primeira parte, mas apenas na segunda, é simpliciter simpli citer
herético, porque uma única heresia é suficiente para constituir um herege. Portanto, de

162
modo semelhante, esse juramento é profissão de certa heresia, e por conseguinte é
abominável.
O mesmo não deve ser menos evidente e certo com respeito à quarta forma de
uramento, na qual se propõe promessa de obediência civil ao rei e abjuração da
obediência pontifícia, não claramente, mas encoberta e simuladamente; porque em moral
estas duas coisas equiparam-se, e pouco importa para a constância da fé que a verdade
católica seja negada abertamente ou sob alguma cobertura ou simulação. Por isso, a
controvérsia principal tampouco versa sobre este ponto.
Mas, como os ignorantes podem pô-lo em dúvida, confirmaremos a dita verdade
mais abaixo, em lugar oportuno.
8. ESTADO E DIVISÃO DA CONTROVÉRSIA. – Portanto, o ponto principal sobre o qual o rei
constituiu a controvérsia não é de jure, por assim dizer, mas de facto, isto é, se na forma
última de juramento inventada pelo rei da Inglaterra exige-se dos súditos somente a
obediência civil, mas de nenhum modo a eclesiástica, nem expressamente, nem
tacitamente, nem de maneira encoberta ou velada. E se, de modo semelhante, se renega
por aquele
aquele juramento o primado
primado do P apa e sua soberania
soberania espiri
espiritual
tual,, ou se apenas se faz
profissão
profissão da soberania
soberania régi
régia em sua própria
própria ordem e grau, sem profissão
profissão do poder
espiritual que se usurpa.
Pois o rei da Inglaterra defende que naquele juramento somente estão contidas uma
promessa de obediência
obediência puramente civil
civil e uma profissão da soberania
soberania régia
régia temporal.
De fato, assim fala no Prefácio
Prefácio :[ 320 ]Com tanta dedicação e tanta solicitude cuidei
ara que nada se contivesse neste juramento além da promessa de fidelidade e de
obediência temporal que a própria natureza prescreve a todos os que nascem no reino.
E mais abaixo observa que escreveu uma Apologia, em que se encarregava de provar
que nada está contido naquele juramento a não ser o que diz respeito à obediência
meramente civil e temporal, tal qual é devida pelos súditos aos príncipes soberanos .
E repete o mesmo em outros lugares, tanto do Prefácio
Prefácio como da Apologia, dos quais
referi algumas coisas no prólogo precedente.
É isto, portanto, o que devemos examinar primeiro. E primeiro dissertaremos sobre a
própria
própria coisa
coisa considerada
considerada em si mesma, e, discorrendo
discorrendo por cada uma das partes da
fórmula de juramento (como o rei as parece postular), mostraremos o quanto ele é
injusto e contrário à fé. Depois responderemos facilmente ao que se objeta contra os
breves pontifício
pontifícios.
s.

[ 305 ] Cap. 2.
[ 306 ] No parágrafo “Pergit deinde auctor”, etc., in Apologia Robertii S. R .E. Cardinalis Cardinalis Bellarmini pro
pro
responsione sua ad librum Iacobi Magnae Britanniae Regis cuius titulus est Triplici nodo triplex cuneus; in qua
Apologia reff
ef f elitur Pr
P refatio
ef atio monitoria Regis eiusdem,
eiusdem, Roma, 1609, p. 202.
[ 307 ] Apologia pro pro Iuramento
I uramento Fidelitatis,
Fi delitatis, Responsio ad primum Breve Pontif icis,
icis, Londres, Opera Regia, 1609,
pp. 17-35.
17- 35.
[ 308 ] Cap. 9.
[ 309 ] Enarratio in psalmum CXXIV , 7, 3 (PL 37, 1654).
[ 310 ] Ad Scapulam,
Scapulam, II (PL 1, 700A).
[ 311 ] Decretum
Decretum Gratiani,
Gratiani, Veneza,
Veneza, 1595, II, C. 11, q. 1, c ols. 1-50, pp. 840-854.

163
[ 312 ] Concilium Toletanum X, Mansi 11, 34D-E.
[ 313 ] Concilium Toletanum IV , Mansi 10, 638A-B.
[ 314 ] Concilium Aquisgra
Aqui sgranense
nense II, Mansi 14, 679B-C.
[ 315 ] Mansi 14, 673A-B.
[ 316 ] P APAG ELÁSIOI, Epistolae et decreta
decreta,, 8 (PL 59, 42).
[ 317 ] F ULGÊNCIO DER USPE , De Veritate
Veritate praedestinationis,
praedestinationis, II , cap. 22 (38) (PL 65, 647D).
[ 318 ] V. nota 264 supra
supra.
[ 319 ] De Origine ac progressu
progressu schismatis
schismatis anglicani libri
li bri tres
tres, Roma, 1586, I, p. 106.
[ 320 ] Op. cit.,
cit., p. 12.

164
Capítulo II
Se na primeira parte da fórmula do juramento
se propõe algo
al go para além
al ém da obediência
obediênc ia civi
ci vill e
contrário à obediência eclesiástica
1. Vide o livro Sobre o Juramento, I, cap. 13, n. 8, 21 e seguintes.
segui ntes. 2. Mostra-se que na
primeira
primei ra parte do juramento oculta-se um veneno. 3. Exclui-se
Exc lui-se uma evasiva.
evasi va. 4. Pelas
ditas palavras se abjura o poder do Papa. 5-6. A razão principal. 7. Outros erros
contidos nesta cláusula. 8. Outro erro. 9. O último juramento contém os primeiros
virtualmente.

1. VIDE O LIVROSOBRE O JURAMENTO, I, CAP CAP. 13, N. 8, 21 E SEGUINTES. – A dita fórmula


do juramento se divide em quatro partes ou parágrafos. A primeira está em seu início; a
segunda, no parágrafo Igualmente juro juro; a terceira, no parágrafo Ademais juro juro; e a
quarta, no parágrafo E crei
creioo também. Elas devem ser discutidas, e é preciso considerar
atentamente se em todas e em alguma delas se mostra verdadeiro o que rei pronunciou:
que nada há no juramento a não ser o que diz respeito à obediência meramente civil e
temporal.
Mas antes que desçamos às partes individuais, advirto que outros observaram que o
verbo “juro” não se apõe à primeira e à última cláusula, e por isso nelas não se juraria;
portanto, daquelas
daquelas coisas
coisas que nelas
nelas se propõem não se requereria
requereria tamanha certeza da
verdade, que não se possa confessá-las sem culpa (ao menos grave), ainda que nelas não
se creia – ao contrário do que se daria com a certeza necessária das outras duas partes
professadas sob juramento.
Mas esta consideração é falsa e perniciosa.
Primeiro, porque é certamente verdade que também se professa sob juramento aquilo
que se encontra na primeira e na última parte. Pois na primeira se diz: Em minha
consciência perante Deus, duas expressões que a rigor costumam ser fórmulas de
uramento. E, embora sejam ambíguas se tomadas separadamente, ajudam-se uma à
outra quando juntas, e determinam seu significado ao modo de uma indubitável fórmula
de juramento.
E a certeza aumenta pela solenidade do juramento, quer por sua matéria, quer porque
se diz imediatamente na segunda cláusula: Igualmente juro juro, quer por outras coisas que
direi agora.
Pois na última cláusula também se põe a expressão em minha consciência, donde se
supõe tratar-se de um juramento simpliciter
simpli citer,, tão válido quanto a todas as suas partes,

165
que o pontífice não pode isentar ninguém de nenhuma delas. E, para tirar toda a dúvida,
diz-se abaixo: Todas estas coisas reconheço e juro claramente e sinceramente. E no fim
conclui-se: Na veraz fé de varão cristão,
cri stão, e assim me ajude Deus. Estas últimas palavras
são suficientes para jurar todo o dito anteriormente, como também se depreende do
direito canônico, no capítulo EgoN. (título De iur eiurando).
i ureiurando
Mas acrescento por último que, como na primeira parte se diz reconheço e professo,
e na última se diz creio, e a matéria pertence aos dogmas da fé, mesmo se não
interviesse juramento seria pecado gravíssimo confessar ou professar algo falso nesta
matéria, porque seria contrário à confissão da fé, que é necessária à salvação, como São
Paulo testemunha em Romanos [10:9].
2. MOSTRA-SE QUE NA PRIMEIRA PARTE DO JURAMENTO SE OCULTA UM VENENO. – Portanto,
suposto isso, lê-se primeiro no próprio início do juramento: Eu, N.N., verdadeiramente
verdadeiramente e
sinceramente reconheço, professo,
professo, testifico
testifi co e declaro
declaro em minha consciência
consciênci a perante
Deus e o mundo, que nosso soberano senhor, senhor, o Rei Jaime, é rei legítimo e verdadeiro,
verdadeiro,
etc. Advirto que, embora estas palavras propostas e entendidas singelamente nada
pareçam conter de modo expresso
expresso senão uma profissão
profissão de domínio
domínio e de reino
reino temporal,
temporal,
ainda assim oculta-se um veneno nas palavras: nosso soberano senhor, o rei .
Pois, segundo a intenção daquele que fala – e por outra fórmula de juramento jamais
retratada, e bastante conhecida por sua profissão pública e por seus escritos –, e segundo
o sentido vulgar e aceito naquele reino, a expressão soberano senhor significa ser
soberano simplici ter tanto nas coisas espirituais quanto nas temporais: soberano – repito
simpli citer
– positivamente
positi vamente em seu reino, porque está por sobre todos, tanto leigos quanto
eclesiásticos, tanto nas coisas temporais quanto nas espirituais; e negativamente com
relação ao mundo todo ou à Igreja (porque nela não reconhece nenhum superior).
Portanto, como nessa mesma forma de juramento todo aquele que assim jura é
coagido a reconhecer o rei como senhor soberano, é coagido a confessar tacitamente o
seu primado supremo sobre toda a Grã-Bretanha e Irlanda, e sua desobrigação de todo
poder superior;
superior; conseqüentemente, é coagi coagido a abjurar a soberania
soberania espirit
espiritual
ual do
pontífice.
pontífice.
Assim, portanto, naquela única expressão nosso soberano senhor está contido algo
para além da obediência
obediência civil
civil e temporal.
temporal.
3. EXCLUI-SE UMA EVASIVA. – Dirá alguém: seja esta a intenção do rei, o que certamente
não se pode negar; ele apenas deliberadamente não a expressou na própria fórmula, para
não causar nos papistas (como ele mesmo fala) escrúpulo de consciência – do qual agora
poderão facilmente
facilmente desfazer-se, não jurando segundo
segundo a intenção
intenção daquele
daquele que fala,
fala, mas
segundo o simples soar das palavras e num sentido acomodado que aquelas palavras
podem dar, entendendo-as apenas acerca
ace rca do domínio soberano nas coisas temporais.
temporais.
Porém, embora esta fuga possa sustentar-se especulativamente – como dizem – e
abstratamente (uma vez removido o escândalo), ainda assim, segundo o uso e a praxe em
tal lugar, e entre tais pessoas, e com as outras circunstâncias e com o perigo de escândalo
que ali concorre simultaneamente, é difícil poder separar-se daquelas palavras tal

166
significado. Conseqüentemente, será ela uma confissão e profissão externa do poder
absolutamente soberano do rei em toda matéria, sem nenhuma limitação além daquela
que se adiciona nas próprias palavras: que se trata das terras sujeitas a seu domínio. E
esta limitação eleva as demais palavras, de modo que estas se devam entender sem
limitação alguma. E muito mais o declaram as palavras subseqüentes, onde já não velada,
mas expressamente estende-se o juramento para além da obediência civil e temporal.
4. P ELAS DITAS PALAVRAS SE ABJURA O PODER DO P APA. – De fato, acrescenta-se: E que o
apa, nem por si mesmo, nem por outra autoridade qualquer da Igreja ou da Sé
Romana, nem por qualquer intermédio
intermédi o com quaisquer outros,
outros, não tem poder nem
autoridade para depor o rei. Pergunto eu: quem diria que por estas palavras se postula
dos súditos apenas a obediência civil devida por eles aos príncipes soberanos?
Certamente os outros reis da Igreja são príncipes não menos soberanos nas coisas
temporais do que o rei da Inglaterra, e, contudo, tampouco eles exigem tal obediência,
nem crêem que ela lhes é devida dos súditos, nem estes a reconhecem. Portanto, o rei da
Inglaterra declara abertamente falar de si mesmo e opinar como quem o faz de um
príncipe
príncipe soberano que não tem na terra nenhum superior
superior – e postular
postular dos súditos
súditos esta
profissão
profissão pelo referido
referido juramento.
Além disso, mediante aquelas palavras, o que se faz não é tanto jurar obediência ao
rei, quanto abjurar o poder do Papa.
Ora, não pertence ao poder civil ou temporal do rei (nem à obediência civil que lhe é
devida) tratar do poder do Papa ou propor o seu juramento ou abjuração.
Logo, aquelas palavras evidentemente excedem os termos da obediência civil.
Primeiro, porque as próprias palavras significam algo distinto, para além da obediência
civil devida ao rei, como elas mesmas manifestam. Segundo, porque o próprio ato de
exigir tal juramento e de obrigar a professar isto ou aquilo sobre o poder do pontífice é
ato de jurisdição mais que civil; de fato, é de jurisdição superior, ou de jurisdição não
submetida ao poder do pontífice, porque não pertence ao poder civil prescrever os limites
do poder espiritual, especialmente do poder espiritual soberano.
Portanto, expresso em termos teológicos, de dois modos o rei postula uma obediência
mais que civil por aquelas palavras. Primeiro, in actu signato,[ 321 ] ao propor matéria
não civil; segundo, in actu exercito,[ 322 ] ao usar de poder mais que civil e coagir os
súditos a que se submetam a ele, e reconheçam-no por professá-lo.
5. A RAZÃO PRINCIPAL. – Ocorre que, por aquelas palavras, propõe-se a profissão de certo
erro contrário à doutrina aprovada por toda a Igreja.
Embora a matéria seja realmente eclesiástica, a usurpação de jurisdição seria até
tolerável de algum modo, se a doutrina proposta fosse verdadeira. Porém, como a
própria
própria forma do juramento contém erro e compele
compele os súditos
súditos a professá-lo,
professá-lo, ele
ele não só
exige algo além da obediência civil, mas também coage a abnegar o poder pontifício e a
confessar algo contrário à sã doutrina.
Isto se mostra suposto, porque aquele artigo do juramento inclui a seguinte
proposição
proposição (e a fé nela):
nela): Nem o pontífice nem a Igreja
Igreja universal
uni versal têm poder de depor um

167
rei batizado em nenhum caso, por qualquer causa ou culpa. Pois, embora na própria
forma do juramento não se acrescentem expressamente todas estas expressões ( em
nenhum caso, por qualquer causa ou culpa), elas estão contidas em outras equivalentes,
por certo quando se dizdiz que o P apa, nem por si,
si, nem por outros, nem por intermédio
intermédio de
quaisquer outros, tem poder ou autoridade para depor o rei. Ora, se não tem nenhum
poder,
poder, tampouco tem a faculdade
faculdade de punir,
punir, nem tem, por qualquer
qualquer outro título,
título, poder
eficaz para tal efeito ou deposição.
E isto mesmo é ampliado por outras cláusulas, a saber, que o Papa não tem o poder
de dispor dos reinos constituídos sob o domínio do rei, nem de conceder a outro rei
autoridade para invadi-los.
Pois todas estas coisas pendem daquele princípio: que o Papa não pode coagi-lo pela
referida pena de deposição, mesmo que seja herético ou cismático ou perseguidor dos
católicos, nem pode usar de quaisquer meios de coação temporal ou corporal para puni-
lo, ou para defender a Igreja e livrar os católicos de tamanho perigo.
Mas já se mostrou suficientemente no livro III[ 323 ] quão falso é este dogma, e
quão alheio aos princípios da fé, ao uso da Igreja e também a toda reta razão, supondo-
se o ofício pastoral que Cristo encomendou a seu vigário. Por isso, não me demorarei
sobre este ponto no presente livro.
6. Finalmente, há outra cláusula da mesma ordem com que se conclui essa parte do
uramento, na qual o rei coage seus súditos a jurar que no pontífice não há poder
nenhum de exonerar nenhum de seus súditos da obediência e sujeição à Sua
ajestade, ou de dar licença a nenhum deles para portar armas contra ele, semear o
tumulto, ou causar qualquer violência ou dano à pessoa de Sua Majestade, ao Estado,
ao regime, ou a quaisquer de seus súditos sob os seus domínios.
Esta cláusula é quase da mesma ordem que a precedente e procede do mesmo erro, a
saber, que o pontífice não tem nenhum poder de coagir o rei pela violência corporal ou
por outras penas temporai
tem porais,
s, doutrina que foi mostrada errônea no mesmo livro
livro III.
Por tal razão também nessa cláusula se propõe algo para além da obediência civil, se
usurpa o poder espiritual, e os súditos são coagidos no mesmo juramento a professá-lo e
reconhecê-lo no rei. E, por fim, também o poder pontifício é abjurado, e jura-se um erro
contrário à doutrina da fé.
7. O UTROS ERROS CONTIDOS NESTA CLÁUSULA. – Ainda mais: novos erros estão envolvidos
aqui.
Um deles é o de que o Papa não tem poder de relaxar juramentos, mesmo que
interceda causa justa e razoável, o que é contra o costume eclesiástico e contra o uso e a
aprovação dos concílios gerais;[ 324 ] ademais, é também contrário ao consenso dos
doutores católicos, e contra o poder dado a São Pedro de ligar e desligar, assim declarado
pelo
pelo uso e costumes de todo o povo cristão.
Além disso, é também contra a razão, pois sempre em semelhantes juramentos se
inclui uma condição tácita, a saber, que a promessa pode cumprir-se sem notável dano e
perig
perigo para quem jura, maximamente
maximamente quando o perig
perigo e o dano provêm da injúria
njúria ou da

168
violência daquele a quem se faz a promessa. Ou se subentende o direito reservado do
superior que, não obstante a promessa feita pelo súdito, pode proibi-lo de cumpri-la ou
de executar a ação prometida, se uma causa justa e razoável interceder; e
conseqüentemente pode relaxar o juramento, proibindo sua matéria.
Por fim, este erro supõe o primeiro. Pois, se o Papa pode depor o rei,
conseqüentemente é necessário que possa retirar o vínculo de obediência e juramento,
pois
pois não se promete obediênci
obediênciaa a Jaime
Jaime enquanto Jaime,
Jaime, mas enquanto rei.
rei. Daí que, se
deixa de ser rei, por isso mesmo não se lhe deve obediência, e por conseqüência
tampouco o juramento obriga: removida a matéria do juramento, é conseqüentemente
necessário que se retire a obrigação do juramento.
8. O UTRO ERRO. – Outro novo erro é que não só se nega ao pontífice o poder de depor o
próprio
próprio rei herético,
herético, mas também o poder de coagicoagir seus súditos
súditos por penas de mesmo
tipo, como vemos pela expressão quaisquer de seus súditos.
De fato, com respeito ao sentido destas palavras deve advertir-se que não há quem
ensine que o pontífice pode dar, a seu arbítrio e sem uma razão cogente de justiça,
licença a algum príncipe para tomar armas contra outro rei ou seus súditos, ou para lhe
infligir alguma violência ou prejuízo – assim como não pode, por mero arbítrio, dar
licença aos súditos para excitar turbas contra seu rei, o que se parece atribuir ao Papa no
decorrer da referida obra, como no fim do livro III observamos e refutamos. Em
verdade, que pontífice alguma vez arrogou a si tal poder? Que católico ou homem
munido de razão alguma vez o ensinou ou pregou?
Não é mister
mister,, portanto, encobrir
encobrir ou pali
paliar aquelas
aquelas palavras,
palavras, fing
fingiindo ser seu sentido
sentido
que o Papa não possa dar aquela licença “arbitrariamente e sem causa”, pois isto é algo
que nem o rei teme, nem vem à mente dos homens.
9. O ÚLTIMO JURAMENTO CONTÉM OS PRIMEIROS VIRTUALMENTE. – O sentido, portanto, é
que o pontífice não pode infligir qualquer violência ou dano, não só ao rei, mas
tampouco aos seus súditos; tampouco pode dar a alguém licença para agir de modo
semelhante contra os súditos do rei da Inglaterra, mesmo que sejam apóstatas e rebeldes
à Igreja Romana, ou semeadores ou fomentadores de cismas e heresias.
Deste modo dizemos, portanto, que naquelas palavras está contido um erro grande e
novo, ou pelo menos o mesmo erro sobre aquele primado mais explicitado. De fato, que
outra coisa é isso senão a profissão dos súditos do rei da Inglaterra de que não têm no
mundo outro superior além do próprio rei, e que ele não pode ser coagido ou punido por
seus crimes, mesmo que sejam perniciosos aos outros católicos e à Igreja de Cristo?
Portanto, por todas as cláusulas, seja de maneira suficientemente expressa, seja ao
menos implicitamente, nega-se e abjura-se a soberania do pontífice, e se lha atribui ao
rei.
Donde se conclui ser falso não estar exigido no juramento algo além da profissão de
obediência temporal e civil; pelo contrário, vê-se muito verdadeiramente que se trata de
um juramento misto, e que ele contém em virtude tudo que se propunha nos anteriores.

169
E não vejo o que se possa responder com alguma aparência de probabilidade a estas
razões. Quanto a certa evasiva que o rei insinua, dela trataremos no próximo capítulo.

[ 321 ] In actu signato:


signato: diretamente. Diz-se quando a intenção do agente é expressa diretamente em suas palavras.
[N. T.]
[ 322 ] In actu exercito
exercito:: indiretamente. Diz-se quando a intenção do agente é expressa indiretamente, por suas
ações e não por suas palavras. [N. T.]
[ 323 ] Livro III, caps. 23 e 27, ausentes desta edição.
[ 324 ] Sextus liber Decretalium,
Decretalium, Paris, 1513, II, tit. 14, cap. 1, fol. cxxi: “Papa imperatorem
imperatorem deponere
deponere potest ex
causis legitimis”
legitimis” [“O Papa pode depor o imperador por causas legítimas”].

170
Capítulo III
Na segunda parte do juramento se apresenta
apresenta também algo
al go
para além
al ém da obediência
obediênc ia civi
ci vill e contrário
c ontrário à eclesi
ecl esiástica
ástica
1. Prefácio. 2. O duplo sentido da segunda parte do juramento. O primeiro sentido é
excluído, e se mostra que é alheio à mente do rei. 3. Mostra-se que contém erro o
segundo sentido intentado pelo rei. 4. Naquela parte do juramento inclui-se
i nclui-se a profissão
de um erro contra a fé. 5. Exclui-se uma evasiva. 6. As palavras seguintes do
uramento contêm erro semelhante à precedente. Outro erro ali incluído. 7. Licitamente
os súditos podem e devem revelar uma traição contra o príncipe. Limitação. 8-9. Se se
toma a traição em sentido impróprio, não se deve revelá-la. Nem tal revelação pode
ser prometida licitamente
li citamente em juramento. 10. O crime imposto a Garnet. 11. Pode
revelar-se coisa ouvida em confissão por causa razoável, ocultando-se a pessoa.
Primeira
Primei ra limitação
li mitação desta doutrina. 12-13. Segunda limitação.
li mitação.

1. P REFÁCIO. – Esta parte começa com as palavras: Igualmente juro


juro, e não contém quase
nada diferente da precedente, senão que nela se declaram mais ainda todas as coisas que
na primeira parte se abjuram contra o poder do Papa, para que por certo se entenda que
procedem não só do poder extrajudi
extrajudici
ciári
ário,
o, por assim
assim dizer,
dizer, ou do poder de obrar pelas
pelas
forças humanas, mas também do poder de jurisdição e do poder judiciário, que na
segunda parte é negado mais expressamente e é abjurado ao pontífice nas seguintes
palavras:
palavras: Igualmente juro
juro de coração que, não obstante qualquer declaração ou
sentença de excomunhão ou privação, feita ou concedida
concedi da – ou que haja de ser feita
fei ta ou
concedida – pelo papa ou por seus sucessores, ou por qualquer autoridade derivada,
ou que alega ser derivada dele ou de sua Sé, contra o dito rei, seus herdeiros ou
sucessores,
sucessores, e não obstante qualquer absolvição dos ditos súditos com relação à sua
obediência, ainda assim prestarei fidelidade e verdadeira obediência à Sua Majestade,
aos seus herdeiros e sucessores, e defendê-los-ei a ele e aos outros com todas as
minhas forças contra todas as conspirações, e contra quaisquer atentados ou outras
coisas que se fizerem contra a sua pessoa, ou contra a pessoa deles, ou contra a sua
coroa e dignidade, quer tenham sido cometidas pela doutrina ou pelo tom de alguma
sentença ou declaração, quer de outra manei ra.
2. O DUPLO SENTIDO DA SEGUNDA PARTE DO JURAMENTO. O PRIMEIRO SENTIDO É EXCLUÍDO,
E SE MOSTRA QUE É ALHEIO À MENTE DO REI. – Para que, portanto, não se dê nenhum lugar
a subterfúgio, pergunto se o rei entende que pode ser justa a sentença do Papa que depõe
por crimes um rei batizado,
batizado, que confessa ser cristão, ou se ele
ele crê que é sempre injusta.

171
Creio eu que não afirmará o primeiro, pois estaria então induzindo seus súditos a
urar coisa torpíssima, a saber, a não obedecer a uma sentença justa que traz consigo um
preceito
preceito justo. P ois,
ois, se a sentença é justa, também será justo o preceito
preceito pelo
pelo qual se
manda aos súditos
súditos observá-la, porque de outro modo el e la não poderia
poderia ser executada.
executada.
Igualmente, se a sentença de deposição dada pelo Papa contra o rei pode ser justa,
será também eficaz. Tem, portanto, o efeito da pena que impõe. Por isso, visto que a
pena imposta por sentença de deposição
deposição do reino
reino priva
priva o rei ipso facto do domínio e da
propriedade
propriedade do reino,
reino, é uma sentença justa que o priva
priva eficazmente do reino.
reino. P ortanto,
resistir a tal sentença, e defender a pessoa do rei contra a execução de tal sentença, é
contrário à justiça e à obediência devidas ao Papa. Logo, quem crê no primeiro mas jura
o segundo jura coisa claramente injusta e iníqua.
E de outra parte é contraditório querer observar a obediência e a fidelidade a alguém
como verdadeiro rei, que sabes que foi efetivamente deposto do reino por declaração ou
sentença justas. Se o próprio Papa exigisse dos fiéis que jurassem defendê-lo em sua Sé,
e lhe prestassem obediência e fidelidade, não obstante qualquer sentença ou declaração
de sua deposição feita por qualquer concílio geral, mesmo por crime de heresia, tal
uramento seria iníquo, porque seria sobre coisa iníqua e contrária à Igreja e à fé.
Portanto, tal é o juramento do rei se se supõe justa a dita sentença.
Isto, portanto, sem dúvida o rei não admite, tampouco opino que seja tão iníquo
estimador de suas coisas que, embora conceda que possa ser justa a sentença dada pelo
Papa contra algum rei, negue que contra si tal sentença possa ter a mesma eqüidade. Pois
que imunidade ou inocência pode alegar para si maior do que a de outros reis que foram
rebeldes à Igreja Romana ou desertores e impugnadores da fé? Ou, embora não
reconheça em si uma causa digna de deposição, como sabe que não pode havê-la em
seus sucessores, embora ex e xija igual
igualmente
mente juramento sobre todos?
Não há dúvida,
dúvida, portanto, de que o fundamento deste juramento é que tal sentença
não pode ser justa.
3. MOSTRA-SE QUE CONTÉM ERRO O SEGUNDO SENTIDO INTENTADO PELO REI. – Daqui,
portanto, concluímos
concluímos evidentemente
evidentemente que por aquelas
aquelas palavras
palavras se postula
postula dos súditos
súditos do
rei da Inglaterra que jurem que a sentença de deposição contra o rei não pode ser válida
nem justa. Pois em verdade é isto que professam, quando juram não obedecer a tal
sentença, nem observá-la. E disto finalmente concluímos que se lhes pede jurem não
haver no pontífice poder para dar tal sentença.
A prova disto é que o rei crê – e quer que seus súditos creiam – que tal sentença
apenas é injusta por haver sido dada pelo Papa, que não tem poder nem jurisdição sobre
o rei. De fato, o rei tenta por todos os meios quebrar esse jugo e tolhê-lo de si, e por isso
em seu livro freqüentemente repete que não é em nada menor que o pontífice, e que não
há nada entre ele e o pontífice, e coisas similares.[ 325 ]
Nem pode o rei alegar
alegar ou pretender em tal sentença outra razão de injustiça
njustiça que seja
perpétua e que poderia
poderia dar fundamento a essa parte do juramento. P ois, ois, embora no
princípi
princípioo da Apologia ele indique duas outras causas, a saber, que uma disparidade no
culto religioso não é causa suficiente para que os súditos possam conjurar contra o rei,[

172
326 ] e que foi condenado sem sua causa ter sido ouvida (querelas de que tratarei
abaixo), ainda assim nenhuma destas causas é universal e perpétua. E de sua qualidade
nada direi agora.
E assim a forma do juramento não podia fundar-se nessas causas, tanto porque o
pontífice
pontífice ainda
ainda não escrevera o breve de que o rei se queix
queixa, quanto também porque o
uramento não fala de sentença dada (ou por dar) contra o rei ou seus sucessores.
Compreende, portanto, toda e qualquer sentença, seja de parte ouvida, seja de parte não
ouvida, seja por disparidade de religião, seja por quaisquer outros crimes ou qualquer
outra causa.
Logo, a injustiça que o rei supõe na sentença, e sobre a qual fundou a fórmula de
uramento, não existe senão porque ele crê que ela não pode emanar de poder e
urisdição legítimos.
4. NAQUELA PARTE DO JURAMENTO INCLUI-SE A PROFISSÃO DE UM ERRO CONTRA A FÉ. –
Concluo, portanto, que nas palavras do juramento não apenas se postula dos súditos
obediência civil, mas também a profissão deste erro: que o Papa não tem poder nem
urisdição – por qualquer que seja a causa – para dar sentença de deposição contra o rei.
E, conseqüentemente, não é verdadeira esta proposição do rei: Nada se contém naquele
uramento a não ser o que diz respeito à obediência meramente civil e temporal.[ 327 ]
E disto se infere, por fim, que os súditos pecam gravemente ao prestar tal juramento.
Pois professa-se exteriormente que o Papa não tem sobre o rei uma jurisdição pela qual
possa proclamar
proclamar justa sentença de deposição,
deposição, por qualquer
qualquer razão ou de qualquer
qualquer modo
que a dê, observada a ordem que, se não estivesse ausente o poder, a justiça natural
postulari
postularia.
a.
De fato, aquele que presta o juramento, ou crê naquilo que professa, ou não crê. Se
crê, é cismático no coração e nos atos, e erra na doutrina da fé; se porém não crê no que
contém a forma do juramento e ainda assim o jura, peca tanto contra a confissão da fé,
quanto contra a religiosidade do juramento, quer jure sem a intenção de cumprir o que
ura, quer jure com a intenção de observá-lo: porque do primeiro modo é perjuro, e do
segundo modo faz do juramento um vínculo de iniqüidade, e propõe obedecer antes aos
homens do que a Deus, por prometer obediência ao rei contra a justa sentença e preceito
do pontífice.
5. EXCLUI-SE UMA EVASIVA. – Mas se o rei diz que aqueles que juram simpliciter
simpli citer não
entendem tudo que está contido no juramento, respondemos que tal escusa é frívola,
tanto porque tratamos não da ignorância das pessoas, mas da qualidade do juramento –
de sua justiça ou injustiça –, quanto também porque esta ignorância nos católicos
dificilmente pode ser invencível, a não ser que sejam muito rústicos e pouco instruídos
na religião, porque os letrados e peritos facilmente entendem os erros latentes no
uramento, e os que são menos doutos ao menos duvidarão e terão de indagar a verdade.
E ninguém é tão ignorante que possa jurar temerariamente com consciência segura, sem
primeiro
primeiro inquirir
nquirir qual seja o juramento. E isto vale
vale sobretudo para a Ingl
Inglaterra, onde
todos os católicos sabem (mesmo os rústicos) que o rei e seus conselheiros perseguem o

173
pontífice
pontífice com máximo
máximo ódio
ódio e se opõem à fé romana, e vêem na própria própria forma do
uramento abjurar-se muitas coisas contra o pontífice; é portanto necessário que ponham
em dúvida qual seja esta abjuração. Portanto, se juram temerariamente, não se escusam
das gravíssimas culpas que declaramos subjazer ao juramento.
E por fim, como tal juramento resulta no desprezo da Sé Apostólica e no detrimento
da religião cristã, não pode ser admitido sem grande escândalo, e por isso os pastores e
doutores da Igreja que está na Inglaterra não devem calar a verdade e permitir a
ignorância dos simples. Pois em tal evento é mal menor tolerar a aflição temporal, ou
permiti
permitirr a inconstância
inconstância da queda de alguns,
alguns, do que ocultar ou dissi
dissimul
mular
ar a verdade.
6. AS PALAVRAS SEGUINTES DO JURAMENTO CONTÊM ERRO SEMELHANTE À PRECEDENTE.
OUTRO ERRO ALI INCLUÍDO. – E isso que se disse sobre a abjuração iníqua de uma
sentença justa que o pontífice pode dar contra o rei, também pode aplicar-se à
semelhante abjuração que o Papa concederia aos súditos do rei, isentando-os de todo
uramento de fidelidade, e que se faz por estas palavras: Ou por qualquer isenção dos
ditos súditos. Pois estas palavras também excedem a obediência política, porque o Papa
poder ou não poder exi eximir alguém
alguém de juramento não é matéria de obediênci
obediênciaa civi
civil, mas
eclesiástica, atinente à interpretação do poder de ligar e desligar dado a São Pedro por
Cristo Senhor.
Além disso, essas palavras têm conexão com as precedentes e contêm o mesmo erro,
porque a obrig
obrigação de obediência
obediência em qualquer
qualquer ordem ou estado
e stado dura para o súdito tanto
quanto dura no superior a sua dignidade, poder ou jurisdição, pois estas coisas são
correlativas e uma pende da outra. Daí que, tanto nas prelaturas da Igreja quanto nas
magistraturas civis, quando a pessoa superior se depõe da prelatura ou da magistratura,
por esta mesma razão cessa para os súditos
súditos a obrigação
obrigação de obedecer-lhe,
obedecer-lhe, pois
pois já não
estão submetidos a ela. E isto também tem lugar no Sumo Pontífice, se ele renuncia ao
pontificado
pontificado ou é deposto por heresia.
Assim, portanto, se o pontífice pode depor o rei, pode também isentar os súditos da
obediência a ele: logo, há pelo menos o mesmo erro em se abjurar toda isenção de
fidelidade feita pelo pontífice e em se abjurar toda sentença de deposição.
Mas acrescento que nessa parte posterior está envolvido outro erro, porque, mesmo
sem deposição do reino, o pontífice pode preceituar aos súditos que não obedeçam a um
rei pertinaz em algum erro ou em crime público e escandaloso, e isentá-los por ora do
uramento de obediência, mais ao modo de suspensão da obrigação do que de absoluta
privação,
privação, como observaremos abaixo
abaixo ao tratarmos da censura de excomunhão.
excomunhão.
7. LICITAMENTE OS SÚDITOS PODEM E DEVEM REVELAR UMA TRAIÇÃO CONTRA O PRÍNCIPE.
LIMITAÇÃO. – Resta examinar as últimas palavras desse parágrafo, onde se pede um
uramento de promessa especial de revelar toda traição com estas palavras: E empregar
empregarei
ei
todo trabalho para revelar e manifestar à Sua Majestade, e a seus sucessores e
herdeiros, todas as traições e conspirações traiçoeiras contra ele ou contra os seus,
que me vierem ao conhecimento ou ao ouvido.

174
Acerca desta promessa, advirto que, se se assumem tais palavras em seu sentido
simples e próprio, ela é honesta e nada contém que exceda a fidelidade civil ou repugne à
sã doutrina. Pois a traição é crime gravíssimo contra o príncipe ou a república, pois
significa crime de lesa-majestade.[ 328 ]
Portanto, os súditos estão obrigados a revelar a seus reis legítimos tais traições ou
conspirações traiçoeiras, mesmo sem uma promessa especial, tanto pela lei da caridade e
da piedade, e da deferência para com eles e a república, quanto também pelo título de
sujeição e fidelidade, que pela própria lei da natureza devem ao seu príncipe em razão da
sujeição. Por isso, confirmar e aumentar esta obrigação por promessa ou juramento é
honesto e santo.[ 329 ]
É necessário, porém, que as palavras que me vierem ao conhecimento ou ao ouvido
sejam corretamente entendidas como respectivas ao conhecimento meramente humano,
não ao obtido pela confissão sacramental. Pois não é lícito revelar o sigilo da confissão
em nenhum caso, como logo direi.
E, de fato, se as palavras dessa promessa são aceitas simpliciter
simpli citer , como eu disse,
incluem por si aquela explicação e limitação, porque – principalmente entre cristãos e
católicos – aquelas palavras, pronunciadas em geral e indefinidamente segundo seu
sentido comum, não trazem consigo outro sentido nem introduzem maior obrigação.
8. SESE TOMA A TRAIÇÃO EM SENTIDO IMPRÓPRIO, NÃO SE DEVE REVELÁ-LA. N EM TAL
REVELAÇÃO PODE SER PROMETIDA LICITAMENTE EM JURAMENTO. – Mas, embora isto seja
verdadeiro no tocante à força das palavras e sem a consideração de circunstâncias
particul
particulares,
ares, uma vez ponderados todos estes elementos
elementos devemo-nos acautelar de uma
dupla fraude e engano naquelas palavras.
A primeira é que pelo nome de traição o rei não entende apenas aquilo que em
verdade e em realidade é traição, mas também tudo aquilo que considera traição por seu
próprio
próprio juízo ou segundo
segundo os erros das cláusulas
cláusulas precedentes.
Assim, mesmo que o rei seja legitimamente deposto pelo pontífice, e os súditos sejam
por este legi
legitimamente
timamente liberados e isentos do vínculo
vínculo de juramento e obediênci
obediênciaa devida
devida
ao rei, o rei chama de traição ou conspiração traiçoeira toda e qualquer conspiração do
reino, da república ou dos súditos para expulsá-lo e livrar-se de sua tirania (se porventura
a exerça), quando na verdade não é assim: ao contrário, trata-se de defesa, guerra ou
suplício justos, como mostrarei no capítulo seguinte.
Portanto, entendendo-se traição neste sentido, a exação de tal promessa é injusta, e
seria torpe e sacrílego jurá-la.
Primeiro, porque isto, como disse, não é traição. Pois nesse caso deve-se guardar
fidelidade antes à república ou à comunidade dos súditos oprimidos pela violência, do
que ao tirano que os oprime injustamente – porque ele em verdade já não é rei.
Segundo, porque também então obriga o segredo natural, sob o qual se dá o
conhecimento de tal conspiração, porque é sobre coisa justa e necessária para o bem
comum da sociedade, que se defende justamente; por isso, a promessa contrária àquele
segredo nem obriga nem pode ser honesta, e, por conseguinte, tampouco pode ser jurada
santamente.

175
Por tal razão aquelas palavras, consideradas em si mesmas e solitariamente, por
assim dizer, poderiam carecer da presumida suspeita. Contudo, quando unidas às
precedentes, deve-se tomar cuidado,
cuidado, porque o últi
último
mo sentido
sentido em questão parece ser o
maximamente intentado pelo rei.
9. Já a segunda fraude pode ter lugar porque a referida promessa parece fazer-se também
no tocante ao conhecimento obtido por confissão sacramental. Que esta foi de fato a
intenção do rei e daqueles que editaram aquela fórmula de juramento, podemos deduzir
do fato de que para eles não há nenhuma confissão sacramental, e o sigilo da confissão é
considerado como nada; não fazem nenhuma distinção entre tal conhecimento e qualquer
outro. Nem duvidará muito dessa intenção do rei aquele que considerar atentamente o
que ele escreveu sobre o sigilo da confissão no seu Prefácio.
Prefácio. [ 330 ]
De fato, embora ele ali declare que os doutores escolásticos, desde que passaram a
existir na Igreja, asseveraram todos que, quando se revela algo ao confessor sob o véu da
confissão – por mais nocivo ou pernicioso que seja – o confessor é obrigado a ocultar o
nome do confessando, o rei propõe tal doutrina de um modo que parece mais escarnecê-
la. Pois diz: Desde que estes doutores
doutores escolásticos passaram a existirexi stir na Igreja,
Igreja,
começaram também a arruinar os antigos fundamentos da teologia com novos
undamentos tomados da filosofia, significando que a referida posição sobre o sigilo
confessional pertenceria a este erro ou defeito da teologia.
Mas o mundo cristão não ignora que os inovadores atuais têm ódio à teologia
escolástica, ou porque a ignoram, ou porque ela descobre e impugna mais acuradamente
os seus erros. Em verdade, que os fundamentos da doutrina e da posição acerca do sigilo
da confissão são mais antigos que os doutores escolásticos, e que sempre foram e ainda
são os mesmos na Igreja, provamo-lo claramente em outro lugar.[ 331 ] Este tema não
pode ser tratado ago agora
ra de passagem,
passagem, devido
devido à sua digdignidade,
nidade, mas isto tampouco é
necessário, pois no lugar citado o rei não quis discutir sobre essa parte da doutrina.
10. O CRIME IMPOSTO A G ARNET.[ 332 ] – Ele acrescenta, porém, que nenhum dos
antigos escolásticos negou que, se ao confessor fosse revelado algo cuja ocultação
pudesse criar
criar grande prejuízo para a repúbli
república, o confessor poderia
poderia e deveria
deveria – quantas
vezes isso tivesse acontecido – revelar a coisa para prevenir o perigo, embora ocultando
o homem. Ele opina ser tão certa esta doutrina, que a contrária (atribuída por ele aos
esuítas), conteria dogma novo e perigoso, de modo que nem o rei nem a república
podem estar seguros onde se encontram aqueles
aqueles que a defendem.[ 333 ]
Mas ali ele propõe e exagera esta doutrina para acusar a Henry Garnet de ter tido
ciência de uma traição não revelada, e para fazê-lo partícipe desta, não admitindo a sua
escusa do segredo de confissão.[ 334 ] – Isto embora, insatisfeito com tal incriminação,
acrescente depois (e tente prová-lo) que não havia sido na confissão que Garnet tivera
notícia
notícia daquela conspiração, mas fora do sacramento.
Quanto ao fato que diz respeito a Garnet, nada posso dizer com ciência certa, porque
nem estava presente, nem pude ler uma história certa sobre o fato. Sei, porém, que
Garnet, com quem tratei familiarmente por muitos anos, foi ornado por Deus com

176
grandes dotes de espírito. Pois, além da prestância do engenho e da egrégia erudição,
sempre observei nele um grande candor de espírito, e integridade e probidade de
costumes, qualidades que custodiou até a morte, segundo sempre entendi mediante sinais
e indícios certeiros. Por esta razão, não duvido de que tenha observado grande
prudência,
prudência, fideli
fidelidade
dade e verdade ao gu
guardar
ardar o segredo
segredo da traição,
traição, quer antes de ter sido
sido
preso, quer ao prestar a confissão
confissão judicial.
judicial.
Por isso, quando o cardeal Belarmino[ 335 ] afirma que muitas testemunhas – e uma
delas mais grave e excepcionalmente maior que todas – afirmaram santamente que
ouviram da boca de Garnet, à beira de sua morte, que não estivera ciente da traição
senão pela confissão sacramental, creio que se deve dar fé a ambos, ou seja, a Garnet,
que negou ter tido outra notícia, e às testemunhas, que disseram que Garnet o negara.
em nos leve a mal o rei se preferimos o testemunho dos fiéis e católicos aos
testemunhos dos hereges, que se impuseram ao próprio rei.
11. P ODE REVELAR-SE COISA OUVIDA EM CONFISSÃO POR CAUSA RAZOÁVEL, OCULTANDO-SE A
PESSOA. P RIMEIRA LIMITAÇÃO DESTA DOUTRINA. – Mas no que pertence ao direito ou à
doutrina que afirma que, para evitar uma ingente ruína, a coisa ouvida em confissão pode
ser descoberta sem se revelar a pessoa, dizemos que ela é absolutamente verdadeira e
nunca foi negada pelos jesuítas.
Pois Belarmino em sua Apologia admite-a francamente[ 336 ] e eu, no De
Poenitenti a,[ 337 ] explicando em detalhe o segredo de confissão e o seu preceito,[ 338 ]
Poenitentia,
expus que se deve entender o segredo com relação à pessoa do pecador, e por isso o
confessor pode, por utilidade, falar da própria coisa silenciando a pessoa, o que na seção
7 confirmei e declarei novamente.
Tampouco pode o rei mostrar algum autor da Companhia que tenha ensinado
doutrina contrária, muito embora eles agreguem as clarificações necessárias, para que
ninguém abuse da doutrina.
Uma delas nosso Belarmino agregou agudamente, com sobriedade e prudência, na
defesa de Garnet e em resposta ao rei: disse ser lícito admoestar o príncipe com palavras
gerais sobre uma traição conhecida em confissão, para que se guarde do perigo, mas
deve entender-se isto, em primeiro lugar, de um príncipe católico, que creia na religião da
confissão sacramental e a tenha na devida reverência, e, por fim, deve entender-se de um
príncipe
príncipe pio
pio e cristão,
cristão, de quem se pode presumir que não interrogará
interrogará algo
algo além do que é
usto.
O sacerdote não é obrigado a se pôr em tamanho perigo e risco, nem deve ou pode
licitamente revelar um segredo de confissão a alguém que ele sabe que considera a
confissão como nada, e que se esforçará plenamente em interrogar e inquirir a pessoa do
traidor.
12. SEGUNDA LIMITAÇÃO. – E a isto diz respeito outra explicação geral, a saber, que assim
devemos entender a referida doutrina: é lícito falar da própria coisa conhecida em
confissão,
confissão, apenas quando nem diretamente nem indiretamente
indiretamente se revela
revela a pessoa.

177
E porque, em moral, o perigo se equipara ao evento (pois aquele que ama o perigo
erecerá nele[ 339 ]), age contra o sigilo aquele que fala da coisa de tal modo que
exponha a pessoa do confessante a perigo moral, sobretudo dando ocasião moral ou
preparando o caminho para que se chegue
chegue ao seu conhecimento.
conhecimento. P ois
ois às vezes revela a
pessoa indiretamente,
indiretamente, o que não é lícito
ícito por nenhuma razão.
Nem esta doutrina
doutrina se entende de forma contrária
contrária à segurança
segurança dos reis e dos reinos.
reinos.
Pois são antes necessárias tamanha religião e observância do segredo, para que, pela via
da confissão e pelos conselhos e admonições do confessor, possa dar-se algum remédio a
tais traições e iniqüidades, que de outro modo claramente cessariam: pois, se os
penitentes
penitentes não estão seguros
seguros de sua incolumi
ncolumidade
dade pelo
pelo segredo,
segredo, ning
ninguém
uém ousaria
ousaria revelar
revelar
semelhantes fatos em confissão. E, assim, são antes os que escarnecem a confissão ou
rompem o seu segredo os que menos cuidam da segurança dos reis e dos reinos.
13. Por fim, para que voltemos ao ponto donde nos afastamos: como na fórmula de
uramento o rei da Inglaterra exija que seus súditos revelem todas as traições que lhes
vierem ao conhecimento, merecidamente os católicos podem temer, e até crer, que isso
se postula sem nenhuma distinção, quer aquele conhecimento chegue por confissão, quer
a revelação da traição se faça junto com a do traidor, quer com perigo moral para ele,
quer de qualquer outro modo. Neste sentido, tanto a fórmula excede a obediência civil,
quanto envolve algo contrário à religião católica.
E por esta razão também nessa parte o juramento é muito suspeito, e portanto os
católicos e varões prudentes podem merecidamente exigir maior esclarecimento, embora
por outras razões sejam obrigados
obrigados a recusá-lo simpliciter
simpli citer .

[ 325 ] Apologia, Praefatio


Praef atio,, Londres, Opera Regia, 1609, p. 7.
[ 326 ] Op. cit.,
cit., p. 6.
[ 327 ] Op. cit.,
cit., p. 13.
[ 328 ] No texto original, termina-se esta frase com: “..., que na língua vulgar se chama ‘traição’.” [“ [“...... , quod
vulgari sermone traycion vocatur.”]. A manutenção deste trecho perde seu sentido no contexto da tradução: visto
que o latim proditio
proditio,, empregado normalmente pelo autor, se traduz por “traição” tanto no português como no
espanhol de Suárez (excetuados os anacronismos ortográficos), não há propósito em manter esta referência
pontual sobre c omo se s e verte esta palavra
palavra numa língua em que já nos enc ontramos. [N. T.]
[ 329 ] É doutrina pacífica do magistério da Igreja Católica o reconhecimento da autonomia das instituições
políticas
políticas sobre matérias atinentes
atinentes à jurisdição
jurisdição civil e temporal. A defesa do poder político
político frente ao domínio da
urisdição espiritual é assunto que, apesar das controvérsias existentes na história dos debates internos da própria
Igreja, restou consolidado como posicionamento final. Sobre isso, recomendamos a excelente monografia de
ANT ONIOM OLINAM ELIÁ, Iglesia y Estado en el Siglo de Oro Oro Español: el pensamiento de Francisco Suarez
Suarez, 1ª
ed., Valencia, Editora de la Universidad,
Universidad, 1977. [N. C.]
[ 330 ] Op. cit.,
cit. , p. 147.
[ 331 ] Cf. Commentaria ac Disputationes in Tertiam Partem Divi Thomae, Thomae, in Opera Omnia, Paris, Vivès, 1866,
t. 21, q. 80, art. 6, Disput. 67, sect. 3, nn. 3-7, pp. 490-2. Também t. 22, De Virtute Poenitentiae, Disp. 33-34,
pp. 686-732.
686- 732.
[ 332 ] Raul de Scorraille assevera que Henry Garnet foi aluno de Suárez no Colégio Romano entre os anos 1580-
1584. Ver P. RAÚL DES CORRAILLE, El P. Francisco Suarez Suarez de la Compañia de Jesus,
Jesus, 1ª ed., Barcelona, Subirana,
1917. [N. C.]
[ 333 ] Praefatio
Praef atio pp. 147-148.
[ 334 ] Op. cit.,
cit., pp. 148-152.
[ 335 ] Apologia Robertii S. R .E. .E . Cardinalis
Cardinalis Bellarmini...
Bel larmini...,, Roma, 1609, cap. 13, pp. 120-132.

178
[ 336 ] Loc. cit.
[ 337 ] Opera Omnia, t. 22, De Virtute Poenitentiae, Disp. 33, sect. 7, pp. 706-10.
[ 338 ] Op. cit.,
cit., disp. 33, sect. 3, n. 8, pp. 696-697.
[ 339 ] Eclesiástico 3:27.

179
Capítulo IV
Se a terceira parte do juramento contém algo para além da
obediência civil e contra a doutrina católica
1. Duplo gênero de tiranos. 2. O príncipe, embora governe como tirano, não pode ser
morto licitamente por autoridade privada. 3. A doutrina contrária é condenada como
herética. O erro de Wycliffe e Jan Hus. 4. Fundamento da verdadeira doutrina. 5. É
lícito assassinar o príncipe em defesa da própria vida? 6. E se for em defesa da
república? 7. Um tirano por usurpação é assassinado licitamente. 8. O que se requer
para que o tirano por usurpação possa ser assassinado licitamente
li citamente por um particular
parti cular..
9. Outra limitação. 10. A sentença de outros. 11. A sua reprovação. Responde-se a
Agostinho. 12. Propõe-se outra dificuldade.
di ficuldade. 13. Explica-se
Expli ca-se a dificuldade.
di ficuldade. 14. Outra
dificuldade. Por que razão um rei herético é privado do domínio do reino. 15-16. A
explicação da dificuldade. Quando pode a república privar de seu reino um rei que
governa tiranicamente.
ti ranicamente. 17. O reino
ei no cristão
cri stão depende do pontífice
pontífi ce para depor um rei
tirano. 18. Como pode o rei ser punido, depois de sentença declaratória justa. 19.
Uma pessoa privada não pode pela própria autoridade matar um condenado à morte.
20. Pela doutrina transmitida se demonstra um erro incluso no juramento. 21. Isto
mesmo se demonstra pelas palavras do juramento. Outra razão. 22. Duplo erro incluso
na terceira parte do juramento.

1. DUPLO GÊNERO DE TIRANOS. – Após os juramentos precedentes adiciona-se um


terceiro, com estas palavras: Ademais jurojuro que de todo o coração aborreço
aborreço e abjuro
abjuro
como ímpia e herética esta doutrina e proposição: que os príncipes excomungados ou
rivados pelo papa podem ser depostos e mortos por seus súditos ou por quaisquer
outros.
Nestas palavras
palavras é necessário considerar
considerar três coisas:
coisas: primei
primeiro,
ro, a própria
própria doutrina;
doutrina;
segundo, com que direito se exige dos súditos este juramento; terceiro, quanto estas
palavras
palavras repugnam
repugnam àquil
àquilo que o rei prometeu, a saber, que mostraria
mostraria que nada contido
contido
neste juramento está para além da obediência civil.
Quanto ao primeiro: uma vez que o rei, solícito de sua própria segurança,
freqüentemente inculca esta questão vulgar – a saber, se é lícito a uma pessoa privada ou
aos súditos matar um rei tirano –, e visto que de sua verdadeira resolução depende muito
o entendimento desta e de outras partes, julguei necessário antepor algumas palavras a
seu respeito.[ 340 ]
Os teólogos, pois, distinguem dois tiranos: um é o que ocupou o reino não a justo
título, mas pela violência e injustamente, que na verdade não é rei nem senhor, mas

180
ocupa o seu lugar e traz a sua sombra; outro é o que, embora seja verdadeiro senhor e
possua o reino
reino a justo título,
título, reina
reina tirani
tiranicamente
camente quanto ao uso e ao governo; ou seja,
porque, ou converte tudo em proveito proveito próprio,
próprio, desprezando o comum, ou afli
aflige
injustamente os súditos, espoliando, matando, pervertendo ou perpetrando injustamente
coisas similares em público e com freqüência.
Tal foi, por exemplo, Nero, que Agostinho[ 341 ] numera entre os tiranos que às
vezes Deus permite dominar, assim interpretando o que se diz em Provérbios [8:15-16]:
Por mim
mi m reinam os reis,
ei s, e por mim ti ranos possuem a terra.
mi m os tiranos
E entre os cristãos deve-se enumerar sobremaneira nesta ordem o príncipe que induz
seus súditos à heresia, ou a outro gênero de apostasia, ou ao cisma público.
2. O PRÍNCIPE, EMBORA GOVERNE COMO TIRANO, NÃO PODE SER MORTO LICITAMENTE POR
AUTORIDADE PRIVADA. – A presente questão, portanto, trata principalmente do príncipe
legítimo que governa tiranicamente, porque é destes príncipes que fala o rei da Inglaterra,
e porque nós o temos nesta ordem dos reis legítimos.
Dizemos, portanto, que o príncipe, por causa do regime tirânico ou por causa de
qualquer crime, não pode ser justamente morto por alguma autoridade privada. A
asserção é comum e certa. Ensinou-a Santo Tomás em Sobre o Regime dos Príncipes,[
342 ] onde a confirma com ótimas razões morais. O mesmo ensina Caetano,[ 343 ]
citando outros modernos: Soto,[ 344 ] Luís de Molina,[ 345 ] Juan Azor,[ 346 ] o cardeal
de Toledo,[ 347 ] e os sumistas[ 348 ] em geral, sobre a palavra tirano.
Consentem em asseverar essa verdade os jurisperitos Bártolo,[ 349 ] Alexandre de
Imola,[ 350 ] Mariano Socino,[ 351 ] cardeal Zabarella,[ 352 ] João Antônio[ 353 ] e
outros, os quais cita e segue Jerônimo Gigante.[ 354 ]
O mesmo ensinam Lucas de Penna,[ 355 ] Conrado Bruno,[ 356 ] Tomás Actio,[
357 ] amplamente e bem, Restauro Castaldo[ 358 ] – que cita a outros mais –, Paris del
Pozzo,[ 359 ] que, como direi depois, pensa assim, embora fale confusamente. E
também Covarrubias.[ 360 ]
E esta verdade é conforme aos preceitos em I Pedro [2:13]: Por amor ao Senhor, Senhor,
sujeitai-vos, ordenação humana, seja à do rei, etc. E abaixo [v. 18]:
sujeitai -vos, pois, a toda ordenação
Servos, sede obedientes aos vossos senhores, não só aos bons e moderados, mas
também aos díscolos.
3. A DOUTRINA CONTRÁRIA É CONDENADA COMO HERÉTICA. O ERRO DE W YCLIFFE E J AN
HUS. – Mas esta doutrina foi definida em sua espécie, e a contrária foi condenada como
herética no Concílio de Constança, seção 15, onde se condena este artigo: O tirano pode
e deve ser assassinado lícita e meritoriamente por qualquer vassalo ou súdito seu,
mesmo por meio de insídias secretas, branduras ou adulações sutis, não obstante
qualquer juramento prestado ou confederação feita com ele, sem esperar a sentença ou
o mandato de qualquer juiz. E o Concílio declara que são heréticos (e que como tais
devem ser punidos) os que defenderem pertinazmente este artigo.[ 361 ]
Pois essa definição, como todos os autores modernos a entendem, é dada sobre um
tirano em regime, não sobre um tirano por usurpação do reino, o que se pode coligir

181
daquelas próprias palavras, uma vez que “vassalo” e “súdito” se dizem propriamente
com respeito a um verdadeiro príncipe e superior.[ 362 ]
Igualmente, as palavras não obstante qualquer juramento prestado incluem também
uramentos legitimamente feitos a verdadeiros reis, pois são palavras universais.
Daí não haver dúvida de que o autor daquele artigo falara ao menos universalmente
de todo tirano, quer por usurpação quer em regime, como consta de suas palavras e
exagerações. E também porque aquele artigo nasceu da doutrina de Wycliffe[ 363 ] e Jan
Hus,[ 364 ] que diziam que os senhores temporais, por qualquer pecado moral, perdiam
ipso facto o principado, e assim podiam ser censurados por seus súditos a seu arbítrio,
como se diz no mesmo Concílio, seção 8.[ 365 ]
O concílio, porém, condena o artigo por sua universalidade e precipitação (que logo
se manifestam em todos os seus artigos e amplificações) e o condena sobretudo na
medida em que compreende verdadeiros reis e príncipes que governam tiranicamente.[
366 ] Mas pode estender-se também ao tirano no sentido mais próprio, que usurpa e
retém o reino injustamente, se o artigo for afirmado temerariamente com todos aqueles
exag
exageros,
eros, ou seja, não obstante qualquer juramento prestado ou confederação feita com
ele. Pois isto é falso e contra a razão natural, que manda que se observem os pactos,
princi
principal
palmente
mente os juramentos.
4. FUNDAMENTO DA VERDADEIRA DOUTRINA. – Mas a razão da asserção é que um rei que
governa tiranicamente, ou pode ser morto por qualquer súdito privado a título de
vingança justa e de punição, ou a título de defesa justa, de si ou da república.
O primeiro é de todo falso e herético, porque o poder de vingar ou de punir delitos
não está nas pessoas privadas, mas na superior ou na inteira comunidade perfeita.
Portanto, a pessoa privada que mata o seu príncipe por este título usurpa uma jurisdição
e um poder que não tem, e, portanto, peca contra a justiça.
A premissa maior é de fé certa, e Agostinho[ 367 ] a ensina no livro I da Cidade de
Deus, capítulos 17 e 18, dizendo: Não é lícito a algum poder privado
pri vado matar um homem
culpado; tal licença de matar nenhuma lei concede. E diz nos capítulos 21 e 26: É
homicida quem mata outro sem poder público ou sem sua ordem justa.
A razão disto é, primeiro, porque a vingança e a pena dos delitos ordenam-se ao bem
comum da república, e por isso não são confiadas senão àquele a quem foi confiado o
poder público
público de governar a república.
república.
Segundo, também porque punir é ato que cabe a um superior e que procede da
urisdição; portanto, se um privado o faz, é ato de jurisdição usurpada.
Terceiro, porque de outro modo se seguiriam infinita confusão e perturbação da
república, e dar-se-ia ocasião a sedições e homicídios. Mas se por tal razão é homicídio o
matar com autoridade própria um homem privado, mesmo que seja um homicida, ladrão
e assassino, muito maior crime é estender a mão com autoridade própria contra um
príncipe,
príncipe, por iníquo e tirano que seja.
E, finalmente, porque de outro modo não poderia haver nenhuma segurança para os
reis e príncipes, pois os vassalos facilmente se queixam de que são injustamente tratados
por eles.

182
5. É LÍCITO ASSASSINAR O PRÍNCIPE EM DEFESA DA PRÓPRIA VIDA ? – O outro título de
defesa, embora talvez possa ter lugar em outro caso, não o tem, porém, naquele de que
tratamos, ou seja, se pode um particular matar o rei apenas por seu governo tirânico.
E assim é necessário distinguir se defende a si mesmo ou a república. E, se ele
defende a si mesmo, é necessário distinguir se defende a vida, ou os membros, ou uma
grave mutilação do corpo, ou apenas defende os bens externos e de fortuna.
Pois para defender somente os bens exteriores não será lícito matar o príncipe
invasor, tanto porque se deve preferir a vida do príncipe a estes bens exteriores, por
causa de sua dignidade, e porque representa a Deus de um modo singular, ocupando o
seu lugar, quanto também porque o príncipe tem certa administração superior de todos os
bens dos súditos,
súditos, e, embora talvez
talvez se exceda,
exceda, nem por isso se deve resisti
resisti-l
-loo até ao
assassínio. Pois é suficiente que depois ele permaneça obrigado pela justiça a restituir e
compensar as coisas subtraídas, e que o súdito possa exigi-las, tanto quanto puder fazê-lo
sem violência.
violência.
Mas, se a defesa é da própria vida, que o rei tenta tirar violentamente, então será
ordinariamente lícito ao súdito defender-se a si mesmo, mesmo que daí se siga a morte
do príncipe; porque o direito de conservar a vida é máximo. Neste caso o príncipe não
está em tal necessidade que obrigue o súdito a perder a vida por ele; ao contrário, ele
próprio
próprio se pôs voluntári
voluntáriaa e iniquamente
iniquamente em tal perig
perigo.
Mas digo “ordinariamente”, porque, se pela morte do rei a república se perturbasse,
ou padecesse outro grande incômodo contra o bem comum, então a caridade pela pátria
e pelo bem comum obrigaria a não assassinar o rei, mesmo com perigo da própria morte;
mas esta obrigação diz respeito à ordem da caridade, da qual não tratamos aqui.
6. E SE FOR EM DEFESA DA REPÚBLICA ? – Mas, se a discussão versa sobre a defesa da
própria
própria repúbli
república, isto não tem lug
ugar
ar a não ser que se suponha que o rei agride
agride a cidade
cidade
em ato, para perdê-la injustamente e matar os cidadãos, ou algo similar.
E então certamente será lícito resistir ao príncipe, e até mesmo matá-lo, se não for
possível defender-se de outro modo, tanto porque, se isto é lícito ícito para a própria
própria vida,
vida,
muito mais o é para o bem comum, quanto também porque a própria cidade ou república
tem então justa guerra defensiva contra o invasor injusto, mesmo que seja seu próprio
rei. Portanto, qualquer cidadão, enquanto membro da república, e por ela movido
expressa
expressa ou tacitamente,
tacitamente, pode no confli
conflito defender a república
república do modo que for capaz.
Mas agora não tratamos deste caso, em que o rei inflige guerra agressiva em ato
contra a própria república para destruí-la e matar a multidão dos cidadãos. Tratamos de
quando, reinando em tempo de paz, perturba a república de outros modos, e lhe é
nocivo; nesse caso não há lugar para a defesa pela força, nem a insídias contra a vida do
rei, porque então não se inflige violência efetiva contra a república, que seria lícito repelir
com violência. Por isso, agredir o príncipe seria então mover guerra contra ele com
autoridade privada, o que não é lícito de modo algum, porque porque a ordem
ordem natural,
conveniente à paz dos mortais, exige que a autoridade para suscitar guerra resida na
república ou no príncipe, como diz Agostinho.[ 368 ]

183
Igualmente porque, assim como não é lícito vingar os males cometidos por outro
matando-o com a própria autoridade, assim tampouco é lícito impedir os males futuros
que dele se temem, matando-o com a própria autoridade. É, de fato, a mesma razão, e
esta é evidente quanto aos malfeitores privados; igualmente, portanto, a razão é maior
quanto ao príncipe.
príncipe.
7. U M TIRANO POR USURPAÇÃO É ASSASSINADO LICITAMENTE. – Porém, para que possamos
ilustrar mais essa doutrina e melhor aplicá-la à dita cláusula proposta do juramento, é
necessário primeiro falar do outro membro daquela divisão – isto é, do tirano por
usurpação – e de se nele tem lugar ou não a doutrina precedente.
Comumente se faz uma distinção entre esses dois gêneros de tiranos; pois se afirma
que o tirano por usurpação pode ser morto por qualquer pessoa privada que seja membro
da república que padece tirania, se desta não pode libertá-la de outro modo. O mesmo
pensa Santo Tomás,[
Tomás, [ 369 ] que quase todos os doutores citados segui
seguiram,
ram, e que pode ser
visto em Conrado Bruno,[ 370 ] que refere vários exemplos; estes, porém, são coleções
de atos justos e injustos, e por isso não provam o direito, mas o uso.
O argumento, portanto, é que então não se está matando o rei ou príncipe, mas um
inimigo da república.
Do mesmo modo o próprio Santo Tomás,[ 371 ] na obra Sobre o Regime dos
Príncipes, livro I, capítulo 6, defende o que fez Aod (em Juízes 3): este, sendo pessoa
privada,
privada, matou Egl
Eglon, rei de Moab, a quem servia
servia Israel, porque não era verdadeiro
verdadeiro rei
do povo de Deus, mas inimigo e tirano. O mesmo ensina Alonso de Madrigal[ 372 ] – e
acrescenta que ele poderia ter sido morto por qualquer israelita.
Assim também, em Judite 13, esta matou a Holofernes. E deu-se fato semelhante
quando Jael, em Juízes 4, matou Sísara, ação louvada no capítulo seguinte.
Assim também Santo Tomás, na passagem anterior, aprova a sentença de Cícero, que
louvou os que mataram César, que não por justo título, mas pela força e pela tirania
usurpava o império.
Por isso também os doutores dizem que contra esse tirano não se comete crime de
lesa-majestade, porque nele não há nenhuma verdadeira majestade.
Dizem também que a um tirano assim não lhe cabe o nome de príncipe, e por isso os
decretos que dizem não ser lícito matar o príncipe não compreendem este tirano, como
se pode ver em Jerônimo Gigante.[ 373 ]
8. O QUE SE REQUER PARA QUE O TIRANO POR USURPAÇÃO POSSA SER ASSASSINADO
LICITAMENTE POR UM PARTICULAR. – Mas Santo Tomás acrescenta acima uma limitação, a
saber: que isso é lícito quando não há como recorrer a um superior por quem se possa
fazer um julgamento do invasor.
Tal limitação tem lugar sobretudo quando a tirania não procede do príncipe supremo,
mas é exercida por algum inferior. De fato, não só os reis, mas também os senhores
inferiores poderosos podem pela tirania usurpar algum domínio, jurisdição ou
magistratura.

184
Portanto, embora no ato da agressão o povo possa resistir ao invasor, ainda assim,
depois que se têm de fato a posse e o domínio, não podem matá-lo pela própria
autoridade, nem mover nova guerra contra ele, se podem recorrer a um superior. Porque,
como têm um superior, não lhes é lícito tomar a espada pela própria autoridade; e isto
será menos lícito a uma pessoa privada, pois, de outro modo, tudo se perturbaria e
nasceria grande confusão na república.
E, pela mesma razão, também quando não há superior a quem recorrer, é necessário
que a tirania e a injustiça sejam públicas e manifestas. Pois, se são duvidosas, não será
lícito pela força expulsar o apossado, pois em caso de dúvida sua condição é melhor,
salvo se for também certo que sua própria posse fora tirânica.
Ademais, para que o assassínio de tal tirano seja lícito, é preciso que seja necessário
para obter a liberdade do reino.
reino. Pois, se o tirano
tirano pode ser exp
expul
ulso
so por outra via
via menos
cruel, não será lícito matá-lo imediatamente, sem poder maior e sem exame da causa.
9. OUTRA LIMITAÇÃO. – Ademais, há de se entender a opinião comum, a não ser que se
interponham entre o tirano e o povo algum tratado, trégua ou pacto firmado por
uramento, como notou mais acima Alonso de Madrigal. Pois os pactos e juramentos
devem observar-se mesmo com os inimigos, salvo talvez no caso de aqueles serem
evidentemente iníquos e feitos sob coação.
Deve ajuntar-se também outra limitação, se se temem pela morte do tirano males
iguais para a república, ou ainda maiores do que os padecidos sob ele. E assim disse
Bártolo[ 374 ] que neste caso é lícito matar o tirano, não pelo bem privado, mas pelo
bem comum. P ois, ois, se alg
alguém mata o tirano
tirano para apossar-se do império por uma tirani
tiraniaa
semelhante, não se escusa de culpa de homicídio, por causa desta nova tirania.
Igualmente, isso não será lícito se se crê que o filho do tirano (ou outro aliado similar)
há de infligir os mesmos males à república; porque então se faz o mal sem esperança de
um maior bem, e porque então a república não é verdadeiramente defendida nem liberta
da tirania, que é o único título que justifica tal morte.
Por fim, é necessário que a república não se oponha ao assassínio expressamente.
Pois, se ela expressamente o repugna, então não só não fornece autoridade a pessoas
individuais, mas também declara que tal defesa não cabe a ti, que nisto deves crer;
conseqüentemente, ter-se-á então que não é lícito à pessoa privada defender a república
pela
pela morte do tirano.
tirano.
10. A SENTENÇA DE OUTROS. – Não obstante tudo isto, não faltam autores a quem essa
distinção e sentença não aprazem, mas reputam que se deve dizer indistintamente que
não é lícito a uma pessoa privada matar um tirano, seja só em regime, seja por
usurpação.
Assim opina Castro,[ 375 ] na medida em que discorre do tema indistintamente. E do
mesmo modo entende o Concílio de Constança,[ 376 ] e todos os seus argumentos
tendem ao mesmo.
Azor o indicou mais expressamente, ao reprovar a referida opinião comum.[ 377 ]
Ele se funda, primeiro, no Concílio de Latrão, que fala de modo absoluto e geral sobre o

185
tirano. Segundo, em Agostinho,[ 378 ] que diz também em absoluto não ser lícito matar
alguém sem a administração pública. Terceiro, em Santo Tomás,[ 379 ] que não diz que
tal tirano é louvavelmente morto por alguma pessoa privada, mas diz de modo indistinto
que ele é louvavelmente morto. Quarto, em que nenhum malfeitor pode ser morto
ustamente, nem o apossado pode ser efetivamente expulso, sem antes ter sido ouvido e
ulgado. Nem é suficiente a evidência de crime perpetrado, se não precede a sentença.
11. A SUA REPROVAÇÃO. R ESPONDE-SE A A GOSTINHO. – Mas estas coisas pouco obrigam
contra a sentença recebida.
Pois o Concílio de Latrão, como dissemos, não define uma proposição universal
negativa: “nenhum tirano pode ser morto”, mas antes condena a afirmativa universal:
“todo tirano pode ser morto”, e esta afirmação não é pronunciada absolutamente, mas
com muitas ampliações, e por isso sua definição se reduz a esta indefinida, de que “nem
todo tirano pode ser morto antes que contra ele se pronuncie uma sentença”, donde não
se pode tomar nenhum argumento contra a opinião comum.
A Agostinho respondo que aquele homem privado que desse modo mata o tirano não
o faz sem a administração pública, porque, ou o faz com a autoridade de uma república
que consente tacitamente, ou com a autoridade de Deus, que pela lei natural deu a cada
um poder de defender a si mesmo e a república contra a violência que semelhante tirano
faz.
A Santo Tomás respondemos que ele fala assaz claramente, pois diz no corpo do
artigo: Quando há faculdade para isto, alguém pode repelir tal domínio. Na solução à
quinta objeção, pela palavra alguém ele indica claramente uma pessoa privada, tanto
porque interpreta as palavras
palavras de Cícero sobre os assassinos
assassinos de Júlio
Júlio César, quanto
porque conclui assim:
assim: Pois então quem mata o tirano para libertar
li bertar a pátria é louvado e
recebe prêmio.
Do último argumento, diz-se que ele apenas procede quando alguém, como pena de
um delito, deve ser morto ou privado de seus bens, que possui quietamente, sem conflito
atual,[ 380 ] formal ou virtual. No nosso caso, porém, não se trata de vingança, mas de
defesa, nem o tirano se apossa quietamente, mas por efetiva força; porque, embora a
república não mova guerra (porque não pode), ainda assim – como nota com razão
Caetano[ 381 ] – ela sempre nutre uma guerra implícita, porque resiste o quanto pode.
12. P ROPÕE-SE OUTRA DIFICULDADE. – Mas daí surgiria uma nova dificuldade, porque
segundo esta doutrina não haveria nenhuma diferença entre os dois casos, ou entre os
dois tipos de tiranos. De fato, também o tirano por usurpação não pode ser morto com
autoridade privada, mas pública. Ora, deste modo é também lícito matar um rei que
governa tiranicamente. Daí parte o seguinte argumento: o tirano por usurpação deve ser
morto, seja por vingança de seu crime, seja a título de defesa.
No primeiro
primeiro sentido,
sentido, já se disse
disse que ele
ele não pode ser morto por qualquer
qualquer pessoa
privada
privada com autoridade privada, tanto porque punir
punir é ato de jurisdi
jurisdição
ção e de um superior,
superior,
como dissemos acima, quanto porque nem mesmo a república ofendida por tal tirano
pode puni-lo
puni-lo deste modo, a não ser que haja conselho
conselho públi
público e que a causa seja

186
conhecida e suficientemente julgada. E, por isso, para que a pessoa privada o faça, não é
suficiente o consenso tácito ou presumido da república, mas se requer expressamente
uma declaração de uma comissão especial ou ao menos de uma comissão geral. Daí que
também por este título não seja lícito a pessoas privadas estranhas – e nem mesmo a
pessoas públi
públicas que não têm jurisdi
jurisdição
ção sobre tal tirano
tirano – matá-lo por este título
título sem
expressa comissão da república ofendida.
Mas, se isto é lícito à pessoa privada apenas a título de defesa, nesse sentido não há
então nenhuma diferença entre tais tiranos; porque também a título de defesa é lícito à
pessoa privada
privada matar um rei verdadeiro,
verdadeiro, que invade tiranicamente
tiranicamente seu próprio
próprio reino
reino ou
cidade, como dissemos.
Igualmente, tal assassínio não é lícito pelo poder tacitamente concedido pela república
a seus membros, mas pela autoridade de Deus, que deu a cada um pela lei natural a
faculdade de defender a si mesmo e a sua pátria, e ainda qualquer inocente. Portanto,
matar um tirano por este título, não é lícito só aos membros da república mas também
aos estranhos, em ambos os casos e em ambos os tiranos. Logo, não há diferença.
13. EXPLICA-SE A DIFICULDADE. – Respondo primeiro à última interrogação, sobre se é
verdade que um tirano que ocupa o reino sem justo título não pode ser morto justamente
por qualquer
qualquer pessoa privada,
privada, a modo de ving vingança
ança ou punição.
punição. De fato, é o que
demonstram os argumentos que apresentamos na primeira parte do dilema.
Assim, quanto a este ponto admito que não há diferença entre esses reis tirânicos no
tocante à razão absoluta de injustiça, embora no caso do rei em sentido próprio isso seja
crime muito mais grave e de lesa-majestade, o que não se dá com respeito ao outro
tirano, caso em que há simples injustiça e jurisdição usurpada. Resta, portanto, que
apenas por direito de defesa é lícito a pessoas privadas matar o tirano.
Porém quanto a isto há grande diferença entre este tirano e um rei corrupto.
Pois o rei, embora governe tiranicamente, enquanto não move uma efetiva guerra
injusta contra a república que lhe está sujeita, não lhe inflige violência efetiva, e por isso
com respeito a ele não há lugar para defesa, nem pode algum súdito por esse título
agredi-lo ou mover guerra contra ele.
Contudo, um tirano em sentido próprio, enquanto detém o reino injustamente e
domina pela força, sempre inflige em ato violência à república, e assim ela sempre nutre
contra ele uma guerra em ato ou virtual[ 382 ] – não vingativa, por assim dizer, mas
defensiva. E, enquanto a república não declara o contrário, sempre se crê que quer ser
defendida por qualquer de seus cidadãos, até mesmo por qualquer estrangeiro; e,
portanto, se ela
ela não pode defender-se de outro modo senão matando o tirano, tirano, é lícito
ícito a
qualquer um do povo matá-lo.
Daí que a rigor também seja verdade que então não se faria tal coisa com autoridade
privada,
privada, mas públi
pública, ou melhor
melhor,, com a autoridade
autoridade do reino
reino que quer ser defendido
defendido por
qualquer cidadão enquanto membro e órgão seu, ou com a autoridade de Deus, autor da
natureza, que dá a cada homem o poder de defender o inocente.
Donde tampouco nisto há distinção entre os dois tiranos: de fato, nenhum deles pode
ser morto por autoridade privada, mas é sempre necessária a pública. A diferença,

187
porém, é que se crê que este poder foi outorgado
outorgado a qualquer
qualquer pessoa particul
particular
ar contra
aquele que é propriamente tirano, mas não contra o que é propriamente senhor, devido à
diferença já explicada.
14. OUTRA DIFICULDADE. P OR QUE RAZÃO UM REI HERÉTICO É PRIVADO DO DOMÍNIO DO
REINO. – Mas disto nasce nova dificuldade, de solução necessária para o presente
propósito.
propósito. P ois
ois dessa últi
última
ma resolução
resolução sobre o tirano
tirano propriamente
propriamente dito
dito se segue
segue que a
anterior, sobre um rei que governa tiranicamente, só procede antes que se dê uma
sentença de deposição contra tal rei, mas não depois dela – algo contra o qual protesta o
rei da Inglaterra, e que é digno de exame.
Pois a conseqüência tem, em primeiro lugar, grande fundamento no Concílio de
Constança, porque este fala apenas de quem mata o príncipe tirano com autoridade
privada,
privada, sem esperar a sentença ou o mandato de qualquer juiz.[ 383 ] Assim,
efetivamente, o Concílio de Constança condenou a asserção contrária. Portanto, se um
uiz legítimo de tal rei, quem quer que seja ou possa ser, deu sentença justa conta ele,
pela qual ipso facto o depôs do reino, já não procede a definição do concílio.[ 384 ]
pela
Em segundo lugar, desaparece também a razão dada, e assim não terá lugar aquela
primeira
primeira asserção como foi proposta. P oisois então já se supõe a esperada sentença justa e
legítima, e assim o agressor não procede com autoridade privada, mas em virtude da
sentença, e conseqüentemente como instrumento da autoridade
autoridade pública.
pública.
Por último, legitimamente deposto o rei, já não é ele rei nem príncipe legítimo, e
conseqüentemente não pode valer-lhe aquela asserção que trata do rei legítimo. Ainda
mais: se tal rei, depois da deposição legítima, perseverando em sua pertinácia, retém o
reino pela força, começa então a ser tirano por usurpação, porque não é rei legítimo nem
possui o reino
reino a justo título.
título.
E isto fica ainda mais claro no rei herético. Pois pela heresia ele é ipso facto
imediatamente privado do domínio e da propriedade de seu reino de certo modo, pois, ou
este permanece confiscado, ou passa a um legítimo sucessor católico de direito – e
contudo não pode ser imediatamente privado do reino, mas o possui e o administra
ustamente, até que seja condenado por uma sentença ao menos declaratória do crime,
segundo o capítulo Cum secundum leges(título De Haereticis
Haeretici s).[ 385 ]
Após a sentença dada, no entanto, ele é privado do reino totalmente, de tal modo que
não possa possuí-lo a justo título. Portanto, desde então poderá ser tratado como tirano
em sentido pleno, e conseqüentemente poderá ser morto por qualquer pessoa privada.
15. A EXPLICAÇÃO DA DIFICULDADE. Q UANDO PODE A REPÚBLICA PRIVAR DE SEU REINO UM
REI QUE GOVERNA TIRANICAMENTE. – Esta dificuldade supõe ser possível dar-se pena de
deposição e sentença de privação do reino contra um rei soberano também nas coisas
temporais, o que o rei da Inglaterra se recusa a ouvir. Isto porém é muito verdadeiro, e se
colige evidentemente dos princípios postos no livro III; e o diremos novamente nas linhas
seguintes.
É grande a questão acerca de quem pode dar tal sentença. Brevemente, contudo,
supomos agora que esse poder de depor o rei pode residir, ou na própria república, ou no

188
Sumo Pontífice, embora de um modo diferente.
Na repúbli
república ele
ele se encontra apenas por modo de defesa necessária à sua
conservação, como disse acima no livro III, capítulo 3. Portanto, se um rei legítimo
governa tiranicamente, e não resta ao reino outro remédio para a sua defesa senão
expulsar e depor o rei, poderá a inteira república, com um conselho comum das cidades e
dos nobres, depor o rei, tanto pela força do direito natural, pelo qual é lícito repelir a
violência com a violência, quanto porque este caso necessário à própria conservação da
republica é entendido como exceção no pacto pelo qual a república transfere seu poder
ao rei. É deste modo que se deve entender o que disse Santo Tomás:[ 386 ] que não é
sedicioso resistir ao rei que governa tiranicamente, sobretudo se o faz uma autoridade
legítima da comunidade, e prudentemente e sem maior detrimento do povo. Assim
também expôs Santo Tomás em Sobre o regime dos príncipes (livro I, capítulo 6)[ 387 ]
e assim o fizeram seus discípulos, Soto,[ 388 ] Bañez[ 389 ] e Molina.[ 390 ]
Já alguns dos jurisperitos alegados falam confusamente sobre esse ponto, pois Paris
del Pozzo (acima) e Antônio de Massa[ 391 ] parecem afirmar que essa licença é
concedida também aos cidadãos individuais. Ao contrário, Restauro Castaldo[ 392 ]
repugna-o de tal modo que parece negá-lo também à comunidade. Ambos, porém,
devem abrandar-se segundo o que já dissemos.
16. Porém, no Sumo Pontífice esse poder reside como num superior que tem jurisdição
para censurar reis
reis enquanto súditos seus – e mesmo os reisreis soberanos, como mostramos
acima.
Portanto, se os crimes são em matéria espiritual, como é o de heresia, ele pode puni-
los no rei diretamente, inclusive com a deposição do reino, se assim o postulam a
pertináci
pertináciaa do rei
re i e a providência
providência do bem comum da Igreja.
Igreja.
Se, por outro lado, os vícios são em matéria temporal, também podem, enquanto
pecados, ser corrigi
corrigidos
dos pelo
pelo poder direto.
direto. Porém,
Porém , enquanto temporalmente
temporalmente nocivos
nocivos à
república cristã, poderão ser punidos ao menos indiretamente, na medida em que o
regime tirânico de um príncipe temporal é sempre pernicioso também para a salvação das
almas.
17. O REINO CRISTÃO DEPENDE DO PONTÍFICE PARA DEPOR UM REI TIRANO. – Ainda mais,
deve acrescentar-se finalmente que, embora a república ou o reino dos homens –
considerando-se apenas a natureza da coisa tal qual existiu entre os gentios e agora existe
entre os pagãos – tenham o poder que dissemos (de defender-se de um rei tirano e, para
este fim, de depô-lo se for necessário), os reinos cristãos têm quanto a isto certa
dependência
dependência e subordinação
subordinação com relação
relação ao Sumo Pontífi
P ontífice.
ce.
Primeiro, porque o pontífice pode preceituar a algum reino para que não insurja
contra o seu rei sem consultá-lo, ou que não o deponha sem que ele primeiro conheça a
causa e a razão, por causa dos perigos morais e da perda das almas, que ocorrem
moralmente nesses tumultos populares, e para evitar sedições e rebeliões injustas.
Por isso lemos nas crônicas que em tais casos os reinos quase sempre consultavam os
pontífices,
pontífices, ou também lhes pediam
pediam que depusessem um rei inepto
inepto ou tirano.

189
Assim se relatou sobre Childerico, rei da Gália, no tempo do Papa Zacarias.[ 393 ] E
sobre Sancho II, rei de Portugal, no tempo de Inocêncio IV, contam largamente as
histórias de Portugal que fora deposto da administração régia pelo pontífice, embora não
privado
privado do reino.[ 394 ]
Segundo, o reino cristão depende do pontífice em que este não só pode aconselhar ou
consentir que o reino deponha um rei pernicioso, mas também lhe pode ordenar e coagir
a fazê-lo, quando julgá-lo necessário para a salvação espiritual do reino e, principalmente,
para evitar heresias
heresias e cismas.
Porque então tem maximamente lugar o uso do poder indireto sobre as coisas
temporais com vistas a um fim espiritual, e em tal caso pode o pontífice por si mesmo
depor o rei imediatamente. Portanto, pode coagir o reino a realizá-lo, se for necessário,
pois
pois de outro modo seu poder não só seria ineficaz,
ineficaz, mas também insuficient
nsuficiente.
e.
E, por fim, porque tal preceito neste caso é justíssimo.
18. COMO PODE O REI SER PUNIDO, DEPOIS DE SENTENÇA DECLARATÓRIA JUSTA. – Portanto,
suposto esse fundamento, deve dizer-se, sobre o último ponto proposto, que após um
poder legíti
egítimo
mo ter dado a sentença condenatória
condenatória do rei sobre a privação
privação do reino,
reino, ou, o
que é o mesmo, após sentença declaratória de um crime que tem tal pena imposta por
direito, aquele que deu a sentença ou alguém que dela foi encarregado pode privar o
monarca do reino, mesmo matando-o, seja por não poder fazê-lo de outro modo, seja
porque a sentença justa se estende também a esta pena. Não pode, porém, qualquer qualquer
pessoa privada matar imediatamente
imediatamente o rei deposto, tampouco repeli-l
repeli-loo pela força, até que
isto lhe seja preceituado, ou até que a comissão geral se declare na própria sentença ou
no direito.
A primeira parte se segue evidentemente do princípio precedente. Pois aquele que
pode condenar algu
alguém
ém justamente também pode executar
executar a pena por si,
si, ou por aux
auxíl
íliios
necessários; pois, sem poder eficazmente coativo, o poder de determinar a justiça seria
vazio.
E por esta razão, como diz Agostinho,[ 395 ] o ministro do rei age retamente quando
mata um homem por preceito do rei, porque então executa mais o poder do rei do que o
seu próprio.
Assim, portanto, quando a república pode depor o rei justamente, os seus ministros
agem retamente ao coagir e matar o rei, se houver necessidade, porque já não se obra
com poder privado, mas com poder público.
E assim disse com razão Soto[ 396 ] que, embora aquele que é tirano apenas no
governo não possa ser morto por qualquer um, contudo, uma vez dada a sentença, diz diz
ele
ele, qualquer um pode ser instituído mini stroo da execução. E, do mesmo modo, se o
insti tuído ministr
Papa depõe o rei, este pode ser expulso ou morto por aqueles que o Papa comissionou.
E, se não ordenar a execução a ninguém, esta ficará a cargo do legítimo sucessor no
reino ou, se não houver nenhum, ela caberá ao próprio reino.
E assim ensinam os doutores que se deve atuar quanto ao crime de heresia, quando o
rei herético é declarado privado do reino por uma sentença pública, como se pode ver em
Castro[ 397 ] e em Diego de Simancas.[ 398 ]

190
19. UMA PESSOA PRIVADA NÃO PODE PELA PRÓPRIA AUTORIDADE MATAR UM CONDENADO À
MORTE. – Ora, a partir dessas coisas se prova facilmente a outra parte, porque, embora
alguém seja condenado à morte justamente, não pode qualquer pessoa privada matá-lo a
seu próprio arbítrio, mas apenas se uma autoridade o preceituar, ou se for movido de
outro modo. Porque ninguém pode matar a outro senão aquele superior que tem em si tal
poder,
poder, ou um mim inistro
nistro seu; e não se pode dizer
dizer ministro
ministro aquele que não é movido
movido por um
poder principal
principal..
Se isto é verdadeiro com respeito a qualquer malfeitor, certamente com maior razão o
será com respeito a um príncipe.
Talvez alguém diga que é suficiente a moção implícita ou tácita da república, que por
depor o rei quer ipso facto que todos o expulsem e coajam, e se resistir, que o matem.
Mas isto é falso, e cogitado ou imaginado contra a razão.
Pois o juiz que condena um herético ou malfeitor privado não dá imediatamente a
todos faculdade para puni-lo. Portanto, nem a república nem o Papa, ao condenar um rei
herético ou de outro modo tirânico, concedem tal licença a todos, mesmo tácita ou
implicitamente. De fato, por nenhuma razão justa se pode presumir tal licença contra um
príncipe
príncipe mais
mais do que contra outros. P oisois são sempre necessários
necessários a prudência
prudência e os justos
modos na execução, e é maior o perigo de perturbação ou de excesso na coação da
pessoa do príncipe, do que na dos outros.
Por isso, se o Papa declara por uma sentença que o rei é herético e está deposto do
reino, e nada mais declara sobre a execução, não pode algum príncipe imediatamente
mover-lhe guerra, porque, nem lhe é superior nas coisas temporais, como supomos, nem
recebeu do Papa tal poder apenas pela força da sentença.
E por isso, como dizíamos, só o seu legítimo sucessor, se é católico, tem então essa
faculdade; ou, se ele é negligente ou não há sucessor, a comunidade do reino o sucede
neste direito, contanto que seja católica. Se esta pedir auxílio de outros príncipes, estes
poderão prestá-lo,
prestá-lo, como é evidente
evidente por si.
si. Já se o pontífice
pontífice (como o fez várias vezes)
conceder a outros reis poder de invadir tal reino, então isto poderá ser feito justamente,
porque, nem falta
falta uma causa justa, nem lhe falta
falta o poder.
20. P ELA DOUTRINA TRANSMITIDA SE DEMONSTRA UM ERRO INCLUSO NO JURAMENTO. –
Portanto, desta doutrina verdadeira e certa provamos que a terceira parte do juramento
contém, por vários capítulos, excesso de poder, injustiça contra os bons costumes e erro
contra a doutrina verdadeira e católica.
Provo a primeira: com que autoridade o rei coage seus súditos a jurar como herética
uma proposição que a Igreja Católica até agora não condenou? Se o rei, de fato, diz que
ela fora condenada no Concílio de Constança, primeiro não o pode fazer com coerência,
porque ele
ele considera
considera como nada a autoridade
autoridade dos concíli
concílios, especialment
especialmentee dos
modernos.
Além disso, onde lê o rei no Concílio de Constança a expressão: Os príncipes
excomungados ou privados pelo papa? Ou esta: Por seus súditos ou por outros outros
quaisquer? Como, portanto, estas expressões adicionadas à proposição transformam a

191
ela e ao seu significado em algo muito diferente, tal proposição se atribui ao concílio por
uma ilação falaz e ilusória.
E, se não é com a autoridade do concílio que o rei condena esta proposição, mas com
a sua, excede sem dúvida seu poder e abusa de um poder que não tem.
Além disso, é admirável que muitas vezes despreze o poder do Papa de definir as
coisas da fé, e ouse arrogá-lo para si; pois, embora não diga isto com palavras, professa-
o de fato. Nisto também é pouco consistente consigo mesmo, pois, noutra passagem da
mesma Apologia,[ 399 ] gloria-se de não forjar novos artigos de fé ao modo dos
pontífices.
pontífices.
Por fim, como não considere nada como de fé senão o que se contém na Escritura, é
necessário que o rei nela nos mostre onde a proposição é condenada como herética ou
contrária à revelação divina, de tal modo que se deva considerá-la herética.
Certamente, embora São Paulo tenha dito em Romanos [13:1]: Toda alma esteja
sujeita às potestades superiores, nunca acrescentou que “todos estejam sujeitos aos
poderes excomung
excomungados
ados ou privados
privados pelo
pelo P apa”, nem se pode coli
coligir
gir uma idéia
déia da outra,
porque são muito
muito diferentes,
diferentes, para não dizer
dizer opostas, pois
pois um monarca privado
privado de seu
reino já não é uma autoridade superior.
E daqui concluo finalmente que a profissão do juramento quanto a essa parte é uma
confissão da autoridade e do poder régios, tanto para condenar à vontade como heréticas
quaisquer proposições, quanto para propor aos fiéis autenticamente o que devem crer
com fé ou o que devem protestar como herético – o que, da parte do rei, é excesso e
usurpação do poder espiritual, e, da parte dos que confessam tal juramento, é a virtual
profissão
profissão de uma fé falsa.
21. ISTO MESMO SE DEMONSTRA PELAS PALAVRAS DO JURAMENTO. O UTRA RAZÃO. – Além
disso, pelas mesmas palavras se evidencia que o rei exige nesse juramento não só a
obediência civil ou o compromisso com ela. Pois detestar sob juramento uma proposição
como herética é algo que excede claramente a obediência civil, de ordem muito inferior à
fé cristã – maximamente quando tal preceito é novo na Igreja, de tal modo que o rei não
só coage o súdito cristão a detestar uma proposição condenada pela Igreja (o que um rei
católico pode às vezes fazer, observando o modo devido), mas também o coage a
detestar uma proposição que ele condena com sua própria autoridade e de modo inédito,
como o faz agora.
Por isso também permanece suficientemente provado que esse juramento é injusto da
parte do rei,
rei, porque de muitos
muitos modos excede seu poder, e assim
assim é uma coação viol
violenta
enta e
uma usurpação da jurisdição alheia.
Já da parte dos fiéis também é injusto aceitá-lo, seja pela razão geral, seja porque
urariam coisa ilícita ou mentirosa. Pois, se crêem que a proposição é herética por apenas
conter a autoridade do rei, por isso mesmo o juramento é condenável; e muito mais
porque a proposição
proposição que nele
nele se condena é veracíssima
veracíssima e certa, conforme os verdadeiros
verdadeiros
princípi
princípios
os da fé, como provamos no livro
ivro III.
Se, por outro lado, abjuram de modo exterior uma proposição que em sua mente não
crêem ser herética, cometem manifesto perjúrio, como é evidente por si. E, além disso,

192
tal profissão contém uma especial e própria injúria contra o pontífice, cujo poder e
obediência negam por temor humano.
22. DUPLO ERRO INCLUSO NA TERCEIRA PARTE DO JURAMENTO. – Por fim, do que dissemos
depreende-se facilmente
facilmente que essa parte do juramento também envolve doutrina
doutrina errônea.
O primeiro erro é que no pontífice não haveria poder para depor um rei herético ou
cismático, que conduz e perverte seu reino ao mesmo cisma e à mesma heresia. De fato,
a profissão deste erro se faz principalmente e mais diretamente por aquelas palavras do
que por outras, como é patente de modo imediato para qualquer leitor, e como se provou
de múltiplos modos acima.
Outro erro, menos expresso nas palavras e que está latente na mesma sentença e nela
contido virtualmente, é que o rei temporal poderia, em coisas pertencentes à doutrina da
fé e à detestação das heresias, exigir de seus súditos fidelidade até sob juramento. E
ainda mais: também nisto se deveria preferir a sentença do rei à do pontífice, o que, sem
dúvida, é certa profissão do primado do rei temporal sobre as coisas espirituais e
eclesiásticas, pois não há nada maior no primado de Pedro, nem nada mais necessário
para a conservação da Igreja e para sua união, do que a soberana autoridade para propor
coisas de fé e condenar heresias – autoridade que o rei, por aquelas palavras, arroga para
si.
si.
Portanto, a profissão de tal juramento é a profissão manifesta de cisma e de erro; os
verdadeiros católicos estão obrigados em consciência a recusá-lo.

[ 340 ] As palavras em questão estão expostas no Livro V do presente tratado, não traduzido nesta edição.
[ 341 ] De Civitate
Civi tate Dei,
Dei, V, 19 (PL 41, 166).
[ 342 ] D. Thomae Aquinatis Doctoris Angelici Opuscula Omnia, Omnia, Opusculum XX: De Regimine Principum,
Roma, 1570, lib. I, cap. 6, fol. 163.
[ 343 ] Secunda Secundae Sancti Thomae,
T homae, cum commentariis Cardinalis Cardinalis Caietani,
Caietani, Lyon, 1554, q. 64, 3, fol. 104.
[ 344 ] DOMINGO DES OT O, De iustitia et iure,Lyon, Lyon, 1559, V, q. 1, art. art . 3, pp. 288-290.
[ 345 ] De Iustitia et iure,Mainz,
Mainz, 1659, vol. IV,IV, trat.
tr at. III,
II I, disp. 6, n. 2, col.
c ol. 539-540.
[ 346 ] Institutionum Moralium,
M oralium, Roma, 1600, p. 1, lib. VIII , cap. 12, q. 17; cap. 26, q. 7, col. 966A-B; p. 3, lib.
II, cap. 2, q. 1, col. 130; cap. 7, q. 30, cols. 151-2.
[ 347 ] F RANCISCO DET OLEDOH ERRERA, Instructio Sacerdotum Sacerdotum,, Rouen, 1636, lib. V, c. c . 6, n. 17, p. 738.
[ 348 ] S ILVESTRO M AZZOLINI, Summae Sylvestrinae Quae Summa Summarum Merito Muncupatur Pars IIa, IIa,
Veneza, 1587,
158 7, v. “Tyrannus”,
“Tyrannus ”, fol. 363.
363 .
[ 349 ] BÁRTOLO DE S ASSOFE
ASSOFERRA
RRATT O, Consilia, Quaestiones et Tractatus,
Tractatus, Veneza, 1585, Tractatus de Guelphis et
Gibellinis, n. 8, fol. 151.
[ 350 ] Consilia seu responsa,
responsa, Veneza,
Veneza, 1590, vol. 6, cons. c ons. 13, n. 2, fol. 10.
[ 351 ] Consilia,
Consilia, Veneza,
Veneza, 1571, vol. 3, cons.
c ons. 68, ff.ff . 95-103.
[ 352 ] FRANCISCO Z ABARELLA, Commentaria in Clementinam, Clementinam, Veneza,
Veneza, 1602, De sententia
s ententia & re iudicata,
iudicata, c. 2
(Pastoralis), 13, fol. 89.
[ 353 ] J OÃOA NT ÔNIO DE S ANG IORGIO, In Secundam Decretorum Decretorum Partem
P artem Commentaria,
Commentaria, Veneza, 1579, c. 2, q.
1, c. 7, n. 25.
[ 354 ] HIERONYMUSG IGAS, Tractatus de crimine laesae maiestatis, maiestatis, Spirae Nemetum apud B. Albinum, 1598, q.
65, nn. 1-8, pp. 128-9.
[ 355 ] In tres
tres Codicis Iustiniani Imperatoris posteriores
posteriores libros
libros luculentissima Commentaria
Commentaria,, Ne armorum
armorum usus,
usus,
Lyon, 1583, lib. II, cod. 11, 46, 1, f. 169v.
[ 356 ] De seditionibus,
seditionibus, Mainz, 1550, lib.
lib. V,
V, c . 2, pp. 206-8.
[ 357 ] De ludo scacchorum in legali methodo tractatus,
tractatus, H. Concordiam, 1583, q. 2, n. 50, f. 9.
[ 358 ] Amplissimus Tractatus
Tractatus de Imperatore
Imperatore, Roma, 1540, q. 82, ff. cxlvii-cxlviii.

193
[ 359 ] De Syndicatu,
Syndicatu, Lyon, 1548, § An liceat occidere regem tyrannum, ff. 11-12.
[ 360 ] DIEGO DEC OVARRU
OVARRUBIA BIASS EL EIVA, Epitome in i n quartum decretal.,
decretal., Lyon, 1558, cap. 3, § 4, n. 6, fol. 45.
[ 361 ] Mansi 27, 765E; Conc. Constantiense
Constantiense, a 1414-18, s. 15. COD: 432.
“tyrannus in titulo”
[ 362 ] O termo técnico latino “tyrannus titulo” sói verter-se como “tirano por usurpação
usurpação”” e refere-se ao tirano
que, tendo de seu cargo apenas o título, encontra-se em tal posição por usurpar um poder que legitimamente
caberia a outrem; distingue-se do tirano em regime (ou em exercício), exercício), que, fazendo uso de poder legitimamente
seu, atende apenas a seu próprio bem particular, em detrimento do bem comum. [N. T.]
[ 363 ] J OHNW YCLIFFE, Tractatus de civili dominio, Londres, 1885, lib. I, cap. 3, pp. 16-25.
[ 364 ] J AN H US, Historia et monumenta Joannis Hus atque Hieronymi Hieronymi Pragensis confessorum christi,
christi,
Nuremberg, 1558, De Decimis, III, I II, fol. cxxxi
c xxxii.i.
[ 365 ] Mansi 27, 629E-640B; Conc. Constantiense
Constantiense, a 1414-18, s. 8, art. 15. COD: 412.
[ 366 ] V. nota 361 supra
supra.
[ 367 ] De Civitate
Civi tate Dei,
Dei, I, cap. 17 (PL 41, 31); cap. 21 (PL 41, 35) e 26 (PL 41, 39).
[ 368 ] Contra Faustum Manichaeum,
Manichaeum, XXII, cap. 75 (PL 42, 448).
[ 369 ] Commentum in Lib. II Sententiarum,
Sententiarum, dist. 44, q. 2, a. 2, corpuse ad 5.
[ 370 ] De seditionibus,
seditionibus, Mainz, 1550, lib. VI, c. 3, pp. 257-267.
[ 371 ] D. Thomae Aquinatis Doctoris Angelici Opuscula Omnia, Omnia, Opusculum XX: De Regimine Principum,
Roma, 1570, lib. I, cap. 6, fol. 163.
[ 372 ] Commentaria in Iudices et Ruth, Ruth, Veneza,
Veneza, 1596, In Librum Iudicum,Iudicum, cap. 3, q. 26, fol. 34.
[ 373 ] HIERONYMUSG IGAS, Loc. cit.
[ 374 ] BÁRTOLO DE S ASSOFEASSOFERRARRAT T O, Consilia, Quaestiones et Tractatus,
Tractatus, Veneza, 1585, Tractatus de Guelphis et
Gibellinis, n. 9, fol. 151.
[ 375 ] Advers
Adv ersus
us omnes haereses
haereses,, Paris, 1564, XIV, v. “Tyrannus”, fol. 253.
[ 376 ] Mansi 27, 531-1215.
[ 377 ] J UAN A ZOR, Institutionum Moralium,Moralium, Roma, 1600, p. 1, lib. VIII, cap. 12, q. 17, col. 966A; Colônia,
1608, p. 2, lib. XI, cap. 5, col. 1674.
[ 378 ] De Civitate
Civi tate Dei,
Dei, I, cap. 21 (PL 41, 35) e cap. 26 (PL 41, 39).
[ 379 ] Commentum in Lib. II Sententiarum,
Sententiarum, dist. 44, q. 2, art. 2.
[ 380 ] O termo “atual” tem aqui acepção técnica, e significa “em ato”, “efetivo”. [N. T.]
[ 381 ] Secunda Secundae Sancti Thomae, cum commentariis Cardinalis Caietani, Caietani, Lyon, 1554, q. 64, art. 3, fol.
103.
[ 382 ] A virtualidade corresponde à condição daquilo que não é atual – ou seja, não é efetivo – mas que pode vir
a efetivar-se. [N. T.]
[ 383 ] Mansi 27, 765E.
[ 384 ] Mansi 27, 629E-640B; Conc. Constantiense
Constantiense, a 1414-18, s. 8, art. 15. COD: 432.
[ 385 ] Sextus liber Decretalium,
Decretalium, Paris, 1513, VI, tit. 2, cap. 19 (Cum secundum leges), fol. cciiii.
[ 386 ] S. Th.,
Th., IIª-IIae , q.42, a. 2 e 3.
[ 387 ] V. nota 371 supra
supra.
[ 388 ] V. nota 344 supra
supra.
[ 389 ] DOMINGOB AÑEZ, Decisiones de Iure Iure & Iustitia,
Iustitia, Veneza,
Veneza, 1595, q. 64, art. 3, dub. 1, p. 205.
[ 390 ] LUÍS DEM OLINA, De Iustitia et iure,Mainz, Mainz, 1659, vol. IV, IV, trat. III, disp. 6, n. 2, cols. 533-4.
533- 4.
[ 391 ] Contra Usum Duelli,
Duelli, Roma, 1554, nn. 78 e 79, pp. 80-2.
[ 392 ] V. nota 358 supra
supra.
[ 393 ] Decretum
Decretum Gratiani,
Gratiani, Veneza,
Veneza, 1595, II, II , c ausa XV,
XV, q. 6, c.
c . 3 (A
( Alius),
lius), p. 1014.
[ 394 ] Sextus liber Decretalium,
Decretalium, Paris, 1513, I, tit. 8, cap. 2 (Grandi), fol. lxvii.
[ 395 ] De Civitate
Civi tate Dei,
Dei, I, 26 (PL 41, 39).
[ 396 ] V. nota 344 supra
supra.
[ 397 ] ALFONSO DEC ASTRO, De iusta haereticorumhaereticorum punitione, Antuérpia, 1568, lib. II, cap. 7, ff. 157-163.
[ 398 ] De catholicis Institutionibus
I nstitutionibus,, Roma, 1575, tit. 46, n. 75, p. 372.
[ 399 ] Op. cit.,
cit., p. 13.

194
Capítulo V
Da última
úl tima parte do juramento
jurame nto
e dos erros nela contidos
1. Na última parte do juramento os erros postos acima são repetidos e ampliados. 2-3.
O pontífice pode isentar do juramento de fidelidade os súditos de um herege. 4. A
mesma verdade é confirmada por outro argumento. 5. Este juramento não obriga por
si. 6. Esta forma de juramento atri bui ao rei a soberania espiritual.
espiri tual. 7. Nas últimas
palavras do juramento itera-se
i tera-se a profissão de todos os erros precedentes.
precedentes. Em outro
outro
capítulo mostra-se que ali se comete perjúrio.

1. N A ÚLTIMA PARTE DO JURAMENTO OS ERROS POSTOS ACIMA SÃO REPETIDOS E AMPLIADOS.


– Na últi
última
ma parte do juramento quase os mesmos erros são repetidos,
repetidos, e por isso não
resta praticamente nada a acrescentar sobre ela. Mas, porque estes erros são
parcial
parcialmente
mente mai
m aiss expli
explicitados
citados e ampli
ampliados, e porque parcial
parcialmente
mente também se aumenta a
perversidade
perversidade do juramento, deve-se apontar brevemente cada um deles deles e expô-l
expô-losos de tal
modo que possam ser facilmente entendidos por todos.
Primeiro, portanto, abjuram-se novamente a autoridade e o poder do pontífice com
estas palavras: E por fim creio, e resolvo em minha consciência,
consciênci a, que nem o papa, nem
outro qualquer, tem poder de isentar-me deste juramento ou de qualquer parte sua.
Por estas palavras, afirma-se abertamente a seguinte proposição: “O Papa não pode
isentar os súditos do rei temporal de um juramento de fidelidade.” Porque o que se
afirma sobre isso no juramento não decorre de uma razão particular, nem decorre de
uma dignidade que seria maior no rei da Inglaterra do que em outros reis temporais,
como é evidente por si, e como professa abertamente o próprio rei no seu Prefácio
Prefácio.[ 400
]
Mas quando ele diz: o papa não pode, etc., isso se entende simpliciter
simpli citer , isto é, “de
modo algum”, “por nenhuma causa” e “em nenhum caso”, pois é isto que as palavras
significam segundo o sentido e o entendimento chãos e comuns, do modo que o próprio
rei quer, logo depois, que as palavras do juramento sejam aceitas. Ademais, pela parte
final do juramento e pela primeira parte faz-se suficientemente claro que é esta a mente
do rei.
2. O PONTÍFICE PODE ISENTAR DO JURAMENTO DE FIDELIDADE OS SÚDITOS DE UM HEREGE. –
Mas uma proposição assim é herética, porque é contrária ao poder de ligar e desligar
dado a São Pedro, como sempre o entendeu e praticou a Igreja Católica. Pois assim os
súditos de um herege qualquer, que é denunciado publicamente como herético por uma

195
sentença legítima, estão eximidos ipso facto do juramento de fidelidade, segundo o
decreto de Gregório IX;[ 401 ] e Santo Tomás explica o poder e a razão justíssima da
pena.[ 402 ]
De modo similar, Urbano II[ 403 ] e Gregório VII[ 404 ] (presidindo o Sínodo
Romano) isentam qualquer um do juramento de fidelidade prestado a um senhor que foi
publi
publicamente excomung
excomungado
ado e denunciado.
denunciado. O vínculo
vínculo de juramento não é ali
ali tolhi
tolhido
do de
todo e simpliciter
simpli citer , mas é como que suspenso pelo tempo em que o excomungado
perseverar contumaz em sua censura.
Mas isso é diferente de quando o rei ou o príncipe são depostos e privados do
domínio do reino por heresia ou outros crimes, pois neste caso o juramento é tolhido de
todo e quase anulado, por se subtrair a sua matéria. E deste modo Inocêncio IV, com o I
Concílio de Lyon, eximiu do juramento de fidelidade todos os súditos do imperador
Frederico II;[ 405 ] e pusemos outros exemplos acima (livro III, cap. 23[ 406 ]), nos
quais se mostra o antigo e universal parecer da Igreja, que é a melhor intérprete da
Escritura.
Pois, se todos os direitos dizem que o costume humano é o melhor intérprete das leis
humanas, por que a lei dada por Cristo e o poder de ligar e desligar atribuído por Ele a
Pedro não teriam como os melhores intérpretes o costume universal e antiquíssimo da
Igreja e seu uso de tal poder? Poder este que os próprios pontífices, que dele se
serviram, defenderam com soberana autoridade e doutrina; principalmente Gregório VII,[
407 ] Inocêncio III[ 408 ] (na epístola ao Duque de Caríngia) e Bonifácio VIII.[ 409 ]
3. Pois, se o rei não crê nessa proposição – fundada na Escritura, declarada com a
autoridade dos pontífices e dos concílios, e recebida até agora por um consenso comum
–, com que direi
direito
to e com que autoridade
autoridade quer coagi
coagir todos os seus súditos
súditos a crer na
falsidade contrária, a afirmá-la com sua boca, e a confirmá-la por juramento? E como
podem eles
eles resolver em sua consciência, como se diz no juramento, crer e jurar sem
razão ou motivo?
A não ser que creiam que o rei, só com seus ministros, tenha maior autoridade para
confirmar seu erro, e para exigir fidelidade a ele, do que a Igreja Romana e universal,
com os Sumos Pontífices que ensinaram esse tema com uma tradição e um consenso tão
constantes.
Pois, se é isto que tenciona o rei, e se obriga seus súditos a esta fidelidade, é
necessário que reconheça que nesse juramento ele não contende apenas pela jurisdição
temporal, mas pelo primado espiritual.
4. A MESMA VERDADE É CONFIRMADA POR OUTRO ARGUMENTO. – Explico também este
ponto de outra manei
ma neira
ra evidente.
Pois é contrário à razão natural dizer que ninguém pode isentar-se de uma promessa
confirmada em juramento devido à alteração da matéria, removendo-a e anulando-a.
Pois, embora alguém prometa em juramento restituir um depósito, o depositário está
eximido do juramento se o outro cede de seu direito. Disto se tem que, se tal alteração se
faz por um poder superior, igualmente se tolhe a obrigação de fidelidade.

196
Isto também reconhecia Cláudio Trifonino, o jurisconsulto, na lei Bona Fide Fi de[ 410 ] e
seguintes sobre o mesmo tema, ao dizer que, se alguém aceita um depósito dando fé de
restituí-lo ao seu senhor, e depois o senhor é condenado pelo pretor e seus bens são
confiscados, o depositário estará livre da fé de restituir-lhe o depósito, e deverá depositá-
lo no tesouro público, porque, como diz abaixo: A razão de justiça postula que a
idelidade a ser observada num contrato seja considerada não só no tocante aos
contratantes, mas também com respeito a outras pessoas a quem diz respeito o que é
tratado. E isto é maximamente verdadeiro quando intervêm a autoridade de um superior
e o bem público.
Tampouco duvidará o rei, como opino, que ele exerce um poder similar em seu reino,
por exempl
exemplo,o, ao privar
privar dos bens um súdito
súdito descoberto em crime de lesa-majestade, e,
conseqüentemente, transferindo todas as suas ações ou promessas a si mesmo ou ao
fisco, seja anulando-as de todo, seja perdoando-as aos devedores, ou remitindo-as.
Donde se segue necessariamente que, embora estivessem confirmadas por juramento, os
devedores permanecem isentos do juramento.
Portanto, o rei não pode negar que este modo de isentar pode ser honesto e válido, se
aquele que isenta tem o poder de dispor da matéria do juramento, ou do direito do
credor,
credor, do senhor ou do promissári
promissário.
o.
Portanto, ou o poder de isentar os súditos de um juramento feito a um rei herético e
pernicio
perniciososo aos súditos
súditos cristãos
cristãos é neg
negado
ado ao Sumo P ontífice
ontífice de modo muito
muito injusto e
contrário a toda razão, ou este é negado por nenhum outro fundamento senão o de que o
rei crê que o pontífice não tem poder para coagir e punir os reis temporais.
E assim essa parte se reduz às anteriores, e contém abertamente uma profissão de
erro contra o primado do pontífice e uma asserção herética sobre o primado do rei e sua
absoluta desobrigação de obediência ao pontífice, maximamente quanto à força coativa
mediante penas temporais.
5. ESTE JURAMENTO NÃO OBRIGA POR SI. – Por fim, como o rei fala desse juramento em
particul
particular
ar e não de juramentos em geral, não omiti omitirei
rei que – num sentido
sentido verdadeiro
verdadeiro e
católico, embora contrário à mente do rei – se há podido dizer que ninguém é capaz de
isentar o jurador do presente juramento, e isto porque ninguém que não esteja ligado
pode ser desli
desligado, em sentido
sentido próprio.
próprio. Ora, o presente juramento não liga quem o jura,
porque um juramento não pode ser vínculovínculo de iniqüi
niqüidade,
dade, tal qual este o é. P ortanto,
ninguém pode ser dele eximido.
Contudo, dele pode alguém ser declarado absolvido ou não ligado, coisa que o
pontífice
pontífice pode fazer com especial
especial autoridade,
autoridade, e o fez suficient
suficientemente
emente quando declarou
declarou
que o juramento é ilícito e contrário à salvação eterna.
Donde se segue, de fato, que não apenas não se deve prestá-lo, mas que, se isto foi
feito, ele não deve ser observado. E daí ocorre também que em outro sentido o pontífice
pode isentar daquele
daquele juramento já feito,
feito, isto é, do pecado cometido
cometido na prestação de tal
uramento, desde que preceda uma digna penitência como disposição necessária.

197
6. ESTA FORMA DE JURAMENTO ATRIBUI AO REI A SOBERANIA ESPIRITUAL. – Segundo, nessa
mesma parte se faz confissão do supremo poder régio sobre as coisas espirituais, e se o
subtrai do Sumo Pontífice, com estas palavras: Juramento que reconheço ter sido
legitimamente apresentado a mim por uma autoridade justa e plena. E depois o
uramento é confirmado com estas palavras: Tudo isto reconheço e juro claramente e
sinceramente.
Que a confissão está contida nas palavras é evidente pela expressão por uma
autoridade plena. Pois, embora o termo soberana tenha sido evitado de propósito para
não aterrorizar os mais simples, o termo plena, entendido segundo a mente do rei
durante todo o discurso, é posta como eqüipolente, pois não se diz que tal juramento
procede de uma autoridade plena senão porque não há entre os homens um poder capaz
de impedi-lo, proibi-lo ou retirá-lo; este é, portanto, um poder soberano.
Ademais, como o próprio juramento é expressamente contrário ao poder do Papa,
quando se acrescenta foi-me legitimamente
legiti mamente apresentado
apresentado por poder pleno, evidentemente
evidentemente
o significado é que o poder régio que apresenta o juramento é superior ao poder do Papa,
ou lhe é equivalente.
Isto, portanto, que o rei professa em outros lugares de modo expresso, está aqui
envolto veladamente, no próprio emprego do poder usurpado. Por isso, quem consente
com tal juramento jura claramente que o ato de um poder usurpado é ato de poder
legítimo, o que é perjúrio aberto, e contrário à confissão da fé católica.
E, finalmente, por essas palavras se prova também que o rei não exige pelo
uramento apenas obediência civil, pois que postula o reconhecimento e a confissão de
seu poder plenário para decidir contra o poder do Papa.
7. NAS ÚLTIMAS PALAVRAS DO JURAMENTO ITERA-SE A PROFISSÃO DE TODOS OS ERROS
PRECEDENTES. E M OUTRO CAPÍTULO MOSTRA-SE QUE ALI SE COMETE PERJÚRIO. – Terceiro,
pelas
pelas últi
últimas
mas palavras
palavras acrescenta-se um novo juramento, deste teor: Faço de coração
este reconhecimento e esta corroboração, voluntariamente e verdadeiramente, na veraz
é de varão cristão, e assim me ajude Deus. Esta é uma nova confirmação, e uma
repetição de todos os erros precedentes e de sua confissão, não só externa, mas também
interna, de tal modo que quem jura não pode escusar-se de infidelidade interna ou de
perjúrio.
perjúrio.
E, além disso, julgo que a expressão voluntariamente, que envolve uma aberta
mentira, é suficiente para que os católicos não possam jurar sem perjúrio. Pois é evidente
que não prestam o juramento voluntariamente, mas coagidos com ameaças e terrores,
porque, como o mesmo rei disseradissera um pouco antes, aqueles que renunciam a tal
uramento lançam-se e atiram-se miseravelmente ao perigo de perder a vida e os bens.
[ 411 ] De que modo, portanto, podem em verdade jurar que prestam tal juramento
voluntariamente?
De fato, voluntariamente não significa qualquer vontade, mas uma que não é coagida
por medo grave e por poderosa violviolênci
ênciaa humana, os quais
quais poderiam
poderiam pairar
pairar sobre quem
ura. Ora, os católicos sabem que não têm tal vontade, e o próprio rei não o ignora.
Logo, também nesse capítulo o juramento é iníquo, porque envolve e exige perjúrio.

198
[ 400 ] Praefatio
Praef atio,, pp. 1-3.
[ 401 ] Decretales
Decretales Gregorii
Gregorii IX, Paris, 151
1511,
1, liv
liv. V,
V, tít.
tí t. 7, cap. 16 (Absolutos),
(Absolutos), fol. cc cc lix.
lix.
[ 402 ] S. Th., IIª-II , q. 12, a. 2.
ae

[ 403 ] Decretum
Decretum Gratiani,
Gratiani, Veneza,
Veneza, 1595, II, c ausa 15, q. 6, can. 5 (Iuratos
( Iuratos Milites),
Milites), p. 1014.
[ 404 ] Op. cit.,
cit., II, causa 15, q. 6, can. 4 (Nos sanctorum), p. 1014.
[ 405 ] Sententia contra Fridericum Imperatorem ab Innocentio Papa IV, in Concilio lata, lata, Mansi 23, 613C-619A;
Conc. Lugdunense I a. 1245. COD: VI 2, 14, 2. P. 283. Cf. Sextus liber Decretalium, Decretalium, Paris, 1513, II, tit. 14, cap.
2, fol. cxxii.
[ 406 ] Ausente desta edição.
[ 407 ] Registrum,
Registrum, VIII, epist. 21 (PL 148, 594-601).
[ 408 ] Decretales
Decretales Gregorii
Gregorii IX, I, tít. 6, c. 34 (Venerabilem), fol. xlix.
[ 409 ] Extravagantes Communes, Paris, 1511, lib. I, 8, 1 (Unam sanctam), fol. ix.
[ 410 ] Corpus Iuris Civilis Romani, Digesta, Nápoles, 1828, t. II, lib. XVI, tit. III, 1, 31, pp. 47-8.
[ 411 ] Apologia,
Apologia, p. 5.

199
Capítulo VI
Consideram-se as razões por que
o juramento é defendido
1. Prefácio. 2. Os fundamentos do rei. 3. Daí se deduzem três conseqüências. 4. O
último tipo de prova. 5. Resposta ao fundamento do rei. Pelo título do juramento se
prova
prova que este foi inventado
inve ntado para discernir
di scernir os católicos
católi cos dos sectários.
sectári os. 6. Pelo título do
segundo juramento se colige
coli ge que o rei quer o primado
pri mado nas coisas
coi sas espirituai
espi rituais.
s. O fim
principal
princi pal deste juramento é a negação do poder pontifício.
ponti fício. 7. Isto
I sto se confirma
confi rma pela
equivocação das palavras. O poder civil se subordina ao espiritual. 8. Conclui-se que
o juramento postula mais do que fidelidade civil. 9. Replica-se a uma objeção latente
do rei. 10. Qual é a obediência civil dos súditos fiéis. 11. A obediência devida aos reis
é de direito das gentes. Por que razão se pode dizer de direito natural. Ela às vezes
não obriga. 12. A obediência civil dos súditos cristãos é limitada pela fé divina. 13.
Desmente-se certa evasi va. 14. O pontífice,
pontífic e, pela excomunhão, priva
pri va o rei da jurisdição
juri sdição
do reino quanto ao uso. 15. Confutação da objeção. 16. A deposição do rei não é o
efeito próprio da excomunhão. Pelo uso diuturno da Igreja se mostra o poder do
pontífice para depor um rei. 17. Resposta ao fundamento do rei. 18. Confutação do
corolário que o rei infere. Confutação do último corolário. 19-21. Resposta à última
prova
prova do rei. Examinam-se as proposições que o rei infere. 22-23. A décima déci ma
proposição
proposição envolve repugnância [à razão] e dá ocasiãoocasi ão a calúnia.
calúni a. 24. O duplo sentido
senti do
da décima primeira proposição. 25. A décima terceira proposição é verdadeira e
segue-se retamente da rejeiç
rejeição
ão do juramento. 26. A última proposição
proposição é falsa e mal
concluída. 27. Mostra-se a falsidade destas palavras. 28. Todos os doutores católicos
admitem no Papa jurisdição para depor um rei herético.

1. P REFÁCIO. – Até aqui refutamos o juramento e mostramos suas deformidades,


metodicamente e por partes, como desejava o rei, segundo suas palavras.
Agora, para que não pareçamos dar sentença contra uma parte inaudita, o que
também é uma reclamação do rei, consideramos necessário examinar tudo que ele indica,
ou que nós pudemos cogitar, em defesa do juramento, para que se evidencie ainda mais
que daí antes se aumenta a condenação do juramento do que sua defesa e escusa.
2. OS FUNDAMENTOS DO REI. – Primeiro, portanto, pode objetar-nos a autoridade régia
que, com palavras expressas e freqüentemente repetidas, pelo juramento o monarca
afirma não querer exigir de seus súditos nada mais do que a obediência civil e sua
profissão. Assim o repete com freqüência, tanto na Apologia quanto no Prefácio
profissão. Assim Prefácio .

200
Pois, na página 4 da Apologia, ele disse haver mostrado suficientemente que pelo
uramento não desejava nada além de fazer-se seguro da fidelidade e da constância dos
súditos, que estes estão obrigados por consciência a prestar-me, como diz.
No Prefácio,
Prefácio, com mais freqüência – a saber, nas páginas 11, 12, 13 e 14 – e mais
abertamente, ele não só o afirma, mas também o prova mais ou menos deste modo:
como o parlamento da câmara baixa houvesse inserido uma cláusula no juramento pela
qual se tirava do pontífice o poder de me excomungar, quis suprimi-la imediatamente.
Daí, portanto, se pode coligir com quanta solicitude cuidei para que no juramento não
se contivesse
conti vesse uma profissão
profissão além da fidelidade
fideli dade e da obediência
obedi ência civil
civi l e temporal, que a
rópria natureza prescreve aos que nascem no reino.
Deste mesmo lugar colige-se a prova desta ilação, pois, retirada do juramento a
abjuração do poder do pontífice para excomungar o rei, nada restava nele além da
obediência e fidelidade civis. Pois, se algo pode ser maximamente argüido argüido é queo
direito do pontífice de remover os reis é negado e abjurado. E isto é justíssimo e não
excede a fidelidade civil;
ci vil; portanto,
portanto,etc.
Prova-se a premissa menor, primeiro porque tal direito não foi adquirido pelo
ontífice de nenhum modo legítimo, mas foi vindicado pela usurpação injusta dos
apas e pela violência secular, o que o rei repete freqüentemente no Prefácio Prefácio ; e
princi
principal
palmente
mente na pág
pág.. 22 diz-nos
diz-nos que decidi
decidiuu provar na Apologia que esta usurpação
dos pontífices é algo que repugna às Escrituras, aos concílios e aos Padres.
Segundo, porque tal remoção ou deposição dos reis excede em tudo os fins da
excomunhão, que é uma censura espiritual. A excomunhão do pontífice não pode,
portanto, fornecer uma causa legítiegítima
ma e justa para que os súditos
súditos maquinem
maquinem algalgo contra
o rei ou seu império.
O rei fala mais ou menos assim no referido lugar.
3. DAÍ SE DEDUZEM TRÊS CONSEQÜÊNCIAS. – E desse fundamento ele infere tacitamente,
tanto ali quanto em outros lugares, que o pontífice não pode isentar os súditos da
obediência civil devida ao rei, porque não pode depor o rei de sua posição e de seu
domínio; nem pode, portanto, fazer que não se lhe deva obediência, a qual lhe cabe por
direito natural,[ 412 ] que o Papa não pode tolher. É isto, de fato, o que o rei quis
significar com as palavras que a própria natureza prescreve aos que nascem no reino.
De modo similar, infere que o pontífice não pode isentar os súditos do juramento de
fidelidade, porque a matéria do juramento – que é a obediência civil – e a sua promessa
são imutáveis e sempre honestas, pois são devidas segundo o direito da natureza. Logo,
nenhum poder humano pode fazer com que esse juramento não obrigue sempre.
Prova-se a conseqüência porque não pode alguém ser eximido da obrigação do
uramento, sob a qual promete algo, sem que antes a própria promessa, ou a sua matéria,
seja removida ou anulada, porque o vínculo de juramento é inviolável por si, e obriga
maximamente por direito divino e natural. Como, portanto, não se pode subtrair do
uramento a sua matéria, certamente nem o próprio
próprio juramento pode ser dissol
dissolvi
vido.
do.
Terceiro, daqui ele também colige haver muita diferença entre o antigo juramento do
primado
primado e esse outro, porque naquele
naquele abjurava-se também o poder espiri
espiritual
tual,, mas nesse

201
abjura-se apenas o poder temporal que o Papa usurpa aos reis.
Por isso no Prefácio
Prefácio o rei repreende a Belarmino com veemência, porque, como diz,
ele tenta provar que este juramento de fidelidade não é nada além daquele antigo
uramento do primado, reformado agora com palavras obscuras e ambíguos
circunlóquios, etc.
Depois, por fim, ele diz no princípio de sua Apologia: Este juramento não foi
constituído para outro fim senão para que de nenhum modo subsistisse alguma
diferença entre os súditos fiéis e os pérfidos traidores, mas também entre os papistas
que crêem que se deve observar a fidelidade ao rei e os que, a pretexto da disparidade
de religião, julgam ser lícito conjurar contra o rei.
Por isso conclui em seguida: Este juramento foi constituído com o fim de que
houvesse para com ele uma fidelidade dos súditos, à semelhança de um penhor e de um
contrato.Logo, nada contém além da obediência civil.
4. O ÚLTIMO TIPO DE PROVA. – Por último, a este lugar pertence outro tipo de prova (por
redução à inconsistência), que, na Apologia, no princípio da impugnação à epístola de
Belarmino, o rei nos apresenta. Aquele que ensina que o juramento deve ser recusado
necessariamente implica os súditos em posições proditórias e absurdas ao tentar afastá-
los do juramento. E o rei enumera catorze proposições deste tipo, sendo que todas ou
algumas delas, diz ele, inferem-se necessariamente da reprovação do juramento. Quais
sejam estas proposições
proposições ficará evidente abaix
abaixo, quando respondermos a esta parte.
5. R ESPOSTA AO FUNDAMENTO DO REI.P ELO TÍTULO DO JURAMENTO SE PROVA QUE ESTE FOI
INVENTADO PARA DISCERNIR OS CATÓLICOS DOS SECTÁRIOS. – São estas as coisas que pude
coligir de vários lugares e de vários ditos do rei em sua defesa, que, embora sejam
escusas frívolas e revolvam sempre sobre o mesmo ponto, não acredito que devam ser
omitidas, tanto para que seja mais evidente a todos que nada negligenciamos do nosso
dever no tocante ao que pode conduzir à apresentação da dificuldade ou da verdade,
quanto também, se for possível, para que o próprio rei perceba que, em assunto de
tamanha importância e perigo, se deixa guiar por razões tão ligeiras e por opiniões tão
mal fundadas.
Portanto, às palavras do rei respondemos, em primeiro lugar, que os fatos não são
consentâneos com as palavras, e que se deve assentir mais aos fatos e às realidades
mesmas do que às palavras e às promessas. De fato, que importa que o rei afirme que
não quisera exigir de seus súditos nada senão a fidelidade e a obediência civis, se pela
forma do próprio juramento e por todas as suas partes mostra evidentemente o
contrário?
Portanto, às palavras do rei opomos as suas próprias. Pois o edito régio que continha
a fórmula de juramento tinha sobrescrito o título: Para descobrir eprimi r os papistas,
descobri r e reprimir
isto é, os católicos e obedientes ao Papa e que reconhecem o seu primado.
Ora, se o juramento exigisse apenas a fidelidade civil e a obediência temporal, não
poderia
poderia ser um sigsigno de disti
distinção
nção entre os papistas
papistas e os sectários,
sectários, ou apóstatas do P apa,

202
porque a obediênci
obediênciaa civil
civil é comum a todos. P ois
ois os que obedecem ao P apa não neg
negamam a
usta obediência civil a seus reis.
Portanto, diz-se que tal juramento foi dado para descobrir os papistas não por outra
razão senão porque se crê que os que admitem o juramento renunciam ipso facto ao
Papa e abjuram seu poder; e, pelo contrário, os que o recusam mostram-se ipso facto
fiéis e obedientes ao Papa.
Ele não foi dado, portanto, apenas por causa da obediência civil, pois (como o
próprio
próprio rei também defende com todas as suas forças) a obediência
obediência civil
civil não confli
conflita com
a religião romana, e, conseqüentemente, nem com a obediência ao Papa que professam
aqueles que o rei chama de papistas.
6. P ELO TÍTULO DO SEGUNDO JURAMENTO SE COLIGE QUE O REI QUER O PRIMADO NAS COISAS
ESPIRITUAIS. O FIM PRINCIPAL DESTE JURAMENTO É A NEGAÇÃO DO PODER PONTIFÍCIO. –
Ademais, no próprio edito régio continham-se dois juramentos, distintos em título; um
deles intitulado Sobre o primado do rei nas coisas espirituais, que foi o juramento
usado sob Elizabete, e que foi enriquecido pelo rei Jaime com certa promessa, como
notamos acima, acerca do Prefácio
Prefácio . O outro, intitulado Contra o poder do pontífice
sobre
sobre os reis cristãos, que não é senão aquele que o rei agora chama juramento de
idelidade. O edito não trazia nenhum outro juramento, e até agora não se fez menção a
outro.
Portanto, pelo próprio título é evidente que o juramento contém a abjuração do poder
do pontífice sobre os reis, mais do que a fidelidade dos súditos para com seu monarca.
Pois o primeiro é o que diretamente se intenta, como mostra o título, e o que se declara e
repete freqüentemente em suas palavras, de modo imediato e expresso. Já o segundo,
quando aparece expresso, o é muito indireta e remotamente, ou mediante certa
conseqüência, embora seja provavelmente o tencionado pelo rei, em si e principalmente.
Por isso com razão podemos notar aqui e aplicar a distinção dos escolásticos e dos
filósofos moralistas entre a intenção do operante e a da obra, e entre a intenção do fim e
a eleição do meio para o fim.
O rei, de fato, poderia por esse juramento tencionar a fidelidade civil dos súditos, e a
segurança e a indenidade de suas coisas e de sua pessoa. Mas o meio utilizado para obtê-
lo foi a abjuração do poder pontifício, e assim, embora o primeiro fim fosse talvez
precípuo no operante, isto é, no rei que insti
institui
tuiuu o juramento, contudo o escopo próprio
próprio
do juramento, e seu objeto (por assim dizer) é a negação do poder pontifício, e deste
modo dizemos que é o fim principal da obra, isto é, de tal juramento, porque é o fim
intrínseco e a matéria próxima, como se declara em cada uma de suas partes.
E, assim, qualquer que seja a intenção principal do rei, da qual não cuidamos, e nem
queremos argüi-l
argüi-loo como mentiroso,
mentiroso, não se pode duvidar de que o próprio juramento, que
o rei usou como meio, excede os termos da obediência civil, e, para fortalecê-la além do
que é justo, invadiu o poder pontifício abjurando-o, e ao mesmo tempo arruinando e
negando os fundamentos da fé.

203
7. ISTO SE CONFIRMA PELA EQUIVOCAÇÃO DAS PALAVRAS. O PODER CIVIL SE SUBORDINA AO
ESPIRITUAL. – Para torná-lo mais claro, advirto que as expressões obediência e
idelidade civis, tal como o rei da Inglaterra as usa, escondem uma equivocação, que
pode enganar facil
facilmente os simples
simples e ignorantes.
ignorantes.
De fato, o rei exige dos súditos obediência civil e fidelidade tais, que não reconheçam
na terra nenhum superior ao rei, nem diretamente nem indiretamente, e que estas
obediência e fidelidade não possam ser impedidas ou tolhidas em nenhum caso, por
nenhuma razão, mediante jurisdição existente em algum homem mortal.
E, porque não se pode reconhecer no rei poder tão soberano sem se negar o poder do
pontífice
pontífice – o único
único que poderia
poderia ser-lhe
ser-lhe superior
superior,, mesmo nas coisas
coisas civi
civis,
s, embora
indiretamente –, para fortalecer sua obediência civil no grau e na ordem que pede, serviu-
se deste meio: a abjuração do poder pontifício.
E por isso, em suas palavras, diz que exige dos súditos apenas a fidelidade civil, mas
na verdade arranca-lhes uma abjuração da fé católica.
Mas, segundo a sã e vera doutrina, em geral diz-se obediência civil aquela que se
deve aos poderes mais elevados, temporais e civis, a cada um segundo seu grau, em sua
matéria e dentro de seu limite, segundo diz São Paulo em Romanos [13:7]: Dai a cada
um o que deveis; a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem temor,
temor; a quem honra, honra. Também I Pedro [2:13-14]: Sujeitai-vos, pois, a toda
ordenação humana por amor ao Senhor, quer ao rei, como soberano, quer aos
overnadores, como enviados por ele,etc.
E assim também se deve obediência civil aos magistrados civis, subordinada, porém,
à obediência aos reis, que lhes são superiores.
Mas aos reis que não reconhecem nenhum superior nas coisas temporais, deve-se
também obediência civil máxima nesta ordem. O seu poder não pode, porém, deixar de
subordinar-se ao poder espiritual, se a obediência é cristã. Pois esta deve ser segundo a
medida da fé: segundo a fé, todos os cristãos, quer sejam reis, quer sejam súditos, estão
obrigados a obedecer aos seus superiores (Hebreus 13:17), e precipuamente ao vigário
de Cristo, a quem este sujeitou todas as suas ovelhas, entre as quais se contam os reis.
E, por isso, se um rei temporal postula uma obediência civil de tal tipo que exclua a
obediência ao pontífice, ela já não será mera obediência civil, mas passa a ser espiritual e
eclesiástica. Tal é, porém, a obediência que o rei da Inglaterra exige dos seus; por isso, na
fórmula do juramento, quase se esquecendo da obediência civil, atirou-se todo a negar e
a abjurar o poder pontifício.
8. CONCLUI-SE QUE O JURAMENTO POSTULA MAIS DO QUE FIDELIDADE CIVIL. – Daí se torna
evidente que é falso simpliciter
simpli citer o que diz o rei da Inglaterra, a saber, que ele postula de
seus súditos por este juramento a fidelidade que eles estão obrigados a prestar por
consciência. Pois é por consciência que estão obrigados os súditos, como disse Cristo:
César, e a Deuso que é de Deus (Marcos 12:17) – e, por
Dai a César o que é de César,
conseqüência, também ao vigário de Cristo o que é dele. E, porque as coisas do pontífice
pertencem a Deus por modo e por título
título sing
singul
ulares,
ares, elas
elas estão contidas
contidas na segunda
segunda parte
das palavras de Cristo. Razão por que, assim como quando César preceitua algo contra

204
Deus, deve-se obedecer antes a Deus do que aos homens, como disse São Pedro (Atos
4:19; 5:29), assim também, embora os cristãos estejam obrigados em consciência a
obedecer ao rei como superior em sua ordem, não estão obrigados (e nem o podem
estar) a obedecer-lhe quando este lhes preceitua a abjuração do poder pontifício;
tampouco estão obrigados a obedecer ao rei confrontando a devida obediência ao
pontífice,
pontífice, que é de ordem superior,
superior, e à qual a obediênci
obediênciaa civi
civill está subordinada
subordinada de modo
tal que, em certos casos, ou por justas razões, às vezes lhe deve ceder.
Portanto, é falso que no juramento nada se postula dos súditos senão aquilo que
estão obrigados em consciência a prestar.
9. REPLICA-SE A UMA OBJEÇÃO LATENTE DO REI. – Mas deve ler-se atentamente e com
cautela o que ele repete logo em seguida em seu P refácio, mudando um pouco as
palavras:
palavras: Nada se contém neste juramento além da profissão profissão de fidelidade
fideli dade e de
obediência civis, que a própria natureza prescreve aos que nascem no reino. Isto
contém uma objeção e um erro latente.
A objeção foi feita acima: a obediência e a fidelidade são devidas aos reis por direito
natural; portanto, são devidas independentemente do pontífice. Assim, tanto não se pode
mudá-las, como não se pode mudar o direito natural, nem se pode livrar alguém delas,
assim como não se pode livrar alguém do direito natural.
Já o erro ou o engano latentes consistem em não considerar que se deve julgar a
obediência civil entre cristãos de modo superior àquela que há entre os pagãos. Pois
ambos devem a seus reis a obediência civil que a própria natureza prescreve, e por isso o
rei pensa que a obediência civil que os cristãos devem prestar aos seus príncipes não
deve ser definida por termos e por regras distintas daquelas que definem a obediência
devidas a seus reis pelos pagãos.
E facilmente se persuadirá de que esta é a mente do rei aquele que rememorar as
palavras
palavras mais
mais claras que ele
ele escreveu no Prefácio
Prefácio , pág. 34, contra Belarmino. Pois diz
ele: Como ele me conta entre os heréticos, e me iguala a Juliano, o Apóstata, é
necessário que me coloque fora do redil e da grei pontifícia. E assim, pelo mesmo
direito, devo ser incluído entre os príncipes pagãos, com os quais, ele mesmo o
confessa, o pontífice nada pode.
Portanto, partindo deste princípio, quis indicar por outras palavras que, assim como o
Papa não pode depor um rei pagão, nem isentar seus súditos de obedecer-lhe, assim
tampouco pode livrar seus súditos da obediência e fidelidade a ele, Jaime, e por isso nada
postula
postula no juramento senão o que a própria natureza impõe aos que nascem no reino.
10. QUAL É A OBEDIÊNCIA CIVIL DOS SÚDITOS FIÉIS. – Mas a verdade católica ensina que,
embora a fé e a graça não destruam a natureza, aperfeiçoam-na e põem-na sob regras e
leis mais elevadas. Por isso, a obediência civil entre os cristãos, embora nasça da lei
natural, é definida e limitada a uma obediência civil que é consentânea a tal estado, que
não repugna à fé e à religião, e que se subordina às leis e aos justos preceitos da Igreja.
E, por isso mesmo, não se deve equiparar a obediência civil entre os cristãos à
obediência civil entre os pagãos, ou entre homens que podem ser governados pela pura

205
prudência
prudência natural,
natural, sem nenhuma luz da fé, porque os pagãos pagãos e infiéi
nfiéiss não batizados
batizados não
se submetem ao pontífice e às leis da Igreja como os cristãos. Por isso em muitos casos
os príncipes cristãos, mesmo sendo soberanos nas coisas temporais, podem ser proibidos
por uma lei pontifícia
pontifícia de imperar algo
algo a seus súditos,
súditos, mesmo em matéria
matéria civi
civil, enquanto
os príncipes pagãos não podem ser coagidos nesta matéria, porque não estão no grêmio
das ovelhas, e ali nunca entraram.
Mas o rei Jaime (como provamos no livro I[ 413 ]), embora não possa ser escusado
do crime de infidelidade, de heresia ou de apostasia, nem por isso se deve contar entre os
pagãos
pagãos isentos da obediência
obediência ao pontífice,
pontífice, pois
pois não pode apagar
apagar de si o caráter do
batismo.
batismo. E assim não pode eximir-se
eximir-se do dever de obediência
obediência eclesiásti
eclesiástica,
ca, mesmo que mil
mil
vezes confranja os jugos e rompa os vínculos e diga: Não obedecerei. Pois de fato
poderia
poderia resistir
resistir e não obedecer, mas
m as perante Deus sempre será réu de desobediência,
desobediência, não
só dele, mas de todos os seus.
Razão por que, quando ele diz que no juramento nada se contém além da
obediência e da fidelidade civis, que a mesma natureza prescreve a todos os que
nascem no reino, se ele a entende (como parece) como uma obediência livre de toda e
qualquer regra e direção da fé, tal como pode existir entre os pagãos que usam da reta
razão, confirma ipso facto o erro de seu juramento e a perversidade que o envolve,
porque exig
exige uma obediênci
obediênciaa civil
civil que excl
exclui
ui a eclesi
eclesiásti
ástica,
ca, e se prefere
prefer e a ela.
Mas, se queremos interpretar de modo são a obediência civil que a natureza
prescreve a todos os que nascem no reino, é falso falso dizer que nada além disso está contido
no juramento, como se patenteará ao respondermos à objeção que recolhemos daquelas
palavras.
palavras.
11. A OBEDIÊNCIA DEVIDA AOS REIS É DE DIREITO DAS GENTES. POR QUE RAZÃO SE PODE
DIZER DE DIREITO NATURAL. E LA ÀS VEZES NÃO OBRIGA. – Respondemos, pois, que a
fidelidade e a obediência civis dadas aos reis, embora sejam fundadas e radicadas no
direito natural, com mais verdade e propriedade diz-se que são de direito das gentes,
porque não são imediatamente de direi
direito
to natural,
natural, mas supõem que os homens estejam
reunidos num corpo político e numa comunidade perfeita.
Ou certamente pode dizer-se no máximo que elas são do direito da natureza se
supomos o pacto ou convenção entre os próprios homens, do mesmo modo como
obrigam por direito natural o voto ou promessa feitos a Deus, e o juramento entre os
homens, como expliquei largamente no livro III desta obra, e também no livro III de
Sobre as Leis.[ 414 ]
Donde ocorre que a obrigação de obediência civil não é igual, quanto à matéria e
quanto ao modo, para todos os homens que nascem no reino, mas reside em cada um
conforme a instituição primeva do reino e a condição do pacto e da aliança entre o rei e o
povo, que soem constar das leis
leis escritas (que em outros lugares
lugares se chamam foros
foros), ou de
um costume que excede a memória dos homens.
E por isso também ocorre que o vínculo de tal fidelidade ou obediência por vezes não
obriga, e às vezes pode ser rescindido, segundo as condições que na primeira aliança
entre o rei e o reino estão postas expressamente ou estão inclusas internamente, pela

206
própria
própria exi
exigência
ência do direito
direito natural. E assim esta obediênci
obediênciaa não obrig
obriga a obedecer ao rei
quando este preceitua coisas ilícitas e contrárias à salvação da alma.
A perversidade do rei contra o bem comum da república, ou contra as alianças e
convenções feitas com o reino, pode ser tamanha que o reino inteiro pode, em
assembléia comum, rescindir os pactos e depor o rei, e assim podem livrar-se da
obediência e fidelidade civis a ele, como dissemos acima no capítulo V.
12. A OBEDIÊNCIA CIVIL DOS SÚDITOS CRISTÃOS É LIMITADA PELA FÉ DIVINA. – Assim,
portanto, num bom sentido
sentido se pode dizer
dizer que também os cristãos
cristãos que nascem no reino
reino
têm prescrita pela natureza a fidelidade a seus reis – mas de um modo adaptado ao
direito comum das gentes cristãs e do mundo católico, ou melhor, de um modo
acomodado ao direito divino e à fé.
Este modo consiste em subordinar a obediência civil à eclesiástica, sendo que esta
dirige aquela quanto às coisas que dizem respeito à salvação; por conseguinte, o vínculo
sobre o qual se funda a obrigação da obediência civil pode ser dissolvido pelo pastor da
Igreja se quem detém o poder civil dele abusa, para prejuízo espiritual dos súditos, ou
mesmo para o seu, com escândalo público e detrimento dos outros.
Neste sentido,
sentido, é falso
falso que o rei da Ingl
Inglaterra exi
exigiria de seus súditos
súditos apenas aquela
aquela
obediência civil que a própria natureza prescreve a todos os que nascem num reino
cristão; porque a própria natureza, iluminada pela fé divina, dita aos cristãos que eles
devem obedecer aos reis nas coisas civis, sempre que estes não envolvam ou preceituem
algo contra a fé ou contra a obediência eclesiástica, tal como o rei da Inglaterra faz nesse
uramento, como acima mostramos sufici
suficientemente.
entemente.
13. DESMENTE-SE CERTA EVASIVA. – Mas ao indício pelo qual o rei tenta provar o contrário,
a saber, porque não permitiu que se pusesse no juramento a abjuração do poder de
excomungá-lo, respondemos que, embora isto seja assim (o que não duvidamos, pois o
rei o testifica de fato com suas palavras), tal indício é insuficiente.
Primeiro, porque, embora tenha sido retirada a abjuração expressa do poder de
excomungar, ela permaneceu implícita e velada.
Segundo, porque se põe expressamente no juramento a abjuração do poder que tem
o pontífice para depor o rei por qualquer causa, ainda que justa, e para livrar os súditos
de qualquer fidelidade ou obediência devidas ao monarca, quer prometidas, quer juradas
– poder este que convém ao pontífice
pontífice com não menor certeza do que o poder de
excomungar.
Ambos os pontos são evidenciados facilmente pelo que já dissemos, porque de dois
modos pode o pontífice privar do poder do reino o monarca rebelde e contumaz contra a
religião, e isentar os súditos da fidelidade a ele. De um modo, apenas quanto ao uso, à
maneira de suspensão; de outro modo, quanto à propriedade e domínio, à maneira de
deposição.
E no juramento o rei da Inglaterra nega ambos; o primeiro, mais claramente em suas
cláusulas segunda e quarta; o segundo, em todo o juramento e em todas as suas partes.
Contudo, a doutrina católica ensina ambos.

207
14. O PONTÍFICE, PELA EXCOMUNHÃO, PRIVA O REI DA JURISDIÇÃO DO REINO QUANTO AO USO.
– P ois
ois o primeiro
primeiro modo de privação
privação está intrinsecamente
ntrinsecamente inclu
incluso
so no mesmo vínculo
vínculo da
excomunhão maior, como ensina o Papa Gregório VII,[ 415 ] no capítulo Nos
sanctorum, onde diz: Os que estão ligados a um excomungado por fidelidade ou
uramento, livramo-los pela autoridade apostólica, e proibimos de todos os modos a
observância da fidelidade.
Por estas palavras não se dá tanto uma nova proibição quanto se explica a proibição
dada em virtude de tal censura. Pois a censura priva não só da comunhão sagrada, mas
também da civil, em todas as coisas e em todos os casos não excetuados pelo direito.
Aqui, porém, não só não há exceção, mas também é explícita a proibição.
Que isto, porém, não é uma deposição absoluta, mas certa suspensão, patenteia-se
pela
pela limi
limitação
tação adjunta: Até que eles façam reparação. Disto é evidente que a isenção não
é perpétua, mas permanece enquanto durar o vínculo; é, portanto, à maneira de
suspensão do poder quanto ao uso, e não à maneira de deposição.
Mas, como se diz que tais últimas palavras não se encontram no códice manuscrito
encontrado no Vaticano, uma decisão similar, com aquela declaração expressa, acha-se
em Pascal II,[ 416 ] que diz: enquanto estiver excomungado. E contém-se uma limitação
similar no último capítulo do título De poenis.
poeni s.[ 417 ]
15. CONFUTAÇÃO DA OBJEÇÃO. – Nem obsta a isso a objeção do rei de que a excomunhão
é uma censura espiritual, e portanto a privação da jurisdição ou do poder temporal,
mesmo quanto ao uso e à maneira de suspensão, excede os seus fins.
Pois negamos a conseqüente; embora a excomunhão se diga realmente uma censura
espiritual (quer por sua matéria principal e seu fim, quer porque procede do poder
espiritual), da mesma maneira que o próprio poder, embora espiritual, se estende
indiretamente às coisas temporais, assim também a censura de excomunhão, que é
igualmente espiritual, também se estende indiretamente às coisas temporais.
Pois ela priva não só da comunhão sagrada, mas também da comunhão civil e
humana, como é evidente pela instituição e pelo uso da Igreja, aprovado por uma
tradição perpétua e fundado na Escritura. Pois em II João [1:10] se diz: Nem o saudeis
saudei s; e
diz São Paulo em I Coríntios [5:11]: Com este tal, nem comer deveis. E ele insinua a
razão disto naquele mesmo lugar, quando diz: Julguei (...)
(... ) que tal homem seja entregue
entregue
a satanás, para a morte da carne, a fim de que o espírito seja salvo no dia de nosso
Senhor Jesus Cristo. Assim, portanto, a excomunhão vexa o homem também nas coisas
temporais e corporais, para que a vexação lhe dê entendimento, e para que retroceda de
sua contumácia.
16. A DEPOSIÇÃO DO REI NÃO É O EFEITO PRÓPRIO DA EXCOMUNHÃO. P ELO USO DIUTURNO
DA IGREJA SE MOSTRA O PODER DO PONTÍFICE PARA DEPOR UM REI. – Mas o outro modo de
privação,
privação, à maneira
maneira de deposição
deposição do reino
reino ou de qualquer
qualquer poder temporal,
temporal, e
conseqüentemente com a perpétua isenção dos súditos da fidelidade e da obediência
civis, não é efeito próprio e intrínseco da excomunhão maior, se nada se lhe acrescenta,

208
como o suponho pela própria matéria, pelo uso comum da Igreja, e pelo que se pode
coligi
coligirr suficienteme
suficientemente
nte dos direitos
direitos já alegados.
alegados.
Contudo, também esta deposição e isenção são acrescentadas à censura como uma
pena sing
singul
ular,
ar, quando os deli
delitos dos príncipes
príncipes coagem os pontífices
pontífices a usar de tal
severidade, cujo uso já comprovamos suficientemente no livro III.
E assim se demonstra o poder em questão, porque um uso tão público e constante, e
tão eficaz sem a violência das armas, não poderia existir sem a fé da Igreja que
reconhece no pontífice um poder legítimo para impor tal pena, circunscrito pelo poder de
ligar e desligar dado a São Pedro por Cristo, e no báculo pastoral que recebeu para reger
a Igreja, como mostramos satisfatoriamente no lugar citado.
E aqui também tem lugar o argumento de São Paulo: para que recobre os sentidos, é
necessário às vezes afligir gravissimamente o homem pecador nas coisas corporais e
temporais. Ademais, trata-se de um argumento excelente, porque os súditos de um rei
necessitam freqüentemente deste remédio, para que não se subvertam.
E por isso São Paulo disse do herético, em Tito [3:10]: Evita-o depois da primei
pri meira
ra e
da segunda correção, o que costuma muito mais ser necessário no caso do príncipe do
que no caso dos outros.
17. RESPOSTA AO FUNDAMENTO DO REI. – E assim nada nos obsta o que o rei disse: que
essa pena excede em tudo os fins da excomunhão. Mesmo que seja assim com respeito à
deposição, ela não excede os limites do poder pontifício, como se abjura nesse
uramento.
Mas, como ele diz que o pontífice adquiriu esse direito sem nenhum justo título,
respondemos que ele não o adquiriu propriamente por um título humano, mas lhe foi
dado por título divino, como se mostrou pelas palavras de Cristo no livro III. Ali também
refutamos aquelas palavras do rei: pela usurpação injusta dos papas e pela violência
violênci a
secular. Pois é fácil dizê-las, especialmente para um rei potente e – digo-o sem querer
ofendê-lo – muito cativo e obcecado pela afeição à soberania; porém é impossível prová-
las. E assim o rei não aduziu nenhuma prova ou indício dessa injusta usurpação, nem é
verossímil que uma usurpação injusta prevalecesse contra o poder dos imperadores e dos
reis.
Por isso aquelas palavras que o rei agrega, sobre a “violência secular”, são antes
inacreditáveis por si, porque tal violência não se faz senão pelas armas e pelo poder
secular. Ora, os pontífices não tiveram tamanho poder que fosse suficiente para infligir
violência aos imperadores e reis. E assim nas histórias não se lê que os pontífices
tivessem praticado tal violência. É, portanto, uma asserção gratuita e que procede apenas
da liberdade de falar.
18. CONFUTAÇÃO DO COROLÁRIO QUE O REI INFERE. C ONFUTAÇÃO DO ÚLTIMO COROLÁRIO. –
Acerca dos corolários que o rei infere, o primeiro e o segundo, sobre a isenção dos
súditos da obediência e do juramento de fidelidade, foram suficientemente rejeitados pelo
que dissemos. Já o terceiro, sobre a comparação deste último juramento com o primeiro
sobre o primado, é de fácil refutação.

209
Pois com razão disse o cardeal Belarmino[ 418 ] que um está incluso no outro virtual
e veladamente. Porque o poder pelo qual o pontífice depõe os reis cismáticos e
pernicio
perniciosos
sos ao rebanho de Cristo
Cristo não é outro senão o poder que recebeu de Cristo,
Cristo, que é
único e indivisível (para que fique explicado), e por isso não se divide, não se diminui,
nem pode ser em parte abjurado e em parte retido. Como, portanto, no último juramento
o poder do pontífice para reprimir e punir os reis é abjurado, claramente se abjura todo o
seu poder espiritual, como se fazia expressamente no primeiro juramento.
Ora, é indício suficiente desta verdade que o próprio rei, para dar aparência de
fundamento à negação do poder de depô-lo, nega por conseguinte que Cristo tenha dado
a Pedro, ou mediante este ao Romano Pontífice, a soberania espiritual para reger a
Igreja, julgando que ambas as proposições são tão conexas que não se pode negar uma
sem negar a outra. Logo, quando no juramento se abjura expressamente uma delas, por
conseqüência a outra também é virtualmente negada, e com o mesmo perjúrio.
A última ilação, porém, como que uma protestação do rei acerca do fim do
uramento, não o ajuda em nada. Admitamos que a intenção do rei seja discernir e
conhecer os traidores pelo juramento; não obstante, o meio de que se serviu para isto foi
a abjuração do poder pontifício. Por isso, pelo juramento ele não só distingue os súditos
civilmente fiéis dos traidores, mas também induz os fieis católicos a trair e a abjurar a sua
fé. Disto resulta que o juramento separa antes os crentes dos não-crentes, ou ao menos
aqueles que recusam com constância a abjuração e aqueles que miseravelmente a
simulam para evitar incômodos temporais.
Por esta razão, tal juramento antes deve ser tido justamente como um sinal do cisma
anglicano do que como um penhor ou contrato de fidelidade dos súditos.
19. RESPOSTA À ÚLTIMA PROVA DO REI. E XAMINAM-SE AS PROPOSIÇÕES QUE O REI INFERE. –
Falta-nos responder à última prova do rei, tomada de catorze proposições que ele infere
da rejeição do juramento.
Dizemos, em primeiro lugar, que por estas proposições se colige com evidência que a
intenção do juramento não é tanto a prestação de obediência ao rei quanto a negação do
poder do pontífice e a sua usurpação.
Pois, de todas as proposições, apenas uma pertence à defesa da dignidade régia, e ela
não se segue à rejeição do juramento. Já quase todas as outras versam diretamente sobre
o poder do pontífice, e são bastante verdadeiras se entendidas em sentido correto – e
portanto o juramento é rejeitado
rejeitado com razão, porque contém asserções contraditóri
contraditórias,
as,
como o próprio rei confessa ao dizer que tais proposições se seguem por antítese da
rejeição
rejeição do referido
referido juramento.
Porém, para que isto se torne mais evidente, anotarei cada uma das proposições e o
que se deve pensar delas. A primeira é: Que eu, Jaime, não sou o rei legítimo deste
reino, nem de todos os meus domínios.
Ora, isto não se segue de modo algum da rejeição do juramento. Pois, embora Jaime
seja verdadeiro e legítimo rei, o juramento é perverso no sentido em que se abjura o
poder pontifício
pontifício para depô-lo
depô-lo por causa justa: de fato, o Papa
P apa tem este poder sobre reis e
imperadores legítimos e verdadeiros.

210
20. A segunda é: Que é lícito ao papa depor-me do reino por sua mera autoridade, ou,
se não pela sua, pela autoridade
autori dade da Igreja
Igreja ou da Sé Romana; e se não pela autoridade
autori dade
da Igreja ou da Sé Romana, ainda assim lhe é lícito depor-me do reino por outros
meios ou com a ajuda de outros.
A terceira: Que é lícito ao papa julgar ao seu arbítrio os meus reinos e domínios.
A quarta: Que o papa possui poder para permitir a qualquer príncipe estrangeiro a
invasão de meus domínios.
A quinta: Que é lícito ao papa isentar meus súditos da fidelidade e da obediência
devidas a mim.
A sexta: Que o papa possui licença para permitir a um ou a muitos de meus súditos
que portem armas contra mim.
A sétima: Que é lícito ao papa dar vênia aos meus súditos para infligir violência
contra a minha pessoa, contra os meus domínios ou contra quaisquer dos meus
súditos.
A oitava: Que se o papa me excomungar ou depor por uma sentença dada, os
súditos não estarão livr
li vres
es para persistir
persi stir na fidelidade
fi delidade e na obediência
obedi ência devidas a mim.
mi m.
A nona: Que se o papa me excomungar ou me depor judicialmente, os súditos não
estarão livres para defender a minha pessoa e a minha coroa com todas as suas forças.
A décima: Que se o papa promulgar contra mim alguma sentença de excomunhão
ou de deposição, os súditos, pela força da sentença, de modo algum estarão obrigados
a desvelar todas as conjurações e traições tramadas contra mim, que por ventura
venham a ouvir ou a conhecer.
A décima primeira: Que não é herético nem detestável opinar que os príncipes
excomungados pelo papa podem ser depostos ou mortos impunemente por seus súditos
ou por outros quaisquer.
A décima segunda: Que o papa tem poder para isentar meus súditos deste
uramento, ou de alguma parte sua.
21. Mas estas asserções se sobrepõem mais ou menos numa só, que é declarada por
partes ao long
longoo das doze proposições,
proposições, para exagerar
exagerar o assunto. Mas em alg
algumas delas
delas
acrescenta-se entrementes alguma expressão que destrói e comuta o verdadeiro sentido.
O que, então, se diz na segunda: o papa pode depor o rei Jaime por sua mera
autoridade é muito verdadeiro e católico, enquanto a expressão mera não excluir causa
legítima, mas apenas declarar a suficiência de sua autoridade, sem a ajuda de outra. E,
porque a proposição
proposição fala em particul
particular
ar de uma pessoa em quem não falta a legíti
egítima
ma
causa, como é evidente pelo que dissemos e é manifesto a toda a Igreja, por isto mesmo
a proposição, sem nenhuma equivocação, tem um sentido verdadeiro, porque não exclui
a causa legítima, mas a supõe.
Mas na terceira, que é mais ou menos similar, a expressão ao seu arbítrio contém
uma ambigüidade e dá ocasião a calúnia, principalmente porque em outros lugares o rei
sói empregar termos como arbitrariamente, ou algo similar. Assim, se se o entende
como um arbítrio justo e legítimo, a proposição é verdadeira; mas se se o entende como

211
uma mera e absoluta vontade e como um simples capricho, temos aqui uma impostura,
que não pode, por nenhuma conclusão
conclusão verossímil,
verossímil, ser inferida
inferida da rejeição do juramento.
E para as outras valem as mesmas razões, pois todas versam sobre a soberania do
Papa para coagir os cristãos rebeldes (mesmo que sejam reis) até ao ponto de sua
deposição, se o postulam a gravidade da causa e a necessidade espiritual do reino.
22. A DÉCIMA PROPOSIÇÃO ENVOLVE REPUGNÂNCIA [À RAZÃO] E DÁ OCASIÃO A CALÚNIA. –
Apenas quanto à décima proposição é necessário advertir que (como indicamos acima)
ela em parte envolve repugnância [à razão] e em parte dá ocasião a calúnia.
Digo que envolve repugnância [à razão] porque, se o rei, por uma sentença justa do
Papa, é ipso facto deposto, por isso mesmo aqueles que antes lhe eram súditos, deixam
de ser súditos. Pois o rei já não seria mais rei nem superior. E por isso já não poderiam
chama-se traidores, se tramassem alguma conjuração contra ele. Tampouco os cidadãos
estariam obrigados, ao menos a título de fidelidade e de sujeição, a revelá-la.
Mas acrescento que aquele modo de falar pode dar abertura a calúnias, porque o rei
criminoso, embora já deposto, não pode imediatamente ser morto com justiça por
alguém do povo, por uma conjuração ou por insídias; porque tampouco é lícito aos
cidadãos matar deste modo, por sua própria autoridade, um outro cidadão privado que
seja criminoso, mas só pela autoridade pública, ou pelo poder recebido dela, que o pode
dar por sentença, ou por ordem, ou por uma comissão especial.
23. Por esta razão, após a deposição do rei, se algumas pessoas maquinarem a sua morte
através de insídias privadas, não recebendo poder de um juiz legítimo, aquele que vier a
sabê-lo (fora da confissão) pode ser obrigado pela caridade a revelá-lo para impedir o mal
do próximo, quando concorrem as circunstâncias que costumam ser necessárias para tal
obrigação.
Já quando se procede contra a pessoa de tal rei segundo o teor de uma justa
sentença, sem exceder os limites do poder concedido por um juiz legítimo, então cessa
toda obrigação de descobrir o segredo, porque já não se trata de insídias iníquas, mas de
guerra justa. Portanto, como a proposição fala indistintamente, afirmei que ela pode dar
ocasião a calúnia, como se dissesse que os cidadãos nunca estariam obrigados a revelar –
por nenhuma razão, nem mesmo pela pela caridade
caridade – as conjurações e traições,
traições, mesmo
quando fossem injustas e iníquas. Isto é falso, e não se segue da rejeição do juramento,
como é evidente por si.
24. O DUPLO SENTIDO DA DÉCIMA PRIMEIRA PROPOSIÇÃO . – Deve-se ter a mesma cautela
quanto à décima primeira proposição; pois a sua sentença é, em suma, que um rei
excomungado pode ser deposto ou morto impunemente por qualquer um. Assim
declarada simpliciter
simpli citer , ela é muito falsa.
Pois a excomunhão, sozinha e desnuda, não dá poder para matar o excomungado,
nem para privá-lo do domínio de suas coisas, mas apenas o priva da comunhão, e pode
privá-lo
privá-lo por conseguinte
conseguinte do uso de algalguma coi
c oisa
sa própria, que não pode ser usada sem tal
comunhão.

212
O rei excomungado, portanto, se a sentença não contém nada além da excomunhão,
não pode ser imediatamente deposto ou morto por seus súditos ou por quaisquer outros,
e isto tampouco se segue da rejeição do juramento.
Porém, se na proposição a palavra “excomunhão” compreende também deposição e
difidência, o que ocorre às vezes mediante uma sentença canônica, então ela contém
verdade.
E até mesmo se a proposição fosse entendida como apenas referente à censura de
excomunhão em sua forma comum, então, se o sentido da proposição for que o príncipe
excomungado, enquanto durar a excomunhão, está privado do direito de preceituar a
seus súditos que lhe obedeçam (e que, se ele os coagir, poderão resisti-lo até mesmo com
uma guerra justa), neste sentido a proposição será muito verdadeira, pois a doutrina
contrária é herética e oposta à força e ao poder das chaves da Igreja.
Contudo, na proposição e em suas palavras desnudas não se explicam
suficientemente estas coisas, e portanto deve-se evitar a calúnia, e deve-se falar
abertamente.
25. A DÉCIMA TERCEIRA PROPOSIÇÃO É VERDADEIRA E SEGUE-SE RETAMENTE DA REJEIÇÃO DO
JURAMENTO. – A décima terceira proposição é: Que este juramento não é de modo algum
administrado por autoridade legítima e plena. Isto, de fato, segue-se abertamente da
rejeição do juramento, porque ninguém pode propor um juramento iníquo com
autoridade legítima.
legítima.
A proposição é, contudo, muito verdadeira e certíssima, o que se mostra de modo
manifesto pelo que já dissemos, pois por seu teor fica evidente que todos os artigos
versam sobre o poder do pontífice, e o juramento contém freqüentemente muitos artigos
contrários ao poder do Papa. Portanto, é manifesto que o rei temporal não tem
autoridade legítima para administrar tal juramento a seus súditos.
E com a mesma clareza se segue que tal juramento não é prestado somente sobre a
obediência civil, mas também sobre a sagrada e sobre o poder apostólico; ou melhor, ele
é exigido contra o poder apostólico.
26. A ÚLTIMA PROPOSIÇÃO É FALSA E MAL CONCLUÍDA. – A última proposição é: Que este
uramento deve ser tomado com equivocação, com evasão mental ou reserva tácita, e
não segundo a sentença do espírito nem segundo o íntimo do coração, na verdadeira fé
de homem cristão. Ora, isto não é de modo algum conexo ou conseqüente à rejeição do
uramento, porque, embora esta parte dele também seja rejeitada, não se afirma por isso
que se deva tomar o juramento com equivocação. Pois estas afirmações são contrárias, e
ambas podem ser falsas, e entre elas há um meio-termo, a saber: não prestar tal
uramento de nenhum dos dois modos.
E assim estamos tão longe de dizer ou cogitar que tal juramento deva ser tomado
com equivocação, que antes o reprovamos, tanto porque aquilo se faria com perjúrio à
última parte do juramento, quanto também porque se faria com escândalo e com uma
omissão da fé em tempo devido – e mais: com uma negação externa da fé, como
explicaremos em mais detalhe no próximo capítulo.

213
27. MOSTRA-SE A FALSIDADE DESTAS PALAVRAS. – Por último, após as proposições, o rei
acrescenta as seguinte palavras: Estes são os artigos derivados por antítese de várias
artes do juramento, cujas teses contrárias não tocam em nada o primado do pontífice
nas causas espirituais, e nunca em nenhum concílio geral plenamente terminado se
concluiu, ou se definiu, que tal poder sobre os reis pertence à autoridade do pontífice.
E, por fim, até hoje os seus doutores
doutores escolásticos dissidiam
dissi diam entre
entre si sobre
sobre este ponto
em um litígio i nexplicável.
nexplicável.
Mas já mostramos suficientemente de que modo o poder que é explicado nesses
artigos pertence à dignidade espiritual do pontífice, e como as teses opostas inclusas no
uramento a contrariam
contrariam diretamente.
Mas o que o rei acrescenta – que em nenhum concílio geral plenamente terminado se
concluiu, ou se definiu, que tal poder sobre os reis pertence à autoridade do pontífice, e
que, ademais, há dissídio entre os escolásticos acerca deste poder – é abertamente falso
quanto às duas partes, e não pôde ser afirmado pelo rei senão porque, não podendo
penetrar nem os concílio
concílioss nem os escolásti
escolásticos,
cos, fora eng
enganado
anado pelos protestantes.
Pois acima, no livro III, mostrou-se que muitos concílios gerais reconheceram este
poder no Sumo P ontífice,
ontífice, e o aprovaram; além disso, sem a definição
definição de um concílio,
concílio, as
definições dos pontífices são suficientes para estabelecer esta verdade como certa. Não
obstante, com freqüência os pontífices de fato usaram deste poder junto com os
concílios gerais, como Inocêncio III com o Concílio de Latrão (capítulo 3),[ 419 ] e
Inocêncio IV com o Concílio de Lyon.[ 420 ] Daí não haver dúvida de que os concílios,
ao aprovarem o que foi feito, reconheceram o poder do pontífice.
Além disso, essa verdade está fundada sobre a tradição e o consenso comuns da
Igreja.
28. T ODOS OS DOUTORES CATÓLICOS ADMITEM NO P APA JURISDIÇÃO PARA DEPOR UM REI
HERÉTICO. – Nem há dissensão quanto a este ponto entre os doutores católicos, que,
como opino, são aqueles que o rei entende como escolásticos, pois seus teólogos
detestam a teologia escolástica. Sobre o consenso comum dos católicos quanto a esse
ponto já dissemos
dissemos o bastante no livro III, e mais
mais amplamente
amplamente o disse
disse nosso cardeal
Belarmino, no princípio do livro Contra Barklay.[ 421 ]
E os que dizem que eles dissidiam devem mostrar os autores católicos que
contradizem essa verdade, o que certamente não podem fazer. Pois mesmo os
escolásticos que parecem às vezes restringir o poder do pontífice, como Ockham,[ 422 ]
Gerson,[ 423 ] Paris[ 424 ] e similares, nunca denegaram este poder de depor reis
heréticos ou perniciosos à salvação de seus súditos, ainda que haja entre eles diversidade
quanto ao modo de falar: por exemplo, se o Papa pode fazê-lo por si e imediatamente, ou
só por preceituar aos súditos que expulsem tal rei – e nisto também muitos deles, e os
que opinam melhor, e todos os outros crêem que os dois modos convêm ao poder do
pontífice.
pontífice.
E na verdade é inacreditável que um reino cristão não tenha remédio contra um rei
herético. De fato, isto vai contra toda razão e contra a perfeita providência de Deus,

214
porque o rei herético
herético facilmente
facilmente infecta o reino todo, como a experiênci
experiênciaa o ensina.
ensina. P or
isso também o Papa, se é herético, pode ser deposto pela Igreja.
Portanto, é necessário que haja na terra um poder que possa depor um rei herético,
pertinaz
pertinaz e incorrig
ncorrigível.
ível. P ortanto, deve havê-lo
havê-lo maximamente
maximamente no pontífice,
pontífice, enquanto ele
ele
é, na terra, o supremo pastor visível das almas, e nem se poderia colocar
convenientemente em outro tal poder, pois que esta privação, que está exposta a muitas
dificuldades e perigos, deve ser feita com maior maturidade e justiça, como explicamos.

“Quia iure naturali debita est”. É por direito natural que as autoridades civis governam politicamente a
[ 412 ] “Quia
comunidade civil. Por isso, é uma ordenação da razão o exercício da autoridade política sobre os reinos e
urisdições de sua competência. Sobre esse tema, ver HEINRICH R OMMEN,O Estado no pensamento católico:
tratado
tratado de f ilosofia
ilosofia política,
política, 1ª ed., São Paulo, Editora Paulinas, 1967. [N. C.]
[ 413 ] Ausente desta compilação.
[ 414 ] Tractatus de legibus ac Deo legislatore,
legislatore, Antuérpia, 1613, III, pp. 132-240.
[ 415 ] Decretum
Decretum Gratiani,
Gratiani, II, causa 15, q. 6, can. 4 (Nos sanctorum), p. 1014.
[ 416 ] Op. cit.,
cit., II, causa 15, q. 6, can. 5 (Iuratos Milites), p. 1014.
[ 417 ] Decretum
Decretum Gratiani,
Gratiani, V,V, tit. 36, c. 13, fol. ccc ccv
cc v.
[ 418 ] Apologia Robertii S. R .E. .E . Cardinalis
Cardinalis Bellarmini...
Bel larmini...,, Roma, 1609, pp. 201-254.
[ 419 ] Conc. Lateranens
L ateranenseeIV 1215, COD: 234; Mansi 22, 953-1086.
[ 420 ] Conc. Lugdunens
L ugdunenseeI 1245, COD: 283; Mansi 23, 613-619.
[ 421 ] Tractatus de Potestate Summi Pontificis in rebus temporalibus adversus Barclaium, Barclaium, Roma, 1610, caps.
37-42, pp. 257-276.
[ 422 ] GUILHERME DEO CKHAM, Dialogus de postestate papae et imperatoris, imperatoris, Colônia, 1460, p. I, lib. VI, cap. 6,
ff. 87v-88r.
[ 423 ] J EANG ERSON, Tractatus de potestate ecclesiastica et de origine iuris et legum, legum, in Ioannis Gersonii Opera
omnia, Haia, 1728, t. 2, Consideratio 12, cols. 246-250.
[ 424 ] P ARIS DELP OZZO, De Syndicatu,
Syndicatu, Lyon, 1548, § An liceat occidere regem tyrannum, ff. 11-12.

215
Capítulo VII
O Sumo Pontífice não só podia, mas também
devia afastar com seu aviso os católicos ingleses da
profissão
profissão do referido
referi do juramento
1-2. Três objeções propostas pelo rei contra o breve pontifício. 3-4. Fundamentos da
doutrina contrária. O pontífice tem direito a examinar tal juramento. 5-6. O pontífice
está obrigado a reprovar tal juramento. 7-9. Mesmo que a controvérsia sobre o
juramento fosse dúbia,
dúbi a, o pontífice deveria dirimi-la.
diri mi-la. 10. A primeira
primei ra objeção se volta
contra ele próprio. 11-12. O pontífice não impôs nenhuma pena ao rei. 13. Diferença
entre o breve de Pio V e o de Paulo V. 14. Responde-se à segunda objeção do rei.

1. T RÊS OBJEÇÕES PROPOSTAS PELO REI CONTRA O BREVE PONTIFÍCIO. – Até agora
demonstramos a injustiça e os erros do referido juramento de fidelidade, e refutamos as
vãs escusas. Resta-nos defender os breves pontifícios e responder às querelas e às
objeções do rei, que podem ser brevemente e facilmente elucidadas pelos princípios
postos.
No começo, pois,
pois, da Apologia o rei ousa repreender o pontífice porque pelo breve breve
enviado à Grã-Bretanha, e ali publicado, ele proibiu a todos os papistas que se
deixassem atar por este juramento.[ 425 ] E nele o rei nota especialmente três erros: um,
contra o próprio rei; outro, contra os católicos ingleses; o terceiro, no próprio modo de
refutar o juramento.
Sobre o primeiro, fala assim: Como não há guerra declarada, não se pode negar que
o pontífice agiu contra os bons costumes e contra a usança dos príncipes,
especialmente dos cristãos, ao condenar-me sem me ouvir. Por isso, colige em seguida:
O pontífice, se se estima meu juiz competente, como costuma dizer, por que me
condena sem ouvir minha causa? Se a coisa não é assim, e se entre o papa e eu não há
nenhuma relação (o que é muito verdadeiro), por que se imiscui em obra que não é
sua, e mete a foice em messe alheia, principalmente
princi palmente em matéria civil,
civi l, que não lhe diz
respeito de modo algum?[ 426 ]
2. Segundo, ele prova que o Papa pecou contra os católicos da Inglaterra , porque
porque os
atirou em míseras angústias: ou renunciam à fidelidade ao príncipe com perigo de
vida e com a perda dos bens, ou em detrimento da fé católica põem em risco a
salvação de suas almas, como pretende
pretende o pontífice.[ 427 ] De fato, ambos os perigos
seriam evitados se se lhes permitisse prestar o juramento de boa fé, como já haviam
começado a fazer.

216
Terceiro, prova que o pontífice errou quanto ao modo da reprovação, porque porque
emprega muito trabalho em rever a fórmula íntegra do juramento quanto às palavras,
mas depois, com uma palavra geral, condena o juramento, não indicando o que
repreende, para que possa ser emendado ou benignamente interpretado por ele, ou, se ele
próprio
próprio não quisesse
quisesse fazê-lo, para que os seus súditos
súditos católi
católicos tivessem
tivessem algu
alguma
ma escusa
ao recusarem o juramento.[ 428 ]
3. FUNDAMENTOS DA DOUTRINA CONTRÁRIA. O PONTÍFICE TEM DIREITO A EXAMINAR TAL
JURAMENTO. – Mas estas objeções procedem de dois princípios errôneos: um é que o
pontífice
pontífice não tem poder espiri
espiritual
tual direto sobre o rei; o outro é que o pontífice
pontífice não tem,
muito menos, poder também indireto sobre o rei em coisas temporais.
Mas, no livro III, já estabelecemos os dogmas contrários e já os provamos. Tendo-os
como supostos, facilmente se responde a todas as objeções.
Pois primeiro dizemos que o pontífice podia, de direito, examinar a fórmula de
uramento prescrita pelo rei, e enquanto a julgasse contrária à religião cristã ou sacrílega
com relação à reverência do juramento, ele podia reprová-la ou proibi-la.
Prova-se o primeiro, porque o juramento é coisa muito espiritual e sagrada. Portanto,
está diretamente sob o poder espiritual do pontífice. Logo, pertencia ao múnus pontifício
reprovar um juramento sobre coisa iníqua, ou muito perniciosa aos fiéis, tal qual está
contida na fórmula, como mostramos suficientemente acima.
4. Segundo, quando a lei civil excede seus termos temporais, ou quando dispõe das
coisas temporais favorecendo os pecados (ou dando-lhes ocasião), o pontífice, enquanto
seu poder espiritual se estende indiretamente às coisas temporais, pode por este reprová-
la, anulá-la, ou declará-la nula, como mostramos extensamente acima, no livro III, cap.
XXII.[ 429 ]
Mas aquela fórmula, como o próprio rei defende, é certa pragmática régia ou lei civil,
que (como mostramos) excede os limites da matéria civil e temporal, e contém muitas
coisas contrárias à religião e aos bons costumes, de tal modo que os fiéis não podem
observá-la
observá-la sem prejuízo de suas almas.
Portanto, o pontífice, ao reprová-la, usou do legítimo poder das chaves: da chave da
ciência, declarando a injustiça e a malícia do juramento (tal é o ofício próprio do pastor,
a quem diz respeito pastorear a grei de Cristo); da chave do poder, proibindo o uso de tal
uramento.
Isso também se confirma porque o pontífice tem o direito de defender o poder que
Cristo conferiu a sua Sé. Ora, o juramento é diretamente contrário ao poder pontifício.
Logo, ele podia de direito reprová-lo e proibi-lo eficazmente.
5. O PONTÍFICE ESTÁ OBRIGADO A REPROVAR TAL JURAMENTO. – Ademais, acrescentamos
que ele não só não podia, mas também não devia – pela força de seu ofício e dever –
calar-se ou ocultar a verdade, mas devia admoestar seus súditos a abster-se de tal
uramento.

217
Prova-se o primeiro: ele está obrigado a pôr às claras mediante a doutrina os
escândalos públicos e as ocasiões de pecado, quando os inimigos da Igreja os oferecem
aos fiéis por fraude e engano.
E semelhantemente está obrigado, enquanto está ao seu alcance, a remover ou
impedir tais perigos por seu poder, maximamente quando a autoridade pública os aprova
e no-lo propõe.
De fato, ambas as coisas estão contidas nas palavras de Cristo: Apascenta as minhas
ovelhas,[ 430 ] onde se lhe concede o poder (como se explicou largamente acima) e,
unto com esta concessão, um preceito imposto a São Pedro e a seus sucessores – o que
é evidente tanto pela forma das palavras quanto pela matéria. Pois, uma vez suposto o
próprio
próprio encargo,
encargo, tal preceito
preceito é conatural,
conatural, pelo
pelo que disse
disse São Paul
Pa ulo:
o: os superiores
superiores da
Igreja prestarão contas a Deus pelas almas dos súditos.[ 431 ]
Ora, nesse juramento concorrem todas estas coisas, a saber, uma latente ocasião de
erro e de engano, por aceitar-se a abjuração do poder pontifício sob cor de juramento de
fidelidade civil, e conseqüentemente uma ocasião de cisma, heresia e perjúrio.
Portanto, o pontífice estava obrigado, em virtude de seu encargo, a expor a verdade,
não obstante qualquer incômodo, porque com tanto detrimento espiritual não se deve
calar a verdade por incômodos que se temem em razão da malícia dos homens.
6. Ainda de outro princípio esta obrigação se segue: o pontífice está obrigado a guardar e
a defender os direitos eclesiásticos, como fiel e prudente dispensador.[ 432 ] Isto, já que
é verdadeiro quanto a todos os bens eclesiásticos, tem maximamente lugar quanto à
guarda da dignidade e do poder pontifícios, pois são os fundamentos da unidade da
Igreja, como o próprio Cristo ensinou, e são maximamente necessários para a
preservação da verdade da fé, como o mostra a própria
própria experi
experiênci
ência,
a, e como se provou
no livro III.
Ora, de fato no reino da Inglaterra o poder pontifício é erodido por esse juramento,
mediante poder e perversa doutrina – o que daí pode difundir-se a outros reinos por
perverso exemplo.
exemplo. Logo,
Logo, o pontífice
pontífice estava obrig
obrigado, não obstante qualquer
qualquer dificul
dificuldade
dade
ou impedimento, a se opor ao juramento e a abominá-lo.
7. MESMO QUE A CONTROVÉRSIA SOBRE O JURAMENTO FOSSE DÚBIA, O PONTÍFICE DEVERIA
DIRIMI-LA. – Ainda mais, acrescentamos por último que não só em matéria tão clara,
como é a perversidade do juramento, mas também se a matéria fosse dúbia, caberia ao
pontífice
pontífice exp
expor
or a verdade, para que os fiéifiéiss não vivessem
vivessem em trevas com respeito
respeito a
assunto tão grave e perigoso.
Assim ensina de modo geral Inocêncio III, no capítulo Per Venerabilem (título Qui
ilii sint legitimi ),[ 433 ] e nos aduz aquilo de Deuteronômio [17:8-12]: Se vires que teu
uízo é difícil e ambíguo, etc., até à parte: Aquele porém que, deixando-se
deix ando-se levar pela
soberba, não quiser obedecer ao mandado do sacerdote, sacerdote, que nesse tempo for o
ministro do Senhor, teu Deus, nem ao decreto do juiz, esse homem morrerá. Esta lei,
embora diretiva e moral, ainda agora tem lugar, não em virtude da Lei Antiga, mas em
virtude da fé evangélica, porque, suposto o poder de sumo sacerdote da lei da graça,

218
aquela obrigação segue-se necessariamente da lei como algo quase conatural àquele
poder.
poder.
Daí tem-se que a razão é adequada, pois a matéria é espiritual, tanto porque pertence
à doutrina da fé e aos costumes (cuja explicação cabe aos pastores da Igreja e não aos
reis, como se provou suficientemente acima pela Escritura e pelos Padres), quanto
também porque atinge proximamente a salvação das almas, pois examina se tal
uramento é nocivo à alma ou não. Logo, um juízo em tal dúvida cabe aos pastores de
almas, e principalmente à sua cabeça.
8. Aqui há que se fazer uma confirmação e uma explicação: quando nasce uma
controvérsia similar entre um rei (mesmo católico) e o Papa, para saber se algum
uramento é lícito e consentâneo à fé, certamente não se deve dirimir a controvérsia pela
guerra, porque nem a guerra é um meio conveniente para declarar a verdade moral, nem
seria esta uma maneira conveniente de prover a Igreja nas coisas espirituais, porque daí
necessariamente nasce o cisma, e o reino dividido em si mesmo não pode subsistir.[ 434
]
Tampouco tal controvérsia pode ser encerrada por árbitros, porque, ao se declarar
uma verdade moral, tal juízo sobre matéria dúbia não transcende a opinião humana, nem
pode ser dado por um árbitro
árbitro com maior poder; por isso, isso, não é sufici
suficiente
ente para a
segurança da Igreja, nem pode o pontífice se submeter a tal juízo. Portanto, é necessário
que tal controvérsia seja dirimida pelo rei ou pelo pontífice.
Ora, ninguém que ler as Escrituras preferirá nesse tema o poder régio ao pontifício,
porque este é superior
superior simpliciter
simpli citer , é espiritual, e pertence ao pastor vigário, a quem
Cristo comissionou a direção das ovelhas na fé e na moral.
Logo, o rei deve, em semelhante controvérsia, ser dirigido e governado pelo
pontífice;
pontífice; como uma ovelha,
ovelha, deve ser conduzido e apascentado pelo pastor.
pastor.
9. Disto se prova suficientemente que o rei da Inglaterra não só se queixa sem razão do
Sumo Pontífice, que deu um juízo sobre a sua fórmula de juramento, mas também peca
gravemente ao discordar de seu juízo, quando deveria qual súdito obedecê-lo,
princi
principal
palmente
mente em casos espiri
espirituai
tuais,
s, aos quais
quais pertence evidentemente
evidentemente a controvérsia
controvérsia
sobre o juramento.
Ocorre que até agora ele não pôde apresentar nenhuma escusa ou defesa de seu
uramento, como se mostrou na primeira parte deste livro; e o que dissemos ali prova
que não é possível encontrar-lhe nenhuma escusa ou defesa.
Tampouco objetou ao breve pontifício algo grave ou de alguma importância,
princi
principal
palmente
mente no que tange
tange ao ponto da causa princi
principal
pal,, que é sobre a honestidade
honestidade do
uramento, como veremos em seguida.
10. A PRIMEIRA OBJEÇÃO SE VOLTA CONTRA ELE PRÓPRIO. – Assim, em sua primeira
repreensão, em que argüi que o pontífice o condenou sem ouvi-lo e sem que houvesse
guerra declarada entre eles, o rei peca de múltiplos modos no argumento.

219
Primeiro, porque seu raciocínio sobre a guerra não declarada é impertinente. Pois
mesmo entre príncipes temporais (maximamente entre cristãos), embora nenhum deles
esteja sujeito a outro, não é lícito condenar a outro sem ouvi-lo, mesmo após uma guerra
declarada. Porque, para que uma guerra seja justamente declarada, é necessário que o
agressor não se mova contra uma parte não ouvida. Pois afirma Agostinho:[ 435
]Definem-se justas as guerras que vingam as injúrias,
i njúrias, se o povo ou a cidade
ci dade que serão
atacados negligenciaram vindicar suas ações ímprobas, ou devolver o que arrebataram
mediante injúrias. Ora, estas condições não podem aplicar-se a uma parte não ouvida.
Portanto, mesmo numa guerra justa, não se pode dar justa condenação contra uma parte
não ouvida. Portanto, tampouco pode um rei, após declarada a guerra, condenar um
igual ou superior sem ouvi-lo, por uma sentença ou de outro modo, tal como o rei parece
supor em sua objeção.
Em segundo lugar, porque, embora entre outros príncipes igualmente soberanos isto
proceda algu
algumas
mas vezes, há uma ordem muitomuito diversa
diversa entre ele
ele e o pontífice,
pontífice, e por isso
abusa da comparação, porque de iure é súdito do pontífice, em razão do batismo e da fé
que nele professou.
Porém, se o próprio rei não receia negar esta verdade e professar publicamente o
contrário, como pode queixar-se de que é condenado sem ser ouvido?
Ademais, quando o rei diz que não há guerra declarada entre ele e o pontífice, se o
entende de guerra material e corporal, o que isto tem que ver com uma causa que é, por
assim dizer, direta e principalmente espiritual? Mas uma guerra maximamente espiritual
foi declarada entre o rei da Inglaterra e o Sumo Pontífice, e quem primeiro a declarou
publi
publicamente foi Henrique,
Henrique, a quem Jaime,
Jaime, seu sucessor,
sucessor, imita.
mita. E isto é sufici
suficiente
ente para
não poder, embora condenado, queixar-se de que foi condenado sem ser ouvido.
11. O PONTÍFICE NÃO IMPÔS NENHUMA PENA AO REI. – Por último, por que se queixa de ser
condenado? Pois em nenhum dos dois breves pontifícios se lê nenhuma condenação,
nenhuma excomunhão, nenhuma deposição, nem sequer foi infligida alguma pena nem
foi dada uma sentença.
Pois, se ele chama de sua condenação a reprovação e a proibição do juramento,
então diz sem razão que foi condenado sem ter sido ouvido, porque a fórmula do
uramento é ouvida e lida em todo lugar, o que é suficiente para que seja condenada.
Nem é necessário,
necessário, além
além disso,
disso, ouvir
ouvir a pessoa, porque não se deu ao rei nenhuma
sentença declaratória de crime cometido pela promulgação e petição de tal juramento,
nem se lhe deu pena pelo mesmo crime.
Mas o rei diz que o pontífice o condenou sem ouvi-lo, em parte por arrolá-lo entre
os perseguidores eem parte por ordenar aos católicos ingleses que se abstenham do
uramento.[ 436 ] Ora, nenhum dos dois diz respeito a uma condenação própria e
urídica, que não se deve dar contra uma parte não ouvida. Pois às vezes é lícito julgar
uma opinião privada, manifesta pela fama pública e por seus efeitos, e falar de alguém
como autor de algum crime, mesmo que ele não seja ouvido antes, como é manifesto por
si.
si.

220
Mas por que razão o rei da Inglaterra pode ser justamente arrolado entre os
persegui
perseguidores
dores dos fiéis,
fiéis, vê-lo-emos no capítulo X.
Sobre a proibição do juramento, já dissemos que o rei foi suficientemente ouvido
quanto a esta parte, ao se ler a própria fórmula do juramento – e nem ele nega, nem
pode duvidar,
duvidar, que por sua autoridade
autoridade ela foi feita
feita e proposta a seus súditos.
12. Portanto, se o rei fala apenas de condenação privada, por assim dizer, o dilema que
ele põe nada acrescenta ao assunto, porque para julgar algo privado não é necessário
haver um juiz competente, isto é, que disponha de jurisdição. Tampouco é sempre
necessário, como tenho dito, que se ouça a pessoa julgada: é bastante que haja causas
suficientes, razões e motivos para assim julgar.
Tampouco o dilema está retamente adequado à segunda parte da proibição do
uramento, porque, para reprovar uma falsa doutrina, não é necessário ser juiz
competente de seu autor, nem é necessário ouvi-lo de outro modo que por seus escritos.
Já para proibir sob preceito tal juramento, é de fato necessário ter-se jurisdição sobre
aqueles a quem se dá o preceito, jurisdição esta que os católicos ingleses reconhecem no
Sumo Pontífice enquanto pastor. Logo, o pontífice pôde impor tal proibição aos ingleses,
princi
principal
palmente
mente porque não tanto promulga
promulga uma lei nova, mas declara e confirma com seu
preceito
preceito a lei divina
divina e natural que manda evitar
evitar um juramento ilícito
ícito e fugi
fugir da profissão
profissão
de um falso erro.
Mas com respeito ao rei, embora seja muito verdadeiro que o pontífice é seu juiz
competente, como mostramos acima, neste ato não se exerceu nenhum juízo de
urisdição sobre o rei. Pois, mesmo que o autor de semelhante juramento fosse um rei
pagão
pagão não batizado,
batizado, se o juramento envolvesse
envolvesse alg
algum erro sobre a fé cristã
cristã ou uma
injúria contra nossa religião, o pontífice poderia reprová-lo e proibi-lo aos católicos que
vivem sob algum imperador gentio, como é manifesto pelo que dissemos até agora.
13. DIFERENÇA ENTRE O BREVE DE P IO V E O DE P AULO V. – P or isso é sem razãora zão que o
rei, na página 7 de sua Apologia, compara e equipara o breve pontifício de Paulo V à
sentença dada por Pio V contra Elizabete, dizendo: Porventura pôde ele (i.e. (i. e. Pio V)
estabelecer algo mais acerbo e grave do que o que este pontífice estatui contra mim?
Pois não se pode discernir
discerni r facilmente que diferença há entre
entre isentar os súditos do
vínculo de obediência, preceituando-os a lançarem mão das armas, como fez Pio V, e
mandar aos súditos que não obedeçam ao juramento de fidelidade solicitado pelo
ríncipe, como faz o pontífice atual.[ 437 ]
Embora o que ambos os pontífices fizeram tenha sido muito justo, os dois feitos são
tão distantes que facilmente se discerne a diferença entre eles.
Pois Pio V proferiu sentença contra a pessoa da rainha, proclamou uma pena
gravíssima, e usou de seu poder contra ela de modo severo, embora justo.
Por outro lado, Paulo V não proferiu em seus breves nenhuma sentença contra o rei
da Inglaterra, nem o prejudicou até agora com nenhuma pena, nem declarou com sua
autoridade que ele incorreu em alguma pena, mas apenas externou a reprovação do
uramento, e proibiu, por conseguinte e necessariamente, a obediência ao rei que o

221
ordenava. Não quis, porém, como o rei sempre alega, que os súditos não prestassem a
seu rei um juramento de fidelidade, simplici ter e em termos absolutos, mas que não
simpli citer
prestassem esse juramento em particular
particular,, que é injurioso
injurioso à fé e à rel
re ligião cristã.
E por isso são coisas muito diferentes o proibir aos súditos do rei este juramento e o
isentá-los da obediência civil. Eles podem, de fato, sem ser coagidos a este juramento,
prestar a obediência
obediência civil
civil e jurar aquilo
aquilo que não repugna
repugna à pureza da fé cri c ristã.
stã.
14. RESPONDE-SE À SEGUNDA OBJEÇÃO DO REI. – À segunda objeção, sobre o detrimento e
o perigo para os súditos, respondemos que os súditos católicos foram reduzidos a esse
estado de angústia não porque o pontífice ensinou a verdade e porque proibiu o que é
mal por si, mas por causa do rei que ordenou tal juramento. Supostas a força e a coação
do rei, não pôde o pontífice calar a verdade ou dissimular o erro, mas cumprir o seu
encargo, como é justo.
À terceira outros responderam muito bem: o pontífice escreveu como legislador, e
por isso expôs
expôs brevemente o que se devia evitar.
evitar.
Mas podemos acrescentar que não convinha ao pontífice designar o que repreendia
no juramento, pois do princípio ao fim não há quase nada nele que não se deva evitar ou
eludir, porque, em cada uma de suas partes (como mostramos), ou inculcam-se os
mesmos [pontos], ou diferentes. E todas as suas sentenças estão tão conexas entre si,
que dificilmente alguma delas está livre da suspeita de erro.
Portanto, com um conselho não só prudente, mas também necessário, o pontífice
não designou nada em particular que fosse digno de repreensão, para que não parecesse
aprovar tacitamente o resto.

[ 425 ] Apologia,
Apologia, p. 5.
[ 426 ] Op. cit, pp. 6-7.
[ 427 ] Op. cit, pp. 5-6.
[ 428 ] Op. cit, p. 8.
[ 429 ] Ausente desta edição.
[ 430 ] João 21:16.
[ 431 ] Hebreus 13:17.
[ 432 ] Lucas 12:42.
[ 433 ] Decretales
Decretales Gregorii
Gregorii IX, Paris, 1511, IV, tít. 17, c.13
c. 13 (Per venerabilem),
venerabilem), fol. cccc
cc cc xxi.
[ 434 ] Marcos 3:24.
[ 435 ] Quaestiones in Heptateuchum,
Heptateuchum, lib. VI, q. 10 (PL 34, 781).
[ 436 ] Apologia,
Apologia, p. 6.
[ 437 ] Op. cit.,
cit., p. 7.

222
Capítulo VIII
Podem os ingle
i ngleses
ses que admitem o juramento escusar
e scusar-se
-se de
culpa por alguma razão ou de algum modo?
1. Duas outras objeções contra o breve. 2. Responde-se à primeira. 3. Confuta-se a
segunda. 4. Se quem aceita
acei ta o juramento pode escusar-se de pecado. Primeira
Primei ra escusa.
5. Segunda escusa. 6. Assim se lê no breve pontifício como Belarmino o referiu. 7.
Terceira escusa. 8. Refuta-se a primeira escusa. 9. É um grave pecado abjurar o poder
pontifício
pontifíci o de depor o rei por justa causa e com um único
úni co ato. 10. Mostra-se um
argumento ad hominem. Fundamento do dito poder pontifício. 11-13. Refuta-se a
segunda escusa. 14. Refuta-se a confirmação
confi rmação do poder pontifício.
ponti fício. Exclui-se uma
evasiva. 15. Em que sentido e para que pessoas a terceira escusa tem lugar.

1. DUAS OUTRAS OBJEÇÕES CONTRA O BREVE. – Após o começo ou prefácio de sua


pologia , o rei examina à letra o primeiro breve do pontífice e em seguida aplica-se a
impugná-lo.
Podemos dividir o breve em três partes: primeiro, o pontífice antepõe algumas poucas
palavras
palavras para consolar
consolar os fiéis
fiéis em
e m sua tribul
tribulação
ação e para instruí-los
nstruí-los na moral; em segui
seguida,
da,
reprova e proíbe o juramento; por fim, exorta seus filhos à resistência corajosa pela fé e
à concórdia da caridade.
Todas estas coisas o rei impugna na mesma ordem, mas nos pareceu mais cômodo
concluir primeiro o tema do juramento, e depois divagar com o rei pelos demais
assuntos.
Assim, após apresentar a fórmula do juramento, o pontífice veta que se o preste, com
as seguintes palavras: Sendo assim, deve ser transparente a vós, por suas próprias
alavras, que tal juramento não se deve prestar, para que se resguardem a fé católica e
a salvação de vossas almas, pois contém muitas coisas que abertamente adversam a fé
e a salvação.
Contra estas palavras o rei não objeta nada novo, mas repete duas impugnações que,
embora freqüentemente as inculque, não acrescentam nenhuma força senão a acrimônia
das palavras. A primeira é que o pontífice impugna o juramento com poucas palavras, e
o refuta sem nenhuma prova. E acrescenta o rei: Aqui convém o velho v elho ditado
di tado difundido
di fundido
acerca do filósofo: ele diz muitas coisas, mas prova poucas, ou melhor, não prova
nada.[ 438 ]
A outra objeção é que uma profissão de fidelidade ao príncipe não seria capaz de
adversar a fé e a religião; e sobre a asserção contrária ele diz: Isto excede de tal modo
minha teologia – por pequena que ela seja – que não posso julgar uma afirmação

223
inteiramente nova e totalmente exótica e que não deveria ser proferida pela boca
daquele que vindica muito insipidamente ser o bispo universal e o pastor ecumênico
das almas de todos os cristãos. [ 439 ] E o rei repete este argumento nas páginas 30 e 31
da Apologia. [ 440 ]
2. RESPONDE-SE À PRIMEIRA. – Ora, como dissemos, se o leitor pio e considerado
observar atentamente essas objeções, não encontrará nenhuma força de argumento nem
solidez de doutrina, mas apenas ousadia no falar.
À primeira repreensão, pois, para sermos breves, já no capítulo precedente rendemos
as justas razões.
Mas à nova redargüição – de que o papa diz, mas não prova –, Belarmino[ 441 ]
responde retamente que aquilo que o rei alega não procede de um homem fiel e cristão,
mas de um filósofo pagão e infiel, quer seja Aristóteles falando de Moisés, como o rei
indica, quer seja Averróis falando de Cristo, como dizem, quer seja Galeno, como consta
dele próprio. De fato, todos estes se regiam não pela fé, mas pela opinião e pelo juízo
próprio,
próprio, e nisto
nisto são imitados
mitados pelos
pelos hereges; por isso, não é de admirar
admirar se objetem ao
pontífice
pontífice que outros se opunham a Cristo
Cristo ou a Moisés.
Moisés.
Mas o pontífice, visto que falava a fiéis – a quem foi dito: Se não credes, não
entendereis[ 442 ] –, não teceu uma disputa nem agregou uma prova prolixa, mas julgou
suficiente a proposição da simples verdade. Porque, como falava a pessoas ortodoxas,
que não duvidam de sua autoridade e poder, e como entre elas há muitos rudes e
ignorantes que não conseguem seguir os argumentos e provas teológicas, não era
conveniente onerá-los com razões e provas, mas ensinar a simples verdade. Ainda mais,
tampouco era oportuno, num assunto de tamanha importância, enredar os doutores em
opiniões e razões humanas ambíguas, mas sim confirmar a verdade com a autoridade
pontifíci
pontifíciaa e desembaraçar o assunto com uma breve declaração dela.
dela.
Acrescento, porém, que também por suas palavras o pontífice insinua uma prova
certíssima e evidentíssima, dizendo: Deve ser transparente
transparente a vós, por suas próprias
alavras. De fato, não é necessária outra prova senão as palavras do juramento, que são
suficientíssimas, como demonstramos nos seis primeiros capítulos, os quais podem servir
como certo comentário
comentário a estas palavras do pontífice.
3. CONFUTA-SE A SEGUNDA. – À outra objeção já se respondeu muitas vezes que não é
oportuno falar do juramento de fidelidade civil em geral, mas desse juramento em
particul
particular,
ar, que trata antes da abjuração
a bjuração da fidel
fideliidade ao pontífice
pontífice do que da fideli
fidelidade ao
rei. Pois um juramento de fidelidade, considerado em sentido geral, não repugna à
religião romana nem à fé cristã (que são a mesma coisa), nem tampouco à salvação dos
fiéis; e não há teólogo digno do nome que o ignore.
Contudo, para falar livremente a favor da verdade, aquele que atribuiu essa asserção
ao pontífice não ponderou suficientemente, porque em nenhum de seus breves, nem em
quaisquer decretos dos pontífices, encontra-se qualquer vestígio dela. Mas esse
uramento de infidelidade evidentemente se opõe à verdadeira religião, e é contrário à
salvação das almas; é isto o que diz o pontífice, e isto é muito verdadeiro e evidente

224
pelas
pelas palavras
palavras do juramento – como já respondemos e provamos, e como já o fez o
cardeal Belarmino antes de nós.
O rei nada responde a estas provas, mas divaga em seguida na sua Apologia, para
provar que os reis têm autoridade
autoridade e poder nas coisas
coisas temporais,
temporais, como se algum
algum católico
católico
o negasse. Daí não aduzir nada que pertença a algum ponto da presente controvérsia. De
fato, o que ele aduz prova que os reis têm a soberania sobre as coisas temporais, mas
não prova que não a tenham subordinada e sujeita ao poder espiritual do pontífice, como
se mostrou muito largamente no decorrer do livro III, onde se respondeu a tudo que o rei
aqui propõe, e por isso não nos resta nada a dizer sobre essa objeção.
Apenas não deixarei de advertir que o rei, na página 33, afirma sem razão que o
pontífice
pontífice foi temerário e movido
movido por rumores incertos ao promulgar
promulgar o breve. Pois está
evidentemente claro pelas pouquíssimas palavras do pontífice que ele foi movido, ou
melhor, obrigado a proibir aos fiéis tal juramento não por boatos ou rumores, nem por
outros testemunhos extrínsecos, mas pelas nítidas palavras do próprio documento.
Quanto às coisas que o rei declara nas partes seguintes e até o final, elas não são
diferentes. Omito-as com prazer, porque só se referem a fatos a que Belarmino
respondeu copiosamente.
copiosamente.
4. SE QUEM ACEITA O JURAMENTO PODE ESCUSAR-SE DE PECADO. P RIMEIRA ESCUSA. – Mas
alguém pode finalmente pôr em dúvida, não obstante essa parte do breve pontifício, se
quem não recusa a prestação do juramento pode escusar-se da culpa de infidelidade ou
de sacrilégio.
E a razão da dúvida pode ser, em primeiro lugar, porque o juramento não parece
negar nem abjurar nenhum dogma de fé. De fato, no máximo se nega o poder do
pontífice
pontífice para depor um rei, e o resto pende deste princípio.
princípio. P orém, embora
e mbora creiamos ser
verdadeiro que o pontífice tem esse poder, ele não parece pertencer aos dogmas de fé,
porque nem está expresso
expresso na Escritura,
Escritura, nem foi defini
definido
do pela
pela Igreja
Igreja como de fé.
Portanto, embora esse poder seja negado pela prestação do juramento, não se negará
nenhum dogma de fé.
Daí se pode inferir, enfim, que ninguém está obrigado a recusar o juramento com
grande dano para si e evidente perigo de morte, porque, se não contém uma negação
externa da fé, não é intrinsecamente mau nem contrário à religião; e assim quem o presta
pode, por razão tão grave, escusar-se de culpa.
5. S EGUNDA ESCUSA. – Em segundo lugar, pode aumentar-se a escusa, porque as palavras
do juramento não são tão claras que não possam ser concebidas e juradas num outro
sentido, em que tampouco se abjure o poder do pontífice para depor os reis. Portanto,
deste modo o juramento é lícito e escusável de culpa.
Prova-se a conseqüência: embora quem produz o juramento o exija num sentido
perverso e mau, quem jura não está obrigado
obrigado a confirmar
confirmar a sua intenção, mas pode
valer-se da ambigüidade de que padecem as palavras; assim, nem jura contra a verdade,
nem contra a religião ou confissão da fé, porque quem jura não tem tal intenção.

225
Assim, a dificuldade parece residir na antecedente, que assim se prova: a primeira
cláusula, em que se jura que o rei é senhor soberano, etc., pode ser entendida em
sentido são, com respeito ao senhorio temporal. E, quando se acrescenta que o Papa não
pode depô-lo, quem jura pode subentender arbitrária e caprichosamente, como sói falar
o rei da Inglaterra. Portanto, as suas palavras podem ser entendidas assim, como se
estivessem expressas tais palavras subentendidas – ou, o que dá no mesmo, se poderia
subentender a exp
expressão
ressão sem causa legítima
legíti ma. As mesmas expressões podem conceber-se
na mente, e repetir-se nas demais palavras da mesma cláusula.
E na segunda cláusula isto pode fundamentar-se especialmente nestas palavras: e
defendê-los-ei a ele e aos outros com todas as minhas forças contra todas as
conspirações e contra quaisquer atentados. De fato, conspirações e atentados
significam, no seu pior sentido, conjurações e tumultos atiçados injustamente. Qualquer
um pode, portanto, tomar as palavras neste sentido, e não pecará por jurá-las neste
sentido.
Logo, todo o precedente pode ser concebido e jurado segundo esse mesmo sentido,
porque no próprio
próprio contexto
contexto as palavras
palavras posteriores
posteriores expl
expliicam e limitam
imitam as anteriores.
anteriores. E
assim, conseqüentemente, as demais cláusulas admitem uma escusa similar, como se
patenteia
patenteia facilmente
facilmente a quem considera.
6. ASSIM SE LÊ NO BREVE PONTIFÍCIO COMO B ELARMINO O REFERIU. – Essa ambigüidade
costuma ser confirmada pelos ingleses, como ouvi de pessoas dignas de fé, porque o
uramento foi produzido em língua inglesa, e, no original, para significar “matar o rei”
consta o termo murder [assassinar], que em inglês significa “matar injustamente”, e
assim se a aceita comumente. Portanto, também no juramento é lícito aceitá-la em seu
sentido literal e comum, sobretudo ante um caso de perda da vida e de todos os bens.
E neste sentido é verdade que nunca é lícito aos súditos assassinar ( murder)o rei, e é
herético afirmar que isto é lícito às vezes, assim como é herético dizer que às vezes é
lícito cometer uma injustiça. Portanto, as outras palavras podem ser reduzidas ao mesmo
sentido, por sua conexão.
Ou certamente porque toda proposição, sendo copulativa, é falsa em razão da outra
parte. De fato, na terceira cláusula
cláusula se propõe copulativamente
copulativamente a abjuração da proposição:
proposição:
é lícito depor e matar o rei (ambos injustamente). Logo, a proposição toda será falsa e
herética em razão de uma parte, e assim poderá ser abjurada sem pecado, porque a
proposição
proposição copulativa
copulativa que tem uma parte falsa é simpliciter
simpli citer falsa, e, de modo similar, se
uma parte é herética, a outra será simpliciter
simpli citer herética.
7. T ERCEIRA ESCUSA. – A terceira evasiva popular costuma ser a escusa da ignorância, a
qual alguns dos ingleses tentaram provar que não só poderia ser invencível entre eles,
mas que de fato o era. Porque a opinião que afirma ser lícito prestar o juramento passou
a ser provável pela autoridade de muitos varões, e por várias razões e explicações das
cláusulas. Portanto, embora o juramento seja em si perverso, como declarou o pontífice,
contudo, na prática, os que o admitem não pecam ao se conformar a uma opinião
provável,
provável, em caso de tamanha
tama nha necessidade e de extremo perigo.
perigo.

226
Estas são as escusas que – segundo ouço – encontraram aqueles que querem permitir
semelhante juramento. Na verdade, porém, são antes fraudes para enganar as almas, em
vez de defesas legítimas daquela promessa contrária à verdadeira religião, como o
provaremos ao discorrer sobre cada uma delas.
8. REFUTA-SE A PRIMEIRA ESCUSA. – A primeira escusa antes poderia ser descoberta por
hereges do que por teólogos fiéis, pois o que se admite em seu princípio é falso e
herético.
Pois a proposição: O Papa tem poder para depor reis heréticos e pertinazes, e que
são perniciosos ei no em coisas atinentes à salvação da alma, deve ser tida e
pernici osos a seu reino
crida entre os dogmas da fé. Ora, ela está contida nas palavras de Cristo ditas a Pedro de
maneira singular, e por razão particular: Tudo que ligares e tudo que desligares,[ 443 ] e
pascenta minhas ovelhas,[ 444 ] como as entendeu a Igreja Católica, que é coluna e
firmamento da verdade,[ 445 ] e como declarou muito abertamente Bonifácio VIII na
extravagante Unam Sanctam,[ 446 ] ao concluir que esta verdade é necessária à
salvação. E assim todos os doutores católicos, tanto juristas como teólogos, aceitam essa
verdade com o mesmo grau de certeza, como disputamos claramente no livro III e
repetimos várias vezes.
Portanto, como no juramento se abjura esse poder, claramente se abjura a fé católica.
Assim, se alguém o faz de coração, perde a fé e incide em heresia; se porém o faz
simuladamente, comete múltiplo perjúrio e peca contra a confissão da fé, como é
evidente.
9. É UM GRAVE PECADO ABJURAR O PODER PONTIFÍCIO DE DEPOR O REI POR JUSTA CAUSA E
COM UM ÚNICO ATO. – Mas acrescento também que é muito falso o que na última parte da
escusa se admite, porque, embora não se tratasse de uma verdade de fé em sentido
estrito – ou, como dizem, em primeiro grau –, mas certa por certeza teológica, seria
gravíssimo pecado abjurar aquela verdade e aquele ato de poder pontifício.
A prova está na razão dada há pouco: se a abjuração é fingida, cometem-se muitos
perjúrios
perjúrios e coisas
coisas injuriosas
njuriosas e pernici
perniciosas
osas ao pontífice,
pontífice, que são no mínimo
mínimo contrárias
contrárias à
reverência e à obediência devidas a ele por direito, e incluem evidentemente a malícia do
cisma (o que o rei não ousa negar de si mesmo, embora dissimule sua malícia, como
mostramos suficientemente no livro I).
Se a abjuração é de coração, comete-se cisma mais grave e mais formal, por assim
dizer, e o juramento, embora não seja contrário à mente de quem jura, faz-se ipso facto
iníquo e vínculo de iniqüidade. Pois, em matéria gravíssima e necessária à unidade e à
concórdia da Igreja, negar certa verdade, mesmo que não seja de fé per se primo, é
pecado gravíssimo
ravíssimo contra a caridade
caridade da Igreja e contra a justiça,
justiça, por neg
negar
ar à Sé
Apostólica o que é seu por título legítimo. Portanto, jurar tal negação é sacrílego e
pernicio
pernicioso.
so. Não deve, portanto, ser admitido
admitido para evitar quaisquer
quaisquer incômodos temporais.
temporais.
10. MOSTRA-SE UM ARGUMENTO AD HOMINEM
HOMI NEM. F UNDAMENTO DO DITO PODER PONTIFÍCIO. –
Propomos um argumento ad hominem: certamente não é de fé que Jaime é o rei da

227
Inglaterra, pois em nenhum lugar isto foi revelado, nem sequer é teologicamente certo. É
suficiente crê-lo com certa fé humana moralmente certa, e, contudo, o rei não negará que
urar que “Jaime não é rei da Inglaterra” seria um grave pecado, porque isto significaria,
ou jurar algo que é falso na realidade, ou ao menos jurar algo que não se pode crer ou
afirmar como verdadeiro sem grande temeridade. Por isso o rei concederia facilmente
que tal juramento não pode ser feito, mesmo para se evitar a morte.
Mas, não importa quanto o rei tergiverse em seu Prefácio
Prefácio, o fato de que o pontífice
tem poder sobre o próprio rei é algo muito mais certo do que o fato de ele ser rei
verdadeiro. Com efeito, o primeiro funda-se em princípios mais abundantes e mais
elevados do que o segundo. Pois o fato de que Jaime é verdadeiro sucessor do reino só
se pode fundar sobre certa tradição e prova humanas; e ele mesmo tinha não pouco
temor de que isto fosse posto em dúvida, porque ele é herético e sucessor de uma rainha
á declarada herética. E tal temor apenas pôde ser removido com a aceitação pública do
reino unida à paciência e à tolerância dos pontífices.
Já o poder do Papa sobre o rei se funda na palavra de Cristo, na confissão comum da
Igreja, nos decretos dos pontífices e dos concílios, nas doutrinas dos Padres e de
excelentes teólogos católicos, prudentes intérpretes de ambos os direitos, e no costume
freqüente e inveterado.
Como, portanto, pode comparar-se uma certeza à outra? Se, pois, o rei concede sem
dificuldade que é iníquo os seus súditos abjurarem o rei, como ousa discutir se é iníquo e
pernicio
pernicioso
so aos
a os fiéis
fiéis cristãos
cristãos abjurar o direito
direito e o poder do pontífice, e a obediência
obediência a ele,
como se faz evidentemente no juramento?
11. REFUTA-SE A SEGUNDA ESCUSA. – A segunda escusa pode ter sido encontrada por
homens tímidos e pouco constantes na fé e na caridade. Ela é, de fato, muito frívola e
repugna às palavras do juramento de muitos modos.
Primeiro: no final do documento se acrescenta uma cláusula que exclui todo e
qualquer sentido extraordinário das palavras, quer por expressões subentendidas, quer de
qualquer outro modo. Ela reza assim: Reconheço todas estas coisas claramente e
sinceramente, e juro-as
juro-as segundo as palavras assim expressas
expressas por mim, e segundo o
sentido e o entendimento chãos e comuns das palavras, sem nenhuma equivocação,
equi vocação, ou
evasão mental, ou qualquer reserva secreta.[ 447 ]
Se alguém profere estas palavras sem intenção de cumpri-las é ipso facto perjuro; se
as professa de coração e de espírito, não tem lugar a segunda escusa, como se patenteia
facilmente a quem o considera. Pois, embora possamos conceder que as expressões sem
causa legítima ou caprichosamente possam estar subentendidas na abjuração do poder
do pontífice enquanto considerada em si mesma e sem as outras cláusulas adjuntas,
ainda assim, supondo-se a última cláusula, não se pode acrescentar sem perjúrio tal
emenda tácita ou mental.
12. Ademais, no juramento não se faz apenas a profissão de nunca matar o rei, nem de
cooperar com alguma conspiração contra ele ou coisas similares que pertencem ao
domínio dos atos (e que podem entender-se de atos injustos), mas se abjura o próprio

228
poder do pontífice
pontífice – e isto com tantas expressões
expressões distri
distributi
butivas,
vas, que não há lug
ugar
ar para
subentender outro sentido ou qualquer limitação.
De fato, assim se diz na primeira cláusula: E que o papa, nem por si mesmo, nem por
outra autoridade qualquer da Igreja ou da Sé Romana, nem por qualquer intermédio
com quaisquer outros, não tem poder nem autoridade para depor o rei, etc. Estas
palavras
palavras não podem de modo alg algum se restring
restringiir ao poder de depor injustamente
injustamente e sem
causa. Primeiro, porque todo poder lhe é negado, tanto em particular, com respeito a
esse rei, quanto em geral, com respeito a todos os sucessores, como se acrescenta na
segunda cláusula com as expressões distributivas: não obstante qualquer declaração ou
sentença de excomunhão ou privação, feita ou concedida, ou que haja de ser feita ou
concedida. Segundo, também porque se jura virtualmente que tal sentença ou deposição
não podem ser justas nem eficazes por defeito de poder, ainda que o rei que exige o
uramento (ou a quem se o jure especificamente)
especificamente) seja herético
herético ou cismático.
cismático.
13. Além disso, de modo similar e com as mesmas amplificações, abjura-se o poder do
pontífice
pontífice para isentar
isentar os súditos
súditos do vínculo
vínculo de obediência,
obediência, e afirma-se que os súditos,
súditos,
não obstante qualquer isenção, devem defender o rei mesmo contra o Papa, sem levar
em conta qualquer
qualquer censura ou excomunhão.
Isto não pode ser restringido mentalmente a uma excomunhão injusta ou nula, porque
as palavras são tão universais que repugnam tal limitação: não obstante qualquer
declaração ou sentença de excomunhão. Destas palavras não se pode excluir uma
declaração de que tal rei é herético ou cismático (embora verdadeira e feita pelo Papa
mediante
mediante qualquer poder seu), pois
pois estas palavras
palavras abarcam todas elas.
Por fim a profissão, a confissão e a abjuração são de todo diretamente contrárias às
definições dos pontífices e dos concílios, e, pois, são uma expressa negação exterior dos
dogmas da fé, que nunca pode fazer-se lícita mediante interpretações ou expressões
subentendidas, porque é contrária à obrigação de confessar a fé e à obrigação de não
negá-la nem sequer exteriormente; para não mencionar o escândalo público dos outros
fiéis, que não pode ser separado de tal ação. Tal juramento não deve ser feito nem para
evitar a morte, como nos ensina o exemplo de Matatias Macabeu.[ 448 ]
14. REFUTA-SE A CONFIRMAÇÃO DO PODER PONTIFÍCIO. E XCLUI-SE UMA EVASIVA. – Assim,
como resposta à confirmação tomada da palavra vernácula inglesa murder, que dizem
significar o mesmo que matar injustamente, dizemos que, se o juramento apenas
propusesse que é herético súditos possam assassinar ( murder) o rei, seria tolerável
herético que os súditos
esta escusa. Mas ali não se propõe apenas isto, mas também que é herético que os
súditos possam depor os príncipes excomungados e privados pelo Papa, o que é
contrário à doutrina da fé.
Tampouco tem lugar a evasiva de que uma expressão copulativa inteira é falsa em
razão de uma das partes. Primeiro porque, na forma do juramento, como consta no livro
régio, lê-se disjuntivamente depor oumatar. Segundo, porque, embora se leia
copulativamente depor ematar, o sentido vem a ser o mesmo, porque não se jura que
todo o conjunto ou proposição hipotética sejam heréticos, mas se jura que todas as

229
partes são heréticas,
heréticas, ou seja, que os súditos podem depor e podem matar (murder) o
ríncipe deposto pelo papa; e assim sempre se condena como herética aquela
proposição
proposição católica
católica e de fé certa.
ce rta.
Acima de tudo devido a que a palavra murder é posta aí porque se supõe que o
assassinato do rei, não obstante qualquer sentença do Papa, é uma traição iníqua e algo
contrário à fidelidade devida ao rei; e assim tudo isso é ali jurado.
Ademais, embora a palavra murder tomada em si mesma tenha tal significado, no
uramento ela é explicada e expandida por muitas outras palavras, de tal modo que não
tem lugar a limitação, principalmente quanto a todo o juramento e quanto a todas as suas
cláusulas, nas quais se faz freqüentemente uma expressa, absoluta e universal abjuração
do poder papal de punir os reis, mesmo os rebeldes e pertinazes, e ademais se
reconhecem no rei a autoridade e o poder para exigir tal juramento, e ainda se imiscuem
outras coisas que não podem ser em verdade juradas ou escusadas de perjúrio mediante
equivocações de palavras ou sentidos subentendidos.
15. EM QUE SENTIDO E PARA QUE PESSOAS A TERCEIRA ESCUSA TEM LUGAR. – Acerca da
terceira escusa, é necessário distinguir os tempos e as pessoas.
Quanto aos tempos, podemos falar do tempo anterior à declaração do Sumo
Pontífice, e do tempo posterior a ela.
No primei
primeiro
ro tempo, poderia
poderia porventura haver alg alguma contenda ou diversi
diversidade
dade de
opiniões entre os católicos, resguardando-se a consciência, como logo direi.
Mas, após a declaração do pontífice, de modo algum se pode pensar numa opinião
provável que fosse contrária
contrária à sua decisão,
decisão, porque ele tem o poder de esclarecer estas
dúvidas atinentes aos bons costumes e à fé – e junto a ele os súditos estão obrigados a
permanecer, pois
pois de outro modo tal poder seria seria inútil
nútil. E sobre isto
isto já falamos
suficientemente nas partes anteriores.
Já quanto às pessoas, dentre elas é preciso distinguir os que são doutos – que podem
por si examinar
examinar a quali
qualidade do juramento e dar um juízo acerca dele dele – e os que são
ignorantes, que precisam ser guiados pela opinião e pelo juízo dos outros.
Acerca destes últimos não há dúvida de que a ignorância possa escusar alguns deles,
se os sacerdotes, que são tidos na conta de probos e doutos, ensinaram-nos que tal
uramento poderia ser prestado com consciência limpa, retendo-se a intenção de não
urar algo contra a fé ou contra o poder do Papa.
Mas esta ignorância já não tem lugar, mesmo entre os simples, após o breve
pontifíci
pontifício,
o, porque todos estão obrig
obrigados a preferi-lo
preferi-lo a todos os seus doutores privados.
privados.
Se, porém, houvesse alguns demasiado rudes, que não ouvissem nem entendessem nada
da declaração pontifícia, esta ignorância poderia ainda persistir neles, porque, para tais, é
como se o Papa nada tivesse declarado. Contudo, a coisa é tão notória e pública naquela
região, que a muito custo isto poderia dar-se moralmente.
Mas entre os demais fiéis doutos, que podem por si examinar o peso do juramento,
mesmo se o breve pontifício fosse retirado do caminho, creio que nunca houve uma
opinião provável que ensinasse que a profissão de tal juramento é lícita, porque suas
palavras
palavras sempre foram tão claras e tão abundantes, e de tantos modos atam a

230
consciência e a conduzem à aprovação e à profissão do cisma, que, embora em alguma
partícula
partícula ou expressão
expressão pudesse ter lug
ugar
ar a evasiva,
evasiva, seria
seria impossível encontrar um modo
provável de honestar ou escusar todo o juramento, e de evadirevadir os seus perig
perigos, como o
prova suficientemente
suficientemente o que ponderamos até aqui acerca de cada uma de suas palavras.
Portanto, se no princípio alguns homens autorizados por sua doutrina e vida caíram
em tal opinião, guiados talvez por temor ou razão humana, isto foi porque não
consideraram atentamente o assunto. Não é necessário julgar aqui se sua ignorância foi
provável ou não; mas é necessário,
necessário, creio eu, temer tal mácula e compensá-la
compensá-la tanto pela
pela
penitênci
penitênciaa quanto pela
pela confissão
confissão públi
pública – para que os mais
mais fracos sejam animados
animados e
instruídos a não incorrer nessa fraude – e, se for preciso, lavá-la com o próprio sangue.

[ 438 ] Op. cit.,


cit., p. 24.
[ 439 ] Op. cit.,
cit., p. 25.
[ 440 ] Op. cit.,
cit., p. 30.
[ 441 ] Apologia Robertii S. R .E.
.E . Cardinalis
Cardinalis Bellarmini...
Bel larmini...,, Roma, 1609, p. 183.
“Credite ut intelligatis. Nisi enim credideritis, non intelligetis”
[ 442 ] Originalmente, o texto “Credite intelligetis” [“Crede para
entenderdes. Pois se não crerdes, não entendereis”] é de Santo Agostinho. Cf. Sermones de tempore, 212, 1 (PL
38, 1059). Santo Anselmo, em seu Proslogion
Proslogion,, cap. 1, empregou a mesma idéia (“credo,
(“credo, ut intelligam. Nam et
hoc credo quia nisi credidero, non intelligam”)
intelligam”) [“Creio para entender. Pois creio também nisto: que, se eu não
crer, não entenderei”] (PL 158, 227C). [N. C.]
[ 443 ] Mateus 16:19.
[ 444 ] João 21:16.
[ 445 ] I Timóteo 3:15.
[ 446 ] Extravagantes Communes, Paris, 1511, lib. I, 8, 1 (Unam sanctam), fol. ix.
[ 447 ] Apologia,
Apologia, p. 13.
[ 448 ] “Agora, pois, ó filhos, sede zeladores da lei e dai as vossas vidas pela aliança feita com os vossos pais.” (I
Macabeus 2:50)

231
Capítulo IX
Se é lícito aos católicos ingleses ir aos templos dos hereges
e comungar com eles nos ritos, sem intenção de culto ou de
cooperação com eles,
ele s, apenas para evitar as penas
temporais
1. Prefácio. 2-5. Explica-se o preceito divino de confessar a fé exteriormente. 6-7. O
motivo próprio da confissão da fé é a manifestação da fé interior. 8. No preceito de
confessar a fé está incluído um preceito negativo. 9-10. O preceito de confessar a fé e
de não ocultá-la nem sempre é obrigatório. Duas ocultações da fé. 11. Em que tempo o
precei
preceitoto de confessar a fé é obrigatório.
obrigatóri o. 12. Razão da dúvida.
dúvi da. 13. Primeir
Primei ro argumento
que mostra ser lícito ir às igrejas dos hereges, etc. 14. O segundo. 15. Terceiro
argumento. 16. É ilícito aos católicos acudir às igrejas dos cismáticos e hereges para
observar seus ritos. 17. A declaração do Sumo Pontífice é maximamente consentânea
às Sagradas Escrituras. 18. É também conforme aos Santos Padres. Há um preceito
apostólico proibindo tal comunhão. 19. Esta doutrina foi confirmada por um milagre.
20-21. Refutam-se duas evasivas. Primeiro argumento que prova que tal comunhão é
ilícita. 22. Confirmação desta doutrina. O argumento de Agostinho a explica melhor.
23. Outra razão por que se explica a doutrina proposta. 24. Exemplo de Eleazar. 25.
Por que o precei
preceito
to de confessar a fé, contido
conti do no artigo,
arti go, é obrigatório.
obrigatóri o. 26. Azpilcueta
Navarro
Navarro o supõe e ensina
ensi na abertamente. Exemplo de Santo Hermenegildo.
Hermenegi ldo. 27.
Confirma-se a doutrina transmitida pelo argumento do escândalo. 28. Prova-se o
último pelo perigo da perda da fé. 29-30. Responde-se à primeira razão de dúvida. 31.
Responde-se à segunda razão de dúvida. Quando o preceito de confessar a fé é
maximamente obrigatório. 32. Responde-se à terceira razão. 33. A protestação pública
não é suficiente para honestar uma comunhão supersticiosa.

1. P REFÁCIO. – Ainda que o rei da Inglaterra em sua Apologia não quisesse tocar essa
parte do breve pontifíci
pontifícioo ao se referir a ela,
ela, para a completude
completude da obra, para maior
maior
instrução dos fiéis, e para maior esclarecimento e confirmação do que dissemos sobre o
uramento, julguei oportuno e necessário dizer aqui algumas coisas sobre este ponto. Mas
a ocasião ou necessidade dessa doutrina nasceu da dura vexação que os católicos
padecem na Ingl
Inglaterra, enquanto por leiseis acerbíssimas
acerbíssimas são privados
privados dos bens e são
sujeitos a outras penas graves, se não adentram as igrejas dos hereges e não assistem a
seus sermões, orações e ritos.

232
De fato, desde os tempos de Elizabete os católicos começaram a ser imediatamente
coagidos, por gravíssimas penas, a freqüentar as igrejas dos hereges e assistir aos seus
ritos
ritos e sermões.
Anteriormente, como nos relata Sander[ 449 ] no livro III, no ano de 1559 aplicara-se
uma multa de doze asses por cabeça aos que se recusavam a freqüentar as igrejas como
antes.
Mas posteriormente, como ele próprio relata acerca do ano de 1582, temos que:
Convocando as ordens, promulgaram uma lei segundo a qual os indivíduos de ambos
os sexos que, uma vez atingida a idade de dezesseis anos, se recusem a assistir às
reces e aos sermões dos protestantes e ir às suas igrejas, sejam multados em vinte
libras inglesas mensais, isto é, em quase setenta moedas de ouro. E acrescentou,
referindo o bispo de Tarazona, que os que não tivessem a soma de moedas de ouro
seriam detidos no cárcere até pagá-la. Tais leis e penas até o presente tornaram-se mais
acerbas, como referiremos no capítulo seguinte.
Por isso, alguns, movidos por uma piedosa misericórdia para com os católicos,
começaram a duvidar se, por alguma razão, poderiam escusar-se de culpa os que
observam essas leis, de tal modo que nem fossem coagidos a suportar sem evidente
obrigação todos estes males, nem tampouco se sujeitassem, com perigo à consciência, a
leis iníquas e tirânicas, devido a algum temor humano ou amor excessivo às coisas
temporais.
2. E XPLICA-SE O PRECEITO DIVINO DE CONFESSAR A FÉ EXTERIORMENTE.– Porém, para que
a razão da dúvida e sua verdadeira solução possam fundar-se melhor, é necessário
antepor algumas palavras sobre a obrigação e o preceito de confessar a fé, não só em
palavras,
palavras, mas também em atos.
E primeiro é preciso diferenciar estas três coisas, que comumente se distinguem nessa
matéria, a saber: o confessar a fé exteriormente, isto é, publicamente ou diante dos
outros, para que os que vêem e ouvem os sinais externos dados por mim entendam que
sou cristão; a isto se opõe extremamente o negar a fé; mas quase como um meio-termo
entre os dois está o ocultar a fé, que se opõe à confissão apenas negativamente e não
contrariamente, como o negar a fé.
3. Mas destes três é certo que o primeiro, ou seja, confessar a fé, é preceito divino.
Assim ensinam todos os doutores católicos, com Santo Tomás.[ 450 ]
E isto é certo de fé, pelo que diz São Paulo em Romanos [10:10]: Com o coração se
crê para a justiça, mas com a boca se faz a confissão para a salvação. De fato, com
esta última expressão, se faz a confissão para a salvação, o Apóstolo quer dizer que a
confissão da fé é necessária para a salvação; porque, assim como diz que com o coração
se crê para a justiça porque a fé é necessária para a justificação, assim também diz que
a confissão da fé é feita para a salvação (isto é, a eterna), por ser necessária para
conquistá-la e para conservar a graça.
E é também evidente que São Paulo fala ali da confissão externa e sensível da fé,
pois
pois a confissão
confissão interna pertence à primeira
primeira parte, a de crer com o coração, pois
pois a fé

233
interior – isto é, as verdades da fé – não se confirma de outro modo senão por se lhe
atribuir assentimento interno, que é crer com o coração. Portanto, além disso se requer a
confissão externa para a salvação.
São Paulo o explica também ao dizer que com a boca se faz, não porque apenas com
a boca se possa ou deva fazer a confissão – pois também é possível fazê-la com atos
corpóreos e outros sinais externos pelos quais os outros reconheçam que professamos a
religião cristã –, mas porque as palavras são sinais mais expressivos e foram instituídas
princi
principal
palmente
mente para expressar
expressar o pensamento. Por isso São P aulo
aulo atribui a confissão
confissão da fé
especialmente à boca.
4. Já Cristo disse absolutamente em Mateus [10:32]: Todo aquele que me confessar
diante dos homens, também eu o confessarei diante de meu Pai, que está nos céus.
Estas palavras não têm uma forma tão expressa de preceito como a têm de promessa,
mas em outros lugares Cristo explicou que nossa confissão nos é necessária para obter a
sua confissão, como logo veremos.
Mas a promessa de Cristo se enquadra perfeitamente na expressão de São Paulo,
ara a salvação. Pois o apóstolo distingue entre a fé do coração e a confissão da boca, e
diz que a primeira é necessária para a justiça, isto é, para a remissão dos pecados e para
a obtenção da renovação interna da alma, porque a fé interna é o fundamento da própria
ustiça.
Para isto não é tão necessária a confissão externa da fé, a não ser porventura no
propósito
propósito geral de cumprir
cumprir todos os preceitos.
preceitos. Pois o homem também é justificado
justificado pela
fé interna com contrição e dileção do coração, antes que proceda ao ato externo de
confessar a fé. Daí Ambrósio[ 451 ] dizer retamente, comentando o Salmo 38: A fé é o
rincípio para os que crêem, e a confissão é sua execução. E por isso não diz que a
confissão de fé é para a justiça, mas para a salvação; pois, após obter a justiça, é
necessária a confissão da fé para perseverar na justiça e, por conseguinte, para alcançar a
salvação. Pois quem perseverar até o fim será salvo,[ 452 ] e Cristo o confessará diante
de seu Pai.[ 453 ]
5. Este preceito, porém, não é apenas um preceito divino positivo, mas um preceito
moral quase conatural à própria fé ou ao homem, supondo-se o estado de fé; e por isso
em qualquer tempo e em qualquer situação da Igreja a confissão da fé foi necessária à
salvação.
Agostinho[ 454 ] toca a razão desta verdade, dizendo: A fé exige-nos
exi ge-nos o ofício do
coração e da língua; pois diz o Apóstolo: “Com o coração se crê, etc.” E por isso é
necessário que nos lembremos da justiça e da salvação, visto que nós, que reinaremos
em sempiterna justiça, não podemos ser salvos do presente século maligno a não ser
que, esforçando-nos para a salvação do próximo, professemos também com a boca a fé
que carregamos no coração. Com estas palavras ele insinua que a confissão da fé é
necessária por causa do próximo.
Ele explica o mesmo mais largamente com estas palavras:[ 455 ] Sem fé é impossível
agradar a Deus. Aquele que escrutina os rins e corações a reconhece em nossos

234
corações. Mas, para a conservação da unidade da Igreja, na providência deste tempo,
é necessária junto com a fé do coração a confissão da boca, porque “com o coração se
crê para a justiça, mas com a boca se faz a confissão para a salvação”, não só dos
regadores, mas também dos instruídos, pois de outro modo um irmão não pensaria em
outro irmão, nem a paz da Igreja seria preservada, nem alguém poderia dar ou receber
o ensino acerca das coisas necessárias à salvação, se não transmitisse o que tem no
coração ao coração dos outros por meio dos signos das palavras, como por seu veículo
natural. Portanto, a fé deve ser conservada no coração e exposta pela boca. De fato, a
é é fundamento de todos os bens.
6. O MOTIVO PRÓPRIO DA CONFISSÃO DA FÉ É A MANIFESTAÇÃO DA FÉ INTERIOR. – E assim
pensa Agostinho:
ostinho: a fé do coração é necessária
necessária per se primo por causa de Deus, mas a
confissão da fé, por causa do próximo e por causa da Igreja. Pois, assim como a fé
interna é o fundamento da união da alma com Deus, assim a confissão da fé é o
fundamento da unidade e da paz eclesiásticas, não porque a confissão da fé não tenha
sido também preceituada para a honra e o culto de Deus, mas porque não tende a Deus
tão direta e imediatamente, nem é tão necessária por causa d’Ele como o é a fé interna.
Quanto a isto, também se deve considerar que a confissão da fé pode dar-se de dois
modos: de um modo, para mostrar exteriormente a fé interna que temos no coração, de
tal maneira que este seja o motivo principal, único e próximo de tal confissão; de outro
modo, para principalmente prestar e exercer um culto externo a Deus.
E deste segundo modo pode dizer-se que o sacrifício da Missa, a freqüência aos
sacramentos e outras cerimônias pertencem à confissão da fé, embora propriamente
sejam atos de religião e sejam feitos e preceituados para próxima e precipuamente cultuar
e honrar Deus.
Mas a confissão de fé formal e própria, por assim dizer, é a que se faz para
manifestar aos outros a nossa fé interna, e esta sem dúvida se refere imediatamente aos
homens. Pois por Deus ela não é necessária, e por isso a razão desse preceito se
fundamenta retamente na necessidade desta confissão para a conjunção dos fiéis na paz
e na unidade de uma única Igreja, o que a própria fé exige. E assim também expôs
Agostinho ao comentar o Salmo [116:10]: Eu cri, por i sso falei . Como esses que crêem
não o crêem perfeitamente, diz Agostinho, não querem falar.[ 456 ]
7. E daqui se colige também o segundo, ou seja, que negar a fé é contra o preceito
divino, ou está incluído no preceito proibitivo ou negativo. E isto é igualmente de fé
certa, pois Cristo Senhor disse em Mateus [10:33]: O que me negar diante dos homens,
também eu o negarei diante de meu Pai, que está nos céus. Pois quem o negar ouvirá:
ão vos conheço, como disse Teofilacto[ 457 ] naquele mesmo lugar. Por isso São Paulo
diz, em II Timóteo [2:12]: Se o negarmos, ele também nos negará a nós. Ambrósio,[
458 ] Teodoreto[ 459 ] e Primásio[ 460 ] observam o mesmo.
Crisóstomo[ 461 ] dá a razão, ao dizer: Ele nos pede uma confissão livre e nos induz
i nduz
a uma caridade maior, desejando que sejamos sublimes e invictos, e por isso deu este
receito a todos. E do mesmo modo interpreta ali as palavras de Cristo, em Mateus

235
[10:16]: Sede prudentes como as serpentes, que expõem seu corpo a qualquer ferida para
salvar a cabeça. Assim também o fiel deve antes perder o corpo do que negar a fé, que é
cabeça e início de todos os bens. Também o dizem Jerônimo,[ 462 ] Hilário[ 463 ] e
Agostinho,[ 464 ] no mesmo lugar.
8. NO PRECEITO DE CONFESSAR A FÉ ESTÁ INCLUÍDO UM PRECEITO NEGATIVO. – Esse
preceito
preceito se segue
segue do anterior
anterior,, pois
pois em todo preceito
preceito afirmativo
afirmativo está incluído
ncluído o neg
negati
ativo:
vo:
nada fazer que contrarie o que o afirmativo preceitua. Por exemplo, se se nos ordena
amar a Deus, ali nos está virtualmente proibido fazer qualquer coisa contrária ao amor
divino, e assim por diante. Ora, um contrário destrói o outro, pois, se se preceitua um, o
contrário é sem dúvida proibido.
Como, portanto, se preceitua a confissão da fé, ali se proíbe virtualmente a negação
da fé, pois é contrária à confissão, como é patente por si. Mais ainda: do preceito da fé
interna se segue necessariamente a proibição de negar esta mesma fé. Pois quem nega a
fé com a boca, ou a nega no coração (e portanto é infiel, e age não só contra a confissão
da fé, mas também contra o preceito da fé), ou, ao negá-la com a boca, retém a fé no
coração e assim mente com uma mentira muito perniciosa e contrária à honra de Deus,
porque, ao neg
negar
ar a fé, atribui
atribui a Deus uma mentira,
mentira, dizendo
dizendo ser falso
falso o que Deus disse.
disse.
Ofende também gravissimamente a religião cristã e – no que dele depende – dissolve a
Igreja e cinde a sua unidade.
Portanto, essa mentira está proibida, não só pelo preceito geral de não mentir, mas
também pelo preceito particular da fé e da religião cristã, como opina retamente
Agostinho.[ 465 ]
Daí também ocorre que, assim como a mentira é proferida de dois modos, a saber,
por se neg
negar
ar o que é verdadeiro,
verdadeiro, ou por afirmar o que é falso
falso ou contrário
contrário à verdade,
assim também no presente caso a negação da fé pode acontecer de dois modos: seja
negando-se puramente que a verdade de fé é verdadeira ou certa, seja por se professar
um erro contrário (pois a profissão do falso é necessariamente a negação do verdadeiro e
envolve a mesma malícia ou uma maior).
9. O PRECEITO DE CONFESSAR A FÉ E DE NÃO OCULTÁ-LA NEM SEMPRE É OBRIGATÓRIO. D UAS
OCULTAÇÕES DA FÉ. – O terceiro que indicamos, ou seja, a ocultação da fé, tem certa
natureza média, porque nem sempre é má e nem sempre é lícita, como também todos os
doutores católicos ensinam.
A razão disto é porque calar a verdade e não proferi-la não é o mesmo que negá-la,
mas é escondê-la, como é evidente por si. E assim também ocultar a fé não é negar a fé,
e por isso em parte nem sempre é mau.
Por outro lado, o preceito de confessar a fé, como é afirmativo, embora sempre seja
obrigatório, não o é o tempo todo. De fato, esta é a natureza de um preceito afirmativo,
como agora o supomos, e, além disso, o não confessar a fé por ocultá-la não é sempre
mau, porque se o exercício de algum ato não é necessário por si, a cessação de tal ato
não pode ser sempre má, como é manifesto por si.

236
Portanto, a ocultação da fé só será perversa se ela for ocultada no tempo em que o
preceito
preceito de confessar a fé seja obrig
obrigatório,
atório, assim
assim como calar os próprios
próprios pecados nem
sempre é mau, mas apenas é mau quando o preceito de confessá-los em juízo é
obrigatório.
Daí se podem distinguir duas ocultações da fé: uma à maneira de pura negação, que
pode dar-se licitamente
citamente e sem pecado durante todo o tempo em que, ou pelo pelo que, o
homem não está obrigado a prestar uma confissão externa de sua fé; outra, à maneira de
privação
privação ou omissão
omissão moral,
moral, por admiti
admitir-se
r-se naquele
naquele tempo em que se deveria
deveria prestar a
confissão da fé – e assim carece da ação devida, e por isso se chama de privação moral.
E isto é um pecado em si grave, porque é contrário ao preceito de confessar a fé.
Pois a lei afirmativa que preceitua uma ação em algum momento conseqüentemente
proíbe a omissão da ação naquele
naquele mesmo momento, como é manifesto.
10. E podemos entender retamente as palavras de Cristo acerca desta omissão em Lucas
[9:26]: Quem se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho do
homem se envergonhará dele, quando vier na sua majestade, na de seu Pai e dos
santos anjos. Pois envergonhar-se parece ser menos do que negar, porque não só aquele
que nega, mas também aquele que deixa de confessar Cristo ou a verdade de sua fé (o
que é o mesmo) quando deve fazê-lo, envergonha-se de Cristo.
E embora Cristo tivesse usado a palavra envergonhar-se (que significa propriamente
evitar algo por pudor ou por temor do desprezo e da irrisão de alguém), porque era
mais acomodada à matéria de que falava, ou porque no princípio gentios e judeus
desdenhavam da doutrina e assim muitos por pudor ou vergonha a desprezavam,
contudo a doutrina e a cominação são gerais. Pois se alguém omite a confissão da fé no
tempo devido (por qualquer razão, seja por pudor, seja por temor de perder a vida ou
outros bens temporais) incorre na mesma repreensão e cominação.
11. EM QUE TEMPO O PRECEITO DE CONFESSAR A FÉ É OBRIGATÓRIO. – Mas aqui ocorre
imediatamente a pergunta: em qual tempo a confissão da fé é obrigatória? Ora, não cabe
explicá-lo agora detalhadamente; basta supor que é naquele tempo em que a confissão de
fé é necessária para guardar a honra de Deus e da religião cristã, toda vez que, como se
pensa, um tirano, ou poder públi
público, interroga
nterroga acerca
acer ca da fé, ou toda vez que calá-la
calá-la e não
confessá-la seria negá-la virtualmente.
Este, de fato, é outro modo de tornar perversa a omissão, porque envolve uma
negação virtual da fé, e porque em moral o implícito é reputado como explícito quando
induz o mesmo efeito. E assim o preceito de não negar a fé proíbe não só a negação
expressa, mas também a tácita e virtual.
Esta omissão se diz, porém, negação virtual da fé quando a própria omissão da
confissão é aceita comumente como sinal de negação da fé. Assim como no sentido
ordinário e comum o não trazer vestes nem tonsura clericais, nem monacais, sem causa
ou necessidade especial, é certa negação virtual de tal estado, e pode às vezes ser
suficiente para indicar apostasia externa, assim também, pois, pode acontecer na
confissão da fé, se em algum lugar foi instituído justamente algum sinal tão próprio do

237
cristianismo que quem o omite parece negar ipso facto que é cristão, como se explicará
melhor nas partes seguintes.
12. RAZÃO DA DÚVIDA. – A partir disto se entende onde reside a dificuldade da questão
proposta, que devemos considerar:
considerar: acaso os atos de ir às igrejas dos hereges,
hereges, ou ouvir
ouvir
seus sermões e rezar com eles, ou assistir a outros de seus ritos, seriam uma negação da
verdadeira fé, ou (o que é o mesmo) a profissão de um erro contrário? Ou seria isto
apenas o não confessar a verdadeira fé? E, supondo-se que seja isto, acaso seria uma
pura negação ou uma omissão moral pecaminosa?
pecaminosa?
A razão da dúvida é tomada da diferença que há entre as palavras e as ações ou
outras coisas. Pois as palavras significam mais expressamente do que as coisas, e não
têm outro uso próprio senão este, pois para isto foram instituídas primeiramente e per se.
Mas as outras coisas, como vestes, casas, comidas e similares, ou mesmo os atos de
ouvir, ver e outros que tais, não foram instituídos para por si significar a mente do
operante, mas para outros usos naturais e humanos, embora às vezes pareçam significá-
la a modo de conseqüência. Disto resulta que o significado das coisas costuma ser mais
obscuro e ambíguo, ou equívoco, do que o das palavras.
Ademais, ocorre também que a simulação, ou antes a dissimulação sem mentira, tem
mais facilmente lugar no uso de certas coisas ou de certas ações do que no uso das
palavras,
palavras, que têm signi
significação
ficação mais
mais certa e usual, por assim dizer.
dizer.
Por fim, deste mesmo princípio se extrai outra razão para duvidar acerca das ações
de ir às igrejas, etc. (de que tratamos agora), distinta da razão de duvidar sobre o
uramento de fidelidade. Pois a profissão deste é feita por palavras expressas, que têm
por único fim expli
explicar a intenção mental, e as palavras
palavras da fórmula
fórmula do juramento são tais,
que contêm a expressa negação da doutrina da fé (e conseqüentemente a confissão da
heresia contrária); e portanto ninguém que não vive nesta heresia – a não ser que tenha
incidido na antiga heresia de que em tortura seria possível negar a fé sem pecado, mesmo
sob juramento – pode duvidar de que a profissão do juramento não é lícita.
13. P RIMEIRO ARGUMENTO QUE MOSTRA SER LÍCITO IR ÀS IGREJAS DOS HEREGES, ETC. – Por
outro lado, parece ser possível duvidar das ações propostas na questão. Primeiro, porque
estas são indiferentes por seus objetos e matérias próprios. Pois entrar em uma igreja, ou
é bom em si, ou é ao menos indiferente. E porque os hereges usam mal do lugar não
torna a ação intrinsecamente má. Pois isto pertence à sua perversa intenção, sem a qual
entrar ali é indiferente; pois tampouco o entrar numa sinagoga dos judeus, ou num
templo pagão, é mau em si.
Similarmente, ouvir um sermão de qualquer doutrina, mesmo de uma perversa, não é
intrinsecamente mau. De fato, alguém pode ouvi-lo para confutá-lo, ou para se deleitar
com a eloqüência do sermão, ou para desdenhá-lo.
Por fim, assistir a suas preces e ações sagradas, tomado materialmente, é indiferente,
porque alguém
alguém pode, enquanto está aliali, fazer secretamente as preces católi
católicas segundo
segundo o
rito católico ou então pensar na verdadeira fé.

238
Por outro lado, estes atos não têm uma significação contrária à fé, imposta por si,
porque não foram impostos
impostos para sign
signiificar especialmente
especialmente a fé, mas apenas para operar
algo que é feito imediatamente por cada um deles.
Mas se tais atos, ou pelo discurso dos que vêem ou pelo uso comum dos outros,
costumam indicar uma fé perversa, isto é acidental, se o católico não os faz com a
mesma intenção, porque ele não significa uma falsa fé nem engana os outros, mas apenas
permite
permite que sejam eng
enganados.
anados.
Portanto, os que fazem tais atos só para obedecer ao rei em atos materiais externos, e
para evitar
evitar danos temporais,
temporais, não negam a fé, nem faltam
faltam à confissão
confissão da fé devida
devida por
preceito,
preceito, porque então não há nenhuma necessidade
necessidade especial
especial que torne obrig
obrigatório
atório
naquele momento o preceito afirmativo de confessar a fé. Logo, ali cessa toda razão de
culpa.
Por isso os doutores católicos ensinaram que não é mau em si comungar com os
hereges nos atos sagrados, enquanto não são declarados nominalmente.
14. O SEGUNDO. – Segundo, se ali houvesse alguma culpa, seria maximamente pela
profissão
profissão de falsa
falsa reli
religião, ao menos simul
simulada.
ada. E esta simul
simulação
ação não é sempre
intrinsecamente má. Portanto, será maximamente lícita no caso de evitar multas e
vexações gravíssimas.
A conseqüência é patente, porque, se tal simulação não é intrinsecamente má, não há
de ser proibida porque é má. Portanto, no máximo será má por estar proibida, ou
acidentalmente, em razão dos males que daí se seguem. Mas estas razões cessam em tão
urgente necessidade, porque a proibição positiva não é obrigatória com tanto rigor, e os
incômodos que se lhe seguem não são intentados mas permitidos, e por isso não são
imputados.
A premissa maior é também clara, porque supomos que a intenção do operante não é
professar alg
algo falso,
falso, mas apenas estar presente ali e fazer algo
algo bom ou indiferente,
ndiferente, não
importando o que os outros pensem, o que é uma dissimulação, ou uma simulação,
material.
Prova-se, pois, a premissa menor.
Primeiro, porque não faltaram autores católicos e de peso que ensinaram que não é
intrinsecamente mau simular uma religião falsa e supersticiosa, ou fingi-la em atos
exteriores fazendo-os apenas materialmente, como dizem, isto é, sem intenção de religião
e de culto, mas em vista de alguma utilidade humana.
Ademais, muitos atribuem esta sentença a Jerônimo, que dizia ser lícito aos apóstolos
observar simuladamente os preceitos legais, num tempo em que já seriam mortíferos se
seguidos seriamente e com intenção de culto, como indicamos extensamente no livro IX
de Sobre as Leis, cap. 16, onde citamos muitos autores e aduzimos os testemunhos das
Escrituras que os moveram.
Quanto à razão, já a tratamos acima: porque tal simulação não é uma mentira, uma
vez que por ela não se tenciona significar algo falso ou contra a mente, mas ela é apenas
uma ocultação, ou não-confissão, de alguma verdade ou da fé. E, segundo a primeira
razão, esta ocultação não é má como a negação da fé, porque esta não se dá sem uma

239
mentira; quanto à segunda razão, não é má, porque não há nada então que torne
obrigatório o manifestar-se, ou o confessar a fé.
15. T ERCEIRO ARGUMENTO. – Mas pode-se responder que estas razões procedem
diretamente da malícia encontrada em si naqueles atos; não obstante, estes são maus em
razão do escândalo, que deles não se pode separar moralmente – e isto é suficiente para
que o ato seja sempre moralmente mau.
Mas contra isto se objeta, em terceiro lugar, que também o escândalo não só pode
separar-se daqueles atos, como também se separa deles efetivamente, tal qual os
católicos podem fazer naquele reino, como dizem.
Pois, em primeiro lugar, todos sabem que os que mantêm a fé romana não fazem tais
atos espontaneamente ou sinceramente, mas apenas para evitar as penas.
Ademais, também sabem que o rei os preceituou antes pela cupidez do ouro e da
prata do que pelo culto ou pela
pela relig
religiião de Deus, e por isso impôs voluntariamente
voluntariamente penas
pecuniárias
pecuniárias em vez de corporais.
corporais. E, por consegui
conseguinte,
nte, também estão convencidos
convencidos de que
os católicos não fazem tais ações por causa da religião, ou por desprezo da fé, mas
apenas para evitar a espoliação dos bens. Portanto, não há de onde tomar racionalmente
um escândalo, porque a ação em si não é má, e a aparência de mal, que parecia ter, é
tolhida por aquele conhecimento público.
Agregue-se a isto que se diz que os fiéis fazem primeiro uma profissão pública de sua
reta intenção e da verdadeira fé. Portanto, se resta ainda algum escândalo, ele não é algo
dado, mas aceito, e que não se imputa ao agente, sobretudo quando intervêm uma causa
e uma necessidade
necessidade tão graves.
16. É ILÍCITO AOS CATÓLICOS ACUDIR ÀS IGREJAS DOS CISMÁTICOS E HEREGES PARA
OBSERVAR SEUS RITOS. – Contudo, sem dúvida alguma se deve dizer que não é lícito aos
católicos da Inglaterra reunir-se na igreja dos cismáticos e hereges para ouvir seus
sermões heréticos e perfazer ritos profanos. Nosso Soberano Senhor, Paulo V, assim o
admoesta em seu breve, com as seguintes palavras: Cremos com certeza e sem dúvida
alguma que aqueles que com tanta constância e fortaleza suportaram até agora
acerbíssimas perseguições e misérias quase infinitas para andarem sem mancha na lei
do Senhor, jamais se juntarão à comunhão dos desertores da lei divina para se
mancharem. Contudo, impulsionados pelo zelo de nosso dever pastoral, e pela
solicitude
solici tude paterna com a qual laboramos assiduamente para a salvação de vossas
almas, somos coagidos a advertir-vos e a conjurar-vos que por nenhuma razão vos
aproximeis dos templos dos hereges, nem ouçais seus sermões, nem comungueis com
eles em seus ritos, para não incorrerdes na ira de Deus. De fato, não vos é lícito fazê-
lo sem detrimento do culto divino e de vossa salvação.
Destas palavras é possível coligir que esta proibição não é apenas positiva ou humana
(razão por que aqueles atos se tornariam maus porque porque proibi dos), mas é uma lei
proibidos
declarativa da malícia e da torpeza existentes em tais atos, razão por que são proibidos:
porque maus. De fato, é isto que signi
signifi
ficam
cam estas palavras: De fato, não vos é lícito
líci to fazê-

240
lo, e por isso o pontífice não usa tanto de palavras proibitivas quanto de palavras
admonitórias e conjuratórias sobre a malícia de tal comunhão com os hereges.
Por fim se colige destas palavras que a culpa é mortal e assaz grave: para não
incorrerdes na ira de Deus. De fato, não vos é lícito fazê-lo sem detrimento do culto
divino e de vossa salvação.
Por isso, embora porventura houvesse anteriormente entre os católicos alguma
contenda ou diversidade de juízos quanto a este ponto, já devem cessar de todo, porque
não lhes é lícito duvidar de uma autêntica declaração do pontífice em assunto moral e
atinente à salvação das almas.
17. A DECLARAÇÃO DO SUMO PONTÍFICE É MAXIMAMENTE CONSENTÂNEA ÀS S AGRADAS
ESCRITURAS . – Mas é necessário mostrar quão consentânea é essa declaração aos
princípi
princípios
os da fé, às doutrinas dos Santos Padres
P adres e à razão.
Em primeiro lugar, a comunhão com os infiéis, principalmente em coisas sagradas, é
maximamente proibida na Escritura; ora, não há dúvida de que os hereges estão
compreendidos entre os infiéis.
Ademais, São Paulo escreveu precipuamente acerca destes [II Timóteo 2:16-18]:
Evita as conversas profanas
profanas e vãs, porque
porque contribuem muito para a i mpiedade, e a
alavra deles vai lavrando como gangrena; neste caso estão Himeneu e Fileto, que se
extraviaram da verdade, etc. E por isso em Tito [3:10] ele nos adverte que se deve
evitar o homem herético pertinaz, e em I Coríntios [6] e em Romanos [16:17-18] ele
admoesta gravissimamente a que, como diz, vos aparteis daqueles que causam
dissensões e escândalos contra a doutrina que aprendestes, pois seduzem os corações
dos inocentes por doces sermões e bênçãos.
Devem notar-se também as palavras de João em sua segunda epístola [v.10-11],
quando falava dos hereges: Nem os saudeis
saudei s, e acrescenta a razão: porque
porque quem os saúda
articipa das suas obras más.
Por conseguinte, como toda comunhão com os hereges foi proibida pelos apóstolos
por causa do perigo,
perigo, maximamente
maximamente e com maior rigor rigor foi proibi
proibida
da a comunhão em obras
malignas, que sem dúvida eles fazem enquanto hereges.
Mas são estas as de que tratamos agora, e não se pode negar que os católicos que se
untam a eles nas igrejas para perfazer semelhantes conventículos comungam com eles
nas mesmas obras.
Quanto a isto, embora porventura nem toda outra comunhão com pessoas heréticas
ainda não declaradas seja a rigor proibida por preceito, esta comunhão em particular, que
é nas obras malignas e cismáticas, por assim dizer, foi sempre proibida. De fato, São
Paulo diz em I Coríntios [10:20-21]: Não quero quero que vós tenhais sociedade com os
demônios. Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios. Não podeis
ser participantes demôni os.E em II Coríntios [6:14]:
parti cipantes da mesa do Senhor e da mesa dos demônios.
ão vos sujeiteis ao mesmo jugo que os infiéis – isto é, como Santo Tomás[ 466 ] o
expõe, não comungueis com os infiéis em suas obras de infidelidade. Pois , como
acrescenta o Apóstolo, que sociedade tem a justiça com a injustiça? E que comunhão

241
tem a luz com as trevas? E que concórdia há entre Cristo e Belial? Ou que parte tem o
iel com o infiel?
18. É TAMBÉM CONFORME AOS SANTOS PADRES. H Á UM PRECEITO APOSTÓLICO PROIBINDO
TAL COMUNHÃO. – Essa lei das Escrituras, seguiram-na os Santos Padres e no-la
transmitiram.
De fato, Irineu[ 467 ] diz que os apóstolos e seus discípulos tiveram tanto temor, que
nem em palavras comungaram com algum dos que adulteraram a verdade; e refere o
testemunho de São Paulo, assim como os exemplos conhecidos de João, o Evangelista, e
de Policarpo.[ 468 ] E no livro I, capítulo 13, diz: É necessário fugir deles para algum
lugar, e longe, exorcizando-os e anatematizando-os.
Segundo a mesma sentença diz Cipriano:[ 469 ] Ademais, que vigorosamente
declineis e eviteis, diletíssimos irmãos nossos, as palavras e os colóquios daqueles
cuja palavra vai lavrando como gangrena, como diz o Apóstolo. E abaixo diz: Sejamos
tão separados deles, quanto eles são prófugos da Igreja. E mais abaixo: Isto, diz ele, o
beato Apóstolo não só admoesta mas também ordena: que nos apertemos de tais.
Precei
Preceituamos
tuamos, diz, a vós em nome do Senhor Jesus Cristo que vos aparteis de todo e
qualquer irmão que anda desordenadamente, e não segundo a tradição que receberam
de nós.
Este é, portanto, um preceito apostólico, como testemunha Cipriano, e convém com
muita propriedade à causa presente. Pois os conventos dos cismáticos da Inglaterra são
muito desordenados e são novas invenções humanas, alheias às tradições dos apóstolos.
Portanto, pelo preceito de São Paulo, o varão fiel não pode comungar com tais ritos e
assembléias.
Coisas semelhantes contém o livro De Lapsis [de Cipriano],[ 470 ] no final; mas,
com mais clareza e expressividade, tratando da mesma questão, a [sua] Epístola 4 Ad
lebem[ 471 ] diz, contra os que cindiam a Igreja em oposição aos costumes legítimos e
condenavam os seus ritos: Deus é um, e Cristo é um, e uma é a Igreja, Igreja, e uma é a
cátedra fundada sobre Pedro pela palavra do Senhor. Não se pode constituir outro
altar ou um sacerdócio novo, além do sacerdócio uno e do altar uno.
E acrescenta logo em seguida: Separai-vos para longe do contágio de tais homens, e
ugindo de seus discursos como de uma gangrena e de uma peste, evitai-os, segundo a
admonição do Senhor, que disse: “São cegos e guias de cegos”.[ 472 ] E abaixo:
inguém, diz, tolhe da Igreja os filhos da Igreja. Pereçam sós os que quiseram perecer.
Permaneçam sós fora da Igreja Igreja os que da Igreja etrocederam. E abaixo: Evitai os
Igreja retrocederam.
lobos que separam as ovelhas do pastor. O que se poderia dizer com mais clareza dos
cismáticos anglicanos?
19. ESTA DOUTRINA FOI CONFIRMADA POR UM MILAGRE. – Ademais, Hilário,[ 473 ]
interpretando misticamente as palavras de Cristo: Não vades para entre
entre os gentios, etc. ,[
474 ] diz: Não que não fossem enviados também para a salvação das gentes, mas que
se abstivessem
absti vessem da obra e da vida
vi da da ignorância
ignorânci a gentia.
genti a. E ao se lhes vetar a entrada às

242
cidades dos Samaritanos, são admoestados a não se aproximarem das igrejas dos
hereges.
Agostinho[ 475 ] ensina detalhadamente que não é lícito simular a heresia, mesmo
para converter os próprios
próprios hereges,
hereges, e opina
opina que isto é sempre uma pernicio
perniciosa
sa mentira.
mentira.
a Epístola 162, no princípio, ensina que se deve evitar de todo a comunhão dos
hereges, fora das coisas ordenadas à sua conversão; portanto, maximamente nas coisas
que pertencem à religião.
E existem muitos documentos da Antigüidade em que é manifesto que os Santos
Padres aborreciam os ritos dos hereges, mas maximamente a comunhão com eles nas
coisas sagradas. E por isso sempre proibiram receber deles a comunhão, como é patente
no decreto do Papa Júlio.[ 476 ]
E deve-se notar o exemplo que nos refere Gregório de Tours,[ 477 ] de um sacerdote
católico ou romano(como ele diz) que não queria provar as comidas abençoadas por um
sacerdote herético, embora não usasse um rito herético para abençoá-las, e Deus
aprovou o feito por um milagre. Quanto mais, então, se deve evitar a comunhão nas
próprias
próprias ceri
ce rimôni
mônias
as heréticas? P or isso também lemos que Gregório
Gregório[[ 478 ] escreveu que
se deveria omitir por algum tempo o rito de batismo por tripla imersão, porque os hereges
dele abusavam, dando-lhe um falso significado.
20. REFUTAM-SE DUAS EVASIVAS. PRIMEIRO ARGUMENTO QUE PROVA QUE TAL COMUNHÃO É
ILÍCITA. – Mas essa doutrina dos Santos Padres é geral e alguém poderia eludi-la ou
interpretá-la não como um preceito rigoroso mas como uma admoestação em razão de
perig
perigo, ou limitá-la
mitá-la ao uso ordinári
ordinárioo e voluntári
voluntário,
o, e não à coação inevi
inevitável
tável sem ing
ngente
ente
perig
perigo.
Contudo, nenhuma das evasivas tem lugar nas palavras de Agostinho,[ 479 ] ao tratar
de Romanos 13: Quem resiste ao poder, resiste à ordenação de Deus. Pergunta ele:
as, e se ele te ordena algo que não deves fazer?E responde: Neste caso, sobriamente
despreza o poder, temendo o poder. E explica-o por um exemplo, acrescentado em
seguida: Se o imperador ordena: ‘Faze-me este obséquio’, muito bem, mas não em
servir aos ídolos. Quanto a servir aos ídolos, um poder maior o proíbe. Perdoa-me:
Perdoa-me: tu
lanças no cárcere, Ele, na geena.
Donde, pelas sentenças alegadas dos santos, as das evasivas podem facilmente ser
refutadas, se se ponderam as palavras de cada uma e se se comparam todas entre si. Mas
isto se fará com mais eficácia explicando-se as razões dessa verdade e, segundo a
ocasião, urgindo e enriquecendo ainda mais os testemunhos dos Padres.
Portanto, a primeira razão é: porque a comunhão com os hereges, sobre a qual é
movida a questão, não pode ocorrer senão pela profissão, ou ao menos pela simulação,
da nova religião dos hereges, ou melhor, da sua superstição. E ambas são intrinsecamente
más e contrárias ao preceito de confessar a verdadeira fé e de honrar Cristo e sua
verdadeira religião. Portanto, tal comunhão não é lícita em razão de nenhum temor
humano.
A conseqüência é evidente pelo dito.

243
Mas o antecedente quanto às duas partes se mostra assim: ora, os que se reúnem
com os hereges nas igrejas podem assistir nelas de dois modos.
Primeiro, com o propósito de cultuar a Deus com aqueles ritos e aquelas cerimônias,
ou com a intenção de exercer os ritos como lícitos e religiosos, e isto é professar
formalmente e verdadeiramente uma falsa religião, assim como quem adora um ídolo
com verdadeira intenção de culto professa de fato a idolatria, e o que exerce os ritos
udaicos com intenção de culto professa de fato a seita dos judeus.
Por isso é necessário que aquele que assim professa uma falsa religião negue a
verdadeira e, por conseguinte, a fé sobre a qual está fundada. Nem pode haver dúvida
quanto a isto, nem os católicos tencionam assistir deste modo aos ritos dos hereges.
21. De outro modo, pois, isto pode ser feito: sem intenção de culto ou de religião, mas
apenas com intenção de uma obediência política coagida quanto à presença externa do
corpo, com o propósito de ali cultuar a Deus secretamente segundo o rito católico.
Mas nisto se incluem necessariamente a profissão simulada de cisma e a comunhão
exterior com os hereges em seus ritos, porque segundo o uso comum e aceito daquela
gente e daquele lugar isto é significado por aquelas ações externas, e é para este fim que
se dá a convocação comum. Mas tal simulação sempre é má, como prova extensamente
Agostinho,[ 480 ] e como, nele apoiados, também o provamos em Sobre as Leis.[ 481 ]
E isto se mostra brevemente, primeiro por São Paulo [I Coríntios 10:20]: Não podeis
beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios, isto é, da superstição gentia e da
idolatria. Não podeis partici pantes da mesa do Senhor e da mesa dos demônios, de
podei s ser participantes
modo algum podeis comer das coisas oferecidas aos ídolos, mesmo sem intenção de
cultuar ou adorar o ídolo, como explicam as palavras seguintes que examinaremos logo
depois.
E assim entenderam esta passagem os Padres, repreendendo gravemente o comer as
coisas sacrificadas aos ídolos, quando isto se faz exteriormente ao modo de um ato de
religião e como uso de alimento sagrado, como é possível ver em Cipriano, no livro
citado De Lapsis , e em muitas epístolas, nas quais condena gravissimamente todo e
qualquer sinal externo de comunhão ou de consentimento nos ritos dos infiéis,
princi
principal
palmente
mente nas Epístolas
Epístolas 31[ 482 ] e 52,[ 483 ] das quais
quais alg
algumas palavras
palavras referirei
abaixo.
Tertuliano[ 484 ] fala o mesmo largamente no livro De Spectaculis, capítulo 13:
bstemo-nos, diz ele, da idolatria, e desprezamos os monumentos não menos do que os
templos, não sacrificamos nem comemos do sacrificado. E abaixo: Afastamos osolhos e
os ouvidos das coisas sacrificadas aos ídolos, e no livro De idolatria
i dolatria, capítulo 13:[ 485
]É necessário, diz ele, fugir deste lugar nos dias festivos (ou seja, dos infiéis)
infi éis) e em
outras solenidades extraordinárias, a que subscrevemos ora por lascívia ora por nossa
timidez, comungando, contra a disciplina da fé, com as nações em suas idolatrias.
E acrescenta a questão: O servo de Deus deve comungar com as nações nestas
coisas, quer no vestir, quer no comer, etc., ou seja, enquanto são feitas por causa da
religião? E responde: Nestas coisas não há nenhuma comunhão entre entre a luz e a treva,
treva,
entre a vida e a morte. Doutrina que também transmite largamente Orígenes.[ 486 ]

244
Quanto a isto é também insigne a passagem de Crisóstomo,[ 487 ] cujas palavras logo
referirei.
Mas a razão própria é porque toda comunhão nesses ritos supersticiosos, mesmo que
ocorra com reta intenção, é certa participação de superstição. Por isso, assim como a
idolatria exterior, mesmo se praticada com intenção fingida, participa da malícia da
idolatria, assim também toda superstição exterior, mesmo se simulada, reveste-se da
malícia da superstição.
22. CONFIRMAÇÃO DESTA DOUTRINA. O ARGUMENTO DE A GOSTINHO A EXPLICA MELHOR. –
Esta razão se confirma porque a profissão exterior simulada de tal cisma é certa
aprovação e atestação dele, de que ele é religioso e procede da verdadeira fé. E isto é
intrinsecamente mau, ainda que não se creia internamente e não seja esta a intenção,
porque é uma confissão
confissão externa de relig
religião falsa.
E tampouco se pode separar o significado de tais atos e em tal matéria, ou seja, de
religião e de culto, porque os atos exteriores, as vestes e outras cerimônias não são
tomados no culto senão por algum significado. Portanto, quem deles se serve
exteriormente à maneira de culto religioso, ao menos exteriormente aprova aquele rito de
culto a Deus. E isto é intrinsecamente mau, porque aprovar e confessar com palavras
que tal rito é religioso é algo mau e contrário à fé e à religião; portanto, aprovar o mesmo
com atos é igualmente perverso. Este é o argumento principal de Agostinho nos lugares
citados.[ 488 ]
Isso ainda se explica melhor do seguinte modo: essa simulação de falsa religião é certa
negação exterior da fé; ora, esta é sempre má, como pusemos no princípio. Logo,
também o é aquela simulação.
A premissa maior é evidente porque a simulação é aprovação de uma religião
supersticiosa, e, por conseguinte, é confissão de uma falsa fé, donde procede a
superstição. Ora, a afirmação do erro é a negação da verdade. Logo, aquela simulação é
uma negação da fé católica, que é contrária à heresia.
Ademais, como a religião verdadeira é apenas uma, reprova toda contrária quem
aprova exteriormente esta uma. Portanto, quem aprova exteriormente os ritos heréticos,
nega por isto mesmo e do mesmo modo a religião católica, e prevarica contrariamente na
confissão da fé.
Por isso, também por esta razão tal simulação é contrária à honra da religião cristã,
pois
pois dá lug
ugar
ar ao
a o seu desprezo, uma vez que se a negnegaa e reprova exteriormente,
exteriormente, enquanto
se fortalece na mente dos inimigos a religião contrária, como diremos pouco depois.
Donde por fim se conclui que nunca é lícita tal simulação, mesmo para evitar a
morte, tanto porque a negação externa e simulada da fé nunca é lícita para se evitar
qualquer mal, quanto também porque o homem está maximamente obrigado a observar
um preceito, mesmo o positivo e humano, não obstante qualquer perigo de morte
violenta, quando a sua transgressão é extorquida para desprezo da religião, como
dissemos no livro III de Sobre as Leis, capítulo 30.

245
23. OUTRA RAZÃO POR QUE SE EXPLICA A DOUTRINA PROPOSTA. – Podemos explicar de outro
modo a força dessa obrigação, porque no momento em que os fiéis são coagidos por leis
iníquas a assistir aos ritos sagrados dos hereges, é obrigatório em especial o preceito
afirmativo de confessar a fé católica resistindo a tais leis. Portanto, os que dissimulam e
obedecem, mesmo que o façam com espírito dissimulado, pecam contra a confissão da
fé e por isso hão de ser contados entre os que caíram durante uma perseguição da fé.
Tomo esta doutrina de Cipriano, nos lugares supracitados, principalmente da Epístola
31, que é uma carta dirigida a ele pelos clérigos da Roma de então. Nela, ao dizer-se que
não só pecaram contra a fé os que haviam sacrificado exteriormente aos ídolos ou que
haviam comido das coisas oferecidas aos ídolos, mas também os que haviam
apresentado certos libelos de submissão, os quais trouxeram estando presentes, ou
enviaram estando ausentes, acrescentam-se as seguintes palavras notáveis: Não estão
imunes de crime os que querem parecer ter satisfeito aos editos ou às leis propostas
contra o Evangelho. Pois aquele que quer parecer ter obedecido, por isso mesmo já
obedeceu.[ 489 ]
E abaixo Cipriano punge com maior veemência os ingleses, tanto os cismáticos
quanto os que são débeis na constância da fé, ao dizer: Longe estejam da Igreja
Igreja Romana
o abandonar o seu vigor com facilidade tão profana e o dissolver os nervos da
severidade, por se arruinar
arrui nar a majestade da fé.
E isto é consoante às palavras do mesmo Cipriano[ 490 ] no livro De Lapsis, onde
diz: Nem se persuadam a fazer menos penitência
penitênci a aqueles que, embora não tenham
contaminado suas mãos com sacrifícios nefandos, contudo poluíram a consciência com
libelos. E aquela profissão de negação é uma afirmação, por parte do cristão, da
renúncia a ser o que ele havia sido: disse que havia feito aquilo que de fato fez
outrem. E, como está escrito: “não podeis servir a dois senhores”, ele serviu ao
senhor secular e acatou seu edito,
edi to, e obedeceu mais
mai s ao império
i mpério humano do que a Deus.
24. EXEMPLO DEE LEAZAR. – Tomo a mesma doutrina de Crisóstomo, na homilia 25 sobre
Mateus,[ 491 ] em que primeiro mostra a necessidade de se confessar a fé, e diz entre
outras coisas: Se Deus tivesse criado para ti apenas o coração, seria suficiente para ti
a fé do coração. Mas Deus criou para ti a boca, para que creias com o coração e
confesses com a boca.E acrescenta: Não apenas com a boca mas também com os cinco ci nco
sentidos carnais, pois se faltasse um dos sentidos a confissão
confi ssão não seria
seri a perfeita.
perfei ta.
Mas, ao explicar a ocasião necessária de tal confissão, acrescenta as palavras
seguintes que referirei na íntegra, porque confirmam esta verdade de muitos modos e dão
certa luz à solução dos argumentos.
Portanto, diz ele, se alguém te disser
di sser “não comas as coisas sacrificadas
sacrifi cadas aos ídolos,
mas olha como os ídolos são formosos”, e se olhares em resposta a tal chamado, terás
negado Cristo com teus olhos. Não porque olhar os ídolos seja grande coisa, mas
orque, se olhas por ser convidado, pecas. Se contudo não olhares, com os teus olhos
terás confessado Cristo. Por isso está escrito: “Desvia os meus olhos, para que não
vejam a vaidade”.[ 492 ]

246
Mas se alguém te disser: “Não quero que olhes os ídolos, mas apenas escuta
e scuta como
aquele gentio blasfema Cristo para glorificar os deuses.” Se escutares, negas a Cristo
com teus ouvidos. Se ele te disser: “Não quero que ouças a blasfêmia contra Cristo,
mas eis como oferecem incenso aos deuses, apenas permanece aí e aceita o odor do
incenso.” Se o cheirares, terás ofendido Cristo com teu olfato.
Igualmente se te disser: “Não coma as carnes com teus dentes, mas apenas finge
comer do imolado”. Se o simulares, assim terás negado Cristo com teu paladar. Mas
se não quiser
qui seres
es fingi-lo
fingi -lo terás confessado Cristo, como Eleazar no livro dos Macabeus,
que não quis comer carnes de carneiro sob aparência de carne suína.
Se te disser: “Não quero que tu finjas comer do imolado, mas apenas toca o ídolo
com a tua mão, ou segura o turíbulo”. Se o tocares ou o segurares, terás negado Cristo
com teu tato. Mas, se não o quiseres, terás confessado Cristo com o teu tato, como está
escrito: ‘Se há iniqüidade nas minhas mãos’, etc.[ 493 ]De fato, todos os membros
membros de
tua alma e de teu corpo, Deus não só os criou para teu uso, mas para a sua glória.
25. P OR QUE O PRECEITO DE CONFESSAR A FÉ, CONTIDO NO ARTIGO, É OBRIGATÓRIO. – Mas
pela
pela razão pode mostrar-se a dita dita proposição
proposição suposta, a saber, que naquele
naquele artig
artigo o
preceito
preceito afirmativo
afirmativo de confessar a fé é obrig
obrigatório,
atório, porque naquele
naquele instante, ou naquele
naquele
ínterim, o preceito é maximamente obrigatório quando o fiel é interrogado por um tirano
infiel ou herético, ou por qualquer perseguidor público da fé, acerca de sua fé (sobre se é
cristão ou se obedece ao Romano Pontífice), ou se lhe é interrogado se crê que a seita ou
o rito de adoração divina alheios à Igreja Católica ou Romana são lícitos ou santos. De
fato, nestes casos o fiel não só está obrigado a não negar abertamente a fé católica, ou a
não confessar uma falsa, mas também a não tergiversar nem dissimular ou calar, mas a
confessar abertamente a fé e a religião católicas.
Ora, no caso em que o poder público coage por um edito os fiéis a ir aos templos dos
hereges e a assistir a seus ritos, virtualmente se lhes interroga se aprovam tais ritos, ou se
professam a relig
religião católi
católica.
Portanto, os fiéis estão obrigados a confessar a verdade mediante a desobediência a
tais editos, pois esta recusa é certa confissão da fé, a que obriga então o preceito.
A proposição maior é comum entre os teólogos. Junto com Santo Tomás,[ 494 ]
Caetano[ 495 ] e todos os modernos expositores não só consentem com ela, mas
também a transmitem como dogma certo.[ 496 ] Pois, embora haja certa controvérsia
sobre se qualquer interrogação é suficiente (o que não se refere ao caso presente),
quando a interrogação procede do poder público, não há nenhuma dúvida acerca da
obrigação de se confessar a fé, porque então maximamente urge a necessidade de honrar
Deus e a religião cristã, e por isso aquele que então tergiversa subtrai a Deus a devida
honra e verdadeiramente
verdadeiramente se envergonha
envergonha de Cristo.
Cristo.
Acerca do que, assim escreveu Cipriano, no supracitado livro De Lapsis: Cristo diz
em seus preceitos: Aquele que se envergonhar de mim perante os homens, o filho do
homem se envergonhará dele. Acaso considera-se cristão aquele que sente vergonha e
temor de ser cristão? Como pode estar com Cristo aquele que sente vergonha ou medo
de pertencer a Cristo?

247
26. AZPILCUETA N AVARRO O SUPÕE E ENSINA ABERTAMENTE.[ 497 ]EXEMPLO DE S ANTO
HERMENEGILDO. – Ora, pelo mesmo fato é manifesto que, no caso de que tratamos, os
católicos são interrogados pelo poder público, tanto sobre sua religião e fé, quanto sobre
se aprovam ou recusam a superstição dos protestantes. Por isso são coagidos por
gravíssimas penas a ir a suas igrejas, etc., para mostrar se são papistas, ou pertencentes à
eligi ão romana, como eles mesmo dizem, e se aborrecem a religião calvinista.
religião
Ainda mais: são interrogados de tal modo que não possam mostrar exteriormente a
ambas. Portanto, nesta ocasião é maximamente obrigatório o preceito de confessar a fé,
ao menos ao recusar tal comunhão com os hereges. E isto é muito bem confirmado pelo
exemplo de Santo Hermenegildo, príncipe da Hispânia, que para não aceitar a eucaristia
da mão de um herege, mesmo com ordem do pai, recusou-se até à morte.
Gregório elogiou muito este feito, dizendo:[ 498 ] Um varão dedicado a Deus;
quando lhe veio um bispo ariano, exprobrou-o como devia e repulsou a sua perfídia
com dignas increpações. Com estas palavras, ele quer significar que o fez pelo dever
obrigatório, para que não parecesse comungar da heresia do ministro.
27. CONFIRMA-SE A DOUTRINA TRANSMITIDA PELO ARGUMENTO DO ESCÂNDALO. – Outra
razão desta obrigação pode assumir-se do escândalo que parece ser tão intrinsecamente
anexo a essas ações que parece ser-lhes inseparável. Mas isto é suficiente para que a
comunhão externa com os cismáticos seja pecaminosa e detestável, segundo a doutrina
do Apóstolo em Romanos 14 e em I Coríntios 8, onde chama a isto um pecado contra
Cristo [v.12], e no capítulo 10 [28-29] diz: Não o comais por causa da consciência;
consciênci a; da
consciência, digo, não tua, mas do outro.
E pelo feito de Matatias (em II Macabeus 6) e por suas egrégias palavras é evidente
que se deve antes tolerar a morte do que dar esse escândalo aos irmãos.
E que neste negócio intervém escândalo, explicamo-lo. Primeiro, da parte dos
próprios
próprios hereges:
hereges: pois,
pois, por tal fragil
fragilidade dos católi
católicos, eles são confirmados
confirmados e se
endurecem em seu erro, e desprezam a fé romana. Por isso Sander,[ 499 ] ao referir que
no tempo da rainha, por causa de uma lei acerbíssima e por causa da coação, muitos
católicos não se recusaram, às vezes até publicamente, a ir às igrejas, aos sermões, à
comunhão e às assembléias dos cismáticos, acrescenta: Neste ínterim, desde o princípio
princípi o
a rainha e os seus pensaram que agiram tão bem, que, embora houvesse no reino
tantos cultores da antiga fé, sabiam que a maior parte abraçou publicamente os ritos
rescritos por ela, e os aprovou exteriormente de uma maneira ou de outra por sua
resença, embora cultivassem interiormente outra fé, da qual eles mesmos não
cuidavam tanto, ou a qual criam que deveriam dissimular por um tempo. E se
alegravam nada medianamente de que alguns sacerdotes não aborrecessem a
administração destes ritos.
Assim, portanto, essa dissimulação dos católicos redundou em aumento do cisma e
em grande desprezo da religião romana, e a ocasião de escândalo sempre permanece.
E assim se encontra também outra malícia em tal ação, porque redunda em favor e
ajuda aos hereges enquanto hereges, isto é, na medida em que exercem as obras de seu

248
erro. Mas isto é intrinsecamente mau, como notou de modo similar Azpilcueta Navarro.[
500 ]
Por isso esse escândalo se produz maximamente da parte dos católicos,
princi
principal
palmente
mente dos mais simples,
simples, pois
pois estes
e stes facilmente
facilmente imitam
imitam os outros que parecem ser
mais sábios, e assim este costume se converte em pedra de tropeço aos fracos.
Pois se alguém vir (como diz São Paulo) a outro dotado de ciência assistindo aos ritos
dos hereges em suas igrejas, sua consciência, porque é fraca, é induzida a imitá-lo, e
assim perece o fraco pela ciência do mais douto. E, o que é capital, daí ocorre que,
crescendo a multidão, já não mais simula, mas usa daquele rito com a intenção de cultuar
a Deus, de tal modo que os simples não sabem mais distinguir entre a antiga religião e a
nova superstição.
Isto é, portanto, um dano e um escândalo evidentes, razão por que este pecado não é
apenas contrário à caridade fraterna e à honra divina, mas também é contrário à
confissão da fé, que é maximamente obrigatória, segundo o testemunho supracitado de
Santo Tomás,[ 501 ] quando por dissimulação ou taciturnidade se subtraem a honra
devida a Deus e a utilidade devida ao próximo.
28. P ROVA-SE O ÚLTIMO PELO PERIGO DA PERDA DA FÉ. – Por último, podemos acrescentar a
estas uma razão tomada do perigo moral. Pois, se o povo fiel freqüenta as assembléias
dos hereges e (principalmente) se ouve os seus sermões, está em máximo perigo de
perder a fé.
Pois, embora um ou outro possa ouvi-los sem perigo, e ainda impugná-los e
confundi-los, o vulgo simples é facilmente enganado; e por isso também os mais
avançados estão obrigados a se abster de tais sermões, para que por seu exemplo não
arrastem os outros consigo e assim a sua fé corra perigo.
E por isso nos admoesta Crisóstomo[ 502 ] que se deve fugir mais dos lugares e dos
sermões que estão cheios de opiniões pestilentas, do que dos lugares contagiosos e
infectos, porque estes são funestos ao corpo, mas aqueles destroem a alma. Não
ermaneças, diz ele, foge, não te tardes,
tardes, teme até mesmo a menor demora ali. Dizemos
isto não porque temamos a firmeza de suas opiniões, mas porque tememos vossa
raqueza, etc.
E por isso admoesta Agostinho:[ 503 ] Devemos nos precaver
precaver com pia e cauta
vigilância para que a fé não possa ser violada em alguma de suas partes pelas
raudulentas sutilezas dos hereges.
E Gregório Nazianzeno[ 504 ] repreende gravemente aqueles que, como diz,
acomodam a sua fé ao arbítrio do tempo; quando os hereges dominam as coisas,
aqueles seguem a vontade destes nas coisas da fé e, como acrescenta, servem-se de
dispensa da fé. Isto é antes uma simulação perigosa, e por isso também diz que os que
andam assim claudicam na fé, porque em verdade pecam contra a confissão da fé e
correm o perigo de perdê-la – e, embora porventura sejam constantes, põem seus irmãos
no mesmo perigo.

249
29. RESPONDE-SE À PRIMEIRA RAZÃO DE DÚVIDA. – Ora, pelo dito se responde facilmente
às razões de dúvida.
À primeira se diz que aquelas ações tomadas abstratamente e de modo geral podem
dizer-se indiferentes enquanto não são intrinsecamente más; contudo, tomadas em
particul
particular,
ar, de tal modo e com tais
tais circunstâncias,
circunstâncias, contêm uma malícia
malícia intrínseca.
Pois, como referia Crisóstomo,[ 505 ] olhar os ídolos não é intrinsecamente mau,
mas olhá-los por indução ou por medo do tirano é negar a Cristo. Não porque porque, diz ele,
olhá-los seja grande coisa, mas porque, se olhas por ser convidado, pecas. Assim,
portanto, entrar
e ntrar numa igreja dos hereges ou numa sinag
sinagog
ogaa dos judeus não é nada em si;
mas entrar por causa da religião e para exercer os ritos dos hereges, para obedecer ao
herege mandante, é mau.
Assim também, embora ouvir o sermão de um herege não seja por si intrinsecamente
mau, assistir aos sermões freqüentemente e sob ordem de quem induz à heresia, com
escândalo e perigo para os fracos e às vezes para si mesmo, é pernicioso. E é muito mais
claramente supersticioso o assistir às preces e aos ritos dos hereges, porque, ou isto é
certa aprovação tácita de tal superstição, ou porque nisto imiscui-se também a
cooperação.
E discerne-se isso maximamente pela participação nos sacramentos. Portanto, dentre
todos os ritos que fazem os calvinistas, a coisa mais detestável é a comunhão com eles
na cena sacrílega e na eucaristia fictícia que ministram. Pois os que nela participam,
cooperam evidentemente com esta infiel superstição, e aceitam como sacramento de
Cristo o que nada é, e por suas próprias ações aprovam este costume.
Assim, finalmente, embora em caso de necessidade o católico possa ser batizado por
um herege que use do verdadeiro e substancial rito do batismo, se porém o herege
acrescenta outros ritos acidentais, supersticiosos, e alheios ao costume da Igreja Romana,
o católico não pode cooperar com eles, embora os possa entrementes tolerar, se não
intervém escândalo ou desprezo da religião, e se não os pode evitar.
30. E assim também se respondeu a outra parte daquele argumento, pois esses são atos
de religião, segundo a imposição e o uso comuns, e têm essa significação em parte pela
natureza da coisa, em parte pela imposição e pelo uso dos homens. Por isso, tomados em
particul
particular
ar em tal ocasião,
ocasião, e com tal indução, e em consórcio
consórcio e comunhão com tais tais
cismáticos, significam claramente o seu culto e rito religiosos, e para isso foram
instituídos por aquele rei.
Por esta razão, assim como é intrinsecamente mau tomar o signo de uma falsa
religião, e tampouco se pode licitamente fazê-lo por causa do temor (como consta
claramente na teologia), é igualmente algo mau por si o exercer aqueles atos de tal modo
e em tal ocasião.
Quanto àquela doutrina ensinada por Azpilcueta Navarro, que diz ser lícito comungar
nas coisas sagradas com um herege enquanto este não é denunciado como herege, é por
ele mesmo mais expressamente esclarecida: desde que os ritos sagrados ocorram no rito
católico, e que não haja nenhuma comunhão no rito, na cerimônia ou na impiedade dos
hereges e, ademais, que não intervenha nenhuma ofensa aos católicos e nenhum perigo

250
para a fé, como declarou expressamente Azor[ 506 ] ao referir Azpil
Azpilcueta Navarro.[ 507
]
31. RESPONDE-SE À SEGUNDA RAZÃO DE DÚVIDA.Q UANDO O PRECEITO DE CONFESSAR A FÉ É
MAXIMAMENTE
MAXIMAMENTE OBRIGATÓ RIO. – À segunda se responde que a simulação de falsa religião é
OBRIGATÓRIO
intrinsecamente má, como mostrei largamente no citado livro IX de Sobre as Leis,
mediante a sentença supracitada de Agostinho, e de muitos doutores que referi ali. E o
mesmo opinam todos os que negam ser alguma vez lícito assumir o signo de uma falsa
religião ou exercer um ato externo de infidelidade, mesmo que retendo a fé interna.
Porque, embora quem assuma o signo não tenha em vista a sua significação, esta é
inseparável, e por isso, querendo ou não, significa ipso facto que é infiel, e assim
professa uma falsa relig
religião por seu obrar,
obrar, o que é contrário
contrário ao preceito de confessar a fé.
Pois, assim como a fé verdadeira obriga-nos a confessá-la, assim também nos obriga
a evitar a infidelidade contrária – e, por conseguinte, também a confessá-la
exteriormente. E esta obrigação é mais urgente quando o acossamento de um tirano
públi
público insta o contrário. Poi
P oiss então é maximamente
maximamente obrigatóri
obrigatórioo o preceito
preceito de confessar a
fé verdadeira e evitar toda e qualquer simulação contrária. E será tanto maior esta
obrigação quanto maior forem o escândalo e o perigo de ruína da fé e de desprezo da
religião romana. E todas estas coisas concorrem maximamente no presente caso.
32. RESPONDE-SE À TERCEIRA RAZÃO. – Por isto também responde à terceira razão, que se
referia ao escândalo.
De fato, dizemos em primeiro lugar que, além do escândalo, há outras razões
suficientes. Em segundo lugar, dizemos que não se evita o escândalo com as evasivas
propostas.
Pois quando se diz que todos sabem que os católicos fazem aquelas coisas
exteriormente e não de coração, mas por coação, respondemos que isto é incerto (pois
muitos podem ignorá-lo), e isto é suficiente para constituir um escândalo gravíssimo, pois
o próprio fingimento é um grave pecado. Além disso, assim não se evitam outros perigos
e injúrias à religião cristã.
Igualmente, quando se diz que o rei não acossa os fiéis tanto por causa da religião
como por causa da cupidez do dinheiro, respondo também que isto é dito por mera
especulação. Mas, qualquer que seja o caso, pouco importa, porque não nos devemos
fixar na intenção do operante, e sim na da obra: embora o rei intente o lucro monetário,
ele induz proximamente à profissão de uma religião falsa e supersticiosa, junto com a
negação ao menos tácita da religião romana. E isto é intrinsecamente mau. Portanto,
qualquer que seja a razão intentada pelo rei, deve-se resisti-lo.
33. A PROTESTAÇÃO PÚBLICA NÃO É SUFICIENTE PARA HONESTAR UMA COMUNHÃO
SUPERSTICIOSA. – Por fim, tampouco serve de escusa a protestação, quer porque
moralmente não pode ser tão pública e notória como o é a própria simulação da heresia,
quer também porque a protestação, mesmo que conhecida de todos os católicos, não
tolhe o fato de que aquela ação é uma simulação e uma profissão externas de erro e falsa

251
superstição; nem tolhe a falha em confessar a fé, nem o desprezo da religião, nem o
perig
perigo das almas.
Ademais, esta via dá licença para se professar exteriormente qualquer infidelidade,
desde que se proteste perante os fiéis católicos que não se faz isto por intenção infiel,
mas por desejo humano de não perder os seus meios e outros bens temporais.
Ora, isto é torpíssimo, perniciosíssimo, e contrário à razão. Pois essa profissão
fingida de uma religião perversa não só é má porque outros fiéis virão a crer que ela é
feita por infidelidade, mas também porque é isto que se significa a todos aqueles capazes
de ver e entender tais signos. No máximo, a protestação tolhe tal opinião aos católicos
somente, porque costuma ser feita apenas perante os fiéis, não perante os infiéis.
E, ademais, ainda se feita perante todos, tal ação será sempre contrária à honra de
Deus e promotora do desprezo da fé, com perigo e escândalo para os fracos. Portanto, a
protestação não expurg
expurgaa a malíci
malíciaa de tais
tais ações. E é assim,
assim, em suma, que Azor expl
expliicou
sua própria sentença.[ 508 ]

[ 449 ] NICHOLASS ANDER, De Origine ac progress progressuu schismatis anglicani libri


li bri tres
tres,, Roma, 1586, p. 444.
[ 450 ] S. Th.,
Th., IIª-II , q. 3, a. 2.
ae

[ 451 ] Enarrationes in XIIXI I psalmos Davidicos


Dav idicos,, In psalmum XXXVIII enarratio, 4 (PL 14, 1041C).
[ 452 ] Mateus 24:13.
[ 453 ] Mateus 10:32.
[ 454 ] De fide
f ide et symbolo,
symbolo, I, cap. 1 (PL 40, 181).
[ 455 ] Trecho hoje considerado de autoria incerta: De symbolo, symbolo, exordium (PL 40, 1189).
[ 456 ] Enarrationes in Psalmos, 115, n. 2 (PL 37, 1492).
[ 457 ] T EOFILACTO DEÁ CRIDA, Enarratio in Evangelium
Ev angelium Matthaei
Matt haei,, cap. X, vv. 32-33 (PG 123, 243B-C).
[ 458 ] Na verdade, AMBROSIASTER, Commentaria in Epistolam ad Timotheum Secundam, Secundam, II, vv. 11-12 (PL 17,
490A).
[ 459 ] T EODORETO DEC IRRO,Interpretatio
Interpretatio E pist. II
I I ad Tim. Cap. II, vv. 12-13 (PG 82, 842A-B).
[ 460 ] P RIMÁSIO DEA DRUMETO, In epist. II ad Timotheum,
Timotheum, c. 2 (PL 68, 675B).
[ 461 ] In Matthaeum
M atthaeum Homil. XXXIVXXX IV, 3 (PG 57, 402).
[ 462 ] Commentariorum in evangelium Matthaei,Matthaei, lib. I, cap. X, vv. 17-18 (PL 26, 64D).
[ 463 ] S. HILÁRIO DEP OITIERS,Commentarius in Matthaeum,Matthaeum, cap. X, 11 (PL 9, 970B-D).
[ 464 ] De doctrina Christiana,
Christiana, lib. II, cap. 16, 24 (PL 34, 47).
[ 465 ] Contra Mendacium ad Consentium,
Consentium, cap. 6 (PL 40, 525-7).
[ 466 ] Super I Epistolam ad Corinthios,
Corinthios, cap. 6, lect. 3.
[ 467 ] S. I RINEU DEL YON,Contra Haereses
Haereses,, III, cap. 3, 4 (PG 7, 853-855).
OLICARPO DEE SMIRNA, Epistola ad philippenses,
[ 468 ] P OLICARPO philippenses, II (PG 5, 1006).
[ 469 ] S. CIPRIANO DEC ARTAGO,Epistola XII S. Cypriani Cypriani ad Cornelium
Cornelium Papam
P apam,, 21 (PL 3, 828A-B).
[ 470 ] Liber de lapsis, cap. 34 (PL 4, 492A).
[ 471 ] Epístola 40, 5 (PL 4, 336A-B).
[ 472 ] Mateus 15:14.
[ 473 ] Commentarius in Matthaeum,
Matthaeum, cap. 10, 3 (PL 9, 967B).
[ 474 ] Mateus 10:5.
[ 475 ] Contra Mendacium ad Consentium
Consentium,, cap. 3, 4 (PL 40, 521) e Retractationes,
Retractationes, lib. II, cap. 60 (PL 32, 654).
[ 476 ] Decretum
Decretum Gratiani,
Gratiani, II, c. 24, q. 1 c. 41, p. 1319.
[ 477 ] Miraculorum lib I: De Gloria Martyrum,
Martyrum, cap. 80 (PL 71, 776C-777C).
[ 478 ] S. G REGÓRIOM AGNO, Epistolarum Lib. I, Indict. IX, Epist. 43(PL 77, 497D-498A).
[ 479 ] Sermones de Scripturis,
Scripturis, 62, cap. 8, n. 13 (PL 38, 420-421).
[ 480 ] V. nota 475 supra,
supra, e em várias epístolas a Jerônimo: Epistolarum Classis I , 28, cap. 3, n. 3 (PL 33, 112);
40, cap. 4, nn. 4 e 6 (PL 33, 155 e 156); 82, cap. 2, nn. 4, 10 e 13-8 (PL 33, 276 e 279 e 280-3), cap. 3, 24-7 e
29 (PL 33, 286-8), cap. 4, 30 (PL 33, 288).
[ 481 ] Tractatus de legibus ac Deo legislatore,
legislatore, Antuérpia, 1613, IX, c. 17, pp. 781-790.

252
[ 482 ] Epistola XXXI
XXX I, 2 (PL 4, 310A-B).
[ 483 ] Epistola X S. Cypriani ad Antonianum,
Antonianum, 6 (PL 3, 767A-B).
[ 484 ] LiberDe Spectaculis,
Spectaculis, cap. 13 (PL 1, 646B).
[ 485 ] PL 1, 680A.
[ 486 ] Contra Celsum,
Celsum, lib. VIII, cap. 5 (PG 11, 1526).
[ 487 ] Opus imperfectum, In Matthaeum Homil. XXV (26) (PG 56, 766-7). V. nota 212 supra. supra.
[ 488 ] Contra Mendacium ad Consentium,
Consentium, cap. 6 (PL 40, 525-7) e nota 480 supra.
supra.
[ 489 ] V. nota 482 supra
supra.
[ 490 ] PL 4, 487B.
[ 491 ] V. nota 487 supra
supra.
[ 492 ] Salmo 119:37.
[ 493 ] Salmo 7:4.
[ 494 ] S. Th. IIª-II ae , q. 3, a. 2.
[ 495 ] Secunda Secundae Sancti Thomae, cum commentariis Cardinalis Caietani, Caietani, Lyon, 1554, q. 3, a. 2, ff. 9-
10.
[ 496 ] DOMINGO B AÑEZ,Scholastica commentaria in secundam secundae Angelici Doctoris S. Thomae, Thomae, Duaci,
1615, q. 3, art. 2, pp. 203-5.
[ 497 ] MARTÍN DEA ZPILCUETAN AVARRO,Consilia seu responsa, responsa, Roma, 1602, cons. XII, n. 6, p. 382.
[ 498 ] Dialogi,
Dialogi, lib. III, cap. 15 (PL 77, 292A).
[ 499 ] NICHOLASS ANDER, De Origine ac progress progressuu schismatis anglicani libri
li bri tres
tres,, Roma, 1586, p. 393.
[ 500 ] MARTÍN DEA ZPILCUETAN AVARRO, Consilia et responsa, responsa, Lyon,
Lyon, 1594, lib.
lib. V,
V, t.
t . II,
II , c onsil.
onsil. 12, nn. 6-9, pp.
130-1.
[ 501 ] V. nota 494 supra
supra.
[ 502 ] De Fato et Pr P rovidentia
ovidenti a, orat. 2 (PG 50, 756-7).
[ 503 ] De fide
f ide et symbolo,
symbolo, I, cap. 1 (PL 40, 181).
[ 504 ] Oratio XLIV, 9 (PG 36, 618).
[ 505 ] V. nota 487 supra
supra.
[ 506 ] J UANA ZOR, Institutionum Moralium,
Moralium, Roma, 1600, p. 1, lib. VIII, cap. 11, q. 4, col. 958B-C.
[ 507 ] V. nota 500 supra
supra.
[ 508 ] J UANA ZOR, Institutionum Moralium,
Moralium, Colônia, 1612, p. 3, lib. I, cap. 7, após a segunda questão, cols 30-
1.

253
Capítulo X
Se o acossamento que os católicos
padecem
padece m na Ingla
I nglater
terra é uma verdadeira perseguição da
religião cristã
1. Persegue a Igreja Católica aquele que por ódio à Igreja Romana acossa alguma
parte sua. 2. O estado da controvérsia. 3. Razões por que o rei se escusa. 4. Não é
perseguição da Igreja aquela vexação dos cristãos
cri stãos que se detém sobre as coisas
temporais. 5. O que é perseguição da Igreja. 6. O que é propriamente uma perseguição
da Igreja. 7. O primeiro meio de que costumam servir-se os perseguidores. 8-9.
Mostra-se por seu fi m que a vexação dos fiéis
fi éis na Inglaterra é uma perseguição da
Igreja.
Igreja. 10. O mesmo se demonstra pelos meios.
mei os. Quão grave foi a perseguição
persegui ção sob
Henrique. 11. Quanto cresceu
cresceu a perseguição
persegui ção sob Eduardo. Sob Elizabete.
Eli zabete. Sob o rei
Jaime. 12. Outro meio de perseguição.
persegui ção. Quanto cresceu
cresceu sob Elizabete.
Eli zabete. 13. E sob o rei
Jaime. 14-15. O convento dos quatro arcebispos
arcebispos i rlandeses para extirpar
exti rpar a fé católica.
16. Exclui-se a evasiva empregada pelo rei. 17. Refuta-se outra evasiva. 18-19.
Aniquila-se
Aniqui la-se outra evasiva.
evasi va. 20. O progresso
progresso da perseguição
persegui ção sob Jaime.
Jai me. 21. Replica-se à
evasiva. Não há escusa pelos benefícios dados aos católicos, se estes foram conferidos
em razão do regime político.

1. P ERSEGUE AI GREJAC ATÓLICA AQUELE QUE POR ÓDIO À I GREJA R OMANA ACOSSA ALGUMA
PARTE SUA. – Esta questão não deve ser tratada de tal modo que regressemos de novo à
primeira
primeira controvérsia: onde está a relig
religiião católica
católica e verdadeira,
verdadeira, se na ilha ang
angllicana, ou
no orbe inteiro ou, o que é o mesmo, na Igreja Romana. Pois isto foi disputado
suficientemente no livro I.[ 509 ]
E do que ali foi dito supomos que a verdadeira fé e a religião cristã estão na Igreja
Romana. Disto se segue evidentemente que, se na Inglaterra os fiéis (que os hereges
chamam de papistas ) são acossados porque estão unidos à Igreja Romana e professam a
sua fé, religião e obediência, esta é uma perseguição própria e de todo verdadeira da fé
católica e da Igreja de Cristo – e seu autor é inimigo de Cristo e perseguidor dos cristãos.
E ninguém pode duvidar desta conseqüência, ou desta proposição condicional, uma
vez admitida a referida hipótese. Pois, se a Igreja Romana é a verdadeira Igreja de
Cristo, quem persegue a Igreja Romana por causa de sua religião, ou quem ataca sua
religião, persegue e ataca a Igreja de Cristo, e, por conseguinte, isto será uma perseguição
de Cristo e de sua Igreja.

254
E chama-se especialmente assim quando não é uma perseguição privada de uma ou
de outra pessoa, mas é também pública e geral, de toda a comunidade. Pois, embora a
persegui
perseguição
ção de qualquer
qualquer membro enquanto tal, tal, quer pela
pela fé quer pela
pela justiça,
justiça, seja uma
persegui
perseguição
ção do próprio
próprio Cristo, e, em razão
razã o da causa geral ou do motivo, pareça redundar
em toda a Igreja, por antonomásia se diz perseguição contra a Igreja Igreja aquela que
combate a comunidade da Igreja e seu corpo universal.
Mas, para que mereça o nome de perseguição da Igreja, não é necessário que tal
vexação se faça direta e imediatamente contra a Igreja Católica inteira enquanto difusa
por todo o orbe, ou contra a Igreja
Igreja Romana enquanto episcopado
episcopado particul
particular;
ar; basta que
ela grasse nalgum reino cristão por causa da mesma fé católica e romana.
De fato, diz Agostinho:[ 510 ] Que erro não é o desconsiderar que a Igreja, que
rutifica e cresce por todo o mundo, pode em algumas gentes padecer perseguição
elos reis, mesmo quando em outras não a padece? E traz os exemplos da perseguição
feita na Pérsia pelo rei, e pelos godos em seu domínio, e por Herodes em Jerusalém. De
fato, tal vexação contra um reino ou contra uma parte principal da Igreja não ocorre sem
alguma participação e turbação da Igreja universal. Pois toda ela é de algum modo
abalada, uma vez que, embora se mova a perseguição numa única província, tentam-se
debilitar os fundamentos de toda a Igreja.
2. O ESTADO DA CONTROVÉRSIA. – Portanto, supondo isto como uma constante – uma vez
que é de fato evidente que os que professam a religião romana têm sido acossados de
muitos modos e afligidos por grandes suplícios pelos príncipes daquele reino depois de
Henrique VIII (excetuando-se Maria, a Católica) – eis o sentido da presente controvérsia:
se isto em verdade é, e deve chamar-se, uma perseguição da Igreja e de Cristo, ou
apenas uma guerra injusta ou uma punição justa.
E o rei da Inglaterra nos deu ocasião à questão, ao muito queixar-se do pontífice por
este parecer arrolá-lo entre os perseguidores da Igreja. Por isso defende que as penas e
aflições que na Inglaterra são infligidas pela autoridade régia aos papistas (como eles nos
entendem) não merecem o nome de perseguição da Igreja, porque são infligidas não a
título de religião, mas como pena justa por crimes cometidos contra o rei e a república.
Por isso, no princípio da Apologia diz o monarca: Não se pode negar que o pontífice
ecou contra os bons costumes e contra a usança dos príncipes, especialmente dos
cristãos, ao condenar-me sem me ouvir, o que fez ao arrolar-me entre os perseguidores,
como se indica não obscuramente por sua exortação a que os seus católicos aspirem à
lória do martírio.
Por fim, na impugnação do primeiro breve do pontífice ele digressiona largamente
acerta disso, e primeiro afirma (na página 18), acerca de Elizabete, que a nenhum dos
apistas ela irrogou pena por causa da religião, antes que suas maldades e
depravações lhe arrancassem, como que contra a sua vontade, os suplícios que
adeceram.
E disto ele dá uma quase-prova mediante a seguinte divisão geral: a rainha não pode
ser imputada justamente com a infâmia da perseguição, nem antes da publicação do
breve de P io V contra ela, nem depois.
depois. Quanto à primei
primeira
ra parte: naquele
naquele tempo prévio
prévio a

255
que Pio V fulminasse a sentença contra a rainha, ela não havia imposto aos católicos
nenhuma multa, nem leis mais severas, nem foi constituída naquele tempo nenhuma
ena capital contra os papistas.
Quanto à segunda parte: desde o tempo em que se proferiu a sentença contra a rainha
nasceram naquele reino muitas conjurações, maquinações e rebeliões públicas, de tal
modo que aquelas não só foram penas justas, mas também moderadas, contra os
delinqüentes. Portanto, não por aquelas penas poderia a rainha ser assinalada com a
infâmia da perseguição; antes deveria ser aclamada com título de grande clemência.
3. RAZÕES POR QUE O REI SE ESCUSA. – Por fim, o rei faz uma transição para si e para o
seu regime, e diz na página 23: Quanto à calúnia acerca da perseguição dos católicos,
nunca se pôde provar que alguém fora, durante meu reinado, condenado à morte, ou
que vivera em perigo de morte em razão de sua consciência e, portanto, de sua
religião. A não ser que porventura, diz ele, esta infeliz interdição feita pelo papa aos
católicos, que não me prestem o juramento, seja daqui para diante a causa pela qual
muitos sejam justamente castigados. Em seguida, tenta por muitos argumentos e indícios
mostrar que isto não merece o nome de perseguição.
Primeiro ele o fez de maneira geral, por comparação à rainha: porque o rei Jaime
tratou os católicos com mansidão e piedade muito maiores do que ela o fez.
Segundo, porque usou de tanta clemência com os católicos que eles mesmos
chegaram a esperar que em breve fruiriam da liberdade para sua religião, e que outros
sectários, familiares do rei, espantaram-se e temeram algum grande perigo para o reino.
Terceiro, o rei recenseia os favores humanos e os benefícios temporais dados aos
católicos. Por exemplo, deu a alguns, embora o recusassem, a dignidade eqüestre, e a
outros fez partícipes do seu acesso e de seu colóquio, e sem nenhuma discriminação de
religião concedeu-lhes muitas honras e muitos benefícios, e coisas similares.
Quarto, enumera entre estes benefícios o advertir aos seus juízes que não afligissem
os sacerdotes com suplício, mesmo que fossem culpados, e especialmente exagera seu
edito clementíssimo, por que se permitiu a todos os sacerdotes que não tinham sido
apreendidos, e que estavam ativos fora da custódia, partir do reino além do dia pré-
estabelecido. E os que estavam detidos no cárcere, também se lhes permitiu ir
livremente; e, se depois disso alguns foram apreendidos, foram enviados ao outro lado
do mar e lá soltos. Daí conclui a ingratidão mostrada pelo pontífice, que compensou
tantos benefícios com uma medida tão iníqua.
4. N ÃO É PERSEGUIÇÃO DA IGREJA AQUELA VEXAÇÃO DOS CRISTÃOS QUE SE DETÉM SOBRE AS
COISAS TEMPORAIS. – Mas, como nos é certo e examinado que a perseguição que agora a
Igreja padece na Inglaterra, e que padeceu após Henrique sob Elizabete, é uma das mais
graves que a Igreja Católica já suportou até agora em algum reino em particular, advirto
(para que o mostremos a partir de seus inícios e fundamentos) que em toda e qualquer
persegui
perseguição,
ção, para lhe dar algum
algum juízo, primeiro
primeiro de tudo se deve observar o escopo e o
fim ao qual ela tende, e em seguida os meios pelos quais se o procura alcançar.

256
Portanto, para que a vexação contra a Igreja seja uma perseguição própria e pública,
é necessário e suficiente, quanto ao fim, que ela se ordene à destruição ou à mutação da
Igreja Católica, no todo ou em alguma parte notável.
Pois, embora a vexação do povo ou do reino cristão se ordene ao domínio temporal e
à sua ocupação tirânica, e por esta razão muitos prejuízos temporais dos cristãos
ocorram por rapinas, homicídios e outras injúrias similares, se estes não tendem à ruína
da religião cristã, mas apenas consistem no apetite do império temporal, não serão uma
persegui
perseguição
ção própria
própria da Igreja
Igreja como dela
dela tratamos agora,
agora, porque por ela os fiéis
fiéis não são
acossados enquanto fiéis e cristãos, mas enquanto homens ou cidadãos, assim como às
vezes são acossados os gentios e pagãos.
Portanto, poder-se-á chamá-la de perseguição corporal – não espiritual – e humana –
não cristã –, pois esta deve dar-se por causa de Cristo ou da fé n’Ele, segundo suas
próprias
próprias palavras [5:11]: Bem-aventurados soi s quando vos insultarem, etc.,
palavras em Mateus [5:1
or causa de mim. E em I Pedro [4:15-16] se diz: Nenhum de vós sofra como homicida,
homi cida,
etc. Se sofre como cristão, não se envergonhe, antes glorifique a Deus por tal nome.
5. O QUE É PERSEGUIÇÃO DA I GREJA. – Mas, pelo contrário, se a perseguição tende àquele
fim, e se é feita sob este nome, ela é uma perseguição cristã, quaisquer que sejam os
meios empregados.
Porque, como se diz em moral, o fim é o que dá ser e espécie à ação. Por isso, assim
como quem favorece os cristãos porque são cristãos, ou lhes confere quaisquer
benefícios
benefícios por causa da fé e do amor de Cristo
Cristo que há neles,
neles, honra a Cristo
Cristo e pode
esperar d’Ele um prêmio, segundo o que se diz em Mateus [10:42]: Todo o que der a
beber a um destes pequeninos, etc., a título de discípulo, não perderá a sua
recompensa; assim também, em sentido contrário, o que tende diretamente a ofender a
religião católica e a desviar dela os que a professam, quaisquer que sejam os meios de
que se sirva, é propriamente um perseguidor dos cristãos, e, conseqüentemente, também
de Cristo, segundo suas palavras ditas a São Paulo: Por que me persegues?(Atos 9:4)
Mas, quanto aos meios, o próprio Senhor insinua vários modos de se perseguir os
cristãos, dizendo no mesmo lugar (Mateus 5:11): Quando vos insultarem e vos
erseguirem, e disserem falsamente todo o mal contra vós por causa de mim.
Agostinho,[ 511 ] distinguindo acuradamente estas três coisas, diz que as
erseguições são feitas propriamente mediante a força ou mediante insídias; insultar ,
porém, é desonrar alguém
alguém e lançar-lhe afrontas em sua presença; dizer o mal, por outro
lado, é propriamente detrair alguém e ferir-lhe a reputação enquanto está ausente.
Mas, embora isso esteja dito com acerto ao se tomar estritamente a palavra
erseguir, também aquela vexação feita aos cristãos por afrontas e infâmias merece o
nome de perseguição, como se diz dos apóstolos em Atos [5:41]: Eles saíam da presença
do conselho, contentes por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo nome de
esus. E em I Pedro [3:14] diz-se: Se alguma coisa sofreis pela justiça, sois bem-
aventurados.
Assim, segundo a diversidade dos meios ou das tribulações, poderá haver perseguição
maior ou menor; mas, de qualquer modo que ocorra, se é em razão da fé ou da religião

257
cristã, ela será uma perseguição cristã. Como disse Agostinho, no lugar citado, alguém
adece por Cristo quando se chama cristão segundo a verdadeira fé e segundo a
disciplina católica e por isso é acossado.
discipli na católica
6. O QUE É PROPRIAMENTE UMA PERSEGUIÇÃO DA I GREJA. – Por fim, para lançarmos maior
luz a esta causa, julgamos útil explicar mais distintamente tanto os fins das perseguições
contra a Igreja quanto os meios pelos quais elas costumam ser realizadas.
Pois a perseguição pode acontecer apenas contra os bons costumes, ao introduzir-se
pela
pela viol
violênci
ênciaa e potência
potência humanas algum
algum perverso costume na república,
república, e ao afli
afligir-se
gravemente os que resistem e de algum modo pugnam pela verdade. Mas tal vexação,
enquanto se contém nestes limites, não costuma ser chamada de perseguição da Igreja,
mas antes de governo iníquo e tirânico, porque ela pode existir em todo e qualquer reino,
mesmo no meramente humano e pagão.
Mas a vexação do príncipe cristão costuma finalmente progredir até a cisão da
unidade da Igreja e até o desprezo de sua única cabeça, de tal modo que todos os súditos
que não consentem com o príncipe no mesmo cisma são por ele afligidos ou, por aquele
mesmo fato, considerados dignos de suplícios. E isto já atinge propriamente certo grau de
persegui
perseguição
ção da Igreja.
Igreja.
Mas o fim e o escopo da perseguição podem ser a mutação da fé e da verdadeira
religião nela fundada, com acossamento e aflição para os fiéis que resistem a tal
mudança. E esta é, em razão do fim, uma consumada perseguição da Igreja: porque tenta
subverter completamente o seu fundamento.
7. O PRIMEIRO MEIO DE QUE COSTUMAM SERVIR-SE OS PERSEGUIDORES. – Já os meios dos
quais os perseguidores da Igreja costumam servir-se para este fim são mais ou menos os
seguintes: primeiro, pela força e pela potência arruínam o culto divino da Igreja,
destruindo os templos, queimando as imagens, e convertendo os mosteiros e locais
sagrados em locais de uso profano. Assim nos relata Optato acerca dos donatistas,[ 512 ]
os quais acusa com as palavras de Elias:[ 513 ] Destruíram os teus altares.
altares. Por que, diz
ele, arruinastes os votos e os desejos dos homens junto com os altares? Por que
destruístes a via para as preces?
E comprova Agostinho[ 514 ] que os donatistas perseguiram os maximianistas,
orque destruíram a basílica de Maximiano. Assim também os arianos subvertiam os
templos dos católicos, como relata Vítor de Vite.[ 515 ] Outros imperadores também
subverteram as imagens e as incendiaram,
ncendiaram, como é de comum conhecimento.
conhecimento.
Um segundo meio costuma ser promulgar leis e editos contrários à fé, pelos quais os
fiéis são coagidos sob gravíssimas penas a abjurá-la ou a professar algo contrário às suas
regras. Fizeram isto não só os imperadores pagãos, mas também os que desertaram de
Cristo: Juliano, Valente e similares. A isto se acrescenta a execução das penas e dos
tormentos. Às vezes também costumam empregar meios violentos para que os ministros
e mestres heréticos ensinem e instruam os filhos dos católicos, na intenção de que, ao
contrário, estes se afastem da disciplina católica, e ela lhes seja de todos os modos
proibi
proibida
da – tal como fez Juli
Juliano, o Apóstata, segundo
segundo lemos nas memórias.
memórias. P or fim,

258
algumas vezes os tiranos costumam tentar as mentes dos fiéis com blandícias e favores
humanos, como se divulga nas histórias eclesiásticas.
8. MOSTRA-SE POR SEU FIM QUE A VEXAÇÃO DOS FIÉIS NAI NGLATERRA É UMA PERSEGU PERSEGUIÇÃO
DAI GREJA. – Primeiro, portanto, deve-se provar que a vexação dos fiéis na Inglaterra é
uma perseguição da Igreja quanto ao fim. De fato, se contemplamos seu início e sua
origem, isto se tornará manifesto.
Pois Henrique VIII, para que fosse pronunciada em seu reino a sentença de divórcio
entre ele e a rainha Catarina, em desprezo à Sé Apostólica, induziu a Inglaterra a uma
nova forma de igreja, constituiu-se a si mesmo como sua cabeça, e decretou que na
administração das coisas eclesiásticas daquele reino não seria necessária a autoridade do
Papa. E, por esse poder assim usurpado, decretou a introdução no seu reino de novos
ritos e leis para o culto de Deus, muito distantes daqueles que existiam anteriormente, e
com este fim fez muitas coisas de que trataremos depois.
Eduardo também teve esse escopo, ou melhor, tiveram-no seu protetor e seus
conselheiros, que aumentaram e intensificaram aquele mesmo fim, de tal modo que em
ouco tempo na Inglaterra o sacrifício tremendo, os ofícios divinos, e todos os
sacramentos deixaram totalmente de ser realizados segundo o rito católico, como
refere Sander.[ 516 ] E ainda, embora Henrique houvesse vetado a mutação de outros
artigos atinentes à fé, exceto o do primado, logo depois Eduardo começou a introduzir a
heresia zwingliana, como vimos acima.
Elizabete estabeleceu o mesmo objetivo assim que assumiu o reino, pois se declarou
a suprema governadora de toda a Inglaterra não menos nas coisas espirituais e
eclesiásticas do que nas temporais, e quis que seus súditos o jurassem. E inclinou-se de
todos os modos a não só conservar o cisma, mas também a introduzir a heresia luterana
e outras não muito diferentes, e a mudar totalmente a religião católica, que sua irmã
Maria começara a restaurar, e trabalhou até ao fim da vida nesta empresa e nesta
solicitude.
9. E não é necessário provar que o rei Jaime tenciona de todos os modos conservar e
preservar em seu reino
reino a mesma forma de relig
religião, que sem dúvida
dúvida repugna
repugna à católi
católica.
Pois de maneira suficientemente eloqüente e clara o próprio rei o professa com
freqüência em seu livro, como é assaz manifesto por sua profissão de fé, que expusemos
acima, e da qual em seguida indicaremos muitas palavras e lugares em que mostra e
declara este fim.
De tudo isso é evidente que os três fins perversos da perseguição à religião cristã, que
distinguimos acima, a saber, os costumes perversos, a mutação da religião pelo cisma, e a
mutação da fé pela heresia, todos encontram-se nessa perturbação anglicana. De fato, ela
começou pela corrupção dos costumes, prosseguiu ao cisma e consumou-se como
heresia declarada – e assim continua até hoje.
Pois, quanto ao cisma, nem o rei o nega; mas este, por sua vez, já está fundado sobre
a heresia, como se mostrou no livro III, e cumulou muitas outras heresias, como se
provou nos livros I e II.[ 517 ] Ora, o cisma
cisma e a heresia
heresia não podem dar-se sem grande
grande

259
corrupção dos costumes. Portanto, quanto ao fim, ali concorrem todos os males que se
podem encontrar na persegui
perseguição
ção da Igreja.
10. OMESMO SE DEMONSTRA PELOS MEIOS. Q UÃO GRAVE FOI A PERSEGUIÇÃO SOBH ENRIQUE.
– Mas que também quanto aos meios a perseguiperseguição
ção foi acerbíssima
acerbíssima não só antes de
Elizabete, mas sob ela, e após ela sob Jaime, isto se prova discorrendo brevemente pelos
capítulos que tocamos.
O primeiro era acerca da subversão e da usurpação das coisas sagradas. Ora, estas
começaram imediatamente sob Henrique, com a mutação da religião. Pois Henrique
sozinho ocupou violentamente dez mil dos mosteiros e templos edificados pelos católicos
ao longo de muitos séculos, e os perverteu para uso profano, como relata Bozio.[ 518 ]
Sander[ 519 ] descreve mais extensamente a duração e o modo de sua tirania. Diz-
nos: Henrique precei
preceituou
tuou a todos os varões e mulheres
mulheres de todas as ordens
ordens que
entregassem a seus tesoureiros os preciosíssimos ornamentos das igrejas e suas
relíquias. Em seguida, diz que ele conseguiu em assembléias públicas que os mosteiros
menores, cujas rendas não excediam setecentas libras, fossem entregues a seu arbítrio, e
assim ocupou trezentos e setenta e seis mosteiros, e deles auferiu cento e vinte mil libras
a cada ano, e reenviou ao século mais de dez mil religiosos de ambos os sexos. De fato,
em três anos ele arruinou todos os mosteiros do reino, e aplicou, com suma violência,
todos os seus bens ao fisco. E o mesmo autor continua a relatar extensamente com
quanta força e com quantos artifícios perversos o rei pôs em prática tais medidas.
Após isto, o monarca moveu guerra contra as imagens, os monumentos e as relíquias
dos santos: subverteu todos os mais célebres, afrontou-os e pilhou-os. E, embora não
subvertesse de todo a outras igrejas, arrebatou qualquer coisa preciosa que nelas havia, e
de modos incontáveis violou a elas e a todas as coisas sagradas, tratando-as
indignamente.
11. QUANTO CRESCEU A PERSEGUIÇÃO SOB EDUARDO. S OB E LIZABETE. S OB O REI J AIME. –
Mas todas essas coisas foram mantidas e intensificadas sob Eduardo. Pois, se na
Inglaterra haviam restado algumas imagens ou cruzes, estas em parte foram subvertidas e
em parte queimadas, e foram entregues ao rei todos os vasos de ouro e de prata, os
cálices e as vestes eclesiásticas sagradas, e todos os bens das igrejas.
E começaram a recitar os ofícios divinos segundo o rito herético e na língua vulgar;
assim, removendo-se o sacrifício divino e destruindo-se os altares, as igrejas dos
católicos deixaram de ser templos de Deus e de Cristo e comutaram-se em sinagogas de
Satanás.
Depois, Elizabete tirou novamente do caminho os templos, os mosteiros e todas as
coisas sagradas que sua irmã devolvera em parte ao antigo decoro da religião verdadeira,
e com maior vigor e poder invadiu todas as coisas sagradas, e tentou com todas as forças
remover todo uso da antiga religião.
Jaime, porém, embora talvez não tivesse encontrado mosteiros para destruir, nem
bens imóveis
móveis para deles
deles se apossar,
apossar, nem templos
templos que já não estivessem
estivessem contaminados
contaminados

260
pelos
pelos hereges,
hereges, deve contar-se ainda
ainda assim
assim entre os que infli
nfligiram a mesma viol
violênci
ênciaa
contra as coisas sagradas.
Primeiro, porque por seu poder ele faz com que aquela abominação da desolação seja
conservada, e com a mesma violência impede que seja instaurada em seus reinos
qualquer coisa que cheire à religião católica. E embora na Irlanda (como ouvimos daí) as
igrejas outrora derruídas pelos hereges sejam agora reedificadas às expensas dos católicos
por ordem do rei,
rei, faz-se isto para que elas
elas sirvam
sirvam aos ritos
ritos e encontros sacrílego
sacrílegoss dos
calvinistas, o que duplica, por assim dizer, a injúria e a perseguição.
Ademais, se os católicos retêm ocultamente quaisquer vasos sagrados e os ministros
do rei os encontram, estes os rapinam e convertem a seu uso profano. Além disso (como
ouvimos de pessoas dignas de fé), desta maneira pilham quaisquer vasos preciosos de
ouro e de prata ou ornamentos femininos, fingindo que são vasos sagrados e que estão
reservados para o ornato das relíquias
relíquias e dos altares.
12. OUTRO MEIO DE PERSEGUIÇÃO. Q UANTO CRESCEU SOBE LIZABETE. – Outro modo de se
persegui
perseguirr a relig
religião cristã costuma ser por editos
editos e leis viol
violentas
entas e penais
penais que repugnam
repugnam à
fé católica. É conhecidíssimo na Inglaterra que estes foram promulgados pelos referidos
reis e são propostos quotidianamente.
Pois Henrique, no princípio de sua queda, por um edito público coagiu os súditos a
prestar-lhe
prestar-lhe um juramento sobre o primado,
primado, como se viu viu acima. Além
Além disso,
disso, ardia
ardia de
tanto ódio contra o pontífice, que preceituou sob pena capital que todos apagassem de
seus livros o nome do Papa. E outras leis similares foram promulgadas por ele e por
Eduardo contra a religião católica.
Depois Elizabete, logo no princípio de seu reinado, propôs que os súditos aceitassem
o juramento sobre seu primado eclesiástico. Pois, embora não usasse o nome de cabeça
da Igreja, mas de soberana governadora, declarou posteriormente que ambas as
expressões significavam a mesma coisa. Acrescentaram-se as penas de privação de bens
e cárcere perpétuo aos que se recusavam por primeira vez; aos que se recusavam por
segunda vez, a pena capital.
Além disso, proibiu-se o uso do sacrifício e dos sacramentos no rito romano, na
primeira
primeira vez sob pena de duzentas libras, na segunda,
segunda, de quatrocentas, na terceira, de
perda de todos os bens e de cárcere perpétuo.
Igualmente, sob pena de perda de todos os bens e cárcere perpétuo, proibiu na
Inglaterra que qualquer um trouxesse ágnus-deis, cruzes, ou quaisquer outras coisas
consagradas pela autoridade do pontífice, e, sob pena capital, que qualquer um portasse
breves ou bulas de Roma.
Quis que fosse crime de lesa-majestade o querer reconciliar-se com a Igreja Romana.
Privou de todos os bens os que navegassem para fora do reino por causa da religião.
Depois promulgou uma lei segundo a qual todos os clérigos ordenados pela autoridade
pontifíci
pontifíciaa estavam coagi
coagidos a sair
sair do reino
reino dentro de cem dias,
dias, e a nunca mais voltar
voltar de
além-mar, sob pena de lesa-majestade. E promulgou inúmeros editos similares.

261
13. E SOB O REI J AIME. – Tampouco Jaime foi mais vagaroso ao atacar a fé católica com
suas leis. Pois, como refere extensamente o cardeal Belarmino na sua resposta à
pologia ,[ 520 ] saiu no ano de 1606 um edito régio cujo título era Para descobrir e
reprimir os papistas. Pelo título, é manifesto que foi promulgado por motivo religioso e
para o afastamento do P apa. Por isso, no primei primeiro
ro artig
artigo se confirmam
confirmam as leis
promulg
promulgadas por Eli Elizabete, e nos demais instituem-se
nstituem-se muitas
muitas outras coisas,
coisas, sob
gravíssimas penas, com o mesmo fim. Por exemplo, os católicos que recusam tomar a
ceia dos hereges, ou entrar em seus templos e assistir a seus ritos sagrados, são multados
com várias penas pecuniárias, que aumentam a cada reincidência. Isto é feito de modo
muito mais acerbo do que sob Elizabete.
Ademais, embora o rei diga que moderara o antigo juramento, não o retirou. De fato,
sabemos por relato digno de fé que, no último ano, decretou que todos os súditos o
prestassem.
Além disso, os que recusam também o novo juramento de fidelidade são lançados no
cárcere dos sicários, e, se ali ainda recusam, são privados de todos os bens e transferidos
para cárcere perpétuo.
Igualmente, se alguém reconduzir à obediência eclesiástica algum súdito do rei, é tido
como réu de lesa-majestade e sofre a pena por seu crime, a não ser que dentro de certo
tempo o confesse e acolha os dois juramentos (o do primado e o contrário ao poder do
Papa).
Todos esses editos e todas essas leis se ordenam manifestamente ao escopo de
afastar os homens da religião romana, e contêm grande coação, pois, pela ameaça da
privação
privação dos bens e do cárcere perpétuo os homens são mantidosmantidos afastados dos atos
consentâneos à fé e à religião romana, ou induzidos a jurar as pérfidas e sacrílegas
superstições dos hereges.
14. O CONVENTO DOS QUATRO ARCEBISPOS IRLANDESES PARA EXTIRPAR A FÉ CATÓLICA. –
Ocorre que antes, sob Elizabete, as coisas não eram tão acerbas como nos últimos anos,
especialmente desde 1605 até o presente. Os mesmos editos foram promulgados na
Irlanda (como escrevem dali) pelos legados e governadores enviados pelo rei com grande
poder,
poder, os quais
quais acossam os católico
católicoss de tal modo que quase não se lhes permi
perm ite viver
viver se
não renunciam à antiga religião.
De fato, preceitua-se a todos, sob gravíssimas penas, que freqüentem as igrejas dos
protestantes nos doming
domingos
os e festas, e que assistam a seus ritos ímpios; e os católicos
católicos são
coagidos a desertar a pátria se não querem conformar-se aos protestantes.
Além disso, os católicos estão, sob pena de cárcere perpétuo, proibidos de ensinar
gramática ou outras ciências aos jovens dentro do reino. Os pais, sob pena de confisco
de todos os bens, estão proibidos de enviar os filhos para estudos católicos de letras fora
do reino; se constar que eles os enviaram, são detidos no cárcere até que os filhos
retornem. Também os que são seus próprios senhores[ 521 ] estão, de modo semelhante,
proibi
proibidos
dos de sair
sair do reino
reino para obter ciênci
ciência,
a, sob pena de cárcere perpétuo se forem
capturados na saída.

262
E a ninguém se permite ser eleito à magistratura, nem ser admitido a seu regime, sem
que primeiro preste o juramento sobre o primado eclesiástico do rei da Inglaterra.
Tudo isso e muitas outras coisas, que omitimos por causa da brevidade, ordenam-se
ao mesmo fim: o de arrancar radicalmente a fé católica daquela ilha, onde até agora
parecia
parecia vigorar.
vigorar.
Por isso, com ordem do rei, quatro arcebispos, que são os únicos naquela região,
reuniram-se em Dublin para tratar dos assuntos religiosos, e todos a uma só voz juraram
que de todos os modos e com todos os meios cuidariam que se conserve nas suas
dioceses, e nas sufragâneas, e também em toda a ilha, a uniformidade no rito da religião:
Com o fim, dizem, de erradicar totalmente a religião papista, e no lugar dela plantar a
é e a religião verdadeiras.
15. Mas esta vexação por editos e leis não consiste apenas em ameaças, mas prossegue,
na maior parte, à sua implementação, como relata Sander[ 522 ] extensamente acerca do
tempo de Elizabete. E, quanto ao presente período, segundo o rumor constante e relatos
muito dignos de fé, consta que os católicos são maximamente acossados por pilhagens e
rapinas, e, reduzidos à suma pobreza, carecem de ânimo e força para resistir. Disto
podemos dar muitos exemplos,
exemplos, mas um é suficiente:
suficiente: o de certo ilustre
ilustre varão, Visconde de
Montagu, que, para não tomar o novo juramento, no ano de 1611 pagou como
compensação seis mil libras, isto é, vinte e quatro mil cruzados portugueses.
Nem é necessário
necessário que ofereçamos
ofere çamos uma prova mais extensa
extensa acerca de outros meios de
tormento, penalização e coação, com os quais os fiéis são acossados gravissimamente,
porque no capítulo
capítulo segui
seguinte[ 523 ] precisaremos
precisaremos relatar muitos
muitos argumentos
argumentos e exemplos
exemplos
desta verdade, e estes também agora ficarão mais evidentes pela resposta às objeções (ou
melhor, às escusas) do rei – pois nem mesmo o próprio rei ousa negar de todo as aflições
e penas que os ortodoxos[ 524 ] padeceram na Inglaterra, e ainda agora padecem. Mas é
mister examinar outras escusas que ele apresenta, para que se evidencie muito mais o
fato de que aquela perseguição é tão clara e cruel, que nenhuma tergiversação poderia
ocultá-la.
16. EXCLUI-SE A EVASIVA EMPREGADA PELO REI. – Primeiro, portanto, o rei escusa sua
predecessora, Eli
Elizabete, segundo
segundo aquela
aquela divi
divisão
são de tempos feita
feita acima.
acima. P ois,
ois, antes da
sentença promulgada por Pio V, ela não teria acossado gravemente os fiéis; após a
sentença, não os teria acossado, mas se defendido, nem teria perseguido a fé, mas os
crimes
crimes e conjurações.
Ora, a primeira parte se apóia sobre um fundamento falso. Pois diz o rei que antes da
excomunhão de Pio V se haviam promulgado na Inglaterra leis mais severas contra os
católicos. Ora, a excomunhão foi promulgada por Pio V no ano de 1569 e, contudo, as
leis relatadas acima foram promulgadas no ano de 1558 e no seguinte – leis que não
podem nem devem dizer-se
dizer-se apenas mais severas, mas severíssimas.
De fato, as penas de privação de todos os bens e de cárcere perpétuo, tomadas em si
mesmas e individualmente, são gravíssimas. Como, portanto, não se há de julgar

263
severíssima a lei que ao mesmo tempo impunha ambas as penas aos que recusavam
aquele juramento de perfídia?
Igualmente, não podem não ser consideradas gravíssimas e severíssimas as outras leis
que impõem penas pecuniárias, tanto aos que observam o costume católico nos ritos
sagrados, quanto aos que evitam o rito sacrílego dos protestantes, visto que elas pouco a
pouco os privam
privam dos bens necessários
necessários à vida,
vida, e entregam
entregam por fimfim ao cárcere os que
perseveram no bem.
17. REFUTA-SE OUTRA EVASIVA.– O rei ainda acrescenta que naquele tempo nenhuma pena
capital foi constituída contra os papistas. Ora, o que se evidencia pelas ditas leis é o
contrário, pois impunha-se a pena capital àquele que recusava por segunda vez tal
uramento de perfídia. E pagava a mesma pena aquele que trouxesse qualquer bula
pontifíci
pontifíciaa para a Ingl
Inglaterra. E um doutor da fé católi
católica, se convertesse alg
alguém da sua
heresia, seria tido como réu de lesa-majestade, e em seguida também réu de morte.
Já naquele tempo a rainha acossava os católicos não só pelas leis, mas também por
sua aplicação, e de inumeráveis outros modos. Pois relata Sander[ 525 ] que muitos
bispos
bispos que não quiseram
quiseram jurar nem consentir
consentir com outras impiedades
mpiedades foram depostos e
entregues ao cárcere, e ali, por fim, foram extintos após um longo dissabor de
misérias. Igualmente, nobres e outros religiosos de ambos os sexos, ou suportaram
semelhantes vexações, ou, para evitá-las, foram coagidos a desertar a pátria e,
abandonando tudo, fazer-se exilados.
É portanto evidentíssimo que Elizabete acossou os católicos com perseguição
gravíssima antes que Pio V a castigasse. Se o rei quisesse (como ele postula) estimar e
ponderar com espírito
espírito justo todo o assunto em suas circunstânci
circunstâncias,
as, diri
diriaa ser muito
muito mais
verdadeiro que Pio V não lançou nenhuma pena contra a rainha antes que sua pertinácia
e severidade contra os católicos compelissem o pontífice a defender os inocentes.
18. ANIQUILA
NIQUILA-SE
-SE OU
OUTRA
TRA EV SIVA. – Vejamos, em seguida, quão legítima é a escusa sobre
EVASIVA
os atos de Elizabete naquele tempo posterior. Elizabete , diz ele, exacerbada com a
censura e a deposição de Pio V, moveu contra os católicos sua ira e indignação.
Mas que escusa é esta? Certamente é nula; ou antes, por isso mesmo a iniqüidade da
persegui
perseguição
ção tornou-se mais grave e mais detestável.
detestável.
Pois, como mostramos, por muitos anos antes da sentença de Pio V Elizabete
acossara os católicos para desviá-los da obediência ao pontífice. Quando Pio IV enviou-
lhe um legado para admoestá-la a não arruinar seu nobilíssimo reino por ódio ao
pontífice,
pontífice, e ademais afirmar-lhe
afirmar-lhe que, se ela temia
temia alg
algo quanto ao direit
direitoo do reino,
reino, isto
poderia
poderia ser resolvi
resolvido
do pela
pela benig
benignidade
nidade da Sé Apostóli
postólica, ela nem quis
quis ouvir
ouvir tal legado,
egado,
nem lhe permitiu passagem para a ilha, como relata Sander.[ 526 ]
E acrescenta o autor que, quando um segundo legado fora enviado para a Inglaterra
pelo
pelo mesmo pontífice,
pontífice, para exortar
exortar à rainha
rainha que enviasse
enviasse alg
alguns de seus bispos
bispos para o
concílio de Trento – prometendo-lhes toda a segurança – para que tratassem de matéria
de fé, ela também o rejeitou soberbamente.

264
Também, diz ele, ela sempre se mostrou mais dura às várias cartas do imperador, dos
reis e de outros varões católicos ilustres.
Por que se admirar, portanto, se Pio V julgou que devia por fim usar de severidade
contra ela, já que por quase quatro anos de seu pontificado esperou pacientemente
alguma correção ou moderação nos costumes da rainha e não obteve nada? Certamente,
ninguém que não duvide do poder do Papa ousará repreender sua justa indignação, nem
escusará a pertinácia da rainha.
19. E podemos acomodar à presente causa a egrégia sentença de Agostinho,[ 527 ] que
assim fala aos donatistas:
Se vós erigistes um altar contra a Igreja de Cristo, e vos separastes por um cisma
sacrílego da unidade cristã, que se difunde por todo o orbe, e se adversais o corpo de
Cristo, que é a Igreja difusa por todo o orbe, blasfemando-a e, quanto podeis,
combatendo-a, a Escritura sagrada e canônica prova que sois ímpios e sacrílegos. Por
outro lado, são tidos como regentes diligentíssimos e conselheiros piíssimos aqueles
que determinam de modo tão leniente que, por tamanha iniqüidade, sejais
desencorajados e coagidos por meio de admonições, quer quanto aos danos, quer pela
rivação de suas posições, honras ou dinheiro, para que, cogitando por que padeceis
estas coisas, fujais de vosso conhecido sacrilégio e sejais livrados da eterna danação.
Os pontífices devem a vós este amor: que não determinem a punição merecida por
vossos sacrilégios, por causa da mansidão cristã, mas que tampouco vos deixem de
todo impunes, por causa da solicitude cristã. E isto Deus opera neles, cuja
misericórdia não quereis reconhecer, mesmo nas moléstias de que vos queixais.
É mais ou menos isto que disse Agostinho, que, embora não fale de um pontífice
coagindo um rei cismático, mas de um imperador irando-se a favor da Igreja contra
súditos rebeldes – como já dissemos –, as suas palavras e toda a sentença acomodam-se
de modo excelente e proporcional à causa presente.
Nem o poderá contradizer
contradizer senão aquele
aquele que neg
negar
ar o poder do P apa para coagi
coagir os
reis cismáticos: ele reconduzirá a controvérsia para a questão sobre a causa da religião.
Mas assim também se conclui que, embora Elizabete, provocada pela sentença do
pontífice,
pontífice, tenha aumentado a persegui
perseguição,
ção, nem por isso mudou o escopo e o fim
fim desta.
De fato, sempre pugnou contra a religião, e se firmou ainda mais e com maior crueldade
neste mesmo propósito por ocasião da sentença justa, e assim não mudou nem retirou a
persegui
perseguição
ção dos católicos,
católicos, mas a aumentou.
20. O PROGRESSO DA PERSEGUIÇÃO SOB J AIME. – Às outras coisas que o rei propõe sobre
si mesmo e sobre seu regime, respondemos brevemente.
De início, quanto à comparação que faz entre Elizabete e ele, esta nos mostra no
máximo que no princípio de seu império ele tratou os católicos com maior mansidão, e
moderara de algum modo a perseguição de Elizabete, embora não a tenha cessado. Mas
nós podemos facilmente mostrar que o próprio Jaime também perseguiu a religião
católica desde o princípio de seu reinado.

265
Primeiro, porque, em seu primeiro ano de mando e em seu primeiro parlamento, ele
não só confirmou os editos da rainha mas também os aumentou não pouco, como
testemunha Belarmino[ 528 ] em sua resposta. Segundo, porque o próprio rei diz que os
católicos, confiantes em sua benignidade, chegaram a ter a esperança de que em breve
tempo fruiriam da liberdade de sua religião. Portanto, ele admite que, enquanto já
reinava, os católicos sempre estiveram proibidos de professar ou observar sua religião.
Logo, eram coagidos a desertá-la. Mas o que pode ser uma perseguição religiosa mais
evidente do que proibir o seu uso por leis iníquas e pela força? Terceiro, o próprio rei
confessa que atingiu a suma clemência para com os católicos, que, excedendo o dia
constituído, lhes permitiu sair do reino, ou melhor, os obrigou a sair, pois tal exílio lhes
era concedido para evitarem penas mais graves. E o rei chama isto de edito
clementíssimo. Mas ouça-se o que escreveu Sander sobre uma concessão similar feita no
tempo de Elizabete: Tomaram nestes dias uma nova deliberação acerca de alguns que
tinham presos, para enviá-los ao exílio, ou porque acreditavam que a morte e a
imolação dos sacerdotes não lhes aproveitavam nada; ou porque julgaram que, por
este fato, se poderia divulgar em muitos lugares sua clemência postiça, cujo louvor
tanto esperam.[ 529 ] O que acontecerá, portanto, se alguém fizer o mesmo juízo acerca
da determinação semelhante do rei? Talvez não se afaste muito da verdade.
Contudo, concedamos que o rei o fizesse com a intenção de abrandar a vexação e de
diminuir as penas. Ainda assim o exílio perpétuo não é grande argumento
argumento em prol prol de
leni ência , como o mesmo Sander acrescenta. Ademais, considerado em si mesmo, é
sua leniência
uma pena gravíssima, e é uma grande calamidade o ser coagido por ela para que se
evitem penas mais graves. Por fim, é também algo muito duro e severo tê-la imposta sob
a condição de que o retorno constituísse delito capital.
21. REPLICA-SE
À EVASIVA. N ÃO HÁ ESCUSA PELOS BENEFÍCIOS DADOS AOS CATÓLICOS, SE
ESTES FORAM CONFERIDOS EM RAZÃO DO REGIME POLÍTICO. – E diz o rei que não se pode
provar que alguém
alguém fora condenado à morte por motivo reli
religioso durante o seu reinado.
Ora, em primeiro lugar, isto não é nenhuma graça, a não ser que seja considerado um
benefício aquilo dos ladrões, que costumam gloriar-se de que deram a vida àqueles que
dela não privaram. Ademais, a conclusão é péssima: “Os católicos não são mortos; logo,
tampouco padecem perseguição.” Como se apenas a matança e a morte fossem coações
e penas graves. Por isso, diz Agostinho:[ 530 ] Os príncipes são perseguidores e
opressores toda vez que pelos terrores das penas, mesmo das mais leves, desencorajam
os súditos da boa vida e das boas ações, ameaçando-os e seviciando-os.
Por fim, mostraremos no capítulo seguinte que sua asserção é também falsa.
Quanto ao que o rei acrescenta (e que dá a entender ocorrerá), que a proibição do
uramento é ocasião para matar muitos recusantes, isto mostra suficientemente que o
propósito
propósito do rei é persegui
perseguirr os santos até à morte por causa da relig
religião. Pois, como
mostramos, a religião e a consciência obrigam os fiéis a não admitir este juramento.
Portanto, os fiéis que ele mata por esta causa, persegue-os até à morte por sua religião. E
o sangue deles não recairá sobre
sobre a cabeça do pontífice, como profetiza o rei, mas sobre
a cabeça do perseguidor, se não se corrigir.

266
Pois o pontífice, que proibiu o juramento declarando a verdade, não deu motivo para
tal efusão de sangue; será antes o rei – que, atacando a verdade, impôs tal juramento e
decidiu perseguir os recusantes até à morte – a causa deste sangue tão cruelmente
vertido.
Além disso, os favores e benefícios que relata haver dado aos católicos são de pouca
importância para escusar a perseguição. Pois não foi por causa da religião que ele
começou a favorecê-los, ou antes a dissimulá-los, mas por razões políticas, para que, de
algum modo, a todos reconciliasse com ele no princípio de seu reinado.
E talvez desejasse ganhar seus espíritos com tais blandícias e honrarias, para que
depois os encontrasse mais facilmente obedientes à sua vontade também nas coisas da
religião. Se é assim, aquilo não se deve considerar uma escusa, mas antes uma parte da
persegui
perseguição
ção e uma razão de seu aumento.
Por fim, o que o rei freqüentemente alega em sua defesa, que fora forçado a agir
mais severamente contra os papistas por causa dos crimes de conjuração, isto nem
escusa a perseguição, que começara muito antes, como mostramos, nem de nada serve
para escusar da acusação de persegui
perseguição
ção o acossamento dos católi
católicos que daí se segui
seguiu,
u,
como mostraremos no capítulo seguinte.

[ 509 ] Ausente desta compilação.


[ 510 ] De Civitate
Civi tate Dei,
Dei, XVIII , 52 (PL 41, 616).
[ 511 ] De Sermone Domini in MonteM onte,, lib. I, cap. 5, n. 14 (PL 34, 1236).
PTAT O DE M ILEVI, De schismate Donatistarum,
[ 512 ] S. O PTAT Donatistarum,VI, 1 (PL 11, 1066B-1067A).
[ 513 ] I Reis 19:10.
[ 514 ] Contra Cresconium grammaticum Donatistam,
Donatistam, III, c. 59 (65) (PL 43, 531).
[ 515 ] Historia persecutionis
persecutionis africanae
af ricanae provinciae
provinciae temporibus Geiserici
Geiserici et Hunirici regum wandalorum
wandalorum,,
Bibliotheca
ibliotheca veterum Patrum, Paris, 1589, lib. lib. I (De Persec
Per secutione
utione Vandalica).
andalica).
[ 516 ] NICHOLASS ANDER, De Origine ac progress progressuu schismatis anglicani libri
li bri tres
tres,, Roma, 1586, II, p. 276.
[ 517 ] Ausentes desta compilação.
[ 518 ] T OMÁSB OZIOE UGUBINO, De Signis Ecclesiae
E cclesiae,, Roma, 1591, t. I, lib. 10, cap. 10, p. 410, D-E.
[ 519 ] Op. cit.,
cit., I, pp. 169-170.
[ 520 ] Apologia Robertii S. R .E. .E . Cardinalis
Cardinalis Bellarmini...
Bel larmini...,, Roma, 1609, p. 14.
[ 521 ] Isto é, homens sui iuris(de direito próprio), que não são servos. [N. T.]
[ 522 ] Op. cit., III, pp. 268-373.
[ 523 ] Ausente desta edição compilada.
[ 524 ] Isto é, os fiéis católicos, que não abandonaram a ortodoxia doutrinal para ceder à heresia. [N. T.]
[ 525 ] Op. cit., III, p. 384.
384.
[ 526 ] Op. cit., III, p. 307.
307.
[ 527 ] Ad Catholicos epistola contra donatistas( De unitate Ecclesiae),
Ecclesiae), lib. I, cap. 20, n. 55 (PL 43, 433).
[ 528 ] Op. cit.,
cit., p. 181.
[ 529 ] Op. cit., III, pp. 476-7.
[ 530 ] Ad Catholicos epistola contra donatistas( De unitate Ecclesiae),
Ecclesiae), lib. I, cap. 20, n. 53 (PL 43, 432).

267
Capítulo XII
Resposta ao que o rei objeta contra o segundo brevebreve
pontifício
pontifíci o e contra a epístola
e pístola do car
c ardeal
deal Belarmino
Bel armino
1. Redargüição do rei contra a brevidade do cardeal Belarmino. 2. As decisões
principais
princi pais do segundo breve de Paulo V. V. 3. Como o rei não tinha objeções contra o
segundo breve, usou do exagero das palavras. 4-5. Com que espírito
espíri to a forma de
juramento foi intentada. Responde-se ao inconveniente
i nconveniente i nferido pelo rei. 6. Resposta à
última ilação do rei. 7. Refutam-se as objeções do rei contra a epístola de Belarmino.
A primeira.
pri meira. A segunda. 8. A tercei
terceira.
ra. A quarta. A quinta.
qui nta. Falsamente se atribui aos
pontífices a matança dos reis. 9. A sexta. O que carece de prova é suposto, não
provado.
provado. 10. A sétima.
séti ma. Não é contradição
contradi ção calar num lugar o que se diz em outro. 11.
Vindica-se de calúnia o ilustre martírio de Thomas More e de Fisher. 12. A oitava.

1. REDARGÜIÇÃO DO REI CONTRA A BREVIDADE DO CARDEAL B ELARMINO. – Entre outros


sinais de “arrogância” na Apologia de Belarmino e em sua resposta, que o rei enumera e
repreende em seu Prefácio
Prefácio , um deles é que em seu texto Belarmino quis seguir o rei, que
ao escrever manteve a brevidade. E acrescenta o monarca: Quis ele usar contra mim o
resumo de que me servi para refutar o segundo breve do pontífice, e, a meu exemplo,
quase encerrar-se na estreiteza de uma só página. Portanto, para que eu evite uma
repreensão similar, e fuja de toda sombra de sua ocasião – como fiz até agora quanto aos
demais pontos –, neste último desejei dar uma repreensão copiosa ao sereníssimo rei.
Entretanto, não encontrei nada, nem no próprio breve que necessitasse de nova defesa e
prova, nem no ataque do rei que postulasse
postulasse uma resposta peculi
peculiar. P or isso, achei mais
satisfatório incorrer naquela mesma ofensa e repreensão régia do que repetir coisas já
ditas ou onerar as páginas com palavras supérfluas e ociosas.
Assim, primeiro explicarei de modo breve o segundo decreto do pontífice e a sua
razão; depois, com a mesma brevidade mostrarei que o rei não pode objetar nada difícil
contra ele. Por fim, de modo similar, discorrerei sobre a refutação à epístola de
Belarmino.
2. AS DECISÕES PRINCIPAIS DO SEGUNDO BREVE DE P AULO V. – O pontífice, pois, nesse
segundo breve não impôs aos católicos ingleses nenhuma obrigação ou nenhum ônus
novo, mas confirma novamente o primeiro breve e explica mais distintamente que nele se
fizeram duas cosias.
Uma é declarar que não é lícito em consciência prestar esse juramento de fidelidade.
A outra é proibi-lo também por preceito próprio, para que se tolha toda ocasião de

268
tergiversação e de dúvida.
Ademais, também declara que o primeiro breve fora escrito não só motu proprio e
com ciência certa, mas também após longa e grave deliberação acerca de todas as coisas
contidas no juramento; e por isso aquele documento deve ser observado de todo,
rejeitando-se qualquer interpretação que queira persuadir em sentido contrário.
Mas a razão ou a necessidade desta nova declaração ou confirmação foi que, como
relata o próprio pontífice, alguns – ou súditos, ou sedutores do rei – espalharam na
Inglaterra o rumor de que o breve era forjado, ou de que não fora expedido
legitimamente e com ciência certa, mas sub-repticiamente. Com este pretexto, alguns,
desprezando o breve, não recusavam o juramento. Tal fraude e renitência o mesmo
pontífice
pontífice atribui
atribuiuu benig
benigna e prudentemente à astúcia
astúcia do adversário
adversário da salvação
salvação humana,
para escusar a fragi
fragilidade
idade dos fiéis
fiéis mais infi
infirmes.
rmes.
3. COMO O REI NÃO TINHA OBJEÇÕES CONTRA O SEGUNDO BREVE, USOU DO EXAGERO DAS
PALAVRAS. – Mas o rei da Inglaterra, não tendo nada a objetar – seja pela autoridade, seja
pela
pela razão – contra a declaração
declaração muito
muito verdadeira
verdadeira do pontífice
pontífice e contra aquela
aquela proibi
proibição
ção
necessária, prorrompe na exageração das palavras, arrebata as do próprio pontífice (que
aduzimos há pouco) e as volta contra ele, dizendo que nem mesmo o demônio, por
nenhuma fraude, poderia em mil anos prejudicar tanto os católicos da Inglaterra como o
Papa os prejudicou pela expedição desse breve.
Porque dele se seguiria este grande incômodo: muitos que admitiram o juramento,
mesmo sacerdotes, seriam coagidos a abjurá-lo, e assim se tornariam perjuros de dois
uramentos prestados a seu rei. Um seria aquele que todos que nascem no reino juram
tacitamente, e o outro seria esse que admitiram posteriormente. Donde se segue, diz ele ,
que ninguém pode professar a religião romana na Inglaterra, nem cuidar da salvação
de sua alma, senão aquele que abandonar e rejeitar a sua fidelidade conhecida e
urada para com o príncipe.
E depois nada mais objeta contra esse breve.
4. COM QUE ESPÍRITO A FORMA DE JURAMENTO FOI INTENTADA. R ESPONDE-SE AO
INCONVENIENTE INFERIDO PELO REI. – Mas não é difícil no presente ponto provar
provar o
espírito ,[ 531 ] e mostrar o que procede do espírito de Satanás: se a instituição e a
exação do juramento, ou se sua reprovação e proibição. Pois isto se pode discernir por
seus frutos ou efeitos.
efeitos.
Pois o fim do juramento é afastar os fiéis da obediência eclesiástica sob a roupagem
da obediência civil, induzindo-os a negar o poder pontifício sob pretexto de jurar
fidelidade ao rei. Por isso os frutos de tal juramento, se é prestado, serão a profissão, a
confirmação e o aumento do cisma, a negação da fé, a íntegra ruína do reino nas coisas
espirituais e a perdição das almas.
É, portanto, evidente que o juramento foi cogitado pelo adversário da salvação
humana, e inserido por ele nos corações dos protestantes que aconselham o rei, e do
mesmo espírito procederam todas as palavras e meios pelos quais tal juramento é
defendido; mas, pelo contrário, a reprovação e proibição do juramento foram inspiradas

269
pelo
pelo espírito
espírito contrário,
contrário, ou divi
divino,
no, tanto porque a obra própria
própria do espírito
espírito de Deus é
dissolver as obras do diabo, quanto também porque os que receberem tal proibição com
plena
plena fé e constante obediênci
obediênciaa atenderão às suas consciênci
consciências
as e resisti
resistirão
rão ao cisma
cisma e à
infidelidade com esperança de grandes frutos e recompensas.
Mas os que admitiram tal juramento, seja pela fragilidade do espírito, seja por erro ou
engano, como o rei afirma, reconhecendo sua queda e seu erro pelo clamor do pastor,
dissolverão os laços da impiedade e abjurarão o juramento iníquo. De fato, isto não só
não é inconveniente, como o rei infere, mas é antes necessário à salvação, e deve ser
computado entre os efeitos principais desse breve.
5. Além disso, tampouco se segue a outra parte que o rei postula, a saber, que se rechaça
aquele juramento de obediência e fidelidade ao rei que aos súditos é congênito.
Pois, quer se entenda por esse juramento aquela obrigação que, como por direito
hereditário, chega a todos os súditos e a seus filhos pela fidelidade jurada aos príncipes
por seus pais
pais e maiores,
maiores, quer também se entenda o expresso juramento, lícito
ícito e honesto,
feito pelos súditos sobre a fidelidade política devida ao rei, de nenhum dos dois modos se
segue que, pela retratação desse outro juramento inventado pelo monarca e admitido por
alguns, se abjure ao vínculo natural ou ao juramento de obediência civil – porque nesse
outro, como mostramos, não se promete ao rei uma obediência civil justa e honesta, mas
se negam diretamente a obediência e o poder do pontífice. Por isso, quando alguém o
retrata, abjura uma negação, por assim dizer, e portanto reconhece o poder pontifício e
retorna à sua obediência.
Antes nega-se ao rei apenas aquela obediência que é contrária à devida ao Papa e a
Deus. Que essa não é contrária à devida obediência civil e natural, já o explicamos e
provamos muitas vezes.
6. R ESPOSTA À ÚLTIMA ILAÇÃO DO REI. – E com isso respondemos à última ilação do rei.
Pois, se o rei, ao falar da obediência que ele deseja, diz que não se reconheceria
nenhuma outra acima dela – seja diretamente nas coisas espirituais, seja indiretamente
nas coisas temporais – ele infere muito bem que ninguém na Inglaterra pode manter e
conservar a fé católica jurando tal obediência ao rei, ou sem retratar tal juramento, se
alguma vez o prestou.
Nem o rei duvidará disto
disto se ele
ele crê, como deve, que fora da única
única Igreja
Igreja Católi
Católica e
Apostólica não pode haver salvação ou fé; porque, onde não há união com a cabeça, aí
há cisma, divisão e separação da Igreja. E portanto não é possível que esteja em estado
de salvação quem admite o juramento e nele persiste.
Já se o rei falasse sobre a pura e legítima obediência civil, sua ilação não teria
importância alguma, porque esta obediência civil não impugna a eclesiástica. E em outros
reinos católicos os súditos observam a religião romana e atendem à sua salvação, e
contudo não abandonam nem abjuram a fidelidade devida a seu rei; antes observam-na
com maior fidelidade, e com paz e segurança maiores para o reino.

270
7. REFUTAM-SE AS OBJEÇÕES DO REI CONTRA A EPÍSTOLA DE B ELARMINO. A PRIMEIRA. A
SEGUNDA. – Após impugnar os decretos pontifícios, o rei investe contra a epístola do
cardeal Belarmino, e não julguei valer a pena responder-lhe quanto a esta parte, tanto
porque o doutíssimo
doutíssimo cardeal o fez compl
com pletamente
etamente e com sólisólida erudição, como porque à
presente causa ela nada contém de atinente que já não tenhamos respondido
respondido acima.
Para que isto seja evidente a todos, explicá-lo-ei individualmente e por partes, de
modo breve.
Primeiro, ele atribui a Belarmino a confusão entre o juramento de fidelidade e o
uramento do primado. Ora, o próprio cardeal refuta satisfatoriamente esta objeção. E,
por isso, no princípi
princípioo deste livro propusemos a fórmula
fórmula de ambos os juramentos, para
que não se deixasse abertura à tergiversação ou à ambigüidade.
Segundo, na passagem Atque ut iustitiam,
iusti tiam, etc., o rei propõe catorze asserções, das
quais afirma que todas (ou ao menos algumas) se seguem à impugnação do juramento.
Ora, já se falou delas suficientemente no capítulo VI.
8. A TERCEIRA. A QUARTA. A QUINTA. F ALSAMENTE SE ATRIBUI AOS PONTÍFICES A MATANÇA
DOS REIS. – Terceiro, no parágrafo Atque ut clarius
clari us, o rei se põe a provar a justiça de seu
uramento de fidelidade mediante a autoridade dos concílios. Ora, como notei no capítulo
II deste livro, aqueles concílios falam de um juramento muito diverso. Por isso, não é
sem razão que podemos voltar contra o rei o erro que ele atribuiu a Belarmino no
princípi
princípioo dessa impugnação,
mpugnação, a saber: para confi
c onfirmar
rmar um juramento completamente alheio alheio
à questão, ele colecionou provas desnecessárias (como expus extensamente naquele
mesmo lugar).
Quarto, no parágrafo Nunc verovero, que está na página 65, ele digressiona por muitas
pági
páginas com palavras
palavras injuriosas,
njuriosas, ou com motejos e afrontas, persegui
perseguindo
ndo e argüin
argüindo
do a
Belarmino. Mas em tudo isto não encontro nada que seja atinente à causa ou à doutrina,
ou que seja digno da discussão. Mesmo assim, Belarmino refutou doutamente a todas,
embora não sem razão pudessem ter sido desprezadas.
Quinto, na página 84, no parágrafo Nunc autem, ele volta de onde digressionou,
como diz, mas logo aparta-se para outra coisa: redargüir Belarmino de outra contradição;
para fazê-lo,
fazê-lo, assume o encargo
encargo de provar que os pontífices
pontífices acossaram muitos
muitos
imperadores, inquietaram-nos, e perseguiram-nos até à morte. E aduz vários exemplos de
imperadores e reis depostos pelos pontífices. Mas neles mistura muitas falsidades com
verdades, como mostra Belarmino eruditamente. Por conseguinte, as coisas verdadeiras
confirmam a verdade católica, como examinamos de modo diligente no livro III, quando
a elas nos referimos, ponderando as circunstâncias de cada uma em particular. Já as que
são falsas devem desprezar-se, pois antes refutam o próprio argumentador. E, assim,
nem uma nem outra provam que os pontífices maquinaram o assassínio dos reis por
sicários ou por insídias, como negara Belarmino. Pois falsidades não provam nada; já as
verdadeiras histórias apenas provam que os pontífices, quando uma causa legítima
intervinha e uma causa justa o exigia, com freqüência procederam à sentença de
deposição contra príncipes iníquos, observando-se a ordem do direito.

271
9. ASEXTA. O QUE CARECE DE PROVA É SUPOSTO, NÃO PROVADO. – Sexto, na página 90, na
passagem
passagem Nam cum illud constet, etc., o rei chega mais próximo do tratamento da causa
sobre a malícia ou a probidade do juramento; contudo nela pouco insiste. De fato, logo
divaga pelos símiles e exemplos aduzidos por Belarmino, buscando em cada um deles
disparidade, como se buscasse nó no junco.[ 532 ]
Mas nada aduz em defesa do juramento, nem para mostrar a sua probidade, além
daquele princípio geral: é santo o juramento de fidelidade civil prestado ao rei. Como,
porém, a difi
dificul
culdade
dade reside
reside em apli
aplicar ao juramento em questão este princípi
princípioo muito
muito
verdadeiro (sobre o qual se dá a controvérsia), e em mostrar que ele é um simples
uramento de obediência civil, que nada tem de contrário à religião católica. Ele
freqüentemente o supõe e repete, mas nunca o prova nem o defende, senão pela negação
do poder do pontífice.
E por isso julgamos que se deve insistir sobre este único ponto. Os demais símiles e
exemplos – apresentados mais para exortação do que para prova – supõem a doutrina
católica, e estão bem se esta está de pé. Tampouco o rei os refuta senão negando a
doutrina
doutrina católica,
católica, como notou retamente
re tamente o mesmo Belarmino,
Belarmino, defendendo
defe ndendo e confirmando
confirmando
todas as partes, exemplos e testemunhos de sua epístola.
E porque pertencem à causa do primado certas palavras dos papas Gregório e Leão,
que o rei ataca extensamente nas páginas 106 até 116, tratamo-las largamente no livro
III. Já no livro II[ 533 ] refutamos o que ele repete, na página 117, contra a comunhão
sob as duas espécies e contra as missas privadas.
10. A SÉTIMA.N ÃO É CONTRADIÇÃO CALAR NUM LUGAR O QUE SE DIZ EM OUTRO. – Sétimo,
nas páginas 117 a 126, novamente investe contra Belarmino e Sander e, por fim, contra
Thomas More e Fisher.[ 534 ] E, embora nada do que toca pertença ao ponto em
questão, consideramos que algo se deve dizer brevemente sobre cada uma de suas
asserções, visto que em alguma parte elas tocam a doutrina da fé.
Em primeiro lugar, ele não repreende a Belarmino, mas à Igreja, que não acrescenta
às palavras da consagração a frase quod pro vobis datur,[ 535 ] indo de encontro (diz o
rei) a Lucas e Paulo. E acrescenta que ele tem um adversário e inimigo, Belarmino, que
confessa que estas coisas não se podem conciliar.
Mas quem alguma vez disse que há oposição entre aqueles que falam da mesma
coisa, quando um narra o assunto integralmente e o outro refere uma parte, sem
discrepânci
discrepância,
a, enquanto cala sobre outra?
Se isto é contradição ou oposição, são infinitas as oposições entre os evangelistas que
não poderão ser conciliadas. Ademais, neste mesmo ponto Mateus e Marcos se oporiam
a Lucas e Paulo: aqueles calaram a expressão quod pro vobis, que Lucas e Paulo
puseram. Mas também Lucas e Paul Pa uloo estariam
estariam de algum
algum modo em oposição
oposição entre si,
si,
porque não usaram a mesma palavra,
palavra, mas um disse
disse quod pro vobis datur [Lucas 22:19]
e o outro quod pro vobis tradetur[I Coríntios 11:24].[ 536 ]
Aprouve-me anotá-lo, para que o leitor advirta por que pretextos os protestantes
deixam a Igreja Católica, e ousam repreender seus ritos apostólicos.

272
De fato, evidentemente consta que ali não há oposição nenhuma, seja porque calar
não é contradizer, seja porque Paulo e Lucas não disseram que todas aquelas palavras
são necessárias para a consumação da Eucaristia – nem é verossímil que Mateus e
Marcos tenham preterido algo substancial do sacramento. É antes blasfemo e herético
cogitar que Pedro transmitira à Igreja Romana uma forma mutilada e insuficiente da
Eucaristia; sobre isto disputamos detalhadamente noutro lugar.
11. VINDICA-SE DE CALÚNIA O ILUSTRE MARTÍRIO DE T HOMAS M ORE E DE F ISHER. – Da
pessoa de Sander[ 537 ] o rei diz
diz que ele mereceu o mal de sua pátria. O rei o prova por
suas sentenças e asserções – enumera oito delas – que não precisam ser transcritas aqui,
pois
pois em seus livros
ivros podem ser vistas
vistas facilmente.[
facilmente.[ 538 ]
Mas destas se conclui abertamente que Sander não haveria merecido o mal de sua
pátria
pátria senão porque ensinou
ensinou a verdade católica,
católica, ou porque não aderiu
aderiu a reis
reis cismáti
cismáticos,
cos,
nem os adulou, ou, por fim, porque morreu exilado da pátria por causa da constância na
fé.
De Thomas More e de Fisher, insignes varões e mártires ilustres, embora não
pudesse neg
negar
ar que foram mortos porque não quiseram quiseram assentir
assentir ao decreto sobre o
primado
primado do rei da Ingl
Inglaterra nas coisas
coisas espirit
espirituai
uais,
s, acrescenta que foram mortos não só
por esta causa, mas também porque recusaram aprovar as segundassegundas núpcias do rei.
rei. E di-
lo especialmente de More, mas entende o mesmo de Fisher, pois assim contam as
histórias sobre os dois.
Mas o rei acrescenta: Segundo meu juízo, a causa do martírio foi muito carnal. Eu,
porém, julg
julgo que este juízo do rei mostra satisfatori
satisfatoriamente
amente quão potente é o erro, uma
vez embebido, para perverter o juízo prudente mesmo nas coisas que são mais claras que
a luz meridiana. Pois o que pode ser mais detestável do que dizer que algo mau é bom,
ou o que pode ser mais grave do que aprovar o falso no lugar do verdadeiro,
princi
principal
palmente
mente em matéria moral e concernente à salvação eterna?
Como, portanto, as segundas núpcias do rei Henrique eram tão detestáveis que,
contra todo direito divino e humano, foram contraídas sem valor e sem efeito, mesmo
que não interviesse nenhuma outra causa para a morte além da recusa à aprovação delas,
sem dúvida tal causa seria suficiente para o martírio.
Pois, embora sejam carnais o adultério e a poligamia (enquanto vive o primeiro e
verdadeiro cônjuge), condená-los é obra de virtude, e muito espiritual; e suportar
firmemente a morte pela constância nesta obra é causa egrégia de martírio.
De fato, assim foi ilustre martírio a morte de João Batista, como o pensa a Igreja,
embora tenha morrido antes pelo ódio da concubina do que pelo da esposa, visto que
pregava
pregava ao rei [Mateus 14:4]: Não te é lícito tê-la. Esta causa, embora fosse assaz carnal
da parte do rei e de Herodíade, era espiritual da parte de João: era o testemunho da
verdade pelo qual foi morto.
O mesmo, portanto, acontece com More e Fisher, e por isso seu martírio não se
obscurece por este ponto, mas se faz ainda mais ilustre.
Já o resto com que o rei detrai a estes santos varões pertence às calúnias dos hereges,
a quem ele dá fé. E por isso também opõe a Fisher os escritores e as assembléias

273
heréticas da Inglaterra, contra o consenso e a autoridade de todo o orbe. E isto é muito
frívolo, como expõe egregiamente Belarmino.
12. AOITAVA. – Oitavo, no parágrafo Denique illud, etc., o rei tenta provar a dignidade e
o poder régios pela letra do Antigo e do Novo Testamento, mas trabalha em vão, porque
ninguém nega a dignidade e o poder legítimos do rei temporal. Mas aqueles testemunhos
não provam – e outros testemunhos certíssimos reprovam – o poder espiritual do rei ou
sua isenção da obediência aos prelados da Igreja, como se mostrou no livro III, onde
falamos copiosamente sobre os testemunhos que o rei aqui reúne.
E por isso é assaz evidente quão frívolas são as oposições que o rei forja entre os
modos de falar da Escritura e os de Belarmino sobre o poder e a dignidade dos reis
temporais, às quais o cardeal responde suficientemente, e ainda refuta o que o rei
acrescenta depois contra os títulos de Soberano Pontífice ou de Cabeça da Fé, com os
quais costuma honrar-se o Papa. Acerca destes e de muitos outros também nós falamos
no livro III. E por isso, como disse, julguei que não me deveria demorar mais em toda
essa parte da Apologia.

[ 531 ] I João 4:1.


[ 532 ] “Procurar dificuldades onde não as há.” A expressão é do dramaturgo romano Plauto. [N. T.]
[ 533 ] Ausente desta compilação.
[ 534 ] No original, Rossensis
Rossensis,, ou seja, “de Rochester”; trata-se da diocese do bispo John Fisher, santo e mártir,
executado por Henrique VIII. [N. T.]
[ 535 ] “Que é dado por vós”. [N. T.]
[ 536 ] “Que será entregue por vós”. [N. T.]
[ 537 ] De visibili
v isibili monarchia
monarchia ecclesiae,Louvain, 1571, VII, nn. 1323-1343, pp. 588-592.
[ 538 ] Apologia,
Apologia, pp. 119-121.

274
Conclusão da obra e per
p eroração
oração
ao rei da Inglaterra

1. Com que gravidade e moderação de palavras devem-se falar e disputar nas


controvérsias da fé, aquele Gregório[ 539 ] que por antonomásia adquiriu o nome de
Teólogo ensina-nos tanto pelo exemplo quanto pela sentença brilhante e gravíssima,
dizendo, no Sermão 32: Não ensinamos imperitamente,
imperi tamente, nem atacamos os adversários
com contumélias e afrontas, como quase todos fazem, confrontando não o discurso mas
aquele que fala, cobrindo entrementes a fraqueza das razões e dos argumentos com
maldizeres, não de outro modo (como dizem) que o das sibas, que vomitam tinta preta
ante si para escapar aos pescadores ou para se furtar ao seu olhar.
Que nós fazemos uma verdadeira guerra por Cristo, tornamo-lo claro por este
argumento: lutamos segundo Cristo, que é manso e pacato, e que portou nossas
enfermidades.
Pois tampouco buscamos a paz em detrimento da verdadeira
verdadeira doutrina, e nada
diminuímos do combate dos espíritos para
para obter a fama de complacentes e mansos,
ois não espreitamos de modo mau aquilo que é bom. Ao contrário, cultivamos a paz
ugnando legitimamente e contendo-nos dentro de nossos limites e da regra do
espírito.
E, de fato, penso assim quanto a este tema, e estatuo como lei a todos os
despenseiros das almas e árbitros da reta doutrina, que nem pela dureza exasperem os
espíritos dos homens, nem pela submissão os façam arrogantes e insolentes, mas que
se comportem prudente e sensatamente na causa da fé, e não excedam a medida em
nenhum dos dois sentidos.
2. Quis que toda esta disputa se conformasse a essa regra de escrita de tal modo que, se
fosse possível, dela não discrepasse nem mesmo no mínimo. Pois sempre estive
persuadido
persuadido de que isso é devido
devido à majestade régi
régia e próprio
próprio de meu ofício,
ofício, e muito
muito
necessário para obter o fim por que empreendi tal labor.
De fato, não desejei vencer por causa do louvor da vitória ou para ostentar engenho e
doutrina; meus votos foram maximamente que a própria verdade vença, que as trevas
dos erros sejam afastadas, e que Cristo reine em todas as coisas.
Por esta razão, rei sereníssimo, se algo em minha resposta e disputa parecer ter sido
dito mais rispidamente do que o costumeiro, ou mais livremente do que o justo, entende
que foi dito não contra o cargo que susténs, mas contra aquela doutrina não só nova
como também ignominiosa ao vigário de Cristo; e considera com espírito tranqüilo que é

275
dificílimo repreender vivamente, como é justo, uma doutrina perversa e perniciosa – que
o varão católico aborrece, que o doutor rejeita, que o religioso ouve com indignação –
sem que algo pareça redundar nos seus seguidores. De fato, estas duas coisas são tão
conjuntas que dificilmente podem separar-se na disputa e na admonição, como notou
certa vez Crisóstomo acerca de São Paulo,[ 540 ] dizendo: Ele queria falar preservando
a gravidade e a reverência, e às vezes abalar o ouvinte afligindo-o; mas estas duas
coisas não se davam juntas, senão que uma era impedimento para a outra. Pois se
dizes algo reverentemente, não podes de modo algum pressionar o ouvinte; se pelo
contrário queres pressioná-lo veementemente, é-te necessário assinalar o ponto com
um discurso aberto e nu. Mas a prudência de São Paulo, diz ele, preservou
preservou as duas
coisas com exatidão, aumentando a repreensão em nome da própria natureza, mas
usando um véu para encobrir a vergonha da exposição.
Certamente tive diante dos olhos esta prudência de São Paulo, e esforcei-me com
diligência por imitá-la o quanto pude, sempre tratando, até onde era possível, do próprio
assunto e não da pessoa, ou, onde a necessidade instava, dirigindo o discurso não ao rei,
mas aos protestantes, seus enganadores.
3. Resta, portanto, rei sereníssimo, como abundas em benignidade de espírito e em
grandeza de caráter, da qual sempre estive muito confiante, que não desdenhes de
receber esta nossa obra benevolamente e de folheá-la algumas vezes por puro amor da
verdade; e, ao mesmo tempo, que consideres que pertencem ao engenho do espírito e ao
máximo juízo o abandonar uma falsa opinião uma vez detectada a mentira, e o abraçar
com o espírito a verdade entendida, e professá-la em palavras, e precaver-se dos perigos
iminentes da eternidade.
De fato, não há nenhuma glória na pertinácia, mas suma prudência na docilidade do
espírito, e providência na piedosa conversão a Deus – pela qual, como é devido pela
grandeza de teu ofício, não cuidas só de ti, mas de uma pátria outrora muito florescente,
agora posta em grave crise.
Pois, se ouvires a voz do Senhor que te chama, e se decidires obedecer-lhe, aquele
que começou chamando terminará ajudando, e nada haverá que não consigas vencer e
superar, se estribado no auxílio divino. Por isso, não há por que temer a contradição dos
inimigos da verdade, cujo discurso lavra como gangrena,[ 541 ] pois Deus te protegerá
da contradição das línguas.
Muitas línguas contradizem, diz Agostinho sobre o Salmo 30,[ 542 ] diversas
heresias e diversos cismas ressoam, muitas línguas contradizem a doutrina veraz; tu,
corre ao tabernáculo de Deus, guarda a Igreja Católica, não queiras te apartar da
regra da verdade, e no tabernáculo serás protegido da contradição das línguas.
Aquele Henrique, que fora primeiro nomeado Defensor da Fé, e que antes escrevera
egregiamente contra as línguas contraditoras, depois deixou, enlouquecido, um exemplo
deplorável tanto para a Inglaterra quanto para o mundo inteiro, ao cuidar mal de si e da
pátria.
pátria. P or que Jaime
Jaime – embora antes engenganado
anado por sedutores, e tendo escrito
escrito contra o
tabernáculo de Deus, ou seja, contra a Igreja Católica –, entendendo depois a verdade,
não se apresentaria como propugnador acérrimo da Igreja e como instaurador da

276
dignidade inglesa? Pois assim merecerias com imortal louvor o ilustre título de Defensor
da Fé Católica(que exaltas com razão) não só em palavras, mas em obra e em verdade.
4. Mas, se porventura, rei sereníssimo, com nossas disputas ainda não satisfizemos a
vosso desejo,[ 543 ] espírito excelso e agudo engenho, e se desejais com respeito a
certos assuntos uma resposta mais clara ou uma prova maior, ou se ocorrem a vós ou a
vossos ministros novas objeções contra a doutrina católica às quais seja necessário
responder, desejaria que fossem propostas com toda a sinceridade; e, pelo motivo único
de entender a verdade, naquilo que depender de mim, sempre me encontrareis pronto
para render a razão desta fé que está em nós, quer por escrito,
escrito, quer também oralmente,
oralmente,
se for o caso – assim como para responder segundo minhas forças a tudo que for
proposto, confiante não em mim, mas no auxíli
auxílio divino
divino e na verdade.
Com toda a submissão de espírito, postulo diligentemente a Vossa Majestade esta
única coisa: se vos parecer necessário responder algo contra o que tratei nestas disputas,
que vos abstenhais de toda vã contenda de palavras e que se evitem as várias digressões
sobre aquilo que, às vezes, ou por acaso escapa do tema, ou é tocado de passagem, e em
nada se refere à causa da fé, e que se trate do próprio assunto apenas por amor da
verdade, e que a verdade da fé seja inquirida.
De fato, se eu obtiver isto de vós, erguido pela esperança de alguma utilidade pública,
não pouparei nenhum labor, mas de muito boa vontade o despenderei, e esgotarei a mim
mesmo por vossas almas.

[ 539 ] S. G REGÓRION AZIANZENO, Oratio XLII, 13 (PG 36, 472D-473B).


[ 540 ] In Epist.
E pist. ad Rom. Homil. IV, 1 (PG 60, 417).
[ 541 ] II Timóteo 2:17.
[ 542 ] Enarratio in Psalmum XX X, 8, v. 21 (PL 36, 253).
[ 543 ] A mudança de tratamento, da segunda pessoa do singular para a segunda do plural, reproduz aqui o estilo
do autor. [N. T.]

277
BIBLIOGRAFIA CITADA

ANCONA,Summa de ecclesiastica potestate,


AGOSTINHO DE ANCONA,Summa potestate, Roma, 1479.
ALBERTO P IGHI , Hierarchiae
Hierarchiae Ecclesiasticae Assertio,
Assertio, Colônia, 1544.
ALCUÍNO, De fide
f ide S. Trinitatis
Trinitatis..
IMOLA,Consilia seu responsa,
ALEXANDRE DE IMOLA,Consilia responsa, Veneza, 1590.
ALFONSO DE CASTRO
De iusta haereticorum
haereticorum punitione, Antuérpia, 1568.
De Potestate Legis
L egis Poenalis,
Poenalis, Lyon, 1556.
ALFONSO SALMERÓN, Commentarii
Commentarii in
i n Evangelicam
E vangelicam Historiam, et in Acta
A cta Apostolorum,
Apostolorum, Colônia, 1602.
ALONSO DE MADRIGAL
Commentaria in Iudices et Ruth,
Ruth, Veneza, 1596.
Commentaria in Primam Partem I Regum,
Regum, Veneza, 1596.
ÁLVARO PAIS,De Planctu Ecclesiae, Veneza, Sansovinus, 1560.
AMBROSIASTER,Commentaria in Epistolas B. Pauli(PL 17, 45-509).
AMBROSIASTER,Commentaria
ANASTÁCIO SINAÍTA, Quaestiones et Respons
R esponsiones
iones(PG 89, 327-825).
ANTONINO DE FLORENÇA, Tomus
Tomus Summe Sancti Antonini Archiepiscopi
Archiepiscopi Flor
F lorentini
entini Ordinis
Ordinis Praedicator
P raedicatorum
um,,
Lyon, 1529.
MASSA,Contra Usum Duelli,
ANTÔNIO DE MASSA,Contra Duelli, Roma, 1554.
ANTONIO LUIZ M. C. COSTA, Títulos de Nobreza Hierárquicas,
Hierárquicas, São Paulo, Draco, 2014.
ANTONIO MOLINA MELIÁ, Iglesia y E stado en el Siglo de Oro
Oro Español:
E spañol: el pensamiento de Francisco Suarez
Suarez,,
1ª ed., Valencia, Editora de la Universidad, 1977.
ANTÓNIO DE VASCONCELOS, Escritos Vários – Volume II, 1ª ed., Coimbra, arquivo da Universidade, 1988.
ARISTÓTELES
A Constituição de Atenas
etafísica
Política
Políti ca

278
Topica
BÁRTOLO DE SASSOFERRATO, Consilia, quaestiones et tractatus
t ractatus,, Veneza, 1585.
BASÍLIO DE CESARÉIA, Moralia (PG 31, 700-890).
CARLOS STOETZER, Las raíces escolásticas
escolásticas de la emancipación de la América Española,
Española, 1ª ed., Madrid,
CEPC, 1982.
CASSIODORO, Historia Tripartita
Tripartita(PL 69, 879-1213).
CÉLIO SEDÚLIO, Hymnus(PL 19, 763-771).
CÍCERO,De Re Publica.
ALEXANDRIA,Stromata(PG 9, 9-603).
CLEMENTE DE ALEXANDRIA,Stromata
ROMA,Constitutiones Apostolicae(PG 1, 500-1157).
CLEMENTE DE ROMA,Constitutiones
CONCÍLIOS
VIII Concílio Geral, Actio X, c. 22, Mansi 16, 167.
Concilium Aquisgranense II, Mansi 14, 679B-C.
Concilium Arelatense
Arelatense VI
V I, Mansi 14, 57-62.
Conc. Constantiense
Constantiense, a 1414-18, s. 15. COD: 432. Mansi 27, 765E.
Conc. Constantiense
Constantiense, a 1414-18, s. 8, art. 15. COD: 412. Mansi 27, 629E-640B.
Conc. Lateranense
LateranenseIV 1215, COD: 234; Mansi 22, 953-1086.
Conc. LugdunenseI 1245, COD: 283;
Concilium Toletanum IV, Mansi 10, 638A-B.
Concilium Toletanum X , Mansi 11, 34D-E.
Concilium Turonense III, Mansi 14, 83C.
Exemplum Sacrae Honorii Augusti Missae ad Principem orientis A rcadium,
cadium, Mansi 3, 1122.
Sententia contra Fridericum Imperatorem ab Innocentio Papa IV, in Concilio lata,
lata, Mansi 23, 613C-619A; Conc.
LugdunenseI a. 1245. COD: VI 2, 14, 2. P. 283.
Synodus Romana IV , Mansi 8, 266C.
CONRADO BRUNO, De seditionibus,
seditionibus, Mainz, 1550.
DIEGO DE COVARRUBIAS E LEIVA
Epitome in
i n quartum decretal.,
decretal., Lyon, 1558.
Practicae Quaestiones,
Quaestiones, Lyon, 1558.
Regvlae
Regv lae Peccatv m. De Regul. Iur.
Iur. Lib. VI. Relectio,
Relectio, Veneza, 1568.
DIEGO DE SIMANCAS, De catholicis Institutionibus
I nstitutionibus,, Roma, 1575.
DOMINGO BAÑEZ

279
Decisiones de Iure
Iure & Iustitia,
Iustitia, Veneza, 1595.
Scholastica commentaria in secundam secundae Angelici Doctoris S. Thomae,
Thomae, Duaci, 1615.
DOMINGO DE SOTO, De iustitia et iure,Lyon, 1559.
ECUMÊNIO
Commentaria in Acta Apostolorum (PG 118, 43-307).
Comment. in Epistolas Pauli(PG 118, 307-455).
VOEGELIN, La politica:
ERIC VOEGELIN, polit ica: dai simboli alle esperienze
esperienze,, 1ª ed., Milão, Giuffrè, 1993.
EUTÍMIO ZIGABENO
Comment. in Ioannem (PG 129, 1105-1502).
Comment. in Lucam (PG 129, 853-1105).
Comment. in Matthaeum (PG 129, 107-765).
EVELYNE PISIER, História das idéias políticas,
políticas, 1ª ed., São Paulo, Manole, 2004.
FELINO SANDEU, Commentariorum Felini Sandei Ferrariensis in Decretalium libros V pars secunda,
secunda, Veneza,
1570.
FELIPE DÉCIO, In Decretalium
Decretalium v olumen perspicua commentaria
commentaria,, Veneza, 1576.
FLORENCIO HUBEÑAK, “La Defensio Fidei en el contexto histórico-ideológico de su época”, in La Gravitación
Gravi tación
de la Ley según Francisco Suarez,
Suarez, 1ª ed., Navarra, Eunsa, 2009.
FRANCISCO DE TOLEDO HERRERA, Instructio Sacerdotum
Sacerdotum,, Rouen, 1636.
FRANCISCO DE VITÓRIA
Relectiones theologicae,
theologicae, Lyon, 1586.
Relectio de Potestate Civili
Civil i, 1ª ed., Madrid, 1765.
FRANCISCO ZABARELLA, Commentaria
Commentaria in
i n Clementinam,
Clementinam, Veneza, 1602.
FULGÊNCIO DE RUSPE, De Veritate
Veritate praedestinationis(PL 65, 603-671).
GERBERTO DE AURILLAC (PAPA SILVESTRE II), in Sermo de informatione episcoporum(PL 139, 170C).
GRACIANO,Decretum
Decretum,, Veneza, 1595.
GREGÓRIO DE TOURS, Miraculorum libri duo (PL 71, 705-828).
GUILHERME DE OCKHAM, Dialogus de postestate papae et imperatoris
imperatoris,, Colônia, 1460.
HANNAH ARENDT, A condição humana,
humana, 10ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001.
HEINRICH ROMMEN
La teoria del estado y de la comunidad internacional en Francisc
F ranciscoo Suarez
Suarez,, 1ª ed., Madrid, CSIC – Instituto
Francisco de Vitória, 1951.
O Estado no pensamento católico: tratado de filosofia política,
política, 1ª ed., São Paulo, Editora Paulinas, 1967.

280
HENRIQUE DE SEGÚSIO, Summa aurea,
aurea, Veneza, 1574.
BOURG-DIEU,Comment. in Epistolas Pauli(PL 181, 591-1692).
HERVÉ DE BOURG-DIEU,Comment.
HIERONYMUS GIGAS, Tractatus
Tractatus de crimine laesae maiestatis,
maiestatis, Spirae Nemetum apud B. Albinum, 1598.
HILDEBERTO DE TOURS, Epistolae (PL 171, 141-338).
ISIDORO DE PELÚSIO, Epistolarum libri quinque(PG 78, 177-1646).
JAIME I, Apologia pro
pro Iuramento Fidelitati
F idelitatis,
s, Praefatio
P raefatio,, Londres, Opera Regia, 1609.
JAN HUS, Historia et monumenta Joannis Hus atque Hieronymi
Hieronymi Pragens
P ragensis
is confesso
conf essorum
rum christi,
christi, Nuremberg,
1558.
JANSÊNIO, Commentarii in suam Concordiam ac totam Historiam evangelicam,
evangelicam, Louvain, 1577.
JEAN GERSON, Tractatus de potestate ecclesiastica et de origine iuris et legum,
legum, in Ioannis Gersonii Opera
omnia, Haia, 1728.
JOÃO DE ANDREA,In Secundum Decretalium
Decretalium librum
li brum Novella commentaria
commentaria,, Veneza, 1612.
JOÃO ANTÔNIO DE SAN GIORGIO, In Secundam Decretorum
Decretorum Partem Commentaria,
Commentaria, Veneza, 1579.
JOÃO DRIEDO DE TURNHOUT, De Libertate Christiana,
Christiana, Louvain, 1540.
JOÃO MAIOR, Joannis Maioris doctoris Theologi In
I n Quartum Sententiarum,
Sententiarum, Paris, 1519.
JOÃO DE PARIS in De potestate regia
regia et papali,
papali, apud JEAN LECLERCQ, Jean de Paris et l’ecclésiologie du
IIIe siècle,
siècle, Paris, 1942.
JOHN WYCLIFFE, Tractatus de civili dominio, Londres, 1885.
JOSE ANTONIO MARAVALL, Estudios de historia del pensamiento español
español – serie
serie tercera
tercera,, 2ª ed., Madrid,
Cultura Hispanica, 1984.
JUAN AZOR,Institutionum Moralium, Roma, 1600.
JUAN DE MARIANA, De Rege et Regis Institutione
Institut ione,, in Obras completas do Padre Juan de Mariana (Biblioteca de
Autores Españoles), 1ª ed., Madrid, Rivadeneyra, 1854.
JUSTINIANO,Corpus Iuris Civilis, Lyon, Hugues de la Porte, 1558-1560.
JUSTINIANO,Corpus
JUSTINO,Apologia prima pro
pro Christianis(PG 6, 327-441).
LOURENÇO
LOURENÇO JUSTINI ANO,De Triumphali
J USTINIANO, Triumphali Christi agone,
agone, Opera omnia, Basiléia, Froben, 1560.
LOURENÇO SÚRIO, Concilia omnia tum generalia tum provincialia,
provincialia, Colônia, 1567.
LUCAS DE PENNA,In tr t res Codicis Iustiniani Imperator
I mperatoris
is posteriores
posteriores libros
libros luculentissima Commentaria
Commentaria,, Ne
armorum usus,
usus, Lyon, 1583.
LUCIANO PEREÑA VICENTE, Estudio preliminar y edición critica bilíngüe
bi língüe ao De Legibus III – De civ ile
otestate,
otestate, Madrid, Instituto Francisco de Vitoria, 1974.
LUÍS DE MOLINA
Corpus Iuris Civilis Romani, Nápoles, 1828.
De Iustitia et iure,Mainz, 1602.

281
LUIS REIS DE TORGAL, Ideologia política
polí tica e teoria do Estado
E stado na restauraç
restauração
ão,, 1ª ed., Coimbra, Universidade,
1981.
MARCUS PAULO RYCEMBEL BOEIRA, A Legitimação do Imperador segundo segundo a Constituição do Império de
1824: fundamentos e translação,
translação, tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, em maio de 2012, disponível na Biblioteca da FADUSP.
SOCINO, Consilia,, Veneza, 1571.
MARIANO SOCINO,Consilia
MARSÍLIO DE PÁDUA, Defensor Pacis,
Pacis, Frankfurt,
Fr ankfurt, 1612.
MARTIM DE AZPILCUETA NAVARRO
Commentarii et tractatus,
tractatus, Veneza, Nicolinus, 1601.
Consilia seu responsa,
responsa, Roma, 1602.
MAX WEBER, Economia y Sociedad, 2ª ed., México, Fondo de Cultura, 1964.
NICÉFORO CALISTO XANTÓPULO, Ecclesiasticae Historiae,
CALISTO XANTÓPULO, Historiae, livros VIII-XIV (PG 146).
NICHOLA
NICHOLAS
S SANDER (OU SANDERS).
SANDERS).
De Clave David seu regno
regno Christi: contra calumnias Acleri pro
pro visibili
v isibili Monarchia
Monarchia,, Roma, 1588.
De visibili
v isibili monarchia
monarchia ecclesiae,Louvain, 1571.
De Origine ac progress
progressuu schismatis anglicani libri
li bri tres
tres, Roma, 1586.
NICOLAS BOÉR, Relação entre a Igreja
NICOLAS Igreja e o Estado no f im do século XIII e no início
i nício do século XIV nos escritos
escritos
de filósofos de Estado e de canonistas,
canonistas, São Paulo, Tese (Doutorado em Educação), Universidade de São Paulo,
1972.
NICOLAU LIRA,,Bibliorum
NICOLAU DE LIRA Bibli orum sacrorum
sacrorum cum glossa ordinaria
ordinaria,, Lyon, 1545.
NICOLAU
NICOLAU DE TUDESCO
TUDESCO (chamado PA
P ANORMITA
NORMITANUS), In primam secundi decretalium
NUS), decretalium libri
li bri partem,
partem, Veneza,
1591.
OLDRADO DE PONTE, Consilia seu Responsa et Quaestiones aureae,
aureae, Veneza, 1571.
ORÍGENES
Commentaria in Epistolam B. Pauli ad Romanos(PG 14, 839-1291).
Contra Celsum (PG 11, 641-1632).
PAPA ANACLETO,Epistola II
I I Anacleti
A nacleti Papae
P apae,, 2, Mansi 1, 611B.
PAPA ANASTÁCIO II
Epistola I Anastasii Papae
P apae II ad Anastasium Augustum
A ugustum,, Mansi 8, 188-190.
PAPA GELÁSIO I
De anathematis vinculo
v inculo,, Mansi 8, 93.
Epist. 8 ad Anastasium
A nastasium Imperatorem
Imperatorem,, Mansi 8, 31.
Epistolae et decretae
decretae(PL 59, 13-102).
PAPA GREGÓRIO VII, Registrum(PL 148, 283-648).

282
PAPA INOCÊNCIO I, Exemplum Sacrae Honorii Augusti Missae ad Principem orientis Ar
A rcadium,
cadium, Mansi 3,
1122.
PAPA INOCÊNCIO III, Innocentii III
I II Pp. Regestorum Lib. VII, Pontificatus Anno VII, Christi 1204, XLII (PL
215, 325D-326C).
PAPA INOCÊNCIO IV, Commentaria super Libros Quinque Decretalium,
Decretalium, Frankfurt,
Fr ankfurt, 1570.
PAPA JOÃO XXII, Extravagantes XX
X X Johannis XXII
XXI I, Paris, 1513.
PAPA NICOLAU I
Ad Michaelem
M ichaelem imperatorem
imperatorem,, Mansi 15, 214-5.
Decreta
Decreta ex Gratiano collecta
coll ecta(PL 119, 1183-1200).
Epistolae et decretae
decretae(PL 119, 769-1182).
PAPA S. ELEUTÉRIO,Epistola II
I I Eleutherii
E leutherii Papae
P apae Rescriptum ad Lucium Britanniae Regem
R egem,, Mansi 1, 698B.
PAPA S. GREGÓRIO MAGNO
Commentarii in librum I Regum(PL 79, 17-467).
Dialogi (PL 77, 149-431).
Epistolarum libri (PL 77, 441-1327).
oralia(PL 75-76).
Regula Pastoralis
P astoralis(PL 77, 13-127).
PAPA SÍMACO, Apologetica adversus Anastasii Imperatoris libellum f amosum,Mansi 8, 215.
PARIS DEL POZZO,De Syndicatu,
Syndicatu, Lyon, 1548.
PAULO DE CASTRO, In Primam
P rimam Codicis partem Commentaria
Commentaria,, Lyon, 1585.
PEDRO BERTRAND, Tractatus
ERTRAND,Tr actatus de origine iurisdictionum,
iurisdictionum, Pari
P aris,
s, 1520.
POLICARPO DE ESMIRNA, Epistola ad philippenses(PG 5, 1005-1023).
PRIMÁSIO DE ADRUMETO, Commentaria in Epistolas B. Pauli(PL 68, 417-793).
PRÓSPERO DA AQUITÂNIA
De Vocatione
Vocatione omnium gentium (PL 51, 647-733).
Epigrammata(PL 51, 147-155).
PSEUDO-AGOSTINHO,De symbolo(PL 40, 1189-1201).
PSEUDO-BONIFÁCIO II, Mansi 8, 732.
PSEUDO-JOÃO CRISÓSTOMO,Spuria (PG 56, 517-946).
PSEUDO-JOÃO CRISÓSTOMO,Spuria
PSEUDO-MARCIAL, Orthodoxographa
Orthodoxographa theologiae sacrosanctae
sacrosanctae ac sincerioris f idei Doctores
Doctores LXXVI
LX XVI, Basiléia,
1555.
RAÚL DE SCORRAILLE, El P. Francisco Suarez
Suarez de la Compañia de Jesus,
Jesus, 1ª ed., Barcelona, Subirana, 1917.

283
RESTAURO CASTALDO,Amplissimus Tractatus
Tractatus de Imperatore
Imperatore, Roma, 1540.
RUFINO DE AQUILÉIA, Historia Ecclesiastica(PL 21, 461-541).
RUPERTO DE DEUTZ, De Trinitate et operibus eius(PL 167, 199-1828).
S. AGOSTINHO
Ad Catholicos epistola contra donatistas( De unitate Ecclesiae)
Ecclesiae) (PL 43, 391-445).
Ad Donatistas post collationem(PL 43, 651-689).
Confessiones(PL 32, 659-869).
Contra Cresconium grammaticum Donatistam (PL 43, 445-595).
Contra Faustum Manichaeum(PL 42, 207-519).
Contra Mendacium ad Consentium (PL 40, 517-547).
De Civitate
Civi tate Dei(PL 41, 13-805).
De coniugiis adulterinis(PL 40, 451-487).
De doctrina Christiana(PL 34, 16-121).
De fide
f ide et symbolo(PL 40, 181-197).
De Natura Boni contra Manichaeos(PL 42, 551-577).
De Sermone Domini in Monte
M onte(PL 34, 1229-1308).
Enarrationes in Psalmos(PL 36-37).
Epistolarum Classis II (PL 33, 121-471).
Expositio quarumdam propositionum
propositionum ex Epistola
E pistola ad R omanos(PL 35, 2063-2087).
In Ioannis
I oannis evangelium tractatus(PL 35, 1379-1977).
Quaestionum Evangeliorum(PL 35, 1321-1365).
Quaestiones in Heptateuchum(PL 34, 547-825).
Quaestiones Veteris et Novi Testamenti(PL 35, 2213-2417).
Retractationes(PL 32, 583-659).
Sermones de Scripturis(PL 38, 23-993).
Sermones de tempore(PL 38, 993-1248).
S. AMBRÓSIO
Comment. in Epistolas B. Pauli(PL 17, 45-509).
De Fide (PL 16, 523-703).
De Virginibus
Virginibus ad Mar
M arcellinam
cellinam(PL 16, 239-305).
Enarrationes in XII
XI I psalmos Davidicos
Dav idicos(PL 14, 921-1180).

284
Epistolae in duas classes
classes distributae(PL 16, 875-1269).
Expositio Evangeli
E vangeli secundum Lucam(PL 15, 1527-1851).
Operum Ambrosii
Ambrosii Mediolanensis
M ediolanensis Episcopi,
Episcopi, Colônia, 1616.
S. ANSELMO,Proslogion
Proslogion (PL 158, 223-242).
S. ATANÁSIO DE ALEXANDRIA,Historia Arianorum (PG 25, 693-797).
S. BERNARDO DE CLARAVAL, De Consideratione
Consideratione ad Eugenium Tertium(PL 182, 727-809).
S. CIPRIANO DE CARTAGO
De idolorum vanitate
v anitate(PL 4, 563-582).
Epistola X II S. Cypriani
Cypriani ad Cornelium
Cornelium Papam
P apam(PL 3, 795-838).
Liber de lapsis(PL 4, 463-494).
S. CIRILO DE ALEXANDRIA
De recta
recta f ide, ad Theodosium(PG 76, 1134-1335).
Epistolae(PG 77, 9-393).
In Ioannis
I oannis evangelium (PG 73-74).
JERUSALÉM,Catechesis XVII De Spiritu Sancto II (PG 33, 331-1059).
S. CIRILO DE JERUSALÉM,Catechesis
S. EDUARDO O CONFESSOR, Leges Edwardi
Edwardi Confess
Conf essoris
oris,, MS Additional 24066, Londres, 1190.
S. EPIFÂNIO DE SALAMINA, Advers
Adv ersus
us Haereses
Haereses(PG 41, 173-1199).
NAZIANZENO,Orationes(PG 35).
S. GREGÓRIO NAZIANZENO,Orationes
S. HILÁRIO DE POITIERS
Commentarius
Commentarius in Matthaeum(PL 9, 917-1078).
Tractatus super psalmos(PL 9, 231-890).
S. INÁCIO DE ANTIOQUIA, Epístola Interpolatae, A d Smyrnaeos(PG 5, 729-873).
LYON,Contra Haereses
S. IRINEU DE LYON,Contra Haereses(PG 7, 433-1225).
S. ISIDORO DE SEVILHA, Sententiarum(PL 83, 537-738).
S. JERÔNIMO
Advers
Adv ersus
us Iovinianum
Iov inianum(PL 26, 211-337).
Comment. in epist. ad Titum(PL 26, 555-599).
Comment. in Evangelium Matthaei (PL 26, 15-219).
Comment. in Ieremiam(PL 24, 705-935).
Dialogus contra Lucif erianos(PL 23, 155-183).
Epistolae(PL 22, 285-1182).

285
S. JOÃO CRISÓSTOMO
De Fato et Pr
P rovidentia
ovi dentia(PG 50, 749-770).
De sacerdotio
sacerdotio (PG 48, 623-693).
Expositio in Psalmos(PG 55, 35-527).
Homilia In Ioannem (PG 59, 23-485).
InEpist. I ad Corhomil.
Corhomil. (PG 61, 9-381).
In Epist.
E pist. II
I I ad Cor.
Cor. Homil. (PG 61, 381-611).
InEpist. ad Rom.homil
Rom. homil (PG 60, 583-681).
In Epist.
E pist. I ad Timoth. (PG 62, 501-599).
In Illud
I llud Vidi Dominum Homil. (PG 56, 97-142).
In Matthaeum
Mat thaeum Homil. (PG 57-58).
S. JOÃO DAMASCENO, De Imaginibus Oratio (PG 94, 1227-1421).
S. LEÃO MAGNO, Sermones et Epistolae(PL 54).
S. OPTATO DE MILEVI, De schismate Donatistarum(PL 11, 883-1103).
S. ROBERTO BELARMINO
Apologia Robertii S. R .E..E . Cardinalis
Cardinalis Bellarmini
B ellarmini pro respons
responsione
ione sua ad librum
l ibrum Iacobi Magnae
M agnae Britanniae R egis
cuius titulus est Triplici nodo triplex cuneus; in qua Apologia reffelitur Prefatio monitoria Regis eiusdem,
eiusdem, Roma,
1609.
De Summo Pontif
Ponti f ice, Ingolstadt, 1599.
Opera Omnia, Paris, A. L. Vivès, 1870-1874.
Recognitio librorum
librorum omnium,
omnium, Recognitio Libri Tertii( de laicis),
laicis), Ingolstadt, 1608.
Tractatus de Potestate Summi Pontificis in rebus temporalibus adversus Barclaium,
Barclaium, Roma, 1610.
S. TEÓFILO DE ANTIOQUIA,Ad Autolycum
A utolycum(PG 6, 1023-1168).
S. TOMÁS DE AQUINO
Commentum in Lib. II Sententiarum
Contra Gentiles
De Caelo et Mundo
M undo
De Regimine Principum
In epistolas ad Corinthios
Summa Theologica
Super I Epistolam ad Corinthios

286
SILVESTRO MAZZOLINI, Summae Sylvestrinae Quae Summa Summarum Merito Muncupatur Pars IIa,
SILVESTRO MAZZOLINI, IIa, Veneza,
1587.
SOZOMENO, Historia Ecclesiastica(PG 67, 843-1630).
TEODORETO DE CIRRO
Commentarius in omnes sancti Pauli Epistolas(PG 82, 31-879).
Ecclesiasticae Historiae(PG 82, 879-1279).
TEOFILACTO DE ÁCRIDA
Ennarratio in. Evang.
Ev ang. Luc. (PG 123, 683-1127).
Ennarratio in. Evang.
Ev ang. Matt. (PG 123, 143-487).
Expositio in Epist. ad Roman. (PG 124, 335-563).
TERTULIANO
Ad Scapulam (PL 1, 697-706).
De Idololatria (PL 1, 661-696).
De praescriptionibus
praescriptionibus adversus haereticos
haereticos(PL 2, 9-74).
LiberDe Spectaculis(PL 1, 627-662).
THOMAS HOBBES, Leviatã:
Levi atã: ou a matéria, f orma e poder de um estado eclesiástico e civil
ci vil, 3ª ed., São Paulo,
Ícone, 2008.
TOMÁS ACTIO, De ludo scacchorum in legali methodo tractatus,
tractatus, H. Concordiam, 1583.
TOMÁS BOZIO EUGUBINO,De Signis Ecclesiae
E cclesiae,, Roma, 1591.
TOMÁS CAETANO
De comparatione autoritatis Papae et Concilii,
Concilii, in Opuscula omnia, Lyon, 1562.
Secunda Secundae Sancti Thomae,
T homae, cum commentariis Cardinalis
Cardinalis Caietani,
Caietani, Lyon, 1554.
VÁRIOS AUTORES
Decretales
Decretales Gregorii
Gregorii IX, Paris, 1511.
Extravagantes Communes,Paris, 1511.
Sextus liber Decretalium,
Decretalium, Pari
P aris,
s, 1513.
Suidae Historica,Basiléia, 1564.
VÍTOR DE VITE,Historia persecutionis
persecutionis af ricanae provi
provinciae
nciae temporibus Geiserici
Geiserici et Hunirici regum
regum
wandalorum,
wandalorum , Bibliotheca veterum Patrum, Paris, 1589.

287
FRANCISCIS UAREZO PERAO MNIA

A lista das obras a seguir corresponde à relação dos volumes das Opera omnia, Paris,
Vivès, 1856-1877 (as quais, embora não incluam estritamente todas as obras de Suárez,
é o que de mais completo temos até então):
VOL. I (1856)
De Deo Uno et Trino
Trino (De
( De divina
div ina substantia ejusque attributis, De divina
div ina praedestinatione et reprobatione,
reprobatione, De
Trinitas mysterio)

VOL. II (1856)
De angelis

VOL. III (1856)


De opera sex dierum
De anima

VOL. IV (1856)
De ultimo f ine hominis
De voluntario
v oluntario et invol
i nvoluntario
untario
De bonitate et malitia humanorum
humanorum actuum
De passionibus

VOL. V (1856)
De legibus ac Deo legislator
l egislatoree(livros I-V)

VOL. VI (1856)
De legibus ac Deo legislator
l egislatoree(livros VI-X)

VOL. VII (1857)


De Gratia Dei

VOL. VIII (1857-8)


De auxiliis gratiae in generali

VOL. IX (1858)
De essentia
essentia gratiae

288
VOL. X (1858)
De merito

VOL. XI (1858)
De concursu
concursu et eff icaci auxilio Dei
De scientiae Dei f uturum contingentium
De auxilio eff icaci
De libertate div inae voluntatis
v oluntatis
De meritis mortificatis,
mortif icatis, et per
oenitentiam reparatis
De justitia qua Deus reddit
reddit praemia meritis, et poenas pro
pro peccatis

VOL. XII (1858)


De fide
f ide
De spe
De caritate

VOL. XIII (1859)


De virtute
v irtute et statu religionis
religionis(trat. I-III)

VOL. XIV (1859)


De virtute
v irtute et statu religionis
religionis(trat. IV-VI)

VOL. XV (1859)
De virtute
v irtute et statu religionis
religionis(trat. VII)

VOL. XVI & XVIbis(1866)


De virtute
v irtute et statu religionis
religionis(trat. VIII-X)
De obligationibus religiosorum
religiosorum
De varietate
v arietate religionum
religionum
De religione
religione Societatis Jesu in particularis...

VOL. XVII (1866)


De Incarnatione,
Incarnatione, III, a, qq. 1-9

VOL. XVIII (1866)


De Incarnatione,
Incarnatione, III, a, qq. 10-26

VOL. XIX (1866)


De Incarnatione,
Incarnatione, III, a, qq. 27-59

VOL. XX (1866)
De sacramentis
sacramentis
De baptismo
De confirmatione
conf irmatione
De eucharistia,
eucharistia, III, a, qq. 60-74

VOL. XXI (1866)

289
De eucharistia,
eucharistia, III, a, qq. 75-83

VOL. XXII (1866)


De poenitentia,
poenitentia, III, a, qq. 84-90

VOL. XXIII (1866)


De censuris
censuris
De excommunicatione

VOL. XXIIIbis(1866)
De suspensione
suspensione
De interdicto
interdicto
De irregularitate
irregularitate

VOL. XXIV (1859)


Defensio f idei
De anglicana secta

VOL. XXV (1866)


In Metaphysicam Aristotelis
A ristotelis
Disputationes Metaphysicae (disp. 1-27)

VOL. XXVI (1866)


Disputationes Metaphysicae (disp. 27-54)

VOL. XXVII (1878)


Index I

VOL. XXVIII (1878)


Index II

VOL. XXIX (1859)


Opuscula sex inedita
(ed. Joannes Baptista Malou)
Malou)

290
Índice
Folha de Rosto 4
Créditos 5
Coleção Salamanca 7
Agradecimento aos colaboradores 9
Sumário 15
Apresentação 17
I. A posição de Francisco Suárez ante a modernidade e o contexto histórico da
18
Defensio Fidei
II. A controvérsia sobre o juramento de fidelidade e a Defensio Fidei 22
III. O problema da origem e da natureza do poder: excursus sobre o Principatus
28
Politicus (Livro III da Defensio Fidei)
IV. Apontamentos sobre a presente edição 36
Nota do coordenador editorial 42
Defesa da Fé Católica 43
Abertura 44
Proêmio 46
Parte I - A soberania civil (Livro III - caps. I-IX) 50
Da excelência e poder do Sumo P ontífice sobre os reis temporais 51
Capítulo I — Se o principado político é legítimo, e se procede de Deus 53
Capítulo II — Se o principado político provém imediatamente de Deus, isto é, se
60
procede por institui
instituição
ção divina
divina
Capítulo III — Resposta aos fundamentos e objeções do rei da Inglaterra contra
73
a doutrina do capítulo anterior
Capítulo IV — Se entre os cristãos há um legítimo poder civil ao qual estejam
81
obrigados a obedecer
Capítulo V — Se os reis cristãos têm soberania nas coisas civis e temporais, e
95
por que direito
direito
Capítulo VI — Se há na Igreja de Cristo um poder espiritual de jurisdição
108
externa, como que político, distinto do temporal
Capítulo VII — Prova-se por autoridade que não há nos reis ou príncipes o
120
poder de reger a Igreja em assuntos espirit
espirituai
uaiss ou eclesiásti
eclesiásticos
cos
Capítulo VI
VIII — Confirma-s a-se a mesma
esma verdade po por ar
argumen
mentos de
de ra
razão 130

291
Capítulo IX — Refutam-se algumas objeções contra a verdade provada nos 139
capítulos anteriores
Parte
arte II
II - O jur
juram
amen
ento
to de fid
fidel
elid
idad
adee (L
(Livr
ivro VI
VI - cap
caps.
s. I-
I-X e XI
XII) 1499
14
Do juramento de fidelidade do rei da Inglaterra 150
Capítulo I — O escopo da presente controvérsia, o estado desta causa e o
159
método de disputa que nela se deve observar
Capítulo II — Se na primeira parte da fórmula do juramento se propõe algo para
165
além da obediência civil e contrário à obediência eclesiástica
Capítulo III — Na segunda parte do juramento se apresenta também algo para
171
além da obediência civil e contrário à eclesiástica
Capítulo IV — Se a terceira parte do juramento contém algo para além da
180
obediência civil e contra a doutrina católica
Capítulo V — Da última parte do juramento e dos erros nela contidos 195
Capí
Capíttulo
ulo V
VII — Co
Connside
sidera
ram-
m-se
se as razõ
razões
es por qu
quee o jura
jurame
mennto é def
defen
endi
dido
do 200
Capítulo VII — O Sumo Pontífice não só podia, mas também devia afastar com
216
seu aviso os católicos ingleses da profissão do referido juramento
Capítulo VIII — Podem os ingleses que admitem o juramento escusar-se de
223
culpa por alguma razão ou de algum modo?
Capítulo IX — Se é lícito aos católicos ingleses ir aos templos dos hereges e
comungar com eles nos ritos, sem intenção de culto ou de cooperação com eles, 232
apenas para evitar as penas temporais
Capítulo X — Se o acossamento que os católicos padecem na Inglaterra é uma
254
verdadeira perseguição da religião cristã
Capítulo XII – Resposta ao que o rei objeta contra o segundo breve pontifício e
268
contra a epístola do cardeal Belarmino
Conclusão da obra 275
Bibliografia citada 278
Francisci Suarez Opera Omnia 288

292

Você também pode gostar