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muito potentes no campo da arte, com questões que envolvem os espaços

físicos e suas especificidades, tensões e conflitos. Pode ser uma aproximação


arriscada equacionar trabalhos amplamente celebrados no circuito da arte com

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esses que surgem e sequer são considerados arte pelos círculos mais
estabelecidos. Somente o tempo nos permitirá descobrir como colocar lado a
lado, num mesmo campo de práticas, a fisicalidade de algumas obras e a total
imaterialidade de outras. Caberiam a essa arte locativa, desgarrada e de lastros
frouxos, a busca e o risco de alguma afiliação a partir do que se produziu sob a
ideia de site-specific, de “site funcional”. Nos resta indagar que tipo de obras
ainda surgirão nesse novo e movediço “lugar” que toma forma no mundo. CARTOGRAFIAS LÍQUIDAS:
A CIDADE COMO ESCRITA OU A ESCRITA DA CIDADE
PRISCILA ARANTES
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Walter Benjamin é um autor lembrado com frequência, cujos textos são
ARNS, Inke. “Social technologies — Deconstruction, subversion, and the utopia of democratic sempre citados quando se trata de pensar a obra de arte e a estética
communication”, 2000. In: DANIELS, Dieter e FRIELING, Rudolf (org.). Media art net: survey of media contemporânea. “Pequena história da fotografia” e “A obra de arte na era de sua
art. Nova York: SpringerWien, 2004. http://www.medienkunstnetz.de/themes/overview_of_ reprodutibilidade técnica” tornaram-se textos seminais em nossa cultura para
media_art/society/16/ descrever as metamorfoses trazidas pelos avanços tecnológicos ao aparelho
74 BASTOS, Marcus e GRIFFIS, Ryan. “Beyond ‘generative/emergent’ and ‘locative/performative’”, 2007. perceptivo.
In: Leonardo Electronic Almanac. http://leoalmanac.org/resources/lead/digiwild/mbastosrgriffis. Longe de enxergar a história da arte apenas como a história dos conceitos
asp estéticos, o filósofo acentua a importância dos meios e técnicas que permitem
BARRETO, Jorge Mena e GARBELOTTI, Raquel. “Especificidade e (in)traduzibilidade”, 2008. Texto-base colocar esses conceitos em voga. As técnicas, de acordo com Benjamin,
para debate e oficina: Práticas artísticas contemporâneas em sistemas de movimentação ou o site- desencadeiam percepções e processos cognitivos que são, muitas vezes, os
-specific hoje, com Jorge Menna Barreto e Raquel Garbelotti. Arte e Esfera Pública, Centro Cultural motores das grandes transformações estéticas. Assim é sua descrição do
São Paulo e Fórum Permanente. http://www.arte-esferapublica.org/index.php?paged=2 cinema: o filme não somente instaura uma nova forma de percepção, distraída,
DIETZ, Steve. “Por que não tem havido grandes net-artistas?”, 2001. In: LEÃO, Lucia (ed.). Derivas: diversa daquela vinculada às produções anteriores, mas, através da técnica de
cartografias do ciberespaço. São Paulo: Anablume/Senac, 2004,pp. 137-47. montagem e reprodução, desintegra um valor estético caro à tradição — a aura,
FOSTER, Hal. The return of the real: the avant-garde at the end of the century: critical models in art and isto é, determinadas concepções espaço-temporais vinculadas à tradição.
theory since 1960. Londres: The MIT Press, 1996. A presença cada vez mais massiva dos meios de comunicação na sociedade
LAZZARATO, Maurizio. “Struggle, event, media”, 2003. In: http://www.republicart.net/disc/ levaria, de acordo com Vattimo (1996), a uma erosão do princípio de realidade e
representations/lazzarato01_en.htm a uma explosão da estética para fora dos limites que lhes eram estabelecidos
KWON, Miwon. “One place after another: notes on site specificity”, 2000. In: SUDERBURG, Erika (ed.). pela tradição. Nessa estetização do cotidiano, o que está implícito no
Space, site, intervention: situating installation art. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000. pensamento de Vattimo é a importância do fenômeno estético para se pensar as
MEYER, James. “The functional site; or the transformation of site-specificity”, 2000. In: SUDERBURG, questões mais gerais da realidade social.
Erika (ed.). Space, site, intervention: situating installation art. Minneapolis: University of Minnesota Partindo desses dois princípios — de que a técnica determina os preceitos
Press, 2000. perceptivos e de que as questões estéticas estão atreladas às discussões mais
gerais da sociedade —, o presente artigo tem como objetivo discutir as
metamorfoses da percepção no contexto da contemporaneidade.
Se for certo que existe uma intrínseca relação entre estética, meios técnicos economia, na área da cultura, na área social, no
e sociedade, quais os formatos perceptivos engendrados a partir do advento da aparelho perceptivo, ou seja, na forma de nos
cibercultura e como as discussões espaço-temporais refletem o momento do relacionarmos com o tempo e o espaço.
capitalismo informacional de nosso tempo? A aceleração tecnológica põe em cena a
Partimos, neste trabalho, da hipótese de que as novas tecnologias midiáticas instantaneidade do tempo: tempo sem tempo,
instauram uma estética do fluxo, daquilo que se dá em trânsito e em contínuo que rompe com uma visão linear, irreversível,
devir. Fluxo é a qualidade, ato ou efeito de fluir. Diz respeito ao movimento de mensurável e previsível do tempo. Se, por um
um líquido e também à substância que facilita a fusão de outras. Por outro lado, lado, o culto ao instantâneo e ao efêmero aponta
constitui-se como característica primordial dos fluidos, representando aquilo para a fabricação do esquecimento, por outro,
que não tem forma fixa e durável. gera um incontrolável desejo de passado,
Zygmunt Bauman (2001) utiliza os termos liquidez e fluidez para descrever a colocando a memória e a amnésia como
cultura de nosso tempo. Sua concepção tem raízes em uma imagem cunhada há discussões centrais da atualidade.
um século e meio pelos autores do Manifesto Comunista para descrever a Diferentemente do espaço renascentista, cujo
sociedade burguesa: “Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é discurso se baseava na visão de um espaço
profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais homogêneo e mensurável e tinha no sujeito e na
sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com os outros homens”. visualidade seu ponto fundamental, o espaço
Derreter os sólidos, dissolver aquilo que persiste no tempo e é infenso a sua contemporâneo coloca em dúvida a noção de
passagem ou imune a seu fluxo é o espírito da nova fase na história da Imagem Retirada da Wikipedia
contiguidade física, instaurando noções como a
76 modernidade, segundo Bauman. da ubiquidade inerente a uma lógica de fluxos de 77
Estrutura criada em memória de Walter
Os valores morais enfraquecem em sua coerência, as instituições tornam-se Benjamin, na cidade de Portbou, onde o filósofo informação. De Lyotard a Paul Virilio (1993), o
cada vez mais “leves”, cada vez menos comprometidas com acordos de longa se suicidou após tentativa fracassada de cruzar espaço parece ter se esfarelado, trocando sua
a fronteira entre França e Espanha
duração, as relações afetivas fogem a contratos duradouros, as verdades deixam fixidez e imobilidade por um espaço em fluxo, que
de ser inquestionáveis. Nesse mundo — contrariamente ao pensamento coloca na conexão, na mobilidade e no sujeito em
moderno em que a razão dominava soberana e as verdades eram sólidas como trânsito seu eixo fundamental.
as certezas sobre as coisas — situamo-nos dentro da lógica da indeterminação, Na arte, a configuração dessas novas espacializações corresponde à prática
da não perenidade, daquilo que é volátil e efêmero, incerto, instável e dos deslocamentos, às desterritorializações, à crítica ao cubo branco e ao
passageiro. sistema da arte, à ruptura com os espaços expositivos tradicionais como museus
O conceito de fluxo como possibilidade para se pensar a estética e galerias de arte, às práticas de intervenções urbanas, às performances e
contemporânea surge, portanto, como contraponto aos discursos estéticos da happenings, às produções artísticas em rede, às experimentações em arte móvel,
tradição, que pregam a forma fixa e perene: índices da beleza, da objetividade enfim, às novas configurações espaciais da arte que foram engendradas desde o
e do princípio de verossimilhança. início do século passado pelas vanguardas históricas e se estendem à atualidade.
Em Formless, Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois indicam essa direção. Partindo Se nos anos 1960 e 1970 as práticas de intervenções urbanas já reclamavam
de uma definição de Georges Bataille, utilizam o termo “informe” para colocar pela ruptura com o cubo branco, hoje a arte se abre para novas zonas de
em xeque os mitos fundadores do discurso modernista no campo das artes, experimentação, ocupando espaços virtuais e/ou cíbridos. Configuram-se eixos
instaurando conceitos como base materialism, pulse, horizontality e entropy. de ação em espaços coletivos e colaborativos que, muitas vezes, colocam em
A sociedade de nosso tempo é marcada pelos fluxos de informação e cena as questões mais gerais da sociedade contemporânea.
inovações tecnológicas. Mais que meros recursos técnicos, as tecnologias da Sem pretender traçar uma linha histórica, o presente artigo tem como
informação vêm provocando alterações profundas no mundo do trabalho, da objetivo discutir as estratégias empregadas na configuração dessas novas
cartografias, enfocando especialmente as investigações estéticas que se Nessa passagem, fica claro que a cidade ordenada e regular é metáfora do
apropriaram do espaço urbano. O que interessa é menos realizar um estudo pensamento racional: o arquiteto-filósofo deve rejeitar caminhos instáveis para
histórico sobre o conceito de espaço na arte, mas verificar como o discurso de alcançar a verdade, assim como a cidade deve ser construída por um único
um espaço móvel, em fluxo, interfaceado, que prevê a conexão, a mobilidade e mestre.
a comutação entre espaço físico e espaço de comunicação, é revelador de A ideia de que a cidade é uma metáfora para descrever as trajetórias do
determinados preceitos da cultura “líquida” e “fluida” de nosso tempo. pensamento não é recente. Já Platão, em A república, descreve a cidade ideal
tomando como paradigma os princípios epistemológicos de sua teoria das
A CIDADE COMO METÁFORA DO PENSAMENTO E A FIXIDEZ DO ideias. A república de Platão tem centro e ordem, dividindo-se em
ESPAÇO NO RENASCIMENTO compartimentos hierárquicos como uma pirâmide. Em seu topo encontramos
A perspectiva central, técnica empregada no século XV, pressupõe uma um governante: o filósofo-rei, único cidadão que tem acesso à verdade e ao
visão racional e sistemática do espaço, contrária ao espaço descontínuo e Bem. De forma semelhante, no Discurso do método, a topologia urbana revela
fragmentário da época medieval. A ordem divina das coisas é substituída por uma cidade do caminho certeiro: no centro encontramos seu arquiteto, o cogito
uma ordem racional e científica, e o espaço passa a ser criação da inteligência cartesiano, a explicitação, no campo filosófico, do sujeito imóvel e unilocular da
do artista-geômetra. perspectiva renascentista.
A perspectiva não é somente mero recurso técnico, mas princípio revelador
de determinados pressupostos culturais da época. Ela repousa no pressuposto A CIDADE COMO ESCRITURA
de que as retas do espaço convergem para um ponto de fuga único e gerador de Já Baudelaire, em O pintor da vida moderna, descreve o dândi, o burguês
ordem: o olho do sujeito, único e imóvel. A ligação entre individualismo e melancólico que andava pelo espaço da cidade. Do início do século passado,
78 perspectiva é relevante; não por acaso podemos dizer que a perspectiva é o podemos lembrar dos dadaístas com as excursões urbanas por lugares banais 79

substrato material indicador dos princípios cartesianos de racionalidade que e as deambulações aleatórias organizadas por Aragon, Breton e Picabia. Muitas
foram integrados ao projeto do Iluminismo — base epistemológica central para dessas deambulações enfocavam a experiência física da errância no espaço
a construção de todo o pensamento moderno. urbano, que foi não somente a base dos manifestos surrealistas, mas também
A concepção de espaço no Renascimento é reveladora de uma relação de Nadja (1928) e L’amour fou (1937), de André Breton, e Le paysan de Paris
profunda com os princípios cartesianos de racionalidade e com questões mais (1926), de Aragon, publicado no Brasil em 1996 como O camponês de Paris.
amplas da sociedade da época. Não por acaso, Descartes, na segunda parte de Longe de ser apenas cenário urbano para as idas e vindas do personagem de
seu Discurso do método, esboça os fundamentos seguros do pensamento pelo Le paysan de Paris, a cidade de Paris do início do século passado é metáfora,
paradigma espacial da fundação urbanística e arquitetônica: especialmente no “Prefácio a uma mitologia moderna”, do pensar surrealista e
da crítica à racionalidade cartesiana. Le paysan de Paris é, nesse sentido, uma
permanecia o dia inteiro fechado num quarto bem aquecido onde dispunha de manifestação, no campo da literatura, da crise dos preceitos metafísicos e
todo o vagar para me entreter com meus pensamentos. Entre eles, um dos filosóficos cartesianos, da crença nas verdades inquestionáveis e duradouras.
primeiros foi que me lembrei de considerar que, amiúde, não há tanta perfeição nas A cidade dos surrealistas não revela um espaço regrado e seguro como as
obras compostas de várias peças, e feitas pela mão de diversos mestres, como cidades de Platão e Descartes; não é metáfora das certezas e verdades
naquelas em que um só trabalhou [...] Assim, essas antigas cidades que, tendo sido prometidas pelos ideais da Razão, mas um espaço prenhe de sonhos, desejos,
no começo pequenos burgos, tornaram-se no correr do tempo grandes centros são cruzamentos insólitos, imagens dialéticas, ambiguidades e passagens que
ordinariamente tão mal compassadas, em comparação com essas praças regulares, devem ser decifradas. A cidade dos surrealistas revela espaços que, tais como os
traçadas por um engenheiro a sua fantasia numa planície [...]1 sonhos, trazem encruzilhadas, trechos contraditórios que se misturam,
produzindo, muitas vezes, curtos-circuitos iluminadores (iluminação profana).
1 DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril, 1979, Coleção Os Pensadores, p. 34. Seus meandros e ruelas não descrevem e não são fruto de um arquiteto
engenhoso, mas da vivência daqueles que, assim como Le paysan de Paris, INVESTIGAÇÕES POÉTICAS NO AMBIENTE URBANO
ousam caminhar por outras bifurcações que não aquelas impostas pela razão No Brasil, a utilização de espaços urbanos como meio expressivo eclode
instrumentalista. nos anos 1970 com a manifestação de grupos e práticas que reivindicavam
As errâncias surrealistas e as deambulações pelo espaço urbano são autonomia em relação ao mercado confinado da galeria e do museu.
retomados por Walter Benjamin sobretudo em Passagens. Nele, Benjamin evoca Contudo, não podemos esquecer que, já nos anos 1930, Flávio de
a ideia da cidade como escritura, pensando-a como um dispositivo autêntico da Carvalho, conhecedor dos surrealistas e de suas propostas deambulatórias,
história, das vozes, desejos, sonhos e memórias que compõem o cenário social. elabora projetos que batiza de Experiências; errâncias urbanas performáticas.
Também em Passagens encontramos a figura do flâneur, personagem Uma de suas experiências mais conhecidas, realizada em 1931, consistiu na
urbano que exprime o fenômeno da metrópole moderna. Pode-se dizer que o prática de uma deambulação, com um tipo de boné cobrindo a cabeça, no
personagem do Flâneur em Passagens encontra uma posição semelhante contrafluxo de uma procissão de Corpus Christi pelas ruas de São Paulo. Depois
ao personagem da Melancolia em A origem do drama barroco alemão. Ambas as de algum tempo a multidão se voltou contra ele, que precisou fugir e buscar
figuras são uma espécie de “ponto arquimediano” das respectivas obras abrigo em uma leiteria, contando com uma intervenção policial. As experiências
benjaminianas. Ao olhar da melancolia, no qual se expressam ao mesmo tempo de Flávio de Carvalho não somente estavam em sintonia com as propostas das
uma disposição meditativa e uma percepção muito aguda, correspondem no vanguardas que repensaram a noção de obra e objeto estético, desenvolvendo
flâneur um interesse pelo espetáculo da cidade, uma disposição ao ócio, ao andar experimentações alternativas, mas também com o papel do corpo como
vagabundo, e uma percepção dispersa e distraída — uma percepção em flânerie. potência poética, propositor de ações e poéticas performáticas.
Apesar do flâneur ser o protótipo do burguês entediado típico da Partindo de uma segunda perspectiva, podemos lembrar as investigações
modernidade, os situacionistas acabaram por contribuir para desenvolver de Artur Barrio que, no final dos anos 1960, executa ações no espaço urbano. A
80 muitas dessas ideias ao propor a noção de deriva urbana e da errância voluntária mais famosa, Situação, ocorreu em 1969, desdobrando-se no ano seguinte. A 81

pelo espaço urbano (BERENSTEIN, 2003). Criticando o movimento moderno ideia foi depositar, em diferentes locais do espaço público, trouxas com
em arquitetura e urbanismo, principalmente a racionalidade cartesiana de Le materiais orgânicos e inorgânicos, como cimento, borracha, carne e tecidos. O
Corbusier, os situacionistas criticavam a concepção da cidade como cidade- cheiro de carne apodrecida e o aspecto do sangue, que manchava a superfície
-espetáculo reclamando por um urbanismo mais participativo e por novas das trouxas, acabavam por gerar preocupações de ordem ideológica e política
formas de fruição do espaço urbano. O andar “sem rumo” e a relação mais relacionadas ao momento de ditadura militar por qual passava o país. Mas não
afetiva com o espaço urbano tinham como proposta romper com a visão fria se limitavam a isso. Colocavam em debate, também, a deterioração do sistema
e racionalista pregada pela arquitetura e pelo urbanismo modernos: de arte cuja única permanência fixa parece ser dada pela figura do artista.
Nelson Leirner, Cláudio Tozzi, Viajou sem Passaporte, o grupo Manga Rosa e
para tentar chegar a essa construção total de um ambiente, os situacionistas o 3Nós3 são alguns dos exemplos, dentre inúmeros outros, que nos anos 1980
criaram um procedimento ou método, a psicogeografia, e uma prática ou utilizaram a cidade como palco de experimentação estética. No caso do 3Nós3,
técnica,a deriva, que estavam diretamente relacionados. A psicogeografia foi a atuação do grupo era definida como “interversão” e não intervenção, já que o
definida como um estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente sentido de sua produção ligava-se ao conceito de inversão da percepção da
planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos paisagem, muito mais do que à ideia de infiltrar-se nela simplesmente. No início
indivíduos2. de 1979, o 3Nós3 — composto por Hudinilson Jr., Rafael França e Mario Ramiro
— fez uma espécie de ataque:

uma noite, a partir de um roteiro previamente marcado num mapa (sempre


trabalhamos em cima da planta da cidade), saímos encapuzando com sacos de lixo
2 BERENSTEIN, Paola (org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2003, p. 23. todas as estátuas que pudemos em São Paulo: no centro, no Ibirapuera, o
Monumento às Bandeiras, morrendo de medo; havia a ronda e até explicar era manifestação estética. Suas ações nos remetem ao programa político e estético
complicado. De manhã cedinho, telefonamos para todos os jornais, causando um dos situacionistas, que defendiam a união da dimensão estética com a
burburinho na imprensa; mas tivemos uma grande cobertura, e descobrimos que experiência social e política. É o caso de O Branco Invade a Cidade (1973),
os jornais servem como registro, apesar dos mal-entendidos. Tomamos gosto pela desenvolvida na época da Bienal Internacional de São Paulo. A ação consistiu
coisa, a ideia era a motivação plástica na paisagem, chamar a atenção das pessoas em sair pelo centro de São Paulo — do Largo do Arouche até a Praça da Sé —
que passam todos os dias e sequer veem as estátuas. Em seguida fizemos nosso “X simulando uma passeata com cerca de dez pessoas carregando cartazes em
Galeria”. Com fita-crepe, vedamos as portas das galerias em “X” e deixamos um branco. Centenas de curiosos aderiram à “passeata”, bloqueando o trânsito por
bilhete em cada uma: “O que está dentro fica, o que está fora se expande”3. várias horas. Forest foi preso pelo Dops e a organização da Bienal e a
embaixada da França tiveram de intervir a seu favor.
Em Avis de Recherche: Julia Margaret Cameron (1988), a ação consistiu em,
por várias semanas, colocar em jornais e outras formas de comunicação, tais
como grafites espalhados no espaço urbano de uma cidade no interior da
França, notícias sobre o desaparecimento de uma personagem fictícia. O
público era convidado a escrever sobre a personagem, ultrapassando a barreira
entre o real e o imaginário. Além de criar um circuito coletivo de informação, o
Sacos pretos encobrem
projeto instigava a imaginação do público, colocando em cena o fato de que
monumentos públicos,
em intervenção do grupo fazemos parte de uma sociedade comunicante (ARANTES, 2006).
3Nós3 que faz São Paulo De maneira análoga, durante a VII JAC (Jovem Arte Contemporânea), em
acordar com sua
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paisagem modificada novembro de 1973, o artista organiza no MAC-USP o evento intitulado Passeio 83
Foto: Mário Ramiro
Sociológico pelo Bairro do Brooklin:
Para Ramiro, a manipulação da mídia, em paralelo à utilização da cidade como
palco das intervenções, é um dos diferenciadores das práticas do grupo em Acompanhado de estudantes transportando seus assentos individuais e dispondo
relação a outros grupos que atuavam no ambiente urbano. A intervenção de um equipamento da TV Cultura, ele registrou os encontros do grupo com
no espaço urbano só tinha sentido se pudesse, de alguma forma, reverberar no populares na rua e em estabelecimentos, criando situações de “guerilla video” e
espaço dos meios de comunicação, construindo uma espécie de rede entre diálogos inesperados para um estado de restrições à liberdade de pensamento.
o espaço urbano e o da mídia, e ampliando em escala a experimentação O incomum episódio de arte/comunicação foi vigiado pela polícia4.
desenvolvida no espaço físico.
Dentro de outra perspectiva, encontramos os trabalhos do argelino Fred
Forest, cujo ponto de partida é considerar a cidade (sociedade) como A ESCRITURA URBANA DAS POÉTICAS MIDIÁTICAS NA CULTURA LÍQUIDA
comunicação. Isso significa pensar a cidade/sociedade menos a partir de uma Tanto os trabalhos do grupo 3Nós3 quanto os de Fred Forest, apesar de suas
visão urbanista racionalista, mas considerá-la eminentemente um espaço de diferenças, põem em discussão pontos que parecem ser fundamentais: 1) a
relações comunicativas e afetivas, como um dispositivo de interlocução social. concepção de um espaço que se constrói a partir de contextos e interlocução
Para além de situar-se no espaço confinado do museu e da galeria, as ações sociais; 2) a comutação entre os espaços físicos/urbanos e comunicacionais.
de Forest, muitas vezes, se desenvolveram no espaço da realidade cotidiana, De certa forma, essas práticas colocam em questão a ideia da cidade como
em circuitos paralelos, extramuros, postulando um questionamento de escritura, da cidade pensada como um dispositivo que guarda desejos,
territórios estabelecidos e utilizando a cidade como protagonista da
4 ZANINI, Walter. “Primeiros tempos da arte/tecnologia no Brasil”. In: DOMINGUES, Diana (org.). A arte no
3 RAMIRO, Mario. “Grupo 3Nós3: the outside expands”. In: Parachute, 2004, p. 50. século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Editora Unesp, 1997, p. 237.
memórias e afetos. São experimentações que utilizam as linguagens midiáticas
para criar situações de interlocução social, provocando um diálogo do corpo
social com o corpo da cidade. São projetos que, de algum modo, enfocam o
mundo, evidenciando as lógicas e as estruturas que permeiam a sociedade
contemporânea.
Caso exemplar de projetos nessa linha são aqueles desenvolvidos por
Maurício Dias e Walter Riedweg. Muitos dos protagonistas de seus trabalhos são
grupos sociais que se situam à margem do universo supostamente garantido Tijuana Project: projeto
pelo capitalismo mundial. Os projetos de Dias e Riedweg produzem, muitas do artista polonês Krzystof
Wodiczko dá voz a mulheres
vezes, uma falha, um corte, uma interrupção na ordem dos sentidos e do curso operárias mexicanas, por
“natural” das coisas. Provocam uma iluminação — profana como diria Benjamin meio de projeções de vídeo
— ao evidenciar o esgarçamento e as tensões que compõem o cenário social. de larga escala, em espaços
públicos
Entre os trabalhos da dupla que atuam nesse sentido pode-se destacar Dentro Imagem Capturada do Website do Projeto

e Fora do Tubo (1988). Realizado a partir de depoimentos gravados com refugiados


de terras em conflito que viviam na Suíça à espera da legalização de seu asilo personagens anônimas que vivem à margem do sistema, por vezes
político, teve como proposta — a partir de uma intensa convivência com o grupo negligenciadas pelo curso da história oficial. O trabalho de Wodiczko nos
dos depoentes — a gravação de depoimentos orais, nos quais o imigrante convida a pensar nas questões da narrativa nos termos colocados por Walter
apresentava suas memórias do trajeto percorrido quando da saída de sua cidade Benjamin. Wodiczko mostra uma cidade que guarda fantasmas, casos
84 natal até a chegada à Suíça. Essas lembranças, vozes, memórias dos refugiados desconhecidos daqueles que vivem à margem do sistema. 85

foram colocados em walkie-talkies e espalhados, dentro de tubos, no espaço Sob outro ponto de vista, podemos destacar trabalhos tais como Amodal
urbano, disponíveis para a escuta da população. Trata-se, nesse caso, de colocar Suspension e Body Movies, do artista Rafael Lozano-Hemmer. Amodal
em destaque, publicamente, estados afetivos e experiências sensórias decorrentes Suspension era uma instalação em grande escala, desenhada para a
de situações específicas, resultantes dos processos de marginalização. inauguração do Yamaguchi Center for Art and Media (YCAM), no Japão, que
Um processo como esse nos remete, de certa forma, às experiências permitia ao participante enviar mensagens via telefone celular e internet ao
desenvolvidas pelo artista polonês Krzysztof Wodiczko, conhecido desde os espaço da cidade. As mensagens se codificavam em sequências de luz e eram
anos 1980 por trabalhar com projeções de vídeo em grande escala no espaço disparadas por canhões, permanecendo no céu até que fossem lidas pelo
público. Em Cecut Project (2000), realizado no Centro Cultural de Tijuana destinatário. Uma vez lidas, eram retiradas do céu e projetadas na fachada do
(Cecut), no México, o artista se utiliza de dispositivos midiáticos para dar voz edifício do YCAM. Nesse trabalho torna-se evidente a ideia da cidade como
a mulheres operárias da cidade de Tijuana. Nesse trabalho, o artista criou um dispositivo de comunicação e como mecanismo para trocas de afeto dentro da
capacete integrado a uma câmera e a um microfone que permitia gravar e perspectiva já desenhada pelos situacionistas. Além disso, o trabalho também
transmitir, em tempo real, a imagem e a voz da depoente na fachada do Centro coloca em debate a questão da mobilidade e das conexões em rede, um dos
Cultural. Os testemunhos das mulheres, ouvidos pelo público em uma praça temas mais destacados na cultura em liquefação. Mais que assinalar a fluidez do
pública, discorriam sobre abuso sexual, alcoolismo e violência doméstica. espaço na contemporaneidade e as comutações entre espaço físico e de
Walter Benjamin, em “O narrador”, esboça a ideia de uma narração comunicação, o projeto aponta para a ideia da rapidez dos “relacionamentos
construída em ruínas. O narrador não tem por alvo recolher os grandes feitos virtuais”. As conexões via internet, e-mail, SMS e telefone celular exigem
históricos ou a história dita oficial, mas tudo aquilo que é deixado para trás — os rapidez, sendo extremamente fácil sair dessas conexões; basta deixar de
cacos, os estilhaços — como algo que não tem significação, como algo com o responder a um e-mail ou apertar a tecla “apagar”. São relacionamentos que se
qual a história oficial não sabe o que fazer. Muitos desses feitos são relatos de acendem e se apagam com a velocidade da luz.
O que se percebe nesses trabalhos, não obstante suas diferenças, é a
construção de uma visão de espaços em movimento que, longe de serem

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espaços racionalizantes e fixos como os da cultura renascentista, são fluídos,
reveladores dos meandros da cultura líquida de nossa época — uma cultura que
põe em questão certezas, visões estáveis e verdades duradouras.
Em vez de encontrar o “porto seguro” prometido pelo cogito cartesiano, o
sujeito contemporâneo parece se deparar com uma cidade de outro tipo. Nessa
cidade não existe mais lugar para a certeza e segurança encontradas pelo eu
cartesiano. Aqui nenhum lugar parece ser o locus privilegiado para a verdade e a
NOTAS SOBRE A CULTURA E A ARTE DA MOBILIDADE
segurança prometidas. Ao contrário: seus lugares estão prenhes de ambiguidades, (PENSAMENTOS NÔMADES PARA HIPÓTESES EM FLUXO)
passagens, vozes e escrituras de uma cultura em estado de liquefação. GISELLE BEIGUELMAN

Esse ensaio se divide em duas partes. Na primeira, apresento minhas notas sobre a
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS cultura e arte da mobilidade. Trata-se de uma reunião de pensamentos que venho
testando em projetos realizados ao longo de quase uma década1. Na segunda, um
ARAGON, Louis. O camponês de Paris. Rio de Janeiro: Imago, 1996. ensaio visual põe à prova algumas dessas notas, confrontando certas nuances de
ARANTES, Priscila. Arte e mídia: perspectivas da estética digital. São Paulo: Editora Senac, 2005. suas hipóteses.
ARANTES, Priscila. “Circuitos paralelos: restrospectiva Fred Forest”. In: BOUSSO, Vitoria D. (org.)
86 Circuitos paralelos: retrospectiva Fred Forest. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. PARTE 1 — PENSAMENTOS NÔMADES 87

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. A cultura da mobilidade é um conjunto de práticas sociais e simbólicas que
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol. 1, Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1993. reestrutura as maneiras de ver e perceber o Outro e a nós mesmos. Atravessada
BERENSTEIN, Paola (org.) Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa por substratos impressos e digitais, fonéticos e não fonéticos, nela se emaranham
da Palavra, 2003. códigos informativos, de programação e estéticos.
BOIS, Yve-Alain e KRAUSS, Rosalind E. Formless. Nova York: Zone Books, 2000. Produz uma nova semântica de ordenação dos signos e dos processos de
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede — A era da informação: economia, sociedade e cultura: volume 1. significação, no interior do qual se rearticulam as relações entre as palavras e os
São Paulo: Paz e Terra, 1999. símbolos e se redefinem os limites da linguagem, da comunicação e da arte.
DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril, 1979, Coleção Os Pensadores. Os dispositivos passam a constituir extensões conectadas de nossos corpos às
RAMIRO, Mario. “Grupo 3Nós3: the outside expands”. In: Parachute, 2004, p. 41-53. redes, “ciborguizando” nossos equipamentos biológicos.
VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo: Trata-se de uma cultura que responde às demandas de sujeitos multitarefa e seu
Martins Fontes, 1996. olhar constantemente distribuído entre atividades simultâneas e não correlatas. A
VIRILIO, Paul. O espaço crítico e as perspectivas do tempo real. São Paulo: Editora 34, 1993. criação, nesse contexto, implica repensar as condições de legibilidade e as
convenções e formatos da comunicação e transmissão.
As ações ocorrem em espaços informacionais, lisos, fluidos, ocupados por
práticas nômades que reconfiguram noções de distância e localidade e os limites
entre os lugares da arte, da propaganda e da comunicação. Nesse contexto, o
processo de criação também requer, por isso, a compreensão dos meandros

1 http://www.desvirtual.com/category/mobile/

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