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AULA 4-24/08/95

CONSTRUÇÕES DE VERDADE,
JOGOS DE PODER1
Quem quer tecer comentários a respeito da primeira pergunta que Ale­
xandre Fontana faz a Foucault? E a seguinte: “Você podería esboçar breve­
mente o trajeto que o levou de seu trabalho sobre a loucura, na Idade Clás­
sica, ao estudo da criminalidade e da delinqüência, especialmente em Vigiar
e Punir?'
Essa pergunta Foucault está respondendo no Brasil após um curso que
ele estava desenvolvendo na Universidade Católica do Rio de Janeiro. E um
encontro de intelectuais e estudantes e esse encontro não tem uma assistên­
cia muito numerosa, o que facilita o diálogo entre Foucault e os presentes.
Ele faz referência, a partir da primeira pergunta, a uma trajetória que vai
da H istória da Loucura - que é aquele trabalho famoso da tese de
doutoramento de 1960 - até Vigiar e Punir, que é uma pesquisa publicada
inicialmente em 1975. Depois do Grupo de Informações sobre a Prisão, ele
se envolve com uma série de questões de política institucional, como a dos
imigrantes e a migração.
N ei: Essa resposta, de certa forma, ela tem uma forte expressão política.
Essa trajetória que ele escreve passando pela loucura não é muito aceita
nem pela esquerda e nem pela direita, porque ele fala coisas que atingiam
poderes fortes, como o regime totalitário na União Soviética da época. En­
tão ele falava do que eram prisões políticas. E essas coisas afetavam e desa­
catavam muito àqueles como Althusser que desenvolviam e lutavam pelo
pensamento marxista. Então, de certa forma, é difícil essa leitura do Foucault,
explicitando os problemas do regime soviético que, de certa forma, também
atingia os franceses. O grande resultado da dissidência no Leste europeu
está sendo atacado por um outro discurso inovador por causa do Foucault.
Oly \ Nisso que você disse no começo, você fez um comentário da res­
posta. Foucault encontra grandes amigos, mas especialmente grandes inimi­
1. Discussão do texto “Verdade e Poder”. In FOUCAULT, M. Microfisica do Poder,
8 ed., Rio de Janeiro: Graal, 1989.

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gos, tanto na direita como na esquerda. Em um determinado momento, a
esquerda considera Foucault o último baluarte da burguesia, e a direita con­
sidera-o um demônio para encontrar os furos existentes nas práticas e nos
discursos de verdade da direita. Haja vista todos os cuidados que ele tem
para construir ao longo do tempo sua chegada ao Collège de France, um
lugar onde existe uma maioria de professores altamente conservadores.
A verdade é que Foucault encontra grandes inimigos nesses professores
de direita e também grandes inimigos em muitos professores de esquerda.
Também já comentamos como Foucault se movimenta com as pessoas que
se identificam como direita ou esquerda. Uma das coisas que ele não gosta é
de ser rotulado. Ele só participou do Partido Comunista Francês muito cedo
e muito cedo ele saiu também. Ele não se coloca em nenhuma dessas tendên­
cias. E uma pessoa que tenta pensar de maneira distinta do que podería ser
enquadrado como direitismo ou esquerdismo.
No entanto, o comportamento dele... Por exemplo, lembram da época
em que ele esteve na Tunísia? Ele consegue admirar profundamente estudan­
tes que dão a vida por uma ideologia, que é a marxista. Inclusive admirar não
só por palavras, mas a ponto de, mesmo discordando deles, ser capaz de
colocá-los dentro de casa, ajudar que eles fujam da prisão, esconder
mimeógrafos e material de divulgação subversiva desses estudantes dentro
de casa. Mas basicamente a luta política de Foucault se dá no nível institucional,
micropolítico: contra a polícia, contra o serviço militar, contra a universidade
moderna com suas ortodoxias e contra uma série de instituições de
enclausuramento onde as relações produzem efeitos de poder úteis à norma­
lização, e efeitos de saber fundantes de todas as hierarquias. Essa luta você
localiza contra a direita, a esquerda, o centro. Dizer que essa luta não é
política? Eu diría que se trata de um autêntico projeto político libertário con­
temporâneo que se efetiva nas iniciativas de ação direta tais como o GIP.

N ei : É ideológico?
Oly : Ideológico não, na perspectiva foucaultiana. Por que Foucault não
diría que essa luta é ideológica? Porque a categoria ideologia - e vocês de­
vem estar acostumados com isso, porque a maioria do pessoal aqui faz dis­
curso marxista -, a grosso modo, coloca que existe uma verdade que estaria
camuflada. Até agora tudo o que eu disse para vocês foi que Foucault chega
a entender que não existe verdade, o que existe é produção de verdade,
produção de discurso de verdade. Ora, se não existe uma verdade encober­
ta, então não há o que descobrir, por estar supostamente coberto. Em As
Palavras e as Coisas ele reafirma com veemência essa compreensão, ao
atribuir dizibilidade às palavras, ou seja, as palavras dizem. Para explicar
esse dizer há que quebrá-las, e não descobri-las.

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A d ir: O que é uma construção de verdade? O que é, em resumo, uma
verdade? Qual o efeito disso, senão a verdade para quem está colocando
naquele momento, seja para um indivíduo ou para um grupo?
Oly: Qualquer indivíduo, como você diz, a qualquer momento, produz a
sua verdade, produz os seus discursos. Agora, esses seus discursos podem
ou não constituir os enunciados de verdade que estabelecem o regime polí­
tico de verdade em um determinado momento.
Há algumas situações em que os discursos se embricam com relações de
poder de dominação, vão formando enunciados que conseguem atingir um
nível privilegiado, um estatuto de verdade. Por exemplo, na nossa época, os
discursos científicos da astronomia, biologia, genética, matemática são dis­
cursos que têm estatuto de verdade legitimado, e tu podes falar a respeito e
tua fala é reconhecida; dizer o que é certo ou o que é errado, mas não podes
dizer o impensável. Tu podes concordar ou não com uma teoria científica e
até provocar dissensões no meio científico, mas está dentro do regime polí­
tico de verdade dizível.

A dir: Ele fala numa certa ideologia em um certo momento.


O ly: Sim, no princípio da sua vida intelectual, tanto quanto fala em per­
sonalidade e outras construções. Depois, isso vai pouco a pouco desapare­
cendo, e desaparece por completo.
Raquel. Assim como repressão e resistência.
Oly. Isso. Porque quando ele já estava navegando no instrumental me­
todológico da genealogia, se dá conta de que o que existe são lutas, bata­
lhas, relações de forças, relações de poder tecendo a vida p m baixo, sub-
repticiamente, onde se travam batalhas sem fim. E essas relações de poder
produzem efeitos, inclusive de saber. São relações de poder que circulam
por baixo, na teia da vida. Mas o que aparece na superfície? Esse efeito de
superfície é aquilo que os marxistas chamam de ideologia, que, para ele, não
tem sentido como ideologia. Aparece como o dizível, o que se diz, os dis­
cursos.
Vou tentar arranjar uma metáfora para isso, bem fácil; é o que sempre
surge na cabeça da gente que é professor. Por exemplo: reunião de departa­
mento na universidade. É uma coisa de que todo mundo aqui participa, ou
reunião administrativo-pedagógica da escola. Para quem chegasse de fora,
abrisse aporta e ouvisse, diria: “Ah! Estão discutindo pontos de vista, estão
discutindo ideologias, teorias, hipóteses, opiniões, crenças, fatos, ocorrênci­
as, circunstâncias, textos e contextos. O fulano pensa assim e até tem um
rótulo, aquele fulano é marxista. Do jeito que o outro fala, então ele é anar-

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quista. Aquele outro, pela forma como fala, é liberal. Eles estão discutindo
porque um pensa de um jeito e o outro pensa de outra forma” . Isso é o que
aparece para quem abre a porta e desavisadamente descortina o cenário dos
discursos. E nesse abrir a porta, muitas pessoas vão acreditar, mesmo fe­
chando a porta atrás de si e ficando lá dentro, que é isso que ocorre. No
entanto, para uma perspectiva foucaultiana de análise, isso é o que se passa
nos discursos apenas. O que não aparece nos discursos, quer dizer, o que se
passa, mas não se fala, o que está por baixo do discurso, não é o real, como
dizem os arautos das ideologias, é uma guerra, é uma luta de todos contra
todos. Cada um usando as armas que pode ou que sabe, a que convém
utilizar em função de um jogo de interesses, de relações de poder, de domi­
nação ou de resistência.
Você está discutindo um parecer, por exemplo, sobre a vinda ou não de
um professor para a escola ou departamento. Esse preenchimento de vaga,
no que se ouve, passa por critérios do tipo densidade, coerência e conveni­
ências do currículo desse professor. Esse currículo do pretendente à vaga é
relatado para ser colocado em votação, se é conveniente ou não de tê-lo no
corpo docente. Porque não funciona apenas mandar o currículo para todo o
Brasil, e quem quiser que acolha. Todos vocês sabem que não é assim. Esse
profissional que pretende a vaga tem relações de amizade e inimizade, cujos
efeitos de poder num espaço e momento dados vai garantir determinadas
situações ou “desgarantir” outras situações. E é aí, em função dessa luta,
dessa guerra de conveniências e interesses, que esse currículo em aprecia­
i s ^ ção vai ser considerado aceito ou não. E na correlação de forças que vai ser
definido o resultado, e não a partir dos critérios que o desavisado observa­
dor da reunião ouviu falar.
Então, se eu quero ter o pretendente à vaga como colega, interessa para
mim, preciso atribuir valor aos pontos fortes do seu currículo: “Olha, esse
sujeito tem mais de 15 anos de magistério, tem uma tremenda experiência, é
interessante para a instituição que ele esteja aqui!” . Mas acontece que meu
colega, por exemplo, que está como chefe de departamento, tem mil razões
para não querer essa pessoa, porque estrategicamente ela pode pôr em risco
sua permanência na chefia. E ele vai me contradizer, informando que esse
critério da experiência já se mostrou ineficaz. E então nós estamos falando
de uma coisa que é o critério e sua validade. Mas o que está acontecendo é
outra. Quem contesta a validade da experiência de 15 anos, na realidade não
está preocupado com o critério, mas precisa somar argumentos para que o
dito professor não venha. E Foucault diz que é isso que acontece sempre:
fala-se do que não está acontecendo. Para o nosso observador, que pode
ter lido, mas não entendeu Foucault, o que está acontecendo é: “Eu acredito
no critério da experiência para validar a eficácia docente e meu chefe de

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departamento não acredita que esse critério seja válido e até tem provas de
sua inoperância”.
Adir Quanto ao entendimento de ideologia feita pelo Foucault que faz
uma análise sobre determinados assuntos, conheço o exemplo de uma pro­
fessora. Ela analisa a questão dos livros didáticos, que trazem um discurso,
mas o que está por trás desse discurso? Por trás desse discurso existe uma
outra rede, que é uma rede ideológica. Eu quero falar para não permanecer
com esta dúvida...
O ly: Foi bom você ter levantado essa questão. Até hoje à tarde tivemos
uma discussão no grupo, e a gente estava nessa história. Uma coisa é ler as
entrelinhas, e a Maria de Lurdes Nosela, uma colega minha de doutorado
nos anos 80, na UN1CAMP, faz isso no livro dela, As Belas M entiras. Na
realidade, ela se vale de umas ferramentas marxistas para fazer essa análise,
tal qual seu orientador de tese, o Dr. Dermeval Saviani faz, utilizando ferra­
mentas marxistas como ele próprio utilizou, no texto conhecidíssimo dos
educadores no Brasil sobre a “curvatura da vara”, que desencadeou, em
nosso meio escolar, a teoria crítico-social dos conteúdos, nessa década. E
dentro da política de verdade que a autora de As Belas M entiras se utiliza,
ela vai ler nos discursos as entrelinhas, quer dizer, o que não está dito nas
entrelinhas, se as entrelinhas fossem escritas.
Foucault, com outras ferramentas, que não são as marxistas, está em
outra política de verdade. Ou seja, para ele, a ordem das coisas que estão
aparecendo na superfície não é da mesma natureza da ordem das coisas que
estão acontecendo sub-repticiamente, nas relações de forças. Para Foucault
não cabe ler nas entrelinhas. Não há o que ler nas lacunas porque o dizer já
diz. Tudo isso pertence ao discurso. O que Foucault está trazendo à visibili­
dade é a guerra, não são discursos; são relações de poder, relações de
força, não relações de saber explicitadas nos discursos. A relação de força
não é da mesma natureza da relação de saber. O discurso é da ordem do
saber, portanto arqueológico. As relações de força são da ordem do poder,
estratégicas, móveis, imateriais, apenas perceptíveis pelos efeitos que pro­
duzem, portanto genealógicas. Os discursos, no pensamento de Foucault,
podem ser estratificados, postos em arquivos, quer dizer, formam estratos,
sedimentos2. E por isso que, quando ele estuda arqueologicamente, ele vai
atrás de arquivos, vai vasculhar esses estratos para extrair-lhes o dizível.
Quando ele vai estudar genealogicamente - não somente o dizível, mas os

2. Quando Foucault fala de “estratos”, “estratificação”, “sedimentação”, ele usa essas


palavras com o sentido a elas atribuído pela geologia, e não pela sociologia.

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poderes que, articulando-se, permitiram a gênese dos seus enunciados-, ele
está trabalhando com outra natureza de coisas, que se movimentam constan­
temente e não se estratificam. Não são depositadas sob forma de ditos e
escritos; são forças em movimento que se articulam e se desarticulam, tor­
nam a se reagrupar...
O arquivo que se deposita em sedimentos tem natureza concreta, palpá­
vel. A natureza da correlação de forças, da relação de poder é diferente: é
abstrata, não é palpável, só constatamos os efeitos. Não há o que descobrir
para ver as relações de poder. Sua existência não se dá no visível, só se
conhece pelos efeitos. Por isso, uma coisa é você ler as entrelinhas dos dis­
cursos, quer dizer, os discursos que comporiam um composto que não está
totalmente posto. Aí você pode referir-se ao ideológico, trabalhando ferra­
mentas marxistas. Agora, se você quiser fazer a análise genealógica traba­
lhando a “caixa preta” das relações de poder em qualquer situação dada e
usar o conceito de ideologia para tal, tem que deixá-lo de lado, porque ele
não dá conta mesmo, e você estará cometendo um grave erro metodológico
na sua pesquisa, porque não dá para misturar duas abordagens com políticas
de verdade tão distintas. /
Adir : Mas isso então para a genealogia. Por exemplo, se eu trabalhar a
questão da arqueologia, aí então eu posso trabalhar com a ideologia? Para
eu não cometer uma gafe teórica...
Oly: Para não cometer uma gafe teórica, se você está analisando um
discurso e você quer fazer a análise dos interditos, uma análise ideológica
desse discurso, a categoria ideologia serve, mas previamente você está de
acordo, aceita que existem não ditos, lacunas, interditos, ocultamentos no
dizer. Ou seja, você gosta das ferramentas marxistas de análise, você as
-prefere. Mas se você quer trabalhar as condições que possibilitaram esse
discurso aparecer e que efeitos produziu, então você tem que procurar a
gênese desse discurso. Ora, procurar pela gênese desse discurso não segue
o caminho da análise ideológica do discurso. Você terá de usar a arqueolo­
gia, que não tem nada a ver com a análise do que os discursos ocultam ou do
que está por trás deles.
Mas não te preocupa, que o tipo de pergunta que vem à nossa mente, em
geral, já é resultado de um tipo de olhar. Um olhar marxista considera per­
guntas foucaultianas menores e não se atém a elas, enquanto um olhar
foucaultiano, em geral, considera perguntas marxistas fora do lugar.
Raquel: Então seria, vamos dizer assim: usar ideologia para estudar a
psiquiatria, seria tomar o discurso psiquiátrico como universo. Se eu quero

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saoer por que e como a psiquiatria surgiu, como iunciona, seria iraoainar
com arqueologia e genealogia.
Oly: Isso. Vamos dizer que o discurso a ser estudado seja o da escola.
Se você quiser que essa análise do discurso escolar, fique restrita à fronteira
da pedagogia, do que disseram e dizem os teóricos da educação, você pode
ficar por aí. Mas se você achar que dentro das teorias pedagógicas não se
consegue fazer uma análise suficiente da educação formal, você precisa ir
além da pedagogia. Você tem que ir às raízes dela enquanto arte, técnica ou
ciência, para fazer uma análise mais profunda que te permita responder em
que condições e por que funda-se um domínio de saber sobre as crianças.
Então as teorias pedagógicas não dão mais conta.
Vocês lembram sobre as épistémès e daquele alerta foucaultiano de que
há condições de possibilidades para surgir saberes com mesma regra de
constituição, e que de uma épisíémè para outra ocorre uma tremenda ruptu­
ra e acontecimentos dão origem a outros tantos saberes? Vocês viram que
no quadro nós exemplificamos tanto no domínio dos seres vivos, das rique­
zas, das palavras e das idéias?
Se nós enxergarmos que isso aqui é um resultado de pesquisa
foucaultiana, a única concessão à interdisciplinaridade seria no nível horizon­
tal do esquema, nos apriori históricos, onde há uma certa continuidade.
Porque somente cabe trabalhar interdisciplinaridade dentro do mesmo solo
epistemológico. E aí iria contrariar totalmente aquilo que normalmente se faz
para chamar de interdisciplinaridade. Muitos professores são levados a con­
siderar que aquilo que ensinam, química e genética, por exemplo, dá para
fazer interdisciplinarmente. O solo conceituai no qual a química se constrói
não é o mesmo solo conceituai no qual a genética se constrói. A genética,
enquanto disciplina, inclusive é posterior à química e tem a priori históricos
diferentes.
Vocês lembram a regra da formação dos conceitos, quando a gente falou
que o que interessa é, na mudança da épisíémè, a regra da formulação dos
conceitos, é a regra da formulação de verdade? Ora, se temos regras dife­
rentes para a formulação de conceitos em química e genética, não dá para
estabelecer inter-relações conceituais nesse âmbito, e sim uma inter-relação
de domínio da mesma natureza disciplinar de ambas: química e genética.
Pouca gente talvez vai dizer que dá para fazer interdisciplinaridade, por exem­
plo, entre biologia, economia e filologia. Dificilmente iriam estabelecer inter-
relações entre esses domínios, o que é passível de ser feito na perspectiva
foucaultiana, ou seja, inter-relação no nível da construção da regra que
regulamenta o saber, no caso, a estrutura. Então, nessas possibilidades, dá
para pensar em termos de relações interdisciplinares.

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i_.visi.cm uu iras expressões que talvez preocupem vocês, especialmente
os educadores, como: além da interdisciplinaridade, a transdisciplinaridade,
a multidisciplinariedade e a não-disciplinaridade, mas Foucault não se inte­
ressou nessas classificações nem na aplicação que teriam suas formulações
na análise da coerência dos conceitos transdisciplinaridade, interdisci­
plinaridade, multidisciplinariedade ou não-disciplinaridade, aplicados aos
conteúdos/disciplinas escolares.
Suponho que seria um promissor campo de pesquisa para educadores
que desejem se experimentar foucaultianamente nas verdades pedagógicas.
Da minha parte, tenho me empenhado em trabalhar não-disciplinarmente,
quebrando as barras que o silêncio disciplinar vem impondo historicamente à
abordagem dos saberes no âmbito da educação institucionalizada3.
E aí consigo sair do âmbito exclusivamente disciplinar, penetrando um
campo mais amplo, de quaisquer saberes, razão pela qual criamos as cha­
madas “Oficinas do N A F’4. Quando você circula da pedagogia às licenciatu­
ras e a outras especialidades científicas, é bem provável que você permaneça
no campo da ciência^Nos preocupamos, enquanto grupo daí oriundo, em
construir nossos discursos e práticas pedagógicas como enunciados de não-
disciplinaridade, o que significa que não comporta a disciplina como conteú­
do exclusivo do saber. Disciplina em nível arqueológico, para Foucault, éum
domínio do conhecimento contido dentro de fronteiras e dentro de uma legi­
timidade de saber, que é a disciplinar. Saber vai além, tanto tratado arqueo­
lógica como genealogicamente./'
Na perspectiva arqueológica, a disciplina vai ser a produção de um saber
fechado, reconhecido, legitimado, profundamente hierarquizado e colocado

3. \fer em Livros Livres n. 1 o texto de meu concurso para professor titular da UFSC em
Metodologia de Ensino de Ciências e Matemática, defendido em 1993 e publicado
experimentalmente, dando origem à edição dos Livros Livres. A iniciativa dessa publi­
cação não foi comercial, mas dedicada a contribuir na discussão de temas de interesse
dos associados do Movimento - Centro de Cultura e Autoformação e do Núcleo de
Alfabetização Técnica que coordenei na UFSC, desde sua criação até 1995, quando me
aposentei da Universidade Federal de Santa Catarina.
4. A este respeito ver as seguintes pesquisas que orientei, e outros trabalhos cujos
autores os desenvolveram a partir das práticas que realizamos no NAT, na década de
90, seguindo as pegadas de Foucault: “Didática - a prática científica do disciplinamento”,
por Ierecê R. Beltrão, publicado pela Editora Imaginário em 2000, com o título Corpos
Dóceis, Mentes Vazias, Corações Frios-, tese de doutorado de Raquel Stela de Sá, com
o título Do Corpo Disciplinar ao Corpo Vibrátil - uma abordagem libertária contem­
porânea, publicada pela Editora Achiamé, RJ, em 2003; e as dissertações de mestrado
em Educação na UFSC, produzidas sob minha orientação, por associados do NAT:
Guilherme C. Corrêa, Ana Maria Preve; Maria Luiza Guerra, Fernando Antonio Guerra
e outros.

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num patamar elevado em relação aos demais saberes. tn ta o , taivez a ima­
gem de para além da disciplina ou da não-disciplina case melhor com o
pensamento de Foucault do que a idéia da interdisciplinaridade ou da
multidisciplinaridade. Quando perguntavam para Foucault se algum domínio
de saber era ciência - os historiadores em geral faziam muitas dessas per­
guntas, se a história, afinal, seria ciência ou não Foucault respondia que
não trabalhava no âmbito da ciência. O que ele pesquisava, em nível
metodológico, era no âmbito dos saberes. Ele lembrava que quem trabalha
com esse saber disciplinar científico são os epistemólogos, que fazem a aná­
lise crítica da ciência e são especialistas nisso. Foucault não se dizia
epistemólogo. Preocupava-o, ao referir-se aos saberes que viraram ciência,
os que ficavam de fora. Os que ficaram de fora podem ser tão mais ou
menos importantes, mas seguramente, quando se afirma a ciência e os pare­
ceres científicos, se desqualifica o que não cabe nesse domínio e os que não
falam em nome dele. Isso, sim, é preocupante e nos intriga, e leva a pensar
no como e por quê. Nas palavras de Foucault: “a quem ou a que se está
desqualificando, quando se fala em ciência?”
Rute: Qual é a preocupação de Foucault em relação às pessoas com
quem ele vai falar? Ele se importa em saber que pessoas são essas? Parece
que há momentos em que ele não se importa.
O ly: Tem momentos que ele se importa, mas isso é bem contextual. Por
exemplo, o ocorrido no Rio de Janeiro, que me parece que é do que a Rute
está falando, é o seguinte: ele veio apresentar um seminário no Brasil, pensou
que teria muita assistência e achou estranho o fato de não ter. Havia mais ou
menos umas 100 pessoas e ele estava acostumado a falar para bem mais. E -
aí justificaram que os organizadores teriam limitado a entrada a professores
universitários. Ele ficou aborrecido com o que soube. Não admitia esse tipo
de restrição porque, quando dava cursos, falava de suas pesquisas em an­
damento. No momento em que ele estava estudando essas coisas novas é
que sentia paixão por falar delas. Ele tinha clareza que estava falando de
coisas nas conferências de que nunca havia falado antes. E em vez de abri­
rem a possibilidade para o maior número possível de pessoas assistir, cobra­
ram preços muito altos e/ou selecionaram os que seriam assistência. Ele fi­
cou furioso, e naquele momento abandonou o encontro, e à noite reuniu-se
com muitos estudantes e falou muitas horas, resolvendo a coisa por ação
direta, ou seja, à sua maneira libertária. Agora, há outros contextos em que
ele limitava, isso quando a fala tinha endereçamento definido.
Existe um terceiro contexto que ocorre quase no final da vida dele. Dá-
se conta de uma coisa e até diz isso em algumas entrevistas: que vai ter mais

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cuidado quando escrever livros. Tem interesse em socializar, comunicar a
produção do saber, mas percebe que às vezes, no lugar de produzir saber,
está gerando apenas opinião. O que ele chama de produção de opinião é
aquela coisa superficial, quer dizer, se ele trabalhou a H istória da Sexuali­
dade e anunciou uma série de coisas que ele vai fazer a pôster iori e demora
oito anos para fazer, então tem muito tempo, muito trabalho para construir
isso que ele anunciou. A leitura disseminada dessas coisas produz não o que
ele chamaria de saber, mas o que ele chama opinião. E também slogans,
idéias truncadas, várias coisas que não são suficientemente digeridas pelos
leitores e pesquisadores de ocasião ou que não permitiram aos que leram
uma compreensão mais sensível que inclusive interferisse nas iniciativas de
vida do leitor. Isso não vai gerar saberes, vai gerar reafirmações, citações
daqui e dali, e não o que deveria: novas pesquisas, iluminadas pelo farol
metodológico que Foucault nos põe à disposição. Ele ficava colérico, quan­
do ouvia tanto comentários favoráveis quanto desfavoráveis, mas que não
diziam nada do que ele dissera.
Foi capaz de, quando estava na Tunísia, dizer aos estudantes, com toda a
paciência do mundo: “Paul Ricoeur veio aqui, disse uma porção de coisas
que, a partir do meu ponto de vista e dos meus estudos, é completamente
errada. Então vamos ver tudo o que ele disse”. E fez uma síntese perfeita de
tudo o que Paul Ricoeur dissera para os estudantes, e depois afirmou: “Ago­
ra eu vou desmanchar tudo isso”.
Ele é o mesmo Foucault que muitos anos mais tarde, quase no final da
vida, encontra um estudante marxista que lhe solicita uma palestra sobre Marx;
sem nenhuma paciência, Foucault reage negativamente.
A n a : Oly, eu ainda não compreendi bem a noção de acontecimento em
Foucault.
O ly: E, isso é uma coisa da qual a gente falou bastante nas aulas anterio­
res, mas eu reconheço que é uma coisa difícil, que talvez eu não tenha conse­
guido transmitir para vocês de uma forma compreensível.
Quando a gente trabalhou aquele esquema, falei de continuidade e
descontinuidade e tentava referir-me a As Palavras e as Coisas. É que
Foucault vai se dando conta de que há mudanças nas regras do jogo para a
enunciação de verdade, que rompem com o saber anterior, produzem uma
ruptura com o que era aceitável dentro de um período histórico anterior, em
um determinado local. Isso parece que acontece subitamente sem uma razão
precisa, a não ser condições de possibilidades, que depois do acontecimento
surgir, é possível reconhecer que esses apriori históricos poderiam dar mar­
gem a inéditas ocorrências. Então por isso ele não admite a idéia de continui­

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dade histórica sob forma de causas-efeitos, essa linearidade tão comum nos
discursos históricos.
Inclusive, quando ele estuda a construção da subjetividade, ele vai se dar
conta que essa forma de pensamento linear é típica de um certo período em
que o pensamento atua dentro de uma lógica de séries que se desdobram ao
infinito. Mas há outros momentos, outras situações, em outros locais, em
que a racionalidade que informa o jeito de pensar das pessoas não é mais
linear. E isso não significa evolução ou involução, mas uma profunda ruptura.
A essa modificação ele chama de acontecimento. Não quer dizer que acon­
tecimentos não se dêem em nível bem localizado e diminuto, mas o sentido é
o mesmo: provoca descontinuidade no âmbito do saber e do poder. Mas
aquelas grandes rupturas ao nível de organização dos grandes enunciados
de verdade, que fazem mudar completamente o que significa estudar os se­
res vivos, as riquezas, a linguagem, as filosofias, por exemplo, essas também
acontecem subitamente e seus efeitos não podem ser exatamente datados.
O esquema “Saber Clássico, Moderno e Contemporâneo” analisa a filosofia
- as idéias - , as riquezas, a linguagem e os seres vivos. Foucault reconhece
depois que havería coisas muito interessantes para serem analisadas no nível
dos acontecimentos como a psicanálise, por exemplo. Certas práticas com
procedimentos muito específicos de poder, que não foram incluídas por ele
nas pesquisas.
Raquel. Como Foucault vê a questão do intelectual e da formação das
consciências?
/ t
Adir (citauma frase): “E preciso livrar-se do sujeito constituído e livrar-
se do próprio sujeito” . Seria a única condição de explicação para o que
acontece? O que é, então, esse sujeito constituído?
Oly: A questão do sujeito constituído é uma base da analítica de Foucault.
Desde muito cedo ele vai se dando conta de que o “sujeito histórico” do
marxismo não cabe no seu esquema de pensamento porque não dava conta
de algumas perguntas instigantes. Com o advento da sociedade disciplinar, e
daquilo que nós vimos aqui no quadro de /Is Palavras e as Coisas sobre a
“invenção do homem” - onde Foucault diz que as ciências humanas inventa­
ram o homem - ele reconhece que o homem, a individualidade, cada um de
nós, somos sujeitos construídos, feitos individualidades na sociedade disci­
plinar. E nós nos reconhecemos como tal e desejamos esse reconhecimento
pelos demais. O homem da sociedade disciplinar requer identidade, uma
filiação. ' ' " ~
Um exemplo disso que eu usava hoje à tarde com um grupo de estudo.
Explorava uma pergunta assim bem simples: “Quem você é?” É como eu

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estar indo pela rua e alguém vem passando por mim e a primeira idéia que me
vem é de que o transeunte é um homem. Você se reconhece como homem?
Sim, certo, ele é homem! Foucault afirma ser esta identidade subjetivada
uma construção histórica, porque, quando ele estudou a Grécia lá do
século 6, quando se perguntava para um transeunte quem ele era, ele se
reconhecia como um cidadão ou como um escravo. Ele não se reconhecia,
inicialmente, como um homem, sujeito de sexualidade. Um escravo é um
objeto de pertencimento e não é um cidadão na Grécia Clássica. Ou, se for
uma mulher, por exemplo, na Grécia Clássica ela se reconhece como um
objeto de pertencimento do cidadão. Um objeto utilizado para a reprodução
e para a construção da vida doméstica. Essa é a constituição do sujeito da­
quela época, e o fato do sujeito se reconhecer com uma identidade é resulta­
do de uma construção alheia a ele próprio. Ou seja, você não nasceu ho­
mem, nem eu nasci mulher. Nós fomos feitos: você, homem, e eu, mulher.
Assim, se nós estivéssemos na Grécia antiga, eu teria sido construída objeto
de pertencimento de alguém, e você teria sido construído cidadão, seria re­
conhecido e se reconhecería como tal.
Adir : O que é essa “força cósmica” que cria, por exemplo, essa primeira
definição do que seja homem ou seja mulher? Que estatuto é esse? Quem
cria esse enunciado?
O ly: É uma construção de verdade que se dá em função das relações de
saber-poder da época. A sua identidade de homem, nessa época que nós
estamos vivendo, se faz por uma série de indicadores, atributos nos quais
s você se reconhece e nos quais eu reconheço você. Então essa identidade é
uma identidade construída, afirma Foucault. Esse sujeito da sociedade disci­
plinar é um “sujeito sujeitado”. É claro que esse sujeito sujeitado, no âmbito
das relações de poder, pode desenvolver relações de poder de dominação
ou relações de poder de resistência. Essa individualidade que constitui o su­
jeito é uma individualidade construída, não é uma individualidade apriori.

A dir: E que pode ser modificada pelo próprio sujeito construído?


Oly : Pode ser modificada pelo outro ou por ele mesmo. Mais tarde,
Foucault vai desenvolver outros instrumentos metodológicos de pesquisa que
não são nem arqueológicos nem genealógicos, mas fazem parte de um outro
instrumental chamado analítica. Nessa analítica ele vai trabalhar isso que
você está chamando a atenção agora, ou seja, onde, na construção da sub­
jetividade, existe espaço para criar liberdade.
Silvia : Eu queria saber isso agora, essa seria a sua primeira identidade.
Por exemplo, antes de perceber você passar, a identidade sexual iria antes

102
de qualquer outra? Quer dizer, eu percebería primeiro que é homem ou mu­
lher, antes de perceber se é negro, se é pobre, se é índio?
O ly: O sujeito de sexualidade é uma coisa que nasce com o cristianismo.
Vai sofrendo modificações, mas do século 16 para cá, e principalmente do
século 19 em diante, e mais do que nunca hoje, o sujeito se constitui e é
constituído sujeito de sexualidade. Foucault chama atenção de que nunca se
lidou tanto em sexo. Existem proibições, um sem-número de proibições que
coexistem com um falar sem parar sobre a sexualidade, sobre sexo. Então
tudo indica, pelo menos na leitura de A História da Sexualidade, que, antes !
de qualquer coisa, o sujeito seja reconhecido e se reconheça como sujeito
de sexualidade. Então, no caso, homem, mulher, bicha, travesti etc.
E um sujeito sujeitado enquanto alvo de dominação e alvo de reconheci­
mento de si mesmo, com uma identidade que passa por saber o que é ser
mulher, por exemplo. É se vestir de determinada maneira, casar, ter filhos,
alguém que se relaciona sexualmente com o sexo oposto; nela há um lugar
de erotização determinado que está invariavelmente no meio das pernas, e
depois, mais modemamente, vai se espichando e toma conta do corpo todo.
Isso é ser mulher?
R ute . Eu lembrei agora da Emma Goldman. Ela dava uma descrição
feminina de mulher em que não entrou nenhuma dessas coisas que você
colocou, e ela não precisou dizer que não se sentia mulher, ela só dizia que
era mulher e não entrou em nenhuma dessas considerações. Então, naquele
momento, naquele espacinho, a Emma era uma pessoa completamente fora
da trama histórica do seu tempo. A Emma Goldman é uma anarquista da
década de 20 e para mim é um exemplo bom, porque uma mulher, na descri­
ção da Oly, pode ser qualquer uma de nós, seria então um sujeito sujeitado.
Assumir ser mulher seria ser uma dessas coisas, mesmo que efetivamente
não seja dessa forma, mas ela acaba se descrevendo assim. O exemplo da
Emma é o que daria de um sujeito livre, em contraposição ao neologismo da
Oly. Quando a gente se bateu com essa expressão aqui, ela apareceu com
essa outra, para dar um conforto para nós, para entendermos melhor essa
coisa. Acho que ela não pensa assim. Então pintou esse sujeito sujeitado que
para nós é a forma mais fácil de entender que esse sujeito tinha uma constru­
ção que não era dele.
Oly: A história da Emma... A Rute trouxe elementos do tipo: ela se reco­
nhece como mulher, mas não a mulher sujeito sujeitado construído dentro da
épistémè da época. Ela se reconhece como mulher, mas ela não tem e não
quer ter filhos, quando a maternidade determina o estereótipo de mulher. Ela
não se casa e convive com três amantes que ela ama e respeita politicamen-

103
te. No entanto, nenhum dos três amantes dorme com ela na sua cama. Nos
discursos sobre feminismo ela trazia estes elementos. E isso na década de 20
do século 20.
Essa máscara de mulher, na qual Emma Goldman se reconhece, é uma
mulher que ela cria, máscara inédita, não disponível, pronta, nas prateleiras
da vida da época na qual Emma vivia. Então é um “espaço de liberdade” que
ela cria, um espaço onde a subjetividade dela, mulher, não está construída no
“modelito” da época. Ela não responde ao “modelito” que é mais ou menos
aquele que eu descreví inicialmente. E o que é principal, ela não se deixa
intimidar, não põe em dúvida a sua feminilidade, por pensar e viver um “ser
mulher” à sua maneira. Ela cabe na figura do estereótipo epocal, mas não se
confunde e sai em busca de uma máscara reconhecida, institucionalizada, na­
turalizada e que possa servir nela. Não, ela se afirma mulher do seu jeito. Isso
em 1920, imaginem o que representava! É muito forte! Mas não foi a única.
Essas libertárias maravilhosas que pensavam/pensam e agiam/agem diferente
do até então pensado/vivido existem e são muitas, famosas ou não, vivendo
o que pensam e sentem ou com potencial para tal. Emma Goldmann sempre se
disse anarquista e suponho que, se Foucault e ela fossem contemporâneos,
manifestariam uma afinidade intelectual ímpar. Seriam amigos, sem dúvida.
Adir. O que seria, por exemplo, a Emma Goldman para o Foucault, ela
continua sendo um sujeito sujeitado, não existe o sujeito...
O ly: Foucault, que eu saiba, nunca se referiu a ela ou a outras libertárias
famosas.
Adir Sim, mas nesse exemplo em que ele coloca: acabar com o sujeito
constituído é acabar com o sujeito. Que análise você faz disso aí, sem sujeito,
por exemplo, seja ele sujeito construído, seja ele sujeito que se constrói.
Oly : E sem sujeito histórico, mas com a inegável possibilidade de esca­
par dos assujeitamentos e inventar para si espaços de liberdade.
E agora, também respondendo àquela pergunta da Raquel sobre a for­
mação das consciências: esse sujeito que desenvolve uma “consciência his­
tórica”, capaz de transformar o mundo, segundo a perspectiva marxista.
Decididamente não é esse o caminho que Foucault trilha. Ele reconhece,
antes de mais nada, que esse sujeito é sujeitado, porque é construído, é
efeito de poder. e não precursor ou fimdante. Sua individualidade é um resul­
tado do exercício de poderes e saberes precisos e eficientes nele. Ele pode
reagir? Claro! Especialmente se, nas pegadas de Foucault, ele também con­
siderar que identidades construídas para servir às relações de poder-saber
de dominação são constantemente “grudadas” nele.

104
No nível das relações estratégicas, da batalha, ele pode realizar, produzir
efeitos de poder de resistência. E no nível da própria subjetividade, ele pode
criar espaços de liberdade. E pensar diferentemente, viver diferentemente,
não assumindo como naturalmente suas as identidades “grudadas”. E não
estando nem um pouco preocupado com como o rotulam, muito menos com
rotular-se ou enquadrar-se, identificar-se com atributos de identidade
naturalizados, institucionalizados, espécie de prateleira de máscaras prontas
para vestir de acordo com a ocasião. Eu posso complementar, dizendo que
conscientizar implica vestir e fazer vestir a máscara de transgressão instituída
e prevista (com o perdão de Paulo Freire, meu orientador de tese de douto­
rado em Filosofia e História da Educação, com o qual aprendi a arte do
diálogo, que aqui realizo com vocês, mas de quem me neguei a aprender
a formar consciências libertadoras).
A gente trabalhou os instrumentais da arqueologia, mas não chegamos a
discutir o da genealogia. A formação ideológica é bem típica daquilo que
Foucault nega, ao afirmar a força estratégica para viver e contaminar a vida
com espaços de liberdade.
A genealogia é o estudo das relações e diagramas de poder, ou seja,
como funciona, se exerce, circula, tanto poder de dominação como de resis­
tência. A genealogia vai sendo constituída através das pesquisas: em Vigiar e
Punir e História da Sexualidade I. a vontade de saber, onde Foucault vai
construindo ferramentas genealógicas. Mas, ao mesmo tempo em que ele
vai construindo outros instrumentais, ele não deixa de lado aqueles que se
encontram à sua disposição na arqueologia. Então ele acaba se confrontan­
do com os instrumentais marxistas porque eram os que estavam mais dispo­
níveis no mundo intelectual que se considerava resistência por excelência: as
múltiplas determinações, as ideologias, as contradições; categorias, enfim,
que de alguma forma nós conhecemos, porque a tradição intelectual acadê­
mica se refere a elas constantemente.
Algumas vezes a gente se refere a essas categorias, mas não as utiliza
como instrumental para pesquisar e produzir saber. Temos uma herança mui­
to pobre de academia, que nos faz repetir o que outros disseram e não pro­
duzir saber pesquisando e utilizando as pegadas dos teóricos que preferimos
para orientar a formulação dessas pesquisas, ou seja, referenciá-las meto-
dologicamente. Uma coisa é repetir, por exemplo, o que Foucault disse ou o
que qualquer outro chamado clássico de um pensamento tenha dito. Isso não
tem nada a ver com produção de saber, utilização de ferramentas produzi­
das por um certo discurso de verdade para produzi-lo. Quem se sente bem
com os instrumentos que o marxismo oferece, deve produzir saber se utili­
zando deles nas suas pesquisas. Repetir o que os clássicos marxistas dis­

105
seram é tão pobre quanto repetir o que o Foucault disse ou qualquer outro
intelectual de renome tenha dito. Isso restringe a possibilidade de produção
de saber de cada um de nós e deixa a pesquisa e o estudo reduzidos a
consulta bibliográfica no campo teórico já produzido.
Aqui, o que eu tento fazer é oferecer “chaves” para quem desejar usá-las
na produção de saber. Usar a dialética é tão eficaz para a construção de uma
política de verdade quanto usar genealogia, arqueologia e analítica foucaul-
tianas. Mas eu disse “usar”, e não repetir simplesmente “os acontecimentos
são resultados de múltiplas determinações” [algumasgargalhadas], Não é
para rir, é para advertir que o entendimento da história como múltiplas deter­
minações, mediação, hegemonia etc. é para usar, não para sair por aí repe­
tindo simplesmente, como são para usar em domínios de objeto específico
as ferramentas foucaultianas. Não afirme que é porque Foucault disse. Seria
ridículo, e eu seria péssima professora. Ou então dizendo que a única possi­
bilidade de ler a realidade é a partir do que Foucault disse.
Para dar veridicção ao que dizemos, podemos nos valer das palavras de
Foucault, que, por ter pesquisado muito a respeito de algo que nos interessa,
da forma que escolhemos, toma-se, por assim dizer, um cúmplice estratégico
para a verdade que vamos produzir. De resto, ou nosso estudo desemboca
em opinião apenas, ou em saber.
R aquel: Um exemplo disso seria falar do preso da penitenciária ou ir na
penitenciária fazer pesquisa.
Oly . Pode-se repetir sobre o preso a partir daquilo que aqueles que
estudaram os presos falaram. E consulta bibliográfica com a qual aprende­
mos muitas coisas, obtendo informações que provavelmente não tínhamos
antes. Talvez ir na prisão e usar algumas ferramentas que achamos interes­
santes para trabalhar, aí se caracteriza a pesquisa e se abre espaço para a
produção de saber.
A utilização da genealogia, por exemplo, permitiu a Foucault a produção
de um saber novo que desestabilizou os saberes correntes, como dar-se
conta da inexistência de um sujeito fundador (o precursor) ou o sujeito histó­
rico (classes fundadoras, tais como a burguesia, o proletariado). Agora há
pouco a gente estava discutindo por que ele não pode admitir o sujeito fun­
dador seja a partir de uma pessoa ou de uma classe social. Teria que admitir
o sujeito como sujeito histórico, não como sujeito sujeitado. Ele teria que
admitir a classe (a burguesia, o proletariado) como sujeitos históricos e con­
siderar que as individualidades não são construídas, que elas, conscientizadas,
transformam o mundo.
A trajetória da investigação foucaultiana fez com que ele admitisse que o
homem virou individualidade porque foi inventado pelas ciências humanas do

106
século 19y tratado como indivíduo pela disciplinação do diagrama de poder
disciplinar e construído sobre o lastro de identidades definidas historicamen­
te por obra da subjetivação moderna. Também o levou a surpreender a in­
venção do homem como sujeito de sexualidade, ao lado do advento do cris­
tianismo. /
Então a gênese não está no sujeito. Ele é efeito das relações de poder
que segregara multidões confusas e difusas, confinara os diferentes, classifi­
cara-os, fazia-os confessar (como insiste em continuar fazendo), para extrair
deles saberes, organizando-os em domínios de objetos disciplinares de co­
nhecimento, os quais legitimam um tipo de saber hierárquico e funcional que,
em instituições educativas por excelência, tais como escola, caserna, fábrica,
asilo, hospital, clínica etc., não cessa de subjetivá-los na medida certa do
diagrama de poder de dominação do momento e da sociedade que vivemos.
Ao ponto de, sem que os sujeitados se dêem conta, tê-los metamorfoseado
em dados para o saber e amostras para o poder, ou seja, tê-los eliminado
como indivíduos, para regular vida e morte de todas as dividualidades neles.
Mas também o fez perceber que, a partir da disciplinação, tanto pode funcionar
a docilidade e a utilidade, como a transgressão às instituições, normas, re­
gras e tudo mais que hierarquiza; o controle tanto pode gestar a necessidade
e o desejo do gerenciamento de si e dos outros, do policiamento, da delação e
do medo generalizados, criar novas e híbridas formas de vida e de morte, como
pode ser sabotado e sujeito a clivagens, em que espaços de liberdade e
vacúolos de silêncio se espraiam pelo tecido social, rindo alegremente.
Adir. Quem inventou o cristianismo?
Oly: Foucault não perguntaria quem inventou o cristianismo porque ele
não admitia o sujeito fundador, mas o que aconteceu que permitiu que o
cristianismo fosse inventado. Aí reside uma outra diferença de Foucault em
relação ao marxismo. Ele faz as perguntas de maneira diferente. A
problematização é outra.
Sílvia: Eu só não entendi bem a diferença entre esse sujeito “sujeitado” e
o “histórico” . Porque o sujeito sujeitado se cria na trama histórica, mas o
sujeito histórico também é sujeito da trama histórica.
Oly : Esse sujeito histórico seria sujeito de uma classe, dominador ou
dominado. Foucault não admite que o poder esteja localizado nessa ou na­
quela classe, ali ou aqui. Ele só admite relações de poder. E ele diz mais: o
poder também vem de baixo. Lembram do exemplo hipotético que eu men­
cionei do professor em busca de uma vaga, dependendo da análise dos co­
legas de departamento? Naquele cenário se percebe que o poder vem de

107
baixo: da correlação de forças entre os colegas se decidiría o destino do
professor pleiteante à vaga, e não das decisões do Ministério da Educação,
da Reitoria ou de qualquer poder central.
Eu estava utilizando os exemplos da maneira como Foucault utiliza. Ele
faz uma pesquisa bem grande a que dá o nome de A Vida dos Homens
Infames. Nessa pesquisa, ele vai atrás de arquivos, busca efeitos de poder
de um acontecimento que se chamou lettre de cache. Eram cartas, no século
17,18, que um indivíduo “infame” (no sentido de não ter fama) escrevia ao
soberano denunciando crimes de um outro infame e clamando ao soberano o
encarceramento ou sentenciamento do denunciado. Isso se chamava lettre
de cache. E então, o que acontecia? Uma mulher^pessoa comum do povo,
por exemplo, podia escrever ao rei: “Imploro a Vossa Majestade que encer­
re meu marido na Bastilha porque ele bebe, me maltrata e rouba” . O sobera­
no resolve atender à súdita infame e manda acorrentar o marido dela na
Bastilha. Se ele não fugisse, é bem provável que morresse. Foram relações
de poder de baixo que produziram um certo saber, que nas mãos do sobera­
no determinou a condenação de alguém.
E agora, na atualidade? O poder continua vindo de baixo? Não existe
lettre de cache nem o poder de tirar a vida nas mãos de um soberano. Mas
tem o psiquiatra e o hospital psiquiátrico. Aquela esposa vai falar com o
psiquiatra e diz a ele que não sabe mais o que fazer com o marido. Ele bebe,
rouba, está prejudicando a educação dos filhos do casal. E o psiquiatra man­
da trazer o marido para consultar, trabalha com ele vários meses e conclui
pelo seu internamento na clínica, em função de uma crise depressiva violenta
que acomete o psiquiatrizado. A esposa assina, e o processo de tratamento
intensivo culmina com o suicídio do paciente e o alívio da família enlutada.
Exemplos como estes Foucault vai buscar nos documentos que sinali­
zam essas situações: histórias localizadas, pontuais, específicas, dentro da
história de longa data, desde muito longe no tempo, no Ocidente. Mas ele
se utiliza de exemplos dessa natureza para mostrar que o poder se dá nas
relações e o poder vem de baixo^São todas essas micro-relações, rela­
ções pequenas de poder de dominação, e também de poder de resistência,
porque para cada dominação existe uma resistência. São essas relações
pequenas, de baixo, que dão todo um substrato para que o poder maior se
exerça e funcione com eficácia.
Fátim a. Esse tipo de análise se aplicaria bem como no caso do massa­
cre da Candelária, a morte dos meninos de rua, e o caso da esposa? O caso
da esposa é um caso individual, mas os meninos aparentemente foram
injustiçados, massacrados e, à primeira vista, pela polícia. Cabería então
essa análise: por que foram massacrados? Como é que a gente consegue

108
fazer uma análise a partir do olhar de Foucault para explicar a morte dos
meninos de rua?
Oly: Aí tem que trabalhar a questão da polícia atuando como segurança
necessária, desejável, construção do século 20; a questão dos meninos, a
guerra de todos contra todos, o racismo de Estado funcionando. Talvez
a gente possa conseguir ver como Foucault entende isso, explorando um
artigo que escrevi, “Morreu, acabou”. Eu usei uma expressão marcante quan­
do houve um dos últimos massacres em um dos morros. O assessor de
imprensa do secretário ficou irritado com a insistência dos repórteres e res­
pondeu: “Pronto! Morreu, acabou!”.
Eu tento fazer uma análise do que, para Foucault, é racismo de Estado.
Esse exemplo que você coloca me parece que cabe numa perspectiva de
J racismo de Estado, melhor do que de micro-relações de poder em funciona­
mento. Isso acontece como estratégia de regulação de população. Esse
genocídio mostra o lado espetacular da sociedade de controle, funcionando
no sentido de mostrar exemplarmente o banimento desse tipo de gente peri­
gosa (meninos de rua). Nós ainda vamos discutir a questão relacionada aos
genocídios das populações. Isso, no pensamento de Foucault, está vincula­
do a uma tecnologia de poder da sociedade de controle.
Quanto à repressão (força de proibição), Foucault trabalha muito pouco
e por pouco tempo com a idéia de repressão. Logo em seguida ele vai tra­
balhar de uma outra maneira. Então elevai dizer que o poder não reprime, o
poder constrói. O poder produz efeitos, produz saberes, por isso ele diz que
o poder é positivo. Não que ele seja bom. O poder é positivo porque ele
produz efeitos; ele não proíbe, ele produz. Foucault diz: “Nem ideologia nem
repressão, que seriam forças de proibição”. Mas como, historicamente, se
produzem efeitos de verdade nos discursos e efeitos de poder nas relações?
Adir: Como é que ele denomina, por exemplo, o resultado depois... E as
ações, por exemplo, de repressão, mesmo os enfrentamentos com a polícia.
Como é que ele chama isso?
Oly : Ele vê isso como efeito de poder. Quando há agressão aos sujeitos,
isso é efeito de poder. Não que o poder esteja localizado no policial - o
policial é dono do poder - , não é isso, mas mil condições vão sendo criadas
e constituídas para que o indivíduo policial se sinta na obrigação de agredir.
Então, Foucault, ao invés de trabalhar com ideologia e repressão, vai traba­
lhar com “efeitos de verdades” nos discursos e “efeitos de poder” nas rela­
ções.
Finalmente, nem dialética, nem semiologia, mas análise em termos de
desenvolvimento de táticas e estratégias. Deleuze diz, quando faz análise do

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w m /m uu uw i u u u i u u , que eie e um cartógrafo, além de ser um arqueólogo. É
cartógrafo porque examina um campo de batalha onde forças se articulam,
onde relações de poder, de dominação e de resistência^ circulam constante­
mente. Ele faz a cartografia dessas estratégias, dessas relações, dessas táti­
cas, e isso ele faz na genealogia. Como ele enxerga a coisa enquanto cartógrafo,
nas relações de poder ele não vai trabalhar com a dialética, porque nessas
cartografias está presente o acaso, o aleatório. Não dá para prever o arranjo
das forças, a modificação na direção dos vetores. Inclusive ele se utiliza, às
vezes, de uma expressão deNietzsche: “Deus joga dados, ao acaso” .
Foucault vê batalhas se desenrolando. São grupos organizando táticas,
estratégias, avanços, recuos, movimentações. Não dá para calcular as resis­
tências que ocorrem porque as táticas de resistência podem ser extremamen­
te originais. E para cada diagrama, para cada composição, uma diferença
tem que ser inventada. E muito difícil prever desfechos, enquanto a dialética
descreve a tese, a antítese e a síntese.
A semiologia também não dá conta do que Foucault quer trabalhar. Ela
se reduz à arte da comunicação, da interação, do consenso. O que Foucault
vê é uma luta onde ou se ganha ou se perde. Não há consenso.

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