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REGINALDO PEREIRA

GUILHERME AUGUSTO DE TONI

DEMOCRACIA E MEIO AMBIENTE: DILEMAS QUANTO À


ISONOMIA E ISEGORIA AMBIENTAIS EM DINÂMICAS
DECISÓRIAS PARTICIPATIVAS
Lages - 2021
Copyright © by dos autores organizadores

Reginaldo Pereira
Guilherme Augusto de Toni

Revisão ortográfica
Maria Eduarda Gunther

Projeto gráfico, edição, diagramação, logo design e capa


Érico Lang

____________________________________________________
PEREIRA. Reginaldo; DE TONI. Guilherme Augusto. Democracia e meio
ambiente: dilemas quanto à isonomia e isegoria ambientais em dinâmicas
decisórias participativas. Lages/SC: Editora Biosfera, 2021.
344 p.
ISBN: 978-65-88955-08-6 (físico)
ISBN: 978-65-88955-09-3 (digital)

1. Direito 2. Título
CDD: 340
____________________________________________________

Editora Biosfera – Grupo Safira – CNPJ 30.208.058/0001-96


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DEDICATÓRIA

A quem amamos e a quem tem apreço pela democracia.


APRESENTAÇÃO

Escrito a quatro mãos, o livro é resultado de nossas pesquisas sobre a


invenção democrática e as possibilidades e limites da democracia
participativa.
Escolhemos o ConCidade de Chapecó para verificar um dos dilemas da
participação: quem e como fala, quem e como considera o meio ambiente em
questões relativas à gestão da política de desenvolvimento urbano.
Desejamos uma excelente leitura.

Os autores.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................13

1 A INVENÇÃO DA DEMOCRACIA................................................17
1.1 A democracia como invenção e a invenção da democracia..........................17
1.1.1 A invenção da democracia........................................................................20
1.1.2 A democracia de assembleias ateniense..................................................24
1.1.2.1 As instituições democráticas de Atenas e alguns de seus
instrumentos....................................................................................................29
1.1.2.2 O político na democracia ateniense......................................................34
1.1.2.2.1 O labor................................................................................................41
1.1.2.2.2 O trabalho..........................................................................................43
1.1.2.2.3 A ação.................................................................................................45
1.1.2.3 A dimensão do político na democracia ateniense.................................49
1.1.2.3.1 O político e a ação...............................................................................50
1.1.2.3.2 O político, o poder e a liberdade para a ação......................................54
1.1.2.3.3 O político e a organização social de Atenas........................................59
1.1.3 A democracia moderna............................................................................65
1.1.3.1 O político e os pensadores medievais cristãos e do Islã.........................67
1.1.3.2 Experiências democráticas europeias protomodernas........................84
1.1.3.3 A invenção da democracia na modernidade ........................................86
1.1.3.3.1 A democracia representativa..............................................................89
1.1.3.3.1.1 A democracia representativa norte-americana...............................90
1.1.3.3.1.2 A democracia representativa na Europa.........................................96

2 A DEMOCRACIA COMO INVENÇÃO: A PROPOSTA


REINVENTIVA DE CLAUDE LEFORT........................................109
2.1 O político na democracia representativa...................................................111

9
2.1.1 Individualismo e centralização da política: a figura abstrata do povo
funcionalizado pela soma de interesses individualistas de cidadãos
representados.................................................................................................118
2.1.2 Despotismo democrático........................................................................131
2.1.2.1 A massificação da sociedade................................................................132
2.1.2.2 A instalação do poder tutelar..............................................................133
2.1.2.3 O despotismo administrativo.............................................................134
2.1.2.4 A servidão regrada, doce e calma........................................................135
2.1.3 A tirania da maioria...............................................................................139
2.2 Desincorporação e totalitarismo: a desintegração da democracia
representativa no nome de Um......................................................................149
2.2.1 Os dois corpos do rei e o lugar vazio do poder........................................155
2.2.1.1 Os dois corpos do rei............................................................................156
2.2.1.2 Do Antigo Regime à Revolução...........................................................159
2.2.1.3 O lugar vazio do poder........................................................................166
2.2.2 A segunda morte da democracia; uma jornada imprevisível cercada de
amigos nada confiáveis rumo ao Arquipélago Gulag......................................172
2.3 A proposta reinventiva de Claude Lefort: a democracia como
invenção.........................................................................................................185

3 ISONOMIA E ISEGORIA AMBIENTAIS COMO DILEMAS DA


PARTICIPAÇÃO NA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA.................191
3.1 Dilemas da participação na democracia participativa..............................191
3.1.1 A (re) invenção da democracia pela participação...................................192
3.1.1.1 Abertura da democracia em Lefort......................................................197
3.1.1.2 Democracia representativa moderna: modelos e limites....................201
3.1.1.3 Democracia participativa como reinvenção da democracia
representativa.................................................................................................211
3.1.2 Democracia participativa.......................................................................213
3.1.2.1 Premissas e requisitos.........................................................................218

10
3.1.2.2 Instrumentos legais e políticos..........................................................220
3.1.2.3 Fortalecimento de sua aplicação........................................................222
3.1.3 Dilemas da participação: quem fala, quem é ouvido?...........................223
3.2 Isonomia e isegoria ambientais: democracia e difusividade ambiental,
democracia e a diacronia ambiental..............................................................225
3.2.1 A isonomia, a isegoria e a participação..................................................226
3.2.2 A isonomia, a isegoria e meio ambiente................................................229
3.2.2.1 A natureza jurídica do meio ambiente................................................233
3.2.2.2 Meio ambiente como direito difuso...................................................236
3.2.2.3 Meio ambiente e os direitos transtemporais (diacrônicos)...............238
3.2.3 Como compreender aqueles que não podem falar................................245
3.2.3.1 Ação política e meio ambiente............................................................248
3.2.3.2 A defesa dos vulneráveis, meio ambiente e deliberação....................252
3.2.3.3 Mecanismos que permitam ao meio ambiente se expressar..............256

4 ISONOMIA E ISEGORIA AMBIENTAIS NAS DINÂMICAS


DECISÓRIAS DO CONCIDADE DE CHAPECÓ SOBRE O MEIO
AMBIENTE...............................................................................259
4.1. O papel do ConCidade na Política de Desenvolvimento Territorial do
município de Chapecó...................................................................................260
4.1.1 A Política de Desenvolvimento Territorial do município de
Chapecó.........................................................................................................264
4.1.1.1 Diretrizes, princípios e parâmetros legais...........................................273
4.1.1.2 Instrumentos e organismos de efetivação e acompanhamento..........275
4.1.2 As dinâmicas decisórias do ConCidade.................................................279
4.2 Metodologia de análise das dinâmicas decisórias do ConCidade............284
4.2.1 Análise de caso.......................................................................................285
4.3 Os direitos difusos e diacrônicos nas dinâmicas decisórias do
ConCidade.....................................................................................................290
4.3.1 Quem fala pelo meio ambiente e futuras gerações................................294

11
4.3.2 A isegoria ambiental no ConCidade......................................................296

REFERÊNCIAS..........................................................................301

ANEXOS....................................................................................321

12
INTRODUÇÃO

Decidir pressupõe a escolha de uma ou algumas entre um número


maior de possibilidades que, se fosse tomada por critérios puramente
aleatórios ou instintivos, não causaria maiores perplexibilidades e não
chamaria a atenção.
A capacidade de ponderar, fazer julgamentos e escolhas, torna o ato de
decidir complexo para a espécie humana. Atribuir os resultados das escolhas
aos desígnios de uma divindade superior ou à sorte é uma boa maneira de
afastar eventuais responsabilidades. Contudo, há momentos da história de
determinada civilização, como o atual, que privilegia a razão como
fundamento decisório.
Se não sobram dúvidas sobre o fato de ser a razão humana, com todas
as nuances que o termo guarda, o guia dos processos decisórios, sobram
controvérsias acerca de seu elemento legitimador e sobre como estes
processos são conduzidos.
Este livro é dedicado ao papel de a população deliberar sobre assuntos
respeitantes à direitos e bens de natureza transindividual e intergeracional e,
que por estas características, ultrapassam os limites dos interesses individuais
de cada pessoa envolvida nos processos.
A obra aborda, a partir de levantamento bibliográfico sobre os
elementos políticos da democracia direta e da democracia indireta, as
possibilidades de o meio ambiente ser ouvido e considerado nas deliberações
do Conselho Municipal de Política de Desenvolvimento Urbano, também
conhecido por Conselho da Cidade – ConCidade, do Município de Chapecó.
O texto está dividido em quatro capítulos.
O capítulo I é dedicado à historiografia das invenções das duas mais
significativas experiências democráticas da humanidade: a democracia de
assembleias ateniense e a democracia moderna.

13
O principal objetivo do capítulo não é, todavia, apenas narrar os fatos
que marcaram o surgimento, o auge e o declínio destes modelos. Busca-se,
também, verificar a dinâmica do elemento político nas sociedades em que tais
modelos se desenvolveram.
A definição do local do político na democracia de assembleias
ateniense é procedida por meio da análise das mais importantes instituições e
instrumentos democráticos daquela cidade.
Elegeram-se as categorias estruturadas por Hannah Arendt: o labor, o
trabalho e a ação, para dimensionar o campo do político na democracia
ateniense.
A escolha de Arendt como interlocutora se deve principalmente ao fato
desta, ao estudar o totalitarismo e verificar o rompimento da tradição
filosófica ter sido levada a pensar o político por meio do resgate de categorias
que haviam sido esquecidas.
Arendt define o labor, o trabalho e a ação em função dos espaços onde
ocorrem: o espaço privado, o espaço público e o mundo comum. Assim, se o
labor ocupa o espaço privado, destinado a suprir somente às necessidades
primárias do animal laborans, a ação é atividade típica do espaço público.
Em Atenas, somente os homens livres, conceito que não se restringia
ao sentido jurídico, mas principalmente ao sentido material (libertos das
atividades cotidianas) poderiam dedicar-se à ação política. Todavia, a
liberdade não lhes permitia optar entre agir e não agir. Todo cidadão ateniense
era impelido a agir diretamente pelo discurso. E mais, as estruturas
atenienses, inclusive as arquitetônicas foram pensadas para possibilitar a
ação.
No capítulo procura-se ainda demonstrar que, se durante a Idade
Média experimentou-se na Europa um verdadeiro eclipse democrático, o
trabalho dos pensadores medievais foi de extrema relevância para o posterior
ressurgimento da democracia, na forma indireta. Além disso, abordam-se as
experiências democráticas europeias protomodernas e o surgimento da

14
democracia representativa moderna nos Estados Unidos da América e na
Europa.
No segundo capítulo são abordados os elementos do político na
democracia representativa e a proposta reinventiva de Claude Lefort.
O político na democracia representativa é tratado a partir das análises
de Alexis de Tocqueville acerca da jovem democracia norte americana e de
suas anotações sobre o Antigo Regime e a Revolução Francesa.
Mesmo reconhecendo na experiência norte americana uma grande e
inevitável revolução, a revolução democrática, Tocqueville não era um
entusiasta da democracia.
A sua origem aristocrata, ao mesmo tempo em que lhe impedia de ser
um fervoroso defensor da democracia, habilitava-o, com base em observações
dos costumes da jovem república norte americana, a empreender uma
minuciosa análise dos defeitos e das propensões da democracia
representativa, com a finalidade de verificar qual o papel que caberia à
aristocracia, neste novo cenário.
As críticas lúcidas de Tocqueville ao modelo representativo de
democracia, por incrível que pareça, permanecem atuais.
Com base em Tocqueville, na primeira metade do capítulo, abordam-
se os elementos do político na democracia moderna: o individualismo e a
centralização da política; o despotismo democrático; o fenômeno da
massificação; o poder tutelar; o despotismo administrativo; a servidão
regrada, doce e calma e a tirania da maioria.
A partir de então, de posse dos elementos que compunham os campos
do político nas principais experiências democráticas da humanidade, é
possível adentrar-se na proposta reinventiva de Claude Lefort.
Como Lefort situa temporalmente a democracia moderna entre dois
fatos históricos: a desincorporação do corpo político do Rei e as experiências
totalitárias, a proposta reinventiva de Lefort é abordada a partir da excelente
obra de Ernst Kantorowicz sobre a teologia política medieval, passa pelo
processo de desincorporação que resultou no lugar vazio do poder, condição

15
sine qua non para a existência da democracia e termina na desintegração da
democracia representativa no nome de Um, com a experiência dos Gulags,
conforme os relatos de Alexandre Soljenítsin.
A perspectiva lefortiana sobre a democracia impõe que se trate, no
terceiro capítulo, da origem da democracia moderna e da necessidade de sua
transformação a partir dos Estudos de Alexis de Tocqueville e de Paulo
Bonavides.
O capítulo denominado “Isonomia e isegoria ambientais como dilemas
da participação na democracia participativa trata das possiblidades e dos
desafios impostos à democracia participativa em lidar com questões
relacionados ao meio ambiente, dadas a difusidade e a transtemporalidade de
tal bem.
No quarto e último capítulo, intitulado "Isonomia e isegoria ambientais
nas dinâmicas decisórias do ConCidade de Chapecó sobre o meio ambiente,
busca-se, por meio da pesquisa de campo, através da análise da composição
do Conselho e do acompanhamento das reuniões do ConCidade de Chapecó,
averiguar se as dinâmicas decisórias do ConCidade permite que o meio
ambiente seja ouvido e considerado como um elemento a ser ponderado nas
tomadas de decisões em seu âmbito.

16
CAPÍTULO I

1 - A INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

No presente capítulo pretende-se iniciar a abordagem acerca dos


elementos formais e materiais da democracia, tendo como fio condutor a
noção de invenção democrática e o fato de que sua essência se encontra
encerrada em sua contínua reinvenção, condição de sua existência e
permanência no tempo.
Como não há um espaço-tempo contínuo democrático – na verdade,
desde que o poder se tornou significativo para as formas de organização das
sociedades, experimentaram-se mais fases não democráticas do que
democráticas – é preciso, para a perfeita compreensão da proposta
reinventiva de Lefort (1987, 1991), procurar apontar, na história dos
momentos em que irradiou de forma mais significativa no Ocidente, as suas
principais características.
Sopesar os elementos das experiências democráticas mais brilhantes,
para então determinar o núcleo duro da democracia, este é o primeiro intento
do trabalho a ser realizado.
Esse exercício passa pela leitura histórica da democracia e de suas
variáveis, no ocidente.

1.1 A DEMOCRACIA COMO INVENÇÃO E A INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

Dentre as grandes criações que podem ser atribuídas à humanidade, a


democracia talvez seja aquela que mais aproxima o homem de sua
humanidade.

17
O perguntar ao outro, ouvir e ser ouvido, para então tomar em conjunto
decisões sobre os rumos, caminhos e desígnios da vida ou, ainda, o fato de
conferir a terceiro eleito a prerrogativa para o exercício destas ações,
constituiu-se, ao longo da história, não somente uma forma de governo, mas,
também, uma maneira de resistência à tirania e à servidão.
A invenção da democracia não se deu de uma única e só vez, tampouco
de uma vez por todas. Talvez, por isso, não possa ser atribuída a nenhum ser
humano, individualmente considerado. Da mesma forma, a democracia não
se esgota em si mesma. A abertura ao futuro e à incerteza lhe são
companheiras de longa jornada, sem as quais estaria condenada à morte. O
devir democrático planta os pés do homem no chão, mostrando-lhe a sua real
significância frente à realidade que o cerca.
A democracia como invenção – recorte temático que possibilita a
proposta a ser realizada a título de uma das bases teóricas do presente
trabalho, qual seja: sugerir a reinvenção democrática para o surgimento de
meios inovadores de tomada de decisões que considerem as variáveis
ambientais como sujeitos decisores, a partir de conceitos operacionais não
necessariamente vinculados aos da democracia moderna, que privilegiem as
incertezas e ausências de promessas do futuro democrático – pressupõe a
abordagem acerca da invenção da democracia no tempo histórico.
O resgate da história da democracia se justifica, para além dos meros
objetivos traçados no projeto do atual trabalho, principalmente pela
constatação de um paradoxo que Finley (1988, p. 17-53) desvenda no ensaio
intitulado “Líderes e liderados”, qual seja: na antiguidade, a esmagadora
maioria dos intelectuais desaprovava o governo popular; hoje a maioria, em
especial, a do Ocidente, tem-na como a melhor forma de governo, a mais
conhecida e a melhor que se possa imaginar. Contudo, uma grande parte
concorda que os princípios que tradicionalmente a justificaram, na prática,

18
não estão funcionando e devem não funcionar, caso se queira que a
democracia sobreviva (FINLEY, 1988, p. 22).1
O longo período em que o termo ficou desaparecido explica em parte
tal paradoxo. A confusão semântica envolvendo os vocábulos democracia e
democrático, desde o século XX acabou esvaziando as palavras de qualquer
valor para distinguir uma forma de governo em especial de outra e
desvalorizando os conceitos, a ponto de torná-los desprovidos de qualquer
utilidade analítica. Além do que, se defensores da teoria elitista da democracia

1 Segundo Finley (1988, p. 17-21): Uma das descobertas mais conhecidas e

divulgadas nas pesquisas modernas de opinião é a indiferença e a ignorância


da maioria do eleitorado nas democracias ocidentais. Em alguns países, a
maioria sequer se dá ao trabalho de exercer seu direito de voto. Parte do
trabalho intelectual sobre o que deveria ser feito acerca da apatia política
guarda ligeira ressonância com pensadores antigos. Por exemplo: a atração de
movimentos extremistas sobre pessoas de baixo nível intelectual ou menos
favorecidas economicamente, percebida por Lipset (1967, p. 108) ecoa as
objeções de Platão quanto ao papel dos sapateiros e comerciantes no poder
político decisório. Aristóteles (1997, p. 308) afirma que a melhor democracia
é a que se desenvolve em um Estado de agricultores, em função de estarem
mais ocupados com atividades domésticas e terem de percorrer maiores
distâncias para se reunir, o que dificulta e diminui a frequência das
assembleias. Da mesma forma W. H Morris Jones, entende que a apatia
política é um sinal de compreensão e tolerância da diversidade humana e de
certo modo é benéfica para a vida política, por se constituir em força de
oposição relativamente eficiente para os fanáticos que são o verdadeiro perigo
para a democracia liberal. Ao contrário de Platão e de Aristóteles que, a
princípio, rejeitavam a democracia, Jones e Lipset são seus defensores. O que
assemelha os pensamentos dos filósofos da antiguidade ao dos críticos da
atualidade relaciona-se à forma de exercício da democracia. Atendo-se a
Platão e Lipset, ambos entregariam a política para especialistas – Platão para
filósofos de rigorosa formação; Lipset a políticos profissionais,
comprometidos com a burocracia. Embora concordem que a iniciativa
popular nas decisões políticas é desastrosa, que o governo do povo, para o
povo e pelo povo é ingênua demagogia, a diferença entre os dois tipos de
especialistas revela visões antagônicas sobre o objetivo da política. Platão é
totalmente contrário ao governo popular; Lipset o aprova, desde que, no
conjunto, haja um componente maior de governo que o diferencie do governo
popular, ou seja, desde que não haja participação popular no sentido clássico.
Por isso, a apatia torna-se um bem político, uma virtude naqueles momentos
em que o povo é conclamado a escolher entre os grupos de especialistas em
pleito.

19
e os estudantes da manifestação e comício contínuo, não obstante as
premissas teóricas a lhes afastar, alegam que estão defendendo a autêntica e
genuína democracia, deve-se considerar não apenas a razão pela qual a teoria
clássica da democracia parece estar em contradição com o que é observado na
prática, mas também por que as diferentes reações a essa observação, embora
mutuamente incompatíveis, compartilham a crença de ser a democracia a
melhor forma de organização política (FINLEY, 1988, p. 24-25).
É especificamente nesse ponto que uma consideração histórica da
democracia pode ser útil, em especial, neste momento, a relativa à experiência
da antiga Grécia.

1.1.1 A INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

Para fins didáticos, pode-se, com base em Manoel Gonçalves Ferreira


Filho (2008, p. 82-99) segmentar a história da democracia em três fases: i) a
dos antigos, em que a ateniense é o grande exemplo; ii) a dos modernos, ou
representativa e; iii) a contemporânea, a apresentar aspectos originais quando
comparada com os modelos antecedentes.
Keane (2010, p. 11-32), divide-a em três grandes modelos: i) a
democracia das assembleias; ii) a democracia representativa e; iii) a
democracia monitória.
Sem pretender precisar o momento histórico e o local onde a
capacidade de se autodeterminar entre iguais se fez pela primeira vez, o que
seria uma tarefa hercúlea e desnecessária – pelo menos para os fins colimados
no presente trabalho – o autor lança dúvidas sobre a noção de que tenha
emergido em Atenas, no século 5 a.C.:
Suas raízes são de fato retraçáveis às inscrições
conhecidas como Linear B do período miceniano,
sete a dez séculos antes, à civilização da Idade
Final do Bronze (c. 1500-1200 a.C.) que era
centrada em Micenas e em outros povoamentos

20
do Peloponeso. (KEANE, 2010, p. 13).

Não é bem claro como e quando os Micenianos utilizaram a palavra


Dāmos para se referir a um grupo de pessoas sem poder que uma vez
possuíram terras em comum ou a palavra Damokoi, para se referir a um
funcionário que age em nome de Damos (KEANE, 2010, p. 13)
Em função de descobertas arqueológicas mais recentes é possível
sustentar que a democracia de assembleia não nasceu na região do Peloponeso
e sim nas terras que correspondem atualmente à Síria, ao Iraque e ao Irã.
Dessa região, o costume de autogoverno popular foi transportado para o Leste,
em direção ao subcontinente indiano e para o Oeste, primeiro para as cidades
fenícias como Biblos e Sidon, chegando posteriormente à Atenas, durante o
Século 5 a.C., onde passou a ser tido como algo exclusivo do Ocidente, que
demonstrava sua superioridade sobre o Oriente (KEANE, 2010, p. 13, 140).
Se, é fácil verificar a influência dos fenícios na introdução da
democracia de assembleias no mundo Grego, menos óbvio é determinar a
forma como estes a adquiriram dos povos da região da Síria-Mesopotâmia,
até, porque, os padrões teóricos ocidentais e modernos tendem a tratar o
Oriente como avesso à democracia (KEANE, 2010, p. 126).
Todavia, por volta de 3000 a.C., ao desbravarem o aluvião formado na
região inferior dos rios Tigre e Eufrates, os sumérios criaram a primeira de
uma nova espécie de sociedade humana: as civilizações ocidentais, tendo lá
construído os primeiros povoados de que se tem notícia (TOYNBEE, 1987, p.
79).
A região era composta por afiliações tribais extensas. Não há muitas
evidências sobre como os povos que a habitavam, viviam (LÉVÊQUE, 1987, p.
24), embora seja claro que eles tinham um vocabulário para descrever as
assembleias e de quanto elas eram indispensáveis para a resolução de
problemas (KEANE, 2010, p. 126).
Se, são parcas as evidências acerca da forma de organização das tribos
da região, o mesmo não se pode atribuir às cidades da síria-mesopotâmia

21
como Larsa, Mari, Nabada, Nippur, Tuttul, Ur, Babilônia e Uruk. Tais cidades
variavam em tamanho de quarenta a quatrocentos hectares, eram, em geral,
situadas no meio de uma zona irrigada e tinham se constituído em centros
comerciais (DELFANTE, 1997, p. 25-29).
A arquitetura dessas cidades possibilitava a convivência lado a lado de
funcionários de alto escalão e de pescadores e agricultores humildes, sendo o
cais do porto o centro socioeconômico (BENEVOLO, 2009, p. 26-29).
As trocas de experiências de vida rural e urbana, propiciadas pela
disposição arquitetônica e pelo fluxo de mercadorias e pessoas, moldavam os
padrões de governo nas principais cidades da Síria-Mesopotâmia. Tensões
permanentes – na forma de processos políticos que decidiam quem conseguia
o que, quando e como – se davam em torno de temas como a propriedade das
terras, o comércio e principalmente, a instituição do reinado (KEANE, 2010,
p. 127).
Tais constatações minimizam as convenções atuais que apontam para
um domínio dos reis nessa região durante o período compreendido na análise.
Evidências arqueológicas deixam transparecer que o poder e a autoridade dos
reis – há 2000 anos antes da experiência democrática ateniense, no mínimo
– eram eficazmente restringidos pela pressão popular de baixo, que se
materializava por meio de cadeias de procedimentos ou instituições
denominadas assembleias (ukkin em sumério e pŭhrum em acadiano), tendo
alguns observadores detectado uma democracia primitiva que florescia em
toda a Síria-Mesopotâmia, em especial na Babilônia e na Assíria, no início do
segundo milênio (KEANE, 2010, p. 129).
As assembleias na região da Síria-Mesopotâmia persistiram por, pelo
menos, mais 2000 anos e, muito embora a escassez de evidências históricas,
pode-se dizer que esta tradição política foi disseminada para o leste e para o
oeste. O comércio fluvial e as rotas das caravanas foram os vetores que
possibilitaram a migração do costume das discussões baseadas em
assembleias para o Ocidente em direção às costas mediterrâneas, que

22
passaram a ser controladas pelos fenícios e, também, ao mundo grego
(KEANE, 2010, p. 140).
O relato dos infortúnios vivenciados por um diplomata egípcio,
chamado Wen-Amon, no porto de Biblos, atual cidade libanesa de Jubayl,
0corridos por volta de 1100 a.C. e a viagem de Mardônio2 pelo leste de do
Mediterrâneo, em 492 a.C. corroboram com a tese de que a democracia não
nasceu na Grécia e, muito menos esteve restrita aos muros de Atenas, muito
embora ali tenha experimentado seu auge – pelo menos enquanto democracia
de assembleias (KEANE, 2010, p. 123, 140).
Apesar de a democracia de assembleias de Atenas ser tida como a
experiência mais relevante de democracia na antiguidade, não obstante ter,
lenta e gradualmente, experimentado o seu ocaso em função da perda de
autonomia das cidades gregas, as quais, após a Batalha de Queronéia, em 338
a.C., passaram a integrar o Império Macedônio (FEIJÓ, 1991, p. 31), a cultura
de assembleias iniciada na Síria-Mesopotâmia foi transmitida aos povos
árabes, tendo, sob a influência do Islã, sofrido mutações as quais, com a
expansão mulçumana em direção à Península Ibérica, acabaram marcando
indelevelmente a democracia indireta, então em gestação na Europa (KEANE,
2010, p. 164-166).
No momento interessa a análise da democracia de assembleias de
Atenas, para então estabelecer os elos entre este modelo com o que se
constituiria quase mil anos após.

2 “Sustentado por um enorme exército e uma força naval maciça, Mardônio,

recém-casado com Artozostra, filha do rei Dario, devastou a costa asiática


através das cidades gregas da Jônia, dirigindo-se para Erétria e Atenas. A
expedição acabou sendo arruinada pelo mau tempo, mas em todas as partes
aonde chegou na Jônia, Mardônio tentou ganhar apoio local depondo todos os
déspotas que ele conseguiu capturar. No lugar deles, estabeleceu o governo de
assembleia popular. Conseguiu, em consequência, ganhar o favor das
oligarquias locais, incluindo até o nobre persa Otanes, cujo elogio à autonomia
por meio de assembleias foi exagerado.” (KEANE, 2010, p. 140).

23
1.1.2 A DEMOCRACIA DE ASSEMBLEIAS ATENIENSE

Muito embora corresponder ao lapso temporal que se iniciou em 2500


a.C. e teve seu término em 250 d.C., a primeira fase da democracia é mais bem
compreendida através de análises acerca da época em que vigorou em Atenas.3
Finley (1988, p. 27), sem negar a possibilidade de outros exemplos
anteriores de democracia, como as democracias tribais ou as democracias da
antiga Mesopotâmia, ressalta a ausência de impacto desses nas sociedades
mais recentes. Além do que, foram os gregos a pensar sistematicamente sobre
política, a observar, descrever e formular teorias políticas.
O muro da escrita, termo utilizado por Rouland (2008, p. 32-35)4, ao
se reportar às dificuldades para o estudo da história do direito em sociedades
ágrafas, dependente de vestígios e de etnografias de sociedades atuais que
apresentam estados similares de organização daquelas já extintas, justifica
também os recortes espacial e temporal, aqui realizados.5

3 De acordo com Keane (2010, p. 17), a primeira fase histórica da democracia


“[...] assistiu à criação e difusão de assembleias públicas. Esse período
começou por volta de 2500 a.C., na área geográfica hoje comumente
conhecida como Oriente Médio. Estendeu-se através da Grécia e Roma
Clássicas e passou a incluir o mundo dos primórdios do Islã ante de 950 d.C.;
chegou a um fim com a propagação de assembleias rurais (chamadas tings,
loedthingi e althingi) pela Islândia, pelas Ilhas Faroé e por outros
ancoradouros situados ao largo da que viria mais tarde a ser chamada Europa.
Exceto pelos momentos brilhantes associados à Escandinávia, à Atenas
clássica e à Roma republicana, todo esse período é usualmente visto como uma
era de trevas de degeneração não democrática.”
4 “A escrita permite uma memorização superior à oralidade (conquanto atrofie

também nossas faculdades: a agenda, acessório indispensável do homem


moderno, é um sinal dessa enfermidade) (ROULAND, 2008 p. 32).
5 Apesar de ter sido inventada na região da Síria-Mesopotâmia, a escrita teria

sido inicialmente utilizada para fins contábeis, além do que, a capacidade de


ler e escrever era limitada em alcance, o que dificultou o relato escrito das
assembleias naquela região, contribuem também para a tenuidade dos
vestígios arqueológicos referentes à Síria-Mesopotâmia: o dogma da
democracia moderna, os caprichos da conservação de registros, a tirania do
tempo, a sorte e a habilidade de escavação e, atualmente, o problema da guerra
na região (KEANE, 2010, p. 134).

24
Dentre os modelos de democracias vivenciadas na Grécia antiga, a que
se pode estudar com mais profundidade é a de Atenas dos séculos V e IV a.C.
Por ter sido a mais fecunda intelectualmente, acabou servindo de base para as
modernas teorias democráticas, estruturadas a partir dos séculos XVIII e XIX.
Os motivos para que, em torno do século V a.C., a democracia aflorasse
em Atenas da forma como ocorreu não são bem precisos, houve contribuições
de vários fatores de diversas ordens, dentre os quais, destacam-se, no
momento, o geográfico e o sociopolítico.
Localizada na península Balcânica, banhada e separada do Oriente
Médio e do norte da África pelo mar Mediterrâneo, da Itália pelo mar Jônico
e da Ásia Menor pelo mar Egeu, a Grécia é formada por uma parte continental,
de relevo profundamente acidentado, o que prejudicava as comunicações
entre os povos que lá se estabeleceram, e por uma parte peninsular, com
muitos golfos e baías que permitem a navegação com terra sempre à vista
(FEIJÓ, 1991, p. 27).
Em uma época de técnica naval precária, os condicionamentos
geográficos explicam a tendência grega de maior integração com exterior, do
que com o interior e a organização política em Cidades-Estado independentes.
Dentre as principais cidades gregas, Atenas pairava tal como uma rã
sentada sobre um rochedo a contemplar o lago a sua frente. O isolamento
geográfico poupou-a, em grande parte, da submissão a governos estrangeiros
autocráticos. O relevo acidentado e o tamanho da região da Ática, cerca de
2500 metros quadrados, desencorajavam a aristocracia ateniense a propostas
concentradoras de poder, dado o tempo necessário para atingir seus limites
(KEANE, 2010, p. 37-38).
No início do século VI a.C., Atenas necessitava de mudanças políticas
e reformas econômicas. A concentração de poder econômico pela aristocracia
e a submissão dos camponeses à condição de escravos, em decorrência do
inadimplemento de empréstimos tomados junto às classes mais abastadas
encontram-se na origem tal demanda. Devido ao aumento de tensão e para

25
prevenir que algum tirano6 chegasse ao poder, em 594 a.C. os aristocratas
atenienses conferiram a Sólon poderes para introduzir uma série de reformas
nas leis vigentes (POMBO, 2012).
Sólon procedeu a vigorosas reformas institucionais, sociais e
econômicas. Na economia, reorganizou a agricultura; dentre diversas medidas
de cunho social, determinou a obrigatoriedade aos pais de ensinarem um
ofício aos filhos, sob pena de não estarem estes obrigados a ampará-los, na
velhice. Sólon libertou todos os escravos e restituiu-lhes também as suas terras
(SOUZA, 2009, p. 74).
No campo institucional e político, conferiu maiores poderes ao povo
(demos), dividindo os cidadãos em quatro classes, de acordo com os seus
rendimentos. Assim, quanto maior fosse o rendimento, maior eram os seus
poderes (e consequentemente maiores os impostos e o serviço militar que
tinham que cumprir). Criou um conselho eleito, de quatrocentos cidadãos,
organizado de acordo com as quatro tribos que constituíam o povo Ateniense;
e cada tribo tinha o direito de eleger cem cidadãos da terceira classe para
constituírem esse mesmo conselho. Os cidadãos mais pobres participavam das
assembleias que deliberavam sobre os assuntos levados pelo conselho dos
quatrocentos. Apesar da inexistência de restrições à participação dos cidadãos
nas assembleias, apenas aqueles pertencentes a uma das três classes mais
elevadas podiam trabalhar para o Estado, e só a mais alta poderia chegar a
arconte. Na prática, estas mudanças continuaram com a Oligarquia, na
medida em que só os cidadãos das classes mais elevadas podiam chegar a
arcontes, e a maioria das decisões importantes eram ainda tomadas no
Areópago, que era limitado aos aristocratas (POMBO, 2012).
Mesmo com as reformas, a crise continuou. Com o abandono do poder
por Sólon, Atenas adentra em um período de anarquia até que, em 561 a.C.,

6 Como acontecera, no final do século VII a.C., com Cilón, que tentara impor
sem sucesso a tirania, tendo sido derrotado por opositores que, mobilizando
os agricultores da cidade contra ele, obrigaram-no a refugiar-se em outra
cidade.

26
um tirano chamado Pisístrato, apoiado pela população rural, ascendeu ao
poder. Dando continuidade ao trabalho de Sólon, reduziu, ainda mais, a
influência da nobreza e aumentou os poderes da Assembleia. Com a morte de
Pisístrato, o poder passou para os seus dois filhos, Hípias e Hiparco (POMBO,
2012).
Hiparco foi assassinado por Harmódio e Aristógiton e, após uma
intervenção dos militares espartanos e a fuga de Hípias para a Síria, surge a
figura de Clístenes, pertencente a uma família de aristocratas locais, os
Alcmeônidas.
As reformas de Clístenes tiveram significativo impacto na vida social e
política de Atenas, tanto que em “A constituição de Atenas”, Aristóteles (1995,
p. 53), indica-as como uma das grandes transformações da história da Ática. 7
Elas compreenderam o estabelecimento, pela primeira vez, de um
exército na cidade, formado de soldados de infantaria muito bem armados e
não oriundos da elite; a instituição de um organismo governante, o Conselho
dos 500 e a concessão de estímulo oficial a uma assembleia independente em
Atenas (KEANE, 2010, p. 40).
Visando o rompimento do antigo sistema baseado na origem familiar
e a afirmação de um novo fator de identificação dos cidadãos, o território,
Clístenes distribui a população da Ática em dez tribos geograficamente
designadas em substituição ao antigo critério gentílico – quatro tribos jônicas,
fundadas em um parentesco, mais ou menos, imaginário (GONSALVES,
2006, p. 20-21).

7 “A primeira transformação, desde o princípio ocorreu quando do


estabelecimento de Íon, mais seus acompanhantes, pois que então, pela
primeira vez, os atenienses foram divididos em quatro tribos e foram
instituídos os baliseus das tribos. A segunda – mas a primeira a apresentar
a conformação de um regime – foi a ocorrida na época de Teseu, o qual
divergia um pouco da realeza. Em seguida, foi a do tempo de Drácon, em que
pela primeira vez foram publicadas as leis. A terceira foi a da época de Sólon,
ocorrida após as dissenções, e com a qual teve início a democracia. A quarta
foi a tirania no tempo de Pisístrato. A quinta, ocorrida após a derrubada dos
tiranos, foi a de Clístenes [...].” (ARISTÓTELES, 1995, p. 51).

27
Se, por um lado, as mudanças objetivavam cortar os velhos laços
familiares da cidade e pôr fim à violência e à conspiração da parte das facções,
por outro, as reformas de Clístenes reconheciam, pela primeira vez, o poder
dos sem poder, a possibilidade de um grande número de pessoas agir em
comum acordo e “[...] que um demos pode exercer iniciativa, pode lidar com
seus problemas por conta própria, sem orientação ou liderança de
aristocratas.” (KEANE, 2010, p. 40).
As alterações promovidas por Clístenes fixaram um novo quadro no
qual se desenvolveria a vida política de Atenas Clássica. “Mais do que uma
transformação, deve-se mesmo falar de uma instauração do político, do
advento do plano político, no sentido próprio, na existência social dos gregos.”
(GONSALVES, 2006, p. 18).
Dois outros personagens foram importantes para a consolidação da
democracia em Atenas: Temístocles e Péricles. O primeiro, ao aumentar o
poderio bélico naval de Atenas e derrotar os persas, impediu que a democracia
fosse extinta, antes mesmo de ter começado. Péricles modificou o sistema
democrático existente, de uma democracia limitada para uma democracia
direta, onde todos os cidadãos podiam participar, independentemente da sua
riqueza ou estatuto social (POMBO, 2012).
Por meio de uma série de leis aprovadas na Assembleia, a partir de 450
a.C., conferiu-se aos cidadãos o poder direto da Assembleia e dos tribunais
populares, onde as decisões eram tomadas por maioria. Foi, também,
determinado o fim do poder de veto do Areópago, tribunal do qual apenas
faziam parte os aristocratas, e que por vezes se constituía em força de bloqueio
às medidas aprovadas na Assembleia pela maioria dos cidadãos (POMBO,
2012).
Atenas viveu praticamente duzentos anos à sombra da democracia,
período no qual experimentou prosperidade e avanço cultural. Muito embora
a ausência de fatores estocásticos externos tenha uma parcela significativa de
contribuição para a manutenção de tal equilíbrio, muito desta estabilidade

28
deveu-se a uma bem articulada rede de instituições e mecanismos
democráticos.

1.1.2.1 AS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS DE ATENAS E ALGUNS


DE SEUS INSTRUMENTOS

Os atenienses criaram espaços públicos de participação – a Ágora8 e a


Pnyx9 –, lançando, dessa forma, a noção de que as democracias requerem
espaços públicos e de livre acesso, onde os problemas comuns devem ser
debatidos e definidos por cidadãos que se consideram iguais entre si (KEANE,
2010, 45).
Na Ágora e posteriormente na Pnyx, se reunia a Assembleia. Após as
reformas de Clístenes, a Assembleia dos politai passou a ocupar o centro da
vida política de Atenas, já que foi alçada a organismo decisório supremo. As
principais funções executivas ficavam a cargo do Conselho dos Quinhentos,
cujos membros eram eleitos por sorteio. Essas duas instituições tornaram
possível a isonomia (a igualdade dos cidadãos perante a lei) e a isegoria (o
igual direito de tomar a palavra e ser ouvido na assembleia) (COSTA, 2010, p.
212).
Finley (1988, p. 31) afirma que a democracia ateniense era direta, em
dois sentidos, pois, ao mesmo tempo em que detinha a palavra final em temas
como a guerra, a paz, os tratados, as finanças, a legislação, as obras públicas,

8 A Ágora era considerada pelos atenienses o ponto central da cidade. Situada


nas áreas superiores de um vale coberto com choupos e plátanos, media
cerca de trezentos metros quadrados e era utilizada para uma diversidade de
propósitos públicos. “[...] os atenienses orgulhosamente assumiam-na como
um grande espaço que pertencia ao público e era compartilhado pelo
público.” (KEANE, 2010, p. 43).
9 Como a Ágora era espaço no qual se realizam, inclusive, negociações, a partir

de determinado período os discursos passaram a ser proferidos em outro


local. Situada sobre um citmo alongado e um declive natural, distante
quatrocentos metros da Ágora, a Pnyx era a plataforma dos oradores. Local
onde a Assembleia se reunia e deliberava (KEANE, 2010, p. 59-61).

29
enfim, em todos os assuntos relacionados com o governo, a Assembleia era
aberta a todo o cidadão, constituindo-se verdadeiro comício ao ar livre do qual
participavam tantos quantos cidadãos, maiores de dezoito anos, que se
fizessem presentes naquele determinado dia.
A Assembleia se reunia frequentemente, no mínimo quarenta vezes por
ano, e as decisões eram tomadas pela maioria simples dos presentes, que
gozavam da isegoria. O fato de não haver intermediação de qualquer aparato
burocrático, com exceção a uns poucos escriturários, escravos de propriedade
da cidade-estado, que faziam os registros necessários, como cópias de leis e
lista de contribuintes inadimplentes, tornava o governo, assim, “pelo povo”,
no sentido mais literal.
Além dos espaços propícios à democracia e das instituições que a
viabilizavam, os atenienses criaram diversos dispositivos para assegurar o
respeito à isonomia e a liberdade da Assembleia como um todo e de cada um
de seus membros.
Os instrumentos de garantia da democracia iam desde o pagamento
por serviços públicos – instituído inicialmente para os trabalhos realizados
junto ao júri e, depois, para o comparecimento nas reuniões da Assembleia –
passavam por novos métodos de incentivo à participação dos cidadãos nos
assuntos do governo, como era o caso dos tribunais do júri 10, pelo sorteio

10 “A heliaia era o tribunal popular que julgava todas as causas, tanto públicas
como privadas, à exceção dos crimes de sangue que ficavam sob a alçado do
aerópago. Os membros da heliaia, denominados heliastas, eram sorteados
anualmente dentre os atenienses. O número total era de seis mil e, para
julgar diferentes causas, eram sorteados novamente para evitar fraudes.”
(SOUZA, 2009, p. 91). Todo cidadão de Atenas com trinta anos ou mais
poderia fazer parte da heliaia. O número de integrantes dos tribunais do júri
variava de acordo com a natureza e o valor da causa a ser decidada: “Para
ações judiciais menores (dike), o tamanho mínimo do júri era de 201
membros; esse número era aumentado para 401 se uma soma acima de
1.000 dracmas estivesse sendo disputada. Para ações judiciais públicas e
maiores (graphe), era comum encontrar tribunais de 1.000 ou 2.000
membros e até (em ocasiões especiais) 2.500 jurados. Ao menos numa
ocasião – o graphe paranomon já mencionado – todos os 6.000 membros
do grupo de jurados foram convocados ao tribunal.” (KEANE, 2010, p. 75).

30
mecanizado, por meio da klerotera11, dos cidadãos que comporiam um
determinado tribunal do júri e compreendiam mecanismos mais sofisticados,
como eram o ostracismo e o graphé paranomon.

11 A kleroteria era uma máquina usada em Atenas para localizar cidadão


imediatamente antes de um tribunal se instalar. Era a última etapa de um
processo maior, planejado para evitar a corrupção e a injustiça para com as
partes litigantes, assim descrito por Keane (2010, p. 75-76): “Todos os
cidadãos que haviam sido aprovados num teste eram elegívies ao serviço do
júri. Esse teste certificava pontos tais como quem eram seus pais e avós, se
haviam cumprido seus deveres militares e pagado seus impostos e se
mostravam respeito pelas divindades. O conjunto dos membros do júri era
decidido apenas no dia do julgamento – a fim de minimizar a chantagem e
a corrupção. Cada um dos cidadãos jurados possuía uma peça de madeira
ou bronze, sobre a qual estavam inscritos seu nome e o número da seção de
júri à qual ele pertencia (havia dez seções, uma para cada tribo). Ao
alvorecer, ele ia até o kleroterion local de sua tribo, uma prancha de pedra
da altura aproximada de um homem adulto e cerca de quinze centímetros
de espessura. Cinzelada na frente havia uma curiosa grade de fendas numa
das quais o cidadão depositava a própria peça com nome e número. Depois
de todas as peças daqueles que desejavam prestar serviço no júri, nesse dia,
terem sido depositadas, um funcionário irava algumas delas ao acaso do
kleroterion. A amostra selecionada das etiquetas, com nomes, era então
transportada por funcionários para os dois principais tribunais de lei
localizados no canto sudoeste da Ágora, na Heliaia (datada do século 6 a.C.)
e na Praça do Peristilo (construído originariamente no século 5 a.C.). Ali,
funcionários recolocavam as etiquetas de bronze ou madeira, uma por uma,
nas fendas em linha vertical das duas principais kleroteria da Ágora. As
etiquetas de cada jurado disponível eram alinhadas de cima para baixo, em
dez colunas verticais, cada uma reservada par uma tribo particular. O
magistrado encarregado dos casos do dia, após decidir quantos jurados
seriam necessários, então fazia a máquina da justiça funcionar.
Aleatoriamente, ele enchia o funil ao lado esquerdo da kleroterion com
tantas bolinhas pretas e brancas quantas fossem as etiquetas na coluna mais
curta. Automaticamente, o magistrado excluía as etiquetas abaixo daquela
coluna mais curta, depois, devagar, virava uma manivela na base do funil,
deixando cair uma bolinha por vez. A primeira bola a cair determinava o
destino da primeira fileira, através de todas as colunas: se fosse uma bola
branca então todos os nomes dessa primeira fileira tornavam-se jurados
nesse dia. Uma bola preta resultava em sua licença para se retirarem nesse
dia. O magistrado repetia o ato de deixar cair uma bolinha para cada outra
fileira; e assim o destino de cada jurado era aleatoriamente escolhido.”

31
O ostracismo era uma medida de cunho político que visava a afastar
temporariamente determinada pessoa, geralmente um cidadão influente, sob
o qual pairasse a suspeita de aspiração do poder, da cena política de Atenas.
Aristóteles (1997, p. 105) evidencia que as cidades governadas
democraticamente instituíram o ostracismo por porem a igualdade acima de
tudo, a ponto de banirem temporariamente homens tidos como
excessivamente poderosos por sua riqueza, ou popularidade, ou alguma outra
forma de força política.
A cada ano, geralmente no começo de janeiro, a Assembleia se
encontrava para decidir sobre a existência de potenciais oligarcas em seu
meio. Caso a resposta fosse positiva, os cidadãos de reuniriam novamente na
Ágora, munidos de cacos de cerâmica (ostrakas) sobre os quais cada um
escreveria o nome daquele que pretendesse ver afastado da vida política da
cidade. Se um quorum mínimo de 6.000 votos tivesse reunido o mesmo nome,
este era convidado a se retirar da Ática pelo período de dez anos
(GONSALVES, 2006, p. 31).
Interessante notar, com base em Gonsalves (2006, p.31-32), que o
ostracismo não era uma medida judiciária. Além disso o voto não era
precedido de nenhum debate e não havia apelação em relação ao resultado da
Assembleia. A saída do cidadão não era vista como infamante, o condenado ao
ostracismo não perdia os direitos cívicos, esses tinham seu exercício suspenso.
A medida não gerava qualquer efeito sobre os familiares e os bens do atingido.
Proposta por Clístenes, com o fim de que a vontade das massas fosse
mais evidente. Dois anos após a vitória sobre os persas na batalha de Maratona
(490 a.C), quando o povo adquiriu confiança em si mesmo, foi posta em vigor,
pela primeira vez, a lei do ostracismo. Esta lei foi promulgada principalmente
como medida de precaução contra os que ocupavam altos cargos, como
acontecera com Pisístrato, o qual, valeu-se de sua situação como caudilho
popular e como general, para proclamar-se tirano, sendo um de seus parentes
o primeiro a sofrer os rigores da lei, um tal Hiparco, filho de Charmos, do
povoado de Colito, pois Clístenes a pôs em execução, especialmente para ele e

32
com o propósito de alijá-lo do poder. No ano próximo, Megades, filho de
Hyppocrates, do povoado de Alopeso, foi vítima da nova lei. Assim, continuou-
se condenando ao ostracismo os amigos dos tiranos durante três anos, pois,
para eles precisamente tinha sido promulgada a lei em questão. Porém, no ano
seguinte, outros começaram a ser condenados também, incluindo-se entre
eles, todos aqueles que pareciam possuir maior poder do que o julgado
conveniente. A primeira pessoa condenada independentemente dos tiranos,
foi Xantipo, filho de Ariphon. Três anos depois, durante o mandato do Arconte
Hypsichides, foram anistiados todos os condenados pela lei do ostracismo, em
vista do avanço do exército de Xerxes, resolvendo-se que, de então em diante,
os sentenciados pela dita lei deveriam viver entre Geraesto e Scyleu, sob pena
de perda irrevogável de seus direitos civis (ARISTÓTELES, 1995, p. 53-54).
As razões para a adoção de tal estratagema repousavam na aplicação
da precaução no campo político, como deixa evidenciar o estagirita na
passagem acima mencionada, e no medo do retorno da tirania. Mas a
sobrevivência de sua prática deveu-se pela insegurança dos líderes políticos,
os quais, na ausência de partidos e de eleições periódicas eram levados a “[...]
tentar proteger-se pela retirada física de cena dos principais defensores de
uma política alternativa.” (FINLEY, 1988, p. 38)
O ostracismo visava usar a democracia como defesa ao excesso
democrático, dado ser um remédio poderoso para uma patologia que ronda a
democracia até os dias atuais, muito bem sintetizada por Keane (2010, p. 67)
na seguinte proposição: “[...] a autonomia do ‘povo’ pode seduzir ‘o povo’ e
levá-lo a escolher líderes que não têm nenhum interesse ‘pelo povo’ exceto
para abusar ‘do povo’.”
Desvirtuamentos fizeram com que o ostracismo fosse abandonado no
final do século V a.C.
O graphé paranomon era um instrumento que visava frear discursos e
proposições de caráter demagógico, na Assembleia.
Por meio desse artifício qualquer cidadão poderia ser denunciado e
julgado por fazer uma proposta ilegal na Assembleia. O graphé paranomon

33
tinha, conforme Finley (1988, p. 38-39), dupla função: regular a isegoria com
disciplina, já que qualquer pessoa que exercesse tal direito poderia ser punida
por tanto, mesmo que sua proposta fosse acolhida pela Assembleia, e dar ao
demos a oportunidade de reconsiderar uma decisão que ele mesmo tomou,
posto que por meio da intervenção de um tribunal popular, a heliaia, uma
decisão favorável em um graphé paranomon tinha o condão de anular uma
deliberação favorável da Assembleia.
A descrição das instituições e de alguns dos mecanismos democráticos
de Atenas, longe de ter utilidade restrita à mera curiosidade arqueológica é
necessária para a o entendimento dos fundamentos filosóficos do poder,
naquela sociedade. O que será de grande valia para a compreensão do que se
encontra subjacente à premissa de ser a democracia uma contínua e
ininterrupta invenção.

1.1.2.2 O POLÍTICO NA DEMOCRACIA ATENIENSE

Sob os prismas da ciência e da sociologia políticas, a princípio parecem


soar desprovidas de qualquer utilidade e pertinência abordagens
comparativas entre o modelo de democracia de assembleias de Atenas e os
experimentados desde a modernidade, dado o longo período histórico que os
separa e as diferenças substanciais entre as sociedades modernas e as Cidades-
estados da Grécia antiga, ainda que seja assumida a superioridade de Atenas
sobre as demais.
Todavia, o ‘pensar o político’ em Lefort é totalmente distinto do mesmo
exercício, quando encetado pela ciência e pela sociologia política.
O autor, no prefácio da obra: ‘Pensando o político, ensaios sobre a
democracia, revolução e liberdade (1991, p. 9-15) evidencia as diferenças que
separam a sua forma de enfrentar o tema das dos politólogos e sociólogos
políticos, enfatizando que tanto a ciência quanto a sociologia política se
caracterizam pela objetividade e neutralidade próprias das ciências
positivistas e, por isso, estão circunscritas à distância entre outros domínios

34
do conhecimento, como o econômico, o jurídico, o ético, o religioso e o estético
(LEFORT, 1991, p. 10).
Além do que, por basearem-se em imperativos que não levam em
consideração o atrelamento da ciência moderna a uma forma de sociedade
surgida no Ocidente em data relativamente recente, a ciência e a sociologia
políticas são incapazes de elucidar e justificar os próprios fundamentos da
ciência (LEFORT, 1991, p. 11).
Arredio ao empirismo da ciência e da sociologia políticas, Lefort (1991,
p. 9) convida a pensar o político e seu campo, a “[...] encontrar os sinais do
político lá onde são, com mais frequência, ignorados ou denegados [...]”, nos
domínios da filosofia política.
Se essa (a filosofia política) sempre se preocupou em buscar a melhor
maneira de organizar a vida em comum, a partir da modernidade, acima de
tudo, como evidencia Ruby (1998, p. 70): “torna-se decisiva nos processos de
autonomização do político”.
Para pensar o político nos dias atuais, deve-se, de antemão, atentar
para o fato de que, a partir da modernidade, a laicidade e a promessa de uma
dignidade do homem fundada sobre a sua imanência impuseram à filosofia
política a reestruturação de suas teses, pois se na Idade Média o poder tinha
como fundamento uma hierarquia cósmica garantida por uma
transcendência, na Idade Moderna fez-se necessário conferir à política o lugar
que havia perdido desde a antiguidade, (RUBY, 1998, p. 63), o que torna viável
e adequada a busca dos fundamentos do político na Antiguidade.
Essa tarefa poderia ser feita a partir de diversos recortes. Prefere-se
realizá-la a partir da perspectiva arendtiana. Tal escolha merece explicações
que ultrapassem o livre arbítrio do pesquisador.

35
Seria perfeitamente cabível analisar o político na Grécia Antiga – e na
atualidade – a partir de cratólogos12, como Carl Schimitt13, já que este, cônscio
de que o campo das relações do político altera-se constantemente, em função
das forças e potências que se coligam ou se divorciam para afirmar-se,
pretende ordenar e encontrar uma tópica, um argumento, um ponto principal
acerca do político, a partir do duplo exercício de relacionar e posicionar
reciprocamente os conceitos: estatal e político, de um lado, e guerra e inimigo,
de outro (SCHMITT, 1992, p. 31).
Todavia, as categorias com a quais Hannah Arendt trabalha o político
e seu campo (espaço público, espaço privado e mundo comum) são

12 Não obstante a existência de teóricos que tomam em consideração tanto o


aspecto da norma quanto o do poder, a filosofia política pode ser dividida a
partir dos paradigmas do normativismo e do realismo. Os normativistas
exigem princípios normativos e uma reflexão sobre a validade da ação do
homem, constituindo assim uma filosofia prática em termos éticos; os
realistas ou cratólogos, ao contrário, levam às últimas consequências o
paradigma da Realpolitik e as situações concretas de poder. “De modo geral,
a questão decisiva pressuposta na discussão entre ambas as posições é
acerca da relação entre moral e política, ethos e kratos, isto é, traduzindo
em termos simples, se o político é entendido como Macht ou como Recht.”
(LIMA, 2011, p. 164).
13 Um dos mais expressivos pensadores do direito no século XX, Carl Schmitt

contribuiu para o desenvolvimento da doutrina da constituição moderna.


No campo do pensamento político, mostrou-se defensor da manutenção do
lugar do político na época moderna, opondo-se, veementemente ao
crescimento do parlamentarismo democrático. Schmitt formulou uma
crítica aguçada ao mero formalismo presente na democracia moderna, na
sua forma parlamentar, por promover a substituição da decisão política pela
exclusiva valorização da maioria quantitativa. O principal motivo da crítica
schmittiana ao parlamentarismo moderno – e à democracia de massa –
reside na perda de seu fundamento e de sua credibilidade, no momento em
que a livre discussão pública entre cidadãos independentes fora substituída
pelo compromisso tático dos partidos. O desaparecimento do ser público da
decisão e a transformação da discussão público-racional em mera
formalidade, nas democracias de massa importam na diferenciação entre
democracia e parlamentarismo, face à oposição dos princípios neles
vigentes, pois enquanto a democracia estaria baseada na necessária
homogeneidade do povo, o “[...] parlamentarismo de massas pressuporia a
contradição existente dos interesses particulares entre as camadas da
sociedade no processo de decisão política.” (FLICKINGER, 1992, p. 11-12).

36
sobremaneira significativas para os fins do trabalho como um todo e para a
invenção democrática, em especial. De aí, o primeiro motivo que leva à
preferência pela autora.
O fato de ter sido impulsionada a compreender a vida e suas
contingências em função do totalitarismo, fenômeno que Lefort utilizou como
contra paradigma para buscar a essência da democracia moderna, constitui-
se o segundo critério para a escolha da referida autora.
A leitura de Hannah Arendt sobre o totalitarismo comandaria a
elaboração ulterior de sua teoria da política. Como ressalta Lefort (1991, p.
69), ela concebe a política graças a uma reviravolta da imagem do
totalitarismo, o que impulsiona a procurar a referência da política em alguns
momentos privilegiados, onde suas características são mais bem decifradas: o
momento da cidade grega na Antiguidade e a os momentos da Revolução
Francesa e Americana, nos tempos modernos.
A ruptura da tradição da filosofia – política, do direito etc. –, com o
consequente eclipse ao campo do político14, decorrente da emergência dos
regimes totalitaristas no século XX, é, sem dúvida, a principal razão que leva
até Arendt.
Lafer (1988, p. 14-15) descreve Hannah Arendt como uma daquelas
pensadoras com inclinação a se interessar por diversas coisas, perseguirem
vários objetivos, sem prejuízo da capacidade de terem uma visão unitária e

14 Utiliza-se a expressão ‘campo do político’ para evitar confusões semânticas


– de ordem linguística ou lógica – ao conceito de ‘campo político’ formulado
por Bourdieu, em razão da definição que este lhe atribui. O ‘campo político’
é relacionado pelo autor aos acontecimentos que ocorrem dentro do mundo
dos profissionais denominados políticos (FERNANDES, 2012) e deve ser
entendido dentro de um contexto mais amplo, de uma sociedade complexa,
onde atuam atores específicos, a partir de diversos campos, em conflito
constante com o objetivo de estabelecerem um “[...] monopólio sobre o tipo
de capital que aí se faz efetivo – a autoridade cultural no campo artístico, a
autoridade científica no campo científico, a autoridade sacerdotal no campo
religioso e assim sucessivamente”. (BOURDIEU, 1983, p. 107). Já a
expressão ‘campo do político’ pretende tão somente designar o espaço
próprio de discussão do político.

37
coerente, que serve como princípio organizador básico do que pensam e
percebem. Neste último aspecto, a linha que conduz o pensamento de Arendt
é a noção de ruptura trazida pela experiência totalitária encarnada no nazismo
e no stalinismo.
Essa ruptura no fio da tradição – que já vinha se esgarçando no correr
da Modernidade, estando, contudo restrita ao campo do pensamento – com o
fenômeno do totalitarismo, tornou-se uma realidade tangível para todos e um
fato político eminente. O hiato entre o passado e o futuro gerado pelo
esfacelamento dos padrões e das categorias que compõem a tradição ocidental
gera constantes perplexidades no presente na medida em que “[...] a tradição
do pensamento não fornece regras para a ação futura e conceitos para o
entendimento os acontecimentos passados.” (LAFER, 1988, p. 80).
O hiato da tradição entre o passado e o futuro denunciado por Hannah
Arendt é decorrência da impossibilidade de se pensar, a partir de critérios
válidos para até então, o imponderável. Em outros termos, a experiência
totalitária, ao pautar-se em categorias estranhas à tradição, rompendo assim
com os paradigmas da lógica do razoável, obstaculiza a filosofia de dar conta
da não razoabilidade (LAFER, 1988, p. 18-19).
A ruptura corta a tradição no sentido mais profundo, não opera simples
desajuste, mas, acima de tudo, uma total inadequação cognitiva:
[...] no caso do totalitarismo, adequar-se às
circunstâncias não significava ajustar-se a um
mundo confiável, porque compartilhado por um
sentido comum das coisas. Significava adaptar-
se ao genocídio metódico e sistemático,
conduzido rigorosamente dentro da ordem
jurídica e dirigido, não contra inimigos, mas sim
contra inocentes, que não eram sequer
potencialmente perigosos, e tudo por razões não-
utilitaristas que escapavam a qualquer
argumento de estado de necessidade. (LAFER,
1988, p. 93).

Por esta razão, segundo o autor (1988, p. 93), numa situação-limite, tal
como a do totalitarismo, a lógica do razoável não instiga o pensar, pois a

38
razoabilidade do pensamento pressupõe certo grau de razoabilidade do
mundo onde movimenta e atua. E a grande contribuição de Hannah Arendt
foi identificar como o totalitarismo não oferece um acesso à racionalidade ou
razoabilidade do mundo.
Para compreender como a Modernidade possibilitou o hiato causado
pelo totalitarismo, Arendt precisava reconstruir na tradição rompida as
categorias com as quais se pretende trabalhar o político – em Atenas clássica,
no momento – pois é preciso, atentos “[...] aos sinais da repetição como aos
sinais do novo, [...] evidenciar a dimensão simbólica do social.” (LEFORT,
1991, p. 9-15).
E, conforme salienta Birulés (1997, p. 12), para Arendt, na linguagem
há pensamento congelado que o pensar deve descongelar quando quer
averiguar o sentido original. Assim, trabalha isolando conceitos, seguindo-
lhes a pista, enquadrando-os, de maneira que, em suas mãos, o ato de teorizar
tem a ver com reencontrar, recuperar e destilar um sentido evaporado, o que
pode ser traduzido por recordação. Trata-se de rastrear as pegadas dos
conceitos políticos, até chegar às experiências concretas e geralmente também
políticas, que lhes deram vida.

39
O pensamento político de Hannah Arendt15 tem como ponto de partida
as noções de espaço público e espaço privado, lugares onde se concretizam as
atividades da vita activa16. (WINCKLER, 2003, p. 423)
As atividades da vita activa asseguram ao homem a condição humana
e constroem e preservam o que Arendt (2007, p. 13) denomina de mundo
comum.
Arendt não entende a condição humana como sinônimo de natureza
humana, mas a soma total das atividades e capacidades humanas
transformadoras do estado bruto da natureza, empreendidas com o intuito de
criar as condições de sobrevivência dos humanos, que se acrescem às suas
características biológicas (PIVA; BESSA, 2008, p. 3), dependentes de um
mundo comum.

15 Judia alemã, Hannah Arendt nasceu em Königsberg (Alemanha), em 1906,


e faleceu nos Estados Unidos, em 1975. Cursou filosofia em Malburgo (com
Martin Heidegger) e em Heidelberg (com Karl Jasper), entre 1924 e 1929.
Com a ascensão do nacional-socialismo, na Alemanha, fugiu, em 1933, para
a França e, em 1941, empreitou nova fuga para os Estados Unidos, após
passar um mês detida em um campo de internamento para judeus nos
arredores de Paris. As influências de Heidegger e Jasper e a experiência
nazista foram determinantes na formação do pensamento político da
autora. Apesar de não se considerar uma filósofa política e sem a intenção
de elaborar teorias gerais, numa perspectiva que transcendesse o interesse
imediato pelos fatos e acontecimentos históricos, Hannah Arendt,
utilizando-se de uma ‘metodologia da compreensão’ elaborou uma teoria
política em torno das noções de espaço público, mundo comum, política,
cidadania, trabalho, liberdade e direitos humanos, sempre com o objetivo
de compreender, de elaborar categorias que permitissem atribuir
significado aos acontecimentos (WINCKLER, 2003, p. 415-423).
16 A expressão vita activa foi a tradução que a filosofia medieval adotou do bios

politikos de Aristóteles. Segundo Arendt, esta tradução não corresponde


exatamente ao emprego da expressão aristotélica. O bios politikos denotava
de maneira explicita somente o reino dos assuntos humanos, no qual
destaca-se a ação (práxis), considerada uma atividade livre. O labor e o
trabalho não foram considerados atividades suficientemente dignas para
constituir um bios, pois eram atividades destinadas a produzir as utilidades
e satisfazer as necessidades humanas e, portanto, não poderiam ser livres
(WINCKLER, 2003, p. 423).

40
As atividades fundamentais, que tornam possível a vida do homem na
terra são o labor, o trabalho e a ação (ARENDT, 2000, p. 13).

1.1.2.2.1 O LABOR

O labor é a atividade destinada a atender as necessidades dos processos


biológicos da vida humana, para garantir o ciclo de uma existência e a
continuidade da espécie.
Trata-se da atividade mais próxima à natureza, estando relacionada à
vida como zoê e não como bios17. A condição humana assegurada pelo labor é
a própria vida (WINCKLER, 2003, p. 424-425).
O labor é marcado pela futilidade e premência. As coisas produzidas
pelo labor são consumidas logo após serem, de alguma forma, preparadas e se
destinam a satisfazer as condições fisiológicas das pessoas. Tal circularidade
entre produção e perecimento, impede-as de permanecerem no mundo.
Devido a esta característica, Arendt (2007, p. 110) adotou a definição que
Marx imprimira ao labor como o ‘metabolismo do homem com a natureza’:
Ao definir o trabalho como o “metabolismo do
homem com a natureza”, em cujo processo “o
material da natureza (é) adaptado por uma
mudança de forma, às necessidades do homem”,
de sorte que “o trabalho se incorpora ao sujeito”,
Marx deixou claro que estava “falando
fisiologicamente”, e que o trabalho e o consumo
são apenas dois estágios do eterno ciclo da vida
biológica. Este ciclo é sustentado pelo consumo,
e a atividade que provê os meios de consumo é o
labor. Tudo o que o labor produz destina-se a
alimentar quase imediatamente o processo da
vida humana, e este consumo, regenerando o
processo vital, produz – ou antes, reproduz –

17 Agamben (2002, p. 130) define zoê como a vida nua em seu anonimato e
bios, como a vida qualificada de cidadão. Para Arendt (2000, p. 108-109) o
que caracteriza a vida propriamente humana, a bios, e a diferencia da zoê, é
que ela, em si só, é plena de eventos que posteriormente podem ser narrados
como história e estabelecer uma biografia.

41
nova “força de trabalho” de que o corpo necessita
para seu posterior sustento. (ARENDT, 2000, p.
110-111).

A ideia de labor surgiu da existência primitiva do homem, considerado


como animal laborans (PIVA; BESSA, 2008, p. 3), por isso que, na
antiguidade, era tida como a menos digna das atividades humanas e se
encontrava ligado à esfera eminentemente privada.
Hannah Arendt entende a esfera privada como aquela dimensão da
vida na qual os homens estão compelidos por suas necessidades e carências.
Neste espaço os homens não se sentem pertencentes ao mundo, pois não estão
liberados das dores e ânsias do labor. “O homem, que pertence a essa esfera,
não existe como um ser verdadeiramente humano, portanto, é visto como
igual a todos os demais animais ou apenas um exemplar da espécie humana”
(SILVA, 2012, p. 460).
A restrição do labor à esfera privada da vida explica muitos aspectos do
campo do político em Atenas, pois as tarefas relacionadas ao labor eram objeto
de desprezo dos cidadãos da polis grega. Em razão da sua ligação com as
necessidades básicas da vida, o labor representava uma espécie de escravidão
a que estavam submetidos todos os homens, com exceção dos cidadãos. Assim,
libertar-se da necessidade de laborar tinha o significado de apartar-se da
condição meramente animal e estar apto para adentrar a esfera pública da
vida, a única vida realmente digna deste nome (bios) (WINCKLER, 2003, p.
426).
A falta de apreço pelo labor explica, pelo menos em parte, a base
escravocrata da polis ateniense – e da romana. Não que o desdém pelo labor
decorresse do fato de estar a encargo dos escravos e das mulheres, mas sim,
do seu caráter premente, do tempo que toma, da invisibilidade que lhe é
intrínseca e, principalmente, da falta de registro que importa, já que o vínculo
com a necessidade impõe o consumo de tudo o que é produzido e os antigos
rechaçavam todo o esforço incapaz de deixar um registro de sua passagem pelo
mundo. Segundo Silva (2012, p. 459): “Não é a excelência, conhecida pelos

42
gregos como arete, e virtus para os romanos, que move as ações do animal
laborans, mas a necessidade de sobrevivência e de consumo.”
Arete – e virtus – relaciona-se com o interesse (inter est), com estar
entre, no meio, junto aos outros. O animal laborans, pelo contrário, é um ser
solitário.

1.1.2.2.2 O TRABALHO

O trabalho – obra ou fabricação (work ou fabrication) – é o resultado


da ação do fabricante, o homo faber, que faz e literalmente trabalha sobre os
materiais, ao contrário do animal laborans que labora e se mistura com eles.
Devidamente utilizados, os artefatos resultantes do trabalho não
desaparecem, e “[...] emprestam ao artifício humano a estabilidade e a solidez
sem as quais não se poderia esperar que ele servisse de abrigo à criatura mortal
e instável que é o homem.” (ARENDT, 2000, p. 149).
A violência e a violação à natureza – desocultamento, para Heidegger
(2008, p. 30) – são intrínsecas ao trabalho. O homo faber se vale da natureza
para construir. Todavia, para Arendt (2006, p. 355):
A experiência desta violência é a mais
fundamental experiência da força humana e, ao
mesmo tempo, o exato oposto do esforço
doloroso e desgastante experimentado no mero
trabalho (labor). Isto já não é o ganhar o seu pão
com “o suor do próprio rosto”, em que o homem
pode realmente ser o senhor e mestre de todas as
criaturas vivas, mas permanece ainda o servo da
natureza, de suas próprias necessidades naturais
e da Terra. O homo faber torna-se senhor e
mestre da própria natureza na medida em que
viloa e parcialmente destrói o que lhe foi dado.

Ao contrário do labor, o trabalho é processual, determinado, portanto,


pelas categorias do meio e do fim. A coisa fabricada é um produto em duplo
sentido: i) o processo de produção chega nele a um fim e; ii) ele é apenas um
meio para produzir esse fim. Com a coisa concluída, o processo de fabricação

43
chega ao fim e sua repetição, se ocorrer, não se dá para a mantença do animal
laborans, mas, sim, da necessidade de o artesão subsistir ou de demandas de
mercado (ARENDT, 2006, P. 355).
Enquanto o labor apenas preserva a vida, em seu sentido biológico, o
trabalho produz um mundo artificial de coisas, diferente de qualquer
ambiente natural. O trabalho é a atuação deliberada e violenta do homem
sobre a natureza da qual surgem coisas para serem usadas e que por isso
possuem maior durabilidade quando comparadas aos produtos do labor. A
obra, fruto do trabalho, corresponde ao caráter não natural da existência
humana, que tem, assim, sua mortalidade redimida por meio da produção de
um mundo de coisas cuja duração tende sempre a ultrapassar o tempo da vida
dos próprios fabricantes. Por isso motivo, a condição humana do trabalho é a
mundanidade (CORREIA, 2006, p. 336).
A mundanidade é condição da imortalidade dos homens. Ao contrário
dos demais animais, cuja imortalidade está garantida por processos circulares
de procriação e preservação, os homens são mortais porque não existem
somente como membros de uma espécie. Os homens nascem e morrem,
obedecendo a um movimento retilíneo, reside aí sua mortalidade, e isto os
torna únicos. “É isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha reta num
universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico.” (ARENDT,
2000, p. 27).
A durabilidade do mundo é remédio contra a mortalidade dos homens
(WINCKLER, 2003, p. 428), dado que: “A tarefa e a grandeza potencial dos
mortais têm a ver com sua capacidade de produzir coisas – obras e feitos e
palavras – que mereciam pertencer e, pelo menos até certo ponto, pertencem
à eternidade, [...].” (ARENDT, 2000, p. 27-28).
Arendt (2006, p. 361) salienta que: “O mundo das coisas fabricado pelo
homem torna-se morada para homens mortais, cuja estabilidade suportará e
sobreviverá ao movimento de permanente mudança de suas vidas [...]”, em
outros termos, a mundanidade – fruto não somente das obras materiais do
homo faber, mas também da cultura, dos costumes e das leis –

44
institucionaliza, cria suas instituições, no sentido em que Hauriou (1968)
emprega ao termo, o de ser prática social que se constrói pela repetição
constante e que acaba adquirindo um reconhecimento no (in)consciente social
coletivo.
A transcendência à mortalidade humana faz da mundanidade condição
da política. As instituições possibilitam aos corpos políticos manterem-se
estáveis, resistindo, assim, às transformações introduzidas pelas novas
gerações de homens e mulheres (WINCKLER, 2003, p. 429).

1.1.2.2.3 A AÇÃO

Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a


política: o labor é uma atividade antipolítica – o animal laborans é anônimo
e substituível; o trabalho, apesar de ser exercido no espaço público é uma
atividade apolítica – o homo faber precisa se retirar do mundo
temporariamente para terminar sua obra; a ação é a atividade política por
excelência, correspondendo à condição humana da pluralidade (ARENDT,
2000, p. 15-17 e 131).
O caráter plural da ação advém de seu necessário exercício entre os
homens, sem a mediação das coisas ou da matéria e, também, ao fato de que
os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Esta
pluralidade é a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio
per quam – de toda vida política (ARENDT, 2000, p. 15).
A ação pode ser definida como um ato simbólico que desencadeia uma
série de consequências na trama das relações humanas. Ação e discurso são,
assim, inseparáveis, a atividade em si mesma (o gesto manifestado ou as
palavras proferidas) só tem sentido num determinado contexto discursivo.
Além do que, ação e discurso não se realizam no isolamento, a presença de
outros homens, a pluralidade, é a condição para a ação (WINCKLER, 2003, p.
432).

45
Todas as atividades humanas são, na verdade, condicionadas pelo fato
da pluralidade humana, mas apenas a ação e a fala se relacionam
especificamente com este fato de que viver significa sempre viver entre os
homens, estar entre os homens (inter homines esse), estar entre aqueles que
são meus iguais, ao contrário de morrer, para os romanos: deixar de estar
entre os homens (inter homines esse desinere) (ARENDT, 2006, p. 336; 2007,
p. 15).
Conduta e ação não se confundem, na medida em que aquela é
resultado de um processo de normalização e socialização, sendo, portanto,
previsível e predizível. Já a ação é fruto do inesperado, da irrupção do novo,
das diferenças inerentes à dicotomia igualdade e distinção que marca a
essência dos humanos:
A ação seria um luxo desnecessário, uma
caprichosa interferência com as leis gerais do
comportamento, se os homens não passassem de
repetições interminavelmente reproduzíveis do
mesmo modelo, todos dotados da mesma
natureza e essência, tão previsíveis quanto a
natureza e a essência de qualquer outra coisa. A
pluralidade é a condição da ação humana pelo
fato de sermos todos os mesmos, isto é,
humanos, sem que ninguém seja exatamente
igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista
ou venha a existir. (ARENDT, 2000, p. 16).

Qualquer abordagem sobre a ação desloca o seu significado se não for


feita a partir do local onde se desenvolve. Arendt (2000, p. 196) define este
lugar e o delimita: “A rigor, a esfera dos negócios humanos consiste na teia de
relações humanas que existe onde quer que os homens vivam juntos.”
A compreensão da teia das relações humanas impõe a prévia noção da
categoria mundo comum e de sua ligação com o espaço público.
Categoria central para a compreensão do significado do político em
Hannah Arendt, o mundo comum, decorre da constatação de que o mundo
humano é a realidade compartilhada pela pluralidade dos homens. Segundo
Winckler (2003, p. 424): “O mundo nos é comum porque está entre (inter est)

46
nós; é o que nos une e ao mesmo tempo separa; é o público, o que é comum a
todos e diferente dos lugares possuídos privadamente.”
O mundo comum – “[...] aquilo que adentramos ao nascer e deixamos
para trás quando morremos, transcende a duração de nossa vida tanto no
passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa
breve permanência. [...]” – só pode sobreviver à chegada e à partida das
gerações na medida em que tem presença pública. “É o caráter público da
esfera pública que é capaz de absorver e dar brilho através dos séculos a tudo
o que os homens venham a preservar da ruína natural do tempo.” (ARENDT,
2000, p. 65).
A teia das relações humanas, parte abstrata, intersubjetiva do mundo
comum, tecida pelos feitos e palavras de inumeráveis pessoas, vivas e mortas
é o meio (medium) no qual cada novo começo, cada ação cai, deflagrando de
algum modo um novo processo que afetará muitos outros, além, é claro,
daqueles com quem o agente mantém um contato direto. A pré-existência
desta teia de relações humanas, com suas vontades e intenções conflitantes,
impõe limites à ação, não no sentido de inibi-la, mas em relação aos seus
propósitos. As contingências deste meio conferem à ação as suas principais
características: a ilimitabilidade e a imprevisibilidade (ARENDT, 2006, p.
364-365).
A ação é ilimitada porque sempre implica a co-ação, a participação de
outros seres atuantes, e a infinita capacidade de estabelecer relações e
extrapolar limites e fronteiras. É imprevisível porque se dá entre e em relação
a outros seres atuantes, o que provoca uma série de reações em cadeia e novos
processos. Dessa forma quem atua não tem o controle sobre as consequências
de sua ação. “Estas são irreversíveis. Por esta razão, as ações nunca cumprem
seus objetivos iniciais.” A única possibilidade de pôr limite a uma ação está
dada pelo poder de perdoar e o remédio para a impossibilidade de predição da
ação é a faculdade de fazer promessas (WINCKLER, 2003, p. 433-434).
A ação para Arendt (2000) ocorre no espaço público. O termo público
indica para a autora, dois fenômenos intimamente ligados, mas não

47
totalmente idênticos: significa, em primeiro lugar, que tudo aquilo que
aparece em público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior
publicidade possível e, em segundo, indica o próprio mundo, na medida em
que é comum a todos e se diferencia do lugar possuído a título particular ou
privado. Este mundo não é idêntico à Terra ou à natureza – substrato da vida
orgânica humana – não se encontra restrito apenas ao artefato ou artifício
humano, mas também aos assuntos que ocorrem entre os que habitam o
mundo feito pelo homem (MAGALHÃES, 2006, p. 49).
Além de manter uma relação muito íntima com o lado público do
mundo – comum a todos –, o espaço público, a ação é a única das atividades
da vita activa que o constitui. Como a ação guarda uma estreita relação com
o discurso, sem este, a ação deixaria de ser ação, perderia seu caráter revelador
e seu ator, o espaço público é o lugar da aparência, no mais amplo sentido da
palavra, onde os homens assumem uma aparência explícita, ao invés de se
contentar em existir meramente como coisas vivas ou inanimadas (ARENDT,
2000, p. 191 e 210-211).
O Espaço público é, pois, o lugar por excelência da ação. Para Arendt
(2000, p. 211), em Atenas clássica, ele se confundia com a própria polis:
A rigor, a polis não é a cidade-estado em sua
localização física; é a organização da comunidade
que resulta do agir e falar em conjunto, e o seu
verdadeiro espaço situa-se entre as pessoas que
vivem juntas com tal propósito, não importa
onde estejam.

A polis foi a solução que os gregos encontraram para possibilitar a ação,


pois era necessário assegurar um lugar definido e nele erguer uma estrutura
dentro da qual se pudessem exercer todas as ações subsequentes; o espaço era
a esfera pública da polis e a estrutura era a sua lei (ARENDT, 2000, p. 207)18.
Duas foram suas principais funções:

18 Arendt (2000, p. 207) ressalta que os gregos não consideravam a função de


legislar como atividade política. O legislador era tido como um construtor
dos muros da cidade, alguém cujo trabalho devia ser executado e concluído

48
Em primeiro lugar, destinava-se a permitir que
os homens fizessem permanentemente, ainda
que com certas restrições, aquilo que, de outra
forma, era possível, somente como
empreendimento infrequente e extraordinário,
para o qual tinham que deixar o lar. [...]. A
segunda função da polis, [...], era remediar a
futilidade da ação e do discurso; pois não era
muito grande a possibilidade de que um ato
digno de fama fosse realmente lembrado e
imortalizado (ARENDT, 2000, p. 209).

Ao mesmo tempo em que os muros da polis separavam a cidade do


mundo exterior, oferecendo, dessa forma, segurança aos seus habitantes,
Atenas tinha na Ágora o seu núcleo organizador.
Como a “[...] Ágora projeta o modelo da cidade democrática, espaço
dos iguais no qual todos os cidadãos podem tomar a palavra [...]” (VAINER,
2003, p. 16), A cidade oferecia condições para a florescência da esfera pública.
A esfera pública – polis, para Arendt – por sua vez, possibilitou o
aparecimento da liberdade, sem a qual, a vida política como tal não teria
qualquer sentido, pois a “[...] raison d’être da política é a liberdade, e seu
campo de experiência é a ação.” (ARENDT, 1988, p. 192).
Contudo, o desenho arquitetônico da cidade e as instituições jurídicas
inseridas desde as primeiras reformas de Clístenes apenas possibilitaram a
democracia ateniense e com ela não se confundiam.

1.1.2.3 A DIMENSÃO DO POLÍTICO NA DEMOCRACIA ATENIENSE

Se o campo do político ultrapassava as instituições que propiciaram a


democracia em Atenas, em outros termos, se o político não podia ser medido

antes que a atividade política pudesse começar. Consequentemente, era


tratado como qualquer outro artesão ou arquiteto, inclusive poderia ser
trazido de fora e contratado sem que precisasse ser cidadão, ao passo que o
direito de politeuesthai, de engajar-se nas muitas atividades em curso na
polis, era privilégio exclusivo dos cidadãos.

49
pelas entidades materiais envolvidas na ação política, já que, como pondera
Arendt (2000, p. 207), “[...] essas entidades tangíveis não eram em si, o
conteúdo da política (a polis não era Atenas, e sim os atenienses) [...]”, qual
era a sua real dimensão?
A resposta a tal indagação pode ser dividida a partir de três vieses
distintos e complementares dos estudos arendtianos sobre a democracia
antiga que levam em consideração o local específico, o fundamento e os
envolvidos com o campo do político em Atenas clássica.

1.1.2.3.1 O POLÍTICO E A AÇÃO

Em primeiro lugar, o político estava adstrito ao campo da ação. Era


dependente das obras e instituições do trabalho e, também, não se viabilizaria
sem que o labor fosse atribuído a terceiros que não participavam da vida
política. Contudo, era no plano da ação que se desenrolava.
Se pertencia ao campo da ação que se dava no espaço público do
mundo comum, o lugar do político era o espaço público, antagônico ao espaço
privado, o espaço do labor, do incessante movimento de produção e consumo
para a manutenção do corpo, logo, da ausência de liberdade.
O político não se confundia, também, com o mundo da fabricação, do
trabalho. A uma, porque não era finalístico, como eram as atividades ligadas
ao trabalho, a duas, pela sua dependência da palavra, que pressupõe a
interação ou interesse (inter est), enquanto o trabalho necessita do
recolhimento do fabricante para que este termine a sua obra. Além do que, ao
contrário do trabalho, que é caracterizado pela criação, a ação é marcada pela
natalidade. De todo recém-nascido se espera o inesperado.
Nos termos de Birulés (1997, p. 18-19), a ação só é política se
acompanhada da palavra (lexis), do discurso. Na medida em que o ser humano
sempre percebe o mundo a partir de sua distinta posição que nele ocupa, só
pode experimentá-lo como mundo comum na fala. Somente falando é possível

50
compreender como é realmente o mundo. Este é, pois, o que está entre os
homens, unindo-os e os separando.
Se, é própria da ação – materializada no e pelo discurso – e se agir é
inaugurar, fazer aparecer pela primeira vez em público, adicionar algo novo
no mundo (BIRULÉS, 1997, p. 20), a política carrega em si toda a carga
caracterizadora da ação, qual seja: a imprevisibilidade em suas consequências,
a ilimitabilidade em seus resultados e a irreversibilidade em seus efeitos. A
política, tal qual a ação, é, assim, o início de uma cadeia de acontecimentos
que faz aparecer o inédito. Política é um acontecimento19, um milagre.
Para Arendt (1997, p. 64-65): “[...] cada novo começo é, em sua
natureza, um milagre [...]” que ao irromper no mundo necessariamente
interrompe processos já existentes.
Ao responder à indagação dobre ter a política algum sentido ainda,
Hannah Arendt (1997, p. 61-65), no fragmento 3a (Introdução à política II),
apresenta a sua noção de milagre.
Segundo a autora, para a pergunta sobre o sentido da política existe
uma resposta tão simples e tão concludente em si que se poderiam achar
outras respostas dispensáveis por completo. Tal resposta seria: o sentido da
política é a liberdade.
Todavia, atualmente, essa resposta não é tão óbvia. Dois elementos
bens distintos mesclam-se e tencionam a liberdade cada vez mais para um
lugar distante da política. A experiência com as formas totalitárias de Estado

19 Acontecimento é o que sobrevém que chega inesperada e subitamente ou


que advém no tempo humano. Taminaux (apud BIRULÉS, 1997, p. 32)
afirma que acontecimento é o que, tanto para os indivíduos como para as
coletividades, emerge a título singular e imprevisto no tempo, aparece no
tempo notoriamente e merece ser comemorado como tal. Portanto, não há
acontecimentos no repetitivo processo do labor, somente fases de um ciclo.
Tampouco há acontecimentos na fabricação, pois se trata de um processo
totalmente previsível e reversível. Só há acontecimento quando
acompanhado de sentido ou, não há acontecimento sem o mundo comum.
O acontecimento é inseparável da imprevisibilidade e da fragilidade da ação
e das palavras que vinculam os indivíduos entre si.

51
que politizaram toda a vida por completo, suprimindo de vez a liberdade,
torna válida a pergunta de serem a política e a liberdade, na modernidade,
compatíveis entre si. O segundo elemento constitui-se das modernas
possibilidades de destruição, cujo monopólio os Estados detêm e, sem o qual,
jamais teriam chegado a se desenvolver e que só podem ser empregadas
dentro do âmbito político. Tal elemento ao jogar não somente com a liberdade,
mas com a vida e a existência da humanidade e da Terra, torna duvidosa se,
nas condições modernas, a política e a conservação da vida são compatíveis
entre si, e espera que os homens tenham juízo e de alguma maneira consigam
abolir a política antes de sucumbir por causa dela.
Não importa como se considere ou como se tente calcular os fatores
isolados apresentados pela dupla ameaça das formas totalitárias de Estado e
das armas atômicas, e, sobretudo, pela coincidência desses acontecimentos,
nem sequer se consegue imaginar uma resposta satisfatória, mesmo que se
presumisse a melhor boa vontade universal (coisa que como se sabe não se
pode fazer na política, porque nenhuma boa vontade de hoje garante no
mínimo uma boa vontade para amanhã).
Partindo-se da lógica inerente a esses fatores e supondo que nada mais
do conhecido pelo homem determina e determinará o curso do mundo, então
uma mudança para a salvação somente poderá acontecer por meio de uma
espécie de milagre.
O milagre, no sentido que Arendt (1997, p. 61-65) lhe confere, não é um
fenômeno genuína e exclusivamente religioso, no qual algo sobrenatural e
sobre-humano se intromete no desenrolar terrestre dos assuntos humanos ou
no desenvolvimento natural, mas sim um fenômeno natural, como foram os
breves instantes que marcaram a existência normal da humanidade – o
surgimento da Terra, da vida orgânica sobre ela, do gênero humano se
baseiam numa espécie de milagre.
Sob o ponto de vista dos fenômenos universais e das probabilidades
que nelas reinam e que podem ser apreendidas estatisticamente, o surgimento
da Terra foi uma infinita improbabilidade. E não é diferente o caso do

52
aparecimento da vida orgânica nos processos de evolução da natureza
inorgânica ou do aparecimento da espécie humana nos processos de
desenvolvimento da vida orgânica.
Nesses exemplos, fica claro que sempre que algo de novo acontece, de
maneira inesperada, incalculável e por fim inexplicável em sua causa, ocorre
justamente como um milagre dentro do contexto de cursos calculáveis. Nesse
sentido, a transcendência religiosa da crença no milagre corresponde à
transcendência real e demonstrável de cada começo em relação ao contexto do
processo no qual penetra.
Arendt (1997, p. 65) adverte que estes fatos naturais que nascem com
a marca das improbabilidades infinitas servem apenas como exemplo para
explicar que aquilo que é denominado de real já é um entrelaçamento da
realidade terrestre, orgânica e humana. No âmbito dos assuntos humanos
deve-se levar em consideração a cadeia de acontecimentos que determina
rompimentos no curso da história por novas iniciativas.
A diferença decisiva entre as infinitas improbabilidades nas quais se
baseia a vida terrestre e o acontecimento no âmbito dos assuntos humanos
reside no fato de o próprio homem ser dotado da capacidade de agir. É próprio
da ação a capacidade de desencadear processos, de impor um novo começo,
começar algo de novo, tomar iniciativa ou começar uma cadeia
espontaneamente. O milagre da liberdade está contido nesse poder-começar
que, por seu lado, está contido no fato de que cada homem é em si um novo
começo, uma vez que, por meio do nascimento, veio ao mundo que existia
antes dele e vai continuar existindo depois dele (ARENDT, 1997, p. 66).
Portanto, se a espera de um milagre se impõe pela ausência de saída
em que o mundo chegou, essa expectativa não remete, de modo algum, para
fora do âmbito político original. Se a ação pelo discurso de homens livres
gozando de isonomia e isegoria confere sentido à política, é – como era em
Atenas clássica –, no espaço da liberdade – que tem a ver com pluralidade, a
qual, por sua vez, não é sinônimo de alteridade e sim de distinção, daquilo que
se mostra através da ação e do discurso – e em nenhum outro, que Arendt

53
(1997, p. 66) entende deva residir o direito de esperar milagres. Não em função
da crença em milagres, mas sim porque os homens, enquanto puderem agir,
estão em condições de fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles ou
não, estão sempre o fazendo.

1.1.2.3.2 O POLÍTICO, O PODER E A LIBERDADE PARA A AÇÃO

Em segundo lugar, o político decorria do Poder. É preciso, de antemão,


alertar que Arendt (1972, p. 144-147) diferencia as categorias poder –
realidade de uma pessoa investida por certo número de pessoas para atuar em
seu nome -, de vigor20, força21, autoridade22 e violência23.

20 Vigor designa uma entidade individual; trata-se de uma qualidade inerente


a um objeto ou pessoa e que pertence ao seu caráter, a qual pode manifestar-
se em relação a outras coisas ou pessoas, mas que é essencialmente
independente deles. O vigor do indivíduo mais forte pode sempre ser
subjugado por aqueles em maior número, que frequentemente se unem
para aniquilar o vigor precisamente por causa de sua independência
característica (ARENDT, 1972, p. 144-145).
21 A força, termo usado no linguajar diário como sinônimo de violência,

especialmente quando a violência é usada como meio de coerção, deveria


ser reservada, na linguagem terminológica, para designar as forças da
natureza ou as forças das circunstâncias, isto é, para indicar a energia
liberada através de movimentos físicos ou sociais (ARENDT, 1972, p. 145).
22 A autoridade, relativa ao mais indefinido desses fenômenos e, portanto,

como termo, objeto de frequente abuso, pode ser aplicado às pessoas –


existe a autoridade pessoal, como, por exemplo, na relação entre pai e filho,
entre professor e aluno – ou pode ser aplicado a cargos, como por exemplo,
ao senado romano (auctoritas in senatu) ou nos cargos hierárquicos da
Igreja (pode um sacerdote conceder absolvição válida ainda que esteja
bêbado). A sua característica é o reconhecimento sem discussões por
aqueles que são solicitados a obedecer; nem a coerção e nem a persuasão
são necessárias. (Um pai pode perder a sua autoridade seja por bater em seu
filho seja por discutir com ele, isto é, seja por comportar-se como um tirano
ou por tratá-lo como igual.) Para que se possa conservar a autoridade é
necessário o respeito pela pessoa ou pelo cargo; O maior inimigo da
autoridade é, portanto, o desprezo, e a maneira mais segura de solapá-la é a
chacota (ARENDT, 1972, p. 145-146).
23 A violência distingue-se por seu caráter instrumental. Do ponto de vista

fenomenológico, está próxima do vigor, uma vez que os instrumentos da

54
A confusão semântica, em seu ponto de vista, vai além da mera
imprecisão linguística. O emprego incorreto dos termos representa certa
ignorância acerca daquilo a que correspondem e denuncia que a questão
política mais crucial é, e sempre foi relacionada com: “Quem governa Quem?
Poder, força, autoridade, violência – nada mais são do que palavras a indicar
os meios pelos quais o homem governa o homem; são elas consideradas
sinônimos por terem a mesma função.” (ARENDT, 2001, p. 36).
Siviero (2008, p. 177) salienta:
Arendt acentua, de maneira incisiva, que a forma
de concepção dos termos poder, vigor, força,
autoridade e violência segue a perspectiva do
tratamento da política como espaço para
demonstrar o domínio. Daí a sua veemente
crítica ao uso incorreto dos termos e suas
implicações e seu esforço de esclarecimento da
questão do poder, o que mais se assemelha à
ação.

O poder corresponde à habilidade humana de não apenas agir, mas de


agir em concerto, em comum acordo. O poder jamais é propriedade de um
indivíduo; pertence ele a um grupo e existe apenas enquanto o grupo se
mantiver unido. Enquanto a força é a qualidade natural de um indivíduo
isolado, o poder passa a existir entre os homens quando eles agem juntos, e
desaparece no instante em que eles se dispersam (ARENDT, 2001, p. 36;
2000, p. 212).
Por não se materializar, o poder somente existe enquanto potência e só
é efetivado enquanto a palavra não se separa do ato, “[...] quando as palavras
não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são
empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não

violência, como todos os demais, são concebidos e usados para o propósito


da multiplicação do vigor natural até que, nó último estágio de
desenvolvimento, possam substituí-lo. As distinções entre poder, vigor,
força, autoridade e violência, embora não arbitrárias, dificilmente
correspondem a compartimentos estanques do mundo real (do qual são
extraídas) (ARENDT, 1972, p. 146-147).

55
são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.”
(ARENDT, 2000, p. 212).
A esfera pública, o espaço potencial da aparência entre homens que
agem e falam (ARENDT, 2000, p. 212) é mantida pelo poder. Assim, poder,
ação – política – e discurso são indissociáveis. O fato de estar-se com outras
pessoas, dialogando, aparecendo e sendo visto, discutindo sobre os temas do
mundo comum, encontra seu fundamento na potencialidade do poder e este,
por sua vez, no interesse (inter est).
O único fator material indispensável para a
geração do poder é a convivência entre os
homens. Estes só retêm poder quando vivem tão
próximos uns aos outros que as potencialidades
da ação estão tão presentes; e, portanto, a
fundação de cidades que, como as cidades-
estados, converteram-se em paradigmas para
toda a organização política ocidental, foi na
verdade a condição prévia material mais
importante do poder. O que mantém unidas as
pessoas depois que passa o momento fugaz da
ação (aquilo que hoje chamamos de organização)
e o que elas, por sua vez, mantêm vivo ao
permanecerem unidas é o poder. Todo aquele
que, por algum motivo, se isola e não participa
dessa convivência, renuncia ao poder e se torna
impotente, por maior que seja a sua força e por
mais válidas que sejam suas razões. (ARENDT,
2000, p. 213).

O poder é algo compartilhado e nunca exercido sobre alguém ou


alguma coisa. Na perspectiva arendtiana, um poder exercido sobre a vida se
descaracterizaria enquanto poder. Seria força ou violência, que juntamente
com a autoridade marcavam, em Atenas, o espaço privado. Já o poder era
próprio do espaço público, ocupado pelos cidadãos livres.
A liberdade para agir, ou seja, inaugurar, fazer aparecer pela primeira
vez em público, adicionar algo próprio ao mundo – e somente esta –
fundamentava o poder na polis grega (BIRULÉS, 1997, p. 20). Em outros
termos, o político em Atenas fundamentava-se no poder o qual decorria da
liberdade dos cidadãos atenienses. Enquanto elemento da pluralidade – que

56
não pode ser tomada como sinônima de alteridade, mas sim, de distinção, da
capacidade de se mostrar através da ação e do discurso –, a liberdade
caracterizava o espaço público, o mundo comum.
A liberdade no mundo comum adquire, assim, centralidade para o
entendimento da dimensão do político na polis grega.
Para Arendt (1988, p. 191), a liberdade não surgiu na esfera do
pensamento, no diálogo do eu consigo mesmo. Originariamente, ela pertencia
ao campo da política, fugindo, assim, dos desígnios da vontade e teria sido
transposta pela tradição filosófica, deste para o âmbito interno. 24

24 A autora justifica a sua afirmação salientando que “[...] historicamente, o


problema da liberdade foi a última das grandes questões metafísicas
tradicionais – tais como o ser, o nada, a alma, a natureza, o tempo, a
eternidade etc. – a tornar-se tema de investigação filosófica. Não há
preocupação com a liberdade em toda a história da grande Filosofia, desde
os Pré-socráticos até Plotino, o último filósofo da Antiguidade. E quando a
liberdade fez sua primeira aparição em nossa tradição filosófica, o que deu
origem a ela foi a experiência da conversão religiosa – primeiramente de
Paulo, e depois de Agostinho.” (ARENDT, 1988, p. 192). E, prossegue: “[...]
os argumentos mais convincentes para a absoluta superioridade da
liberdade interna ainda podem ser encontrados em um ensaio de Epicteto,
que começa afirmando que livre é aquele que vive como quer, [...]. É
interessante notar que, historicamente, o aparecimento do problema da
liberdade na filosofia de Agostinho foi, assim, precedido da tentativa
consciente de divorciar da política a noção de liberdade, de chegar a uma
formulação através da qual fosse possível ser escravo no mundo e ainda
assim ser livre. Conceitualmente, entretanto, a liberdade de Epicteto, que
consiste em ser livre dos próprios desejos, não é mais que uma inversão das
noções políticas correntes na Antiguidade, e o pano de fundo político sobre
o qual todo esse corpo de filosofia popular foi formulado – o declínio óbvio
da liberdade no fim do império romano – se manifesta com toda a clareza
no papel que noções tais como, poder, dominação e propriedade nele
desempenham. De acordo com o entendimento da Antiguidade, o homem
não poderia libertar-se da necessidade a não ser mediante o poder sobre
outros homens, e ele só poderia ser livre se possuísse um lugar, um lar no
mundo. Epicteto transpôs essas relações mundanas para relações dentro do
próprio homem, com o que descobriu que nenhum poder é tão absoluto
como aquele que o homem tem sobre si mesmo, e que o espaço interior onde
o homem dá combate e subjuga a si próprio é mais completamente seu, isto
é, mais seguramente defendido de interferência externa, que qualquer lar
poderia sê-lo. Por conseguinte, a despeito da grande influência do conceito
de uma liberdade interior e apolítica sobre a tradição do pensamento,

57
Antes que se tornasse um atributo do
pensamento ou uma qualidade da vontade, a
liberdade era entendida como o estado do
homem livre, que o capacitava a se mover, a se
afastar de casa, a sair para o mundo e a se
encontrar com outras pessoas em palavras e
ações. Essa liberdade, é claro, era precedida da
liberação: para ser livre, o homem deve ter-se
libertado das necessidades da vida. O estado de
liberdade, porém, não se seguia
automaticamente ao ato de liberação. A
liberdade necessitava, além da mera liberação,
da companhia de outros homens que estivessem
no mesmo estado, e também de um espaço
público comum para encontrá-los – um mundo
politicamente organizado, em outras palavras,
[...]. (ARENDT, 1988, p. 194).

O mundo politicamente organizado, a que Arendt se refere, no qual


cada homem livre poderia inserir-se por palavras e feitos, era formado pelos
espaços, equipamentos e instrumentos jurídicos arquitetados para a prática
política, ou seja, o mundo da política era a polis, que possuía um locus próprio
para a ação política, composto pela Ágora e a Pnyx, mecanismos e institutos
que viabilizavam e garantiam a democracia (pagamento por serviços públicos,
Conselho dos Quinhentos, tribunais do júri, instrumentos de sorteio como a
klerotera, o ostracismo e a graphé paranomon).
Todos esses artifícios tinham um único objetivo: possibilitar que
cidadãos livres nascessem – no sentido arendthiano – por meio da ação
política, inserindo-se em um mundo comum que lhes antecedia e prosseguia.
Em Arendt (1988, p. 199): “Os homens são livres – diferentemente de
possuírem o dom da liberdade – enquanto agem, nem antes, nem depois; pois
ser livre e agir são a mesma coisa.”
Muito embora depender da prévia liberação, nesta, a liberdade não se
esgota. Necessita da ação para se completar. A liberdade só se materializa no

parece seguro afirmar que o homem nada saberia da liberdade interior se


não tivesse antes experimentado a condição de estar livre como uma
realidade mundanamente tangível.” (ARENDT, 1988, p. 193-194).

58
âmbito da aparência, sendo, portanto, a atribuição para a ação de quem é
liberado para tanto, e, nesse sentido: “A liberdade como fato demonstrável e a
política coincidem e são relacionadas uma à outra como dois lados da mesma
matéria.” (ARENDT, 1988, p. 195).
Ao referir-se à polis grega, como possível paradigma de espaço público,
Arendt afirma que se tratava do único lugar onde os homens podiam mostrar
real e invariavelmente quem eram (BIRULÉS, 1997, p. 20-21). Por isso, se em
Atenas o político tinha como fundamento o poder, este só pode ser
compreendido como ação concertada de homens livres para agir, nunca para
se omitir da ação, alegando, para tanto, uma liberdade interior e apolítica.

1.1.2.3.3 O POLÍTICO E A ORGANIZAÇÃO SOCIAL DE ATENAS

Em terceiro lugar, a política era assunto dos cidadãos. Com tal


afirmação, quer-se ponderar sobre algumas críticas feitas às análises que
pretendem buscar na democracia antiga elementos para a melhor
compreensão da democracia atual.
Boa parte das controvérsias acerca do político em Atenas decorre da
fluidez da categoria demos. Democracia, palavra grega, pode ser traduzida
como poder ou governo pelo demos, o povo. Demos comportava vários
significados dentre os quais o de ‘povo como um todo’ (ou o corpo de cidadãos)
e ‘as pessoas comuns’ (as classes mais baixas) (FINLEY, 1988, p. 24-25).
A ambiguidade conceitual de Demos provoca, desde a antiguidade,
debates teóricos de relevada importância, relacionados com os elementos
centrais da democracia ateniense e da relevância de seu estudo para a
atualidade. Com o intuito de resgatar a importância da democracia antiga para
a verificação dos elementos materiais e formais da democracia moderna, ater-
se-á a duas controvérsias relacionadas com: a menor complexidade da
sociedade ateniense clássica, quando comparada com as atuais democracias e
sua organização social – que implica no enfrentamento da questão da
escravidão.

59
Em função da centralidade que as tecnologias e seus especialistas
adquiriram na modernidade e da maior burocratização e racionalização da
atividade governamental, tem-se a noção de que as sociedades atuais seriam
mais complexas do que era Atenas, no período clássico.25
A ideologia da competência – pautada na regra que impede a qualquer
um em qualquer lugar e em qualquer ocasião dizer qualquer coisa a qualquer
outro –, ao instituir o que Chauí (2012) denomina de discurso competente,
parece indicar que realmente não há mais espaço para a democracia ateniense
clássica nas sociedades modernas.
Tal sentir se pauta no simples fato de que estas estariam divididas entre
os que podem falar e comandar, por serem detentores de saberes e
conhecimentos e os que devem ouvir e obedecer, dado serem desprovidos dos
saberes e conhecimentos julgados relevantes pelos padrões sociais,
econômicos e culturais dominantes.
A complexidade das sociedades atuais com suas severas restrições ao
exercício da isonomia e da isegoria e a maior simplicidade dos problemas
técnicos de Atenas não implicam, em si, uma diferença política de dimensão
comparável entre os dois cenários. Atenas também empregava especialistas
em finanças e engenharia. Técnicos especializados, em especial os militares,
sempre tentaram e exerceram influências nos assuntos da cidade, mas as
decisões políticas eram tomadas por líderes políticos, como são atualmente
(FINLEY, 1988, p. 28).
O trecho retirado do discurso de Péricles na cerimônia em honra aos
soldados atenienses mortos no primeiro ano da guerra do Peloponeso dá a
dimensão da atitude dos cidadãos daquela cidade em relação às questões
públicas:

25 Sobre a centralidade da técnica e da tecnologia nas sociedades modernas:


Ernst Kapp (Grundlinien einer philosophie der technik) e Martin Heidegger
(A questão da técnica). Acerca da racionalização administrativa, da
tecnocracia e dos sistemas peritos: Anthony Giddens (Modernização
reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna) e Jean
Meynaud (La technocratie: mythe ou réalité?).

60
Ver-se-á em uma mesma pessoa ao mesmo
tempo o interesse em atividades privadas e
públicas, e em outros entre nós que dão atenção
principalmente aos negócios não se verá falta de
discernimento em assuntos políticos, pois
olhamos o homem alheio às atividades públicas
não como alguém que cuida apenas de seus
próprios interesses, mas como um inútil; nós,
cidadãos atenienses, decidimos as questões
públicas por nós mesmos, ou pelo menos nos
esforçamos por compreendê-las claramente, na
crença de que não é o debate que é empecilho à
ação, e sim o fato de não se estar esclarecido pelo
debate antes de chegar a hora da ação.
(TUCÍDIDES, 2001, p. 108).

Dessa forma, não há uma relação direta entre o incremento de


complexidade organizacional de determinada sociedade e o aumento da apatia
dos cidadãos pela política. Diversos fatores, nem sempre relacionados entre
si, podem ser determinantes para a forma como as coisas públicas são
tratadas.
A organização social de Atenas era baseada na escravidão, logo o demos
era uma elite minoritária. Essa é a segunda controvérsia apontada contra a
democracia de Atenas clássica.
A questão da escravidão já instigava os autores na época em que ocorria
e vem sendo utilizada até os dias atuais para, se não desqualificar a democracia
ateniense, relativizá-la, enquanto paradigma.
Segundo Keane (2010, p. 79), em fragmentos, trechos e mesmo em
pelas inteiras de Eurípides, os escravos eram mostrados como indivíduos com
qualidades, tais como inteligência, lealdade e coragem, iguais ou superiores as
demonstradas por homens livres. Personagens como Paris – escravo que, na
peça Alexandros, consegue ganhar seu caos por competir com homens livres
em jogos heroicos ocorridos em Tróia – e Ion – um escravo leal, disposto a
arriscar sua vida por sua senhora e que expressa terem os homens
originariamente a mesma aparência e que o fato de terem nascidos nas fileiras
da nobreza, da liberdade ou da escravidão não garante por si só boas

61
qualidades morais – indicam que, para muitos, a instituição da escravidão era
vista como degradante a quem não merecesse tal injustiça.
Já Aristóteles (1997, 13-22) entendia a escravidão como natural. Para
ele há casos de pessoas livres e escravas por natureza, e para estas últimas a
escravidão é uma instituição conveniente e justa.
A conveniência e a justeza da escravidão eram analisadas pelo autor a
partir de contextos relacionais necessários e naturais: a família, o povoado e a
cidade.
As uniões mais elementares de pessoas são aquelas entre seres
incapazes de existir um sem o outro: a união entre o homem e a mulher para
a perpetuação da espécie e a união de um comandante e um comandado
naturais para a sua preservação recíproca. O senhor é o comandante, pois
pode usar o seu espírito para prover e o escravo é um comandado já que,
naturalmente, usa seu corpo para prover. O senhor e o escravo têm, portanto,
os mesmos interesses (ARISTÓTELES, 1997, p. 13-14).
O povoado é a primeira comunidade de várias famílias constituída para
a satisfação de algo mais do que as simples necessidades diárias. O seu modelo
mais simples parece ser o composto daqueles que são alimentados do mesmo
leite, os filhos ou os filhos dos filhos. Como cada família é dirigida pelo
membro mais velho, geralmente este se tornava chefe das colônias oriundas
da família. A comunidade composta de vários povoados é a cidade. Esta tem
como finalidade assegurar e proporcionar melhores condições de vida aos seus
membros (ARISTÓTELES, 1997, p. 14-15).
As considerações deixam claro que a cidade é uma criação natural e o
homem é por natureza um ser social, dependente das relações que mantém
com outros homens para viver. Ocorre que, ao contrário dos outros animais
gregários, o homem é capaz de indicar, pela fala, o conveniente e o nocivo, o
justo e o injusto. Em comparação com os demais animais, somente o homem
tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades
morais e é a comunidade de seres com tais sentimentos que constitui a família
e a cidade (ARISTÓTELES, 1997, p. 15).

62
Como toda cidade se compõe de famílias e como a cidade tem
precedência sobre a família e sobre cada indivíduo, pois o todo deve
necessariamente ter preferência sobre as partes, é a partir dos padrões da
cidade que se determina o caráter do justo e do injusto (ARISTÓTELES, 1997,
p. 14-15).
A relação entre senhor e escravo era vista por alguns estudiosos e
escritores como justa, dado a comparação que faziam entre as funções do chefe
de família e do estadista. Outros – como é o caso de Eurípides – afirmavam
ser a autoridade natural exercida sobre os escravos injusta.
Aristóteles analisava essa relação a partir de um critério utilitarista ao
qual denominava de ‘a arte de enriquecer’, função atribuída ao chefe de
família. Para tanto deveria este se valer de bens e instrumentos para melhorar
a vida da família. Os instrumentos podem ser inanimados ou animados – para
o piloto, por exemplo, o timão é um instrumento inanimado enquanto o
marinheiro vigilante na proa da nau é um instrumento vivo. Os bens são
instrumentos para assegurar a vida, o escravo é um bem vivo que aciona os
outros instrumentos (ARISTÓTELES, 1997, p. 16).
Na falta de automatismo dos instrumentos inanimados residiria a
justeza da escravidão. Os escravos seriam os instrumentos da ação que
garantiriam o enriquecimento do senhor, ou seja: melhores condições de vida
para a família, inclusive, para si próprio. E, nesse sentido, os escravos não
eram apenas parte da família, antes a ela e ao seu senhor pertenciam: “[...]
logo o senhor é unicamente o senhor do escravo e não lhe pertence, enquanto
o escravo é não somente o escravo do senhor, mas lhe pertence inteiramente.”
(ARISTÓTELES, 1997, p. 16).
Tais considerações evidenciam a percepção de Aristóteles sobre a
natureza dos escravos e sua função:
Um ser humano pertencente por natureza não a
si mesmo, mas a outra pessoa, é por natureza um
escravo; uma pessoa é um ser humano
pertencente a outro se, sendo um ser humano ele
é um bem, e um bem é um instrumento de ação
separada de seu dono. (ARISTÓTELES, 1997, p.

63
15).

O escravo estaria, em uma perspectiva arendtiana, está ligado à esfera


privada da vita activa, ao mundo do labor, marcado pela autoridade e
violência, no qual a liberdade é estranha. Todavia, mostrava-se imprescindível
para que o cidadão ateniense, liberto das atividades cotidianas, pudesse se
dedicar à ação política na Ágora.
A liberdade e a igualdade em Atenas não podem, portanto, ser
analisadas apartadas das estruturas socioeconômicas e das noções
antropológicas, políticas e éticas que caracterizavam o mundo antigo. “A
igualdade naquele contexto, não evoca o moderno e universalístico ‘sujeito de
direitos’, mas se exaure no âmbito da polis; não põe em questão, mas
pressupõe a distinção qualitativa entre escravo e livre; [...]”. A liberdade, por
sua vez, situava-se no “[...] extremo de uma relação que tem como extremo
oposto a escravidão; [...].” (COSTA, 2010, p. 212 e 224). A liberdade, em
Atenas, era aquela usufruída por quem dispunha de si mesmo, ao contrário da
escravidão que supunha a submissão à vontade de outro. 26
Muito embora, a dependência aos numerosos escravos ser indiscutível.
Por outro lado, a estrutura social de Atenas não estava restrita à divisão entre
homens livres e escravos. Uma grande parte do demos era formada por
camponeses, comerciantes e artesãos que eram cidadãos lado a lado com as
pessoas instruídas de classes mais altas (FINLEY, 1988, p. 29).
Como os principais métodos de escolha dos cidadãos tinham como
base a aleatoriedade, havia uma boa chance de um cidadão comum ser eleito
pelo menos uma vez na vida para servir como o funcionário mais importante
e presidir o governo (DAHL, 2001, 2009, p. 22).
Verifica-se, dessa forma, na experiência democrática de Atenas, o
atrelamento do político a um campo específico da vita activa, a um

26 Costa (2010, p. 224) ressalva, porém, que a independência de alguém, de


um indivíduo, não era separável da comunidade política de pertencimento.
Ou a cidade era livre ou seus cidadãos não o eram.

64
determinado espaço público de poder entre iguais que se viabilizava por meio
de uma estrutura escravagista.
Por outro lado, a busca de meios para assegurar a isonomia e a isegoria
entre os cidadãos, inclusive com a utilização de métodos maquinais, a
confiança no debate aberto e em regras específicas, como o ostracismo e o
graphé paranomon, a ausência de uma ideologia dominante ou de uma
verdade política que podia responder a todas as questões, dado ao ceticismo
em relação ao poder e à autoridade que estimulava, não somente
caracterizavam a democracia ateniense, mas, sobretudo, tinham o efeito
combinado de injetar um forte elemento de imprevisibilidade na vida política,
destacando a contingência das coisas, dos eventos, das instituições, do povo e
de suas crenças (KEANE, 2010, p. 78).
Além de ter preparado o solo para a rejeição da suposta necessidade do
governo por outros, a democracia ateniense foi uma forma inteiramente nova
de governo aberto, que estimulou “[...] a deliberação pública e a controvérsia
ruidosa, entre iguais [...]” e a consciência pública sobre as dificuldades e as
perplexidades que envolvem as decisões políticas (KEANE, 2010, p. 78).
A democracia de assembleias de Atenas, enfim, apresenta elementos
paradigmáticos que possibilitam pensar o político e seu campo a partir da
proposta reinventiva de Lefort. Sua imprevisibilidade fornece, ainda,
subsídios para problematizar a democracia em ambientes de grande
complexidade, como é o caso daqueles nos quais as decisões sobre os rumos
do meio ambiente urbano deveriam ser tomadas.

1.1.3 A DEMOCRACIA MODERNA

Em, praticamente, três séculos democráticos, Atenas viveu um período


de prosperidade, após o qual, sob o jugo macedônico, a democracia sofreu sua
primeira morte expressiva.
Durante a antiguidade a democracia não se restringiu, no ocidente, à
experiência grega. Além das experiências das assembleias na região da Sírio-

65
mesopotâmia, quase que concomitante a sua introdução em Atenas, o governo
de assembleias apareceu em Roma, onde era conhecido como república.
Inicialmente restrito aos patrícios e à aristocracia, o direito de
participar da vida política foi posteriormente estendido aos homens da plebe.
Com a ampliação da república e a concessão da cidadania romana aos
povos conquistados, criou-se uma situação que impedia a grande maioria dos
cidadãos de participarem das decisões, já que estas continuavam sendo
tomadas no Fórum, na cidade de Roma, e os romanos, reconhecidos por seu
pragmatismo, estranhamente não inventaram ou adotaram um sistema viável
de representação democrática. Embora tenha durado mais tempo do que a
democracia ateniense, por volta de 130 a.C., a república romana começou a
enfraquecer até que, com a ditadura de Júlio Cesar, o que restava das práticas
republicanas autênticas acabou perecendo. Em 44 a.C., inicia-se o Império
Romano, e com ele sepulta-se a democracia por cerca de mil anos (DAHL,
2009, p. 23-25).
Durante toda a Idade Média e em boa parte da Idade Moderna, a
democracia entraria em estado de torpor no Ocidente.
Além do que, como ressalta Costa (2010, p. 213), a cultura política
medieval não recebe do mundo antigo uma teoria da democracia como forma
de governo e sim a crítica da democracia como forma de governo –
principalmente pela mediação de Aristóteles. No medievo as preocupações
não estavam relacionadas à democracia em si, e sim ao problema do
fundamento do poder.
Desse modo, a idade do meio ao invés de aproximar o modelo antigo
de democracia do moderno, aumentou sua distância.
Não obstante a aparente ruptura, o sucesso político do cristianismo e
do islamismo impulsionou reflexões acerca do político na Idade Média,
contrapostas ao panteísmo e ao naturalismo greco-romano.
As novas visões de mundo dos herdeiros de Abraão iriam marcar de
forma indelével a invenção da democracia na modernidade. Por tal motivo, é
preciso verificar como os principais pensadores das duas religiões da

66
revelação – uma porque foi adotada como a oficial pelos impérios e reinos que
se instalaram na Europa e a outra pela influência exercida mesmo
indiretamente, via Península Ibérica, sobre o pensamento político moderno –
debateram-se em torno de temas relacionados ao político.

1.1.3.1 O POLÍTICO E OS PENSADORES MEDIEVAIS CRISTÃOS E


DO ISLÃ

A assunção do anúncio do muezim, realizado no minarete: “Não há


deus exceto Deus e Maomé é o Apóstolo de Deus” (ALCORÃO, 2013) –
expressão que muito bem pode representar, com as devidas distinções 27, a fé

27 Dentre as dissemelhanças entre o cristianismo e o islamismo, ressalta-se: O


Cristo feito carne, gerado e nascido do ventre de Maria indica o caráter
antropocêntrico da doutrina cristã. Foi a mãe de Jesus que possibilitou ao
Deus transcendente do novo testamento estar entre e com os humanos, na
condição de humano, para redimi-los. Por outro lado: “A crença em Alá
como Criador era vista como exigindo pureza e responsabilidade morais da
parte de todos os indivíduos por suas próprias ações. Embora o Corão não
fizesse tentativa para especificar um sistema moral abrangente – ele nunca
pretendeu ser uma ideologia que sabe tudo – sua ênfase na
responsabilidade implicava a necessidade do povo de aplicar as regras da
justiça a seu próprio comportamento social bem como a necessidade de um
sistema político justo que refrearia a licença dos fortes e estenderia a
generosidade aos fracos. O freio à licença estendia-se – de modo incomum
– à biosfera terrestre, como agora a chamamos. Tal como o respeito pelas
divindades da democracia grega e das assembleias da Síria-Mesopotâmia,
mas em agudo contraste com o antropocentrismo do Cristianismo inicial, o
espírito do Islã apresentava um poderoso sentido de respeito pelo mundo
transcendente da natureza na qual os seres humanos e outras criaturas
habitam. [...]. Em assuntos de governo, os primeiros crentes islâmicos
acentuavam que não apenas os humanos como também o mundo da
natureza desfrutavam de certos direitos, incluindo o direito público de ser
ouvido ou ao menos tratado com respeito pelos outros. Compaixão pela
natureza é serviço a Deus. Maomé proibiu, repetidamente, a crueldade
contra os animais. ‘Uma boa ação feita por um animal’, registra uma
recomendação bem conhecida do Profeta, ‘é tão boa como fazer o bem a um
ser humano; ao mesmo tempo. Um ato de crueldade contra um animal é tão
mau quanto um ato de crueldade contra um ser humano.’ O Corão explica
que tal benevolência flui diretamente de Deus: ‘Não há um animal (Que

67
cristã na Santíssima Trindade: “Credo in Deum, Patrem omnipoténtem.
Creatórem caeli er terrae. Et in Jesum Christum, Filium ejus únicum,
Dominum nostrum; qui concéptus est de Spítitu Sancto, natus ex María
Vírgine, [...]”28 (BREVIARIUM ROMANUM, 1957, p. 2) – implica a inserção
no campo do político de um novo e estranho elemento: a relação do homem –
que se perdeu em razão de seus pecados – com seu único criador – fonte da
lei e única possibilidade de redenção – e com a Igreja que na terra o
representa.
Ao profundo naturalismo greco-latino, esse
monoteísmo opõe uma concepção do homem
como uma criatura que mantém com o seu
Criador relações espirituais pessoais e também a
concepção da comunidade que está fundada, não
sobre um projeto ético-político, nem sobre uma
relação jurídica, mas sobre uma aliança religiosa.
Resultam daí noções singulares da liberdade e da
responsabilidade, e, portanto, da ação histórica,
que o cristianismo e o Islã reativarão, cada um a
seu modo. (PISIER, 2004, p. 21).

É preciso apontar uma diferença crucial para o perfeito entendimento


das interrelações entre o poder divino e o poder secular, nos primeiros séculos
da igreja cristã e do Islã e que, de uma forma ou de outra – cada uma da sua
maneira – acabarão exercendo influências sobre a democracia inventada a
partir da modernidade.
Enquanto, desde os seus primórdios, o cristianismo suscita o problema
da relação do crente com a ordem temporal, dividindo-o entre a coletividade
a qual pertence de fato e a comunidade de fé a qual adere; a revelação do
Profeta Maomé cria, ao mesmo tempo, um espaço religioso e um espaço
político superpostos. A inserção política e a autonomização da sociedade civil

vive) na Terra, Nem um ser que voa Em suas asas, mas (forma Parte de)
comunidades como você’ (S. 6.38). (KEANE, 2010, p. 146-147. Grifos
nossos).
28 Creio em Deus Pai, todo poderoso, criador do céu e da terra e em Jesus

Cristo seu único filho nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do
Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria [...].

68
eram definidas em função da comunidade religiosa. Tal identidade tem como
consequências principais: i) o fato de não se estabelecer uma instituição
eclesiástica autônoma no seio da coletividade e; ii) o fato de o Islã ter
escapado, em seus primeiros séculos, aos conflitos advindos na Europa das
relações entre Igreja, poder político e sociedade (PISIER, 2004, 22, 25).
Como Lefort situa a democracia moderna entre duas formas
historicamente determinadas do político: o Antigo Regime e o Estado
Totalitário, a partir da premissa de que ambos operam no sentido de fundirem
os campos social e político ou na metáfora do “corpo político do rei”, no
primeiro caso, ou no Partido-Estado, no segundo (CHAUÍ, 1987, p. 11) e como
o direito divino dos reis, cerne do político no Ancien Régime, encontra suas
raízes mais profundas na Idade Média, em meio aos conflitos travados entre a
Igreja e o Império pela hegemonia política da cristandade (LOPES, 1997, p.
63), delimita-se, momentaneamente, o recorte ao pensamento político dos
principais filósofos da Igreja Católica do medievo.
Restrita a análise aos reinos cristãos, verifica-se como, em função de
sua legitimidade como maior instituição da Cristandade, a Igreja Romana
acabou consolidando os ensinamentos de uma filosofia política em torno da
forma de governo, da obediência e dos deveres do cristão ao poder público, as
origens e os fundamentos do poder constituído, as relações entre Igreja e
Estado etc. Pode-se afirmar que a concepção cristã de governo e autoridade
legal se baseia numa filosofia do direito divino, mediante a qual o poder
constituído provém de Deus, que concede legitimidade aos governantes para
exercer sua potência sobre o povo, competindo a este a obediência e a
subordinação às autoridades em exercício (WOLKMER, 2006, p. 42).
Advindo o poder de Deus e não do governante, no caso de colisão entre
interesses dos reinos temporal e divino, devia o crente observar os ditames do
último.
[...] o cristão estava inevitavelmente obrigado a
cumprir um duplo dever, situação essa
inteiramente desconhecida da antiga ética pagã.
Devia ele não apenas dar a César o que era de

69
César, mas a Deus o que era de Deus; contudo, se
entrassem em conflito, não havia dúvida de que
devia obedecer a Deus e não ao homem.
(SABINE, 1964, p. 191).

A conversão de Justiniano ao cristianismo, em 312, poderia ter


solucionado a dicotomia, já que, em tese, haveria a união ou, como prefere
Lefort (1987): a encarnação do poder divino na figura do imperador. Pisier
(2004, p. 22) ressalta que este fato apenas institucionalizou o problema, já
que, na época, o Império Romano do Ocidente entrara em declínio e os
cristãos eram acusados de concorrer – por sua própria religião – para a
derrocada do Estado romano.
Nesse cenário de tensão entre o poder divino e o terreno surge a
doutrina de Santo Agostinho.29
Advertem Châtelet, Duhamel e Pisier (1993, p. 20) que essa doutrina
se constitui em virtude da necessidade de o Bispo de Hipona combater o
dualismo maniqueísta e seu eterno conflito entre o bem e o mal; o donatismo
que acusava a Igreja Católica de ter-se entregado ao poder político; e os
pelagianos, que negavam a universalidade do pecado original e reconheciam
aos homens a capacidade de se salvarem somente por suas forças.
Mas, a principal obra política de Santo Agostinho decorre de sua
necessidade em esclarecer a doutrina da Igreja em decorrência da invasão e
saque perpetrados por Alarico, rei Visigodo convertido à seita cristã de Ário,
sobre Roma.

29 Nascido em Tagasta, no Norte da África, filho de pai romano, pagão e de


mãe cristã, Santa Mônica, Santo Agostinho estudou em Catargo, Roma e
Milão, onde se converteu ao catolicismo. Profundo conhecedor dos
clássicos, tendo sido inspirado principalmente por Platão, foi professor de
gramática, retórica e eloquência. Escreveu mais de trezentas obras, das
quais se destaca o tratado De Civitate Dei (A Cidade de Deus). Foi nomeado
Bispo de Hipona, cidade próxima de Catargo, e ali passou a viver,
desempenhando suas funções pastorais e, ainda, a ensinar e a escrever.
Santo Agostinho viveu nos séculos IV e V, época em que o Império Romano
do Ocidente estava no fim. Foi canonizado como Santo e proclamado doutor
da Igreja (AMARAL, 2011, p. 84).

70
A queda de Roma em 410 d.C. desencadeou uma série de acusações
dirigidas contra o cristianismo, atrelando a nova religião, o abandono que
pregava em relação às coisas desse mundo e a escatologia que lhe era
subjacente, ao declínio das instituições imperiais da Cidade Eterna. Ao
contrário dos antigos deuses, o Deus Transcendental não se mostrou capaz de
defender uma civilização.
Desse confronto entre a cristandade e a história, uma gama de questões
ficou em aberto: “[...] o que a Fé Cristã diz do tempo? Como a Fé Cristã se
comporta com a história? Em que medida a Fé Cristã é e sente-se histórica?
De que modo a Fé Cristã lida com o poder em si e fora de si mesma?” (LEÃO,
1990, p. 17).
No livro ‘A Cidade de Deus’ (De Civitate Dei), Santo Agostinho procura
tratar desse conflito entre fé e história, de contrapor a cidade celeste (Civitas
Dei) à cidade terrena (Civitas Diaboli).
Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a
saber: o amor próprio, levado ao desprezo a
Deus, a (cidade) terrena; o amor a Deus, levado
ao desprezo de si próprio, a (cidade) celestial.
Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em
Deus, porque aquela busca a glória dos homens e
tem esta por máxima glória a Deus, testemunha
de sua consciência. [...] Uma, nos seus chefes ou
nas nações que subjuga, é governada pela paixão
de dominar; na outra, todos prestam serviço uns
aos outros mutuamente – os chefes ao dirigir, os
súditos ao obedecer. (AGOSTINHO, 1999, p.
169-170).

Já no prólogo, Santo Agostinho deixa claro que a Cidade de Deus não


transcende ao mundo terrestre, é da mesma forma que a sua antítese,
histórica, não obstante ser a única capaz de garantir a paz entre os homens:
A gloriosa Cidade de Deus prossegue em seu
peregrinar através da impiedade e dos tempos,
vivendo, cá embaixo, pela fé, e com paciência
espera a firmeza da mansão eterna, enquanto a
Justiça não se converte em juiz, o que há de
conseguir por completo, depois, na vitória final e

71
perfeita paz. (AGOSTINHO, 1990, p. 27).

A cidade de Deus não corresponde à Igreja tampouco a cidade terrena


equivale ao Estado. A diferença entre as duas, para Santo Agostinho, reside,
antes de tudo, na maneira de ser dos seus habitantes. Daí, a priori, a
impossibilidade de se determinar ontologicamente ser o Estado bom ou mau,
tudo depende da forma como é governado. E o melhor governo é o que
possibilita, por meio da mão pesada dos governantes, paz e segurança
possíveis nesse mundo, já que o bem e a justiça pertencem à cidade de Deus
(AMARAL, 2011, p. 86).
Apesar de ter preconizado a distinção clara entre a Igreja e o Estado –
muito embora manter-se fiel à noção da eminência da Cidade de Deus – Santo
Agostinho foi interpretado de forma diversa por teólogos e papas que o
sucederam, os quais, ao apregoarem a superioridade da Igreja, como elemento
da Civitas Dei, em relação ao Estado, e a necessária imposição do Papa sobre
todos os governantes, criaram o que se conhece atualmente como
agostinianismo político (AMARAL, 2011, p. 87).
O agostinianismo político defende uma concepção teocrática do poder,
que confere à Igreja Cristã toda a legitimidade de jurisdição sobre a sociedade
política. “Por conseguinte, a autoridade que exerce o poder terreno só será
perfeita se for um governante cristão.” (WOLKMER, 2003, p. 50).
No final do século V, a teoria da coexistência e da separação dos
poderes foi abertamente defendida pelo Papa Gelasio I (492-496). Este
pontífice escreveu que, considerando a família humana, Deus deseja que o
poder espiritual esteja separado do temporal, para evitar que a acumulação de
poderes nas mãos de uma só pessoa dê lugar a que se produzam deploráveis
abusos. Nas coisas eclesiásticas, o bispo é superior ao imperador, assim como
este é superior ao bispo nas coisas temporais. Todavia, por influência do
agostinianismo político, um pouco mais tarde, se sustentaria a superioridade
da autoridade eclesiástica sobre a temporal (MOSCA, 2008, p. 100).
A doutrina dos dois gládios (espadas), nitidamente influenciada pela
dicotomia agostiniana, visou normalizar no Ocidente, após a separação entre

72
os dois impérios romanos, no Século V, as relações entre a ordem temporal
dos reinos e a ordem espiritual sobre a qual reina o Bispo de Roma. Segundo
Pisier (2004, p 26-27) a teoria teria sido formalmente exposta pelos Papas
Gelásio I e Gregório, o Grande (540-604) e é relativamente clara:
[...] apenas Deus detém o a plenitudo potestatis,
a potência suprema; entretanto, neste mundo,
composto de espiritualidade e de materialidade,
a onipotência delega a dois poderes distintos o
cuidado de fazer triunfar a ordem divina: ao
pontífice, a auctoritas, ao rei, a potestas
temporal. Cada uma em seu domínio é soberana:
a autoridade do papa em termos religioso e
eclesiástico é absoluta, o poder do rei sobre os
seus súditos também o é.

A alusão as duas espadas, uma representando o poder espiritual e a


outra, o poder temporal, apesar de significar uma separação dos poderes não
pressupõe equilíbrio entre estes, já que os gládios temporais seriam atribuídos
por Deus aos reis, mediante a submissão às normas papais, porque, do mesmo
modo em que a cidade terrena estaria submetida à celeste, o Estado estaria
submetido à Igreja.
Ao mesmo tempo em que aumentou ainda mais a autonomia da Igreja
Romana em relação aos imperadores, reis e senhores feudais, a Reforma de
Hildebrand30, ou Reforma Gregoriana31, ou, ainda, Querela das Investiduras,

30 Por volta de 1050 o monge Hildebrand era um líder do papado, tendo


governado como Papa Gregório VII entre 1073 e 1085.
31 Em 1075, depois de aproximados vinte e cinco anos de agitação e
propaganda do papado, o Papa Gregório VII declarou a supremacia política
e jurídica do papado sobre toda a Igreja e a independência do clero de
qualquer controle secular. O Papa Gregório VII também afirmou a
supremacia definitiva do papa sobre assuntos seculares, incluindo a
autoridade para depor imperadores e reis. O imperador Henrique IV da
Saxônia respondeu com ação militar, fazendo eclodir a guerra entre o
papado e os impérios, tendo as partes se enfrentado esporadicamente por
toda a Europa até 1122, quando foi assinada uma concordata na cidade
alemã de Worms. Na Inglaterra e na Normandia, a Concordata de Bec havia
proporcionado uma trégua temporária, mas a questão só foi resolvida após

73
na medida em que propunha a não interferência dos reis e imperadores na
escolha dos líderes religiosos, surtiu um efeito não esperado pela própria
Igreja, qual seja a noção de que era possível edificar unidades políticas
seculares, o que de fato aconteceu a partir da resistência de chefes de pequenos
reinos a Roma, que se valiam, ao mesmo tempo, dos direitos costumeiros, de
origem germânica e do direito romano, para exercerem sua autoridade sobre
os seus súditos. Esses reinos, indícios do que seria o Estado moderno,
encontrariam legitimação nas reflexões políticas de Santo Tomás de Aquino,
o qual, por influência de Aristóteles, ainda que involuntariamente, acabou
opondo seu pensamento ao agostinismo político (BERMANN, 2006, p. 114-
154; PISIER, 2004, p. 27).
Santo Tomás de Aquino32, ao contrário de Santo Agostinho, considera
o homem bom e essencialmente político. Para ele o Estado é uma necessidade
natural para o bem-viver na comunidade, por isso deverá este conhecer seus
limites com relação aos indivíduos e à Igreja (OLIVEIRA, 2006, p. 99).
No campo político, Santo Tomás de Aquino tratou de temas ligados à
origem do poder, à melhor forma de governo e à autonomia entre Igreja e
Estado.

o martírio do arcebispo Thomas Beckett em 1170 (BERMANN, 2006, p.


113).
32 Santo Tomás de Aquino, dominicano nascido na Itália, em 1225, foi não só

o nome mais expressivo da Escolástica, como, sobretudo, um dos mais


importantes pensadores do Ocidente Medieval. Após estudar com seu
mestre Alberto Magno e tornar-se professor de teologia em Paris, Santo
Tomás procurou realizar a grande síntese entre a cultura pagã antiga (a
razão aristotélica) e os ensinamentos e os dogmas da Igreja Católica (a
teologia cristã da revelação e da fé). Assim, diante das ideias pré-cristãs de
Aristóteles sobre Deus, o universo e o homem, Tomás de Aquino insistia que
um bom pagão poderia mostrar que as opiniões dos filósofos não
conflitavam com as da Escritura. Achava também que ele e sua geração
tinham muito o que aprender com Aristóteles. Enquanto Santo Agostinho
embasa-se em Platão e São Paulo, proclamando a fé como instrumental de
compreensão teológica, Santo Tomás recupera Aristóteles por meio das
versões árabes e judaicas, apregoando a qualidade e o uso humano da razão
(WOLKMER, 2003, p. 52).

74
Em Romanos, Capítulo XIII, 1, São Paulo proclama que todo o poder
vem de Deus: “[...] não há autoridade que não venha de Deus, e as existentes
foram instituídas por Deus” (BÍBLIA, 1980, p. 1072). Todos os autores cristãos
repetiam, na esteira de São Paulo: ‘non est potestas nisi a Deo’. A expressão,
tomada ao pé da letra, justificava a obediência a qualquer tipo de governo, pois
todos, independentemente de serem bons ou ruins, guardavam em Deus a sua
legitimidade.
Esse foi, nas palavras de Mosca (2008, p. 110), um grande obstáculo
que Santo Tomás de Aquino teve que superar e o fez, justificando na Summa
Teológica que Deus fundamenta todo o governo, cuja forma, no entanto, é
deixada à livre escolha dos homens.
Santo Tomás distingue o tirano a título, ou seja, que usurpa o poder,
do tirano ab exercitio, que é o soberano legítimo originalmente, mas que abusa
de seu poder. Julga que o tirano a título pode legitimar seu poder se governar
com justiça, ou seja, no interesse de seus súditos. Ele entende que o poder
político é necessário para o governo dos povos, todavia, admite a rebelião por
parte dos súditos em casos extremos, quando a tirania é insuportável e impõe
a estes, ações pecaminosas (MOSCA, 2008, p. 110).
Além de justificar e delimitar os alcances da hipótese divina do
fundamento do poder terreno, Santo Tomás antagoniza com Santo Agostinho
em relação ao caminho percorrido pelo poder para se encarnar.
O aquinatense não discorda da doutrina de São Paulo de que omnis
potestas a Deo (todo o poder vem de Deus), todavia, entende que o poder não
vem diretamente de Deus para os reis; o poder vem de Deus para o povo – o
conjunto de seus filhos – e, destes, se eles assim o quiserem, é que pode ser
transferido para os reis ou outros titulares. Em outros termos: omnis potestas
a Deo per populum (todo o poder vem de Deus através do povo) (AMARAL,
2011, P. 95).
Dessa constatação, Santo Tomás retira três consequências: i) a escolha
dos soberanos pertence ao povo (AQUINO A, 2003, p 715-716); ii) compete ao
povo, ou aos seus delegados, a elaboração de leis humanas (AQUINO A, 2003,

75
p 593-600) e; iii) o governo terreno não tem origem divina e sim humana. Se,
é regulado pela lei humana, por esta pode ser alterado (AQUINO B, 2003, p.
161-169).
As conclusões de Santo Tomás de Aquino sobre o fundamento do poder
seriam, no entendimento de Amaral (2011, p. 95), o embrião da doutrina da
origem popular do poder.
A melhor forma ou regime de governo para Santo Tomás resultaria da
mistura dos três tipos conhecidos: de monocracia, pois há alguém que dirige;
de aristocracia, já que os melhores participam na governação segundo os seus
méritos; e de democracia, na medida em que é ao povo que compete a eleição
dos príncipes (AQUINO A, 2003, p. 709-711).
Santo Tomás de Aquino denominou essa combinação de monocracia
(monarquia), o que poderia sugerir sua preferência pelo governo de um.
Todavia, a monocracia tomista não pode ser tomada em separado da
combinação de regimes que sugeriu.
A atualização da proposta mista de regimes de governo permite
verificar, como sugere Amaral (2011, p. 96), a longevidade e a pertinência
hodierna do pensamento político de Santo Tomás de Aquino.
[...] em linguagem atualizada, o que Santo Tomás
preconizou foi que a melhor forma de governo só
podia resultar desta tripla combinação: uma
liderança política personalizada; a governação e
administração do país por uma classe política
competente e por funcionários especializados; e
a entrega ao povo do direito de escolher os
governantes e de fazer as leis, senão por si
próprios, ao menos por delegados seus. Nada,
como se vê, de muito diferente do que hoje
acontece em democracia; daí a atualidade de
Santo Tomás como pensador político.

Em relação à autonomia entre Estado e Igreja, Santo Tomás de Aquino


afirmou que à ultima corresponde a direção das almas e ao primeiro, a dos
corpos; cada instituição tem, portanto, sua própria esfera de competência e
não deve invadir a da outra, Porém, em caso de conflito, o Papado sempre

76
pode julgar se o soberano pecou, porque o Sumo Pontífice detém o poder
máximo (MOSCA, 2008, p. 111).
Para Santo Tomás, em matérias que respeitem à salvação da alma, deve
obedecer-se mais ao poder espiritual do que ao poder temporal, todavia,
naquelas outras matérias ligadas ao mundo civil, deve obedecer-se mais ao
poder temporal do que ao espiritual (AQUINO, 1997, p. 126-130).
O detentor do poder temporal – O Estado, na atualidade – é concebido
por Tomás de Aquino como instituição natural, cuja finalidade consistiria em
promover e assegurar o bem comum. A Igreja, por outro lado, seria uma
instituição dotada fundamentalmente de fins sobrenaturais. Por esse motivo,
o Estado não precisaria se subordinar à Igreja, como se ela fosse um Estado
superior. “A subordinação do Estado à Igreja deveria limitar-se aos vínculos
de subordinação existentes entre a ordem natural e a ordem sobrenatural, na
medida em que esta aperfeiçoaria a primeira.” (MATTOS, 1988, p. 13-14).
Adverte, contudo, Amaral (2011, p. 98) que esta não era a regra da
separação completa entre os dois poderes, que somente encontraria condições
de existência com a Revolução Francesa. Todavia, à medida que o poder régio
se centralizava e surgiam novas monarquias nacionais independentes
(Inglaterra, França, Portugal), “a nova regra foi sendo interpretada e aplicada
de tal modo que o poder temporal se ia alargando e ganhando independência
face ao poder espiritual.”
Na consolidação da ideia de separação entre os poderes, destaca-se,
pelo ineditismo, a obra de Marsílio de Pádua.33
O pensamento político de Marsílio de Pádua se desenvolve quase que
contemporaneamente ao de outros dois pensadores reformistas e antipapistas

33 Conforme ressalvado no parágrafo imediatamente anterior ao presente


subitem, pretende-se aqui, tão somente indicar de maneira perfunctória o
pensamento político e as contribuições, ainda que não desejadas, dos mais
renomados autores da Igreja Católica (São Agostinho e Santo Tomás de
Aquino) à filosofia política e principalmente à democracia moderna.
Todavia, abre-se uma exceção a Marsílio de Pádua, em virtude de sua
antevisão em relação a algumas das instituições democráticas modernas.

77
do fim da Idade Média, Dante Alighieri e Guilherme de Occam, em um cenário
de recrudescimento dos conflitos entre o Papado e o Império e de uma gradual
autonomia do poder temporal sobre o espiritual, que marcaram os Séculos
XIV e XV (WOLKMER, 2006, p. 60).
A emergência do processo de secularização tem em Marsílio de Pádua
seu maior defensor, sobretudo, por ter levantado as críticas mais radicais ao
papado e à Igreja Romana. Dentre os seus trabalhos, o mais relevante, que
motivou a condenação pontifícia e que engendrou diversas interpretações, foi
o Defensor da Paz (Defensor Pacis), obra dedicada a Ludovico da Baviera,
dividida em três partes ou dictione: i) na primeira parte (Prima Dictio),
Marsílio de Pádua desenvolve sua proposta política acerca da comunidade
civil, tratando da origem e do objetivo da civitas, bem como de uma teoria da
lei como fundamento do Estado; ii) na segunda parte (Secunda Dictio) elabora
uma crítica aguda ao pensamento sociopolítico eclesiástico, apresentando a
razão de ser das leis divinas e humanas para o comportamento humano e o
relacionamento dessas leis entre si; iii) na terceira e menor parte (Dictio
Tertia) o autor expõe a recapitulação dos principais objetivos e conclusões das
duas primeiras partes (WOLKMER, 2005, p. 27).
Para Pisier (2004, p. 31), o mérito de Marsílio de Pádua é o de ter
definido o que iria se tornar mais tarde o Estado laico no seio do cristianismo.
E ele o faz interpretando, em primeiro lugar, politicamente a definição
naturalista de sociedade. A partir desse viés, a divisão do trabalho adquire a
finalidade de libertar o homem tão somente das necessidades básicas e lhe
proporcionar uma vida feliz na terra e a boa organização da existência profana
passa a ser o objetivo do político; em segundo lugar, Marsílio de Pádua
considera que a sociedade é um todo que, como tal, é anterior e transcendente
às suas partes. Esse todo corresponde à universalidade dos cidadãos,
incumbida de legiferar, de editar as leis necessárias à manutenção do todo e
que designa em seu seio uma parte principal que tem a seu cargo a coerção e
a gestão. “Está lançado, assim, o dispositivo teórico para que advenha o
conceito político de soberania, ou seja, o conceito moderno de Estado.”

78
Além de ter sido, provavelmente, o primeiro escritor a distinguir
nitidamente o poder executivo do poder legislativo (MOSCA, 2008, p. 118),
Marsílio de Pádua construiu uma teoria do poder derivada do povo. Para o
Paduano é na vontade popular que repousa a origem do Estado e da própria
lei. Nela, na necessidade da vida em comum de seus membros de viverem em
conjunto, a soberania estatal cria-se por si mesma, não necessitando,
legitimar-se em princípios religiosos ou teológicos (WOLKMER, 2003, p. 60).
Marsílio de Pádua lança, assim, as bases do que se constituiria a teoria
ascendente do poder, baseada na emanação deste do povo e na redução do
governante ao papel de representante daqueles que o escolhem. A esta se
oporia a teoria descendente do poder34, a qual, por sua vez, associa o
governante ao supremo e ao divino, tornando-se, portanto, uma autoridade
sobrenatural, contra quem não cabiam questionamentos ou reações
contrárias.35

34 Kritsch (2002, p. 369-371), subdivide a teoria do poder descendente em


duas versões: i) a tradicional, nela a autoridade de Deus era transmitida pelo
Papa ao governante, por meio da sagração; ii) a alternativa, segundo a qual
o poder descendia diretamente de Deus para os governantes. Esta versão,
cujos fundamentos remontavam à ideia da teocracia régia dos antigos,
constituiria a base teológica do absolutismo nos séculos XVI e XVII.
35 É possível, com base em Nunes (2012), partindo-se da dicotomia poder

ascendente e poder descendente, encontrar teorias mais pormenorizadas


acerca da titularidade do poder soberano: teoria da soberania absoluta do
rei; teoria da soberania popular; teoria da soberania nacional; teoria da
soberania do Estado: i) “[...] a teoria da soberania absoluta do rei, ou teoria
do direito divino sobrenatural, é uma decorrência da consolidação do
Estado moderno e está vinculada diretamente ao processo de construção do
conceito de soberania. Trata-se de uma doutrina essencialmente teocrática:
o rei era escolhido por Deus e não estava subordinado a nenhuma outra
autoridade. Esse princípio foi defendido principalmente por Bodin e seus
sucessores, como Charles Loyser, Cardin Le Bret e Richelieu [...]; ii) a teoria
da soberania popular é uma resposta aos argumentos dos defensores da
teoria da soberania absoluta do rei. A teoria da soberania popular tem suas
raízes no século XIV – com autores como Marsílio de Pádua – e ressurge no
século XVI – nos trabalhos de teóricos como Bellarmino e Suárez. Foi uma
tentativa de restringir os poderes dos monarcas absolutos. O fundamento
majoritário é a providência divina: o poder civil corresponde com a vontade
de Deus, mas promana da vontade popular – omnis potestas a Deo per

79
populum libere consentientem – conforme com a doutrinação do Apóstolo
São Paulo e de São Tomás de Aquino [...]; iii) a teoria da soberania nacional
é desvinculada da concepção teocrática de poder. Trata-se de uma teoria
democrática que se manifesta principalmente com o movimento liberal do
século XVIII, sobretudo na França. Contra o princípio da potestade real, a
soberania da nação foi formulada com uma dupla ideia fundamental que
consiste, segundo Malberg, em: iii.i) o rei não poder ser proprietário da
soberania; carece de poder para isso. A soberania não pode ser bem
particular de ninguém. A soberania ou potestade estatal, com efeito, não é
mais que o poder social da nação, um poder essencialmente nacional no
sentido e pelo motivo de que se funda unicamente nas exigências do
interesse da nação e de que não existe a não ser nesse interesse nacional.
Mais exatamente, em direito deve dizer que os governantes, propriamente
falando, não possuem a soberania mesma, visto que, muito diferentemente,
somente têm o exercício dela; não estão investidos mais que de uma simples
competência, e neste sentido, são apenas administradores de um bem
estranho, de um poder que é puramente da nação. Este é o primeiro sentido
do princípio da soberania nacional; iii. ii) de outro lado, a Assembleia
nacional formula e consagra a ideia, não menos importante, de que entre os
homens que compõem a nação, nenhum pode pretender o exercício do
poder soberano fundando-se em um direito de mando inato em sua pessoa,
ou alegando, bem seja uma superioridade pessoal, bem uma vocação
pessoal para este exercício. Em efeito, a soberania é propriamente o direito
que tem a comunidade nacional de fazer respeitar seus interesses superiores
por meio de sua potestade, também superior; é, por conseguinte, um direito
que só pertence à nação. O principal teórico da soberania nacional foi Jean-
Jacques Rousseau, que a associava à vontade geral, equivalente à soma de
todas as vontades individuais, a soberania. Para este pensador francês, ao
indivíduo caberia um duplo papel: de súdito, uma vez que todo indivíduo é
subordinado ao poder soberano que detém a mais ampla forma de
jurisdição dentro de um território, a jurisdição nacional nos aspectos
administrativo, legislativo e judiciário; e de cidadão, pois integra e ajuda a
compor a vontade geral; iv) a soberania do Estado foi amplamente
defendida pelas escolas alemã e austríaca, representadas principalmente
por Georg Jellinek e Hans Kelsen. Para essa teoria, a soberania não pertence
nem ao governante nem aos governados, mas ao Estado, que tem a
exclusividade na criação do direito. Assim não haveria nenhum direito
alheio à figura do Estado. Jellinek afirma que a soberania é um poder
jurídico e Kelsen de outra forma não pensa, uma vez que defende o Estado
como uma ordem normativa e só admite a soberania dentro do domínio do
normativo. Essa teoria se fundamenta, principalmente, em uma visão
monista da relação entre Estado e direito, isto é, Estado e direito formam
uma realidade única. Assim, não seria concebível qualquer forma de direito
que não fosse aquele criado pelo Estado, o direito positivo. Do mesmo
modo, não seria concebível um Estado que não fosse um Estado de direito.”

80
As teorias descendente e ascendente encerram as bases para a
compreensão do político nos Estados que se formaram a partir da
Modernidade, no Ocidente.
A partir delas podem ser problematizados os aspectos subjacentes à
ideologia do Estado Absolutista: a fusão entre o aparato jurídico e a liturgia
cristã, com a progressiva incorporação do aparelho burocrata, que caracteriza
o Ancien Régime36 (KANTOROWICZ, 1998) e sua posterior desintegração e
desincorporação, criando a autonomização dos campos, marca registrada das
modernas democracias.
Dessa forma, há de se ponderar, como, aliás, o faz Costa (2010, p. 212),
se há uma total descontinuidade entre a democracia dos antigos – democracia
de assembleias – e a democracia dos modernos – representativa – e se a Idade
Média – com seu pensamento político e social “[...] dominado pela ideia da
existência de uma ordem universal (cosmos), abrangendo os homens e as
coisas, que orientava todas as criaturas para um objectivo último que o
pensamento cristão identificava com o próprio criador [...]” (HESPANHA,
2005, p. 101) – pode ser tratada como uma trilha interrompida a separar as
duas grandes aparições da democracia na história da humanidade ou se, na
verdade, a idade do meio, em sua constante tensão, serviu, acima de tudo,
como ponte a ligar os dois modelos.
Tanto a figura da trilha interrompida quanto a da ponte remetem a um
determinismo histórico não contemplado na teoria reinventiva de Lefort ou,

36 “O Ancien Régime foi uma construção solidamente alicerçada sobre um


sistema de representação no qual a crença em antigas mitologias políticas,
com raízes culturais que remontavam à Antiguidade clássica e à Idade
Média, era um dos traços mais característicos. Isto porque o Ancien Régime
foi um conjunto complexo, que continuou expressando a si mesmo, por
meio do pensamento político, no quadro amplo de uma perspectiva
cosmológica e pelo recurso de imagens simbólicas cujas origens se perdem
nos séculos da Idade Média. Daí o retorno e o império absoluto, na
historiografia do Grand Siècle, do mítico e do lendário, em contraste com os
avanços significativos do período anterior, proporcionados pela história dos
humanistas e homens de letras da França da Renascença.” (LOPES, 1997, p.
30).

81
mesmo, na concepção do pesquisador. A democracia é criação humana e
encontra caminhos ao longo da sua história.
Os caminhos nem sempre são trilhas ou pontes, nem sempre são
unidirecionais, nem sempre partem de um determinado ponto e chegam a
outro pretendido, nem sempre são evidentes conforme se mostram. Não são,
por outro lado, caminhos-de-bosque – termo utilizado por Heidegger (1995)
para transmitir a ideia de caminhos que não levam a lugar nenhum, não
obstante se perderem em diversas ocasiões, tal como a alusão heideggeriana,
no bosque da história.
A democracia segue por caminhos de traçados aleatórios, em geral
meio ocultos pela natureza dos humanos e das instituições que inventam,
muitas vezes semelhantes nas diferenças, outras, distintas nas semelhanças,
que, a priori, não podem ser definidas em termos relacionais e, muito menos,
espaciais. A partir de tal perspectiva é possível, mesmo que remotamente, ligar
o Islã37 à democracia moderna, por meio do pensamento de Ibn Khaldûn.
Ibn Khaldûn desenvolveu sua obra no século posterior àquele no qual
viveu Santo Tomás de Aquino. Sem que tenha sido registrado qualquer dado
que indicasse possíveis influências do pensamento do aquinatense, Ibn

37 A história política e social da civilização islâmica está associada ao povo


árabe do século VII d.C. e a uma nova religião revelada a Maomé. Mais do
que uma religião monoteísta, o islamismo constituiu uma civilização
poderosa nascida das tradições do deserto de das confluências de culturas
diversas. O início da era islâmica ocorre quando Maomé (Muhammad)
abandona Meca, em 622, e dirige-se à cidade de Medina. Neste local
organiza sua comunidade religiosa e a partir daí consegue conquistar a
cidade sagrada de Meca. Após o surgimento do islamismo, seus seguidores
dividiram-se em seitas (sunita, xiita, e sufi). Toda a formação da cultura e
da forma de vida dos mulçumanos está configurada no livro sagrado do
Alcorão. Em virtude da força integradora de sua religião e determinação
política dos Califas sucessores de Maomé, a civilização islâmica teve uma
rápida expansão chegando à Península Ibérica. A dominação islâmica na
Espanha e em Portugal durou cerca de oito séculos. O período longo
propiciou uma influência indiscutível da cultura islâmica sobre a Europa
(uruba) na segunda metade da Idade Média e no início da Idade Moderna
(WOLKMER, 2010, p. 293-296).

82
Khaldûl encetou uma investigação correspondente ao naturalismo moderado
de Santo Tomás, acrescentando à noção de sociedade como fato natural uma
reflexão sobre o destino histórico dos povos e das forças que nela se afrontam.
Outra originalidade relativa a Ibn Khaldûn é relativa ao método empregado.
Ele antecipa-se aos sociólogos e pesquisadores contemporâneos ao romper
com o racionalismo abstrato da teoria islâmica e se empenhar em descrever
minuciosamente os dados reais a fim de descobrir as relações que os
determinam, criando, assim, uma espécie de inteligibilidade experimental
(PISIER, 2004, p. 28-29).
A grande contribuição de Ibn Khaldûn para a sociologia está
relacionada à ênfase que empregava aos fatores sociológicos na regência dos
acontecimentos aparentes (HASSAN, 2012).
Segundo Ibn Khaldûn, a história consiste em uma informação sobre a
sociedade humana. Opondo-se à teologia, que interpreta o real em razão de
uma revelação prévia, ele retira da observação e do raciocínio sobre os
acontecimentos critérios que permitem julgar a veracidade das narrativas
históricas, tais como os conceitos operacionais de umrân (sociedade por
oposição ao Estado) e açabiyyah (solidariedade, espírito de corpo) (PISIER,
2004, p. 29).
Às ideias de Ibn Khaldûn acresçam-se ao legado do Islã algumas
instituições, em especial a jamaa’ i madani (sociedade civil) e a waqf 38, fruto

38 Ao contrário do que comumente se apregoa o Islã não era somente uma


religião de moradores dos desertos e sim de mercadores com conexão entre
vários centros urbanos com um dinamismo econômico impressionante para
a época. A visão mulçumana do Islã como fulcro do mundo era permeada,
assim, por fundamentos econômicos. Por outro lado, a capacidade de
incrementar invenções técnicas sofisticadas, algumas importadas de outras
regiões, tais como o papel chinês, outras produtos de inovações, como o
papel feito de pasta de trapo, facilitou o desenvolvimento da leitura em
público, a disseminação de conhecimento científico e o desenvolvimento de
um sistema pioneiro de leis contratuais. Tais fatores foram determinantes
para o surgimento de uma jamaa’ i madani (sociedade civil), diferenciada
por seu desenvolvimento pioneiro de leis privadas e civis que protegiam o
comércio e a propriedade. A sociedade civil se materializava através de

83
de uma lenta cristalização de velhos costumes das tribos do deserto, alguns
derivados de práticas democráticas da Síria-mesopotâmia, trazidos à Europa,
via Península Ibérica e que, juntamente com práticas democráticas européias
protomodernas, foram contributivas para o modelo de democracia que se
instalou neste continente a partir dos Séculos XVII e XVIII.

1.1.3.2 EXPERIÊNCIAS DEMOCRÁTICAS EUROPEIAS PROTOMODERNAS

Apesar das inegáveis influências do pensamento político do medievo


para a reinvenção da democracia na modernidade, durante toda a idade do
meio, a Europa praticamente não conheceu democracias representativas, o
que não significa que tenha ocorrido um eclipse democrático total na Idade
Média. Dahl (2009, p. 25-31) indica a ocorrência de experiências democráticas
nas cidades-estado da Itália e no norte da Europa.
Repetindo o padrão ocorrido em Roma, povoados do norte da Itália,
por volta de 1100 d.C., experimentaram governos populares.
Restritos, no início aos membros das famílias de classes superiores,
com o tempo, por força da pressão dos novos ricos – pequenos mercadores,
banqueiros, pequenos artesãos organizados em guildas, soldados das
infantarias –, tais cidades-estado passaram a permitir a participação do

parcerias de negócios. Além das parcerias, a sociedade civil do Islã se


baseava em esteios, tais como a waqf, espécie de sociedade de dotação, de
natureza não governamental, baseada no princípio de que os seres humanos
tinham uma dívida com o futuro e eram obrigados a impedir acúmulos
injustos de propriedade e riqueza. A waqf tinha como princípio a autonomia
entre o direito de propriedade e seu exercício. Uma espécie de função social
da propriedade impunha aos proprietários o fornecimento de dotações a
seus filho ou netos, às pessoas pobres ou a instituições com propósitos
públicos ou religiosos. O mais interessante em relação à waqf era a
resistência do povo às tentativas dos governantes de a confiscarem ou
controlarem. Este processo de cooperação, de confrontação e de resistência
encerrava em si o princípio de que o governo só será legitimo se for
sancionado pelo consentimento ativo dos representantes escolhidos pelos
próprios governados (KEANE, 2010, p. 148-166).

84
popolo no governo local, constituindo-se, dessa forma, em repúblicas que
durante mais de dois séculos floresceram em cidades italianas como Florença
e Veneza. Em função do declínio econômico, aumento de corrupção, do
despotismo estas repúblicas foram se enfraquecendo, até desaparecerem com
o surgimento do que seria o Estado moderno (DAHL, 2009, p. 26).
A democracia ateniense, a república romana e a das cidades-estado
italianas não possuíam muitas das características da moderna democracia
representativa.
A Grécia antiga e as cidades-estado italianas do medievo e do período
renascentista possuíam um governo local popular, mas não tinham um
governo nacional eficaz. Em que pese toda a sua extensão, Roma não contava
com um sistema de representação. A esses três modelos, da perspectiva atual,
faltavam pelo menos três instituições políticas básicas: i) um parlamento
nacional; ii) representantes eleitos pelo povo; iii) governos locais eleitos pelo
povo, subordinado ao governo nacional. Foi na Escandinávia, na Suíça, nos
Países Baixos e na Inglaterra, e em qualquer outro canto ao norte do
Mediterrâneo que essa combinação de instituições políticas originou-se,
seguindo, a grosso modo, o seguinte modelo: “Em várias localidades, homens
livres e nobres começariam a participar diretamente das assembleias locais. A
essas, foram acrescentadas assembleias regionais e nacionais, consistindo em
representes a serem eleitos.” (DAHL, 2009, p. 27-28). 39

39 Entre os anos de 600 d.C. e 1000 d.C., na região de Trondheim, Noruega, os


vikings livres se reuniam periodicamente para uma assembleia judicial
chamada Ting. Em torno de 900 d.C. as assembleias de vikings livres
passaram a acontecer fora da região de Trondheim, em outras áreas da
Escandinávia. A Ting se reunia em um campo aberto, marcado por grandes
pedras verticais, nela os homens livres resolviam disputas; discutiam,
aceitavam ou rejeitavam leis; adotavam ou derrubavam propostas de
mudança de religião e elegiam ou davam aprovação a um rei que, em geral,
devia jurar fidelidade às leis aprovadas na Ting. Ao se aventurarem para o
oeste, na direção da Islândia, os vikings disseminaram suas práticas
políticas e criaram em diversos locais uma Ting. No ano de 930 d.C. criaram
uma espécie de supra Ting, a Althing, assembleia nacional que permaneceu
a fonte da legislação islandesa durante trezentos anos. A Althing, de certa
forma, foi um prenúncio dos parlamentos nacionais. Na mesma época, na

85
Essas experiências encerram as sementes daquilo que veio a ser
denominada de democracia moderna.

1.1.3.3 A INVENÇÃO DA DEMOCRACIA NA MODERNIDADE

Talvez, um dos grandes desafios de uma tese resida em sua coerência.


São recortes temáticos seguidos de mais recortes que devem ser feitos com os
devidos cuidados para que se mantenha ao longo do texto uma recíproca
aderência entre todas as partes da pesquisa e de sua materialização em um
trabalho que deve ser original, inédito e dotado de relevância social e
científica.
A submissão a pares, que testarão e atestarão os requisitos, as
qualidades e a relevância da tese, talvez torne as justificativas tão relevantes
quanto às escolhas. É que, atestar a veracidade e a cientificidade é tão
importante quanto provar – ou demonstrar – que se trabalhou como não se
poderia deixar de trabalhar, que o caminho trilhado foi adequado e coerente
ao conectar os diversos pontos percorridos na empreitada.
Neste momento poder-se-ia questionar acerca da coerência do
presente capítulo. Por que, afinal de contas, preparar terreno para as análises
lefortianas sobre a democracia com um apanhado histórico das experiências
democráticas do Ocidente e sobre o pensamento político de épocas
democráticas e não democráticas? Por que, para trabalhar a democracia como
invenção, é necessário passar pelas várias invenções democráticas?
Representando a proposta de Lefort, ao mesmo tempo, ruptura e abertura.

Noruega, na Dinamarca e na Suécia, foram criadas assembleias regionais


que depois se transformaram em assembleias nacionais. Essas assembleias
eram os germens da representatividade. Na Suécia, a tradição da
participação popular nas assembleias levou, no século XV, o rei a convocar
reuniões de representantes de diferentes setores da sociedade sueca:
nobreza, clero, burguesia e povo. Posteriormente, essas reuniões evoluíram,
transformando-se no riksdag, ou parlamento (DAHL, 2009, p. 28-30).
.

86
Ruptura com o passado e abertura para o futuro, aquela certa, pois necessária,
e esta, incerta, mas necessária, por que historiar sobre a democracia? Não
haveria uma incoerência metodológica na proposta, já que é a partir da
desincorporação do corpo do rei que o filósofo político trata a democracia,
importando-se com um típico fenômeno moderno?
É que se pretende, a partir de Lefort, trabalhar os limites e as
fragilidades da democracia e as condições para que se viabilize enquanto
modelo decisório na atualidade. Proposta que leva, necessariamente, à
história da democracia, a análises dos períodos em que vigorou intensamente
e aos seus ocasos, ou seja, a sua contínua reinvenção. Aí reside a justificativa
para o recorte eleito.
Tal proposta permite, ainda, pensar a adaptabilidade da democracia
aos cenários de alta complexidade social e técnica, e refletir sobre o que deve
ser agregado aos modelos democráticos em vigor, tornando-os mais
adequados ao exercício decisório pelos cidadãos sobre as incertezas e os riscos
que os avanços tecnológicos vêm incorporando às sociedades atuais.
A adesão à teoria de base escolhida importa na escolha de duas
estratégias de análise que marcaram o pensamento filosófico político de
Lefort, relacionadas com a ruptura e a abertura contidas na democracia
moderna.
A ruptura com a tradição do Ancien Régime, ainda que diretamente
imbricada com a experiência francesa, é a grande novidade da democracia
moderna, que a distingue de todas as demais formas de democracia já
vivenciadas e possibilita pensar com mais propriedade a sua reinvenção.
A abertura ao futuro e a ínsita ausência de segurança marcam as
variáveis democráticas da modernidade como marcaram a democracia de
assembleias da Sírio-mesopotâmia, a democracia ateniense, a República
Romana e as experiências protomodernas democráticas. É essa hipótese que
se pretende confirmar no restante do presente capítulo e no início do
vindouro. Para tanto, a partir de análises dos modelos democráticos mais
representativos da modernidade ocidental, procurar-se-á demonstrar que o

87
fato de estar fadada à incerteza torna a democracia dependente da ação
política – no sentido arendtiano – continuada, o que, de certo modo, impõe
perquirir acerca de sua reinvenção.
O exercício passa pela identificação das causas e diferenciação dos
elementos e das características das principais democracias que se
estabeleceram a partir das Revoluções Burguesas, para, a partir deste,
identificar o que poderia ser definido como o núcleo duro, a “conditio per
quam” – no sentido arendthiano – da democracia.
Há de se ressalvar, todavia, que tentativas comparativas entre modelos
democráticos encontram na singularidade de cada um e na ausência de
paradigmas evidentes ou leis uniformes de desenvolvimento histórico da
democracia desafios de ordem metodológica que impedem o refinamento de
instituições democráticas pela aplicação de padrões encontrados em
determinado modelo a outros, bem como a realização de comparações entre
modelos por meio do isolamento de padrões descontextualizados. Isso,
porque, além de ser moldada por circunstâncias institucionais, vista como um
modo de vida, a democracia “[...] sempre nasce, é nutrida ou desnutrida em
contextos particulares.” (KEANE, 2010, p. 170).
Não obstante, na História das Origens do Governo Representativo na
Europa, Guizot (2008, p. 59) adverte que:
Desde o nascimento das sociedades modernas,
sua condição foi tal que, em sua instituição, em
suas aspirações e no curso de sua história, a
forma representativa de governo [...]
constantemente pairou com maior ou menor
clareza à distância, como o porto ao qual elas
devem finalmente chegar, apesar das
tempestades que as dispersam e dos obstáculos
que confrontam e evitam sua entrada.

A caminhada dos Estados europeus rumo à representatividade – que


acompanhou a dos Estados Unidos da América –, no campo do político, leva,
guardadas as ponderações acima, ao estudo do mais difundido modelo
democrático moderno, o da representatividade.

88
1.1.3.3.1 A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

A mesma desordem de causas disparatadas que está na gênese das


diversas modalidades democráticas de assembleias marcou a redefinição ou a
reinvenção da democracia representativa nos últimos séculos do segundo
milênio na Europa e nos Estados Unidos da América. Há, contudo, condições
comuns que justificam seu aparecimento. Dentre as principais, algumas não
são tão evidentes: a busca por um revezamento de líderes e o controle pacífico
do exercício do poder, por exemplo. Outras são de ordem essencialmente
prática: a ampliação do território de Estados geograficamente definidos e o
crescimento do número de pessoas (KEANE, 2010, p. 170-174).
Seja motivado por um fator ou por outro, o surgimento da democracia
representativa parecia tão improvável como a própria combinação engenhosa
de duas palavras com tamanha contradição: democracia e representação.
Aquela a indicar – na acepção ateniense – a ação pela palavra de cidadãos já
libertos, dotados de isonomia e isegoria, em um espaço público de
participação e deliberação diretas. Esta, pressupondo a retirada do principal
interessado, em nome de quem se decide, na maioria das vezes, reduzido à
abstração traduzida pelo substantivo ‘povo’, do espaço de decisão em prol de
alguns, escolhidos por critérios diversificados, em função do local e do tempo.
O oximoro é explicitado por Bobbio (1989, p. 44-46). Partindo do
conceito genérico que liga a democracia representativa ao fato de serem as
deliberações coletivas, que dizem respeito à coletividade inteira, tomadas não
diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para
esta finalidade, o autor precisa a acepção de representação nos seguintes
termos:
[...] as democracias representativas que
conhecemos são democracias nas quais por
representante entende-se uma pessoa que tem
duas características bem estabelecidas: a) na
medida em que goza da confiança do corpo
eleitoral, uma vez eleito não é mais responsável
perante os próprios eleitores e seu mandato,
portanto, não é revogável; b) não é responsável
diretamente perante os seus eleitores
exatamente porque é convocado a tutelar os

89
interesses gerais da sociedade civil e não os
interesses particulares desta ou daquela
categoria. (BOBBIO, 1989, p. 47).

O processo de transmutação da democracia pela representação


remonta, para Keane (2010, p. 177-183) às Cortes de Alfonso IX, que teriam
sido motivadas pela necessidade de fortalecimento do Reino de Leon frente ao
poderio mouro.40 Passa também pelo costume nórdico das Althings e pelos
parlamentos que emergiram na Europa, em especial nos Países Baixos e na
Inglaterra, na Baixa Idade Média.
Contudo a morfologia da democracia representativa, como é hoje
conhecida, é fruto de experiências históricas bem mais recentes, ocorridas nos
dois lados do Atlântico Norte, que podem ser datadas a partir da Revolução
Americana de 1776.

1.1.3.3.1.1 A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA NORTE-AMERICANA

No lado oeste, a grande revolução democrática (TOCQUEVILLE, 1987)


fez dos Estados Unidos da América do Norte a “[...] mais prometedora
democracia representativa dos séculos 19 e 20 [...].” (KEANE, 2010, p. 337).

40 As assembleias representativas inspiradas nas Cortes de Alfonso IX tiveram


profundo impacto sobre a vida política em todos os reinados espanhóis.
Durante o século XIII, parlamentos difundiram-se de Leon e Castela a
Aragão, Catalunha, Valência e Navarra. Fora da Espanha, foram estendidos
também à Sicília, Portugal, Inglaterra, Irlanda, Áustria e Brandeburgo.
“Durante os dois séculos seguintes, parlamentos desenvolveram-se na
grande maioria dos principados germânicos, na Escócia, Dinamarca,
Suécia, França, Países Baixos, Polônia e Hungria. Quase todos esses
parlamentos originais sobreviveram até os séculos 17 e 18; apesar do
crescimento de estados absolutistas, que extinguiram as assembleias de
Aragão, Catalunha e Valência, muitas continuaram a funcionar até a
irrupção da Revolução Francesa em 1789. Umas poucas (as Cortes de
Navarra, o sueco Rigsdag e a Dieta húngara) perduraram no século 19. Os
poderosos Estados do Ducado de Mecklenburg sobreviveram intactos até
1918.” (KEANE, 2010, p. 186-187).

90
Nesse país, os elos entre democracia e representação foram forjados no
plano teórico por ativistas políticos como Alexander Hamilton, James
Madison, John Jay e Thomas Paine.
Hamilton, Madison e Jay participaram ativamente da luta pela
independência dos Estados Unidos e publicaram em 1788, sob o pseudônimo
de Publius, na imprensa de Nova York, uma série de artigos visando contribuir
para a ratificação da Constituição Americana pelos Estados membros, os quais
foram reunidos em uma coletânea de nome ‘O Federalista’.
A intenção dos autores era tornar pública a teoria política que
fundamentava o texto constitucional e, ao mesmo tempo, refutar as principais
objeções de seus adversários, que, seguindo a filosofia política da época, em
especial a de Montesquieu41, membro de uma tradição teórica que se inicia em

41 Montesquieu objetivou aproveitar certas características dos regimes


monárquicos, para conferir maior estabilidade aos regimes que viriam
resultar das revoluções democráticas. Ele considerava duas dimensões do
funcionamento político das instituições: a natureza e o princípio de
governo. A natureza do governo diz respeito a quem detém o poder: na
monarquia, um só governa, através de leis fixas e instituições; na república,
governa o povo no todo ou em parte; no despotismo, governa a vontade de
um só. O princípio de governo tem a ver com o modo como o poder é
exercido: i) O princípio da monarquia é a honra, que corresponde a um
sentimento de classe, a paixão da desigualdade, o amor aos privilégios e
prerrogativas que caracterizam a nobreza. O governo de um só baseado em
leis fixas e instituições permanentes, com poderes intermediários e
subordinados, tal como a Monarquia, só pode funcionar se esses poderes
intermediários orientarem sua ação pelo princípio da honra; ii) A virtude,
que corresponde ao espírito cívico, à supremacia do interesse coletivo sobre
os particulares é o princípio da república. Onde não há poder que contrarie
o poder como a nobreza contraria o rei e este à nobreza, somente a
predominância do interesse público poderia moderar o poder e impedir a
anarquia ou o despotismo. Para Montesquieu, a república é o regime de um
passado em que as cidades reuniam um pequeno grupo de homens
moderados pela própria natureza das coisas: uma certa igualdade de
riquezas e de costumes ditada pela escassez. Com o desenvolvimento do
comércio, o crescimento das populações e o aumento e a diversificação das
riquezas ela se torna inviável: numa cidade dividida em classes a virtude
(cívica) não prospera. O despotismo seria a ameaça do futuro, na medida
em que as monarquias europeias aboliam os privilégios da nobreza,
tornando absoluto o poder do executivo. Apenas a monarquia, isto é, o

91
Maquiavel e culmina em Rousseau, apontavam para a incompatibilidade entre
os tempos modernos e os governos populares, em função, principalmente da
necessidade de serem mantidos grandes exércitos e da predominância das
preocupações com o bem-estar material, fatores que faziam das grandes
monarquias a forma de governo mais adequada ao espírito de então. Além do
que, era corrente a noção de que governos populares necessitam de condições
ideais que já não mais existiam: um pequeno território e cidadãos virtuosos,
amantes da pátria e desapegados de interesses materiais; e, a história da
Europa já comprovara que, se porventura, governos assim se formassem,
seriam presas fáceis de vizinhos militarizados (LIMONGI, 2000, p. 246).
Outro objetivo imbuía os autores de ‘O Federalista’:
[...] defender a constituição de 1789 contra
aqueles que pensavam que removendo ou
enfraquecendo os poderes dos Estados
individuais pelos anteriores Articles of
Confederation, dariam muita autoridade ao
governo federal. Madison, de forma particular,

governo das instituições, seria o regime do presente. A partir destas


constatações, Montesquieu, após estudo in loco da estrutura bicameral do
Parlamento britânico, lança a teoria dos três poderes, que na versão mais
divulgada é conhecida como a teoria da separação dos poderes ou da
equipotência. De acordo com essa versão. Montesquieu estabeleceria, como
condição para o Estado de direito, a separação dos poderes executivo,
legislativo e judiciário e a independência entre eles. A ideia de equivalência
consiste em que essas três funções deveriam ser dotadas de igual poder.
Todavia, segundo Althusser (1972), para que haja moderação é preciso que
a instância moderadora encontre sua força política em outra base social.
Montesquieu considera a existência de duas fontes de poder político: o rei,
cuja potência provém da nobreza, e o povo. É preciso que a classe nobre, de
um lado, e a classe popular, de outro lado (na época ‘povo’ designava
burguesia), tenham poderes independentes e capazes de se contrapor, pois
a estabilidade do regime ideal está na capacidade das instituições políticas
expressarem as correlações existentes entre as forças reais da sociedade, ou
seja, seria necessário que o funcionamento das instituições permitisse que
o poder das focas sociais contrapusesse e, portanto, moderasse o poder das
demais. A proposta de Althusser inscreve a teoria de Montesquieu na linha
daquelas que apontam para a necessidade de arranjos institucionais que
impeçam que alguma força política possa a priori prevalecer sobre as
demais.

92
defendeu que o sistema de pesos e contrapesos
da Constituição entre os poderes legislativo,
executivo e judiciário e o sistema bicameral do
congresso oferecia proteção contra o abuso por
parte do poder central de governo.
(CUNNINGUAM, 2009, p. 100).

Madison, nos comentários 57, 62 e 63 de ‘O Federalista’, com a


finalidade de refutar as objeções à concentração de poder no ente Federal em
detrimento dos Estados membros, procura evidenciar a natureza
estabilizadora do congresso e o papel da Câmera dos Deputados e do Senado
como entes moderadores da Federação.
As suas justificativas passam pela filtragem que eleições frequentes
operam no sentido de permitir à “[...] grande massa do povo dos Estados
Unidos [...]”42 (HAMILTON; MADISON; JAY, 2000, p. 279) escolher como
dirigentes as pessoas mais “[...] capacitadas para discernir e mais eficientes
para assegurar o bem-estar da sociedade[...]” (HAMILTON; MADISON; JAY,
2000, p. 279), por meio da representação, que constitui: “A diferença mais
acentuada entre a república americana e as outras [...]” (HAMILTON;
MADISON; JAY, 2000, p. 286) existentes, até então.
Os autores procuravam, ainda, demonstrar que o espírito comercial da
época não impedia a constituição de governos populares, os quais não
dependiam, tampouco, exclusivamente da virtude do povo e, muito menos,
estavam fadados a permanecer confinados a pequenos territórios. Pelo
contrário, a ampliação do território e dos interesses era benéfica a esse tipo de
governo. Com tal argumento, ‘O Federalista’ rompe, pela primeira vez, com a
prática de teorizar acerca dos governos populares com base nos exemplos da
antiguidade (LIMONGI, 2000, p. 246).
Thomas Paine (2009, p. 216-217), partindo do pressuposto de que
república não é nenhuma forma particular de governo e sim a finalidade para
a qual este deve ser instituído e orientado: o bem ou a coisa pública, afirma

42 Ressalvas devem ser feitas ao que representava na época a grande massa do


povo dos Estados Unidos.

93
que aqueles que entendem não ser a república uma forma de governo
concebida para países de grandes extensões confundem, em primeiro lugar, a
atividade ou a finalidade de um governo com a forma de governo, pois o
interesse público diz respeito da mesma forma a toda extensão territorial e a
toda a população.
Em relação à possibilidade de uma república ser ou não vasta, somente
a democracia simples (direta) é sistema de governo inapto para tanto. “Não se
trata, portanto, de uma república não poder ser vasta, mas de não poder ser
vasta na forma democrática simples.” (PAINE, 2009, p. 217).
Os argumentos dos autores de ‘O Federalista’ e de Paine mostraram-se
suficientes – e a história os deu razão – para derrubar a máxima de que
governos populares não se coadunavam com países de grandes extensões e
densidade demográfica.
Sobre qual seria a melhor forma de governo para conduzir a Res-
publica, ou os assuntos públicos de uma nação extensa e populosa para os
padrões diretos de democracia, Paine (2009, 217) descarta a monarquia, por
estar sujeita a uma mesma objeção a qual se sujeitava a democracia direta,
qual seja a incapacidade de um único sujeito possuir um conjunto de
conhecimentos práticos que lhe permitam tratar de todas as variáveis
impostas pelo alargamento do território e da população. Portanto, “[...] a
forma monárquica é tão limitada, na prática útil, pela incompetência de
conhecimentos quanto era a forma democrática [direta] pela multiplicidade
da população.” (PAINE, 2009, p. 217-218).
A forma aristocrática apresenta para o autor (2009, p. 218), com
exceção da maior probabilidade de surgimento de talentos, os mesmos vícios
e defeitos da monarquia.
A solução apontada por Paine (2009, p. 218) é reinventar a
democracia, aproveitando o princípio democrático, transformando-a de direta
para indireta:
Reportando-nos então à democracia simples
original [direta], obteremos os dados genuínos
de como o governo em larga escala pode iniciar.

94
É incapaz de se estender, não por conta de seu
princípio, mas da inconveniência de sua forma; a
monarquia e a aristocracia o são por conta de sua
incapacidade. Retendo, portanto, a democracia
como o fundamento e rejeitando os sistemas
corruptos da monarquia e da aristocracia, o
sistema representativo naturalmente se
apresenta, remediando ao mesmo tempo os
defeitos da democracia simples quanto à sua
forma e a incapacidade dos outros dois quanto ao
conhecimento.

Estavam, dessa maneira, lançadas as bases sobre as quais se ergueria o


edifício da democracia representativa norte-americana.
Os Estados Unidos foi o país que: i) testemunhou o surgimento do
primeiro sistema de partidos políticos, a primeira transferência pacífica de
governo de um partido para o outro e o primeiro partido chamado a si próprio
de democrático; ii) experimentou, pela primeira vez, o deslumbramento das
campanhas eleitorais e o clamor da luta de partido; iii) conseguiu manter viva
a democracia frente aos impactos de uma guerra civil mortal e das ondas
produzidas pelo assassinato de dois presidentes; iv) opôs pela primeira vez a
democracia à escravidão bem como a se comprometer com o processo longo,
doloroso e assediado para estender os direitos de cidadania a pessoas cuja cor
da pele era mais escura do que a branca; v) assistiu, antes de todos os demais
países, a degeneração dos partidos políticos em máquinas dirigidas por chefes
e auxiliares de campanha em tempo integral e financiados por negócios
poderosos; vi) deu rédeas soltas a experimentos na reforma do serviço civil
que objetivava injetar maior eficiência, profissionalismo e perícia nas
estruturas de governo; vii) assistiu aos primeiros esforços voluntários
conscientes, em nome da democracia, para cultivar a sociedade civil e a
oposição cívica e para desencadear uma nova forma de jornalismo
antagonista, que usou todo o seu poder e influência no apoio aos esforços
públicos para expor a corrupção e insuflar nova vida ao sistema atribulado do
governo representativo (KEANE, 2010, p. 337-338).

95
Todavia, a democracia representativa norte-americana foi a primeira a
ser proposta como modelo hegemônico a povos considerados inferiores, tanto
no país como no resto do mundo, pelo império norte-americano.

1.1.3.3.1.2 A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA NA EUROPA

Na década que sucedeu àquela em que foi redigida a Declaração de


Independência dos Estados Unidos da América, um fato histórico iria eclodir
na França e reverberaria por toda a Europa – e o restante do Ocidente. A
Revolução Francesa pode ser tida como o marco significante da democracia
representativa na Europa.
Não que a França tenha sido o primeiro país a experimentar este novo
modo de governo. Como já visto as origens da representação política na
Europa podem ser buscadas na Cortes de Alfonso IX, nas Althings e nos
parlamentos dos Países Baixos e da Inglaterra, desde o final do medievo.
Durante o século XVII, instalou-se na Polônia um governo que assumiu
a forma incomum de república dirigida pela nobreza, baseada em um sistema
denominado “democracia aristocrática”. Tal fórmula, por permitir a
manipulação pela aristocracia das decisões e por excluir os plebeus da vida
política causava estranheza a Paine (2009, p. 216-217), que tinha como
paradigma republicano os Estados Unidos da América:
Várias formas de governo se pretendem
repúblicas. A Polônia se denomina uma
república aristocrática hereditária governada por
uma monarquia eletiva. [...]. Mas o governo da
América, que se baseia inteiramente no sistema
representativo, é a única república verdadeira, na
sua natureza e na prática, atualmente existente.

Paine (2009, p. 213) reconhecia, no entanto, que a Polônia, apesar de


ser uma monarquia eletiva, sofria menos guerras do que as demais
monarquias hereditárias e foi o único governo a tentar voluntariamente, ainda
que em pequena magnitude, reformar a condição do país.

96
Na Holanda, durante a década de 1780, um grupo autodenominado
“Patriotas”, com base na experiência americana, esteve a um passo de
constituir uma república federada e autônoma. Em 1785, os “Patriotas”
formaram um governo rival eleito denominado os “Constituídos” e apoiaram
uma nova constituição para os países baixos unidos, a Leinden Draft, na qual
o parágrafo de abertura reclamava um governo do povo por meio da
representação e reconhecia a primazia dos direitos naturais sobre todos os
poderes e cargos herdados (KEANE, 2010, p. 430-431).
Apesar de terem sido presos e exilados pelo exército prussiano, os
“Patriotas” lançaram novas luzes sobre o campo do político e da democracia
representativa na Europa, pois “[...] rejeitaram a visão de que o governo fosse
naturalmente o domínio de nobres desinformados, ou a propriedade privada
de cidadãos ricos. [...]. Para eles o governo legítimo requeria a igualdade de
representação.” (KEANE, 2010, p. 431).
Nessa ordem de valores, a Revolução Francesa representou não
somente a luta pela conquista da liberdade, mas, acima de tudo, da igualdade
de participação, restrita, diga-se de passagem, em um primeiro e longo
momento, aos homens. Ela não foi conduzida para destronar um déspota, mas
sim para pôr por terra um regime instituído há séculos, como bem salienta
Paine (2009, p. 84) em resposta às veementes críticas publicadas por Edmund
Burke dirigidas contra os revolucionários:
Não foi contra Luís XVI, mas contra os princípios
despóticos do governo que a nação se revoltou.
Esses princípios não se originavam nele, mas no
establishment original, muitos séculos antes, e se
arraigaram muito profundamente para serem
eliminados.

A radicalidade era necessária, pois: “Somente uma revolução completa


e universal poderia limpar o estábulo com uma imundície augeana de
parasitas e saqueadores.” (PAINE, 2009. p. 84).
O objetivo da Revolução Francesa não era tão-somente mudar o
governo, mas, também, abolir a antiga forma de sociedade. Por isso, teve-se

97
que atacar, ao mesmo tempo, a todos os poderes estabelecidos, arruinar todas
as influências reconhecidas, apagar as tradições, renovar os costumes e os
hábitos e esvaziar, de certa maneira, o espírito humano de todas as ideias
sobre as quais se assentavam até então o respeito e a obediência. De lá, seu
caráter tão singularmente anárquico (TOCQUEVILLE, 2009, p. 56). 43
Essa era a singularidade da Revolução Francesa. Ao contrário de tantas
outras ocorridas na Europa que eram instigadas pelo ódio pessoal ao déspota.
No exemplo da França, “[...] assistimos a uma revolução gerada pelo
pensamento racional sobre os direitos do homem, que desde o começo faz a
distinção entre pessoas e princípios.” (PAINE, 2009, p. 86). A busca pela
igualdade e o fim dos privilégios concedidos a estratos abastados da sociedade
francesa – o clero e a nobreza – durante o Ancien Régime inspirou os ideais
revolucionários de forma que, após 1789, o governo que não buscasse a
igualdade seria tido como despótico. E o governo do povo de forma alguma
poderia se dar em uma monarquia, mas sim em uma democracia ou república.
O tamanho da França inviabilizava o modelo democrático de
assembleias. “A democracia não é um estado no qual o povo se encontra
continuamente, regula por conta própria todos os assuntos [...]”, afirmou
Robespierre (2012), na Convenção de 5 de fevereiro de 1794, a democracia,
para ele
“[...] é um estado no qual o povo soberano,
guiado por leis que são de sua própria produção,
faz por si próprio tudo o que ele pode fazer bem
e por meio de seus representantes faz tudo o que
não pode fazer por si próprio. [...] A democracia
é a única forma de estado que todos os indivíduos
que a compõem podem verdadeiramente chamar

43 Com base em Tocqueville (2009), há que ser fazer uma ressalva acerca das
rupturas entre o velho e o novo regime, que serão mais bem aprofundadas
por ocasião do estudo das especificidades da teoria da desincorporação do
corpo do rei. É que o autor, na obra Antigo Regime e a Revolução, traz à
tona as similaridades entre o Ancien Régime e aquele introduzido pela
Revolução Francesa, que relativizam o caráter inovador da Revolução.

98
seu país.”

A democracia contra oligárquica fez confluir vozes e protestos que há


séculos retumbavam em diversos pontos da Europa para a denunciação de
aristocracias, privilégios e hereditariedades. Os eventos que se
desencadearam na França após 1789, acima de tudo,
[...] injetaram energia surpreendente na
linguagem da democracia alterando seu
significado, de um tipo de autonomia baseado na
representação igual, para um tipo de ordem
social no qual o poder hereditário sobre os outros
é abolido e virtudes igualitárias florescem.
(KEANE, 2010, p. 435-436).

Este fait total no qual se transmutou a democracia representativa


universalizou-se por meio da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão: a lei é a expressão da vontade geral, preconiza, e todos os cidadãos
têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através dos seus representantes,
para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, quer se destine a
proteger quer a punir.
Os caminhos tortuosos que levam à igualdade vêm sendo percorridos,
desde então, nas mais diversas partes do mundo, com avanços, percalços e,
por vezes, retrocessos.
A universalização possibilitou aperfeiçoamentos de ordem material e
litúrgica na democracia representativa, fazendo com que o direito universal à
democracia não irradiasse somente da França, ou mesmo da Europa, para o
restante do mundo, mas, também, em sentido inverso. Como demonstram os
esforços para incluir as mulheres entre os iguais e a implantação de sistemas
eleitorais que preservassem a intimidade do eleitor.44
A extensão do direito ao voto para as mulheres se deu somente a partir
do Século XIX. A maioria dos estudiosos indica a Nova Zelândia como o país

44 A restrição à extensão dos direitos políticos às mulheres e a implantação do


voto secreto se justifica por se originarem em colônias europeias.

99
que primeiro reconheceu tal direito, no ano de 1893, graças ao movimento
liderado por Kate Sheppard. Keane (2010, p. 491-501) atribui a precedência
às cidadãs da remota Ilha de Pitcairn, território britânico ultramarino
localizado na Polinésia. Segundo o autor, em 1838 o Codex Pitcairnensis
especificava que as eleições para cargo governamental seriam por votos livres
de todo nativo nascido na ilha, homem ou mulher. Vélez (1853), Wyoming
(1869), Utah (1870), a municipalidade de Franceville nas Novas Hébridas
(1889), a Nova Zelândia e Rarotongo (1893) e a Austrália (1894) seguiram os
passos de Pitcairn.
Já o voto com utilização de cabine, para maior privacidade do eleitor,
foi, pela primeira vez, utilizado na Austrália, em 1857 e por isso é denominado
de voto australiano (PORTO, 2000, p. 422).
Tais exemplos demonstram, mais uma vez, o quanto essa invenção
humana não pode ser tratada como um produto acabado – completo,
terminado, perfeito – da engenhosidade de determinada pessoa ou grupo, mas
antes, no entender de Tocqueville, como um processo de equalização, que não
poderá ser sustado, mas que se desenvolve diversamente em diferentes povos,
conforme suas variações culturais (QUIRINO, 2000, p. 155) e que se encontra
em contínua transformação.
Apesar de ser tema afeto ao próximo capítulo, é preciso contextualizar,
ainda que de forma perfunctória, acerca da mais significativa mudança que a
Revolução Francesa impôs ao “[...] governo pelos representantes do povo [...]”
(LIJPHART, 2011, p. 17): O caráter igualitarista da democracia representativa
francesa, ao introduzir o princípio da igualdade pela representação, operou
uma transformação axial na própria democracia representativa, que passaria
a girar em torno de três dimensões: respeito aos direitos humanos – que se
estendeu a dimensões políticas, econômicas, sociais e, na atualidade, a
aspectos que ultrapassam a figura do humano, mas que são condições para a
sua permanência saudável no planeta; cidadania e representatividade.
Ao adentrar na agenda democrática de maneira tão veemente, a ponto
de ser confundida com a própria democracia, a igualdade foi o estopim que

100
possibilitou alterações significativas no modelo democrático representativo
inglês.
A história da democracia representativa na Inglaterra confunde-se com
a do Parlamento Inglês, o qual emergiu das assembleias convocadas
esporadicamente, conforme as necessidades, durante o reinado de Eduardo I,
de 1272 a 1307.
A partir do século XVIII, consolidou-se na Inglaterra um sistema
constitucional em que o rei e o Parlamento eram limitados um pela autoridade
do outro
No Parlamento, o poder da aristocracia
hereditária na Casa dos Lordes era
contrabalançado pelo poder do povo na Casa dos
Comuns. As leis promulgadas pelo rei e pelo
Parlamento eram interpretadas por juízes que,
de modo geral (embora não sempre),
independiam tanto do rei quanto do Parlamento.
(DAHL, 2009, p. 28-31).

Há que se considerar ainda a atuação histórica das Cortes Judiciárias


no balanço democrático da Inglaterra.45

45 Osistema de pesos e contrapesos inglês, marcado por uma contínua tensão


entre o Parlamento, o rei e as Cortes Judiciárias, era movido a partir de três
princípios constitucionais, que compreendiam, antes de tudo, a igualdade
jurídica dos sujeitos, independente da classe social e das condições
financeiras ou econômicas: i) Apesar de uma grande desigualdade social, os
cidadãos eram submetidos a regras gerais, no que se refere às sanções
penais e à integridade patrimonial, essas regras eram aplicadas por cortes
ordinárias e não por jurisdições especiais, esse é o primeiro princípio. ii) O
segundo princípio baseia-se na sinergia normativa existente entre o
Parlamento e as Cortes Judiciárias. Para cada caso concreto, individual, as
duas fontes são, igualmente, soberanas. De um lado, a coroa, com a Câmara
dos Lordes e a Câmara dos Comuns e do outro lado, a tradição da Common
Law, administrada por juízes ordinários. A primeira era fonte jurídica
formal e a segunda, fonte jurídica material. iii) O terceiro princípio se refere
à tutela dos direitos subjetivos, que estava mais atrelada à atividade das
Cortes Judiciárias do que ao Parlamento inglês. Tal característica decorria
do constitucionalismo inglês, das garantias feudais e das regras
procedimentais do Habeas Corpus, fatores atrelados à resistência histórica
das Cortes Jurisdicionais ao poder do Soberano. Os direitos subjetivos e,

101
O modelo de democracia representativa inglês, o exemplo mais bem
sucedido de democracia parlamentar no Século XVIII, baseado na defesa da
liberdade e das garantias individuais, sofreu abalos significativos em suas
estruturas em decorrência dos eventos franceses.
Dahl (2009, p. 33-35) enumera uma série de fatores não realizados
que, na época, impediam a democracia de ultrapassar a fase da promessa e
que estão intrinsecamente ligados às reformas que o sistema de representação
inglês viria a sofrer a partir do Século XVIII. As imensas desigualdades que
representavam um enorme obstáculo à democracia por fazerem com que a
lógica da igualdade mergulhasse na desigualdade irracional constitui-se no
primeiro deles. O autor destaca, entre tantas outras: a diferença entre direitos,
deveres, influência e a força de escravos e homens livres, ricos e pobres,
proprietários e não-proprietários de terras, senhores e servos, homens e
mulheres, trabalhadores independentes e aprendizes, artesãos empregados e
donos de oficinas, burgueses e banqueiros, senhores feudais e rendeiros,
nobres e gente do povo, monarcas e seus súditos, funcionários dos reis e seus
subordinados.
O segundo motivo era a disparidade entre os poderes do monarca
quando comparados com os do parlamento, quando e onde estes existiam, o
que tornava as casas dos representantes do povo verdadeiros “[...] bastiões de
privilégio, especialmente em câmaras reservadas para a aristocracia e o alto
clero. Na melhor das hipóteses, os representantes eleitos pelo povo tinham
apenas uma influência parcial na legislação.” (DAHL, 2009, p. 33).
A falta de compreensão e compartilhamento das ideias e convicções
democráticas, mesmo após o século XVIII, constituem-se a terceira causa
impeditiva ao amadurecimento e universalização da democracia.

por via de consequência, o auto regramento do Estado era, antes de tudo,


fruto da atuação das Cortes Jurisdicionais e não do Parlamento. Tudo isso
favoreceu o nascimento das Liberdades dos ingleses e moldou a forma como
o Rule of Law se desenvolveu em uma perspectiva histórica (ZOLO, 2006,
p. 14-17).

102
Por fim, e este fator se aplica ao modelo de democracia inglesa do
século XVIII em especial, os representantes do povo, na verdade, não
representavam todo o povo. “Afinal de contas, os homens livres eram homens.
Com a exceção da mulher que ocasionalmente ocupasse o posto de monarca,
metade da população adulta estava excluída da vida política”. (DAHL, 2009,
p. 33).
Segundo dados da Enciclopédia Britânica de 1970, o eleitorado da Grã-
Bretanha em 1831 era de 4,4% da população acima dos vinte anos de idade;
7,1%, em 1832; no ano de 1864, a porcentagem ultrapassou a metade da
população acima de 20 anos somente em 1921, ano em que o eleitorado passou
a ser composto por 74% dos indivíduos maiores de 20 anos (DAHL, 2009, p.
34).
As cidades industriais florescentes como Manchester, Birmingham e
Leeds não tinham um único membro no Parlamento, enquanto os burgos e
condados, redutos da aristocracia eram super-representados. O fato de ser
proprietário de terras em mais de um distrito eleitoral dava o direito a votos
múltiplos (KEANE, 2010, p. 461).
O elevado nível de desigualdade no sistema político da Grã-Bretanha
inspirou a ação de reformadores radicais e grupos de campanha como a
Corresponding Sheffield Society que apoiavam o sufrágio masculino universal
e as iniciativas civis contra o tráfico de escravos, pressões crescentes pela
inclusão da classe média urbana de donos de propriedades e profissionais no
sistema político, por meio da extensão do direito de voto teriam efeitos
subterrâneos poderosos tanto na vida diária quanto nas instituições
governantes, fazendo com que o sistema de governo da Grã-Bretanha nunca
mais foi o mesmo, inobstante manter-se como uma monarquia (KEANE,
2010, p. 458).
O receio de um levante revolucionário em virtude de tal quadro levou
à Lei da Reforma de 1832, forçando a aristocracia a compartilhar o poder com
as novas classes médias, por meio de inúmeras inovações. Keane (2010, p.
461) enumera as seguintes: i) transferência de inúmeras cadeiras na Câmara

103
dos Comuns de burgos que haviam entrado em declínio às grandes cidades
industriais; ii) concessão do direito ao voto a todos os homens que possuíam
ou arrendavam propriedades; iii) introdução de um sistema de registro
eleitoral em todas as municipalidades ou paróquias; iv) criação de Tribunais
especializados; v) criação de múltiplas zonas eleitorais dentro de um mesmo
distrito; vi) diminuição dos dias de eleição de cinco a seis semanas para um
ou, no máximo, dois dias. As reformas introduzidas pela Lei possibilitaram
que a Inglaterra se despedisse de um esquema parlamentar desonesto que
permitiria, em determinada ocasião, que 180 patronos ricos e donos de
propriedades indicassem 370 dos 514 parlamentares da Câmara dos Comuns.
Tal sistema passou a ser como modelo Westminster de democracia.
O modelo Westminster é utilizado atualmente para designar tanto o
modelo genérico de democracia, quanto o modelo majoritário, 46 denotando,
além disso, as principais características das instituições parlamentares e
governamentais da Grã-Bretanha. Tal denominação deve-se ao fato de ser no
palácio de Westminster que se reúne o Parlamento do Reino Unido. A versão
britânica é o exemplo original e mais famoso do modelo. Atualmente, as

46 Lijphart (2011, p. 17-18), a partir de definições modernas de democracia:


governo pelo povo ou pelos representantes do povo e governo para o povo
ou de acordo com a preferência popular, contrapõe dois modelos básicos de
democracia representativa, a majoritária ou de Westminster – baseada na
maioria do povo – e a consensual – definida em função da vontade do maior
número de pessoas, extraindo desse exercício as seguintes diferenças entre
os dois protótipos: i) Apesar de ambos estarem centrados na noção de que
o governo da maioria é melhor do que o da minoria, o modelo consensual
considera a exigência da maioria como um requisito mínimo, “[...] em vez
de satisfazer com mínimas maiorias, ele busca ampliar o tamanho das
mesmas”; ii) Enquanto o modelo majoritário concentra o poder político nas
mãos de uma pequena maioria, muitas vezes, de uma maioria simples
(plurality), o modelo consensual tenta limitar, compartilhar e dispersar o
poder de várias maneiras, por meio de regras e instituições que visam a uma
grande participação no governo e a um amplo acordo acerca das políticas a
serem adotadas; iii) O modelo majoritário é exclusivo, competitivo e
combativo, enquanto o modelo consensual se caracteriza pela abrangência,
a negociação e a concessão. Por tal motivo, Kaiser (1997, p. 434) denomina
esta última de “democracia de negociação”.

104
democracias que mais se aproximam desse protótipo são as do Reino Unido,
Nova Zelândia e Barbados (LIJPHART, 2011, p. 27-28).
O sistema Westminster cristalizou-se ao longo do século XIX e –
baseado nos princípios do poder compartilhado, do governo responsável, da
representação e da soberania parlamentar47, entre outros – funcionava a
partir da tripartição do parlamento em três unidades diferentes: a Coroa, a
Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns. Havia um executivo dual: a
Coroa, dotada de alguns poderes constitucionais reservados, desempenhava
funções simbólicas e um executivo político, liderado pelo Chefe de Governo, o
Primeiro Ministro, que desempenhava as funções básicas de governo,
auxiliado por um gabinete de ministros escolhidos entre os membros do
parlamento (KEANE, 2010, p. 503).

47 “Poder compartilhado significava que a assembleia legislativa eleita não era


o único ator parlamentar. A Coroa e a Câmara dos Lordes também faziam
parte do parlamento e a aprovação de todos os três atores era considerada
necessária para a aprovação final de uma legislação. Era esse o significado
da frase governo responsável, que se referia, durante o século 19, a um
sistema no qual havia a fusão de poder político em lugar da separação de
poderes que acompanhavam os tipos de sistemas presidenciais da América
Espanhola ou dos Estados Unidos. Governo responsável significa a
presença do executivo dentro de uma assembleia legislativa e o poder dessa
assembleia para remover ou confirmar o executivo político (mas não o
monarca) em sua posição. Um voto legislativo formal que exprimia falta de
confiança no executivo político devia removê-lo de sua posição ou
desencadear uma nova eleição. Isso decorria do fato que o executivo era
coletivamente responsável pelas atividades do governo. Sob o modelo de
Westminster, a autoridade para remover um governo do cargo ou convocar
uma nova eleição cabia à Coroa, que se reservava um número limitado de
poderes e prerrogativas. Na prática a Coroa agia cada vez mais na base do
que transpirava na Câmara dos Comuns. Isso estava de acordo com os
outros princípios-chave do modelo Westminster: governo representativo e
soberania parlamentar. O governo representativo na Grã-Bretanha do
século 19 baseava-se na noção de que os servidores no governo ocupavam
seus cargos em resultado das eleições.” O princípio ou doutrina da soberania
parlamentar era a base do modelo. “De acordo com essa doutrina não
escrita, mas amplamente repetida, os poderes do parlamento dentro de um
estado unitário eram ilimitados.” (KEANE, 2010, p. 503-504).

105
O modelo de Westminster e os dois outros modelos mais significativos
da democracia representativa, o francês e o americano, acabaram sendo
adotados por diversos países de todos os continentes, com alterações e
peculiaridades decorrentes de aspectos locais.
Sob estes três modelos a democracia dava ares de que havia começado
a ser bem-sucedida. Todavia, juntamente com a representatividade foram
lançadas aos solos dos países que a inventaram as sementes de males que, se
por um lado, levaram esses modelos democráticos a se esfacelarem ou, no
mínimo, a se manterem vigentes a duras penas, durante o século XX, por
outro, possibilitaram ou impulsionaram, mesmo que por seus efeitos
perversos ou, ainda, por suas incertezas, a reinvenção da democracia.
As duas grandes experiências aqui historiadas demonstram como a
criatura guarda em si as características do criador.
Por ser típico fruto da ação humana, a democracia traz impressas as
marcas desta ação. Equivoca-se quem a evoca em nome de um mundo melhor.
Ao condicionar a ação às variabilidades da condição humana que
procura garantir: a ilimitabilidade e a imprevisibilidade, próprias da
pluralidade dos seres humanos, Hannah Arendt, retira qualquer possibilidade
de se atrelar a democracia à certeza.
Desde as primeiras assembleias, a democracia pautou-se pela ausência
de segurança. Com ela conseguir-se-á, no máximo, o melhor mundo possível.
Mundo este que parece ser menos interessante, a primeira vista, do que o
mundo melhor. Ocorre que, o melhor mundo possível resulta do embate e do
consenso entre um sem número de opiniões, formuladas de forma direta ou
por delegação, acerca do que venha a ser o melhor mundo possível, o que, por
si só, é melhor do que o mundo melhor.
Acreditar que do ruído possam surgir soluções melhores para a vida de
todos; acreditar que existem vários caminhos possíveis; e, acima de tudo,
conferir um crédito para o futuro, sem se descurar que o melhor mundo
possível só se faz possível pela abertura ao futuro e pela continua adequação

106
aos novos desafios dos novos tempos: estas são as grandes contribuições do
presente capítulo para o trabalho como um todo. É o que o une aos demais.
No próximo capítulo serão, em um primeiro momento, apontados os
elementos políticos da democracia representativa moderna. Em seguida,
tratar-se-á da segunda grande morte da democracia e se adentrará, por fim,
na proposta de Claude Lefort, para quem a democracia além de ser uma
grande revolução, necessita continuamente se reinventar.

107
108
CAPÍTULO II

2 - A DEMOCRACIA COMO INVENÇÃO: A PROPOSTA


REINVENTIVA DE CLAUDE LEFORT

Se a escravidão, o tamanho reduzido e a menor complexidade das


sociedades desqualificaram a democracia de assembleias como modelo viável
à condução da coisa pública e motivaram, juntamente com outras causas, a
reinvenção democrática na modernidade, a democracia representativa desde
seu nascimento conviveu com limitações e fantasmas.
Fatores exógenos e endógenos apresentam-se como elementos que, se
não a fadaram ao insucesso, dificultam-na na consecução dos princípios sobre
os quais foi erigida, ainda que aparentemente continue sendo o único modelo
democrático viável às sociedades modernas e apresente-se como “[...] um fato
concreto na vida dos homens e mulheres neste final de milênio [...].”
(MAGALHÃES F., 2000, p.143).
Apesar dos reveses, nada, aparentemente, leva a crer que ela se
encontre sob ameaça, pelo contrário, notícias sobre esforços de países
hegemônicos pela implantação da democracia em periferias do mundo e
expressões que qualificam os dias das eleições como os da “grande festa” da
democracia indicam ser ela, no (in)consciente ocidental, no mínimo, o modelo
menos pior de governo, conforme Winston Churchill, ou o mais tolerável dos
três desvios dos governos apropriados, como já observara Aristóteles (1997, p.
91-92).
É de se estranhar, assim, que, em 2012, Manuel Castells tenha
publicado no excelente website ‘Outras Palavras’ um artigo noticiando a
criação do Partido do Futuro. Trata-se de um método experimental,
anunciado na internet no dia 8 de janeiro de 2013, para construir uma

109
democracia sem intermediários, que substitua as instituições atuais,
deslegitimadas na mente dos cidadãos. Segundo o autor, a repercussão cidadã
e midiática tem sido considerável. Só no dia do lançamento, e apesar da queda
do servidor por ter recebido 600 visitas por segundo, a iniciativa
(http://partidodelfuturo.net) teve 13 mil seguidores no twitter, 7 mil no
facebook e 100 mil visitas no YouTube. “Jornais estrangeiros e espanhóis
fizeram eco de uma entrevista coletiva do Futuro que anuncia o triunfo
eleitoral de seu programa: democracia e ponto.”
Castells (2012) ressaltou que a pretensão do partido não é ser uma
minoria parlamentar, mas antes, mudar a forma de fazer política por meio de
uma democracia direta, instrumentada pela internet: propondo referendos
sobre temas-chave; co-elaborando propostas legislativas mediante consultas
e debates no espaço público, urbano e cibernético, com medidas concretas, a
serem debatidas entre os cidadãos e servindo de plataforma para propostas
que partam das pessoas. Na verdade, arremata, “[...] não é um partido, mesmo
que esteja registrado como tal, mas um experimento político, que vai se
reinventando conforme avança.”
O Partido do Futuro foi apenas mais uma dentre tantas iniciativas que
buscaram – e buscam – ora oxigenar a democracia representativa, dotando-a
de mecanismos e instituições que a deixem mais apta ao trato dos problemas
atuais, ora substituí-la por modelos mais inclusivos, ecológicos, participativos,
abrangentes, complexos, inter e multiétnicos, aninhadores e outros que,
pautados em um contínuo processo de efetivação dos direitos humanos em
regimes democráticos – dado não haver mais espaço e tempo para retrocessos
em matéria de direitos humanos – deem conta de garantir a vida saudável em
contextos de policrise e conduzam a humanidade a um novo estágio
civilizacional.
As propostas acima indicam claramente que os pressupostos da
democracia representativa estão em questão.
Alguns questionamentos, todavia, se impõem, de antemão: negar a
democracia representativa e abrir mão de dois a três séculos de experiências

110
democráticas, algumas exitosas outras, nem tanto, seriam medidas
adequadas? Deixar de procurar nos sinais do político (LEFORT, 1991, p. 9) dos
três principais modelos democráticos representativos elementos para o
fortalecimento e a renovação da democracia seria salutar? Deixar de
apreender com os equívocos que condenaram a democracia representativa à
quase inoperância e permitiram o advento de eventos inimagináveis em uma
época de luzes, de domínio da racionalidade, como foram os massacres de
seres humanos em série, não seria, no mínimo, temerário? Por fim, continuar
acreditando positivamente na certeza da democracia, esquecendo das
aberturas ao futuro e da incerteza que a acompanham desde as primeiras
assembleias, não seria por si só, um disparate?
As angústias subjacentes às perguntas acima justificam a proposta do
presente capítulo. Nele, em um primeiro momento, se buscará no caráter
específico da democracia representativa os sinais do político, ou seja, os
elementos nucleares da representatividade e da democracia moderna, seus
principais problemas e virtudes.
A seguir, tratar-se-á da caminhada da democracia representativa ao
nebuloso cenário do totalitarismo o qual, se não for tomado como o seu ocaso,
possibilita que se adentre na proposta reinventiva de Claude Lefort para, a
partir de então, já no capítulo seguinte, tratar dos desafios impostos à
democracia na atualidade, em especial, aos relacionados aos limites de
consideração da variável ambiental em processos participativos.

2.1 O POLÍTICO NA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

A necessidade de encontrar os traços do político leva a exercício


semelhante ao realizado no primeiro capítulo do presente trabalho, tendo
como foco a democracia representativa moderna.
As sociedades democráticas modernas caracterizam-se pela
delimitação de uma esfera de instituições, de relações e de atividades que

111
aparecem como política, distinta de outras esferas que aparecem como
econômica, jurídica, entre outras (LEFORT, 1991, p. 25).
O político não se revela pelo que se nomeia atividade política, mas
antes pelo duplo movimento de aparição e ocultação do modo de instituição
da sociedade. Aparição, no sentido em que emerge à visibilidade o processo
crítico por meio do qual a sociedade é ordenada e unificada, através de suas
divisões; ocultação, no sentido em que o lugar da política (onde se exerce a
competição entre partidos e se forma e se renova a instância geral do poder)
designa-se como particular, ao passo que se encontra dissimulado o princípio
gerador da configuração do conjunto (LEFORT, 1991, p. 26).
O duplo movimento de aparição e ocultação institucionais que revelam
o político e seu campo em sociedades democráticas está ligado à forma, ao
processo histórico e à natureza de seus elementos constitutivos, sobre os quais
Tocqueville se debruçou.
Na introdução da obra a Democracia na América, Tocqueville (2005,
p. 19) deixa bem claro seus propósitos ao estudar a sociedade americana entre
maio de 1831 e fevereiro de 1832. O autor ressalta que, longe de satisfazer uma
curiosidade:
[...] quis encontrar ali ensinamentos que
pudéssemos aproveitar. [...] Meu objetivo não foi
tampouco preconizar determinada forma de
governo em geral, porque sou dos que acreditam
que não há quase nunca uma qualidade absoluta
nas leis; nem mesmo pretendi julgar se a
revolução social cuja marcha parece-me
irresistível, era vantajosa ou funesta para a
humanidade; admiti essa revolução como um
fato consumado ou prestes a consumar-se e,
entre os povos que a viram produzir-se em seus
seios, procurei aquele em que ela alcançou o
desenvolvimento mais completo e mais pacífico,
a fim de discernir claramente suas consequências
naturais e perceber se possível, os meios de
torná-la proveitosa para os homens.

Tocqueville (2005, p. 20) procurou na América uma “[...] imagem da


própria democracia, de suas propensões, de seu caráter, de seus preconceitos,

112
de suas paixões [...]”. Quis conhecê-la principalmente para saber o que dela
“[...] esperar ou temer.”
Os Estados Unidos, uma jovem república que não havia experimentado
o despotismo e a monarquia, não vivenciava simplesmente a implantação de
um novo sistema de governo. Aos olhos de Tocqueville (2005, p. 8), a América
experimentava uma irresistível “[...] revolução democrática [...]” que se
produziu de “[...] uma maneira simples e fácil [...]” e colhia os frutos desta
revolução sem por ela ter passado (TOCQUEVILLE, 2005, p. 19).
A grande revolução democrática fez-se possível, nos moldes em que
acontecera, em virtude do isolamento geográfico daquele país e da forma
como foi colonizado:
Os emigrantes que vieram fixar-se na América no início do século XVII
separaram de certa forma o princípio da democracia de todos aqueles contra
os quais este lutava no seio das velhas sociedades da Europa e transplantaram-
no sozinho nas terras do novo mundo. Ali, ele pôde crescer em liberdade e,
caminhando com os costumes, desenvolver-se sossegadamente nas leis.
(TOCQUEVILLE, 2005, p. 19).
Enquanto na Europa as teorias eram postas em prática
conscientemente, nos Estados Unidos ocorria um fenômeno incomum e
único. Nas primeiras comunidades se produzia espontaneamente o que os
filósofos e os teóricos da política concebiam como explicação racional da
origem, não histórica, mas lógica do Estado. Os homens se agrupavam e se
concediam de forma livre um governo, considerando esse governo como seu
representante. O contrato social realizara-se e, a partir dele, se forjaria a
consciência política dos Estados Unidos da América. Havia nascido o Estado
democrático (PEDRERO, 1957, p. 15).
O ineditismo era tal que reclamava uma “[...] nova ciência política para
um mundo totalmente novo.” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 12), pois era
necessário educar a democracia.
Tocqueville, um jovem aristocrata francês, considerado liberal, elabora
então, um sistema conceitual capaz de, ao mesmo tempo, apreender a

113
realidade e apontar as condições para a ação política tornar-se eficaz no
alcance de seus fins; um método que apresentava uma vocação para o
pensamento concreto, uma razão política interventora, sem deixar de ser
transcendente, de ser dotado de uma universalidade teórica (JASMIN, 2005,
p. 35). Daí ter visto “[...] na América mais que a América.” (TOCQUEVILLE,
2005, p. 20).
A fundamentação teórica da Democracia na América tem como bases
a igualdade de condições e a teoria da representação.
Entre os novos objetos que me chamaram a
atenção durante a minha permanência nos
Estados Unidos nenhum me impressionou mais
do que a igualdade das condições. Descobri sem
custo a influência prodigiosa que exerce esse
primeiro fato sobre o andamento da sociedade;
ele proporciona ao espírito público certa direção,
certo aspecto às leis; aos governantes novas
máximas e hábitos particulares aos governados
(TOCQUEVILLE, 2005, p. 7).

Para Tocqueville a igualdade não era simplesmente igualdade, mas


antes, igualdade na liberdade; e igualdade na liberdade era um conceito que
estava muito longe de ser alcançado na Europa (PEDRERO, 1957, p. 17).
A clássica tensão entre liberdade e igualdade compõe o dilema
tocquevilliano, o qual pode ser assim formulado:
A liberdade política na sociedade igualitária e de
massas depende de uma práxis e de um conjunto
de valores cujos pressupostos tendem a ser
destruídos pelo desenvolvimento continuado das
disposições internas à própria democracia
(JASMIN, 2005, p. 37).

O diagnóstico de Tocqueville acerca da sociedade americana – que


pode muito bem ser aplicado às sociedades modernas ocidentais – afirma que
o individualismo inerente ao estado social democrático e o consequente
confinamento dos homens nas esferas da privacidade são produtores de uma

114
crescente indiferença cívica que constitui o caldo de cultura da emergência de
um novo tipo de despotismo (JASMIN, 2005, p. 37).
A partir do dilema revelado por suas observações, Tocqueville elabora
um sistema conceitual constituído da contraposição entre um diagnóstico
científico da sociedade moderna que aponta a existência de disposições que
tendem a inviabilizar a liberdade política nas condições sociais igualitárias, e
uma necessidade ético-política de afirmar-se a exequibilidade da liberdade, no
contexto de destruição da participação política e da cidadania que decorre do
desenvolvimento de disposições inviabilizadoras da liberdade. O sistema
opera pela justaposição de dois níveis distintos formados, cada um, por pares
de conceitos opostos: a oposição entre democracia e aristocracia no primeiro
nível e a polarização entre liberdade e servidão, no segundo (JASMIN, 2005,
p. 39).
Segundo Jasmin (2005, p. 39) a oposição entre democracia e
aristocracia decorre de um processo histórico inevitável e já realizado – na
época – de constituição das modernas democracias igualitárias e que definem
a natureza destas. O segundo nível, o da polarização entre liberdade e
servidão, indica que há e quais são as possibilidades de ordenação da vida
política na democracia – não somente na americana.
Enquanto no primeiro nível Tocqueville apreende e interpreta uma
realidade dada, no segundo, operacionaliza no campo do possível, da
consecução da liberdade pelo produto da arte, da ação do homem, que se
mostra, contudo, frágil e incerta.
Tocqueville trata a democracia como a sociedade da igualdade, do fim
dos extratos e estamentos próprios da sociedade aristocrática. A democracia é
a sociedade da igualdade de condições e a “[...] primeira e mais viva das
paixões que a igualdade das condições faz nascer, não preciso dizer, é o amor
por essa igualdade mesma.” (TOCQUEVILLE, 2000, p. 113).
Para Quirino (2000, p. 152-153), Tocqueville tentou construir um
modelo ideal de democracia e pintar os traços gerais das sociedades
democráticas a partir da compreensão dos fenômenos próprios de sociedades

115
em que o processo de igualização crescente se dava ao mesmo tempo em que
a liberdade era preservada. O local onde a democracia se realizava com
liberdade era os Estados Unidos da América.
Democracia em Tocqueville está sempre associada a um processo
igualitário que não poderá ser freado e que se desenvolve, todavia, de forma
diversa em diferentes povos, “[...] conforme suas variações culturais. Porém,
será, sobretudo, a ação política desse povo que irá definir se essa democracia
será liberal ou tirânica.” (QUIRINO, 2000, p. 155).
Se a igualdade é ínsita à democracia e, necessariamente, precede à
liberdade, posto que na maioria das nações modernas, em particular nas
europeias, “[...] o gosto e a ideia de liberdade só começaram a nascer e a se
desenvolver no momento em que as condições começavam a se igualar e como
consequência dessa igualdade mesma [...] (TOCQUEVILLE, 2000, p. 116), o
desafio percebido e proposto por Tocqueville é preservar a liberdade política
em uma sociedade que por princípio ruma para a igualdade de condições e
para uma espécie de servidão voluntária.
Podemos imaginar um ponto extremo em que a
liberdade e a igualdade se toquem e se
confundam. Suponhamos que todos os cidadãos
contribuam para o governo e que cada um tenha
igual direito de contribuir. Como nenhum
homem difere então de seus semelhantes,
ninguém poderá exercer um poder tirânico; os
homens serão perfeitamente livres, porque serão
todos inteiramente iguais; e serão todos
perfeitamente iguais porque serão inteiramente
livres. É para esse ideal que tendem os povos
democráticos. (TOCQUEVILLE, 2000, p. 113).

Tocqueville (2000, p. 113) entende ser essa a forma mais completa que
a igualdade poderia adquirir na terra. Adverte, contudo, pondo por terra
qualquer perspectiva idealista sobre a democracia, que há “[...] mil outras,
que, sem serem tão perfeitas, não são menos caras a esses povos.”

116
A partir dessa perspectiva, é possível retirar da obra de Tocqueville
determinadas condições que não permitem à democracia chegar à sua forma
ideal e que integram o conteúdo do político na modernidade.
Uma advertência se faz, todavia, necessária. Tocqueville afirmava-se
um “[...] aristocrata por instinto [...]”, desprezava as massas e amava com
paixão a liberdade, a legalidade, o respeito aos direitos, “[...], porém não a
democracia.” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 16).
Apesar de ter percebido a democracia como fenômeno maciço, sua
intenção, ante a inevitabilidade democrática, era procurar um lugar para a
aristocracia dentro desse novo modelo de sociedade.
A condição de aristocrata e os percalços que a Revolução Francesa
causara à sua família talvez expliquem o motivo de ter acertado de maneira
tão brilhante no diagnóstico sobre as sociedades democráticas modernas e,
principalmente, de ter antevisto problemas sérios para a democracia –
massificação e tirania da maioria, por exemplo.
O ceticismo que guardava em relação à democracia não lhe impediu de
“[...] identificar uma situação altamente democrática e de ver muitas
vantagens e virtudes da democracia, ainda que mantivesse seu olhar crítico
em relação a ela [...]” e de perceber nas revoluções democráticas de seu tempo
“[...] o resultado inevitável da história da expansão da igualdade na Europa.”
(CUNNINGHAM, 2009, p. 17).
Por outro lado, a busca do sentido para a continuação da aristocracia,
explica, até certo ponto, a realização de prescrições, no mínimo equivocadas,
para a correção dos desvios da democracia.
A radiografia da sociedade americana feita por Tocqueville mostra uma
tendência à padronização dos indivíduos e à unificação do pensamento
político-social e sua ação quase tirânica sobre as minorias. O quadro leva
Tocqueville a apresentar uma proposta de “[...] moderação dos apetites
individuais [...]” como forma de evitar que a liberdade seja sacrificada em
nome da igualdade, por meio de uma instituição semelhante à aristocracia. A
institucionalização de uma instância moderadora formada por letrados

117
aristocratas – uma espécie de Judiciário –, conforme sugerida por Tocqueville
é, para Fernando Magalhães (2000, P. 144), seu maior equívoco, em virtude,
principalmente da ausência de coerência argumentativa.
O que, de forma alguma, desqualifica seu aporte teórico para a análise
do político e seu campo na atualidade.
Fernando Magalhães (2000, p. 142-143) aponta dois motivos que
atualizam a crítica liberal de Tocqueville à democracia representativa e ao
individualismo das sociedades modernas. O primeiro está relacionado à
herança que estas sociedades receberam do pensamento que serviu de base
para as análises tocquevillianas, além do que, muitas de suas preocupações,
no que concerne à tirania da maioria, ao que tudo indica, permanecem válidas
nos dias em que um processo de democratização, posto em marcha, pode
resultar na formação de um pensamento único que esmagaria as minorias nos
planos nacional e internacional.
Feitas as devidas advertências, passa-se a delimitar o campo do político
na democracia representativa, a partir de algumas categorias que exprimem o
conjunto de “[...] desvios [...]” que compõe as “[...] mil outras formas [...]” de
democracia não ideais (TOCQUEVILLE, 2000, p. 113) e que por isso, são
tomadas, para efeitos do presente trabalho, como características da
democracia representativa.

2.1.1 INDIVIDUALISMO E CENTRALIZAÇÃO DA POLÍTICA: A FIGURA


ABSTRATA DO POVO FUNCIONALIZADO PELA SOMA DE INTERESSES
INDIVIDUALISTAS DE CIDADÃOS REPRESENTADOS

No prefácio de sua última obra o Antigo Regime e a Revolução,


publicada dois anos antes de sua morte, Tocqueville vislumbra um futuro nada
otimista:
Em meio às trevas do futuro já é possível
descortinar três verdades muito claras. A
primeira é que todos os homens de nossos dias
são arrastados por uma força desconhecida que

118
se pode ter esperança de regular e retardar, mas
não de vencer, que ora os impulsiona
suavemente, ora os precipita rumo à destruição
da aristocracia. A segunda é que, dentre todas as
sociedades do mundo, as que sempre terão mais
dificuldade para escapar por muito tempo do
governo absoluto serão precisamente essas
sociedades em que a aristocracia não existe mais
e não pode mais existir. A terceira, por fim, é que
em parte alguma o despotismo deve produzir
efeitos mais perniciosos do que nessas
sociedades; pois, mais que nenhuma outra
espécie de governo, ele propicia o
desenvolvimento de todos os vícios aos quais
essas sociedades estão especialmente sujeitas, e
assim as impele justamente para o lado que,
seguindo uma inclinação natural, já pendiam.
(TOCQUEVILLE, 2009, p. XLVII-XLVIII).

A tendência da democracia ao despotismo, na visão de Tocqueville,


decorre do modo de vida, marcado pelo ideário burguês, das sociedades onde
aflorou e se desenvolveu.
Tocqueville utiliza o termo costume – categoria central de suas análises
– para referir-se ao conjunto das disposições que determinam a forma de ser
de dada sociedade. Costume, no sentido tocquevilliano, tem um significado
diferente daquele lhe atribuído usualmente.
Ao tratar da influência dos costumes na manutenção da república
democrática dos Estados Unidos, Tocqueville (2005, p. 337-338) traça os
contornos do vocábulo:
Disse acima que considerava os costumes uma
das grandes causas gerais a que se pode atribuir
a manutenção da república democrática nos
Estados Unidos. Entendo aqui a expressão
costumes no sentido que os antigos davam à
palavra mores. Não a aplico apenas aos costumes
propriamente ditos, que poderíamos chamar
hábitos do coração, mas também às diferentes
noções que os homens possuem, às diversas
opiniões correntes entre eles e aos conjuntos de
ideias de que se formam os hábitos do espírito.
Compreendo, pois, com esta palavra, todo o

119
estado moral e intelectual de um povo.

Mais adiante Tocqueville (2005, p. 541) define costume como o “[...]


conjunto das disposições intelectuais e morais que os homens trazem consigo,
no estado de sociedade.”
A percepção desgostosa de Tocqueville sobre os
costumes de sua época revelam preocupações
quanto ao futuro político de sociedades que, ao
quebrarem com a tradição do Antigo Regime,
instalaram um novo modo de vida pautado na
fragmentação social, no isolamento dos
indivíduos, na impotência individual perante o
Estado e a história, na mediocridade cultural da
classe média e na busca incessante da riqueza e
do bem-estar material (JASMIN, 2005, p. 54).

Dentre os valores que compunham os costumes das sociedades


democráticas, o individualismo, além de diferenciá-las das sociedades
aristocráticas – vale lembrar que toda a estrutura conceitual de Tocqueville
passa pela contínua oposição entre aristocracia e democracia –, seria o
elemento desencadeador, a causa primária, o início do caminho que a
democracia percorreria até o despotismo democrático. Para Tocqueville a
sociedade democrática está centrada no individualismo. O autor trata de
diferenciá-lo do egoísmo – mero desvirtuamento pessoal – e ligá-lo a
condições objetivas da existência social democrática, em especial à igualdade
de condições.
O individualismo é uma expressão recente [...].
Nossos pais só conheceram o egoísmo. O
egoísmo é um amor apaixonado e exagerado, que
leva o homem a referir tudo a si mesmo e a se
preferir a tudo o mais. O individualismo é um
sentimento refletido e tranquilo, que dispõe cada
cidadão a se isolar da massa de seus semelhantes
e a se retirar isoladamente com sua família e seus
amigos; de tal modo que, depois de ter criado
assim uma pequena sociedade para seu uso,
abandona de bom grado a grande sociedade a si

120
mesma (TOCQUEVILLE, 2000, p. 119).

Ao contrário do egoísmo que sempre existiu e “[...] resseca o germe de


todas as virtudes [...]”, o individualismo é “[...] de origem democrática [...]”,
tem como principal consequência o esgotamento, a princípio, da “[...] fonte
das virtudes públicas [...]”, com o tempo “[...] ataca e destroi todas as outras
[...].” (TOCQUEVILLE, 2000, p. 119).
Valendo-se novamente da dicotomia aristocracia versus democracia,
podem ser apontados os motivos que estão no cerne do individualismo e de
seus resultados naturais: o isolamento do homem em relação à grande
sociedade, o desinteresse pela coisa pública e a centralidade das atenções nos
interesses privados.
Segundo Tocqueville (2000, p. 120-121), ao passo que, nas sociedades
aristocráticas – organizadas por classes muito distintas e imóveis – cada
cidadão, por serem todos postos em posições fixas, uns acima dos outros,
percebe sempre acima de si “[...] um homem cuja proteção lhe é necessária, e
descobre abaixo um outro cujo concurso pode reclamar [...]”, o que leva a
todos, quase sempre, a se “[...] sentirem ligados de uma maneira íntima a algo
que está posto fora deles e não raro sentirem-se dispostos a se esquecerem de
si mesmos [...]”, na democracia:
À medida que as condições se igualam,
encontramos um número maior de indivíduos
que, apesar de já não serem ricos nem poderosos
o bastante para exercer uma grande influência
sobre a sorte de seus semelhantes, adquiriram ou
conservaram luzes e bens suficientes para
poderem se manter por si sós. Não devem nada a
ninguém, não esperam, por assim dizer, nada de
ninguém; acostumam-se a se considerar sempre
isoladamente, imaginam de bom grado que seu
destino inteiro está em suas mãos
(TOCQUEVILLE, 2000, p. 121).

A ausência de mobilidade social na aristocracia resulta na fixação de


famílias, durantes vários séculos, no mesmo estado, o que torna todas as

121
gerações contemporâneas. A atomização do sujeito decorrente da revolução
democrática individualiza-o espacialmente e temporalmente, fazendo com
que se apegue somente ao núcleo mais próximo, seja no plano geográfico ou
mesmo na perspectiva geracional. Separado dos seus contemporâneos,
esquecido de seus ancestrais e impossibilitado de ver seus descendentes, o
homem democrático volta “[...] sem cessar para si mesmo e ameaça encerrá-
lo, enfim, por inteiro, na solidão de seu próprio coração.” (TOCQUEVILLE,
2000, p. 120-121).
Como a democracia é tomada por Tocqueville como um contínuo
processo de igualização social, hipoteticamente, o individualismo e seus
resultados estender-se-iam crescentemente por todo o corpo social de forma
que quanto maiores fossem o distanciamento do homem em relação à
sociedade, o desinteresse pelos assuntos públicos e o foco nos interesses
privados, mais esses fatores seriam percebidos como naturais à vida social,
resultando em uma privatização das relações sociais e numa progressiva
indiferença cívica (JASMIN, 2005, p. 55-57), pois a autossuficiência e a
ausência de manutenção de vínculos ameaçam se “[...] desenvolver à medida
que as condições se igualam [...].” (TOCQUEVILLE, 2000, p. 119).
A privatização das relações sociais e a progressiva indiferença cívica
tendem a instalar um estado de instabilidade social crônica, na medida em
que, sem os estratos que sustentavam o Antigo Regime, a manutenção da
posição social dependerá sempre da busca do bem-estar material, que deve ser
contínua. Na democracia nada garante determinado status, a não ser a busca
e o aumento contínuo de capital material.
Cria-se um círculo vicioso. Quanto mais o individualismo se alastra,
mais é percebido como natural à vida social, o que reforça sua irresistibilidade
ao nível das consciências e dos comportamentos. A cada avanço, torna-se mais
problemática a imaginação, por parte do homem democrático, de novas
alternativas de convivência em sociedade. É neste sentido que a privatização
das relações sociais se impõe como uma nova natureza, integrando a forma
igualitária de legitimação. (JASMIN, 2005, p. 57).

122
Esse círculo privatista, no qual se inseriu o homem moderno, ao tomar-
lhe a totalidade do tempo e ao cercá-lo dentro dos muros da privacidade,
impediu-o de se apaixonar pela política e de participar da vida cívica
(JASMIN, 2005, p. 55), impelindo-o à figura do animal laborans (ARENDT,
2007), não porque tivesse que produzir aquilo que imediatamente deveria
consumir; mas pelo fato de estar fadado a produzir para ascender a
determinado nível social, o que é natural na sociedade democrática – burguesa
–, e neste local permanecer, se lá chegasse, tendo invariavelmente a sensação
– o sonho – de que poderia chegar lá.
A adequação funcional apresentada pela conjunção do individualismo,
da privatização dos interesses e da indiferença cívica às condições
democráticas (JASMIN, 2005, p. 56) possibilitou e acentuou a centralização
da política em torno de suas instituições modernas em virtude,
principalmente, da perda de interesse do homem moderno pela ação – no
sentido arendtiano – e do desmantelamento das tradicionais estruturas
hierárquicas aristocráticas e dos velhos corpos intermediários de poder, em
função da falta de legitimidade – e mesmo, sentido – destes em sociedades
pautadas na igualdade de condições.
Criou-se assim um vazio político que acabou sendo ocupado pela
burocracia administrativa do Estado nacional. “Isto porque, sendo todos os
indivíduos iguais, lhes parece natural uma autoridade única que trate de
maneira uniforme todos ao mesmo tempo.” Derivando, daí, dois movimentos:
i) a concentração de toda a autoridade em um único e exclusivo poder; e ii) a
produção de uma legislação uniforme, abstrata e universal. “O Estado
nacional centralizado aparece, nas análises de Tocqueville, como o único
agente capaz de cumprir ambos os requisitos.” (JASMIN, 2005, p. 57-58).
Ao abordar as consequências políticas da democracia americana – do
estado social dos anglo-americanos –, Tocqueville (2005, p. 63-64) adentra
na questão da soberania do Estado.
Partindo da premissa de que a igualdade de condições acabará
penetrando no mundo político e em outras partes, pois os homens chegarão,

123
em determinado tempo, a serem iguais em tudo, Tocqueville (2005, p. 63)
afirma conhecer somente duas “[...] maneiras de fazer reinar a igualdade no
mundo político: dar direitos a cada cidadão ou não dar a ninguém.”
A concessão de direitos iguais a todos – no sentido formal (Tocqueville
era um liberal) –, que garantiria o primado da igualdade de condições, em
sociedades democráticas “[...] que alcançaram o mesmo estado social dos
anglo-americanos [...]”, não pode ser realizada a menos que esteja pautada na
soberania de todos, e não no poder absoluto de um só (TOCQUEVILLE, 2005,
p. 63).
Isso se deve ao fato de que o político nestas sociedades manifestar-se
em torno de uma dupla operação do princípio da igualdade: se a paixão forte
e legítima pela igualdade de condições “[..] tende a elevar os pequenos ao nível
dos grandes [...]”, a mesma paixão leva os fracos a “[...] querer atrair os fortes
a seu nível.” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 63).
A conjunção de tais movimentos reduz os homens a preferir a
igualdade, ainda que na servidão, à desigualdade na liberdade
(TOCQUEVILLE, 2005, p. 63). Segundo o autor:
Não é que os povos cujo estado social é
democrático desprezem naturalmente a
liberdade; ao contrário, eles têm um gosto
instintivo por ela. Mas a liberdade não é o objeto
principal e contínuo de seu desejo: o que eles
amam com amor eterno é a igualdade; eles se
projetam para a liberdade por um impulso rápido
e por esforços súbitos e, se fracassam, resignam-
se; mas nada saberia satisfazê-los sem a
igualdade, e eles prefeririam perecer a perdê-la
(TOCQUEVILLE, 2005, p. 63-64).

O amor pela igualdade tem preços: a ausência de cidadãos fortes,


individualmente considerados, que leva à necessidade de conjunção de
esforços ante as agressões do poder contra a independência dos cidadãos. A
manutenção da liberdade na igualdade também tem preço: “[...] apenas a
combinação das forças de todos é capaz de garantir a liberdade.”
(TOCQUEVILLE, 2005, p. 64).

124
Essa combinação singular, “[...] que não se encontra sempre [...]”, pode
levar a duas consequências totalmente distintas: ao poder absoluto ou à
soberania do povo (TOCQUEVILLE, 2005, p. 64).
Assim, para que não descambe em tiranias ou oligarquias, qualquer
democracia há que estar necessariamente pautada na teoria ascendente do
poder. O seu pressuposto lógico repousa na máxima de que o poder deve ser
exercido pelo povo e o Estado adquire sua soberania do povo, pois neste,
aquela repousa. A forma de exercício do poder e o conceito de povo é que
precisam ser mais bem esclarecidos.
No prefácio da obra ‘Quem é o povo? A questão fundamental da
democracia’ de Friedrich Müller, Fábio Konder Comparato (2010, p. 11)
argumenta que na teoria política e constitucional, povo não é um conceito
descritivo, mas claramente operacional. Povo é um sujeito a quem se atribuem
certas prerrogativas e responsabilidades coletivas no universo jurídico-
político. Para o autor, a grande indagação que se deve fazer é: “Como definir
este conceito, de modo a torná-lo o mais operacional possível e evitar as
usurpações da soberania?” Sendo que a resposta a tal indagação passa pela
resolução de dois outros problemas: i) A definição de povo, como sujeito da
soberania democrática, diz respeito ao titular ou ao exercente dela? ii) A
soberania popular é um poder absoluto? A Questão relativa à definição de
povo diz com a problemática ora em apreço. Por conta disso, no momento, a
análise se restringirá a ela.
A primeira utilização finalística do conceito de povo como titular da
soberania democrática nos tempos modernos, apareceu com os norte-
americanos. A ausência de uma divisão tradicional de estamentos sociais e de
vínculos aristocráticos tornou mais fácil a aceitação do povo como titular da
soberania naquela democracia. A existência de escravidão legal não
apresentava obstáculo para a ligação entre soberania e povo, pois “[...] o
precedente prestigioso da democracia ateniense apresentava-se como o
modelo para o qual todos se voltavam com respeito.” (COMPARATO, 2010, p.
11-13).

125
Já na França da mesma época não havia consenso sobre o significado
e o alcance do termo. Significando ora populus, ora plebs, povo às vezes
significava a fusão dos três estados do Ancien Régime, em outras, apenas o
Tiers-État, com exclusão dos nobres e dos clérigos, sendo este o sentido
atribuído pelos jacobinos (COMPARATO, 2010, p. 14-15).
Essas diversidades resultam não somente da ambiguidade do termo,
mas, principalmente, da sua função legitimadora nos Estados democráticos.
Ao constatar que os Estados democráticos, ao denominarem-se
governos do povo, estariam, na verdade, afirmando que, em última instância,
o povo estaria governando, ou seja, legitimando o exercício do poder pelo
Estado, Friedrich Müller (2010, p. 39) transpõe a mera ligação etimológica
entre democracia e o governo do povo para uma perspectiva simbólica e
funcionalista do demos: “‘Quem é o povo?’ transmuda-se aqui na pergunta:
‘Como se pode empregar o povo caso a pretensão de legitimidade do governo
do povo deva fazer suficientemente sentido?’” (MÜLLER, 2010, p. 43).
Mas, quem legitimaria a ação do Estado? “[...] realmente o povo
inteiro, ou apenas os membros dos partidos ou ainda com referência a estes
últimos, os seus membros ativos, [...], ou, ainda, apenas as lideranças [...]
oligarquicamente instaladas?” Seria, por fim, “[...] o povo, as pessoas
estranhas aos partidos e dos seus aparelhos, simplesmente ‘a população’?”
(MÜLLER, 2010, p. 40). Quem seria, afinal de contas, o povo?
A tal indagação, Müller (2010, p. 44) contrapõe outro questionamento:
o que impede que o povo seja compreendido enquanto multiplicidade das
pessoas reais que habitam em determinado território, como uma “[...]
multiplicidade não unitária em si, mista, constituída em grupos, mas
organizada em forma igualitária e não-discriminada?”
O fator impeditivo recebeu de Christensen (2010, p. 30) a
denominação de reificação, que pode ser definida como um processo que insta
o conceito de povo a tornar-se “[...] ou o ponto inicial do discurso de
legitimação, ou, enquanto objeto do mesmo, em objeto fixado, investido de
qualidades domináveis.”

126
A objetivação transforma o povo em: i) “povo” como povo ativo; ii)
“povo” como instância global de atribuição de legitimidade (povo
legitimante); iii) “povo” como ícone; iv) “povo” como destinatário de
prestações civilizatórias do Estado; e v) ‘povo’ participante (MÜLLER, 2010,
p. 45-72).
O povo encerra em si o princípio igualitário da democracia
representativa. “Depois dos últimos grupos excluídos terem sido aceitos no
povo soberano, estará realizada a democracia como governo do povo. O povo
então só obedecerá a si mesmo, tornando-se por meio desta realização do
governo integralmente idêntico consigo.” (CHRISTENSEN, 2010, p. 32).
Nesse sentido, o povo se afasta da simples multidão, pois enquanto esta
pode ser tomada como uma “[...] multiplicidade, um plano de singularidades,
um conjunto aberto de relações, que não é nem homogênea nem idêntica a si
mesma, e mantém uma relação indistinta e inclusiva com os que estão fora
dela [...]”, o povo é “[...] algo uno, que tem vontade, e a quem uma ação pode
ser atribuída; [...]”. Em contraste com a multidão, “[...] o povo tende à
identidade e homogeneidade internamente, ao mesmo tempo em que
estabelece diferenças em relação ao que dele está fora e excluído.” (HARDT;
NEGRI, 2001, p. 120).
A transformação da multidão em povo se viabiliza por um processo de
homogeneização das particularidades em um único corpo, até ninguém poder
se subtrair ao seu governo. Cada indivíduo deverá fundir-se sem diferenças
com a totalidade do povo. “Atingida a sua meta, o processo democrático
desembocará assim num holismo identitário.” (CHRISTENSEN, 2010, p. 33).
A noção fluida de povo foi – e continua sendo – a base constituinte do
princípio da soberania popular.
Tocqueville (2005, p. 65-66), em sua viajem pela América, percebeu
que, desde a instalação das primeiras colônias tal princípio passou a ser “[...]
reconhecido pelos costumes [...]”, constituindo-se no “[...] princípio gerador
da maioria das colônias inglesas da América.” Fatores externos – como a
obediência devida às leis da metrópole – e internos – como a pequena

127
irradiação de tais costumes sobre todas as colônias inglesas da América do
Norte – impediram a sua “[...] marcha invasora [...]” e circunscreveram-no a
algumas comunidades.
Com a revolução americana o dogma da “[...] soberania do povo saiu
da comuna e apoderou-se do governo; todas as classes se comprometeram por
sua causa; combateu-se e triunfou-se em seu nome; ele se tornou a lei das leis.”
(TOCQUEVILLE, 2005, p. 66).
Na jovem América, o princípio da soberania popular teve todos os
desenvolvimentos práticos que a imaginação é capaz de conceber e foi
revestido de todas as formas, conforme a necessidade do caso. “Ora o povo em
corpo faz as leis, como em Atenas; ora os deputados, que o voto universal
criou, o representam e agem em seu nome sob sua vigilância quase imediata.”
(TOCQUEVILLE, 2005, p. 67).
O povo absorveu e absorveu-se assim no cidadão burguês
individualista, o qual, tomado pela falta de tempo e pela apatia para com o
mundo comum arendtiano, preferiu e viu-se compelido a delegar as decisões
relacionadas aos assuntos públicos a terceiros que o representariam.
A representação, por tornar presentes aqueles que, de fato, não
estavam presentes, foi a grande invenção da democracia representativa, em
função de seu caráter pragmático e principalmente de sua função
legitimadora, dado se constituir no instrumento que transforma um
amontoado de cidadãos na figura funcionalizada do povo, que, por ser líquida,
confunde-se com a noção individualizada do cidadão.
Os representantes, conforme Keane (2010, p. 504), possibilitavam a
presença indireta do povo – eleitor – no processo legislativo, atuando de três
modos: i) como delegados, votando a favor das opiniões de (uma maioria) de
seus constituintes, independentemente de seus pontos de vista pessoais; ii)
como membros de um conselho que tomavam posições coerentes com as
razões pelas quais eles haviam sido eleitos para exercerem seus melhores
julgamentos, baseados em suas percepções do que era mais apropriado ou; iii)

128
como representantes de partidos, que votavam como membros leais dos
partidos políticos aos quais se encontravam filiados.
Em virtude de sua organização em torno de partidos políticos, a
representação modificou o conceito de democracia que passou a ser definida
em função das forças políticas que competem pela realização de seus
interesses e valores, ou seja: “A democracia é um sistema em que os partidos
perdem a eleições.” (PRZEWORSKI, 1994, p. 25).
A existência de partidos, de divergências entre interesses, a competição
continuada, segundo regras estabelecidas, entre os partidos na consecução de
seus interesses e a chancela periódica conferida pelo povo funcionalizado a um
partido ou coligação destes são, na visão de Przeworski (1994, p. 25), os
componentes das democracias representativas.
Ainda que se considerem as diversas modalidades de democracias que
derivaram do modelo representativo, mais inclinadas à atuação direta dos
cidadãos, o fato é que os partidos e a “[...] metáfora ideologicamente abstrata
de má qualidade [...]” (MÜLLER, 2010, p. 52) do povo função tomaram
praticamente todo o espaço político, reduziram a figura do povo – mesmo que
tido no sentido ativo de povo – a elemento de uma estrutura democrática de
legitimação do poder (MÜLLER, 2010, p. 49) e o extraditaram, a qualquer
lugar, menos ao mundo comum arendtiano.
O povo deslocado em seu locus experimentou, também, na
modernidade, uma profunda modificação semântica, já que, segundo Bobbio
(2003, p. 237), a passagem da democracia direta para a representativa alterou
o próprio conceito de povo.
“Povo” designa um ente coletivo, e a palavra
corresponde ao conjunto de pessoas que se
reúnem em uma praça ou uma assembleia. Na
democracia representativa dos grandes Estados,
os que têm direitos políticos – ou seja, direito a
participar, mesmo indiretamente, na definição
das decisões coletivas – jamais se congregam ao
mesmo tempo em uma praça ou em uma
assembleia para deliberar. Valendo-se do direito
de reunião, podem-se juntar em uma praça ou

129
em uma assembleia só parcialmente, e não para
deliberar. Em uma democracia representativa,
em geral, quem decide não é o indivíduo, quase
sempre apenas um eleitor. Nessa condição, ele
realiza sua tarefa sozinho, uti singulus, em uma
cabine, separado dos demais sujeitos. No dia da
eleição, ou seja, do evento constitutivo da forma
de governo representativo, não existe nenhum
povo na condição de ente coletivo; só há muitos
indivíduos cujas determinações são contadas
uma a uma, para então serem somadas. Uma
democracia de eleitores, tal como ocorre na
democracia representativa, não recebe sua
legitimação do povo – que, como entidade
coletiva, não existe fora de uma praça ou
assembleia – mas sim da soma de indivíduos a
quem se atribui a capacidade eletiva. De fato, na
base da democracia representativa, ao contrário
do que ocorre na democracia direta, não está a
soberania do povo, mas sim a dos cidadãos.
(BOBBIO, 2003, p. 237).

O povo função circunscreve-se, dessa forma, ao somatório de vontades


de cidadãos individualistas, no sentido tocquevilliano, que representam a
maioria dos interesses, em sociedades em que a única “[...] paixão pública
verdadeira é a segurança [...]” (JASMIN, 2005, p. 60), e não mais à
deliberação de cidadãos livres, no sentido arendtiano, que decidem por
maioria sobre a coisa pública.
Como não “[...] existe nenhuma democracia viva sem espaço público
[...], pois nele oscilam os processos informais da participação política, na qual
podem apoiar-se aqueles processos formais de participação, a democracia
representativa traz em si mecanismos potenciais de negação da concretização
da república – coisa pública, no sentido enfático da palavra, ou, ainda, “[...]
segundo a etimologia do Latim arcaico, uma res populica: uma coisa do povo
[...]” (MÜLLER, 2010, p. 105) – dentre os quais, merecem mais atenção o
despotismo democrático e a tirania da maioria.

130
2.1.2 DESPOTISMO DEMOCRÁTICO

Há uma diferença fundamental entre os dois livros da Democracia na


América, que pode ser atribuída à distância que separa a publicação de ambos.
Se, no primeiro, publicado em 1835, Tocqueville emprega um método
etnográfico, privilegiando a descrição das características da sociedade norte-
americana, local em que a democracia representativa ocorreu pela primeira
vez, comparando-as com as existentes na França de então e com experiências
políticas da antiguidade, o segundo livro, de 1840, parte de técnicas da
sociologia dedutiva para tratar de algo totalmente inédito: a grande revolução
democrática, que não encontra parâmetros analíticos em sociedades pré-
modernas (JASMIN, 2005, p. 64).
Jasmin (2005, p. 64) salienta que “[...] enquanto no texto de 1835 é
frequente o recurso aos exemplos legados pela tradição histórica do ocidente,
especialmente as analogias com o mundo romano [...]”, no volume de 1840, as
analogias foram substituídas pelo contraste, e o objeto das preocupações de
Tocqueville passou a ser o “[...] próprio império pacífico da maioria agora
apreendido como uma possibilidade de servidão democrática.”
No sexto capítulo de um total de oito, da quarta e última parte do
segundo livro da Democracia, ao tratar da espécie de despotismo que as
nações democráticas devem temer, Tocqueville lança a mão de categorias
estranhas à tradição para explicar algo inédito na história política do
Ocidente: o despotismo democrático e a tirania da maioria.
Diferente da tirania exercida pelos césares que, apesar da centralização
do poder político e da utilização da força bruta do império, não adentrava os
detalhes da vida social e a existência individual dos povos dominados, o “[...]
despotismo que viesse a se estabelecer entre as nações democráticas de nossos
dias, teria outras características: seria mais extenso e mais doce, e degradaria
os homens sem os atormentar.” (TOCQUEVILLE, 2000, p. 388).
Essa nova forma de opressão que ameaça os povos democráticos não
se parece em nada com a que a precedeu no mundo, a “[...] coisa é nova, é

131
preciso, pois, procurar defini-la [...]”, já que nomeá-la parecia impossível, aos
olhos de Tocqueville (2000, p. 389).
Os elementos do novo despotismo foram perfilados por Tocqueville em
um trecho do referido capítulo – “Quero imaginar sob que novos traços o
despotismo poderia produzir-se no mundo [...]” (TOCQUEVILLE, 2000, p.
389) – o qual se constitui para Jasmin (2013) em um dos segmentos de maior
relevo dos dois livros que compõem a Democracia na América. São eles: i) a
massificação da sociedade; ii) a instalação do poder tutelar; iii) o despotismo
administrativo; e iv) a servidão regrada, doce e calma.

2.1.2.1 A MASSIFICAÇÃO DA SOCIEDADE

Tocqueville previu a formação de uma sociedade homogênea composta


de multidões de cidadãos individualistas, indiferentes aos negócios públicos e
pouco apetitosos para com o político e seu campo:
[...] vejo uma multidão incontável de homens
semelhantes e iguais que giram sem repouso
sobre si mesmos para conseguir pequenos e
vulgares prazeres com que enchem sua alma.
Cada um deles, retirado à parte, é como que
alheio ao destino de todos os outros: seus filhos e
seus amigos particulares formam para ele toda a
espécie humana; quanto ao resto de seus
concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê;
toca-os mas não os sente – cada um só existe em
si e para si mesmo e, se ainda lhe resta uma
família, podemos dizer pelo menos que pátria ele
não tem (TOCQUEVILLE, 2000, p. 389).

Diversos estudiosos de Tocqueville vislumbram em tal passagem o


prenúncio da sociedade de massas, pois ele encerra as principais
características do modelo social que se consolidou no final do Século XX e
adentrou o Século XXI.
A percepção do autor sobre ser a democracia uma sociedade que
naturalmente tende à equalização das condições e, por isso, produziria um

132
número maior de indivíduos em situações semelhantes pode ser tida como a
causa que levou Tocqueville a prever o fenômeno da massificação.

2.1.2.2 A INSTALAÇÃO DO PODER TUTELAR

Trata-se de um poder imenso e absoluto, detalhado, regular e doce que


paira sobre a sociedade de iguais, assemelhado por Tocqueville ao poder
paterno enquanto provedor das necessidades de seus filhos, mas que, ao
contrário deste, não os prepara para a vida adulta e, sim, visa mantê-los em
eterno estado infantil, negando-lhes o livre arbítrio e restringindo suas ações
a pequenos espaços, até o limite em que os cidadãos, embebidos pelo
paradigma da igualdade de condições, com isso, não se importem, pelo
contrário, entendam a atomização como benevolente:
Acima desses se ergue um poder imenso e tutelar,
que se encarrega sozinho de assegurar o proveito
e zelar pela sorte deles. É absoluto, detalhado,
regular e doce. Ele se pareceria com o poder
paterno se, como este, tivesse por objetivo
preparar os homens para a idade viril; mas, ao
contrário, procura tão-somente fixá-los de
maneira irreversível na infância; ele gosta de que
os cidadãos se regozijem, contanto que não
pensem em outra coisa que regozijar-se.
Trabalha de bom grado para a felicidade deles;
mas que ser o único agente e o único árbitro dela;
provê a segurança deles, prevê e garante suas
necessidades, facilita seus prazeres, conduz seus
principais negócios, dirige sua indústria, regra
suas sucessões, divide suas heranças; por que
não lhes pode tirar inteiramente o incômodo de
pensar e a dificuldade de viver? Assim, todos os
dias ele torna menos útil e mais raro o emprego
do livre-arbítrio; encerra a ação da vontade num
espaço menor e defrauda pouco a pouco cada
cidadão até mesmo do uso de si. A igualdade
preparou os homens para essas coisas; ela os
dispôs a suportá-las e muitas vezes até a
considerá-las um benefício (TOCQUEVILLE,

133
2000, p. 389-390).

A função do poder tutelar em Tocqueville é tão somente garantir a


segurança necessária para os negócios da esfera privada dos cidadãos
burgueses. Assim, não há qualquer semelhança entre o caráter provedor do
poder tutelar e a figura do Estado de bem-estar social.

2.1.2.3 O DESPOTISMO ADMINISTRATIVO

Em sua última obra, uma imersão na transição do Ancien Régime para


a Revolução Francesa, Tocqueville (2009) identifica a presença do despotismo
administrativo nas estruturas do Antigo Regime. Este teria sido aproveitado
pelas democracias para garantir ao detentor do poder tutelar – o soberano,
para Tocqueville (2000, p. 390) – o controle da sociedade pelo espraiamento
sobre a superfície social de uma série de ordenamentos que possibilitem
detalhar antecipadamente e minuciosamente como as coisas devem
acontecer, como os indivíduos devem se portar, ou seja, quais padrões de
normalidade devem determinar o cotidiano social.
Depois de ter colhido assim em suas mãos
poderosas cada indivíduo e de o ter moldado a
seu gosto, o soberano estende seus braços sobre
toda a sociedade; cobre a superfície desta com
uma rede de pequenas regras complicadas,
minuciosas e uniformes, através das quais os
espíritos mais originais e as almas mais vigorosas
não poderiam abrir-se caminho para ultrapassar
a multidão; não quebra as vontades, mas
amolece-as, submete-as e dirige-as; raramente
força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja;
não destroi, impede que se nasça; não tiraniza,
incomoda, oprime desvigora, extingue, abestalha
e reduz enfim cada nação a não ser mais que um
rebanho de animais tímidos e industriosos, de
que o governo é pastor. (TOCQUEVILLE, 2000,

134
p. 390).

O conceito de despotismo administrativo viria a ser mais bem


aprofundado posteriormente por Max Weber – não no sentido que
Tocqueville imprime ao termo – e que receberia a designação de burocracia.
Há, no entanto, uma diferença crucial entre o despotismo
administrativo de Tocqueville e a burocracia de Max Weber: o
arrebanhamento dos indivíduos – animais tímidos e industriosos
(TOCQUEVILLE, 2000, p. 390), que correspondem à figura do animal
laborans (ARENDT, 2000, p. 49) – pelo zeloso pastor – o governo.

2.1.2.4 A SERVIDÃO REGRADA, DOCE E CALMA

Não há indícios de que Tocqueville tenha se baseado em Étienne de La


Boétie para tratar da servidão em sociedades democráticas. Raciocínio
semelhante infere-se do contraste entre os livros publicados em 1835 e 1840
por Tocqueville e a obra de Juan-Ramon Capella, os Cidadãos Servos, do final
da década de 1970. Todavia, existem aproximações relevantes entre as três
análises e um ponto em comum, em meio a diversas convergências.
Em o ‘Discurso Sobre a Servidão Voluntária’, também conhecido como
‘O Contra Um’, La Boétie (2009, p. 98), em 1548, já vislumbrava que a
servidão só se mantém em função do servilismo daquele que serve: “[...] é o
povo que se submete, que corta a própria garganta, que, tendo a escolha, ou
de ser servo, ou de ser livre, abandona a liberdade e fica sob o jugo, [...]. É o
povo que consente o seu mal, ou antes, o persegue [...].”
Apesar de reconhecer que a servidão é inicialmente imposta pela força,
por engano ou por uma escolha equivocada – La Boétie (2009, p. 41-42)
classifica os tiranos em três tipos: os que pela violência tomam o poder, os que
por eleição são alçados ao poder e os que o recebem por sucessão –, tal não
acontece com aqueles que vêm depois e servem sem pesar, fazendo de bom
grado o que seus antecessores haviam feito por imposição. Desse modo os

135
homens nascidos sob o jugo, mais tarde educados e criados na servidão, sem
olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como não pensam
ter outro bem nem outro direito que o que encontraram, consideram natural
a condição de seu nascimento (LA BOÉTIE, 2009, p. 43).
Para La Boétie (2009, p. 45) a subserviência decorre da conformidade
de quem nasceu servo e é mantida em função do comodismo, covardia e
mansidão do escravo. Todavia, o fundamento da dominação repousa em uma
trama social que envolve todos os que se beneficiam com o estado de servidão.
Sempre foi a uma escassa meia dúzia que o tirano deu ouvidos, essa
meia dúzia tem ao seu serviço mais seiscentos que procedem com eles como
eles procedem com o tirano. Abaixo destes seiscentos há seis mil devidamente
ensinados a quem confiam ora o governo das províncias ora a administração
do dinheiro, para que eles ocultem as suas avarezas e crueldades, para serem
seus executores no momento combinado e praticarem tais malefícios que só à
sombra deles podem sobreviver e não cair sob a alçada da lei e da justiça. E
abaixo de todos estes vêm outros (LA BOÉTIE, 2009, p. 57-58).
Esses fatores levam La Boétie a interpretar a servidão em função da
estrutura que a sustenta e das conveniências que concede ao tirano; a uma
verdadeira rede que se aproveita da tirania e, por isso, a mantém; e àqueles
que a ela se submetem de forma voluntária, já que a alienação parece ser mais
cômoda do que a incerta e solitária liberdade.
Ao afirmar: “A natureza do senhor me importa muito menos do que a
obediência [...]” Tocqueville (2000, p. 391) pontua as semelhanças e as
diferenças entre o seu entendimento e de La Boétie sobre a servidão.
Ambos são conceitos inconcebíveis, forjados por um “[...]
acasalamento de palavras que repugna à língua, para designar o fato político
aberrante [...]” (LEFORT, 1982, p. 125) que se constitui em um servilismo
voluntário.
As análises de Tocqueville, contudo, privilegiam os costumes
democráticos, logo seria estranho que empregasse ao tirano e à rede que se

136
aproveita da tirania e da servidão a mesma importância que La Boétie lhes
administrara.
O que mais diferencia a servidão percebida por Tocqueville da
denunciada por La Boétie é a petrificação que paira sobre esta (a servidão
voluntária) e o movimento temporal de saída e retorno que caracterizam a
primeira (a servidão regrada).
La Boétie parte do pressuposto da transmissão hereditária da servidão.
Ainda que contra a vontade, aquele que se tornou servo lega tal condição aos
descendentes, sedimentando-a, conforme avançam as gerações.
A premissa da servidão em sociedades democráticas reside no fato de
que: “Nesse sistema, os cidadãos saem um momento da dependência para
indicar seu senhor e voltam a entrar nela [...]” (TOCQUEVILLE, 2000, p. 391),
pouco importando, assim, quem será escolhido para o cargo de senhor, já que
a servidão reside no eterno e voluntário retorno, motivado por duas paixões
antagônicas: a igualdade, que alicerça a soberania popular e faz com que o
poder ascenda do povo e a liberdade, que deve ser mantida e defendida ante
os arroubos do povo função.
Nossos contemporâneos são incessantemente
trabalhados por duas paixões inimigas: sentem a
necessidade de ser conduzidos e a vontade de
permanecer livres. Não podendo destruir nem
um nem outro desses instintos contrários,
esforçam-se para satisfazer ambos ao mesmo
tempo. Imaginam um poder único, tutelar e
onipotente, mas eleito pelos cidadãos.
Combinam a centralização com a soberania do
povo, o que lhes proporciona certa trégua. Eles se
consolam por estar tutelados pensando terem
eles próprios escolhidos seus tutores. Cada
indivíduo suporta que o prendam, porque vê que
não é um homem nem uma classe, mas o próprio
povo que segura a porta da cadeia
(TOCQUEVILLE, 2000, p. 390-391).

A servidão de que trata Tocqueville é uma espécie de “[...] servidão


regrada, doce e calma [...]” que, ao contrário do que pensara um dia o autor,

137
foi capaz de “[...] estabelecer-se à sombra mesmo da soberania do povo [...]”
(TOCQUEVILLE, 2000, p. 390), já que aos cidadãos burgueses que
conformam a figura reificada do povo importa mais a “[...] tranquilidade
pública que exige o livre gozo dos prazeres privados [...]” (JASMIN, 2005, p.
59-60) do que a liberdade.
A servidão regrada destoa da voluntária em função da necessidade de
serem preservados certos direitos do serviçal, principalmente a segurança de
seus bens: “No limite, os indivíduos acabarão por aceitar qualquer forma de
governo e qualquer governante, desde que a segurança de seus bens esteja
garantida [...].” (JASMIN, 2005, p. 60).
Por outro lado, a servidão regrada aproxima-se da voluntária na
medida em que ambas envergam e afrouxam os indivíduos e os costumes,
tornando-os subservientes e apáticos aos negócios do mundo comum
arendtiano, ou seja, criam uma nova espécie de cidadão – muito diferente do
ateniense, que agia porque era livre – o cidadão servo.
A existência de “[...] sujeitos dos direitos sem poder [...]” define a
servidão contemporânea (CAPELLA, 1998, p. 147).
O novo servilismo resulta da retroalimentação positiva entre dois
fatores: o poder privado e a dissolução do poder. “As sucessivas
modernizações – primeira, segunda, terceira revolução industrial – viram
crescer [...] o poder político privado do capital.” Tal tendência fez-se
acompanhar de uma “[...] carreira em direção a dissolução [...]” dos “[...]
vínculos sociais da tradição [...]”, da libertação dos seres humanos de todos os
controles tradicionais: família, classe social, etc., com exceção dos vínculos
jurídicos, que foram monopolizados pelo Estado, o qual, por sua vez, é
extremamente suscetível aos interesses de um poder privado “[...] carente de
deveres [...]”. (CAPELLA, 1998, p. 146-147). Está fechado o ciclo, pois:
Os cidadãos se dobraram em servos ao ter
dissolvido seu poder, ao confiar só ao Estado a
tutela de seus “direitos”, ao tolerar uma
democratização falsa e insuficiente que não
impede o poder político privado modelar a
“vontade estatal”, que facilita o crescimento,

138
supra-estatal e extra-estatal, desse poder privado
(CAPELLA, 1998, p. 147).

A sinergia descrita por Capella (1998) materializa as previsões de


Tocqueville sobre a solidificação de uma massa de cidadãos centrados em suas
necessidades individuais, inaptos aos assuntos de interesse comum.
A igualização das condições não impediu a formação daquilo que
Boaventura de Souza Santos (2001, p. 15) chama de “[...] cidadãos
enfraquecidos [...]” os quais, “[...] prostrados diante de um poder que não
entendem e desconhecem como se manifesta [...]” (ROSA, 2013, p. 11), apesar
de sentirem a influência desse sobre seu cotidiano, são incapazes de realizar
de forma conjunta duas das ações inerentes à democracia: questionar os
porquês e zombar das estruturas do poder.
O presente atualiza, assim, as percepções de La Boétie e de Tocqueville
sobre a servidão e possibilita agregar às figuras da servidão voluntária e da
servidão regrada a da servidão livre, entendida como aquela na qual se
poderia, segundo Capella (1998, p. 146), denominar os cidadãos de “[...]
livremente servos [...]”, em um contexto no qual o poder privado modelaria
inclusive a vontade estatal.
Como explicar, a partir de La Boétie, Tocqueville e Capella, o fato de
que a democracia, o poder do povo – pelo povo e para o povo, no caso da
democracia indireta – é na verdade o poder de cidadãos voluntariamente,
regradamente e livremente servos? Como conciliar tamanho paradoxo? Outro
paradoxo, o da tirania da maioria reserva possíveis respostas para este
problema.

2.1.3 A TIRANIA DA MAIORIA

Assim como o despotismo democrático, a tirania da maioria é categoria


analítica que fugia da tradição precedente a Tocqueville e, até os dias atuais,
guarda em si certa estranheza. Pela aporia que, à primeira vista, representa, é

139
preciso buscar em Tocqueville o significado da locução para, depois, atualizá-
lo.
A forma como Tocqueville tratou a tirania da maioria alterou-se, tal
como aconteceu com o despotismo democrático, no quinquênio que separam
os dois volumes da Democracia. Apesar de não ter abandonado a oposição
entre liberdade e servidão, na publicação de 1840, Tocqueville trabalha
democracia como uma totalidade social abstrata, o império pacífico da
maioria, que permite, pela generalidade, vislumbrar as ligações entre o
despotismo democrático e a tirana da maioria, não como elemento específico
da democracia norte-americana, mas como resultado da marcha democrática
rumo à igualdade de condições (JASMIN, 2005, p. 64).
A estratégia utilizada por Tocqueville para tratar do império pacífico
da maioria se desenvolve, a partir duas linhas de argumentação: a onipotência
da maioria e o império moral da maioria (JASMIN, 2005, p. 61).
O temor pela onipotência da maioria nas assembleias,
consubstanciada na máxima de que “[...] em matéria de governo, a maioria do
povo tem o direito de fazer tudo [...].” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 294).
Tocqueville não foi o primeiro a expressar preocupações com a o poder
da maioria. Pode-se recorrer às análises de Aristóteles acerca da diferença
entre democracia e oligarquia, para demonstrar quão antiga é a discussão.
Na Política, Aristóteles (1997, 91-92), após realizar um exercício
taxionômico sobre as formas de governo possíveis – i) monarquia: reino cujo
objetivo é o bem comum; ii) aristocracia: governo de mais de uma pessoa, os
melhores homens ou os homens que governam com vistas ao que é melhor
para a cidade e; iii) governo constitucional: governo da maioria com vistas ao
bem comum – e de seus desvios, que não têm como objetivo o interesse do
bem comum – i) tirania: monarquia governamental no interesse do monarca;
ii) oligarquia: governo no interesse dos ricos; e iii) democracia: governo no
interesse dos pobres – e problematizar, através de diversas suposições, sobre
as variáveis possíveis envolvidas em sua classificação, entende ser acidental
que poucos e muitos controlem o poder nas oligarquias e nas democracias, já

140
que o número de ricos sempre será menor do que o dos pobres, em qualquer
lugar.
Com base em tais premissas, Aristóteles (1997, p. 91-92) afirma que a
diferença entre a oligarquia e a democracia não se encontra na dicotomia
minoria/maioria e sim na divisão riqueza/pobreza: “[...] consequentemente,
onde quer que os governantes exerçam o poder por causa da riqueza, sejam
eles minorias ou maiorias, ter-se-á uma oligarquia, e onde os pobres
governarem ter-se-á uma democracia.”
É de se ressaltar, contudo, que para Aristóteles havia um perigo
intimamente impresso no ânimo da democracia: a sua deterioração em
governo em interesse dos pobres, além disso, por detrás da descrição
taxionômica de Aristóteles existia uma “[...] distinção normativa entre
governo no interesse de todos, o sinal de um melhor tipo de governo, e o
governo para o interesse e benefício de uma parte da população, a
característica de um tipo pior de governo”. (FINLEY, 1988, p. 27).
Lijphart (2011), partindo de premissas totalmente diferentes daquelas
que fundamentaram as observações de Aristóteles e de Tocqueville, utilizando
dados concretos, realiza um minucioso estudo de cunho empírico sobre o
desempenho e padrões de governo em trinta e seis países democráticos
levando em consideração a diferenças relacionadas a dez variáveis
encontradas no modelo Westminster – que para o autor é significado de
modelo majoritário de democracia – e o modelo consensual.
Dentre as conclusões do estudo, algumas evidenciam por meio de
dados objetivos distorções nos modelos democráticos da atualidade que além
de reforçarem as teorias de Aristóteles sobre as formas degeneradas de
governo e de Tocqueville acerca da tirania da maioria, desmistificam noções
não problematizadas ou, pelo menos, não o suficiente, na academia e,
principalmente no cotidiano e que causam a falsa impressão de que, em países
democráticos a maioria é quem decide os rumos ou, ainda, que estes são
determinados em favor da vontade ou no interesse daquela.

141
Como primeiro exemplo abordar-se-á o modo de organização do Poder
Executivo em países que seguem o modelo de Westminster, tendo como
parâmetro a forma adotada no Reino Unido.
Lijphart (2011, p. 28) relata que o órgão mais poderoso do governo
britânico é o gabinete, que normalmente é composto de membros do partido
detentor da maioria das cadeiras na Câmara dos Comuns, e a minoria não é
incluída, já que são raros os gabinetes de coalizão. Como o sistema
bipartidário britânico é composto de dois partidos de força aproximadamente
igual, o partido vencedor das eleições representa apenas uma estreita maioria,
enquanto a minoria é relativamente grande. O gabinete britânico de um
partido e de maioria mínima assentado sobre o princípio majoritário acaba,
por consequência, manobrando grande quantidade de poder político “[...]
para governar como representante – e no interesse – de uma maioria, cujas
proporções não chegam a ser esmagadoras [...]”, inibindo, assim, o poder a
uma grande minoria, que acaba confinada ao papel de oposição.
Na dimensão que trata das relações entre os poderes executivo e
legislativo, Lijphart (2011, p. 29) defende que, ao contrário do que se supõe,
no modelo inglês, o gabinete, na prática, domina a legislatura. Teoricamente
a lógica é inversa: por ser um sistema de governo parlamentarista, o gabinete
depende da confiança do Parlamento e a Câmara dos Comuns pode destituir
o gabinete. Acontece que, invariavelmente, como o gabinete é composto pelos
líderes de um partido majoritário coeso na Câmara dos Comuns, normalmente
ele é apoiado pela maioria daquela Casa e pode contar com a sua permanência
no poder e com a aprovação das suas propostas legislativas. “O gabinete
claramente prevalece sobre o Parlamento”.
A mesma situação pode ocorrer em sistemas presidencialistas:
Nos sistemas presidencialistas de governo, em
que o chefe do Executivo não pode ser removido
pelo Legislativo (a não ser por meio de
impeachment), pode ocorrer a mesma variação
no grau de predomínio do Executivo,
dependendo exatamente de como são separados
os poderes governamentais. Nos Estados Unidos,

142
pode-se dizer que presidente e Congresso
mantêm um tosco equilíbrio de poder, mas na
França e em alguns países latino-americanos os
presidentes são consideravelmente mais
poderosos. [...]. Nesses sistemas “fortemente
majoritários”, quem vencer a eleição presidencial
ficará qualificado a governar da forma que lhe for
mais adequada, restrito apenas por relações de
poder inegavelmente preexistentes, e por um
prazo de governo limitado pela Constituição.
(LIJPHART, 2011, p. 30).

Em relação ao sistema eleitoral, dimensão de análise mais aproximada


do objeto do presente item, Lijphart (2011, p. 32) apresenta dados que, além
de demonstrarem as incongruências do modo de organização política do
Reino Unido, induzem minimamente a questionamentos sobre as
incoerências da representatividade, em especial as relacionadas à maioria e à
sua tirania.
Cada um dos membros da Câmara dos Comuns inglesa é eleito em um
único distrito, segundo o método da maioria simples, que na Grã-Bretanha é
chamado de sistema first past the post (expressão originária do turfe que
significa que o primeiro cavalo a cruzar a linha de chegada leva todo o prêmio).
De acordo com as regras desse método, vence o candidato com mais de
cinquenta por cento dos votos, por distrito, ou, caso não houver maioria, com
a menor minoria (LIJPHART, 2011, p. 32).
Esse sistema tende a propiciar resultados extremamente
desproporcionais. Lijphart (2011, p. 32) exemplifica:
[...] o Partido Trabalhista obteve uma maioria
parlamentar absoluta, de 319 das 635 cadeiras,
com apenas 39,3 por cento dos votos, nas
eleições de outubro de 1974, enquanto os liberais
obtiveram apenas 13 cadeiras, com 18,6 por
cento dos votos – quase a metade dos votos
trabalhistas. Nas cinco eleições que se
sucederam, de 1979 a 1997, o partido vencedor
obteve nítidas maiorias de cadeira, com um

143
número nunca superior a 44 por cento dos votos.

O sistema de Westminster, na sua vertente inglesa possibilita o que


Douglas W. Rae (apud LIJPHART, 2011, p. 32) denomina de “[...] maioria
fabricadas [...]” – maiorias absolutas artificialmente criadas a partir de
maiorias simples. Como todos os partidos vitoriosos desde 1945 na Inglaterra
beneficiaram-se desse artifício e levando-se em consideração a existência de
dois grandes partidos, o Trabalhista e o Conservador que transformam o
sistema inglês em um modelo bipartidário na prática, Lijphart (2011, p. 32)
entende ser mais adequado chamar o Reino Unido de uma democracia de
maioria simples, em vez de democracia majoritária.
Cabem duas objeções às afirmações acima. Primeiro, as análises e
conclusões de Lijphart referem-se a um modelo específico de sistema
democrático, o de Westminster experimentado na Grã-Bretanha. Segundo,
ainda que este modelo fosse aceito como universal as regras do jogo
democrático permitem a alternância no poder, de acordo com a vontade do
povo.
Realmente, Lijphart trabalha na perspectiva de agrupar as
democracias em dois grupos: o da democracia majoritária ou modelo
Westminster e o da democracia consensual.
Valendo-se de Willian Arthur Lewis, Lijphart (2011, p. 51) delineia e,
ao traçar os contornos, define democracia consensual.
A interpretação majoritária da definição básica
de democracia é que esta significa “governo pela
maioria do povo”. Ela afirma que as maiorias
devem governar e que as minorias devem fazer
oposição, o que é questionado pelo modelo de
democracia consensual. Como destacou
vigorosamente Sir Arthur Lewis, Prêmio Nobel
de Economia (1965: 64-65), o governo pela
maioria e o padrão “governo versus oposição”,
que este pressupõe, podem ser interpretados
como antidemocráticos, por se tratar de
princípios de exclusão. Lewis afirma que o
principal pressuposto da democracia é que
“todos aqueles afetados por uma decisão devem

144
ter a oportunidade de participar do processo que
a originou, quer diretamente, quer através de
representantes escolhidos”.

A democracia consensual seria, assim, aquela que permitisse que a


vontade do “[...] maior número de pessoas [...]” ao invés da vontade da “[...]
maioria do povo [...]” prevalecesse (LIJPHART, 2011, p. 17-18).
No que concerne à representação, Lijphart (2011, p. 51), novamente
com base em Willian Arthur Lewis, estabelece as diferenças entre os dois
modelos.
Sua segunda implicação é que “a vontade da
maioria deve prevalecer”. Se isso quer dizer que
os partidos vitoriosos podem tomar todas as
decisões governamentais, e que os perdedores
devem limitar-se a criticar, porém não a governar
– acrescenta Lewis –, os dois significados são
incompatíveis: “excluir os grupos perdedores da
participação nos processos decisórios é uma
nítida violação do principal pressuposto da
democracia”.

Os modelos de democracia consensuais se distanciariam dos


majoritários em razão da exclusão que estes impõem, em outras palavras,
quanto maior a impossibilidade de os perdedores participarem das decisões
públicas, menos consensual seria a democracia, e maior seria a tirania da
maioria. Quanto mais as minorias participassem, mais consensual seria a
democracia, e menor seria a tirania da maioria.
A participação de um maior número de pessoas se daria por meio de
diversos mecanismos, dentre os quais Lijphart (2011, p. 55-57) aponta a
adoção de um sistema multipartidário e da representação proporcional.
Com base em modelos de democracias consensuais como as da Suíça,
a Bélgica e a União Europeia como, Lijphart (2011, p. 57) conclui que a adoção
desses mecanismos não foi suficiente para inibir “[...] a tradução das divisões
de caráter social em divisões no sistema partidário [...]”, nem de diminuir o
“[...] nível significativo de desproporcionalidade.” (LIJPHART, 2011, p. 62).

145
Com foco na corporificação das tensões e diferenças sociais pelos
partidos políticos, percebe-se o quanto a abertura para a participação
pressupõe condições culturais homogêneas. Em países marcados por fortes
clivagens culturais, o modelo consensual se tornaria inviável, em tese.
Se a homogeneidade cultural possibilita que a democracia se abra para
as minorias, ela acaba, por outro lado, impondo uma espécie derivada de
tirania da maioria, não mais a decorrente de aspectos objetivos, como se
acabou de verificar, mas sim de cunho cultural. É que, em sociedades
homogêneas, as diferenças culturais são tão tênues que podem ser exprimidas
em plataformas políticas de dois partidos majoritários, criando uma espécie
de sistema bipartidário em meio a um cenário multipartidário.
E como os sistemas bipartidários costumam ser “[...] sistemas
partidários unidimensionais, ou seja, os programas e diretrizes dos principais
partidos diferem entre si, principalmente em relação a apenas uma dimensão:
a das questões socioeconômicas [...]” (LIJPHART, 2011, p. 31), os princípios
partidários costumam ser semelhantes, os discursos quase idênticos e as
linhas de atuação muito parecidas, o que remete à segunda linha de
argumentação da teoria tocquevilliana sobre a tirania da maioria: o império
moral da maioria.
“Na América, a maioria traça um círculo formidável em torno do
pensamento. Dentro desses limites, o escritor é livre; mas ai dele, se ousar
sair!” Com essa frase Tocqueville (2005, p. 299), conseguiu traduzir o
significado do império moral da maioria.
A potência intelectual da maioria parte da “[...] teoria da igualdade de
condições aplicada às inteligências [...]” e se baseia na “[...] ideia de que há
mais luzes e sabedoria em muitos homens reunidos do que num só, mais no
número de legisladores do que na escolha [...].” (TOCQUEVILLE, 2005, p.
290).
O império moral da maioria jamais é imposto tampouco dependente
do recurso à violência física.
O amo não diz mais: “Pensará como eu ou

146
morrerá.” Diz: “Você é livre de não pensar como
eu; sua vida, seus bens, tudo lhe resta; mas a
partir deste dia você é um estrangeiro entre nós.
Irá conservar seus privilégios na cidade, mas eles
se tornarão inúteis, porque, se você lutar para
obter a escolha de seus concidadãos, eles não a
darão, e mesmo se você pedir apenas a estima
deles, ainda assim simularão recusá-la. Você
permanecerá entre os homens, mas perderá seus
direitos à humanidade. Quando se aproximar de
seus semelhantes, eles fugirão de você como de
um ser impuro, e os que acreditarem em sua
inocência, mesmo estes o abandonarão, porque
os outros fugiriam dele por sua vez. Vá em paz,
deixo-lhe a vida, mas deixo-a pior, para você, do
que a morte.” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 299).

Ele decorre da irresistível força da maioria que, por força da revolução


democrática esvaziou o centro do poder, despersonalizando-o, e fez com que
confluísse para a figura do povo reificado que atua através da representação.
Ao atingir o último abrigo da liberdade, o império moral da maioria
ataca de forma direta o “[...] orgulho do homem em seu derradeiro refúgio
[...]”, moldando as vontades individuais aos interesses da maioria, “[...] que
devem ter preferência sobre os das minorias.” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 290-
291).
É neste ponto que a tirania da maioria mostra a sua feição, nas palavras
de Tocqueville (2005, p. 294), “[...] mais ímpia e detestável [...]”, sequer
preocupa-se em subjugar os interesses das minorias, basta apenas ignorá-los,
com base nos valores e pretensões por ela mesma tidos como mais
significativos. “Afinal o que é uma maioria tomada coletivamente, senão um
indivíduo que tem opiniões e, na maioria dos casos, interesses contrários a
outro indivíduo, denominado minoria? [...]”, questiona Tocqueville (2005, p.
294).
Nesse rumo, algumas questões formuladas em 1835 por Tocqueville
transcendem ao tempo e à sociedade a que se referiam:
Quando um homem ou um partido sofrem uma
injustiça nos Estados Unidos, a quem você quer

147
que ele se dirija? À opinião pública? É ela que
constitui a maioria. Ao corpo legislativo? Ele
representa a maioria e obedece-lhe cegamente.
Ao poder executivo? Ele é nomeado pela maioria
e lhe serve de instrumento passivo. À força
pública? A força pública não passa da maioria
sob as armas. Ao júri? O júri é a maioria investida
do direito de pronunciar sentenças – os próprios
juízes, em certos Estados, são eleitos pela
maioria. Por mais iníqua e insensata que seja a
medida a atingi-lo, você tem que se submeter a
ela. (TOCQUEVILLE, 2005, p. 296).

No cenário, aparentemente pessimista, pintado por Tocqueville parece


não haver lugar para diferenças e direitos das minorias. O autor aponta,
contudo, possibilidades para a defesa destes.
Uma delas repousa na separação dos poderes e na desvinculação do
legislativo das paixões da maioria que representa. (TOCQUEVILLE, 2005, p.
295).
A outra, aparentemente mais adequada – é bom não se descurar para
o fato de que antes mesmo de ter sido impresso o primeiro volume da
Democracia na América, a primeira solução apontada naquele livro já estava
sendo construída e nem por isso percebe-se que os direitos das minorias vêm
sendo devidamente tutelados, aliás, há um tremendo déficit democrático
quando o que está em jogo é a defesa das minorias e seus direitos –,
Tocqueville (2005, P. 293) a baseia na ideia universal de justiça, que seria para
o autor o limite do direito de cada povo. Assim, quando alguém se recusar a
obedecer a uma lei injusta, não estaria negando à maioria o direito de
comandar, apenas, em lugar de apelar para a soberania do povo, apelaria para
a soberania do gênero humano.
É claro, em tempos marcados por significativas vivências multi e
interculturais, a noção universal de justiça necessita ser relativizada. Tarefa
que não invalida o diagnóstico de Tocqueville sobre as sociedades
democráticas e sobre o futuro da democracia.

148
Claude Lefort soube atualizar Tocqueville e pôr em evidência a
incessante luta da democracia pelo seu futuro, que passa por batalhas travadas
contra o estabelecido, inclusive por ela mesma, e remete às figuras da
reinvenção e da morte da democracia.
Soube, ainda, demarcar o espaço do político nas sociedades
democráticas modernas e, com isso, definir o seu tempo, os quais restam
espacial e temporalmente delimitados pelas figuras dos dois corpos do rei, de
um lado, e do totalitarismo, de outro, valendo-se, para tanto, das metáforas da
‘desincorporação’ e do ‘nome de Um’.

2.2 DESINCORPORAÇÃO E TOTALITARISMO: A DESINTEGRAÇÃO DA


DEMOCRACIA REPRESENTATIVA NO NOME DE UM

No prefácio à edição de 1981 da obra ‘A invenção democrática: os


limites da dominação totalitária’ – um apanhado de textos diversos sobre
democracia e totalitarismo, sem que possam ser considerados peças ou
pedaços reunidos em invólucro único, pois, na verdade, constituem-se uma
sequência de escritos circunstanciais, guiados por um único fio condutor –
Claude Lefort (1987, p. 33) enuncia o argumento ordenador que confere
coesão à obra como um todo e às partes que a formam:
O Estado totalitário só pode ser concebido em
relação à democracia e sobre o fundo das
ambiguidades desta última. É a refutação dela
ponto por ponto e, no entanto, atualiza
representações que ela contém virtualmente.
Nele a democracia encontra uma potência
adversa, mas que ela carrega também dentro de
si mesma.

O combate ao Estado totalitário requer o despertar da revolução


democrática, a reinvenção da democracia, pois na “[...] conservação do
adquirido que se revela sempre, de fato, uma regressão”. (LEFORT, 1987, p.
33).

149
Ao afirmar que a democracia se institui por vias selvagens, sob o efeito
de reivindicações indomesticáveis, tendo sempre sido uma luta para as
conquistas de direitos que lhe são constitutivos, Lefort (1987, p. 26) tangencia
um ponto vital para o presente trabalho:
É uma aberração, como escrevi noutro lugar, fazer da democracia uma
criação da burguesia. Seus representantes mais ativos, na França, tentaram de
mil maneiras atravancar a sua dinâmica no curso do século XIX. Viram no
sufrágio universal, no que era, para eles, a loucura do número, um perigo não
menor do que o socialismo. Durante muito tempo, julgaram escandalosa a
extensão do direito de associação e escandaloso o direito de greve. Procuraram
circunscrever o direito à educação e, de modo geral, fechar, longe do povo, o
círculo das luzes, das superioridades e das riquezas. (LEFORT, 1987, p. 26).
A assunção da cisão entre democracia e burguesia remete a outro
problema não menos importante: a ligação, o conjunto de relações, ou melhor,
correlações, entre democracia e burguesia. Essa, por sua vez, passa
necessariamente pela modernização.
No excelente prefácio ao aclamado livro de Robert Dahl, ‘Poliarquia’,
delimitando o objeto de estudo da obra a qual introduz – a identificação das
variáveis determinadoras do sucesso das democracias – e a desvinculação
destas de fatores extra políticos –, Fernando Limongi (2012, p. 13) indica os
trabalhos de Lipset, em especial o artigo publicado em 1959 na American
Political Science Review, intitulado ‘Some social requisites of democracy
economic development and political legitimacy’ –, como o ponto de partida
das análises que visam ligar a modernização à manutenção de regimes
democráticos por longos períodos, ou seja, que denotam a dependência do
sucesso da democracia moderna no tempo à existência de determinadas
condições socioeconômicas de organização evidentes nas sociedades que
lograram romper com as antigas estruturas, valendo-se, para tal, das
revoluções burguesas e da prosperidade econômica.
Atrelado à definição de democracia como um sistema político que
oportuniza a alternância regular e constitucional dos funcionários

150
governamentais, e à noção da dependência de tal sistema a uma série de
condições específicas: i) a especificação via um conjunto de regras das
instituições legítimas; ii) a existência de partidos políticos, imprensa livre, etc;
iii) um conjunto de líderes políticos no exercício dos cargos; e iv) um ou mais
grupos de líderes políticos tentando alcançar esses mesmos cargos (LIPSET,
1967, p. 45), Seymour Martin Lipset procura testar a seguinte hipótese:
Talvez a generalização mais comum, associando
os sistemas políticos a outros aspectos da
sociedade, seja a de que a democracia está
relacionada com a situação de desenvolvimento
econômico. Quanto mais próspera for uma
nação, tanto maiores são as probabilidades de
que ela sustenha a democracia. Desde Aristóteles
até a atualidade, os homens têm argumentado
que só numa sociedade abastada, em que
relativamente poucos cidadãos vivam ao nível da
pobreza real, poderá existir uma situação em que
a massa da população inteligentemente participe
na política e desenvolva a autodisciplina
necessária para evitar sucumbir aos apelos de
demagogos irresponsáveis. Uma sociedade
dividida entre uma grande massa pobre e uma
pequena elite favorecida resultará numa
oligarquia (domínio ditatorial do pequeno
estrato superior) ou em tirania (ditadura de base
popular). (LIPSET, 1967, p. 49-50).

Lipset (1967, p. 50) utilizou-se de vários índices de desenvolvimento


humano – riqueza, industrialização, urbanização e educação – e elaborou
médias para países considerados mais ou menos democráticos no mundo
anglo-saxônico, na Europa e na América Latina.
Os índices utilizados por Lipset estão diretamente ligados ao grau de
modernização dos países analisados, o que o leva, de forma indireta, a
correlacionar índices de modernização com a classificação dos regimes
políticos. Segundo Limongi (2012, p. 14): “A análise empírica comprova a sua
hipótese, permitindo, sobretudo, distinguir dois grandes grupos de países: os
subdesenvolvidos com regimes autoritários e os desenvolvidos com regimes
democráticos.”

151
As conclusões de Lipset, além de oporem obstáculos a estudos acerca
das democracias em transição, tais como o realizado por Przeworski (1994),
partem de uma noção unidirecional de modernização, reduzindo o “[...]
processo de transformações sociais pelo qual as sociedades passam ao
transitar do tradicional ao moderno, [...] em meio ao qual ocorre a
diferenciação e a autonomização das diferentes esferas da vida social [...]” às
experiências burguesas. Tal reducionismo importa na percepção da
democracia somente como consequência, “[...] o ponto culminante desse
processo, marcado pelo aparecimento e incremento prévio da urbanização,
educação, comunicação de massa, burocratização etc [...]” (LIMONGI, 2012,
p. 13) e não como causa de um novo processo, que se instituiu, conforme já
mencionado, “[...] por vias selvagens [...]” (LEFORT, 1987, p. 26) e, menos
ainda, como um contínuo processo de reinvenção.
A burguesia foi, nesse contexto, um dos tantos caminhos que levaram
à modernização. Barrington Moore Jr. (1983, p. 4-6) distingue três caminhos
históricos principais, desde o mundo pré-industrial ao contemporâneo: i) as
revoluções burguesas; ii) a forma capitalista e reacionária e; iii) o comunismo.
O primeiro desses caminhos leva-nos através
daquilo que acho merece ser chamado as
revoluções burguesas. À parte do fato de esta
expressão constituir uma bandeira vermelha
para muitos estudiosos, dadas as suas
implicações marxistas, tem outras ambiguidades
e desvantagens. No entanto, por motivos que
surgirão oportunamente, acho que é uma
designação necessária para determinar
alterações violentas que se verificaram nas
sociedades, inglesa, francesa e americana, no seu
caminho para a transformação em modernas
democracias industriais, e que os historiadores
ligam à Revolução Puritana (ou Guerra Civil
Inglesa, como é igualmente chamada, algumas
vezes), à Revolução Francesa e à Guerra Civil
Americana. (MOORE Jr., 1983, p. 4-5).

Essas revoluções têm como característica-chave o “[...]


desenvolvimento de um grupo na sociedade com uma base econômica

152
independente, o qual ataca os obstáculos a uma versão democrática do
capitalismo [...]”, foram as que, de forma mais significativa, romperam os
laços com as estruturas do Antigo Regime e levaram à combinação do “[...]
capitalismo e da democracia ocidental.” (MOORE Jr., 1983, p. 5).
Moore Jr. (1983, p. 5) denomina o segundo caminho de “[...] forma
capitalista e reacionária [...]”. Apesar de fundamentada nos postulados do
capitalismo industrial, essa via culminou em fascismo durante o século XX.
Os exemplos mais evidentes são a Alemanha e o Japão. O muito fraco impulso
burguês possibilitou uma forma de revolução produzida de cima para baixo. A
debilidade dos costumes (Tocqueville, 2005) era tal que:
[...] se chegou a tomar forma revolucionária, a
revolução foi derrotada. Mais tarde, algumas
sessões de uma classe comercial e industrial
relativamente fraca apoiaram-se em elementos
dissidentes das classes antigas e ainda
dominantes, principalmente recrutados no
campo, para levarem a cabo as alterações
políticas e econômicas necessárias para uma
sociedade industrial moderna, sob os auspícios
de um regime semiparlamentar. O
desenvolvimento industrial pode avançar
rapidamente sob tais auspícios. Mas o resultado,
após um período breve e instável de democracia,
tem sido o fascismo. (MOORE Jr., 1983, p. 5).

O terceiro caminho, o do comunismo, pode ser exemplificado pela


Rússia e pela China.
As grandes burocracias agrárias desses países
serviram para inibir os impulsos comerciais e
mais tarde industriais, com mais força do que nos
casos precedentes. Os resultados foram duplos.
Em primeiro lugar, essas classes urbanas eram
demasiado fracas para constituírem mesmo uma
parte menor na modernização efetuada pela
Alemanha e pelo Japão, embora tivesse havido
tentativas nesse sentido. E, na ausência de mais
do que débeis passos para a modernização,
manteve-se a existência do enorme aglomerado
dos camponeses. Esta classe, sujeita a novas
tensões e forças, à medida que o mundo moderno

153
ia avançando sobre ela, produziu a principal
força revolucionária e destruidora que subverteu
a ordem antiga e lançou aqueles países na era
moderna, sob a direção do comunismo, que
tornou os camponeses suas primeiras vítimas.
(MOORE Jr., 1983, p. 6).

A democracia, na perspectiva de Moore Jr. dependeria, basicamente,


das alianças de classe consumadas ao longo do processo de modernização.
Onde a burguesia não enfrentou e destruiu a
nobreza, a modernização desembocou em
regimes não-democráticos; nazi-fascismo,
quando foram preservadas as formas repressivas
de trabalho no campo via aliança entre nobreza e
burguesia; comunismo, quando a burguesia era
demasiadamente fraca e o problema do campo
foi deixado intocado. (LIMONGI, 2012, p. 17).

A perspectiva macro histórica de Moore Jr. avança em comparação


com a de Lipset, mas torna os homens “[...] presas de decisões tomadas no
passado [...]” e condiciona o destino político dos países ao momento em que
iniciaram seus processos de modernização e aos fatores que permitiram que
este se completasse, o que, de certa forma, cria uma série de contingências
para a democratização em países de modernização tardia ou incompleta, como
é o caso da Índia e da América Latina. Robert Dahl rompe com a literatura
precedente ao liberar, na Poliarquia, a “[...] política da determinação férrea do
processo histórico de modernização [...]” e estudar “[...] os efeitos do acesso e
do controle dos recursos de poder socioeconômicos e de coerção sobre a
democracia [...]”, distinguindo, assim, as sociedades conforme o grau de
pluralismo de cada uma (LIMONGI, 2012, p. 17-19).
As propostas teóricas de Lipset, Moore Jr. e Dahl, apesar de apontarem
para conclusões evidentemente díspares, permitem concluir que o elemento
de ligação e cisão entre a democracia e a burguesia é a modernização.
A modernização pode ser definida em função do processo dialético
entre os planos da imanência e da transcendência (HARDT; NEGRI, 2001) ou

154
da tensão entre os pilares da emancipação e da regulação (SANTOS, 2003).
No campo do político, porém, esta é mais bem compreendida por meio da
teoria da desincorporação.

2.2.1 OS DOIS CORPOS DO REI E O LUGAR VAZIO DO PODER

O político em Lefort é definido em função do duplo movimento de


aparição e ocultação do modo de instituição da sociedade democrática,
aparição na medida em que se permeia nos meandros do social e ocultação em
virtude de expressar-se, aparentemente, por um campo específico, o político.
O movimento de ocultação e aparição somente se possibilita em uma
sociedade organizada sobre as sapatas da autonomização e da atomização dos
campos, ou seja, em sociedades que transpuseram a forma organísmica ou
corporal de constituição.
A compreensão desse fenômeno requer o entendimento da democracia
não apenas como uma forma de governo, o regime afirmado na soberania do
povo, que permite que se governe em seu nome, e sim como uma aventura
histórica sem precedentes, onde causas e efeitos não são localizáveis na esfera
convencionalmente definida como sendo a do governo (LEFORT, 1991, p. 41).
Requer, ainda, que se perceba a democracia a partir da desagregação
em grupos dos elementos de coesão, da separação do corpo em partes
autônomas; da abolição do lugar do referente, de onde a lei ganhava sua
transcendência – ponto até o qual a democracia se confunde com a proposta
de modernização –; da substituição de um regime regulado por leis, de um
poder legítimo, pela noção de um regime fundado na legitimidade de um
debate – sem fiador e termo – sobre o legítimo e o ilegítimo – ponto a partir
do qual a democracia ultrapassa as barreiras da modernidade (LEFORT, 1991,
p. 57).
Em outros termos, o duplo movimento de aparição e ocultação
pressupõe a substituição do padrão adotado no Antigo Regime baseado nos
corpos do rei pelo paradigma revolucionário da desincorporação.

155
2.2.1.1 OS DOIS CORPOS DO REI

A teoria dos dois corpos do rei tem como fundamento evidente a “[...]
doutrina da teologia e da lei canônica [...]”. A ideia de que a Igreja e a
sociedade cristã em geral, era um corpo místico, cuja cabeça é Cristo, havia
sido transposta pelos juristas, da esfera teológica para a do Estado, “[...] cuja
cabeça é o rei [...].” (KANTOROWICZ, 1998, p. 26).
A afirmação e superação do agostinianismo político, que contrapunha
a cidade celeste (Civitas Dei) à cidade terrena (Civitas Diaboli), e a
normalização entre a ordem temporal dos reinos e a espiritual sobre a qual
governa o Bispo de Roma, esforços materializados na teoria dos dois gládios,
estão na gênese desta representação.
Todavia, o conteúdo da doutrina dos dois corpos foi mais bem definido
pelos trabalhos de juristas da Coroa inglesa, coletados e organizados durante
o reinado da rainha Elizabeth, nos relatórios de Edmund Plowden.
(KANTOROWICZ, 1998, p. 21).
No julgamento que tratava da validade da concessão de terras do
ducado de Lancaster feita por Eduardo VI, o antecessor da rainha Elizabeth,
sem que tivesse idade para tanto, os advogados da Coroa confirmaram a
validade do ato jurídico com base nos seguintes fundamentos:
[...] que pelo Direito Comum nenhuma Lei que o
Rei decrete enquanto Rei será invalidada por sua
menoridade. Pois o Rei tem em si dois Corpos, a
saber, um Corpo natural e um Corpo político. Seu
Corpo natural (se considerado em si mesmo) é
um Corpo mortal, sujeito a todas as
Enfermidades que ocorrem por Natureza ou
Acidente, à Imbecilidade da Infância ou da
Velhice e a Defeitos similares que ocorrem aos
Corpos naturais das Outras Pessoas. Mas seu
Corpo político é um Corpo que não pode ser visto
ou tocado, composto de Política e Governo, e
constituído para a Condução do Povo e a
Administração do bem-estar público, e esse
Corpo é extremamente vazio de Infância e
Velhice e de outros Defeitos e Imbecilidades

156
naturais, a que o Corpo natural está sujeito, e,
devido a esta Causa, o que o Rei faz em seu Corpo
político não pode ser invalidado ou frustrado por
qualquer Incapacidade em seu Corpo natural.
(PLOWDEN, Apud KANTOROWICS, 1998, p.
21).

Os dois corpos do rei são indivisíveis, um está contido no outro.


Entretanto é evidente a noção da superioridade do corpo político sobre o
natural. Kantorowics (1998, p. 23) salienta que além de ser mais amplo e
extenso que o corpo natural, o corpo político abriga certas forças “[...]
realmente misteriosas [...]” que reduzem, ou até removem, as imperfeições da
natureza humana inerente ao primeiro.
“[...] seu Corpo político, que é anexado ao seu
Corpo natural, elimina a Imbecilidade de seu
Corpo natural, e atrai o Corpo natural, que é o
menor, e todos os seus respectivos Efeitos, para
si mesmo, que é maior, quia magis dignum trahit
ad se minus dignum. (PLOWDEN, Apud
KANTOROWICS, 1998, p. 23).

Ao preconizar maior relevância para o corpo político do rei, a teoria dos


dois corpos sobrepuja e marca suas diferenças em relação à dos dois gládios,
em função de condensar em um ser humano o poder político e fazer deste, em
conjunto com seus súditos, uma espécie de corporação – que pode até ser
tomada como uma coletividade sujeita a uma mesma regra ou estatuto mas
que seria, no sentido empregado ao termo por Kantorowics, mais bem
compreendida como sinônimo de corporificação (ato de corporificar, de reunir
num corpo elementos dispersos) – independente da sua existência material e,
muito menos, da existência material daqueles, valendo-se, para tal operação,
dos primados da teologia medieval acerca dos embates entre o poder terreno
e o celeste, permitindo ao rei manter-se vivo, mesmo estando morto. Em
determinado trecho de uma sentença proferida pelo juiz Southcote no caso
Willion versus Berkley, estão descritos os principais fundamentos da teoria
dos dois corpos do rei.

157
O primeiro reside no fato de o rei deter duas capacidades, decorrentes
da condição de possuir dois corpos, o natural e o político. Como ocorre a
qualquer outra pessoa, o corpo natural é constituído por membros naturais e,
por isso, está sujeito a paixões e à morte, mas este está contido e contém, até
que morra, o corpo político (PLOWDEN, Apud KANTOROWICS, 1998, p. 24).
A forma organísmica da formação da sociedade e do exercício do poder
é o segundo fundamento. O corpo político é formado pelo rei e por seus
súditos. Nesse caso, o rei é incorporado com os súditos e “[...] eles com ele, e
ele é a Cabeça, e eles os Membros, e ele detém o Governo exclusivo deles [...].”
(PLOWDEN, Apud KANTOROWICS, 1998, p. 24).
A imortalidade do corpo do rei ou transmissão do rei é o terceiro e
principal fundamento da teoria dos dois corpos em virtude da transcendência
que confere ao próprio corpo político do rei que, separado do corpo físico,
independe da vida ou da dignidade real para governar.
[...] este Corpo, não está sujeito a Paixões como o
outro, nem à morte, pois, quanto a este Corpo, o
Rei nunca morre, e sua Morte natural não é
chamada em nossa Lei (como disse Harper) a
Morte do Rei, mas a Transmissão do Rei, sem
que a Palavra (Transmissão) signifique que o
Corpo político do Rei está morto, mas que há
uma Separação dos dois Corpos, e que o Corpo
político é transferido e transmitido do Corpo
natural agora morto ou agora removido da
Dignidade real, para outro Corpo natural. De
sorte que significa uma Remoção do Corpo
político do Rei deste Reino de um Corpo natural
para outro. (PLOWDEN, Apud KANTOROWICS,
1998, p. 25).

A encarnação do corpo político em um rei de carne, além de depurar


todas as imperfeições humanas, transmite imortalidade ao “[...] rei individual
como Rei [...]” (KANTOROWICS, 1998, p. 25). O Rei passa a ser o rei dotado
de um supercorpo, que ultrapassa a própria figura do rei e se funde com a da
sociedade para conferir legitimidade e sentido ao político.

158
Dessa forma, a teoria dos dois corpos não confere apenas centralidade
política e jurídica ao corpo físico do rei, ela revela antes de tudo uma sociedade
que se organiza em torno do corpo político do rei, da corporação, conforme
Kantorowics (1998, p. 27), ou corporificação formada pelo conjunto do
supercorpo do Rei e de seus súditos.
A ideia de corporificação funcionaliza essa forma de organização social,
determinando a cada indivíduo um estamento, um modo de estar e, de forma
sedimentada, a sua função na metáfora do corpo, mesmo que a organização
deste se concretize por estratos, como exemplificam os três estados que
ordenavam a forma de organização social no Ancien Régime.

2.2.1.2 DO ANTIGO REGIME À REVOLUÇÃO

Comumente tido como uma forma de governo que dominou a Europa


entre os séculos XVI e XVIII caracterizada principalmente pelo absolutismo e
pelo mercantilismo, o Antigo Regime é definido por Schiera (1982, p. 145)
como a continuação da fase de transição que leva do sistema feudal ao Estado
moderno e que cobre aproximadamente o período dos séculos XII a XVI, a
qual denomina sociedade de “estados”.
A crise irremediável que se precipitou sobre o sistema feudal: a falência
da hipótese mecânica, rigorosa, austera, de uma relação política de tipo
fundamentalmente entre senhor e servo ou entre o senhor e o imperador, por
um lado; por outro, a superação de uma economia de base fundamentalmente
natural, cujo único protagonista era o senhor fundiário, marcaram a sociedade
de “estados” e caracterizaram também, até certo ponto, o Antigo Regime.
(SCHIERA, 1982, p. 146).
Considerando-se a dimensão política, entretanto, há uma profunda
diferença entre a sociedade de “estados”, de “ordens” ou “corporativa” e o
Antigo Regime, que é esclarecida por Schiera (1982, p. 147) ao definir o
conceito de “estado” ou “ordem” ou, ainda, “corporação”:
Que se entende, então por “estado” (em alemão,

159
Stand; em francês, estat; em inglês, estate; em
latim, status)? É o conjunto das pessoas que
gozam, em virtude da comum condição em que
se encontram, da mesma posição no que diz
respeito aos direitos e deveres políticos; que pelo
facto de gozarem conjuntamente dessa posição,
elaboram e praticam formas de gestão da sua
posição que são precisamente comunitárias ou,
pelo menos, representativas.

A sociedade de “estado” é policentrista, nela os aspectos da vida


privada se relacionavam com os da vida pública, até porque inexistia a
contraposição entre o “Estado” – moderno – e “sociedade”. Apesar de não
serem categorias políticas da história constitucional da época pré-moderna, o
público e o privado existiam como dimensões relativas à vida privada e à esfera
coletiva. A distinção entre os atos concernentes entre as duas esferas não era
de modo algum causa e consequência de uma separação constitucional do
exercício do poder, por um lado, e a simples satisfação das necessidades
individuais por outro. “Pelo contrário e frequentemente, comportamentos que
segundo a medida moderna são classificáveis como privados comportavam
imediatamente uma referência a direitos e deveres públicos.” (SCHIERA,
1982, p. 148-149).
Em outro sentido, o policentrismo é referido em função das fontes de
poder e das diversas sedes onde era exercido. Este advinha de diversas fontes
que correspondiam, às “[...] diversas funções sociais, às diversas condições ou
“status”, aos diversos “estados”, em suma [...]”, e era exercido em diversas
sedes ou em diversos âmbitos organizativos segregados pelas diversas
funções, desde a família (que comportava a figura do “senhor da casa”) até as
assembleias de “estados”. (SCHIERA, 1982, p. 149).
O Antigo Regime nasce do enfraquecimento das estruturas da
sociedade de “estados” em função das transformações de diversas ordens
ocorridas na Europa durante a Idade Moderna que indicavam a possibilidade,
ante a queda do sonho da unificação imperial, de serem concretizados tais
anseios em torno de entidades territoriais e políticas cada vez mais unitárias e

160
que se fazia acompanhar, no plano econômico, de uma faixa emergente, ligada
à manufatura e à atividade mercantil, a exigir mais proteção e segurança para
seus negócios (SCHIERA, 1982, p. 150).
Ante a emergência do Estado moderno, o Antigo Regime experimenta
uma alteração em relação à sociedade de “estados”, que aponta no sentido do
monocentrismo centrado na figura dos dois corpos do rei, ou de seu
supercorpo aliado aos diversos estratos sociais – o Primeiro Estado, o
Segundo Estado e o Terceiro Estado, formados, respectivamente: pelo clero;
pela nobreza; pela burguesia e camponeses, ou seja, o restante da população,
no caso da França – formando um todo organísmico, mas não manso.
No que concerne aos conflitos entre os grupos sociais e às lutas
concretas pelo poder, Hespanha (1982, p. 47) elabora a seguinte questão: “[...]
o sistema de poder da época moderna veicula ainda o domínio das classes
feudais ou traduz já a predominância social dos estratos burgueses?”
Segundo o autor, as respostas têm sido diversas: i) a historiografia
oitocentista considerava o Antigo Regime como uma época de domínio das
classes feudais, já que queria destacar o caráter revolucionário das
transformações ocorridas no começo do Século; ii) Marx chama a atenção para
o papel do Estado seiscentista e setecentista na dissolução das relações de
produção feudais e na construção dos fundamentos sobre os quais se
instituíram as relações capitalistas de produção; iii) Max Weber destacava o
sentido anti-feudal da constituição da burocracia no Antigo Regime; e iv)
Poulantzas, preocupado em sublinhar as características do político, dando
mais ênfase aos elementos estruturais e formais, em detrimento dos
elementos funcionais ou materiais, entende que a “[...] consideração decisiva
é a existência naquilo que ele chama o “Estado Absoluto” da característica de
separação em relação à sociedade civil [...]”, característica fundamental do
Estado capitalista, pelo menos no final do Antigo Regime (cuja cronologia
varia conforme o país) (HESPANHA, 1982, p. 47-48).
Se não há consenso acerca do sistema de poder do Antigo Regime,
também não são evidentes as transformações que a sua queda ocasionou.

161
Neste ponto, as contribuições de Tocqueville são extremamente lúcidas e
desconcertantes.
Gustave Lanson, historiador e crítico literário, avaliando a obra de
Tocqueville, em especial o Antigo Regime e a Revolução, traça as seguintes
observações:
[...] Tocqueville, [...], voit dans la Révolution la
conséquence, le terme d'un mouvement social et
politique qui a son commencement aux origines
mêmes de la patrie: au lieu que presque toujours,
pour les légitimistes et pour les démocrates, la
Révolution était une rupture violente avec le
passé, une explosion miraculeuse et soudaine
que les uns maudissaient, les autres bénissaient,
tous persuades que la France de 1789 et de 1793
n'avait rien de commun avec la France de Louis
XIV ou de saint Louis. [...] Tocqueville, [...], se
contente d'établir la continuité du
développement de nos institutions et de nos
moeurs: la Révolution s'est faite en 1789, parce
qu'elle était déjà à demi faite, et que, depuis des
siècles, tout tendait à l'égalité et à la
centralisation; les dernières entraves dês droits
féodaux et de la royauté absolue parurent plus
gênantes, parce qu'elles étaient les dernières
(LANSON, 1893, p. 1003).48

A grande contribuição de Tocqueville, ao escrever L’ Ancien Régime,


sua obra mais madura, foi relativizar o caráter rúptil da Revolução Francesa,
utilizando, para tanto, uma metodologia que busca identificar as causas da

48 [...] Tocqueville, [...], vê na Revolução a consequência, o fim de um


movimento social e político que tem seu início nas próprias origens da
pátria: ao invés do que entendem, quase sempre, os legitimistas e os
democratas, a Revolução foi uma ruptura violenta com o passado, uma
explosão milagrosa e repentina que uns amaldiçoaram, outros abençoaram,
todos convencidos de que a França de 1789 e 1793 nada tinha em comum
com a França de Luís XIV ou Saint Louis. [...] Tocqueville, [...], se contenta
em estabelecer a continuidade do desenvolvimento de nossas instituições e
de nossos costumes: a Revolução aconteceu em 1789, porque já estava pela
metade e porque, durante séculos, tudo tendeu à igualdade e centralização;
os últimos grilhões dos direitos feudais e da realeza absoluta pareciam mais
problemáticos, porque eram os últimos (tradução livre).

162
Revolução de 1789 – “[...] l'influence de la littérature et de l'irréligion sur la
Révolution [...]”49 (LANSON, 1893, p. 1003) – e as características específicas
da sociedade nela gerida – “[...] la prédominance du sentiment de l'égalité sur
la passion de la liberté.”50 (LANSON, 1893, p. 1003).
Seu último livro coloca em relevo as características da democracia
francesa por meio de comparações desta com os modelos inglês e americano
e, também, pela oposição com a sociedade aristocrática do Antigo Regime.
A obra traz à tona as similaridades entre o Ancien Régime e aquele
introduzido pela revolução e aí reside o seu grande diferencial, pois, ao
contrário do que comumente se propaga sobre a Revolução Francesa,
Tocqueville vislumbra e critica com veemência, ao analisar seus efeitos, certos
continuísmos e exacerbações de características, algumas antitéticas à
democracia, já presentes no Antigo Regime.
Tocqueville (2009, p. XLI) na apresentação de seu livro, mesmo
enaltecendo o esforço dos revolucionários de 1789 para “[...] cortarem em dois
seu destino e separarem por um abismo o que haviam sido até então do que
queriam ser dali em diante [...]”, reconhece que sempre pensara que os
revolucionários haviam “[...] obtido muito menos sucesso nesse singular
empreendimento do que se acreditara no exterior e do que eles mesmos
acreditavam inicialmente [...]” e que tinha a convicção de que “[...]
involuntariamente haviam conservado do Antigo Regime a maior parte dos
sentimentos, dos hábitos, mesmo das ideias por meio das quais conduziram a
Revolução que o destruiu [...]” e, mesmo sem querer, haviam construído o
edifício da nova sociedade sobre os escombros do Antigo Regime.
O Antigo Regime e a Revolução é, por esse motivo, uma obra mais
voltada aos costumes da França absolutista, do que propriamente uma
descrição da França democrática, pois “[...] era preciso esquecer por um

49 “[...] a influência da literatura e da irreligião na Revolução.” (Tradução


livre).
50 “[...] o predomínio do sentimento de igualdade sobre a paixão pela

liberdade” (tradução livre)

163
momento a França que vemos hoje e ir interrogar em seu túmulo a França que
não existe mais.” (TOCQUEVILLE, 2009, p. XLI-XLII).
O que não significa que ele não tenha identificado os motivos que
desencadearam a Revolução Francesa. Tocqueville fê-lo a partir de duas
estratégias analíticas que permanecem válidas até a atualidade. A primeira
está relacionada ao papel representado por grupos disfuncionais no estágio
preparatório da Revolução; a segunda, ao ponto de desencadeamento de um
processo revolucionário (BARBU, 1997, p. 15).
Em meados do Século XIII, a nobreza francesa, que há muito tempo
deixara de participar do governo do Estado, perdera o controle sobre o campo.
Todos os assuntos da paróquia eram conduzidos por um certo número de
funcionários não mais escolhidos pelo senhor, mas nomeados pelo intendente
da província ou eleitos pelos camponeses e todos os funcionários da paróquia
estavam sob o governo ou sob o controle do poder central. “O mesmo
acontecia com todos os direitos específicos da nobreza. A parte política havia
desaparecido; apenas a parte pecuniária permanecera [...].” (TOCQUEVILLE,
2009, p. 33-35).
Na mesma época, “[...] a posição dos estratos médios da sociedade
estava praticamente fendida, ou seja, havia uma enorme lacuna entre seu
elevado status econômico e seu baixo prestígio e poder.” (BARBU, 1997, p. 15).
No final do Século XIII, a servidão não havia sido abolida de nenhuma
parte da Alemanha, praticamente. Na Inglaterra o número de camponeses
proprietários era irrisório. “Na França já há muito tempo não existia nada
semelhante: o camponês ia, vinha, comprava, vendia, tratava, trabalhava à
vontade.” (TOCQUEVILLE, 2009, p. 29-31).
As constatações de Tocqueville demonstram que a ordem tradicional
estava disfuncionalizada em relação à estrutura social e ao sistema de valores
correspondentes. Segundo Barbu (1997, p. 15), no ocaso do Antigo Regime na
França, a nobreza, apesar de possuir elevado status, não possuía poder; os
estratos médios, muito embora deterem meios econômicos eram desprovidos
de reconhecimento e prestígio perante a Corte e o campesinato havia se

164
multifacetado, graças à aquisição de terras por uma considerável parte que
ultrapassaram a condição servil.
As disfuncionalidades tornaram-se divergências intransponíveis entre
os estratos privilegiados e os sub-privilegiados o que, para Tocqueville, é
condição para a revolução se materializar (BARBU, 1997, p. 16). Na França,
todavia, a Revolução aconteceu não em resposta a um aumento de opressão,
pelo contrário, o seu desencadeamento se deu em um momento em que houve
um arrefecimento no processo de dominação. A experiência histórica havia
demonstrado a Tocqueville (2009, p. 154) que:
Nem sempre é indo de mal a pior que se acaba
caindo em revolução. Acontece muito
frequentemente que um povo que suportou sem
reclamar, e como se não as sentisse, as leis mais
opressivas repele-as violentamente assim que
seu peso fica mais leve. O regime que uma
revolução derruba quase sempre é melhor do que
aquele que o precedeu imediatamente; e a
experiência ensina que o momento mais perigoso
para um mau governo geralmente é aquele em
que começa a se reformar.

Enquanto as disfuncionalidades e o arrefecimento da opressão são os


“[...] fatos antigos e gerais que prepararam a grande Revolução [...]”, a
atividade dos intelectuais do Século XVIII é, para ele, o fator mais recente,
aquele que lhe determinou o “[...] lugar, o nascimento e o caráter.”
(TOCQUEVILLE, 2009, p. 153).
Não foi por acaso que os filósofos do Século XVIII
conceberam generalizadamente noções tão
opostas às que ainda serviam de base para a
sociedade de seu tempo; essas ideias foram-lhes
sugeridas naturalmente, pela visão dessa mesma
sociedade que todos tinham diante de si. O
espetáculo de tantos privilégios abusivos ou
absurdos, cujo peso se fazia sentir cada vez mais
e cuja causa era compreendida cada vez menos,
impelia ou antes precipitava simultaneamente o
espírito de cada um deles para a ideia da
igualdade natural de condições (TOCQUEVILLE,

165
2009, p. 155).

Os intelectuais foram assim levados naturalmente a almejar e propor,


cada um, “[...] à luz de sua própria razão [...]”, a sociedade “[...] de sua época
de acordo com um plano inteiramente novo [...]”. (TOCQUEVILLE, 2009, p.
155).
Considerando que a Revolução centralizou ainda mais a administração
que já era fortemente centralizada no Ancien Régime; que o pouco que restava
da estrutura do feudalismo, a qual restara praticamente desintegrada pelo
Ancien Régime, foi dizimada pela Revolução; que “[...] o Ancien Régime era
definitivamente contra a liberdade; a Revolução era a favor dela, porém
destruiu suas possibilidades num de seus primeiros estágios [...]” e,
finalmente, que, se a Revolução tinha como objetivo central a igualdade e esse
era, a longo prazo, também o objetivo do Ancien Régime (BARBU, 1997, p.
14), qual era a grande novidade da Revolução?
Para Lefort, a desincorporação, característica que define o político nas
sociedades democráticas da modernidade, é a novidade introduzida pela
Revolução.

2.2.1.3 O LUGAR VAZIO DO PODER

As análises de Claude Lefort sobre a democracia moderna privilegiam


o movimento duplo de ocultação e aparição já mencionado, pelo qual o político
se faz presente onde não é percebido e se manifesta por meio de instâncias
aparentemente apartadas.
Lefort define a democracia como uma grande revolução, tal qual fizera
Tocqueville, cujas principais características são a ausência de um centro de
poder e a abertura ao futuro, à incerteza.
Thomas Paine já havia identificado algumas das categorias que Lefort
utiliza para explicar a dinâmica do político nas democracias modernas: a cisão

166
entre os elementos que compõe a sociedade e o seu encontro em um centro
desincorporado de emanação de poder.
Aquilo que é chamado de governo, ou melhor,
aquilo que devemos conceber que seja o governo,
não é mais do que um centro comum onde se
unem todas as partes da sociedade. [...]. Uma
nação não é um corpo cuja figura possa ser
representada pelo corpo humano, mas é como
um corpo contido por um círculo, com um centro
comum no qual se encontram todos os raios. Esse
centro se forma pela representação. Relacionar a
representação com o que é chamado de
monarquia seria um governo excêntrico. A
representação é por si mesma a monarquia
delegada de uma nação e não pode se aviltar
dividindo-a com outra. (PAINE, 2009, p. 219).

Todavia, Lefort (1987, p. 118) rompe com a visão concêntrica de Paine,


ao abolir o próprio centro do poder. Na Democracia, não há lei fixada cujos
enunciados não sejam contestáveis, cujos fundamentos não sejam
susceptíveis de serem repostos em questão. Não há representação de um
centro e dos contornos da unidade: “[...] a unidade não poderia, doravante,
apagar a divisão social.”
Em termos democráticos, se Paine avança – e muito – ao substituir o
corpo político do rei pelo ente que exercerá o poder legitimado mediante a
representação; Lefort (1987, p. 118) o ultrapassa – em muito – ao reconhecer
na democracia a propensão ao futuro, à incerteza. “A democracia inaugura a
experiência de uma sociedade inapreensível, indomesticável, na qual o povo
será dito soberano, certamente, mas onde não cessará de questionar sua
identidade, onde esta permanecerá latente [...]”.
À primeira vista, pode parecer que, ao contrário de Paine e de tantos
outros cratólogos, Lefort não estaria preocupado com a estabilidade da
democracia ou com a forma organizacional das sociedades democráticas;
quando, na verdade, ocorre justamente o inverso.
No prefácio à edição de 1981 da edição brasileira de ‘A Invenção
Democrática’, Claude Lefort (1987, p. 13) apresenta a obra como uma

167
coletânea de textos sobre a democracia e o totalitarismo; uns, inéditos, outros
já publicados em diversas revistas e faz a seguinte observação: “Mais valeria,
sem dúvida, ter composto um livro novo. Os leitores têm razão de desconfiar
de trabalhos fabricados às pressas reunindo textos esparsos. Mas a conjuntura
não dá descanso.”
Se a conjuntura não dá descanso é porque Lefort fala a partir de
fenômenos contemporâneos, não com a intenção de utilizá-los como dados
empíricos para suas análises – Lefort se declarava avesso ao empirismo da
ciência e da sociologia políticas – mas antes como ponto de partida para estas.
Isto distancia a produção de Lefort da sistematicidade necessária aos
trabalhos acadêmicos e, ao mesmo tempo, torna cada artigo, cada texto, único.
Há em cada um deles um novo reinício, mas todos são guiados pelas
mesmas preocupações de Lefort sobre as condições da democracia, sobretudo
em relação àquelas que podem levar a sua inversão, o que reclama a
contextualização acerca do local de onde o autor as elabora e dos aportes
teóricos de que se vale, para tanto – a filosofia política (SCHEVISBISKI,
2013).
O modo de organização por artigos é salutar e coerente com a proposta
de Lefort de manter aberta a interrogação, por meio da re-elaboração teórica
a partir de sua interpelação com presente, em contato com certos temas, com
os acontecimentos, com as circunstâncias (SCHEVISBISKI, 2013).
Ao mesmo tempo em que direciona suas reflexões aos fatos sociais e
políticos de sua atualidade – o advento do gaullismo, o Maio de 1968, a criação
da União da Esquerda nos anos 1970, ou, ainda, no quadro europeu, as
mudanças no Leste, a Revolução Húngara, a desestalinização comandada por
Krutchev – Lefort os interpreta mediante a lente teórica de pensadores como
Maquiavel, Marx, Tocqueville, La Boétie, Michelet, Quinet, de tal forma que
“[..] sua filosofia não dissocia o trabalho que seria voltado para o universo das
obras de uma reflexão acerca [...]” de sua realidade (SCHEVISBISKI, 2013).
Em Lefort cabem questionamentos acerca do presente da democracia,
de suas dinâmicas, possibilidades e fragilidades.

168
Lefort fornece base para que se verifiquem as condições e os requisitos
para que a democracia se mantenha não somente como um sistema de
governo eficiente, mas, principalmente, como forma de organização social que
busque superar os limites da representatividade. É nesse sentido que trata do
fenômeno da desincorporação.
Lefort (1987, p. 117) vislumbra o Antigo Regime como um composto ou
um organismo formado por um número infinito de pequenos corpos que se
organizavam no seio de um grande corpo imaginário, no qual o corpo do rei
fornecia a réplica e a garantia da integridade.
A revolução democrática explode quando o corpo do rei se encontra
destruído, quando a corporeidade do social se dissolve, produzindo-se uma
desincorporação dos indivíduos. Nela ocorre a separação entre a sociedade
civil e o Estado e o desintrincamento entre as instâncias do poder, da lei e do
saber, a partir do momento em que se apaga a identidade do corpo político
(LEFORT, 1987, p. 117-118).
A principal consequência da Revolução foi possibilitar aquilo que viria
a ser a maior característica das democracias modernas qual seja a ausência de
ligação entre poder e corpo. O poder aparece como um lugar vazio e aqueles
que o exercem como simples mortais, que só o ocupam temporariamente
(LEFORT, 1987, p. 118).
Para Lefort (1991, p. 32), ao contrário do Antigo Regime, na
democracia o lugar do poder torna-se um lugar vazio que impede aos
governantes de se aproximarem do poder, de se incorporarem no poder.
Além do que, o exercício da democracia depende de procedimentos que
permitam um reajuste periódico, de uma competição regrada, cujas condições
são preservadas de maneira permanente, implicando na institucionalização
do conflito.
Na democracia, o lugar do poder mostra-se infigurável, vazio e
inocupável, sendo visíveis apenas os mecanismos de seu exercício (LEFORT,
1991, p. 32), por esse motivo, a prática democrática permite-se e é “[...] capaz
de questionar-se a si mesma como poder e contrapoder sociais sem garantias

169
externas e sem a integração funcional dos órgãos de um corpo.” (CHAUÍ, 1987,
p. 12).
Desse modo, a democracia moderna, compreendida a partir de Lefort,
aproxima-se em certo grau da ateniense, esta última considerada por Keane
(2010, p. 78), uma:
[...] forma inteiramente nova de governo aberto,
que estimulou a deliberação pública e a
controvérsia ruidosa, entre iguais, com
frequência a ponto de os resultados políticos
serem ou surpresas ou antecedidos por uma
situação de suspense de fazer roer as unhas.
(KEANE, 2010, p. 78).

A democracia lefortiana, que requer a contínua invenção, tal qual a


democracia de assembleias de Atenas, destaca a “[...] contingência das coisas,
dos eventos, das instituições, do povo e de suas crenças”; muda a
infraestrutura mental compartilhada dos cidadãos, como a ateniense mudava;
faz-lhes, como aquela os fazia, lembrar “[...] da fragilidade dos esforços
humanos [...]”; estimula, como a ateniense estimulava, “[...] a consciência
pública sobre as dificuldades de tomar decisões políticas e da ubiquidade da
perplexidade – que os locais [atenienses] chamavam aporia.” (KEANE, 2010,
p. 78-80).
Todavia, Lefort (1987, p. 119), a partir das preocupações
tocquevillianas acerca da democracia, insere outro aspecto em cena que afasta
a experiência democrática moderna da antiga: a imagem da sociedade como
tal, puramente humana, mas simultaneamente sui generis, dado ser a imagem
de um espaço homogêneo de direito, oferecido ao ponto de sobrevoo do saber
e do poder; o da imagem do Estado, onisciente, onipotente, anônimo e tutelar;
a imagem da opinião soberana; enfim, a imagem do povo, que permanece
indeterminada – reificada e funcionalizada (CHRISTENSEN, 2010, p. 30;
MÜLLER, 2010, p. 43) –, mas que é suscetível de se determinar, de se
atualizar fantasmaticamente como imagem do povo-Uno.

170
Ao questionamento de se poder conceber o totalitarismo como uma
resposta às questões que a democracia veicula, aos seus paradoxos, Lefort
(1987, 119-120) articula um conceito fulcral para o entendimento da
democracia moderna:
A sociedade democrática moderna aparece-me,
de fato, como aquela sociedade em que o poder,
a lei, o conhecimento se encontram postos à
prova por uma indeterminação radical,
sociedade que se tornou teatro de uma aventura
indomesticável, tal que o que se vê instituído não
está nunca estabelecido, o conhecimento
permanece minado pelo desconhecido, o
presente se revela inominável, cobrindo tempos
sociais múltiplos, não sincronizados uns com
relação aos outros na simultaneidade – ou
nomeáveis apenas na ficção do futuro, uma
aventura tal que a procura da identidade não se
desfaz da experiência da divisão.

O totalitarismo tende a soldar novamente o poder e a sociedade, a


apagar todos os sinais da divisão social, a banir a indeterminação que
caracteriza a experiência democrática, porém essa tentativa, “[...] vai ela
mesmo beber numa fonte democrática.” (LEFORT, 1987, p. 120).
O autor alerta que a experiência de uma sociedade inapreensível
suscita um discurso múltiplo que tenta apreendê-la. O discurso burguês
exercido nos primeiros tempos da democracia moderna que procurava resistir
à ameaça de decomposição da sociedade como tal, por meio de instituições e
valores proclamados como a propriedade, a família, o Estado, a autoridade, a
pátria e a cultura é exemplo de tentativa de resistência à perda do corpo
(LEFORT, 1987, p. 118-119).
Os atuais discursos sobre a policrise ou crise civilizacional podem ser
tomados como apelos à superação dos desvios que, segundo Tocqueville
(2000, p. 113), compõe as “[...] mil outras formas [...]” de democracia não
ideais, dentre os quais o despotismo administrativo, que, para Arendt (2007,
p. 50), traz consigo o governo de ninguém , o governo em que os responsáveis
pelos assuntos públicos valem-se da burocracia para se desresponsabilizarem

171
pessoalmente pelos destinos da res publica, ou melhor, da res populica (coisa
do povo) e que se constitui em um dos fatores determinantes da derrocada da
democracia representativa.
A superação dos limites demanda a contínua reinvenção da
democracia, para manter-se eficaz ou para simplesmente manter-se, por meio
da transmissão ne varietur das informações correspondentes à sua própria
estrutura (MONOD, 1989, p. 17), sob pena de obsolescência, anacronismo ou
inversão.

2.2.2 A SEGUNDA MORTE DA DEMOCRACIA; UMA JORNADA


IMPREVISÍVEL CERCADA DE AMIGOS NADA CONFIÁVEIS RUMO AO
ARQUIPÉLAGO GULAG

A inversão, na perspectiva lefortiana, o maior dos males que poderia se


abater sobre a democracia, tem a ver com o Estado totalitário.
Lefort (1987, p. 25) não vislumbra no Estado totalitário o flagelo da
arbitragem e sim a denegação do direito e do livre exercício do pensamento
como princípio fundamental.
Apesar de ser antagônico à democracia, o totalitarismo advém,
conforme já mencionado, das ambiguidades da democracia. O imenso abismo
que os separa não impede que esta carregue aquele em suas entranhas
(LEFORT, 1987, p. 33).
Em outro sentido, este empregado por Keane (2010, p. 516-525), o
totalitarismo é a comprovação, espécie de atestado, da desintegração da
democracia representativa que, afligida por uma série de males, restou
enterrada, já no Século XX, naquilo que o autor (KEANE, 2010, p. 419)
denomina de Cemitério Europeu.
Há divergências inegáveis entre os tratamentos conferidos pelos
autores aos destinos da democracia representativa. Estas, contudo, de forma
alguma se anulam, apenas expõem as diferenças teóricas de ambos sobre a
democracia.

172
Keane (2010) empreende uma historiografia dos 2600 anos da
democracia; Lefort (1987) identifica seus sinais onde geralmente são
despercebidos. Keane (2010) procura apontar os fatos e as circunstâncias
envolvidas com o nascimento de várias modalidades de democracia, dividindo
a sua história em três grandes períodos, o da democracia de assembleias, o da
democracia representativa, o da democracia monitória; Lefort (1987)
restringe sua análise ao período que se inicia na Revolução Francesa e termina
com a elevação do totalitarismo – na verdade a questão temporal para Lefort
(1987) é de relevância menor, pois o que realmente conta é a posição que
confere à democracia (entre os dois corpos do rei e o totalitarismo). A
substituição da democracia representativa pela monitória pressupõe a sua
morte; a reinvenção da democracia requer, pelo contrário, que permaneça
viva, mas aberta ao futuro, à invenção.
As diferenças das perspectivas decorrem, principalmente, da forma
singular empregada por Lefort para tratar a democracia.
Ao mesmo tempo em que traz em si o embrião do totalitarismo, a
democracia contém o princípio da afirmação do direito. Ao contrário do
fantasma da Revolução – separação absoluta entre o velho e o novo, entre a
sociedade pervertida e a boa sociedade, a obra da revolução democrática, que,
caminhando desde há muito, permanece sempre o teatro entre forças que
querem neutralizar seus efeitos ou utilizá-los em prol de interesses
dominantes e aqueles que empurram seu alargamento, sua propagação em
toda a espessura do social (LEFORT, 1987, p. 25-26).
Assim, a compreensão dos limites da democracia passa por indagações
sobre o totalitarismo, que podem ser feitas a partir de diversas perspectivas.
Neste momento serão utilizados os aportes da filosofia política de Lefort – até
porque, Lefort (1987, p. 19) pensa que “[...] não se dará um único passo no
conhecimento da vida política de nosso tempo sem nos interrogarmos sobre o
totalitarismo [...]” – e os da historiografia democrática de Keane.

173
Antes, porém, uma questão se impõe. Como, em pleno Século XX, a
humanidade pode produzir material para os livros ‘O Arquipélago Gulag’ de
Alexandre Soljenítsin e ‘Eichmann em Jerusalém’ de Hannah Arendt?
Soljenítsin (1975, p. 607) denuncia de forma detalhada, os episódios
vividos entre 1918 e 1956, na imensa rede de campos de trabalho soviéticos
por onde passaram cerca de 66 milhões de pessoas, “[...] desesperados
prisioneiros do regime viviam em ilhas tão numerosas que formavam um
arquipélago, e todo esse sistema era administrado pelo departamento Gulag
(Administração Geral dos Campos).” A tese central do livro é que as prisões
em massa, os julgamentos iníquos e as execuções secretas fizeram parte do
Estado Soviético desde a sua consolidação em 1918, não sendo apenas uma
criação posterior e arbitrária de Stálin.
Os fundamentos do Arquipélago repousavam, para Soljenítsin (1976,
p. 156) na necessidade econômica do Estado “[...] que se propunha tornar-se
forte em curto período de tempo [...]” e não consumia nada que viesse do
exterior. O Estado Soviético tinha a necessidade de mão-de-obra:
[...] idealmente a mais barata possível: gratuita;
[...] acomodada, pronta a qualquer momento
para ser transferida de um lugar para outro, sem
laços de família, que não exigisse alojamentos
preparados, nem escolas, nem hospitais, e
mesmo, durante certo tempo, nem cozinhas, nem
banhos públicos.

Além de serem depósitos de mão-de-obra ‘mais do que servil’ – na


verdade a ruptura que esta experiência traz consigo dificulta a adjetivação da
mão-de-obra do povo zek – os campos do Arquipélago Gulag serviram para
exterminar seres humanos.
Aquilo que deveria encontrar lugar nesta parte
não se pode abranger. Para se penetrar nele,
captar-lhe o sentido selvagem, é preciso ter-se
arrastado várias vidas nos campos, nestes
lugares onde, sem privilégio, era impossível
triunfar num só tempo de luta, pois os campos
foram inventados para EXTERMINAR.
Consequência: todos aqueles que hauriram o

174
mais profundamente, todos aqueles desfrutaram
o máximo, todos, todos eles, já se encontram no
túmulo e nada mais dirão. (SOLJENÍTSEN,
1976, p. 7).

A exterminação pelo trabalho demandava a quebra da vontade e da


personalidade dos presos sem traumas aos seus corpos. Soljenítsin (1975, p.
111-124) contabiliza, a título de exemplo, trinta e uma formas de quebrar o
equilíbrio humano de forma “suave”, dentre as quais: insultos grosseiros,
choque provocado pelo contraste psicológico, humilhação prévia, intimidação,
jogo com a afeição às pessoas mais íntimas, privação de sono etc.
Hannah Arendt, na qualidade de correspondente da revista The New
Yorker, acompanhou o julgamento em Jerusalém de Adolf Eichmann, um
nazista que havia sido capturado num subúrbio de Buenos Aires em 11 de abril
de 1961, por crimes contra o povo judeu, contra a humanidade e crimes de
guerra cometidos durante o período do regime nazista.
O que mais assustou Arendt foi o fato de Eichmann, assim como tantos
outros burocratas nazistas, não serem monstros ou sádicos pervertidos. Na
verdade, eles eram e ainda são “[...] terrível e assustadoramente normais [...]”
(ARENDT, 1999, p. 299).
Eichmann agiu, como agiu, por ofício, burocraticamente, porque “[...]
seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis [...]”. Ele “[...] cumpria o
seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia
a ordens, ele também obedecia à lei [...]” (ARENDT, 1999, p. 152).
Arendt cunha, então, a expressão banalidade do mal para a conjuntura
que permite a um mero burocrata, que cumpria ordens sem dar-se conta das
consequências, cometer atrocidades contra a humanidade, dentro de um
sistema baseado no terror. A banalidade do mal guarda ligações com outra
expressão utilizada pela autora para referir-se aos regimes totalitaristas: o
Nazismo e o Stalinismo, o mal banal.
Os livros de Soljenítsin e Arendt cortam a carne, expõem as chagas e
apontam os erros da modernidade e da democracia moderna.

175
A primeira porque viu seus principais protagonistas, os que
empreenderam a caminhada por um dos três caminhos que os levaram, no
final das contas, à modernização, envolvidos em duas guerras totais, com
consequências inéditas para a população civil.
A segunda porque foi incapaz de escapar das armadilhas que
Tocqueville já havia detectado em sua origem, possibilitando que se vislumbre
sua morte.
As mesmas obras, por outro lado, indicam a necessidade da
democracia – moderna – se reinventar e, mais, mostram o caminho: a
contínua afirmação dos direitos humanos, ainda que a um altíssimo custo: a
fragilidade destes, já que, em épocas de exceção, restam relativizados ou, pior,
sonegados.
Atendo-se especificamente à morte da democracia, Keane (2010, p.
508-527) lista um sem número de amigos nada confiáveis que se faziam
presentes mesmo antes do nascimento da democracia representativa,
especialmente na Europa, e a acompanharam desde a maternidade até o
sepulcro.
Para começar a entender os fracassos da
democracia representativa é preciso ver que a
Europa foi o lugar onde um grupo de questões,
desconhecidas aos democratas de assembleia,
foram primeiro propostas. O que é uma nação?
As nações têm direito à autodeterminação? Neste
caso é a identidade nacional dos cidadãos melhor
garantida por um sistema de democracia
representativa, no qual o poder está sujeito a
disputa aberta e ao consentimento dos
governados que vivem dentro de um território
bem definido? E quanto ao nacionalismo? Difere
da identidade nacional? É compatível com a
democracia? (KEANE, 2010, p. 508).

A imbricação desses fatores com outros como: as duas guerras totais e


o nebuloso período que separou uma da outra, o colapso econômico que se
abateu sobre a economia liberal; o delírio constitucional – consubstanciado
na crença equivocada e ingênua dos políticos, advogados, diplomatas e

176
funcionários governamentais de que boas constituições podiam superar más
condições políticas e sociais –; o populismo, que possibilitou a ascensão e a
manutenção no poder de demagogos como Hitler, Stalin e Mussolini; o
surgimento de sociedades incivis – baseadas no antissemitismo, na
intolerância e na disseminação da violência paramilitar; e uma série de
pressões geopolíticas foi responsável pela morte da democracia representativa
(KEANE, 2010, p. 515-517).
Em uma perspectiva endógena, ao orientar-se a análise na direção dos
elementos internos da democracia, de suas características e fraquezas depara-
se com o seu antagonista, o totalitarismo.
No arquétipo lefortiano, o totalitarismo ocupa o papel
contrarrevolucionário, pelo fato de obstar a revolução democrática que corre
pelos séculos e tem diante de si o futuro e a indefinição (LEFORT, 1987, p. 27).
Em ‘A Lógica Totalitária’, artigo originariamente publicado na
Kontinent Skandinavia, revista anti totalitária, dirigida por Tore Stubberud,
em 1980, Lefort trata de alguns aspectos do totalitarismo. Esse artigo de certa
forma é completado por ‘Stalin e o Stalinismo’, título de uma intervenção que
realizou no Colóquio organizado em Genebra, em janeiro de 1980, pela
Faculdade de Letras e o Instituto Universitário de Altos Estudos
Internacionais e pelo texto de uma conferência realizada pela Confrontation
em 1979, intitulado ‘A imagem do corpo e o totalitarismo’.
Os três artigos guardam profundas relações com um quarto: ‘O Nome
de Um’, publicado no Brasil em 1982, juntamente com outros dois de Pierre
Clastres e Marilena Chauí, que são comentários ao ‘Discurso da Servidão
Voluntária’ de Étienne La Boétie.
Lefort, com base no Discurso da Servidão Voluntária, significa a
expressão o nome de Um:
Não esqueçamos também o movimento que
apaga os traços do senhor real na primeira parte
do discurso. Substancialmente nos é dito que é
inútil prender-se à figura do tirano. Observemos
o tirano: mais inútil ainda é deter-nos nos
atributos de seu poderio; em vez disso, se

177
queremos saber o que ele é, consideremos o
homenzinho. O senhor, saberemos então, não é
um homem; pouco importa sua aparência; em
todo caso, ela basta para que um feitiço se opere.
Assim, o Príncipe apaga-se diante do tirano, o
tirano diante do homenzinho, o homenzinho
diante do Um, que surge de seu nome. (LEFORT,
1982, p. 133).

O nome de Um, segundo Lefort (1982, p. 133) “[...] não é o nome de


alguém; nele está preso qualquer senhor [...]”, daí seu caráter eminentemente
simbólico:
Sua [...] tarefa consiste, [...], em celebrar o Um
sob a substância do Nome; a tecer, em torno do
Nome de Um, a infinita rede da ideologia; a
proclamar a univocidade do político e a tornar
impossível qualquer discurso de volta, qualquer
contradição. (TONETI, 2009, p. 178).

Para explicar a tirania, Lefort se vale da expressão – o nome de Um –


cunhada por La Boétie no Discurso da Servidão Voluntária:
Coisa extraordinária, por certo; e porém tão
comum que se deve mais lastimar-se que
espantar-se ao ver um milhão de homens servir
miseravelmente, com o pescoço sob o jugo, não
obrigados por uma força maior, mas de algum
modo (ao que parece) encantados e enfeitiçados
apenas pelo nome de um, de quem não devem
temer o poderio pois ele é só, nem amar as
qualidades pois é desumano e feroz para com
eles. (LA BOÉTIE, 1982, p. 12).

Embora utilizado originariamente por La Boétie para embasar um


discurso contra a tirania, o “Contra UM”, o nome de Um é conceito
operacional passível de uso para explicar a lógica totalitária. “[...] o
Totalitarismo poderia ser o nome atual da ‘tirania de La Boétie’ diluído em
uma miríade de controles sociais e dos desejos consumistas, falsas
necessidades etc.” (TONETI, 2009, p. 188).

178
É o que faz Lefort, na tentativa de clarificar a lógica totalitária,
confronta o nome de Um com outras representações do totalitarismo: o
Egocrata – termo que toma emprestado de Soljenítsin –; o povo-Uno; o poder-
Uno; o grande-Outro; e a organização.
Lefort opõe, ainda, o totalitarismo ao Antigo Regime; as metáforas do
Egocrata e do povo-Uno ao tropo do corpo do rei (físico e político).
Do cotejamento entre estas metáforas, Lefort retira a essência do
totalitarismo, que pode ser traduzida por meio de umas linhas do livro de
Trotski sobre Stalin, o qual Lefort (2011, p. 117), não resiste “[...] ao prazer de
citá-las [...]”:
L’État c’est moi! É quase uma fórmula liberal em
comparação com as realidades do regime
totalitário de Stalin. Luís XIV identificava-se
apenas com o Estado. Os papas de Roma
identificavam-se ao mesmo tempo com o Estado
e com a Igreja – mas unicamente durante as
épocas do poder temporal. O Estado totalitário
vai muito além do césaro-papismo, pois abarca
toda a economia do país. Diferentemente do Rei-
Sol, Stalin pode dizer a justo título: La Société
c’est moi! (TROTSKI, Apud LEFORT, 2011, p.
117).

É a partir de tal noção que se analisará, com fulcro em Lefort, o


fenômeno do totalitarismo.
A capacidade de conceber a sociedade como sociedade política exige
uma reflexão sobre a natureza da divisão entre sociedade civil e Estado, entre
poder político e poder administrativo. Enquanto o Estado for definido como
um simples órgão da Sociedade, dela se diferenciando para exercer funções de
interesse geral, pode-se escolher apenas entre duas versões: o Estado Burguês:
o Estado não se destaca da sociedade, seu poder é dependente da classe
dominante, sua função é assegurar as condições de funcionamento de um
sistema econômico que obedece à sua própria lógica que corresponde a das
camadas beneficiárias do capitalismo; o Estado Socialista: eleva-se acima dos
particulares graças à sustentação de forças populares, nele os interesses

179
particulares são dissolvidos em prol de um interesse geral (LEFORT, 1987, p.
75-76).
As versões não permitem visualizar a natureza do poder político, a
dinâmica própria da burocracia do Estado. A natureza do poder político há
que se discernir a partir de fatores decorrentes da desincorporação do corpo
do rei. Lefort (1987, p. 75-77) enumera as principais consequências desse
processo:
A instauração de um poder limitado de direito ocorrido na instalação
da democracia moderna permite a circunscrição, fora do espaço político (no
sentido estrito, formal do termo) de espaços econômico, jurídico, cultural,
científico, estético obedecendo cada um suas próprias normas.
Essa autonomização tem como alcance a separação entre sociedade
civil e Estado, a qual dota ao poder um caráter simbólico, não passível de
redução à função de um órgão ou a instrumento posto a serviço de forças
sociais preexistentes.
A falta da perspectiva simbólica do poder impede que se perceba que a
delimitação de uma esfera do político é acompanhada de um modo novo de
legitimação, não somente do poder mais das relações sociais – a legitimidade
do poder funda-se sobre o povo, contudo à imagem da soberania popular se
junta a de um lugar vazio, impossível de ser ocupado, de tal modo que os que
exercem a autoridade pública não poderiam pretender apropriar-se dela.
A democracia moderna, fruto do mesmo processo de desincorporação,
acaba aliando dois princípios aparentemente contraditórios: o que determina
que todo poder emana do povo e o que nega esse poder a qualquer pessoa ou
grupo de pessoas singularmente considerados, ou seja, mesmo provindo do
povo, o poder não é de ninguém.
A contradição alimenta a democracia moderna, caso esta contradição
se resolva, ou mesmo, esteja na iminência de tanto, eis a democracia desfeita
ou prestes a ser destruída: ou pelo fim da sociedade civil ou pela inversão.
Se o lugar do poder perde sua simbologia, aparecendo realmente vazio,
então os que o exercem são percebidos como indivíduos quaisquer, a serviço

180
de interesses privados e, simultaneamente, a legitimidade sucumbe em toda a
extensão do social, levando ao fim a sociedade civil; se a imagem do povo se
atualiza, se um partido pretende se identificar com ele e apropria-se do poder
sob a capa dessa identificação, desta vez o princípio da distinção se esvai e
opera-se na política uma espécie de imbricação do econômico, do jurídico, do
cultural, o que equivale à inversão da democracia em totalitarismo.
O fenômeno da inversão acarretará a fusão dos poderes administrativo
e político, que têm suas fronteiras delimitadas pelo jogo democrático. Ao
contrário do poder político, o administrativo tem como escopo se encarregar
das necessidades da população e controlar mais detalhadamente a vida das
pessoas (LEFORT, 1987, p. 75).
O Estado moderno, enquanto centro de decisões, de regulamentações
e de controle, tende, cada vez mais, a submeter detalhes da vida social. Mas, o
sentido desse processo é ignorado quando é imputado à perversidade dos
homens que povoam suas burocracias. Contudo, a burocracia é própria de
uma sociedade cuja homogeneidade aumenta em consequência da dissolução
das velhas diferenças hierárquicas naturais, que se encontra, cada vez mais, às
voltas com o problema de sua organização (LEFORT, 1987, p. 77).
Em uma sociedade democrática, o poder político se encontra separado
do poder administrativo. No totalitarismo, as diversas burocracias estatais
perdem as fronteiras que fazem, cada uma delas, nas sociedades democráticas
modernas, um universo distinto, cujas prerrogativas e atribuições são fixadas.
O poder se confunde, assim, com a posição dos que detêm a autoridade
(LEFORT, 1987, p. 81-82).
No totalitarismo ocorre a desdiferenciação das instâncias que regem a
constituição da sociedade política. Ele supõe a concepção de uma sociedade
que se basta em si mesma e, já que a sociedade se significa no poder, a de um
poder que se basta em si mesmo (LEFORT, 1987, p. 82).
Da desdiferenciação decorre, segundo Lefort (1987, p. 83-84), uma
série de representações que compõem a matriz ideológica do totalitarismo: i)
a imagem do povo-Uno: é o povo na sua essência, incluindo a burocracia e não

181
somente uma classe no interior da sociedade estratificada, o que o afasta da
figura do corpo político do rei, formado pela cabeça (o rei) e membros (os
estamentos); ii) a imagem de um poder-Uno: concentrado nos limites do
órgão dirigente; iii) a imagem do grande-Outro: trata-se, por um lado, do
grande indivíduo, o Egocrata (Soljenítsin) que encarna a unidade e a vontade
populares – é quem figura e enuncia o povo-Uno –, por outro, do inimigo – o
elemento estranho ao povo; iv) a noção de organização: a sociedade é
percebida em seu conjunto como uma vasta organização composta de uma
rede de micro organizações, sendo que esta representação se desdobra nas
figuras da sociedade amorfa, organizável, que se oferece à intervenção do
engenheiro, do construtor, e na ideia de desorganização, de caos provenientes
de elementos estrangeiros ou de parasitas que atentam contra a integridade
do corpo e que por isso devem ser combatidos.
O sistema de representação tem o Partido como uma das molas que
permitem que se inscreva na vida social. Trata-se de agente privilegiado no
processo de identificação entre o poder e o povo e do processo de
homogeneização do campo social. De um lado penetra em todo o Edifício do
Estado para utilizá-lo como simples fachada de poder. No outro, faz surgir
micro corpos, cujas aparências se diferenciam dele e simulam especificidades
e autonomias de relações puramente sociais, formando, assim, uma rede de
coletivos nos quais é refeita a imagem de uma identidade social comum
(LEFORT, 1987, p. 86-87).
Segundo Lefort (1987, p. 87):
À obra de incorporação dos indivíduos nos
agrupamentos legítimos corresponde a obra de
decomposição das relações livremente
estabelecidas; à obra de uma socialização
artificial, a destruição das formas de
sociabilidade natural.

Quem não prestasse atenção ao imenso dispositivo edificado para


dissolver em toda a parte onde fosse possível afirmar o sujeito em um nós,
para aglomerar, fundir esses nós no grande nós comunista, para produzir o

182
povo-Uno, privar-se-ia de compreender como se exerce a lógica totalitária
(LEFORT, 1987, p. 87).
Lefort (1987, p. 112) considera o totalitarismo o acontecimento maior
do tempo moderno. Para o autor o totalitarismo se fundamenta na
representação do povo-Uno. Nos regimes totalitários não pode haver a divisão
a não ser entre o povo e seus inimigos internos e externos.
Na ideologia totalitária, a representação do povo-Uno não é
contraditória com a do Partido, pois este não aparece como distinto do povo,
não tem realidade particular na sociedade. Ele, ao mesmo tempo, é o Guia do
povo, a sua Consciência, a sua Cabeça (LEFORT, 1987, p. 114).
Da mesma forma, a representação do povo-Uno não entra em
contradição com a de um poder todo-poderoso, onisciente, representado pelo
Egocrata, figura última desse poder: “Um tal poder destacado do conjunto
social, que domina a todos, se confunde com o partido, se confunde com o
povo, com o proletariado. [...]. Confunde-se com o corpo inteiro enquanto é a
sua cabeça.” (LEFORT, 1987, p. 114).
Para o autor, há todo um encadeamento de representações operando
na seguinte lógica: identificação do povo com o proletariado, do proletariado
com o partido, do partido com a direção, da direção com o Egocrata (LEFORT,
1987, p. 114).
A aventura totalitária é sinal de uma mutação política que só se
esclarece a partir da relação que mantém com a democracia (LEFORT, 1987,
p. 116), haja vista levar às últimas consequências os desvios democráticos que
Tocqueville denunciara, tais como a centralização política, o individualismo, a
reificação do povo, o despotismo democrático e a tirania da maioria, que já
sequer pode ser considerada maioria, já que o povo é o povo-Uno.
O totalitarismo põe em evidência as mazelas da democracia, é o seu
alter ego.
Diante dele, cabe questionar sobre o que restou da democracia
representativa, qual seu legado – considerando-se que morreu – ou que
condições são necessárias para que continue sua marcha – se assumida

183
enquanto um processo de longa duração, denominado por Tocqueville de
revolução democrática que “[...] despontou na França sob o Antigo Regime
[...]” (LEFORT, 1987, p. 117) e que não cessou de continuar.
Ainda que se assuma a morte da democracia representativa ou, no
mínimo, a sua incessante luta pela vida, é necessário reconhecer nela a melhor
alternativa disponível. Como bem ressalta Robert A. Dahl (2009, p. 73):
Seria um erro grave pedir demais de qualquer
governo, mesmo de um governo democrático. A
democracia não pode assegurar que seus
cidadãos sejam felizes, prósperos, saudáveis,
sábios, pacíficos ou justos. [...] Na prática, a
democracia jamais correspondeu a seus ideais.
Como todas as tentativas anteriores de atingir
um governo mais democrático, as democracias
modernas também sofrem de muitos defeitos.

Não obstante, há uma série de benefícios oriundos da democracia


moderna que devem ser garantidos. Dahl (2009, p. 73-74) lista alguns: o
empecilho que representa a autocratas; a garantia de direitos fundamentais; a
liberdade individual mais ampla; a liberdade de autodeterminação; a
oportunidade de exercício da responsabilidade moral; a promoção do
desenvolvimento humano; um grau relativamente alto de igualdade política;
a tendência a não beligerância entre países democráticos; e a tendência a
maior prosperidade apresentada por países democráticos.
Sobre as condições para que continue sua jornada, poder-se-ia
restringi-las as indicadas por Dahl (2009, p. 99): funcionários eleitos; eleições
livres, justas e frequentes, liberdade de expressão; fontes de informação
diversificadas; autonomia para as associações; e cidadania inclusiva.
Prefere-se, no entanto, eleger a reinvenção como a condição mais cara.
Aquela sem a qual a democracia não pode ser sequer entendida. Desde que, é
claro, se partilhe das premissas tocquevilliana e lefortiana, mediante as quais
a democracia é uma grande revolução em plena marcha em direção e aberta
ao futuro, a incorporar, em sua caminhada, novas condições – como as

184
listadas no parágrafo anterior – frente à necessidade de se renovar
continuamente, sem retroceder, tampouco oferecer garantias.
Resta saber da democracia como invenção, da proposta reinventiva de
Lefort.

2.3 A PROPOSTA REINVENTIVA DE CLAUDE LEFORT: A DEMOCRACIA


COMO INVENÇÃO

Qual o significado da expressão invenção democrática? Ou melhor, que


motivo ou motivos justificariam a sua utilização?
Tais indagações suscitam uma outra de caráter preliminar. Como
Lefort diferencia a invenção e reinvenção – atividade de se estar reinventando,
ou seja, inventando de novo – da revolução?
Em uma intervenção feita em um debate organizado em conjunto pela
Revista Esprit e um grupo de amigos, emigrados do leste europeu, publicado
em 1976, Lefort demarca os limites entre revolução e reinvenção.
Segundo o autor (1987, p. 126), a história das sociedades modernas não
se resume ao curso das grandes revoluções e é temerário supor que no
intervalo delas operar-se-ia apenas a reprodução das relações sociais de
dominação e de exploração.
A ideia de revolução como acontecimento absoluto, fundação de um
mundo no qual os homens dominariam as instituições, concordariam no
conjunto de suas atividades e seus objetivos; de um mundo no qual o poder se
dissolveria no fluxo das decisões coletivas, a lei no fluxo das vontades, de onde
o conflito seria eliminado, essa ideia pactua secretamente com a representação
totalitária (LEFORT, 1987, p. 126).
Lefort (1987, p. 126) tece outras críticas à ideia reduzida de revolução:
A primeira, relaciona-a a equívocos quanto ao surgimento da noção de
revolução.

185
A revolução, tida como ruptura entre o antigo e o novo, não surgiu com
os Jacobinos e, sim, em Florença, no Século XV. O Estado moderno não é fruto
da revolução moderna. Pelo contrário, tal qual a proposta de Tocqueville no
‘Antigo Regime e a Revolução’, Lefort (1987, p. 126) defende que a revolução
moderna só se tornou possível com a constituição do Estado moderno, pois
este produziu condições que a possibilitaram, dentre as quais a unificação, a
homogeneização e a pertença comum dos homens a um território.
O reconhecimento da ligação entre as ideias de revolução e Estado
induziria a “[...] retomada da crítica do imaginário que se desvela no discurso
revolucionário [...]” e a rearticulação desta com a “[...] crítica do imaginário
vinculado pela posição do poder estatal moderno [...]”, em um primeiro
momento, e, ainda, questionamentos acerca da possibilidade de se apagar a
ideia de revolução na atualidade, ainda mais, quando se afirma no detalhe da
vida social o ponto de vista do Estado (LEFORT, 1987, p. 127).
Lefort dirige a segunda crítica às tentativas de cisão conceitual entre
revolução e revolta.
Não se pode separar revolução de revolta, a revolução não se
caracteriza pela consciência que os combatentes têm de seus objetivos. A
especificidade da revolução decorre do tipo de sociedade na qual se desenvolve
e do antagonista das massas, o poder do Estado, um poder de garantia da
unidade e da identidade nacionais. Muito além de ser mera luta de classes, a
revolução exige a combinação da divisão de classes com a divisão do conjunto
social e do Estado. Portanto, não há que se falar em revolução e sim em
revoluções, dado o espetáculo da diversidade que lhe é ínsito (LEFORT, 1987,
p. 127-128).
A terceira e última crítica é direcionada ao papel atribuído à ideologia
jacobino-bolchevique sobra a revolução, que implica principalmente na
impossibilidade de uma revolução antitotalitária – como a que ocorreu na
Hungria em 1956 – que se voltasse contra a “[...] boa sociedade [...]”, na qual
não houvesse a divisão de classes. A revolução, defende Lefort, apresenta-se
sobre os traços da pluralidade, da selvageria e da espontaneidade dinâmica,

186
não se pode imputar seu projeto à ideologia somente, é preciso conceber a
figura do novo (LEFORT, 1987, p. 130-131).
Lefort sublinha, no final de sua intervenção, um duplo aspecto acerca
da experiência húngara, de vital relevância para a compreensão de sua
proposta reinventiva.
O primeiro vincula-se à concepção plural da revolução. Lefort (1987, p.
130), ao realçar o caráter plural, espontâneo e selvagem da revolução, procura
afastá-la da ideia de metanarrativa, do ir ‘além de’.
O segundo está relacionado, segundo Lefort, a um fato novo e bastante
notável:
[...] de todos os lados manifesta-se a procura de
um novo modelo político que combinasse vários
tipos de poder e impedisse assim que um
aparelho de Estado se solidificasse e se
destacasse da sociedade civil. Deseja-se um
Parlamento eleito pelo sufrágio universal (cuja
eficácia seria garantida pela existência de
múltiplos partidos em competição), um governo
eleito por ele e permanecendo sobre seu controle;
deseja-se uma federação de conselhos operários
que dirija os negócios econômicos nacionais – o
que, evidentemente, lhe confere um papel
político – e deseja-se também sindicatos
democráticos que defendam os interesses
específicos dos trabalhadores face aos órgãos
socialistas dirigentes, isto é, face ao governo e
face aos próprios conselhos. Simultaneamente
deseja-se devolver à justiça, à informação, ao
ensino, a cada setor da cultura, sua autonomia.
Em suma, procura-se a fórmula de uma
democracia socialista, infinitamente mais
extensa do que jamais o foi a democracia
burguesa. (LEFORT, 1987, p. 130).

Os desejos subjacentes à Revolução Húngara, se generalizada a análise,


veiculam atualizações nas práticas democráticas, passíveis de condensação
pela fórmula da reinvenção democrática.

187
Chauí (1987, p. 9-11) realiza três constatações de relevante significado
para o alcance e o sentido do conceito de invenção democrática – passível de
ser estendido ao de reinvenção democrática:
A democracia tem como principal marca a criação social de novos
direitos e o confronto com o instituído. Por tais motivos, a prática democrática
expõe incessantemente os poderes estabelecidos aos conflitos que os
desestabilizam e os transformam, numa recriação contínua da política.
Um poder democrático não se inventa a partir de poderes instituídos,
mas contra eles. Em outros termos, a partir da desconfiança ante políticas já
tentadas ou instituídas que leva à formação de novos modos de convivência e
contrapoderes sociais, capazes de enfrentar a onipotência do Estado e das
administrações burocráticas.
Historicamente, as lutas democráticas evidenciam que o desejo de
liberdade e igualdade pode ser bloqueado, reprimido e impedido pelas
instituições existentes, mas não pode ser destruído por elas, a não ser que
assim se consinta, por meio da aceitação da servidão voluntária.
A invenção democrática significa que a democracia tem a capacidade
extraordinária de questionar-se a si mesma e as suas instituições e abrir-se
para a história, sem garantias prévias quanto aos resultados da prática
política, pois a “[...] democracia não é algo que foi inventado certa vez. É
reinvenção contínua da política.” Ao contrário das duas formas as quais se
contrapõe – o Antigo Regime e o totalitarismo, a democracia é uma revolução
que corre pelos séculos, e institui o político como nova instituição do social
pela desincorporação, pela perda da eficácia prática e simbólica da noção da
unidade. A democracia institui a alteridade, a ideia de direitos e a
diferenciação entre poder, lei e saber (CHAUÍ, 1987, p. 9-11).
Por ter abolido o lugar do referente de onde a lei ganhava sua
transcendência e substituído a noção de um regime regulado por leis, de um
poder legítimo, pela noção de um regime fundado na legitimidade de um
debate – sem fiador e termo – sobre o legítimo e o ilegítimo (LEFORT, 1991,
p. 57), a democracia constitui-se a grande aventura histórica inventada, quem

188
sabe, na Sírio-mesopotâmia (KEANE, 2010) ou mesmo em Atenas – que
caracteriza a vida propriamente humana, a bios, a vida repleta de eventos que
posteriormente podem ser narrados (ARENDT, 2000, p. 108-109) – que, por
sua própria morfologia, é levada a se inventar, em um contínuo processo de
reinvenção.
Longe de ser a mera conservação de direitos, a democracia é a criação
ininterrupta de novos direitos, a subversão contínua do estabelecido, a
reinstituição permanente do social e do político e encontra-se aberta para a
história, deixando transparecer os conflitos que lhe são intrínsecos (CHAUÍ,
1987, p. 11).
Eis o grande legado de Lefort: a democracia aberta ao futuro, à
incerteza, sem garantias, a não ser defender os direitos, os já efetivados e os
novos, como os decorrentes dos ruídos que a “questão ambiental” impõe aos
diversos subsistemas que compõem a modernidade tardia e às formas
“inovadoras” de os equacionar.

189
190
CAPÍTULO III

3 - ISONOMIA E ISEGORIA AMBIENTAIS COMO


DILEMAS DA PARTICIPAÇÃO NA DEMOCRACIA
PARTICIPATIVA

O presente capítulo parte da noção de democracia como contínua


reinvenção para problematizar sobre as possibilidades, limitações e
incoerências da democracia participativa moderna em decidir sobre o meio
ambiente.
Adentra-se, a partir dele, em análises sobre os novos desafios para a
democracia e o futuro do Planeta, em especial a sanidade do meio ambiente e
a necessidade de serem garantidos novos direitos, frutos de novos desafios,
impostos por novas contingências, como as decorrentes da necessidade de ser
considerada a variável ambiental espaços participativos decisórios, como o
Conselho da Cidade.

3.1 DILEMAS DA PARTICIPAÇÃO NA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

De forma corrente, a democracia é associada à possibilidade de escolha


de governantes. Via de regra, é tida tão somente como o exercício de um direito
limitado, e não como um sistema de poder, de governabilidade, muito menos,
é associada ao modo de ser de uma sociedade.
O termo é composto pela conjunção de duas palavras originárias do
grego demos e kratos. A palavra demos se traduz como conjunto de pessoas,
para os modernos, o povo, a qual se restringia, na Atenas clássica ao homem
nativo adulto residente na polis, enquanto kratos se refere a poder, tendo
assim democracia o significado de o poder das pessoas (OBER, 2007).

191
Etimologicamente, democracia tem a ver com a prática decisória
realizada por pessoas investidas de poder para participar da vida política e
decidir de forma direta ou representativa. Subjacentes ao conceito, restam
problematizações acerca da auto exclusão do sujeito inserido no ambiente
democrático, ante a impossibilidade de falar e ser ouvido.
Surge, deste modo, a necessidade de uma nova leitura da democracia,
não resumida a uma forma ou sistema de governo, mas sim a um modo de ser
de determinada sociedade, necessariamente aberta ao futuro, a novas
possibilidades.

3.1.1 A (RE) INVENÇÃO DA DEMOCRACIA PELA PARTICIPAÇÃO

As mudanças ocorridas em diversas áreas, como as ligadas à ciência e


à tecnologia, não permitem mais a convivência com máximas instransponíveis
e verdades consolidadas como capitais.
Essa noção leva à compreensão da democracia como um sistema
autopoiético, não estagnado e adaptável às mudanças sociais que refletem no
campo político, para, dessa forma, ocupar seu papel em consonância aos
ensejos dos que nela estão inseridos.
Segundo Dahl (2001, p. 50-58), a democracia proporciona aos
membros de uma sociedade a participação efetiva, igualdade de voto,
aquisição de entendimento esclarecido, o exercício do controle efetivo do
planejamento e a inclusão de adultos. Diante desses aspectos, a democracia
acaba por proporcionar as seguintes desejáveis consequências: evitação da
tirana, garantia de direitos essenciais, da liberdade geral, da
autodeterminação de um povo, da autonomia moral, do desenvolvimento
humano, proteção dos interesses pessoais essenciais e da igualdade política.
Nas sociedades modernas, a democracia possibilita a busca pela paz e pela
prosperidade.
Diante de sua importância no contexto de uma sociedade, trazendo
seus membros a participar e enfrentar constantes dilemas para que esta se

192
mantenha estável e viável, não restam dúvidas que, caso a democracia não
acompanhe as mudanças que a cercam, deixará espaço a regimes duvidosos e
contrários à liberdade.
A percepção de democracia como contínua revolução legitima a
necessidade de não ser fixada em questões definitivas, em pilares imaginários
de certezas imutáveis. Cabe aos cidadãos, contínuos questionamentos sobre o
universo em que estão inseridos, para obterem respostas capazes de perpetuar
a condição democrática.
Todavia, esses elementos não serão construídos, ou mesmo
desconstruídos, sem que ser permita aos semelhantes o direito de falarem e
serem considerados, de ser manifestarem acerca de seus pontos de vista.
Essa perspectiva ressignifica na democracia moderna, marcada pela
representação, os princípios da isonomia e da isegoria, base da democracia
ateniense, mesmo com todas as relativizações impostas pelas diferenças entre
os níveis de complexidade e pelo longo espaço de tempo a separar as
sociedades que abrigaram as duas experiências.
A tarefa imposta é encontrar nos espaços participativos que convivem
com o modelo hegemônico representativo o que os sujeitos falam e em que
medida suas opiniões são consideradas. O desafio se torna mais significativo
na medida em que o conteúdo da decisão diz respeito a interesses e direitos
não circunscritos pela individualidade dos que decidem, mas que pertencem
às gerações presentes e futuras.
A democracia representativa apresenta-se como um processo político,
no qual por meio de condições previamente estipuladas, os indivíduos
nomeados representantes são escolhidos através de um processo eleitoral,
exercendo por período determinado funções estatais em nome do povo,
realizando ações legais de efeito obrigatório sobre os cidadãos.
A democracia participativa é, da mesma forma, um processo político.
Diferencia-se, contudo, do modelo representativo, por possibilitar a
participação do cidadão e de sua comunidade na elaboração da vontade dos

193
atos do próprio governo e nas decisões políticas fundamentais (BIANCHINI,
2014, p. 15).
Todavia a atual conjuntura política e social necessita ser ampliada no
tocante à participação popular, sendo a democracia participativa a mais
próxima de uma possível reinvenção da democracia, na perspectiva de Claude
Lefort.
Independentemente de sua constituição, as sociedades apresentam
basilarmente traços de uma estruturação politicamente organizada, porém
com limitações ocasionadas pelos contornos fáticos aplicados ao seu regime,
em especial aos totalitários.
Em regimes democráticos modernos, dilemas de limitação também são
enfrentados em decorrência de ideologias e interesses de pessoas e grupos de
interesse que causam ruídos à prática política.
As sociedades democráticas modernas caracterizam-se pela
delimitação de uma esfera de instituições, de relações e de atividades que
aparecem como política, distinta de outras esferas que aparecem como
econômica, jurídica, social etc. (LEFORT, 1991, p.25).
Nesse sentido, em que são dosadas pretensões democráticas, mesmo
que em uma perspectiva na qual se apresentam quase próximas de uma
perfeição indescritível até a contemporaneidade, se faz necessário questionar
o que é o político, sua relação com o social e as pretensões particulares dos
que, de forma representativa, nela atuam.
Conforme já mencionado, para Lefort (1991, p. 26), o político não se
releva pelo que se nomeia atividade política, mas antes pelo duplo movimento
de aparição e ocultação do modo de instituição da sociedade. Aparição, no
sentido em que emerge à visibilidade o processo crítico no qual a sociedade é
ordenada e unificada através de suas divisões. Ocultação, no modo em que o
lugar da política, visto como sendo aquele em que se exerce a competência
entre partidos e se forma e renova a instância geral do poder, designa-se como
particular, ao passo que nele se encontra dissimulado o princípio da
configuração do conjunto.

194
Em outros termos, a autonomia dos sistemas ou campos, decorrente
do processo de modernização, determina que a democracia, no sentido
lefortiano, tenha mais a ver com a sociedade do que com o sistema político.
Torna-se assim necessário observar este duplo movimento de aparição
e ocultação nas democracias modernas, a fim de que esta representatividade
ao ser político não surja como forma de possibilitar a limitação de poderes em
prol de um regime totalitário.
Vale destacar, para compreensão aprimorada do pensamento de
Lefort, o contraste que realiza entre a democracia e os regimes totalitários.
O pensamento de Lefort situa a democracia em duas formas
historicamente determinadas do político: O Antigo Regime e o Estado
Totalitário. Ambos aplicam no aspecto social e político, ou a metáfora do corpo
político do rei, em relação ao Antigo Regime, ou do Partido-Estado, no caso
do Estado Totalitário. Entretanto a invenção democrática, ao contrário das
duas formas, é uma revolução que corre pelos séculos, posicionando o político
como nova instituição do social pela desincorporação, pela perda da eficácia
prática e simbólica da ideia, da imagem e do nome da unidade (CHAUÍ, 2011,
p. 38-39).
[...] a democracia institui-se e se mantém pela dissolução das marcas
de referência da certeza. A democracia inaugura uma história na qual os
homens estão à prova de uma indeterminação quanto ao fundamento do
Poder, da Lei e do Saber, e quanto ao fundamento da relação de um com o
outro, sob todos os registros da vida social – por toda parte em que, outrora,
a divisão se enunciava, em especial na divisão entre os detentores da
autoridade e os que a esta eram submetidos, em função de crenças em uma
natureza das coisas ou em um princípio sobrenatural (LEFORT, 1991, p. 34-
35).
Em análise ao pensamento lefortiano, Welrle (2004, p. 131), pondera
que:
[...] a democracia moderna nasce da incerteza.
Uma vez perdidas as garantias sagradas e
tradicionais acerca do que a ordem legitima foi e

195
será, as sociedades democráticas modernas se
abrem continuamente a historicidade de suas
regras, objetivos comuns, estilos de vida pessoais
e formas de vidas culturais, e se defrontam
constantemente com a breve pergunta: o que é
possível e legitimo?

Lefort (1991, p. 51-52) afirma que a democracia só triunfou por meio


da instituição de uma separação entre a sociedade civil, lugar de opiniões sem
poder, e o Estado laico liberal, lugar do poder sem opiniões. Em prol deste
sistema o Estado sempre ganharia força, sob a fachada da neutralidade, e a
sociedade civil se enfraqueceria sem cessar, não deixando de ser o estrondoso
teatro de opiniões que, por serem apenas opiniões de indivíduos, neutralizam-
se.
A originalidade política da democracia se dá por um duplo fenômeno.
O primeiro, trata-se de um poder destinado doravante a permanecer em busca
de seu fundamento, pois a lei e o saber não são mais incorporados à pessoa
daquele ou daqueles que o exercem em uma sociedade. O outro se refere a uma
sociedade que convive com conflitos de opiniões e debates de direitos,
decorrentes da dissolução dos marcos de referência da certeza que permitiam
aos homens se situarem de uma maneira determinada, um em relação aos
outros (LEFORT, 1991, p. 52-53).
Nessa linha de raciocínio, pode-se, preliminarmente, concluir que a
democracia que possibilitará a participação popular, somente será viável caso
se permita reinventar, abandonando a praticidade de resultados como único
fator de definição e as decisões de gabinetes, nas quais se excluem o direito de
falar e ser ouvido, o direito da participação popular.
A forma como Lefort percebe a democracia guarda relações com o
trabalho de Alexis de Tocqueville, que no século XVIII realizou um verdadeiro
registro do surgimento do modelo basilar da democracia moderna, quando da
constituição da República dos Estados Unidos da América.
Após percorrer boa parte da jovem república, Tocqueville escreve sua
obra mais importante: A Democracia na América. Nele, o jovem aristocrata

196
francês, percebe que está diante de uma verdadeira revolução, denominada
por Lefort séculos depois de reinvenção.
Para Tocqueville (2000, p. 113), o ponto que conduz a democracia a ser
o sistema de governo que permite liberdade política e participação popular
está atrelada à convivência entre a liberdade e a igualdade de condições. O
autor condiciona a materialização da isonomia política em sociedades
democráticas à igualdade de condições, a qual, por sua vez, depende da
soberania de todos, o que afasta o poder de apenas uma pessoa.
A liberdade e a igualdade de condições irão nortear o espírito
democrático da participação popular em favor de um ideal, o qual, em tese,
tem por objetivo o bem-estar dos integrantes de determinada sociedade
concebida e entendida, aos nela inseridos e aos demais em sua volta, como
democrática.

3.1.1.1 ABERTURA DA DEMOCRACIA EM LEFORT

Lefort apresenta a ideia de democracia dinâmica, que ultrapasse os


modelos representativos e permita a inclusão de elementos do assembleísmo
e a efetivação de novos direitos ligados à participação.
O Estado não pode se fechar em si mesmo para tornar-se o grande
órgão que comanda todos os movimentos do corpo social. Pelo contrário, os
detentores da autoridade política permanecem obrigados a repor em causa o
princípio de conduta dos assuntos públicos (LEFORT, 1991, p. 54).
A partir dessa premissa, Lefort (1991, p. 54) entende que os novos
direitos que surgem graças ao exercício das liberdades políticas contribuem
para recrudescer a potência regradora do Estado:
Para que haja uma inscrição jurídica de novos
direitos, não basta que esta ou aquela
reivindicação encontre ouvidos complacentes na
cúpula do Estado. Antes de mais nada, também é
preciso que a reivindicação se beneficie – mesmo
quando estiver referida apenas a uma categoria
de cidadãos – do acordo ao menos tácito de uma

197
importante fração da opinião pública. Em suma,
que se inscreva no que designávamos por espaço
público. Por certo, não se deve subestimar a
articulação da força com o direito – surja a força
de interesses suscetíveis de mobilizar meios de
pressão eficazes ou fundamente-se no grande
número. Mas, uma das condições de êxito da
reivindicação reside na convicção partilhada de
que novo direito está conforme à exigência de
liberdade que atestam os direitos já em vigor.
Assim é que, no século XIX, o direito de
associação dos trabalhadores ou o direito de
greve, mesmo resultando em uma mudança nas
relações de força, foram reconhecidos,
exatamente junto àqueles que não eram os
instigadores, como uma extensão legitima de
liberdade de expressão ou da resistência à
opressão. Assim é ainda que, no século XX, o voto
das mulheres ou boa parte dos direitos sociais e
econômicos aparecem, por sua vez, como um
prolongamento dos direitos primitivos, ou os
direitos ditos culturais como um prolongamento
do direito à instrução. Tudo se passa como se os
novos direitos viessem retrospectivamente
incorporar-se ao que foi considerado constitutivo
das liberdades públicas.

A relação entre a democracia moderna e o direito para Lefort (1991, p.


56) é caracterizada pela abolição do ponto de referência do qual a lei ganhava
sua transcendência. Por não tornar a lei imanente à ordem do mundo e ao
mesmo tempo não confundir seu reino com o do poder, a democracia
moderna, faz com que a lei, redutível ao artifício humano, só dote de sentido
a ação dos homens com a condição de que eles assim o queiram, de que eles
assim a apreendam, com razão de sua existência e condição de sua
possibilidade para cada um julgar e ser julgado.
A democracia convida a substituir a noção de um regime regulado por
leis, de um poder legitimo, pela noção de um regime fundado na legitimidade
de um debate sobre o legitimo e o ilegítimo. Tanto a inspiração do homem
quanto a difusão dos direitos atestam esse debate (LEFORT, 1991, p. 57).

198
Atualmente se presume que o ambiente político de liberdade e direitos
estariam profundamente imbricados e norteariam os rumos de aplicação e
efetividade da denominada democracia representativa, forma de gestão e
participação política mais difundida – muitas vezes tida como uma das poucas
possibilidades de manutenção dos moldes clássicos de sociedades
democraticamente constituídas –, que é conceituada por Bobbio (2015, p. 73-
74) como aquela que:
[...] significa genericamente que as deliberações
coletivas, isto é, as deliberações que dizem
respeito à coletividade inteira, são tomadas não
diretamente por aqueles que dela fazem parte,
mas por pessoas eleitas para esta finalidade.
Ponto e basta. O Estado parlamentar é uma
aplicação particular, embora relevante do ponto
de vista histórico, do princípio da representação,
vale dizer, é aquele Estado no qual é
representativo o órgão central (ou central ao
menos em nível de princípio, embora nem
sempre de fato) ao qual chegam as reivindicações
e do qual partem as decisões coletivas
fundamentais, sendo este órgão central o
parlamento. Mas todos sabem que uma república
presidencial como a dos Estados Unidos, que não
é um Estado parlamentar, também é um Estado
representativo em sentido genérico [...] não
existe hoje nenhum Estado representativo em
que o princípio da representação concentre-se
apenas no parlamento [...] um Estado
representativo é um Estado no qual as principais
deliberações políticas são tomadas por
representantes eleitos, importando pouco se os
órgãos de decisão são do parlamento, a
Presidência da República, o parlamento mais os
conselhos regionais etc.

Acresça-se outro ponto à questão acerca dos regimes democráticos


referida por Bobbio (2015, p. 87), relativo à democracia direta. Geralmente é
tratada como insuficiente quando se verifica os dois institutos basilares
vinculados a esta modalidade de democracia, a assembleia dos cidadãos
deliberantes sem intermediários e o referendo, posto que, em nenhum sistema

199
complexo, o Estado moderno pode funcionar apenas com um ou com outro, e
nem mesmo com ambos conjuntamente.
Ocorre que esta modalidade de democracia poderia apenas ter vida
numa pequena comunidade, como era a do modelo clássico por excelência, a
Atenas dos séculos V e IV a.C., quando os cidadãos não passavam de poucos
milhares e sua assembleia reunia-se com todos juntos no lugar estabelecido
(BOBBIO, 2015, p. 87-88).
Tal experiência democrática, segundo Funari (2013, p. 35-36), ocorria
na cidade de Atenas da seguinte forma:
[...] todos os cidadãos podiam participar da
assembleia do povo (Eclésia), que tomava as
decisões relativas aos assuntos políticos, em
praça pública. Entretanto, é bom deixar bem
claro que o regime democrático ateniense tinha
os seus limites. Em Atenas, eram considerados
cidadãos apenas os homens adultos (com mais de
18 anos de idade) nascidos de pai e mãe
atenienses. Apenas pessoas com esses atributos
podiam participar do governo democrático
ateniense, o regime político do “povo soberano”.
Os cidadãos tinham três direitos essenciais:
liberdade individual, igualdade com relação aos
outros cidadãos perante a lei e direito a falar na
assembleia.

Obviamente, o trato com a participação decisória à época não possuía


um sabor tão democrático, apresentando limitação de gênero e idade,
entretanto a forma de tratamento dos assuntos inerentes à vida em sociedade,
que possibilitava a todos os cidadãos o direito de falar e serem ouvidos, é
aspecto que volta a pautar os rumos da democracia moderna.
Dentro das liberalidades que grande maioria das sociedades já
conquistou, qualquer alteração nos rumos democráticos de participação
torna-se retrocesso indescritível, abrindo assim lacunas ao controle político
de poucos que priorizam os interesses particulares.
O ponto de referência para este pensamento é a percepção da
necessidade de participação, do surgimento de novos atores, valendo-se dos

200
direitos já conquistados e consequentemente questionando os que perdem
eficácia.
Quanto à necessidade destes novos atores para a manutenção dos
espaços públicos de debates, Lefort (1991, p. 62) destaca:
[...] não há instituição que por natureza baste
para garantir a existência de um espaço público
no qual se propaga o questionamento do direito.
Mas, reciprocamente, esse espaço supõe que lhe
seja devolvida a imagem de sua própria
legitimidade a partir de uma cena organizada por
instituições distintas e na qual se movem os
atores encarregados de uma responsabilidade
política.

Verifica-se, assim, que a política e a sociedade não podem ser tratadas


como questões distintas, e seu trato aos direitos não remidos a instituições ou
personificações de entes políticos.
É inegável que o condutor atual dos rumos de sociedades organizadas
constitui-se politicamente e administrativamente por meio de uma
democracia representativa, a priori apresentada na constituição da
democracia americana, devidamente registrada por Tocqueville, porém que
necessita se reinventar a fim de não perder sua legitimidade e aplicabilidade
em um Estado democrático de direito.

3.1.1.2 DEMOCRACIA REPRESENTATIVA MODERNA: MODELOS E


LIMITES

A referência de democracia moderna parte do modelo constituído nos


Estados Unidos da América, o qual foi objeto de análise e estudo por
Tocqueville, no período de maio de 1831 e fevereiro de 1832.
No início da obra A Democracia na América, Tocqueville indica a razão
de seu interesse:
Não foi, pois, apenas para satisfazer a uma
curiosidade, aliás legítima, que examinei a
América; desejei encontrar ali ensinamentos dos

201
quais pudéssemos tirar proveito. Cometeria um
estranho engano quem pensasse que desejei
escrever um panegírico: quem quer que leia este
livro ficará bem convencido de que tal não foi, de
modo algum, meu desejo; tampouco foi meu
objetivo advogar tal forma de governo em geral,
pois pertenço ao número daqueles que acreditam
que quase nunca há excelência absoluta nas leis;
nem mesmo pretendi julgar se a revolução social
cuja marcha me parece irresistível é vantajosa ou
funesta à humanidade; admiti essa revolução
como um fato consumado ou quase a consumar-
se e, entre os povos que a viram realizar-se em
seu seio, procurei aquele onde atingiu o
desenvolvimento mais completo e mais pacífico,
a fim de ali discernir claramente as
consequências naturais e perceber, se possível,
os meios de torná-la proveitosa aos homens.
Admito que, na América, vi mais do que a
América; procurei ali uma imagem da própria
democracia, dos seus pendores, do seu caráter,
dos seus preconceitos, das suas paixões, desejei
conhecê-la, ainda que fosse apenas para saber o
que devemos esperar ou temer da parte dela.

Tocqueville analisa a democracia americana a partir de duas questões:


a igualdade de condições e a representação. Referida igualdade, todavia, não
pode ser entendida, para o autor, como igualdade pura e simples, mas sim,
enquanto igualdade na liberdade.
Consequentemente este ponto torna-se o dilema conceitual de
Tocqueville, o enfrentamento da tensão existente entre a igualdade e
liberdade, a qual em questão da participação democrática retrata-se na
igualdade de condições sociais e liberdade política:
[...] só haverá liberdade democrática onde
houver ação permanente do corpo de cidadãos na
esfera pública. O cerne do dilema pode, no
entanto, ser apreendido justamente no fato de
que a participação cívica é espécie em extinção no
contexto de privatização das relações da
sociedade igualitária imaginada por Tocqueville.
Neste sentido, o dilema tocquevilleano se
constitui da contraposição entre um diagnostico

202
“científico” da sociedade moderna – diagnóstico
que retrata as disposições que tendem a
inviabilizar a liberdade política nas condições
sociais igualitárias – e uma necessidade “ético-
política” de afirmar a exequibilidade desta
mesma liberdade no contexto de destruição das
bases da cidadania que decorre do
desenvolvimento daquelas mesmas disposições
(JASMIN, 2005, p. 2).

Segundo Jasmin (2005, p. 39), referida tensão é constitutiva do


próprio sistema conceitual de Tocqueville que opera pela justaposição de dois
níveis distintos, onde no primeiro nível opõem-se democracia e aristocracia,
referindo ao inevitável, imposto contra as vontades individuais. Em um
segundo nível, a polarização entre liberdade e servidão, apontando o possível,
o que é passível e sucessível de construção e modificação através da ação
humana.
Para Quirino (2000, p. 152-155), a questão central de Tocqueville é
saber o que fazer para que o desenvolvimento da igualdade irrefreável não seja
um inibidor da liberdade que possa vir consequentemente a destruí-la. A
democracia está sempre associada a um processo igualitário que não pode ser
parado, que se desenvolve de diversas maneiras entre os povos levando em
consideração seus aspectos culturais, porém será a ação política deste povo
que irá definir se a democracia será liberal ou tirânica.
Assim se nenhum diferir de seus semelhantes, ninguém poderá exercer
um poder tirânico; os homens serão perfeitamente livres, porque serão
completamente iguais; e serão todos perfeitamente iguais por estarem
completamente livres, sendo este o ideal ao qual se inclinam os povos
democráticos (TOCQUEVILLE, 2000, p. 113).
Questão que vale também ser destacada concentra-se na percepção
temerosa de Tocqueville do desenvolvimento de um processo democrático
individualista, a partir da observação que realizou do fenômeno democrático
americano:
A análise da obra de Tocqueville sugere,
portanto, a procura antes de qualquer outra
coisa, de resposta para suas inquietações – ainda

203
hoje validas – sobre o perigo que pode
representar para os Estados modernos, o
desenvolvimento incontrolável do chamado
processo democrático “individualista”. [...] a
crítica que Tocqueville faz ao nascente regime
político na América – isto é, à possibilidade de
edificação de um “pensamento único” que
impeça o desenvolvimento da liberdade no
interior do sistema, opondo obstáculos às ações
da minoria (MAGALHÃES, 2000, p. 142).

O temor de Tocqueville, de certa forma, está presente nos contornos


das democracias modernas, marcadas pela priorização do “eu’ e pelo
perecimento das ações coletivas em prol de um ideal comum, em princípio
benéfico:
Aparentemente irreversível, a democracia
individualista, como a conhecemos em nossos
tempos, parece estar destinada, por alguma
espécie de fatalismo histórico, a se perpetuar
indefinidamente. Essa tese finalista tem,
certamente, muitos adeptos; o que não significa
que exista uma concordância generalizada em
torno de uma definição de democracia. Muito
pouca gente, porém, discorda de sua importância
e até mesmo da natureza universal do seu valor.
O problema é saber se essa conquista da
modernidade, que tanto atormenta Tocqueville,
terá capacidade para estimular o progresso social
ou se, de outro modo, poderá produzir uma
forma de governo que, ao invés de promover o
acesso de todos ao bem-estar geral, conduza a
sociedade a uma espécie de segregação em que a
maioria exerça sobre a minoria um despotismo
incontrolável de sorte a impedir a sua
participação nos processos de decisão. Será a
democracia como igualdade de condições –
mesmo com as restrições e ressalvas feitas por
Tocqueville – fator suficiente para tornar a vida
social de todos os membros de uma comunidade
aceitável segundo parâmetros que abstratamente
poderíamos designar como o mínimo de
dignidade oferecida ao ser humano?

204
(MAGALHÃES, 2000, p. 143).

A perspectiva permite vislumbrar outras dificuldades para a


manutenção sem ameaças de reviravoltas tiranas à democracia, dentre os
quais o despotismo democrático.
A construção realizada por Tocqueville (2000, p. 388) do despotismo
democrático, parte da confrontação do poder déspota clássico, constituído aos
césares, ao surgimento de um poder tirânico num panorama democrático:
Vê-se que na época de maior poder dos césares,
os diferentes povos que habitavam o mundo
romano ainda haviam conservado costumes e
modos diversos: conquanto submetidos ao
mesmo monarca, a maior parte das províncias
era administrada a parte; elas estavam cheias de
municípios poderosos e ativos e, conquanto todo
o governo do império estivesse concentrado
apenas nas mãos do imperador e que este sempre
continuasse a ser o arbitro de todas as coisas, os
detalhes da vida social e da existência individual
comumente escapavam do seu controle. Os
imperadores possuíam, é verdade, um poder
imenso e sem contrapeso, que lhes permitia
dedicar-se livremente a bizarria de suas
inclinações e aplicar-se a satisfazê-las com a
força inteira do Estado. Sucedeu-lhes com
frequência abusar desse poder para tirar
arbitrariamente de um cidadão seus bens ou sua
vida: a tirania deles pesava prodigiosamente
sobre alguns, mas não se estendia a um grande
número; ela se fixava em alguns grandes objetos
principais e desprezava o resto; era violenta e
restrita.

Tocqueville (2000, p. 388-389) segue sua análise na hipótese deste


poder tirânico vir a encontrar novamente espaço entre os entes políticos
democráticos:
Parece que, se o despotismo viesse se estabelecer
entre as nações democráticas de nossos dias,
teria outras características: seria mais extenso e
mais doce, e degradaria os homens sem os

205
atormentar. Não duvido de que, em tempos de
luzes e igualdade como os nossos, os soberanos
consigam reunir facilmente todos os poderes
públicos e penetrar mais habitual e
profundamente no círculo dos interesses
privados do que qualquer um dos soberanos da
Antiguidade foi capaz de fazer. Mas essa mesma
igualdade, que facilita o despotismo, o tempera;
vimos como, à medida que os homens são mais
semelhantes e mais iguais, os modos públicos se
tornam mais humanos e mais doces; quando
nenhum cidadão tem um grande poder nem
grandes riquezas, a tirania carece, de certa
forma, de ocasião e de teatro. Se todas as fortunas
são medíocres, as paixões são naturalmente
contidas, a imaginação limitada, os prazeres
simples. Essa moderação universal modera o
próprio soberano e detém em certos limites o elo
desordenado de seus desejos.

O novo despotismo se apresenta através de quatro elementos: a


massificação da sociedade; a instalação do poder tutelar; o despotismo
administrativo e a servidão regrada doce e calma (JASMIN, 2005).
Em relação a instalação do poder tutelar, este é assim referido por
Tocqueville (2000, p. 389-390):
Acima desses se ergue um poder imenso e tutelar,
que se encarrega sozinho de assegurar o proveito
e zelar pela sorte deles. É absoluto, detalhado,
regular e doce. Ele se pareceria com o poder
paterno se, como este, tivesse por objetivo
preparar os homens para a idade viril; mas, ao
contrário, procura tão-somente fixá-los de
maneira irreversível na infância; ele gosta de que
os cidadãos se regozijem, contanto que não
pensem em outra coisa que regozijar-se.
Trabalha de bom grado para a felicidade deles;
mas que ser o único agente e o único árbitro dela;
provê à segurança deles, prevê e garante suas
necessidades, facilita seus prazeres, conduz seus
principais negócios, dirige sua indústria, regra
suas sucessões, divide suas heranças; por que
não lhes pode tirar inteiramente o incômodo de
pensar e a dificuldade de viver? Assim, todos os
dias ele torna menos útil e mais raro o emprego

206
do livre-arbítrio; encerra a ação da vontade num
espaço menor e defrauda pouco a pouco cada
cidadão até mesmo do uso de si. A igualdade
preparou os homens para essas coisas; ela os
dispôs a suportá-las e muitas vezes até a
considerá-las um benefício.

Este poder instalado teria função tão somente de garantir a segurança


necessária para os negócios privados dos cidadãos da classe burguesa.
O despotismo administrativo se demonstra pela “invisível” condução
dos rumos do indivíduo, dentro da sociedade em que está inserido, pela
vontade do soberano, se materializando este elemento pela – rede de
pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes (TOCQUEVILLE,
2000, p. 390) – em suma, constituindo a burocratização do sistema.
Depois de ter colhido assim em suas mãos
poderosas cada indivíduo e de o ter moldado a
seu gosto, o soberano estende seus braços sobre
toda a sociedade; cobre a superfície desta com
uma rede de pequenas regras complicadas,
minuciosas e uniformes, através das quais os
espíritos mais originais e as almas mais vigorosas
não poderiam abrir-se caminho para ultrapassar
a multidão; não quebra as vontades, mas
amolece-as, submete-as e dirige-as; raramente
força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja;
não destrói, impede que se nasça; não tiraniza,
incomoda, oprime desvigora, extingue, abestalha
e reduz enfim cada nação a não ser mais que um
rebanho de animais tímidos e industriosos, de
que o governo é pastor. (TOCQUEVILLE, 2000,
p. 390).

Este poder não é tirânico, mas tutelar, uma vez que se apresenta
invólucro numa sensação de liberdade e da possibilidade de os indivíduos
comandarem a si mesmos, porém o que se reflete é o fato de apenas
conseguirem vir a eleger seus tutores:
Por isso Tocqueville afirma que "[a] natureza do
senhor me importa bem menos que a obediência"
A constância desta última implica a perda da

207
faculdade de pensar, de sentir e de agir por si, ou
seja, dos atributos próprios da humanidade. Daí
também a caracterização dos súditos do novo
despotismo como uma "nova raça de
animais"(JASMIN, 2005, p. 18).

O poder tutelar reflete assim o ponto que caracteriza o quarto


elemento, a servidão regrada, doce e calma:
Nossos contemporâneos são incessantemente
trabalhados por duas paixões inimigas: sentem a
necessidade de ser conduzidos e a vontade de
permanecer livres. Não podendo destruir nem
um nem outro desses instintos contrários,
esforçam-se para satisfazer ambos ao mesmo
tempo. Imaginam um poder único, tutelar e
onipotente, mas eleito pelos cidadãos.
Combinam a centralização com a soberania do
povo, o que lhes proporciona certa trégua. Eles se
consolam por estar tutelados pensando terem
eles próprios escolhidos seus tutores. Cada
indivíduo suporta que o prendam, porque vê que
não é um homem nem uma classe, mas o próprio
povo que segura a porta da cadeia
(TOCQUEVILLE, 2000, p. 390-391).

A percepção precoce de Tocqueville sobre os problemas da democracia


moderna causa espanto e guarda a essência de um “povo” inebriado pela falsa
sensação de liberdade e independência.
O povo independente não se orienta de forma imanente. É guiado por
um poder político capaz de regular os rumos e manter o poder soberano de
um Estado zeloso com o destino dos indivíduos que o conferem legitimidade.
Em decorrência deste panorama, Roberto Amaral em interessante
artigo intitulado Apontamentos para a reforma política. A democracia
representativa está morta; viva a democracia participava, argumenta que a
democracia representativa não é mais democrática, não permitindo uma real
rotatividade política:
[...] se todos os cidadãos com maioridade e no
pleno gozo de seus direitos políticos dispõem,

208
universalmente, do direito de, por meio do
sufrágio, eleger seu representante, o voto não
tem peso idêntico, seja por força dos mecanismos
da proporcionalidade ou da construção dos
distritos eleitorais, ou dos colégios eleitorais,
como na democracia representativa norte-
americana; se tem o direito ao voto, não exerce
na plenitude o direito de escolha, limitado pelo
quadro partidário, limitado pelas legendas
partidárias, limitada pela interferência do poder
econômico, pela interferência do poder político e
pelo monopólio da informação que manipula a
construção da opinião pública. O sistema
trabalha para impedir a rotatividade no poder, de
sorte que às minorias é negado o direito de
tornarem-se, em condições de igualdade,
maioria, pelo que a troca no poder, ainda quando
premiando partidos distintos, promove a rotação
entre iguais (AMARAL, 2001, p.52-53).

O autor enumera dezesseis pontos que a levam a priorizar os interesses


do poder político em harmonia com os partidos políticos, a submeter questões
de suma importância para a sociedade a um segundo plano e a dificultar a
participação popular nas questões inerentes ao contexto em que está
integrada.
São eles: i) a burocratização crescente do aparelho estatal e aumento
do poder político-decisório da burocracia, afastando a influência da soberania
popular; ii) a tendência à massificação da sociedade civil e despolitização da
política; iii) os baixos níveis de prestação de contas pelos governos; iv) a
tendência ao bipartidarismo e concentração política; v) os baixos níveis de
influência popular no processo de tomada de decisões; vi) a ausência de
margem de mudança social e política por meios parlamentares; vii) a redução
da participação da cidadania nas eleições, em do diminuto número de
alternativas, muitas das quais, similares; viii) o controle da agenda política
pelas direções de grandes partidos e o controle dos meios de comunicação em
massa; ix) a tendência à concentração do poder e consequente
enfraquecimento da federação; x) o crescente caráter plebiscitário e

209
legitimador do poder governamental estabelecido; xi) a substituição da
vontade dos representados pela vontade dos representantes; xii) a facilidade
para a ação dos lobbies e representação direta dos grupos de interesse; xiii) o
crescente poder legiferante do Executivo; xiv) a autonomização política da
burocracia em face das mudanças políticas, de sorte que a mudança política
pode não significar mudança administrativa; xv) o fato de as eleições se
converterem em mero mecanismo administrativo e; xvi) a mediação da
representação pelo poder econômico, pelo abuso do poder político e pela
manipulação dos meios de comunicação de massa (AMARAL, 2001, p. 53).
Aponta Bianchini (2011, p. 178) que ao não se permitir a distribuição
do poder político, o indivíduo submerge na multidão e não tem capacidade ou
iniciativa de agregar-se politicamente, não sendo capaz de realizar medidas
importantes no contexto social que está inserido, ou mesmo de cobrar de
quem as deve realizar, tornando-se assim tarefa árdua promover e fiscalizar o
debate político do governo, uma vez que no sistema político que é
apresentado, não se encontram cidadãos, mas meros administradores.
Igualmente são formadas coalizões para salvaguarda de interesses diversos
aos da população, interesses os quais são conquistados por meio de um
aparato de propaganda que não só norteia esta população, como os mantém
distantes e alheios aos negócios públicos, sendo por Tocqueville (2005, p. 105)
referenciado o impacto que isto provoca no seio social:
Há nações assim na Europa, em que o habitante
se considera como uma espécie de colono
indiferente ao destino do lugar que habita. [...] a
fortuna da sua aldeia, a polícia da sua rua, a sorte
de sua igreja e de seu presbitério não lhe
interessam; ele acha que todas essas coisas não
lhe dizem absolutamente respeito e pertencem a
um estranho poderoso a que chamam governo.
Esse desinteresse por si mesmo vai tão longe que,
se sua própria segurança ou a de seus filhos for
enfim comprometida, em vez de procurar afastar
o perigo, ele cruza os braços para esperar que a
nação inteira corra em sua ajuda. Esse homem,
de resto, embora tenha feito um sacrifício tao
completo de seu livre-arbítrio, não gosta mais

210
que outro da obediência. Ele se submete, é
verdade, ao bel-prazer de um funcionário, mas se
compraz em afrontar a lei como um inimigo
vencido, mal a forca se retira. Por isso nós o
vemos oscilar entre a servidão e a licença.
Quando as nações chegam a tal ponto, tem de
modificar suas leis e seus costumes, ou perecem,
porque a fonte das virtudes publicas fica como
que seca: encontramos nelas súditos, mas não
vemos mais cidadãos.

Resta, assim, como possibilidade, a utilização de instrumentos de


estímulo de aplicação das propostas basilares da democracia participativa,
para que os indivíduos se sintam motivados a participar de questões inerentes
as suas vidas, não restringindo seu papel político a mera tarefa de votar e
eleger quem os governará, mas como cidadãos aptos a cobrar, participar e
mudar favoravelmente as suas vidas e de outros cidadãos.

3.1.1.3 DEMOCRACIA PARTICIPATIVA COMO REINVENÇÃO DA


DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

As circunstâncias que se apresentam no seio da questão democrática


geram a necessidade de uma nova proposta, a qual se funda no chamamento
do cidadão a participar da vida pública e política na sociedade que está
inserido.
A partir de Lefort, entende-se que o conceito de democracia não pode
ser resumido a uma forma ou sistema de governo, mas ao modo de ser de uma
sociedade aberta e preparada aos desafios dos novos tempos para se manter
viável e eficaz.
A perspectiva permite, ainda, assegurar a existência das duas
modalidades de regimes democráticos na atual sociedade moderna, e
igualmente nos ditames da democracia nacional:
[...] existem duas formas possíveis de
combinação entre democracia participativa e
representativa: coexistência e

211
complementaridade. Coexistência implica uma
convivência, em níveis diversos, das diferentes
formas de procedimentalismo, organização
administrativa e variação de desenho
institucional. A segunda forma de combinação, a
que chamamos de complementaridade, implica
uma articulação mais profunda entre democracia
representativa e democracia participativa.
Pressupõe o reconhecimento pelo governo de que
o procedimentalismo participativo, as formas
públicas de monitoramento dos governos e os
processos de deliberação pública podem
substituir parte do processo de representação e
deliberação pública tais como concebidos no
modelo hegemônico de democracia (AVRITZER;
SANTOS, 2002, p. 75-76).

Kelsen (2001, p. 10) elabora a seguinte justificativa para um regime


democrático:
A democracia é uma forma de regime justa, pois
assegura a liberdade individual. Isso significa
que a democracia é um regime justo somente sob
a premissa de a preservação da liberdade
individual ser o fim maior. Se, em vez de
liberdade individual, a segurança econômica for
presumida como o fim maior, e se for possível
comprovar que ela não pode ser garantida sob
um regime democrático, então outra forma de
regime, não mais a democracia, deverá ser aceita
como justa. Outros fins exigem outros meios.
Portanto, a democracia só é justificável como
forma de regime relativa e não absolutamente
boa.

A alteração para regimes que não possuam em sua estrutura de


funcionamento princípios democráticos é um retrocesso, pois, segundo
Amaral (2001, p. 54-55), críticas ao atual modelo de democracia
representativa não podem abrir caminho a não-democracia ou a à democracia
nenhuma, pois elas derivam de uma opção intransigente radical, pela
democracia, democracia esta que não trata-se apenas de uma ideia, um mero

212
conceito, um juízo de valor, mas sim em ação permanente, efetiva, por meio
da igualdade de todos perante a lei.
Não obstante, para que de fato haja uma real e efetiva reinvenção
democrática, aqui pela proposta participava, se faz necessário o conhecimento
de suas características e modos de aplicação, bem como de seus limites, até
onde e como sua utilização poderá suprir as lacunas e apresentar respostas aos
dilemas enfrentados pela democracia representativa moderna.

3.1.2 DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

A democracia participativa, na modernidade, teve impulso mais


considerável no decorrer do século passado, durante a década de 1960.
Assumiu, segundo Held (1987, p. 230), o papel de ser um contra modelo da
esquerda à “democracia legal” da direita (democracia deliberativa)51.
José Affonso da Silva Machado (2005, p. 141) trata o tema como um
princípio, o princípio participativo, o qual caracteriza-se pela “participação
direta e pessoal da cidadania na formação dos atos de governo”.
Avritzer e Santos (2002, p. 56) compreendem que os casos de
democracia participativa se iniciam por uma tentativa de disputa de
determinadas práticas políticas por meio da ampliação da participação social
e da incorporação de novos atores comunitários e temas à prática política.
De modo geral, os autores justificam o fenômeno em decorrência de
transformações que vêm ocorrendo na representação política, com a
diminuição do controle concentrado das ações e decisões políticas:
A representação política nas democracias
contemporâneas sofreu transformações
profundas no último quartel do século XX:
partidos políticos de massas perderam sua
centralidade como ordenadores estáveis das

51 Democracia deliberativa consiste em uma proposta de tomada de decisões,


em sociedades democráticas, por meio de deliberação, como alternativa
preferencial em face de mecanismos de votação (Rouanet, 2011, p.52).

213
identidades e preferências do eleitorado; a
personalização midiática da política sob a figura
de lideranças plebiscitárias tornou-se um
fenômeno comum; mudanças no mercado de
trabalho tornaram instáveis e fluidas as grandes
categorias populacionais outrora passíveis de
representação por sua posição na estrutura
ocupacional; e, se isso não bastasse, uma vaga de
inovações institucionais tem levado a
representação política, no Brasil e pelo mundo
afora, a transbordar as eleições e o legislativo
como lócus da representação, enveredando para
o controle social e para a representação grupal
nas funções executivas do governo. (LAVALLE;
HOUTZAGER; CASTELLO. 2006, p. 49)

Para Bianchini (2011, p. 173-174) o fenômeno do exercício democrático


de conclamar o cidadão a participar já se mostrava presente na democracia da
América do Norte, no século XIX, criando-se um corpo onde cada cidadão
restava dotado de iniciativa e capacidade política, desempenhando funções
mais democráticas, dando força e direção ao corpo social:
Há países em que um poder, de certa forma
exterior ao corpo social, atual sobre ele e força-o
a caminhar em certo sentido. Outros há em que a
força é dividida, situando-se ao mesmo tempo na
sociedade e fora dela. Nada parecido se vê nos
Estados Unidos; lá a sociedade age por si e sobre
si mesma. Só há força em seu seio, quase não se
encontra ninguém que ouse conceber e,
sobretudo, exprimir a ideia de buscá-la em outra
parta. O povo participa da composição das leis
pela escolha dos legisladores, de sua aplicação
pela eleição dos agentes do poder executivo;
podemos dizer governa por si mesmo, a tal ponto
a importância deixada à administração é fraca e
restrita, a tal ponto ela é marcada por sua origem
popular e obedece ao poder de que emana. O
povo reina sobre o mundo político americano
como Deus sobre o universo. Ele é a causa e o fim
de todas as coisas. Tudo provém dele e tudo nele

214
se absorver (TOCQUEVILLE, 2005, p. 68).

Os atores contemporâneos que implementaram as experiências da


democracia participativa, colocam em questão a identidade que lhes foi
atribuída externamente por um Estado colonial ou por um Estado autoritário
e discriminador. A reivindicação por questões como moradia, direitos a bens
públicos, direitos de participação, trazem à tona a estes processos uma causa
comum, a constituição de um ideal participativo e inclusivo como parte dos
projetos de libertação do colonialismo - Índia, África do Sul e Moçambique –
ou de democratização – Portugal, Brasil e Colômbia (AVRITZER; SANTOS,
2003, p. 57).
A democracia participativa consiste, conforme Bonavides (2008, p.
27), no fato do povo assumir um papel de controle final no processo político,
tendo possibilidade de iniciativa e sanção de lei e ato normativo de interesse
público, revelando-se assim a aplicabilidade do princípio da soberania
popular.
Este é o mesmo sentido que Sell (2006, p. 93) confere ao termo:

Por democracia participativa podemos entender


um conjunto de experiências e mecanismos que
tem como finalidade estimular a participação
direta dos cidadãos na vida política através de
canais de discussão e decisão. A democracia
participativa preserva a realidade do Estado (e a
democracia representativa). Todavia, ela busca
superar a dicotomia entre representantes e
representados recuperando o velho ideal da
democracia grega: a participação ativa e efetiva
dos cidadãos na vida pública.

Constata-se a legitimidade de ações com a devida participação popular,


quando o texto constitucional brasileiro prevê, porém intrinsecamente, de
modo ainda tímido, a existência de atos que se configuram como ações
voltadas a democracia participativa.
Segundo Bonavides, (2008, p. 40), a democracia brasileira, ainda em
fase de construções teóricas, já se encontra parcialmente positivada, no artigo

215
1º e seu parágrafo único52 da CF/1988, que trata da questão referente ao
exercício direto da vontade popular, e no artigo 14, em que são enunciadas
técnicas participativas, sendo essas o plebiscito, referendo e iniciativa popular.
O autor trabalha a democracia participativa com base em uma teoria
na qual as constituições devem amparar e resguardar as ações administrativas
e políticas promovidas pela força da soberania popular.
Esta construção teórica ocorre pela observação dos fenômenos
populares em países considerados em sua maioria de Terceiro Mundo, ou
mesmo que não venham a ter este tipo de enquadramento, como exemplo,
países que sua origem provêem ou passaram por regimes totalitaristas e os
que figuravam como ex-colônias.
Entende que através de Direito Constitucional fundado na democracia
participativa, poder-se-á salvar, preservar e consolidar o conceito de
soberania, o qual através da onda reacionária do neoliberalismo
contemporâneo, faz a democracia submergir nas inconstitucionalidades do
poder até destruí-la completamente (BONAVIDES, 2008, p. 33).
Neste sentido, é de valia a transcrição de pontuações gerais de
Bonavides (2008, p. 33-34) em relação ao tema:

A democracia participativa é direito


constitucional progressivo e vanguardeiro. É
direito que veio para repolitizar a legitimidade e
reconduzi-la às suas nascentes históricas, ou
seja, àquele período em que foi bandeira de
liberdade dos povos. A democracia participativa
combate a conspiração desagregadora do
neoliberalismo e forma a nova corrente de ideias
que se empenham em organizar o povo para apor
um dique à penetração da ideologia colonialista;
ideologia de submissão e fatalismo, de autores
que professam a tese derrotista da
impossibilidade de manter de pé o conceito de

52 Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel


dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos. Parágrafo único. Todo o
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta constituição.

216
soberania. A obsolência deste é proclamada a
cada passo com verdade inconcussa. A
democracia participativa, porém, se vingar, há de
elaborar outro direito constitucional forjado na
luta e na rejeição do neoliberalismo da
recolonização.

Vale destacar análise comparativa de Bonavides (2008, p. 44) entre a


clássica democracia representativa e a democracia participativa:
Na clássica democracia representativa o povo
simplesmente adjetivava a soberania, sendo
soberano apenas na exterioridade e na aparência,
na forma e na designação; já com a democracia
participativa, aqui evangelizada, tudo mudo de
figura: o povo passa a ser substantivo, e o é por
significar a encarnação da soberania mesma em
sua essência e eficácia, em sua titularidade e
exercício, em sua materialidade e conteúdo, e
acima de tudo, em sua intangibilidade e
inalienabilidade; soberania da qual o povo,
agora, não conhece senão o nome, a falsa
representatividade, o falso testemunho, a falsa
valorização.

Com a finalidade de ultrapassar as concepções teóricas da


possibilidade da real participação popular no contexto de uma sociedade, traz-
se aplicação prática das propostas desta modalidade que se deu na cidade de
Lages, Estado de Santa Catarina, no final da década de 1970.
Durante sua gestão, Dirceu Carneiro, eleito Prefeito de Lages pelo
partido Movimento Democrático Brasileiro – MDB em 1976, promoveu
juntamente com sua equipe ações buscando conscientizar o povo da força que
tem e não sabe, de sua capacidade construtiva, aplicando-se uma prática
democrática fundada num estilo administrativo em que a mobilização popular
e participação direta do povo constitui-se a característica fundamental
(TRAGTENBERG, 1982, p 7-8).
A inovação foi operacionalizada por meio de algumas práticas voltadas
à realidade local, como a considerar o potencial agrícola do município,

217
valorizando assim a pequena propriedade, incentivando a formação de
cooperativas e utilização de recursos locais. No tocante à rede escolar
municipal, incentivou a participação dos pais de alunos nas escolas e,
buscando agilizar a prática administrativa municipal, criou-se a figura do
“intendente de distrito”, uma espécie de subprefeito da cidade que atende ao
público diretamente (TRAGTENBERG, 1982, p 9).
Tais ações, propostas na cidade de Lages há mais de 40 anos atrás,
mostram que a participação popular é indispensável, uma vez que os decisores
serão os próprios beneficiados pela boa gestão da cidade:
[...] a participação de todos na tomada de decisão
é indispensável para que todos se sintam
igualmente comprometidos com os encargos
financeiros decorrentes da obra de melhoria. O
mesmo acontece com a criação de postos
médicos, com a reconstrução e a ampliação de
escolas, com a distribuição do serviço dos
tratores que são mandados para o interior para
arar as terras dos pequenos agricultores. A
presença da comunidade se impõe, é solicitado e,
assim, o próprio sentimento da comunidade é
envolvido (ALVES, 1982, p. 31).

A inserção do povo como figura central da democracia participativa


eleva a questão da soberania popular ao ápice e se mostra como alternativa
apta a responder aos dilemas da atualidade.

3.1.2.1 PREMISSAS E REQUISITOS

Não há receita, ou muito menos uma previsão de qual seja o início, o


meio e o fim da democracia participativa. Ela se fecunda da necessidade, do
conhecimento e do enfretamento das adversidades, em tese, não partindo de
gabinetes políticos ou repartições públicas, e sim de um clamor pela mudança.
Este clamor de mudança, no sentido mais puro e benevolente, deverá
estar acompanhado de legitimidade, a qual só é encontrada no povo:

218
O povo, fonte de todo o poder legitimo, segundo confissão política dos
melhores filósofos e pensadores da liberdade, ainda não legisla diretamente,
qual lhe cumpre na práxis e na doutrina. Mas um dia há de fazê-lo, sem a
intermediação dos canais representativos (BONAVIDADES, 2008, p. 345).
Porém os seguintes questionamentos vêm à tona: Como acontecerão
os clamores pela mudança, de que forma irão ocorrer? Onde ocorrerão?
Quem, de fato, serão seus autores?
O ponto de partida para obtenção de respostas a estas questões pode
ser encontrado em Avritzer e Santos (2003, p. 55), para quem a democracia
participativa está a reinventar a emancipação social nos campo político, no
início do Século XXI. Longe se ser um conjunto de atos de cunho revoltoso ou
anárquico, é uma referência à percepção conquistada pelos indivíduos no
tocante às questões sociopolíticas de sua gente e da força obtida para agir em
favor de um ideal comunitário.
Bobbio (2015, p. 91) ressalta que ela não pode ser considerada como
um novo tipo de democracia. Trata-se, antes, de uma ocupação das formas
tradicionais da democracia, como é a democracia representativa, por espaços
agora dominados por organizações hierarquicamente distintas.
A democracia participativa não poderá metaforicamente “dar as
costas” aos velhos modelos democráticos, agindo seus atores de modo que
seus discursos priorizem aos interesses individuais, mas sim buscar a
obtenção de mudanças e reais apoios para soluções realmente participativas.
Do ponto de vista formal, até mesmo indivíduos investidos apenas do
caráter político partidário, bem como da própria administração pública,
podem ser atores da democracia participativa, porém conclui-se que
democracia participava real somente será realmente justa e aplicável quando
ebulir do seio social, dos meios das gentes, dos indivíduos que clamam por
mudanças de viés comunitário, social e afirmativo do povo como o franco
responsável por conduzir o destino de sua própria nação.

219
3.1.2.2 INSTRUMENTOS LEGAIS E POLÍTICOS

A democracia participativa não pode ser executada em meio a


ilegalidades e vícios, razão pela qual são previstos instrumentos para sua
aplicação e efetividade, alguns destes previstos na Constituição Federal
(plebiscito, referendo e consulta popular) e outros por meio da construção
doutrinária.
Bianchini (2011, p. 197-206), tendo por base teórica classificação
formulada por Wallace Paiva Martins Junior, indica doze instrumentos de
efetivação da democracia participativa, considerando múltiplas expressões de
associação das forças econômicas, políticas e sociais na tomada de decisões. O
autor os classifica em: instrumentos constitucionais; instrumentos
infraconstitucionais, previstos em legislações esparsas; instrumentos não
previstos no ordenamento jurídico brasileiro; instrumentos próprios da
democracia participativa; e instrumentos oriundos das instituições e
procedimentos jurídicos.
Os constitucionais são o referendo – consulta pública para introduzir
emenda constitucional ou lei ordinária que venha a afetar interesses públicos
relevantes –; o plebiscito ou referendo consultivo – consulta prévia à opinião
popular para a adoção de providências legislativas para um determinado
assunto que deve ser pautado por lei a ser aprovada conforme o processo
constitucional regular; e o projeto de lei de iniciativa popular, que permite a
um certo número de eleitores propor uma emenda constitucional ou um
projeto de lei.
Como exemplo de instrumentos previstos em legislações esparsas,
figura a ação popular, regulada pela lei nº 4.717/65, que confere ao cidadão a
prerrogativa de buscar a jurisdição para anular ato lesivo ou promovido com
desvio de finalidade em respeito ao patrimônio público ou de entidade que o
Estado participe e qualquer ato atentatório à moralidade administrativa, ao
meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.

220
Entre os instrumentos não presentes no ordenamento jurídico
brasileiro estão o veto popular, que permite aos eleitores, após a aprovação de
um projeto de lei pelo Legislativo, prazo variável de 60 a 90 dias, para que
consintam com a aprovação, sendo que sua inexistência se dá em razão de
rejeição quando da Assembleia Nacional Constituinte; e o recall, tipo de
instrumento constitucional que permite a revogação, mediante consulta
popular realizada tal qual o sufrágio universal, do mandado eletivo de
qualquer agente público que assim seja investido, desde que seu desempenho
não se coadune com sua proposta de governo ou gestão delineada aos
cidadãos.
Os conselhos tripartites, as audiências públicas, o orçamento
participativo são alguns dos instrumentos próprios da democracia
participativa.
Quanto aos instrumentos oriundos das instituições e procedimentos
jurídicos, tem-se a figura da tutela jurisdicional coletiva, entendida pelo rol de
instrumentos legislativos materiais e processuais que permitem às
organizações governamentais e não governamentais acionar o Poder
Judiciário para proteger os direitos dos cidadãos; a justiça de paz, apresentada
como instituição pela qual representantes leigos do povo desempenham
funções pseudojudiciais e administrativas; e o tribunal do júri, incitação
jurídica através do qual determinados cidadãos, previamente alistados e
momentaneamente investidos no direto de julgar, decidem pela intima
convicção e sob juramente causa levada ao seu conhecimento.
Observa-se que parte dos instrumentos citados opera a chamada
democracia semidireta, pois se relacionam em uma esfera de volição dirigida
do povo para o governo tendo por base um conteúdo de ou deliberação
previamente definido, sendo que em relação a democracia participativa, os
instrumentos que operam a autogestão comunitária se apresentam como os
mais validos para o envolvimento popular na formação da vontade do governo
e no controle da administração pública, gerando por fim um efeito de cunho
pedagógico, o qual refere-se ao esclarecimento do corpo eleitoral, o tornando

221
aos poucos mais consciente e mais capaz de aprender e opinar sobre os
problemas políticos que lhe são expostos (Bianchini, 2011, p. 207).
Percebe-se que, tanto no ordenamento jurídico pátrio, quanto em
setores diversos da sociedade organizada, há ferramentas capazes de efetivar
a participação popular em assuntos inerentes ao rumo da sociedade, porém
sendo necessária cada vez mais a divulgação de formas para que o
fortalecimento quando da aplicação destas ferramentas e das demais
propostas teóricas da democracia participativa.

3.1.2.3 FORTALECIMENTO DE SUA APLICAÇÃO

A democracia participativa vai conquistando espaço e efetividade,


desmistificando temores governamentais que imaginam uma destituição dos
poderes clássicos, com a substituição total dos modelos de gestão democrática.
A partir desta percepção Avritzer e Santos (2003, p. 77-78), tratam de
três teses que buscam o fortalecimento da democracia participativa com o
objetivo de sua inserção prática no campo democrático.
A primeira tese trata do fortalecimento da demo diversidade,
entendida como o reconhecer que não há motivo para a democracia assumir
apenas uma forma. O multiculturalismo e experiências recentes de
participação apontam no sentido da deliberação pública aplicada e do
adensamento da participação. Assim, em relação à democracia participativa,
seu primeiro elemento de importância seria o aprofundamento dos casos nos
quais o sistema político se inclina a decisões tomadas a partir de instâncias
participativas.
A segunda se ocupa do fortalecimento da articulação contra
hegemônica entre o local e o global, uma vez que novas experiências
democráticas precisam do apoio de atores democráticos transnacionais nos
casos em que a democracia é fraca.
A terceira se dedica à ampliação do experimento democrático. Novas
experiências bem-sucedidas se originam de novas gramáticas sociais nas quais

222
o formato da participação vai sendo adquirido experimentalmente. A
pluralização cultural, racial e distributiva da democracia necessita da
multiplicação de experiências, da diversidade e da inteligência democrática.
A unificação das teses aponta para ações globalizadas, fortalecidas pela
troca de experiências e capacitação dos seus atores, bem como para a
transposição de qualquer barreira (étnica, cultural, religiosa etc.), a fim de
garantir participação popular livre e igualitária.
Alguns pontos, contudo, não são aprofundados pelos autores que se
dedicam ao estudo da democracia participativa. Sob a ótica ambientalista,
questão que se põe, é a relacionada com a forma como os interessados na
qualidade ambiental são ouvidos e considerados em espaços decisórios. Este
fator se constitui um dos grandes dilemas da democracia participativa, na
atualidade.

3.1.3 DILEMAS DA PARTICIPAÇÃO: QUEM FALA, QUEM É OUVIDO?

Considerando as dificuldades e desafios que a democracia participava


enfrenta e ainda enfrentará, outro ponto a ser discutido se refere a quem falará
pelo povo e quem terá sua fala realmente ouvida e atendida.
O ponto inicial de discussão, buscando o respeito aos
princípios/conceitos da isonomia e isegoria53, recai sobre como realizar estes
debates, seu número de participantes, uma vez que a essência dos debates
provém das assembleias gregas, e esta modalidade sendo empregada nos

53 [...] o regime ateniense tinha na busca da igualdade um traço fundamental,


talvez mesmo o mais saliente: dar aos cidadãos as mesmas possibilidades,
sem olhar à categoria social, aos meios de fortuna ou à cultura. Atenas
considerava este aspecto tão importante que se gabava de possuir a
isonomia, a isegoria e a isocracia, ou seja a igualdade de direitos, ou perante
a lei, a igualdade de falar, ou a fraqueza no falar, como aparece designada
em certas fontes, a nossa liberdade de expressão e a igualdade no poder,
respectivamente (FERREIRA, 1989, p.172).

223
moldes em que surgiu, inviabilizaria a eficiência e a real participação popular
desejada na atualidade.
Percebendo este dilema, Dahl (2001, p. 123) aponta alguns
problemas sérios relacionados ao assembleísmo:
As oportunidades para a participação
rapidamente diminuem com o tamanho do corpo
dos cidadãos; Embora muito mais gente possa
participar escutando os que falam, o número
máximo de participantes numa única reunião
com probabilidade de se expressar pela oratória
é muito pequeno – bem menos do que uma
centena; Esses membros com plena participação
se tornam os representantes dos outros, exceto
no voto; Assim, mesmo numa unidade governada
pela democracia de assembleia, é provável existir
uma espécie de sistema de facto; Nada garante
que os membros dotados do direito de plena
participação sejam representativos do resto; Para
proporcionar um sistema satisfatório para
selecionar representantes, é razoável que os
cidadãos prefiram eleger seus representantes em
eleições livres e justas.

Necessita-se assim, além do enfretamento dos problemas para


efetivação da democracia participativa, obter-se a fórmula, em tese perfeita,
para que a participação popular seja realmente participativa, que as palavras
sejam ditas, as vozes ouvidas e os ensejos atendidos.
Em razão destas circunstâncias, serão tratadas a seguir no presente
estudo, as variações da isonomia e isegoria, em especial as relacionadas às
questões ambientais, para que toda a construção do tema até o momento
tratada, não seja construída e resumida a teorias e devaneios restritos a termos
escritos, mas sim que promova a pluralização e efetivação da já reiterada,
porém irrefutável e necessária participação popular através da democracia
participativa
As objeções de Dahl à democracia participativa se avultam quando
outros desafios e questões ligados à necessidade de se dar voz e se considerar

224
os anseios dos que não podem ser ouvidos nas tomadas de decisão, conforme
se analisará a seguir.

3.2 ISONOMIA E ISEGORIA AMBIENTAIS: DEMOCRACIA E


DIFUSIVIDADE AMBIENTAL, DEMOCRACIA E A DIACRONIA AMBIENTAL

As manifestações de vontade, o desejo de participar e se fazer parte


ativa de um processo decisório relacionado à sociedade de que se faz parte são
intrínsecas ao ser humano, porém, muitas vezes, as instituições existentes no
contexto da participação, bem como as ferramentas disponibilizadas, não são
devidamente utilizadas ou até mesmo plenamente conhecidas.
É certo que a cidade é a base organizacional da sociedade moderna,
porém por trás dela há algo maior, o meio ambiente, este entendido de forma
ampla.
A ampliação da definição de meio ambiente, não restrita ao natural
(elementos bióticos e abióticos), é fator determinante para a construção
sustentável das cidades, direcionando o foco igualmente aos demais
elementos do meio ambiente artificial e aos do meio cultural e do trabalho.
Estes elementos não possuem voz própria e necessitam para sua
manutenção da intervenção humana, do uso e emprego consciente de seus
elementos, pensando nas presentes e futuras gerações.
Às futuras gerações, não condicionadas a um tempo e espaço
determinados, o peso decisório e a necessidade de uma gestão ambiental
pautada em critérios de durabilidade são condicionantes para o
desenvolvimento sustentável e perspectiva de uma sociedade mais justa e
solidária isenta de barreiras.
Levanta-se assim a necessidade de se pautar, dentro das possibilidades
da participação popular, as questões voltadas ao meio ambiente, de modo
igualitário, viabilizando aos envolvidos se expressar, falar e participar, em prol
de um bem comum, de um meio ambiente artificial, cultural e do trabalho

225
verdadeiramente equilibrados com o natural, elevando-se o propósito de uma
vida no planeta que seja saudável, solidária e sustentável.

3.2.1. A ISONOMIA, A ISEGORIA E A PARTICIPAÇÃO

O preceito básico da participação reside na igualdade dos pares e na


possibilidade de falarem, se manifestarem, exporem o seu ponto de vista em
relação às questões que lhes sejam atinentes.
Obviamente, a participação no formato de debates como na antiga
Grécia, na atualidade, é impensável, dada a complexidade das sociedades. A
gigantesca diferença populacional é outro limitador, não obstante as
ferramentas tecnológicas que vêm facilitando as trocas de informações.
Igualmente, a participação contribui para um melhor desempenho da
Administração, ao possibilitar uma decisão mais embasada e democrática, por
estarem no interior do procedimento representados todos os interesses
envolvidos na questão objeto da decisão administrativa (FERREIRA, 2010, p.
23).
Souza (2006, p. 187) trata da participação a partir de dois vieses. O
primeiro vê a participação como um fim em si mesma, justificados pelo cunho
político ou político pedagógico:
Ela ajuda a formar melhores cidadãos: Embora
seja esse um argumento empírico, resta
explicitar o que se entende por “melhores
cidadãos”. Mesmo assim, o argumento
permanece carregado de fortíssima carga
valorativa e pode facilmente resvalar para um
embate de natureza estritamente político-
filosófica, uma vez que o modelo de “bom
cidadão” é bastante variável, não sendo o mesmo
para stalinistas, liberais e autonomistas.
Adotando-se como critérios “objetivos”
parâmetros como o aumento do sentido de
responsabilidade e interesse pela coisa pública
(incluindo-se o patrimônio público) e o
incremento de uma consciência de direitos, as
polêmicas não desaparecem, mas estabelece-se a

226
possibilidade de, por meio de investigações
detalhadas, alicerçadas em trabalhos de campo
bem desenhados e executados, estimar os
benefícios de processos participativos reais e
específicos. 2) Ela permite ou facilita o
empowerment dos cidadãos: Eis um argumento
que parece, à primeira vista redundante, pois,
dependendo do que se entenda por
empowerment, a tendência será a de achar que
participar, em si, sempre significa
automaticamente, empowerment. O problema é
que há graus muito diferentes de consistência
participativa [...].

O segundo, percebe a participação como um meio, onde a participação


direta é justificada por razões de eficiência econômica e gerencial, com o
intuito de melhor satisfação das necessidades dos cidadãos e minimização das
chances de desperdício e corrupção (SOUZA, 2006, p. 187-188).
Este panorama de argumentações e seus consequentes efeitos entre os
envolvidos, tem por base a observação a partir de uma das formas de
participação popular existentes no país, denominada como orçamento
participativo, conceituada por Avritzer da seguinte forma (2003, p. 576):
O orçamento participativo é uma política participativa em nível local
que responde a demandas dos setores desfavorecidos por uma distribuição
mais justa dos bens públicos nas cidades brasileiras. Ele inclui atores sociais,
membros de associações de bairro e cidadãos comuns em um processo de
negociação e deliberação dividido em duas etapas: uma primeira etapa na qual
a participação dos interessados é direta e uma segunda etapa na qual a
participação corre através da constituição de um conselho de delegados.
Seu surgimento e aplicação têm início especificamente na cidade de
Porto Alegre/RS, no ano de 1986, como uma resposta a uma proposta de
conselhos populares feita pelo prefeito de Porto Alegre à época, Alceu Collares,
primeiro prefeito eleito democraticamente após o período autoritário
(AVRITZER, 2003, p. 573-574).

227
Em reunião realizada em março de 1986, a União das Associações dos
Moradores de Porto Alegre responde a proposta de Collares, aponta o desejo
de poderem intervir diretamente na definição do orçamento municipal e no
controle de sua aplicação. Também afirmaram a vontade de decidir sobre as
prioridades de investimento em cada vila, bairro e na cidade em geral,
constituindo esta resposta como o primeiro documento que utiliza o termo
orçamento participativo e antecipa os elementos para sua prática (AVRITZER,
2003, p. 574).
Observa-se que o grande avanço em termos de políticas participativas
no país deu-se pela introdução de fato, durante o ano de 1990, e respectiva
aplicação, do orçamento participativo na administração da capital gaúcha por
Olívio Dutra (AVRITZER, 2007, p. 14).
Neste sentido, Fedozzi (1998, p. 262), menciona que o orçamento
participativo de Porto Alegre, ao primar por regras universais e previsíveis de
participação e por critérios objetivos e impessoais para a seleção das
prioridades reivindicadas pelas comunidades, estabelece uma dinâmica de
acesso aos recursos públicos, em oposição ao particularismo da justiça de
gabinete.
No município de Chapecó a experiência do orçamento participativo já
teve espaço, iniciado no ano de 1997, durante o primeiro mandato do governo
petista, divididas em quatro fases: a 1ª fase foi iniciada em abril de 1997,
focada na apresentação e metodologia do orçamento participativo; a 2ª fase
começou em maio de 1997, através da realização das assembleias regionais e
das plenárias temáticas, dividindo o município em dez regiões, tendo referida
fase o objetivo de discutir critérios de distribuição dos recursos entre regiões,
discutir as políticas por área e os critérios técnicos para definição das
prioridades, além da eleição dos delegados; na 3ª fase realizada entre junho-
julho de 1997, foi feita a definição de prioridades por área de investimento; e
na 4ª fase ocorrida em agosto de 1997, foram promovidas as assembleias
regionais e as plenárias temáticas visando à definição das áreas prioritárias

228
das regiões e temáticas, bem como a eleição dos membros do Conselho do
Orçamento Participativo (COP) (ROVER, 2002, P. 266-267).
Na atualidade, o orçamento participativo no município de Chapecó não
vem sendo aplicado junto às comunidades, restando em breve pesquisa a
existência de dados consistentes e recentes desta modalidade de gestão
democrática datados do ano de 2002.
Os exemplos do orçamento participativo revelam que os critérios da
igualdade e possibilidade de falar em um cenário que permita a real
participação popular possibilitam a manifestação do povo, de forma livre e
organizada e expressa uma possibilidade de emprego e direcionamento de
investimentos prioritariamente públicos nos reais problemas das cidades.
Entretanto, é sábio compreender que a mera teorização de propostas a
participação do povo, sem uma devida análise e acompanhamento de seus
efeitos e consequências, apenas tornar-se-á uma mera formalidade, para
cumprimento de previsões legais, constituindo-se em mais um emaranhado
teórico sem função prática e social, não gerando assim o esperado
empowerment dos cidadãos.

3.2.2 A ISONOMIA, A ISEGORIA E MEIO AMBIENTE

As questões ambientais na atualidade apresentam-se no aspecto de um


binômio, que primeiramente ocorrem pela favorável evolução no interesse aos
estudos e questões de âmbito jurídico ligados ao meio ambiente, entretanto,
na outra ponta deste binômio, este interesse vem acompanhado de um cenário
cada vez mais temerário quanto à eficácia da aplicabilidade jurídica à questão
ambiental.
São múltiplas as justificativas para a qualidade da efetividade jurídica
ambiental, porém, todas as respostas passarão por uma figura central: a
atividade humana.
A comunidade através de instituições, movimentos populares e
organizações intermediárias, envolve-se cada vez mais com a problemática

229
ambiental, em decorrência da tomada de consciência da situação, do
amadurecimento político das instituições e das pessoas, assim como da
estimulante solidariedade com a Terra, “nossa casa” (MILARÉ, 2015, p. 216).
A introdução da visão democrática ambiental possibilita a gestão
participativa no Estado, que estimulará o exercício da cidadania, com vistas
ao gerenciamento da problemática ambiental (LEITE, 2012, p. 189).
Em relação à participação, Fiorilo (2012, p. 132-133) menciona sua
consolidação como princípio de Direito Ambiental, com respectiva previsão
na Constituição Federal de 1988:
Ao falarmos em participação, temos em vista a
conduta de tomar parte em alguma coisa, agir em
conjunto. Dadas a importância e a necessidade
dessa ação conjunta, esse foi um dos objetivos
abraçados pela nossa Carta Magna, no tocante à
defesa do meio ambiente. A Constituição Federal
de 1988, em seu art. 225, caput, consagrou na
defesa do meio ambiente a atuação presente do
Estado e da sociedade civil na proteção e
preservação do meio ambiente, ao impor à
coletividade e ao Poder Público tais deveres.
Disso retira-se uma atuação conjunta entre
organizações ambientalistas, sindicatos,
indústrias, comércio, agricultura e tantos outros
organismos sociais comprometidos nessa defesa
e preservação. O princípio da participação
constitui ainda um dos elementos do Estado
Social de Direito (que também poderia ser
denominado Estado Ambiental de Direito),
porquanto todos os direitos sociais são a
estrutura essencial de uma saudável qualidade de
vida, que, como sabemos, é um dos pontos
cardeais da tutela ambiental.

O envolvimento popular concomitante com ações dirigidas pelo


Estado, também foram na Declaração do Rio de Janeiro, da Conferência das
Nações Unidas para o Meio Ambiente Sustentável – ECO 92, através do artigo
10:
A melhor maneira de tratar as questões
ambientais é assegurar a participação, no nível

230
apropriado, de todos os cidadãos interessados.
No nível nacional, cada indivíduo terá acesso
adequado às informações relativas ao meio
ambiente de que disponham as autoridades
públicas, inclusive informações acerca de
materiais e atividades perigosas em suas
comunidades, bem como a oportunidade de
participar dos processos decisórios. Os Estados
irão facilitar e estimular a conscientização e a
participação popular, colocando as informações
à disposição de todos. Será proporcionado o
acesso efetivo a mecanismos judiciais e
administrativos, inclusive no que se refere à
compensação e reparação de danos.

Segundo Leff (2001, p. 62-63), a gestão ambiental participativa


apresenta-se como uma convergência dos interesses em conflito e dos
objetivos comuns de diferentes classes sociais em torno do desenvolvimento
sustentável e apropriação da natureza, o que permite, assim, o fortalecimento
de projetos de gestão ambiental local e das comunidades de base, levando
consequentemente os governos federais, estaduais e municipais a instaurar
procedimentos para dirimir pacificamente conflitos de interesses de diversos
agentes econômicos e grupo de cidadãos na resolução de conflitos ambientais,
por meio de um novo contrato social entre o Estado e a sociedade civil.
A gestão ambiental participativa apresenta como base de referência
para as discussões e ações entre Estado e sociedade a questão
desenvolvimento sustentável, o qual é definido pela Comissão Mundial sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento como aquele que atende às necessidades
do presente sem comprometer a possibilidade das futuras gerações atenderem
a suas próprias necessidades, podendo também ser empregado com o
significado de melhorar a qualidade de vida humana dentro dos limites da
capacidade de suporte dos ecossistemas (MILARÉ, 2015, p. 66).
Neste sentido, o processo de desenvolvimento sustentável, com o
objetivo da manutenção de um ambiente saudável, que tem na sociedade um
grande contingente de atores e agentes ambientais, dependente da própria
comunidade para se desencadear e prosseguir (MILARÉ, 2015, p. 67).

231
A figura das comunidades sustentáveis, as quais para sua existência e
atuação, devem ter presentes algumas características, conforme elencadas por
Melo Neto e Froes (2002 apud MILARÉ, 2015):
a) sua população tem forte senso de comunidade,
solidariedade e iniciativa própria para resolução
de seus problemas; b) possui elevada capacidade
de mobilização; c)tem pleno conhecimento de
seus direitos; d) sua participação é intensa nos
espaços e fóruns representativos,
disponibilizados para o aperfeiçoamento das
políticas públicas (conselhos locais e regionais,
assembleias); e) garante a subsistência por meio
de iniciativas próprias; f) vivencia processos
participativos diversos e consistentes; g)
constitui-se num elemento ativo e determinante
do seu próprio desenvolvimento; h) busca
soluções simples e adaptadas aos recursos e
condições de vida disponíveis no ambiente; i)
seus valores locais são recuperados e
preservados, e os conteúdos desses valores vêm a
ser difundidos amplamente através da própria
linguagem comunitária; j) possui forte
organização comunitária e de autogestão; l) tem
uma rede social atuante, formada por grupos
sociais ativos; m) demonstra possuir elevada
vocação produtiva; n) é dotada de alto grau de
sensibilização para as questões culturais, socais,
econômicas e ambientais; o) demonstra elevada
capacidade de gestão, o que se reflete no número,
na natureza e no desempenho das organizações
sociais atuantes na região.

A apresentação de elementos e questões, unificando a temática da


participação popular dentro da proposta do desenvolvimento sustentável,
provoca o cidadão a agir em prol de um bem comum, gerindo de modo
favorável o meio ambiente que está inserido, são visivelmente construções que
materializam a proposta de isegoria, isonomia quando do trato de assuntos
relacionados meio ambiente.
Mas, qual seria a natureza jurídica desse bem comum?

232
3.2.2.1 A NATUREZA JURÍDICA DO MEIO AMBIENTE

As ações sobre algo desconhecido possuem enorme probabilidade de


não obterem o êxito inicial esperado, assim, partindo-se desta premissa,
procura-se estabelecer um elo entre a participação popular e o meio ambiente.
Esta relação incutida em práticas sem conhecimento infelizmente não
se apresenta como teoria, ou simplesmente dedução cientifica. Diariamente é
possível verificar pelos mais variados meios de comunicação notícias de
desastres ambientais de diversificadas modalidades, estando no meio deste
redemoinho destrutivo a sociedade em todos os seus níveis, nichos e
localidades.
Preceito básico para tratar do meio ambiente e questões pertinentes à
temática, é considerar quanto à inexistência de uma definição legal de meio
ambiente até o início da década de 1980, ocorrendo apenas quando da
publicação da Política Nacional do Meio Ambiente, conforme aponta Machado
(2015, p. 51):

Nota-se a ausência de definição legal e/ou


regular de meio ambiente até o advento da Lei de
Política Nacional do Meio Ambiente.
Conceituou-se meio ambiente como “o conjunto
de condições, leis, influências e interações de
ordem física, química e biológica, que permite,
abriga e rege a vida em todas as suas formas” (art.
3º, I). Destarte, o meio ambiente é considerado
como “um patrimônio público a ser
necessariamente assegurado e protegido, tendo
em vista o uso coletivo” (art. 2º, I). A definição
federal é ampla, pois vai atingir tudo aqui que
permite a vida, que a abriga e rege.

A partir de 1988, através das disposições do artigo 225 da Constituição


Federal, pela primeira vez, a questão ambiental recebe tratamento autônomo,
em capítulo específico. O texto constitucional trata o meio ambiente de forma
ampla e estabelece um regime jurídico pautado na utilização e emprego
consciente dos recursos naturais, respeito e cuidado aos demais seres vivos,

233
destacando desde logo algumas regiões de relevante importância ambiental e
principalmente tratando da difusividade ambiental, observando o direito a um
meio ambiente equilibrado, apto a propiciar uma vida saudável a atual e as
futuras gerações.
A forma como o meio ambiente foi tratado na constituição revela uma
novidade. Antes dela, a questão ambiental era apresentada de modo atrelado,
ou, em melhor análise, em segundo plano, a questões de territoriais e
patrimoniais54.

54 AsConstituições que precederam a de 1988 jamais se preocuparam com a


proteção ao meio ambiente de forma específica e global. Nelas, nem mesmo
uma vez foi empregada a expressão meio ambiente, dando a revelar total
inadvertência ou, até despreocupação com próprio espaço em que vivemos.
A Constituição do Império de 1824, não fez qualquer referência à matéria,
apenas cuidando da proibição de indústrias contrárias à saúde do cidadão
(artigo 179, n. XXIV). Sem embargo, a medida já traduzia certo avanço no
contexto da época. O Texto Republicano de 1891 atribuía competência
legislativa à União para legislar sobre as suas minas e terras (art. 34, n. 29).
A Constituição de 1934 dispensou proteção às belezas naturais, ao
patrimônio histórico, artístico e cultural (artigos 10, III, e 148); conferiu à
União competência em matéria de riquezas do subsolo, mineração, águas,
florestas, caça, pesca e sua exploração (artigo 5, XIX, j). A Carta de 1937
também se preocupou com a proteção dos monumentos históricos,
artísticos e naturais, bem como das paisagens e locais especialmente
dotados pela natureza (artigo 134); inclui entre as matérias de competência
da União em legislar sobre minas, águas, florestas, caça, pesca e sua
exploração (artigo 16, XIV); cuidou ainda competência legislativa sobre
subsolo, águas e florestas no art. 18, “a” e “e”, onde igualmente tratou da
proteção das plantas e rebanhos contra moléstias e agentes nocivos; A
Constituição de 1946, além de manter a defesa do patrimônio histórico,
cultural e paisagístico (artigo 175), conservou como competência da União
legislar sobre normas gerais da defesa da saúde, das riquezas do subsolo,
das águas, florestas, caça e pesca; A Constituição de 1967 institui na
necessidade de proteção do patrimônio histórico, cultural, paisagístico
(artigo 172, parágrafo único); disse ser atribuição da União legislar sobre
normas gerais de defesa da saúde; sobre jazidas, florestas, caça, pesca e
águas (artigo 8, XVII, h). A Carta de 1969, emenda outorgada pela Junta
Militar à Constituição de 1967, criou também da defesa do patrimônio
histórico, cultural e paisagístico (art. 180, parágrafo único). No tocante à
divisão de competência, manteve as disposições da Constituição emendada.
Em seu artigo 172, disse que “a lei regulará, mediante prévio levantamento
ecológico, o aproveitamento agrícola de terras sujeitas a intempéries e

234
Este grande lapso temporal norteando as políticas públicas ambientais
e amparando juridicamente ações prol meio ambiente, tornam o Direito
Ambiental comparado a outros ramos como uma dos ramos jurídicos que
ainda buscam certa autonomia e protagonismo, sendo que mesmo havendo
uma construção na atualidade teórica e constitucionalmente prevista, ainda
encontra-se por alguns classificada como um ramo do Direito Público, porém
também já entendida como um ramo multidisciplinar do Direito, onde muitos
de seus pontos de discussões se atrelam a questões como a áreas do Direito
Administrativo, Tributário e Comercial como exemplo.
Caracteriza-se ainda o meio ambiente pelo seu teor de desvinculação
do direito de propriedade, não possível de ser individualmente apropriado,
caracterizando seu aspecto difuso, espécie de patrimônio público de uso
comum do povo, conforme é destacado por Milaré (2015, p. 284-285):
Justamente porque se trata de bem de fruição
humana coletiva, há de ser protegido contra as
agressões que o atingem enquanto tal. Não sendo
passível de apropriação individual, por qualquer
pessoa física ou jurídica, seja de Direito público
ou privado [...] a titularidade pertinente ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, como
quer a Constituição, espraia-se de modo
indeterminado por toda a coletividade, refugindo
da órbita de indivíduos determinados.
Despontam aí os interesses difusos que
expressivamente se revelam em tema de meio
ambiente, porque a proteção desta não cabe a um
titular exclusivo ou individuado, mas se espraia
difusamente sobre toda coletividade e cada um
de seus membros.

Desta forma, verifica-se que não há admissibilidade de determinar-se


um titular do meio ambiente, tornando-se assim importante a conscientização

calamidades” e que o “mau uso da terra impedirá o proprietário de receber


incentivos do Governo.” (MILARÉ, 2015, p. 169-170).

235
que todos são partes de um bem comum, que necessita ser manejado de modo
sustentável, como um real direito fundamental de terceira geração.

3.2.2.2 MEIO AMBIENTE COMO DIREITO DIFUSO

Os direitos difusos no ordenamento jurídico pátrio são apresentados


em lei, conforme dispõe o artigo 81, parágrafo único, I da Lei n. 8.078/90, o
Código de Defesa de Consumidor:
Artigo 81. A defesa dos interesses e direitos dos
consumidores e das vítimas poderá ser exercida
em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida
quando se tratar de: I - interesses ou direitos
difusos, assim entendidos, para efeitos deste
código, os transindividuais, de natureza
indivisível, de que sejam titulares pessoas
indeterminadas e ligadas por circunstâncias de
fato.

A partir desta disposição legal, Fiorillo (2012, p. 56-58) menciona que


o direito difuso apresenta-se como um direito transindividual, por ultrapassar
os limites da esfera de direitos e obrigações de cunho individual; que possui
um objeto indivisível, que não se ser cindido, um objeto que pertence a todos
ao mesmo tempo, mas ninguém em especifico o possui; e de titulares
indeterminados e ligados por circunstâncias de fato, os quais ao se analisar a
questão do ar atmosférico poluído, não há como precisar os indivíduos ora
afetados, que neste contexto estão interligados por uma circunstância fática,
mesmo que ao inexistir uma relação jurídica, experimentam a mesma
condição por conta dessa circunstância fática.
No interior desta temática, Mazzili (2007, p. 51), aponta o rol de
interesses difusos e exemplifica direitos a serem tutelados:
Há interesses difusos: a) tão abrangentes que
chegam a coincidir com o interesse público
(como o do meio ambiente como um todo); b)
menos abrangentes que o interesse público, por

236
dizerem respeito a um grupo disperso, mas que
não chegam a confundir-se com o interesse geral
da coletividade (como o dos consumidores de um
produto); c) em conflito com o interesse da
coletividade como um todo (como os interesses
dos trabalhadores na indústria do tabaco); d) em
conflito com o interesse do Estado, enquanto
pessoa jurídica (como o interesse dos
contribuintes); e) atinentes a grupos que
mantém conflitos entre si (interesse
transindividuais reciprocamente conflitantes,
como os dos que desfrutam do conforto dos
aeroportos urbanos, ou da animação dos
chamados trio elétricos carnavalescos, em
oposição aos interesses dos que se sentem
prejudicados pela correspondente poluição
sonora).

Desta leitura destaca-se, voltando-se ao aspecto difuso do meio


ambiente, que independente da questão ambiental que envolva determinado
interesse difuso, em razão do seu alcance, da abrangência de seus efeitos, há
uma fusão do interesse público e do particular, a coletividade acaba por se
constituir “una”, não havendo como limitar ou excluir envolvidos e afetados.
O atual estado da arte do conceito de meio ambiente remete a questão
a uma nova dimensão da cidadania, a ambiental, mais abrangente, e não
circunscrita espacialmente a determinado território, ligada a determinado
povo oriundo da clássica conceituação de nação, tendo como objetivo comum
a proteção intercomunitária do bem difuso ambiental, fugindo dos elementos
da cidadania clássica (LEITE, 2013, p. 187-188).
É relevante a compreensão do ser humano numa orbita de
coletividade, trazendo por fim os elementos ora envolvidos a uma comunhão
indivisível, conforme aponta Moreira (2015, p. 2):
[...] não pertencem a uma pessoa, e nem mesmo
a um grupo definido de pessoas, ao contrário do
que se dá em figuras clássicas como a do
condomínio ou da pluralidade de credores numa
única obrigação. Em vez disso, o que se depara é
uma série indeterminada – e, ao menos do ponto
de vista prático, indeterminável – de

237
interessados, sem que se possa discernir, sequer
idealmente, onde acaba a quota de um e onde
começa a de outro. A comunhão é indivisível:
entre os destinos dos interessados, por força das
mais variadas circunstâncias, instaura-se uma
união tão firme, que a satisfação de um só implica
de modo necessário a satisfação de todos; e,
reciprocamente, a lesão de um só constitui, ipso
facto, lesão da inteira coletividade.

A atenção à questão coletiva de interesses difusos se torna fator


direcionado a requisitos de cunho processual, de interesse de agir em ações,
como no caso da proposição de ação civil pública. Entretanto, a nova
percepção do meio ambiente enquanto direito difuso levanta possibilidades
de consciência coletiva, participativa e transgeracional.

3.2.2.3 MEIO AMBIENTE E OS DIREITOS TRANS TEMPORAIS


(DIACRÔNICOS)

O tratamento do meio ambiente, em especial na sua aplicação jurídica,


conforme estabelecido na Constituição Federal de 1988, tem natureza trans
temporal, principalmente quando analisado a partir do ponto de vista do uso
sustentável dos recursos naturais, pois a todos deve ser garantido o direito a
um meio ambiente saudável e equilibrado, todos os integrantes das atuais e
das futuras gerações.
Desta conclusão de cunho jurídico, abre-se um leque de dúvidas,
podendo ser resumido a um breve questionamento: Como é possível garantir
um direito aos que ainda virão?
Até certo ponto muito fácil prover recursos e “aparar arestas” para uma
realidade contemporânea, fatos e situações realmente enfrentados, porém
quando ao tratar-se de questões futuras, relacionadas ao meio ambiente, qual
resposta teremos para obter êxito nas garantias desejadas as futuras gerações
perante uma sociedade de desenvolvimento aparentemente irrefreável e
globalizado?

238
Neste sentindo, em consonância a esta modalidade de preocupações e
questionamentos, José Joaquim Gomes Canotilho, através de análise de
gerações ambientais no Direito Constitucional Português, apresenta
considerações capazes de ponderar e nortear tais preocupações com o meio
ambiente em relação as futuras gerações.
São apresentados por Canotilho (2012, p. 28-33) três temas de
referência: a responsabilidade de longa duração, a aplicação do princípio da
solidariedade entre gerações e o princípio do risco ambiental proporcional.
O tema responsabilidade de longa duração ganhou importância após a
Conferência do Rio de Janeiro de 1992, ancorada ao princípio do
desenvolvimento sustentável, no qual implica-se desde logo, por parte dos
Estados, adotarem medidas de proteção ordenadas a fim de garantir a
sobrevivência da espécie humana e da existência merecedora das futuras
gerações (CANOTILHO, 2012, p. 28).
Aponta Canotilho (2012, p. 28-30) que referidas medidas de proteção,
bem como as de prevenção adequada, serão aquelas que em termos de
precaução sejam capazes de limitar e neutralizar a causa dos danos ao meio
ambiente, cuja irreversibilidade total ou parcial cause efeitos e danos
prejudiciais a vida humana e a todas as demais formas de vida, primando-se
pelo equilíbrio dos ecossistemas naturais ou transformados.
O segundo tema destaca a aplicação do princípio da solidariedade entre
gerações, princípio este expresso na Constituição Portuguesa, com o
significado básico de obrigar as gerações presentes a incluir como medida de
ação e ponderação o interesse das gerações futuras:
Artigo 66º-2: Para assegurar o direito ao meio
ambiente, no quadro de um desenvolvimento
sustentável, incumbe ao Estado, por meio de
organismos próprios e com o envolvimento e a
participação dos cidadãos: d) promover o
aproveitamento racional dos recursos naturais,
salvaguardando a sua capacidade de renovação e
a estabilidade ecológica, com respeito pelo

239
princípio da solidariedade entre gerações.

Canotilho (2012, p. 30-31) destaca que a problemática dos interesses


das gerações futuras são evidenciados a três campos problemáticos: a) o
campo das alterações irreversíveis dos ecossistemas terrestres em
consequência dos efeitos cumulativos das atividades humanas; b) o campo do
esgotamento dos recursos, relacionado ao não aproveitamento racional e da
indiferença à capacidade de renovação e estabilidade ecológica; c) o campo
dos riscos duradouros.
Por fim, apresenta-se o tema referente ao princípio do risco ambiental
proporcional, o qual entende-se pela aproximação da fixação de valores
limites do risco ambiental danoso, através de princípios jurídico-
constitucionais, com o objetivo de exigir proteção ao meio ambiente, conforme
o momento mais avançado da ciência e da técnica (CANOTILHO, p. 31-32).
Neste sentido, são elencados três princípios-constitucionais no âmbito
do direito constitucional português, primeiramente destacando-se o princípio
da proporcionalidade dos riscos:
[...] probabilidade da ocorrência de
acontecimentos ou resultados danosos é tanto
mais real quanto mais graves forem as espécies
de danos e os resultados danosos que estão em
jogo. Está fórmula, que não anda muito longe da
seguida pela jurisprudência alemã, põe em
evidência que o risco ao exigir particulares
deveres de precaução não pode ser determinado
independentemente do potencial danoso
(CANOTILHO, 2012, p. 32).

O segundo princípio se refere à proteção dinâmica do direito ao meio


ambiente, pelo qual segundo Canotilho (2012, p. 32), levando-se em
consideração a evolução e avanço dos conhecimentos da técnica de segurança,
em análise a partir do Direito Constitucional, só são aceitáveis os riscos de
agressão ao meio ambiente que não podiam ser previstos pelos critérios de
segurança probabilística mais atuais.

240
Quanto ao terceiro, compreende-se como o princípio da
obrigatoriedade de precaução, no qual, mesmo pela falta de certeza científica
absoluta, não pode ocorrer a desvinculação do Estado de seu dever de assumir
a responsabilidade da proteção ambiental e ecológica, reafirmando-se as
questões da necessidade quanto a padrões de precaução e prevenção de
agressões e danos ambientais (CANOTILHO, 2012, p. 32).
Constituindo-se parâmetros para efetividade de propostas para um
meio ambiente realmente sustentável e viável as gerações futuras, o enfoque
da questão segue para o rumo prático, da execução de ações garantidoras.
Nesta perspectiva, dificuldade que se apresenta remete ao fator
sincrônico de uso dos recursos naturais, em confrontação a perspectiva
diacrônica, na tentativa de um real equilíbrio.
Esta questão tratada de modo globalizado, apontando-se segundo a
análise de Maria Alexandra de Souza Aragão (2006), a relação de fatores
geográficos e econômicos quanto ao modo de uso dos recursos naturais.
Trata-se agora a menção de uso dos recursos naturais de maneira
abrangente, empregando quanto ao manejo, mesmo que consciente, bem
como a fruição descontrolada e danosa, levando-se em conta a máxima da
intervenção humana causadora de um inevitável prejuízo,
independentemente da magnitude, ao estado natural do meio ambiente.
Neste sentido, Aragão (2006, p. 266-267) apresenta
constatação/questionamento, quanto ao aspecto geográfico de exploração dos
recursos naturais relacionado entre os Estados do hemisfério sul e norte:
[...] o problema da repartição, no espaço, dos
direitos de acesso aos bens ecológicos levanta
questões interessantíssimas relativamente às
relações entre os Estados do hemisfério sul,
menos desenvolvidos em termos econômicos,
mas que são detentores de riquíssimos
patrimônios naturais que constituem, para si,
uma das poucas fontes de rendimento, e os
Estados industrializados e hiperdesenvolvidos
do hemisfério norte que, em termos históricos,
foram países colonizadores dos primeiros, que
saquearam o patrimônio natural dos

241
colonizados, em proveito exclusivo dos
colonizadores durante séculos e que atualmente,
possuem uma pegada ecológica muito superior à
própria área geográfica dos seus territórios. Que
legitimidade terão os segundos para arvorar os
bens ecológicos dos primeiros em patrimônio
comum da humanidade, para proclamar limites
aos direitos de acesso aos bens ecológicos
próprios, e para exigir a gestação do patrimônio
no interesse comum?

Este problema foi abordada quando da realização da Conferência do


Rio de Janeiro, consagrando por influência dos países em desenvolvimento, o
princípio da soberania nacional sobre os bens ecológicos, presente na
Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ARAGÃO,
2006, p. 267)55.
Em relação à distribuição temporal do acesso aos bens naturais,
Aragão destaca que a questão vem sendo equacionada por economistas como
uma escolha entre dá-los a um milhar de pessoas para usarem durante cem
milhões de anos ou dá-los a cem milhões de pessoas para usarem durante cem
anos, porém entende-se que se trata de uma abordagem equivocada:
Primeiro, quanto aos bens ecológicos
geometricamente renováveis (bens ecológicos
cuja capacidade de renovação é proporcional ao
stock existente) porque as abstenções de
consumo de hoje são compensadas por uma
maior reprodução e uma maior disponibilidade
do bem ecológico amanhã. Segundo, quanto aos
bens ecológicos aritmeticamente renováveis
(cuja renovação não depende do stock existente)
e também quanto aos bens ecológicos não
renováveis porque há soluções intermédias que
passaram por formas alternativas e não

55 Princípio 2: Os Estados, de acordo com a Carta das Nações Unidas e com os


princípios do direito internacional, têm o direito soberano de explorar seus
próprios recursos segundo suas próprias políticas de meio ambiente e de
desenvolvimento, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob sus
jurisdição ou seu controle não causem danos ao meio ambiente de outros
Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional.

242
dilapidatárias de fruição (2006, p. 267-268).

A partir desta constatação, baseada na perspectiva qualitativa e


quantitativa dos recursos naturais, torna-se necessário o trato da questão
ambiental, ainda que muito restrita a teoria, considerando-se a inclusão da
análise da figura do fideicomisso ecológico.
Analisando somente a palavra fideicomisso, está se referindo à
estipulação testamentária, promovido pelo testador, a um herdeiro ou
constituindo alguém como legatário, o qual figurará como o fiduciário, porém
verificada certa condição, deverá transmitir o legado a outra pessoa,
anteriormente indicada pelo testador, referida herança ou legado
anteriormente beneficiado.
Fazendo-se o emprego desta palavra em torno da questão ambiental e
garantias de direitos as gerações futuras, surge a referida figura do
fideicomisso ecológico, assim conceituada por Monteiro (2014, p. 11):
A preocupação com as gerações futuras, portanto, requer
obrigatoriamente uma forte preservação do ambiente, no sentido de se
conservar não só a qualidade do ar, da água, dos ciclos naturais etc., mas bem
como de se conservar a diversidade de ecossistemas e de seres vivos, mesmo
aqueles que, no momento, não possuem relevância direta ao ser humano.
Todo o arcabouço natural e cultural que existe hoje no planeta é, em suma,
uma herança que devemos passar (em igual ou melhor situação) para as
gerações futuras e assim sucessivamente. Esta é a ideia do fideicomisso
ecológico, já presente há muito tempo em comunidades tradicionais, a
exemplo do provérbio africano que afirma que “nós não herdamos a Terra dos
nossos pais; a tomamos emprestada dos nossos filhos”.
Para que haja uma viabilidade desta proposta, seria necessário
considerar a figura dos bens dentro da estipulação fideicomissária, de modo
diverso a tratar pelo direito civil, observando-se a característica biológica do
bem.

243
Segundo Aragão (2006, p. 299-300), se faria necessário dividir o bem
em três espécies de cunho jus-ecológico, de modo a abranger: a) os bens
ecológicos bióticos não exauríveis (exemplo: animais em situação de
conservação favorável); b) os bens ecológicos abióticos não exauríveis (bens
suficientemente abundantes em termos absolutos ou relativos, como a sílica,
o cálcio e água salgada) e; c) os bens ecológicos bióticos e abióticos exauríveis
(exemplo: espécie animal em situação de extinção ou um determinado recurso
mineral à beira do esgotamento).
Esta disposição de questões ilustra o grande desafio, através de uma
tentativa de propor uma obrigação intergeracional, de concretizar uma
conscientização indireta para uso dos bens ecológicos, de modo a garantir tais
bens a um terceiro elemento de uma relação jurídica, a qual aqui se identifica
pelas gerações futuras.
Por fim, vale destacar considerações apresentadas por François Ost
(1995, p. 338), ao referir-se a um modelo de transmissão de um patrimônio
comum, no tocante aqui questão ambiental:
Conceber a responsabilidade em relação às gerações futuras sob a
forma de transmissão de um patrimônio é, fundamentalmente, ligar-se à idéia
kantiana de humanidade, reintroduzindo ao mesmo tempo, na apresentação
do mecanismo, uma certa dose de simetria e de equilíbrio próprio da justiça
comutativa. Os conceitos principais sobre os quais se articula o nosso modelo
são os de responsabilidade, de gerações futuras, de patrimônio e de
humanidade.
O autor também faz menção das vantagens de haver um dever de
transmissão de um patrimônio:
Pensar a responsabilidade ecológica, em termo
de dever de transmissão de um patrimônio,
apresenta assim inúmeras vantagens. Para além
do fato, de que uma tal abordagem assegura uma
articulação bem-vinda como um estatuto jurídico
do meio, cada vez mais frequentemente
formulado em termos de patrimônio comum, ela
permite igualmente fundar a responsabilidade
em relação às futuras gerações precedentes

244
(OST, 1995, p. 339).

Observa-se assim que as referidas gerações, que por obviedade


temporal não se fazem presentes, considerando a proposta do fideicomisso
ecológico, nos relevam a necessidade da garantia de um direito trans temporal
(diacrônico), o valorando com um patrimônio comum a ser transmitido,
entretanto para salvaguarda deste direito/patrimônio comum em relação ao
meio ambiente, levantam-se novos questionamentos de como oportunizar
metaforicamente a este meio ambiente a se expressar, defender seus
interesses e permanecer realmente acessível e equilibrado as próximas
gerações.

3.2.3. COMO COMPREENDER AQUELES QUE NÃO PODEM FALAR

A chave de partida para tratar a questão de como compreender aqueles


que não podem falar pode ser sintetizada por dois pontos base: a participação
popular e a conscientização ambiental.
Num aspecto de personificação dos anseios de uma próxima geração e
preocupação com a realidade ambiental enfrentada, pôr-se como um mero
usufrutuário de um direito sincrônico, apenas acaba por despertar um
sentimento antropocêntrico, no qual ao se olhar as questões ambientais,
unicamente exala-se expressões de coisificação de um meio ambiente,
colocadas a dispor do ser humano para um uso descontrolado e com
perspectiva de sua infinidade.
O homem como qualquer outra espécie, sempre se relacionou com os
elementos que compõe a biosfera, onde num primeiro estágio, procurou se
adaptar às condições por ela impostas, e posteriormente a adaptando às suas
necessidades (PEREIRA; WINCKLER, 2009, p. 19).
Neste sentido, não erradicando as perspectivas de cunho jurídico, vale
para compreender o papel deste, visando que este seja participativo e

245
consciente em questões ambientais, analisar as reflexões de Edgar Morin e
Anne Brigitte Kern.
Os autores tratam a hipossuficiência do meio ambiente através da
variável Terra-Pátria, conceito este com o intuito de referir-se a Terra
enquanto pátria de toda a humanidade, residente nesta perspectiva dois
aspectos, o primeiro, entendido como uma má notícia, a que a humanidade
está umbilicalmente ligada à Terra, pequeno e periférico planeta, dentro de
uma periférica e pequena galáxia, encontrando-se este planeta em perigo em
razão da ação predatória de seus cidadãos. O segundo aspecto trata-se de uma
boa nova, é que este mesmo pequeno e periférico planeta é a moradia do
homem, cabendo a este zelar pela sua estabilidade, sob pena de comprometer
o futuro da humanidade na Terra (PEREIRA, 2013, p. 31-32).
Inegavelmente vive-se uma crise ambiental e civilizacional, sendo
pelos autores tratados esta questão a partir da era planetária, a qual tem seu
início a partir do final do século XV da era cristã:
No final do século XV europeu, a China dos Ming
e a Índia mongol são as mais importantes
civilizações do Globo. O islã, que continua sua
expansão na Ásia e na África, é a mais ampla
religião da Terra. O império otomano, que se
expandiu da Ásia para a Europa oriental, após
tomar Bizâncio e ameaçar Viena, tornou-se a
maior potência da Europa. O império inca e o
império asteca reinam nas Américas, e tanto
Tenochtitlán como Cuzco ultrapassam em
população, monumentos e esplendores Madri,
Lisboa, Paris, Londres, capitais das jovens e
pequenas nações do Oeste europeu. No entanto,
a partir de 1492, são essas jovens e pequenas
nações que irão se lançar à conquista do Globo e,
através da aventura, da guerra, da morte suscitar
a era planetária. Depois de Cristóvão Colombo,
Américo Vespúcio reconhece o continente que
terá seu nome. Quase ao mesmo tempo (1498),
Vasco da Gama descobre o caminho oriental das
indicas contornando a África. Em 1521 e em 1522,
Cortês e Pizarro descobrem as formidáveis
civilizações pré-colombianas e as destroem quase
em seguida (o império azteca em 1522, o império

246
inca em 1533). Na mesma época, Copérnico
concebe o sistema que faz girar os planetas,
inclusive a Terra, em volta deles mesmos e em
volta do Sol. (MORIN; KERN, 2003, p. 21-22).

Tais pontuações históricas são entendidas por Morin e Kern (2003, p.


22) como os tempos modernos, que deveriam se chamar a era planetária, pois
trata-se de um momento que começa com a descoberta de que a Terra não é
senão um planeta e com a entrada em comunicação das diversas partes desse
planeta.
A confluência dos rumos da humanidade voltada para a exploração e
expansão territorial demonstra que o homem de fato quebrou as barreiras
geografias e de mistério do planeta Terra, apresentando em certo ponto de
vista caráter evolutivo, entretanto, na contramão de qualquer outra
ponderação qualitativa aos rumos da história, inicia-se o fenômeno de
enfraquecimento dos laços homem e natureza, alterando-se ao passar dos
séculos a identidade humana em relação ao planeta.
Apontam Morin e Kern (2003, p. 64-71), que durante o século XX,
tornam-se problemas reais à economia, geografia, desenvolvimento e
ecologia. Estes problemas são classificados em dois grupos: os de primeira e
os de segunda evidência.
Os de primeira evidência estão relacionados a uma crise de
desenvolvimento e o desregramento econômico e demográfico mundial,
envolvendo questões de desordem nas cotações de matérias primas, o caráter
artificial das regulações monetárias e dívida dos países subdesenvolvidos.
Aponta-se a crise ecológica evidenciada pelas catástrofes e contaminação dos
recursos naturais.
Os problemas de segunda evidência, guardam relação ao duplo
processo antagônico e ligação, da solidarização e da balcanização do planeta,
vinculado a crise universal do futuro, a tragédia do desenvolvimento, o mal-
estar da civilização e desenvolvimento descontrolado e cego da tecnociência,

247
consubstanciando uma era de guerras e consumismo global (MORIN; KERN,
p. 71-92).
Diante destas considerações, a conscientização do homem quanto a sua
origem e necessidade de assumir o seu papel em favor do planeta, torna-se
condição basilar para a expectativa de Terra saudável e prospera as futuras
gerações:
A tomada de consciência de nossas raízes terrestres e de nosso destino
planetário é uma condição necessária para realizar a humanidade e civilizar a
Terra. Neste sentido, o re-enraizamento terrestre é em si mesmo uma
finalidade. Tudo está ligado: a elaboração de nossas finalidades terrestres
necessita o conhecimento e o reconhecimento de nosso dasein cósmico, de
nossa identidade terrena, de nossa condição antropológica, da idade de ferro
planetária. Cada um de nós tem sua genealogia e sua carteira de identidade
terrestres. Cada um de nós vem da Terra, é da terra, está na terra. Pertencemos
à Terra que nos pertence. (MORIN; KERN, p. 99-175).
Percebe-se, dessa forma, a gravidade dos rumos que a degradação
ambiental, em todas as formas e dimensões, vem ocorrendo em desfavor do
planeta, inviabilizando perspectivas de um futuro sustentável.
Resta ao homem, ser vivo umbilicalmente ligado à Terra,
conscientizar-se e propor-se a ser a voz daqueles que não podem falar, o
planeta, o meio ambiente e as futuras gerações, buscando realinhar sua origem
e ligação planetária, o que se torna possível por ações, atitudes, participação
como elo para resguardar direitos e garantias fundamentais para uma vida
saudável e sustentável.

3.2.3.1 AÇÃO POLÍTICA E MEIO AMBIENTE

A importância da conscientização ambiental visando as ações


favoráveis ao meio ambiente não poderão restar somente no campo teórico,
como anteriormente já referenciando. Mesmo que tais ações aflorem
realmente do povo, sem vinculações institucionais ou interesses pessoais,

248
estas não terão real efetividade se distanciadas das quando já existentes ações
e/ou diretrizes políticas/administrativas pelas cidades no país, devendo assim
não deslegitimar a participação pública.
Ressalta-se que não há norma expressa na Constituição Federal de
1998 ao tratar-se do princípio da participação pública relacionado ao tema do
meio ambiente, mas não significa que a participação pública ambiental não
esteja prevista e garantida na constituição (MIRRA, 2010, p. 87).
Apresentam-se como uma das constatações da presença do princípio
da participação da Constituição Federal, quando da leitura do caput do art.
225, destacando-se que é imposto ao Poder Público e à coletividade o dever de
proteger e defender o meio ambiente em favor das presentes e futuras
gerações.
Desta constatação é oportunizado que haja uma atuação conjunta entre
organizações ambientalistas, sindicatos, indústrias, comércio, agricultura e
outras organismos sociais comprometidos na defesa e preservação do meio
ambiente (FIORILLO, 2012, p. 132).
É igualmente apontado que referido princípio está presente na
Constituição ao tratar da proteção ao meio ambiente cultural (patrimônio
cultural) e dos mecanismos para a participação direta e semidireta em defesa
do meio ambiente, conforme destaca Mirra (2010, p. 87):
[...] no tocante à proteção do patrimônio cultural,
a Constituição de 1988 estabeleceu a
incumbência do Poder Público de promovê-la,
“com a colaboração da comunidade” (art. 216, §
1º). Ademais, previu o texto constitucional a
participação direta e semidireta na defesa do
meio ambiente, pela via da ação popular (art. 5º,
LXXIII) e da ação civil pública (art. 129, III, e §
1º), mediante a atribuição de legitimação ativa
para a causa, no primeiro caso, aos cidadãos, e,
no segundo, ao Ministério Público e a terceiros
discriminados na lei. Trata-se, sem dúvida, de
normas de grande importância, das quais se pode
extrair a admissão da participação pública

249
ambiental na nossa Carta Magna.

Vale destacar que esta participação pública ambiental, considerando a


difusividade de interesses e direitos, também engloba o campo das
organizações religiosas, como ocorreu no país no ano de 2016, através da
Campanha da Fraternidade promovida pela Confederação Nacional dos
Bispos do Brasil, trabalhando com o tema “Casa Comum, Nossa
Responsabilidade”, e apresentado como objetivo geral “assegurar o direito ao
saneamento básico para todas as pessoas e empenharmo-nos, à luz da fé, por
políticas públicas e atitudes responsáveis que garantam a integridade e o
futuro de nossa Casa Comum”.
Como objetivos específicos, explicita-se o princípio da participação ao
referir-se quanto a necessidade da conscientização, fiscalização, apoio e
incentivo de ações integradas em prol do meio do meio ambiente:
Objetivos específicos: 1. Unir igrejas, diferentes
expressões religiosas e pessoas de boa vontade na
promoção da justiça e do direito ao saneamento
básico; 2. Estimular o conhecimento da realidade
local em relação aos serviços de saneamento
básico; 3. O consumo responsável dos dons da
natureza, principalmente da água; 4. Apoiar e
incentivar os municípios para que elaborem e
executem o seu Plano de Saneamento Básico; 5.
Acompanhar a elaboração e a execução dos
Planos Municipais de Saneamento Básico; 6.
Desenvolver a consciência de que políticas
públicas na área de saneamento básico apenas
tornar-se-ão realidade pelo trabalho e esforço em
conjunto; 7. Denunciar a privatização dos
serviços de saneamento básico, pois eles devem
ser política pública como obrigação do Estado; 8.
Desenvolver a compreensão da relação entre
ecumenismo, fidelidade à proposta cristã e
envolvimento com as necessidades humanas
básicas (CNBB, 2016).

Considerando os objetivos, estes plenamente demonstram a plena


viabilidade de uma vinculação da participação de diversas frentes de modo

250
harmonioso com o poder público em prol de um bem comum, criando este
poder público canais de comunicação e cooperação com diversões setores da
sociedade.
Nesta perspectiva, para explicar este panorama participativo pelo
poder público, emprega-se o uso do termo “governação”, conforme explica
Milaré (2015, p. 634):
Fala-se modernamente, em “governação”.
Poderia isso ser simples modismo se não
trouxesse um elemento efetivamente novo na
condução de políticas e gestão ambientais. Esse
elemento inovador é a articulação supra
institucional das ações e intervenções
ambientais.

Assim, são indicadas algumas metas comuns e indispensáveis para a


governança ambiental em qualquer dos âmbitos da organização política e
administrativa no país: 1. Definir um programa sensato, mas rigoroso,
destinado à reforma da governança ambiental global; 2. Abrir um canal
privado de diálogo entre homens de governo, líderes de organizações não
governamentais (ONG’s), lideranças acadêmicas e empresariais, de modo a
fortalecer as instituições globais ao meio ambiente; 3. Criar um universo de
pessoas permanentemente envolvidas num programa de reformas; e 4.
trabalhar para implementação do programa de reformas (MILARÉ, 2015, p.
634).
Ressalta-se que todas estas disposições só poderão ser realmente
efetivadas se o poder público e a coletividade defender e preservar o meio
ambiente desejado pela Constituição, meio ambiente este que se trata daquele
ecologicamente equilibrado, descumprindo assim a Constituição, tanto o
poder público como a coletividade, quando permitem ou possibilitam o
desequilíbrio do meio ambiente (MACHADO, 2015, p. 154).
Compreende-se, portanto, que não há viabilidade de promover uma
política preservacionista ambiental de modo solitário. De pouco ou nada
bastará uma magnitude de propostas, ideias e boas intenções sem que haja

251
possibilidade de uma participação integralizada entre povo, instituições de
diversos gêneros e Poder Público, pois, se faz necessário encampar através da
conscientização ambiental que, por se tratar de uma questão de interesse
difuso, a dimensão de igualdade participativa deverá ser elevada ao posto mais
alto quando da realização de discussões e ações pró meio ambiente.

3.2.3.2 A DEFESA DOS VULNERÁVEIS, MEIO AMBIENTE E


DELIBERAÇÃO

Ao ponto que se percebe a fragilidade da sistemática em que o meio


ambiente é gerido, passa-se a propor no tempo comum um novo trato as
questões preservacionistas, difundindo-se obrigações e direitos aos seres
humanos, o elemento mais ativo, porém mais degradante desta simbiose.
Ponderando a já mencionada perspectiva metafórica, na qual
considerado o caráter da vida que há no meio ambiente, bem como o direito
das futuras gerações fideicomissárias deste primeiro, sendo que ambos não
conseguem se expressar, falar e serem ouvidos, a defesa destes interesses
apresenta grau de vulnerabilidade quando colocados em deliberação.
Importante mencionar que este cenário aponta na perspectiva de
desenvolvimento e progresso, levando em consideração ao meio ambiente e à
proteção ao gênero humano, garantias e direitos transindividuais,
compreendidos assim como direitos de terceira geração, de modo abrangente,
não restrito somente à questão ambiental aqui tratada, demonstrando como
um direito em evolução, acrescentando efetividade aos direitos de primeira e
segunda geração:
[...] um novo pólo jurídico de alforria do homem
se acrescenta historicamente aos da liberdade e
da igualdade. Dotados de altíssimo teor de
humanismo e universalidade, os direitos da
terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do
século XX enquanto direitos que não se destinam
especificamente a proteção dos interesses de um
indivíduo, de um grupo ou de um determinado

252
Estado. Tem primeiro por destinatário o gênero
humano mesmo, num momento expressivo de
sua afirmação como valor supremo em termos de
existencialidade concreta. Os publicistas e
juristas já os enumeram com familiaridade,
assinalando-lhe o caráter fascinante de
coroamento de uma evolução de trezentos anos
na esteira da concretização dos direitos
fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre
temas referentes ao desenvolvimento, a paz, ao
meio ambiente, a comunicação e ao patrimônio
comum da humanidade (BONAVIDADES, 2004,
p. 569).

Referidos direitos de terceira geração também são chamados como


direitos de fraternidade ou solidariedade, dotados de enorme carga de
humanismo e universalidade, não destinados especificamente à proteção dos
interesses de determinado individuo ou estado, os quais emergiam em razão
de temas relacionados ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à comunicação
e ao patrimônio comum da humanidade, sendo já manifestado entendimento
neste sentido pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do MS
22.164 (THOMÉ, 2015, p.125):
[...] O direito à integridade do meio ambiente -
típico direito de terceira geração - constitui
prerrogativa jurídica de titularidade coletiva,
refletindo, dentro do processo de afirmação dos
direitos humanos, a expressão significativa de
um poder atribuído, não ao indivíduo
identificado em sua singularidade, mas, num
sentido verdadeiramente mais abrangente, à
própria coletividade social. Enquanto os direitos
de primeira geração (direitos civis e políticos) -
que compreendem as liberdades clássicas,
negativas ou formais - realçam o princípio da
liberdade e os direitos de segunda geração
(direitos econômicos, sociais e culturais) - que se
identificam com as liberdades positivas, reais ou
concretas - acentuam o princípio da igualdade, os
direitos de terceira geração, que materializam
poderes de titularidade coletiva atribuídos
genericamente a todas as formações sociais,
consagram o princípio da solidariedade e

253
constituem um momento importante no
processo de desenvolvimento, expansão e
reconhecimento dos direitos humanos,
caracterizados, enquanto valores fundamentais
indisponíveis, pela nota de uma essencial
inexauribilidade. (MS 22. 1 64, Relator Ministro
Celso de Mello). No mesmo sentido: RE 1 34.297,
Relator Ministro Celso de Mello.

O autor também faz menção a respeito da ADI 3540/DF


[...] Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado. Trata-se de um
típico direito de terceira geração (ou de
novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero
humano (RTJ 1 58/205-206) . Incumbe, ao
Estado e à própria coletividade, a especial
obrigação de defender e preservar, em benefício
das presentes e futuras gerações, esse direito de
titularidade coletiva e de caráter transindividual.
(ADI 3540 MC/DF, Relator Ministro Celso de
Mello)

Reafirmando-se assim o direito da atual e das futuras gerações a um


meio ambiente ecologicamente equilibrado, torna-se crucial a percepção da
fragilidade do meio ambiente, da vulnerabilidade da condição humana
quando elemento inserido em um meio ambiente degradado, fragilizado e
enfraquecido, encontrando-se consequentemente também em condição de
vulnerabilidade.
Este viés de vulnerabilidade, focando-se ao meio ambiente, inicia-se
primeiramente como a contextualização no decorrer do século passado, num
momento da história de consolidação dos direitos sociais, os quais ao presente
tema se expressaram através dos movimentos ecológicos a partir da década de
1970, onde se busca como reivindicação inicial, o direito de viver num
ambiente não poluído, entendido assim como um direito de terceira geração
(BOBBIO, 1992, p. 6).
Ao final da década de 1980, intensificam discussões sobre os efeitos
ocasionados ao clima do globo, à camada de ozônio e à diversidade biológica

254
em razão da intensificação dos processos produtivos, bem como pelo
assombro de uma catástrofe nuclear, fazendo a questão dos problemas
ambientais alçarem à categoria de mundial. Desta percepção, passou as
preocupações a girarem em torno das consequências da ocupação dos solos,
produção de bens e serviços e consumo em alta escala sobre os recursos
naturais e em relação à atmosfera (PEREIRA; WINCKLER, 2009, p. 24).
Contextualizando estas preocupações a contemporaneidade, observa-
se que muitos pontos seguem como problemas que se arrastam pelas décadas,
principalmente em virtude do caráter globalizado das relações sociais e
econômicas, onde por um lado, até certo ponto de cunho positivo, facilitou-se
a troca de conhecimento e informações quanto aos problemas ambientais em
todo globo, todavia, ao referir-se quanto às relações econômicas, constata-se
o ritmo acelerado de desenvolvimento e exploração de recursos naturais em
favor da produção em larga escala de inúmeros produtos para saciar os desejos
de consumo desenfreado à nível mundial da população.
Entretanto, observa-se que o direito a um meio ambiente estável, o
qual em poucas décadas, foi alçado do “nada jurídico”, à condição de “bem”
indispensável a vida humana saudável, carecedor de proteção em virtude da
ação humana, terá entendida sua condição de hipossuficiência não
determinada por fatores endógenos, mas pelo conjunto de valores que rege a
percepção de determinada comunidade (PEREIRA, 2013, p. 218).
Ilustra-se que a figura central causadora dos danos ambientais, é
também a que mais necessita para sobrevivência, da manutenção equilibrada
e saudável do meio ambiente, restando assim ao ser humano, construir dentro
de sua capacidade mental evolutiva, a percepção de preservar para ter, de ter
para viver e de viver para deixar as futuras gerações um legado que dentro da
união de todo e quaisquer outros direitos, pode resumir-se ao direito à vida.
Neste enfoque, somente irá restar o caminho do ser humano
conscientizar-se e agir de modo favorável ao meio ambiente, unindo as
pessoas, as trazendo para participar em prol de um bem comum e difuso.

255
Determina-se através desta leitura, a vertente dos direitos de quarta
geração, proposta por Paulo Bonavides (2008, p. 358):
São direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à
informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da
sociedade aberta do futuro, em sua dimensão máxima de universalidade, para
a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de
convivência.
Torna-se assim amplamente cabível e necessário a já referida proposta
de uma democracia participativa, onde se abrem portas ao direito de escolha,
ao acesso à informação, o respeito das diferenças e a valoração da opinião do
cidadão.
Aponta Bonavides (2008, p. 358) que a democracia proposta pelos
direitos de quarta geração, há de ser uma democracia direta, isenta das já
existentes contaminações da mídia manipuladora, o que ocorrerá quando a
informação e o pluralismo vingarem por igual como direitos paralelos e
coadjutores da democracia.
Desta feita, quando alicerçado a busca pela promoção de uma meio
ambiente sustentável e saudável em um cenário democrático, percebe-se que
ações favoráveis ao bem comum serão somente obtidas quando realmente
cunhadas de reais e justas intenções, apoderando o cidadão para participar e
viabilizando neste contexto democrático o meio ambiente se expressar.

3.2.3.3 MECANISMOS QUE PERMITEM AO MEIO AMBIENTE SE


EXPRESSAR

Anteriormente, foram apresentados, de modo apenas indicativos,


instrumentos legais e políticos que possibilitam a participação popular em
questões, que em tese, numa visão antiquada em relação ao atual
ordenamento jurídico brasileiro, seriam de interesse inicial apenas da
Administração Pública.

256
Pondera-se aqui, quanto à utilização dos instrumentos, que de fato
mostram-se aptos a promover uma democrática gestão e participação quanto
ao tema do meio ambiente, de modo a permitir este se expressar, baseando-se
no princípio da participação comunitária, que possui como referencial teórico
o já citado princípio de número 10 da Declaração do Rio 92 e inserido no art.
225 da Constituição Federal.
A aplicação deste princípio se torna especialmente útil em situações em
que a Administração Pública se apresenta ineficaz para atender as demandas
necessárias para que se promova a correta e melhor gestão do meio ambiente:
Conflitos de competência dos órgãos ambientais, escassez de recursos
orçamentários, carência de informações e de planejamento são exemplos,
dentre outras deficiências administrativas, que acarretam, não raras vezes, a
inaplicabilidade dos preceitos normativos em matéria ambiental. Quando a
máquina estatal não se apresenta habilitada a atender satisfatoriamente aos
anseios da sociedade, incumbe à própria sociedade atuar diretamente. Os
cidadãos têm o direito (e o dever) de participar da tomada de decisões que
possam vir a afetar o equilíbrio ambiental (THOMÉ, 2015, p.81).
Dentro deste cunho participativo democrático à questão ambiental,
apresentam-se as audiências públicas como o melhor mecanismo para gerir e
promover o debate democrático as questões vinculadas ao tema,
desvinculando-se do emprego direto de mecanismos administrativos e
judiciais de origem, mas possibilitando que as iniciativas e propostas tenham
origem popular.
Referidas audiências estiveram presentes nos mais diversos períodos
da história:
A prática da audiência pública inscreve-se num
quadro desejável de humanismo cívico. A velha
polis de Platão e Aristóteles já comportava
discussões livre das pessoas habilitadas a isso,
nos termos e contornos da democracia grega.
Cícero, em seu Da República, retoma o espírito e
as práticas daquela participação. A vida pública
de Roma consagrava as discussões nos comitia
como prévia para o senatus consultus. E

257
Maquiavel, conhecido por peculiares
posicionamentos políticos em O Príncipe,
preconiza um exercício de cidadania nos mesmos
moldes (MILARÉ, 2015, p. 1478).

Na atualidade, a respeito da questão ambiental, vale mencionar da


modalidade das audiências púbicas ambientais, estas previstas nas
Resoluções Conama s 01/1986 e 09/1987, conforme destaca Mirra (2010, p.
145):
As audiências públicas, em matéria ambiental,
previstas nas Resoluções Conama nºs 01/1986 e
09/1987, como visto em passagens anteriores,
via de regra, estão relacionadas à elaboração,
discussão e aprovação do Estudo de Impacto
Ambiental – EIA e, consequentemente,
encontram-se inseridas no processo de
licenciamento ambiental. Isso não impede,
porém, a realização de tais reuniões públicas
pelos órgãos administrativos ambientais em
situações diversas, fora do contexto do
licenciamento ambiental ou mesmo da discussão
dos EIAs.

Observa-se que, mesmo pela inexistência de previsão para a realização


de audiências públicas para situações não enquadradas ao estudo de impacto
ambiental, não há como desconsiderar as audiências públicas como
mecanismos de informação e consulta pública a respeito de obras, atividades
e projetos sujeitos a gerar repercussões em relação a qualidade ambiental
(MIRRA, 2010, p. 146).
A constância de preocupações como o meio ambiente não podem ser
restritas a determinados momentos, situações em que discutir o meio
ambiente é pré-requisito para intervenção na sua condição in natura.
Fez-se menção às audiências públicas ambientais para inserir a
questão da participação democrática na governança da política de
desenvolvimento urbano das cidades, a ser tratada através do estudo do
ConCidade de Chapecó, no próximo capítulo.

258
CAPÍTULO IV

4 - ISONOMIA E ISEGORIA AMBIENTAIS NAS


DINÂMICAS DECISÓRIAS DO CONCIDADE SOBRE O
MEIO AMBIENTE

É indiscutível a existência da relação de interdependência do homem


em relação ao meio ambiente. Estratégias e políticas de desenvolvimento
urbano, muitas vezes, pautadas em critérios puramente econômicos, acabam
erodindo previsões legislativas tomadas em prol da preservação do meio
ambiente.
Neste aspecto, o legislador a fim de realmente promover a democracia
participativa e elevar o cidadão a agente ativo da política urbana, o Estatuto
das Cidades, no artigo 4356 , previu instrumentos a fim de garantir a gestão
democrática da cidade, por meio de órgãos colegiados com participação direta
da população em assuntos de interesse urbano, agindo ativamente por meio
de debates, audiências, consultas públicas, conferências públicas, bem como
iniciativas de projetos de lei, planos, programas e projetos de desenvolvimento
urbano, nos níveis nacional, estadual e municipal.

56 Artigo 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser


utilizados, entre outros, os seguintes instrumentos: I – órgãos colegiados de
política urbana, nos níveis nacional, estadual e municipal; II – debates,
audiências e consultas públicas; III – conferências sobre assuntos de
interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e municipal; IV – iniciativa
popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de
desenvolvimento urbano.

259
Tais órgãos são denominados como Conselhos das Cidades –
ConCidades, os quais, em nível nacional, são regidos pelo Decreto nº. 5.790,
de 25 de maio de 2006.
O artigo primeiro do decreto define o Conselho com um órgão
colegiado de natureza deliberativa e consultiva, sendo parte integrante do
Ministério das Cidades, tendo por finalidade propor diretrizes e estudos para
a formulação, implementação, avaliação e execução da Política Nacional de
Desenvolvimento Urbano.
Delimitando geograficamente a pesquisa ao nível municipal, propõe-
se no presente capítulo a verificar como são tratadas as questões do meio
ambiente quando postas em debate em relação ao desenvolvimento urbano de
Chapecó, como se dão as dinâmicas decisórias e de que forma são
consideradas as concepções da isonomia e isegoria ambientais nos debates
travados no ConCidade de Chapecó.

4.1. O PAPEL DO CONCIDADE NA POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO


TERRITORIAL DO MUNICÍPIO DE CHAPECÓ

A partir de 2001, a base para discussões, apontamentos e estudos no


tocante ao desenvolvimento urbano/territorial no país, será, no âmbito
jurídico, direcionada pelo Estatuto da Cidade.
O artigo primeiro, parágrafo único, da Lei 10257/2001 informa que se
trata de lei que “estabelece normas de ordem pública e interesse local que
regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança
e do bem-estar dos cidadãos, bem como de equilíbrio ambiental”.
O Estatuto da Cidade foi discutido por aproximadamente 10 anos e veio
ao mundo com a missão de regulamentar a execução da política urbana no

260
país, conforme preceitua os artigos 18257 e 18358 da Constituição Federal, que,
desde 1988, já faziam referência à obrigatoriedade da existência de planos
diretores para os municípios com mais de vinte mil habitantes, uma vez que é
o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
Juridicamente, os planos diretores são conceituados como:
[...] um conjunto de normas obrigatórias,
elaborada por lei municipal específica,
integrando o processo de planejamento
municipal, que regula as atividades e os
empreendimentos do próprio Poder Público
Municipal e das pessoas físicas e jurídicas, de
Direito Privado ou Público, a serem levados a
efeito no território municipal (MACHADO, 2015,

57 Artigo 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder


Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por
objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
garantir o bem-estar de seus habitantes. § 1º O plano diretor, aprovado
pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil
habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de
expansão urbana. § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social
quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade
expressas no plano diretor. § 3º As desapropriações de imóveis urbanos
serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro. § 4º É facultado ao
Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no
plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo
urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu
adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento
ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e
territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com
pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente
aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em
parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização
e os juros legais.
58 Artigo 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e

cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem


oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o
domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem
ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. § 2º Esse
direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 3º Os
imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

261
p. 449).

Neste sentido, considerando o vital papel dos planos diretores dentro


das propostas e inovações trazidas pelo Estatuto da Cidade, não há como
propor-se a discussão de temas vinculados ao planejamento, desenvolvimento
e participação democrática das cidades, por meio dos conselhos municipais,
sem que seus participantes e demais membros da população, tenham de fato
conhecimento e entendam a importância normativa e o valor social de um
plano diretor, quando a este instrumento, são apresentados pontos,
contrapontos, problemas e buscas de soluções para uma cidade de fato
equilibrada, apta a promover seu desenvolvimento equilibrando, o bem estar
de seus cidadãos com o respeito e preservação do meio ambiente.
Demonstram-se assim, haver uma situação de dependência em busca
da execução de modo eficaz e democrático das propostas constitucionais do
Estatuto da Cidade em relação ao desenvolvimento urbano, entre os planos
diretores e os conselhos municipais, sendo este num primeiro ponto, o
principal papel ConCidade de Chapecó.
Observar-se temporalmente que os planos diretores já existiam muitos
anos antes da publicação do Estatuto da Cidade, bem como do surgimento dos
Conselhos das Cidades – ConCidades, por meio Decreto nº.5.790, de 25 de
maio de 2006.
Vale destacar na análise formulada por Hass (2010, p. 21-22), quanto
ao início dos planos diretores:
A obrigatoriedade, a partir da Constituição de 1988, da elaboração dos
Planos Diretores (PDs) em municípios com mais de vinte mil habitantes e a
regulamentação da lei por meio do Estatuto da Cidade, em 2001, provocaram
uma grande disseminação de experiências de planejamento urbano por todo
o Brasil [...]. Nos primeiros anos após a aplicação do Estatuto da Cidade,
estudos empíricos realizados sobre os Planos Diretores elaborados em várias
cidades brasileiras, muitos deles executados por Instituições de Ensino por
meio de projetos financiados pelo Ministério da Cidade, remetiam a uma

262
avaliação positiva da “nova forma de fazer” o planejamento urbano. Essa
avaliação baseava-se principalmente na adoção de diferentes metodologias
participativas, que envolviam uma diversidade de segmentos sociais, políticos
e do mercado no processo de discussão. Uma avaliação mais crítica dessas
experiências tem sido realizada em estudos acadêmicos desenvolvidos,
basicamente desde 2007, em torno dos limites e das possibilidades das
diretrizes e dos princípios do estatuto, tanto no que diz respeito à participação
dos diferentes atores na elaboração do plano quanto em relação à dificuldade
da implantação dos instrumentos urbanísticos que têm como finalidade
reduzir a especulação imobiliária.
Inegável a existência de políticas de desenvolvimento urbano no país
antes do ano de 2001, entretanto será observado que no decorrer do presente
estudo, que a grande virada se deu a partir da implantação dos Conselhos das
Cidades, a partir de uma de referência federal, de conselhos em nível estadual
e municipal.
A respeito dos conselhos em nível estadual, a criação destes fica a cargo
dos Estados da federação, levando em consideração para sua estruturação às
disposições presentes no Decreto nº. 5.790/2006. Objetiva-se deste modo
uma estruturação mínima dos conselhos para que se possa constituir o
Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano, com articulação das instâncias
de participação social nos níveis nacional, estadual e municipal (Ministério
das Cidades, 2005).
Todavia, as atenções direcionam-se ao âmbito municipal, uma vez que
é neste nível de estrutura organizacional que os conselhos estão diretamente
conectados à realidade da cidade que se vinculam e possibilitam um contato
direito das partes envolvidos com anseios, interesses, manifestações e
opiniões dos cidadãos em consonância com os preceitos basilares da política
de desenvolvimento urbano/territorial no país, aqui pela análise e
acompanhamento do ConCidade do Município de Chapecó.

263
4.1.1 A POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL DO
MUNICÍPIO DE CHAPECÓ

O Município de Chapecó tem sua criação datada de 25 de agosto de


1917, uma cidade centenária, porém considerada em relação a outras cidades
brasileiras de mesmo porte territorial e/ou populacional, é tida como muito
jovem.
A partir da criação do Município, até meados de 1945, o poder político
local apresenta a característica do mandonismo, identificado pela existência
de figuras denominadas coronéis, porém que começaram a apresentar
enfraquecimento, onde o poder local acabou se diluído entre vários grupos que
surgem ou que se fortalecem em virtude das mudanças socioeconômicas
ocorridas na região após o final dos anos 30 (HASS, 2000, p. 14).
Referidas alterações socioeconômicas ocorrem a partir das empresas
colonizadoras, como a Empresa Colonizadora Bertaso, Maia e Cia, dedicada
ao comercio de madeiras e terras, destacando-se naquele momento em relação
desenvolvido urbano do município, a figura do coronel Ernesto Francisco
Bertaso:
Em 1931, ano em que a vila Passo dos Índios (Chapecó) se transformou
em sede do município, foi implantado o Plano Diretor produzido pela
Empresa Colonizadora Bertaso, com uma ordenação cartesiana (traçado
urbano xadrez, avenidas largas, quadras bem definidas), transmitindo ao
migrante ou visitante a visão de uma cidade planejada, organizada, a caminho
do desenvolvimento. Entretanto, o projeto colonizador não chamou a atenção
apenas dos colonos, na sua maioria de descendência italiana, vindos do Rio
Grande do Sul, mas também dos “intrusos”, “expropriados”, como eram
chamados os índios e os caboclos que se encontravam na região quando da
chegada das empresas colonizadoras (HASS; ALDANA; BADALOTTI, 2010, p.
62-63).

264
Pode assim ser considerado, este período da história do município,
como o início das políticas de expansão territoriais e urbanas de Chapecó,
todavia, vale ponderar que o uso do termo “Plano Diretor” ao referenciar
àquela época, não era assunto que já existia, servindo assim para mencionar
os fenômenos que ocorriam em relação ao desenvolvimento da cidade.
O termo “Plano Diretor”, surge no país em idos da década de 1950,
conforme destaca Villaça (1999, p.177):
A partir da década de 1950 desenvolve-se no
Brasil um discurso que passou a pregar a
necessidade de integração entre vários objetivos
(e ações para atingi-los) dos planos urbanos. Esse
discurso passou a centrar-se (mas não
necessariamente a se restringir) na figura do
plano diretor e a receber, na década de 1960, o
nome de planejamento urbano ou planejamento
urbano (ou local) integrado.

Neste sentido, Saule Junior (1997, p. 34-35) menciona que os planos


diretores tomam forma, de fato existindo como instrumento das políticas de
desenvolvimento urbano, a partir da década 1970:
A partir da década de 70, a institucionalização do
planejamento se disseminou nas administrações
municipais através das Leis Orgânicas dos
Municípios neste período elaborada pelos
Estados. As Leis Orgânicas dos Municípios do
Estado de São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande
do Norte, Pará, Mato Grosso, Alagoas, Ceará,
adotaram o plano diretor de desenvolvimento
integrado como instrumento de planejamento e
nas demais Leis Orgânicas apesar de não
mencionar de forma expressa o plano diretor, os
Municípios dos Estados de Minas Gerais, Rio de
Janeiro, Paraná, Goiás, Bahia, Pernambuco,
Sergipe, Rondônia eram obrigados a elaborar
planos de desenvolvimento.

No município de Chapecó, foi elaborado no governo do prefeito Altair


Wagner, eleito no ano de 1972, que era engenheiro do Departamento de
Estradas e Rodagens (DER), o primeiro projeto de intervenção urbana mais

265
intensa no município, projeto este denominado Projeto Chapecoense de
Desenvolvimento, implantado em 31 de janeiro de 1973. O Projeto possuía 13
programas além do Plano de Desenvolvimento Urbano (lei municipal nº. 068
de 31 de dezembro de 1974), sendo que a partir deste foi elaborado o primeiro
Plano Diretor da cidade, que regularizava ruas, loteamentos, zonas
industriais, áreas verdes, área pública e implantação de infraestrutura. Havia-
se por meio deste Plano Diretor, o objetivo de manter Chapecó na rota da
cidade planejada, do desenvolvimento e da prosperidade, aspectos ameaçados
pelo crescimento desordenado de seus bairros e indústrias (HASS; ALDANA;
BADALOTTI, 2010, p. 74).
Na década seguinte, através da lei municipal nº. 71 de 18 de setembro
de 1980, dispondo sobre o zoneamento do município, foi revogado
integralmente o Plano Diretor de 1974, instituindo a forma de uso das áreas
territoriais de Chapecó, sendo então posteriormente também revogado no ano
de 1987 pela lei municipal nº. 2786, instituindo a modalidade, intensidade e a
localização do uso do solo e das atividades permitidas no município de
Chapecó.
Posteriormente a lei complementar municipal nº. 4 de 31 de maio de
1990, em consonância com a recente Constituição Federal à época, a qual
institui no capitulo relativo a política urbana, obrigando haver plano diretor
em municípios com mais de vinte mil habitantes, editou o denominado Plano
Diretor Físico-Territorial de Chapecó (PDFT), revogando as alterações
realizados no ano de 1987 e tendo como objetivo, conforme destacado pelo seu
artigo 4º “assegurar o bem-estar da população através do disciplinamento do
desenvolvimento do Município, garantindo-se assim o equilíbrio entre o
crescimento demográfico-econômico e a preservação da qualidade da vida
urbana”.
O PDFT esteve vigente até o ano de 2004, quando foi aprovado por
meio da lei complementar municipal nº. 202/2004 o Plano Diretor de
Desenvolvimento Territorial de Chapecó (PDDTC/2004), ano este em que o
município contava com 146.967 mil habitantes e taxa de urbanização de 91,28

266
%. Referido PDDTC foi revisado no ano de 2006 a partir de um processo
participativo, porém alterado treze vezes (de 2006 a 2011) por meio de leis
complementares, porém alterações feitas apenas no texto, continuando os
mapas temáticos com seu desenho original, dificultando a efetivação do
planejamento e da gestão do território (FAVARETTO; RAMMÉ; AFONSO,
2015, p. 184-195).
Em relação a esta revisão do plano diretor no ano de 2006, a qual foi
realizada a partir de um processo participativo, Fujita (2008)59 destaca a

59 Dois anos e meio após a sua aprovação houve o processo de revisão com
vistas a contemplar eventuais ajustes no curso da implementação do plano.
Mediante a proximidade da data referente à revisão do plano diretor, a
Secretaria de Pesquisa e Planejamento da Prefeitura de Chapecó entrou em
contato com algumas organizações, sobretudo aquelas representativas do
setor imobiliário, das classes profissionais e dos meios acadêmicos fixando
uma data para a entrega de propostas de revisão do plano vigente.
Representantes das agroindústrias ainda não haviam se manifestado
formalmente naquele momento. [...] as propostas originadas dos setores
empresariais, comerciais e aqueles ligados às elites econômicas foram as
mais numerosas. Expressavam um caráter bastante objetivo e direto, no que
diz respeito ao estabelecimento de novos índices urbanísticos a fim de
aumentar o potencial construtivo do ordenamento territorial proposto em
2004. Muitas delas, inclusive, em áreas de interesse ambiental. [...] o
departamento de geoprocessamento da Secretaria de Pesquisa e
Planejamento da prefeitura elaborou um relatório técnico [...]. Esse
relatório analisou as propostas mais polêmicas e tomando por base uma
projeção de dados emitiu um parecer técnico, com o intuito de subsidiar a
discussão daquelas propostas encaminhadas bem como a decisão daqueles
que iriam participar da votação sobre as matérias. O relatório técnico foi
divulgado no dia 07 de agosto de 2006 e enviado às entidades proponentes,
junto com o convite para a participação da reunião realizada no dia 10 de
agosto de 2006 e que determinou a revisão do plano vigente. A divulgação
deste evento não foi tão ampla quanto a que convocou a conferência da
cidade em 2001. O próprio evento também teve uma duração curta, de um
dia apenas, com pouco tempo para discussão e votação das propostas A
votação transcorreu majoritariamente em prol dos interesses do setor
imobiliário, que ali estavam representados de maneira significativa. Ficou
evidente que muitas decisões se basearam em perspectivas particulares,
referentes às reservas de terras pertencentes aos diversos investidores que
se uniram, naquele momento, a fim de fazer valer os interesses da classe.
Negociações e interesses acerca da aprovação e reprovação das propostas e
emendas entre tais agentes eram publicamente expostos na plenária. Em

267
existência de dificuldades durante este processo, que evidenciaram a
priorização de interesses particulares de alguns em relação aos interesses da
coletividade.
Observa-se que posteriormente a este ato de votação, houve
mobilização por parte de indivíduos, em relação à Câmara de Vereadores,
como outros setores da sociedade civil e agroindústria, contestando a
legitimidade do processo de revisão, uma vez que algumas questões deveriam
ter sido discutidas com mais consistência, sendo que a partir destas ações,
formou-se uma comissão de estudos composta por três vereadores, com o
intuito de promover análise mais aprofundada e permitir o debate mais amplo
junto à sociedade, restando dessa dinâmica documento auxiliar para que os
vereadores pudessem ponderar sobre o conteúdo da revisão no momento da
votação que sancionaria as novas alterações do plano (FUJITA, 2008, p. 178).
Assim, em 17 de outubro de 2007, a Câmara Municipal promoveu a
votação da revisão do plano diretor, já substanciado pelo conteúdo do
documento fruto da comissão de estudos /especial para auxílio decisório da
questão em pauta:
Tanto a metodologia e a transparência do
processo de discussão quanto os seus resultados,
que beneficiam a lógica da exploração imobiliária
e fundiária, foram questionados, principalmente
pelo presidente da comissão especial criada para
apreciar o Plano, do PCdoB, partido aliado ao PT
na administração anterior. Os outros dois
vereadores da comissão, do PFL, eram aliados do
governo. A comissão discutiu a proposta de
revisão do Plano Diretor encaminhado pelo
executivo por meio de fóruns de participação
pública e de comissões temáticas em entidades e
bairros do município. Novas sugestões foram

geral, as propostas de gravames destinados a aumentar os índices


construtivos foram aprovadas, inclusive em áreas de interesse ambiental e
na bacia de captação de água. Foi significativa a reprovação de propostas
que tinham como base de argumentação a mediação de conflitos urbano
ambientais ou a ampliação de áreas de interesse ou requalificação ambiental
(FUJITA, 2008, p. 175-177).

268
sistematizadas e incorporadas ao projeto de
revisão do Plano Diretor encaminhado pela
Prefeitura, procurando manter os princípios do
Plano Diretor de 2004, mas em 17 de outubro de
2007 a Câmara, cuja maioria era governista,
reprovou tais propostas. Mutilado em seus
princípios e diretrizes, o Plano Diretor de
Chapecó, a partir de mudanças que foram feitas
no corpo da lei, voltou a atender os interesses do
mercado imobiliário e da construção civil, em
detrimento dos interesses públicos, da
coletividade, defendidos no projeto original [...]
(HASS; ALDANA; BADALOTTI, 2010, p. 108).

Notadamente os interesses de determinados grupos, compreendidos


tão somente por questões de ordem econômica e comercial, prevaleceram em
contraponto aos interesses da coletividade em relação ao futuro e
desenvolvimento sustentável da cidade, negando-se de modo realmente
verdadeiro, o cunho democrático e participativo proposto pelo Estatuto da
Cidade prevalece no processo decisório.
Após estas alterações, inicia-se no ano de 2013, nova revisão do Plano
Diretor juntamente com a revisão do Código de Obras de Chapecó,
coordenadas pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano.
Referida revisão, ou mesmo o desenvolvimento inicial de um plano
diretor, trata-se de um processo complexo e interdisciplinar, podendo ser
dividido em fases/etapas, conforme leciona (MUKAI, 2008, p. 35):
O plano diretor, nome que se dá ao plano
urbanístico municipal, pode ser conceituado
como um complexo de normas legais, contendo
diretrizes, objetivos, programas e metas, que
abrangem o desenvolvimento econômico-social,
o meio ambiente e o uso e ocupação do solo,
projetados todos para um determinado período
de tempo. O seu desenvolvimento é bastante
complexo, visto que os trabalhos envolvem
diversos ramos de conhecimento, que devem ser
transpostos na forma. Em vista da complexidade
e abrangência do plano, as fases principais de sua
elaboração podem ser divididas em fase de
diagnostico (coleta e interpretação de dados),

269
fase de pesquisa sobre as aspirações da
comunidade e da realidade desejada e fase de
fixação das diretrizes e objetivos.

O processo de revisão à época foi realizado em 04 etapas: envio de


propostas pela população via e-mail ou protocolizadas; realização de sete
oficinas temáticas com a comunidade, realização de 18 conferências com os
152 delegados eleitos nas oficinas e por fim redação de minuta do projeto de
lei alterando referidos documentos, para que assim seja levado a população
para discussão em audiências públicas e posteriormente sendo pelo Poder
Público Municipal encaminhado na forma de projeto à Câmara Municipal de
Vereadores (PMC, 2013).
Vale destacar, que a primeira fase deste processo, a qual se referiu ao
envio de propostas, teve como prazo o período de 40 dias, sendo recebidas
apenas 127 propostas, muitas das quais não eram de fato propostas, mas
pedidos de execução de serviços urbanos como o de asfaltamento das ruas da
cidade60.

60 A Administração Municipal recebeu 127 propostas. Foi registrada uma


grande participação das entidades ligadas ao setor imobiliário e à
construção civil. Universidades, Ong’s, Sindicatos, Associações de
Moradores e o Conselho Municipal de Desenvolvimento Territorial (CMDT)
também encaminharam sugestões. Agora iniciou o processo de
sistematização das propostas. Reivindicações não vinculadas diretamente à
legislação do Plano Diretor e do Código de Obras, como pedidos de
asfaltamento e sugestões afins, foram encaminhadas aos setores
competentes. “A revisão do Plano Diretor é o caminho para discutir a
expansão da cidade, beneficiando os moradores como um todo, sem
diferenças, e sem beneficiar determinado grupo ou cidadão individual”,
enfatiza o Diretor de Planejamento e Gestão, Nemésio Carlos da Silva. As
propostas serão distribuídas para a discussão nas oficinas temáticas que
acontecem de 09 a 30 de julho, no Centro de Cultura e Eventos Plínio
Arlindo De Nes. Mais uma vez toda a população está convidada a participar.
Os temas Predefinidos das oficinas são: - Instrumentos da Indução do
Desenvolvimento Urbano; Mobilidade Urbana; Código de Obras; Habitação
e Regularização Fundiária; Meio Ambiente; Uso e Ocupação do
Solo/Parcelamento do Solo; Zoneamento do Aeroporto. As alterações
deliberadas nas oficinas serão homologadas nas Audiências Públicas que
acontecerão em oito regiões da cidade no mês de setembro (PMC 2013).

270
As audiências públicas para discussão da minuta dos projetos foram
realizadas no município entre os dias 21 e 31 de janeiro de 2014.
A cidade foi dividida em 08 regiões geográficas, possibilitando assim,
em consonância com os propósitos da gestão democrática da cidade, a maior
participação da população neste espaço decisório.
Neste processo, a comissão especial do legislativo municipal para
acompanhamento e discussão das propostas denominada “Comissão Especial
de Revisão do Plano Diretor”, composta por três vereadores, realizou 12
reuniões e apresentou 130 emendas, constituindo-se em relatório anexado ao
projeto de lei e encaminhado para votação.61
O projeto foi aprovado por unanimidade em duas votações, realizadas
durante os dias de 07 e 10 de novembro de 2014, na Câmara Municipal de
Chapecó.62

61 Membros da Comissão Especial de Revisão do Plano Diretor Marcio Sander


(PP) – Presidente; Paulinho da Silva (PCdoB) – Vice-Presidente e Dirceu
Cecchin (PPS) – Relator
62 Foi discutido e votado sexta-feira (07) o relatório da Comissão Especial de

Revisão do Plano Diretor. A Comissão recebeu diversas emendas, algumas


incorporadas ao projeto oriundo do executivo. A Comissão presidida por
Marcio Sander realizou quase duas dezenas de reuniões e os trabalhos
culminaram com uma audiência pública onde as entidades participaram e
votaram a favor ou contra as emendas. Marcio Sander falou em nome da
comissão que teve Paulinho da Silva como vice-presidente e Dirceu Cecchin,
relator. Ele relatou a participação das entidades nesse processo de revisão
realizada pela Câmara de Vereadores, entre elas do Ministério Público que
citou o Legislativo de Chapecó como exemplo em eventos pelo Estado.
“Entre executivo e legislativo trabalhamos por quase um ano e meio nesse
Plano Diretor”, comentou Marcio. O relatório foi aprovado por
unanimidade, embora alguns vereadores se posicionaram contrários a
emenda 15. O Projeto de Lei do Plano Diretor foi aprovado em primeira
votação Considerado pelo Líder do Governo o projeto mais importante do
ano, o Plano Diretor de Chapecó foi aprovado em segunda votação nesta
segunda-feira (10) por unanimidade dos vereadores. Antes o projeto
oriundo do executivo passou por ampla discussão e análise da Comissão
Especial de Revisão do Plano Diretor que recebeu diversas emendas,
algumas incorporadas ao projeto. (CMC, 2014).

271
Após a aprovação do projeto, esse foi formalmente entregue em 14 de
novembro de 2014, pelo Presidente da Câmara Ildo Antonini ao Prefeito
José Claudio Caramori, e por este sancionado em 26 de novembro do
mesmo ano, como Lei Complementar nº. 541/2014 (Plano Diretor de Chapecó
– PDC), iniciando-se assim nova fase da política de desenvolvimento
territorial do município de Chapecó.
Todavia, vale aqui referenciar alguns pontos deste processo de
alteração do Plano Diretor de Chapecó, o qual em verificação mais detalhada,
com base em relatos coletados em pesquisa produzida por Jauro Sabino Von
Gehlen (2017), não se apresentou de forma tranquila e de plena concordância,
principalmente em relação as 130 emendas apresentadas:
[...] as demandas do setor imobiliário que foram
rechaçadas nas audiências públicas e
conferências realizadas com a ampla
participação popular foram retomadas em forma
de emendas apresentadas por alguns vereadores
do Município. Ou seja, o setor imobiliário
realizou um verdadeiro lobby para desconsiderar
as discussões que se deram democraticamente no
ambiente de ampla deliberação e discussão
popular, para, por meio da força econômica e
política, modificar tudo o que se havia definido
nas deliberações participativas. [...] o papel do
corpo técnico do Município e dele próprio
(entrevistado) foi muito importante para
pressionar os vereadores a retirarem as emendas,
o que foi feito com ameaça de denúncia e
exposição pública. O Ministério Público teve
papel importante também neste momento, pois
foi terminantemente contrário à apresentação e
discussão das emendas na casa legislativa, pois
contrariavam a iniciativa popular e a própria
legitimidade do que havia sido discutido nas
audiências públicas com o aval do povo.

Diante destas movimentações, aproximadamente a totalidade das


referidas emendas foi pelos vereadores retiradas, emendas as quais haviam
sido propostas somente para beneficiar o interesse particular do setor
imobiliário.

272
4.1.1.1 DIRETRIZES, PRINCÍPIOS E PARÂMETROS LEGAIS

Consta no artigo 2º, do Plano Diretor de Chapecó (PDC) que este é o


instrumento básico e estratégico para a Política de Desenvolvimento
Territorial e que integra o sistema de planejamento municipal63.
A Política de Desenvolvimento Territorial, regida pelo Plano Diretor de
Chapecó, é norteada pelos princípios da função social da cidade, função social
da propriedade, gestão democrática da política de desenvolvimento urbano e
pelo desenvolvimento sustentável, conforme diretrizes do Estatuto da Cidade
(Lei nº. 10.257/2001).64
Além de princípios, referido estatuto traz por meio de seu art. 2º,
diretrizes com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e da propriedade urbana.65

63 Artigo 2º, Lei Complementar nº. 541/2014. O Plano Diretor de Chapecó –


PDC, aplicável à totalidade do seu território, é o instrumento básico e
estratégico da Política de Desenvolvimento Territorial do Município e
integra o sistema de planejamento municipal.
64 Artigo 4º, Lei Complementar nº. 541/2014. Este Plano Diretor rege-se pelos

seguintes princípios: I - função social da cidade; II - função social da


propriedade; III - gestão democrática da política de desenvolvimento
urbano; IV - desenvolvimento sustentável.
65 Destacam-se, dentre os objetivos: a gestão democrática por meio da

participação popular e de associações representativas; a cooperação entre


os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no
processo de urbanização; o planejamento do desenvolvimento das cidades;
a ordenação e controle do uso do solo, visando evitar: a) a utilização
inadequada dos imóveis urbanos; b) a proximidade de usos incompatíveis
ou inconvenientes; c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso
excessivo ou inadequado em relação à infraestrutura; d) a instalação de
empreendimentos ou atividades que possam funcionar como polos
geradores de tráfego, sem a previsão da infraestrutura correspondente; e) a
retenção especulativa do imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou
não-utilização; f) a deterioração das áreas urbanizadas; g) a poluição e a
degradação ambiental; a integração e a complementaridade entre as
atividades urbanas e rurais; a justa distribuição dos benefícios e ônus
decorrentes do processo de urbanização; a adequação dos instrumentos de
política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos
objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os

273
Em consonância com as diretrizes fixadas na lei federal, o Plano
Diretor de Chapecó elenca com base em seus princípios, através dos artigos 5º
a 8º, componentes e requisitos para executar e obter êxito na política
pretendida.66

investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos


diferentes segmentos sociais; a contribuição de melhoria; a proteção,
preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do
patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; a
audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos
processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos
potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o
conforto ou a segurança da população; a simplificação da legislação de
parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a
permitir a redução de custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades
habitacionais; a isonomia de condições para os agentes públicos e privados
na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de
urbanização, atendido o interesse social (MUKAI, 2008, p. 16-17).
66 Artigo 5º A função social da cidade corresponde ao direito à cidade para

todos e regula o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo acima


dos interesses individuais, tendo como componentes: I - a justiça social e
redução das desigualdades sociais; II - inclusão social com equidade,
compreendida como garantia de acesso a bens, serviços e políticas públicas
a todos os munícipes; III - o direito à terra e à moradia digna, respeitadas
as diversidades étnicas e culturais; IV - ao saneamento ambiental; V - a
infraestrutura e serviços públicos para todo o território do município; VI -
direito à mobilidade, ao transporte coletivo e individual e à acessibilidade
universal; VII - direito ao trabalho, à cultura, ao esporte e ao lazer;VIII - o
direito à informação e à participação da sociedade nas decisões da política
urbana. Artigo 6º A propriedade cumpre sua função social quando atende,
simultaneamente, aos seguintes requisitos: I - suprimento das necessidades
dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social, o acesso universal
aos direitos sociais e ao desenvolvimento econômico; II - compatibilidade
do uso da propriedade com a infraestrutura, com os equipamentos e os
serviços públicos disponíveis; III - compatibilidade do uso da propriedade
com a conservação dos recursos naturais, assegurando o desenvolvimento
econômico e social sustentável do Município; IV - compatibilidade do uso
da propriedade com a segurança, o bem-estar e a saúde de seus usuários.
Artigo 7º A gestão da cidade será democrática, incorporando a participação
dos diferentes segmentos da sociedade em sua formulação, execução e
acompanhamento, garantindo: I - acesso público e irrestrito às informações
referentes à política urbana; II - participação popular na formulação,
implementação, avaliação, monitoramento e revisão da política urbana; III
- capacitação da população e segmentos da sociedade para participação no

274
Destaca-se em tais artigos, a questão da busca pela incorporação de
diferentes segmentos da sociedade, para que seja promovido o acesso público
e irrestrito às informações pertinentes à política urbana, a efetivação da
participação popular quando da formulação, implementação, avaliação e
monitoramento das revisões de política urbana e pela capacitação da
população e segmentos da sociedade para participar das questões
relacionadas à cidade.
Percebe-se, neste ponto, a necessidade da utilização de instrumentos e
organismos que possibilitem a população participar, acompanhar e executar
ações que de fato fortalecem a Política de Desenvolvimento Territorial do
município, momento o qual apresenta-se por meio do Conselho da Cidade de
Chapecó, como o organismo apto e capaz de utilizar os instrumentos para
efetivar as políticas pretendidas, mas principalmente promover a gestão
democrática da cidade.

4.1.1.2 INSTRUMENTOS E ORGANISMOS DE EFETIVAÇÃO E


ACOMPANHAMENTO

No âmbito da gestão democrática, o Plano Diretor de Chapecó confere


sessão específica em seu texto para tratar do ConCidade, órgão colegiado de
natureza permanente, de caráter deliberativo, normativo e consultivo, tendo
regimento próprio, o Decreto nº. 31.370, de 06 de julho de 2015.
O artigo 450 do Plano Diretor de Chapecó menciona que o “Município
promoverá a gestão democrática do planejamento territorial municipal, de
forma dinâmica, contínua, integrada e participativa, articulando as políticas
públicas com os interesses da sociedade [...]”, tendo como base para essas

planejamento e gestão da cidade. Artigo 8º O Princípio do desenvolvimento


sustentável fundamenta-se no equilíbrio e harmonização entre o
desenvolvimento econômico, a preservação do meio ambiente, a justiça
social e o uso eficiente e conservacionista dos recursos da natureza,
garantindo a qualidade de vida às presentes e futuras gerações.

275
ações o ConCidade, o Fundo Municipal de Desenvolvimento Territorial
(FMDT), as Câmaras Técnicas, pela implantação do Sistema de Informações
Geográficas (SIG Chapecó) e pela realização da Conferência da Cidade de
Chapecó.
A respeito do Fundo Municipal de Desenvolvimento Territorial, trata-
se de fundo integrante da estratégia de financiamento da cidade, criado
quando da publicação do Plano Diretor de Chapecó, tendo por objetivo,
conforme disciplina o artigo 463 do Plano Diretor de Chapecó, “a justa
distribuição dos benefícios gerados pelo processo de desenvolvimento urbano
e de transformação territorial, promovendo a equidade social e o
fortalecimento de espaços territoriais carentes e desqualificados”.
As Câmaras Temáticas67 foram instituídas com o objetivo de prestar
suporte às decisões técnico administrativas do ConCidade e aos órgãos da
administração pública. Trata-se de quatro câmaras divididas em: I) Habitação
e Regularização Fundiária; II) Meio Ambiente e Saneamento Ambiental; III)
Mobilidade Urbana, Trânsito, Transporte e Acessibilidade e, IV)
Planejamento e Gestão do Solo Urbano.
A Conferência da Cidade de Chapecó é promovida pelo ConCidade a
cada dois anos, com o objetivo de ampliação da participação popular,
instalando assim um processo permanente para a participação da sociedade
civil, conforme dispõe art. 467 do Plano Diretor de Chapecó.68

67Artigo 465 da Lei Complementar nº. 541/2014. Para dar suporte às decisões
técnico-administrativas do Conselho da Cidade de Chapecó e aos órgãos da
administração pública, serão criadas Câmaras Técnicas permanentes, de
caráter interdisciplinar, orientando e realizando estudos e pesquisas
necessárias ao desenvolvimento das ações, planos e projetos: I - de
Habitação e Regularização Fundiária; II - de Meio Ambiente e Saneamento
Ambiental; III - de Mobilidade Urbana, Trânsito, Transporte e
Acessibilidade; IV - de Planejamento e Gestão do Solo Urbano.
68 Artigo 467 da Lei Complementar 541/2014. O ConCidade de Chapecó

promoverá, a cada dois anos, a Conferência da Cidade de Chapecó, com o


objetivo de ampliar a participação da comunidade em canais de debate que
tratem das questões de desenvolvimento territorial do Município,
instalando um processo permanente para a participação da sociedade civil,

276
Ressalva-se que nos dias 28 e 29 de agosto de 2015, foi realizada a II
Conferência da Cidade – “Chapecó Inteligente, a Cidade que Queremos”, no
qual ocorreram palestras e painéis focados no debate da segurança e
mobilidade urbana do município.
Todavia, observa-se que se trata de segunda edição desta conferência,
uma vez que a primeira foi realizada no ano de 2013, antes do vigente Plano
Diretor de Chapecó, promovida para cumprimento de viabilidade de
participação na 5ª Conferência Estadual das Cidades e 5ª Conferência
Nacional das Cidades, organizada e realizada pelo ConCidade em novembro
de 2013, conforme a Resolução Normativa nº. 14, de 06 de junho de 2012 do
Ministério das Cidades.
Diante da inexistência no antigo Plano Diretor de Chapecó, de
conferências nos moldes da existente no atual, o Poder Público Municipal
expediu o Decreto nº. 27.628 de 27 de março de 2013, convocando assim a
Conferência da Cidade de Chapecó, Santa Catarina:
Art. 1º Fica convocada a Conferência Municipal da Cidade de Chapecó,
Estado de Santa Catarina, a ser realizada no próximo dia 16 de maio de 2013,
sob a coordenação da Secretaria de Desenvolvimento Urbano. Parágrafo
Único - A Conferência Municipal faz parte da etapa preparatória da 5ª
Conferência Estadual das Cidades de Santa Catarina e da 5ª Conferência
Nacional das Cidades. Art. 2º A Conferência Municipal da Cidade

em especial para: I - propor a interlocução entre autoridades e gestores


públicos com os diversos segmentos da sociedade, sobre assuntos
relacionados à política Municipal, e quando couber, à política estadual e
nacional de desenvolvimento territorial; II - sensibilizar e mobilizar os
munícipes para o estabelecimento de agendas, metas e planos de ações na
busca de soluções aos problemas existentes no município; III - propiciar a
participação popular de diversos segmentos da sociedade, considerando as
diferenças de sexo, idade, raça e etnia, para a formulação de proposições,
realização de avaliações sobre as formas de execução da política municipal
de desenvolvimento territorial e suas áreas estratégicas; IV - avançar na
construção e consolidação das políticas públicas de desenvolvimento
territorial, indicando as prioridades de ação municipal e de consolidação do
Plano Diretor de Chapecó.

277
desenvolverá os seus trabalhos a partir da temática nacional "QUEM MUDA
A CIDADE SOMOS NÓS: REFORMA URBANA JÁ". § 1º Além da temática
nacional, a Conferência Municipal da Cidade adotará como lema: "VAMOS
MELHORAR AINDA MAIS A NOSSA CASA" e contemplará em seu temário:
I - Planos setoriais de Habitação, Saúde, Educação, Acessibilidade, Trânsito e
Mobilidade Urbana; II - Plano Municipal de Saneamento Básico e Resíduos
Sólidos; III - Plano Diretor de Desenvolvimento Territorial de Chapecó; III -
Eleição de Delegados para a 5ª Conferência Estadual das Cidades de Santa
Catarina; IV - Temas relevantes à estratégia de desenvolvimento do
município.
Quanto ao Sistema de Informações Geográficas de Chapecó – SIG, se
trata de questão ainda pendente de implantação, o qual quando disponível,
proporcionará informações quanto ao território municipal e seu
desenvolvimento, conforme o art. 468 do Plano Diretor de Chapecó.69

69 Artigo 468 da Lei Complementar 541/2014. O planejamento territorial


municipal será fomentado pelas informações referentes ao território e seu
desenvolvimento, provenientes do Sistema de Informações Geográficas -
SIG Chapecó, estruturado através do desenvolvimento de tecnologia de
geoprocessamento interligada a uma base cartográfica municipal unificada
e associada a um banco de dados com informações territoriais referentes às
diferentes áreas de desenvolvimento do Município, tendo como objetivos: I
- criar a base cartográfica territorial e banco de dados municipal unificado,
garantindo o acesso às informações; II - gerenciar e integrar os dados de
informação, provenientes de órgãos da administração pública direta e
indireta, governamentais e não governamentais; III - desenvolver
tecnologia e qualidade da informação, subsidiando o Conselho da Cidade de
Chapecó e as ações governamentais na identificação, planejamento e no
monitoramento do território e seus elementos de constituição, auxiliando
no processo de tomada de decisões; IV - implantar um processo
permanente, dinâmico e atualizado para a coleta e armazenamento dos
dados, monitoramento do crescimento e transformação do território, com a
revisão e a adequação dos parâmetros da legislação do Plano Diretor de
Chapecó, visando a leitura fiel da cidade real, a melhoria dos indicadores e
a qualidade de vida dos munícipes, podendo para tal, constituir parcerias
com Instituições de Ensino e Pesquisa; V - qualificar o pessoal técnico para
o gerenciamento, desenvolvimento e atualização do sistema, com a
aquisição periódica de levantamentos geográficos e materiais técnicos que
representem as características territoriais do Município em transformação.

278
Tratamento mais aprofundado sobre o ConCidade de Chapecó, será
realizado em itens específicos, uma vez que já é plausível confiar a esse órgão
colegiado, considerando as disposições legais trazidas pelo atual Plano Diretor
de Chapecó, o principal papel para a promoção e efetivação da gestão
democrática da cidade.

4.1.2 AS DINÂMICAS DECISÓRIAS DO CONCIDADE

A dinâmica decisória do ConCidade se dá através de reuniões plenárias


e resoluções, conforme dispõem o Plano Diretor de Chapecó e o Regimento
Interno do Conselho, que foi discutido e aprovado na 1ª reunião ordinária de
trabalho, realizada em 07 de maio de 2015.
Conforme dispõe o artigo 5º do Regimento Interno, o Conselho é
composto do Plenário; Presidência, Secretaria Executiva, Câmaras Técnicas e
Coordenações Técnicas.
O Plenário assume o papel de órgão superior do Conselho, composto
pelo Presidente e trinta e seis membros titulares e seus respectivos suplentes.
As reuniões do plenário possuem caráter público, permitindo desde que
previamente comunicado ao Presidente, a qualquer cidadão a participação,
porém sem direito a voz e voto. O informação prévia decorre da necessidade
de se ter noção da quantidade de pessoas que assistirão determinada reunião,
para que se possa providenciar espaço físico adequado para as deliberações. 70
O prévio comunicado e a impossibilidade de falar e votar de quem não
é conselheiro poderiam, a princípio, representar restrições à participação

70 Artigo 6º, Decreto nº. 31.170, de 06 de julho de 2015. O Plenário é o órgão


superior do CONCIDADE DE CHAPECÓ, sendo composto pelo Presidente
e trinta e seis membros titulares e seus respectivos suplentes, eleitos ou
indicados pelos respectivos órgãos, entidades ou categorias, e homologados
pelo Prefeito Municipal, com mandato de quatro anos e renovação bianual.
Parágrafo Único - As reuniões do plenário serão públicas, podendo qualquer
cidadão delas participar, sem direito a voz e voto, desde que comunicado
previamente ao Presidente, de forma a permitir a Secretaria Executiva a
disponibilização de espaço e estrutura.

279
democrática. Porém, esse cenário dúbio pode ocorrer. Dahl (2001, p. 125), ao
tratar da participação popular em sistemas democráticos de massa, resolve
questões desse gênero por meio do conceito de poliarquia. Para o autor:
Há um dilema fundamental da democracia
espreitando nos bastidores deste cenário. Se
nosso objetivo é estabelecer um sistema de
governo democrático que proporcione o máximo
de oportunidades para os cidadãos participarem
das decisões políticas, evidentemente a
democracia de assembleia num sistema político
de pequena escala está com a vantagem.
Contudo, se nossa meta é estabelecer um sistema
democrático de governo que proporcione o maior
terreno possível para tratar eficazmente dos
problemas de maior importância para os
cidadãos, então, em geral, a vantagem estará
numa unidade de tal tamanho que será preciso
um sistema representativo.

A participação, com possibilidade de direito a voz e voto, é assim


restrita aos membros do plenário, tendo situação distinta o Presidente, o qual
não vota, sendo que seu direito a voz é estrito para a condução dos trabalhos
relativos à reunião, e pessoas não membros, devidamente convidadas na
condição de observadoras71, sem possibilidade de votar, porém com direito a
voz, desde que o convite tenha sido aprovado por maioria simples de seus
membros.
Conforme dispõe o artigo 7º, I a VIII do regimento interno, o plenário
obedecera a seguinte composição:
Artigo 8º. O Plenário do CONCIDADE DE
CHAPECÓ obedece a seguinte composição: I - 12
(doze) representantes do Poder Público, assim
distribuídos: a) 10 (dez) representantes do Poder
Público Municipal; b) 1 (um) representante do

71 Artigo 8º, § 2º, Decreto nº. 31.370, de 06 de julho de 2015. Poderão ser
convidados para participar das reuniões plenárias do CONCIDADE DE
CHAPECÓ, observadores com direito à voz, desde que o convite tenha sido
aprovado por maioria simples de seus membros.

280
Poder Público Estadual; c) 1 (um) representante
do Poder Público Federal. II - 12 (doze)
representantes de Movimentos Sociais, como
associações comunitárias, de moradores ou de
movimentos por moradia, entre outros; III - 3
(três) representantes de Entidades Empresariais
relacionadas ao desenvolvimento urbano; IV - 3
(três) representantes de Entidades Sindicais de
Trabalhadores com atuação na área de
desenvolvimento urbano; V - 2 (dois)
representantes de Entidades Profissionais ou
Conselhos profissionais; VI - 2 (dois)
representantes de Entidades Acadêmicas e de
Pesquisas; VII - 1 (um) representante de
Organizações Não Governamentais - ONGs; VIII
- 1 (um) representante de Clubes de Serviço.

Quanto às competências do plenário do ConCidade a serem exercidas


pelos conselheiros, estão descritas em rol taxativo por meio do artigo 16 do
regimento interno de referido conselho.72
Constata-se no rol de competências, uma gama de grandes poderes
dados aos conselheiros, porém que consequentemente virão acompanhados

72 Artigo 16. Compete ao plenário do CONCIDADE DE CHAPECÓ, através de


seus conselheiros: I - discutir e votar todas as matérias submetidas ao
CONCIDADE DE CHAPECÓ; II - apresentar proposições e propostas de
resoluções; III - colaborar com a Presidência e Secretaria Executiva no
cumprimento de suas atribuições; IV - requerer, na forma deste Regimento,
a convocação de reunião extraordinária para a apreciação de assunto
relevante; V - propor antecipadamente, por escrito, via Secretaria
Executiva, a inclusão de matérias na pauta das reuniões; VI - propor
estudos, debates, consultas públicas, audiências, sobre matérias de
relevante interesse coletivo, relacionados com o desenvolvimento territorial
municipal; VII - propor a criação de comissões e subcomissões de caráter
temporário ou permanente, com finalidades específicas de acordo com as
necessidades do CONCIDADE DE CHAPECÓ; VIII - requerer as
informações ou esclarecimentos que lhe forem úteis, para melhor
apreciação das matérias em estudo ou deliberação; IX - propor alterações
no Regimento Interno do CONCIDADE DE CHAPECÓ; X - propor convite
a colaboradores para acrescentar subsídios aos assuntos de competência do
CONCIDADE DE CHAPECÓ; XI - deliberar anualmente sobre o plano de
aplicação de recursos financeiros do Fundo Municipal de Desenvolvimento
Territorial; XII - desempenhar outras atividades que lhes são pertinentes.

281
de grandes responsabilidades, parafraseando-se menção famosa em título do
escritor de “comic-books” Stan Lee73.
Usa-se a menção para ilustrar a importância da representatividade que
estes membros terão em relação à comunidade que estão inseridos, servindo-
se como porta vozes destes, uma vez que a participação aberta, como nos
moldes das assembleias de Atenas, é inviável, considerando as disposições do
regimento interno e o fator populacional, o qual no município já transcendeu
200.000 habitantes.
Contudo, não é pertinente concluir que o aspecto da gestão
democrática das cidades, considerando a restrição de pessoas presentes nas
reuniões, limita o acesso e o exercício de direitos pretendidos em uma
democracia de princípios participativos. Surgem possibilidades para
dinamizar e amplificar o alcance participativo, o qual segundo Souza (2006),
tratar-se-iam da descentralização territorial e da “ciberdemocracia”, porém
que geram dúvidas em relação à efetividade:
A “descentralização” que se torna moda, de vinte
e poucos anos para cá, é, principalmente (embora
não exclusivamente), a “descentralização” que,
ao lado das privatizações e da
desregulamentação, compõe o tripé do
receituário neoliberal típico. O molho
“democratizante”, com alusões a “maior
transparência” e “maior proximidade do Estado
em relação ao cidadão”, pode até estar,
eventualmente, presente, mas não traduz a
preocupação essencial (SOUZA, 2006, p. 440-
441).

Quanto à “ciberdemocratização”, trata-se de questão muito próxima da


realidade, mas que encontra resistências em função da confiabilidade de seu
uso:
A propósito das limitações tecnológicas, e mais

73 Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades; lição foi dada a Peter
Parker por seu tio Ben, logo na primeira história do Aranha, escrita por Stan
Lee. Foi em 1962, no 15º volume da Amazing Fantasy.

282
especificamente no que concerne à segurança, já
existem boas ideias e propostas, mas levará ainda
um bom tempo até que as coisas como a
tecnologia biométrica (identificação totalmente
segura do leitor pela voz ou pelas digitais) e os
chamados smart cards (do tamanho de cartões de
crédito e com memória eletrônica, contendo uma
espécie de certificado digital exclusivo de cada
cidadão) sejam maciçamente utilizados em
processos deliberativos envolvendo milhões de
pessoas (SOUZA, 2006 , p. 451).

A fim de evitar conclusões precipitadas quanto ao uso de novas


tecnologias em favor da participação democrática, Lévy (1999, p. 195) tece o
seguinte apontamento:
Para cortar pela raiz imediatamente os mal-
entendidos sobre a “democracia eletrônica”,
vamos esclarecer novamente que não se trata de
votar instantaneamente uma massa de pessoas
separadas quanto a proposições simples que lhes
seriam submetidas por algum demagogo
telegênico74, mas sim de incitar a colaboração
coletiva e contínua dos problemas e sua solução
cooperativa, concreta, o mais próximo possível
dos grupos envolvidos.

Paradoxalmente, a qualquer conclusão ou proposta de alternância, o


básico das reuniões fomentadas pelas decisões plenárias incitam ao seu modo
a participação, todavia o aspecto referente à participação das massas, deverá
estar disposto através dos representantes dos segmentos das sociedades.
As variantes tecnológicas propostas permitem vislumbrar uma gama
de possibilidades para a flexibilização das modalidades participativas, porém
é oportuno compreender que para a ocorrência da esperada efetivação da
participação popular, a referida limitação por meio de representantes
apresenta-se na atualidade a modalidade mais próxima a atingir os fins
propostos pelo viés democrático.

74 Telegênico: Que fica bem em televisão ou em imagem televisual.

283
4.2 METODOLOGIA DE ANÁLISE DAS DINÂMICAS DECISÓRIAS DO
CONCIDADE

A análise das dinâmicas decisórias ocorreu primeiramente através do


acompanhamento das reuniões de trabalho, as plenárias, realizadas durante o
segundo semestre de 2015, e todo o ano de 2016, costumeiramente na última
quinta feira de cada mês.
Posteriormente, a análise prosseguiu pela leitura do teor das atas, com
a perspectiva voltada aos assuntos e matérias relacionadas ao meio ambiente
no município de Chapecó e a dinâmica decisória quando esta temática é
enfrentada.
Ressalta-se que esta é uma pesquisa funcionalista, com abordagem de
estudo e pesquisa por meio do método dedutivo. Nesta perspectiva, a temática
a ser trabalhada, para análise e compreensão dos fatos e sujeitos, considera,
de um lado, a sociedade como uma estrutura complexa de grupos ou
indivíduos, reunidos numa trama de ações e reações sociais; de outro como
um sistema de instituições correlacionadas entre si, agindo e reagindo, uma
em relação às outras” (LAKATOS; MARCONI, 1985, p. 110).
Assim, para a compreensão deste panorama social, o pesquisador deve
fazer parte desta trama de reações sociais, assim foi empregado, a fim de não
influenciar nas ações e decisões tomadas pelo grupo social, o ato de
observação não participante:
Na observação não participante, o pesquisador
toma contato com a comunidade, grupo ou
realidade estudada, mas sem integrar-se a ela:
permanece de fora. Presencia o fato, mas não
participa dele; não se deixa envolver pelas
situações; faz mais o papel de espectador. Isso,
porém, não quer dizer que a observação não seja
consciente, dirigida, ordenada para um fim
determinado. O procedimento tem caráter
sistemático (LAKATOS; MARCONI, 1985, p.

284
193).

Todavia, durante a realização da pesquisa, ocorreu momento de


intervenção nas interações do denominado grupo social, porém não durante
as reuniões plenárias, mas, durante evento aberto ao público mediante prévia
inscrição, organizado pelo ConCidade em 02 de julho de 2016 e denominado
“6ª Conferência Municipal das Cidades”.
Tratava-se de etapa preparatória para a 6ª Conferência Nacional das
Cidades e para a escolha de delegados para representar o município da 6ª
Conferência Estadual das Cidades, entre os dias 15 e 17 de março de 2017,
tendo como eixo condutor de discussão a “Função Social da Cidade e da
Propriedade” e o lema “Cidades Inclusivas, Participativas e Socialmente
Justas”.
Na conferência, a intervenção realizada ocorreu na qualidade de
cidadão participante, dentro do eixo de debate temático nº 2. “Plano Diretor
de Chapecó”, através da troca de experiências e discussão, buscando-se em
conjunto com os demais membros a elaboração de propostas e questões a
serem levadas para a conferência estadual, de modo a não ter influenciado no
acompanhamento das plenárias.

4.2.1 ANÁLISE DE CASO

Verificar como o meio ambiente é ouvido e considerado nas decisões


de qualquer conselho ultrapassa análises sobre a composição do colegiado. A
tarefa requer, também, averiguações sobre os resultados das pautas. Para
entender o greening do Conselho da Cidade de Chapecó, optou-se pelo
acompanhamento de um caso de criação de condomínio horizontal levado à
apreciação dos membros do ConCidade.
Trata-se de processo que deu entrada no ConCidade na data de 17 de
dezembro de 2015, sob o número 29930/2015, que trata da necessidade de
criação de projeto de lei para regularização de condomínio horizontal na

285
região do Goio-Ên, conforme o art. 470 do Plano Diretor de Chapecó 75, uma
vez que referido empreendimento foi iniciado no período de transição entre o
plano em vigência e o anterior.
O primeiro momento oficial e prático de interação dos conselheiros
com o pedido de regularização aconteceu em 25 de fevereiro de 2016, quando
da realização da reunião, com os devidos e necessários pareces técnicos (ata
nº. 001/2016) emitidos pelas câmeras técnicas.
Abaixo é apresentado fluxograma ilustrando os tramites
administrativos até a realização da primeira reunião envolvendo o processo
em análise:

75 Artigo 470. Os condomínios horizontais que comprovem estar implantados


até a data da publicação desta Lei Complementar e os loteamentos já
aprovados e consolidados até a data da publicação desta Lei Complementar,
caracterizados como condomínios horizontais, poderão ser regularizados
nesta modalidade, através de Lei específica de iniciativa do Poder Executivo
Municipal, ouvido previamente o ConCidade de Chapecó, que definirá as
condições e parâmetros para a sua regularização.

286
Fonte: Os autores.

Em nova reunião ordinária do ConCidade, realizada em 30 de junho de


2016 (ata nº. 005/2016), retornou à pauta o processo de nº. 29930/2015. No
dia, foi apresentado parecer jurídico referente ao texto de projeto de lei de

287
regularização, pontuando-se como questão conflitante a vedação de
parcelamento de solo, em terrenos ou parcelas com declividade igual ou
superior a 30%, salvo quando é assegurada a contenção das encostas,
conforme disposto no art. 173, III, Plano Diretor de Chapecó, uma vez que,
pelo entendimento da Câmara Técnica de Planejamento e Gestão do Solo
Urbano, esta previsão de viabilidade de urbanização nas áreas com
declividade entre 30% e 50%, com devido projeto de contenção e Anotação de
Responsabilidade Técnica (ART), deveriam ser apresentados quando do ato
do parcelamento do solo, e não quando do ato de aprovação do projeto
arquitetônico, conforme previa o projeto de lei em discussão.
Diante desta incongruência entre o Plano Diretor de Chapecó e o
projeto de lei regularizador, determinou-se após debate em plenário a
necessidade do interessado em apresentar à Diretoria de Planejamento
Urbano projeto detalhado das soluções técnicas referentes à estabilidade do
solo, com respectivo laudo e Anotação de Responsabilidade Técnica (ART),
atestando a viabilidade de urbanização do empreendimento como condição
para a aprovação do projeto de parcelamento do solo.
Para aprovação do projeto de lei, o empreendedor também precisou
demonstrar quais medidas compensatórias76 seriam promovidas.
Tais medidas, segundo o empreendedor, foram definidas em conjunto
com a comunidade local em reunião realizada em 15 de junho de 2016.
Consistiam em:
Na oportunidade, os interessados também
apresentaram a medida compensatória (artigo
14) definida em conjunto com a comunidade do
Goio-Ên em reunião realizada no dia
15/06/2016, no salão comunitário, que consiste
em: (i) implantação de iluminação pública no
trecho da SC 480 que compreende desde a
cabeceira da ponte até o trevo de acesso a
comunidade, doação essa a ser efetivada após

76 As medidas compensatórias estão definidas do Plano Diretor de Chapecó,


cabendo ao ConCidade indicar medidas compensatórias, mitigadoras e
alterações que entender necessárias, conforme dispõe o art. 454, XVII.

288
registro imobiliário do empreendimento,
conforme deliberado pelo plenário do ConCidade
de Chapecó na reunião do dia 25/02/2016; (ii)
doação de grama em leivas para o futuro campo
de futebol que a comunidade irá construir e
doação de tijolos para ampliação das
churrasqueiras do centro comunitário. Diante
das deliberações, o texto do projeto de lei deve
seguir para vistas da Procuradoria-Geral do
Município e posterior audiência Pública na
Região Geográfica 11, conforme prevê a
Resolução Normativa nº 06/2016 do ConCidade
de Chapecó (Ata n. 05/2016, p. 1).

Após as deliberações, determinou-se retorno à Procuradoria-Geral do


Município para vistas do projeto e para posterior realização de audiência
pública junto aos moradores da região do empreendimento, conforme
determina a Resolução Normativa 06/2016 do ConCidade.77
O processo retornou em reunião realizada em 18 de agosto de 2016, na
qual foram apresentadas considerações e ajustes ao projeto de lei, para que
posteriormente fosse apresentando à comunidade afetada para apreciação.
Em 06 de setembro de 2016, o projeto foi apresentado à comunidade, em
audiência pública, e foi aprovado por unanimidade78.

77 Artigo 5º, Resolução Normativa n. 06/2016. Aprovado pelo plenário do


Concidade de Chapecó, o processo de regularização deverá ser submetido à
audiência pública, nos termos do artigo 451 §3º da LCM nº 541/2014 e nos
moldes da Resolução Administrativa nº 05/2015, de 26 de novembro de
2015, que regulamenta a matéria.
78 Ata de audiência pública referente regularização do condomínio “Casas da

Montanha”: Aos seis dias do mês de setembro de dois mil e dezesseis, no


Salão Comunitário do Distrito de Goio-Ên, à Avenida Beira-Rio, às
dezenove horas e dez minutos, em atendimento à convocação da Prefeitura
Municipal de Chapecó através de Edital de Convocação publicado no Diário
Oficial dos Municípios, no dia vinte e três de agosto de 2016, edição 2.066,
página nº 73, foi realizada a audiência pública para tratar do anteprojeto de
lei complementar de regularização do Condomínio Horizontal Casas da
Montanha (implantado em área de terras matrícula nº 95.491, com
metragem de 7 685.898,58m², situado no Distrito do Goio-ên), conforme
prevê o artigo 470 do Plano Diretor de Chapecó - Lei Complementar
Municipal nº 541, de 26 de novembro de 2014. A audiência foi conduzida

289
Após, o projeto de lei de regularização foi encaminhado para a Câmara
Municipal de Vereadores de Chapecó, sendo aprovado e sancionado em 26 de
novembro de 2016, por meio da Lei Complementar 574/2016.

4.3 OS DIREITOS DIFUSOS E DIACRÔNICOS NAS DINÂMICAS


DECISÓRIAS DO CONCIDADE

Considerar, ou ainda, permitir que se garanta um direito a todos em


um tempo futuro poderia soar como uma reunião de ideais e possíveis atos
recheados de uma previsibilidade audaciosa. Entretanto já se constitui
questão, de certo modo, já popularizada, no que tange à tutela do meio
ambiente.
O primeiro ponto é permitir que os conselhos de participação popular,
tais como o ConCidade, sejam reconhecidos como instância democrática e que
possam exercer parcela da soberania estatal no tocante a aspectos
relacionados ao campo material das políticas urbanas afetas a sua área de

pelo Secretário de Desenvolvimento Urbano, Sr. Wilson Lobo de Carvalho


que deu as boas-vindas a todos os presentes, conforme lista de presença
acostada à presente ata. Wilson declarou aberta a audiência pública,
apresentou preliminarmente o assunto e os objetivos da sessão e na
sequência, fez a leitura do Regimento Interno da Audiência, conforme
Resolução Administrativa nº 05/2015, de 26 de novembro de 2015, do
CONCIDADE DE CHAPECÓ - exposto em recurso áudio visual. Em seguida,
Wilson passou a palavra à requerente, Sra. Mareli Panizzi que apresentou
um breve histórico do processo e o projeto do Condomínio, detalhando
alguns aspectos referentes a declividades, áreas verdes e de lazer, passeios
e medidas compensatórias. Posteriormente, através de recurso áudio visual,
Wilson L. de Carvalho realizou a leitura do texto do anteprojeto de lei
complementar de regularização do Condomínio Horizontal Casas da
Montanha, debatido nas reuniões do CONCIDADE DE CHAPECÓ,
realizadas nos dias 25/02/2016 e 30/06/2016 e aprovado pelo plenário do
CONCIDADE DE CHAPECÓ na reunião realizada no dia 18/08/2016,
conforme Atas 01/2016, 05/2016 e 07/2016, respectivamente. Abriu-se
espaço para manifestação dos presentes e, por fim, a redação proposta do
anteprojeto de lei foi aprovada por unanimidade. Sem mais assuntos a
tratar, Wilson Lobo de Carvalho deu por encerrada a audiência pública às
vinte horas e vinte minutos.

290
atuação, uma vez que se espera destes conselhos, no cumprimento integrado
do papel fiscalizador/controlador e deliberativo/decisório, a potencialidade
ou a capacidade de interpelar, contestar, divergir, reclamar, apontar, cobrar
providências e estabelecer diretrizes em relação a determinados aspectos da
política pública que faz parte (BERCLAZ, 2013, p. 105).
Um conselho democrático ativo, apto a cumprir seu papel, poderá
garantir as duplas pretensões do direito ao meio ambiente sustentável, para
as atuais e as futuras gerações, estas últimas não devendo ser limitadas ou
condicionadas a determinado tempo.
Entretanto, segundo ponto deve ser realçado, serão os membros deste
conselho meramente instrumentos confirmatórios de decisões já prontas?
Haverá de fato a oportunidade da real participação e debate popular de modo
a não partidarizar as questões?
Para que a essência das funções dos conselhos
sociais não seja perdida, esses preciosos e
diferenciados atores não podem ser meros
agentes instrumentais legitimadores de escolhas
pré-concebidas e não discutidas de modo a
respeitar a autonomia da sociedade e, portanto,
subservientes ao interesse do governo, mas sim
espaços de controle social e inversão de
prioridades para que as políticas sejam de
estados e permanentes e não meramente
passageiras e mutáveis ao sabor da agremiação
partidária que está no poder (BERCLAZ, 2013, p.
107).

Na órbita do campo de pesquisa, através do acompanhamento das


reuniões, é nítido que mesmo tratando-se de espaço público, no qual é
amplamente oportunizado o debate pela coordenação dos trabalhos, na figura
do presidente do conselho, os que fazem uso da palavra limitam-se
normalmente aos representantes das entidades empresariais e profissionais,
entendidos aqui do ramo imobiliário e construção civil do município de
Chapecó.

291
Ainda que algumas questões quando levadas à pauta são objeto apenas
confirmação formal por parte do conselho, em razão de previsão por parte do
Plano Diretor de Chapecó, e, ainda, que, por tal questão, o ConCidade, está
cumprindo as demais previsões legais, como o Código de Obras e Código
Florestal, e tendo parecer já favorável das câmeras temáticas a qual passou por
análise, o debate, mesmo oportunizado, não ocorre.
Analisando-se o caso a partir da proposta de Souza (2006) quanto à
aplicação dos seis indicadores da consistência participativa, percebe-se
primeiramente que em determinados momentos das reuniões, o fator
participativo não ocorre plenamente, restrita a participação a respostas como
“sim” ou “não”.
Outro indicador denominado como grau de transparência e
accountability, relativo à regularidade no fluxo de informações para
formalizar as decisões, bem como o pós-decisório, no que tange ao modo que
os membros do conselho transmitem às informações e decisões ao grupo
social que representam, expõe-se de modo inconclusivo, uma vez que pela
inexistência de um acompanhamento externo pelo conselho, não é possível
determinar se ações participativas dos membros limitam-se ao rito das
reuniões, ou se de fato incorporam o aspecto participativo na vida em
comunidade.
Observa-se, pelos indicadores da consistência participativa, que não se
permite promover juízo de valor do ato da não ocorrência do debate em
situação que, em tese, se apresenta como perfeita e esgotada de discussão,
porém é necessário considerar e aprofundar a percepção que as deliberações
não devem ser restritas apenas a confirmação do cumprimento de requisitos
legais, mas pela reflexão das possíveis consequências que as deliberações em
relação ao meio ambiente poderão ocasionar independentemente dos
aspectos temporais.
Aponta-se, por fim, duas situações no tocante as dinâmicas decisórias,
que com a consolidação do ConCidade de Chapecó acabaram surgindo, a
primeira, referente a recomendação proveniente da 9ª Promotoria da

292
Comarca de Chapecó (Recomendação Ministerial n.º 11
003/2019/09PJ/CHA, oriunda do Processo Administrativo nº
09.2018.00008327-3) , a qual sugeriu a alteração de alguns pontos do
regimento interno do conselho, destacando-se aqui quanto à saída do público
externo do plenário no momento de votação dos processos.
Levada à votação pelo plenário, alguns conselheiros se manifestaram
contrários à saída do público externo, por entenderem que esta saída
comprometeria a transparência das decisões e a lisura do processo
democrático.
Em sentido oposto, alguns conselheiros argumentaram que a presença
do público externo durante o processo de discussão poderia inibi-los no ato de
votação e que a prática de retirada do público externo já ocorria na época do
Conselho Municipal de Desenvolvimento Territorial (CMDT).
No momento da votação, conforme registro em ata, ocorreram 10 votos
favoráveis e 10 votos contrários ao atendimento da recomendação, sendo que
em caráter de desempate, o Presidente do ConCidade de Chapecó, deliberou
pela manutenção da metodologia.
A segunda situação refere-se à excepcionalidade enfrentada
mundialmente em virtude da pandemia pelo vírus Covid-19, que impôs, a
partir da 50º reunião ordinária do ConCidade 79, realizada em 30 de abril de
2020, a adoção da videoconferência.
As situações aqui registradas demonstram um choque entre a
possibilidade da maior participação popular, com efetiva transparência de

79 Ata nº 02/2020 Aos trinta dias do mês de abril de dois mil e vinte, na sala
de reuniões do Gabinete do Prefeito de Chapecó, às quatorze horas, foi
realizada a quinquagésima reunião ordinária do CONCIDADE DE
CHAPECÓ, com a presença dos Conselheiros titulares e suplentes,
conforme relação ao final da presente ata. A reunião aconteceu através de
videoconferência pelo Google Meet e com transmissão pelo Youtube, em
virtude das restrições impostas para reuniões presenciais em razão do
Covid-19 [...].

293
momento decisório do conselho, e a possibilidade do emprego de tecnologias
para que o alcance deste espaço decisório seja ampliado.
Qual seria o sentido da abertura de um espaço democrático com o
objetivo de promoção da política de desenvolvimento do município se, no
momento decisório o público externo, o qual são cidadãos que fazem parte do
município a ser influenciado/atingido pelas decisões, devem se retirar deste
espaço que é público, ou ainda, caso tivesse restado com êxito este ponto da
recomendação ministerial, no panorama de uso do sistema de
videoconferência, no momento de votação o que seria feito? Desligadas as
câmeras e os votos/interesses tornam-se secretos, apenas se dando
conhecimento ao grande público?
Toma-se como acertada a decisão pelos conselheiros, mesmo que não
havendo um real consenso, porém restou até aquele momento mantida a
transparência dos atos, fazendo assim de fato este um espaço moldado pelos
ditames democráticos.

4.3.1 QUEM FALA PELO MEIO AMBIENTE E FUTURAS GERAÇÕES

Os já mencionados percalços em preponderar o caráter decisório


voltado à perspectiva de possibilitar um futuro ambiental equilibrado,
favorável as próximas gerações, em relação a certeza de algo materialmente
previsível, porém não dimensionado quanto as consequências, sintetizam as
dificuldades de enquadramento de membro ou determinado nicho dentro do
conselho com discursos pautados à questão ambiental.
As raras ações/intervenções preocupadas com a questão
ambiental, em determinadas ocasiões surgem dentro do conselho, sempre
oriundas, conforme leitura das atas e acompanhamentos das reuniões, de
representantes das regiões geográficas do município (bairros), conforme
disposto em ata de reunião realizada em 16 de julho de 2015, na qual

294
conselheiro representante dos moradores do bairro EFAPI, aponta
preocupação quanto projeto de loteamento formado por 50 lotes:
Fulano80 questionou o porquê de ter sido
solicitado Estudo de Impacto de Vizinhança
(EIV) para o projeto do Loteamento com 50 lotes
e o não solicitar EIV para três condomínios
residenciais em construção nas proximidades
que totalizam 880 apartamentos. O Conselheiro
analisou o segundo acesso ao loteamento
proposto pela Câmara Técnica de Mobilidade
Urbana, Trânsito, Transporte e Acessibilidade e
propôs a rejeição desta proposta, por ir contra os
pressupostos ambientais de remanescente de
Mata Atlântica e ser uma área pública de APP.
Por fim, propôs a necessidade de
encaminhamento do processo para a Câmara
Técnica do Meio Ambiente e Saneamento
Ambiental, com base em Laudo Técnico da
SEDEMA que aponta fragilidade ambiental da
área (Ata n. 04/2015, p. 1).

Oportuno ainda, visando descrever o diminuto número de membros


preocupados com a questão ambiental, serem observadas falas como
“devemos agilizar para não prejudicar o empreendedor” e “não temos nada
contra o desenvolvimento de Chapecó”, estas proferidas pelos próprios
conselheiros.
Salienta-se que referidas falas foram proferidas por representantes de
setores do ramo imobiliário e construção civil.
As dificuldades de formação de um conselho realmente preocupado
com o futuro da cidade ainda são grandes, muito pode ser justificado pela
jovialidade deste espaço, bem como pela falta de maior preocupação da
população em geral de participar de referidos espaços decisórios.
Vale destacar as atividades realizadas pelo Presidente do Conselho,
Secretaria Executiva e membros das câmeras temáticas, que através de seus

80 Nome fictício, preservada identidade do conselheiro.

295
trabalhos priorizam o debate de modo igualitário e a possibilitar aos
conselheiros que estes tenham o melhor embasamento técnico para a decisão.
Todavia, mesmo com estes esforços, considerando o panorama ora
relatado, a participação da grande maioria dos membros ainda se apresenta
tímida, de modo a deixar o espaço de debate a membros não realmente
voltados ao desenvolvimento sustentável da cidade, mas ao desenvolvimento
voltado a especulação imobiliária.

4.3.2 A ISEGORIA AMBIENTAL NO CONCIDADE

A inequívoca necessidade de discutir o presente e o futuro do meio


ambiente seria, teoricamente, a principal preocupação e pauta nos espaços
democráticos decisórios, porém conforme já exposto, a perspectiva da isegoria
ambiental mesmo estando presente, sem sofrer impedimentos ou retrações,
não se faz plenamente o uso da palavra em favor desta questão.
Aufere-se este panorama no ConCidade de Chapecó, onde mesmo
havendo a oportunidade de participação e manifestação, esta restringe-se a
números ínfimo de membros, tornando algumas decisões meros atos de
formalidade.
Cabe esclarecer que as decisões quando proferidas, através dos votos
dos membros, possuem suas fundamentações amparadas pelo PDC e demais
legislações, ocorrendo assim como preocupação, a falta do debate e se estas
decisões mesmo devidamente legais, de certa forma ou não, possam trazer
algum prejuízo ao meio ambiente.
Ao estudo de caso aplicado, a região territorial deste condomínio
possui acesso para as margens do Rio Uruguai. Assim, considerando que se
trata de local de habitações familiares, que invariavelmente influenciam na
flora e fauna local, poderia ser considerado durante debate até que ponto a
liberação de possíveis outros condomínios nestes moldes poderá ou não
ocasionar prejuízos ao meio ambiente ou ainda se há viabilidade de previsão

296
dos efeitos que esta intervenção poderá ocasionar, buscando de algum modo,
ferramentas para minimizar tais prejuízos.
Desta forma, surge o seguinte questionamento: Se há isegoria
ambiental em espaços decisórios de participação popular, por que não se faz
jus deste direito de se manifestar? Por que os representantes não se
manifestam?
Pode-se apontar este desinteresse, ou mesmo desatenção a
possibilidade de abordar aspectos relacionados ao meio ambiente pela falta de
conhecimento e preocupação, momento no qual se aponta a fraca
conscientização política e a necessidade da educação ambiental.
As ações e práticas voltadas para educação ambiental no país surgem
principalmente em meados da década de 1980, difundido como um valor
expresso em um novo marco dos direitos sociais promovido pelos movimentos
sociais, onde educadores passam a se chamar “ambientais” e em ritmo
crescente, organizam-se encontros estaduais, nacionais, e recentemente em
âmbito latino-americano, os quais podem ser vistos como espaços de
construção de uma identidade social e profissional em torno de práticas
educativas direcionadas ao meio ambiente (CARVALHO, 2002, p. 86-87).
Destaca-se que educação ambiental não se trata apenas de uma
proposta pedagógica, mas de previsão constitucional com respectivo amparo
pela legislação infraconstitucional:
O princípio da educação ambiental
consubstancia-se em relevante instrumento para
esclarecer e envolver a comunidade no processo
de responsabilidade com o meio ambiente, com a
finalidade de desenvolver a percepção da
necessidade de defender e proteger o meio
ambiente. O referido princípio encontra-se
insculpido no art. 225, § 1 °, VI da Constituição
Federal, segundo o qual incumbe ao Poder
Público "promover a educação ambiental em
todos os níveis de ensino e a conscientização
pública para a preservação do meio
ambiente."Infraconstitucionalmente, a Lei nº
6.938/81 (PNMA) , em seu art. 2°, X,
estabelece,como princípio da Política Nacional

297
do Meio Ambiente, "a educação ambiental a
todos os níveis de ensino, inclusive a educação da
comunidade, objetivando capacitá-la para
participação ativa na defesa do meio ambiente''.
Já a Lei Complementar 1 40, de 08 de dezembro
de 2011, define como competência tanto da
União, quanto dos Estados e dos Municípios,
promover e orientar a educação ambiental em
todos os níveis de ensino e a conscientização
pública para a proteção do meio ambiente. Pela
sua relevância, foi instituída a Política Nacional
de Educação Ambiental (Lei 9.795/ 1999)
(THOME, 2015, p. 85).

Assim, de acordo o artigo 1º da Lei 9795/1995, “Entendem-se por


educação ambiental os processos por meio dos quais o indivíduo e a
coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes
e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso
comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade”.
Quanto à aplicação da educação ambiental, Dias (2003, p. 99)
menciona que esta deve:
[...] capacitar ao pleno exercício da cidadania,
através da formação de uma base conceitual
abrangente, técnica e culturalmente capaz de
permitir a superação dos obstáculos à utilização
sustentada do meio. O direito à informação e o
acesso às tecnologias capazes de viabilizar o
desenvolvimento sustentável constituem, assim,
um dos pilares desse processo de formação de
uma nova consciência em nível planetário, sem
perder a ótica local, regional e nacional. O desafio
da EA, nesse particular, é o de criar as bases para
a compreensão holística da realidade.

Desta forma, ao verificar-se a existência de previsão constitucional e


infraconstitucional da educação ambiental e seu papel de conscientização,
constando-se as dificuldades de uma real e efetiva participação popular e o
emprego da isegoria ambiental quando em momentos decisórios, emanados

298
de representantes do povo, surge questão para novo debate, centrada quanto
ao alcance e efetividade da educação ambiental existente hoje no país.
É inviável emitir juízo de valor sem pesquisa aprofundada a respeito
dos moldes de aplicação da educação ambiental, porém, ao depara-se com as
situações práticas, quando ao povo é dada a oportunidade de se manifestar em
relação ao meio ambiente, a aplicação deste princípio necessita ser revista,
uma vez que ao exemplo do conselho objeto de estudo, a isegoria ambiental
não pode ficar resignada a ideais teóricos de uma participação popular
consciente e preocupada com um meio ambiente sustentável e viável as atuais
e futuras gerações.

299
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Mas eu posso estar errado

- Carl Sagan

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