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Curso de Segurança do Trabalho

FUNEC

Apostila de Sociologia

Professor Organizador :
Moacyr Anício Viana Filho
(Cientista Social Licenciado em Sociologia)
moacyranicio@gmail.com – (31) 9559-1881
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Sumário
1 INTRODUÇÃO : ...................................................................................................... 4

1.1 O papel da sociologia no mundo contemporâneo ........................................................... 4


2 MAS AFINAL, O QUE É SOCIOLOGIA? A construção sociológica da realidade ...... 5

2.1 Os fundamentos da reflexão sociológica a partir da problematização do mundo


social: 5
2.2 Os Teóricos das Ciências Sociais : ................................................................................... 6
2.3 Os fundadores da Sociologia ............................................................................................ 11
3 Os clássicos da sociologia ................................................................................... 12

3.1 Auguste Comte ................................................................................................................... 12


3.1.1 Caraterísticas do positivismo...........................................................................13
3.1.2 Lei dos três estados ........................................................................................13
3.1.3 Estudo da Estática Social = ordem ..................................................................14
3.1.4 Estudo da Dinâmica Social = progresso ..........................................................15
3.1.5 Problema fundamental do estado positivo .......................................................15
3.2 Emile Durkheim ................................................................................................................... 16
3.2.1 A estrutura social ............................................................................................16
3.2.2 Método sociológico de Émile Durkheim ...........................................................17
3.2.3 Os Fatos Sociais .............................................................................................18
3.2.4 As Regras do Método Sociológico...................................................................19
3.2.5 Da Divisão Do Trabalho Social ........................................................................20
3.2.6 MORFOLOGIA SOCIAL – AS ESPECIES SOCIAIS .....................................................21
3.2.7 Da solidariedade mecânica à solidariedade orgânica ......................................24
3.3 Max Weber .......................................................................................................................... 26
3.3.1 O que é ação social?.......................................................................................27
3.3.2 Que é conhecimento? .....................................................................................29
3.3.3 Tipo ideal ........................................................................................................30
3.3.4 Tipos ideais de dominação: .............................................................................30
3.3.5 Burocracia .......................................................................................................30
3.4 Karl Marx .............................................................................................................................. 32
3.4.1 Manifesto comunista .......................................................................................33
3.4.2 Marx e o materialismo histórico .......................................................................35
3.4.3 Fixando conceitos: ..........................................................................................37
4 Acidentes de trabalho: uma abordagem sociológica (Artigo de João Areosa e

Tom Dwyer) ................................................................................................................... 39

4.1 Introdução à noção de acidente ....................................................................................... 39


4.1.1 Acidentes de trabalho: Perspectiva histórica ...................................................39
4.1.2 Lógicas Preventiva e de Reparação ................................................................41
4.1.3 Acidentes de trabalho pelas lentes das Ciências Sociais ................................43
4.2 Revisitando a teoria sociológica de Dwyer para os acidentes de trabalho ............... 43
4.2.1 Acidentes de trabalho como fatores sociais e organizacionais ........................43
4.2.2 Acidentes de trabalho como resultado de relações sociais .............................44
3
4.2.3 Relações entre empregadores e trabalhadores ...............................................44
4.2.4 Acidentes através da observação das relações sociais dentro das
organizações .................................................................................................................54
4.2.5 Os acidentes e as teias das relações sociais no trabalho ................................55
4.2.6 As estratégias organizacionais para a redução de acidentes ..........................55
4.2.7 Novos caminhos de reflexão para a teoria social dos acidentes ......................59
5 Bibliografia .............................................................................................................. 63
4

1 INTRODUÇÃO :
1.1 O papel da sociologia no mundo contemporâneo

A sociologia é uma ciência importantíssima atualmente e tenta compreender


as causas e conseqüências dos problemas sociais (como violência, pobreza,
educação, etc.). Através de métodos analíticos sofisticados, procura medir o
tamanho e as relações existentes entre estes problesmas, podendo assim entender
e propor ações na busca de soluções satisfatórias para os males da sociedade
contemporânea.
Hoje as pessoas estão buscando, cada vez mais, por espaço e
reconhecimento em seu trabalho ou grupo social, afastam-se de seus laços
familiares (contatos sociais primários) e medem seu proprio sucesso em função da
sua capacidade de consumo, ou seja, da quantidade de dinheiro que pode receber
por seu trabalhoe e os bens de consumo que podem resultar dele. Isso resulta em
indivíduos egoístas e forma uma sociedade mais intolerante no que diz respeito às
diferenças (religiosas, de hábitos ou crenças, etc.). Este comportamento
individualista contribui para o aparecimento ou agravamento dos problemas sociais
enfrentados pela a sociedade moderna.
O conhecimento sociológico permite às pessoas uma maior conscientização
sobre seu papel e lugar na sociedade. Permite às pessoas entender seus direitos e
deveres de cidadãos e, por consequência, forma pessoas mais ativas socialmente,
capacitadas a se organizar em grupos para buscar mais justiça, equidade, tolerãncia
às diferenças e, assim, mais harmonia na vida conjunta que é uma caraterística das
sociedades contemporâneas.
É importante compreender que a sociologia surgiu num momento de grande
expansão do capitalismo, desencadeado pela dupla revolução – a industrial e a
francesa. O triunfo da revolução industrial desencadeou uma crescente
industrialização e urbanização, o que provocou radicais modificações nas condições
de existência e nas formas habituais de vida de milhões de seres humanos. Estas
situações sociais radicalmente novas, impostas pela sociedade capitalista, fizeram
com que a sociedade passasse a se constituir em "problema". Diante disso,
pensadores da época procuraram extrair dessas novas situações temas para a
análise e reflexão, no objetivo de agir, tanto para manter como para reformar ou
5
modificar radicalmente a sociedade de seu tempo. Isto foi fundamental para a
formação e a constituição de um saber sobre a sociedade.

2 MAS AFINAL, O QUE É SOCIOLOGIA? A construção sociológica da


realidade
2.1 Os fundamentos da reflexão sociológica a partir da
problematização do mundo social:

Para alguns, a sociologia representa uma poderosa arma a serviço dos


interesses dominantes; para outros, é a expressão teórica dos movimentos
revolucionários. Mas afinal, o que é sociologia ?
A sociologia é uma ciência que estuda as sociedades humanas e os
processos que interligam os indivíduos em associações, grupos e instituições.
Enquanto o indivíduo isolado é estudado pela psicologia, a sociologia estuda
os fenômenos que ocorrem quando vários indivíduos se encontram em grupos de
tamanhos diversos, e interagem no interior desses grupos.
Pondo-se de lado alguns trabalhos precursores, como os de Maquiavel (Itália
em Florença, 1469 - 1527) e Montesquieu (França em Bordéus, 1689 - 1755), o
estudo científico dos fatos humanos somente começou a se constituir em meados do
século XIX. Nessa época, assistia-se ao triunfo dos métodos das ciências naturais.
Diante da comprovação inequívoca da fecundidade do caminho metodológico
apontado por Galileu (Itália em Pisa, 1564 - 1642) e outros, alguns pensadores que
procuravam conhecer cientificamente os fatos humanos passaram a abordá-los
segundo as coordenadas das ciências naturais. Outros, ao contrário, afirmando a
peculiaridade do fato humano e a conseqüente necessidade de uma metodologia
própria. Essa metodologia deveria levar em consideração o fato de que o
conhecimento dos fenômenos naturais é um conhecimento de algo externo ao
próprio homem, enquanto nas ciências sociais o que se procura conhecer é a
própria experiência humana (interna).
De acordo com a distinção entre Experiência Externa e Experiência Interna,
pode-se distinguir uma série de contrastes metodológicos entre os dois grupos de
ciências. As Ciências Exatas partiriam da observação sensível e seriam
experimentais, procurando obter dados mensuráveis e regularidades estatísticas que
conduzissem à formulação de leis de caráter matemático.
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Já as Ciências Humanas, ao contrário, dizendo respeito à própria experiência
humana, seriam introspetivas, utilizando a intuição direta dos fatos, e procurariam
atingir não generalidades de caráter matemático, mas descrições qualitativas de
tipos e formas fundamentais da vida do espírito.

2.2 Os Teóricos das Ciências Sociais :

Os Positivistas (como eram chamados os teóricos da identidade fundamental


entre as Ciências Exatas e as Ciências Humanas) tinham suas origens sobretudo na
tradição empirista inglesa que remonta a Francis Bacon (Inglaterra em Londres,
1561 – 1626) e encontrou expressão em David Hume (Escócia em Edimburgo, 1711
– 1776), nos Utilitaristas do século XIX e outros. Nessa linha metodológica de
abordagem dos fatos humanos se colocariam Augusto Comte (França, 1798 –
1857) e Emile Durkheim (França, 1858 – 1917), este considerado por muitos como
o fundador da sociologia como disciplina científica. Os antipositivistas, adeptos da
distinção entre Ciências Humanas e ciências naturais, foram sobretudo os alemães,
vinculados ao idealismo dos filósofos da época do romantismo, principalmente
Hegel (Alemanha em Esturgarda, 1770 – 1831) e Schleiermacher (Polônia em
Breslau, 1768 – 1834). Os principais representantes dessa orientação foram os
neokantianos Wilhelm Dilthey (Alemanha em Briebrich, Renânia, 1833 – 1911),
Wilhelm Windelband (Alemanha em Potsdam, 1848-1915) e Heinrich Rickert
(Alemanha em Danzig, 1863 – 1936).
Dilthey estabeleceu uma distinção que fez fortuna: entre explicação e
compreensão. O modo explicativo seria caraterístico das ciências naturais, que
procuram o relacionamento causal entre os fenômenos. A compreensão seria o
modo típico de proceder das Ciências Humanas, que não estudam fatos que
possam ser explicados propriamente, mas visam aos processos permanentemente
vivos da experiência humana e procuram extrair deles seu sentido.
Os sentidos (ou significados) são dados, segundo Dilthey, na própria
experiência do investigador, e poderiam ser empaticamente apreendidos por outros
em interação com ele conforme a vivência de cada um.
Dilthey (como Windelband e Rickert), contudo, foi sobretudo filósofo e
historiador e não, propriamente, cientista social, no sentido que a expressão
ganharia no século XX. Outros levaram o método da compreensão ao estudo de
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fatos humanos particulares, constituindo diversas disciplinas compreensivas. Na
sociologia, a tarefa ficaria reservada a Max Weber.
Levando-se em conta os esforços realizados por tantos pensadores, desde a
antigüidade, para entender a sociedade e o seu desenvolvimento, a sociologia
poderia ser considerada a mais velha de todas as ciências, e a mais acolhedora.
Tanto que hoje em dia praticamente todo mundo é ―sociólogo‖ — ―porque todos
estamos sempre analisando os nossos comportamentos e as nossas experiências
interpessoais‖1 —, pois, até por razões emocionais, de alguma forma nos
acostumamos a contemplar e a dar palpite sobre os movimentos da sociedade, as
forças que conduzem os seres humanos, as razões dos conflitos sociais, as origens
da família, as relações entre Estado e Direito, o funcionamento dos sistemas
políticos, a função das ideologias e das religiões etc. Segundo esse raciocínio,
podem ter sido sociólogos os veneráveis santos Agostinho (354 – 430) e Tomás de
Aquino (Itália, 1225 – 1274) e padre Antônio Vieira (Portugal, 1608 - 1697), que
interpretavam a realidade social de acordo com os dogmas e interesses da igreja
católica, bem como os notáveis Ibn Khaldun, historiador islâmico (Tunísia, 1332 –
1406) e Maquiavel, que criticavam toda interpretação teológica da sociedade.

Ibn khaldun, é um precursor das ciências sociais e é reconhecido como o


historiador principal do mundo árabe em seu tempo. Mas, o mundo árabe de então
dominava também o mediterrâneo, Espanha e metade de Europa do leste. É
considerado como hispânico-árabe, pois sua família foi uma das principais e mais
antigas de Sevilha, embora tivesse nascido na Tunísia e morrido no Cairo. Era
diplomata e estadista, professor nas instituições precursoras do que hoje
associamos a ideia de universidade e magistratura.
Sua obra mestra é ―Muqaddimah‖ ou ―introdução à história‖, que trata do
mundo árabe e muçulmano. Entretanto, julgou necessário conformar uma teoria da
história e do seu método, e ao o fazê-lo, produziu um tratado que segundo alguns,
como Arnold Toynbee (Inglaterra, 1889 – 1975), «desarrolla una filosofia de la
historia que es sin duda lo más grandioso de su tipo jamás escrito, en cualquier
tiempo o lugar». Mais do que um tratado da história ou da sua filosofia, é um
exemplo de um enfoque analítico sobre o fenômeno social que hoje em dia nós
chamamos sociologia. O livro I de sua história é um tratado geral da sociologia; o II e
1
TURNER, 2000
8
o III são sobre a sociologia da política (o que hoje chamamos de ciência política); o
IV é sobre economia política e o V versa sobre educação e conhecimento.
Toda a obra está estruturada em torno de um conceito que chamou
―Asabiyah‖, ou coesão social. Este é o elemento ordenador do fenômeno social que
surge espontaneamente das relações entre as pessoas e os grupos, que pode ser
conformado e institucionalizado pela cultura e a religião, mas que também pode ser
destruído ou debilitado pela decadência.
Ibn khaldun é um precursor das ciências sociais modernas ao anunciar
a existência de determinada ordem social subjacente ao fenômeno político,
econômico, legal e moral.

Em suas palavras, ao definir, o que viu como a ciência nova que chamou ―im
al umran‖, ou ciência da cultura: ―esta ciência tem seu próprio objeto de estudo,
ou seja, a sociedade humana, com seus problemas e suas mudanças que se
sucedem conforme essa natureza própria da sociedade‖.

(traduzido do artigo original em espanhol)

Porém, a trajetória da sociologia no ocidente, só começa a ser delineada com


o movimento político e intelectual conhecido como iluminismo (Inglaterra, Holanda
e França, 1590 - séc XVII e XVIII), que exerceu enorme influência no século XVIII,
propondo reformas no interesse das classes privilegiadas (elite), conforme leis que
regeriam ao mesmo tempo a sociedade, o universo e a natureza e a Revolução
Industrial (Inglaterra, 1750 com introdução da máquina a vapor - séc. XVIII em
diante). Em seguida, após a Revolução Francesa (França, 1789 – 1799) e a queda
do antigo regime (regime político vigente na França até a revolução francesa) , a
sociologia adquiriu os traços que ostenta hoje em dia, aos poucos destituindo-se da
roupagem de ciência ética, de filosofia política ou social, preocupada em determinar
uma ordem justa das relações humanas, para concentrar-se na descrição e
interpretação dos elementos — desempenhos, grupos, valores, normas e modelos
sociais de conduta — que determinam a integração dos sistemas sociais.
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Revolução Século / ano Esfera de atuação e
impato
Iluminismo A partir de 1590, séc. XVII – XVIII Ideológica
Industrial Segunda metade do séc. XVIII Econômica
(1750)
Francesa Segunda metade do séc. XVIII Política
(1789)

Nesse sentido, a sociologia é um fenômeno estrito e uma ciência,


caraterística da sociedade moderna.
O termo sociologie foi cunhado por Auguste Comte, que esperava unificar
todos os estudos relativos ao homem — inclusive a história, a psicologia e a
economia. Seu esquema sociológico era tipicamente positivista, (corrente que teve
grande força no século XIX), e ele acreditava que toda a vida humana tinha
atravessado as mesmas fases históricas distintas e que, se a pessoa pudesse
compreender este progresso, poderia prescrever os remédios para os problemas de
ordem social.
O surgimento da sociologia ocorreu num momento de grande expansão do
capitalismo, desencadeado pela dupla revolução – a industrial e a francesa. O triunfo
da indústria capitalista na revolução industrial desencadeou uma crescente
industrialização e urbanização, o que provocou radicais modificações nas condições
de existência e nas formas habituais de vida de milhões de seres humanos. Estas
situações sociais radicalmente novas, impostas pela sociedade capitalista, fizeram
com que a sociedade passasse a se constituir em "problema". Diante disso,
pensadores ingleses da época procuraram extrair dessas novas situações temas
para a análise e a reflexão, no objetivo de agir, tanto para manter como para
reformar ou modificar radicalmente a sociedade de seu tempo. Isto foi fundamental
para a formação e a constituição de um saber sobre a sociedade. Outra
circunstância que também influenciou e contribui para a formação da sociologia se
deve às transformações ocorridas nas formas de pensamento, originadas pelo
iluminismo.
As transformações econômicas que o ocidente europeu presenciou desde o
século XVI, provocaram modificações na forma de conhecer a natureza e a cultura.
10
A partir daí, o pensamento deixa de ter uma visão sobrenatural para a explicação
dos fatos da natureza e passa a ser substituído pelo uso da razão.
O emprego sistemático da razão representou um avanço para libertar o
conhecimento do controle teológico, da tradição, da revelação e para a formulação
de uma nova atitude intelectual diante dos fenômenos da natureza e da cultura.
Essas novas maneiras de produzir e viver, propiciaram um visível progresso das
formas de pensar e contribuíram para afastar interpretações baseadas em
superstições e crenças infundadas, abrindo conseqüentemente um espaço para a
constituição de um saber sobre os fenômenos histórico-sociais.
Esta crescente racionalização da vida social não era um privilégio somente de
filósofos e homens que se dedicavam ao conhecimento, mas também, do homem
comum dessa época, que renunciava cada vez mais os fatos submetidos às forças
sobrenaturais, passando a percebê-los como produtos da atividade humana,
passíveis de serem conhecidos e transformados.
A Revolução Francesa contribuiu para o surgimento da sociologia na medida
em que o objetivo dessa revolução era mudar a estrutura do estado monárquico e,
ao mesmo tempo, abolir radicalmente a antiga forma de sociedade; promover
profundas inovações na economia, na política, na vida cultural, etc; além de desferir
seus golpes contra a igreja. Tais atitudes ocasionaram profundos impatos, causando
espanto aos pensadores da época e à própria burguesia, já instalada no poder.
Diante disso, esses pensadores se incumbem à tarefa de racionalizar a nova ordem
e encontrar soluções para o estado de "desorganização" então existente. Mas, para
estabelecer esta tarefa seria necessário, segundo eles, conhecer as leis que regem
os fatos sociais e instituir uma ciência da sociedade.
Assim, pensadores positivistas da época concluíram que, para restabelecer a
organização e o aperfeiçoamento na sociedade, seria necessário fundar uma nova
ciência. Essa nova ciência assumia, como tarefa intelectual, repensar o problema da
ordem social, ressaltando a importância de instituições como a autoridade, a família,
a hierarquia social, destacando a sua importância teórica para o estudo da
sociedade. A oficialização da sociologia foi, portanto, em larga medida, uma criação
do positivismo que procurará realizar a legitimação intelectual do novo regime.
Foram as ideias desenvolvidas por incontáveis homens e mulheres, ao longo
da história humana, que começa na mesopotâmia e no egito a mais de quatro mil
11
anos antes de Cristo, que reunidas, trabalhadas e revistas, formaram o que hoje
temos como conhecimento em todas as áreas da vida.

2.3 Os fundadores da Sociologia

A sociologia foi o resultado da união de inúmeros pensadores, nas diversas


partes do mundo. Alguns se conheciam, muitos outros nunca se viram. Uns
complementando outros, até formar o que conhecemos como ciência sociológica ou
ciência da sociedade ou sociologia. Destes tantos, três pensadores foram
responsáveis por estruturar os fundamentos da sociologia possibilitando criar três
linhas mestras explicativas, fundadas por eles e aos quais iremos estudar com mais
profundidade:
1) a positivista-funcionalista, de Émile Durkheim (França, 1858 – 1917), de
fundamentação analítica;
2) a sociologia compreensiva iniciada por Max Weber (Alemanha, 1864 – 1920), de
matriz teórico-metodológica hermenêutico-compreensiva; e
3) a sociologia dialética, iniciada por Karl Marx (Inglaterra, 1818 – 1883) que mesmo
não sendo um sociológo e sequer se pretendendo a tal, deu início a uma profícua
linha de explicação sociológica.

TEÓRICO PRINCÍPIOS TEÓRICOS


EMILE DURKHEIM Fato social, consciência coletiva, anomia
MAX W EBER Ação social
KARL MARX Modo de produção, mais-valia, acumulação primitiva,
alienação, materialismo histórico, ideologia, luta de
classes, materialismo dialético
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3 Os clássicos da sociologia
3.1 Auguste Comte
O núcleo da filosofia de Comte radica na ideia de que a sociedade só pode
ser convenientemente reorganizada através de uma completa reforma intelectual do
homem. Ele achava que antes da ação prática, seria necessário fornecer aos
homens novos hábitos de pensar de acordo com o estado das ciências de seu
tempo. Por essa razão, o sistema Comteano estruturou-se em torno de três temas
básicos : em primeiro lugar, uma filosofia da história com o objetivo de mostrar as
razões pelas quais uma certa maneira de pensar (chamada por ele filosofia positiva
ou pensamento positivo) deve imperar entre os homens. Em segundo lugar, uma
fundamentação e classificação das ciências baseadas na filosofia positiva.
Finalmente, uma sociologia que, determinando a estrutura e os processos de
modificação da sociedade permitisse a reforma prática das instituições.
A contribuição principal de Comte à filosofia do positivismo foi sua adoção
do método científico como base para a organização política da sociedade industrial
moderna.
O estado positivo corresponde à maturidade do espírito humano. O termo
positivo designa o real em oposição ao quimérico, a certeza em oposição à
indecisão, o preciso em oposição ao vago. É o que se opõe as formas teológicas ou
metafísicas de explicação do mundo.
Ex: a explicação da queda de um objeto ou corpo: o primitivo explicaria a queda
como uma ação dos deuses; o metafísico Aristóteles explicaria a queda pela
essência dos corpos pesados, cuja natureza os faz tender para baixo, onde seria
seu lugar natural; Galileu, espírito positivo, não indagaria o porquê, não procuraria
as causas primeiras e últimas, mas se contentaria em descrever como o fenômeno
da queda ocorre.
Não era apenas quanto ao método de investigação que a filosofia positivista
se aproximava das ciências da natureza. A própria sociedade foi concebida como
um organismo constituído de partes integradas e coesas que funcionavam
harmonicamente, segundo um modelo físico ou mecânico. Por isso o positivismo foi
chamado também de organicismo.
13
3.1.1 Caraterísticas do positivismo
A realidade é formada por partes isoladas, de fatos atômicos; a explicação
dos fenômenos se dá através da relação entre eles; não se interessa pelas causas,
mas pelas relações entre os fenômenos; rejeição ao conhecimento metafísico; há
somente um método para a investigação dos dados naturais e sociais. Tanto um
quanto outro são regidos por leis invariáveis.

Em sua lei dos três estados ou estágios do desenvolvimento intelectual,


Comte teoriza que o desenvolvimento intelectual humano havia passado
historicamente primeiro por um estágio teológico, em que o mundo e a humanidade
foram explicados nos termos dos deuses e dos espíritos; depois através de um
estágio metafísico transitório, em que as explanações estavam nos termos das
essências, de causas finais, e de outras abstrações; e finalmente para o estágio
positivo moderno. Este último estágio se distinguia por uma consciência das
limitações do conhecimento humano.

3.1.2 Lei dos três estados


Estado teológico Estado metafísico Estado positivo
-tudo tem origem no - tudo tem origem na razão, - ciência substitui a razão, natureza e
sobrenatural na natureza e em forças forças misteriosas
-época dos sacerdotes e misteriosas - época industrial
militares - época jurídica - predomínio do intelectual, principalmente
-domínio da organização - prevalece a organização o sociólogo
militar jurídica - a economia se junta à sociologia para,
juntas, guiarem os destinos da organização
social

Comte tentou também uma classificação das ciências; baseada na hipótese


que as ciências tinham se desenvolvido a partir da compreensão de princípios
simples e abstratos, para daí chegarem à compreensão de fenômenos complexos e
concretos.
Assim as ciências haviam se desenvolvido a partir da matemática, da
astronomia, da física, e da química para atingir o campo mais complexo da biologia
e finalmente da sociologia.
14
De acordo com Comte, esta última disciplina, a sociologia, não somente
fechava a série, mas também reduziria os fatos sociais a leis científicas, e
sintetizaria todo o conhecimento humano, como ápice de toda a ciência.
Embora não fosse dele o conceito de sociologia ou da sua área de estudo,
Comte ampliou seu campo e sistematizou seu conteúdo. Dividiu a sociologia em dois
campos principais: Estática Social, ou o estudo das forças que mantêm unida a
sociedade; e Dinâmica Social, ou o estudo das causas das mudanças sociais.

3.1.3 Estudo da Estática Social = ordem


O estudo da estática social deve ser iniciado com o entendimento do
consenso social, que é a interdependência social ou interpenetração dos
fenômenos sociais. Segundo Comte os fenômenos sociais só podem ser estudados
em conjunto porque eles são fundamentalmente conexos. E é pelo consenso social
que pode existir a harmonia social.
A sociedade é composta de unidades chamadas de células sociais. Essas
células são famílias e não indivíduos. A família, portanto, é a verdadeira unidade
social por ser a associação mais espontânea que existe. Ela é a fonte espontânea
da educação moral e constitui a base natural da organização política.
A sociedade deve ser organizada com base no "organismo doméstico", que
tem como caraterísticas principais:
 Subordinação - subordinação espontânea da mulher ao homem e dos filhos
aos pais
 União - a família é possível graças à união de seus membros
 Cooperação - a sociabilidade no meio familiar é possível graças à cooperação
 Altruísmo - o sentimento familiar desenvolve o prazer de fazer pelo outro e
para o outro.
Toda sociedade deve possuir uma ordem, proveniente dos instintos sociais do
indivíduo e que se manifesta através da família. Essa ordem exige, para sua
sobrevivência, de uma autoridade. Na família essa autoridade é o marido e na
sociedade é o governo. Não há sociedade sem governo, nem governo sem
sociedade.
O governo deve manter uma intervenção "universal e contínua" na sociedade,
de forma material, intelectual e moral, para evitar que o progresso a inviabilize.
Segundo Comte, o progresso enfraquece a união e a cooperação, fragilizando a
ordem. Essa é a intervenção do "conjunto sobre as partes".
15
As forças sociais que determinam as estruturas sociais são a material, a
intelectual e a moral. A organização social baseia-se na divisão do trabalho social e
na combinação de esforços.

3.1.4 Estudo da Dinâmica Social = progresso

Todo estado social é uma consequência do passado e uma preparação para


o futuro. Não há espaço para quaisquer vontades superiores. As leis que regem o
estado social são leis análogas às leis biológicas. E exatamente por essa analogia
conclui-se que a humanidade caminha para a completa autonomia, o que ocorrerá
quando for ultrapassada a sua etapa metafísica.
Mas nada é eterno! A evolução da sociedade, da mesma forma que no
indivíduo, leva-a para o inevitável caminho da decadência final.
No início a humanidade assumiu a fase teológica ou fictícia, que foi uma fase
provisória, mas o ponto de partida necessário para todo o processo cultural.
A segunda fase é a metafísica ou abstrata, que é transitória, onde os agentes
sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, entendidas como seres do
mundo.
A terceira fase é a positiva, científica ou real, que é a fase definitiva da
humanidade, quando o homem descobre a impossibilidade de obter conhecimentos
absolutos e desiste de indagar sobre a origem e a finalidade do universo, assim
como sobre as causas íntimas dos fenômenos. O homem passa a se preocupar
apenas em descobrir as leis efetivas que estabelecem as relações invariáveis de
sucessão e semelhança. Estudam-se as leis a abandona-se a pesquisa das causas.

3.1.5 Problema fundamental do estado positivo


Conciliação da ordem com o progresso, que é a condição necessária ao
aparecimento do verdadeiro sistema político. Toda ordem estabelecida deverá ser
compatível com o progresso, assim como todo progresso, para ser realizado, deverá
permitir as consolidação da ordem.
Estado positivo significa o fracasso da teologia e da metafísica. Em seguida
virá o domínio do positivismo e da sociologia, fazendo surgir a "religião da
humanidade", com o predomínio do altruísmo e da harmonia social.
16

3.2 Emile Durkheim

Durkheim viveu numa época de grandes conflitos sociais entre a classe dos
empresários e a classe dos trabalhadores. É também uma época em que surgem
novos problemas sociais como favelas, suicídios, poluição, desemprego etc. No
entanto, o crescente desenvolvimento da indústria e tecnologia fez com que
Durkheim tivesse uma visão otimista sobre o futuro cio capitalismo. Ele pensava que
todo o progresso desencadeado pelo capitalismo traria um aumento generalizado da
divisão do trabalho social e, por consequência, da solidariedade orgânica, a ponto
do fazer com que a sociedade chegasse a um estágio sem conflitos e problemas-
sociais.
Com isso, Durkheim admitia que o capitalismo seja a sociedade perfeita;
trata-se apenas de conhecer os seus problemas e de buscar uma solução cientifica
para eles. Em outras palavras, a sociedade é boa, sendo necessário, apenas, "curar
as suas doenças".
Tal forma de pensar o progresso de um jeito positivo fez com que Durkheim
concluísse que os problemas sociais entre empresários e trabalhadores não se
resolveriam dentro de uma luta política, e, sim, através da ciência, ou melhor, da
sociologia. Esta seria, então, a tarefa da sociologia: compreender o funcionamento
da sociedade capitalista de modo objetivo para observar, compreender e classificar
as leis sociais, descobrir as que são falhas e corrigi-las por outras mais eficientes.

3.2.1 A estrutura social


E como está estruturada esta sociedade segundo Durkheim ?
A estrutura da sociedade é formada pelas esferas política, econômica e
ideológica. Estas esferas formam a estrutura social responsável pela consolidação
do capitalismo.
Ao refletir sobre a sociedade, Durkheim começou a elaborar algumas
questões que orientaram seu trabalho:
1. O que faz uma sociedade ser sociedade ?
2. Qual é a relação entre o indivíduo e a sociedade ?
3. Como os indivíduos transformam o social ?
17
4. O social é a superação do individual. Em que momento os indivíduos
constituem uma sociedade ?

Uma outra preocupação de Durkheim, assim como outros pensadores, era a


formação de uma ciência social desvinculada das ciências naturais. Além disso na
emergência do proletariado, era preciso encontrar formas de controle de tal forma
que o indivíduo se integre à ordem. Este princípio será aplicado na educação.
A contribuição de Durkheim foi de importância fundamental para que a
sociologia adquirisse o status de ciência, pois ele estuda a sociedade e separa os
fenômenos sociais da psicologia, construindo um objeto e um método.
Na obra ‗As Regras Do Método Sociológico‘ publicada em 1895, definiu o
método a ser usado pela sociologia e as definições e parâmetros para a sociologia
tornar-se uma ciência, separada da psicologia e filosofia. Ele formulou o tipo de
acontecimentos sobre os quais o sociólogo deveria se debruçar : os fatos sociais.
Estes constituiriam o objeto da sociologia.

3.2.2 Método sociológico de Émile Durkheim

1º regra do método : tratar o fato social como coisa.

FATO SOCIAL É coletivo


É representação FATO SOCIAL é diferente do
não se reduz ao individual Determinação biológica
Individual / Emocional
Representação Fato Individual e do Fato Orgânico
Coletiva
Durkheim separa o
social do individual e
do orgânico

Para Émile Durkheim, fatos sociais são maneiras de agir, pensar e sentir
exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder coercitivo e compartilhadas
coletivamente. Variam de cultura para cultura e tem como base a moral social,
estabelecendo um conjunto de regras e determinando o que é certo ou errado,
permitido ou proibido. Não podem ser confundidos com os fenômenos orgânicos
nem com os psíquicos, constituem uma espécie nova de fatos.
18

3.2.3 Os Fatos Sociais

Trés são as caraterísticas que Durkheim distingue nos fatos sociais :


- Geral – se repete em todos os indivíduos. Tem natureza coletiva.
- Exterior - independe da vontade ou adesão consciente do indivíduo. Ex : leis
- Coercitivo2 - se impõe sobre o indivíduo.

Os fatos sociais deveriam ser encarados como coisas, isto é, objetos que, lhe
sendo exteriores, poderiam ser medidos, observados e comparados
independentemente do que os indivíduos pensassem ou declarassem a seu
respeito.
Para se apoderar dos fatos sociais, o cientista deve identificar, dentre os
acontecimentos gerais e repetitivos, aqueles que apresentam caraterísticas
exteriores comuns.

Fato Social Fato Social


existe ANTES Indivíduo existe DEPOIS

Por que considerar o fato social como coisa?


Para afastar os pré-conceitos, as pré-noções e o individualismo ou seja, seus
valores e sentimentos pessoais em relação ao acontecimento a ser estudado.

Como se reconhece um fato social?


Pelo poder de coerção que exerce ou que pode exercer sobre os indivíduos,
identificado pelas sanções ou resistências a alguma atitude individual contrária e
quando é exterior a ele. Ex: se um aluno chega ao colégio de roupa de praia, ele
estará em desacordo com a regra e sofrerá sanção por isso, seja voltar para casa ou
uma advertência por escrito.
O social é o entre nós. Onde se dá a interação, troca.

Indivíduo social Indivíduo


entre
2
Coerção : repressão, restrição de direitos, que limita a liberdade de agir individual. Ex : a regra da
escola é usar uniforme composto de blusa com logotipo do colégio, calça jeans azul e tênis.
19
As transformações que se produzem no meio social, sejam quais forem as
causas repercutem em todas as direções do organismo social e não podem deixar
de afetar mais ou menos, todas as suas funções.
Durkheim não aceita a ideia que diz ser o social formado de processos
psíquicos. Durkheim afirma que o social não pertence a nenhum indivíduo, mas ao
grupo que sofre pressões e sansões sendo obrigado a aceitá-lo.
Partindo do princípio de que o objetivo máximo da vida social é promover a
harmonia da sociedade consigo mesma e com as demais sociedades, e que essa
harmonia é conseguida através do consenso social, a ‗saúde‘ do organismo social
se confunde com a generalidade dos acontecimentos e com a função destes na
preservação dessa harmonia, desse acordo coletivo que se expressa sob a forma de
sanções sociais.
Quando um fato põe em risco a harmonia, o acordo, o consenso e, portanto, a
adaptação e evolução da sociedade, estamos diante de um acontecimento de
caráter mórbido e de uma sociedade doente.
Portanto, normal é aquele fato que não extrapola os limites dos
acontecimentos mais gerais de uma determinada sociedade e que reflete os valores
e as condutas aceitas pela maior parte da população. Patológico é aquele que se
encontra fora dos limites permitidos pela ordem social e pela moral vigente.

3.2.4 As Regras do Método Sociológico


Em As Regras Do Método Sociológico, escrito em 1894, Durkheim coloca
que:
1º) devemos afastar sistematicamente todas as ideias pré-concebidas ou pré-
noções ao se estudar um fato social:
 Ideia é a representação mental de alguém ou coisa concreta ou abstrata.
 Pré-conceber significa antecipar uma ideia, sem saber ao certo o que é. Ex:
naquela escola, dizem, o ensino é fraco; escola pública é sinônimo de má qualidade
no ensino; todo político é corrupto, acho que Roberto gosta de vinho suave.

2º) os fatos sociais devem ser explorados de acordo com os seus aspetos gerais e
comuns, evitando suas manifestações individuais. Ex: aspetos gerais da dengue: a
dengue é uma doença febril aguda, causada por vírus, de evolução benigna, na
forma clássica, e, grave, quando se apresenta na forma hemorrágica. A
20
manifestação individual da dengue varia de pessoa para pessoa. Uma pessoa pode
ter dengue hemorrágica enquanto outra pode ter dengue simples.

3º) para explicar um fenômeno social devemos separar dois estudos: o da sua
causa e o da sua função. Ex: qual a função do professor na escola? Qual é a
causa do desinteresse do aluno pelo conteúdo oferecido na escola?

4º) a pesquisa da causa que determina o fato social deve ser feita entre os fatos
sociais anteriores e nunca entre os estados de consciência individual.
Ex: em dada comunidade, há histórico de violência doméstica. Os relatos anteriores
e atuais determinaram ser a violência doméstica um fato social naquela comunidade
e não somente um caso isolado ou individual.

5º) devemos buscar a origem primeira de todo processo social de alguma


importância na constituição do meio social interno.
Meio social interno é a família, grupo da escola, o ambiente em que a pessoa
se desenvolve. A interação entre a pessoa e o meio ambiente representa a dinâmica
da vida. É um processo de ação e reação a estímulos positivos ou não e que serão
responsáveis pelo despertar ou bloqueio das potencialidades da pessoa.
Processo social é qualquer mudança ou interação social em que é possível
destacar uma qualidade ou direção contínua ou constante. Produz aproximação
(cooperação, acomodação, assimilação) ou afastamento (competição, conflito).

O todo se manifesta numa parte. O todo é mais do que a soma das partes,
Porque a consciência coletiva passa pela individualidade mas vai além desta
individualidade.

3.2.5 Da Divisão Do Trabalho Social


Em seu livro „da divisão do trabalho social‟ de 1893, Durkheim reconhecia a
existência de duas consciências. Segundo ele :

"...em cada uma de nossas consciências há duas consciências: uma, que é


conhecida por todo o nosso grupo e que, por isso, não se confunde com a nossa,
mas sim com a sociedade que vive e atua em nós; a outra, que reflete somente o
21
que temos de pessoal e de distinto, e que faz de nós um indivíduo. Há aqui duas
forças contrárias, uma centrípeta e outra centrífuga, que não podem crescer ao
mesmo tempo".

Para Durkheim, o social é modelado pela consciência coletiva3, que é uma


realidade social resultante do contato social. Essa consciência difere da
consciência individual4, pertencendo a todos enquanto integrados e a nenhum em
particular. Os fenômenos sociais refletem a estrutura do grupo social que os produz
(ideia da sociologia moderna).
Se a sociedade é o corpo, o estado é o seu cérebro e por isso tem a função
de organizar essa sociedade, reelaborando aspetos da consciência coletiva.
Vimos que a sociedade capitalista está cheia de problemas.
Durkheim admitia que o estado é uma instituição que tem o dever do elaborar
leis que corrijam os casos patológicos da sociedade.
Em resumo: se cabe a sociologia observar, entender e classificar os casos
patológicos, procurando criar uma nova moral social, cabe ao estado colocar em
pratica os princípios dessa nova moral.
Neste contexto, a sociologia e o estado complementam-se na organização da
sociedade para, na prática, evitarem os problemas sociais. Isso levou Durkheim a
acreditar que os sociólogos devessem ter uma participação direta dentro do estado.
Para Durkheim, a sociologia deveria ter ainda por objetivo comparar as
diversas sociedades. Constituiu assim o campo da morfologia social, ou seja, a
classificação das espécies sociais.

3.2.6 MORFOLOGIA SOCIAL – AS ESPECIES SOCIAIS

 morfologia: estudo das formas


 morfologia social: estudo das estruturas ou das formas de vida social; para
Durkheim: classificação das ―espécies‖ sociais (inspiração na biologia)

3
Consciência coletiva: conjunto das maneiras de agir, pensar e agir, característica de determinado
grupo ou sociedade. Impõe-se à consciência individual. É a forma moral vigente na sociedade. Ela
aparece como regras estabelecidas que delimitam o valor atribuído aos atos individuais. Ela define o
que, numa sociedade, é considerado ‗imoral‘, ‗reprovável‘ ou ‗criminoso‘. A punição é o meio de voltar
à consciência coletiva.
4
consciência Individual : traços de caráter ou temperamento e acúmulo de experiências pesoais
que permite relativa autonomia no uso e adaptação das maneiras de agir, pensar e sentir.
22
evolução das sociedades
 ponto de partida: a horda (agrupamento social primitivo, em que todos os
membros usufruíam de condições iguais)
 evolução: combinações várias, de que resultaram outras ―espécies‖ sociais,
identificáveis no passado e no presente (clãs, tribos, castas etc)
 trabalho científico de classificação das sociedades:
- Procedimento: observação experimental
- Resultado: ―descoberta‖ de que o motor de transformação de toda e qualquer
sociedade seria a passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade
orgânica

Obs. No conceito Durkheimiano, o termo solidariedade não tem os significados


Usuais de fraternidade, ajuda, assistência, filantropia e outros.

SOLIDARIEDADE → o que liga as pessoas

Basta uma rápida observação do contexto histórico do século XIX, para se


perceber que as instituições sociais se encontravam enfraquecidas, havia muito
questionamento, valores tradicionais eram rompidos e novos surgiam, muita gente
vivendo em condições miseráveis, desempregados, doentes e marginalizados.
Ora, numa sociedade integrada essa gente não podia ser ignorada, de uma
forma ou de outra, toda a sociedade estava ou iria sofrer as consequências.

Durkheim acreditava que a sociedade, funcionando através de leis e regras


já determinadas, faria com que os problemas sociais não tivessem sua origem na
economia (forma pela qual as pessoas trabalham), mas sim numa crise moral, isto
é, num estado social em que várias regras de conduta não estão funcionando. Por
exemplo: se a criminalidade aumenta a cada dia é porque as leis que regulamentam
o combate ao crime estão falhando, por serem mal formuladas. A este estado de
crise social onde as leis não estão funcionando, Durkheim denomina patologia
social. Por outro lado, os problemas sociais podem ter sua origem também na
ausência de regras, o que por sua vez se caracterizaria como anomia.
Frente à patologia social (regras sociais falhas), cabe à sociologia captar suas
causas, procurando evitar a anomia (crise total), através da criação de uma nova
moral social que supere a velha moral deficiente.
23
Na tentativa de ―curar‖ a sociedade da anomia, Durkheim escreve em seu
livro “da divisão do trabalho social”, sobre a necessidade de se estabelecer uma
solidariedade orgânica entre os membros da sociedade. A solução estaria em,
seguindo o exemplo de um organismo biológico, onde cada orgão tem uma função e
depende dos outros para sobreviver, cada membro da sociedade exercer uma
função na divisão do trabalho.
Cada indivíduo ou cidadão será obrigado, através de um sistema de direitos e
deveres, e também sentirá a necessidade, de se manter coeso e solidário aos
outros. O importante para ele é que o indivíduo realmente se sinta parte de um todo,
que realmente precise da sociedade de forma orgânica, interiorizada e não
meramente mecânica.

Durkheim através do estudo da solidariedade – apoiando-se em Heráclito


(Grécia, 540 a.c. - 470 A.C.) e Aristóteles (Grécia, 384–322 a.c.) – vai dizer que há
sempre um processo em direção ao consenso – onde não há conflto.
Durkheim se preocupa com a função do direito e como é trabalhado o
consenso e a solidariedade.
Quando a consciência coletiva é abalada, a punição deve ser aplicada. O
indivíduo deve seguir a consciência coletiva, as regras.
Nas sociedades simples, os indivíduos são a extensão do coletivo, da
coletividade. A consciência individual se dilui, se perde na coletividade. E isso se dá
naturalmente.
Nas sociedades complexas, o consenso se dá através do contrato, da
contratualidade e tem a ver com a especialização.
A solidariedade neutraliza uma possível barbárie na civilização.

Como resultado da divisão do trabalho social a sociedade obtém:


1) aumento da força produtiva;
2) aumento da habilidade do trabalho;
3) permite o rápido desenvolvimento intelectual e material das sociedades;
4) integra e estrutura a sociedade mantendo a coesão social e tornando seus
membros interdependentes;
5) traz equilíbrio, harmonia e ordem devido à necessidade de união pela semelhança
24
e pela diversidade;
6) provoca a solidariedade social;

Durkheim mostra em seu livro que :


- A solidariedade é o fundamento da civilização, pois ela interliga as pessoas ;
- O trabalho não existe sem solidariedade ;
- Solidariedade significa função, união, independente de ser boa ou má ;
- Existem dois tipos de solidariedade : mecânica e orgânica.

3.2.7 Da solidariedade mecânica à solidariedade orgânica

Solidariedade mecânica : é a solidariedade por semelhança.


Predominante nas sociedades pré-capitalistas (primitivas, antigas, asiáticas,
feudais):
- Influência marcante do peso coercitivo da consciência coletiva, que moldava os
indivíduos através da família, da religião, da tradição e dos costumes;
- Maior independência e autonomia individual em relação à divisão do trabalho
social ;
Os membros da sociedade em que domina a solidariedade mecânica estão
unidos por laços de parentesco.
O meio natural e necessário a essa sociedade é o meio natal, onde o lugar de
cada um é estabelecido pela consanguinidade e a estrutura dessa sociedade é
simples.
O indivíduo, nessa sociedade, é socializado porque, não tendo individualidade
própria, se confunde com seus semelhantes no seio de um mesmo tipo coletivo.
Na solidariedade mecânica, o direito é repressivo (penal). Crime é tudo aquilo
que diz respeito a consciência coletiva, ao consenso. O crime é o rompimento de
uma solidariedade social. Todo ato criminoso é criminoso porque fere a consciência
comum, que determina as formas de solidariedade necessárias ao grupo social.
Não reprovamos uma coisa porque é crime, mas sim é crime porque a
reprovamos. A solidariedade social representada pelo direito penal é a mais
elementar, espontânea e forte.

Solidariedade orgânica : é a solidariedade por desemelhança.


25
Típica das sociedades capitalistas:
- grande interdependência entre os indivíduos, como resultado da acelerada divisão
do trabalho. Essa interdependência é o principal elo de união social, ao invés
das tradições, dos costumes e dos laços sociais mais estreitos  tendência a
uma maior autonomia individual, pela especialização de atividades
- Influência menor da consciência coletiva, portanto.
E fruto das diferenças sociais, já que são essas diferenças que unem os
indivíduos pela necessidade de troca de serviços e pela sua interdependência. Os
membros da sociedade onde predomina a solidariedade orgânica estão unidos em
virtude da divisão do trabalho social.
O meio natural e necessário a essa sociedade é o meio profissional, onde o
lugar de cada um é estabelecido pela função que desempenha e a estrutura dessa
sociedade é complexa. O indivíduo, nessa sociedade é socializado porque, embora
tenha sua individualidade profissional, depende dos demais e por conseguinte, da
sociedade resultante dessa união.
Na solidariedade orgânica, o direito é restitutivo, cooperativo. O direito restitutivo
cooperativo é preventivo. Evita, previne a repressão, a dor. O contrato é uma forma
de prevenir que a transgressão seja muito grande. Quanto mais civilizada for uma
sociedade, maior o número de contratos dele, que servirá para prevenir
desobediências.
Os costumes são a fonte do direito, mas tudo aquilo que é mais importante para
a consicência coletiva, torna-se direito, regra.

Podemos tornar estes conceitos mais fáceis de serem entendidos a partir de


um exemplo: imaginemos um professor que necessite formar grupos para
desenvolver o tema da aula. O professor pode querer a formação dos grupos a partir
de dois critérios: ele pode pedir nos alunos que formem grupos livremente, a partir
da amizade existente entre eles. Uma segunda opção é pedir aos alunos para
formarem grupos de forma que em cada um dos grupos fique uma pessoa que saiba
datilografia, outra que saiba desenhar, outra que tenha experiência de redação, e,
por fim, uma que domine bem o conteúdo das aulas que seja o coordenador do
grupo.
No primeiro caso, o que uniu os alunos no grupo foi um sentimento, a
amizade, de onde teríamos a solidariedade mecânica. No segundo caso, o que
26
uniu os alunos em grupo foi a dependência que cada um tinha da atividade do outro:
a união foi dada pela especialização das funções, de onde teríamos a solidariedade
orgânica.
Durkheim admite que a solidariedade orgânica é superior à mecânica,
pois ao se especializarem as funções, a individualidade de certo modo, é
ressaltada, permitindo maior liberdade de ação.
No grupo formado por amigos, pode acontecer que um elemento discorde
muito das opiniões de outro; este fato pode trazer um conflito que põe em risco a
existência do grupo. Nesse caso, os elementos devem agir do acordo com as ideias
comuns do grupo, e não a partir das suas próprias ideias. Já no grupo onde a união
dá-se pela atividade especializada, a individualidade é ressaltada, pois, dentro da
sua atividade, cada um age como bem entende, e aí a divergência de opiniões não
põe em causa a existência do grupo.

3.3 Max Weber

Max Weber nasceu e teve sua formação intelectual no período em que as


primeiras disputas sobre a metodologia das ciências sociais começavam a surgir na
europa, sobretudo em seu país, a Alemanha. Filho de uma família da alta classe
média, Weber encontrou em sua casa uma atmosfera intelectualmente estimulante.
Seu pai era um conhecido advogado e desde cedo orientou-o no sentido das
humanidades. Weber recebeu excelente educação secundária em línguas, história e
literatura clássica. Em 1882, começou os estudos superiores em Heidelberg;
continuando-os em Göttingen e Berlim, em cujas universidades dedicou-se
simultaneamente à economia, à história, à filosofia e ao direito.
Concluído o curso, trabalhou na universidade de Berlim, na qual idade de
livre-docente, ao mesmo tempo em que servia como assessor do governo. Em 1893,
casou-se e; no ano seguinte, tornou-se professor de economia na universidade de
freiburg, da qual se transferiu para a de Heidelberg, em 1896. Dois anos depois,
sofreu sérias perturbações nervosas que o levaram a deixar os trabalhos docentes,
só voltando à atividade em 1903, na qualidade de co-editor do arquivo de Ciências
Sociais, publicação extremamente importante no desenvolvimento dos estudos
sociológicas na Alemanha. A partir dessa época, Weber somente deu aulas
27
particulares, salvo em algumas ocasiões, em que proferiu conferências nas
universidades de Viena e Munique, nos anos que precederam sua morte, em 1920.

A sociologia Weberiana caracteriza-se por um dualismo racionalismo –


irracionalismo:
- racionalismo: rotina social; estabilidade; tradição; legalidade; continuidade;
espírito científico e pragmático do ocidente, sacrificando a espontaneidade da vida
aos cálculos e à seleção dos meios, para serem atingidos fins previamente
escolhidos.
- irracionalismo: crenças; mitos; sentimentos; ação carismática.

Para Weber a sociedade não seria algo exterior e superior aos indivíduos,
como em Durkheim. Para ele, a sociedade pode ser compreendida a partir do
conjunto das ações individuais reciprocamente referidas. Por isso, Weber define
como objeto da sociologia a ação social.

3.3.1 O que é ação social?


Para Weber ação social é qualquer ação que o indivíduo faz orientando-se
pela ação de outros. Por exemplo um eleitor. Ele define seu voto orientando-se pela
ação dos demais eleitores. Ou seja, temos a ação de um indivíduo, mas essa ação
só é compreensível se percebemos que a escolha feita por ele tem como referência
o conjunto dos demais eleitores.
Assim, Weber dirá que toda vez que se estabelecer uma relação significativa,
isto é, algum tipo de sentido entre várias ações sociais, teremos então relações
sociais.
A ação social, é a conduta humana dotada de sentido. O sentido motiva a
ação individual.
Para Weber, cada sujeito age levado por um motivo que se orienta pela
tradição, por interesses racionais ou pela emotividade.
O objetivo que transparece na ação social permite desvendar o seu sentido,
que é social na medida em que cada indivíduo age levando em conta a resposta ou
reação de outros indivíduos.
A ação social gera efeitos sobre a realidade em que ocorre.
28
5
E o indivíduo que através dos valores sociais e de sua motivação, produz o
sentido da ação social.
A transmissão destes valores comuns de uma geração para outra é chamada
socialização, que é uma forma inconsciente de coerção social. Ex. De valores
sociais: respeito, virgindade, honestidade, solidariedade, etc
Só existe ação social quando o indivíduo tenta estabelecer algum tipo de
comunicação, a partir de suas ações, com os demais.
A partir dessa definição, Weber afirmará que podemos pensar em diferentes
tipos de ação social, agrupando-as de acordo com o modo pelo qual os indivíduos
orientam suas ações. Assim, ele estabelece tipos de ação social:
1. Ação tradicional: aquela determinada por um costume ou um hábito arraigado.
2. Ação carismática: inova e não obedece a tradições. Funda-se na crença de ser
seu autor dotado de poderes sobre-humanos e sobrenaturais que agem,
livremente, sem fazer caso de normas estabelecidas ou de tradições,
estabelecendo novas normas e criando tradições.
3. Ação afetiva: orientada pelas emoções e sentimentos.
4. Ação social racional: determinada pelo cálculo racional que coloca fins e
organiza os meios necessários.
5. Ação política: a finalidade ideal da ação política é a instituição e a perpetuação
do poder. Para a instituição e a perpetuação do poder a ação política exerce três
tipos de dominação que precisam ser legitimados: carismática, tradicional e legal.

Weber afirma que a ciência social que ele pretende exercitar é uma ―ciência
da realidade‖, voltada para a compreensão da significação cultural atual dos
fenômenos e para o entendimento de sua origem histórica.
O método compreensivo, defendido por Weber, consiste em entender o
sentido que as ações de um indivíduo contêm e não apenas o aspeto exterior
dessas mesmas ações.
Se, por exemplo, uma pessoa dá a outra um pedaço de papel, esse fato, em
si mesmo, é irrelevante para o cientista social. Somente quando se sabe que a

5
Valores : níveis de preferência estabelecidos pelo ser humano para objetos, conhecimentos,
comportamentos ou sentimentos, tenham eles origem individual ou coletiva. Mas todos eles geram
algum tipo de conduta, isto é, servem de referência para a ação. É o valor moral, ético. Os valores
sociais são aqueles gerados por um grupo e que contribuem para sua manutenção. Durkheim atribuiu
aos valores a caracteristica de coerção social, ou seja, o poder de induzir pessoas a um determinado
comportamento.
29
primeira pessoa deu o papel para a outra como forma de saldar uma dívida (o
pedaço de papel é um cheque) é que se está diante de um fato propriamente
humano, ou seja, de uma ação carregada de sentido. O fato em questão não se
esgota em si mesmo e aponta para todo um complexo de significações sociais, na
medida em que as duas pessoas envolvidas atribuem ao pedaço de papel a função
do servir como meio de troca ou pagamento; além disso, essa função é reconhecida
por uma comunidade maior de pessoas.

3.3.2 Que é conhecimento?

O termo ‗Conhecimento‘ engloba todos os acontecimentos pensados, racionalizados,


não apenas vividos.
 O conhecimento é a relação entre uma consciência e um objeto que se quer
conhecer.
 O conhecimento é o saber acumulado pelo homem através das gerações.
 O conhecimento é produto da ação e do pensamento (que gerou a ação).
Ex: tive a ideia de fazer um bolo. Não qualquer bolo. Escolhi fazer um bolo de
chocolate. A massa que saiu do forno é o produto da ideia que tive. As pessoas que
apenas comeram o bolo, não pensaram, não tiveram a ideia, não racionalizaram
criando a receita.
 O conhecimento pode ser:
Concreto: sujeito estabelece relação com objeto individual. Ex: conhecimento que
temos de alguém em particular.
Abstrato: relação estabelecida com um objeto geral, universal. Ex: conhecimento
que temos do ser humano, como gênero.

Acontecimentos pensados: são as ideias que temos das coisas: o pensamento


 Antes da ação existe a ideia, o pensamento do que se quer fazer.
 O pensamento é organizado com o vocabulário aprendido assim como os
conceitos e definições.
 As ações exemplificam este conteúdo aprendido racionalmente através da língua
(portuguesa).
 As ideias são os pensamentos organizados.
30
Definição de ideia: representação abstrata de um ser, de um objeto, elaborada pelo
pensamento.
Ex: ideia do que seja belo (ideal de beleza).

3.3.3 Tipo ideal

O tipo ideal é uma construção do pensamento e sua caraterística principal é


não existir na realidade, mas servir de modelo para a análise de casos concretos,
realmente existentes.
As construções de tipo ideal fazem parte do método tipológico criado por Max
Weber. Ao comparar fenómenos sociais complexos o pesquisador cria tipos ou
modelos ideais, construídos a partir de aspetos essenciais dos fenómenos.

3.3.4 Tipos ideais de dominação:


- dominação carismática: legitimada pela fé e pelas qualidades sobrenaturais do
chefe
- dominação tradicional: legitimada pela crença sacrossanta na tradição
- dominação legal: legitimada pelas leis a partir dos costumes e tornado possível
pela burocracia, trazendo a especialização e a organização racional e legal das
funções.

3.3.5 Burocracia

O estado moderno, com suas inúmeras atribuições, reclama a existência de


uma ampla estrutura organizacional, constituída por funcionários sujeitos à
hierarquia e a regulamentos.
Popularmente, o termo burocracia apresenta em geral uma conotação
pejorativa, associada à lentidão com que se cumprem os trâmites administrativos e à
existência de estruturas, um tanto abstratas, que regem as atividades humanas sem
levar em conta as circunstâncias concretas e as necessidades individuais.
Nas ciências sociais, entretanto, a noção de burocracia define, por um lado, a
estrutura organizativa e administrativa das atividades coletivas, no campo público e
privado, e, por outro, o grupo social constituído pelos indivíduos dedicados ao
31
trabalho administrativo, organizado hierarquicamente, de forma que seu
funcionamento seja estritamente regido por rigorosas regras de caráter interno,
emanadas da legislação administrativa geral.
Foi no século XVIII, com a crescente importância assumida pelos organismos
administrativos, que Jean-Claude Marie Vincent, senhor de Gournay, criou a palavra
burocracia, a partir do francês bureau, "escritório", e do grego kratia, "poder".
Somente em fins do século XIX, o tema passou a ser estudado dentro de uma
perspectiva geral.
―o domínio legal é caracterizado, do ponto de vista da legitimidade, pela
existência de normas formais. Do ponto de vista do aparelho, pela existência de um
staff administrativo burocrático (grupo qualificado de funcionários pela aptidão e
competência, que assiste a um dirigente em entidades públicas e privadas)‖. Weber,
portanto, define a burocracia como a estrutura administrativa, de que se serve o tipo
mais puro do domínio legal.

Segundo Weber, são três as caraterísticas da burocracia:


 A estruturação hierárquica;
 O papel desempenhado por cada indivíduo dentro da estrutura; e
 A existência de normas reguladoras das relações entre as unidades dessa
estrutura.

A divisão do trabalho em áreas especializadas é obtida pela definição precisa


dos deveres e responsabilidades de cada pessoa, considerada não individualmente,
mas como um "cargo". Essa definição de cargo delimita determinadas áreas de
competência, que não podem ser desrespeitadas em nenhuma hipótese, de acordo
com os regulamentos pertinentes. Em situações extremas ou anômalas, recorre-se à
consulta "por via hierárquica", ao órgão imediatamente superior.
Essa via, segundo Weber, resulta da absoluta compartimentação do trabalho
e da estruturação hierárquica dos diferentes departamentos, de forma racional e
impessoal. A legitimação da autoridade não é pessoal, nem se baseia no respeito
primário à tradição, como nas relações tradicionais entre superiores e inferiores, mas
resulta do reconhecimento da racionalidade e da excelência dos processos
estabelecidos. O respeito e a obediência são devidos não à pessoa, nem sequer à
instituição, mas sim ao ordenamento estabelecido.
32
Para Weber, a caraterística básica de todo o sistema burocrático é a
existência de determinadas normas gerais e racionais de controle, que regulam o
funcionamento do conjunto de acordo com técnicas determinadas de gestão,
visando o maior rendimento possível.
Na realidade, como reconhece Weber, nem todas as organizações
administrativas apresentam-se com todas essas caraterísticas, presentes, no
entanto, na grande maioria delas.

3.4 Karl Marx

As revoluções burguesas do séc. XVIII se encontravam, no início do séc. XIX,


ameaçadas pelas forças conservadoras do feudalismo em decomposição,
representadas pela nobreza e pelo clero desejosas de restituir o absolutismo e
excluir a burguesia do poder político.
As forças revolucionárias eram representadas pela burguesia e pelo
crescente proletariado, ambos descontentes com a situação socioeconômica. O
embate dessas forças se fez sentir em 1830 e 1848 nos grandes movimentos
liberais e nacionais que, iniciados na França, se estenderam pela Bélgica, Polônia,
Alemanha, Itália, Portugal e Espanha.
Em uma Alemanha agitada e cheia de problemas, surgiu o Marxismo.
Em 1848, Marx e Engels (1820 – 1895) escrevem o Manifesto Comunista,
formulando suas ideias a partir da realidade social por eles observada: de um lado o
avanço técnico, o aumento do poder do homem sobre a natureza, o enriquecimento
e o progresso; de outro e contraditoriamente, a escravização crescente da classe
operária, cada vez mais empobrecida.
O objetivo de Marx não era apenas contribuir para o desenvolvimento da
ciência, mas propor uma ampla transformação política, econômica e social.
A teoria Marxista compõe-se de uma teoria científica, o materialismo
histórico e de uma filosofia, o materialismo dialético.
Marx desenvolve o materialismo histórico, a corrente mais revolucionária do
pensamento social nas consequências teóricas e na prática social que propõe. Ele
faz uma leitura crítica da filosofia de Hegel (Alemanha, 1770 – 1831), de quem
absorveu e aplicou, de modo peculiar, o método dialético.
33

Para Hegel, o mundo é a manifestação da ideia. Marx e Engels ao contrário,


diz que a matéria é a fonte da consciência e esta é um reflexo da matéria. Marx diz
que:
“a contradição é a fonte de toda a vida. Só na medida em que encerra em
si uma contradição é que uma coisa se move, tem vida e atividade. Só o
choque entre o positivo e o negativo permite o processo de desenvolvimento e
o eleva a uma fase mais elevada.”
Naturalmente Marx substitui, do pensamento de Hegel, o espírito ou a ideia,
que são os elementos básicos de sua dialética, pelas relações de produção, pelos
sistemas econômicos, pelas classes sociais, ou seja, pelas condições materiais
de existência.

Marx contraria também a declaração universal dos direitos humanos


elaborada no período iluminista que diz que todos os homens são iguais política e
juridicamente e que a liberdade e justiça eram direitos inalienáveis de todo cidadão.
Ele proclama que não existe tal igualdade natural e observa que o liberalismo vê os
homens como átomos, como se estivessem livres das evidentes desigualdades
estabelecidas pela sociedade. Ele discordará de Durkheim sobre o consenso,
dizendo que não existe consenso, mas sim uma eterna luta de classes.

3.4.1 Manifesto comunista

Marx, Karl e Engels, Friedrich, Manifesto Do Partido Comunista – 1848


http://www.culturabrasil.pro.br/manifestocomunista.htm)

O manifesto sugere um curso de ação para uma revolução socialista através


da tomada do poder pelos proletários.
O manifesto comunista faz uma dura crítica ao modo de produção capitalista
e na forma como a sociedade se estruturou através desse modo. Busca organizar o
proletário como classe social capaz de reverter sua precária situação e descreve os
vários tipos de pensamento comunista, assim como define o objetivo e os princípios
do socialismo científico.
34
Marx e Engels partem de uma análise histórica, distinguindo as várias formas
de opressão social durante os séculos e situa a burguesia moderna como nova
classe opressora. Não deixa, porém, de citar seu grande papel revolucionário, tendo
destruído o poder monárquico e religioso valorizando a liberdade econômica
extremamente competitiva e um aspeto monetário frio em detrimento das relações
pessoais e sociais, assim tratando o operário como uma simples peça de trabalho.
Este aspeto juntamente com os recursos de aceleração de produção (tecnologia e
divisão do trabalho) destrói todo atrativo para o trabalhador, deixando-o
completamente desmotivado e contribuindo para a sua miserabilidade e coisificação.
Além disso, analisa o desenvolvimento de novas necessidades tecnológicas na
indústria e de novas necessidades de consumo impostas ao mercado consumidor.
Afirmam sobre o proletariado: "sua luta contra a burguesia começa com sua
própria existência". O operariado tomando consciência de sua situação tende a se
organizar e lutar contra a opressão e ao tomar conhecimento do contexto social e
histórico onde está inserido, especifica seu objetivo de luta. Sua organização é ainda
maior, pois toma um caráter transnacional, já que a subjugação ao capital despojou-
o de qualquer nacionalismo. Outro ponto que legitima a justiça na vitória do
proletariado seria de que este, depois de vencida a luta de classes, não poderia
legitimar seu poder sob forma de opressão, pois defende exatamente o interesse da
grande maioria: a abolição da propriedade (―os proletários nada têm de seu para
salvaguardar‖). A exclusividade entre os proletários conscientes, portanto
comunistas, segundo Marx e Engels, é de que visam à abolição da propriedade
privada e lutam embasados num conhecimento histórico da organização social, são,
portanto revolucionários. Além disso, destaca que o comunismo não priva o poder
de apropriação dos produtos sociais; apenas elimina o poder de subjugar o trabalho
alheio por meio dessa apropriação. Com o desenvolvimento do socialismo a divisão
em classes sociais desapareceria e o poder público perderia seu caráter opressor,
enfim seria instaurada uma sociedade comunista.
Analisam e criticam três tipos de socialismo. O socialismo reacionário, que
seria uma forma de a elite conquistar a simpatia do povo, e mesmo tendo analisado
as grandes contradições da sociedade, olhava-as do ponto de vista burguês e
procurava manter as relações de produção e de troca; o socialismo conservador,
com seu caráter reformador e anti-revolucionário; e o socialismo utópico, que apesar
de fazer uma análise crítica da situação operária não se apóia em luta política,
35
tornando a sociedade comunista inatingível. E fecham com as principais ideias do
manifesto, com destaque na questão da propriedade privada e motivando a união
entre os operários. Acentua a união transnacional, em detrimento do nacionalismo
esbanjado pelas nações, como manifestado na célebre frase: “proletários de todo o
mundo, uni-vos!”

3.4.2 Marx e o materialismo histórico

Relação do trabalhador com o meio de produção

Em 1859, Marx e Engels publicaram o prefácio da ―Contribuição à Crítica


da Economia Política”. Neste prefácio está a formulação de uma teoria empírica,
fundada na observação de condições reais do capitalismo emergente e definida
como materialismo histórico.
Os conceitos desenvolvidos por Marx em sua teoria são: mercadoria, capital,
lei da mais-valia, classes sociais, estado e ideologia.
Em seu livro mais importante, o capital, Marx afirmava que a nossa sociedade
aparece inicialmente como um grande depósito de mercadorias.
Por exemplo: relaciono-me com o padeiro, porque compro seu pão; relaciono-
me com o cobrador do ônibus, pois pago a passagem. Tudo acaba sendo
mercadoria. O trabalhador vende sua capacidade de trabalhar em troca de um
salário e assim por diante.
Marx diz que a estrutura da sociedade está fundamentada na mercadoria, ou
seja, a sociedade está estruturada na economia.
Segundo o materialismo histórico, a estrutura econômica de uma sociedade
depende da forma como os homens organizam a produção social de bens. Essa
estrutura é a verdadeira base da sociedade. É o alicerce sobre a qual se ergue a
superestrutura jurídica e política e ao qual correspondem formas definidas de
consciência social.
A produção social de bens, segundo Marx, engloba dois fatores básicos: as
forças produtivas e as relações de produção.
36
As forças produtivas e relações de produção constituem o modo de
produção e são as condições naturais e históricas de toda atividade produtiva que
ocorre na sociedade.
O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social,
política e espiritual em geral. Para Marx, o estudo do modo de produção é
fundamental para se compreender como se organiza e funciona uma sociedade. As
relações de produção, nesse sentido, são consideradas as mais importantes
relações sociais. As formas de família, as leis, a religião, as ideias políticas, os
valores sociais são aspetos cuja explicação depende, em princípio, do estudo do
modo de produção.
A história do homem é, portanto a história do desenvolvimento e do colapso
de diferentes modos de produção. Analisando a história
Marx identificou alguns modos de produção específicos: sistema comunal
primitivo, asiático, antigo, germânico, feudal e modo de produção capitalista. Cada
qual representa passos sucessivos no desenvolvimento da propriedade privada e do
advento da exploração do homem pelo homem.
Em cada modo de produção, a desigualdade de
propriedade, como fundamento das relações de produção, cria
contradições básicas com o desenvolvimento das forças
produtivas.
Ao se desenvolverem, as forças produtivas da sociedade entram em conflito
com as relações de produção existentes. Estas relações tornam-se, então,
obstáculos para as forças produtivas, nascendo, nesse momento uma época de
revolução social.
A mudança da base econômica, gerada pela transformação material das
condições econômicas de produção, provocam revoluções jurídicas, políticas,
religiosas, artísticas e filosóficas, que são as formas ideológicas que servem aos
homens não só para tomar consciência deste conflito, como também para explicá-lo.
Por outro lado jamais aparecem novas relações de produção superiores às
antigas antes que as condições materiais de sua existência se tenham desenvolvido
completamente no seio da velha sociedade.
Marx diz que as desigualdades sociais são provocadas pelas relações de
produção do sistema capitalista, as quais dividem os homens em proprietários e
37
não proprietários dos meios de produção. As desigualdades são a base da formação
das classes sociais.
Ele não acreditava no consenso de Durkheim, mas sim que a história do
homem é a história da luta de classes, uma luta constante entre interesses opostos.
Por outro lado, as relações entre as classes são complementares, pois uma só
existe em relação à outra. Só existem proprietários porque há uma massa de
despossuídos cuja única propriedade é sua força de trabalho, que precisam vender
para assegurar a sobrevivência. As classes sociais são, pois, complementares e
interdependentes.

3.4.3 Fixando conceitos:

Força produtiva = meios de produção + trabalho humano.


Todo processo produtivo combina os meios de produção e a força de
trabalho. Constituem as condições materiais de toda a produção. Sem o
trabalho humano nada pode ser produzido e sem os meios de produção, o
homem não pode trabalhar.
Todo processo de trabalho implica em determinados objetos (matérias-
primas) e determinados instrumentos (ferramentas ou máquinas). Os objetos
e instrumentos constituem os meios de produção. O proletariado constitui a
força de trabalho. Os meios de produção ou meios de trabalho incluem os
"instrumentos de produção" (máquinas, ferramentas), as instalações
(edifícios, armazéns, silos etc), as fontes de energia utilizadas na produção
(elétrica, hidráulica, nuclear, eólica etc.) E os meios de transporte. Os "objetos
de trabalho" são os elementos sobre os quais ocorre o trabalho humano
(matérias-primas minerais, vegetais e animais, o solo etc.).

Modo de produção = forças produtivas + relações de produção.


Conceito abstrato para definir os estágios de desenvolvimento do sistema
capitalista. É a forma de organização socioeconômica associada a uma
determinada etapa de desenvolvimento das forças produtivas e das relações
de produção. Reúne as caraterísticas do trabalho preconizado, seja ele
artesanal, manufaturado ou industrial. São constituídos pelo objeto sobre o
38
qual se trabalha e por todos os meios de trabalho necessários à produção
(instrumentos ou ferramentas, máquinas, oficinas, fábricas, etc.) Existem seis
modos de produção: primitivo, asiático, escravista, feudal, capitalista e
comunista.

Relações de produção
O trabalho é necessariamente um ato social. As pessoas dependem umas
das outras para obter os resultados pretendidos. As relações de produção são
as formas pelas quais os homens se organizam para executar a atividade
produtiva. As relações de produção podem ser cooperativistas (ex: mutirão),
escravistas (como na antiguidade europeia ou período colonial brasileiro),
servis (como na Europa feudal) ou capitalistas (como na indústria moderna).
São constituídas pela propriedade econômica das forças produtivas. Na
condição de escravos, servos ou assalariados, os trabalhadores participam da
produção somente com sua força de trabalho. Na condição de senhores,
nobres ou empresários, os proprietários participam do processo produtivo
como donos dos meios de produção.

Classe social
O conceito científico das classes sociais exige análise dos seguintes níveis:
modo de produção, estrutura social, situação social e a conjuntura. Em uma
explicação mais simples, classe social é um grupo de pessoas que tem
status social similar segundo critérios diversos, especialmente o econômico.
Segundo a ótica Marxista, em praticamente toda sociedade, seja ela pré-
capitalista ou caracterizada por um capitalismo desenvolvido, existe a classe
dominante, que controla direta ou indiretamente o estado, e as classes
dominadas por ela, reproduzida inexoravelmente por uma estrutura social
implantada pela classe dominante. Segundo a mesma visão de mundo, a
história da humanidade é a sucessão das lutas de classes, de forma que
sempre que uma classe dominada passa a assumir o papel de classe
dominante, surge em seu lugar uma nova classe dominada, e aquela impõe a
sua estrutura social mais adequada para a perpetuação da exploração.
39

4 Acidentes de trabalho: uma abordagem


sociológica (Artigo de João Areosa e Tom Dwyer)

4.1 Introdução à noção de acidente

Os acidentes sempre fizeram e sempre farão parte dos eventos ocorridos em


sociedade, e isto pode explicar, em parte, o porquê de eles poderem ser
considerados como um problema social. É verdade que os acidentes podem ocorrer
em todos os lugares (escolas, casa, locais de trabalho, estradas, etc.), em diversas
circunstâncias, e derivar de múltiplas causas. Esta fatalidade social à qual todos nós
estamos sujeitos depende dos riscos e dos perigos que corremos ao longo das
nossas vidas. Apesar de alguns acidentes serem dramáticos nas consequências que
produzem, eles são por definição eventos relativamente raros, visto que
representam desvios à normalidade. Em traços gerais, julgamos que não é possível
prevenir e evitar todos os acidentes, mas estamos convictos de que as investigações
sobre acidentes podem ajudar a prevenir alguns (Areosa, 2009a).

Os acidentes são eventos que ocorrem de forma repentina, mas às suas


causas podem estar associados, simultaneamente, fatores sincrónicos e
diacrónicos. Em sentido etimológico, o termo ―acidente‖ significa um qualquer evento
não planeado, fortuito, imprevisto e fruto do acaso. Na linguagem do senso comum
um acidente é entendido como algo nefasto, maléfico e aleatório que provoca danos
ou prejuízos. Desta definição preliminar podemos diagnosticar a existência de uma
impossibilidade empírica para controlar e antever todas as situações passíveis de
causar acidentes. Até meados do século XVIII a noção ocidental de acidente (tal
como a noção de risco) esteve associada a manifestações divinas; até este período
as grandes catástrofes eram vistas como fruto da vontade dos Deuses. A laicização
da catástrofe (Theys, 1987) começa a emergir após o terramoto de Lisboa de 1755
(Areosa, 2008) e surge como um pensamento fraturante dentro da visão social
dominante acerca dos acidentes. A partir deste período os acidentes começam
também a ser entendidos como resultado de condições naturais.

4.1.1 Acidentes de trabalho: Perspectiva histórica

Ainda numa perspectiva histórica, facilmente se podem verificar os inegáveis


benefícios que a Revolução Industrial veio trazer para as sociedades modernas.
40
Contudo, este ―novo‖ período acarretou também alguns efeitos sociais adversos,
nomeadamente ao nível da ―produção‖ de acidentes. As novas formas de
organização do trabalho, fruto da Revolução Industrial, são, em grande medida,
responsáveis pela sinistralidade laboral massiva e sistemática que caracterizou o
mundo do trabalho nos últimos dois séculos (Pinto, 1996). É verdade que aos
empregadores (em parte produtores dos discursos dominantes) interessa refutar
qualquer responsabilidade sobre os acidentes de trabalho. Por isso, a sua visão
quase sempre assentou no pressuposto da inevitabilidade dos acidentes (o
designado preço a pagar pelo desenvolvimento industrial) ou a imprudência e
respetiva culpabilização dos próprios trabalhadores (Español, 2001).

A partir da Revolução Industrial os acidentes passaram a incorporar uma nova


dimensão de peso: a tecnologia. A interação do homem com a tecnologia
possibilitou a emergência de novas formas de acidentes. Podemos afirmar que neste
período houve uma transformação histórica na tipologia dos acidentes. Outra
transformação importante nesta tipologia ocorreu a partir da segunda metade do
século XX, através da emergência dos acidentes maiores (Turner, 1978; LaPorte e
Consolini, 1991; Perrow, 1999; Reason, 2008; Burns e Machado, 2009). A título de
exemplo, Marx e Engels foram dos primeiros autores a debater as condições
adversas para a saúde e segurança dos trabalhadores durante a sua época. A
reflexão de Marx (1966) incidiu sobre a questão da tecnologia devido a esta poder
gerar a diminuição da necessidade de mão--de-obra. Após a emergência do
taylorismo e da organização científica do trabalho os operários não perderam
apenas a sua profissão, enquanto arte ou ofício (no sentido artesanal do termo)
perderam também o seu próprio estilo e ritmo de trabalho, bem como o controlo
sobre os seus movimentos. De certo modo, foram transformados em autómatos
direcionados quase exclusivamente para maximizar a produção.

Desde o dealbar da Revolução Industrial até aos dias de hoje verificaram-se


profundas alterações na incidência dos acidentes, devido a múltiplos fatores.
Enquanto no início da Revolução Industrial os acidentes de trabalho com mineiros
eram muito frequentes, atualmente encontramos esta caraterística nos operários da
construção civil. Assim, as transformações no mundo do trabalho deram também
origem à transformação na tipologia dos acidentes em contexto laboral.
41
Os discursos leigos sobre os acidentes foram sendo reajustados ao longo das
últimas décadas (independentemente de serem produzidos pelos próprios
protagonistas ou por simples observadores), mas continuam fortemente dominados
pela ideia de que os acidentes são fenómenos isolados, descontínuos, que surgem
de forma imprevisível e, por isso mesmo, são insusceptíveis de apreensão racional
que vá muito para além de uma análise casuística. Pinto (1996) sustenta que esta
visão sobre a sinistralidade laboral é bastante redutora, visto que no seu estudo
sobre os acidentes de trabalho na construção civil pôde encontrar determinadas
regularidades e permanências que contrariam estes pressupostos. Os acidentes de
trabalho não são acontecimentos passíveis de ocorrer numa espécie de ―vácuo
social‖; pelo contrário, eles percorrem globalmente o mundo do trabalho, o seu
espaço de produção e de existência social, embora de forma não homogênea.
Parece-nos indiscutível que os acidentes de trabalho podem ser influenciados por
fatores socioculturais. Para além disso, as percepções dos trabalhadores sobre os
acidentes de trabalho, mesmo que, por vezes, algo distorcidas em termos de rigor e
objetividade, não deixam de ser uma dimensão essencial para a compreensão e
entendimento deste problema.

Por outras palavras: as evidências e visões sobre os acidentes de trabalho


partilhados pelos atores sociais são sempre, independentemente dos equívocos
lógico-intelectuais em que assentam, uma componente essencial do sistema de
determinações da sinistralidade concreta (e de resto, também, um dos elos mais
resistentes a intervenções de natureza preventiva neste domínio). Nem de outra
forma se encontraria justificação para invocar a ―dimensão cultural‖ dos acidentes de
trabalho. (Pinto, 1996: 95)

4.1.2 Lógicas Preventiva e de Reparação

O problema dos acidentes de trabalho pode ser visto a partir de duas lógicas
distintas: a lógica preventiva e a da reparação. À refutação, por parte de alguns
sistemas jurídicos oficiais, da concepção dos acidentes enquanto eventos
exclusivamente imprevisíveis ou fruto da imprudência dos trabalhadores, ficou
subjacente a ideia da responsabilidade pelo risco gerado nos locais de trabalho (o
que veio abrir espaço para outros atores responsáveis pelos sinistros); este foi um
marco histórico para os movimentos sociais do século XIX que lutavam por melhores
condições de trabalho e maior justiça social no âmbito laboral. Estes movimentos
42
ocorreram essencialmente em França, Inglaterra e Estados Unidos. A criação de
seguros obrigatórios para os acidentes de trabalho foi, talvez, a última grande
conquista para uma maior equidade social em relação aos acidentes de trabalho.
Como afirma Pinto:

O caso francês pode aliás afirmar-se que, já a partir de 1841, com a


inflexão da jurisprudência no sentido de, salvo prova em contrário, se
imputar à entidade patronal responsabilidades pela indemnização dos
acidentados, foram concedidos aos assalariados alguns instrumentos
básicos de defesa nesta matéria. Mesmo assim, e como nota Remi Lenoir,
―para além das dificuldades que o assalariado encontrava para aduzir a
prova da culpabilidade do empregador, por força do desaparecimento dos
indícios e do silêncio das testemunhas, sobrevinham inúmeros acidentes
sem que se tornasse possível imputar uma ‗falta‘ a quem quer que fosse, de
modo que a maior parte das vítimas eram privadas de qualquer espécie de
reparação‖. (Pinto, 1996: 104)

Segundo Ewald (in Pinto, 1996: 105), se considerarmos que os acidentes de


trabalho resultam do desenvolvimento tecnológico e dos processos de
industrialização, então, não devem ser os empregadores os principais responsáveis
pelos acidentes, mas antes, a ciência, a técnica e o progresso. Naturalmente que
esta afirmação não está isenta de controvérsia, mas até podemos considerar que
esta perspectiva traduz alguma veracidade. Na mesma linha de pensamento, Ulrich
Beck (1992) e Charles Perrow (1999) corroboram a ideia de que a ciência e a
tecnologia acarretam novas formas de risco para a modernidade, passíveis de
originar acidentes ou efeitos devastadores.

Os acidentes tendem a ser eventos localizados no tempo e no espaço e


emergem a partir de um contexto ―histórico‖ específico. Segundo Pinto (1996), é
difícil recusar a ideia de que os acidentes de trabalho se encontram profundamente
interligados com as caraterísticas dos processos de trabalho. Assim, os acidentes
podem ser vistos como uma variação das situações normais de trabalho. Na
perspectiva de Furnham (1992: 258) os acidentes, por vezes, são definidos através
das suas consequências, em vez de serem procurados os seus antecedentes.
Todavia, tentar encontrar as causas dos acidentes é um aspeto fundamental,
sabendo que estes podem ter origens muito distintas. Furnham afirma que a
compreensão dos acidentes deve estar centrada também em certos detalhes,
43
nomeadamente, a descrição da situação, processos ou circunstâncias e aspetos
pessoais das vítimas. Porém, é pertinente ter em linha de conta que quase todos os
acidentes apresentam algumas ―zonas sombrias‖ de difícil compreensão, o que
dificulta a sua análise e prevenção. Aliás, Hollnagel (2004) preconiza que nunca se
consegue descobrir completamente todos os fatores subjacentes aos acidentes.

4.1.3 Acidentes de trabalho pelas lentes das Ciências Sociais

As ciências sociais vieram, de algum modo, tentar desmistificar a essência da


etimologia do acidente, à qual estava subjacente a ideia quase exclusiva de eventos
aleatórios ou fortuitos. Embora estas componentes possam contribuir parcialmente
para a explicação dos sinistros, existem outras dimensões que não podem ser
esquecidas. É por este motivo que Dwyer e Elgstrand (2009) defendem que é
necessário um novo paradigma para a segurança no trabalho, onde sejam incluídos
aspetos de natureza social. Para além disso, ainda subsistem, atualmente, alguns
enviesamentos (por defeito) na contabilização do número de acidentes de trabalho.
Esta situação leva Pinto (1996: 95) a interrogar-se se esta questão é um problema
metodológico ou político.

4.2 Revisitando a teoria sociológica de Dwyer para os acidentes de trabalho

4.2.1 Acidentes de trabalho como fatores sociais e organizacionais

O entendimento sobre os múltiplos fatores que podem contribuir para os


acidentes tem sofrido significativas alterações nas últimas duas ou três décadas. Os
acidentes deixaram de ser concebidos apenas como fenómenos fortuitos e
individuais, passando também a ser integrados na sua análise fatores sociais e
organizacionais (Hovden, Albrechtsen e Herrera, 2010). É verdade que os acidentes
são eventos expetáveis no mundo do trabalho, tendo em conta a extraordinária
diversidade de riscos que os diferentes tipos de trabalho podem incorporar. A
história dos acidentes de trabalho tem demonstrado que, à medida que se vão
reduzindo certos tipos de acidentes, também vão emergindo novos tipos de
sinistralidade (Dwyer, 2000a). Qualquer local de trabalho implica a presença de
determinados perigos, variáveis de organização para organização. Deste modo, os
acidentes de trabalho decorrem da presença de perigos e da exposição dos
trabalhadores aos riscos laborais (Areosa, 2003, 2005). Para além disso, alguns
riscos ―insuspeitos‖ nos locais de trabalho são susceptíveis de poder causar graves
44
acidentes (Granjo, 2004). É pertinente lembrar que os acidentes podem acarretar
problemas graves para os trabalhadores (lesões permanentes ou a própria morte),
mas as consequências destes eventos vão muito para além do drama inerente ao
próprio trabalhador sinistrado, pois podem também afetar, ainda que indiretamente,
as suas famílias, os seus colegas de trabalho, os seus empregadores e a sociedade
em geral.

4.2.2 Acidentes de trabalho como resultado de relações sociais

No início da década de setenta, Hale e Hale (1972) apelavam à urgente


necessidade de criar novas teorias e novos métodos para compreender o fenómeno
dos acidentes. Dentro da teoria social existem alguns modelos de elevada relevância
para a compreensão dos acidentes, particularmente o paradigma sociotécnico dos
desastres de origem humana, elaborado por Turner (1978); a abordagem sistémica
dos acidentes, onde destacamos a perspectiva dos ―acidentes normais‖ preconizada
por Perrow (1999); o modelo das High Reliability Organizations protagonizado, entre
outros, por Weick (1987), Roberts (1990) e Weick e Stucliffe (2007); e, finalmente, o
modelo do erro humano e dos acidentes organizacionais, apresentado por Reason
(1990, 1997, 2008). Porém, o referido apelo efetuado por Hale e Hale (1972)
motivou, em parte, a elaboração de uma teoria sociológica para compreender os
acidentes de trabalho (Dwyer, 1989, 1991, 2000b, 2006). Para dar sequência a esta
demanda, foram observadas diversas relações sociais nos locais de trabalho, por
vezes, separadas analiticamente enquanto objeto de estudo, mas profundamente
interligadas ao nível empírico. A tese central da teoria sociológica de Dwyer
preconiza que os acidentes de trabalho são, em grande medida, o resultado de
relações sociais. De certo modo, podemos afirmar que este modelo (concebido
essencialmente como fruto de relações sociais) está ancorado quer na perspectiva
de Durkheim, na qual se defende que o social deve ser explicado pelo social, quer
na perspectiva fenomenológica de Schutz, derivada da sociologia Weberiana (cf.
Dwyer, 2006).

4.2.3 Relações entre empregadores e trabalhadores

No âmago da teoria sociológica de Dwyer existem, essencialmente, três


níveis sociais com capacidade para explicar o desenvolvimento das relações entre
empregadores e trabalhadores – a recompensa, o comando e o organizacional –
e, por arrastamento, do próprio fenómeno dos acidentes de trabalho; a estes três
45
níveis Dwyer acrescenta um quarto, de carácter não social, designado como
indivíduo-membro. A importância de cada um destes níveis é construída nos
próprios locais de trabalho, não é dada antecipadamente; logo, a importância de um
nível num determinado contexto não significa que ele tenha o mesmo ―peso‖ noutra
realidade sociolaboral distinta. Em termos metodológicos, são testadas quatro
hipóteses de análise a partir de uma observação direta e participante, onde é
privilegiada uma certa dialética ―negocial‖ entre o conhecimento do especialista
(investigador) e o saber prático dos sujeitos observados (objeto de estudo). Esta
situação caracteriza, em parte, a originalidade e pertinência da pesquisa sociológica
protagonizada por Dwyer (1991, 2006).

Nesta perspectiva, os acidentes de trabalho dependem da relação direta ou


indireta dos trabalhadores com os riscos. Os acidentes são também vistos como
uma situação de erro específico, produzido organizacionalmente, fruto do
funcionamento e interação das quatro dimensões referidas na figura 1. Nesta figura
foi representado o modelo que concebe como as relações sociais de trabalho e o
nível indivíduo-membro podem interagir de modo a produzir acidentes.

Figura 1 – A relação dos níveis nos locais de trabalho

Fonte: Adaptado de Dwyer (2006: 142).


46
Vejamos agora com maior detalhe cada um dos quatro níveis concebidos por
Dwyer na sua teoria sociológica dos acidentes de trabalho.

a) A Recompensa

O primeiro nível – a recompensa – está relacionado com a utilização de


incentivos para gerir a relação das pessoas com o seu trabalho. Estes incentivos
podem ser subdivididos em três fatores distintos: 1) materiais ou financeiros
relacionados com a intensificação do trabalho; 2) ampliação (prolongamento) do
trabalho, por exemplo, através do recurso a horas extraordinárias; 3) recompensas
simbólicas.

Incentivos financeiros

Os incentivos financeiros que visam o aumento da produtividade dão


normalmente origem à execução de tarefas de forma mais rápida (aumentando
simultaneamente o cansaço dos trabalhadores e o número de erros ou falhas) em
detrimento, por exemplo, do cumprimento das normas e regras de segurança
estabelecidas para aquela tarefa. As recompensas materiais podem também
influenciar a aceitação da execução de tarefas de maior risco, a troco de dinheiro,
pelos trabalhadores. Existe uma certa tendência para os problemas resultantes dos
incentivos serem escamoteados, devido à aparente relação mutualista que parece
resultar para empregadores e trabalhadores; ou seja, os primeiros vêem a sua
produção aumentada, enquanto os segundos vêem os seus salários alargados.
Todavia, os custos subjacentes a esta prática estão situados, por exemplo, no
aumento do número de acidentes (McKelvey et al., 1973 in Dwyer, 2006: 153) e em
todas as consequências que daí advêm. Posteriormente, observou-se que esta
prática acarretava ainda outros problemas. Uma das desvantagens para os
empregadores que recorriam à utilização de incentivos económicos para o aumento
da produção era que este fator acabava por conduzir a uma certa rejeição pelos
trabalhadores das tarefas que não seriam alvo de incentivos. Este modelo de gestão
provocava também o ―corte‖ de algumas etapas supostamente consideradas
dispensáveis, ou a diminuição da produtividade, quando as metas para obter os
incentivos económicos eram demasiado exigentes. Para ilustrar esta situação,
verifica-se, por exemplo, que ―andaimes são erguidos e não adequadamente
fixados; máquinas que requerem manutenção são colocadas em funcionamento
47
sempre que reparos preventivos implicam interrupção do trabalho que leve a
reduções no pagamento; restos são deixados para outros limparem; o carvão
subterrâneo é extraído à custa de escorar o teto; cálculos da produção fraudados‖
(Dwyer, 2006: 147).

Ampliação do trabalho

A ampliação do trabalho é uma relação social diferente da anterior, dado


que não está assente na intensificação do esforço, mas sim no prolongamento do
tempo de trabalho. Isto significa que os trabalhadores podem obter melhores
salários através do aumento da sua carga horária (quanto maior for o número de
horas extraordinárias trabalhadas, maior será o salário obtido). Por parte dos
empregadores o recurso à ampliação do trabalho pode dever-se à escassez de
trabalhadores, a prazos apertados para a entrega da sua produção ou a elevados
custos na contratação de outros trabalhadores. Porém, o prolongamento do horário
de trabalho torna os trabalhadores mais vulneráveis a sofrerem acidentes de
trabalho, devido ao cansaço acumulado na jornada de trabalho (Areosa, 2010).

Recompensas simbólicas

As recompensas simbólicas estão articuladas com dimensões culturais dos


próprios trabalhadores, tais como o prestígio, o estatuto social, a estima ou o
cumprimento de ―rituais‖ de integração no grupo ao qual se quer pertencer. Alguns
antropólogos estudaram a questão das recompensas simbólicas no trabalho e
verificaram, por exemplo, que os índios norte-americanos que trabalharam na
construção de arranha-céus executavam o seu trabalho sem a menor segurança
laboral. Esta situação devia-se à aceitação dos perigos por parte destes atores
sociais, visto que a deliberada exposição ao risco era entendida como um ato
heroico e, simultaneamente, como um mecanismo de reforço dos seus valores
culturais tradicionais de guerreiros (bravura, audácia, coragem, etc.), por
contraposição aos valores tendencialmente preventivos das sociedades modernas.

Todas as situações descritas anteriormente podem resultar num aumento do


número de acidentes de trabalho, considerando a aceitação de riscos mais elevados
fomentada pelos três tipos de relações sociais no nível de recompensa (material,
ampliação do trabalho e recompensa simbólica). Aliás, Dwyer (2006) cita também
48
outros estudos onde se verifica que existe uma relação direta entre o aumento de
horas trabalhadas e o aumento do número de acidentes de trabalho.

b) O comando

O segundo nível da teoria sociológica dos acidentes de trabalho, designado


por comando, está relacionado com a forma como os empregadores tentam gerir as
relações dos trabalhadores com o seu trabalho, através de um controlo direto ou
indireto sobre as suas ações. Regra geral, os trabalhadores tentam resistir a formas
de controlo mais ―apertadas‖ (que tendem a inibir a sua autonomia). O conflito
latente entre empregadores e trabalhadores pode ser explicado, em parte, através
do exercício desta forma de poder e de dominação. De certo modo, podemos afirmar
que para contrabalançar um poder dominante do empregador existe um contrapoder
dominado dos trabalhadores e este último pode assumir formas e estratégias muito
diversificadas.

A dinâmica do nível comando é também ela produzida através de três tipos de


relações sociais distintas: 1) o autoritarismo, 2) a desintegração do grupo de
trabalho e 3) a servidão voluntária. As estratégias de autoritarismo utilizadas por
alguns empregadores são concebidas não tanto como um mecanismo de defesa da
segurança dos trabalhadores, mas antes como uma tentativa deliberada para
garantir que o trabalho seja executado de forma célere.

Autoritarismo:

Em diversas pesquisas de campo, na área da construção civil francesa,


verificou-se a existência de um número significativo de trabalhadores ―insatisfeitos‖,
devido ao seu trabalho ser gerido pelo autoritarismo. Estes trabalhadores
compreendiam que este fator era responsável por uma parte dos acidentes ocorridos
no seu local de trabalho (Dwyer, 1989: 29). Todavia, se um trabalhador reclamar das
más condições de trabalho às quais está sujeito, o seu empregador pode encontrar
determinados enredos para terminar esta relação contratual (despedimento). Porém,
se as condições de trabalho são más e não forem corrigidas, provavelmente irá
haver mais acidentes; este é um dos aspetos em que se torna visível a estreita
relação entre autoritarismo e acidentes de trabalho, ou seja, o autoritarismo pode
produzir acidentes (Dwyer, 2006: 174).
49
Desintegração do grupo de trabalho

A desintegração do grupo de trabalho pode ser efetuada, por exemplo,


através de uma elevada rotatividade dos trabalhadores na empresa. Os
empregadores procuram eliminar as ameaças que os grupos de trabalho coesos ou
integrados podem acarretar para si, no entanto, utilizam a desintegração sem que
isso impeça o desenvolvimento das tarefas laborais. A desintegração do grupo de
trabalho pode resultar em acidentes quando as pessoas que trabalham em tarefas
que requerem um trabalho interdependente não se compreendem. A alta
rotatividade de trabalhadores e os grupos onde as pessoas não falam a mesma
língua são alguns fatores que produzem esta relação social. É pertinente lembrar
que um grupo de trabalho integrado pode constituir a base de resistência dos
trabalhadores à imposição de trabalhos perigosos.

A servidão voluntária

A servidão voluntária é a relação social que está relacionada com a exe-


cução de trabalhos difíceis ou perigosos, sem que haja qualquer oposição por parte
dos trabalhadores que não recebem recompensas extraordinárias por esse tipo de
trabalhos. De certo modo, é uma aceitação quase fatalista das dificuldades do
trabalho e dos riscos laborais mais elevados, na medida em que os trabalhadores
têm plena consciência dessas dificuldades ou riscos. Ambientes de trabalho
insalubres podem ser dominados por esta relação. Para facilitar a subserviência, os
empregadores podem recorrer a trabalhadores que eles julgam mais propensos à
servilidade, particularmente, mulheres, deficientes ou imigrantes ilegais. Em resumo,
verifica-se que, nesta relação social, as ações dos trabalhadores estão em harmonia
com os objetivos do empregador (Dwyer, 2006: 167); mas, apesar de este tipo de
trabalhadores ser facilmente manipulável, esta política não está isenta de
desvantagens para o empregador, pois promove a excessiva passividade na
execução do trabalho.

Nesta teoria sociológica destaca-se ainda o papel positivo para a prevenção


de acidentes que alguns sindicatos podem desempenhar, ao combaterem dentro
das empresas estes três tipos de relações sociais (autoritarismo, desintegração do
grupo de trabalho e servidão voluntária). As relações que se estabelecem entre
trabalhadores e hierarquias são um aspeto decisivo nas relações sociais de trabalho,
50
particularmente na forma de dirigir a execução do trabalho. Segundo Freire (1991),
os encarregados e capatazes da construção civil, enquanto agentes de comando de
―primeira linha‖ (hierarquia direta), podem ter um papel importante no aumento ou
diminuição do número de acidentes de trabalho, devido ao papel específico que
desempenham dentro das organizações. Se a sua sensibilidade para os temas da
segurança no trabalho for significativa, o poder e a autoridade inerentes ao seu
cargo podem constituir-se como fatores inibidores para os acidentes. Aliás, esta
perspectiva vai ao encontro de um dos dez axiomas da segurança industrial,
apresentados por Heinrich (1931), que defende que os supervisores e capatazes
são agentes-chave para a prevenção de acidentes.

Dwyer define o nível comando, em grande medida, por relações de poder.


Segundo esta perspectiva, a utilização do poder serve para combater os compor-
tamentos considerados indesejados e tanto pode ser usado pelo empregador (e
respetiva cadeia hierárquica), como pelos próprios trabalhadores (entre pares). O
poder dentro das relações sociais pode ser utilizado na prevenção de acidentes, por
exemplo, através da punição de práticas e comportamentos definidos como
inseguros. No entanto, algumas pesquisas indicam que as medidas disciplinares são
capazes de reduzir mais o registo formal de acidentes do que os próprios acidentes
(Dwyer, 2006: 185). Este último aspeto é importante, visto que tem subjacente o
medo que os trabalhadores têm de serem punidos disciplinarmente por sofrerem
acidentes. Este fato pode levá-los a não os declarar. Para evitar situações desta
natureza algumas organizações preferem transferir a responsabilidade da vigilância
para os próprios trabalhadores. Esta estratégia é designada como autocomando, ou
seja, são os próprios pares que impõem sanções àqueles que agem de forma
perigosa. Alguns estudos (cf. Dwyer, 2006) sugerem que a maioria dos
trabalhadores tem preferência pelo modelo de autocomando, em detrimento de
programas de segurança organizados pela empresa. Todavia, ainda não existem
estudos suficientes para demonstrar que o modelo de autocomando seja, no geral,
mais eficaz na prevenção de acidentes.

c) O organizacional

O terceiro nível apresentado na teoria sociológica de Dwyer (2006) é desig-


nado por organizacional. Neste nível é possível identificar três tipos distintos de
relações sociais: 1) a subqualificação; 2) a rotina; e 3) a desorganização. Na
51
subqualificação pretende-se observar se o tipo de conhecimento dos trabalhadores
sobre as suas tarefas é insuficiente, visto que a falta de conhecimento pode dar
origem a uma incapacidade para executar as tarefas laborais em segurança. Por sua
vez, esta incapacidade pode depender da falta de formação específica ou de um
enviesamento na capacidade de tradução do conhecimento formal em conhecimento
prático.

A subqualificação

A introdução de novas técnicas e/ou tecnologias nos locais de trabalho gera,


potencialmente, um novo fator de risco (Areosa, 2009b), que se pode traduzir num
aumento da ocorrência de acidentes. A génese destes acidentes pode ser
encontrada numa ruptura entre a experiência e as qualificações de trabalho,
desenvolvida nas funções ou tarefas anteriores, e na inexperiência e falta de
qualificações perante a nova situação de trabalho. Nestes casos os trabalhadores
ainda não desenvolveram os mecanismos necessários para ―dominar‖ os novos
riscos, ou seja, ainda não habituaram o seu corpo ou os seus conhecimentos às
novas situações de riscos, resultantes das alterações dos seus locais de trabalho
(Pinto, 1996).

A rotina

Uma parte significativa da rotinização do trabalho está associada


à organização científica do trabalho, isto é, devido ao avanço dos princípios de
gestão tayloristas e fordistas. Isto resultou de uma semi-automatização e
simplificação do trabalho, que acarretou diversas consequências, particularmente a
rotinização das tarefas para os trabalhadores menos qualificados. A literatura sobre
as percepções de riscos (cf. Areosa, 2007, 2009c) refere que as tarefas executadas
com pouca frequência são mais susceptíveis de originar acidentes; isto pode estar
relacionado com a falta de determinados hábitos, com a ausência de adaptação
perante determinados riscos ou ainda com a falta de qualificações. Para
compreender alguns tipos de acidentes é ainda importante considerar as estratégias
de gestão cognitiva dos trabalhadores (Amalberti, 1996) ou a questão dos gestos
voluntários e involuntários, particularmente em trabalhos monótonos e cadenciados.
Se um trabalhador de uma linha de montagem é excepcionalmente confrontado com
uma nova situação de trabalho, ele até pode compreendê-la, mas o
52
designado reflexo condicionado anterior continua e isso pode explicar alguns tipos
de acidentes. Dwyer (2006) define este tipo de acidentes como resultado de uma
relação social do trabalho de rotina.

A literatura sobre acidentes tem vindo a demonstrar que a execução de


tarefas designadas de rotina é passível de gerar algumas ―armadilhas cognitivas‖
aos trabalhadores que operam nos sistemas. Estas armadilhas podem acontecer em
qualquer tipo de trabalho (quer em situações relativamente simples, quer em
situações complexas). Reason e Hobbs (2003) afirmam que a familiaridade com
determinadas situações pode conduzir o nosso comportamento através de certos
automatismos de rotina. A experiência em executar determinadas tarefas pode dar
origem a que os trabalhadores tendam a reduzir o seu esforço mental, atuando
como se tivessem acionado uma espécie de piloto automático. Assim, os seus
saberes de rotina podem, por vezes, conduzir as suas ações e isto é susceptível de
se tornar perigoso, pois os trabalhadores podem atuar de forma contrária à que
pretendiam.

A desorganização

A terceira relação apontada neste nível é a desorganização, que pode


manifestar-se de diversas formas. Regra geral, quando o conhecimento inerente a
uma determinada tarefa não é transmitido de forma adequada à pessoa que entra
em contato com essa mesma tarefa, podemos afirmar que esse trabalho é
administrado por meio de uma relação social de desorganização. Outro exemplo
desta relação pode ser identificado quando o próprio empregador efetua uma
concepção ―defeituosa‖ ou inadequada da tarefa que irá ser executada pelo
trabalhador. A falta de manutenção de máquinas, equipamentos ou infraestruturas, a
falta de limpeza e a desarrumação dos locais de trabalho são também fatores que
geram desorganização. Um controle desadequado sobre o efetivo cumprimento das
regras, normas e procedimentos de trabalho (falta de comando) contribui para
produzir a desorganização. Tal como afirma Dwyer:

Frequentemente a desorganização introduz novos problemas no processo


produtivo. No caso de quebra de equipamentos e em situações semelhantes,
observa-se que, muitas vezes, os trabalhadores atuam fora de suas áreas
especializadas para garantir a produção. Modificam as suas tarefas para fazer isso
53
e, a partir de então, seu trabalho pode passar a ser gerenciado por uma
subqualificação. Nas minas de ferro francesas, Defoin encontrou índices de
acidentes, nas tarefas de manutenção, quatro vezes maiores do que no trabalho
normal. Essa estatística provavelmente mistura desorganização e subqualificação.
(Dwyer, 2006: 203)

d) O indivíduo-membro

O quarto e último nível apresentado nesta teoria sociológica dos acidentes é o


único nível não social e é designado por indivíduo-membro. O seu cariz está
centrado numa ―sociologia do sujeito‖, que defende que o indivíduo detém uma certa
autonomia para agir, independentemente dos constrangimentos impostos pelas
relações sociais e organizacionais. Metaforicamente, é a parte do trabalhador que se
consegue ―libertar‖ da influência dos três grandes níveis sociais descritos
anteriormente. No fundo, será o reconhecimento por parte da teoria sociológica de
Dwyer que existem fatores não sociais susceptíveis de influenciar a ocorrência de
acidentes de trabalho. Um dos aspetos importantes desta dimensão está
relacionado com a tentativa de explicar a ocorrência de ―acidentes‖ provocados por
autolesão (atos intencionalmente fomentados pelo trabalhador) ou por outro tipo de
ações de natureza individual. Recorrendo a alguns exemplos, Dwyer tenta explicar
qual a importância do nível indivíduo-membro no seio das relações de trabalho, ao
afirmar que:

O trabalhador expressa-se de forma individual ao chegar ao local de trabalho


contente, porque talvez tenha acabado de ganhar um filho ou por estar intoxicado. O
trabalhador pode agir individualmente em um dos níveis sociais para reforçar o seu
poder ou o do patrão nesse nível. O indivíduo que sabota a linha de montagem, o
que organiza clandestinamente um sindicato ou o que viola as normas de
produtividade coletivas numa fábrica que paga por produção, todos eles expressam
dimensões diferentes desse nível de realidade. O sabotador recusa-se a aceitar o
controle de seu ritmo de trabalho imposto pela linha de montagem. O sindicalista
busca contestar coletivamente o poder de controle de seus patrões. O violador das
normas coletivas tenta aumentar seus ganhos aceitando as definições do patrão e
rejeitando as de seus colegas. (Dwyer, 1989: 27)
54
4.2.4 Acidentes através da observação das relações sociais dentro das
organizações

Na teoria sociológica dos acidentes de trabalho proposta por Dwyer é


apresentada uma abordagem para a explicação dos acidentes através da
observação das relações sociais dentro das organizações. As relações sociais de
trabalho são entendidas como a forma pela qual os próprios trabalhadores gerem o
seu relacionamento com o trabalho. Esta perspectiva discute que os acidentes são
essencialmente fruto das relações sociais de trabalho e, por isso, só podem ser
prevenidos através de alterações em algumas destas relações. Assim, parece
pertinente compreender quais são as relações sociais que produzem erros e, por
consequência, acidentes. A capacidade de influência de cada um dos níveis
referidos pode variar mediante cada contexto ou local de trabalho, dependendo das
estratégias de empregadores e trabalhadores. A principal tese desta teoria preconiza
que quanto maior for o peso de um nível nas relações sociais de trabalho em relação
à gestão dos perigos, maior será a proporção de acidentes causados por esse
mesmo nível.

Apesar de a teoria sociológica de Dwyer considerar os quatro níveis, referidos


na figura 1 como os mais importantes para a compreensão e explicação da maioria
dos acidentes de trabalho, ela não deixa de reconhecer a existência de outros
aspetos interessantes para um melhor entendimento acerca da possível
complexidade multicausal dos acidentes de trabalho, incorporando alguns resultados
validados em outros estudos empíricos. É verdade que Dwyer trabalha com a ideia
de monocausalidade dos acidentes (causa principal ou fundamental), devido a este
aspeto facilitar a questão da responsabilização, ou seja, tenta evitar a diluição da
responsabilidade provocada pelas teorias que se baseiam na multicausalidade.
Autores como Reason (1990; 1997), Rasmussen (1997), Perrow (1999) e Hollnagel
(2004) defendem que os acidentes podem resultar da articulação simultânea ou
sequencial de vários fatores ou causas. Isto significa que as causas podem estar,
por exemplo, ligadas em rede e que só a sua articulação permite a efetiva ocorrência
de determinado evento. Por outras palavras, a teoria de Dwyer (2006: 235-236)
reconhece explicitamente a interligação entre os níveis da realidade social e
diferentes relações sociais na produção do acidente, mas procura forçar os atores
sociais a serem responsáveis pelas suas escolhas, de modo a que isto permita
determinar ―a causa‖ do acidente. Todavia, esta perspectiva acaba por, em certos
55
casos, limitar a análise de outros fatores, que podem igualmente contribuir para a
ocorrência dos acidentes.

De seguida iremos apresentar alguns destes aspetos que acabam por se


tornar relevantes para o esclarecimento dos acidentes de trabalho, enquanto
fenómenos sociais complexos, bem como para ampliar as fronteiras da própria teoria
sociológica dos acidentes.

4.2.5 Os acidentes e as teias das relações sociais no trabalho


Alguns estudos (cf. Dwyer, 2006) revelam que as queixas dos trabalhadores
relativamente à má qualidade do sono (dormir pouco, insónias, etc.) parecem estar
relacionadas quer com o aumento do número de acidentes, quer com a sua maior
gravidade. Também a ―variável‖ alimentação sugere a existência de algum impacto
negativo nos trabalhadores, nomeadamente nos subnutridos. A relação entre a
alimentação e os acidentes de trabalho foi pesquisada em alguns trabalhadores da
construção civil franceses de origem muçulmana, tendo sido observado que, durante
o Ramadão, estes trabalhadores estavam mais vulneráveis a sofrerem acidentes de
trabalho.

Segundo Pinto (1996) a dimensão da empresa, em termos de número de


trabalhadores, parece ser também um fator importante no estudo da sinistralidade
laboral, visto que as empresas de maior dimensão tendem a ter, proporcionalmente,
menos acidentes. Já Schwartz (1987 in Dwyer, 2006) tentou associar o acidente
do Space Shuttle Challenger a algumas caraterísticas narcísicas das hierarquias de
topo da NASA que coordenavam esta missão.

4.2.6 As estratégias organizacionais para a redução de acidentes

As estratégias organizacionais para a redução de acidentes podem passar,


entre muitas outras medidas, por atribuir incentivos aos trabalhadores não
sinistrados. Esta posição por parte do empregador pode, em determinados casos,
levar os trabalhadores a não declararem os acidentes sofridos, de modo a
garantirem as recompensas estipuladas. As barreiras linguísticas e as consequentes
dificuldades de comunicação que alguns trabalhadores estrangeiros têm de
ultrapassar são também vistas como um fator que pode conduzir ao aumento dos
acidentes de trabalho. A relação entre o ruído elevado em alguns locais de trabalho
e a ocorrência de acidentes é um campo relativamente bem estudado, onde se
56
conclui que o ruído tende a aumentar os acidentes (Arezes, 2002). Nestas situações
a utilização de protetores auriculares é normalmente recomendada; porém, em
determinados contextos verificou-se que a utilização de protetores auriculares em
locais de trabalho ruidosos pode aumentar o número de acidentes, devido à inibição
da comunicação e da percepção de outros riscos por parte dos trabalhadores,
nomeadamente aqueles que podem ser percebidos através da audição (circulação
de máquinas, sinais de alarme sonoros, etc.). Neste caso, se recorrêssemos à teoria
de Dwyer (2006), estaríamos a falar da desintegração do grupo de trabalho.

Em determinados contextos específicos os fatores culturais são também


apresentados como responsáveis por elevadas taxas de sinistralidade laboral.
Durante o período do apartheid, na África do Sul, o elevado número de acidentes de
trabalho com mineiros negros foi reconhecido como uma incapacidade deste grupo
de recusar a exposição aos riscos mais graves, imposto pelo ―despotismo racial‖ ao
qual estavam sujeitos (Leger, 1986).

Alguns estudos apontam para que a elevada coesão das equipes de trabalho
possa constituir-se como um fator importante para a prevenção de acidentes de
trabalho (Hunter, 2002). Observou-se esta situação em alguns casos onde os
próprios trabalhadores podiam escolher os seus parceiros para trabalhar
diretamente consigo. A redução de acidentes parece derivar da coesão de grupo e
do bom relacionamento entre pares; isto parece indicar que as equipas mais coesas
tendem a auto proteger-se (Areosa, 2010).

Em contexto industrial, certos estudos revelam que alguns trabalhadores


tentam evitar pensar em todos os riscos do seu trabalho, caso contrário, isto poderia
acarretar alguns problemas psíquicos difíceis de ultrapassar. A psicopatologia do
trabalho aborda normalmente este tema (Dejours, 1991). Esta questão é também
transportada para a investigação sociológica (Dwyer, 2006), onde se questiona quais
as relações sociais que podem contribuir para os trabalhadores aceitarem
determinados riscos inerentes ao seu local de trabalho. Além das recompensas ou
da servidão voluntária, outro aspeto que pode ser frisado é o fato de a segurança
não ser normalmente um tema predominante na mente da maioria dos
trabalhadores. Isto não significa que os trabalhadores ignorem propositadamente os
aspetos da segurança, mas o desenvolvimento e a pressão do seu trabalho podem
obrigá-los a adoptar outro tipo de prioridades.
57
Em determinadas circunstâncias alguns trabalhadores têm de enfrentar um
forte dilema na execução de algumas tarefas mais perigosas, nas quais são
identificadas condições de trabalho inseguras. Se, por um lado, pode haver por parte
dos trabalhadores uma consciência fidedigna dos perigos e dos riscos que essas
atividades envolvem; por outro lado, podem revelar medo ou receio em recusarem a
execução deste tipo de trabalhos, devido às possíveis retaliações por parte das
hierarquias organizacionais. Esta situação pode influenciar a ocorrência de
acidentes de trabalho, caso os trabalhadores assumam uma postura de resignação
perante as más condições de trabalho e não tentem pressionar os empregadores
para as melhorarem. Esta perspectiva vai ao encontro de um dos pilares da teoria
sociológica dos acidentes (Dwyer, 2006), que defende que os acidentes de trabalho
são também fruto de relações sociais de poder.

Por vezes, existe uma visão descoincidente sobre os níveis de risco entre
quem concebe e organiza o modelo de trabalho e os próprios trabalhadores que
operam os sistemas. Tal pode ser considerado como um aspeto importante para a
ocorrência de acidentes. Se a organização ou empresa estipula uma determinada
tarefa como sendo segura, mas os trabalhadores (através do contato empírico que
têm com o trabalho) a consideram insegura, podemos entrar aqui na polémica
discussão entre as perspectivas de riscos ―objetivos‖ e riscos ―subjetivos‖ (Sjoberg,
1999). É verdade que, na maioria das situações, os trabalhadores tendem a aceitar
a visão dos empregadores, estando subjacente a ideia de que, se determinada
situação não fosse segura, não seria permitida. Porém, algumas situações fogem a
esta ―regra‖, tal como demonstra o exemplo seguinte dado por Dwyer:

Um trabalhador francês da construção civil recusou-se a usar cinto de


segurança fornecido para a sua tarefa. Ele disse que os procedimentos de
enganchar e de desenganchar necessários para mudar sua posição eram muito
mais perigosos do que simplesmente não usar o cinto. (Sua rejeição foi formulada
sem que ele tivesse o menor conhecimento de um estudo francês que demonstrou
que a maioria dos acidentes acontecia a alguns usuários desse tipo de cinto durante
esses procedimentos). (Dwyer, 2006: 183)

O exemplo anterior demonstra que a segurança no trabalho enfrenta vários


problemas de difícil resolução. Para além disso, pode acarretar fortes dilemas para
os especialistas em segurança, isto é, a tentativa de minimizar um risco (por
58
exemplo, a atribuição de cinto para evitar a queda de trabalhadores na realização de
trabalhos em altura) pode gerar outros riscos não identificados à partida e que
podem ser iguais ou superiores àquele que se pretende prevenir.

A rejeição dos dispositivos de segurança, particularmente os equipamentos


de proteção individual, pode ter origem em muitos outros aspetos, eventualmente
menos objetivos, tais como questões de identidade ou de controlo social ao nível
laboral. Como afirma Dwyer: ―De maneira diferente, a rejeição pode se dar porque
os dispositivos e as regras de segurança são vistos como símbolos de dominação
‗injusta‘ do empregador, ou porque são feios, atrapalham o desempenho, são mal
planejados e, como tais, são percebidos como uma afronta à dignidade e ao conforto
pessoais‖ (Dwyer, 2006: 183). No entanto, quando os trabalhadores utilizam este
tipo de argumentação acabam por perder alguma legitimidade moral para
reclamarem melhores condições de segurança nos seus locais de trabalho.

Face ao exposto anteriormente, depreende-se que a segurança é uma


matéria complexa no mundo do trabalho. Neste âmbito podemos encontrar alguns
paradoxos que não seriam previsíveis à partida. O primeiro deles pode ser
observado quando se verifica que a redução de acidentes causada por um dos
quatro níveis apresentados na Figura 1 pode dar origem ao aumento dos acidentes
causados por qualquer outro dos três níveis restantes. Isto significa que nem sempre
a redução de acidentes num nível dá origem a que os outros permaneçam com a
mesma ―capacidade‖ de influência sobre a totalidade dos acidentes (Dwyer, 2006:
214). É possível encontrar outro paradoxo quando observamos que, em certas
situações, os locais de trabalho aparentemente mais perigosos apresentam índices
inferiores de acidentes de trabalho, enquanto determinados locais de trabalho
considerados seguros e cumpridores das regras e normas de segurança revelam
elevadas taxas de sinistros laborais (Dwyer, 2006: 202). Esta situação pode estar
relacionada com o tipo de percepções formuladas pelos trabalhadores, sabendo que
os postos de trabalho mais seguros podem suscitar a diminuição da vigilância sobre
os riscos ocupacionais, ou, inversamente, os postos de trabalhos menos seguros
podem reforçar a sua vigilância.
59
4.2.7 Novos caminhos de reflexão para a teoria social dos acidentes
Alguns estudos mais recentes têm vindo a demonstrar que a génese dos
acidentes está incorporada na própria história das organizações, nomeadamente em
aspetos relacionados com as decisões estratégicas da gestão de topo (Sagan, 1993;
Vaughan, 1996, 1999; Rasmussen, 1997; Reason, 1997), na escolha de
determinadas técnicas e tecnologias (Perrow, 1999), no design dos postos e locais
de trabalho, nas formas de organização e planeamento das tarefas, na
especificidade dos riscos de cada organização (Areosa, 2009d), no tipo de gestão
efetuada ao nível da manutenção (Reason e Hobbs, 2003), nas formas de
compreender e ―gerir‖ os incidentes, no tipo de resiliência da organização (Hale e
Heijer, 2006), na insuficiência das regras, normas e procedimentos para a prevenção
de acidentes (Areosa, 2010), para além de certas dimensões externas à própria
organização, tais como, políticas governamentais, legislação (por inadequação ou
ausência) ou problemas relacionados com fornecedores externos. Todos estes
contextos podem ir fragilizando o próprio sistema até estarem reunidas as condições
necessárias para ocorrer o acidente (Turner, 1978). É por este motivo que
corroboramos a opinião de diversos autores (Reason, 1990; D‘Oliveira, 2006;
Dekker, 2006) que defendem que atribuir a principal causa dos acidentes ao erro
humano é uma visão muito limitada que serve como uma ideologia de poder,
acabando por negar o papel das relações sociais na produção desses mesmos
acidentes.

Por outras palavras, tal como refere Llory (1999), continuar a atribuir a culpa
dos acidentes aos trabalhadores hierarquicamente inferiores pode ser interpretado
como uma ―cegueira maciça‖, à qual pode estar subjacente a ideia de poupar
responsabilidades às hierarquias das organizações. Para além disso, Amalberti
(1996) refere que muitos acidentes são evitados graças aos trabalhadores que
atuam nas organizações (ideia compatível com as noções de auto recompensa,
autocomando e auto-organização de Dwyer).

Julgamos que a sociologia, em articulação com outras disciplinas


interessadas em aprofundar o debate sobre os acidentes, pode ajudar a desenvolver
novas formas de compreensão sobre como ocorrem certos tipos de ―erros‖ em meio
laboral. É importante aprofundar o nosso conhecimento acerca das estratégias
cognitivas dos trabalhadores durante o exercício da sua atividade profissional, assim
60
como ―dar voz‖ às suas subjetividades (mesmo que outros as possam interpretar
como sendo aparentemente ―irracionais‖). Quando ocorrerem acidentes, mais
importante do que tentar encontrar culpados ou partir imediatamente do pressuposto
que foram cometidos determinados erros humanos, parece fazer mais sentido tentar
entender quais as possíveis pressões a que os trabalhadores estavam sujeitos no
momento do acidente (conflitos com colegas e hierarquias, incertezas e dilemas nos
julgamentos, sobrecarga de trabalho, incapacidade para manter permanentemente
níveis elevados de atenção, dificuldades para cumprir determinado tipo de normas,
ou ainda outros aspetos individuais, tais como o medo de perder o emprego, o
estado de saúde, a ansiedade e a frustração ou a revolta com certas injustiças
sociolaborais). Para além disso, é também importante compreender que, por vezes,
existem profundas descoincidências entre o trabalho prescrito pelo empregador e o
trabalho real, ou seja, a forma como o trabalho é efetivamente realizado pelos
trabalhadores (Silva, 2003). Isto pode enviesar toda a estratégia de prevenção da
organização, dado o eventual desconhecimento sobre o funcionamento real do
―chão-de-fábrica‖. A nível organizacional, parece ainda possível à teoria sociológica
observar a importância de fatores como a resiliência ou as barreiras de segurança,
enquanto fatores que podem influenciar o número de acidentes. É relevante
podermos considerar como é que estes e outros fatores podem influenciar a
dinâmica do mundo do trabalho e, em certos casos, produzir acidentes.

Numa abordagem algo inovadora, mas não isenta de alguma controvérsia,


Hollnagel (2004) preconiza que determinados acidentes podem ser vistos como uma
infeliz agregação de fatores e condições diversificadas, passíveis de produzir um
evento não desejado. O autor distingue entre explicações e causas para os
acidentes, defendendo que, por vezes, pode ter maior utilidade procurar as
explicações em vez das suas causas. As explicações para os acidentes partem do
alinhamento ou articulação simultânea de vários fatores ou condições que
permitiram o culminar de um determinado evento (o acidente), embora seja possível
que nenhum deles, isoladamente, tenha capacidade para originar este tipo de
evento. Portanto, isso não nos permite afirmar que esse acidente tenha sido gerado
por uma causa específica.

Existe um longo e antigo debate em torno da questão da atribuição de causas


únicas ou múltiplas aos acidentes. A resposta depende, em parte, da posição do ator
61
no sistema social. No caso dos juristas, interessados em apurar a responsabilidade
civil e criminal, pode haver a tendência para procurar uma causa única. Contemplar
a ideia de que as causas podem ser múltiplas é reconhecer a divisão de
responsabilidades e a difícil determinação do peso de cada uma delas na produção
do evento. Já para alguns teóricos das organizações, procurar as raízes das causas
(associadas à multicausalidade) pode ser tão ou mais importante do que restringir a
análise à designada causa imediata (regra geral a mais próxima ao momento do
acidente), porque isto permite detetar as diversas condições e/ou erros que
estiveram subjacentes ao evento. Raouf (1998), recorrendo à teoria dominó
preconizada por Heinrich (1931), procura reconciliar estas duas posições distintas,
mas este tema está longe de reunir consensos e de estar encerrado. Prova disto
mesmo é o fato de nós (autores deste texto) divergirmos na forma como olhamos
para esta questão. Contudo, uma das possíveis explicações para esta diferença
pode estar naquilo a que cada autor procura responder com a sua análise; isto é,
Dwyer (2006) tende a preocupar-se com o problema da responsabilização, enquanto
Areosa (2010) centra a sua atenção nos diversos fatores que podem ter conduzido
ao acidente.

Já referimos que o alinhamento de fatores ou condições constituem uma


explicação para o acidente, visto que nos permite compreender como ele ocorreu,
ainda que não seja a ―causa‖ em si mesmo. A existir uma causa, será a
extraordinária coincidência do alinhamento destes fatores. De certo modo, a
explicação para alguns acidentes não significa o mesmo que a sua causa. Tal como
refere Hollnagel:

A diferença entre procurar por explicações ou por causas é crucial. Se


acidentes têm causas, então faz sentido tentar encontrá-las e fazer algo
sobre elas. Se acidentes têm explicações, então devemos entender como o
acidente ocorreu e quais foram as condições ou eventos que levaram a
isso. A resposta não deve servir para procurar as causas, mas para
identificar as condições que podem levar a acidentes e encontrar maneiras
de efetivas de controlá-los. Hollnagel, 2004:29

Conforme se pode verificar, existem novos aspetos que devem ser


considerados e aprofundados para obter um melhor entendimento sobre os
acidentes. Este campo de observação tem aumentado as suas dimensões de
análise e isto pode permitir a ampliação do nosso conhecimento sobre este
62
fenómeno social (o acidente), até recentemente visto como não social ou como não
tendo nenhuma influência das relações sociais.
63

5 Bibliografia
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Costa, Maria C. Castilho. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. Sp:
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