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2? edição
EDITORA
NOVA
FRONTEIRA
Título Original
APPEL A UX VIVANTS
Capa
V ic t o r B u r t o n
Revisão
Jorge U ra n g a
FICHA CATALOGRÁFICA
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Garaudy, Roger.
G223a Apelo aos vivos / Roger Garaudy ; tradução de H. P. de
Andrade. — Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1981.
CDD - 309
320.9
CDU - 308
81-0289 327
Sumário
3. O novo crescimento
•J
O mundo
em um beco sem saída
1. Um modelo de crescimento
que torna o ‘status quo’ insuportável e
impossível a revolução
11
cuemos uns três mil anos para reencontrarmos o sentido de crises
com amplitude semelhante à de hoje. A história apresentou as
perguntas. Aí está a verdade do materialismo histórico. Os pro
fetas trouxeram respostas — e aí está a verdade do espírito. Há
quatro séculos que pilhamos e esbanjamos as riquezas e as sabedo-
rias de três mundos. Não se trata de voltar aos antigos profetismos,
a sabedorias exóticas, às antigas visões, mas de haurir delas a
força para- descobrirmos a resposta aos problemas de nosso
tempo.
Trata-se de dizer aos resignados, sentados a contemplar a
torrente que se precipita, e àqueles que se deixaram por ela arras
tar para o abismo: ainda é possível existir e viver. Ainda é pos
sível contrapor um dique à corrente, inverter-lhe o curso. Com
a condição de manter os olhos abertos. De ficar de pé. De de
fender cada parcela de vida.
Essa é a louca ambição deste livro.
Foi escrito para aqueles que querem ter nas mãos seu próprio
futuro, e a ninguém delegar esse poder. Escola de participação
para ajudar cada um a inventar o futuro.
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dos matadouros da Víllette; os ‘nucleocratas’ tanto quanto os
outros.
Acrescentemos, enfim, que basta a ruptura de algumas ca
nalizações para provocar uma catástrofe em uma central nuclear,
de forma que um país possuidor destas centrais não tem defesa
em tempo de guerra, pois o menor bombardeio, até mesmo o
mais comum, pode ser fatal. . .
Milhares de ‘especialistas’ e de jornalistas, em todo o mundo,
estão encarregados de anestesiar a opinião pública, mascarando-
Ihe o perigo mortal.
O exemplo mais típico de intoxicação psicológica é o rela
tório Rasmussen, difundido em todo o mundo pela Atomic Energy
Commission, dos Estados Unidos. Baseado principalmente, como
reconheceram seus próprios autores, nos dados fornecidos pelas
sociedades particulares de construção e exploração dos reatores,
ele naturalmente se adapta aos interesses destas,
Destinado a apaziguar a consciência dos que por profissão
estão vinculados a esse empreendimento suicida (por exemplo,
os engenheiros da EDF na França), o texto contém estranhos
sofismas: nele se afirma, por exemplo, que a probabilidade de
risco está na ordem de um acidente em vinte mil anos por reator.
Contudo, como por outro lado nos informam que daqui a
vinte anos existirão no mundo cinco mil reatores, a probabilidade
de acidente passa a ser de um a cada quatro anos.
E não é tudo! Durante o verão de 1977, a Nuclear Regula-
tory Energy, isto é, o órgão federal norte-americano encarregado
da segurança e da regulamentação dos reatores nucleares, exata
mente o mesmo que, em 1972, havia encomendado e patrocinado
o famoso relatório Rasmussen, designa um grupo de especialistas
independentes para reexaminar esse relatório. Em janeiro de 1979,
a Nuclear Regulatory Energy publica curto comunicado, decla
rando não mais considerar o relatório Rasmussen “digno de con
fiança” "J .
Na mesma ocasião, quatro diretores de alto nível da General
Electric pedem demissão e expõem o motivo: “Tornou-se insu
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portável para nós servir a uma indústria que é uma monstruosi
dade tecnológica . . . É inevitável um acidente nuclear.” 3
Que fique bem claro: aceitar a energia nuclear é assassinar
nossos netos.
O p t a r p e l a e n e r g ia n u c l e a r é p r e p a r a r o g u l a g
15
seu controle 542 quilos de urânio enriquecido e 32,8 quilos de
plutônio.
Portanto, de forma alguma é inverossímil o ‘pesadelo’ evo
cado pelo Dr. Bernhard Feld, diretor da Divisão de Física Nuclear
e Alta Energia do MIT (Massachusetts Institute of Technology):
“Um grupo de terroristas avisou ao prefeito de Boston que uma
bomba atômica estava escondida no centro da cidade. . . 10 qui
los de plutônio haviam desaparecido dos armazéns do governo. . .
Pelo desenho do artefato enviado pelos terroristas, vejo, na qua
lidade de especialista que colaborou na fabricação da bomba
atômica, que ela pode funcionar, mal, mas com efeitos terríveis.
Que devo aconselhar ao prefeito? Ceder à chantagem? Ou então
correr o risco de ver a cidade ser destruída?” 4
A partir daí se engrenou o mecanismo da “doutrina da segu
rança nacional” (com justiça denunciada na conferência de Puebla
pelos bispos latino-americanos em 1979), justificativa de todas
as ditaduras, principalmente na América Latina, e que permite
varrer todas as liberdades e todos os direitos constitucionais. O
ministro do Interior da Alemanha Federal, Werner Maihofer,
diante de uma comissão parlamentar, explica: “Nossa civilização
tecnológica conhece uma tal escalada de riscos para a segurança,
que precisamos, por exemplo, no que se refere às centrais nu
cleares, sistemas de alarme que cubram o país inteiro. . . e que
farão intervir em primeiro lugar, depois da polícia das empresas,
os Lander e em seguida as autoridades federais. Esses riscos
nucleares são também os riscos de nova criminalidade nuclear.” 5
Justificam-se então todas as medidas de exceção, de vigi
lância e de coerção a fim de garantir a ‘segurança’ das centrais,
como também o transporte do material. Não somente o pessoal
tem de ser escolhido, espionado, estrangulado por uma disciplina
de ferro, como cada cidadão se torna um perigo em potencial e
deve ser fichado, manipulado, vigiado.
Que fique bem claro: optar pela energia nuclear é preparar
o gulag.
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Como vamos morrer enquanto espécie e causar a morte? Pela
exaustão de todas as fontes de energia e pela paralisia de um
planeta que se tornou inabitável? Energias e recursos estão guar
dados há milhões de anos nas entranhas do planeta. Nós nos
arrogamos o direito de esgotá-los em uma única geração. Por
exemplo, a extração do carvão das minas data de oitocentos anos,
mas a metade desse carvão foi extraída durante os últimos trinta
anos. Desde as origens da humanidade se extrai petróleo bruto,
mas a metade desse petróleo foi extraída no curso dos dez últimos
anos. Se forem construídas todas as centrais nucleares planejadas,
dentro de vinte anos não haverá mais urânio. Se o consumo con
tinuar a crescer no ritmo de hoje, mesmo que se descubram ou
tras reservas exploráveis de petróleo e de urânio equivalentes às
atualmente conhecidas, a data do esgotamento será apenas adiada
por alguns anos6.
O mesmo vale para as florestas. Um terço das árvores exis
tentes em 1882 (cerca de 2 bilhões de hectares) foi destruído
em 1952. A destruição continua a se acelerar: a cada minuto o
homem destrói 20 hectares de florestas no mundo. A pasta de
papel necessária para a publicação do New York Times de do
mingo, com seus 80% de publicidade, exige o corte de 15 hec
tares de floresta canadense, e a dos outros números, 6 hectares.
O desmatamento irracional dos contrafortes do Himalaia provoca
hoje as destruidoras inundações do Bangladesh, assim como as
formas de cultura herdadas do colonialismo geram as secas do
Sahel.
Nos últimos setenta anos, a agricultura moderna destruiu
metade do húmus em mais de um terço das terras cultivadas.
Um bilhão e meio de hectares tornaram-se impróprios para o
plantio. Apesar da ‘revolução verde’, tão rendosa para os gran
O p t a r p e l a e n e r g ia nuclear é r e d u z ir
18
em 1972, custa-lhe 17 quilos9. Lembremos que em 1974 esse
mesmo trabalhador senegalês recebia 25 francos CFA (quer di
zer, 50 cêntimos franceses) pelo quilo de amendoim, vendido a
140 francos CFA no mercado mundial e a 290 francos CFA
para o consumidor francês 10.
O estouro do petróleo mostrou que o terceiro mundo precisa
cada vez mais produtos para obter cada vez menos produtos pro
venientes dos países industrializados, mas isto não passa de uma
‘folga’ entre duas trajetórias inexoráveis.
No Sudeste asiático, a simples extrapolação das tendências
atuais permite prever que, daqui a vinte anos, 80 milhões de pes
soas morrerão de fome por ano, sendo que nessa época essa re
gião contará com 2 bilhões e meio de jovens abaixo dos vinte e
cinco anos. Será que se pode sensatamente acreditar que essa
conjunção de juventude e de miséria a fechar-lhe o futuro não
será explosiva?
N Que fique bem claro: continuar com a atual política de cres
cimento é o mesmo que obrigar o terceiro mundo à morte ou à
\ revolta generalizada.
Como vamos morrer e causar a morte? Não será por não saber
mos e não procurarmos saber aquilo que nos impediria de morrer
e de matar, de assassinar nossos netos? Não será por todas as
ideologias reinantes, de direita ou de esquerda, serem já há um
século e meio obsoletas?
Desde 1824, exatamente.
1824 foi o ano em que apareceu a quinta e última edição da
Exposition du système du monde, de Laplace. (A primeira edição
datava de 1796.)
Nesse mesmo ano de 1824, saía à luz o estudo de Sadi Car-
not, Réflexions sur la puissance motrice du feu, tratando não mais
de máquinas, mas de motores.
A obra de Laplace marcava o fim de um mundo e de uma
era científica: a era da mecânica clássica, cujos postulados todos
ela resumia, e que começara com Galileu e Descartes.
O livro de Sadi Carnot abria uma era nova; a da termodinâ
mica, cujas leis principais o alemão Rudolf Clausius iria deduzir
em 1854. Sem que na época, e durante um século, ninguém per
cebesse, assim se passara da visão de um mundo cuja lei, na
opinião geral, era a de um progresso ilimitado, para um mundo
dominado pela lei da “entropia”, que é exatamente o contrário
da lei do progresso \
20
é muito importante entender bem essa lei e a reviravolta
capital dela decorrente.
Ao refletir, em plena revolução industrial, sobre o rendimen
to da máquina a vapor, Carnot chega à conclusão de que esta
só pode produzir energia pela passagem de um corpo quente
(caldeira) para um corpo frio (condensador), estabelecendo assim
a primeira lei da termodinâmica: a transformação da energia.
Por exemplo, a transformação do calor em energia mecânica.
Em 1854, trinta anos depois das Réflexions sur la puissance
motrice du feu, de Sadi Carnot, Clausius descobre a segunda lei
da termodinâmica. Demonstra que cada transformação comporta
um déficit, que, no término do ciclo, chega à menos eficaz das
formas de energia: o calor, e este, por sua vez, degrada-se ao
irradiar-se, até uma uniformidade imprópria a qualquer nova rea
tivação. A esse fenômeno deu o nome de “entropia”, crescimento
da desordem e da impotência, exatamente o contrário da noção
mecanicista do progresso.
Com efeito, da lei de equivalência entre energia e massa,
concebida por Einstein, depreende-se, a partir da noção de en
tropia, que o universo em sua totalidade (massa e energia) é
dominado por uma lei irreversível de degradação da energia em
calor e da matéria estruturada em caos.
Enquanto se limitava unicamente a uma lei física a predizer
o esgotamento do Sol em quatro bilhões de anos, e a morte de
nosso planeta em alguns milhões de anos, a entropia tinha pouca
importância aos olhos da história humana; tínhamos a eternidade,
ou quase, à nossa frente. Contudo, quando o poder de nossas
técnicas foi tal, que o homem se tornou um fator geológico no
decurso dos anos 60, então a angústia brotou no coração dos mais
lúcidos. O erro fundamental e mortal da economia política era
o de agir “como se” o mundo dos homens continuasse a ser o
da mecânica de Laplace: um sistema fechado alimentado por fon
tes inesgotáveis de energia.
Viu-se que, na escala do poder humano atual, nosso modelo
de crescimento acelerava vertiginosamente a entropia; esta não
era mais uma lei física, uma lei da longa história das coisas, mas
também uma lei econômica, uma lei da curta história dos homens.
A partir de então, podemos contestar os prazos fixados pelo
Club de Roma; deve, porém, ficar bem claro: o crescimento dos
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próximos trinta anos, sob pena de morte da espécie, não pode
mais ter a mesma orientação nem o mesmo ritmo do crescimento
dos últimos trinta anos.
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Nessa corrida para o abismo, fala-se às vezes de ‘milagres’,
isto é, de brusca elevação do produto nacional bruto de um país,
esquecendo-se de que os ‘milagres’ não são mais que miragens de
estatísticas mentirosas que escamoteiam o essencial: o ‘milagre’
só beneficiou 2% ou 3% da população, agravando o fosso entre
o luxo insolente de uma minoria ínfima, e as gigantescas massas
que mal recebem migalhas do festim, como se pôde ver do Irã
ao Brasil.
A consciência dessa permanente frustração e dessa perma
nente ilusão, unida à ignorância de sua causa principal, gera as
‘brigadas vermelhas' e os casseurs *. Qualquer reflexão sobre a
violência é ineficaz e ilusória, se não consegue descobrir a raiz
real: a sociedade de crescimento e de concorrência selvagem dos
indivíduos, dos grupos e dos povos, que traz em si o crime e
necessariamente o engendra.
Todos os germes de morte e as convulsões do último quar
tel do século XX não são meros acidentes ou aberrações, em
relação aos quais seria suficiente a repressão. O caos está na
lógica interna do modelo ocidental de crescimento (que se impôs
ao mundo inteiro) e do modelo de cultura que o fundamenta e
justifica, isto é, a maneira de conceber e de viver as relações com
a natureza, com o homem e com o divino.
Não se trata de um quadro do fim do mundo. Trata-se so
mente do quadro do fim convulsivo de um ciclo histórico, o dos
quatro séculos de hegemonia do Ocidente, de seus modelos de
crescimento e de cultura, que hoje nos arrastam para o abismo.
Essa desintegração de uma sociedade exprime-se em todos
os domínios da cultura e das artes, já que essa cultura e essas
artes, quando os homens se encolhem friorentamente longe desse
mundo de pesadelo, não têm mais por objeto a percepção da
realidade e de seu sentido.
Para alguns, o único objetivo da pintura é apenas o ato de
pintar; o ato de escrever, o único objetivo da literatura. Em
filosofia, o ato de conhecer torna-se . o objeto de uma filosofia
sem objeto. A rua olhá-a indiferente, porque os problemas que
coloca são colocados apenas porque são mal colocados.
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Igrejas e escolas apenas respondera a perguntas que ninguém
faz. Por isso as universidades e os templos estão desertos.
Não foi por puro prazer que esbocei o quadro das atuais
correntes de nossas sociedades, mas unicamente para que fique
bem claro: a violência e a decadência não são mais que subpro
dutos de nosso modelo de crescimento.
P r o f e t is m o e p o l ít ic a
24
diatas, mas também consagrar-se à cultura, à reflexão sobre os
objetivos, limiar decisivo da hominização;
— a mutação de hoje, a da última angústia, é de grandeza
igual: pela primeira vez na história humana, o homem dispõe
do poder técnico de aniquilar muitas dezenas de vezes qualquer
vestígio de vida sobre a Terra. A epopéia humana iniciada na
África, em Tanganica, há dois ou três milhões de anos, pode
chegar ao fim.
Ultrapassando a perspectiva dos últimos quatro séculos da
história ocidental, vê-se que, bem longe de se oporem, a política
e a fé, profetismo e política sempre estiveram estreitamente uni
dos nas grandes mutações históricas.
A história apresenta problemas, como o da passagem da vida
nômade para a agricultura e a urbanização. A resposta última é
dada pelo profeta: nos confins do Irã e do Afeganistão, eleva-se
a voz de Zaratustra. Com ele, pela primeira vez, o drama histórico
da luta do “bom lavrador da terra dos homens” contra o nômade
saqueador adquire a dimensão cósmica da luta do Bem contra o
Mal.
Nietzsche não se enganou ao escrever: “Zaratustra, és, assim
como eu, um dos seres predestinados que criam valores para mi
lênios.” Para ele, Zaratustra era o profeta da aurora, e Nietzsche
via-se como o profeta do fim dos tempos, em um mundo ocidental
entregue à vontade de poder para além do Bem e do Mal.
A história propunha os problemas fundamentais na encru
zilhada do Crescente Fértil, na Palestina esmagada entre duas
grandes potências, o Egito e a Mesopotâmia, para onde foram
alternadamente exilados os judeus. Ergueu-se então a voz de seus
profetas para responder ao drama da história, traçando para um
povo o caminho do homem em direção a um futuro propriamente
humano, ou seja, divino: a dessacralização do poder dos reis com
Amós, como com Moisés e o livro do Êxodo, como com Isaías
durante o exílio de Babilônia( Ligando as desgraças de um povo
às faltas dos homens, eles tornam o homem, para além de todos
os fracassos, plenamente responsável por sua história e pela vi
tória do futuro.
A história propunha ainda o problema maior, o da resistên
cia do homem a tudo quanto lhe é exterior, quando, ultrapassando
as respostas políticas dos zelotas ou o afastamento do mundo dos
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monges de Qumran, Jesus de Nazaré desvendou em seu próprio
princípio e afrontou, até a morte, o totalitarismo dos sacerdotes
judeus, com sua pretensão de governar a política em nome da
lei religiosa, e o totalitarismo romano, com sua pretensão de go
vernar a religião em nome do poder político de um imperador,
para quem se exigia o culto de um deus.
Contra o duplo totalitarismo judaico e romano, o surgimento
profético de Jesus de Nazaré renovava a vida e a história, ao
anunciar o Reino como fermento de vida interior e meta trans
cendente do futuro comum.
Ao profeta do Islã, a história também apresentava proble
mas: os de uma Arábia idólatra e dividida e, para seus sucessores,
os de um império sassânida desintegrado pelas rebeliões locais,
de um império bizantino despedaçado pelas heresias, de uma Es
panha entregue à decadência dos reis visigodos, a bispos ambi
ciosos e a feudais espoliadores. Levantou-se então o profeta.
Tomou o lugar da religião de Abraão, baseada na entrega absoluta
de si à vontade divina, o lugar de Moisés a unificar a Lei de Deus
com a lei do mundo, o lugar de Jesus, “selo da santidade”, dei
xando de lado todas as sutilezas teológicas. E o Islã precipitou-se,
qual ciclone fecundante, do mar da China até o oceano Atlântico,
herdeiro das grandes civilizações, da índia ao Irã e à Grécia.
Abria o futuro por prodigiosa floração da ciência, da mística e
das artes, dando ao homem por objetivo, como escreve Ibn Arabi,
o “xeque al-Akbar” , “fazer da própria vida um lugar de mani
festação do divino”.
Excetuando o minúsculo intermédio da história mundial que
tem início com a Renascença européia, com o nascimento simul
tâneo do capitalismo e do colonialismo, em todas as culturas, em
todos os continentes e em todos os séculos, mística e política,
profetismo e mutação social formam um todo único.
Quando a política e a ciência se esquecem da dimensão trans
cendente do homem, sua invencível capacidade de recuperação
de seu destino, ou a recusam, sabemos muito bem em que se
transformam a política, a ciência e a fé.
A política e a economia se tornam tecnocráticas, vale dizer,
não perguntam mais ‘por que’, quais os objetivos, mas unicamente
‘como’, quais os meios.
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A ciência torna-se cientificismo, sendo èste a superstição
que, ao separar a ciência da sabedoria, os meios dos objetivos,
faz do conhecimento não uma virtude, a serviço do domínio e
da realização de si, mas um poder a serviço da vontade de poder
sobre a natureza e sobre os outros homens.
A fé, por sua vez, torna-se integrista, ligada a uma cultura
passada e ultrapassada, desligada da vida de hoje e incapaz de
responder a seus problemas,
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3. Como viver de modo diferente?
Se você nào gosta de perguntas desse tipo, não leia este livro.
Não leia este livro e jamais desligue a televisão, que lhe
ensina a arte das artes, a de viver sem ‘porquês’.
Não o leia, e os anúncios lhe dirão o que deve desejar, do
sabão em pó ao automóvel.
Nao o leia e nunca tire o pé do acelerador, a não ser nos
engarrafamentos, para pôr seu rádio a berrar.
Não o leia e não olhe para o rosto de um homem real, nem
mesmo no metrô. A “Série Noire”, o Jours de France, o Auto-
Journal e a loteria esportiva o ajudarão.
Talvez não venha a ler este livro nem outro qualquer que
traga a pergunta ‘por quê’, porque a maneira como vive e seu
ritmo impedem-no de fazer isso, amarrando-o com seus laços: os
da fábrica, da televisão, da imprensa ou do supermercado.
Talvez também você me responda encolerizado: “Não venha
aumentar ainda mais o peso do céu escuro que dobra minha nuca,
com perguntas: Que fizeram com a Terra? Que fizeram do ho
mem? Que fizeram da vida? O futuro virá sem mim e eu quero
viver hoje!”
O futuro vem hoje sem você. Ê verdade. E se houvesse a
possibilidade de vir contra você? Ou que venha mesmo com
você?
Não sou daqueles que dizem: o homem morreu. O homem
ainda não existe. Vamos juntos tentar fazê-lo existir? Tentarmos
existir. Quer dizer, não sermos um elo na cadeia de causas e
efeitos, mas seres que estão nascendo, dos quais brotam a cada
instante, com um objetivo mais claro, forças cheias de vida.
28
Contra uma economia da riqueza que gera a pobreza, contra
essa vida pobre feita de políticapobre, de amor pobre, dearte
pobre, de ciência pobre e de religião pobre, vamos tentar criar
um modo de viver mais rico?
Você não gosta de apostas idiotas? Eu também não. Mas
não temos escolha: a fé ou o nada.
A . única fé necessária no começo é esperar que o homem
ainda esteja por fazer.
Será que se .pode viver de modo diferente? procurando os
verdadeiros ‘porquês’? Parg começar: por que não podemos viver
de outro modo?
Viver de outro modo,. É isto ; o que importa. Nada mais.
Nada menos. Viver de outro modo.
29
—■Nem a das ciências e das técnicas.
— Nem a das Igrejas.
Os PARTIDOS POLÍTJCOS
30
Quanto ao ‘socialismo’, sob a forma que a União Soviética
pretendia construí-lo, não podia mais apresentar-se como ‘alter
nativa’ à ‘barbárie’ capitalista. Não apenas havia integrado o
mesmo modelo de crescimento, com a ordem de ‘alcançar e ultra
passar’ o mundo capitalista, isto é, de seguir o mesmo caminho,
mas as revelações do 20.° Congresso do Partido Comunista So
viético haviam trazido à luz do dia o arcaísmo e a barbárie de
seu sistema político; esta se revelará ainda mais depois das inva
sões da Hungria e da Tchecoslováquia. O fim do mito do ‘socia
lismo soviético’ foi a tomada de consciência, por parte da juven
tude, de que ele não trazia a solução para os problemas da
alienação capitalista do trabalho, da política, da cultura.
Nessa crise, no verdadeiro sentido da palavra (o momento
em que se julga, o momento do questionamento e da opção), a
própria noção de ‘política’, deixando de lado o jogo dos partidos,
encontrava seu sentido pleno, abarcando todos os aspectos da
vida, do trabalho à festa, do sexo à cultura.
A falência dos dois grandes mitos do Ocidente, o liberal e o
soviético, que vinha desaguar nesse questionamento dos modelos
de crescimento e de revolução, era mais sensível pelo contraste
com as lutas dos povos do terceiro mundo: lutas pela libertação
dos povos da Argélia e do Vietnã contra o colonialismo, a revo
lução de Mao, primeiro modelo original de revolução socialista
desde a revolução de outubro de 1917, e a epopéia lírica de Che
Guevara na América Latina.
O movimento de tal forma ultrapassou os partidos, que a
França se viu a braços com a greve mais ‘geral’ de sua história,
pelo número — 10 milhões de grevistas — e pela diversidade das
camadas sociais que dela participavam, antes mesmo que fosse
dada a palavra de ordem e que fossem fixados objetivos e pers
pectivas à altura das novas esperanças.
Na direita, depois de hesitações, uns pensaram na repressão
(de Gaulle lembrou-se dos tanques aquartelados na Alemanha);
outros, como Pompidou, procuraram contemporizar, fazer con
cessões, à espera da possibilidade de afogar tudo no modelo de
uma campanha eleitoral. Esta última solução se revelou a mais
eficaz e conseguiu, uma vez mais, salvaguardar a ‘ordem’.
31
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I
I
.(
32
(
tar nas urnas com todos os gritos de cólera que haviam ressoado
durante dois meses, como se se pudesse desviar a força de uma
correnteza enchendo os baldes.
Nessas condições, a direita certamente deveria ganhar. Ga
nhou, com efeito, e aproveitou-se da trégua para recuperar tudo
quanto podia recuperar sem que a ordem fundamental fosse posta
em perigo.
O sistema não podia, sem se negar a si mesmo, responder
às aspirações sociais e culturais do movimento.
Do movimento operário de maio emergira, com uma força
até então desconhecida, a exigência de tomar nas mãos o pró
prio destino, a autodeterminação dos objetivos e autogestão dos
meios, em todos os níveis: da empresa, da política, da cultura.
Os homens do poder pegaram a palavra ‘participação’ e meta-
morfosearam-na em ilusória ‘participação nos lucros da empresa’
e em uma não menos ilusória oferta de ‘co-gestão’, a fim de inte-
grá-la ainda mais no sistema, fazendo-a ‘participar’ melhor da
gestão do capitalismo.
Do movimento dos estudantes brotou uma aspiração seme
lhante. E a obrigação primordial dos partidos que se diziam re
volucionários teria sido, em maio, a de captar o denominador
comum das reivindicações do operariado, das aspirações dos
estudantes, dos técnicos, do funcionalismo e da maior parte dos
intelectuais, a fim de constituir um novo bloco histórico, a saber,
uma união baseada em um princípio: a unidade de um mesmo
ponto de vista histórico. O governo concedeu-lhes uma ‘reforma
do ensino’, cuja exposição de motivos fazia uso de alguns slogans
de maio e, em seus artigos, atomizando as universidades sob o
pretexto de ‘descentralização’, tornava cada unidade ainda mais
dependente do poder central.
Os senhores da situação não podiam, sob pena de desarran
jar o motor de seu sacrossanto ‘crescimento econômico’, dar lugar
de verdade, junto com o trabalho, aos valores libertadores da
‘festa’, mas souberam muito bem comercializar o lazer.
Sua lógica interna de crescimento a todo custo não lhes per
mitia levar em consideração uma política autêntica da ecologia,
mas souberam muito bem fazer da luta contra a poluição um
ramo florescente de sua economia.
33
A emancipação sexual arriscava-se a abalar os próprios
fundamentos do sistema, questionando a hegemonia do macho;
podia-se, porém, facilmente comercializar a sexualidade; veio então
a política ‘permissiva’, inofensiva para o governo, do ‘sinal verde’
para a pornografia escrita ou filmada.
Seria fácil prosseguir na enumeração dos êxitos do poder.
Nesse plano de recuperação o sucesso foi tamanho, e a juventude
operária e estudantil tão bem dominada, que o feliz herdeiro do
hábil Pompidou pôde arrogar-se a honra de conceder o direito
de voto aos dezoito anos, sem correr o risco de desequilibrar as
forças.
Ao mesmo tempo, os dois principais componentes da opo
sição dita de esquerda ainda uma vez só tinham para dar a seus
adeptos a perspectiva de outras eleições, sem pedir a seus elei
tores em troca de uma vitória senão novo cheque em branco,
nova abdicação do poder de cada um, sua delegação, sua alienação
a um partido e a seus eleitos: votem em nós e nós faremos o
resto. . . E Deus sabe se este ‘resto’ era irradiante; para que tudo
mude votem em nós, dizia um; e o outro rebatia: votar em nós
é mudar a vida.
Todos se debatiam em inúmeras contradições: para os re
formadores o ideal seria, depois do grande aborto de maio, uma
sociedade em que nenhuma tentativa revolucionária fosse huma
namente previsível, de onde não surgisse nenhum projeto (neste
ponto o partido comunista dava todas as garantias); e em que
a elevação da taxa de crescimento prometeria a elevação do pa
drão de vida, criando a ilusão de que se poderia ‘mudar a vida’
sem mudar o sistema, quer dizer, administrando o capitalismo
melhor do que os próprios capitalistas. Deste lado, as circuns
tâncias não ajudavam esse reformismo ideal: se subisse ao poder,
teria pela frente a crise permanente. Era preferível prolongar o
tratamento da moléstia na oposição e aproveitar-se da expectativa
para tirar de seu vizinho e rival da esquerda uma parte da
clientela.. .
Operação que foi muito facilitada pelo fato de o partido
comunista estar às voltas com contradições ainda mais profundas,
devidas aos erros em série a partir de maio de 1968. Desde este
momento deixara de constituir uma alternativa ‘revolucionária’
digna de fé em relação ao sistema, apesar de continuar a pro-
34
clamá-lo por palavras e querer a todo custo reter seus eleitores,
mas estes iam engrossar as fileiras do partido socialista. Cometeu
então o erro fatal de rivalizar em reformismo com os reformistas
e começou a grande liquidação: um belo dia a direção decretou
que se devia aderir à arma atômica, combatida durante trinta
anos; outro dia (sempre de acordo com o método stalinista já
mencionado), outro decreto jogava ao mar a ‘ditadura do prole
tariado’, coisa que em si poderia ser excelente se houvessem pro
posto em substituição uma solução para resolver os problemas
para os quais Marx e Lênin haviam forjado esse conceito; esse
abandono, porém, na falta de qualquer discussão que permitisse
à base sugerir alternativas, levou ao mais insosso eleitoralismo.
As desistências sucediam-se sem cessar: depois de ter ‘re
provado’ a invasão soviética da Tchecoslováquia, aceitava-se a
‘normalização’, quer dizer, o freio posto ao país pela repressão
sistemática.
O internacionalismo proletário já não se definia por um ali
nhamento incondicional com a URSS (embora sua política ex
terior de domínio jamais fosse contestada), mas virava nacio
nalismo, desde a palavra de ordem “defesa nuclear em todas as
direções” até os slogans do tipo “produza tudo francês. . . compre
tudo francês”, até a recusa de deixar entrar a Grécia, a Espanha
e Portugal em uma ‘Europa’ combatida por tanto tempo, antes
de aderir sem condições, a não ser verbais, e de nesse ponto
colocar-se ao lado dos gaullistas mais chauvinistas e mais inquie-
tantes.
Enfim, última contradição, e não a menor delas: após terem
reconhecido que diariamente, na URSS, eram menosprezados os
direitos mais elementares e que lá não havia democracia nem
mesmo formal, consideravam-na no entanto ‘socialista’ e decla
rava-se que o balanço do regime era ‘globalmente positivo’. Assim,
depois de se haver definido o socialismo como uma democracia
verdadeira e não formal, penetrando na economia e na cultura,
como também na política, afirma-se que um país pode ser socia
lista calcando aos pés toda e qualquer liberdade. Estranha face
do socialismo!
Já que não surgia de partido algum um grande projeto, à
altura de nosso tempo, as eleições iriam obedecer à lamacenta
35
lei da entropia política, repartindo-se entre 49% e 5 J % , com
ligeira vantagem, em geral, para os mais seguros partidários do
status quo e da manutenção da ordem antiga, uma vez que os
adversários eram incapazes de conceber e de propor algo de novo.
Como um eleitor poderia fazer uma opção fundamental se,
em relação a todos os problemas de que nosso futuro depende
— modelo de crescimento, armamento nuclear, energia nuclear
com todas as suas conseqüências mortais — , todos os partidos
estão de acordo, com apenas ligeiros matizes de vocabulário?
O poder real fica, portanto, com os grupos de pressão que
estabelecem o ‘crescimento econômico’ a partir dos setores que
lhes são mais rendosos: a energia nuclear e o automóvel, os úni
cos que ficaram imunes à crise e que mantêm inflexivelmente sua
progressão. Poder-se-ia dizer hoje, parafraseando um axioma do
passado: a energia nuclear e o automóvel são as duas mamas do
crescimento.
Da energia nuclear já evocamos os danos físicos e políticos.
Mas poderíamos falar de modo semelhante do automóvel e sobre
o conjunto do grupo de pressão (o mais forte da França) que
gravita ao redor dele e orienta a política econômica, já que os
fabricantes de carros, os de pneus, os construtores e financiadores
de rodovias, os empresários do petróleo e seus satélites represen
tam quase .a metade do orçamento da França.
Em face de tais interesses, que importa se nas estradas mor
rem, por ano, mais de 15.000 pessoas e 300.000 ficam feridas,
ou seja 150.000 mortos e 3 milhões de feridos a cada dez anos
(o equivalente a duas Hiroshima); e que importa se a juventude
está em primeiro lugar: de 1.000 mortos jovens de vinte a vinte
e quatro anos, 366 morrem nas estradas, 265 de vinte e cinco a
trinta anos, 175 de trinta a trinta e cinco anos. Ficou provado
que a redução da velocidade diminuiu o número de acidentes em
55% na Suécia e 50% na Inglaterra. O Japão, que, de 1970 a
1977, passou de 18 a 32 milhões de veículos, diminuiu no mesmo
período quase a metade dos acidentes mortais (de 17.000 a 9.000)
graças a medidas draconianas de limitação da velocidade; e pro
tegeu sua juventude proibindo as motos de mais de 700 cm3
(desde então reservadas para exportação).
36
Contudo, medidas desse porte afrouxariam as vendas, e o
lobby francês do automóvel tem poder necessário para se opor
a elas 2.
Todos os partidos e o Parlamento se inclinam diante desse
contrapoder real dos grupos de pressão da energia nuclear e do
carro, mascarados tanto na França como nos Estados Unidos, na
Alemanha, na Itália e em outras partes, pelo ‘poder’ oficial, mas
ilusório, dos Parlamentos, (encarregados de convencer o público
de que, por ser eleitor, se torna ‘soberano’, quando na verdade
as opções vitais lhe são proibidas e as decisões são tomadas, à
revelia de qualquer controle, pela tecnocracia dos grupos de
pressão.
é preciso que fique bem claro: „nenhum partido político é
hoje capaz de realizar novo projeto de sociedade, livre da ‘lógica’
mortal do crescimento cego, nem mesmo de concebê-bye propô-lo.
'— ''•••
37
Mesmo no seio das ‘multidões solidárias’, comunidades de
novo tipo nascem, morrem e tornam a ser criadas. Olhares se
cruzam. Mãos se apertam. Formam-se projetos em comum. Aqui
um poço. Ali um estádio ou uma creche. Aqui uma oração. Lá
uma cooperativa. Aqui uma escola. Todos juntos. E pela inicia
tiva dos ‘de baixo’: comunidades cristãs da América Latina à
França, ou comunas chinesas, jovens que não aceitam ser estro-
piados pela pedagogia obsoleta das escolas e universidades, nem
pelas ideologias de recuperação e de insidiosa integração na de
sordem estabelecida.
Organiza-se a ação para o respeito aos equilíbrios ecológicos
entre o homem e seu ambiente de terras, árvores, rios e lagos
mortos pela poluição; para a defesa dos oceanos, para a proteção
do espaço contra satélites espiões com equipamento nuclear, pondo
sobre nossas cabeças a ameaça permanente de sua queda.
A terra, a água, o céu. . . o homem tornou-se responsável
por todos os elementos. Chegamos ao ponto crucial da epopéia
humana, em que não poderemos sobreviver somente pela força
de inércia das correntes de nosso século: se prosseguirem, levarão
ao suicídio planetário.
“Mudar ou desaparecer!” — gritam nas ilhas.
O continente responde: “A utopia ou a morte!”
Deve ficar bem claro: daqui em diante, sobreviver e viver
dependerão de uma opção humana e ninguém pode delegar a
outro sua responsabilidade.
Os germes do futuro nascem por toda parte: movimentos
em prol de autonomias regionais contra a centralização devora-
dora, movimentos de consumidores, comissões de bairros para o
controle e a gestão das questões locais e dos órgãos eleitos, mo
vimento particular, do qual o plebiscito austríaco foi belo exemplo,
resistência à implantação de centrais da morte, na França, na
Alemanha, movimento cooperativo, ação não-violenta dos cam
poneses de Larzac e também dos operários de Lip, exigência de
autogestão que se impõe até mesmo entre as chefias sindicais que
não a viam com bons olhos, luta dos OS, fora das estruturas e
métodos tradicionais, para superar a promoção individual das
categorias e salários em favor de qualificações coletivas.
Dentre todos esses movimentos, insistiremos particularmente
em um deles, o mais importante não só pelo número de seres
38
humanos que abrange, mas por colocar em questão as estruturas
de nossas sociedades de 6.000 anos: o movimento das mulheres.
Aqui também, as tentativas de recuperação não faltaram:
concederam às mulheres alguns lugares de segunda no governo e
atenuaram as desigualdades mais agressivamente evidentes, ligadas
ao sexo, com emendas no direito familiar, a desistência da re
pressão a métodos anticoncepcionais ou ao aborto.
Mesmo nesse plano, todas as batalhas estão longe de serem
ganhas; houve necessidade de corajosas campanhas para que a
vergonha do estupro ficasse com o culpado, e não com a; vítima.
A pílula tornou-se legal, permitindo à mulher escolher livremente
ser mãe e libertar-se da angústia de maternidades involuntárias,
mas, é de se notar, a pesquisa está já há anos orientada de tal
forma que até aqui é a mulher sozinha que tem de arcar com o
risco dos eventuais desequilíbrios causados pela pílula, e não o
homem. O que certamente não é um problema técnico.
Há ainda combates da retaguarda contra o aborto, que não
é um objetivo para ninguém, mas que pode ser, se não há pre
venção, um último recurso. Não se vê mais ser brandida a ameaça
medieval da excomunhão contra as mulheres e os médicos, pou
pando o verdadeiro culpado: o homem que gera um filho sem
assumir sua responsabilidade.
Aliás é de se admirar que a cruzada contra o aborto ocupe
mais lugar nas preocupações dos integristas do que as campanhas
contra a corrida armamentista, pela denúncia dos organizadores
de guerras, contra o aborto planetário dos manipuladores do áto
mo ou que a proteção aos objetores de consciência, que se recusam
a serem mortos ou a matar. Não teria então o homem direito ao
respeito pela vida a não ser no estado de feto, passando para o
segundo plano sua destruição na idade adulta?
Hipocrisias dessa ordem devem ser denunciadas, mas com
isto não atingimos o cerne do problema proposto pelo movimento
das mulheres.
Na França as mulheres constituem pouco mais de 50% da
população, mas só em proporção ínfima têm acesso a todos os
postos de comando da sociedade.
Há menos de 1% de mulheres entre os chefes de empresas
e não mais entre funcionários superiores, porcentagem que tende
a zero nas empresas maiores. Em compensação, nos setores em
39
que a mão-de-obra é mal paga, por exemplo, nas fábricas de
têxteis, elas constituem 90% do efetivo. Já o trabalho que não é
remunerado de maneira alguma — o cuidado da casa e a criação
dos filhos — , quer seja feito como suplemento do trabalho fora
de casa, quer o impeça, é exercido por 98% das mulheres.
No setor particular, para elas os cargos de secretárias, dati-
lógrafas ou balconistas de lojas, mas quantas nos conselhos de
administração?
No setor público, para elas os cheques-postais, mas quantas
na direção? E na escala das responsabilidades nacionais, a dis
criminação é a mesma.
Lembramos as posições ministeriais subordinadas, mas a
França jamais conheceu mulher presidente da República, primei
ro-ministro ou mesmo ministro das Relações Exteriores, da Defesa
ou do Interior, considerados postos-chaves. Se na Câmara dos
Deputados ou no Senado seu número registrou certo aumento, isso
se deu em uma ocasião em que o Parlamento perdia cada vez
mais sua importância. Quantas mulheres têm assento no Conselho
de Estado, têm entrada na Inspeção das finanças, na Alta Ma
gistratura ou à frente de uma embaixada? Houve uma, uma só,
e lhe confiaram a embaixada do Luxemburgo!
Mesmo no ensino aparece a discriminação. Se é elevado o
número de mulheres, é nos setores mais desvalorizados da função
pública: no ensino do primeiro e do segundo graus. Ao contrário,
quantas mulheres professoras titulares há nas faculdades de me
dicina ou de direito?
Nos hospitais se são a grande maioria entre os enfermeiros,
a proporção se inverte ao nível dos ‘chefões’.
Na Igreja católica (porque as Igrejas protestantes contam
com algumas exceções de mulheres pastoras) tudo se passa, a
partir do misógino são Paulo, como se a mulher fosse vítima de
uma inferioridade metafísica: mesmo que agora não se veja nela
sempre uma cilada do demônio, uma tentação permanente ao
pecado, continua excluída da ordenação sacerdotal: o mais aca
nhado seminarista pode tornar-se sacerdote, mas uma mulher não,
tivesse ela o gênio de santa Tereza de Ávila.
O problema não é estatístico.
Não se trata apenas de trocar os atores e de distribuir me-
' lhor os papéis. Quando as mulheres reivindicam o direito de en
40
trada em todas as dimensões da vida e o direito de estar também
nos postos de comando da economia, da política, da vida religiosa,
é a natureza mesma do teatro que tem de mudar, quer dizer, a
estrutura, o funcionamento e as próprias finalidades da sociedade.
Pois, há milênios, desde o fim do Neolítico e do surgimento da
agricultura (que Engels chamava de “a grande derrota histórica
do sexo feminino” ), em todas as nossas sociedades, que nunca
deixaram de ser patriarcais, houve uma ‘divisão do trabalho’ entre
os sexos nunca desmentida: as funções ‘nobres’ — a caça, a
guerra, o domínio, o comando sob a forma dos combates militares
a princípio, da concorrência econômica em seguida, e o êxito
individual — , o homem atribuiu-as a si, e desde então todas as
sociedades foram dominadas pela hegemonia integral da concepção
masculina dos valores, da nobreza e da hierarquia das funções,
tendo no cume a do chefe: chefe na guerra, chefe de empresa
(no sentido mais lato) ou chefe de família.
De tal sorte que as relações sociais, há milênios, foram vi
vidas de maneira diferente, até mesmo oposta, pelos homens e
pelas mulheres.
Sob formas diferentes segundo a classe e a posição, o homem
vivia a relação exterior de rivalidade, de oposição, de domínio,
desde a luta pela superioridade no clã, na guerra ou na simples
concorrência pela riqueza e pelo poder. O resultado dessa vontade
de poder individual é a sociedade de crescimento sem freio.
Confinada à manutenção da coesão e da continuidade do
grupo, sob a forma de tarefas subalternas e interiores da família
(manutenção do lar, maternidade e cuidado dos filhos), a mulher
vivia, sob forma verdadeiramente degradada pela subordinação
e submissão ao ‘chefe’, outra relação social: não mais a relação
exterior de uma sociedade de concorrência entre varões rivais,
mas a relação interior de comunidade, relação ambígua, oscilando
entre a integração e o amor, principalmente no que se referia às
crianças de pouca idade (antes de entrarem para a sociedade
masculina ou serem feitos membros recentes da comunidade fe
minina).
Por isso o acesso da mulher a todas as funções de direção
da sociedade implica, a longo prazo, a subversão e a inversão de
todos os valores fundamentais de nossas sociedades e a passagem
da sociedade individualista à sociedade comunitária, de uma re
41
lação social baseada na força a outra baseada no reconhecimento
do outro e na participação em seu desabrochar pessoal.
Verdade é que a realidade é menos imediatamente idílica e
mais complexa. Podemos compreender melhor a complexidade do
equilíbrio homem-mulher graças à analogia entre colonizador e
colonizado.
A maioria dos povos colonizados, os da África e da índia,
por exemplo, antes que lhes fosse imposta a propriedade privada
da terra, transformando-a em mercadoria, antes que lhes fossem
impostas relações sociais de concorrência individualista no quadro
de relações de dominador e dominado, conheceram formas vivas
de comunidade. É verdade que comunidade limitada, primeiro,
pelo nível das técnicas e, depois, pela situação inferior imposta
à mulher. É-nos, por conseguinte, proibida qualquer nostalgia
de um volta à comunidade tradicional. O problema está em saber
como tal comunidade, liberta do atraso técnico e da subordinação
da mulher, poderia criar, em uma nova etapa de desenvolvimento
endógeno, um tipo novo de empresas modernas que não fossem
nem particulares nem do Estado (segundo os modelos ociden
tais), mas comunitárias. Todas as decisões capitais sobre as fi
nalidades da empresa — organização e direção, distribuição do
lucro — seriam tomadas não pelos fornecedores do capital e seus
delegados, mas pelo conjunto dos que nela trabalhassem. O mes
mo aconteceria com uma sociedade política que não obedecesse
mais às leis da selva liberal ou do gulag totalitário, mas que, a
partir da comunidade autônoma, liberta das limitações históricas
ancestrais, pudesse engendrar uma democracia de novo tipo: par
ticipativa e associativa.
Esse processo, porém, tanto para os antigos colonos quanto
para as mulheres, está travado e retardado, em primeiro lugar
porque o modelo e os valores do senhor foram ‘interiorizados’,
como diz Fanon, pelo dominado. Em seguida, porque na hora
das libertações, as ‘elites’ intelectuais preparadas para tomar e
dirigir o poder pertenceriam justamente às camadas sociais mais
profundamente marcadas e modeladas pela educação e cultura
ocidentais, em Paris, em Londres ou em Harvard.
Produziu-se fenômeno análogo no movimento feminista.. .
De início, a legítima questão da ‘igualdade’ com os homens foi
mal colocada porque o modelo do dominador masculino fora ‘in
42
I
teriorizado’: tornar-se igual ao homem significava então ser se
melhante a ele, dentro do mesmo sistema social. Aí também,
sendo intelectuais as primeiras dirigentes, formadas e modeladas
pela educação e cultura dos quadros masculinos, a justa reivindi
cação de igualdade muitas vezes se confundia com a integração
no sistema, como se bastasse substituir um branco por um negro
ou um homem por uma mulher, na mesma sociedade de domina
ção, para se julgar emancipado da antiga ordem.
O movimento das mulheres, como o movimento de libertação,
atinge a plena maturidade quando o objetivo não consiste, mais
em se integrar nas hierarquias e valores de dominação do antigo
sistema, mas em quebrá-lo e em instaurar um sistema próprio de
relações humanas e de valores novos.
É nesse sentido profundo que o movimento feminista se tor
nou um dos mais poderosos e significativos portadores da mais
radical mutação histórica: a passagem de uma sociedade atomiza-
da pelo individualismo a uma nova trama social comunitária, de
uma sociedade estatística e sem forma a uma democracia autên
tica, isto é, participativa e associativa.
Com isso o movimento das mulheres é um dos principais
componentes dessa mutação que outros denominam revolução.
As maiores revoluções da história não foram substituições
de poder, mas emergência de um a, realidade nova, nascida fora
da ordem existente. O mundo surgido da desintegração do sistema
feudal não nasceu da vitória dos servos, mas, fora do sistema
feudal, pelo triunfo, não dos servos nem dos senhores, mas de
uma nova força: a burguesia. Hoje, para além da esfera das lutas
entre operários e patrões, uma nova realidade está começando a
nascer. A revolução que consistisse em substituir uma ditadura
burguesa por outra proletária, com uma dialética que jamais se
manifestou na história, não poderia deixar de perpetuar os obje
tivos do antigo sistema, principalmente seu modelo de crescimento,
com todas as suas alienações. A experiência histórica dos últimos
cinqüenta anos demonstrou isso à saciedade.
Sem essa verdadeira mutação do homem, só há mera trans
ferência do poder, dentro do mesmo sistema de alienação do
homem.
Que fique bem claro: uma verdadeira revolução tem de sig
nificar para uma sociedade o mesmo que uma conversão repre-
43
. ..c
senta para o indivíduo: mudança das finalidades e do sentido
da vida e da história.
A CIÊNCIA E AS TÉCNICAS
44
No entanto, ao final desses quatro séculos de embriaguez e
de poder, um número cada vez maior de homens e de mulheres
começa a tomar mais ou menos plaramente consciência do que
falta à deslumbrante civilização científica e técnica.
A dúvida foi surgindo, a princípio, a partir do exterior, isto
é, dos resultados.
As ciências e as técnicas conseguiram eliminar as epidemias
de peste que matavam milhões de seres humanos, mas ocasiona
ram também a destruição de 60 milhões de outros seres humanos,
de 1939 até Hiroshima, e nos prometem infinitamente mais.
Seria mero acaso o fato de a primeira máquina de combustão
interna, o canhão, que soou pela primeira vez em Crécy, em
1346, ser o antepassado de todos os motores modernos e de as
centrais nucleares de hoje terem por antepassado a bomba de
Hiroshima? No primeiro caso, bastou adaptar um êmbolo ao ci
lindro e regular as explosões; no segundo caso também, bastaria
canalizar o apocalipse.
É estranho que durante tanto tempo não se tenha levantado
suspeitas contra esta ‘revolução industrial’, marcada desde o berço,
e em cada etapa, por um ‘progresso’ na arte da guerra e da
destruição!
O automóvel equipou milhões de homens com coches bem
mais rápidos e confortáveis que os de Luís XV, mas também
mata 200.000 por ano em todo o mundo (três Hiroshima por
ano!).
A mecânica das máquinas, a química dos fertilizantes, a bio
logia das hibridações dotaram a agricultura de meios com os
quais durante milênios ela sequer pôde sonhar, mas o número
de mortos pela fome no século XX ultrapassa de muito as épocas
mais negras.
As máquinas, dissemos, podem fazer o trabalho do homem.
É verdade. Elas podem. Mas será que o fazem? Em que século
os ritmos de trabalho, de transportes, dos lazeres e das poluições
causaram maior número de doenças nervosas, de enfartes, de
violências, de esgotamentos vitais, de evasões pela droga ou pelo
suicídio, separaram com mais força uns dos outros e de si mesmos?
Nunca se falou tanto de ‘comunicações’, de Norbert Wiener
a M ac Luhan, e nos ‘encontros’, e no entanto nunca houve menos
comunicações verdadeiramente humanas entre os homens, pois o
45
homem está cada vez mais solitário em relação aos outros e mais
dividido dentro de si mesmo.
Satisfeitos, lembram-nos a tempo e fora de tempo que, se a
primeira revolução industrial da máquina a vapor substituiu os
músculos humanos, a segunda, da cibernética e do computador,
substitui o cérebro humano.
Daí, para imaginar uma empresa inteira dirigida pelo compu
tador e, ultrapassando a fábrica, a sociedade em peso, haveria
necessidade de apenas um passo; dado com ligeireza, logo depois
da Segunda Guerra Mundial, que fizera nascer a cibernética para
resolver os problemas suscitados pela travessia dos navios mili
tares pelo Atlântico.
Terminada essa guerra, o Padre Dubarle, percebendo com
lucidez as conseqüências da ‘cibernética’ de Norbert Wiener, re-
feria-se à possibilidade de uma ‘máquina de governar’, visto que
as decisões econômicas ou políticas se apóiam na teoria estatística
dos ‘jogos’, no sentido em que Von Neumann os estudou mate
maticamente3, e que o aparelho do Estado é comparado a uma
máquina auto-reguladora.
Norbert Wiener acrescentava: “A imprensa exalta o know-
how americano, desde que tivemos a desgraça de inventar a bom
ba atômica. Há no entanto uma qualidade mais importante do
que esta e bem mais rara nos Estados Unidos. É o ‘saber-o-quê’,
graças ao qual determinamos não apenas os meios de atingir nossos
objetivos, mas também quais devem ser estes objetivos" 4.
Isto foi escrito em 1954. Mas vinte e cinco anos mais tarde
a falta dessa ‘qualidade’ (saber qual o objetivo a se obter e não
confundir esse saber com o conhecimento dos meios para atingir
o fim) causa desgraças em outros lugares além dos Estados
Unidos.
O exemplo mais evidente da confusão entre uma ciência que
nos fornece meios e uma sabedoria que nos permite conceber
objetivos, é o livro de Jacques Monod, L e Hasard et ia Nécessité.
46
I
47
1, A afirmação, repetida muitas vezes pelo autor, de que
sua explicação é a única possível, com exclusão de todas as outras.
Essa ilusão dogmática já foi compartilhada por outros sábios em
outras épocas. Descartes e depois La Mettrie também afirmaram
que todos os fenômenos da vida eram redutíveis, sem resíduos,
aos conceitos e leis da mecânica. Diante da soberba certeza de
Jacques Monod, vim a perguntar-me se não seria ele o La Met
trie da cibernética.
2. A noção de acaso é sempre perturbadora. Não há dú
vida de que Monod lhe dá o sentido matemático que vem a ter
nos teoremas de Von Neumann. Contudo, mesmo a partir dos
números maiores, pode-se fazer a velha pergunta: se se entregar
em desordem a um macaco todas as letras que compõem a Ilíada,
e ele as dispuser e tornar a dispor sem parar essas letras ao
acaso, quantas probabilidades terá para um dia compor o poema?
De modo que, apesar das precauções tomadas, o ‘acaso’ de Jacques
Monod me parece representar o mesmo papel que a ‘Providência’
dos sermões do vigário da minha cidadezinha.
Com certeza, minha hesitação advém de que não tenho de
modo algum nem a imaginação nem a audácia daquele “peixe
primitivo” que, assim pensa Monod, “resolveu ir explorar a terra,
onde no entanto só podia se locomover por pulos sem jeito” 7
O “Magalhães da evolução” 8, como escreve ainda Monod, vem
a ser o primeiro da linhagem de Terrenos que, por acúmulo de
outros acasos, se tomarão nossos antepassados.
Mesmo que aceitasse sem piscar essa ‘explicação’ ao nível
da biologia, não deixaria de notar que a obra de nosso prêmio
Nobel está mais crivada de milagres do que a Bíblia.
Mas, se vamos além da biologia, as coisas se agravam: nas
vinte e três últimas páginas do livro (páginas 175 a 197), Jacques
Monod trata ao mesmo tempo de moral, de política e de religião,
em um resumo magistral que consiste em generalizar e aplicar
analogamente em todas as direções o tipo de explicação aplicada
à biologia, para chegar a esta conclusão peremptória: “Afinal o
homem sabe [a partir de Jacques Monod — R. G.] que é unico
7. Ibid., p. 142.
8. Ibid.
48
na imensidade indiferente do universo, de onde emergiu por
acaso” 9. •
Seria insolência perguntar se não foram estas vinte e três
páginas que fizeram do livro um best-seller, e por quê?
Porque, afinal, é pouco provável que tenham sido as consi
derações técnicas sobre ‘as enzimas alostéricas’ ou as ‘seqüências
polipeptídicas’ que, à exceção dos especialistas, atraíram centenas
de milhares de leitores na França e em todo o mundo! O livro
de seu colega François Jacob, também prêmio Nobel e que trata
do mesmo problema em La Lógique du vivant10, com a mesma
competência e algumas semanas de intervalo, atendo-se, porém,
somente à biologia, não foi tão bem tratado pelos meios de comu
nicação diante das grandes massas.
Temos portanto a impertinência de pensar que a sorte ful
gurante de Le Hasard et la Nécessité se deve menos à incontes
tável competência do biólogo que ao contestável panfletário do
último capítulo, que possuía o mérito insigne de executar em
nome da ciência o marxismo (arrasando ainda por cima — ja
nela postiça para manter a simetria — Teilhard de Ohardin).
Jacques Monod tornou-se assim o papa do positivismo e a
ponta de lança do antimarxismo.
Não é intenção minha refutar ataques contra uma caricatura
do marxismo. Jacques Monod confunde Marx com Stálin, como,
depois da morte de Monod, os ‘novos filósofos’ (assim chamados
por antífrase, porque não trazem nem novidade nem filosofia)
retomaram com menor talento a sovada libré do antimarxismo,
confundindo Marx com Althusser. O conclave dos meios de co
municação, não tendo mais um Nobel para mastigar, decidiu que
o papado do antimarxismo deveria ser colegial e, por ocasião de
uma campanha eleitoral, lançou nossos play-boys exorcistas ao
grande público, como se lança nova marca de sabão em pó 11
O único ponto importante que me interessa aqui é que
Jacques Monod passa da ciência para o cientificismo. A ciência
9. lbid., p. 196.
10. Paris, Gallimard, 1970.
11. É muito provável que, por algum tempo, seja menos necessário
esse gênero de operações, porque os dirigentes soviéticos e o grupo Mar
chais, na França, se encarregaram sem auxílio externo e com eficácia de
desacreditar e de liquidar o marxismo.
I 49
é o conjunto dos métodos matemáticos e experimentais que per
mitem ao homem prodigioso domínio sobre a natureza. O cien-
tificismo é o conjunto das superstições que pretendem explorar o
legítimo prestígio desses métodos, a fim de por meio deles explicar
ou negar todas as outras dimensões da vida, como, por exemplo,
a arte, o amor, o sacrifício, a fé ou simplesmente o outro homem
em sua realidade específica. Aquilo que, às vezes, se chama sem
razão de ‘danos’ da ciência, não vem da ciência, mas de uma filo
sofia que a toma por religião sem ousar dizer seu nome. Ou
então: o cientificismo é a crença de que tudo quanto não é redutí-
vel, sem resíduo, ao conceito, à medida e à lógica (aristotélica,
matemática, dialética ou estrutural) carece de realidade.
Com isso o cientificismo procede a uma série de reduções.
A razão (desde Descartes, exaltando-a, até Bergson, humi-
Ihando-a), reduzida a ser apenas instrumental, fabricante de
instrumentos, de motores, de riquezas e de injunções ^ociais, é
fornecedora de meios, e não de finalidades.
Como se o homem não pudesse manifestar inteligência a não
ser construindo máquinas, ganhando dinheiro ou manipulando as
multidões! Ou apoderando-se do poder sobre a natureza e os
homens.
Tal racionalismo raquítico repousa sobre três postulados:
1. toda a realidade pode ser ‘definida’, quer dizer, reduzida
a conceitos, sem deixar margem;
2. é possível, em todos os setores da vida humana, cons
tituir um arrazoado lógico, isto é, necessário, coator desses con
ceitos;
3. a natureza inteira é um feixe de ‘fatos’, ligados por leis.
O conceito, a lógica e a lei são as três bases do ‘positivismo’
e do ‘cientificismo’ ocidentais.
Para um pensamento positivista desse tipo, o futuro não pode
deixar de ser o prolongamento do passado e do presente.
Não é difícil entender por que essa ‘religião dos meios’, subs
tituindo outras crenças e crendices, represente por sua vez o papel
de ‘ópio do povo’.
50
(
é verdade, quando se trata de coisas, de objetos, de tudo quanto
depende de medida e de limite: um matemático pode “dar pelo
telefone” uma figura geométrica para seu colega; um engenheiro
também pode jazer isso com um projeto de ponte, porque tudo
se define por medidas, desde as curvas dos arcos até a resistência
dos materiais e seu preço. Mas não se pode “dar pelo telefone”
o Pont d’Aries, de Van Gogh, ou o Pont sous la pluie, de Hiro-
shige, porque há aí algo que escapa ao conceito, à medida e ao
limite. Quando muito eu poderia comunicar a técnica do pintor,
como posso enviar pelo correio a partitura de uma peça musical,
depois do concerto, sem que meu correspondente fique sabendo,
só com isso, se a execução foi a de um verdadeiro artista cuja
sensibilidade jamais se traduziria por um conceito, ou a de um
executante medíocre. Um ‘futurólogo’ tem a capacidade de comu
nicar a seu instituto um projeto, baseado em generalizações a
partir do passado e do presente. Mas será um falso futuro, porque
necessariamente não leva em conta a imprevisível iniciativa dos
homens e de suas criações. O uso do computador nada acrescen
tará a esse futuro falso; se Lênin houvesse usado um computador
para perguntar se era preciso fazer a Revolução de Outubro, a
resposta teria sido sim. Porque programada por Lênin. O compu
tador, programado por Kautsky, empregando em seus cálculos
apenas as ‘condições objetivas' 12, teria respondido não. Se o ho
mem e a história são tratados como coisa ou conjunto de coisas,
o futuro será invariavelmente o prolongamento do passado e do
presente, seja por generalização, seja por analogia, uma vez que
se pressupõe que o homem, tratado como coisa, é como tal incapaz
de ruptura com o passado ou de criação inédita, em suma, de
novidade imprevisível.
Por isso, o cientificismo, ‘religião dos meios’, depois de tantas
outras superstições do passado, exerce perfeitamente o papel de
‘ópio do povo’.
É próprio do conceito reduzir cada sujeito e cada projeto às
leis, às medidas e aos limites do objeto. De forma alguma isso
importa em desprezo pelo conceito; temos respeito por ele em
12. E Lênin observava com razão que, com facilidade, “torna-se opor
tunista por objetividade”.
51
seu nível próprio, em que dá provas de eficácia na compreensão
e manipulação dos objetos. Mas não é por conceito que agem os
namorados, o poeta ou o profeta.
O mesmo acontece com a lógica, quer se trate da lógica
dedutiva de Aristóteles e de santo Tomás, da lógica matemática
ou da dialética de Hegel e dos cientistas que se filiam a Marx.
52
tamento humano em um livro cujo título tinha o mérito de definir
um programa: o Homem máquina.
O economista clássico procede do mesmo modo — sem con
fessá-lo — quando estabelece suas ‘leis’, reduzindo o homem a
duas dimensões apenas: a de operário e a de consumidor, a de
trabalhador robô e a de consumidor voraz, movidos ambos unica
mente por interesse. Há aí não uma ciência, mas uma ideologia
de justificação, ainda mais mistificadora pelo fato de ter intro
duzido à socapa (talvez até inconscientemente) um postulado
oculto daquilo que dá como ciência: o próprio princípio da so
ciedade capitalista, o de Hobbes e dos ‘pragmatistas ingleses’,
porque para eles a ‘psicologia do homem’ era a psicologia me
diana do burguês de seu tempo.
Poderíamos fazer demonstração análoga para o adversário
direto desta ‘economia clássica’: o ‘socialismo científico’. Ele
também não pode ditar leis econômicas ou leis históricas a não
ser a partir do homem ‘alienado’, isto é, de um homem a tal
ponto mutilado de sua dimensão humana própria, que sua história
mais ou menos se assemelha à evolução natural. Em suma, diga
mos que as ‘ciências humanas’ nos ensinam muitas coisas sobre
o homem, menos aquilo que o homem é.
O ‘postulado sub-reptício’ das ‘ciências humanas’ é o seguinte:
em um mundo de alienàção e de manipulação, dá-se o nome de
‘homem’ ao homem alienado, reencontrando-se no fim da ‘pes
quisa’ aquilo mesmo que fora introduzido no início; consegue-se
assim, sob capa de ‘ciência’, outra ideologia de justificação e ma
nipulação.
A história ‘científica’ é a história do homem alienado.
O ‘socialismo científico’ é o prolongamento dessa história e
de sua alienação.
Porque o socialismo pode ser científico pelos meios empre
gados (técnicas de organização ou de estratégia, funções das alie
nações existentes), mas a escolha para que alguém se torne um
militante, a escolha de aceitar o sacrifício da vida no combate
pelo socialismo não se impõe por motivos demonstrativos ou por
via científica. É uma opção, um ato de fé, um postulado.
Enquanto as ciências da natureza exigem que o sujeito se
apague o mais possível diante do objeto, para a percepção das
criações humanas (artes, misticismo, profetismos, iniciativas re-
53
.(
54
ciar, ou talvez mesmo sem dele suspeitar, o postulado inicial, a
saber, que o crescimento de uma planta ou de um animal é o
simples desenvolvimento das leis da natureza: se conheço um
girino ou mesmo seu embrião, posso prever que se tornará, por
mero crescimento, uma rã. É assim o postulado da economia do
crescimento: o homem possui uma ‘natureza’, como as plantas,
os animais, os girinos e as rãs.
0 cientificismo, em sua forma acabada, faz ainda outras
reduções:
1 . Redução da ciência à ciência já acabada, já formalizada.
A ciência em vias de se fazer, como Henri Doincaré demonstrou
por sua experiência na invenção matemática, avizinha-se da poesia
e de suas imprevisíveis inspirações. Reduzir a ciência à ciência
acabada é confundir a pesquisa com a prova, a novidade do ato
criador com as rotinas da demonstração.
2. Redução de todos os atos da vida à suprema jurisdição
dessa ciência. Nem mesmo ciência viva, sempre a nascer, mas
ciência morta. Tudo quanto não é redutível ao conceito, à lógica
e à lei não tem direito à existência. É este o postulado. ‘Irracio
nais’ o amor e o sacrifício da vida por aquilo que se ama, ‘irra
cional’ a criação artística, ‘irracional’ a fé dos mártires, no duplo
sentido de testemunhas e de torturados.
Que pobre e mesquinha concepção da razão decorre dessa
concepção do irracional!
Uma concepção plena da racionalidade não poderia fazer
abstração de dimensão alguma da vida.
Um pouco de saber, isto é, a ciência ensinada, a ciência já
acabada, leva ao dogmatismo.
Um pouco mais de saber, isto é, a ciência em vias de se
formar, a pesquisa científica, leva às perguntas.
Mais saber ainda, isto é, a invenção científica, tão próxima
da criação poética no conjunto das criações humanas, leva à
oração.
Uma racionalidade puramente analítica, parcial, esterilizada
e esterilizante retém apenas um fragmento de nós mesmos e lança
para as trevas exteriores a suas ‘luzes’ tudo o que faz o sentido
e a alegria de viver.
Uma razão, digna desse belo nome, não deve ser o nexo
entre o homem total e a realidade total?
55
.(
56
c
Todos esses postulados cientificistas e tecnocráticos reunidos cons
tituem a base da barbárie ocidental. De todas as feridas que ela
inflige à vida dos homens e dos povos.
A doença analítica de cortar tudo em dois na realidade con
creta, sem poder colar em seguida os pedaços, cria os falsos
problemas filosóficos que, como disse acima, são insolúveis uni
camente porque são mal formulados: dualismo da alma e do corpo,
da matéria e do espírito, do tempo e da eternidade, do finito e
do infinito, do determinismo e da liberdade, do homem e de Deus,
da necessidade e da graça, para chegar ao pior dos absurdos: a
oposição entre materialismo e idealismo, problema saído prontinho
do dualismo cartesiano, a pensar o homem como uma alma en-
xertada em um mecanismo, um cadáver ligado a um fantasma.
Uns se dizem materialistas porque só aceitaram sua mecânica
(mesmo sob variantes dialéticas) e outros (idealistas de todo
tipo), o isolamento do espírito, associado, por um golpe violento,
ao frígido deus de santo Anselmo. Digo barbárie ‘ocidental’ por
que — teremos ocasião de voltar a isso a respeito do hinduísmo
— a Índia, já há três milênios, havia descoberto que ‘quem co
nhece’ não é um cérebro armado sobre dois pés, mas o homem
inteiro. Via real bem depressa abandonada no Ocidente, por Só
crates em primeiro lugar (este ‘homem anormal’, dizia Nietzsche,
anormal pela mania de tudo reduzir ao conceito). Do resto todo
da vida, em sua filosofia só subsiste um coto de braço atrofiado:
o coitado do ‘demônio’ que ousa infiltrar-se às vezes nas brechas
da razão. Somente por influências orientais começou o pensamen
to ocidental a suspeitar haver mais coisas sobre a terra e no céu
do que o conceito podia conter.
Pitágoras e Platão devem muito mais à Pérsia e à Índia do
que dizem os helenistas. Tudo o que não é matemático em Platão,
desde o eros até o sol da idéia do Bem, tem a marca dos misté
rios órficos vindos do Oriente. O neoplatonismo de Fílon e de
Plotino nasceu em Alexandria, centro de caldeamento de todas
as formas do pensamento oriental, e o próprio Plotino seguiu a
expedição de Gordiano para estudar o pensamento da Pérsia e da
Índia. Todas as formas judaicas ou cristãs de gnose decorrem
daí. Mestre Eckhart reencontrará, através das doutrinas do Islã,
•J
57
c
a grande tradição indiana da unidade do homem e de Deus; Spi-
noza, mediante Maimônides, a visão que este descobrira entre os
sufis muçulmanos, tributários por sua vez dos visionários da índia.
J a c o b Boehme, a partir das especulações dos românticos alemães,
encontrará confusamente a idéia-mestra do hinduísmo: para além
do ser e do não-ser, há o ato, há a liberdade.
As I g r e j a s a t u a is
58
Deus, visto sob a imagem de um rei onipotente, de um legislador
moral ou de um conceito.
Tentaremos então seguir caminho inverso ao do cientista ou
do tecnocrata que, tendo sempre como pergunta um ‘como’ e
nunca um ‘por quê’, sempre a questão dos meios, e jamais a dos
fins, se contentam em ir dos efeitos às causas, das seqüências
regulares de fatos a seus antecedentes? Inverteremos, ao mesmo
tempo, o processo dos teólogos dogmáticos que seguem o mesmo
caminho a fim de prover o arsenal de suas ‘provas’, julgando
descobrir, sem postulado algum, no final da cadeia de conceitos,
uma ‘causa primeira’, um ‘fim último’ como princípio absoluto.
O fato de santo Tomás ter tonsurado Aristóteles não impede
absolutamente que seu pensamento seja fundido no mesmo molde
e que o objeto de suas ‘provas’ nada tenha a ver com o cristia
nismo: ele tenta tirar de um mundo já dividido em conceitos, e
depois ligado por uma lógica abstrata, um Deus tão exangue
quanto o aparelho conceituai de onde foi laboriosamente arran
cado. O que não impediu aos chefes da Igreja católica, até o
século XX, de dar um diploma de exclusividade ao ruinoso sis
tema tomista; no entanto, o próprio santo Tomás, pouco antes de
morrer, suspeitara ser palha o que escrevera.
A coisa foi muito pior depois de Descartes, quando, adotan
do seu sistema como a última palavra da ciência (após seu ensino
na Sorbonne haver sido proibido ‘sob pena de morte’), tentaram,
de Malebranche a Spinoza, reconstruir teologias com base nessa
metafísica, que, para ele, não passava de um ‘fundamento’ para
sua física.
Colocando-se assim no mesmo terreno do racionalismo ra
quítico que seus adversários, a teologia condenava-se a um triste
destino: o de se entregar a combates de retaguarda contra cada
conquista da ciência e de pôr em suas falhas provisórias seu deus
tapa-buraco: da astronomia de Galileu à biologia de Darwin e à
psicanálise de Freud, correndo o risco, depois de cada revés e
com posição insustentável, de tentar recuperá-las. Assim foram
construídas cosmologias mais ou menos fantasistas à força de ge
neralizações dos dados positivistas das várias ciências: o evolu-
cionismo transformado em doutrina da finalidade global orientada
para um deus cósmico; a passagem de uma concepção da matéria
como sybstância à da matéria como energia, apressadamente in-
59
c
terpretada como ‘prova’ do idealismo; a descoberta da ‘indetermi-
nação’ das partículas, utilizada como um meio de introduzir a
‘liberdade’ já ao nível da natureza; as teorias astronômicas da
‘expansão’ manipuladas de forma a dar crédito à ‘criação’ e até
mesmo a fixar sua data. Todas essas astúcias, ingênuas ou finórias,
vão dar na mistura filosófico-teológica da ‘gnose de Princeton’.
A crítica radical dos chamados por Paul Ricoeur de ‘mestres
da dúvida’ (Marx, Nietzsche) prestou o maior serviço à fé cristã,
libertando-a do deus-polícia de Constantino, do deus da Santa-
Aliança com sua ‘moral’ cúmplice de todas as prepotências, como
também do deus frio dos filósofos. Limparam o terreno para a
renovação do cristianismo.
Foi bom que, graças a eles, fosse dito claramente que o deus
do teísmo tradicional, concebido à imagem de um rei, de um
juiz ou de um conceito nada tem a ver com a fé cristã. Que a fé
cristã não impede, como condição, a crença em um deus assim
imaginado, que teria Jesus de Nazaré como simples ilustração
histórica.
Acrescentemos mesmo, com o Padre Cardonel, que não se
pode ter fé ao mesmo tempo em um deus onipotente e em Jesus
Cristo crucificado.
O deus todo-poderoso da concepção teísta da religião é o
dos faraós do Egito, deus e rei, o das cidades-estados da Grécia,
onde Atena facilmente se identificava com Atenas. Esse deus é
Zeus ou ainda o deus dos romanos identificado com César, com
o imperador. Karl Marx nos livrou desse ópio. Que tem o cris
tianismo a ver com tais deuses? Cristo crucificado é o contrário
dessas figuras de poderio. Não se pode confundir o Olimpo com
o Gólgota.
O deus legislador é o deus de Hamurabi a ditar leis para um
império. É, de Moisés a Kant, o deus de todos os dualismos,
opondo o Bem e o Mal de maneira tão hábil que o Bem está
sempre em conformidade com os interesses das classes dominan
tes. Nietzsche e, depois dele, Freud por nos libertarem, em relação
a Moisés, da imagem do ‘Pai’, purificaram a atmosfera do céu.
O deus conceito é o que Platão identifica à idéia do Bem,
para além do horizonte dos conceitos. É também o ‘motor imóvel’
de Aristóteles. É o deus de santo Anselmo: “Existe um ser tal,
que nada maior que ele se pode conceber, e existe no entendi
60
mento e na realidade ao mesmo tempo.” Feliz com sua redesco-
berta, concluía: “Somente o louco disse em seu coração: não há
Deus.” Ao que Gaunilon, um monge de Marmoutier, respondia,
“em nome do louco”, que, entre a realidade e o conceito, só
havia passagem em um sentido: pode-se ir da realidade ao con
ceito (por empobrecimento), mas não do conceito à realidade.
Isto, porém, não impediu Descartes de adotar esse sofisma.
61
.(
62
c
I
63
rv
Na América Latina, a reflexão teológica sobre o marxismo,
juntamente com as lutas pela libertação dos povos, iria dar origem
à Teologia da Libertação, com a obra publicada com esse mesmo
título em 1971 pelo padre Gustavo Gutierrez19, ao qual se se
guiram Hugo Assman, Leonardo Boff, Enrique Dussel, Comblin
e vários outros teólogos.
Tornava-se cada vez mais claro para os participantes do diá
logo que o problema das relações entre cristianismo e marxismo
era mal colocado todas as vezes que a Igreja pretendia exercer o
papel de um partido político e que os partidos comunistas preten
diam exercer o papel de uma Igreja. Desse modo, opunha-se uma
ideologia a outra, mas nem a fé nem o marxismo são ideologias.
A fé não é uma concepção do mundo, mas um modo de agir no
mundo. O marxismo não é uma concepção do mundo, mas uma
metodologia da iniciativa histórica. Quando o marxismo se trans
forma dogmaticamente em materialismo dialético para fazer da
história humana um caso particular de uma dialética universal
da natureza, ele degenera em teologia atéia. Quando a Igreja pre
tende deduzir do Evangelho uma “política tirada da Sagrada Es
critura”, como Bossuet, ou uma “doutrina social”, como Leão
XIII, torna-se uma força política (conservadora, aliás) e é per
feitamente legítimo denunciar essa iniciativa como “ópio do povo”.
Desmascarada a confusão e uma vez atingido o objetivo, o
“diálogo cristão marxista” não tinha mais razão de ser. Isto foi
consignado em uma reunião comum do Conselho ecumênico das
Igrejas, em Genebra, com a participação de marxistas franceses,
espanhóis e italianos e de sacerdotes católicos designados como
observadores pelo cardeal Koenig.
Chegou-se à conclusão de que, na medida em que a discussão
teórica permitira uma clarificação do debate, ainda que sem a
anuência dos integristas dos dois lados, havia agora que percorrer
uma segunda etapa: depois de passar do anátema ao diálogo,
fazia-se mister passar do diálogo à prática, para a criação de um
futuro com face humana.
O problema já não se apresentava mais em termos de anta
gonismo, mas de emulação para atingir um fim comum: criar
64
para o homem, para todos os homens, condições para a plena
responsabilidade por sua história.
Por sua vez outro diálogo podia começar: não mais entre
cristãos e marxistas, isto é, um diálogo entre ocidentais que cada
vez mais, no momento da descolonização, corria o risco de tor-
nar-se ‘bairrista’, mas um diálogo entre as civilizações, para fazer
com que o Ocidente reconheça a indispensável contribuição das
culturas não ocidentais para a criação de um futuro com face
humana.
66
(
meios. Não se contenta em explicar, mas leva a tomar decisões
para transformar o mundo.
Trata-se, sob outro aspecto, de retomar a distinção feita por
Marx entre explicar o mundo e mudá-lo. Trata-se da passagem
da tecnocracia para o profetismo, quer dizer, para a vontade de
confrontar cada instituição e cada ação com sua finalidade.
Nossa inteligência atual, utilitária e técnica, fabricante de
ordem e de domínio sobre as coisas e os homens, foi forjada numa
luta de milênios pela existência, para a adaptação às coisas, para
o domínio e a manipulação das coisas, mediante tentativas e erros.
Ela era e continua a ser absolutamente necessária para a sobre
vivência do homem. Mas somente nossas sociedades ocidentais
desde a Renascença reduziram a razão a essa função única. Essa
redução e esse postulado conduzem inevitavelmente a generalizar
abusivamente o determinismo, indispensável para uma ação eficaz
das ciências e das técnicas sobre a natureza, a um determinismo
generalizado que ultrapassa a natureza e as intenções que podemos
ter quanto a ela, para fazê-la dirigir nossas relações com os outros
homens e até mesmo com nosso futuro. Era recolocar-nos sob
o jugo de um novo destino, na medida em que nada mais poderia
surgir que não fosse resultante ou produto de causas e de leis já
existentes, e na medida em que, como postulado, se fazia abstração
de qualquer possibilidade futura de o homem inventar o que não
estivesse no prolongamento do real tido como dado imutável.
Partindo do postulado desse determinismo generalizado, “não se
tem mais escolha, diz Martin Buber, a não ser entre a escravidão
voluntária e a rebelião inútil” 21.
E se partíssemos de um postulado rigorosamente inverso ao
do determinismo generalizado, com plena consciência de ser um
postulado: não estou obrigatoriamente sujeito a meus condicio
namentos, sou capaz de ruptura e, como tal, responsável por mi
nha vida e por minha história?
Certamente trata-se também de um postulado, mas, exata
mente como o postulado do determinismo se verifica em todos
67
.(
68
c
Isto porque o que caracteriza todas as ‘instituições’ é ter uma
finalidade limitada: realização de um trabalho de irrigação, de
construção, de defesa, de educação, de ordem interior, de con
quista ou de expansão. Daí decorrem suas características funda
mentais: organização hierárquica e delegação de poderes, com
todos os dogmatismos produzidos por esses aparelhos a fim de
justificar sua reprodução e conservação.
Essas instituições geraram, por exemplo, teísmos, ao criarem
deuses à sua imagem: os dos faraós divinizados; os das tribos de
Israel, estabelecendo com seu Deus relações de temor, relações
de senhor e escravo; os dos imperadores romanos, exibindo o
título, retomado depois deles, de Pontifex maximus (Soberano
Pontífice); os das nações sacralizadas; os das monarquias de di
reito divino, das santas alianças ou das democracias cristãs.
Não basta, para fugir desse círculo, transformar um deus
da ordem em um deus do movimento, sacralizar as revoluções
após haver por tanto tempo sacralizado as contra-revoluções. Não
se sairá das teologias dogmáticas substituindo simplesmente Cons-
tantino por Che Guevara. Não se sairá dos teísmos fabricando
deuses à imagem das sociedades parciais que os segregam: deuses
para conservadores e deuses para rebeldes.
Ao contrário, subindo dos fins parciais para fins mais altos,
tomaremos consciência da contradição mais trágica e, ao mesmo
tempo, mais exaltante de nossa existência: por mais que eu avan
ce, jamais chegarei a uma certeza primordial, a um fim último,
nem a nenhum princípio original obrigatório. Mas não posso
aceitar essa caminhada sem fim, porque tenho de agir; portanto,
sou obrigado a tomar uma decisão, a fazer uma escolha e a reco
nhecer nela um postulado.
Sim, um postulado. Verdadeiro. No sentido em que se fala
do postulado de Euclides ou do postulado de Riemann. Não é
uma decisão ou uma escolha arbitrária, irracional, é um princípio
que tenho de estabelecer a fim de garantir a coerência de meu
pensamento e de minha ação. Todo pensamento e toda ação se
baseiam em um postulado. Os do ateu e os do ‘crente’, do ‘liberal’
ou do revolucionário, os da ciência e os da fé. A diferença está
em que uns têm consciência de seus postulados, outros não.
Que fique bem claro: não ter consciência de seus postulados
é dogmatismo. Ter consciência deles é a fé.
69
Nenhuma pretensa racionalidade pode despojar-nos dessa respon
sabilidade. O fascismo não é ‘ilógico’. Nem mesmo é ‘ilógico’
querer a destruição total dos homens e do planeta. Somos plena
mente responsáveis por essa escolha, como também por escolhas
opostas.
Pode acontecer que eu interrompa cedo demais minha busca
dos fins e me instale em fins limitados: Acima de tudo, meu
país! Fora da Igreja não há salvação! O Partido sempre tem
razão!
São decisões, escolhas penúltimas, quer dizer, que recusam
confrontar a instituição com suas finalidades. Esse dogmatismo
nacionalista, clerical, stalinista ou não sei mais o quê, dá-me uma
certa segurança, uma consciência tranqüila. Ele me pedirá sacri
fícios reais, eu diria até mesmo que respeitáveis como tais. Criei
assim para mim um absoluto adequado ao meu tamanho: o di
nheiro, a nação, a classe, a raça, o partido, a Igreja, a seita. Ger
mina em mim um inquisidor. Porque se possuo uma verdade
absoluta, completa, quem quer que a conteste é um doente e seu
lugar é no hospital psiquiátrico, ou então um rebelde consciente
que recusa esta verdade absoluta, sendo justo que seja enviado
para a prisão ou para a forca.
Ao dizer essas coisas passei espontaneamente para a primeira
pessoa porque vivi tudo isto e não me desculpo. Esse passado é
o meu e não me envergonho dele. Porque se aprendi a mudar,
foi por ter passado por esse caminho.
Conheci a aparente plenitude do dogmatismo. Depois, a dú
vida, não como desapego, mas como angústia e responsabilidade.
A encruzilhada dos sonhos. Em seguida a travessia do deserto,
desses desertos espirituais onde se encontram tão poucos explo
radores ou nômades para ajudá-lo a abrir pistas.
Não seria o que sou se não tivesse sido o que fui. Se hou
vesse sido um cético, jamais teria sabido o que é a fé. É preciso
ter conhecido o que é uma certeza na qual se joga toda a vida,
para se elevar a finalidades mais altas, mas que exigem sempre
o tudo ou nada da vida e da morte. A fé tem esse preço.
É preciso que fique bem claro: a fé não é o contrário da
razão; a fé é o momento crítico da razão.
70
O momento em que a razão toma consciência de seus postu
lados. O momento em que se torna capaz de questionar seus pos
tulados e seus objetivos.
A fé é a experiência crítica de qualquer finalidade limitada.
Ela também é negação da negação. Negação dos limites do homem.
E como se poderia conhecer o limite sem ao menos pressen
tir que mais além começa outra coisa?
71
sado não é aquilo que não existe mais. É aquilo que conserva um
sentido para nossas vidas de hoje.
O futuro não é o que vai acontecer. É aquilo que fizemos. O
verdadeiro futuro não é o que ainda não existe. Está presente no
presente.
Entre conservadores com o falso passado — o que aprova
o presente — e revolucionários com um falso futuro — o que
prolonga ou inverte o presente, mas só se define em vista deste
— , a desgraça de nossa juventude é a de assim ficar privada de
memória e esperança.
Um presente que traz em si todas as criações do passado e
todo o futuro por criar, esse presente é outro nome da eternidade.
Portanto, não se trata de fazer um museu imaginário das
religiões e das revoluções, nem mesmo de escrever sua história,
como se escreve a dos mortos. Trata-se de evocar os homens e
os povos que revelaram novas possibilidades aos homens e aos
povos. De evocar as religiões e as revoluções unicamente na pessoa
daqueles que foram seus profetas e mártires. Dentro dessa pers
pectiva, não há história separada das religiões e das revoluções.
Apóstolos e revolucionários não se distinguem na única aventura
humana.
Os homens têm apenas uma história, desbravada a golpes
de audácias, de loucuras, de sacrifícios. A única que temos o
desejo de exaltar, a história das conquistas do gênio humano. A
única que vale a pena ser continuada, ser vivida. Viver, para o
.homem, é trazer à existência possíveis inéditos. Aqueles que o
tornarão mais humano, isto é, mais semelhante ao sonho milenar
dos deuses.
Revolução ou ressurreição? Será mesmo que se opõem ou
até se distinguem? Com a condição de não confundir ressurreição
com reanimação do cadáver, e revolução com mudanças de go
verno.
Procuramos uma alternativa para nosso modelo ocidental de
crescimento cego, e queremos descobrir um modo mais rico de
viver. Para isto precisamos redescobrir as opções feitas em ou
tras civilizações e em outras culturas, em outros continentes e
por outros povos que conceberam e viveram relações diferentes
entre o homem e a natureza, entre o homem e o homem, entre o
homem e o divino. Precisamos de todas as suas sabedorias e de
72
todas as suas revoltas. Precisamos deles para nos lembrar de que
aquilo que me falta para ser plenamente humano é o outro ho
mem. É preciso despertar alguns da anestesia dos dogmas reli
giosos, outros da nostalgia de revoluções que se tornaram vulcões
extintos.
Este livro foi escrito apenas para traçar o nascimento de
Deus no homem e do homem em Deus.
73