Você está na página 1de 69

Roger Garaudy

Apelo aos Vivos


T ra d uçã o de
H. P. d e A n d r a d é

2? edição

EDITORA
NOVA
FRONTEIRA
Título Original
APPEL A UX VIVANTS

© Editions du Seuil 1979

Direitos adquiridos para a língua portuguesa, no Brasil, pela


EDITORA NOVA FRONTEIRA SA .
Rua Maria Angélica, 168 — Lagoa — CEP: 22.461 — Tel.: 246-8066
Endereço Telegráfico: NEOFRONT
Rio de Janeiro — RJ

Capa
V ic t o r B u r t o n

Revisão
Jorge U ra n g a

FICHA CATALOGRÁFICA
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Garaudy, Roger.
G223a Apelo aos vivos / Roger Garaudy ; tradução de H. P. de
Andrade. — Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1981.

Tradução de: Appel aux vivants

1. Política mundial 2. Política mundial — Aspectos Sociais


I. Título

CDD - 309
320.9
CDU - 308
81-0289 327
Sumário

1. O m u n d o em u m b eco sem saíd a

1. Um modelo de crescimento que torna ò status quoinsu­


portável e impossível a revolução 11
— Optar pela energia nuclear é assassinarnossosnetos 12
— Optar pela energia nuclear é prepararo gulag . . . 15
— Optar pela energia nuclear é reduzir o terceiro mun­
do ao extermínio ou à revolta .............................. 18

2. O fim da ideologia do progresso................................... 20


— A desintegração da trama social ................................ 20
— Profetismo e política ........................................ 24

3. Como viver de mododiferente? ................... .. 28


— Os partidos políticos ................ ........... ......... .......... 30
— A ciência e as técnicas .......................................... 44
— As Igrejas atuais .................................... ................ 58

2. A trav és d a sab ed o ria de três m u n d o s

1. O ‘Livro dos mortos’ egípcio e a África v iv a ............. 77


2. Zaratustra .................. ........................................................ 88
3. Hinduísmo ....................................................................... 96
— Os Vedas .................................................................... 96
— Os Upanishads ............................................................ 102
— O Bhagavad Gita ................................ ... ................ 119
4. Budismo ............................................................................... 129
5. O Tao .................................................................................. 136
6. Budismo- Zen ...................................................................... 154
7. Jüdaísmo ............................................................................ 163
8. Cristianismo ......................................................................... 178
9. Islã ........................................................................................ 211

3. O novo crescimento

1. Como romper a lógica do sistem a .................. ............... 237


2. O que as sabedorias de três mundos nos ensinaram . . . 247
— Outras relações do homem com a n a tu re z a ........... 248
— Outras relações do homem com a so cied ad e......... 251
— Outras relações do homem com o d iv in o ............... 254

3. Socialismo e visão do mundo .......................................... 262


— Socialismo chinês ........................ ................................ 263
— Há algum ‘modelo hindu’? ..................... .................. 272
— A América Latina, das civilizações índias às ‘teolo-
gias da libertação’ ..................................... ................. 282
— Socialismo ‘africano’ ....... ............................................ 299
— República islâmica. Socialismo islâmico ................. 310
— Em direção a um encontro inédito do socialismo
com a fé .............................................................. 337
— Marxismo, materialismo e lib erd ad e........................ 339

4. Um projeto político concreto ........................................... 349


1. O ‘quadro econômico’ da F r a n ç a ............................. 349
a. O desperdício aonívelda produção ........... 352
b. O desperdício aoníveldo consumo ............ 374
c. O desperdício aonível dos serviços ........ 379
Centros de decisão e descentralização ................... 388
/
2. As multinacionais......................................................... 393
3. O Estado-nação ......................... ..................... 399
4. A defesa, a ‘dissuasão’ e a‘não-violência’ ............. 404
5. A criação de um novo tecido social ....................... 420
a. As comunidades de base ................................... 420
b. Descentralizar o primeiro poder ....................... 424

Conclusão .................................................................................. 430

•J
O mundo
em um beco sem saída
1. Um modelo de crescimento
que torna o ‘status quo’ insuportável e
impossível a revolução

Uma civilização em um beco sem saida. Um mundo cheio de


máquinas. Façanhas sem precedentes: as do átomo e da Lua, do
computador e da manipulação genética.
Que funda teria lançado esse bólido através da história e
das sociedades, desintegrando-lhes a trama? Para que desconhe­
cido alvo se dirige ele, à medida que sua velocidade aumenta e
ninguém parece mais poder dominar-lhe a trajetória?
Bem pouca imaginação se requer para antevermos nossa
morte: basta prolongar com linhas pontilhadas as correntes de
nosso tempo. Todas essas linhas se entrecruzam nos inícios do
terceiro milênio, vale dizer, dentro de trinta ou quarenta anos, e
revelam a sinistra evidência: se continuarmos a viver os próximos
trinta anos da maneira como vivemos os últimos trinta, não fa­
remos mais do que assassinar nossos netos.
Um pouco mais de imaginação será preciso para definir e
construir as condições de sobrevivência e de vida de nossa espécie.
Quem fará esse esforço de imaginação?
Quem responderá à pergunta sobre a morte ou a vida?
A política? Ela teria necessidade de profetas. E só dispõe
de políticos e de partidos.
A ciência e seus tecnocratas? Teriam necessidade de sabe­
doria, reflexão sobre os objetivos, e ainda se acham presos aos
esqueletos do positivismo e do cientificismo.
As Igrejas? Para tanto teriam necessidade de uma fé viva,
que fosse fermento, e não ópio. Precisariam de místicos e visio­
nários. E só contam com cleros e dogmas.
A história dos homens já conheceu angústias e convulsões
semelhantes, vazios iguais e mesmos abismos. Se necessário, re­

11
cuemos uns três mil anos para reencontrarmos o sentido de crises
com amplitude semelhante à de hoje. A história apresentou as
perguntas. Aí está a verdade do materialismo histórico. Os pro­
fetas trouxeram respostas — e aí está a verdade do espírito. Há
quatro séculos que pilhamos e esbanjamos as riquezas e as sabedo-
rias de três mundos. Não se trata de voltar aos antigos profetismos,
a sabedorias exóticas, às antigas visões, mas de haurir delas a
força para- descobrirmos a resposta aos problemas de nosso
tempo.
Trata-se de dizer aos resignados, sentados a contemplar a
torrente que se precipita, e àqueles que se deixaram por ela arras­
tar para o abismo: ainda é possível existir e viver. Ainda é pos­
sível contrapor um dique à corrente, inverter-lhe o curso. Com
a condição de manter os olhos abertos. De ficar de pé. De de­
fender cada parcela de vida.
Essa é a louca ambição deste livro.
Foi escrito para aqueles que querem ter nas mãos seu próprio
futuro, e a ninguém delegar esse poder. Escola de participação
para ajudar cada um a inventar o futuro.

Os meios de nos destruirmos não faltarão se continuarmos a ser


incapazes de dirigi-los para novos fins.
Para quem não está cochilando à beira do precipício, a an­
gústia extravasa das telas de televisão, dos rádios, dos jornais,
mesmo quando tentam ‘divertir-nos’, desviando nossa atenção.

O ptar pela e n e r g ia nuclear é a s s a s s in a r no sso s netos

Como vamos morrer? Pelo fogo atômico de uma guerra, desta


vez verdadeiramente total, a do fim do mundo? Ameaça bastante
verossímil, pois os dois ‘grandes’ da morte (os Estados Unidos e
a União Soviética) dispõem de vinte e cinco vezes mais bombas
do que seria preciso para aniquilar qualqtier vestígio de vida so­
bre a Terra.
A cada ano algumas nações a mais vêm brincar com o fogo
nuclear, prontas a representar pelo menos o papel de detonador,
pois os fabricantes oficiais de bombas (EUA, URSS, Inglaterra,
e
12
França, China e índia) não são os únicos a dispor delas. O acordo
assinado em 1975 entre a Alemanha e o Brasil, regulamentando
a entrega de uma série nuclear completa, mostra que a Alemanha,
como o Japão, pode não fazer caso da interdição de fabricar bom­
bas, já que encontra no exterior cúmplices que lhe fornecem os
elementos para tal. E a quantidade desses cúmplices é igualmente
reveladora; são de preferência os regimes ditatoriais mais san­
grentos: o Brasil, a Argentina e os canibais brancos da África
do Sul. E também o Zaire, onde o OTRAG (Orbital Transport
Rakete Aktiengesellschaft), perto de Kolwezi, se dedica a expe­
riências com mísseis nuclearesx.

Por outro lado, pela rede de centrais nucleares (daqui a vinte


anos, de acordo com o ritmo atual da progressão, seria construída
uma por dia no mundo) pode-se atingir ‘civilmente’ o mesmo
efeito destruidor.
No famoso plano ORSEC RAD, já há dezesseis anos man­
tido em segredo para os franceses, e cuja publicação continua a
ser-nos prometida, diz-se (Circular interministerial de 3 de agosto
de 1963, assinada pelos ministros do Interior, da Saúde e da
Pesquisa) que “Os riscos a que as populações estão sujeitas
são muito diferentes daqueles que até o presente as autoridades
tiveram de enfrentar. . . Podem ter tal amplitude que houve ne­
cessidade de prever-se um plano de segurança e de proteção vá­
lido para uma zona que inclua vários departamentos”.
O grave incidente de Harrisburg — em que, durante três
dias, nenhum perito do mundo pôde dizer se haveria ou não catás­
trofe, em que se interditou aos técnicos por todo um ano a
aproximação do sinistro e em que se admitiu a necessidade de
evacuar 950 mil pessoas — mostra com toda a clareza que tais
riscos são sempre possíveis, embora os dois enviados franceses
do lobby nuclear tenham voltado ao cabo de cinco dias, únicos
no mundo a acolher com tanta desenvoltura esse aviso.
A verdade é que nossos especialistas são sempre muito se­
guros de si; ontem, os da ‘linha Maginot’; hoje, os do Concorde,

1. Ver Afrique Asie, 8 de agosto de 1977 e 20 de março de 1978.

13
dos matadouros da Víllette; os ‘nucleocratas’ tanto quanto os
outros.
Acrescentemos, enfim, que basta a ruptura de algumas ca­
nalizações para provocar uma catástrofe em uma central nuclear,
de forma que um país possuidor destas centrais não tem defesa
em tempo de guerra, pois o menor bombardeio, até mesmo o
mais comum, pode ser fatal. . .
Milhares de ‘especialistas’ e de jornalistas, em todo o mundo,
estão encarregados de anestesiar a opinião pública, mascarando-
Ihe o perigo mortal.
O exemplo mais típico de intoxicação psicológica é o rela­
tório Rasmussen, difundido em todo o mundo pela Atomic Energy
Commission, dos Estados Unidos. Baseado principalmente, como
reconheceram seus próprios autores, nos dados fornecidos pelas
sociedades particulares de construção e exploração dos reatores,
ele naturalmente se adapta aos interesses destas,
Destinado a apaziguar a consciência dos que por profissão
estão vinculados a esse empreendimento suicida (por exemplo,
os engenheiros da EDF na França), o texto contém estranhos
sofismas: nele se afirma, por exemplo, que a probabilidade de
risco está na ordem de um acidente em vinte mil anos por reator.
Contudo, como por outro lado nos informam que daqui a
vinte anos existirão no mundo cinco mil reatores, a probabilidade
de acidente passa a ser de um a cada quatro anos.
E não é tudo! Durante o verão de 1977, a Nuclear Regula-
tory Energy, isto é, o órgão federal norte-americano encarregado
da segurança e da regulamentação dos reatores nucleares, exata­
mente o mesmo que, em 1972, havia encomendado e patrocinado
o famoso relatório Rasmussen, designa um grupo de especialistas
independentes para reexaminar esse relatório. Em janeiro de 1979,
a Nuclear Regulatory Energy publica curto comunicado, decla­
rando não mais considerar o relatório Rasmussen “digno de con­
fiança” "J .
Na mesma ocasião, quatro diretores de alto nível da General
Electric pedem demissão e expõem o motivo: “Tornou-se insu­

2. Citado por Le M onde, 26 de janeiro de 1979.

14
portável para nós servir a uma indústria que é uma monstruosi­
dade tecnológica . . . É inevitável um acidente nuclear.” 3
Que fique bem claro: aceitar a energia nuclear é assassinar
nossos netos.

O p t a r p e l a e n e r g ia n u c l e a r é p r e p a r a r o g u l a g

A poluição política com que o átomo nos ameaça é tão temível


quanto a poluição física.
A necessidade declarada de proteger a todo custo a enorme
máquina nuclear contra todo risco de sabotagem, de desvio de
plutônio ou até de infidelidade do pessoal, cria as condições para
aquilo que André Gorz chamou de ‘eletrofascismo’ ou ‘totalita­
rismo tecnocrático’.
Já se teve a possibilidade de medir a temível eficácia, na
arte de anestesiar a opinião pública, das firmas beneficiárias da
indústria atômica e daqueles que esperam obter a partir desta o
fortalecimento político de um poder centralizado. Já começam a
aparecer os primeiros indícios do regime policial exigido pelo
átomo.
Desde que o Dr. Theodore Taylor (o sábio americano que
fez os planos da mais leve e mais poderosa bomba atômica, em
Los Alamos) demonstrou que uma equipe de técnicos de capaci­
dade mediana podia ‘montar’ uma bomba ‘rústica’, só com 3 ou
4 quilos de plutônio comum, proveniente de reatores ‘civis’, e
feita em simples galpão ou quarto, manifestaram-se duas séries
de conseqüências, na política interna e na externa: as do terro­
rismo e as da proliferação.
Que desvios são possíveis, foi o que demonstrou de modo
evidente o desaparecimento em 1974 de Eliodore Pomar, diretor-
geral do Instituto de Pesquisas Nucleares da Euraton, em Ispra,
levando consigo materiais radioativos, destinados, ao que parece,
a grupos neofascistas.
A Nuclear Regulatory Commission dos Estados Unidos in­
forma que, entre 1968 e 1976, desapareceram das instalações sob

3. Citado por Témoignage Chrétien, 8 de janeiro de 1979.

15
seu controle 542 quilos de urânio enriquecido e 32,8 quilos de
plutônio.
Portanto, de forma alguma é inverossímil o ‘pesadelo’ evo­
cado pelo Dr. Bernhard Feld, diretor da Divisão de Física Nuclear
e Alta Energia do MIT (Massachusetts Institute of Technology):
“Um grupo de terroristas avisou ao prefeito de Boston que uma
bomba atômica estava escondida no centro da cidade. . . 10 qui­
los de plutônio haviam desaparecido dos armazéns do governo. . .
Pelo desenho do artefato enviado pelos terroristas, vejo, na qua­
lidade de especialista que colaborou na fabricação da bomba
atômica, que ela pode funcionar, mal, mas com efeitos terríveis.
Que devo aconselhar ao prefeito? Ceder à chantagem? Ou então
correr o risco de ver a cidade ser destruída?” 4
A partir daí se engrenou o mecanismo da “doutrina da segu­
rança nacional” (com justiça denunciada na conferência de Puebla
pelos bispos latino-americanos em 1979), justificativa de todas
as ditaduras, principalmente na América Latina, e que permite
varrer todas as liberdades e todos os direitos constitucionais. O
ministro do Interior da Alemanha Federal, Werner Maihofer,
diante de uma comissão parlamentar, explica: “Nossa civilização
tecnológica conhece uma tal escalada de riscos para a segurança,
que precisamos, por exemplo, no que se refere às centrais nu­
cleares, sistemas de alarme que cubram o país inteiro. . . e que
farão intervir em primeiro lugar, depois da polícia das empresas,
os Lander e em seguida as autoridades federais. Esses riscos
nucleares são também os riscos de nova criminalidade nuclear.” 5
Justificam-se então todas as medidas de exceção, de vigi­
lância e de coerção a fim de garantir a ‘segurança’ das centrais,
como também o transporte do material. Não somente o pessoal
tem de ser escolhido, espionado, estrangulado por uma disciplina
de ferro, como cada cidadão se torna um perigo em potencial e
deve ser fichado, manipulado, vigiado.
Que fique bem claro: optar pela energia nuclear é preparar
o gulag.

4. Declaração reproduzida por Robert Jungk em L Ê ta t atomique,


Paris, Robert Laffont, 1978, p. 200.
5. Ibid., p. 221.

16
Como vamos morrer enquanto espécie e causar a morte? Pela
exaustão de todas as fontes de energia e pela paralisia de um
planeta que se tornou inabitável? Energias e recursos estão guar­
dados há milhões de anos nas entranhas do planeta. Nós nos
arrogamos o direito de esgotá-los em uma única geração. Por
exemplo, a extração do carvão das minas data de oitocentos anos,
mas a metade desse carvão foi extraída durante os últimos trinta
anos. Desde as origens da humanidade se extrai petróleo bruto,
mas a metade desse petróleo foi extraída no curso dos dez últimos
anos. Se forem construídas todas as centrais nucleares planejadas,
dentro de vinte anos não haverá mais urânio. Se o consumo con­
tinuar a crescer no ritmo de hoje, mesmo que se descubram ou­
tras reservas exploráveis de petróleo e de urânio equivalentes às
atualmente conhecidas, a data do esgotamento será apenas adiada
por alguns anos6.
O mesmo vale para as florestas. Um terço das árvores exis­
tentes em 1882 (cerca de 2 bilhões de hectares) foi destruído
em 1952. A destruição continua a se acelerar: a cada minuto o
homem destrói 20 hectares de florestas no mundo. A pasta de
papel necessária para a publicação do New York Times de do­
mingo, com seus 80% de publicidade, exige o corte de 15 hec­
tares de floresta canadense, e a dos outros números, 6 hectares.
O desmatamento irracional dos contrafortes do Himalaia provoca
hoje as destruidoras inundações do Bangladesh, assim como as
formas de cultura herdadas do colonialismo geram as secas do
Sahel.
Nos últimos setenta anos, a agricultura moderna destruiu
metade do húmus em mais de um terço das terras cultivadas.
Um bilhão e meio de hectares tornaram-se impróprios para o
plantio. Apesar da ‘revolução verde’, tão rendosa para os gran­

6. A 10 de junho de 1979, o chanceler Helmut Schmidt lançava um


alerta: “O mundo inteiro estará ameaçado por grave crise se não conse­
guirmos ser mais econômicos em relação às fontes de energia existentes,
fora do petróleo, do carvão, da energia nuclear. A não ser assim, entra­
remos na década de 1980 em uma crise econômica diante da qual todas
as outras parecerão quase irrisórias.”
des proprietários de terras, a produção de cereais per capita caiu
no terceiro mundo abaixo do nível de 1961-1965. Apesar do
desenvolvimento e aperfeiçoamento das frotas de barcos pesquei­
ros, o produto anual da pesca diminuiu 11% entre 1970 e 1975.
Ora, a Terra precisou de 2 milhões de anos para ser povoada
por seu primeiro milhão de habitantes. Seis mil anos de agricultura
só conseguiram fazê-la chegar aos 250 milhões. Milênio e meio
bastaram para dobrar esse número. A partir da industrialização, o
ritmo se acelera com rapidez vertiginosa: o primeiro bilhão é atin­
gido em 1830. O segundo, em 1930. O terceiro, em 1960. O
quarto, em 1978. Como poderemos acolher dentro de vinte anos,
mesmo limitando os nascimentos, dois novos bilhões de seres hu­
manos em nosso planeta?
E que não se acuse unicamente a natalidade dos mais pobres,
porque 10 milhões de ocidentais consomem e poluem mais do
que, no nível atual, 4 bilhões de camponeses indianos. .
Que fique bem claro: optar por este modelo de crescimento
é tornar o statu quo insuportável, e impossível a revolução.

O p t a r p e l a e n e r g ia nuclear é r e d u z ir

O TERCEIRO MUNDO AO EXTERM ÍNIO OU À REVOLTA

Como vamos morrer e causar a morte? Pela revolta de um ter­


ceiro mundo faminto por causa da troca desigual de trabalhos e
coisas? O brasileiro Josué de Castro já escrevia em 19677: “Em
1954, comprava-se um jipe com 14 sacas de café; em 1962, havia
necessidade de 39.” Dom Hélder Câmara, por sua vez, mostra
que um trator canadense eqüivalia a 680 toneladas de açúcar para
um jamaicano em 1966, e 3.500 toneladas em 1968 8.
Em 1965, a Tanzânia podia comprar esse trator com 17
toneladas de sisal; em 1972, precisava de 42 toneladas.
Em 1960, um quilo de massas alimentícias custava a um
trabalhador rural senegalês 11 quilos de amendoim com casca;

7. Le Monde, 8 de março de 1967.


8. Dom Hélder Câmara, Spirale d e la violence, Paris, Desclée de
Brouwer, 1970, p. 65.

18
em 1972, custa-lhe 17 quilos9. Lembremos que em 1974 esse
mesmo trabalhador senegalês recebia 25 francos CFA (quer di­
zer, 50 cêntimos franceses) pelo quilo de amendoim, vendido a
140 francos CFA no mercado mundial e a 290 francos CFA
para o consumidor francês 10.
O estouro do petróleo mostrou que o terceiro mundo precisa
cada vez mais produtos para obter cada vez menos produtos pro­
venientes dos países industrializados, mas isto não passa de uma
‘folga’ entre duas trajetórias inexoráveis.
No Sudeste asiático, a simples extrapolação das tendências
atuais permite prever que, daqui a vinte anos, 80 milhões de pes­
soas morrerão de fome por ano, sendo que nessa época essa re­
gião contará com 2 bilhões e meio de jovens abaixo dos vinte e
cinco anos. Será que se pode sensatamente acreditar que essa
conjunção de juventude e de miséria a fechar-lhe o futuro não
será explosiva?
N Que fique bem claro: continuar com a atual política de cres­
cimento é o mesmo que obrigar o terceiro mundo à morte ou à
\ revolta generalizada.

9. Marches tropicaux, 12 de março de 1974.


10. Ibid., 12 de março de 1976.
2. O fim da ideologia
do progresso

A DESINTEGRAÇÃO DA TRAMA SOCIAL

Como vamos morrer e causar a morte? Não será por não saber­
mos e não procurarmos saber aquilo que nos impediria de morrer
e de matar, de assassinar nossos netos? Não será por todas as
ideologias reinantes, de direita ou de esquerda, serem já há um
século e meio obsoletas?
Desde 1824, exatamente.
1824 foi o ano em que apareceu a quinta e última edição da
Exposition du système du monde, de Laplace. (A primeira edição
datava de 1796.)
Nesse mesmo ano de 1824, saía à luz o estudo de Sadi Car-
not, Réflexions sur la puissance motrice du feu, tratando não mais
de máquinas, mas de motores.
A obra de Laplace marcava o fim de um mundo e de uma
era científica: a era da mecânica clássica, cujos postulados todos
ela resumia, e que começara com Galileu e Descartes.
O livro de Sadi Carnot abria uma era nova; a da termodinâ­
mica, cujas leis principais o alemão Rudolf Clausius iria deduzir
em 1854. Sem que na época, e durante um século, ninguém per­
cebesse, assim se passara da visão de um mundo cuja lei, na
opinião geral, era a de um progresso ilimitado, para um mundo
dominado pela lei da “entropia”, que é exatamente o contrário
da lei do progresso \

1. Ver, a respeito, Georgescu-Roegen, Energy and Economic Myth,


Oxford, Pergamon, 1976.

20
é muito importante entender bem essa lei e a reviravolta
capital dela decorrente.
Ao refletir, em plena revolução industrial, sobre o rendimen­
to da máquina a vapor, Carnot chega à conclusão de que esta
só pode produzir energia pela passagem de um corpo quente
(caldeira) para um corpo frio (condensador), estabelecendo assim
a primeira lei da termodinâmica: a transformação da energia.
Por exemplo, a transformação do calor em energia mecânica.
Em 1854, trinta anos depois das Réflexions sur la puissance
motrice du feu, de Sadi Carnot, Clausius descobre a segunda lei
da termodinâmica. Demonstra que cada transformação comporta
um déficit, que, no término do ciclo, chega à menos eficaz das
formas de energia: o calor, e este, por sua vez, degrada-se ao
irradiar-se, até uma uniformidade imprópria a qualquer nova rea­
tivação. A esse fenômeno deu o nome de “entropia”, crescimento
da desordem e da impotência, exatamente o contrário da noção
mecanicista do progresso.
Com efeito, da lei de equivalência entre energia e massa,
concebida por Einstein, depreende-se, a partir da noção de en­
tropia, que o universo em sua totalidade (massa e energia) é
dominado por uma lei irreversível de degradação da energia em
calor e da matéria estruturada em caos.
Enquanto se limitava unicamente a uma lei física a predizer
o esgotamento do Sol em quatro bilhões de anos, e a morte de
nosso planeta em alguns milhões de anos, a entropia tinha pouca
importância aos olhos da história humana; tínhamos a eternidade,
ou quase, à nossa frente. Contudo, quando o poder de nossas
técnicas foi tal, que o homem se tornou um fator geológico no
decurso dos anos 60, então a angústia brotou no coração dos mais
lúcidos. O erro fundamental e mortal da economia política era
o de agir “como se” o mundo dos homens continuasse a ser o
da mecânica de Laplace: um sistema fechado alimentado por fon­
tes inesgotáveis de energia.
Viu-se que, na escala do poder humano atual, nosso modelo
de crescimento acelerava vertiginosamente a entropia; esta não
era mais uma lei física, uma lei da longa história das coisas, mas
também uma lei econômica, uma lei da curta história dos homens.
A partir de então, podemos contestar os prazos fixados pelo
Club de Roma; deve, porém, ficar bem claro: o crescimento dos

21
próximos trinta anos, sob pena de morte da espécie, não pode
mais ter a mesma orientação nem o mesmo ritmo do crescimento
dos últimos trinta anos.

Como vamos morrer e causar a morte?


Talvez .simplesmente pela desintegração interna de nossas
sociedades, que morrem por não terem finalidade, e onde explo­
dem todas as violências: violências coletivas de guerras locais
(houve centenas delas desde a Segunda Guerra Mundial); vio­
lências de golpes de Estado, que têm por único objetivo substituir
um grupo por outro a fim de espoliar o mesmo povo; violências
permanentes de ditaduras militares e policiais e de gulags, que
sustentam seu reinado com o terror e a tortura;, violências indi­
viduais, que são apenas a transposição individual da violência
coletiva, feita lei do caos em nossas sociedades sem projeto e sem
futuro com face humana.
Em sociedades onde, como escrevíamos em nosso Projet es-
pérance o crescimento é o deus oculto, e a publicidade, sua
liturgia demente; em sociedades onde a maioria se vê privada
daquilo que o sistema em sua totalidade convida a gozar, a vio­
lência torna-se tanto a lei dos indivíduos como dos grupos, vi­
vendo uns e outros de acordo com a lei do imoralismo dos sofistas
atenienses, em que já se encontra a transposição para os indivíduos
da expansão da força brutal, característica do imperialismo da
Atenas de então: “O bem é ter os desejos mais fortes possíveis
e encontrar os meios para satisfazê-los.” Sobre esta perversão
fundamental do homem descansa hoje nosso sistema econômico
de crescimento cego, de crescimento pelo crescimento.
Atentados, suicídios de adolescentes, tanto mais numerosos
quanto mais ricos os países, dos Estados Unidos à Suécia, assal­
tos, destruições, seqüestros, todas as formas de terrorismo de in­
divíduos ou de grupos ngp passam de trocado miúdo da violência
maciça, institucionalizada.

2. Paris, Robert Laffont, 1976.

22
Nessa corrida para o abismo, fala-se às vezes de ‘milagres’,
isto é, de brusca elevação do produto nacional bruto de um país,
esquecendo-se de que os ‘milagres’ não são mais que miragens de
estatísticas mentirosas que escamoteiam o essencial: o ‘milagre’
só beneficiou 2% ou 3% da população, agravando o fosso entre
o luxo insolente de uma minoria ínfima, e as gigantescas massas
que mal recebem migalhas do festim, como se pôde ver do Irã
ao Brasil.
A consciência dessa permanente frustração e dessa perma­
nente ilusão, unida à ignorância de sua causa principal, gera as
‘brigadas vermelhas' e os casseurs *. Qualquer reflexão sobre a
violência é ineficaz e ilusória, se não consegue descobrir a raiz
real: a sociedade de crescimento e de concorrência selvagem dos
indivíduos, dos grupos e dos povos, que traz em si o crime e
necessariamente o engendra.
Todos os germes de morte e as convulsões do último quar­
tel do século XX não são meros acidentes ou aberrações, em
relação aos quais seria suficiente a repressão. O caos está na
lógica interna do modelo ocidental de crescimento (que se impôs
ao mundo inteiro) e do modelo de cultura que o fundamenta e
justifica, isto é, a maneira de conceber e de viver as relações com
a natureza, com o homem e com o divino.
Não se trata de um quadro do fim do mundo. Trata-se so­
mente do quadro do fim convulsivo de um ciclo histórico, o dos
quatro séculos de hegemonia do Ocidente, de seus modelos de
crescimento e de cultura, que hoje nos arrastam para o abismo.
Essa desintegração de uma sociedade exprime-se em todos
os domínios da cultura e das artes, já que essa cultura e essas
artes, quando os homens se encolhem friorentamente longe desse
mundo de pesadelo, não têm mais por objeto a percepção da
realidade e de seu sentido.
Para alguns, o único objetivo da pintura é apenas o ato de
pintar; o ato de escrever, o único objetivo da literatura. Em
filosofia, o ato de conhecer torna-se . o objeto de uma filosofia
sem objeto. A rua olhá-a indiferente, porque os problemas que
coloca são colocados apenas porque são mal colocados.

* Os que quebram por quebrar, para fazer desordem. (N . do T.)

23
Igrejas e escolas apenas respondera a perguntas que ninguém
faz. Por isso as universidades e os templos estão desertos.
Não foi por puro prazer que esbocei o quadro das atuais
correntes de nossas sociedades, mas unicamente para que fique
bem claro: a violência e a decadência não são mais que subpro­
dutos de nosso modelo de crescimento.

P r o f e t is m o e p o l ít ic a

Encarado sob todas as suas dimensões humanas, o problema do


crescimento, não é apenas um problema econômico e um problema
político, mas um problema essencialmente religioso: tem em jogo
o sentido e as finalidades de nossa vida, a possibilidade de viver
de modo diferente, isto é, de romper com todo um sistema de
relações sociais e transcendê-lo.
Os problemas que agora temos pela frente são problemas
planetários. Só podem ser resolvidos em escala planetária, pelo
diálogo das culturas e das civilizações.
Os problemas que agora temos pela frente são problemas
que só aparecem nas mutações multimilenares dos homens: para
resolvê-los não podemos raciocinar como políticos míopes, más
como homens que, com um recuo de milênios em relação à polí­
tica, saibam redescobrir,- na epopéia humana, crises que tenham
as dimensões da nossa.
Não é mais possível limitarmo-nos ao estreito horizonte da
política e da economia européias a partir da Renascença, com
seu enfermiço racionalismo a pretender reduzir toda a realidade
ao conceito; com seu individualismo a encerrar tudo na medida
de nossa solidão e a levar cada vez menos em consideração as
dimensões propriamente humanas, isto é, divinas, da transcendên-
çia e do amor.
v Reviver a aventura humana em sua plenitude, da primeira
esperança à última angústia, é conscientizar-se das duas decisivas
mutações do homem:
— a mutação da primeira esperança, a da passagem da vida
nômade à agricultura e à urbanização, que permitiu a um pe­
queno número não mais estar acorrentado às necessidades ime­

24
diatas, mas também consagrar-se à cultura, à reflexão sobre os
objetivos, limiar decisivo da hominização;
— a mutação de hoje, a da última angústia, é de grandeza
igual: pela primeira vez na história humana, o homem dispõe
do poder técnico de aniquilar muitas dezenas de vezes qualquer
vestígio de vida sobre a Terra. A epopéia humana iniciada na
África, em Tanganica, há dois ou três milhões de anos, pode
chegar ao fim.
Ultrapassando a perspectiva dos últimos quatro séculos da
história ocidental, vê-se que, bem longe de se oporem, a política
e a fé, profetismo e política sempre estiveram estreitamente uni­
dos nas grandes mutações históricas.
A história apresenta problemas, como o da passagem da vida
nômade para a agricultura e a urbanização. A resposta última é
dada pelo profeta: nos confins do Irã e do Afeganistão, eleva-se
a voz de Zaratustra. Com ele, pela primeira vez, o drama histórico
da luta do “bom lavrador da terra dos homens” contra o nômade
saqueador adquire a dimensão cósmica da luta do Bem contra o
Mal.
Nietzsche não se enganou ao escrever: “Zaratustra, és, assim
como eu, um dos seres predestinados que criam valores para mi­
lênios.” Para ele, Zaratustra era o profeta da aurora, e Nietzsche
via-se como o profeta do fim dos tempos, em um mundo ocidental
entregue à vontade de poder para além do Bem e do Mal.
A história propunha os problemas fundamentais na encru­
zilhada do Crescente Fértil, na Palestina esmagada entre duas
grandes potências, o Egito e a Mesopotâmia, para onde foram
alternadamente exilados os judeus. Ergueu-se então a voz de seus
profetas para responder ao drama da história, traçando para um
povo o caminho do homem em direção a um futuro propriamente
humano, ou seja, divino: a dessacralização do poder dos reis com
Amós, como com Moisés e o livro do Êxodo, como com Isaías
durante o exílio de Babilônia( Ligando as desgraças de um povo
às faltas dos homens, eles tornam o homem, para além de todos
os fracassos, plenamente responsável por sua história e pela vi­
tória do futuro.
A história propunha ainda o problema maior, o da resistên­
cia do homem a tudo quanto lhe é exterior, quando, ultrapassando
as respostas políticas dos zelotas ou o afastamento do mundo dos

25
monges de Qumran, Jesus de Nazaré desvendou em seu próprio
princípio e afrontou, até a morte, o totalitarismo dos sacerdotes
judeus, com sua pretensão de governar a política em nome da
lei religiosa, e o totalitarismo romano, com sua pretensão de go­
vernar a religião em nome do poder político de um imperador,
para quem se exigia o culto de um deus.
Contra o duplo totalitarismo judaico e romano, o surgimento
profético de Jesus de Nazaré renovava a vida e a história, ao
anunciar o Reino como fermento de vida interior e meta trans­
cendente do futuro comum.
Ao profeta do Islã, a história também apresentava proble­
mas: os de uma Arábia idólatra e dividida e, para seus sucessores,
os de um império sassânida desintegrado pelas rebeliões locais,
de um império bizantino despedaçado pelas heresias, de uma Es­
panha entregue à decadência dos reis visigodos, a bispos ambi­
ciosos e a feudais espoliadores. Levantou-se então o profeta.
Tomou o lugar da religião de Abraão, baseada na entrega absoluta
de si à vontade divina, o lugar de Moisés a unificar a Lei de Deus
com a lei do mundo, o lugar de Jesus, “selo da santidade”, dei­
xando de lado todas as sutilezas teológicas. E o Islã precipitou-se,
qual ciclone fecundante, do mar da China até o oceano Atlântico,
herdeiro das grandes civilizações, da índia ao Irã e à Grécia.
Abria o futuro por prodigiosa floração da ciência, da mística e
das artes, dando ao homem por objetivo, como escreve Ibn Arabi,
o “xeque al-Akbar” , “fazer da própria vida um lugar de mani­
festação do divino”.
Excetuando o minúsculo intermédio da história mundial que
tem início com a Renascença européia, com o nascimento simul­
tâneo do capitalismo e do colonialismo, em todas as culturas, em
todos os continentes e em todos os séculos, mística e política,
profetismo e mutação social formam um todo único.
Quando a política e a ciência se esquecem da dimensão trans­
cendente do homem, sua invencível capacidade de recuperação
de seu destino, ou a recusam, sabemos muito bem em que se
transformam a política, a ciência e a fé.
A política e a economia se tornam tecnocráticas, vale dizer,
não perguntam mais ‘por que’, quais os objetivos, mas unicamente
‘como’, quais os meios.

26
A ciência torna-se cientificismo, sendo èste a superstição
que, ao separar a ciência da sabedoria, os meios dos objetivos,
faz do conhecimento não uma virtude, a serviço do domínio e
da realização de si, mas um poder a serviço da vontade de poder
sobre a natureza e sobre os outros homens.
A fé, por sua vez, torna-se integrista, ligada a uma cultura
passada e ultrapassada, desligada da vida de hoje e incapaz de
responder a seus problemas,

27
3. Como viver de modo diferente?

Se você nào gosta de perguntas desse tipo, não leia este livro.
Não leia este livro e jamais desligue a televisão, que lhe
ensina a arte das artes, a de viver sem ‘porquês’.
Não o leia, e os anúncios lhe dirão o que deve desejar, do
sabão em pó ao automóvel.
Nao o leia e nunca tire o pé do acelerador, a não ser nos
engarrafamentos, para pôr seu rádio a berrar.
Não o leia e não olhe para o rosto de um homem real, nem
mesmo no metrô. A “Série Noire”, o Jours de France, o Auto-
Journal e a loteria esportiva o ajudarão.
Talvez não venha a ler este livro nem outro qualquer que
traga a pergunta ‘por quê’, porque a maneira como vive e seu
ritmo impedem-no de fazer isso, amarrando-o com seus laços: os
da fábrica, da televisão, da imprensa ou do supermercado.
Talvez também você me responda encolerizado: “Não venha
aumentar ainda mais o peso do céu escuro que dobra minha nuca,
com perguntas: Que fizeram com a Terra? Que fizeram do ho­
mem? Que fizeram da vida? O futuro virá sem mim e eu quero
viver hoje!”
O futuro vem hoje sem você. Ê verdade. E se houvesse a
possibilidade de vir contra você? Ou que venha mesmo com
você?
Não sou daqueles que dizem: o homem morreu. O homem
ainda não existe. Vamos juntos tentar fazê-lo existir? Tentarmos
existir. Quer dizer, não sermos um elo na cadeia de causas e
efeitos, mas seres que estão nascendo, dos quais brotam a cada
instante, com um objetivo mais claro, forças cheias de vida.

28
Contra uma economia da riqueza que gera a pobreza, contra
essa vida pobre feita de políticapobre, de amor pobre, dearte
pobre, de ciência pobre e de religião pobre, vamos tentar criar
um modo de viver mais rico?
Você não gosta de apostas idiotas? Eu também não. Mas
não temos escolha: a fé ou o nada.
A . única fé necessária no começo é esperar que o homem
ainda esteja por fazer.
Será que se .pode viver de modo diferente? procurando os
verdadeiros ‘porquês’? Parg começar: por que não podemos viver
de outro modo?
Viver de outro modo,. É isto ; o que importa. Nada mais.
Nada menos. Viver de outro modo.

Escrevo estas coisas movido unicamente pela certeza de que existir,


agora, é um desafio permanente às atuais correntes históricas,
desafio que só será vitorioso se conseguirmos encontrar novas
relações com a natureza, consagrando a melhor parte das pes­
quisas à utilização da energia solar, praticamente inesgotável, e
deixando de criar falsas necessidades e os mais criminosos des­
perdícios em função das exigências desumanas do mercado e da
guerra; se conseguirmos estabelecer novas relações entre homem
e homem, sem oscilar entre o individualismo da selva e o totali­
tarismo do cupim, e reencontrar a relação verdadeiramente hu­
mana da comunidade; se conseguirmos estabelecer nova relação
com Deus, redescobrindo a dimensão da transcendência, a per­
manente possibilidade de ruptura com o passado e o presente,
superando a entrega aos catastróficos e cegos erros de um desen­
volvimento do qual o homem está ausente.
A cada etapa será exigida uma opção. Não apenas uma opção
intelectual. Um ato de fé, ou seja, opção que signifique com­
promisso com uma experiência onde cada um põe em jogo toda
sua vida.

Para interrogações vitais dessa ordem não existem respostas


prontas.
— Nem a dos partidos políticos.

29
—■Nem a das ciências e das técnicas.
— Nem a das Igrejas.

Os PARTIDOS POLÍTJCOS

Os partidos políticos têm dado resposta aos problemas fundamen­


tais de nossa época?
Aqui nos limitaremos à experiência francesa, porque, apesar
das variantes, as trajetórias dos, partidos políticosnos países onde
existem, isto é, de modo geral no Ocidente‘liberal’,apresentam
grandes analogias.
E nos limitaremos aos últimos anos, tomando 1968 como
ponto de partida, porque, com o recuo histórico desta década,
para além das esperanças messiânicas de alguns e do novo ‘pavor
dos bem-pensantes’, vê-se claramente que, pela primeira vez em
cinqüenta anos, surgiu uma alternativa para o modelo vigente de
cultura e para o modelo de crescimento.
O acontecimento era tanto mais significativo na medida em
que a cólera não nascia da miséria. Em 1968, o mundo ocidental
não estava em crise, mas em pleno desenvolvimento; foi então
que explodiu uma revolta generalizada em todos os setores da
vida: cultural, político, social. Essa crise não era econômica. Não
nascia de uma depressão. A aspiração a uma ‘vida diferente’ ma­
nifesta-se sob formas às vezes apocalípticas ou confusas, em plena
fase ascendente do sistema, e põe a nu o contraste entre o novo
triunfalismo dos dirigentes da sociedade e a tomada de consciên­
cia do absurdo da vida dentro de tal sistema.
Pela primeira vez na história do Ocidente, o movimento de
maio de 1968 questionava tanto o modelo de crescimento quanto
o de revolução.
Não nascia do vácuo. Encontrara sua fonte em uma crise
não econômica, mas global e vital, do capitalisipo e numa crise
também não econômica, mas global e vital, do socialismo.
No que diz respeito ao capitalismo, a guerra da França na
Argélia e a dos Estados Unidos no Vietnã desmascaravam de ma­
neira sangrenta a mentira do pretenso ‘liberalismo’ que praticava,
sob novas formas, as antigas escravaturas.

30
Quanto ao ‘socialismo’, sob a forma que a União Soviética
pretendia construí-lo, não podia mais apresentar-se como ‘alter­
nativa’ à ‘barbárie’ capitalista. Não apenas havia integrado o
mesmo modelo de crescimento, com a ordem de ‘alcançar e ultra­
passar’ o mundo capitalista, isto é, de seguir o mesmo caminho,
mas as revelações do 20.° Congresso do Partido Comunista So­
viético haviam trazido à luz do dia o arcaísmo e a barbárie de
seu sistema político; esta se revelará ainda mais depois das inva­
sões da Hungria e da Tchecoslováquia. O fim do mito do ‘socia­
lismo soviético’ foi a tomada de consciência, por parte da juven­
tude, de que ele não trazia a solução para os problemas da
alienação capitalista do trabalho, da política, da cultura.
Nessa crise, no verdadeiro sentido da palavra (o momento
em que se julga, o momento do questionamento e da opção), a
própria noção de ‘política’, deixando de lado o jogo dos partidos,
encontrava seu sentido pleno, abarcando todos os aspectos da
vida, do trabalho à festa, do sexo à cultura.
A falência dos dois grandes mitos do Ocidente, o liberal e o
soviético, que vinha desaguar nesse questionamento dos modelos
de crescimento e de revolução, era mais sensível pelo contraste
com as lutas dos povos do terceiro mundo: lutas pela libertação
dos povos da Argélia e do Vietnã contra o colonialismo, a revo­
lução de Mao, primeiro modelo original de revolução socialista
desde a revolução de outubro de 1917, e a epopéia lírica de Che
Guevara na América Latina.
O movimento de tal forma ultrapassou os partidos, que a
França se viu a braços com a greve mais ‘geral’ de sua história,
pelo número — 10 milhões de grevistas — e pela diversidade das
camadas sociais que dela participavam, antes mesmo que fosse
dada a palavra de ordem e que fossem fixados objetivos e pers­
pectivas à altura das novas esperanças.
Na direita, depois de hesitações, uns pensaram na repressão
(de Gaulle lembrou-se dos tanques aquartelados na Alemanha);
outros, como Pompidou, procuraram contemporizar, fazer con­
cessões, à espera da possibilidade de afogar tudo no modelo de
uma campanha eleitoral. Esta última solução se revelou a mais
eficaz e conseguiu, uma vez mais, salvaguardar a ‘ordem’.

31
\

I
I
.(

Essa triste vitória foi ainda mais fácil devido à incapacidade


da oposição ‘de esquerda’ para tomar consciência dos verdadeiros
problemas.
A ala reformista, julgando encontrar no movimento das mas­
sas o sucedâneo de uma maioria eleitoral, esforçou-se por cana­
lizar em seu proveito o protesto, e teve a pretensão de dirigir o
movimento como se dirige uma ‘vitória eleitoral’: pela política
dos despojos, quer dizer, começando por repartir os cargos.
A outra ala da oposição, o partido comunista, já a 3 de maio
de 1968, em um artigo de George Marchais, em vez de desem­
penhar seu papel de vanguarda, de ensinar as massas a pensar
com clareza sobre aquilo que eles haviam confusamente inven­
tado, rejeitou em bloco tudo quanto estava a emergir do movi­
mento. O que Marx, como diz Lênin \ apreciava acima de tudo:
“a iniciativa histórica das massas” era justamente o que a direção
do partido temia mais que tudo. Nenhuma das palavras de ordem
da rua tinha valor, já que não provinham da direção.
É nisto que consiste a essência do stalinismo: todo poder e
todo saber vêm do alto.
Com esse artigo no 1’Humanité, de 3 de maio de 1968, pode-
se marcar o dia em que o partido comunista francês, por culpa
de sua direção, caiu fora da história, por não ter compreendido
o que nela germinava: a aspiração confusa, mas real, a um outro
modelo de crescimento e a um outro modelo de revolução. A
história jamais perdoa a um homem, a um partido ou a uma
Igreja o fato de ficarem atrasados em uma mutação.
Depois que cada um, nos acordos de Grenelle, apresentou
sua posição, não a partir do elemento novo que emergia da base.
mas a partir dos velhos processos que trazia na pasta, todos os
partidos, da direita à esquerda, não tiveram preocupação maior
do que interromper as greves a fim de mandar imprimir o mais
depressa possível as cédulas de voto! A direita explorou maravi­
lhosamente o medo que se propagava por todo o país, exibindo
fotografias de alguns carros incendiados como se se tratasse do
fogo do inferno. A esquerda acreditou ingenuamente poder con-

1. Lênin, prefácio das “Lettres à Kugelraann”, de Karl Marx, Roma,


Rinascita, 1950, p. 15.

32
(
tar nas urnas com todos os gritos de cólera que haviam ressoado
durante dois meses, como se se pudesse desviar a força de uma
correnteza enchendo os baldes.
Nessas condições, a direita certamente deveria ganhar. Ga­
nhou, com efeito, e aproveitou-se da trégua para recuperar tudo
quanto podia recuperar sem que a ordem fundamental fosse posta
em perigo.
O sistema não podia, sem se negar a si mesmo, responder
às aspirações sociais e culturais do movimento.
Do movimento operário de maio emergira, com uma força
até então desconhecida, a exigência de tomar nas mãos o pró­
prio destino, a autodeterminação dos objetivos e autogestão dos
meios, em todos os níveis: da empresa, da política, da cultura.
Os homens do poder pegaram a palavra ‘participação’ e meta-
morfosearam-na em ilusória ‘participação nos lucros da empresa’
e em uma não menos ilusória oferta de ‘co-gestão’, a fim de inte-
grá-la ainda mais no sistema, fazendo-a ‘participar’ melhor da
gestão do capitalismo.
Do movimento dos estudantes brotou uma aspiração seme­
lhante. E a obrigação primordial dos partidos que se diziam re­
volucionários teria sido, em maio, a de captar o denominador
comum das reivindicações do operariado, das aspirações dos
estudantes, dos técnicos, do funcionalismo e da maior parte dos
intelectuais, a fim de constituir um novo bloco histórico, a saber,
uma união baseada em um princípio: a unidade de um mesmo
ponto de vista histórico. O governo concedeu-lhes uma ‘reforma
do ensino’, cuja exposição de motivos fazia uso de alguns slogans
de maio e, em seus artigos, atomizando as universidades sob o
pretexto de ‘descentralização’, tornava cada unidade ainda mais
dependente do poder central.
Os senhores da situação não podiam, sob pena de desarran­
jar o motor de seu sacrossanto ‘crescimento econômico’, dar lugar
de verdade, junto com o trabalho, aos valores libertadores da
‘festa’, mas souberam muito bem comercializar o lazer.
Sua lógica interna de crescimento a todo custo não lhes per­
mitia levar em consideração uma política autêntica da ecologia,
mas souberam muito bem fazer da luta contra a poluição um
ramo florescente de sua economia.

33
A emancipação sexual arriscava-se a abalar os próprios
fundamentos do sistema, questionando a hegemonia do macho;
podia-se, porém, facilmente comercializar a sexualidade; veio então
a política ‘permissiva’, inofensiva para o governo, do ‘sinal verde’
para a pornografia escrita ou filmada.
Seria fácil prosseguir na enumeração dos êxitos do poder.
Nesse plano de recuperação o sucesso foi tamanho, e a juventude
operária e estudantil tão bem dominada, que o feliz herdeiro do
hábil Pompidou pôde arrogar-se a honra de conceder o direito
de voto aos dezoito anos, sem correr o risco de desequilibrar as
forças.
Ao mesmo tempo, os dois principais componentes da opo­
sição dita de esquerda ainda uma vez só tinham para dar a seus
adeptos a perspectiva de outras eleições, sem pedir a seus elei­
tores em troca de uma vitória senão novo cheque em branco,
nova abdicação do poder de cada um, sua delegação, sua alienação
a um partido e a seus eleitos: votem em nós e nós faremos o
resto. . . E Deus sabe se este ‘resto’ era irradiante; para que tudo
mude votem em nós, dizia um; e o outro rebatia: votar em nós
é mudar a vida.
Todos se debatiam em inúmeras contradições: para os re­
formadores o ideal seria, depois do grande aborto de maio, uma
sociedade em que nenhuma tentativa revolucionária fosse huma­
namente previsível, de onde não surgisse nenhum projeto (neste
ponto o partido comunista dava todas as garantias); e em que
a elevação da taxa de crescimento prometeria a elevação do pa­
drão de vida, criando a ilusão de que se poderia ‘mudar a vida’
sem mudar o sistema, quer dizer, administrando o capitalismo
melhor do que os próprios capitalistas. Deste lado, as circuns­
tâncias não ajudavam esse reformismo ideal: se subisse ao poder,
teria pela frente a crise permanente. Era preferível prolongar o
tratamento da moléstia na oposição e aproveitar-se da expectativa
para tirar de seu vizinho e rival da esquerda uma parte da
clientela.. .
Operação que foi muito facilitada pelo fato de o partido
comunista estar às voltas com contradições ainda mais profundas,
devidas aos erros em série a partir de maio de 1968. Desde este
momento deixara de constituir uma alternativa ‘revolucionária’
digna de fé em relação ao sistema, apesar de continuar a pro-

34
clamá-lo por palavras e querer a todo custo reter seus eleitores,
mas estes iam engrossar as fileiras do partido socialista. Cometeu
então o erro fatal de rivalizar em reformismo com os reformistas
e começou a grande liquidação: um belo dia a direção decretou
que se devia aderir à arma atômica, combatida durante trinta
anos; outro dia (sempre de acordo com o método stalinista já
mencionado), outro decreto jogava ao mar a ‘ditadura do prole­
tariado’, coisa que em si poderia ser excelente se houvessem pro­
posto em substituição uma solução para resolver os problemas
para os quais Marx e Lênin haviam forjado esse conceito; esse
abandono, porém, na falta de qualquer discussão que permitisse
à base sugerir alternativas, levou ao mais insosso eleitoralismo.
As desistências sucediam-se sem cessar: depois de ter ‘re­
provado’ a invasão soviética da Tchecoslováquia, aceitava-se a
‘normalização’, quer dizer, o freio posto ao país pela repressão
sistemática.
O internacionalismo proletário já não se definia por um ali­
nhamento incondicional com a URSS (embora sua política ex­
terior de domínio jamais fosse contestada), mas virava nacio­
nalismo, desde a palavra de ordem “defesa nuclear em todas as
direções” até os slogans do tipo “produza tudo francês. . . compre
tudo francês”, até a recusa de deixar entrar a Grécia, a Espanha
e Portugal em uma ‘Europa’ combatida por tanto tempo, antes
de aderir sem condições, a não ser verbais, e de nesse ponto
colocar-se ao lado dos gaullistas mais chauvinistas e mais inquie-
tantes.
Enfim, última contradição, e não a menor delas: após terem
reconhecido que diariamente, na URSS, eram menosprezados os
direitos mais elementares e que lá não havia democracia nem
mesmo formal, consideravam-na no entanto ‘socialista’ e decla­
rava-se que o balanço do regime era ‘globalmente positivo’. Assim,
depois de se haver definido o socialismo como uma democracia
verdadeira e não formal, penetrando na economia e na cultura,
como também na política, afirma-se que um país pode ser socia­
lista calcando aos pés toda e qualquer liberdade. Estranha face
do socialismo!
Já que não surgia de partido algum um grande projeto, à
altura de nosso tempo, as eleições iriam obedecer à lamacenta

35
lei da entropia política, repartindo-se entre 49% e 5 J % , com
ligeira vantagem, em geral, para os mais seguros partidários do
status quo e da manutenção da ordem antiga, uma vez que os
adversários eram incapazes de conceber e de propor algo de novo.
Como um eleitor poderia fazer uma opção fundamental se,
em relação a todos os problemas de que nosso futuro depende
— modelo de crescimento, armamento nuclear, energia nuclear
com todas as suas conseqüências mortais — , todos os partidos
estão de acordo, com apenas ligeiros matizes de vocabulário?
O poder real fica, portanto, com os grupos de pressão que
estabelecem o ‘crescimento econômico’ a partir dos setores que
lhes são mais rendosos: a energia nuclear e o automóvel, os úni­
cos que ficaram imunes à crise e que mantêm inflexivelmente sua
progressão. Poder-se-ia dizer hoje, parafraseando um axioma do
passado: a energia nuclear e o automóvel são as duas mamas do
crescimento.
Da energia nuclear já evocamos os danos físicos e políticos.
Mas poderíamos falar de modo semelhante do automóvel e sobre
o conjunto do grupo de pressão (o mais forte da França) que
gravita ao redor dele e orienta a política econômica, já que os
fabricantes de carros, os de pneus, os construtores e financiadores
de rodovias, os empresários do petróleo e seus satélites represen­
tam quase .a metade do orçamento da França.
Em face de tais interesses, que importa se nas estradas mor­
rem, por ano, mais de 15.000 pessoas e 300.000 ficam feridas,
ou seja 150.000 mortos e 3 milhões de feridos a cada dez anos
(o equivalente a duas Hiroshima); e que importa se a juventude
está em primeiro lugar: de 1.000 mortos jovens de vinte a vinte
e quatro anos, 366 morrem nas estradas, 265 de vinte e cinco a
trinta anos, 175 de trinta a trinta e cinco anos. Ficou provado
que a redução da velocidade diminuiu o número de acidentes em
55% na Suécia e 50% na Inglaterra. O Japão, que, de 1970 a
1977, passou de 18 a 32 milhões de veículos, diminuiu no mesmo
período quase a metade dos acidentes mortais (de 17.000 a 9.000)
graças a medidas draconianas de limitação da velocidade; e pro­
tegeu sua juventude proibindo as motos de mais de 700 cm3
(desde então reservadas para exportação).

36
Contudo, medidas desse porte afrouxariam as vendas, e o
lobby francês do automóvel tem poder necessário para se opor
a elas 2.
Todos os partidos e o Parlamento se inclinam diante desse
contrapoder real dos grupos de pressão da energia nuclear e do
carro, mascarados tanto na França como nos Estados Unidos, na
Alemanha, na Itália e em outras partes, pelo ‘poder’ oficial, mas
ilusório, dos Parlamentos, (encarregados de convencer o público
de que, por ser eleitor, se torna ‘soberano’, quando na verdade
as opções vitais lhe são proibidas e as decisões são tomadas, à
revelia de qualquer controle, pela tecnocracia dos grupos de
pressão.
é preciso que fique bem claro: „nenhum partido político é
hoje capaz de realizar novo projeto de sociedade, livre da ‘lógica’
mortal do crescimento cego, nem mesmo de concebê-bye propô-lo.
'— ''•••

Todavia a política, no sentido verdadeiro e forte da palavra, isto


é, a vontade de criar uma sociedade com face humana, está em
gestação, sobretudo a partir de 1968, fora dos partidos. Os ger­
mes do futuro estão presentes onde pequenos grupos de homens
se reúnem, entram em entendimento, organizam confederações, a
fim de tomar nas mãos seus interesses, sem esperar ‘de cima’, de
eleitos ou de chefes aos quais teriam delegado poderes, as deci­
sões concernentes a sua vida cotidiana, bem como a seu destino.
Fora das instituições oficiais já começou a brotar a vontade
de viver de modo diferente.

2. Enquanto os países que as impuseram com vigor (principalmente


o Japão, a Inglaterra, a Suécia) mostraram quantas vidas poderiam ser
poupadas pela redução da velocidade, e no momento em que os especialistas
declaram que se exagerou a importância dos lençóis de petróleo, mesmo
na Arábia, pode-se medir o desprezo pela vida e pela verdade, bem como
a insolência em relação aos poderes públicos do poderoso lobby do auto­
móvel, quando uma de suas figuras mais salientes, o fabricante de pneus
François Michelin, afirmou, para o jornal La Montagne, em junho de 1979 :•
“Há muito mais petróleo do que andam dizendo [ . , . ] é um problema
forjado expressamente para entregar o poder a algumas pessoas no plano
político [ . . . ] Reduzir a velocidade nas estradas e aumentar o preço da
gasolina suscitaria inevitavelmente uma crise na indústria automobilística.”
E brandia suas ameaças e seu poder econômico para impedi-la: não mais
construir fábricas e parar de contratar operários.

37
Mesmo no seio das ‘multidões solidárias’, comunidades de
novo tipo nascem, morrem e tornam a ser criadas. Olhares se
cruzam. Mãos se apertam. Formam-se projetos em comum. Aqui
um poço. Ali um estádio ou uma creche. Aqui uma oração. Lá
uma cooperativa. Aqui uma escola. Todos juntos. E pela inicia­
tiva dos ‘de baixo’: comunidades cristãs da América Latina à
França, ou comunas chinesas, jovens que não aceitam ser estro-
piados pela pedagogia obsoleta das escolas e universidades, nem
pelas ideologias de recuperação e de insidiosa integração na de­
sordem estabelecida.
Organiza-se a ação para o respeito aos equilíbrios ecológicos
entre o homem e seu ambiente de terras, árvores, rios e lagos
mortos pela poluição; para a defesa dos oceanos, para a proteção
do espaço contra satélites espiões com equipamento nuclear, pondo
sobre nossas cabeças a ameaça permanente de sua queda.
A terra, a água, o céu. . . o homem tornou-se responsável
por todos os elementos. Chegamos ao ponto crucial da epopéia
humana, em que não poderemos sobreviver somente pela força
de inércia das correntes de nosso século: se prosseguirem, levarão
ao suicídio planetário.
“Mudar ou desaparecer!” — gritam nas ilhas.
O continente responde: “A utopia ou a morte!”
Deve ficar bem claro: daqui em diante, sobreviver e viver
dependerão de uma opção humana e ninguém pode delegar a
outro sua responsabilidade.
Os germes do futuro nascem por toda parte: movimentos
em prol de autonomias regionais contra a centralização devora-
dora, movimentos de consumidores, comissões de bairros para o
controle e a gestão das questões locais e dos órgãos eleitos, mo­
vimento particular, do qual o plebiscito austríaco foi belo exemplo,
resistência à implantação de centrais da morte, na França, na
Alemanha, movimento cooperativo, ação não-violenta dos cam­
poneses de Larzac e também dos operários de Lip, exigência de
autogestão que se impõe até mesmo entre as chefias sindicais que
não a viam com bons olhos, luta dos OS, fora das estruturas e
métodos tradicionais, para superar a promoção individual das
categorias e salários em favor de qualificações coletivas.
Dentre todos esses movimentos, insistiremos particularmente
em um deles, o mais importante não só pelo número de seres

38
humanos que abrange, mas por colocar em questão as estruturas
de nossas sociedades de 6.000 anos: o movimento das mulheres.
Aqui também, as tentativas de recuperação não faltaram:
concederam às mulheres alguns lugares de segunda no governo e
atenuaram as desigualdades mais agressivamente evidentes, ligadas
ao sexo, com emendas no direito familiar, a desistência da re­
pressão a métodos anticoncepcionais ou ao aborto.
Mesmo nesse plano, todas as batalhas estão longe de serem
ganhas; houve necessidade de corajosas campanhas para que a
vergonha do estupro ficasse com o culpado, e não com a; vítima.
A pílula tornou-se legal, permitindo à mulher escolher livremente
ser mãe e libertar-se da angústia de maternidades involuntárias,
mas, é de se notar, a pesquisa está já há anos orientada de tal
forma que até aqui é a mulher sozinha que tem de arcar com o
risco dos eventuais desequilíbrios causados pela pílula, e não o
homem. O que certamente não é um problema técnico.
Há ainda combates da retaguarda contra o aborto, que não
é um objetivo para ninguém, mas que pode ser, se não há pre­
venção, um último recurso. Não se vê mais ser brandida a ameaça
medieval da excomunhão contra as mulheres e os médicos, pou­
pando o verdadeiro culpado: o homem que gera um filho sem
assumir sua responsabilidade.
Aliás é de se admirar que a cruzada contra o aborto ocupe
mais lugar nas preocupações dos integristas do que as campanhas
contra a corrida armamentista, pela denúncia dos organizadores
de guerras, contra o aborto planetário dos manipuladores do áto­
mo ou que a proteção aos objetores de consciência, que se recusam
a serem mortos ou a matar. Não teria então o homem direito ao
respeito pela vida a não ser no estado de feto, passando para o
segundo plano sua destruição na idade adulta?
Hipocrisias dessa ordem devem ser denunciadas, mas com
isto não atingimos o cerne do problema proposto pelo movimento
das mulheres.
Na França as mulheres constituem pouco mais de 50% da
população, mas só em proporção ínfima têm acesso a todos os
postos de comando da sociedade.
Há menos de 1% de mulheres entre os chefes de empresas
e não mais entre funcionários superiores, porcentagem que tende
a zero nas empresas maiores. Em compensação, nos setores em

39
que a mão-de-obra é mal paga, por exemplo, nas fábricas de
têxteis, elas constituem 90% do efetivo. Já o trabalho que não é
remunerado de maneira alguma — o cuidado da casa e a criação
dos filhos — , quer seja feito como suplemento do trabalho fora
de casa, quer o impeça, é exercido por 98% das mulheres.
No setor particular, para elas os cargos de secretárias, dati-
lógrafas ou balconistas de lojas, mas quantas nos conselhos de
administração?
No setor público, para elas os cheques-postais, mas quantas
na direção? E na escala das responsabilidades nacionais, a dis­
criminação é a mesma.
Lembramos as posições ministeriais subordinadas, mas a
França jamais conheceu mulher presidente da República, primei­
ro-ministro ou mesmo ministro das Relações Exteriores, da Defesa
ou do Interior, considerados postos-chaves. Se na Câmara dos
Deputados ou no Senado seu número registrou certo aumento, isso
se deu em uma ocasião em que o Parlamento perdia cada vez
mais sua importância. Quantas mulheres têm assento no Conselho
de Estado, têm entrada na Inspeção das finanças, na Alta Ma­
gistratura ou à frente de uma embaixada? Houve uma, uma só,
e lhe confiaram a embaixada do Luxemburgo!
Mesmo no ensino aparece a discriminação. Se é elevado o
número de mulheres, é nos setores mais desvalorizados da função
pública: no ensino do primeiro e do segundo graus. Ao contrário,
quantas mulheres professoras titulares há nas faculdades de me­
dicina ou de direito?
Nos hospitais se são a grande maioria entre os enfermeiros,
a proporção se inverte ao nível dos ‘chefões’.
Na Igreja católica (porque as Igrejas protestantes contam
com algumas exceções de mulheres pastoras) tudo se passa, a
partir do misógino são Paulo, como se a mulher fosse vítima de
uma inferioridade metafísica: mesmo que agora não se veja nela
sempre uma cilada do demônio, uma tentação permanente ao
pecado, continua excluída da ordenação sacerdotal: o mais aca­
nhado seminarista pode tornar-se sacerdote, mas uma mulher não,
tivesse ela o gênio de santa Tereza de Ávila.
O problema não é estatístico.
Não se trata apenas de trocar os atores e de distribuir me-
' lhor os papéis. Quando as mulheres reivindicam o direito de en­

40
trada em todas as dimensões da vida e o direito de estar também
nos postos de comando da economia, da política, da vida religiosa,
é a natureza mesma do teatro que tem de mudar, quer dizer, a
estrutura, o funcionamento e as próprias finalidades da sociedade.
Pois, há milênios, desde o fim do Neolítico e do surgimento da
agricultura (que Engels chamava de “a grande derrota histórica
do sexo feminino” ), em todas as nossas sociedades, que nunca
deixaram de ser patriarcais, houve uma ‘divisão do trabalho’ entre
os sexos nunca desmentida: as funções ‘nobres’ — a caça, a
guerra, o domínio, o comando sob a forma dos combates militares
a princípio, da concorrência econômica em seguida, e o êxito
individual — , o homem atribuiu-as a si, e desde então todas as
sociedades foram dominadas pela hegemonia integral da concepção
masculina dos valores, da nobreza e da hierarquia das funções,
tendo no cume a do chefe: chefe na guerra, chefe de empresa
(no sentido mais lato) ou chefe de família.
De tal sorte que as relações sociais, há milênios, foram vi­
vidas de maneira diferente, até mesmo oposta, pelos homens e
pelas mulheres.
Sob formas diferentes segundo a classe e a posição, o homem
vivia a relação exterior de rivalidade, de oposição, de domínio,
desde a luta pela superioridade no clã, na guerra ou na simples
concorrência pela riqueza e pelo poder. O resultado dessa vontade
de poder individual é a sociedade de crescimento sem freio.
Confinada à manutenção da coesão e da continuidade do
grupo, sob a forma de tarefas subalternas e interiores da família
(manutenção do lar, maternidade e cuidado dos filhos), a mulher
vivia, sob forma verdadeiramente degradada pela subordinação
e submissão ao ‘chefe’, outra relação social: não mais a relação
exterior de uma sociedade de concorrência entre varões rivais,
mas a relação interior de comunidade, relação ambígua, oscilando
entre a integração e o amor, principalmente no que se referia às
crianças de pouca idade (antes de entrarem para a sociedade
masculina ou serem feitos membros recentes da comunidade fe­
minina).
Por isso o acesso da mulher a todas as funções de direção
da sociedade implica, a longo prazo, a subversão e a inversão de
todos os valores fundamentais de nossas sociedades e a passagem
da sociedade individualista à sociedade comunitária, de uma re­

41
lação social baseada na força a outra baseada no reconhecimento
do outro e na participação em seu desabrochar pessoal.
Verdade é que a realidade é menos imediatamente idílica e
mais complexa. Podemos compreender melhor a complexidade do
equilíbrio homem-mulher graças à analogia entre colonizador e
colonizado.
A maioria dos povos colonizados, os da África e da índia,
por exemplo, antes que lhes fosse imposta a propriedade privada
da terra, transformando-a em mercadoria, antes que lhes fossem
impostas relações sociais de concorrência individualista no quadro
de relações de dominador e dominado, conheceram formas vivas
de comunidade. É verdade que comunidade limitada, primeiro,
pelo nível das técnicas e, depois, pela situação inferior imposta
à mulher. É-nos, por conseguinte, proibida qualquer nostalgia
de um volta à comunidade tradicional. O problema está em saber
como tal comunidade, liberta do atraso técnico e da subordinação
da mulher, poderia criar, em uma nova etapa de desenvolvimento
endógeno, um tipo novo de empresas modernas que não fossem
nem particulares nem do Estado (segundo os modelos ociden­
tais), mas comunitárias. Todas as decisões capitais sobre as fi­
nalidades da empresa — organização e direção, distribuição do
lucro — seriam tomadas não pelos fornecedores do capital e seus
delegados, mas pelo conjunto dos que nela trabalhassem. O mes­
mo aconteceria com uma sociedade política que não obedecesse
mais às leis da selva liberal ou do gulag totalitário, mas que, a
partir da comunidade autônoma, liberta das limitações históricas
ancestrais, pudesse engendrar uma democracia de novo tipo: par­
ticipativa e associativa.
Esse processo, porém, tanto para os antigos colonos quanto
para as mulheres, está travado e retardado, em primeiro lugar
porque o modelo e os valores do senhor foram ‘interiorizados’,
como diz Fanon, pelo dominado. Em seguida, porque na hora
das libertações, as ‘elites’ intelectuais preparadas para tomar e
dirigir o poder pertenceriam justamente às camadas sociais mais
profundamente marcadas e modeladas pela educação e cultura
ocidentais, em Paris, em Londres ou em Harvard.
Produziu-se fenômeno análogo no movimento feminista.. .
De início, a legítima questão da ‘igualdade’ com os homens foi
mal colocada porque o modelo do dominador masculino fora ‘in­

42

I
teriorizado’: tornar-se igual ao homem significava então ser se­
melhante a ele, dentro do mesmo sistema social. Aí também,
sendo intelectuais as primeiras dirigentes, formadas e modeladas
pela educação e cultura dos quadros masculinos, a justa reivindi­
cação de igualdade muitas vezes se confundia com a integração
no sistema, como se bastasse substituir um branco por um negro
ou um homem por uma mulher, na mesma sociedade de domina­
ção, para se julgar emancipado da antiga ordem.
O movimento das mulheres, como o movimento de libertação,
atinge a plena maturidade quando o objetivo não consiste, mais
em se integrar nas hierarquias e valores de dominação do antigo
sistema, mas em quebrá-lo e em instaurar um sistema próprio de
relações humanas e de valores novos.
É nesse sentido profundo que o movimento feminista se tor­
nou um dos mais poderosos e significativos portadores da mais
radical mutação histórica: a passagem de uma sociedade atomiza-
da pelo individualismo a uma nova trama social comunitária, de
uma sociedade estatística e sem forma a uma democracia autên­
tica, isto é, participativa e associativa.
Com isso o movimento das mulheres é um dos principais
componentes dessa mutação que outros denominam revolução.
As maiores revoluções da história não foram substituições
de poder, mas emergência de um a, realidade nova, nascida fora
da ordem existente. O mundo surgido da desintegração do sistema
feudal não nasceu da vitória dos servos, mas, fora do sistema
feudal, pelo triunfo, não dos servos nem dos senhores, mas de
uma nova força: a burguesia. Hoje, para além da esfera das lutas
entre operários e patrões, uma nova realidade está começando a
nascer. A revolução que consistisse em substituir uma ditadura
burguesa por outra proletária, com uma dialética que jamais se
manifestou na história, não poderia deixar de perpetuar os obje­
tivos do antigo sistema, principalmente seu modelo de crescimento,
com todas as suas alienações. A experiência histórica dos últimos
cinqüenta anos demonstrou isso à saciedade.
Sem essa verdadeira mutação do homem, só há mera trans­
ferência do poder, dentro do mesmo sistema de alienação do
homem.
Que fique bem claro: uma verdadeira revolução tem de sig­
nificar para uma sociedade o mesmo que uma conversão repre-

43
. ..c
senta para o indivíduo: mudança das finalidades e do sentido
da vida e da história.

A CIÊNCIA E AS TÉCNICAS

Poderão a ciência e as técnicas operar esta mutação e fazer-nos


sair do beco sem saída, propondo-nos objetivos?
Desde o Renascimento, ao que parece, a ciência e as técnicas
tomaram o lugar da religião. Um bom número de nossos con­
temporâneos atribuem-lhes o poder de realizar todos os desejos
humanos, de abolir todas as maldições das antigas Bíblias: fazem
o trabalho do homem de maneira diferente, e não mais com o
suor do rosto, e proporcionam às mulheres o parto sem dor.
Elas nos prometeram a onipotência: “Homem, com teu cé­
rebro poderoso, torna-te um deus, o senhor e dominador de todos
os elementos!” já nos sugeria o Fausto de Marlowe, no despontar
da Renascença; e Descartes anunciava “uma ciência que nos torna
senhores e donos da natureza”. De fato, já há quatro séculos ela
vem realizando verdadeiros prodígios.
A máquina, desde o século XVI, e o motor, desde o fim do
século XVIII, extraíram maior quantidade de matérias, desenvol­
veram mais energias, transformaram ou criaram mais objetos do
que o homem conseguira fazer desde o princípio de sua história.
Exploraram os três infinitos: o da pequenez, nas partículas;
o da grandeza, nas galáxias; o da complexidade, com a ciber­
nética.
De César a Napoleão, durante quase 2.000 anos, um correio
levava o mesmo tempo, o do galope do cavalo, para ir de Roma
a Paris. Hoje, nesse mesmo tempo, um avião faz quatro vezes a
volta ao mundo, e um foguete cem vezes. O rádio e a televisão
nos dão até mesmo a ubiqüidade; posso estar simultaneamente
em cada canto do mundo, instantaneamente presente a cada
acontecimento.
Nada jamais serviu melhor à vontade de poder do homem,
a ponto de conferir ao Ocidente, que tudo subordinou ao desen­
volvimento prometéico das ciências e das técnicas, quatro séculos
de hegemonia mundial, a primeira hegemonia total de toda a
história.

44
No entanto, ao final desses quatro séculos de embriaguez e
de poder, um número cada vez maior de homens e de mulheres
começa a tomar mais ou menos plaramente consciência do que
falta à deslumbrante civilização científica e técnica.
A dúvida foi surgindo, a princípio, a partir do exterior, isto
é, dos resultados.
As ciências e as técnicas conseguiram eliminar as epidemias
de peste que matavam milhões de seres humanos, mas ocasiona­
ram também a destruição de 60 milhões de outros seres humanos,
de 1939 até Hiroshima, e nos prometem infinitamente mais.
Seria mero acaso o fato de a primeira máquina de combustão
interna, o canhão, que soou pela primeira vez em Crécy, em
1346, ser o antepassado de todos os motores modernos e de as
centrais nucleares de hoje terem por antepassado a bomba de
Hiroshima? No primeiro caso, bastou adaptar um êmbolo ao ci­
lindro e regular as explosões; no segundo caso também, bastaria
canalizar o apocalipse.
É estranho que durante tanto tempo não se tenha levantado
suspeitas contra esta ‘revolução industrial’, marcada desde o berço,
e em cada etapa, por um ‘progresso’ na arte da guerra e da
destruição!
O automóvel equipou milhões de homens com coches bem
mais rápidos e confortáveis que os de Luís XV, mas também
mata 200.000 por ano em todo o mundo (três Hiroshima por
ano!).
A mecânica das máquinas, a química dos fertilizantes, a bio­
logia das hibridações dotaram a agricultura de meios com os
quais durante milênios ela sequer pôde sonhar, mas o número
de mortos pela fome no século XX ultrapassa de muito as épocas
mais negras.
As máquinas, dissemos, podem fazer o trabalho do homem.
É verdade. Elas podem. Mas será que o fazem? Em que século
os ritmos de trabalho, de transportes, dos lazeres e das poluições
causaram maior número de doenças nervosas, de enfartes, de
violências, de esgotamentos vitais, de evasões pela droga ou pelo
suicídio, separaram com mais força uns dos outros e de si mesmos?
Nunca se falou tanto de ‘comunicações’, de Norbert Wiener
a M ac Luhan, e nos ‘encontros’, e no entanto nunca houve menos
comunicações verdadeiramente humanas entre os homens, pois o

45
homem está cada vez mais solitário em relação aos outros e mais
dividido dentro de si mesmo.
Satisfeitos, lembram-nos a tempo e fora de tempo que, se a
primeira revolução industrial da máquina a vapor substituiu os
músculos humanos, a segunda, da cibernética e do computador,
substitui o cérebro humano.
Daí, para imaginar uma empresa inteira dirigida pelo compu­
tador e, ultrapassando a fábrica, a sociedade em peso, haveria
necessidade de apenas um passo; dado com ligeireza, logo depois
da Segunda Guerra Mundial, que fizera nascer a cibernética para
resolver os problemas suscitados pela travessia dos navios mili­
tares pelo Atlântico.
Terminada essa guerra, o Padre Dubarle, percebendo com
lucidez as conseqüências da ‘cibernética’ de Norbert Wiener, re-
feria-se à possibilidade de uma ‘máquina de governar’, visto que
as decisões econômicas ou políticas se apóiam na teoria estatística
dos ‘jogos’, no sentido em que Von Neumann os estudou mate­
maticamente3, e que o aparelho do Estado é comparado a uma
máquina auto-reguladora.
Norbert Wiener acrescentava: “A imprensa exalta o know-
how americano, desde que tivemos a desgraça de inventar a bom­
ba atômica. Há no entanto uma qualidade mais importante do
que esta e bem mais rara nos Estados Unidos. É o ‘saber-o-quê’,
graças ao qual determinamos não apenas os meios de atingir nossos
objetivos, mas também quais devem ser estes objetivos" 4.
Isto foi escrito em 1954. Mas vinte e cinco anos mais tarde
a falta dessa ‘qualidade’ (saber qual o objetivo a se obter e não
confundir esse saber com o conhecimento dos meios para atingir
o fim) causa desgraças em outros lugares além dos Estados
Unidos.
O exemplo mais evidente da confusão entre uma ciência que
nos fornece meios e uma sabedoria que nos permite conceber
objetivos, é o livro de Jacques Monod, L e Hasard et ia Nécessité.

3. Johannes Neumann, Theory of Games and Economic Behavior,


Princeton, J. Von Neumann e O. Horgenstein, 1953 (ed. 1944).
4. Norbert Wiener, Cybernétique et Société, Paris, Éd. 10x18, p. 231.

46
I

Definindo logo de entrada o organismo vivo como “um ob­


jeto dotado de um projeto” 5: o de reproduzir sua estrutura e até
de transformá-la, ele dá a essa estranha propriedade o nome de
‘teleonomia’, a fim de evitar a velha palavra ‘finalidade’, que de­
seja excluir da ciência.
“A pedra angular do método científico é o postulado da
objetividade da natureza: quer dizer, a recusa sistemática de con­
siderar qualquer interpretação dos fenômenos dada em termos
de causas finais, isto é, de projeto, como capaz de levar a um
conhecimento verdadeiro. .. Puro postulado, absolutamente inde-
monstrável, porque é evidentemente impossível pensar uma ex-
p.eriência que pudesse provar a não-existência de um projeto, de
um objetivo, a ser atingido em qualquer parte da natureza” 6.
A partir desse postulado, perfeitamente legítimo para quem
quer evitar uma explicação preguiçosa a partir do plano exterior
de um demiurgo, Jacques Monod, em uma demonstração muito
elegante, apresenta o fenômeno da evolução biológica, a saber,
a simultânea invariab'ilidade das estruturas e de suas mutações, a
partir de dois conceitos exclusivos: a necessidade e o acaso.
A necessidade não é, para Jacques Monod, de natureza me­
cânica (como para Descartes ou no ‘homem máquina’ de La
Mettrie), mas de natureza cibernética. O ‘acaso’ intervém neces­
sariamente para explicar a invariabilidade das estruturas, porque,
de acordo com a segunda lei da termodinâmica, seria de se esperar
uma degradação. Como, porém, cada sistema biológico está mer­
gulhado em um sistema ainda mais vasto, é possível haver ‘anu­
lações’ locais e provisórias da entropia, sem invalidar essa lei
para o conjunto da natureza. Os acasos sucessivos se integrariam
na estrutura, fixados, acumulados pelo jogo das auto-regulaçÕes
cibernéticas.
Não tenho, nesse nível da biologia, nem competência para
discutir o valor da explicação de Jacques Monod, nem necessi­
dade de fazê-lo com vistas a esta minha exposição.
Neste ponto, limitar-me-ei a duas observações que nada têm
a ver com a biologia:

5. Jacques Monod, Le Hasard et Ia Nécessilé, Paris, Éd. du Seuil,


1970, p. 22.
6. Ibid., pp. 32-33.

47
1, A afirmação, repetida muitas vezes pelo autor, de que
sua explicação é a única possível, com exclusão de todas as outras.
Essa ilusão dogmática já foi compartilhada por outros sábios em
outras épocas. Descartes e depois La Mettrie também afirmaram
que todos os fenômenos da vida eram redutíveis, sem resíduos,
aos conceitos e leis da mecânica. Diante da soberba certeza de
Jacques Monod, vim a perguntar-me se não seria ele o La Met­
trie da cibernética.
2. A noção de acaso é sempre perturbadora. Não há dú­
vida de que Monod lhe dá o sentido matemático que vem a ter
nos teoremas de Von Neumann. Contudo, mesmo a partir dos
números maiores, pode-se fazer a velha pergunta: se se entregar
em desordem a um macaco todas as letras que compõem a Ilíada,
e ele as dispuser e tornar a dispor sem parar essas letras ao
acaso, quantas probabilidades terá para um dia compor o poema?
De modo que, apesar das precauções tomadas, o ‘acaso’ de Jacques
Monod me parece representar o mesmo papel que a ‘Providência’
dos sermões do vigário da minha cidadezinha.
Com certeza, minha hesitação advém de que não tenho de
modo algum nem a imaginação nem a audácia daquele “peixe
primitivo” que, assim pensa Monod, “resolveu ir explorar a terra,
onde no entanto só podia se locomover por pulos sem jeito” 7
O “Magalhães da evolução” 8, como escreve ainda Monod, vem
a ser o primeiro da linhagem de Terrenos que, por acúmulo de
outros acasos, se tomarão nossos antepassados.
Mesmo que aceitasse sem piscar essa ‘explicação’ ao nível
da biologia, não deixaria de notar que a obra de nosso prêmio
Nobel está mais crivada de milagres do que a Bíblia.
Mas, se vamos além da biologia, as coisas se agravam: nas
vinte e três últimas páginas do livro (páginas 175 a 197), Jacques
Monod trata ao mesmo tempo de moral, de política e de religião,
em um resumo magistral que consiste em generalizar e aplicar
analogamente em todas as direções o tipo de explicação aplicada
à biologia, para chegar a esta conclusão peremptória: “Afinal o
homem sabe [a partir de Jacques Monod — R. G.] que é unico

7. Ibid., p. 142.
8. Ibid.

48
na imensidade indiferente do universo, de onde emergiu por
acaso” 9. •
Seria insolência perguntar se não foram estas vinte e três
páginas que fizeram do livro um best-seller, e por quê?
Porque, afinal, é pouco provável que tenham sido as consi­
derações técnicas sobre ‘as enzimas alostéricas’ ou as ‘seqüências
polipeptídicas’ que, à exceção dos especialistas, atraíram centenas
de milhares de leitores na França e em todo o mundo! O livro
de seu colega François Jacob, também prêmio Nobel e que trata
do mesmo problema em La Lógique du vivant10, com a mesma
competência e algumas semanas de intervalo, atendo-se, porém,
somente à biologia, não foi tão bem tratado pelos meios de comu­
nicação diante das grandes massas.
Temos portanto a impertinência de pensar que a sorte ful­
gurante de Le Hasard et la Nécessité se deve menos à incontes­
tável competência do biólogo que ao contestável panfletário do
último capítulo, que possuía o mérito insigne de executar em
nome da ciência o marxismo (arrasando ainda por cima — ja­
nela postiça para manter a simetria — Teilhard de Ohardin).
Jacques Monod tornou-se assim o papa do positivismo e a
ponta de lança do antimarxismo.
Não é intenção minha refutar ataques contra uma caricatura
do marxismo. Jacques Monod confunde Marx com Stálin, como,
depois da morte de Monod, os ‘novos filósofos’ (assim chamados
por antífrase, porque não trazem nem novidade nem filosofia)
retomaram com menor talento a sovada libré do antimarxismo,
confundindo Marx com Althusser. O conclave dos meios de co­
municação, não tendo mais um Nobel para mastigar, decidiu que
o papado do antimarxismo deveria ser colegial e, por ocasião de
uma campanha eleitoral, lançou nossos play-boys exorcistas ao
grande público, como se lança nova marca de sabão em pó 11
O único ponto importante que me interessa aqui é que
Jacques Monod passa da ciência para o cientificismo. A ciência

9. lbid., p. 196.
10. Paris, Gallimard, 1970.
11. É muito provável que, por algum tempo, seja menos necessário
esse gênero de operações, porque os dirigentes soviéticos e o grupo Mar­
chais, na França, se encarregaram sem auxílio externo e com eficácia de
desacreditar e de liquidar o marxismo.

I 49
é o conjunto dos métodos matemáticos e experimentais que per­
mitem ao homem prodigioso domínio sobre a natureza. O cien-
tificismo é o conjunto das superstições que pretendem explorar o
legítimo prestígio desses métodos, a fim de por meio deles explicar
ou negar todas as outras dimensões da vida, como, por exemplo,
a arte, o amor, o sacrifício, a fé ou simplesmente o outro homem
em sua realidade específica. Aquilo que, às vezes, se chama sem
razão de ‘danos’ da ciência, não vem da ciência, mas de uma filo­
sofia que a toma por religião sem ousar dizer seu nome. Ou
então: o cientificismo é a crença de que tudo quanto não é redutí-
vel, sem resíduo, ao conceito, à medida e à lógica (aristotélica,
matemática, dialética ou estrutural) carece de realidade.
Com isso o cientificismo procede a uma série de reduções.
A razão (desde Descartes, exaltando-a, até Bergson, humi-
Ihando-a), reduzida a ser apenas instrumental, fabricante de
instrumentos, de motores, de riquezas e de injunções ^ociais, é
fornecedora de meios, e não de finalidades.
Como se o homem não pudesse manifestar inteligência a não
ser construindo máquinas, ganhando dinheiro ou manipulando as
multidões! Ou apoderando-se do poder sobre a natureza e os
homens.
Tal racionalismo raquítico repousa sobre três postulados:
1. toda a realidade pode ser ‘definida’, quer dizer, reduzida
a conceitos, sem deixar margem;
2. é possível, em todos os setores da vida humana, cons­
tituir um arrazoado lógico, isto é, necessário, coator desses con­
ceitos;
3. a natureza inteira é um feixe de ‘fatos’, ligados por leis.
O conceito, a lógica e a lei são as três bases do ‘positivismo’
e do ‘cientificismo’ ocidentais.
Para um pensamento positivista desse tipo, o futuro não pode
deixar de ser o prolongamento do passado e do presente.
Não é difícil entender por que essa ‘religião dos meios’, subs­
tituindo outras crenças e crendices, represente por sua vez o papel
de ‘ópio do povo’.

1. O conceito é a realidade reconstruída de acordo com um


plano humano, tornando-a desse modo transparente à razão. Isto

50
(
é verdade, quando se trata de coisas, de objetos, de tudo quanto
depende de medida e de limite: um matemático pode “dar pelo
telefone” uma figura geométrica para seu colega; um engenheiro
também pode jazer isso com um projeto de ponte, porque tudo
se define por medidas, desde as curvas dos arcos até a resistência
dos materiais e seu preço. Mas não se pode “dar pelo telefone”
o Pont d’Aries, de Van Gogh, ou o Pont sous la pluie, de Hiro-
shige, porque há aí algo que escapa ao conceito, à medida e ao
limite. Quando muito eu poderia comunicar a técnica do pintor,
como posso enviar pelo correio a partitura de uma peça musical,
depois do concerto, sem que meu correspondente fique sabendo,
só com isso, se a execução foi a de um verdadeiro artista cuja
sensibilidade jamais se traduziria por um conceito, ou a de um
executante medíocre. Um ‘futurólogo’ tem a capacidade de comu­
nicar a seu instituto um projeto, baseado em generalizações a
partir do passado e do presente. Mas será um falso futuro, porque
necessariamente não leva em conta a imprevisível iniciativa dos
homens e de suas criações. O uso do computador nada acrescen­
tará a esse futuro falso; se Lênin houvesse usado um computador
para perguntar se era preciso fazer a Revolução de Outubro, a
resposta teria sido sim. Porque programada por Lênin. O compu­
tador, programado por Kautsky, empregando em seus cálculos
apenas as ‘condições objetivas' 12, teria respondido não. Se o ho­
mem e a história são tratados como coisa ou conjunto de coisas,
o futuro será invariavelmente o prolongamento do passado e do
presente, seja por generalização, seja por analogia, uma vez que
se pressupõe que o homem, tratado como coisa, é como tal incapaz
de ruptura com o passado ou de criação inédita, em suma, de
novidade imprevisível.
Por isso, o cientificismo, ‘religião dos meios’, depois de tantas
outras superstições do passado, exerce perfeitamente o papel de
‘ópio do povo’.
É próprio do conceito reduzir cada sujeito e cada projeto às
leis, às medidas e aos limites do objeto. De forma alguma isso
importa em desprezo pelo conceito; temos respeito por ele em

12. E Lênin observava com razão que, com facilidade, “torna-se opor­
tunista por objetividade”.

51
seu nível próprio, em que dá provas de eficácia na compreensão
e manipulação dos objetos. Mas não é por conceito que agem os
namorados, o poeta ou o profeta.
O mesmo acontece com a lógica, quer se trate da lógica
dedutiva de Aristóteles e de santo Tomás, da lógica matemática
ou da dialética de Hegel e dos cientistas que se filiam a Marx.

2. Resumindo, para não repetir a respeito da lógica e da lei


aquilo que dissemos sobre o conceito e sua eficácia ao nível das
coisas da natureza ou dos instrumentos, vejamos somente sua
aplicação ao que se convencionou chamar de ‘ciências humanas’
ou ‘socialismo científico’. A lógica, na análise das relações entre
conceitos, parte do mesmo postulado que o conceito: do mesmo
modo como este pretende reconstruir, sem resíduos, o objeto,
a lógica tem a intenção de reproduzir, pela cadeia dos conceitos,
as relações e os movimentos da realidade. O que é, tornamos a
dizer, perfeitamente correto e eficaz em dado nível: naquele em
que a abstração não priva o objeto de sua característica funda­
mental.
Será que é o que acontece na escala do homem e de sua
história, da economia política, da psicologia, da sociologia ou
do socialismo científico?
De Auguste Comte a Durkheim, de Pavlov a Jacques Monod,
de Hegel a Stálin, jamais se negou que eram conscientemente
aplicados ao homem os métodos e as leis que se haviam revelado
seguros nas ciências da natureza. Que Durkheim calque as Règles
de la méthode sociologique13 nas do empirismo positivista de
Stuart Mill; que Jacques Monod aplique as leis da cibernética,
estupendas em genética, à evolução em conjunto, inclusive à do
homem; que Stálin considere a dialética da história e de suas
revoluções como um caso particular das leis ‘universais’ da dia­
lética da natureza, o processo é o mesmo em cada caso: o de
Descartes aplicando as leis da mecânica ao comportamento ani­
mal, o de La Mettrie fazendo o mesmo em relação ao compor­

13. Émile Durkheim, Les Règles de la méthode sociologique, Paris,


1895; “Bibliothèque de philosophie contemporaine”, Paris, PUF.

52
tamento humano em um livro cujo título tinha o mérito de definir
um programa: o Homem máquina.
O economista clássico procede do mesmo modo — sem con­
fessá-lo — quando estabelece suas ‘leis’, reduzindo o homem a
duas dimensões apenas: a de operário e a de consumidor, a de
trabalhador robô e a de consumidor voraz, movidos ambos unica­
mente por interesse. Há aí não uma ciência, mas uma ideologia
de justificação, ainda mais mistificadora pelo fato de ter intro­
duzido à socapa (talvez até inconscientemente) um postulado
oculto daquilo que dá como ciência: o próprio princípio da so­
ciedade capitalista, o de Hobbes e dos ‘pragmatistas ingleses’,
porque para eles a ‘psicologia do homem’ era a psicologia me­
diana do burguês de seu tempo.
Poderíamos fazer demonstração análoga para o adversário
direto desta ‘economia clássica’: o ‘socialismo científico’. Ele
também não pode ditar leis econômicas ou leis históricas a não
ser a partir do homem ‘alienado’, isto é, de um homem a tal
ponto mutilado de sua dimensão humana própria, que sua história
mais ou menos se assemelha à evolução natural. Em suma, diga­
mos que as ‘ciências humanas’ nos ensinam muitas coisas sobre
o homem, menos aquilo que o homem é.
O ‘postulado sub-reptício’ das ‘ciências humanas’ é o seguinte:
em um mundo de alienàção e de manipulação, dá-se o nome de
‘homem’ ao homem alienado, reencontrando-se no fim da ‘pes­
quisa’ aquilo mesmo que fora introduzido no início; consegue-se
assim, sob capa de ‘ciência’, outra ideologia de justificação e ma­
nipulação.
A história ‘científica’ é a história do homem alienado.
O ‘socialismo científico’ é o prolongamento dessa história e
de sua alienação.
Porque o socialismo pode ser científico pelos meios empre­
gados (técnicas de organização ou de estratégia, funções das alie­
nações existentes), mas a escolha para que alguém se torne um
militante, a escolha de aceitar o sacrifício da vida no combate
pelo socialismo não se impõe por motivos demonstrativos ou por
via científica. É uma opção, um ato de fé, um postulado.
Enquanto as ciências da natureza exigem que o sujeito se
apague o mais possível diante do objeto, para a percepção das
criações humanas (artes, misticismo, profetismos, iniciativas re-

53
.(

volucionárias, como também poesia ou amor) exige-se que o su­


jeito, que tenta 'compreender’, identifique-se com o sujeito ator
e criador: não se compreende o objeto a não ser pelo conceito;
o sujeito só pode ser alcançado pelo amor; o projeto não pode
ser indicado senão pelo mito, a utopia ou o poema. De modo
ainda mais prosaico: uma coisa é conhecer as causas e efeitos
químicos ou biológicos da embriaguez, outra bem diferente é sen­
tir a embriaguez. Uma coisa é escrever um Tratado das paixões,
outra bem diferente é amar. Uma coisa é fazer teorias sobre a
revolução, outra é mudar o curso da história. Em cada caso, não
se trata de excluir um dos termos, mas de estar consciente de
suas diferenças.

3. Repete-se a mesma operação ao nível da causalidade mecâ­


nica, da causalidade estrutural ou da lei, que têm como caracte­
rística comum submeter-nos ao que existe e ao passado, excluindo
por princípio qualquer surgimento imprevisível, poético, de um
verdadeiro futuro, de um futuro cujos componentes não existam
todos no passado ou no presente.
Em nome do mesmo postulado não confessado (o homem
é inteiramente condicionado por seu passado, seus instintos, sua
classe social, sua nação, cultura, religião), cada especialista —
quer dizer, cada um daqueles que, pela divisão do trabalho cien­
tífico, estão impedidos de pensar fora dos antolhos de sua espe­
cialidade — ‘explicará’ ou ‘preverá’ meu comportamento em fun­
ção de um aspecto parcial (especializado) da realidade, sem jamais
situar com humildade seu saber numa totalidade mais abrangente.
Cada um acentuará uma de minhas cadeias, biológica, psicológica,
sociológica, econômica ou outra qualquer. Um biólogo afirmará
que estou ‘programado’ desde minha concepção, e reduzirá a rea­
lidade toda, sem resíduos, somente à dialética da necessidade e
do acaso. Um psicanalista, lendo na borra de café do inconsciente,
‘explicará’ a pintura de Picasso a partir de suas ‘pulsões eróticas’
(como se cada um de nós não tivesse tais pulsões, sem por isto
ser um Picasso!). Um ‘marxista’ estruturalista verá o homem como
um “fantoche levado ao palco pelas estruturas” (como se ainda
houvesse sentido para um ‘revolucionário’ em chamar fantoches
a uma luta por sua libertação!). Um economista decretará, em
nome de sua ‘ciência’, a necessidade do ‘crescimento’, sem enun­

54
ciar, ou talvez mesmo sem dele suspeitar, o postulado inicial, a
saber, que o crescimento de uma planta ou de um animal é o
simples desenvolvimento das leis da natureza: se conheço um
girino ou mesmo seu embrião, posso prever que se tornará, por
mero crescimento, uma rã. É assim o postulado da economia do
crescimento: o homem possui uma ‘natureza’, como as plantas,
os animais, os girinos e as rãs.
0 cientificismo, em sua forma acabada, faz ainda outras
reduções:
1 . Redução da ciência à ciência já acabada, já formalizada.
A ciência em vias de se fazer, como Henri Doincaré demonstrou
por sua experiência na invenção matemática, avizinha-se da poesia
e de suas imprevisíveis inspirações. Reduzir a ciência à ciência
acabada é confundir a pesquisa com a prova, a novidade do ato
criador com as rotinas da demonstração.
2. Redução de todos os atos da vida à suprema jurisdição
dessa ciência. Nem mesmo ciência viva, sempre a nascer, mas
ciência morta. Tudo quanto não é redutível ao conceito, à lógica
e à lei não tem direito à existência. É este o postulado. ‘Irracio­
nais’ o amor e o sacrifício da vida por aquilo que se ama, ‘irra­
cional’ a criação artística, ‘irracional’ a fé dos mártires, no duplo
sentido de testemunhas e de torturados.
Que pobre e mesquinha concepção da razão decorre dessa
concepção do irracional!
Uma concepção plena da racionalidade não poderia fazer
abstração de dimensão alguma da vida.
Um pouco de saber, isto é, a ciência ensinada, a ciência já
acabada, leva ao dogmatismo.
Um pouco mais de saber, isto é, a ciência em vias de se
formar, a pesquisa científica, leva às perguntas.
Mais saber ainda, isto é, a invenção científica, tão próxima
da criação poética no conjunto das criações humanas, leva à
oração.
Uma racionalidade puramente analítica, parcial, esterilizada
e esterilizante retém apenas um fragmento de nós mesmos e lança
para as trevas exteriores a suas ‘luzes’ tudo o que faz o sentido
e a alegria de viver.
Uma razão, digna desse belo nome, não deve ser o nexo
entre o homem total e a realidade total?

55
.(

Kant negou a possibilidade de uma intuição intelectual’, na qual


não existe a fronteira entre o sujeito e o objeto. Ele próprio era
presa de uma concepção tão estreita do entendimento (reduzido
ao conceito, às categorias da lógica, da causalidade e da lei),
que a dimensão essencial do homem lhe escapava. O homem está
ligado ao real, contém em si todos os graus de existência, meu
corpo é a natureza inteira — minha existência, como pessoa, não
se constitui a partir de um ‘eu penso’, onde o ‘eu’ se reduz ao
indivíduo e o pensamento ao conceito, mas a partir de minha re­
lação com o outro. A transcendência é feita de toda a riqueza
da vida, da vida que foge ao conceito. Kant só pode falar dela
por conjectura, como de uma inacessível ‘coisa em si’, como al­
guém fechado na prisão do conceito.
Partindo dessas premissas inconscientes, tiradas da geometria
de Euclides, da física de Newton e da insularidade cartesiana do
‘eu penso’, que somente podem conduzir à solidão ou à fé ingênua,
Kant se condenava a construir uma filosofia do ‘como se’. Ao
contrário dos próprios princípios, ele alarga a causalidade da
‘coisa em si’, como se esta fosse a fonte de nossas percepções;
postula como qualquer ciência a milagrosa correspondência das
categorias de nossa inteligência com a realidade, ‘como se’ ema­
nassem da mesma fonte; enfim, temos de agir ‘como se’ fôssemos
ao mesmo tempo imortais, livres e súditos de um deus moralista.
Quantos prodígios incríveis de uma filosofia que se apresenta
como crítica!
Por que não reconhecer que a intuição intelectual não é
‘não-racional’, mas simplesmente ‘não-conceitual’? Esse modo de
pensar requer bem menos postulados: se, dc início, com Kant,
seccionou-se no homem a inteligência reduzida ao conceito, à
lógica e à causalidade, é na verdade impossível imaginar um co­
nhecimento co-extensivo ao real, uma realidade inteiramente trans­
parente ao conhecimento. A menos que se empobreça esse real, a
ponto de fazê-lo deitar-se no leito de Procusto da ‘lógica maior’
hegeliana, reduzindo todas as metamorfoses da vida, todo o de­
senvolvimento do real ao desenvolvimento do conceito e de sua
constrangedora dialética.

56
c
Todos esses postulados cientificistas e tecnocráticos reunidos cons­
tituem a base da barbárie ocidental. De todas as feridas que ela
inflige à vida dos homens e dos povos.
A doença analítica de cortar tudo em dois na realidade con­
creta, sem poder colar em seguida os pedaços, cria os falsos
problemas filosóficos que, como disse acima, são insolúveis uni­
camente porque são mal formulados: dualismo da alma e do corpo,
da matéria e do espírito, do tempo e da eternidade, do finito e
do infinito, do determinismo e da liberdade, do homem e de Deus,
da necessidade e da graça, para chegar ao pior dos absurdos: a
oposição entre materialismo e idealismo, problema saído prontinho
do dualismo cartesiano, a pensar o homem como uma alma en-
xertada em um mecanismo, um cadáver ligado a um fantasma.
Uns se dizem materialistas porque só aceitaram sua mecânica
(mesmo sob variantes dialéticas) e outros (idealistas de todo
tipo), o isolamento do espírito, associado, por um golpe violento,
ao frígido deus de santo Anselmo. Digo barbárie ‘ocidental’ por­
que — teremos ocasião de voltar a isso a respeito do hinduísmo
— a Índia, já há três milênios, havia descoberto que ‘quem co­
nhece’ não é um cérebro armado sobre dois pés, mas o homem
inteiro. Via real bem depressa abandonada no Ocidente, por Só­
crates em primeiro lugar (este ‘homem anormal’, dizia Nietzsche,
anormal pela mania de tudo reduzir ao conceito). Do resto todo
da vida, em sua filosofia só subsiste um coto de braço atrofiado:
o coitado do ‘demônio’ que ousa infiltrar-se às vezes nas brechas
da razão. Somente por influências orientais começou o pensamen­
to ocidental a suspeitar haver mais coisas sobre a terra e no céu
do que o conceito podia conter.
Pitágoras e Platão devem muito mais à Pérsia e à Índia do
que dizem os helenistas. Tudo o que não é matemático em Platão,
desde o eros até o sol da idéia do Bem, tem a marca dos misté­
rios órficos vindos do Oriente. O neoplatonismo de Fílon e de
Plotino nasceu em Alexandria, centro de caldeamento de todas
as formas do pensamento oriental, e o próprio Plotino seguiu a
expedição de Gordiano para estudar o pensamento da Pérsia e da
Índia. Todas as formas judaicas ou cristãs de gnose decorrem
daí. Mestre Eckhart reencontrará, através das doutrinas do Islã,

•J
57
c
a grande tradição indiana da unidade do homem e de Deus; Spi-
noza, mediante Maimônides, a visão que este descobrira entre os
sufis muçulmanos, tributários por sua vez dos visionários da índia.
J a c o b Boehme, a partir das especulações dos românticos alemães,
encontrará confusamente a idéia-mestra do hinduísmo: para além
do ser e do não-ser, há o ato, há a liberdade.

Não era intenção destas poucas reflexões mover uma acusação


contra a ciência, mas simplesmente relativizar cada ciência e enun­
ciar seus postulados. Aquilo que enfaticamente chamamos de
‘ciência’ é, mais humildemente, a ‘ciência ocidental’, ciência se­
parada da sabedoria, isto é, da reflexão sobre as finalidades.
Dessa separação nasceu o ‘racionalismo raquítico’, base da
estupidez cientificista e tecnocrática que, por não reconhecer seus
postulados e a dependência de uma visão global do homem e de
suas finalidades fez de si próprio seu objetivo.
Que fique bem claro: não ter consciência de seus postulados
torna débil a razão.

As I g r e j a s a t u a is

Estão as Igrejas e religiões capacitadas a indicar-nos finalidades


ou a ajudar-nos a descobri-las? Em princípio, é missão delas dizer
quem é Deus e quem é o homem. Realizam elas hoje esta missão?
Poderiam fazê-lo sem dúvida, se, em vez de empregarem um dog-
matismo tão ultrapassado quanto o cientificismo que o combate,
aceitassem ser elas próprias questionadas, se reconhecessem seus
postulados e, por isso mesmo, deixassem de fazer da religião uma
alienação da fé, para repetir uma expressão de Paul Ricoeur.
Mas a Igreja (a Igreja dominante na França como na Itália,
a Igreja católica romana — romana demais, infelizmente!), pelo
menos em seu ensino oficial, de santo Anselmo a santo Tomás, e
do Concilio de Trento à Encíclica Humani generis, foi buscar
suas ‘provas’ no arsenal desse racionalismo raquítico, pai do teís-
mo e do ateísmo, esses dois irmãos gêmeos, porque ambos pro­
cedem, sem confessá-lo, da mesma concepção antropomórfica de

58
Deus, visto sob a imagem de um rei onipotente, de um legislador
moral ou de um conceito.
Tentaremos então seguir caminho inverso ao do cientista ou
do tecnocrata que, tendo sempre como pergunta um ‘como’ e
nunca um ‘por quê’, sempre a questão dos meios, e jamais a dos
fins, se contentam em ir dos efeitos às causas, das seqüências
regulares de fatos a seus antecedentes? Inverteremos, ao mesmo
tempo, o processo dos teólogos dogmáticos que seguem o mesmo
caminho a fim de prover o arsenal de suas ‘provas’, julgando
descobrir, sem postulado algum, no final da cadeia de conceitos,
uma ‘causa primeira’, um ‘fim último’ como princípio absoluto.
O fato de santo Tomás ter tonsurado Aristóteles não impede
absolutamente que seu pensamento seja fundido no mesmo molde
e que o objeto de suas ‘provas’ nada tenha a ver com o cristia­
nismo: ele tenta tirar de um mundo já dividido em conceitos, e
depois ligado por uma lógica abstrata, um Deus tão exangue
quanto o aparelho conceituai de onde foi laboriosamente arran­
cado. O que não impediu aos chefes da Igreja católica, até o
século XX, de dar um diploma de exclusividade ao ruinoso sis­
tema tomista; no entanto, o próprio santo Tomás, pouco antes de
morrer, suspeitara ser palha o que escrevera.
A coisa foi muito pior depois de Descartes, quando, adotan­
do seu sistema como a última palavra da ciência (após seu ensino
na Sorbonne haver sido proibido ‘sob pena de morte’), tentaram,
de Malebranche a Spinoza, reconstruir teologias com base nessa
metafísica, que, para ele, não passava de um ‘fundamento’ para
sua física.
Colocando-se assim no mesmo terreno do racionalismo ra­
quítico que seus adversários, a teologia condenava-se a um triste
destino: o de se entregar a combates de retaguarda contra cada
conquista da ciência e de pôr em suas falhas provisórias seu deus
tapa-buraco: da astronomia de Galileu à biologia de Darwin e à
psicanálise de Freud, correndo o risco, depois de cada revés e
com posição insustentável, de tentar recuperá-las. Assim foram
construídas cosmologias mais ou menos fantasistas à força de ge­
neralizações dos dados positivistas das várias ciências: o evolu-
cionismo transformado em doutrina da finalidade global orientada
para um deus cósmico; a passagem de uma concepção da matéria
como sybstância à da matéria como energia, apressadamente in-

59
c
terpretada como ‘prova’ do idealismo; a descoberta da ‘indetermi-
nação’ das partículas, utilizada como um meio de introduzir a
‘liberdade’ já ao nível da natureza; as teorias astronômicas da
‘expansão’ manipuladas de forma a dar crédito à ‘criação’ e até
mesmo a fixar sua data. Todas essas astúcias, ingênuas ou finórias,
vão dar na mistura filosófico-teológica da ‘gnose de Princeton’.
A crítica radical dos chamados por Paul Ricoeur de ‘mestres
da dúvida’ (Marx, Nietzsche) prestou o maior serviço à fé cristã,
libertando-a do deus-polícia de Constantino, do deus da Santa-
Aliança com sua ‘moral’ cúmplice de todas as prepotências, como
também do deus frio dos filósofos. Limparam o terreno para a
renovação do cristianismo.
Foi bom que, graças a eles, fosse dito claramente que o deus
do teísmo tradicional, concebido à imagem de um rei, de um
juiz ou de um conceito nada tem a ver com a fé cristã. Que a fé
cristã não impede, como condição, a crença em um deus assim
imaginado, que teria Jesus de Nazaré como simples ilustração
histórica.
Acrescentemos mesmo, com o Padre Cardonel, que não se
pode ter fé ao mesmo tempo em um deus onipotente e em Jesus
Cristo crucificado.
O deus todo-poderoso da concepção teísta da religião é o
dos faraós do Egito, deus e rei, o das cidades-estados da Grécia,
onde Atena facilmente se identificava com Atenas. Esse deus é
Zeus ou ainda o deus dos romanos identificado com César, com
o imperador. Karl Marx nos livrou desse ópio. Que tem o cris­
tianismo a ver com tais deuses? Cristo crucificado é o contrário
dessas figuras de poderio. Não se pode confundir o Olimpo com
o Gólgota.
O deus legislador é o deus de Hamurabi a ditar leis para um
império. É, de Moisés a Kant, o deus de todos os dualismos,
opondo o Bem e o Mal de maneira tão hábil que o Bem está
sempre em conformidade com os interesses das classes dominan­
tes. Nietzsche e, depois dele, Freud por nos libertarem, em relação
a Moisés, da imagem do ‘Pai’, purificaram a atmosfera do céu.
O deus conceito é o que Platão identifica à idéia do Bem,
para além do horizonte dos conceitos. É também o ‘motor imóvel’
de Aristóteles. É o deus de santo Anselmo: “Existe um ser tal,
que nada maior que ele se pode conceber, e existe no entendi­

60
mento e na realidade ao mesmo tempo.” Feliz com sua redesco-
berta, concluía: “Somente o louco disse em seu coração: não há
Deus.” Ao que Gaunilon, um monge de Marmoutier, respondia,
“em nome do louco”, que, entre a realidade e o conceito, só
havia passagem em um sentido: pode-se ir da realidade ao con­
ceito (por empobrecimento), mas não do conceito à realidade.
Isto, porém, não impediu Descartes de adotar esse sofisma.

Voltaremos a esses problemas, quando estudarmos a contribuição


cristã. Agora, queremos apenas mostrar que a fé não passa pela
recusa desse teísmo, como também não passa pela recusa do
ateísmo, e pelas mesmas razões.
O ateísmo não é mais do que um teísmo às avessas. Repousa
sobre a mesma imagem de Deus. Fundamenta o mesmo tipo de
ação; a partir de tal teísmo, como de tal ateísmo, só se pode
chegar a um sistema autoritário e conservador.
Chamar de ‘matéria’ o que o outro chama de ‘espírito’ não
muda nada na questão, porque, tanto em uma como na outra
‘redução’, há, quer se queira ou não, a obrigação de acrescentar
à matéria algumas características do espírito, ou ao espírito algu­
mas propriedades da matéria. Em ambos os casos não se retém
da realidade mais do que um esqueleto conceituai e lógico.
Dar o nome de ‘progresso’ ao que o outro chamava de ‘pro­
vidência’ não muda nada na questão, porque nos dois casos o
futuro é um roteiro já escrito, e o homem se vê privado da res­
ponsabilidade de sua história no prolongamento do passado e do
presente.
Dizer ‘homem’ onde o teísmo dizia ‘Deus' não muda em nada
a questão, como o exemplo de Feuerbach mostrou maravilhosa­
mente e, depois dele, o dos teólogos da ‘morte de Deus’. O em­
pobrecimento não decorre de não mais se falar em Deus, mas
de se partir de uma concepção redutora do homem, fazendo abs­
tração de sua dimensão transcendente. Um ateísmo prometêico
ou faustiano, isto é, baseado no individualismo e no racionalismo
cientificistas do Renascimento, poderá quando muito inspirar um
socialismo calcado no modelo de crescimento do capitalismo. Traz
em si os mesmos germes de fechamento e de despotismo que o
teísmo ao qual vem substituir.

61
.(

Ê possível enfim, se permanecemos cativos das ilusões indi­


vidualistas e racionalistas do Ocidente, ter apenas nostalgia de
todas as dimensões perdidas e chegar às filosofias do absurdo.
Ignora-se a relação humana fundamental, a relação com o outro.
Então, fechado no isolamento cartesiano, chega-se a escrever: “o
inferno são os outros.” Tudo quanto não era o conceito foi des­
prezado. Prisioneiro dessa jaula conceituai, escreve-se: “o homem
é uma paixão inútil.” A liberdade não é mais do que o poder de
dizer não. O fantasma de um deus, mestre de moral, leva a dizer:
“se Deus não existe, tudo é possível” e “reger os povos e em­
briagar-se sozinho dá no mesmo”.
Todas essas tentativas são ao mesmo tempo reformistas e
redutoras: falam de Deus ou de sua ausência com a mesma lin­
guagem, a do “eu” pequenino e do conceito, incapazes não só
de perceber uma verdadeira transcendência, mas até mesmo de
reservar-lhe um ponto de inserção em nossas vidas de homens.

Paralelamente a essa evolução filosófica no curso da qual, depois


de Platão, Aristóteles, Descartes e Darwin terem refletido sobre
ela, a fé, no segundo terço do século XX, foi objeto de reflexão
do existencialismo, sobretudo parte de Bultmann e Illich, a en­
cruzilhada mais importante da história do cristianismo se situa
no início do último terço do século XX.
1965 marca o fim do Concilio Vaticano 11. Em 1966 há a
Conferência Mundial do Conselho Ecumênico das Igrejas (sobre
o tema: “Igreja e Sociedade” ) que vai mais longe ainda do que
a Gaudium et Spes do Vaticano II na abertura para o mundo de
hoje.
Nesse começo de mutação da Igreja, o impacto do marxismo
como movimento e o diálogo com os marxistas tiveram um papel
preponderante.
Os primeiros grandes ‘diálogos’ entre marxistas e cristãos
realizaram-se em Paris e Lyon em 1964 14 e continuaram em

14. Em 1964 denunciei como fundamentalmente contrário aos princí­


pios do marxismo o relatório do dirigente soviético Illytchev, que procla­
mava que o comunismo não poderia construir-se enquanto existisse o cris­
tianismo, pois isto, em meu parecer, invertia os termos da teoria marxista

62
c
I

Salzburg em abril de 1965 (depois em Herren Cheemsee e em


Marianske-Lazué) por iniciativa do Centro de Estudos e de Pes­
quisas Marxistas, então dirigido por mim e da Paulus Gesellschaft,
na A lem anha...
Todos os expoentes das novas teologias ali estavam reunidos.
1964 foi o ano do lançamento da Théologie de Vespérance1B,
de Jiirgen Moltman, nascida do confronto com o Príncipe espé-
rance, do marxista Ernst Bloch.
Em 1965 saiu meu livro16, que foi traduzido para onze lín­
guas, prefaciado na Alemanha e na Inglaterra pelo padre Karl
Rahner, que no prefácio retomava o tema do “cristianismo, reli­
gião do futuro absoluto”, que ele já havia proposto em nosso
debate em Salzburg. O posfácio de meu livro, do teólogo J. B.
Metz, sublinha com vigor que a fé, longe de ser uma questão
privada, é um imperativo libertador e que a promessa do Reino
criava uma “teologia negativa do futuro”. Já estavam aí as teses
principais de sua futura “teologia política”.
No mesmo ano de 1965, no Divinity College da Universidade
de Harvard, nos Estados Unidos, mantive um debate com o ca­
nadense Leslie Dewart, que prefaciara a ediçãc americana de meu
livro e que, em 1966, em resposta a minhas teses, iria publicar
The Future of Belief (O Futuro da F é)17. Deste debate participou
o teólogo americano Harvey Cox, cujo best-seller, La Cité secu-
lière 18 apareceu nesse mesmo ano.
Em julho de 1965, o jesuíta espanhol Alvarez Bolado, na
revista Razón y Fé, difundia na Espanha o diálogo de Salzsburg
e alguns meses depois a universidade católica de Louvain convi­
dava-me (não sem suscitar a cólera dos integristas belgas) a expor
minhas teses sobre o marxismo e a fé cristã.

da alienação. Este texto (publicado em Le Monde, de 22 de fevereiro de


1964) causou escândalo na União Soviética e nos partidos comunistas por­
que, pela primeira vez, um dirigente comunista (eu era então membro do
departamento político do partido comunista francês) atacava publicamente
um dirigente soviético.
15. Théologie de l’espérance, “Cogitatio Fidei”, n.° 70, Paris, Éd. du
Cerf, 1964.
16. De 1’anathème au dialogue, Paris, Plon, 1965.
17. New York, Herder and Herder, 1966.
18. 'Trad. francesa, Paris, Casterman, 1968; l.a ed. Mac Millan, 1965

63
rv
Na América Latina, a reflexão teológica sobre o marxismo,
juntamente com as lutas pela libertação dos povos, iria dar origem
à Teologia da Libertação, com a obra publicada com esse mesmo
título em 1971 pelo padre Gustavo Gutierrez19, ao qual se se­
guiram Hugo Assman, Leonardo Boff, Enrique Dussel, Comblin
e vários outros teólogos.
Tornava-se cada vez mais claro para os participantes do diá­
logo que o problema das relações entre cristianismo e marxismo
era mal colocado todas as vezes que a Igreja pretendia exercer o
papel de um partido político e que os partidos comunistas preten­
diam exercer o papel de uma Igreja. Desse modo, opunha-se uma
ideologia a outra, mas nem a fé nem o marxismo são ideologias.
A fé não é uma concepção do mundo, mas um modo de agir no
mundo. O marxismo não é uma concepção do mundo, mas uma
metodologia da iniciativa histórica. Quando o marxismo se trans­
forma dogmaticamente em materialismo dialético para fazer da
história humana um caso particular de uma dialética universal
da natureza, ele degenera em teologia atéia. Quando a Igreja pre­
tende deduzir do Evangelho uma “política tirada da Sagrada Es­
critura”, como Bossuet, ou uma “doutrina social”, como Leão
XIII, torna-se uma força política (conservadora, aliás) e é per­
feitamente legítimo denunciar essa iniciativa como “ópio do povo”.
Desmascarada a confusão e uma vez atingido o objetivo, o
“diálogo cristão marxista” não tinha mais razão de ser. Isto foi
consignado em uma reunião comum do Conselho ecumênico das
Igrejas, em Genebra, com a participação de marxistas franceses,
espanhóis e italianos e de sacerdotes católicos designados como
observadores pelo cardeal Koenig.
Chegou-se à conclusão de que, na medida em que a discussão
teórica permitira uma clarificação do debate, ainda que sem a
anuência dos integristas dos dois lados, havia agora que percorrer
uma segunda etapa: depois de passar do anátema ao diálogo,
fazia-se mister passar do diálogo à prática, para a criação de um
futuro com face humana.
O problema já não se apresentava mais em termos de anta­
gonismo, mas de emulação para atingir um fim comum: criar

19. Trad. francesa, Lumen Vitae, Bruxelles, 1974.

64
para o homem, para todos os homens, condições para a plena
responsabilidade por sua história.
Por sua vez outro diálogo podia começar: não mais entre
cristãos e marxistas, isto é, um diálogo entre ocidentais que cada
vez mais, no momento da descolonização, corria o risco de tor-
nar-se ‘bairrista’, mas um diálogo entre as civilizações, para fazer
com que o Ocidente reconheça a indispensável contribuição das
culturas não ocidentais para a criação de um futuro com face
humana.

Análoga mutação se processava na Igreja no plano social, em


permanente atuação recíproca com o debate e a mutação teo­
lógicos.
Já havia quinze séculos — desde o Edito de Milão, de Cons-
tantino, em 313, e o decreto de Teodósio, em Tessalonica, em
380, tornando obrigatório o cristianismo, último recurso para
vencer a crise do Império romano — que era estreita a ligação
da Igreja com o poder do Estado. Além disso, a ‘cristandade’
era o bloco formado pela religião cristã e a civilização ocidental.
Se a dissociação da fé cristã e da cultura ocidental mal co­
meça a se processar em 1979, a separação entre a Igreja e o
Estado começou a esboçar-se no século XIX, quando a cristan­
dade se viu deslocada pelas ‘nacionalidades’. A última afirmação
estrondosa do constantinismo foi o Concilio Vaticano I em 1869.
Em fins do século XIX começaram as tentativas para criar
uma ‘nova cristandade’, em uma sociedade oficialmente separada
da Igreja.
Foram feitos esforços em todos os planos: no plano econô­
mico pela fabricação da ‘doutrina social’ da Igreja20 e a consti­
tuição de ‘sindicatos cristãos’; no plano político pela fundação de
partidos de ‘democracia cristã’; no da educação pela defesa das
‘escolas confessionais’.
Após a morte de Pio XII, em 1958, e sobretudo depois do
Concilio Vaticano II, em 1965, morrem os sonhos de uma ‘nova

20. Notável demonstração do caráter irreversivelmente superado dessa


‘doutrina social’ foi feita pelo padre Chenu em seu livro La “Doctrine so-
ciale” de VÉglise comme idéologie, Paris, Éd. du Cerf, 1979.
c
cristandade’: os sindicatos ‘cristãos’ recusam cada vez mais a eti­
queta confessional, os episcopados da França e dos Estados Unidos
se mostraram sempre menos dispostos a investir no ensino parti­
cular, os partidos de democracia cristã fracassam, como na França,
ou se corrompem, como na Itália e na Alemanha.
A falência da democracia cristã foi decretada onde sua ação
fora mais evidentemente nefasta, em Santiago do Chile, por oca­
sião do primeiro encontro dos cristãos em favor do socialismo,
em 1972.

Em todos os planos — científico, filosófico, teológico, social e


político —, o terreno está sofrivelmente limpo, neste último quar­
tel do século XX, para se operar uma mutação muito mais radical.
Trata-se de tomar consciência de que a ‘crise da fé’, como
se diz, é na realidade uma crise da cultura em que esta fé se
exprime: a cultura ocidental greco-romana. Foi isto, por exem­
plo, que se manifestou vigorosamente na África no colóquio teo­
lógico de Dar-es-Salam em 1974 e no de Abidjan em 1977; e, em
formas próprias a cada continente, na Ásia e na América Latina.
Trata-se de passar de uma teologia dogmática (quer dizer,
que considera determinado de uma vez por todas o essencial dos
dogmas cristãos) para uma teologia fundamental (quer dizer, que,
das atuais exigências profundas dos homens, faça surgir a inter­
pelação da fé), a partir da certeza primordial de que não é pos­
sível falar de Deus sem falar do homem e sem agir para ele; e
que não é possível falar do homem sem falar de Deus e agir por
ele.

Inverter deste modo o processo tradicional baseado em um racio-


nalismo dogmático raquítico não consiste mais em ir de causa
em causa, mas de projeto em projeto; não de ‘como’ em ‘como’,
mas de ‘porquê’ em ‘porquê’, de fins subalternos a fins mais
elevados.
É um processo em nada menos ‘racional’ que o precedente
(não o contradiz, não o despreza, nunca entra em interferência
com ele), mas dá maior importância às finalidades do que aos

66
(
meios. Não se contenta em explicar, mas leva a tomar decisões
para transformar o mundo.
Trata-se, sob outro aspecto, de retomar a distinção feita por
Marx entre explicar o mundo e mudá-lo. Trata-se da passagem
da tecnocracia para o profetismo, quer dizer, para a vontade de
confrontar cada instituição e cada ação com sua finalidade.
Nossa inteligência atual, utilitária e técnica, fabricante de
ordem e de domínio sobre as coisas e os homens, foi forjada numa
luta de milênios pela existência, para a adaptação às coisas, para
o domínio e a manipulação das coisas, mediante tentativas e erros.
Ela era e continua a ser absolutamente necessária para a sobre­
vivência do homem. Mas somente nossas sociedades ocidentais
desde a Renascença reduziram a razão a essa função única. Essa
redução e esse postulado conduzem inevitavelmente a generalizar
abusivamente o determinismo, indispensável para uma ação eficaz
das ciências e das técnicas sobre a natureza, a um determinismo
generalizado que ultrapassa a natureza e as intenções que podemos
ter quanto a ela, para fazê-la dirigir nossas relações com os outros
homens e até mesmo com nosso futuro. Era recolocar-nos sob
o jugo de um novo destino, na medida em que nada mais poderia
surgir que não fosse resultante ou produto de causas e de leis já
existentes, e na medida em que, como postulado, se fazia abstração
de qualquer possibilidade futura de o homem inventar o que não
estivesse no prolongamento do real tido como dado imutável.
Partindo do postulado desse determinismo generalizado, “não se
tem mais escolha, diz Martin Buber, a não ser entre a escravidão
voluntária e a rebelião inútil” 21.
E se partíssemos de um postulado rigorosamente inverso ao
do determinismo generalizado, com plena consciência de ser um
postulado: não estou obrigatoriamente sujeito a meus condicio­
namentos, sou capaz de ruptura e, como tal, responsável por mi­
nha vida e por minha história?
Certamente trata-se também de um postulado, mas, exata­
mente como o postulado do determinismo se verifica em todos

21. Martin Buber, Je et Tu, Paris, Aubier-Montaigne, coll. “Philoso-


phie en poche”, 1970, p. 89.

67
.(

os sucessos das ciências naturais, não se verifica também ele na


vida cotidiana e na milenar experiência da história?
É ou não verdade que não sou necessariamente comunista
se sou operário ou filho de operário, ou reacionário se sou ‘filhi-
nho de papai? O próprio Marx era filho de um pequeno-burguês
e Engels de um alto-burguês. É ou não verdade que não me pre­
cipito, por um tropismo irresistível, para os espertalhões do Salão
do Automóvel e de outras drogas que me são oferecidas? E que,
com tais rupturas, se formaram seu caráter e minha personalidade.
Ê ou não verdade que a história humana não estava toda
programada desde a origem, assim como também não estava mi­
nha vida naquilo que ela tem de mais especificamente humano?
Ela também se faz à custa de rupturas, de revoluções, de inven­
ções científicas ou técnicas, de criações artísticas, de utopias e
de profetismos.

De onde nos vêm a força para as rupturas, o poder para as cria­


ções, para essa emergência ‘poética’ do que é radicalmente novo
em nossa vida e em nossa história?
Já aquilo que me caracteriza, não como indivíduo fechado
em mim mesmo e separado dos outros por um vazio, mas como
pessoa, é a ruptura com a insularidade artificial, é a abertura para
o outro. Como escreveu Martin Buber: “No princípio era a re­
lação . . . O homem torna-se um ‘eu’ no contac.o com um ‘tu’.” 22
Com essa ruptura e essa abertura começa a existência propria­
mente humana, que é o contrário da do objeto: superando a
existência limitada, é a negação dos limites do indivíduo que a
nega. Negação da negação. Mas também negação de qualquer
outro limite que despedaçasse a unidade fundamental da comuni­
dade de pessoas e que, por isso mesmo, a destruísse.
A comunidade em que a pessoa assume sua realidade própria
e seu sentido não pode ser uma comunidade parcial. Não pode
ser concebida à semelhança das instituições profanas: tribos ou
impérios, cidades ou nações, seitas ou Igrejas.

22. Ibid. pp. 38 e 42.

68
c
Isto porque o que caracteriza todas as ‘instituições’ é ter uma
finalidade limitada: realização de um trabalho de irrigação, de
construção, de defesa, de educação, de ordem interior, de con­
quista ou de expansão. Daí decorrem suas características funda­
mentais: organização hierárquica e delegação de poderes, com
todos os dogmatismos produzidos por esses aparelhos a fim de
justificar sua reprodução e conservação.
Essas instituições geraram, por exemplo, teísmos, ao criarem
deuses à sua imagem: os dos faraós divinizados; os das tribos de
Israel, estabelecendo com seu Deus relações de temor, relações
de senhor e escravo; os dos imperadores romanos, exibindo o
título, retomado depois deles, de Pontifex maximus (Soberano
Pontífice); os das nações sacralizadas; os das monarquias de di­
reito divino, das santas alianças ou das democracias cristãs.
Não basta, para fugir desse círculo, transformar um deus
da ordem em um deus do movimento, sacralizar as revoluções
após haver por tanto tempo sacralizado as contra-revoluções. Não
se sairá das teologias dogmáticas substituindo simplesmente Cons-
tantino por Che Guevara. Não se sairá dos teísmos fabricando
deuses à imagem das sociedades parciais que os segregam: deuses
para conservadores e deuses para rebeldes.
Ao contrário, subindo dos fins parciais para fins mais altos,
tomaremos consciência da contradição mais trágica e, ao mesmo
tempo, mais exaltante de nossa existência: por mais que eu avan­
ce, jamais chegarei a uma certeza primordial, a um fim último,
nem a nenhum princípio original obrigatório. Mas não posso
aceitar essa caminhada sem fim, porque tenho de agir; portanto,
sou obrigado a tomar uma decisão, a fazer uma escolha e a reco­
nhecer nela um postulado.
Sim, um postulado. Verdadeiro. No sentido em que se fala
do postulado de Euclides ou do postulado de Riemann. Não é
uma decisão ou uma escolha arbitrária, irracional, é um princípio
que tenho de estabelecer a fim de garantir a coerência de meu
pensamento e de minha ação. Todo pensamento e toda ação se
baseiam em um postulado. Os do ateu e os do ‘crente’, do ‘liberal’
ou do revolucionário, os da ciência e os da fé. A diferença está
em que uns têm consciência de seus postulados, outros não.
Que fique bem claro: não ter consciência de seus postulados
é dogmatismo. Ter consciência deles é a fé.

69
Nenhuma pretensa racionalidade pode despojar-nos dessa respon­
sabilidade. O fascismo não é ‘ilógico’. Nem mesmo é ‘ilógico’
querer a destruição total dos homens e do planeta. Somos plena­
mente responsáveis por essa escolha, como também por escolhas
opostas.
Pode acontecer que eu interrompa cedo demais minha busca
dos fins e me instale em fins limitados: Acima de tudo, meu
país! Fora da Igreja não há salvação! O Partido sempre tem
razão!
São decisões, escolhas penúltimas, quer dizer, que recusam
confrontar a instituição com suas finalidades. Esse dogmatismo
nacionalista, clerical, stalinista ou não sei mais o quê, dá-me uma
certa segurança, uma consciência tranqüila. Ele me pedirá sacri­
fícios reais, eu diria até mesmo que respeitáveis como tais. Criei
assim para mim um absoluto adequado ao meu tamanho: o di­
nheiro, a nação, a classe, a raça, o partido, a Igreja, a seita. Ger­
mina em mim um inquisidor. Porque se possuo uma verdade
absoluta, completa, quem quer que a conteste é um doente e seu
lugar é no hospital psiquiátrico, ou então um rebelde consciente
que recusa esta verdade absoluta, sendo justo que seja enviado
para a prisão ou para a forca.
Ao dizer essas coisas passei espontaneamente para a primeira
pessoa porque vivi tudo isto e não me desculpo. Esse passado é
o meu e não me envergonho dele. Porque se aprendi a mudar,
foi por ter passado por esse caminho.
Conheci a aparente plenitude do dogmatismo. Depois, a dú­
vida, não como desapego, mas como angústia e responsabilidade.
A encruzilhada dos sonhos. Em seguida a travessia do deserto,
desses desertos espirituais onde se encontram tão poucos explo­
radores ou nômades para ajudá-lo a abrir pistas.
Não seria o que sou se não tivesse sido o que fui. Se hou­
vesse sido um cético, jamais teria sabido o que é a fé. É preciso
ter conhecido o que é uma certeza na qual se joga toda a vida,
para se elevar a finalidades mais altas, mas que exigem sempre
o tudo ou nada da vida e da morte. A fé tem esse preço.
É preciso que fique bem claro: a fé não é o contrário da
razão; a fé é o momento crítico da razão.

70
O momento em que a razão toma consciência de seus postu­
lados. O momento em que se torna capaz de questionar seus pos­
tulados e seus objetivos.
A fé é a experiência crítica de qualquer finalidade limitada.
Ela também é negação da negação. Negação dos limites do homem.
E como se poderia conhecer o limite sem ao menos pressen­
tir que mais além começa outra coisa?

Por que os partidos, as sabedorias, as Igrejas não trazem para o


mundo aquilo de que tem obscuramente tanta necessidade: um
centro, uma meta, uma fé?
Nossa tarefa consistirá então em confrontar todas as insti­
tuições com seus objetivos: tanto as nações quanto os exércitos,
as ciências quanto a escola, as Igrejas quanto os partidos.
Quando baixa a fé, pululam as superstições e as idolatrias.
Uns pregam a volta à Igreja, não por amor de Deus, mas
por medo do povo.
Outros aderem a um partido para delegar a um eleito ou a
um chefe a escolha de uma utopia ou de uma ordem.
Outros ainda querem convencer-se de que a ciência pode res­
ponder a todos os seus problemas para não precisarem de pensar
em nenhum.

O erro básico dessas atitudes, do cientificismo à tecnocracia, do


teísmo ao ateísmo, do integrismo à ‘teologia da morte de Deus’
está em crer que podemos reencontrar o homem em sua pleni­
tude e transcendência sem romper com nossa cultura ocidental.
Porque se nosso mundo hoje não tem mais centro, outros povos
e épocas tiveram um. Não lhes era dado de fora ou do alto.
Homens o indicaram. Homens o construíram. Homens o atingiram.
Esses homens, sem que o saibamos, ainda vivem em nossas vidas.
É importante que conscientemente os sintamos todos aqui,
presentes a nossa volta. Não para nos olharem e serem nossos
juizes, mas para ajudar-nos, para auxiliar-nos a fim de que não
tornemos a percorrer inutilmente um caminho já percorrido por
eles. O passado só tem sentido quando vivo. O verdadeiro pas­

71
sado não é aquilo que não existe mais. É aquilo que conserva um
sentido para nossas vidas de hoje.
O futuro não é o que vai acontecer. É aquilo que fizemos. O
verdadeiro futuro não é o que ainda não existe. Está presente no
presente.
Entre conservadores com o falso passado — o que aprova
o presente — e revolucionários com um falso futuro — o que
prolonga ou inverte o presente, mas só se define em vista deste
— , a desgraça de nossa juventude é a de assim ficar privada de
memória e esperança.
Um presente que traz em si todas as criações do passado e
todo o futuro por criar, esse presente é outro nome da eternidade.
Portanto, não se trata de fazer um museu imaginário das
religiões e das revoluções, nem mesmo de escrever sua história,
como se escreve a dos mortos. Trata-se de evocar os homens e
os povos que revelaram novas possibilidades aos homens e aos
povos. De evocar as religiões e as revoluções unicamente na pessoa
daqueles que foram seus profetas e mártires. Dentro dessa pers­
pectiva, não há história separada das religiões e das revoluções.
Apóstolos e revolucionários não se distinguem na única aventura
humana.
Os homens têm apenas uma história, desbravada a golpes
de audácias, de loucuras, de sacrifícios. A única que temos o
desejo de exaltar, a história das conquistas do gênio humano. A
única que vale a pena ser continuada, ser vivida. Viver, para o
.homem, é trazer à existência possíveis inéditos. Aqueles que o
tornarão mais humano, isto é, mais semelhante ao sonho milenar
dos deuses.
Revolução ou ressurreição? Será mesmo que se opõem ou
até se distinguem? Com a condição de não confundir ressurreição
com reanimação do cadáver, e revolução com mudanças de go­
verno.
Procuramos uma alternativa para nosso modelo ocidental de
crescimento cego, e queremos descobrir um modo mais rico de
viver. Para isto precisamos redescobrir as opções feitas em ou­
tras civilizações e em outras culturas, em outros continentes e
por outros povos que conceberam e viveram relações diferentes
entre o homem e a natureza, entre o homem e o homem, entre o
homem e o divino. Precisamos de todas as suas sabedorias e de

72
todas as suas revoltas. Precisamos deles para nos lembrar de que
aquilo que me falta para ser plenamente humano é o outro ho­
mem. É preciso despertar alguns da anestesia dos dogmas reli­
giosos, outros da nostalgia de revoluções que se tornaram vulcões
extintos.
Este livro foi escrito apenas para traçar o nascimento de
Deus no homem e do homem em Deus.

73

Você também pode gostar