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Roberto Mangabeira U nger

O DIREITO E O FUTURO
DA DEMOCRACIA

Tradução
Caio Farah Rodriguez
Mareio Soares Grandchamp
com consultoria do autor
Copyright© 1996 Roberto Mangabeira Unger
Copyright© 2004 da tradução, Boitempo Editorial

Título original: What Should LegalAnalysis Become?

Tradução Caio Farah Rodriguez


Mareio Soares Grandchamp
(com consultoria do autor)

Revisão Daniela ]inkings


Letícia Braun
Coordenação editorial Ivana Jinkings
Ana Paula Castellani
Coordenação de produção Daniel Tupinambd
Capa Antonio Carlos Kehl
Diagramação Antonio Carlos Kehl
Fotolitos Oesp
Impressão e acabamento Alaúde

CIP-BRASIL - CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

U48d
Unger, Roberto Mangabeira
O direito e o futuro da democracia / Roberto Mangabeira Unger ;
tradução de Caio Farab Rodriguez, Mareio Soares Grandchamp, com
consultoria do autor. - São Paulo : Boitempo, 2004.

ISBN 85-7559-005-7
1. Hermenêutica (Direito). 2. Direito - Metodologia. 3. Direito -
Filosofia. I. Título.

04-1138 CDU 340.1

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.

1ªedição: maio de 2004

Jinkings Editores Associados Ltda.


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SUMÁRIO

TEMA E PLANO DESTE LIVRO........................................................ 9


ENTENDIMENTO E TRANSFORMAÇÃO NA CIÊNCIA
NATURAL E NO ESTUDO SOCIAL ............................................. 11
Possibilidade institucional na teoria social e na ciência social................ 11
Possibilidade institucional na filosofia política...................................... l 2
DEMOCRACIA E EXPERIMENTALISMO ....................................... 16
Experimentalismo democrdtico e fetichismo institucional....................... l 6
A tese da convergência . .. . ... .. .. .. .. ... . .. .. .. ... .. .. .. .. .. .. . .. . .. ... .. .. . .. ... . .. . .. . ... . .. . l 8
A PROMESSA PRÁTICA DO EXPERIMENTALISMO
DEMOCRÁTICO: DO ATUAL DEBATE SOBRE POLÍTICAS
PÚBLICAS À DISCUSSÃO PROGRAMÁTICA .............................. 22
A forma e os limites de um debate sobre políticas públicas ..................... 22
Inovação nas formas institucionais da economia de mercado ................. 23
A estrutura de classes das democracias industriais .. .. . .. ... .. .. . .. .. .. . . .. .. .. . .. .. 25
Inovação nas formas institucionais da democracia política .................... 27
Inovação nas formas institucionais da sociedade civil ............................ 29
A IMAGINAÇÃO DE ALTERNATIVAS: PRESSUPOSTOS
SOCIOTEÓRICOS DO EXPERIMENTALISMO
DEMOCRÁTICO ............................................................................ 31
Primeiras e segundas naturezas na vida em sociedade . .. . ... .. . .. .. .. . .. . .. ... .. 31
Rotina e revolução .. .. ... .. . .. .. .. ... .. .. . .. .. ... .. .. .. .. ... .. .. .. . ... ... . .. . .. .. .. .. . .. . .. .. .. .. 32
Interesses reais e mudança estrutural ..................................................... 33
AS DISCIPLINAS INSTRUMENTAIS DO
EXPERIMENTALISMO DEMOCRÁTICO .................................. 36
As disciplinas irmãs de imaginação institucional.................................. 3 6
A inexistência da economia institucional.............................................. 3 7
O DESENVOLVIMENTO INTERROMPIDO
DO PENSAMENTO JURÍDICO ................................................... 41
A vocação do direito contemporâneo ..................................................... 41
O limite do pensamento jurídico contemporâneo .................................. 4 4
A EXECUÇÃO COMPLEXA NO LIMIAR
DA MUDANÇA ESTRUTURAL .................................................... 46
Intervenção episódica porém estrutural ................................................. 46
O agente que falta ............................................................................... 4 8
O ENCANTO DA ANÁLISE JURÍDICA RACIONALIZADORA .... 51
O pemamento jurídico e a socialdemocracia . .. .. ... .. .. .. .. .. .. ... . .. .. .. .. . ... . .. . . 51
O método de políticas públicas e princípios........................................... 53
A difusão da andlise jurídica racionalizadora . . .... . ... .. . .... .. .. . ... .. .. . . .. ... . . 55
A influência antiexperimentalista da andlise jurídica racionalizadora.. 5 7
A ESTRUTURA COMPLEXA DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA ....... 59
O momento da ciência jurídica do século XIX...................................... 59
O momento da andlise jurídica racionalizadora .................................. 65
O momento da reinterpretação tdtica do direito .................................... 7O
O PLURALISMO DE GRUPOS DE INTERESSE E A ANÁLISE
JURÍDICA RACIONALIZADORA ................................................. 72
Dois vocabuldrios incompatíveis sobre o direito ..................................... 72
As fronteiras móveis entre os vocabuldrios . .. .. .. .. .. .. .. ... . .. ... .. .. .. . .. .. .. .. .. . .. . 7 4
Implicações perturbadoras .................................................................... 77
AS QUATRO RAfZES DA ANÁLISE JURÍDICA
RACIONALIZADORA: O PRECONCEITO CONTRA
A ANALOGIA ................................................................................... 8 O
Um preconceito arraigado.................................................................... 8 O
Atributos da analogia . .. .. ... .. . .. .. .. ... .. .. . .. .. ... .. .. .. .. .. ... .. .. .. .. .. .. .. .. . .. .. . ... . .. . 8 1
A falta de fundamento do preconceito contra a analogia . .. .. .. .. .. . .. .. .. .. . . 8 3
AS QUATRO RAfZES DA ANÁLISE JURÍDICA
RACIONALIZADORA: A DEFESA DE UM SISTEMA
DE DIREITOS ................................................................................. 8 5
O estado de direito e o sistema de direitos .. .. ... .. .. .. .. .. ... .. . .. ... .. . .. .. .. . .. .. .. . . 8 5
A andlise jurídica racionalizadora e o sistema de direitos...................... 8 7
As duas genealogias do direito . . .. ... .. .. .. .. ... .. .. . .. .. .. .. .. .. . ... ... .. . . ... . ... . .. .. .. . . 8 7
O poder de revisão . .. .. ... .. . .. .. .. .. .. .. .. .. ... .. .. .. .. ... . ... .. . .... .. . .. .. .. .. .. .. .. . .. . ... .. . 8 9
Políticas públicas, princípios de direito e modelos teóricos .. .. ... . .. .. .. . .. .. .. . 9 O
O desacordo inerradicdvel entre as duas genealogias do direito . .. ... . . .. ... . 9 1
O poder de revisão reexaminado........................................................... 9 7
A estrutura argumentativa da teoria jurídica contemporânea ................ 9 9
Arbitrariedade no antídoto à arbitrariedade....................................... 1 OO
AS QUATRO RAÍZES DA ANALISE JURÍDICA
RACIONALIZADORA: O REFORMISMO
PROGRESSISTA PESSIMISTA ...................................................... 1 O3
O reformismo conservador.................................................................. 1 O3
O reformismo progressista pessimista . .. .. .. .. .. .. .. ... .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . .. .. .. .. .. 1 O5
A andlise jurídica racionalizadora como terapia social evasiva ........... 107
O exemplo da igualdade perante a lei no direito constitucional
norte-americano: disparidades racionais........................................ 1 O8
O exemplo da igualdade perante a lei no direito constitucional
norte-americano: problemas de eficdcia .. . .. .. .. .. . .. ... .. .. .. . .. .. .. . .. . .. .. .. . 11 7
Aprofundando e generalizando o ceticismo causal· o direito sob duas
economias políticas ....................................................................... 123
Os problemas políticos prdticos da andlise jurídica racionalizadora . .. . 13 1
AS QUATRO RAÍZES DA ANALISE JURÍDICA
RACIONALIZADORA: O PAPEL DOMINANTE DO JUIZ .... 134
O contexto histórico de uma obsessão .................................................. 134
A tarefa jurisdicional e a reconstrução racional ... .. .. . .. .. .. .. .. .. .. . .. ... . .. . .. 13 6
Colocando a tarefa jurisdicional em seu lugar .. .. .. .. .. .. . .. .. . .. .. .. . .. .. .. .. .. . 13 8
Como devem os juízes julgar?............................................................. 141
KENOSIS: EVITANDO OS DESCAMINHOS DA
TEORIA CONTEMPORÂNEA .................................................... 148
A teoria como obstdculo...................................................................... 14 8
A indeterminação radicalizada.......................................................... 14 9
O projeto de uma teoria pura do direito.............................................. 15 1
A abordagem funcionalista do direito ... .. .. .. .. .. .. . .. .. .. ... .. .. .. .. . .. ... .. .. .. .. .. 15 2
A abordagem histórico-culturalista do direito .. .. .. .. .. .. .. ... . .. .. .. .. . .. . .. . .. . .. 15 6
Kenosis ............................................................................................. 15 8
A ANALISE JURÍDICA COMO IMAGINAÇÃO
INSTITUCIONAL ......................................................................... 159
Objetivos de uma prdtica revista de andlise jurídica............................ 15 9
Mapeamento e crítica . .. .. . ... .. .. . ... .. .. .. .. .. .. ... .. .. . ... .. .. .. ... . .. .. .. .. .. .. . . .. ... . .. 16 O
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATNOS
DE UMA SOCIEDADE LNRE: A
SOCIALDEMOCRACIA AMPLIADA ........................................... 166
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

A idéia de futuros institucionais alternativos . .. . .. .. .. . .. .. .. .. ... .. .. .. . .. . . .. ... . l 66


A direção da socialdemocracia ampliada ............................................ l 70
O direito e as instituições da socialdemocracia ampliada..................... l 7O
O espírito e os defensores da socialdemocracia ampliada ...................... 17 4
A instabilidade interna da socialdemocracia ampliada....................... l 76
Uma política menor para pessoas maiores? ......................................... 179
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATNOS
DE UMA SOCIEDADE LNRE:
A POLIARQUIA RADICAL ........................................................... 181
A direção da poliarquia radical......................................................... 181
O direito e as instituições da poliarquia radical.................................. l 83
Os paradoxos espirituais de um comunitarismo liberal........................ l 86
O dilema prdtico da descentralização e da desigualdade .. .. .. . .. .. .. .. .. .. .. 18 7
O exemplo admonitório da propriedade da empresa
pelos empregados .. .. .. .. . . .. .. .. .. .. ... . .. .. .. .. . .. . .. ... . ... . .. .. . ... .. .. .. .. . .. .. .. . .. .. l 9O
A poliarquia radical reconstruída ....................................................... 19 5
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS
DE UMA SOCIEDADE LNRE:
A DEMOCRACIA MOBILIZADORA .......................................... 198
A direção da democracia mobilizadora............................................... 19 8
O direito e as instituições da democracia mobilizadora .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . 19 9
Experimentalismo social e direitos humanos ........................................ 2 O1
Virtude política e realismo político ..................................................... 204
A CAMPANHA PARA ALCANÇAR UM MEIO-TERMO ENTRE
RACIONALISMO E HISTORICISMO ........................................ 207
A deflação do racionalismo ................................................................ 2 O7
A inflação do historicismo .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 211
Alcançando um meio-termo entre o racionalismo e
o historicismo na filosofia e na teoria social................................... 214
Alcançando um meio-termo entre o racionalismo e
o historicismo na andlise jurídica .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 2 14
Reorientando a campanha para alcançar um meio-termo
entre o racionalismo e o historicismo .............................................. 216
PROFECIA E PROSTRAÇÃO NO PENSAMENTO JURÍDICO ... 220
O culto do direito estatal e a busca por uma ordem moral latente ........ 220
O experimentalismo democrdtico contraposto à ordem moral latente ... 222
Uma pardbola: os judeus e seu direito ................................................. 223
O realista e o visiondrio ..................................................................... 227
TEMA E PLANO DESTE LIVRO

O conflito sobre as condições básicas da vida em sociedade, tendo aban-


donado as antigas arenas da política e da filosofia, vive sob disfarce e cons-
trangimento nos debates mais estreitos e obscuros das profissões especializadas.
Ali devemos encontrar esse conflito e recuperá-lo, transformado, para a vida
maior da sociedade.
Para adquirirmos a liberdade de criar futuros alternativos para a socieda-
de com clareza e ponderação, devemos ser capazes de imaginá-los e de dis-
cuti-los. Para que os imaginemos e discutamos eficazmente, devemos adentrar
áreas especializadas do pensamento e da prática. Devemos transformar es-
sas especialidades por dentro, modificando a sua relação com o debate pú-
blico numa democracia. Devemos convencer os especialistas a renunciar a
parte da autoridade superior que eles nunca propriamente possuíram, tro-
cando essa falsa autoridade por um novo estilo de colaboração eritre especia-
listas técnicos e pessoas comuns.
Este livro apresenta um exemplo do esforço para penetrar, e reforjar
por dentro, um determinado domínio técnico: o direito e a: análise
jurídica. Ele pergunta como podemos mudar a análise jurídica de forma
que ela possa preencher sua vocação primeira numa sociedade democrá-
tica e esclarecida: informar-nos, como cidadãos, na tentativa de imaginar-
mos e de debatermos nossos futuros alternativos. O tema é crucial, e o
momento desafiador.
O direito e o pensamento jurídico foram, nas democracias industriais
contemporâneas ocidentais, assim como em muitas sociedades do passado,
o lugar em que um ideal de civilização assume forma institucional detalha-
da. No direito e no pensamento jurídico, ideais devem se ajustar com inte-
resses, e a união entre interesses e ideais deve se materializar em estruturas
práticas. A doutrina jurídica fornece um modo de representação e discussão
dessas estruturas que torna possível mantê-las e desenvolvê-las dia após dia
e controvérsia após controvérsia. Como podemos compreender um arranjo

9
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

institucional e ideológico estabelecido de forma a reconhecer suas possibi-


lidades transformadoras, conferindo-nos capacidade para criar o futuro e
libertando-nos de superstição quanto ao presente?
Essa pergunta agora ganhou maior força. Vivemos numa época em que
a idéia de alternativas sociais corre o risco de ser desacreditada como uma
ilusão romântica responsável por catástrofe histórica. Não emprestamos mais
significado estável às palavras de luta do passado. Devemos então redescobrir
nas pequenas variações a que o pensamento jurídico tradicionalmente se
prendeu os começos das alternativas maiores que não mais encontramos
onde costumávamos procurar.
O intuito deste livro dita sua organização. O livro se inicia pelo desen-
volvimento de um ponto de vista experimentalista e democrático a partir
do qual se podem julgar as oportunidades intelectuais e políticas da atuali-
dade. Discute por que a imaginação institucional necessita de novas ferra-
mentas e qual trabalho podemos esperar realizar com elas. O livro então
se volta para o direito e para o pensamento jurídico como fonte dessas
ferramentas. O passo inicial é mostrar como a vocação característica do
direito, com seu potencial democratizante não aproveitado, permaneceu presa
aos constrangimentos impostos por estruturas e superstições institucionais. Para
combater essas estruturas e superstições, o livro então parte para explorar o
que está rapidamente se tornando o método mais influente de análise jurí-
dica em todo o mundo: o que eu chamo aqui de análise jurídica
racionalizadora. O livro examina a natureza, as conseqüências e as possibi-
lidades transformadoras desse método a partir de várias perspectivas, e por
meios que são cumulativos e dialéticos, mais do que sistemáticos e lineares.
A medida que o nosso entendimento dessa prática analítica se aprofunda,
começamos a perceber como reorientá-la de forma que ela possa fazer maior
justiça à vocação do direito contemporâneo e prestar melhor serviço aos
nossos compromissos experimentalistas e democráticos. A parte final do
livro sugere como podemos colocar a prática reorientada de análise jurídica
para funcionar, traçando trajetórias divergentes de avanço, por meio de mu-
dança institucional cumulativa, do projeto democrático.
Em certo sentido, este livro é sobre a tradução de esperança em idéias. A
relação entre conhecimento sobre a sociedade e esperança sobre as pessoas
é, portanto, um bom ponto de partida.

10
ENTENDIMENTO E TRANSFORMAÇÃO NA
CIÊNCIA NATURAL E NO ESTUDO SOCIAL

Possibilidade institucional na teoria social e na ciência social

O experimentalismo prático da política democrática e o experimentalismo


cognitivo das ciências sociais têm algo importante em comum. O teórico e
o reformador prático dividem a responsabilidade de compreender e julgar
instituições reais do ponto de vista de suas possibilidades reprimidas e não
aproveitadas. Podemos manter viva essa idéia que nos confere liberdade e
destrói superstições, hoje, somente se reforjarmos tanto a análise jurídica
quanto a economia política como imaginação institucional. Com a ajuda
dessa prática reformada de estudo jurídico e econômico, podemos então
repensar as formas institucionais estabelecidas de democracias representati-
vas, economias de mercado e sociedades civis livres. Podemos soprar novo
significado e nova vida ao projeto democrático.
Oportunidade transformadora é a chave para a investigação científica do
mundo natural: entendemos como as coisas funcionam ao descobrir sob
que condições, em que direções e dentro de que limites elas podem mudar.
A inclusão de fenômenos reais em um campo maior de oportunidades não
aproveitadas não é, para a ciência, uma conjectura metafísica; é um pressu-
posto operativo indispensável.
O que vale para a ciência natural vale com grande força para toda a
gama de estudos sociais e históricos. Juízos de possibilidade contrafática,
em grande medida implícitos, informam nossa percepção acerca de seqüên-
cias reais de mudança histórica e de forças reais na vida em sociedade. Uma
expressão sumária da nossa condição perturbadora no estudo social e his-
tórico é o fato de não termos mais à mão uma explicação verossímil da mu-
dança estrutural - quer dizer, de mudança nas estruturas institucionais e
nas crenças reconhecidas a elas associadas que moldam os procedimentos
práticos e de debate numa sociedade.

11
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Os grandes projetos explicativos das teorias sociais clássicas do século


XIX, tais como o marxismo, com sua crença característica numa se-
qüência predeterminada de sistemas institucionais indivisíveis e impul-
sionados por forças imperativas, tornaram-se vítimas tanto do cresci-
mento do conhecimento acadêmico quanto das decepções da experiência
política. Não obstante, nos agarramos aos seus restos, usando sem rigor
o vocabulário de sistemas teóricos a que alegamos ter renunciado: con-
ceitos como capitalismo, que pressupõem a existência de um regime
econômico e jurídico único e típico com uma lógica própria, ou distin-
ções entre humanização reformista e suplantação revolucionária da or-
dem estabelecida. As ciências sociais positivas, de sua parte, prescindem
completamente da idéia de mudança estrutural, tratando as estruturas
e preconcepções básicas como o resíduo cumulativo de um sem-número
de episódios passados de resolução de problemas ou de concessões, ou
como o resultado de convergência por tentativa-e-erro às melhores prá-
ticas disponíveis. Em tal ambiente intelectual, a transformação e a in-
venção das estruturas formativas de uma sociedade tornam-se literal-
mente inimagináveis. Como resultado, encontramo-nos empurrados de
volta a um entendimento do realismo político como proximidade ao
que já existe.
A incapacidade para imaginar possibilidades transformadoras, que
acabou por viciar a prática dominante do estudo social e histórico, con-
tamina a filosofia política normativa, bem como a linguagem comum da
política prática.

Possibilidade institucional na filosofia política

Essa incapacidade ajudou a moldar, principalmente no mundo de língua


inglesa, um estilo dominante de filosofia política. É uma maneira de pensar
que desliga a formulação de princípios de justiça dos problemas de elabora-
ção institucional, recusa-se a reconhecer o efeito de instituições e práticas
estabelecidas sobre desejos e intuições e trata o acerto socialdemocrata do
período pós-guerra como o horizonte insuperável para a perseguição de
seus ideais. A primeira e a segunda características dessa filosofia política se
ligam por sua dependência conjunta sobre a terceira. Juntas, elas resultam
numa dependência paradoxal sobre o contexto histórico que o filósofo pre-
tendia transcender.

12
ENTENDIMENTO E TRANSFORMAÇÃO ...

O filósofo pode imaginar que princípios de justiça - em especial, princí-


pios de distribuição justa - podem ser primeiro formulados num vácuo
institucional. Disciplinas técnicas de elaboração institucional podem então
lidar com a sua aplicação prática, à luz do conhecimento empírico e da cir-
cunstância cambiante. Assim, ele banaliza o problema de elaboração
institucional como sendo um problema de engenharia social circunstancial.
O problema das instituições, rebaixado pelo método do filósofo, contra-
ataca, comprometendo a autoridade e o alcance de suas afirmações. Ele o
faz de uma maneira ou de outra. O filósofo pode identificar abertamente
seu método de seleção de princípios de justiça- contratualista ou utilitário,
por exemplo - com as formas conhecidas da economia de mercado ou da
democracia representativa, tratando essas instituições como se fossem uma
representação verossímil de uma prática de escolha coletiva por indivíduos
livres e iguais. Com esse procedimento, contudo, o filósofo deixa de considerar
adequadamente tanto os defeitos quanto a contingência das instituições
políticas e econômicas herdadas. Ele não consegue reconhecer que a idéia
de uma sociedade de indivíduos livres e iguais poderia se desenvolver em
diferentes direções institucionais, com conseqüências diferentes para a na-
tureza das relações entre as pessoas, bem como para a distribuição de riqueza
e poder.
Alternativamente, o filósofo pode pretender alcançar, por trás da fa-
chada das democracias industriais contemporâneas, um momento pré-
institucional na aplicação de seu método. Ele pode recorrer à matéria-
prima de desejos e intuições, purgando-os de sua parcialidade, ou
equilibrando um com outro, de forma que a estrutura institucional apa-
reça entre as conclusões em vez de entre as premissas do raciocínio. Con-
tudo, pode dar a seu método a força necessária para gerar resultados de-
terminados apenas porque reprime a dialética interna fundamental na
substância de desejos e intuições: o conflito entre aquelas nossas tendên-
cias que pressupõem a ordem institucional e aquelas que, como aspiração,
fantasia e resistência, se rebelam contra essa ordem. Essa dualidade de
quereres humanos reflete a dualidade fundamental da nossa relação com
os mundos discursivos e institucionais que herdamos, refazemos e habita-
mos: nós somos esses mundos, e nós somos mais do que eles. Há sempre
mais em nós do que há neles.
Se o filósofo acaba por chegar, no fim do dia, a instituições como as
nossas, ele deve pressupor não apenas pessoas que tenham nossos dese-
jos e intuições, moldados como estão pela estrutura em que vivemos;

13
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

deve pressupor também pessoas cuja vida de aspiração seja mais unidi-
mensional do que a nossa realmente é. Seu benthamiano imaginário ou
parte contratante hipotética do contrato social deve consistir em nós
menos um, e não nós mais um.
No cerne dessas ilusões da filosofia política acadêmica reside a inca-
pacidade para fazer justiça ao que será um dos temas centrais deste li-
vro.Chame-o, num vocabulário, a relação interna e, em outro, a relação
dialética, entre pensar sobre ideais e interesses e pensar sobre instituições e
práticas. Pensar sobre ideais e interesses e pensar sobre instituições e prá-
ticas não são momentos ou atividades separados: cada um incorpora o
outro sem ser redutível ao outro. Assim, cada ideal social e cada interesse
de grupo adquire parte de seu significado a partir das estruturas sociais
conhecidas que imaginamos representar ou realizar de fato. Ao mesmo tem-
po, contudo, há algo na aspiração abstrata dentro de nossos ideais e na
força bruta dentro de nossos interesses que luta, impacientemente, con-
tra os limites impostos pelas estruturas do momento. Damos crédito a
essa dualidade quando desenvolvemos a compreensão de nossos interesses
e ideais pelo ajuste, na imaginação e na prática, de suas formas concretas de
realização. A importância central desse ajuste é o sentido mais impor-
tante da relação interna entre pensar sobre ideais ou interesses e pensar
sobre instituições ou práticas.
Podemos, agora, entender o que de outra forma permaneceria uma
qualidade paradoxal da filosofia política dominante. Ela quer transcender
sua situação histórica, às vezes mais, às vezes menos (como sugere minha
discussão posterior da campanha para alcançar o meio-termo entre histori-
cismo e racionalismo). Contudo, ela quer alcançar essa liberação do mo-
mento e da circunstância no início dos seus argumentos por uma mano-
bra metodológica, em vez de ao final dos seus argumentos, por um trabalho
paciente da imaginação. Ela, portanto, deixa de reconhecer as ambigüi-
dades ideológicas e as oportunidades transformadoras que habitam a rela-
ção interna entre nossos ideais ou interesses e nossas instituições ou prá-
ticas. Não perceber essas oportunidades e ambigüidades significa
desperdiçar os meios pelos quais podemos manter efetivo distanciamento
das instituições reais. É por isso que grande parte da filosofia política
especulativa de hoje acaba, em retrospecto, por dar um brilho metafísico
às práticas fiscais compensatórias da socialdemocracia estabelecida. Um
reformismo pessimista, cético quanto a alternativas institucionais e resig-
nado a medidas compensatórias, guia os movimentos aparentemente abs-

14
ENTENDIMENTO E TRANSFORM/1.ÇÁO ...

tratos dessa filosofia política especulativa. O filósofo é abandonado por


seu método nas mãos do contexto histórico que ele, por medo de rela-
tivismo, pretendera transcender. Ele se torna, infelizmente, a vítima
involuntária e autonomeada da história a que planejara escapar.

15
DEMOCRACIA E EXPERIMENTALISMO

Experimentalismo democrdtico e fetichismo institucional

Uma das razões pelas quais o enfraquecimento da imaginação institucional


importa reside no fato de ele produzir superstições hostis ao avanço do pro-
jeto democrático - o mais poderoso e duradouro conjunto de idéias sociais na
história moderna. Para compreendermos o poder desse projeto - a moeda
comum entre liberais e socialistas nos últimos dois séculos - devemos en-
tender a democracia como muito mais do que pluralismo partidário e
do que responsabilidade eleitoral do governo perante um eleitorado am-
plo. Visto por um ângulo maior e mais revelador, o projeto democrático
foi o esforço de tornar a sociedade um sucesso prático e moral, pela concilia-
ção da busca de dois gêneros de bens: o bem do progresso material, nos
liberando da servidão e da incapacidade e dando armas e asas aos nossos
desejos, e o bem da independência individual, nos libertando dos es-
quemas triturantes de divisão e hierarquia social. Tais esquemas nos im-
pedem de lidar uns com os outros como indivíduos inexauríveis em vez
de como titulares de lugares fixos numa determinada ordem coletiva.
Uma crença influente do século XIX sustentou que há uma convergên-
cia natural, conquanto uma convergência a longo prazo, entre esses dois
bens. Agora, lutamos para sustentar a fé - mais limitada e cética - de
que as buscas por esses dois bens não contradizem, como o fatalismo
conservador preferiria, uma à outra. O projeto democrático, liberto tanto
de otimismo dogmático quanto de pessimismo dogmático, é o esforço de
identificar as estruturas práticas que se situam na área de coincidência
possível entre as condições de progresso material e as condições de in-
dependência individual. A esperança de encontrar essa área de coinci-
dência faz sentido porque tanto o progresso material quanto a liberação
do indivíduo dependem da aceleração do aprendizado coletivo pelo
experimentalismo prático. Ambos exigem que sujeitemos práticas sociais

16
DEMOCRACIA E EXPERIMENTALISMO

a um ajuste experimental, e que avancemos em direção àquelas práticas


que nos encorajam a ajustá-las cada vez mais.
Um dos inimigos do experimentalismo democrático é o fetichismo
institucional: a crença de que concepções institucionais abstratas, como a
democracia política, a economia de mercado e uma sociedade civil livre, têm
uma expressão institucional única, natural e necessária. O fetichismo
institucional é um tipo de superstição que permeia a cultura contemporâ-
nea. Ele penetra cada uma das disciplinas mencionadas anteriormente, e
informa a linguagem e os debates da política comum. A idéia de esclareci-
mento, ora antiquada, seria, hoje, mais bem aplicada a esforços para afastar o
fetichismo institucional que vicia doutrinas ortodoxas em cada uma das
disciplinas sociais. Afastá-lo seria o trabalho em tempo integral de uma
geração de críticos sociais e cientistas sociais.
Hoje, a causa do experimentalismo democrático em todo o mundo tem
um foco de atenção específico. A questão dominante perante nós é como e em
que direção renovar o repertório variado porém análogo de estruturas
institucionais que as democracias industriais avançadas vêm partilhando desde
a última grande guerra. O velho conflito entre estatismo e privatismo, plani-
ficação e mercado, está morrendo. Está em via de ser substituído por um
novo conflito entre versões institucionalizadas alternativas do pluralismo po-
lítico e econômico. A premissa desse debate emergente é que democracias
representativas, economias de mercado e sociedades civis livres podem assu-
mir formas jurídico-institucionais muito diferentes daquelas que vieram a
predominar nas democracias industriais ricas. De acordo com essa crença, as
variações existentes entre as instituições do Estado e da economia dessas de-
mocracias representam um subconjunto de um espectro muito mais amplo
de possibilidades institucionais não aproveitadas.
A divergência institucional nas formas de democracias, mercados e
sociedades civis pode ser o resultado totalmente intencional de inven-
ção deliberada e consciente. Com mais freqüência, contudo, é o sub-
produto semi-escolhido de recombinações e variações institucionais
empreendidas sob pressão de ambição econômica e rivalidade política.
Os países mais bem-sucedidos, tanto em desenvolvimento econômico
como em auto-afirmação, foram com freqüência os mais persistentes
pilhadores de práticas e estruturas de todo o mundo. Esse experimenta-
lismo institucional involuntário ficou recentemente em maior evidência
em países, antes ou ainda comunistas, que reconstruíram suas economias,
bem como no grupo de frente do mundo em desenvolvimento. Percebe-

17
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

mos seus sinais, por exemplo, quando as exigências políticas e econômi-


cas práticas da privatização em massa conduzem os governos do leste da
Europa a experimentar a distribuição ampla de títulos de participação
na indl.Ístria e a concentração dessas cotas em fundos de investimento
incumbidos de supervisionar as empresas em que os detentores fragmentados
mantêm participação; ou quando, como na China da atualidade, tra-
balhadores, administradores e governos locais mantêm, em conjunto, di-
reitos residuais de propriedade em "empresas tipo distrito-vilà'; ou quan-
do, como no Brasil hoje, o direito do trabalho combina o princípio
contratualista de independência do sindicato da tutela do Estado com
o princípio corporativista de sindicalização automática e ampla de toda
a força de trabalho.
Entre os grandes inimigos espirituais do impulso experimentalista na
recriação de instituições está a superstição do fetichismo institucional que
tudo permeia: a identificação inibidora e injustificada de concepções institu-
cionais abstratas, como a democracia representativa e a economia de merca-
do, com um conjunto específico e contingente de estruturas institucionais.
Essa atitude fetichista em relação às estruturas institucionais da socieda-
de recebe estím,ulo de muitas das práticas discursivas dominantes das
ciências sociais, tais como sua característica incapacidade para reimaginar
descontinuidade e reinvenção institucional. A mesma atitude também
encontra apoio nos pressupostos operativos de grande parte da filosofia
política normativa, com sua separação mal-direcionada entre princípio
prescritivo e elaboração institucional. As decepções e desilusões da história
do século XX, que culminam no colapso do comunismo - o exemplo mais
dramático de inovação institucional deliberada nesse século -, parecem
confirmar a percepção de constrangimento histórico que inspira e expressa
o costume fetichista.

A tese da convergência

O fetichismo institucional adquire hoje uma respeitabilidade pseudo-


científica mediante uma idéia em grande medida implícita, mas persua-
sivamente influente: a noção da convergência para um conjunto único
de melhores práticas disponíveis no mundo todo. De acordo com essa
idéia, a evolução institucional do mundo moderno é mais bem entendi-
da como uma aproximação, por tentativa e erro, às únicas instituições

18
DEMOCRACIA E EXPERIMENTALISMO

políticas e econômicas que se provaram capazes de conciliar prosperida-


de econômica e um cuidado satisfatório com liberdade política e segu-
rança social. Variações nas estruturas institucionais de sociedades con-
temporâneas bem~sucedidas são reais, porém secundárias; se alguma
conclusão é possível, é que elas tendem a se tornar mais limitadas à
medida que as lições implacáveis da experiência deixam cada vez menos
espaço para a imaginação reconstrutiva.
A influência múltipla exercida por essa tese secreta é ainda mais notá-
vel porque a tese representa uma inversão surpreendente - um interlúdio
reacionário - no que foi a direção principal do pensamento social e histó-
rico desde o final do século XIX: a fuga do determinismo funcionalista e
evolucionista na teoria social e a crescente compreensão das maneiras pelas
quais as instituições práticas e as crenças reconhecidas de um povo se
juntam para moldar uma forma inconfundível de vida. Há duas objeções
básicas à tese reacionária da convergência. A primeira objeção é que, como
aprendemos dos fracassos explicativos de teorias como o marxismo, sem-
pre temos meios institucionais alternativos para a execução de objetivos
práticos; exigências funcionais não determinam completamente respostas
institucionais. O hegelianismo de direita da tese de convergência esconde
uma nítida inferiorização da contingência histórica e da liberdade huma-
na. A segunda objeção é que, como tanto Adam Smith quanto Karl Marx
entenderam, quando preferimos um conjunto de instituições econômicas
a outro, escolhemos também uma certa maneira de viver e de nos relacio-
nar com outras pessoas. Não podemos separar os contornos prático e
espiritual da nossa civilização.
A tese intelectualmente regressiva da convergência para as melhores prá-
ticas disponíveis no mundo reforça a autoridade do projeto político que
exerce maior influência no mundo hoje, especialmente no mundo em de-
senvolvimento: o projeto do neoliberalismo, às vezes também chamado con-
senso de Washington. É esse projeto característico, mais do que a idéia
abstrata de convergência, que se distingue hoje como o empecilho mais
ameaçador ao experimentalismo democrático. O neoliberalismo é o progra-
ma de estabilização macroeconômica sem prejuízo aos credores internos e
externos do Estado; de liberalização, entendida mais estreitamente como a
aceitação da concorrência internacional e a integração no sistema de comér-
cio mundial, e mais amplamente como a reprodução do direito tradicional
dos contratos e de propriedade do Ocidente; de privatização, significando a
retirada do Estado da produção e, no lugar disso, sua dedicação a responsa-

19
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

bilidades sociais; e do desenvolvimento de redes de segurança sociais cria-


das para compensar, retrospectivamente, os efeitos desniveladores e
desestabilizadores da atividade de mercado. Esse programa tem equivalentes
nas democracias industriais ricas: um, abertamente intolerante quanto à
atuação estatal na economia e hostil a direitos sociais e de trabalhadores; o
outro, uma versão apurada e liberalizada da socialdemocracia que está rapi-
damente se tornando o novo centro de gravidade da política Ocidental. Os
atributos característicos dessa socialdemocracia apurada são: primeiro, seu
compromisso contínuo com o Estado de bem-estar e com o investimento
em gente, tanto como um fim em si mesmo quanto como uma condição do
êxito econômico; segundo, um desejo de livrar a economia de mercado
regulada de constrangimentos estatistas, corporativistas e oligopolistas so-
bre a flexibilidade e a inovação econômica, principalmente na transição a
um estilo pós-fordista de organização industrial, aliado à simpatia em rela-
ção a associações de base e participação popular nos governos e organizações
sociais locais; e, terceiro, um conservadorismo institucional indisfarçado,
expresso num ceticismo sobre os grandes projetos de reconstrução
institucional e na aceitação das formas jurídicas atuais de economias de
mercado, democracias representativas e sociedades civis livres.
O limite exterior do alcance reconstrutivo desse programa é a idéia de
uma parceria entre governos e empresas que não questione nem a nature-
za jurídica do regime de propriedade nem a estrutura jurídica do Estado e da
sua relação com a sociedade civil. O programa da socialdemocracia apura-
da deve ser realizado dentro dos limites de um estilo específico de propriedade
e política. O regime de propriedade faz com que o acesso a recursos dependa
de decisões de administradores e especialistas financeiros que cuidam de fun-
dos privados de riqueza, grande parte da qual herdada ou dada em anteci-
pação de herança. A capacidade prática para alcançar economias de escala, os
direitos de livre acumulação e transmissão da riqueza pessoal e a organiza-
ção de rotinas de disciplina administrativa exercida em nome do direito de
propriedade acabam por parecer companheiros naturais e inseparáveis. O
regime político da política desenergizada favorece níveis baixos de
engajamento popular e submete ao conhecimento técnico o que retira do auto-
governo popular ativo, dissolvendo a escolha política numa série de discus-
sões políticas restritas e pouco relacionadas.
Os homens e mulheres práticos que governam as democracias industriais
ricas acreditam que seria irrealista energizar a política pela intensificação da
ação política popular centrada numa escolha entre programas bem-definidos

20
DEMOCRACIA E EXPERIMENTALISMO

de mudança estrutural. O resultado paradoxal de seu pragmatismo antiprag-


mático é, não obstante, negar a problemas coletivos suas soluções coletivas. A
política se degenera numa série de acertos parciais e restritos entre grupos
desigualmente organizados. Cada grupo se descobre preso no próprio enten-
dimento atual de seus interesses e de sua identidade. Como resultado, o
menosprezo à mudança estrutural se torna uma profecia que se autocumpre.

21
A PROMESSA PRÁTICA DO
EXPERIMENTALISMO DEMOCRÁTICO
Do atual debate sobre políticas públicas
à discussão programática

A forma e os limites de um debate sobre políticas públicas

O custo dessa resistência ao experimentalismo institucional deve ser


medido tanto em ônus tangíveis quanto em frustrações intangíveis: em
sofrimento e empobrecimento, e também no fracasso em soprar vida nova
ao projeto democrático, reinventando suas formas práticas. Considere,
por exemplo, a mais típica das discussões sobre políticas públicas da atua-
lidade na Europa e nos Estados Unidos: o debate sobre a relação entre
níveis salariais, garantia de emprego e competitividade. Ao conduzir esse
debate de seus pontos de partida conhecidos em direção a um território
inexplorado, meu objetivo é mostrar como podemos passar, passo a passo,
dos debates públicos correntes nas democracias industriais ricas para um
campo de experimentos institucionais que esses debates reprimem. Pode-
ríamos começar praticamente de qualquer outro lugar - como dos
problemas de conflito racial, da pobreza arraigada, da desindustrialização
e da decadência urbana ou da crise fiscal do Estado de bem-estar - e
avançar numa direção semelhante.
A discussão sobre níveis salariais, garantia de emprego e competitividade
nacional começa caracteristicamente com a observação de que os trabalhado-
res na maioria dos países europeus, principalmente aqueles que tradicional-
mente mantêm uma economia política corporativista, gozam relativamente
de maior estabilidade e salários mais altos do que nos Estados Unidos. Os
trabalhadores norte-americanos, por oposição, mantiveram um nível mé-
dio de emprego significativamente mais alto durante todas as subidas e
descidas do ciclo econômico. Para moderar a troca perversa entre maior
desemprego (como na Europa) e repressão salarial ou instabilidade no empre-
go mais severas (como nos Estados Unidos), ao mesmo tempo mantendo a
economia nacional competitiva, os mercados de trabalho - assim segue o

22
A PROMESSA PRÁTICA DO EXPERIMENTALISMO DEMOCRÁTICO

raciocínio - devem ficar mais flexíveis. Os recursos econômicos e educacionais


de que as pessoas precisam para se requalificar numa economia inovadora e
instável são genéricos, multifacetados e passíveis de transferência. Uma ta-
refa das mais importantes na parceria entre governos e empresas é combater
as formas rígidas de estabilidade no emprego e limitar os direitos estabeleci-
dos de segmentos relativamente privilegiados e organizados da força de tra-
balho. Os governos podem então se comprometer a organizar um sistema
nacional para treinamento permanente da mão-de-obra e para educação
durante toda uma vida útil de trabalho.

Inovação nas formas institucionais da economia de mercado

Essa conclusão caracteriza o limite exterior da posição progressista práti-


ca na política de hoje das democracias industriais. Suas deficiências já estão
ficando conhecidas. Corrigi-las exige um nível de inovação institucional de
alcance maior do que os progressistas práticos parecem prontos para supor-
tar ou até mesmo considerar. O investimento na educação se mostra insufi-
ciente, a não ser que as empresas se reestruturem de forma que se tornem
capazes de colocar em uso efetivo a mão-de-obra treinada. Além disso, se
· empreendimentos no desenvolvimento de empresas pós-fordistas e com tra-
balhadores altamente capacitados devem prosperar em número suficiente, e
se a oportunidade econômica é para ser mais amplamente democratizada,
deve haver mais rotas de acesso a recursos produtivos do que a forma
estabelecida da economia de mercado garante. As empresas devem ter acesso
a capital, tecnologia e assistência técnica especializada, pelo menos em ter-
mos temporários e condicionais. Devem ser capazes de obter tais recursos
de organizações livres dos constrangimentos do lucro a curto prazo. N egó-
cios grandes e de estilo pós-fordista não devem poder levar vantagem na
competição com tais empresas pela capacidade de se proteger contra a ins-
tabilidade nos mercados em que operam mediante mecanismos como a
criação interna de fundos de investimento e a divisão da sua força de traba-
lho em empregados de longo prazo e empregados temporários. Empresas
menores devem ser capazes de combinar as vantagens de flexibilidade e de
escala pela associação, com apoio estatal, em redes de competição coopera-
tiva. A ajuda governamental para esse e outros aspectos de reconstrução
industrial pode funcionar, por sua vez, pela intervenção de fundos sociais e
centros de apoio que gozem de considerável autonomia. Tais corpos, inter-

23
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

mediários entre o Estado e a empresa, poderiam experimentar formas alter-


nativas de alocação descentralizada de capital, ao mesmo tempo em que
continuariam a enfrentar a disciplina da concorrência e da responsabilida-
de financeira.
Essas inovações institucionais sobrepostas não podem se desenvolver to-
talmente, por sua vez, sem transgredir e transformar o sistema tradicional de
direitos de propriedade. O direito de propriedade unitário, conferindo poder
concentrado ao proprietário ou seu representante, daria gradualmente lugar
a direitos de propriedade fragmentários, condicionais e temporários, conce-
dendo direitos residuais de controle e direitos aos retornos dos bens produti-
vos a uma gama de tipos diferentes de participantes, incluindo fundos sociais,
governos locais, pequenos empresários e trabalhadores.
Um regime de propriedade resultante de tal seqüência de mudança cumu-
lativa não é reconhecível nem como socialismo nem como capitalismo porque
deixa de se conformar à lógica jurídica de um direito de propriedade unitá-
rio, mantido pelo proprietário individual ou pelo Estado. De fato, um dos
seus méritos seria permitir que diferentes sistemas de contrato e direito de
propriedade -quer dizer, diferentes conjuntos de mecanismos jurídicos para
a alocação descentralizada de poder e acesso econômico - coexistissem na
mesma economia. Suas conseqüências práticas poderiam ser, então, avalia-
das experimentalmente.
Tal regime de direitos de propriedade desmontados e recombinados cria
uma estrutura dentro da qual o julgamento social da organização e conse-
qüências da atividade econômica - objetivo principal do antigo programa
socialista - pode ser conciliado com uma descentralização ainda maior da
oportunidade e da iniciativa econômicas do que o sistema convencional
de direitos de propriedade permite. O resultado é moderar a tensão entre
a exigência prática de economias de escala e o compromisso com a com-
petição, embora à custa de limitar, em termos de tempo e escopo, o poder
de que o proprietário tradicional desfruta. Mais importante, tal direção
de reforma estabelece uma base mais promissora do que o sistema herda-
do de direitos de propriedade para a solução do problema que jaz no
cerne do crescimento econômico, em particular, e do progresso prático,
em geral.
O progresso prático depende tanto de inovação quanto de cooperação.
Embora a inovação bem-sucedida possa requerer trabalho em equipe, ela
ameaça invariavelmente subverter os hábitos e expectivas em que práticas
estabelecidas vieram a se apoiar. O problema fundamental da elaboração

24
A PROMESSA PRÁTICA DO EXPERIMENTALISMO DEMOCRÁTICO

institucional para o crescimento é desenvolver as estruturas com maior chance


de incitar e suportar inovação contínua já que elas combinam coopera-
ção com competição, reconhecem os interesses de todos os envolvidos no
esforço comum e asseguram garantia individual básica em meio a mudança.
Por esse critério mais importante - e mais prático - o regime convencional
de propriedade é simplesmente rudimentar demais. Sua justificação histó-
rica reside numa era passada em que a poupança sobre o consumo - o que os
marxistas chamaram extração de mais-valia - ofuscava a cooperação e a ino-
vação como um constrangimento ao crescimento.

A estrutura de classes das democracias industriais

Até aqui, examinei como precisaríamos reorganizar as empresas e as


relações entre empresas, trabalhadores e governos para que o investimento
em gente alcance seus resultados almejados. De uma outra direção, pode-
mos começar a colocar pressão sobre os limites do arranjo institucional
estabelecido perguntando como os Estados poderiam obter os recursos
necessários para realizar tais investimentos sociais numa escala maciça e
de um jeito que contrarie vantagens herdadas de oportunidade econômica
e educacional. A desintegração implacável do marxismo e de outras formas
de teoria de esquerda instiga algumas pessoas a esquecer que todos nós
continuamos a viver em sociedades de classes, em que disparidades seve-
ras de privilégio herdado conformam as oportunidades de vida das pessoas.
O marxismo pode estar morto, mas a divisão de classes está tão bem quanto
sempre esteve.
Nos Estados Unidos, por exemplo, estudos econométricos calculam que
mais da metade dos bens mantidos por pessoas com menos de cinqüenta
anos podem ser atribuídos a antecipação de herança por doações inter vivos.
Quando acrescentamos a disparidade de oportunidade educacional, o efeito
conjunto se torna esmagador. Os Estados Unidos, onde a maioria das pessoas
quando perguntada se descreve como "classe média'', têm, como outras de-
mocracias contemporâneas, uma estrutura de classes relativamente simples
e direta, composta de quatro classes principais: uma classe profissional e de
negócios, uma classe de pequenos empresários e autônomos, uma classe
de trabalhadores, com um segmento de funcionários administrativos e um
segmento de operários manuais, e uma classe marginalizada. Estudos histó-
ricos revelam que a única forma maciça e permanente de mobilidade social

25
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

nos Estados Unidos desde o final do século XIX foi a passagem do seg-
mento de operários manuais para o de funcionários administrativos na
classe de trabalhadores: os filhos de operários e agricultores se tornaram
funcionários administrativos quase tão despossuídos e igualmente impo-
tentes como seus pais.
A resistência da estrutura de classes é relevante para meu argumento
sobre o aprofundamento institucional do debate convencional sobre políti-
cas públicas de diversas maneiras. O compromisso com a flexibilidade, ino-
vação e acesso a uma economia de mercado vibrante e democratizada não
pode ser conformado à designação impiedosa de indivíduos a um destino
de classe predeterminado. Tampouco, considerando a questão do ponto de
vista do fundamento fiscal das políticas públicas, poderíamos jamais espe-
rar produzir financiamento adequado para investimento em gente sem
reestruturar o direito, de modo que um direito público a herdar da socieda-
de viesse a suplantar um direito privado a herança da família. De maneira
mais geral, a inflexibilidade de hierarquias de classe joga uma luz retros-
pectiva perturbadora sobre as instituições econômicas e políticas que conti-
nuam a sustentá-las e a conservar sua marca. O conservadorismo institucional
começa a parecer desvirtuado se seu efeito é a conformação a estruturas que
constrangem o experimentalismo democrático porque reproduzem privilé-
gios de classe.
Contas sociais estabelecidas pela sociedade em nome de cada indíviduo
deveriam, portanto, substituir progressivamente a herança privada. Uma
parcela dessas contas representaria pretensões incondicionais oponíveis
ao Estado para a satisfação de necessidades mínimas e universais. Outra
parcela seria adequada à circunstância individual. E ainda outra parcela
poderia ser concedida como uma recompensa por potencial comprovado
ou realizações. Uma parte poderia consistir na provisão de serviços por
um aparato público unitário, no modelo tradicional do Estado de bem-
estar. Outra parte poderia resultar em pontos a serem gastos pelo indiví-
duo, por sua própria vontade ou com a aprovação de curadores, entre
prestadores de serviço concorrentes. O propósito principal de tais contas
seria a educação, orientada para a aquisição de habilidades práticas e
conceituais e que continuasse durante toda uma vida ativa. A escola
assumiria a sua missão predpua numa sociedade democrática de resga-
tar a criança e o adulto de sua família, sua classe, seu país, seu período
histórico e mesmo da sua personalidade, e de prover-lhe acesso a experiên-
cia desconhecida.

26
A PROMESSA PRÁTICA DO EXPERIMENTALISMO DEMOCRÁTICO

A justificação fundamental de tais contas é a própria razão de ser dos


direitos fundamentais num regime de experimentalismo democrático. Se
ampliarmos eficazmente a agenda da política de curto prazo, favorecendo
inovação permanente no nível dos detalhes e mudança estrutural no nível do
conjunto, deveremos retirar alguns assuntos dessa agenda. As pessoas devem
estar e se sentir seguras num abrigo de interesses vitalmente protegidos, sob
pena de que sua insegurança as conduza a abandonar sua liberdade recém-
instituída. Elas também devem ser dotadas dos instrumentos econômicos e
culturais de autodeterminação individual e coletiva. A relação de direitos
fundamentais e contas sociais com o experimentalismo acelerado que eles
tornam possível é como a relação de amor de um pai com a vontade do filho
de criar e recriar a si mesmo arriscando-se em experimentos morais.
Tal direção de mudança, contudo, pode realizar a promessa do liberalis-
mo e da socialdemocracia apenas pelo repúdio a suas formas institucionais
convencionalmente aceitas. Assim, a substituição da herança privada por
contas sociais implica um mecanismo de acumulação, poupança e investi-
mento diferente do que prevaleceu sob o regime de direito de propriedade
tradicional. Ela também nos convida a desenvolver, pela fragmentação e recom-
binação de direitos de propriedade, meios novos e variados para a alocação
descentralizada e competitiva de recursos.

Inovação nas formas institucionais da democracia política

A discussão precedente centrou-se em mudanças nas instituições eco-


nômicas. Contudo, não podemos atingir nem sustentar tais mudanças
sem também inovar nas formas institucionais da democracia e da socieda-
de civil. Uma economia de mercado democratizada não pode ser fundada,
nem podem suas instituições manter sua integridade, a não ser que a
estrutura constitucional do Estado favoreça, ao invés de inibir, a prática
permanente de reforma radical; que o arcabouço jurídico da política par-
tidária sustente um nível alto de participação política popular; e que a
sociedade civil ganhe uma estrutura de direito público que incite sua
auto-organização com um repertório mais rico do que o direito privado
de contratos e sociedades pode oferecer.
A versão há tempos vencedora da política democrática no Ocidente tem
dois componentes principais: uma preferência por estilos de organização cons-
titucional que f~m a reforma depender de consenso e uma forma de organi-

27
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

zação da política que favorece a resignação política das pessoas, interrompida,


rara e imprevisivelmente, por interlúdios de crise social e entusiasmo coleti-
vo. O constitucionalismo do impasse deliberado, reduzindo as funções
transformadoras do poder estatal, encontra sua expressão mais direta no meca-
nismo de freios e contrapesos do presidencialismo de estilo americano. Ele
não é menos claramente manifesto, contudo, em formas de governo parla-
mentarista que concentram a ação política numa classe de políticos profissionais
defendendo interesses desigualmente poderosos e organizados num pano de
fundo de desmobilização política popular. Práticas e estruturas hostis à
mobilização política popular sucederam, no desenvolvimento da política mo-
derna, às qualificações exigidas para o sufrágio e ao recurso a vários níveis
intermediários de representação popular, mecanismos destinados pelo libe-
ralismo protodemocrático do começo do século XIX a refrear a agitação
popular e tornar a propriedade segura. As estruturas hostis à mobilização
que substituíram esses mecanismos protodemocráticos asseguraram que,
contrariamente às expectativas de radicais e conservadores, o sufrágio univer-
sal se provaria compatível com hierarquias de classe. Tais estruturas conti-
nuam a moldar um estilo de história política em que explosões de reforma
populista antiinstitucionais vêm e vão, deixando as formas básicas do Estado
e da economia relativamente inalteradas, ou modificando-as somente sob
pressão de crise extrema.
A direção de mudança nas instituições econômicas esboçada anteriormente
não consegue se conciliar por muito tempo com essas inibições herdadas à
democracia. Embora possamos começar a introduzir tais reformas econômi-
cas dentro dos limites da democracia não tão democrática que herdamos, não
podemos completar ou conservar as reformas dentro desses límites. As refor-
mas demandam urna vigilância permanente sobre as conseqüências da ativi-
dade econômica e sobre o surgimento de variedades novas e imprevistas de
privilégio e rigidez. Além disso, a reconstrução dessas instituições políticas
convencionalrnente aceitas deve ser um foco de atenção por si próprio, esten-
dendo o programa do experimentalismo democrático à reorganização do Es-
tado e da disputa eleitoral pelo poder do Estado. Em vez de começarmos por
reformas econômicas e sermos conduzidos por elas à necessidade de reformas
políticas auxiliares, podemos, da mesma forma, dentro da lógica descontínua
do desenvolvimento não-linear, nos mover na direção oposta. A escolha da
seqüência depende da circunstância.
Um direito constitucional favorável ao engajamento do eleitorado uni-
versal na resolução rápida de impasse entre órgãos do Estado deve tornar o

28
A PROMESSA PRÁTICA DO EXPERIMENTALISMO DEMOCRÁTICO

lugar de um direito constitucional simpático à desaceleração da política.


Entre os mecanismos de tal constitucionalismo alternativo podem estar a
combinação de formas pessoais plebiscitárias e parlamentares de poder, o
recurso a plebiscitos e referendos e a facilidade para convocar eleições ante-
cipadas pela iniciativa de qualquer poder do Estado. Uma estrutura jurídi-
ca da política eleitoral favorável a um aumento contínuo do nível de
mobilização política popular pode tomar o lugar da que transforma a polí-
tica eleitoral numa interrupção ocasional e menor da vida prática. Entre
seus instrumentos podem estar regras de voto obrigatório, livre acesso
de uma gama ampla de partidos políticos e movimentos sociais aos meios de
comunicação de massa, o financiamento público de campanhas políticas e o
fortalecimento de partidos políticos.

Inovação nas formas institucionais da sociedade civil

A contrapartida a essa energização e aceleração da política é a organiza-


ção da sociedade civil. Um sociedade desorganizada ou organizada desi-
gualmente não pode se reinventar. Sua discussão de futuros alternativos
, viria apaticamente de livros, em vez de vigorosamente dos experimentos e
debates localizados de movimentos e associações concretos.
Abandonar as exigências organizacionais da sociedade civil aos instru-
mentos tradicionais do direito privado significa resignar-se a organização
marcadamente desigual. Os mecanismos facilitadores do contrato e do di-
reito privado serão usados por aqueles que, em certo sentido, já são organi-
zados. Os organizados podem encontrar em sua associação juridicamente
sancionada reforço para sua vantagem preexistente.
Quando a força de trabalho da sociedade permanece segmentada hierarqui-
camente, a sindicalização tradicional, por exemplo, na forma de um regime
contratualista de direito do trabalho, terá, com maior probabilidade, vida ativa
nas mãos dos trabalhadores relativamente privilegiados que mantêm empregos
na indústria de capital intensivo. Uma vez sindicalizados, esses trabalhadores
descobrirão que partilham interesses comuns com seus empregadores contra a
maioria desorganizada. Eles podem desenvolver práticas cooperativas com
os chefes no local de trabalho que parecerão tornar a sindicalização supér-
flua. A sindicalização parcial se provará, no final, a transição para um estágio
em que trabalhadores relativamente privilegiados não mais desejarão sindi-
catos, e trabalhadores relativamente desprivilegiados nunca os instituirão.

29
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

O problema nessa história admonitória não é o triunfo da cooptação


cooperativa sobre a rivalidade militante, mas a grande sombra que a desi-
gualdade joga sobre os mecanismos tradicionais de direito privado para a
organização da sociedade civil.
Para corrigir esse problema, a sociedade civil pode adquirir elementos de
uma organização de direito público. Tal estrutura pode ser organizada com
fundamento em vizinhança, trabalho ou preocupações e responsabilidades
compartilhadas. Pode criar normas e redes de vida em grupo fora do Estado,
paralelas ao Estado e inteiramente livres de influência ou tutela estatal.
Grupos e movimentos diferentes podem competir por uma posição nesses
múltiplos arranjos da sociedade civil da mesma forma que partidos políticos
competem por um lugar no governo. Assim, teríamos enfim logrado êxito
em conferir conteúdo prático e progressivo a uma das ambições do pensa-
mento jurídico europeu do período entreguerras - a ambição de desenvolver
um direito social distinto tanto do direito do Estado como do direito da
iniciativa privada. Em tal direito, a prática fortalecedora de associação volun-
tária encontraria um lar adequado.

30
A IMAGINAÇÃO DE ALTERNATIVAS
Pressupostos socioteóricos
do experimentalismo democrático

Primeiras e segundas naturezas na vida em sociedade

Esses exemplos de experimentalismo democrático sugerem como - dos


pontos de partida dos debates tradicionais de políticas públicas e dos confli-
tos de interesse convencionais - podemos nos dirigir a níveis sucessivos de
reimaginação e reconstrução institucional. A força animadora pode ser uma
frustração com a incapacidade para satisfazer interesses tangíveis dentro dos
limites impostos por estruturas estabelecidas. Ou pode ser uma impaciência
com o contraste entre ideais democráticos e realidades práticas. Qualquer
que seja sua fonte e quem quer que seja seu agente, ela nos força, a cada passo
no caminho, a remoldar nossos interesses e reinterpretar nossos ideais. A rela-
ção interna entre pensar sobre interesses e ideais e pensar sobre instituições
ou práticas não é apenas um método de investigação ou uma estratégia de
discurso; é um atributo definidor da transformação na história.
Mover-se numa certa direção de mudança institucional significa, impli-
citamente, preferir algumas variedades de experiência individual e coletiva a
outras. Uma das virtudes de um conjunto de instituições - com a qual um
democrata e um experimentalista deveriam estar especialmente preocupa-
dos - é a de ser relativamente universal em sua abertura à diversidade de
experiência. Nenhuma ordem institucional, contudo, pode ser neutra entre
formas de vida; ela pende a balança numa direção ou noutra. A falsa meta da
neutralidade obstrui o caminho do objetivo verdadeiro da diversidade experi-
mental por ser dominada pela veneração fetichista do que deveriam ser consi-
deradas estruturas falíveis e transitórias.
Se a política é destino, ela ganha seu poder decisivo impondo sobre a
sociedade uma segunda natureza de instituições arraigadas e crenças re-
conhecidas cujas origens no conflito e contigência então esquecemos. O
trabalho cognitivo do pensamento social e o trabalho prático do experi-
mentalismo democrático se uniram na história moderna para repelir esse

31
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

fatalismo. Seu esforço conjunto está, agora, em dificuldade. Nos encon-


tramos privados dos instrumentos intelectuais com que podemos enten-
der e reimaginar as estruturas formadoras institucionais e conceituais de
nossas sociedades. Da mesma maneira, alcançamos um momento na his-
tória da política prática em que o projeto democrático se afundou em
compromissos institucionais que traem ideais sociais proclamados e frus-
tram interesses de grupo reconhecidos. Como resultado desse duplo
interlúdio na tarefa do esclarecimento e da emancipação, corremos o risco
de esquecer o caráter construído da nossa segunda natureza. Assim, por
exemplo, os baixos níveis de engajamento político nos Estados Unidos
podem ser atribuídos a aspectos inexoráveis e pré-políticos da cultura
norte-americana em vez de a estruturas politicamente escolhidas, reforça-
das pelos hábitos coletivos a que dão origem.
As respostas dadas a mil perguntas pouco ligadas entre si sobre estrutu-
ras práticas dão a uma sociedade sua forma. Há razões pelas quais essas
perguntas são respondidas, num determinado lugar e momento, de um
jeito e não de outro. Elas não são, contudo, os tipos de razões que consistem
na revelação da forma jurídico-institucional única e necessária de demo-
cracias, mercados e sociedades civis livres, ou na descoberta dos únicos veícu-
los institucionais plausíveis para ideais sociais proclamados ou interesses de
grupo reconhecidos. Elas explicam a vitória localizada de algumas soluções
sobre outras sem negar a liberdade - ou a necessidade - para reimaginação
ou reorganização posterior. Elas reafirmam o caráter construído e, portanto,
a revisabilidade da nossa segunda natureza.

Rotina e revolução

Alguns podem objetar que a mudança estrutural é um subproduto de


forças que não podemos esperar dominar ou guiar: períodos semi-revolucio-
nários de mobilização e conflito causados por crises imprevistas e não pla-
nejadas. Dessa idéia surge a visão de. que mudança jurídico-institucional, em
particular, e mudança social, em geral, ocorrem em momentos excepcionais
de renovação frenética e gerada por crises. O máximo que a imaginação
institucional, no pensamento jurídico ou na economia política, pode alme-
jar é sistematizar e completar, durante as gerações que se seguem ao mo-
mento mágico, a obra criativa porém caótica daquele momento. Assim, o
último desses períodos foi a reconstrução socialdemocrata - conhecida nos

32
A IMAGINAÇÃO DE ALTERNATIVAS

Estados Unidos como o New Deal - empreendida durante e após os anos


de depressão mundial e guerra mundial.
Essa visão, contudo, sofre de vários defeitos conexos, e cada um dos
quais trai a influência contaminadora do fetichismo institucional sobre os
pretensos devotos do pensamento democrático. Primeiro, a relação entre
crise e reconstrução se altera na história. Da mesma maneira como algumas
formas de organização e discurso podem ser concebidas para inibir desa-
fio e mudança e precisam ser rompidas antes que possam ser flexionadas,
outras podem incitar sua própria e gradual revisão. Um experimentalista
democrático não vai ficar esperando pelo próximo momento mágico. Em
vez de nos ver coroados pela história, ele vai insistir que nos coroemos a
nós mesmos.
Segundo, a experiência reconstrutiva não é um episódio misterioso e im-
penetrável. Idéias a informam e moldam seu legado. A menos que lutemos
por idéias alternativas sobre as formas institucionais práticas de realização de
nossos interesses e ideais, nos encontraremos presos às idéias que por acaso
estejam à mão no momento da oportunidade transformadora.
Terceiro, o supostamente calmo momento subseqüente ao interlúdio
carismático e revolucionário nunca é tão rotineiro quanto parece. As ques-
tões que foram aparentemente definidas no período instituidor são cons-
tantemente reabertas; se é que já houve, em algum momento, um contra-
to incompleto, este é o contrato que os vitoriosos celebram com os derrotados
quando fundam um novo arranjo institucional. Por exemplo, é impossível
dizer se a política antidiscriminatória orientada por categorias de raça e
gênero em vez de por desigualdades reais, ou se a negociação de acordos
de comércio com outros países garantindo a mobilidade transnacional do
capital ao mesmo tempo em que fortalece o aprisionamento nacional da
mão-de-obra ou se a delegação de funções de bem-estar coletivo a
prestadores privados - todas obsessões características do debate jurídico e
de políticas públicas norte-americanos - representam realizações ou trai-
ções do acordo do N ew Deal. A invocação do contrato original em tais
contextos é sem sentido e inútil.

Interesses reais e mudança estrutural

De acordo com outra objeção, a concentração da atenção no ajuste


institucional contínuo e cumulativo a serviço do experimentalismo demo-

33
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

crático implica a imposição de um plano racionalista sobre uma huma-


nidade que está sempre dedicada a alguma outra coisa. Quando não está
ocupada com a luta diária por sobrevivência, consumo e promoção no
emprego, está absorvida no choque de identidades nacionais e de grupos.
Essa linha de raciocínio, contudo, interpreta erroneamente a relação sutil
e paradoxal entre a política de identidades de grupo e as falhas do experi-
mentalismo democrático.
Podemos explorar melhor essa relação no contexto do próprio naciona-
lismo. O traço característico das formas contemporâneas de auto-afirmação
nacional, por comparação à consciência de originalidade coletiva em períodos
históricos anteriores, reside no fato de elas expressarem com mais freqüência
uma vontade de diferença diante da diminuição da diferença real do que
representam uma devoção segura a um modo de vida singular. À medida
que um povo passa a se assemelhar a seu vizinho em costume e crença
verdadeiros, ele odeia ainda mais seu vizinho - por ser igual, não por ser
diferente. Ele odeia em si mesmo a experiência de impotência coletiva na
produção de uma civilização inconfundível. A rivalidade implacável de
economias e de culturas produz um fervilhamento e uma recombinação
mundiais de práticas institucionalizadas e crenças reconhecidas: qualquer
coisa experimentada num lugar poderia, a qualquer momento, ser trans-
. plantada para outro. As sociedades mais bem-sucedidas são as melhores
pilhadoras e recombinadoras.
O resultado são identidades coletivas esvaziadas e tornadas abstratas.
Precisamente porque essas identidades coletivas manifestam a vontade de
diferença mais do que uma diferença autêntica, elas não são, como conjun-
tos reais de costumes e crenças costumeiras, porosas, negociáveis e revisáveis.
Elas se tornam, em vez disso, os objetos de uma fé intransigente. Embora
essa inversão de identidade e diferença possa estar mais claramente mani-
festa no nacionalismo, ela também se aplica à política de reconhecimento de
grupo dentro de nações - a política que combina reivindicações de avanço
social prático com reivindicações de voz e respeito pela cultura do grupo
desfavorecido. A intensidade dessa política de grupismo é freqüentemente
proporcional à evasividade das diferenças culturais a que ela deveria servir.
O remédio para o ódio da impotente vontade de diferença coletiva é,
paradoxalmente, o fortalecimento da capacidade coletiva para produzir di-
ferença real. Uma forma singular de vida deve, no final, assumir forma
institucional. Se ela não consegue viver na prática, ela morrerá na imagina-
ção. Inversamente, a natureza de instituições políticas, econômicas e sociais

34
A IMAGINAÇÃO DE ALTERNATIVAS

vai favorecer ou desfavorecer a expressão institucional da originalidade cole-


tiva. A capacidade para essa expressão depende da prática permanente de
reforma estrutural. A experiência resultante de aptidão coletiva tem uma
chance melhor de sustentar grandeza e tolerância do que a frustrada e mal-
direcionada vontade de diferença. Além disso, os costumes e crenças que ela
produz podem assimilar compromisso e influência precisamente porque
aqueles costumes e crenças são verdadeiros. Por todas essas razões, a política
de identidades nacionais e de grupos não é uma alternativa ou um antídoto
ao trabalho do experimentalismo democrático. Ela mostra, por sua desorien-
tação, por que esse trabalho é importante.

35
AS DISCIPLINAS INSTRUMENTAIS DO
EXPERIMENTALISMO DEMOCRÁTICO

As disciplinas irmãs de imaginação institucional

O progresso do instrumentalismo democrático requer práticas de ima-


ginação institucional. Duas disciplinas irmãs devem informar tais práticas:
a economia política e a análise jurídica como práticas paralelas de imagina-
ção institucional. Nenhuma dessas disciplinas existe de uma forma que não
seja fragmentária e incipiente. Os aparatos conceituais para desenvolvê-las,
não obstante, estão à mão. Além disso, seu desenvolvimento responde a
perplexidades e oportunidades intelectuais internas às situações atuais da
teoria econômica e jurídica. Pode haver conflito permanente embora não
insuperável entre os bens do progresso material e da independência indivi-
dual. Contudo, não há conflito entre serviço ao experimentalismo demo-
crático e entendimento no direito e na economia. O fetichismo institucional
é tão perigoso para o entendimento quanto para a experimentação.
Essas práticas paralelas de imaginação institucional têm mais chance de
prosperar num ambiente em que preocupação social e investigação persis-
tente são vistas como aliadas naturais e em que pensadores tentam trilhar
o estreito caminho entre a submissão às ortodoxias intelectuais dominantes e o
refúgio num abrigo de heresia inquestionada e autocelebratória. Desde a
prática intelectual dos filósofos radicais do começo do século XIX, não vi-
mos tais hábitos mentais unidos integralmente no estudo e na crítica da
sociedade. Em campo após campo, a posição central veio a ser ocupada por
uma doutrina passivo-submissa. Sob o disfarce praticamente transparente
de um aparato pseudocientífico, essa doutrina supõe a naturalidade, a neces-
sidade e a racionalidade das estruturas sociais que acabaram por prevalecer
na história das democracias industriais. Ao mesmo tempo, .a idéia de uma
contraciência, jogando de acordo com regras diferentes e envolvida num
debate diferente, no estilo do marxismo e do hegelianismo do século XIX,
não deve mais ser plausível. Há, no final, apenas um mundo de debates, da

36
AS DISCIPLINAS INSTRUMENTAIS DO EXPERIMENTALISMO DEMOCMTICO

mesma forma como há apenas um mundo de experimentação institucional.


Devemos de alguma maneira lutar para sustentar uma cultura de crítica
que confronte essas ortodoxias dominantes ao mesmo tempo que se recuse
a deixá-las moldar a agenda de investigação e discussão.
As disciplinas irmãs de pensamento institucional devem se mover num
espaço intelectual conformado pelos critérios minimalistas de entendimento
descritos nas páginas iniciais deste livro. Devem identificar a influência
formadora de instituições e crenças, reconhecendo ao mesmo tempo a natu-
reza substituível e débil, embora freqüentemente resiliente, desses contextos
formativos. Devem, também, reconhecer a relação interna entre pensar sobre
interesses ou ideais e pensar sobre instituições ou práticas, e transformá-la
numa oportunidade intelectual e política.

A inexistência da economia institucional

Este livro propõe uma maneira de colocar a análise jurídica a serviço do


experimentalismo democrático. Para esse fim, explora em detalhe a natureza
e os limites de uma forma de análise jurídica que se tornou crescentemente
influente por todo o mundo. Uma compreensão desse estilo de análise jurídi-
ca nos fornecerá os instrumentos para modificá-la, transformando o pensa-
mento jurídico numa união entre realismo social e profecia social. O livro
então termina com a sugestão de como podemos usar essa prática modificada
de análise jurídica para imaginar nossos futuros alternativos, assim cumprin-
do a promessa feita nestas páginas iniciais. Antes de nos voltarmos para essa
tarefa, examinemos o impasse daquela que deve ser a outra grande disciplina
de imaginação institucional: a economia política.
Não existe uma ciência econômica verdadeiramente institucional. O
institucionalismo econômico alemão do século XIX e norte-americano do
começo do século XX desapareceu sem produzir uma prática intelectual
capaz de levantar uma ameaça séria à análise de equilíbrio macroeconômico
geral. A teoria do desenvolvimento econômico dos anos 1950 e 1960, que
trabalhou na direção de um entendimento estrutural da mudança econô-
mica, nunca resolveu a ambigüidade da apresentação de si própria como
uma divisão inferior da economia ortodoxa ou uma alternativa crítica a ela.
Todos esses começos frustrados de uma economia institucional retiraram
muito de energia de sua direção programática: a vontade de rechaçar, de
uma maneira ou de outra, a definição institucional convencional da econo-

37
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

mia de mercado. A lição do seu fracasso é a de que uma intenção programática


não dá em nada nos estudos sociais e históricos, a não ser que possa se
fundar tanto sobre uma visão poderosa como sobre um método reproduzível:
uma visão de como as coisas são e de como podem vir a ser, um método para
compreensão do real à luz do possível.
Aconseqüência desse fracasso foi a trivialização ou a mistificação de ins-
tituições pelas formas dominantes de análise econômica. Três maneiras de
eliminação do problema das instituições têm sido predominantes.
A teoria econômica pura adotou simplesmente uma postura de agnosti-
cismo causal e normativo com relação às instituições econômicas, esperando
que os pressupostos institucionais fossem estipulados externamente, por
alguma prática alternativa de descrição ou explicação, antes que o aparato ana-
lítico pudesse ser dirigido ao entendimento do comportamento econômico
num contexto específico. A idéia de Coase de que o comportamento maxi-
mizador trata estruturas institucionais como qualquer outra parte do seu
plano fático - para serem consideradas e contornadas negocialmente, salvo
pela categoria notável e elástica dos custos de transação - pareceu validar
esse banimento do institucional ao mundo sombrio das condições-limite
estipuladas e das variáveis empíricas da atividade de mercado.
As formas ideologicamente mais reacionárias e ferozes da economia
política identificaram um sistema específico de instituições de mercado e
de direito privado como a forma natural e necessária da economia de
mercado e, por extensão, como o suporte indispensável desta, o arcabouço
puro de coordenação entre agentes do mercado. Estudantes da história
do pensamento jurídico reconhecerão nessa idéia uma volta à concepção
característica da ciência jurídica do século XIX: a de que uma sociedade
livre tem uma forma jurídico-institucional definida e predeterminada,
que a análise revela e a observação confirma. O fato de a história do pen-
samento jurídico moderno ter sido em grande parte a história da subversão
e da auto-subversão dessa idéia torna ainda mais surpreendente o fato de
ela continuar a viver na ciência econômica. Mas com certeza ela vive, a
ponto de penetrar as versões contemporâneas mais influentes da história
institucional da economia de mercado. Essas versões representam o movi-
.menta da história econômica como uma convergência, por descoberta,
tentativa e erro, à·s práticas institucionais e regimes jurídicos que são, de
fato, exigidos por uma economia de mercado. O sistema de direito de pro-
priedade é a expressão máxima desse resultado evolucionário. Intervenções
políticas nessa ordem institucional merecem resistência cética porque elas

38
AS DISCIPLINAS INSTRUMENTAIS DO EXPERIMENTALISMO DEMOCRÁTICO

provavelmente serão caras, autofrustrantes e subvertedoras da liberdade.


O que importa é esquecer que a natureza institucional e social caracterís-
tica de cada uma dessas ordens é ela mesma produto singular e surpreen-
dente de conflito ideológico e prático.
A maneira mais insidiosa de reprimir a importância das instituições
é a que encontramos arraigada na prática teórica dos discípulos norte-
americanos de Keynes (que tornou sua doutrina palatável politicamente
ao esvaziá-la da maior parte de seu conteúdo político) e na aplicação
convencional da análise econômica a políticas públicas. A técnica, aqui,
é procurar leis gerais em correlações entre agregados econômicos de grande
escala, como os níveis de poupança, emprego e investimento, reconhe-
cer em princípio que a estabilidade dessas correlações depende de uma
multidão de condições institucionais pressupostas e, então, desconsiderar
essa admissão na prática efetiva da análise econômica e da discussão de
políticas públicas.
Enquanto a política permanece afastada do experimento institucional e
de uma mudança estrutural, a negação dessa concessão na prática adquire
aparência de plausibilidade. As correlações entre os fenômenos econômicos
agregados mantêm uma aparência de leis inexoráveis que nunca merece-
ram. As estruturas institucionais começam a parecer a forma natural de
uma economia de mercado regulada e moderna.
As formas de negação e superstição que acabei de enumerar não são
um desvio ocasional na história da teoria econômica recente. Elas estão
muito próximas do próprio coração da coisa. Dedicação a elas conquista
honra e glória.
Uma economia verdadeiramente institucional não seria o estudo do
comportamento econômico e de relações constantes entre agregados eco-
nômicos num fundo institucional dado e desconsiderado, nem seria a
Coruja de Minerva batendo suas asas sobre a marcha histórica triunfante
da única economia de mercado verdadeira rumo à difusão e à dominância
mundial. Ela tomaria como seu objeto o estudo das próprias instituições
econômicas, de suas causas e conseqüências, de por que elas são como são
mas poderiam ser diferentes, da variedade oculta de suas formas existen-
tes e das oportunidades transformadoras que essas variações existentes ofe-
recem e escondem. Tal economia institucional requer uma relação muito
mais íntima e contínua entre análise formal, descrição empírica e conjectura
causal do que as práticas analíticas dominantes de teoria econômica permi-
tiram. Ela somente aumentaria o alcance explanatório da teoria econômica

39
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

ao furtar um pouco de sua auto-suficiência formal. Pois ela seria parte de


uma atenuação das identidades metodológicas distintas das diferentes dis-
ciplinas que lidam com a estrutura da sociedade. O parceiro mais próxi-
mo dessa economia seria um método de análise jurídica orientado
institucionalmente, uma prática de análise jurídica como imaginação
institucional.

40
O DESENVOLVIMENTO INTERROMPIDO
DO PENSAMENTO JURÍDICO

A vocação do direito contemporâneo

Para compreendermos o potencial da análise jurídica em se tornar uma


ferramenta-mestra de imaginação institucional numa sociedade democrá-
tica, devemos, de início, entender qual o traço característico do direito e
do pensamento jurídico nas democracias industriais contemporâneas.
Nesse esforço, nenhum contraste é mais revelador do que a comparação
do direito material e dos métodos jurídicos de hoje com o projeto da
ciência jurídica do século XIX e o direito das economias comerciais do
século XIX.
Imagine como o direito e o pensamento jurídico de hoje possam parecer,
no futuro, a um estudante que pretenda identificar, na seqüência mais am-
pla da história do direito, sua natureza mais profunda e original. Suponha
que, nessa tentativa, usemos menos a busca de conceitos e distinções dou-
trinárias recorrentes, feita por Holmes em The Common Law, do que a
interpretação de visão e detalhe oferecida por Jhering em O espírito do direi-
to romano. O segundo método, mais do que o primeiro, respeita o lugar do
direito diante da imaginação e do poder, e liga a auto-imagem do pensa-
mento jurídico à tradição central do pensamento social moderno fundada
por Montesquieu. Visto sob essa luz, o tema que permeia todo o direito e o
pensamento jurídico contemporâneos, e que define sua vocação, é o com-
promisso com a formação de uma ordem política e econômica livre, pela
combinação de direitos de escolha com regras criadas para assegurar o gozo
efetivo desses direitos.
Pouco a pouco, e de país em país do mundo ocidental rico e de seus
imitadores mais pobres, uma consciência jurídica penetrou e transformou
o direito material, afirmando a natureza empírica e revogável da autodeter-
minação individual e coletiva: a sua dependência de condições práticas de
exercício, que nem sempre podem se cumprir.

41
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Essa concepção se destaca por oposição à idéia de maior influência no


direito e no pensamento jurídico do século XIX, uma idéia desenvolvida
tanto no discurso de precedentes dos juristas norte-americanos e ingleses,
ou nas afirmações aforísticas e peremptórias dos advogados franceses, quan-
to no obstinado exercício de lapidação conceitual dos pandectistas alemães.
De acordo com essa idéia anterior, um regime estabelecido de regras e cl.i-
reitos define uma ordem política e econômica livre. Mantemos a ordem ao
nos agarrarmos ao regime predeterminado de regras e direitos e quando o
protegemos contra sua corrupção pela política, principalmente a política
do privilégio e da redistribuição.
Uma conseqüência dessa idéia animadora do direito contemporâneo foi
a reorganização de um ramo do direito e da doutrina jurídica atrás do ou-
tro, como um sistema binário de direitos de escolha e de possibilidades
retiradas do alcance da escolha para melhor tornar o exercício da escolha
real e efetivo. O objetivo norteador dessa organização dialética é evitar que
o sistema de regras e direitos passe a ser, ou que continue sendo, um logro,
escondendo a dominação sob a aparência da coordenação.
Às vezes, essa reconfiguração binária se dá pela composição, dentro de
um mesmo ramo do direito, de regras e doutrinas contrapostas, por exem-
plo, quando a doutrina da coação econômica e das desigualdades de poder
de barganha complementa e modifica as regras básicas de formação e execu-
ção dos contratos, ou quando a regulação direta e seletiva da relação de
emprego restringe a liberdade de estipulação dos termos e condições num
contrato de trabalho. Em outras vezes, a estrutura dúplice funciona pela
atribuição dos expedientes de limitação da escolha e de garantia da liberda-
de a um ramo diferente do direito, por exemplo, quando o direito das
negociações coletivas tenta corrigir a incapacidade dos contratos individuais
para equilibrar desigualdades de poder nas relações de trabalho. E em ou-
tras vezes ainda, a estrutura dúplice tomou a forma de uma coexistência de
dois regimes jurídicos para a disciplina de problemas sociais parcialmente
coincidentes. Assim, a responsabilidade baseada em culpa pode ser reforçada,
e não enfraquecida, pela recusa em estender sua aplicação à reparação pela
concretização dos riscos inerentes a uma linha de negócios ou pelo desen-
volvimento de sistemas de seguro que não se baseiem em padrões de repa-
ração determinados por culpa.
A estrutura binária que reorganizou o direito privado em todas as de-
mocracias industriais reaparece, em escala maior, na relação entre a
regulação estatal e o direito privado como um todo. Os direitos concedi-

42
O DESENVOLVIMENTO INTERROMPIDO DO PENSAMENTO JURÍDICO

dos pelo Estado de bem-estar e o gozo pelos trabalhadores de prerrogati-


vas relativamente seguras contra a instabilidade do mercado de trabalho e
dos ciclos econômicos foram entendidos e desenvolvidos pelos advogados do
século XX como mecanismos para a garantia do gozo efetivo dos direitos
de autodeterminação de direito público e direito privado. Embora a eco-
nomia de mercado, a democracia representativa e a sociedade civil livre
tenham certas formas herdadas e necessárias, essas formas devem ser refi-
nadas e acabadas, de forma que elas possam produzir a realidade e também
a aparência de liberdade de escolha e de igualdade para todo indivíduo
titular de direitos.
A maior conquista desse exercício contínuo de correção é tornar o indiví-
duo efetivamente capaz de desenvolver e exercitar um amplo conjunto de
faculdades. Ele pode, então, elaborar e realizar seus projetos de vida, inclu-
sive aqueles mais importantes, que talvez precise imaginar e promover pela
livre associação com outras pessoas. Hierarquias de classe podem, não obstante,
se manter com sua força muito pouco diminuída. A maioria do povo pode
constituir uma massa ansiosa e marginalizada, embora fragmentada, de indi-
víduos, que se sentem impotentes em seus empregos e desesperançosos
quanto à política nacional, ao mesmo tempo que buscam o conforto e a
fuga no prazer individual, nas alegrias domésticas e no tradicionalismo nos-
tálgico. De acordo com esse estilo de pensamento, contudo, esses ônus da
história e da imperfeição apenas mostram que devemos prosseguir pacien-
temente com a tarefa de garantir o gozo efetivo de direitos.
O tema da dialética entre o domínio da liberdade de escolha política e
econômica e o domínio do que é retirado da escolha pelo bem da escolha é
ainda mais notável porque não segue qualquer posição ideológica específica
nos debates da política e do pensamento político modernos. Simplesmente
afasta posições que, do ponto vista daqueles que habitam esse mundo de
idéias, possam parecer radicais. Afasta a antiga idéia do século XIX de que
um dado esquema de direitos públicos e privados, se protegido contra o
intervencionismo redistributivo, automaticamente garante a liberdade po-
lítica e econômica. Repele também a idéia radicalmente reconstrutiva de
que nenhuma experiência de autodeterminação individual e coletiva autên-
tica e amplamente partilhada será possível a não ser que revolucionemos o
sistema institucional vigente, substituindo, por exemplo, "capitalismo" por
"socialismo". Ainda assim, embora o espírito do direito contemporâneo possa
parecer se contrapor somente a alternativas inverossímeis ou insustentáveis,
ele cria, em detalhe, um infindável trabalho prático e intelectual para o

43
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

analista e para o reformador. Assim, ele se assemelha, pela amplitude de seu


alcance e pela fecundidade de seus efeitos, à ambiciosa idéia que o precedeu
na história do direito e do pensamento jurídico: o projeto de uma ciência
jurídica que revelasse o conteúdo institucional e jurídico inato de uma so-
ciedade livre e que vigiasse suas fronteiras contra a invasão da política.

O limite do pensamento jurídico contemporâneo

Há no progresso dessa idéia, não obstante, um enigma. Até que solucio-


nemos esse enigma, não poderemos entender corretamente a vocação - e a
pobreza auto-imposta - do pensamento jurídico contemporâneo, nem se-
remos capazes de avaliar perfeitamente quanto o desenvolvimento do direi-
to permanece vinculado ao destino do experimentalismo democrático.
Quando começamos a explorar modos de assegurar as condições práticas do
gozo efetivo de direitos, descobrimos que, a cada passo, há modos alterna-
tivos plausíveis de definir essas condições, e aí, uma vez definidas, de as
satisfazer. Para cada direito de escolha, individual ou coletivo, há concepções
plausíveis diferentes das suas condições de realização efetiva na sociedade, tal
como ela é organizada hoje. Para cada concepção dessas, existem diversas
estratégias plausíveis par.a preencher as condições especificadas.
Algumas dessas idéias e estratégias supõem a manutenção das atuais
estruturas institucionais concomitantemente ao controle de suas conseqüên-
cias: pela neutralização, notadamente, por políticas fiscais de transferência
ou pelo favorecimento de grupos em situação de desvantagem, de suas con-
seqüências distributivas. Outras concepções e estratégias, contudo, supõem
uma mudança gradual porém cumulativa dessas estruturas institucionais.
Essas soluções de desafio e transformação das estruturas podem, por sua
vez, se desenvolver em direções alternativas. Podem assinalar os movimen-
tos iniciais em diferentes trajetórias de mudança estrutural.
Assim, o avanço em direção ao reconhecimento da essência empírica e
revogável dos direitos de escolha deve ser apenas o primeiro passo num
movimento constituído de dois passos. O segundo passo, seguindo de per-
to o primeiro, seria a imaginação e a construção jurídica de pluralismos
alternativos: a exploração, pela discussão programática ou pela reforma ex-
perimental, de uma seqüência ou outra de mudança estrutural. Cada se-
qüência redefiniria os direitos e os interesses e ideais a que eles servem, ao
mesmo tempo que os realizaria mais efetivamente. Já forneci um longo

44
O DESENVOLVIMENTO INTERROMPIDO DO PENSAMENTO JURÍDICO

exemplo de como essas reformas podem parecer quando sugeri, anterior-


mente, como podemos passar de um debate sobre políticas públicas tradi-
cional e conservador de estruturas para outro que desafie e modifique os
pressupostos institucionais e imaginativos do debate. Contudo, a teoria e a
doutrina jurídicas contemporâneas, e o próprio direito material, quase nunca
dão esse segundo passo. O seu exemplo é marcante de desenvolvimento
interrompido.
A incapacidade para transformar a análise jurídica em imaginação
institucional - esta a maior conseqüência do desenvolvimento interrom-
pido do direito - apresenta peculiar significado e pungência nos Estados
Unidos. Pois certamente um dos defeitos da civilização norte-americana foi
o esforço de proteger a estrutura institucional do país contra desafio verda-
deiro; foi encarar o "projeto de liberdade organizadà' dos Estados Unidos
como uma fuga definitiva da velha história de classes e ideologias; foi recu-
sar reconhecer que os ideais espirituais e políticos de uma civilização per-
manecem atados às práticas e instituições específicas que os representam de
fato. O experimentalismo é a parte mais defensável do excepcionalismo
norte-americano; ainda assim, somente sob a pressão de crise extrema é que
os norte-americanos marcaram suas instituições com o impulso experimenta-
lista. Os maiores pensadores americanos foram aqueles que, como Jefferson
e Dewey, tentaram persuadir seus contemporâneos a trocar um excepciona-
lismo norte-americano ruim por um experimentalismo norte-americano
bom. Os períodos mais importantes da história norte-americana foram
aqueles em que interesses se entrelaçaram a ideais porque tanto ideais quanto
interesses colidiram com estruturas institucionais.

45
A EXECUÇÃO COMPLEXA NO LIMIAR DA
MUDANÇA ESTRUTURAL

Intervenção episódica porém estrutural

Que força interrompe o desenvolvimento do pensamento jurídico na


passagem da descoberta da indeterminação institucional de economias,
sociedades e organizações políticas livres para a exploração da diversidade
de formas institucionais que elas podem assumir? Podemos jogar uma luz
oblíqua porém reveladora sobre esse enigma se o reconsiderarmos a partir
da perspectiva do que, no direito norte-americano, veio a ser conhecido
como o problema da execução complexa e das medidas judiciais estrutu-
rais*. Embora o mecanismo procedimental tenha se desenvolvido de modo
mais aperfeiçoado nos Estados Unidos do que em qualquer outro lugar, a
.oportunidade que ele explora na relação do direito com a sociedade tem
rapidamente se tornado universal. A nova forma de intervenção
procedimental parece uma extensão e um instrumento natural da idéia
fundamental do direito contemporâneo. Não obstante, as incongruências
da sua teoria e prática tornam ainda mais surpreendente o desenvolvi-
mento interrompido dessa idéia.
Ao lado do modo tradicional de aplicação do direito, com sua ênfase na
atribuição estruturalmente conservadora de direitos a litigantes individuais,
emergiu uma prática diferente de aplicação do direito, com agentes, méto-
dos e objetivos diversos daqueles do modo tradicional. Os agentes dessa
prática alternativa são coletivos em vez de individuais, embora possam ser
representados por litigantes individuais. A ação coletiva é o instrumento
mais direto e claro dessa redefinição de agentes.
O objetivo da intervenção é a reestruturação de uma organização ou área
localizada da prática social que frustre o gozo efetivo de direitos. A circuns-

* Cf. Lewis Sargentich, "Compleic Enforcement", 1978 (não publicado, arquivado na


Biblioteca de Direito de Harvard).

46
A EXECUÇÃO COMPLEXA NO LIMIAR DA MUDANÇA ESTR:t-JTURAL

tância característica de frustração está em que a organização ou a prática


sob exame viu o surgimento de uma situação de desvantagem e margi-
nalização a que suas vítimas não conseguem escapar. A subjugação, locali-
zada e portanto remediável, é o mal paradigmático a que se dirige a inter-
venção reconstrutiva.
O método é o esforço de avançar mais profundamente no fundo causal
da vida coletiva do que a aplicação tradicional do direito suportaria, mo-
dificando as estruturas mais imediata e fortemente responsáveis pelo mal
combatido. Assim, a medida pode implicar a intervenção judicial numa
escola, numa prisão, num sistema escolar, num distrito eleitoral, e uma re-
forma e administração da organização por determinado período. A execução
complexa exigirá uma associação mais íntima e continuada entre argu-
mento prescritivo e investigação causal do que a que caracterizou, até
hoje, o raciocínio dos advogados.
O problema fundamental na teoria e prática das medidas judiciais estru-
turais é a dificuldade de entender os limites de sua aplicação. A partir
do momento em que começamos a penetrar o fundo causal de práticas e
poderes contestados, por que deveríamos parar tão perto da superfície?
Os males da educação desigual para raças diferentes, por exemplo, po-
dem em breve conduzir um reformador estrutural norte-americano, numa
direção, a questionar a legitimidade da competência municipal ou
distrital pelo financiamento de escolas públicas, como podem conduzi-
lo, em outra direção, a desafiar as estruturas institucionais, como sub-
contratos e contratações temporárias, que ajudam a reproduzir uma
subclasse social ao segmentar a força de trabalho. A intervenção corretiva
mais restrita provavelmente se mostrará ineficaz. Se a eficácia causal é o
critério de sucesso corretivo, uma incursão no fundo estrutural da frus-
tração de direitos deveria levar a outra. A partir do momento em que
começamos a mexer com organizações relativamente periféricas, como
prisões e hospícios, e a reorganizá-las de acordo com a imagem dos ideais
atribuídos ao direito material, por que não continuar até alcançar em-
presas e organizações burocráticas, famílias e governos locais? À medida
que aprofundássemos o alcance e ampliássemos o âmbito da interven-
ção, as atividades reconstrutivas da execução complexa tornar-se-iam
cada vez mais ambiciosas, exercendo poderes maiores, empregando mais
pessoal e absorvendo recursos mais intensos.

47
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

O agente que falta

Nada disso, obviamente, vai acontecer. E não vai acontecer porque ne-
nhuma sociedade, nem mesmo os Estados Unidos, permitirá que uma van-
guarda de advogados e juízes reconstrua de pouco em pouco suas institui-
ções, sob o pretexto claro de interpretar o direito. A massa de trabalhadores
pode estar adormecida. As classes instruídas e proprietárias não estão. Elas
não permitirão que seus destinos sejam determinados por um quadro res-
trito de reformadores missionários, desprovidos de limites. Elas colocarão
esses reformadores em seu lugar, substituindo-os por sucessores que não
precisem mais ser colocados em seu lugar.
O aprofundamento do alcance e a ampliação do âmbito da execução
complexa logo subtrairia do judiciário sua legitimidade política e consumi-
ria seus recursos práticos e cognitivos. Além do mais, em nome da autorida-
de para intervir de modo a melhor assegurar o efetivo gozo de direitos, os
juízes usurpariam uma parte cada vez maior do autêntico poder popular de
autogoverno.
Então, o que devem fazer os juízes, e o que fazem de fato? Algumas
vezes, eles pareceram querer fazer todo o possível para sair ilesos: melhor
alguma influência sobre o fundo estrutural da dominação do que nenhu-
ma; melhor organizações sociais marginais do que organização nenhuma. A
dificuldade decorre da desproporção entre a tarefa de reconstrução e o seu
agente institucional. A execução complexa é tanto estrutural quanto
episódica. O trabalho de intervenção estrutural e episódica parece necessá-
rio se tivermos que garantir o gozo efetivo de direitos e cumprir os preceitos
do direito material. Trata-se de um complemento procedimental necessá-
rio, e não de uma variação posterior acidental, à vocação do direito contem-
porâneo. Mas quem deve, no Estado democrático contemporâneo, executar
essa tarefa estrutural e episódica?
Nenhum órgão dos sistemas presidencialistas ou parlamentaristas contem-
porâneos, seja em razão de legitimidade política seja de capacidade prática,
parece qualificado o suficiente para fazê-lo. O governo baseado na maioria
do sistema parlamentarista ou o poder executivo do sistema presidencialista
não podem reinterpretar direitos e reformular estruturas fundadas em di-
reitos em cantos específicos da vida em sociedade sem ameaça à liberdade dos
cidadãos. Além do mais, eles logo ficariam perdidos e desmoralizados por
inúmeras formas de pequenos anseios e resistências. Agências administrati-
vas podem ter mais desprendimento e conhecimento técnico específico,

48
A EXECUÇÃO COMPLEXA NO UMIAR DA MUDANÇA ESTRUTURAL

mas ao mesmo tempo menos poder na escolha de uma direção reconstrutiva


ou no exercício de uma autoridade com liberdade para forjar soluções parti-
culares para problemas localizados. Assembléias e parlamentos tornar-se-iam
tanto despóticos como ineficientes se a eles coubesse lidar, de maneira in-
dividualizada e episódica, com problemas estruturais e reorganizações
institucionais. Ao judiciário falta tanto a capacidade prática como a legiti-
midade política para reestruturar, e para gerir enquanto reestrutura, os obje-
tos merecedores de execução complexa. Sua inadequação para a tarefa será
ainda mais clara se a frustração ao gozo de direitos por situações insuperáveis
de desvantagem se tornar um atributo normal da vida em sociedade, e se a
terapia corretiva exigir uma incursão cada vez mais profunda na herança de
práticas e instituições.
A verdade é que nenhum elemento do Estado atual é suficientemente
adequado, em virtude de capacidade prática ou de intervenção política, para
empreender o trabalho de reconstrução estrutural e episódica. Falta a essa
tarefa- como falta a toda missão nova e séria no mundo - seu agente adequa-
do. A melhor solução é, então, forjar o novo agente: um outro órgão do
governo, um outro poder do Estado, concebido, eleito e dotado de recursos
com o encargo expresso de conduzir essa tarefa inconfundível de garantia de
direitos. Essa mudança, contudo, demandaria a própria abertura ao
experimentalismo democrático em que o direito contemporâneo e as demo-
cracias contemporâneas se provaram tão notavelmente deficientes. Ela exigi-
ria de nós, como advogados e cidadãos, que completássemos a passagem do já
realizado primeiro passo, de insistência na efetividade do gozo de direitos, ao
segundo e ainda ausente passo de reimaginação e reconstrução institucional.
Na falta de tal ampliação no elenco de agentes disponíveis, qualquer dos
agentes existentes e mais ou menos inadequados poderia aceitar ou recusar a
tarefa, e, tendo-a aceito, levá-la adiante o quanto quisesse ou pudesse. Nos
Estados Unidos, o judiciário, principalmente o judiciário em âmbito federal,
foi esse agente incongruente, errático e tíbio. Em outros países, poderia ser
qualquer outro poder do Estado. Do casamento entre essa tarefa necessária e
esse agente inadequado emerge a teoria implícita das medidas judiciais estru-
turais no direito americano. Essa teoria exige de nós que estabeleçamos um
meio-termo entre duas proposições persuasivas porém incompatíveis: a máxi-
ma de que devemos cumprir os preceitos do direito material, disponhamos
ou não dos agentes e instrumentos corretos, e a máxima contrária, de que o
cumprimento do direito deve se dar sob a disciplina da adequação e da capa-
cidade institucionais.

49
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Assim, a questão da execução complexa joga uma luz dupla sobre o


desenvolvimento interrompido do pensamento jurídico contemporâneo.
Mostra que a fidelidade ao direito e aos ideais a ele atribuídos pode condu-
zir, involuntariamente e em pequena escala, aos experimentos institucionais
que nos recusamos frontalmente a imaginar e realizar. Também demonstra que
nossa incapacidade para dar o segundo passo desorienta e inibe nossa tarefa
reconstrutiva de pequena escala. Esse capítulo da história do direito contem-
porâneo ilustra como uma visão dominante pode se esconder e se revelar ao
mesmo tempo.

50
O ENCANTO DA ANÁLISE JURÍDICA
RACIONALIZADORA

O pensamento jurídico e a socialdemocracia

Por que o direito e a doutrina jurídica foram incapazes de passar da


sua característica preocupação com o gozo efetivo de direitos para o reco-
nhecimento e o desenvolvimento de oportunidades de transformação
institucional? Por que acreditaram que a autodeterminação individual e
coletiva depende de condições empíricas e revogáveis sem se devotar com
maior ímpeto à análise e à construção jurídicas das diferentes práticas e
instituições capazes de preencher essas condições? Por que, portanto, não
conseguiram identificar, nessas pequenas e fragmentárias alternativas, os
começos possíveis de alternativas mais amplas: caminhos institucionais
, diferentes para a redefinição e a transformação da democracia representa-
tiva, da economia de mercado e da sociedade civil livre? Por que, em ou-
tras palavras, não foram capazes de estender sua rejeição à idéia do século
XIX de que economias e organizações políticas livres têm uma forma ju-
rídica predeterminada, constituidora da própria liberdade, em direção a
uma rebelião geral e irrestrita contra o fetichismo institucional?
As razões mais importantes para a interrupção do desenvolvimento do
pensamento jurídico se encontram na história da política moderna. Não
obstante, a simples atribuição dos limites do pensamento jurídico contem-
porâneo aos contrangimentos sobre a transformação política dos contextos
sociais é insuficiente, como explicação, por vários motivos.
A mesma época que viu a interrupção do desenvolvimento do pensa-
mento jurídico também testemunhou uma série contínua de reformas ra-
dicais no contexto institucional e ideológico da vida política e econômica: as
reformas designadas na Europa de socialdemocracia e descritas, nos Esta-
dos Unidos, como o New Deal. Essas mudanças tiveram um dos seus pon-
tos de convergência e sustentação no keynesianismo: uma série encadeada
de inovações institucionais e ideológicas, liberando os governos nacionais

51
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

da doutrina da ortodoxia financeira e diminuindo assim a dependência das


políticas públicas sobre o nível de confiança da economia. Essas reformas
foram radicais porque sem referência a elas não somos capazes de com-
preender a força e a forma das principais fórmulas políticas, econômicas e
discursivas das democracias industriais contemporâneas, tais como o ciclo
econômico. Elas contribuíram para a definição das condições e limites den-
tro dos quais os indivíduos e grupos organizados, no período seguinte, en-
tenderiam e defenderiam seus interesses.
É não obstante verdade que, como qualquer arranjo institucional, o acerto
socialdemocrata importou a renúncia a um campo maior de conflito e con-
trovérsia. Os governos nacionais conquistaram o poder e a autoridade para
administrar a economia em sentido contrário ao dos ciclos econômicos,
para reequilibrar, mediante políticas fiscais de transferência, os efeitos
desniveladores do crescimento econômico e para tomar as iniciativas de
investimento que pareciam necessárias à lucratividade de empresas privadas.
Por outro lado, contudo, tiveram que renunciar à ameaça de reorganizar
radicalmente o sistema de produção e troca e de, por esse meio, reformular a
distribuição primária da riqueza e da renda na sociedade.
A recusa da análise jurídica em passar da sua preocupação com o gozo de
direitos para a perseguição de mudança institucional pode simplesmente
parecer a contrapartida jurídica da recusa do acordo socialdemocrata a um
conflito mais amplo. O papel do reformador jurídico prático seria o de con-
tinuar e terminar o trabalho inacabado da reforma socialdemocrata. A tarefa
do pensador do direito seria a de desenvolver uma teoria do direito que, mais
livre da devoção do século XIX a um sistema de direito privado prede-
terminado, fizesse justiça às promessas socialdemocratas. De~se ângulo, are-
lutância em passar do tema do gozo efetivo de direitos para a prática da
crítica institucional parece ser uma conseqüência da renúncia a um
experimentalismo institucional mais amplo. Tal renúncia constituiu uma
condição essencial do acerto socialdemocrata. Até que esse acerto seja desa-
fiado e alterado, não podemos esperar que o pensamento jurídico prossiga na
trajetória que tracei há pouco. Como ele foi desafiado, se é que o foi mesmo,
principalmente pela direita, concluiria o raciocínio, há poucos motivos para
esperar esse impulso à frente.
O problema com essa abordagem das fontes do conservadorismo
institucional no exercício da análise jurídica é que ela se sustenta sobre uma
imagem muito estática e unilateral de arranjos institucionais e da sua rela-
ção com o pensamento jurídico. Primeiro, não há separação rígida entre o

52
O ENCANTO DA ANÁLISE JURÍDICA RACIONALIZADORA

momento reconstrutivo de crise e energia e o supostamente estéril momen-


to subseqüente. Não apenas continuaram a surgir problemas e alternativas
tocantes à elaboração institucional, mas se tornou também freqüentemente
mais difícil dizer qual das soluções consideradas é mais fiel ao acerto anterior
e original. Segundo, a mudança institucional não é só uma causa de reima-
ginação; é também uma conseqüência. Se tivermos, de fato, renunciado a
um determinismo funcionalista e evolucionista na nossa compreensão da
história institucional, devemos conceder às nossas práticas de imaginação
social, tais como a análise jurídica, alguma capacidade de apostasia pro-
dutiva e de pressentimento prático. Por fim, essa imagem justificatória é
incapaz de reconhecer as aptidões auto-subversivas e autotransformadoras
de uma tradição de prática discursiva como a da análise jurídica. A histó-
ria do pensamento jurídico nos últimos cem anos fornece - como defen-
derei em breve - um exemplo notável dessas aptidões. Por que teriam elas
caído em desuso?

O método de políticas públicas eprincípios

A incapacidade para passar do momento do cuidado com o gozo de


direitos para o momento da reimaginação institucional é mais do que o eco
silencioso no direito da imobilidade política da sociedade. Ela revela a in-
fluência de uma prática já canônica de análise jurídica: a que desfruta de
cada vez mais influência pelo mundo todo, mas que até agora encontrou
seu desenvolvimento mais articulado na doutrina e na teoria jurídicas nor-
te-americanas. Vou chamá-la de análise jurídica racionalizadora, conferin-
do, para esse propósito, conteúdo específico para o termo "racionalizadorà'.
É um estilo de discurso jurídico que se distingue tanto do racionalismo do
século XIX quanto do raciocínio analógico mais flexível e contextualizado que
ainda domina tanto nos Estados Unidos quanto em outros lugares - o racio-
cínio prático de advogados e juízes.
Não existe tal coisa como o "raciocínio jurídico": uma parte imutável de
um corpo imaginário de formas de investigação e discurso, dotado de um
núcleo permanente de alcance e método. O que temos são apenas estrutu-
ras institucionais historicamente localizadas e discussões historicamente lo-
calizadas. Não faz sentido perguntar "Que é a análise jurídica?", como se o
discurso (dos profissionais do direito) a respeito do direito tivesse uma es-
sência imutável. Ao lidar com esse discurso, o que podemos corretamente

53
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

perguntar é "Sob que forma o recebemos e no que devemos transformá-lo?".


Neste livro, sustento que hoje podemos e devemos transformá-lo num diá-
logo continuado sobre nossas estruturas.
A análise jurídica racionalizadora é um modo de representar grandes
pedaços do direito como expressões, conquanto expressões imperfeitas, de
conj~ntos ligados de políticas públicas e princípios. É uma forma cons-
cientemente finalística de discurso, que reconhece que a atribuição de fins
conforma o desenvolvimento interpretativo do direito. Sua principal di-
ferença, contudo, é a de considerar políticas públicas de bem-estar coletivo
e princípios de dever moral e político como o conteúdo característico desses
propósitos orientadores. O discurso generalizante e idealizador das polí-
ticas públicas e princípios interpreta o direito como um empreendimento
social finalístico que procura alcançar esquemas abrangentes de dever moral
e bem-estar. Pela reconstrução racional, penetrando cumulativa e profunda-
mente no conteúdo do direito, acabamos por entender pedaços do direito
como fragmentos de um esquema inteligível da vida em sociedade.
Nessa prática, o raciocínio analógico é definido como o primeiro e confu-
so degrau na escada de reconstrução racional. Os juízos implicitamente
finalísticos de quem aplica o raciocínio analógico apontam para ciina, por sua
legitimidade e consistência, a idéias mais gerais de políticas públicas e princí-
pios. O exercício continuado da análise orientada por políticas públicas e
haseada em princípios - assim professam as abordagens mais ambiciosas
e influentes dessa prática - conduzem a níveis cada vez mais altos de genera-
lidade, coerência e clareza na representação racional do direito.
As concepções ideais que representam o direito como uma aproximação
imperfeita de um esquema inteligível e justificável são consideradas parcial-
mente já existentes dentro do direito. Os intérpretes não podem ser vistos
como seus inventores. Elas não se apresentam, contudo, num~ forma única
e inequívoca, tampouco penetram completamente o direito. Assim, a aná-
lise jurídica tem dois trabalhos: reconhecer o elemento ideal embutido no
direito, e então aperfeiçoar o direito e o seu entendimento convencional-
mente aceito. O aperfeiçoamento se dá pelo desenvolvimento das concep-
ções subjacentes de políticas públicas e princípios e pela rejeição, de tem-
pos em tempos e de pouco em pouco, de partes do conhecimento e
precedentes estabelecidos que não se adaptem às concepções de políticas
públicas e princípios escolhidas. Muita pretensão na descoberta das con-
cepções já prontas e a plena força dentro do direito existente e o intérprete
jurídico se torna um mistificador e um apologista. Muito apefeiçoamento

54
O ENCANTO DA ANÁLISE JURÍDICA RACIONALIZADORA

interpretativo do direito, tal como representado pelo entendimento aceito,


e o intérprete se transforma num usurpador do poder democrático. De
fato, porque a mistificação apologética pode estar tão fragilmente fundada
nos conteúdos reais do direito, essas duas desvirtuações extremas da recons-
trução racional terminarão num confisco indevido, pelo intérprete, do po-
der de produção do direito.
Em que vocabulário devemos conceber políticas públicas e princípios e
a que concepções devemos recorrer para ligá-los entre si e para preferir uns a
outros? As escolas mais importantes de teoria jurídica na era da análise
jurídica racionalizadora podem ser mais convenientemente entendidas como
as ideologias operacionais distintas dessa prática analítica. Cada escola pro-
põe uma maneira diferente de justificar, aperfeiçoar e reformar essa prática.
Assim, por exemplo, uma escola pode buscar objetivos de eficiência econô-
mica distributiva ou dinâmica, enquanto outra pode partir de uma visão
dos papéis e responsabilidades adequados a diferentes instituições dentro
de um sistema jurídico. Contudo, a mesma estrutura argumentativa se re-
pete em todas essas teorias: os ideais finalísticos de políticas públicas e
princípios, qualquer que seja seu conteúdo, já estão parcialmente dentro do
direito, esperando para serem tornados explícitos, e são parcialmente o re-
sultado do trabalho de aperfeiçoamento empreendido pelo intérprete ade-
quadamente instruído e motivado.

A difusão da análise jurídica racionalizadora

A prática da análise jurídica construída a partir dessa perspectiva teórica


goza, atualmente, de grande e crescente influência. Ela pode dominar apenas
uma pequena parcela do discurso prático dos advogados e juízes de instâncias
inferiores, absorvidos com o propósito de evitar conflitos, controlar a violên-
cia e mediar acordos. Não obstante, está começando a ocupar o principal
espaço imaginativo em que as elites do judiciário e as elites acadêmicas e
profissionais do direito discutem o direito e desenvolvem seu conhecimento
prático e aplicado. No mínimo, ela evita que uma conceituação alternativa do
direito tome esse espaço e exerça essa influência.
Dada sua especificidade histórica, esse estilo de discurso jurídico se di-
funde de maneira desigual pelo mundo e adquire, em lugares diferentes, carac-
terísticas conformadas por uma história anterior de métodos e concepções. Ele
recebeu sua formulação mais aperfeiçoada nos Estados Unidos, por motivos

55
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

a serem examinados adiante, mas seu prestígio mundial cresce continua-


mente. Nesse aspecto, é o acontecimento próprio de uma situação histó-
rica em que a humanidade se vê unida por uma cadeia de analogias, em
experiências, problemas e soluções, e em que reformadores irrequietos da
sociedade e da cultura pilham e recombinam práticas e instituições do mun-
do todo. É dessa maneira, e não pelos cruéis mecanismos pelos quais o
capital se torna hipermóvel enquanto o trabalho permanece preso no Es-
tado-nação - ou em blocos homogêneos de Estados-nação-, que se pode
dizer que a humanidade está se tornando verdadeiramente una. Os países
em que uma prática de raciocínio jurídico fundada mais em analogia con-
tinua a desfrutar de um respeito maior (já que em todos os países essa
prática desfruta de verdadeira influência), ou nos quais o projeto da ciên-
cia jurídica do século XIX se mantém como um morto-vivo, logo se tornam
palcos para o conflito entre o velho dogmatismo e o novo estilo de recons-
trução racional do direito.
Uma conhecida diferença de peso ilustra como esse método se adapta,
na sua difusão pelo mundo, aos constrangimentos idiossincráticos nascidos
das diversas histórias que atravessa. Nos Estados Unidos, a pertinaz divisão
entre o direito criado pelos juízes e o direito legislado pareceu com freqüên-
cia sugerir a idéia de que a interpretação retrospectiva, reconstrutiva e dinâ-
mica do direito norteada por políticas públicas e princípios ligados tem um
papel maior e mais duradouro no direito criado pelos juízes do que na
interpretação judicial de leis. Somente agora é que os advogados superaram
essas divisões, reivindicando para a interpretação de leis a mesma liberdade
de reinterpretar e. reconstruir continuamente o direito que eles conferem
ao desenvolvimento interno da common law.
Nos países de tradição jurídica romano-germânica, a história particular
de atitudes perante a reconstrução racional no direito seguiu um curso
diferente. O projeto da ciência jurídica do século XIX, que encontrou sua
expressão mais sistemática no trabalho dos pandectistas alemães, foi conce-
bido por seus partidários como o resgate e o aperfeiçoamento do direito
comum romano-cristão da Europa. Um conflito se desenvolveu entre duas
atitudes sobre a codificação - a codificação como contenção do poder dos
juristas pela democracia e codificação como síntese útil das doutrinas dos juris-
tas. Nos locais em que a primeira atitude prevaleceu, como na França pós-
revolucionária, houve um esforço concertado de defesa da literalidade na
interpretação do direito. Esse literalismo sobreviveu às suas raízes políticas
e ajudou a afastar o pandectismo, como hoje contribui para conter a insti-

56
O ENCANTO DA ANÁLISE JURÍDICA RACIONALIZADORA

tuição completa da análise jurídica racionalizadora. Mas onde, nas demo-


cracias tardias da maior parte da Europa, os juristas privados e acadêmicos
mantiveram seu poder de elaboração do direito durante a era das grandes
codificações no final do século XIX e no começo do século XX, os códigos
foram concebidos pelos juristas como a expressão resumida de sua ciência.
As instituições democráticas, onde existiram, confirmaram e corrigiram as
doutrinas que as precederam. Nesse ambiente, o caminho para a reconstru-
ção racional na análise jurídica estava aberto. Nenhuma associação entre
codificação e interpretação literal se firmou. Uma longa história preparou a
recepção da análise jurídica racionalizadora de hoje.

A influência antiexperimentalista da andlise jurídica


racionalizadora

À medida que se difunde pelo mundo, a análise jurídica racionalizadora


ajuda a interromper o desenvovimento da dialética entre os direitos de es-
colha e as estruturas que tornam a autodeterminação individual e coletiva
efetiva - uma dialética que constitui a própria vocação do direito contem-
porâneo. O modo mais importante pelo qual ela o faz é a resignação ao
fetichismo institucional. Ela descreve as práticas e instituições estabelecidas
juridicamente na sociedade como a aproximação a um esquema inteligível e
justificável da vida em sociedade. Retrata as formas estabelecidas da demo-
cracia representativa, da economia de mercado regulada pelo Estado e da
sociedade civil como imagens defeituosas porém reais de uma sociedade
livre - uma sociedade cujas estruturas resultam de autodeterminação indi-
vidual e coletiva. Se essas formas nunca são as únicas formas possíveis, pelo
menos são, de acordo com esse ponto de vista, aquelas que a história apro-
vou - uma história marcada tanto pela existência de tenazes conflitos so-
ciais como pela escassez de estruturas viáveis.
A análise jurídica racionalizadora funciona atribuindo uma boa aparên-
cia - de fato, a melhor aparência possível - à maior parte do direito que
conseguir, e portanto também às estruturas institucionais que assumem no
direito sua forma mais detalhada e característica. Deve também limitar
anomalias, pois o que nfo pode ser adaptado aos esquemas de políticas
públicas e princípios deve finalmente ser rejeitado como erro. Para o juris-
ta, rejeitar como erro uma parcela muito grande do entendimento conven-
cionalmente aceito do direito, expandindo o poder de revisão da análise

57
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

jurídica, seria perturbar o frágil equilíbrio entre a afirmação de que os prin-


cípios e políticas públicas são descobertos já dentro do direito e a disposi-
ção para impô-los sobre o conteúdo imperfeito do direito. Seria concorrer
para a usurpação desenfreada do poder democrático. Assim, desvios e con-
tradições se tornam ameaças intelectuais e políticas em vez de oportunida-
des intelectuais e políticas, fontes para interpretações alternativas.
Uma parábola simples ajuda a ressaltar a importância desses constran-
gimentos para o sufocamento da imaginação institucional no pensamento
jurídico e mostra como práticas divergentes de análise jurídica podem se
tornar profecias auto-realizáveis. Imagine duas sociedades, das quais numa
as estruturas institucionais são consideradas levemente mais abertas a desa-
fio e revisão do que na outra. Na sociedade um pouco mais aberta, os juris-
tas dizem: "Ressaltemos a diversidade e a singularidade das estruturas a-
tuais, suas origens contingentes e suas variações surpreendentes, para melhor
as criticarmos e transformarmos, retirando partes de estruturas formuladas
para outros propósitos e recombinando-as de novas maneiras". O exercício
continuado desse estilo de análise jurídica resultará em instituições que
convidam ao experimentalismo prático, incluindo o experimentalismo so-
bre as próprias instituições. Imagine, em contrapartida, uma sociedade em
que as instituições pareçam um pouco menos abertas a revisão. Os juristas
- podem dizer: "Façamos o melhor que pudermos dessa situação, atribuindo
a essas estruturas a melhor aparência possível e ressaltando sua proximidade
com um programa racional e infinitamente renovável. Em nome dessa re-
construção racional podemos esperar melhorar as coisas, principalmente
para aqueles que mais precisam de ajuda: as pessoas que provavelmente
serão as vítimas das forças sociais mais imediatamente responsáveis pela
produção do direito". O exercício continuado desse método, contudo, con-
tribuirá para a cl.iminuição das nossas oportunidades de experimentalismo
institucional. E o fará tanto por se afastar de experimentos reais como por
nos negar um modo para pensarmos e discutirmos, coletivamente, sobre o
nosso destino institucional no poderoso e insubstituível detalhe do direito.
Tal é o mundo que a análise jurídica racionalizadora ajudou a criar.

58
A ESTRUTURA COMPLEXA
DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA

O momento da ciência jurídica do século XIX

Nenhuma forma de discurso, não importa quão poderosa seja a sua in-
fluência, consegue ocupar a totalidade de uma cultura jurídica ou penetrar
completamente uma mente jurídica. Mesmo naqueles lugares em que é
mais articulada e eficaz, a análise jurídica racionalizadora alcança posição
peculiar a partir de sua coexistência com concepções diferentes do direito.
Antes de voltarmos nossa atenção para as raízes e os limites do modelo de
raciocínio jurídico orientado por políticas públicas e baseado em princí-
pios, consideremos a forma comum dessa coexistência hoje. Eu tiro meus
exemplos da cultura jurídica que mais avançou para além dos limites da
ciência jurídica do século XIX- a dos Estados Unidos - e conto a história na
forma de uma seqüência simplificada. Três momentos da consciência jurí-
dica, cada um combinando uma visão do direito com um método de análise
jurídica, seguiram-se no tempo. Os mais recentes, contudo, não substituem
completamente os anteriores. Eles ficam sobrepostos aos precedentes. Essa
sobreposição produz a coexistência complexa de idéias diferentes do direito
e práticas de análise que caracterizam a cultura jurídica em que nós, cada
vez mais, avançamos.
O primeiro momento nessa seqüência é o momento da ciência jurídica
do século XIX. O impulso animador é o esforço de tornar explícito o con-
teúdo jurídico oculto de uma ordem política e econômica livre. Esse conteúdo
consiste num regime de direitos contratuais e de propriedade e num siste-
ma de direito público com estruturas e direitos que resguardam a ordem
privada. O direito forte é o direito de coordenação distributivamente neutro,
definido por esse conteúdo jurídico ínsito a uma sociedade livre. Deve-se
diferenciá-lo do direito fraco, flexível e político: o resultado do seqüestro do
poder estatal por grupos que se utilizam do poder de produção do direito
para distribuir direitos e recursos para si mesmos.

59
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

O instrumento metodológico dessa visão material do direito é o reper-


tório de técnicas que conhecemos hoje, derrisoriamente, como formalismo
e conceitualismo. Não devíamos caracterizá-los como um preconceito
dedutivista rudimentar sobre a linguagem e a interpretação, pois eles fazem
sentido no contexto da idéia de um conteúdo jurídico predeterminado de
uma ordem livre. Assim, o conceitualismo explora os conjuntos de regras e
doutrinas inerentes aos conceitos que estruturam o sistema de direitos -
conceitos como a própria propriedade -, enquanto o formalismo deduz
proposições inferiores de proposições superiores. Práticas discursivas conce-
bidas para vigiar as fronteiras entre o direito distributivamente neutro e
bom e o direito redistributivo e ruim complementam esses métodos bási-
cos. A principal dessas práticas de policiamento é a interpretação construti-
va, que redescreve e revisa o direito ruim, sempre que possível do ponto de
vista persuasivo, como direito bom. A prática de policiamento de reserva é
a declaração de inconstitucionalidade, que invalida os casos de redistribuição
pelo direito que não podem ser afastados pelo aperfeiçoamento da interpre-
tação. Ao empregar todos esses meios, a ciência jurídica realiza sua tarefa
essencial de representar num sistema de regras e noções jurídicas o projeto
de liberdade política e econômica, protegendo-o desse modo contra detur-
pações. Sua tarefa científica corresponde às suas responsabilidades políticas.
Essa abordagem do direito sufocou o conflito social. Todos os interes-
ses e ideologias ativos que exigiam mais das promessas da modernidade e
que se recusavam a ver nas instituições da sua sociedade um esquema neu-
tro de coordenação se insurgiram contra ela. O projeto da ciência do
direito, contudo, não foi atacado somente pelo exterior. Como qualquer
prática imaginativa influente, ela minou a si mesma. Seus seguidores des-
cobriram que a cada volta na caminhada de uma relativamente maior
abstração para uma relativamente maior concretude nas definições de re-
gras e conceitos havia mais do que um caminho plausível a seguir. Assim,
um método concebido para justificar unidade conceituai e necessidade
institucional revelou, não obstante, diversidade e oportunidade não ima-
ginadas no direito estabelecido.
O caso mais importante dessa revelação imprevista de indeterminação
foi a descoberta do conflito irremediável entre direitos de propriedade. A
doutrina do sic utere foi uma das muitas que anunciaram a esperança de que
sob um regime de propriedade privada cada titular de direito poderia gozar
de absoluta discricionariedade dentro da citadela do direito. Se ele não
invadisse a área de direito e propriedade de mais ninguém, ele poderia

60
A ESTRUTURA COMPLEXA DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA

gozar do privilégio de seus caprichos. Ele poderia considerar a propriedade


como uma alternativa não só à dependência pessoal, mas também à
interdependência social. Os advogados praticantes, contudo, descobriram
que o conflito entre direitos, exercidos regularmente e de acordo com os
padrões convencionais, era onipresente e inevitável. O direito na prática
apareceu permeado de damnum absque iniuria - casos de dano que um
titular de direitos poderia, com imunidade ou sem responsabilidade, cau-
sar a outro - e de danos da concorrência - prejuízo econômico infligido a
outrem resultante das práticas regulares de concorrência econômica.
Qualquer iniciativa no uso de direitos mostrou ter o que os economistas
mais tarde chamaram de "externalidades". Proibir as iniciativas ou forçar o
· titular dos direitos a pagar por elas ("internalizando externalidades") signi-
ficaria inibir ações produtivas e retirar a força dos direitos. Mas permitir o
uso de direitos para a violação de direitos e permitir arbitrariedade na im-
posição de responsabilidade pelas conseqüências danosas seria reconhe-
cer a fraqueza da lógica pura dos direitos. Não havia maneira de resolver os
conflitos ou de fazer as escolhas investigando mais fundo o sistema de con-
ceitos e doutrinas. Foi necessário tomar uma posição e fundamentá-la com
referência a juízos finalísticos, sejam declaradamente parciais ou alegadamente
impessoais. As doutrinas dos danos de concorrência e do damnum absque
iniuria revelaram o conflito inafastável entre direitos de propriedade, de
qualquer modo como esses direitos fossem definidos, no direito de uma
economia de mercado. Eles estabeleceram conflitos horizontais entre titu-
lares de direito de propriedade e exigiram compromissos sobre políticas
para a sua solução.
O pensamento jurídico levou muito mais tempo para reconhecer uma
segunda e vertical forma de conflito: uma série de escolhas inevitáveis e
interligadas sobre as condições em que os agentes econômicos poderiam
correr riscos sem incorrer em morte financeira imediata. A linha vermelha
do fracasso e da responsabilidade que obriga os agentes econômicos a parar de
funcionar, pela falência ou pela indenização dos danos causados a outros,
não tem lugai; fixo ou natural dentro da lógica jurídica da economia de mer-
cado. Os juristas e o legislador tiveram de enfrentar um conjunto ligado de
dilemas: falência imediata para empresas quebradas ou a oportunidade de uma
nova vida pela reorganização sob o controle da administração atual (o
"Chapter 11" da Lei de Falências americana); responsabilidade limitada
ou ilimitada em atividades econômicas concertadas; o monopólio estatal
da emissão de moeda ou a sua criação autônoma por bancos, e com a

61
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

opção pelo monopólio público da moeda e o surgimento de um sistema de


banco central, com seguro ou sem seguro para depósitos.
A estrutura desses dilemas foi sempre a mesma. O desejo de controlar o
risco moral e de tornar as pessoas responsáveis pelas conseqüências não re-
paradas de seus atos teve de ser equilibrado com a necessidade de encorajar
o comportamento de assunção de riscos na produção e na área financeira.
Nunca houve como distinguir de antemão, e de forma geral e dedutiva, as
atividades em que o risco era desejável das em que ele não era. De fato, a
impossibilidade de fazer essa distinção foi uma das razões por que se prefe-
riu, para começar, uma economia de mercado. Do mesmo modo, a existên-
cia de uma classe de pessoas dispostas a pagar uma taxa pela liberdade de
correr um risco foi considerada a justificação histórica do "capitalismo", se
por capitalismo se entender não apenas a idéia abstrata de uma economia
de mercado, mas uma versão especial dessa economia que recompensa su-
cesso pessoal com riqueza pessoal.
A linha vermelha não só era móvel como tinha de ser constantemente
deslocada, e nenhum modo especial de demarcação parecia inteiramente
satisfatório. Mais uma vez, as escolhas tinham de ser feitas de acordo com juízos
finalísticos de políticas públicas que os juristas não conseguiam deduzir a partir
da pretensa lógica jurídica da ordem econômica. Ainda temos dificuldade para
compreender que pressupostos sobre as formas institucionais possíveis da eco-
nomia de mercado - pressupostos concretizados na linguagem detalhada do
direito - determinam o que imaginamos ser as soluções possíveis para os confli-
tos horizontais e verticais entre direitos de propriedade.
Uma coisa é reconhecer que conflitos horizontais e verticais entre direi-
tos de propriedade permeiam o direito; que não podemos inferir as solu-
ções desses conflitos a partir da idéia abstrata de economia de mercado e de
sua lógica jurídica; e que as soluções específicas que adotemos devem se
apoiar em acordos fragmentários e controversos entre políticas ou interesses.
Outra coisa é identificar em algumas dessas soluções as sementes de uma
economia de mercado e de um sistema de direito privado diferentes daque-
les estabelecidos nas democracias industriais contemporâneas.
Por exemplo, a reorganização societária ao estilo do "Chapter 11" da Lei
de Falências americana fornece uma alternativa à morte da empresa no ver-
melho: à administração da empresa pode ser concedida uma oportunidade
de obter empréstimos e de reestruturar a empresa, enquanto os credores são
mantidos sem ação. (Disposições semelhantes existem nas leis de falência
de todas as democracias industriais.) Há analogias ao "Chapter 11" em

62
A ESTRUTURA COMPLEXA DA CONSCIÊNCIA JU\'ÜÚICA

muitas áreas do direito, desde a intervenção do FMI e de consórcios de


Estados para o resgate de países que sofrem crises de liquidez até a supervi-
são estatal de reconstrução econômica regional quando grandes partes da
indústria ameaçam falir. (Pense nas decisões seletivas de recuperação do
Treuhandgesellschaft na reconstrução e na privatização da indústria da Ale-
manha Oriental.)
Imagine que nos faltem padrões econômicos confiáveis e ex ante para iden-
tificar os beneficiários merecedores de recuperação seletiva. Imagine, além
disso, que o êxito da recuperação seletiva - a sabedoria das decisões iniciais e
o apoio para sua contínua realização em empresas e comunidades - dependa,
como dependem muitas iniciativas econômicas, de várias formas interligadas
de cooperação: entre empresas e governos locais, entre governos locais e orga-
nizações comunitárias, entre investidores e trabalhadores, entre pessoas de
dentro (empregados nas empresas reorganizadas) e pessoas de fora (emprega-
dos em empresas estabelecidas e aqueles que procuram emprego). Sob esses
pressupostos, a recuperação seletiva pode exigir uma estrutura jurídica
abrangente e complexa de cooperação entre interesses.
Essa estrutura pode compreender negócios que se limitem a discussões
permanentes; apoios mútuos e ajustes que não cheguem a se tornar contra-
tos perfeitos; direitos de propriedade que violem a lógica tradicional de
demarcação rígida e áreas de prerrogativa; e associações de supervisão ou
coordenação que fiquem no meio do caminho entre governos e empresas
privadas. Desenvolver essas possibilidades seria reinventar a forma jurídica
da economia de mercado. Começar a reinventar a forma jurídica da econo-
mia de mercado seria criar pressão sobre as formas jurídicas herdadas da
democracia representativa e da sociedade civil livre.
Há uma diferença entre reconhecer que conflitos entre direitos de pro-
priedade devem ser resolvidos por acordos imperfeitos e rudimentares e iden-
tificar nesses acordos os possíveis pontos iniciais de uma transformação
institucional cumulativa. Não é, contudo, mais do que uma diferença do
quanto nos distanciamos da idéia original de economia de mercado com uma
lógica jurídica inata e determinada. Não obstante, embora o pensamento
jurídico tenha realizado o primeiro desses trabalhos, ele foi da mesma forma
claramente incapaz de realizar, ou mesmo de imaginar, o segundo.
O funcionamento auto-subversivo do pensamento jurídico, ilustrado pela
progressiva descoberta dos conflitos horizontais e verticais entre direitos de
propriedade, exibiu duas características marcantes. A primeira é a de que ele
chegou até aqui; a segunda é a de que, não obstante, ele parou onde parou.

63
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Sob essas limitações, a análise jurídica lentamente desenvolveu seu


entendimento da essência política e da contigência institucional da econo-
mia de mercado. Todo o movimento da doutrina e da teoria jurídica nos
últimos 150 anos foi uma luta para desenvolver esse entendimento e com-
preender suas implicações. A luta, contudo, foi empreendida pela mas
também contra a ciência do direito; a ciência do direito lançou guerra
contra s1 mesma.
Os juristas contemporâneos acreditam erroneamente estar livres da má-
cula dessa visão do direito. Assim, a teoria jurídica americana celebra com
freqüência sua recusa ao "lochnerismo": a aceitação fetichista e o arraigamento
constitucional de um determinado sistema de direito privado, contra todas
as tentativas de redistribuição de direitos e recursos e de regulação da ativi-
dade econômica. De fato, contudo, o lochnerismo sobreviveu como uma
influência oculta de momentos posteriores da consciência jurídica. Nessa
condição latente, ele se mostrou ainda mais resistente à crítica. De certo, a
vida após a morte de que desfrutou foi mais vigorosa na economia do que
no pensamento jurídico: apenas as versões mais austeras e auto-refutadoras
da análise econômica não continuam a se apoiar sobre a idéia de uma forma
jurídico-institucional natural da economia de mercado, aberta apenas a
pequenas variações.
Esse lochnerismo atrasado e inconfesso também continua a deixar sua
marca no direito. Ele o faz, às vezes, sob a forma de concepções estruturantes,
como a doutrina da ação estatal [state-action doctrine] no direito americano e
seus equivalentes funcionais em outros sistemas jurídicos. A doutrina da ação
estatal pressupõe a validade da distinção entre estruturas sociais que são cria-
das politicamente e estruturas sociais que, por qualquer razão, já estão pré-
politicamente dadas. Ainda assim, essa distinção, e não um de seus subprodutos
hoje menosprezados - a capacidade especial de regras e conceitos de direito
privado para marcar bases neutras a partir de que se pode julgar a atuação
estatal-, foi precisamente o axioma central do lochnerismo. Às vezes, pode-
mos identificar a influência dessa visão do direito num conjunto de atitudes
sem uma expressão doutrinária mais precisa, tais como a disposição para acei-
tar a maior estabilidade e racionalidade das regras centrais do direito privado.
Essa perspectiva contrapõe o direito privado aos esforços contingenciais e
controversos do Estado regulatório e redistributivista, como se as regras do
direito de propriedade e de comércio não fossem tão artificiais quanto os
dispositivos de políticas fiscais de transferência. Contudo, a prova mais im-
portante da manutenção da força do projeto de ciência jurídica é a análise

64
A ESTRUTURA COMPLEXA DA CONSCIÊNCIA JURfDICA

jurídica racionalizadora, o estilo de discurso que, ao mesmo tempo, substi-


tuiu a ciência jurídica do século XIX e se manteve dependente de vários de
seus pressupostos e devotado a muitas de suas ambições.

O momento da andlise jurídica racionalizadora

O segundo momento da consciência jurídica contemporânea é o mo-


mento da análise jurídica racionalizadora: um estilo de análise jurídica orien-
tado por políticas públicas e baseado em princípios que, reconhecendo a
dependência do direito sobre a determinação de fins, atribuiu aos fins
norteadores conteúdo de concepções gerais de bem-estar coletivo ou de
dever político. Esse discurso idealizador e generalizante sobre o direito,
formulado na linguagem de idéias ligadas de princípios e políticas públi-
cas, não foi, contudo, o único sucessor do antigo projeto da ciência do di-
reito. Pelo menos dois vocabulários diferentes de reflexão e discussão do
direito floresceram na esteira daquele projeto: a visão do direito como o
resultado de uma série de acordos num conflito bem-ordenado de interesses
organizados - a concepção por vezes designada de "pluralismo de grupos de
interesse" - e a idéia do direito como a corporificação, imperfeita porém
provisória, de ideais impessoais de bem-estar e dever. Logo falarei mais so-
bre as interações paradoxais e inquietantes entre esses dois vocabulários:
um que conduz a uma compreensão do direito como uma série de acordos
regulados entre interesses; e o outro que produz uma visão do direito que o
caracteriza como a expressão incompleta de objetivos gerais e idealizados.
Essa última perspectiva, e não a primeira, alcançou condição canônica den-
tro da cultura jurídica profissional e acadêmica. Ela é, em qualquer caso, a
mais próxima em espírito e efeito à ciência jurídica que suplantou. A coe-
xistência desses dois vocabulários permite chamar a atenção para a distinção
fundamental em torno da qual se organiza o novo estilo de análise jurídica.
A análise jurídica racionalizadora coloca a distinção entre o direito como
princípios e políticas públicas impessoais e o direito como negociação de
facções de grupos de interesse poderosos entre si no lugar da mais rígida e
ambiciosa distinção entre o direito como uma estrutura neutra de coorde-
nação entre indivíduos livres e iguais e o direito como uma intervenção
indevida e redistributiva do Estado nessa estrutura. Entendida corretamente,
a separação entre esses dois pares de distinções é pequena demais para
nos deixar tranqüilos. O que desapareceu foi a idéia de um sistema fixo de

65
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

direitos públicos e privados implícito na própria definição de uma ordem


política e econômica livre. A análise jurídica racionalizadora recusou, junto
com essa idéia, seu corolário principal: a promessa do sistema de direito de
propriedade e contrato do direito privado em fornecer um padrão neutro
de julgamento da legitimidade da "intervenção" estatal. Não obstante, ela
salvou das ruínas daquela promessa o compromisso de representar o direito
como a busca de um interesse público suscetível de descrição na linguagem
de políticas públicas e princípios e resolutamente diverso do autofavo-
recimento de grupos pela produção do direito.
Nenhum elemento do interesse público parece mais importante do que
o compromisso de garantir às pessoas as condições práticas para gozar efeti-
vamente os direitos de cidadãos livres, agentes econômicos livres e indiví-
duos livres. A atividade regulatória e redistributiva do Estado ganha legiti-
midade e prova sua ligação com o interesse público, por ter como sua a
missão de satisfazer as condições para o gozo efetivo de direitos.
A tarefa deliberada dessa descrição do direito foi a de imaginar como
direito a atividade regulatória e redistributiva de um Estado atuante. É
nessa tarefa que a análise jurídica racionalizadora conseguiu maior sucesso.
A tarefa maior era reimaginar da perspectiva da socialdemocracia os méto-
dos operativos do raciocínio jurídico e de todo o corpo do direito e das
instituições jurídicas, incluindo o direito privado tradicional. Nessa tarefa
maior, o sucesso da análise jurídica racionalizadora, e do conjunto de teo-
rias jurídicas que a sustentam, não está estabelecido. De fato, a incompletude
dessa tarefa serviu como desculpa para os juristas contemporâneos renuncia-
rem a pretensões intelectuais e transformadoras maiores; ainda há muito
trabalho a fazer. Fascinado pelo complexo de Atlas que impôs a si próprio,
o pensamento jurídico pára na sua jornada para longe do projeto da ciência
do direito do século XIX.
Partes ulteriores deste livro investigam as motivações e as limitações des-
se modo ora dominante de pensamento e discussão sobre o direito. Mais
uma vez, a combinação de conflitos sociais e auto-subversão intelectual
irrefreável começou a expor suas fragilidades. A interminável discussão so-
bre benefícios e encargos de grupos, inclusão e exclusão social, na era do
Estado regulatório e redistributivista, enfraquece o poder da idéia de que
qualquer padrão específico de regulação e redistribuição poderia ser defen-
dido como a reaproximação legítima da ordem social preexistente: a que
tornaria reais as promessas da democracia liberal. Ainda mais problemática
é a descoberta de que as causas mais importantes de frustração ao gozo

66
A ESTRUTURA COMPLEXA DA CONSCifNCIA JURÍDICA

efetivo de direitos podem residir em práticas e instituições que os instru-


mentos de política de uma socialdemocracia institucionalmente conserva-
dora não conseguem alcançar e que o discurso jurídico de políticas públicas
e princípios não tem capacidade para representar.
Como estratégia para limitar a desigualdade, as políticas fiscais de trans-
ferência tiveram geralmente resultados desalentadores. Em poucos países
produziram mais do que melhoras marginais na igualdade de riqueza e
renda, e tiveram um efeito ainda mais modesto sobre a distribuição de
poder econômico. Toda tentativa mais ambiciosa de redistribuição por trans-
ferências fiscais produz tensão e crise econômica, seja diretamente por
desinvestimento e fuga de capital seja indiretamente por seus efeitos cor-
rosivos nas finanças públicas. Essa frustração prática encontra expressão
num estilo de discurso que contrapõe igualdade e eficiência como objeti-
vos presos numa relação tensa e por vezes inversa. A alternativa seria uma
reorganização do sistema de produção e troca e das relações entre poder
público e iniciativa privada, influenciando a distribuição primária de rique-
za e renda, ao mesmo tempo reforçando e ampliando o escopo da atividade
do mercado. Tal alternativa, contudo, depende de experimentos insti-
tucionais, experimentos inclusive no regime de propriedade, que o com-
promisso socialdemocrata parece ter rejeitado.
À medida que os limites do acerto socialdemocrata se tornam evidentes,
a análise jurídica racionalizadora se vê puxada entre duas forças. De um
lado, ela se prende à tentativa de colocar a melhor cara no arranjo
institucional estabelecido, tratando-o não como uma combinação provisó-
ria e acidental de compromissos, mas como uma estrutura duradoura e
racional, que deve ser aperfeiçoada e não desafiada ou mudada. Por outro
lado, contudo, adotar seriamente essa visão do direito como uma expressão
de ideais sociais, que pode ser descrita na linguagem de políticas públicas e
princípios, significa admitir que esses ideais podem entrar em conflito com
as práticas e organizações reais. A execução complexa é a expressão mais
marcante desse impulso de sentido contrário na doutrina jurídica. Até hoje,
uma divisão de domínios encobriu esse conflito de direções. A imunização
de estruturas institucionais contra um exame mais rigoroso predominou na
visão do direito material. O exame seletivo de instituições permaneceu em
grande medida restrito ao desenvolvimento de medidas procedimentais
como aquelas da execução complexa. A conseqüência dessa inovação procedi-
mental, vimos, é usar as funções e agentes disponíveis no processo jurídico
de maneira incongruente: os juízes realizam a execução complexa porque

67
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

querem, porque os preceitos do direito material parecem exigir que alguém


se encarregue disso e porque todos os outros poderes do Estado parecem
tão inadequados para a função quanto o judiciário. Sem os recursos de au-
toridade, conhecimento e dinheiro para realizar a tarefa, os juízes o fazem
de maneira vacilante e acanhadamente, até que esgotam seu poder e sua
vontade. Assim, pela lógica auto-subversiva da evolução de noções jurídi-
cas, retiramos racionalidade do processo para melhor fazer jus à racionaliza-
ção do direito material. Na próxima volta do nosso pensamento, podemos
muito bem perguntar por que não devemos retirar racionalidade do direito
material para melhor afirmar nossos interesses e ideais.
Há várias maneiras equivalentes de descrever a essência de fragilidade e
auto-subversão na análise jurídica racionalizadora - partes ulteriores deste
livro abordam essa tarefa a partir de várias direções. Em uma das descrições,
o fulcro de perplexidade na análise jurídica racionalizadora é a dificuldade de
defender a distinção fundamental entre interesses parciais e políticas públi-
cas ou princípios impessoais. Cada definição específica de interesse público,
na linguagem idealizada de políticas públicas e princípios, parecerá ou
indeterminada demais para guiar o julgamento em direção a resultados
específicos ou muito difícil para desvinculá-lo de crenças controversas, ligadas,
por sua vez, a interesses parciais.
O aspecto mais revelador e perturbador dessa prática discursiva, con-
. tudo, se torna evidente quando nos concentramos na relação entre ideais
jurídicos e fatos sociais. Imagine, como um exemplo, a forma típica de
um artigo de direito escrito por um professor de direito norte-americano
no final do século XX. Tal artigo tipicamente apresenta uma grande parte
de regras e doutrinas jurídicas como a expressão de um conjunto ligado de
políticas públicas e princípios. Critica parte do corpo doutrinário e legal
convencionalmente aceito como inadequado para a realização dos objeti-
vos ideais estipulados. Termina com uma proposta de reforma do direito
que resulta num equilíbrio mais defensável e abrangente entre o conteú-
do jurídico detalhado e as concepções ideais que devem fornecer sentido
a esse conteúdo. Mas por que a reforma deveria parar num ponto e não no
outro? Por que não avançá-la mais fundo na substância das estruturas
sociais, reconstruindo-as em nome das concepções ideais, e então, depois,
redefinindo as próprias concepções ideais à luz das reformas realizadas ou
imaginadas? Um juízo tácito de viabilidade política prática determina a
resposta a essa questão. Tendo em vista que a maior parte do fundo insti-
tucional deve, por uma questão prática, ser mantida inalterada em qual-

68
A ESTRUTURA COMPLEXA DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA

quer momento do tempo, propostas de ajuste institucional devem per-


manecer modestas e marginais. Além do mais, dado que o autor do artigo
fala na voz impessoal de um juiz virtual ou de uma espécie de titular de
função pública, as propostas de reforma nunca devem parecer muito sectá-
rias. Assim, a prática da análise jurídica racionalizadora é conformada por
constrangimentos implícitos que a prática analítica propriamente dita
mantém em larga medida sem desafio e inexplorados. Dessa resignação a
constrangimentos obscuros e injustificados emerge o sentimento de relati-
va arbitrariedade, de confusão entre justificação normativa e estratégia prá-
tica, que, crescentemente, se torna parte da experiência concreta de condução
da análise jurídica.
O exemplo do artigo de direito pode parecer limitado na sua relevân-
cia para a situação de um jurista que, sem funções administrativas ou
jurisdicionais, mas que deseja permanecer ligado ao mundo prático da
administração e da aplicação do direito, apresenta propostas para refor-
mar o direito. Ainda assim, o exemplo anterior das medidas complexas
sugere que o problema reaparece em muitos dos papéis em que pratica-
mos a análise jurídica. O juiz deve, de tempos em tempos, revisar o conheci-
mento jurídico estabelecido, mas se ele revisa demais, ou se revisa em
menor escala, porém radicalmente demais, e se, ao fazê-lo, desafia e mo-
difica alguma parte da ordem institucional definida no direito, ele
ultrapassa os limites do papel a ele atribuído pela análise jurídica racio-
nalizadora. Mas o que o mantém dentro desses limites? A convicção
reafirmadora de que a maior parte do direito e do conhecimento jurídico
aceitos em determinado momento pode realmente ser descrita como a
expressão de políticas públicas e princípios ligados? E, se isso for correto,
como poderia ter se produzido essa harmonia entre a história prospectiva
do direito como uma históri~ de conflitos entre grupos, interesses e visões
e a racionalização retrospectiva do direito como um sistema inteligível de
políticas públicas e princípios? Ou a limitação do poder de revisão do juiz
é algo que deriva de um conjunto autônomo de critérios sobre Q que os
juízes podem adequadamente fazer? E, se é isso, de onde viriam esses
critérios? Qualquer que fosse seu conteúdo ou origem, como eles podem
deixar de impor um constrangimento severo e disperso sobre a nossa ca-
pacidade de reimaginar e reconstruir o direito como a expressão de polí-
ticas públicas e princípios?

69
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

O momento da reinterpretação tdtica do direito

Tais variações de perplexidade se tornaram, hoje, parte integrante da


experiência de condução da análise jurídica orientada por políticas públicas
e baseada em princípios. Junto com as forças desestabilizadoras vindas de
fora - da política real de um Estado atuante, regulatório e redistributivo -
elas deram origem a um terceiro momento na evolução da consciência jurí-
dica moderna, sobreposto aos dois momentos anteriores da ciência jurídica
do século XIX e da análise jurídica racionalizadora. Esse terceiro momento
é a redefinição do estilo de discurso jurídico baseado em princípios e orien-
tado por políticas públicas como uma tática empregada a serviço de um
gênero particular de projetos políticos.
Designarei esse gênero de projetos políticos de reformismo conservador:
a busca de objetivos programáticos, tais como maior concorrência econô-
mica ou maior igualdade de oportunidades práticas e de expressão cultural,
dentro dos limites impostos pela ordem institucional estabelecida. Uma
versão particularmente influente do reformismo conservador no desenvol-
vimento do momento tático da consciência jurídica contemporânea é o que
chamarei de reformismo pessimista progressivo.
Duas crenças e um compromisso definem o reformismo pessimista pro-
gressivo. A primeira crença é a que o caracteriza como uma espécie de
reformismo conservador: mudança institucional não entra no jogo. Além
disso, mesmo se tal mudança fosse possível e desejável, nós, os juristas, não
poderíamos ser seus agentes legítimos e eficazes. A segunda crença é a que o
caracteriza como pessimista: na política de produção do direito, a maioria
autofavorecedora vai periodicamente se aproveitar de grupos marginaliza-
dos e impotentes. Mesmo que conseguíssemos garantir mudança cumula-
tiva nas estruturas formativas e crenças instituídas da sociedade, isso prova-
velmente tornaria as coisas ainda mais perigosas para os grupos mais
vulneráveis. Seus direitos de proteção podem ser eliminados no entusiasmo
de um período de reconstrução. Os esquemas de transferência fiscal de uma
socialdemocracia institucionalmente conservadora e o aperfeiçoamento
restrospectivo do direito pela análise jurídica racionalizadora oferecem aos
fracos sua maior esperança. De fato, vista por esse ângulo revelador, a socialde-
mocracia e a análise jurídica racionalizadora constituem os instrumentos
irmãos de um mesmo proj~to político. Colocando a melhor cara possível no
direito, representando-o como políticas públicas e princípios impesso~s,
em vez de como a vitória de coalizões poderosas e parciais de interesses, o

70
A ESTRUTURA COMPLEXA DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA

advogado pode melhorar as coisas para as pessoas que mais precisam de


ajuda. Em nome da interpretação idealizadora do direito, ele pode redis-
tribuir direitos e recursos às vítimas repetidas das coalizões de produção do
direito. O acerto progressista é, portanto, a determinação de usar a análise
jurídica racionalizadora nessa perspectiva.
Desse ponto de vista, o estilo canônico de doutrina jurídica pode ser
uma mentira, mas é uma mentira nobre e necessária. Ela protege contra o
pior e promete uma modesta porém real melhora na condição daqueles
que, sem essa ajuda, perderiam mais.
A prática analítica que acompanha essa visão do direito quase não difere
do recurso a objetivos ideais na análise jurídica racionalizadora. Ela é a
análise jurídica racionalizadora, com uma ressalva irônica: a de que, muito
embora os pressupostos do método possam não ser confiáveis literalmente,
eles servem a um objetivo vital. A sutileza nessa conversão de visão para
vocabulário e de vocabulário para estratégia é que o imperativo estratégico
exige que o agente continue se expressando no vocabulário da visão em que
ele deixou de acreditar. Com isso, o agente se torna incapaz de perceber
totalmente os constrangimentos ocultos implícitos em sua linguagem
pretensamente estratégica. A análise jurídica racionalizadora, conclui-se,
não é igualmente adequada para todos os tipos de política. Ele se adapta a
uma política institucionalmente conservadora: aquela que renuncia ao ajuste
permanente e cumulativo da estrutura institucional e procura, em vez dis-
so, redistribuir direitos e recursos dentro dessa estrutura.
Quando os problemas maiores da sociedade começam a exigir, para sua
solução, experimentalismo com estruturas práticas, esse defeito se prova
fatal. A estratégia se volta contra o estrategista.
A forma atual da consciência jurídica não é um ou outro desses momen-
tos do pensamento jurídico. É, antes, uma combinação dos três. Todos os
três modos de pensar coexistem não apenas na mesma cultura jurídica e
política, mas muitas vezes nas mesmas mentes individuais. O resultado é
uma comunidade discursiva unida, como tão freqüentemente as comuni-
dades discursivas são, de acordo com o princípio enunciado pelo narrador
no romance de Proust: somos amigos daqueles cujas idéias estão no mesmo
grau de confusão que as nossas.

71
O PLURALISMO DE GRUPOS DE INTERESSE E A
ANÁLISE JURÍDICA RACIONALIZADORA

Dois vocabuldrios incompatíveis sobre o direito

Antes de examinarmos mais de perto as raízes e os limites da análise


jurídica racionalizadora, imagine como o vocabulário racionalizador das
políticas públicas e princípios se relaciona com seu maior rival e comple-
mento na cultura jurídica e política contemporânea: o vocabulário de inte-
resses e grupos de interesse. Podemos concluir que a linguagem de políticas
públicas e princípios não é o único meio de representar o direito a partir
do uso corrente de pelo menos uma linguagem alternativa. Os pressupos-
tos desses dois vocabulários de discussão sobre o direito são incompatí-
veis. Os limites da sua aplicação legítima são discutíveis em teoria e
deslocáveis de fato. Faz diferença se usamos um ou outro e em que circuns-
tância os usamos.
Estranhamente, contudo, as duas abordagens do direito coexistem mais
ou menos pacificamente na cultura jurídica e política contemporânea. Ambas
as abordagens, de outra forma tão diferentes em conteúdo e conseqüência,
convergem na dissociação da análise jurídica da imaginação institucional.
Essa convergência torna possível sua coexistência pacífica.
O pluralismo de grupos de interesse, como podemos chamá-lo, re-
presenta o direito como o produto de negociação e conflito entre grupos
de interesse organizados. Numa democracia, o locus principal, mas cer-
tamente não o único, dessa atividade de produção do direito é o processo
legislativo, com seu fundamento na política partidária eleitoral. De forma
mais silenciosa, a mesma rivalidade e acordo de grupos pode ter lugar
nas nomeações para tribunais e agências. De acordo com o pluralismo de
grupos de interesse, cada fragmento do direito representa um troféu ou
uma trégua num conflito contínuo entre grupos de interesse. Os resultados
jurídicos desse conflito permanecem legítimos na medida em que o procedi-
mento do conflito continue a satisfazer dois requisitos. O primeiro requisito é

72
O PLURALISMO DE GRUPOS DE INI'ERESSE ...

que os grupos em disputa joguem de acordo com as regras básicas estabelecidas


no direito, principalmente o direito que define as estruturas da democracia
constitucional e da política eleitoral. O segundo requisito é que nenhum
dos grupos esteja substancialmente suborganizado ou sub-representado.
Se algum grupo está suborganizado, a solução de longo prazo é organizá-lo
e dar-lhe representação, garantindo voz aos que não têm. A solução de cur-
to prazo é oferecer proteção ou compensação especial.
Nesse vocabulário alternativo, devemos interpretar o direito identifi-
cando a negociação gravada em cada pedaço do direito. Uma compreensão
do equilíbrio de forças que produziu o direito, dos objetivos das forças
preponderantes e das transigências que elas podem ter feito para assegurar
seus objetivos, tudo isso pode ajudar. Em vez de reconstrução retrospectiva
e racionalista na linguagem de políticas públicas e princípios idealizados,
temos a tentativa de compreender o direito como a expressão episódica de
acordos práticos em face de conflito real: conflito de visões ideais e também
de interesses materiais.
O pluralismo de grupos de interesse, assim descrito, não é uma sociolo-
gia da produção do direito. É, como a própria análise jurídica racionalizadora,
um discurso prescritivo, que fornece uma história de como o direito se
torna legítimo e de como ele deveria ser representado. Não diz respeito a
algo diferente da análise jurídica racionalizadora; diz respeito à mesma coi-
sa. Não é uma heresia; é um dos dois discursos convencionais sobre o direi-
to na atualidade. Como, então, podem coexistir esses vocabulários aparen-
temente incompatíveis?
Normalmente, eles coexistem porque se aplicam a domínios distintos.
A linguagem de interesses e grupos de interesse foi tradicionalmente reser-
vada ao domínio do processo legislativo e da política eleitoral. A linguagem
de políticas públicas e objetivos foi empregada no domínio da interpreta-
ção profissional do direito, principalmente no contexto da aplicação do
direito, mas também por qualquer intérprete ou autoridade que assume a
perspectiva de um juiz. Assim, o modo tradicional de administrar a dualidade
de linguagens sobre o direito é passando de uma para a outra de acordo
com o contexto em que o discurso se dá.

73
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

As fronteiras móveis entre os vocabuldrios

Mas por que, pode-se muito bem perguntar, deve a fronteira entre essas
duas abordagens do direito ser traçada num lugar e não em outro? Por que
não, por exemplo, projetar as palavras e métodos do pluralismo de grupos
de interesse sobre o contexto da aplicação do direito, usando-o como um
modo de decidir litígios, tanto como um modo de descrever a produção do
direito? Considere três objeções a tal projeção.
Uma primeira objeção é que o acordo, e o equilíbrio de forças a ele
subjacente, pode ser vago demais. Pode ser difícil dizer, por exemplo,
exatamente quão vitoriosos foram os produtores e distribuidores de leite
integral sobre os consumidores na criação de leis e regulamentos admi-
nistrativos que limitam a distribuição, ou o preço, dos substitutos em
leite em pó ao leite integral. Pode ser difícil dizer o quanto os sindicatos
tiveram que transigir aos empresários para assegurar a edição de leis que
limitam ou desaceleram o fechamento de indústrias em face da concor-
rência externa. Pode ser difícil, com efeito, identificar o exato acordo ou
pesar o poder efetivo dos interesses em movimento. Mas a questão per-
manece: em comparação a quê? Não importa quão vago o jogo entre con-
flito e acordo, e as identidades de vencedores e perdedores: eles têm raízes
numa realidade social tangível. Em oposição, falta aos objetivos e políticas
públicas idealizados da análise jurídica racionalizadora uma posição certa
na vida real da sociedade. Eles podem ser invocados em debates eleitorais
e legislativos. Na maioria dos casos, contudo, eles têm uma natureza variável
até que sejam apreendidos, refinados e desenvolvidos pelo discurso sistemá-
tico do intérprete do direito.
Uma segunda objeção reside no fato de que a própria contraposição das
duas abordagens não faz muito sentido. Políticas públicas e princípios têm
um papel formativo no conflito da política partidária e legislativa sobre a
produção do direito. Visões ajudam a moldar interesses. Políticos disputam
concepções concorrentes do bem comum. O analista jurídico racionalizador
apenas se aproveita desse elemento de atenção com a sociedade nos conteú-
dos do direito e realiza seu trabalho purificando-o e desenvolvendo-o, sepa-
rando-o dos resíduos de autofavorecimento a que ele possa estar atrelado. Essa
objeção, contudo, não leva corretamente em consideração a força do con-
traste entre essas duas abordagens do direito. Não precisamos entender o plu-
ralismo de grupos de interesse como uma doutrina que afirma e aceita a
superioridade de interesses materiais sobre posições ideológicas. Ao seu traço

74
O PLURALISMO DE GRUPOS DE INTERESSE ...

distintivo importa, antes, afirmar a centralidade e a legitimidade do conflito,


sobre interesses tanto espirituais como materiais, ou melhor, sobre o que
resulte da combinação dos dois, e então sugerir como o direito numa demo-
cracia pode ser entendido como a regulação de conflito por regras básicas e
como a moderação de conflito por acordos com concessões mútuas.
A visão resultante vê cada pedaço do direito como um pouquinho disso
e um pouquinho daquilo. Não precisamos discernir no direito um esquema
racional incipiente e em desenvolvimento para reconhecermos sua legimi-
tidade e entender seu significado. Podemos reconhecer conflito e acordo entre
pretensões ideológicas, bem como entre disputas grosseiras por dinheiro e pri-
vilégio. A análise jurídica racionalizadora se rebela contra essa submissão à
desordem do conflito e do acordo. Ela olha para cada pedaço maior do direi-
to, retrospectivamente, como um fragmento possível numa organização
abrangente e racional da vida em sociedade. Aqui temos uma distinção real,
tanto em espírito como em palavras.
Quando afastamos essas duas objeções, ambas maculadas por erro, à
projeção da abordagem de interesses de grupo sobre o contexto da aplica-
ção do direito, alcançamos uma terceira e mais sutil objeção. Pela insistên-
cia na interpretação do direito como a corporificação de políticas públicas e
objetivos no contexto da aplicação do direito, impomos um constrangi-
mento vital à busca egoísta de interesses de grupo na política de produção
do direito. Os agentes políticos de uma coalizão de interesses poderosos
saberão que, a partir do momento em que as leis que eles conseguirem
editar passarem à mão dos juízes e dos juristas, essas leis serão interpretadas
como esforços na promoção de um interesse público. A interpretação cons-
trutiva buscará, sempre que possível, resgatar o direito do egoísmo de inte-
resses parciais. Quando o resgate é muito difícil e o egoísmo muito remata-
do, a revisão judicial, numa democracia de direito, pode invalidar as leis
que foi incapaz de reconstruir.
Assim, para realizar seus objetivos, os interesses prevalentes terão que fazer
concessões, dando a seus projetos jurídicos a aparência de conformidade ao
interesse público e os descrevendo numa linguagem que deixe essa conformi-
dade plausível. No mínimo, o recurso a objetivos ideais na análise jurídica
racionalizadora teria o papel para o qual a teoria marxista elege a ideologia. A
ideologia legitima os interesses dominantes ao universalizá-los, apresentan-
do-os como instrumentos de um bem coletivo maior. Essa universalização
legitimadora não funciona a não ser que adquira uma medida de força real,
que abrande o cuidado dos interesses dominantes consigo próprios.

75
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

A dificuldade com essa justificação pragmática da surpreendente passa-


gem de um vocabulário sobre o direito para outro é que ela se apóia sobre
um pressuposto fático que pode muitas vezes se provar falso. A busca de
vantagens e a conduta sectária, disfarçadas em dedicação ao interesse públi-
co, podem ser muito mais perigosas e bem-sucedidas se puderem viver sob
disfarce. Só precisamos examinar os registros de debates legislativos e elei-
torais para ver o quão elástica e ambígua pode ser a linguagem do interesse
público. Às vezes, o egoísmo de grupo pode ser abrandado quando obriga-
do a pronunciar a retórica magnânima da preocupação social. Se a hipocri-
sia é o tributo que o vício paga à virtude, essa retórica pode ser utilizável
como o instrumento de uma moralidade política minimalista porém realis-
ta. Com a mesma freqüência, contudo, o autofavorecimento pelo direito
pode ser mais eficazmente controlado quando reconhecido pelo que é.
Essa não é apenas uma controvérsia de teoria política abstrata. Tem im-
plicações práticas para o raciocínio jurídico. O direito visto como um con-
trato entre grupos de interesse pode ser interpretado restritivamente. O
direito visto como uma corporificação de princípios e políticas públicas
impessoais pode servir de ponto de partida para analogias ampliáveis. Quan-
do o direito é representado no vocabulário de interesse, as causas proces-
suais podem ficar restritas. Quando discutido no vocabulário de políticas
públicas e princípios, a disposição para ampliar as causas processuais e mul-
tiplicar as medidas judiciais pode avançar na esteira da interpretação cons-
trutiva e de analogias ampliáveis.
Mesmo aqueles que são hostis à crítica das instituições e ideais estabele-
cidos e permanecem dentro do mundo imaginativo da cultura jurídica e
política de hoje terão dificuldade para justificar o estabelecimento da fron-
teira de aplicação desses dois vocabulários jurídicos tradicionais na divisão
entre processo legislativo e aplicação do direito. Uma evolução recente no
pensamento jurídico norte-americano confirma essa assertiva. Vinte anos
atrás, um grupo de pensadores jurídicos norte-americanos de direita, instruí-
dos em economia ortodoxa, começou a questionar o paralelismo entre as duas
abordagens do direito e os dois contextos institucionais. Eles traçaram uma
distinção entre dois tipos de direito: o direito da busca de vantagens e o
direito do interesse coletivo. (Em princípio, uma distinção semelhante po-
deria ser feita dentro do direito criado por juízes, embora a oportunidade
para a busca de vantagens seja maior no processo legislativo.) Eles propuse-
ram, com efeito, que a interpretação jurídica, incluindo a interpretação
judicial, adotasse o método da preservação dos contratos para o primeiro

76
O PLURALISMO DE GRUPOS DE INTERESSE...

tipo e o método das políticas públicas finalísticas para o segundo. Eles


apresentaram listas de sinais práticos característicos pelos quais é possível
discernir as duas variantes do direito: o quanto de detalhes particularísticos
um corpo normativo possui; o quão ricos os registros legislativos se mos-
tram na expressão clara de interesses e acordos de grupo; e, sobretudo, o
quão prontamente podemos encontrar na lei indícios da busca de vanta-
gens, tais como obstáculos à entrada no mercado. Eles sustentaram que a
vantagem de reconhecer o processo legislativo de busca de vantagens pelo
que ele realmente era residia na esperança de isolá-lo, impedindo sua exten-
são analógica e contendo seu avanço processual. Alguns desses estudiosos se
tornaram, mais tarde, juízes e, como juízes, começaram a praticar o que
haviam professado. Internalizaram na aplicação do direito, de fato, uma
distinção que havia sido anteriormente concebida como respeitando a fron-
teira entre processo legislativo e a aplicação do direito.

Implicações perturbadoras

Podemos extrair duas conclusões desses argumentos e acontecimentos.


A primeira conclusão é a de que a análise jurídica racionalizadora e o
pluralismo de grupos de interesse podem coexistir apesar da diferença de
descrição e direção porque partilham de um atributo negativo fundamen-
tal. Esse atributo é a aversão ao ajuste institucional, a capacidade para dissociar
a representação do direito da imaginação - e da investigação - do seu fundo
estrutural. Para o pluralismo de grupos de interesse, o direito é conflito e
compromisso de grupos realizado sob um fundo institucional que pode
permanecer sem ameaça e mesmo sem exame. As estruturas da democracia
representativa e da economia de mercado são os resíduos incontroversos de
conflitos e acordos passados. Implicitamente, contudo, o pluralismo de gru-
pos de interesse deve avançar um argumento ainda mais forte em nome das
estruturas institucionais: que, por tentativa e erro, elas se aproximam da
forma de uma máquina de escolha moto-perpétua. Elas fornecem um
arcabouço que não discrimina entre interesses e que, portanto, permanece
igualmente aberto a quaisquer acordos. A contraparte dessa visão na econo-
mia política é o tipo de história institucional e análise institucional ("novo
institucionalismo") que tenta explicar a origem e a difusão de estruturas
econômicas institucionais por mera extensão do mesmo estilo de racio-
nalidade que marca decisões econômicas dentro de um sistema econômico

77
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

estabelecido. Assim, por exemplo, as instituições da economia de merca-


do européia moderna seriam a resposta racional (necessária) aos problemas
e oportunidades produzidos por fatores como o crescimento populacional e o
desenvolvimento tecnológico. Se o próprio arcabouço fosse imperfeito e auto-
reprodutor, se fosse apenas uma das muitas formas possíveis da democracia
e do mercado e se cada uma dessas formas tivesse conseqüências diferentes
para os acordos que os grupos poderiam concluir, o pluralismo de grupos
de interesse seria uma prática radicalmente incompleta. Precisaria ser
suplementada por alguma outra forma de descrição e produção do direito,
que poderia alterar completamente seu significado.
A análise jurídica racionalizadora resulta numa prática semelhante e
depende de pressuposições semelhantes. Seu discurso de políticas públicas
e princípios permanece centrado na redistribuição de direitos e recursos
dentro da ordem institucional atual. Seu método de aperfeiçoamento por
interpretação construtiva exige que coloquemos a melhor aparência no di-
reito e, por conseguinte, nas práticas e instituições definidas pelo direito.
Considere, por exemplo, a atitude da doutrina constitucional americana,
que representa um exemplo extremo de análise jurídica racionalizadora com
relação à interpretação constitucional. Não há lugar nessa atitude para a
possibilidade segundo a qual o tipo de democracia de que o país precisa seja
tal que as estruturas da Constituição norte-americana não consigam assimi-
lar sem uma ampla revisão. Se um certo tipo de democracia é o melhor,
deve ser possível encontrá-lo na Constituição. Se não for possível, de uma
maneira ou de outra, encontrá-lo na Constituição, não deve ser tão bom
quanto parece. A pressão sobre a racionalização reconstrutiva que resulta do
culto à Constituição pode ser um caso extremo da repressão à crítica e ao
ajuste institucionais, mas é apenas o exemplo extremo de algo que permeia
todas as crenças e métodos do estilo ora dominante de doutrina jurídica.
A segunda conclusão que se deve extrair da comparação das duas abor-
dagens do direito é ainda mais dara. Se há dois vocabulários de representação
do direito, e se suas fronteiras de aplicação são móveis e controversas, por
que não deveria haver cinco vocabulários, ou um vocabulário diferente desses?
Estudar a coexistência dessas duas linguagens sobre o direito na cultura
jurídica e política atual significa adquirir uma inquietante sensação de
sua contingência.
Agora proponho fazer valer esse sentimento de contigência explorando
quatro perspectivas complementares sobre os fundamentos e limites da
análise jurídica racionalizadora. Cada uma dessas perspectivas representa

78
O PLURALISMO DE GRUPOS DE INTERESSE ...

tanto uma versão parcial da missão que impulsiona a análise jurídica racio-
nalizadora como uma visão de suas fragilidades. Ligando a crítica desse discur-
so a um entendimento de sua tarefa a partir do seu próprio ponto de vista,
podemos esperar ganhar acesso ao seu mundo imaginativo interno. Se nossos
defeitos são a quinta-coluna de Deus dentro do coração humano, as fa-
lhas numa prática discursiva geram sua capacidade de auto-subversão. De-
vemos estudar a análise jurídica racionalizadora em profundidade porque
ela está se tornando o estilo mais influente de discurso jurídico no mundo
inteiro. Devemos estudá-la, ademais, porque ela pode fornecer, pela sua
auto-subversão, os meios pelos quais podemos transformar o pensamento
jurídico num instrumento de imaginação institucional.

79
AS QUATRO RAÍZES DA ANÁLISE
JURÍDICA RACIONALIZADORA
O preconceito contra a analogia

Um preconceito arraigado

O modo mais simples de definir o propósito da análise jurídica


racionalizadora é dizer· que ela representa um modo de se pensar clara e
coerentemente sobre o direito. Nessa visão, se você reflete longa e detida-
mente sobre o direito, vai acabar chegando a alguma coisa parecida com
esse estilo de raciocínio jurídico finalístico baseado em princípios e orienta-
do por políticas públicas. Nessa versão dos objetivos da doutrina jurídica, o
inimigo principal é a submissão da análise jurídica à analogia irrefletida.
Grande parte dos raciocínios de advogados em muitas tradições jurídicas
confere um papel central à comparação e à distinção analógicas, prenden-
ào-se ao fundo de costume e de precedente e se recusando a subir a escada
da abstração, da generalização e do sistema. O declínio do projeto de ciên-
cia jurídica do século XIX pode deixar um vácuo que a analogia mais solta
pode mais uma vez ocupar. Contudo, não pode ocupar esse espaço por
muito tempo - assim segue o raciocínio - se quisermos ter clareza no nosso
pensamento sobre o direito.
Se persistimos numa prática de juízo analógico, descobrimos que a elabo-
ração de comparações e distinções analógicas repousa, pelo menos implicita-
mente, sobre juízos finalísticos ligados a interesses humanos importantes. À
medida que as situações de fato se multiplicam de um lado, a tentativa de
articular e ligar esses fins se desenvolve de outro. Sob a pressão dupla da expe-
riência e da análise, uma massa solta e disforme de analogias começa a tomar
forma. Os fins invocados se movem em direção a uma maior generalidade de
definição. Eles começam, pouco a pouco, a se assemelhar aos fins informados
por políticas públicas e princípios da análise jurídica racionalizadora. Por essa
clarificação recíproca de contexto pertinente e objetivo orientador, o direito,
na dicção de Lord Mansfield, se autopurifica: aproxima-se da sua forma al-
mejada como um esquema inteligível e justificável de associação humana.

80
AS QUATRO RAfZES - O PRECONCEITO CONTRA A ANALOGIA

Uma prática não reconstruída de juízo analógico se revela, em retrospecto, o


primeiro e confuso passo em direção ao raciocínio a partir de políticas públi-
cas e princípios. Ele representa para a análise jurídica racionalizadora o que
engatinhar representar para o andar.
A crítica a esse preconceito antianalógico pode começar mais propriamen-
te com um esforço de caracterizar a família de estilos analógicos do raciocínio
prático, pois é uma família de formas fragilmente interligadas de tomada e
justificação de decisões práticas. Três atributos minimalistas identificam o
espaço da analogia.

Atributos da analogia

O primeiro atributo é a dialética recorrente entre determinação de


propósitos e classificação d~ fatos. Comparamos ou distinguimos situa-
ções de fato com o propósito de aplicar certas regras, e reformulamos as
regras em relação às situações de fato que elas disciplinariam de acordo
com uma visão dos fins que essas reclassificações e reformulações promo-
verão. Não há um modo racional de comparar e distinguir situações, para
o fim de definir a incidência de regras, que não seja por juízos finalísticos.
Uma comparação analógica não se encontra inerentemente nos fatos; é
uma forma de ordenação dos fatos que nos ajuda a promover certos inte-
resses. O que se quer dizer não é que podemos fingir que as coisas são do
jeito que queremos. Ao invés disso, é que não se pode eficazmente casar a
regra ao fato a não ser que estejamos dispostos a convergir a determinação
da situação pertinente e a determinação da regra correspondente sob a
luz de um entendimento dos interesses servidos pelo nosso objetivo de
aplicar regras e pelas regras específicas que devam ser aplicadas. Se um
triciclo conta como um veículo para o propósito da regra que proíbe veícu-
los no parque, e se, portanto, triciclos devem ser assimilados, por analogia,
a carros, depende de pensarmos se a regra serve para afastar perigo, barulho ou
algum outro objetivo que inclua triciclos.
No movimento de ida e vinda entre propósito orientador, regra aplicá-
vel e situação de fato típica, inferências dedutivas formais e mesmo silogísticas
podem desempenhar um papel. Podem ter um papel entronizado na dialética
mais inclusiva da analogia. Contudo, é na premissa menor do silogismo -
triciclos são (ou não) veículos - que consiste todo o trabalho da analogia. A
história anterior ao silogismo é a história que interessa.

81
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

O segundo atributo da família de raciocínios práticos por analogia é que


os interesses ou objetivos orientadores que servem de fonte para o analogista
são abertos. Não formam uma lista fechada, nem são organizados hierar-
quicamente num sistema de proposições de ordem superior e inferior, as
primeiras superando as segundas. Eles refletem a variedade, a renovação e a
desorganização das preocupações humanas reais. O raciocínio analógico não
é um exercício purista imposto a essas preocupações a partir do ponto de
vista de um entendimento ou autoridade superiores; é uma parte integran-
te da sua articulação comum na vida cotidiana. Hoje, triciclos podem não
contar como veículos proibidos porque eles não são barulhentos ou perigo-
sos para adultos capazes, mas amanhã as pessoas podem estar preocupadas
com crianças pequenas no parque; pode se desenvolver um hábito de per-
mitir que elas perambulem por ali, e elas podem se assustar ou mesmo ficar
ameaçadas com o trânsito de triciclos. Afinidades ou práticas podem mu-
dar. Com mais freqüência, mudam juntas.
Esse mesmo exemplo sugere que a lista de propósitos e interesses perti-
nentes permanece aberta de uma forma diferente. A distribuição de força e
autoridade entre os interesses conhecidos envolvidos num jogo de compa-
rações e distinções analógicas pode estar mudando o tempo todo. Se o casa-
mento é uma convivência duradoura, então também o é a aliança mais
ampla de uma comunidade discursiva. O que, num momento, proporcio-
na o foco de preocupações pode, noutro momento, parecer uma ameaça
distante. A impossibilidade de organizar os propósitos que servem à analo-
gia de maneira hierárquica é a conseqüência da recusa em subordinar a
experiência social à repressão teórica.
O terceiro predicado da família de juízos analógicos é uma extensão do
segundo. O raciocínio analógico é não-cumulativo: sua prática repetida no
tempo não o transforma, de pouco em pouco, num sistema organizado hie-
rarquicamente entre proposições mais abstratas e mais concretas porque os
próprios interesses ou propósitos orientadores não se movem em direção a
um sistema de axiomas e inferências. À medida que convergência e simplificação
dominam algumas áreas, diversidade e complexidade aumentam em outras.
Pode haver progresso no uso da analogia. Sua forma, contudo, é sutil: amplia-
ção do âmbito de problemas a que juízos analógicos podem incidir, riqueza
na articulação de objetivos orientadores e aperfeiçoamento na ligação de pro-
pósito animador a circunstância recorrente. Uma prática bem desenvolvida
de juízo analógico é aquela que se assemelha a uma versão mais ponderada e
limitada de muitos dos nossos métodos comuns de julgamento moral e polí-

82
AS QUATRO RAfZES - O PRECONCEITO CONTRA A ANALOGIA

tico: limitada pela referência inicial aos materiais jurídicos e tornada ponde-
rada pela determinação de articular os objetivos de uma empreitada que é
tanto coletiva quanto coerciva.

A falta de fundamento do preconceito contra a analogia

Uma idéia falsa sobre práticas discursivas subjaz ao preconceito anti-


analógico. Considerar a analogia como uma forma incipiente de raciocínio
abstrato baseado em axiomas significa submeter-se a um imperialismo de
práticas. Significa tratar os padrões de justificação na análise jurídica
racionalizadora ou em seus equivalentes como se eles carregassem uma pre-
sunção de autoridade racional. Mas por que deveríamos aceitar essa presun-
ção? A família de práticas prudenciais e analógicas é mais difundida na
experiência histórica e mais arraigada nas preocupações humanas do que
qualquer modo mais abstrato ou formal de raciocínio moral, político ou
jurídico. Mesmo na história mundial da doutrina jurídica, as formas
analógicas ou glossatoriais de raciocínio exerceram muito mais influência, e
em períodos mais contínuos, do que as abstrações em busca de princípios
dos juristas sistemáticos ou racionalistas. Com freqüência, o grupo da ana-
logia teve um sentimento seguro de sua superioridade no embate com o
grupo da racionalização. Assim, por exemplo, os últimos defensores da ju-
risprudência republicana romana menosprezaram a racionalização jurídica
como a corrupção, pela força dupla do racionalismo grego e da dominação
burocrática, de um ofício mais elevado e sutil. Os realistas e pós-realistas
jurídicos americanos fizeram a mesma coisa quando idealizaram a common
law como o produto de um raciocínio contextualizado e experimental que
fez a abstração jurídica parecer intelectualmente fechada. O imperialismo
conceitua! supersticioso dos racionalizadores encontrou seu adversário na
contra-superstição de uma arte jurídica inefável. Muitas vezes, essa liguagem
de prudência prática e artística deixou o pensamento jurídico imune à crí-
tica social.
A incongruência do desprezo pela analogia se torna mais evidente quan-
do lembramos que o estilo analógico de pensamento serviu como veículo
para a concepção mais influente na história de idéias sobre espírito e perso-
nalidade no Ocidente: o entendimento, nas religiões semitas monoteístas
do judaísmo, cristianismo e islamismo, da relação entre Deus e a humani-
dade por analogia às relações entre as pessoas. A narrativa da revelação apro-

83
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

funda a narrativa do encontro pessoal, e afirma a transvaloração revolucio-


nária pela qual o pessoal acaba por ser estimado mais do que o impessoal
como fonte de entendimento e autoridade. O raciocínio analógico e o co-
nhecimento das pessoas são companheiros constantes: a interpretação da
própria experiência e a interpretação da experiência de outras pessoas forne-
cem a cada um as analogias que nos resgatam, pelo menos um pouco, tanto
do solipsismo quanto do desconhecimento de si próprio. A repressão do
juízo analógico no pensamento jurídico resultaria, se conseguisse ser
alcançada, numa desumanização radical do direito: um método para as
pessoas, e outro para as regras.
Devemos abandonar tanto a superstição do imperialismo conceitual
quanto a contra-superstição da arte jurídica. Práticas são práticas. Elas ser-
vem a propósitos múltiplos e parcialmente articulados, da mesma maneira
pela qual moldam os objetivos que podemos perseguir e as possibilidades
que podemos acalentar. A elas faltam essências imutáveis. Tornamo-nos acos-
tumados à idéia de que os métodos da ciência natural variam, devagar e por
via indireta, conforme o conteúdo de nossas explicações científicas. O mes-
mo se aplica ao raciocínio jurídico: assim, já dei o exemplo de como o estilo
de racionalização no pensamento jurídico da atualidade difere dos métodos da
ciência jurídica do século XIX, e de como essa passagem metodológica é
vinculada à mudança na visão material do direito.
Nossas práticas de discurso podem ser modificadas, por vezes delibera-
damente, mas sempre lentamente. A razão por que é difícil mudar é que,
em grande medida, somos a soma de práticas de discurso e de ação. A
razão por que, não obstante, somos capazes de mudar nossas práticas é que elas
nunca nos definem por inteiro: gozamos de um resíduo de capacidade pro-
dutiva e criativa que elas não consomem ou dominam. Os objetivos que
perseguimos por meio delas nunca são os nossos únicos objetivos possíveis.
Se formos confiar presunção de autoridade superior à reconstrução ra-
cional do direito, seja pelo método de princípios e políticas públicas seja
por qualquer outro, não podemos fundar essa presunção na necessidade de
pensarmos mais clara e coerentemente sobre o direito. Devemos reivindicar
um valor mais restrito e mais social para a prática racionalizadora. O valor
mais freqüentemente invocado para esse fim é o compromisso de manter o
estado de direito e um sistema de direitos.

84
AS QUATRO RAÍZES DA ANÁLISE
JURÍDICA RACIONALIZADORA
A defesa de um sistema de direitos

O estado de direito e o sistema de direitos

A justificação da análise jurídica racionalizadora mais comumente ex-


pressa é a crença de que a integridade de um sistema de direitos ou do
estado de direito exige alguma coisa parecida com aquela abordagem do direi-
to. Nessa visão, o estilo de doutrina jurídica baseado em princípios e orien-
tado por políticas públicas é o antídoto indispensável à arbitrariedade no
raciocínio jurídico. Ele permite que as pessoas se mantenham seguras em
seus direitos ao mesmo tempo que restringe o poder no direito. Dentro
de limites amplos, as pessoas podem entender o significado do direito e o
modo como ele é cumprido. Os cidadãos podem participar no mesmo pro-
cesso de justificação pública que os próprios juízes devem usar. E, mais
importante, a natureza dos fundamentos para decisão fornecidos pelo racio-
cínio jurídico racionalizador goza de uma capacidade de generalização e
seleção consideráveis.
Supõe-se que a um método analógico contextualizado faltariam essas
capacidades: se a lista de fins pertinentes é aberta, e se o método de raciocí-
nio é não-cumulativo, o fundamento para a crítica de qualquer comparação
ou distinção analógica específica permanecerá sempre frágil. Conseqüente-
mente, o analogista será capaz de escapar ileso fazendo tudo o que quiser
fazer. Se ele parece constrangido, o constrangimento advirá menos do pró-
prio método analógico do que de um fundo de costume e cultura densa-
mente partilhado. Contudo, uma grande razão para valorizar de antemão o
sistema de direitos e o estado de direito é a possibilidade de liberar a diver-
sidade de alguns de seus horrores. Se estivéssemos na situação de uma tribo
estereotipada, unida por visão e valores vivamente definidos e partilhados,
não precisaríamos do estado de direito, ou nem mesmo o desejaríamos. O
estado de direito pertence a uma circunstância histórica carente dos cons-
trangimentos que tornariam a prática da analogia previsível.

85
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Se a analogia não é capaz de conter a arbitrariedade, também não o é,


por outro lado, a disposição de considerar o raciocínio jurídico como um
substituto para o conflito ideológico continuo na sociedade. Se a análise
jurídica fosse apenas a continuação da política por outros meios, a deter-
minação de direitos em qualquer litígio específico permaneceria subordi-
nada aos compromissos ideológicos de quem quer que tivesse o poder
para decidir. A democracia cairia por terra junto com os direitos: não
importa quais leis os representantes do povo decidissem estabelecer, os
intérpretes do direito seriam capazes de refazê-las à sua vontade, sob o
pretexto de as reinterpretar. Assim, a análise jurídica racionalizadora - tal
como alegam seus defensores - ocupa a posição vital entre a gratuidade
depressiva do direito como analogia e a irresponsabilidade maníaca do
direito como ideologia.
Que é, precisamente, o sistema de direitos, ou a sua outra face, o
estado de direito? O estado de direito existe quando os detentores do
poder estão vinculados por regras gerais, mesmo que essas regras sejam
estabelecidas pelos próprios detentores do poder. Para eles, estar vincu-
lados significa, em parte, que essas regras devem ser interpretadas, apli-
cadas e executadas de maneiras que possam ser entendidas publicamen-
te. Os fundamentos para decisão não devem dar vazão a julgamentos
caso a caso de interesses estratégicos sem nenhuma relação geral ou ra-
zoável com as regras. As conseqüências de uma interpretação podem ser
relevantes para a sua capacidade de persuasão, mas apenas na medida
em que retirem seu peso e sentido de fins impessoais de bem-estar e
dever moral.
Onde o estado de direito reina, as pessoas gozam de proteção num
sistema de direitos. Elas sabem que o direito e a doutrina jurídica esta-
belecidos moldarão seus direitos, e que o desenvovimento interpretativo
das regras e doutrinas jurídicas no decorrer do tempo será conformado
tanto pelo sentido comum das palavras quanto por preocupações im-
pessoais, atribuídas racionalmente ao direito, que todos podem enten-
der. Conseqüentemente, o estado de direito e o sistema de direitos podem
existir mesmo na ausência da democracia. Um certo tipo de democracia
iliberal - a democracia como governo da maioria - pode existir sem o
sistema de direitos.

86
AS QUATRO RA1ZES - A DEFESA DE UM SISTEMA DE DIREITOS

A análise jurídica racionalizadora e o sistema de direitos

O estado de direito e o sistema de direitos, assim prossegue o raciocínio,


exige que a análise jurídica racionalizadora, ou algo muito parecido com.
ela, exista como o método público de entendimento do direito e de seu desen-
volvimento através de aplicação motivada. Nessa prática de "elaboração racio-
nal" do direito como uma empresa finalística, a preocupação com a generali-
dade do entendimento e da aplicação é soberana. Devemos respeitar a
distinção entre produção do direito e aplicação do direito. Devemos equili-
brar a deferência ao precedente com a necessidade de deixar o direito, após
uma decisão, numa condição organizada: uma condição que permita a juízes,
outras autoridades, advogados e também pessoas comuns a entender e obe-
decer o direito, e qualquer parte substancial dele, antes como um esquema
racional do que como uma coleção disforme de acidentes e compromissos.
Em tal esquema, diferenças de tratamento têm relação com objetivos nortea-
dores, descritos como políticas públicas e princípios.
Ao julgarmos a pretensão da análise jurídica racionalizadora em repre-
sentar o antídoto indispensável à arbitrariedade no direito, devemos nos
fazer perguntas comparativas. Toda prática de análise jurídica, salvo por um
dedutivismo extremo e impraticável, reconhece alguma liberdade de julga-
mento como necessária ao seu trabalho. Toda prática de análise jurídica,
salvo por um subjetivismo radical e impraticável, cria oportunidades para
julgamentos discricionários a que resiste aproveitar, por medo de que
aproveitá-las seria reivindincar e impingir autoridade ilegítima e insusten-
tável. A análise jurídica racionalizadora, no fim, gera formas de arbitrarie-
dade que são pelo menos tão problemáticas, intelectual e politicamente,
como as de seus rivais conhecidos. Sua alegação de que é necessária ao estado
de direito ou ao sistema de direitos, portanto, não se sustenta.

As duas genealogias do direito

Comecemos pela distinção, pressuposta pela reconstrução racionalista


do direito e seu método de "elaboração racional", entre as genealogias
prospectiva e retrospectiva da ordem jurídica. Prospectivamente, o direito
é o produto de conflito coletivo real, conduzido por um longo período de
tempo, entre vontades e imaginações, interesses e visões muito diferentes.
Quando o estado de direito é estabelecido na forma de democracia, esse

87
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

pluralismo adquire valor explícito e positivo: tornar possível a escolha


coletiva de estruturas sociais em face de um pluralismo profudamente
arraigado e organizar o conflito de modo a revigorar em vez de reprimir o
pluralismo é uma maneira de definir o objeto da democracia. Se a demo-
cracia fosse simplesmente uma tentativa de descobrir um esquema racional
de vida, normalmente mais bem conhecido de especialistas e filósofos, e
dele se aproximar, ou se seus conflitos de interesse e visão fossem superfi-
ciais ou sem valor, o papel correto das instituições democráticas numa
sociedade democrática seria de pouca monta e o alcance da escolha demo-
crática, restrito.
A força determinante da pluralidade de interesses e visões, vontades e
imaginações na genealogia prospectiva do direito não está confinada às so-
ciedades democráticas. Ela existe, como fato histórico se não também na
doutrina oficial, em praticamente qualquer circunstância social real. Ela só
não vale em duas situações-limite e em grande medida míticas.
Numa dessas situações, o poder de produção do direito é concentrado
numa só pessoa, ou num grupo muito compacto de governantes com o
mesmo jeito de pensar. Não é suficiente, contudo, para esses ditadores in-
dividuais ou coletivos, manejar todo o poder; é necessário que eles, de algu-
ma forma, consigam manter esse poder no decorrer do tempo, impedindo
que seus sucessores o limitem ou reduzam. Assim, ainda mais miraculo-
samente, eles devem deixar a sociedade flexível a seus desígnios e impedi-la
de mudar suas leis ao aplicá-las. Para realizar esse plano, eles precisam de
intermediários - capatazes e sentinelas. Tais subordinados, contudo, amea-
çam ter objetivos próprios.
A outra situação-limite é aquela da sociedade tribal fictícia em que
consenso sobre valor e entendimento sufoca o conflito de vontades e ima-
ginaç~es. Nessa circunstância, contudo, o costume se substitui ao direito
criado pelo Estado; as mesmas atividades servem para criar, reproduzir e
aplicar o direito.
O direito produzido pela genealogia prospectiva de conflito inexorável
será confuso, e ainda mais confuso numa democracia que valorize e
institucionalize o pluralismo. Ele será rico em acordos materializando equi-
líbrios diferentes entre interesses e visões conflitantes. Soluções antagônicas
para problemas semelhantes coexistirão. Suas fronteiras de aplicação per-
manecerão incertas. Os interesses e ideais favorecidos em alguns campos
serão desprestigiados em outros por nenhuma outra razão senão a seqüên-
cia em que certos conflitos decisivos tiveram lugar e a influência relativa

88
AS QUATRO RA1ZES - A DEFESA DE UM SISTEMA DE DIREITOS

desfrutada por grupos de opinião em disputa a cada momento. Modas


intelectuais se unirão a interesses preponderantes para produzir resultados
que apenas interesses ou modas sozinhos não nos permitiriam prever. Solu-
ções derrotadas ou rejeitadas permanecerão, de modo incongruente, relegadas
às margens do direito como vestígios de abordagens e profecias passadas
sobre alternativas possíveis. Múltiplas exceções vão eviscerar as soluções con-
sideradas dominantes. O potencial de tais exceções para se tornar soluções
alternativas gerais permanecerá, não obstante, adormecido. O que para al-
guns parece o sono da razão será adamado por outros como a virtude do
acordo e o triunfo da experiência.
O direito, tal como representado pelo ponto de vista restrospectivo da
análise jurídica racionalizadora, deve, contudo, mostrar outra cara. Grandes
pedaços do direito, com todo o entendimento jurídico aceito, devem ser
redescritos e reconstruídos como aproximações a um plano. Além do mais,
deve ser um plano suscetível de expressão na liguagem generalizante e relati-
vamente abstrata de princípios e políticas públicas. A lógica imune a abstra-
ções de um tradicionalista ao estilo de Burke - ou, do mesmo modo, de um
jurista romano clássico - não será boa o bastante. Esse plano é tal que uma só
mente - uma só vontade e uma só imaginação - poderia tê-lo concebido.

O poder de revisão

De acordo com os dogmas dessa teoria jurídica dominante, a análise do


direito deve desfrutar de uma medida de poder de revisão. O intérprete
do direito deve ser livre para rejeitar parte dos entendimentos jurídicos
convencionalmente aceitos como errados à medida que ele aperfeiçoa e de-
senvolve o esquema interpretativo de políticas públicas e princípios. O poder
de revisão não é só uma exigência de eficácia prática, exercido para adaptar
o direito estabelecido a circunstâncias cam.biantes. É também um impera-
tivo de convencimento racional.
Todo estudante de direito já experimentou uma facilidade inquietante
ao realizar uma racionalização restrospectiva: dado, por exemplo, um
número pequeno de decisões aparentemente incoerentes e uma deter-
minação de torná-las consistentes, há quase sempre um conjunto mais
ou menos plausível de propósitos, argumentos e distinções capazes de
conferir uma aparência de razão ordenada aos textos. Alguns desses esfor-
ços podem ser mais convincentes do que outros: há uma medida variá-

89
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

vel de plausibilidade e persuasão. Nessa medida, contudo, não encontra-


mos sinais claros distinguindo os casos legítimos e os exorbitantes numa jus-
tificação restrospectiva.
Se coubesse à análise jurídica dar sentido a todo o conhecimento jurídi-
co convencionalmente aceito, ela não daria sentido a nada. O poder de
revisão é uma condição de autoridade persuasiva e também de adaptabili-
dade prática.

Políticas públicas, princípios de direito e modelos teóricos

Dada uma medida estabelecida de poder de revisão, como saberemos


quais os conhecimentos jurídicos estabelecidos que podemos rejeitar numa
determinada parte do direito como errados? Devemos ver quais desses en-
tendimentos não se conformam ao esquema de políticas públicas e princí-
pios em desenvolvimento. Esses objetivos e políticas correspondem, por
sua vez, a fragmentos de uma concepção prescritiva mais abrangente de
áreas inteiras do direito e da prática social. Essas concepções devem ter a
natureza de modelos teóricos.
É verdade que, para qualquer um, à exceção dos juristas acadêmicos, a
- transformação de conjuntos ligados de políticas públicas e princípios em
concepções prescritivas plenamente desenvolvidas e sistemáticas não preci-
sa ser realizada; pode permanecer como um limite ideal ou um ideal
regulatório, em vez de um resultado real, do discurso: Embora a transfor-
mação possa permanecer não cumprida, ela deve, não obstante, ser pressu-
posta. Se políticas públicas e princípios ligados não fossem fragmentos de
concepções mais abrangentes ao estilo de modelos teóricos, eles seriam pouco
mais do que bases melhoradas para comparação e distinção analógicas. Os
mesmos argumentos que se aplicassem contra a desordem da analogia se
aplicariam a eles. Se princípios e políticas públicas não são ancorados, por
baixo, a analogias contextualizadas, eles devem ser atrelados, por cima, a
teorias prescritivas. Esse atrelamento acentua ainda mais o contraste entre
as genealogias prospectiva e retrospectiva do direito: entre o direito como o
produto de conflito relativamente desordenado e o direito como a expres-
são de teoria relativamente ordenada.
O entendimento do papel de concepções sob a forma de teorias como
limites ideais de argumentos sobre políticas públicas e princípios nos permi-
te refinar o contraste entre as duas genealogias do direito. A análise jurídica

90
A5 QUATRO RAÍZES - A DEFESA DE UM SISTEMA DE DIREITOS

racionalizadora e suas teorias de apoio descrevem áreas substanciais do direito


e da doutrina jurídica como se movendo em direção à ordem conceitua! de
teorias prescritivas abrangentes. Estas podem ser teorias do mercado, ou
da democracia representativa, ou das responsabilidades recíprocas a que cada
um se obriga na vida comum ou da família e do desenvolvimento da persona-
lidade dentro dela. A voz da razão deve se pronunciar, embora atrasada, na
história, redescrevendo e reorientando a confusão histórica.
O poder de revisão, seja forte ou fraco, é incompatível com a missão
auto-atribuída do raciocínio jurídico. Sua conseqüência seria solapar com-
pletamente a diferença entre interpretar o direito e aplicá-lo. Sob o disfarce
de interpretar o direito, os analistas jurídicos se tornariam seus autores efeti-
vos, usurpando o poder dos poderes democráticos do Estado e pervertendo a
segurança no gozo de direitos. Não é clara qual a medida correta de poder de
revisão na análise jurídica racionalizadora, nem mesmo onde devemos pro-
curar as idéias e critérios que nos guiariam na estipulação de tal medida. Logo
voltarei a essa questão. l?or enquanto, é suficiente observar que a manutenção
da integridade da análise jurídica racionalizadora exige que constrangimentos
severos sejam impostos ao exercício de seu poder de revisão.

O desacordo inerradicdvel entre as duas genealogias do direito

Para que esses constrangimentos funcionem, as genealogias prospectiva


e retrospectiva do direito devem coincidir em larga medida - em que medi-
da, exatamente, depende da nossa visão da quantidade adequada de poder
de revisão. O direito produzido prospectivamente como o produto de von-
tades e imaginações, interesses e ideais conflitantes deve se assemelhar ao
direito representado retrospectivamente como a expressão de políticas pú-
blicas e princípios ligados. Os analistas do direito precisam superar o hiato,
qualquer que ele seja; pelo exercício do poder de revisão da análise jurídica.
O exercício inconfesso e dissimulado desse poder é uma fonte de poder
arbitrário e injustificado ainda mais perturbadora do que um reconheci-
mento franco o seria. Contudo, se o hiato entre as genealogias prospectiva e
retrospectiva do direito se torna muito grande, a pressão será irresistível
para ocultar parte do exercício de revisão, apresentando como interpretação
fiel o que é, na verdade, aperfeiçoamento reconstrutivo.
Sob que pressupostos poderiam as genealogias prospectiva e retros-
pectiva coincidir substancialmente em seus resultados? Devemos supor

91
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

que as forças de produção do direito não são tão distintas e opostas como
elas pensam ser. Elas atuam como agentes de pressupostos ocultos - uma
consciência ou ideologia latente e partilhada - ou de imperativos práticos
entendidos sem muita clareza - tais como os imperativos institu-
cionalmente determinados de eficiência e crescimento. Não é suficiente
que esses constrangimentos ocultos e conformadores sejam aplicados es-
taticamente a fatias do tempo histórico. Eles devem fornecer uma lógica
evolucionária, conduzindo o direito, no decorrer do tempo, em direção a
um esquema que possamos, retrospectivamente, redescrever na lingua-
gem de concepções ideais coerentes e em desenvolvimento. Do negro cam-
po de batalha, onde exércitos inconscientes se chocam, surge o esquema
racional. Somente conseguimos reconhecer seu contorno depois que ope-
rários quase sem saber tenham colocado suas peças no lugar certo. A in-
terseção das genealogias prospectiva e retrospectiva do direito repousa na
crença em uma racionalidade evolutiva imanente, prática ou moral, que
controle o desenvolvimento do direito e minimize o conflito transparente
entre os criadores do direito. A análise jurídica pode preencher as lacunas
e aparar as arestas no curso da realização legítima de sua função de aper-
feiçoamento. Numa grande medida, contudo, ela desempenha o papel da
Coruja de Minerva de Hegel, abrindo suas asas ao cair do crepúsculo e
i"evelando ao poder sua razão até então não percebida.
A distinção entre as genealogias prospectiva e retrospectiva do direito
se aplica com menos clareza ao direito criado pelos juízes, como na common
law anglo-americana. Perceba, contudo, a razão. A autoridade para decla-
rar o direito deve se concentrar numa elite relativamente isolada e contí-
nua no tempo. Essa elite pode considerar sua tarefa conio sendo a de
desenvolver, no decorrer do tempo, as exigências de normas implícitas de
organização humana ou hierarquia social, normas apenas tangencialmente
influenciadas por escolha deliberada. A pressuposição de uma lógica
evolutiva imanente continua a valer nessa visão. Conciliamos as genealogias
prospectiva e retrospectiva do direito ao limitarmos o âmbito do conflito
e da escolha sobre as condições da vida em soc~edade. À medida que vemos
os juízes e as decisões judiciais, num sistema de direito criado pelos juízes,
como agentes de interesses e visões conflituosos e parciais, o problema das
duas genealogias reaparece.
A distinção entre as genealogias prospectiva e retrospectiva do direito
deixou sua marca nos dois vocabulários convencionais de discussão do di-
reito: a linguagem dos grupos de interesse, do direito como acordos, e a

92
AS QUATRO RAfZES - A DEFESA DE UM SISTEMA DE DIREITOS

linguagem idealizadora do direito como políticas públicas e princípios.


Nenhum dos vocabulários é uma descrição precisa das práticas concer-
nentes ao d.irei to em que são precipuamente empregados. Sua coexistência
desconfortável, não obstante, fornece um testemunho indireto do proble-
ma das duas genealogias do direito.
Há dois problemas distintos com os pressupostos que nos dariam es-
peranças de uma sobreposição considerável entre as duas genealogias.
Primeiro, esses pressupostos se tornaram literalmente inverossímeis à luz
do desenvolvimento do pensamento social e histórico contemporâneo.
Segundo, fossem eles verdadeiros, teriam como conseqüência o enfraque-
cimento da importância da democracia, limitando drasticamente a gama
de atividades sociais que poderíamos colocar sob controle democrático.
Consideremos cada uma dessas objeções por vez.
Não precisamos adotar uma postura muito polêmica nos debates da teo-
ria social contemporânea para reconhecer que as idéias conexas de uma lista
curta de sistemas institucionais possíveis e de uma seqüência evolutiva prede-
terminada de etapas de desenvolvimento institucional sofreram um revés. O
conhecimento histórico e a experiência prática se uniram para miná-las. É
verdade que a combinação de explicação funcional com pressupostos sobre a
existência de sistemas ou etapas institucionais indivisíveis sobreviveu em certas
variantes da economia e da história institucional orientada economicamente.
A direção geral dos estudos sociais e históricos há mais de um século, não
obstante, pode ser descrita como uma travessia hesitante para longe desses
tipos de determinismo outrora dominantes. Seus resíduos sobrevivem em
nosso vocabulário - no nosso uso de termos como capitalismo ou na nossa
distinção entre as políticas revolucionária e reformista - mesmo quando ten-
tamos eliminá-los de nossas crenças em vigor.
Podemos continuar a acreditar que vantagens funcionais - por exemplo,
o sucesso comparativo no favorecimento do dinamismo tecnológico ou da
mobilização de recursos e força humana - podem ajudar a explicar o suces-
so relativo de certas estruturas. Contudo, as vantagens funcionais não esco-
lhem a partir de uma lista fechada ou de uma seqüência unilinear de ordens
institucionais. Elas trabalham com os materiais institucionais e ideológicos
disponíveis, e que resultaram de seqüências pouco interligadas de conflito
prático e imaginativo.
Além disso, uma estrutura preexistente de influência e vantagem sempre
verga a balança da escolha institucional: a vantagem funcional é normal-
mente contrabalançada com a pressão para minimizar o trauma à estrutura

93
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

de privilégio estabelecida. Assim, por exemplo, em vez de vermos o siste-


ma de direito privado forjado na Europa dos séculos XVHI e XIX como a
descoberta da estrutura jurídica natural da sociedade de mercado, come-
çamos a vê-lo, de forma mais realista, como um compromisso. Ele conciliou
as prerrogativas das classes sociais formadas no vácuo decadente do
Standestaateuropeu com as vantagens práticas apresentadas pela descentra-
lização de oportunidades econômicas e pela generalização de direitos econô-
micos. Se o compromisso era frágil e mutável em seu todo, era também
frágil e mutável em cada uma de suas partes.
Já indiquei como a ciência do direito no século XIX, tendo pretendido
defender a idéia de um sistema racional de direitos, contribuiu, por sua capa-
cidade de auto-subversão, para destronar essa concepção. Se os estudos sociais
e históricos contemporâneos foram incapazes de rejeitar, de forma definitiva,
um determinismo evolucionista e funcionalista, o motivo pode residir no
medo infundado, porém compreensível, de que uma rejeição por completo
do credo determinista nos abandonaria a um agnosticismo causal.
É verdade que a combinação de explicação funcional com pressupostos
sobre a identidade, indivisibilidade e seqüência de sistemas institucionais, e
com crenças sobre forças imperativas guiando sua evolução, dificilmente es-
gota os modos possíveis de justificação da idéia de um esquema racional reve-
fado pelo desenvolvimento histórico do direito. Esse foi, não obstante, o tipo
mais sofisticado e influente de determinismo jurídico-institucional até agora.
As objeções que podem ser opostas a ele são válidas contra todos os estilos de
explicação que desprezam o caráter específico da transformação social, a natu-
reza mais solta das relações entre as várias seqüências convergentes em qual-
quer história real, a influência desestabilizadora de saltos e fracassos da imagi-
nação e a tendência de nossas idéias sobre a realidade e a possibilidade sociais
e históricas para se tornarem profecias auto-realizáveis.
Além disso, tµna lógica evolucionista capaz d~ conciliar as genealogias
prospectiva e retrospectiva do direito precisa fazer mais do que apenas ex-
plicar a convergência a um sistema institucional com uma lógica própria.
Ela precisa explicar a convergência a uma ordem justificada: uma ordem
contra a qual seria vão e equivocado resistir. Esse é um critério que mesmo
o determinismo evolucionista e funcionalista de teorias sociais de ontem
tiveram problemas para satisfazer. Ele exige confiança na convergência auto-
realizável entre poder e dever. Ele se apóia sobre um hegelianismo de direi-
ta. O hegelianismo de direita é, na verdade, a filosofia da história secretamente
adotada pelo analista jurídico racionalizador. Contudo, ele não consegue

94
AS QUATRO RAfZES - A DEFESA DE UM SISTEMA DE DIREITOS

resistir à luz do dia; sua influência depende de sua natureza em grande medi-
da inconsciente.
Imagine, contudo, que uma explicação como essa da coincidência en-
tre as genealogias retrospectiva e prospectiva do direito fosse justificável.
As conseqüências seriam constrangedoras para as pretensões da democra-
cia. O autogoverno coletivo, com garantias ao pluralismo e à divergência
e com proteções contra a opressão pública e privada, permaneceria possí-
vel. Não obstante, o âmbito da vida em sociedade aberto à autodetermi-
nação coletiva - ou individual - se estreitaria drasticamente. A democra-
cia deve significar, entre outras coisas, a capacidade para escolhermos as
condições da vida em sociedade, não tê-las impostas, sem conhecimento
ou consentimento, pela influência oculta de forças determinantes. Se a
democracia limita o alcance da autodeterminação coletiva pela regra da
maioria e pelo sistema partidário, ela o faz não só em nome de respeito à
autodeterminação individual, mas também a partir do desejo de susten-
tar as condições de rotatividade no Estado. Um esquema racional oculto,
expresso retrospectivamente no desenvolvimento do direito, esvazia a auto-
determinação individual e coletiva de grande parte de seu poder. Ele as
transforma nos instrumentos inconscientes da afirmação de uma necessida-
de superior e divina. O conflito e o debate coletivo organizado podem parecer
menos importantes do que o conhecimento técnico no entendimento, como
um advogado, um economista ou um filósofo, os determinantes desse des-
tino racional. A democracia, contudo, confronta o destino, seja esse destino
racional ou não.
Os dois segredinhos sujos da teoria do direito contemporânea - a teoria do
direito na era da análise jurídica radonalizadora - são sua dependência sob uma
perspectiva hegeliana de direita da história jurídica e social e seu desconforto
com relação à democracia: a adoração do triunfo histórico e o medo da ativida-
de popular. O hegelianismo de direita encontra expressão numa prática cotidiana
que enfatiza a habilidade da história no desenvolvimento da ordem racional-
progressos na eficiência distributiva ou clarificações de responsabilidade
institucional ou princípios de dever moral ou político - a partir da subs-
tância nada promissora do conflito e compromisso histórico. O desconforto
com a democracia se evidencia em todas as áreas da cultura jurídica con-
temporânea: na identificação incessante de limitações à regra da maioria, em
vez de restrições ao poder de minorias dominantes, como a respónsabilida-
de principal de juristas e magistrados; na conseqüente hipertrofia de práti-
cas e estruturas contrárias à regra da maioria; na oposição a toda reforma

95
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

institucional, principalmente aquelas concebidas para elevar o nível de


engajamento político popular, como ameaças ao sistema de direitos; na
identificação de direitos de propriedade com direitos de divergir; no es-
forço para obter de juízes, sob o pretexto de aperfeiçoar a interpretação,
os avanços que a política popular não consegue produzir; no abandono da
reconstrução institucional a momentos raros e mágicos de recriação nacional;
na atenção concentrada em juízes superiores e no seu processo de seleção
como a parte mais importante da política democrática; num ideal de
democracia deliberativa que se torna mais aceitável quanto mais próximo
fica, em estilo, de uma conversa cortês entre cavalheiros numa sala de
visitas do século XVIII; e, às vezes, no tratamento explícito da política
partidária como uma fonte subsidiária e derradeira da evolução jurídica, a
ser tolerada quando nenhum dos métodos mais sofisticados de resolução
jurídica de controvérsias se aplica. Medo e aversão ao povo sempre amea-
çam tornar-se os sentimentos dominantes dessa cultura jurídica. Longe
de estar confinados a variantes conservadoras da doutrina jurídica contem-
porânea, esses sentimentos deixaram sua marca sobre o pensamento jurídi-
co centrista e progressista.
Considere o exemplo mais característico e influente do pensamento ju-
rídico americano na segunda metade do século XX: os textos sobre processo
jurídico de Hart e Sacks, apenas recentemente publicados em livro. Essa
obra tentou assimilar parte da crítica oferecida pelo realismo jurídico aos
métodos tradicionais de doutrina e incorporar a diversidade de formas de
produção do direito que proliferou na esteira do New Deal, ao mesmo tempo
que defendia o método de análise baseado em princípios e orientado por
políticas públicas como a ferramenta-mestra do operador do direito. Ele se
encaixou perfeitamente naquilo que descrevi anteriormente como o segundo
e racionalizador momento da consciência jurídica contemporânea. Nos textos
sobre o processo jurídico, contudo, a produção do direito por órgãos legis-
lativos democráticos surge como um modo derradeiro de produzir o direito,
quando tudo mais falha. Encontramo-nos repentina e estranhamente arre-
messados de volta ao mundo da teoria jurídica da baixa Idade Média, em
que o gubernaculum do príncipe - agora exercido pelos poderes democráti-
cos do Estado - representa uma intervenção episódica e corretiva numa
malha lisa de coordenação, pacientemente reproduzida pela jurisdictio de
todas as instâncias do Estado e da sociedade que julgam conflitos.
Essa marginalização do que esperamos ser, numa sociedade democráti-
ca, a principal fonte do direito, torna o trabalho de uma reconstrução ra-

96
AS QUATRO RAfZES -A DEFESA DE UM SISTEMA DE DIREITOS

cional mais plausível. Se podemos confinar os poderes políticos e deixar o


desenvolvimento caso a caso do direito nas mãos de especialistas compro-
metidos com um método de elaboração racional, podemos então esperar
que o direito "se autopurifique" no decorrer do tempo. As limitações à
democracia abrem o espaço em que as profecias auto-realizáveis do
hegelianismo de direita podem se realizar. Um direito que é manejado e
examinado constantemente pelos devotos do método de políticas públicas
e princípios pode finalmente parecer como se fosse a expressão de concep-
ções prescritivas sob a forma de teorias em direção às quais os argumentos
de políticas públicas e princípios devem caminhar.
A conclusão provisória do raciocínio conduzido até este ponto é que não
possuí~os uma ponte verossímil e legítima entre as genealogias prospectiva e
retrospectiva do direito. Alguns tiveram a esperança de suprir o elo faltante
através do recurso a um conjunto especial de idéias legitimadoras e restritivas
sobre o exercício do poder de revisão na análise jurídica. O direito, tal como
visto pelos juízes, ou por analistas do direito que ocupam a posição imaginá-
ria de juízes, deveria, nessa visão, parecer diferente do direito visto por um
cidadão, um historiador ou um cientista social. Uma medida modesta de
poder de revisão é tudo de que a análise jurídica profissional pode desfrutar.
Um exercício auto-refreado desse poder será suficiente para fechar o hiato
entre o direito como política e o direito como razão.

O poder de revisão reexaminado

Retornemos agora à questão deixada em aberto antes. A que idéias po-


demos recorrer com segurança no esforço de determinar a medida correta
de poder de revisão na análise jurídica? Consideremos os candidatos mais
proeminentes. Podemos dizer que a tradição profissional numa cultura ju-
rídica determina o grau adequado de poder de revisão. Na hipótese de que
pudéssemos concordar em conceder aos juristas essa autoridade implícita
sobre o alcance reconstrutivo de seu próprio discurso, ainda concluiríamos
que o pressuposto fático da proposta é falho. Normalmente, não há consen-
so entre os juristas, muito menos na sociedade, sobre o grau de poder de revisão
adequado à análise jurídica. Todo mundo já ouviu os debates america-
nos sobre ativismo judicial e autocontenção judicial, o vocabulário em que
os norte-americanos mais freqüentemente lidaram com o problema dopo-
der de revisão. Um debate similar, forjado num vocabulário diferente, exis-

97
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

tiu em todas as principais tradições jurídicas - a common law e tradições


romano-germânicas do direito, direito canônico e secular. Uma corrente de
preocupações análogas se estende da discussão do ativismo judicial nos Es-
tados Unidos aos debates antigos sobre o poder criador do istihsan e istislah
no shari'a islâmico. A discussão sobre a extensão do poder de revisão está em
todos lugares e é insuprimível porque suscita, sob a forma de uma questão
de método, a mais litigiosa das perguntas: quem pode causar o quê a quem?
Uma segunda sugestão de fonte para um critério sobre a efetivação de
revisões é o recurso a uma teoria prescritiva das responsabilidades apropria-
das para um juiz, em particular, ou para um intérprete jurídico profissio-
nal, em geral. Se o sistema de direitos é instituído numa democracia políti-
ca, tal doutrina seria uma variante da teoria democrática. Para atender a seu
propósito, contudo, ela não deve ser apenas uma teoria de alguém aberta a
discussão; deve ser uma explicação das responsabilidades dos diferentes atores
de um sistema jurídico que dê mais sentido às tradições institucionais,
estruturas e ideais da comunidade política - mais sentido significando, a
um só tempo, o maior sentido e o sentido mais defensável. Em outras pala-
vras, ela deve manter a mesma relação com essas regras institucionais que
políticas públicas e princípios ligados - e as concepções ideais em que eles
se transformam - mantêm com o direito estabelecido e com os conheci-
mentos jurídicos aceitos em geral.
Agora, contudo, nos encontramos de volta ao problema das duas
genealogias e o insuperável hiato entre elas. As estruturas que definem e
organizam as funções dentro de um sistema jurídico específico são tanto
produtos de vontades e imaginações em disputa, e de idéias e interesses
em choque, quanto qualquer outra parte do direito. Aquilo que parece
estabelecido num momento é o resultado de muitas seqüências de confli-
to e controvérsia fragilmente interligadas, e dos acordos mais ou menos
enviesados para um lado que as conteve durante certo tempo. Os pressu-
postos com base nos quais tais acordos poderiam convergir para uma con-
cepção sob a forma de teoria não são verossímeis nem legítimos. Se pu-
déssemos acreditar neles, consideraríamos vexatórias suas implicações para
a democracia.
Quando afastamos a solução consensual e a solução teórica para o pro-
blema da definição de um padrão de poder de revisão na análise jurídica,
chegamos a uma terceira e agnóstica posição. Dessa posição, recusamo-nos
a nos arrogar o direito de julgar uma prática discursiva coletiva como a
análise jurídica. Sustentamos que tais práticas são mais profundas que nos-

98
AS QUATRO RAÍZES - A DEFESA DE UM SISTEMA DE DIREITOS

sas teorias e mais ricas que nossos compromissos. Dizemos que o grau cor-
reto de poder de revisão no raciocínio jurídico é apenas aquele que o racio-
cínio jurídico possui. Devemos, portanto, manter nossos dedos cruzados
para que a medida de revisão necessária para o exercício de boa-fé do méto-
do finalista de políticas públicas e princípios permaneça modesta, modesta
o suficiente para conservar as distinções entre legislação e aplicação do di-
reito, bem como entre o conflito aberto de interesses e ideologias e o desen-
volvimento racional do direito criado por juízes.
O que nos legitima a manter nossos dedos cruzados nessa expectativa?
Precisamos encontrar legitimidade nas crenças que explicariam como as
genealogias prospectiva e retrospectiva do direito poderiam, afinal, coin-
cidir substancialmente. O hiato entre as duas genealogias pode permane-
cer tão amplo que qualquer medida real em que a análise do direito rejeite
os conhecimentos aceitos do direito como equivocados pode ser insufi-
ciente para resgatar o direito de sua desordem analógica e política, mas
ainda assim grande demais para preservar a diferença entre direito e polí-
tica. Assim, a discussão do poder de revisão na teoria jurídica acaba por
reafirmar, em vez de atenuar, o problema da divergência entre o direito
tal como criado prospectivamente e o direito representado e reconstruído
retrospectivamente.

A estrutura argumentativa da teoria jurídica contemporânea

A estrutura argumentativa recorrente das escolas de pensamento jurí-


dico mais notórias da atualidade torna-se agora mais inteligível. Lembre-
mos que todas essas escolas reconhecem a necessidade de fundar a discussão
de políticas públicas e princípios num conjunto de concepções prescritivas
sob a forma de teorias. Todas se recusam a tratar os fins norteadores evo-
cados no raciocínio jurídico como meras razões ampliadas para realizar ou
rejeitar comparações analógicas. Todas conferem prioridade ao vocabulá-
rio mais adequado a suas concepções favoritas: doutrinas de dever moral e
político, objetivos de eficiência distributiva ou critérios para manter cada
ator do processo jurídico cuidando de sua própria vida. Todas as escolas
reconhecem que o analista do direito deve, no exercício legítimo de seu
trabalho de aperfeiçoamento, inserir no direito um pouco do conteúdo
imaginário de políticas públicas e princípios, ao mesmo tempo que des-
cobre parte do conteúdo já dentro do direito estabelecido, esperando para

99
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

ser tornado explícito. Todas as escolas trilham um caminho intermediário


entre uma idealização inacreditável do direito, que pode servir de disfarce
para a usurpação do poder pelos operadores do direito, e a usurpação
direta do poder que resultaria da hipertrofia da responsabilidade dos ju-
ristas para aperfeiçoar o direito pela rejeição revisionária de parte dos
entendimentos aceitos do direito como equivocadas. Para todas, o proble-
ma da interseção das genealogias prospectiva e retrospectiva do direito
permanece crucial: deve existir um alto grau de interseção para que as
restrições ao aperfeiçoamento e à idealização do direito sejam simultanea-
mente viáveis.
Nenhuma dessas escolas de pensamento jurídico, contudo, apresenta uma
razão convincente, ou mesmo coerente, para supormos que tal interseção em
alto grau exista. Nenhuma delas mostra como ela poderia existir, se existisse,
sem criar dificuldades para as pretensões da democracia. Todas estão, portan-
to, permeadas pelo espírito do hegelianismo de direita, que supõe uma
racionalidade imanente e legítima no desenvolvimento do direito.
A idéia de que a história do direito é pontuada por interlúdios de entu-
siasmo coletivo e inovação institucional- tais como a Reconstrução pós-Guerra
Civil e o New Deal nos Estados Unidos - atenua esse desconforto com a
política democrática, sem eliminá-lo. Nessa visão, a análise convencional do
direito permanece, em seu método e atitudes, distante dos momentos criati-
vos que lhes dão estímulo. Não obstante, essa abordagem bifurcada da histó-
ria do direito incorpora mais democracia do que as escolas de pensamento
jurídico convencionais precisamente porque faz menos concessões ao
hegelianismo de direita. Os momentos de recriação coletiva interrompem,
imprevisivelmente, o progresso evolucionário do direito, introduzindo no-
ções não experimentadas e ressaltando inquietações reprimidas.

Arbitrariedade no antídoto à arbitrariedade

Temos agora os meios pelos quais podemos identificar e explicar as for-


mas de arbitrariedade sobrepostas e complementares características da aná-
lise racionalizadora do direito. Há a arbitrariedade que consiste na escolha
de um vocabulário de princípios e políticas públicas em vez de outro e de
uma família de concepções prescritivas sob a forma de teorias em vez de suas
rivais. Se a identidade de vantagens funcionais e forças teleológicas na his-
tória é irremediavelmente controversa, seu caráter controverso torna-se pro-

100
A5 QUATRO RAfZES - A DEFESA DE UM SISTEMA DE DIREITOS

blemático quando a escolha de teleologias se transforma num motivo para


manejar o poder coercitivo estatal numa direção em vez de noutra.
Há a arbitrariedade que resulta do ato de estender a racionalidade orde-
nada do direito e dos entendimentos jurídicos estabelecida: o problema é
que ela pode ser estendida, mais ou menos plausivelmente, em muitas dire-
ções diferentes, dependendo do vocabulário escolhido para discutir políti-
cas públicas e princípios. A cada aumento na extensão corresponde um
exercício de poder não reconhecido e insuscetível de controle.
Há a arbitrariedade que resulta da execução da tarefa de aperfeiçoamento
mais ou menos claramente - ou seja, com maior ou menor poder de revisão.
Nós não apenas não dispomos de uma definição convencionada da medida
correta de poder de revisão; também não dispomos de um corpo de noções
para o qual possamos justificadamente nos voltar na busca por esse critério.
Há a arbitrariedade produzida pelo impulso de brincar irresponsavel-
mente com quaisquer modelos teóricos de políticas públicas e princípios
ligados que venhamos a preferir, mexendo de forma ad hoc com as concep-
ções de modo a melhor limitar seu conflito aberto com o direito e os enten-
dimentos jurídicos estabelecidos.
O efeito cumulativo dessas formas associadas de arbitrariedade é maior
ou menor do que as incertezas prosaicas do raciocínio analógico contex-
, tualizado e aberto a discussão? Não possuímos o sistema de medidas neces-
sário para efetuar essa comparação. O que podemos afirmar com certeza,
contudo, é que o componente de discricionariedade incompreendida e sem
rigor na análise jurídica racionalizadora é menos transparente e mais ambi-
cioso do que em suas contrapartidas na desordem da casuística.
É menos transparente porque depende, em cada uma de suas hipóteses,
do uso especulativo de concepções especulativas, num contexto de decisão
prática em que a pressão é grande para que as controvérsias sejam
minimizadas. A pressão é grande porque a questão inteira do exercício é
sustentar a visão da análise do direito como uma prática de ponderação
racional altamente vinculada e dirigida. O analogista mantém suas incerte-
zas às claras, exibindo-as como parte de sua atividade. O intérprete
racionalizador do direito deve negar seus tipos de arbitrariedade porque
cada uma delas o obriga a ficar face a face com o problema desmoralizante das
duas genealogias e do hiato entre elas.
Se, por um lado, a arbitrariedade do método de princípios e políticas
públicas é menos transparente que seus equivalentes no raciocínio analógico,
por outro ele também é mais ambicioso. Mais do que oferecer apenas mais

101
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

uma descrição do direito, ele propõe outro modo de melhorá-lo. Além disso,
ele conquista parte de seu território a partir do recuo da democracia popular.
A interpretação e a defesa da análise jurídica racionalizadora como uma
exigência do estado de direito ou de um sistema de direitos, portanto, fra-
cassa. O estilo canônico de doutrina jurídica não pode ser entendido como
a conseqüência inevitável da necessidade de pensarmos clara e coerente-
mente sobre o direito. Tampouco podemos explicá-lo e justificá-lo como o
antídoto à arbitrariedade que protege o estado de direito ou um sistema de
direitos. Ele precisa de um propósito mais bem definido.

102
AS QUATRO RAÍZES DA ANÁLISE
JURÍDICA RACIONALIZADORA
O reformismo progressista pessimista

O reformismo conservador

O reformismo conservador é a família de projetos políticos para a qual a


análise jurídica racionalizadora foi aproveitada e da qual recebeu grande
parte de sua energia e sentido. Quando não mais pudermos compreender o
método generalizante e idealizador do pensamento jurídico como uma exi-
gência do estado de direito, poderemos ainda entendê-lo como a ferra-
menta indispensável de uma certa maneira para diminuir os males da socie-
dade pelo aperfeiçoamento dos efeitos do direito. O traço característico do
reformismo conservador é a combinação de compromisso com objetivos
programáticos e conservadorismo institucional:
Os objetivos programáticos no reformismo conservador são os com-
promissos ideológicos conhecidos que definem as principais posições nos
debates políticos e jurídicos contemporâneos. Eles podem ser forjados no
vocabulário dos partidos políticos e dos grupos de opinião subjacentes:
concorrência econômica e iniciativa individual, distribuição mais am-
pla e igualitária dos benefícios do crescimento econômico e de oportu-
nidades para expressão política e cultural, maior solidariedade social e
desenvolvimento da vida associativa. Alternativamente, eles podem apa-
recer na linguagem das políticas sociais e ideais que os juristas atribuem
a conjuntos de leis: parâmetros de anti-subjugação e antidiscriminação,
em contextos, por exemplo, em que a legislação conforma a distribuição
de benefícios estatais, ou presunções de responsabilidade fiduciária em
situações em que o interesse próprio de representantes ou diretores
conflita com a responsabilidade para com representados e acionistas
ausentes. Não há distinções definidas e inalteráveis entre a expressão
desses compromissos ideais na política partidária e no direito, e as dis-
tinções entre os próprios ideais permanecem evasivas e frágeis. Todas
provêm do mundo de idéias sobre o projeto democrático. Todas, por-

103
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

tanto, situam-se na área de coincidência entre as condições de progresso


material e as condições de independência individual.
No discurso do reformismo conservador, esses ideais, e os modos pelos
quais nós os ligamos a grupos de interesse, devem ser definidos e executados
dentro do arcabouço das instituições estabelecidas, principalmente das for-
mas institucionais herdadas da democracia representativa, da economia de
mercado e de uma sociedade civil livre. Pode haver ajustes institucionais oca-
sionais e localizados, mas eles serão tratados como adaptações a novas circuns-
tâncias, ou como recuperações da forma consagrada da economia de mercado
regulada, em vez de possíveis começos de uma rota ou outra de mudança
estrutural cumulativa. A diferença entre aperfeiçoar uma ordem institucional
e mudá-la pode parecer relativa, e de fato é. O argumento deste capítulo,
contudo, sustenta a tese de que faz diferença se o foco principal de energia
prática e imaginativa jaz no esforço de melhorar ao máximo possível a ordem
institucional estabelecida ou na tentativa de generalizar e ampliar um ajuste
experimentalista dessa estrutura. Faz diferença para o futuro da democracia e,
portanto, para as aspirações à liberdade e à prosperidade.
Todas as versões do reformismo conservador - o tipo padrão de uma po-
sição programática na política contemporânea - sofrem de uma instabilidade
interna característica. Os dois lados de cada posição - os compromissos ideais
definidores e o conservadorismo institucional - lutam entre si. Quando
nos agarramos firmemente à estrutura institucional estabelecida, descobri-
mos que abandonamos grande parte do nosso ideal professado. Por exemplo,
se nosso projeto tem como objetivo aumentar a concorrência e a descentra-
lização econômica, mas o regime de propriedade estabelecido impede maior
desmembramento de agregados de poder econômico senão por grandes perdas
de eficiência econômica, podemos nos resignar à descentralização possível no
sistema atual, selecionando para punição apenas os casos mais notáveis de
poder de monopólio. Devemos, então, dirigir nossa atenção para outros luga-
res - por exemplo, o aumento da produção -, na esperança de que seus bene-
fícios possam "ser redistribuídos" para a maioria trabalhadora do país.
De modo oposto, podemos radicalizar o compromisso que nos define e
transgredir, em seu nome, os limites do arranjo institucional estabelecido.
No meu exemplo, transgressão significa buscar sucessivas mudanças no re-
gime de propriedade que tornariam possíveis níveis mais elevados de
descentralização econômica, sem sacrificar a escala ou a eficiência. O método
é permitir que direitos de propriedade que estejam fragmentados sob certos
aspectos possam ser fundidos ou combinados em outros aspectos. Tendo

104
AS QUATRO RAfZES - O REFORMISMO PROGRESSISTA PESSIMISTA

radicalizado nossos compromissos ao mexer com suas formas institucionais


habituais, logo descobrimos que a mudança institucional real ou imagina-
da nos induz a redefinir nossos compromissos.
Nossa concepção de democracia econômica e de sua relação com a de-
mocracia política muda. As distinções habituais entre esquerda e direita
começam a se mover sob nossos pés, pois o que parecera um projeto conser-
vador - o programa da liberdade do mercado e do governo passivo - se
revela agora um programa radical, que requer a dissociação de direitos de
propriedade. O desmembramento dos direitos de propriedade tradicionais.
e a atribuição dos poderes que os compõem a diferentes titulares pode, por'
sua vez, facilitar e exigir práticas de competição cooperativa entre empresas
e parcerias descentralizadas entre empresas e governos.
A situação padrão nos debates políticos e jurídicos contemporâneos é
que a escolha entre refreamento e radicalização nunca é feita explicitamen-
te. Contudo, a negação da escolha pelo conflito não resolvido entre com-
promissos ideais e pressupostos institucionais não é indiferente entre essas
duas opções; ela significa uma contenção de facto dos compromissos ideais,
sob o disfarce de sua repetição retórica. Na discussão que segue sobre a
análise jurídica racionalizadora como política reformista, haverá várias opor-
tunidades para vermos como o problema da instabilidade interna vem a
ocupar um lugar central no trabalho dos advogados, e como sua caracterís-
tica não-solução produz um refreamento real dos ideais atribuídos, sob a
forma de políticas públicas e princípios, ao direito.

O reformismo progressista pessimista

O acerto socialdemocrata e a prática de reconstrução racional na análise


jurídica são os dois exemplos mais importantes de reformismo conserva-
dor, unindo em si mesmos os compromissos ideais e o conservadorismo
institucional da política contemporânea. Eles se ligam tanto por seu objeto
quanto por seus pressupostos: muito do trabalho político e intelectual
mais ambicioso da análise jurídica racionalizadora consistiu no desenvol-
vimento de categorias e doutrinas que conciliam o direito regulatório e
redistributivo do acerto socialdemocrata com o corpus de doutrina jurídica
preexistente. Essa ligação profunda ajuda a explicar a extraordinária auto-
ridade da espécie de reformismo conservador que podemos denominar refor-
mismo progressista pessimista.

105
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

O reformismo progressista pessimista é o compromisso de tratar os gru-


pos mais fracos e pobres na sociedade - aqueles com maior probabilidade
de não ter participado das lutas políticas sobre a produção do direito -
como os beneficiários primeiros da reconstrução racional e retrospectiva do
direito. Ao representar o direito como a expressão de políticas públicas e
princípios ligados, tendo em vista concepções impessoais de bem comum
ou de dever político, o jurista adquire o poder para controlar o forte e
proteger o fraco. Ele pode redistribuir, de forma modesta porém significa-
tiva, direitos e recursos para aqueles que mais necessitam. Ele pode fazê-lo
em parte encontrando os rudimentos do entendimento jurídico aperfeiçoa-
do nos materiais jurídicos estabelecidos e, em parte, exercendo seu papel
adequado na correção e no acabamento do direito.
O que resguarda essa visão da missão do jurista de parte de sua natureza
paternalista e sectária (fazendo dos fracos os protegidos dos advogadós) é uma
noção que, embora raramente expressa, exerce enorme influência sobre a auto-
imagem e o projeto do pensamento jurídico. Há algo importante no fato de
que o cidadão médio de uma democracia industrial rica- não apenas o mem-
bro de "minorias distintas e isoladas" -se sente como um excluído enfurecido,
com raiva de seus governantes ou chefes, ou ambos, e impotente para alterar
os constrangimentos de sua situação. Estudiosos da consciência popular e da
, cultura política têm observado que é difundida a crença de que o Estado e as
grandes corporações são conduzidos como um esquema para o benefício de
elites predatórias. Essa crença pode, às vezes, tomar uma direção surpreendente
quando combinada com a idéia de que essas elites asseguram a paz social
distribuindo favores para uma subclasse ou para marginalizados e desajustados
sociais ao mesmo tempo que sacrifica os interesses da grande massa da popu-
lação trabalhadora.
Em tal contexto, a tarefa jurídica do reformismo progressista pessi-
mista assume um significado importante e bem definido. Ela pode servir
como um exemplo - na verdade o exemplo principal - da parceria implí-
cita entre as elites e os marginalizados em detrimento dos trabalhadores
comuns. Contudo, pode servir também como um instrumento pelo qual
se pode aliviar a influência de elites autofavorecedoras sobre o conteúdo
e a administração do direito. Nessa medida, o protegido do jurista se
torna o homem comum. A condição para a inversão desse papel, contu-
do, é que as ambições da democracia popular não se tornem verdadeiras.
Como resultado, o homem comum se torna o excluído vulnerável do
qual os verdadeiros criadores do direito estão sempre com mais freqüência

106
AS QUATRO RAfZES - O REFORMISMO PROGRESSISTA PESSIMISTA

prontos a desertar. O praticante da análise jurídica racionalizadora deve ser


seu amigo.

A análise jurídica racionalizadora como terapia social evasiva

O tema central na discussão desta parte é o modo pelo qual a análise


jurídica racionalizadora, em sua forma mais ambiciosa intelectual e politi-
camente, torna-se uma terapia social evasiva para os males das democracias
industriais, lutando para moderar a desvantagem e a exclusão, ainda que
incapaz por seu método e visão de identificar ou atacar as fontes desses
males nas estruturas da sociedade. Faz sentido entender a teoria jurídica
das políticas públicas e princípios como o instrumento de um certo tipo de
reformismo. Contudo, o estudo das associações entre as partes políticas e
jurídicas desse projeto contribui para minar a fé em ambos. Uma terapia
não evasiva, conclui-se, não poderia ser a análise jurídica racionalizadora,
nem poderia ter nos juízes seus principais agentes. A análise jurídica deve-
ria ser reforjada como imaginação institucional. Seu interlocutor primário
seria a cidadania democrática em geral. Sua principal ambição seria a de
informar a discussão na democracia sobre o presente coletivo e os futuros
coletivos alternativos, aprofundando o sentido de realidade pela ampliação
do sentido de possibilidade.
O país em que o trabalho jurídico do reformismo progressista pessimista
mais avançou é os Estados Unidos. O caráter sacrossanto vinculado à Consti-
tuição americana e, por extensão, a outras partes da ordem institucional, a
qualidade antiprogramática e antimobilizadora de grande parte do discurso
político americano comum, o famoso hábito de reformular temas políticos
como judiciais e a posição dos juristas como coordenadores autoconfiantes
das elites políticas e econômicas, em vez de como uma casta distinta e subordi-
nada dentro das elites, uniram-se para deixar a tradução do reformismo con-
servador em discurso jurídico parecer especialmente plausível. Nos momentos
em que juristas progressistas se desencantaram com as possibilidades da polí-
tica popular ou temeram seus perigos, e encontraram as portas dos órgãos
políticos do governo cerradas, eles ficaram especialmente tentados a ver na
política através de juízes o substituto providencial para a política através da
política. Eles, então, se frustraram repetidamente. E, com a mesma freqüên-
cia, foram incapazes de extrair de suas decepções as lições corretas.

107
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

O exemplo da igualdade perante a lei no direito constitucional


norte americano: disparidades racionais

Na história recente do direito e do pensamento jurídico norte-americano,


o exemplo mais espetacular de reformismo progressista pessimista foi o de-
senvolvimento da doutrina da igualdade perante a lei [Substantive Equal
Protection] no direito constitucional, bem como o conjunto conexo de re-
gras, doutrinas, categorias e ideais de direito antidiscriminatório. Uma inves-
tigação dos limites desse empreendimento jurídico - seus limites como ima-
ginação e, sobretudo, como reforma social - ilumina não apenas o nosso
entendimento do reformismo progressista pessimista, mas também da
família mais ampla de projetos políticos a que ele pertence. Se avançar-
mos o suficiente nessa direção, nos encontraremos no limiar da análise
jurídica como imaginação institucional. A própria crítica forja muitos
dos instrumentos exigidos por uma prática de raciocínio jurídico mais
leal ao experimentalismo e à democracia.
Após uma breve referência às disparidades da doutrina da igualdade
perante a lei, discutirei os fundamentos do ceticismo acerca da capacida-
de daquela doutrina, e outras semelhantes a ela, para ajudar as pessoas
que mais necessitariam de sua ajuda. Ampliarei a discussão mostrando
como, em duas economias políticas diferentes, a análise jurídica racio-
nalizadora como reforma social é levada, por sua visão e método, a perseguir
objetivos apenas indiretamente relacionados às fontes reais de inquieta-
ção coletiva e desvantagem de grupo. Aprofundarei então a discussão ex-
plorando as ligações entre as fragilidades práticas e as deficiências imagi-
nativas desse discurso jurídico. As razões por que ele funciona de forma
tão seletiva e, por vezes, tão perversa como reforma social ligam-se inti-
mamente às causas da miopia do seu entendimento da realidade social e
da possibilidade social.
O dispositivo da igualdade perante a lei na Constituição dos Estados
Unidos se tornou o receptáculo preferido de uma ambiciosa racionaliza-
ção reformista no direito, assim como, no período das decisões ao estilo
das de Lochner, o dispositivo do devido processo legal [Due Process Clause]
na Constituição norte-americana serviu ao mesmo propósito. Perto do fim
do século XX, contudo, a gama e a variedade de tarefas a que a doutrina
da igualdade perante a lei veio a servir já havia extenuado a consistência
conceitua! da doutrina para além da possibilidade de conserto. O resulta-
do foi um conflito característico entre a pressão para realizar acordos viáveis,

108
AS QUATRO RAfZES - O REFORMISMO PROGRESSISTA PESSIMISTA

ou fazer a doutrina jurídica ecoar os acordos políticos que haviam sido esta-
belecidos, e o impulso compensatório de contar uma história geral sobre o
direito que servisse como teoria política.
Qual é a história sobre o contorno da doutrina da igualdade perante a
lei que mantém as distinções doutrinárias reais, tal como se apresentavam
no final do século XX, ao mesmo tempo que permanece em comunhão
com uma concepção teórica dos ideais motivadores e da relação desses
ideais com práticas sociais? A título de simplificação, atente para uma das
metades da doutrina da igualdade perante a lei, o sistema de classifica-
ções suspeitas, que acentua o escrutínio judicial das leis que estabelecem
tratamento diferenciado das pessoas. A raça era o exemplo mais claro de
uma classificação suspeita, incitando o grau mais elevado de escrutínio. O
sexo e a idade foram acrescentados, incitando um grau mais baixo, "inter-
mediário", de escrutínio. Deficiências físicas e orientação sexual haviam
entrado mais recentemente na lista. Sua condição permaneceu indefini-
da. Compare isso com a metade complementar da doutrina, o esforço
para avaliar o tratamento diferencial com referência à natureza relativa-
mente fundamental dos interesses privados que ela viola, e a natureza
relativamente imperativa dos objetivos governamentais a que ela serve.
Dado que uma parcela tão grande de conflito acerca do conteúdo do
direito toma a forma de uma disputa sobre a diferença no tratamento das
pessoas, a doutrina da igualdade perante a lei ocupa um lugar especial no
sistema de idéias jurídicas. Ela não é apenas um outro tópico no direito;
ela é, também, por sinédoque, o próprio problema do direito, da mesma
forma que a propriedade não é apenas um outro direito, mas o exemplo
típico de direitos.
Para avaliar o potencial explosivo da doutrina da igualdade perante a lei, e
a natureza surpreendente dos constrangimentos impostos à sua expansão,
imaginemos sua aplicação ao âmbito vital de formação de cidadãos e cria-
dor de hierarquias que é a educação. A separação entre escolas públicas e
privadas nos Estados Unidos é parte de um sistema que permite à classe
profissional e de negócios em grande parte do país escolher sair do sistema
de escolas públicas e enviar seus filhos para escolas particulares privilegiadas.
A retração do sistema de escolas paroquiais, que nos Estados Unidos acompa-
nhou o declínio da classe trabalhadora católica, acentuou o contraste entre
as escolas particulares de elite e as escolas públicas. A combinação de demo-
cracia na educação pública com o controle pela localidade agravou ainda
mais o problema da hierarquia educacional: em primeiro lugar, tornando as

109
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

escolas dependentes do financiamento local (do distrito ou do município) e,


em segundo lugar, reforçando o controle das famílias e comunidades sobre
as escolas de sua região. A missão primária da escola numa democracia é
resgatar a criança de sua família, sua classe social, seu país e seu período
histórico, fornecendo-lhe meios para pensar por si mesma, ampliando seu
acesso a experiência desconhecida. O futuro cidadão deve ser um pequeno
profeta. A transmissão hereditária de oportunidade educacional converge
com a transmissão hereditária de vantagem econômica para produzir uma
sociedade de classes. A sociedade de classes, por sua vez, conspira com a
comunidade e com o controle familiar para silenciar o pequeno profeta e
impedir que ele se desenvolva.
Suponha que concluíssemos que, para minar essa hierarquia e romper
esse conluio, precisaríamos proibir totalmente as escolas privadas naquelas
regiões do país onde elas são importantes. (Para que as escolas públicas
mudem em outras e mais numerosas regiões do país, a dessegregação social,
pelo movimento entre bairros e vizinhanças, teria que se desenvolver ao
estilo da dessegregação racial. Embora radical em seu alcance, tal reforma
representa uma extensão imaginativa menor do que a eliminação das escolas
particulares.) Deve-se exigir que a classe profissional e de negócios coloque
seus filhos em escolas públicas, e com efeito em escolas públicas sujeitas a
um programa de dessegregação social. O efeito seria duplo: eles, o grupo
mais influente da república, adquiririam um interesse fundamental no aper-
feiçoamento das escolas públicas, e sua presença ajudaria a aumentar as
expectativas na sala de aula.
Embora as conseqüências de tal mudança fossem de grande amplitude,
e parecessem hoje impensáveis nos Estados Unidos, o argumento a seu fa-
vor pode facilmente ser elaborado por analogia ao mais famoso exemplo de
reforma social consciente, pelo direito, na história dos Estados Unidos no
século XX: a campanha pela dessegregação racial de escolas desde a decisão
da Suprema Corte em Brown v. Board ofEducation. O ataque ao apartheid
social se seguiria ao ataque ao apartheid racial. A alegação "separados porém
iguais", repudiada em um domínio, seria agora rejeitada no domínio vizi-
nho. A passagem de raça para classe ocorreria na área associada de forma
mais tangível às exigências sociais e culturais da democracia.
No percurso, precisaríamos reinterpretar a doutrina norte-americana da
ação estatal [state-action doctrine] - o resíduo mais notável da idéia do sécu-
lo XIX de um sistema pré-político e natural de direitos -, bem como o
direito de livre expressão da primeira emenda à Constituição dos Estados

110
AS QUATRO RA1ZES - O REFORMISMO PROGRESSISTA PESSIMISTA

Unidos. De todas as atividades "privadas", a educação, o objeto de deveres


jurídicos impostos aos pais, pode ser mais prontamente entendida como
"afetada por uma função públicà'. Superar o obstáculo da primeira emen-
da, por sua vez, demandaria um enriquecimento do nosso entendimento
do conteúdo e condições da liberdade da vida cultural numa democracia.
Assim como podemos chegar a exigir que o governo fragmente e redistribua
o acesso aos meios de comunicação de massa a partir da aspiração, caracte-
risticamente moderna, de tornar real o exercício do direito de livre expres-
são, podemos também vir a perceber na extirpação do apartheid social na
educação um instrumento necessário de emancipação cultural ampla e ci-
dadania efetivamente informada.
Esses obstáculos doutrinários, embora dificílimos, não intimidam mais
do que as inúmeras objeções semelhantes que o direito confrontou e rejei-
tou no processo que conduziu a doutrina da igualdade perante a lei ao seu
estado atual. Os verdadeiros constrangimentos provêm do equilíbrio de
forças políticas e concepções ideológicas. Uma simples comparação nacio-
nal sugere que esse sistema de influências é mais local e sujeito a revisão do
que pode parecer à primeira vista. Pois, no exato momento em que a proibi-
ção de escolas particulares parecia inconcebível nos Estados Unidos, ela
estava sendo ativamente debatida no Reino Unido. A distância entre o
inimaginável e o familiar pode ser curta na história da política e do direito.
A proposição é simples. Se problemas como apartheid racial e social de-
vem ser imaginados e resolvidos sob a forma de doutrinas jurídicas, tais
como a da igualdade perante a lei, é importante investigar as relações ocul-
tas entre formas diferentes de imaginação jurídica e práticas diferentes de
reforma social. Tendo preparado o palco para essa investigação, a análise
jurídica racionalizadora apaga as luzes.
Consideremos os mais promissores candidatos ao papel de explicar a
igualdade perante a lei de maneira que faça sentido tanto como doutrina
detalhada quanto como teoria coerente. A explicação mais simples e mais
abrangente define o objeto das classificações suspeitas como aquelas desvan-
tagens sociais fomentadas pelo Estado, de que as pessoas se encontram
incapazes de escapar pelas formas de iniciativa política e econômica para
elas imediatamente disponíveis. Nessa perspectiva, a igualdade jurídica
seria o principal entre os muitos instrumentos do direito contemporâneo
a assegurar as condições para o gozo efetivo de direitos: de muitos direitos,
não apenas um direito específico. Ela generalizaria a preocupação mais
característica do direito contemporâneo pela superação dos obstáculos ao

111
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

desenvolvimento próprio através de trabalho, empreendimento e educação


em que o governo é cúmplice. Seria uma doutrina de anti-subjugação,
dirigindo-se não apenas às ferramentas práticas para o exercício efetivo de
direitos específicos, mas às condições básicas para o uso do conjunto cen-
tral de faculdades políticas e econômicas, vitais para a ação política e
econômica efetiva.
Por mais atraente que possa ser, como uma teoria que liga a igualdade
perante a lei à vocação do direito contemporâneo, essa explicação é falha em
cada um de seus dois componentes principais. A restrição segundo a qual a
desvantagem deve ser fomentada pelo Estado - o limiar da ação do Estado -
representa o resíduo mais notável, no pensamento jurídico dos dias de hoje,
de uma visão do direito e da sociedade anterior e já repudiada. Ela pressupõe
que possamos distinguir com sentido entre desvantagens que são cri;i.das pela
política e outras que simplesmente existem como o resultado de uma evolu-
ção pré-política de forças sociais naturais. A nossa incapacidade em dividir o
mundo social dessa forma foi, na verdade, uma das principais lições ensinadas
pela análise jurídica nos últimos cem anos. A política, inclusive a política
do poder estatal, influencia, direta ou indiretamente, todas as estruturas so-
ciais. A premissa que caracteriza a doutrina da ação estatal seria mais plausível
se fosse verdade que uma economia livre se manifesta naturalmente por meio
de um certo sistema de contrato e propriedade. Assim, embora a política
possa ser responsável por manter o regime da liberdade de mercado, não
pode ser considerada responsável pela forma jurídico-institucional que carac-
teriza aquele sistema. Contudo, essa crença é falsa.
A convergência de estudo comparativo cuidadoso com argumento
programático, num contexto de idéias antinecessitárias no estudo histórico
e social, nos desperta para uma avaliação das diferentes formas jurídico-
institucionais que as economias de mercado tomam ou tomaram. Ela cria
interesse na gama muito mais ampla de variações possíveis que essas variações
reais sugerem. A recusa em usar as regras e estruturas de direito privado
existentes como um ponto neutro a partir do qual se pode julgar a legitimidade
da regulação e redistribuição estatal começou, há muito tempo, a penetrar
o direito e o pensamento jurídico. Como resultado, o conflito entre a acei-
tação dos pressupostos da ação estatal e a sua rejeição tornou-se um conflito
interno ao direito, não apenas um conflito entre o direito e a teoria social.
A segunda metade da teoria proposta para a igualdade perante a lei -
a identificação das desvantagens frustradoras de direitos, de que as pes-
soas se encontram impotentes para escapar - não serve porque, a um só

112
AS QUATRO RAíZES - O REFORMISMO PROGRESSISTA PESSIMISTA

tempo, dá relevância demais e relevância de menos às distinções estabelecidas


na doutrina. Dá relevância demais porque existem circunstâncias de desvan-
tagem fatídica sobre as quais a igualdade perante a lei permanece silente. A
mais importante dessas é a qualidade de membro numa classe social inferior,
especialmente, porém não exclusivamente, uma subclasse de trabalhadores
desqualificados, sejam desempregados ou empregados instavelmente. Os dados
históricos e atuais sugerem a influência irresistível da transmissão hereditária
de vantagem econômica e educacional. Os mesmos dados ressaltam que a mo-
bilidade continuada e de larga escala entre gerações no país desse exemplo -
os Estados Unidos - teve lugar somente entre os segmentos de operários
manuais e funcionários administrativos da classe trabalhadora. Os filhos de
operários se tornaram funcionários administrativos, com um grau semelhan-
te de falta de propriedade e poder. Apenas muito eventualmente, contudo,
no âmbito estatal e em relação à distribuição direta de certos benefícios e
ônus estatais, é que a doutrina da igualdade perante a lei reconheceu a classe
social ou a pobreza como uma classificação suspeita.
Mesmo quando dá relevância demais às distinções da doutrina, essa
proposta teórica também dá relevância de menos quando comparada às
diferenças sociais reconhecidas na lista aceita de classificações suspeitas.
Como a crítica causal da doutrina norte-americana da igualdade irá em
breve sugerir, o negro ou a mulher que pertence à classe profissional e de
negócios pode receber uma parcela desproporcional dos benefícios práti-
cos dessa doutrina constitucional e das leis antidiscriminatórias a ela as-
sociadas. Ainda assim, como indivíduos, eles podem estar com freqüência
muito distantes de uma situação de desvantagem inevitável. Na verdade,
eles podem por vezes conseguir se aproveitar das proteções da doutrina,
tanto para tomar vantagem na competição com homens brancos quanto,
de maneira mais nefasta, para se distanciar dos negros e mulheres oprimi-
dos e marginalizados dos quais eles, sob a luz encantada do direito, são
vistos como representantes virtuais.
Considere agora a segunda proposta para ligar as distinções reais da
doutrina da igualdade perante a lei a uma concepção política coerente. O
critério seletivo para a classificação suspeita é a cumplicidade do Estado em
recusas, fundadas em preconceito, de oportunidade a pessoas. O precon-
ceito, nessa proposta, é a aversão a certas características fisicamente marcadas
nas pessoas, ou a crença injustificada sobre as conseqüências negativas de
tais características para as capacidades dos indivíduos. Raça, sexo, idade e
deficiência física se adequariam confortavelmente no âmbito desse critério.

113
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

A posição numa classe social estaria excluída, como de fato o é pela doutri-
na estabelecida.
Uma objeção inicial a essa abordagem é que, como a alternativa mais
ambiciosa que acabei de criticar, ela repousa sobre o critério restritivo e
insustentável da cumplicidade estatal. Além disso, ela confere às deficiências
físicas um privilégio que funda sua força em crenças equivocadas sobre a or-
dem social. De acordo com uma de tais crenças, o preconceito quanto à
participação em grupos caracterizados por aspectos físicos apresenta um
perigo especial a uma sociedade livre, principalmente quando o preconcei-
to encontra reforço no direito. É como se a estrutura institucional da socie-
dade, estabelecida e aperfeiçoada pelo direito, não apresentasse nenhum
obstáculo insuperável ao gozo efetivo de direitos salvo quando corrompida
em seu funcionamento por vícios espirituais: hostilidade irracional e su-
perstição cega. A partir do momento em que nós nos convencemos de que
a desvantagem e a marginalização têm raízes em práticas e instituições;
que economias, sociedades e comunidades políticas livres podem tomar
formas institucionais muito diferentes; e que essas formas variam ampla-
mente à medida que criam ou corrigem situações de desvantagem, o privi-
légio garantido por essa abordagem a origem e superstição se torna muito
menos convincente.
Uma das muitas conseqüências dessa ênfase é dar aos desfavorecidos e
aos desalentados um motivo irresistível para redescrever como destino ge-
nético formas de vida que podem conter elementos consideráveis de esco-
lha. Consideremos, por exemplo, a política da homossexualidade, tal como
ela se desenvolveu nos Estados Unidos. Para trazer a homossexualidade sob as
asas da doutrina da igualdade perante a lei deve haver pressão para defender
a idéia de que as pessoas herdam orientação sexual. Embora a herança possa
de fato acabar desempenhando um papel importante na orientação sexual,
parece igualmente provável que, como tantas outras coisas em nossa expe-
riência moral, concluir-se-á que ela é o resultado de predisposições adqui-
ridas, influências sociais e escolhas cumulativas. Uma concepção de sua
dignidade estaria mais bem servida por sua representação como um desti-
no escolhido do que como um destino cego. Ainda assim, tal representação,
por mais realista e digna, estaria fora do escopo de proteção da doutrina
da igualdade perante a lei.
Suponha que estipulássemos que os pressupostos empíricos de justifi-
cação do privilégio conferido ao preconceito contra grupos marcados fos-
sem justificados. Ainda haveria um problema de seletividade não justificada

114
AS QUATRO RAfZES - O REFORMISMO PROGRESSISTA PESSIMISTA

na lista das classificações suspeitas. Os gordos, os feios e os idiotas (tal


como determinados em testes de QI) podem todos competir por inclusão
nos benefícios da igualdade perante a lei, citando os dados cada vez mais
conspícuos sobre as conseqüências prejudiciais de suas condições, a
irrelevância de suas fragilidades para as oportunidades econômicas e edu-
cacionais que lhes são negadas e a cumplicidade estatal direta ou indireta
na manutenção de admissões ou práticas empregatícias preconceituosas.
À objeção de que não formam um grupo distinto, a resposta pode ser que
tais grupos são tão distintos quanto os "deficientes" ou os "gays". A verda-
de pura é que essas categorias não conseguem proteção sob a égide da
igualdade perante a lei não porque sua inclusão seria ilógica, mas porque
eles não configuram movimentos ativos e conflitos organizados na políti-
ca e na cultura do país.
Essa observação sugere uma terceira explicação, mais realista e menos
pomposa, da questão da igualdade perante a lei, a qual segue mais de perto
as origens e a evolução da doutrina. De acordo com essa terceira visão, a
igualdade perante a lei e o conjunto de leis antidiscriminatórias a ela asso-
ciado deveriam primeiro ser entendidos como uma reação aos extraordiná-
rios problemas criados pelos resultados da escravidão, da Guerra Civil e da
Reconstrução. Essa não foi apenas uma espécie num gênero bem definido
de problemas. Foi uma ameaça à unidade e à continuidade da república, à
paz social, assim como à justiça social. À medida que uma política de
grupismo avançou nos Estados Unidos, unindo demandas por progresso
social com demandas por reconhecimento cultural, primeiro outras mino-
rias raciais-culturais, e depois grupos não-raciais, conquistaram lugares como
classificações suspeitas. Não é a lógica dos tipos naturais, mas a história de
insurgências da sociedade civil norte-americana que governa essa evolução.
Não há nada de errado com essa terceira abordagem da igualdade pe-
rante a lei, exceto que ela frustra a demanda por concepções prescritivas sob
a forma de teorias da análise jurídica racionalizadora. Então, por que não
reprimir a demanda em vez da abordagem? A atenção sobre crises históricas
singulares e sobre o desenvolvimento da sociedade civil explica a composi-
ção da lista de classificações suspeitas. Ela o faz ao mesmo tempo que per-
manece leal às aspirações e ansiedades, conflitos e controvérsias a partir dos
quais os americanos criam essa lista.
Tal explicação não precisa ser meramente uma explicação; ela contém força
normativa na mesma medida em que o romance histórico de uma demo-
cracia nacional real possui autoridade. Não obstante, ela nunca apresenta

115
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

nenhuma desculpa racional em justificação ao conteúdo da lista de classifi-


cações suspeitas, nenhuma desculpa a não ser a natureza específica e vincu-
lada da mudança histórica. A extensão dessa lista depende do poder e da
influência das forças que a querem tornar maior. Além disso, essa aborda-
gem deflacionária se recusa a apresentar essa experiência histórica como a
manifestação de uma concepção sob a forma de uma teoria distinta e coe-
rente, tal como o compromisso de proibir a cumplicidade estatal em todas
as circunstâncias de desvantagem coletivas a que as pessoas são incapazes de
escapar pelos meios prontamente disponíveis do progresso educacional, da
iniciativa econômica e da ação política. Por essas razões, ela deixa por fazer
o trabalho que o método de políticas públicas e princípios exige do raciocí-
nio jurídico. Ela é realista demais para ser racionalista, e se recusa a discernir
na história a operação da razão.
A disparidade racional revelada pela crítica dessas diferentes interpreta-
ções rivais da doutrina da igualdade perante a lei é típica da disparidade
racional na própria análise jurídica racionalizadora. Ela exemplifica a mes-
ma desordem que descobrimos quando examinamos anteriormente apre-
tensão desse método canônico de análise jurídica em representar uma exi-
gência do estado de direito ou de um sistema de direitos. Nesse ponto do
argumento, a redescoberta de disparidade racional serve ao propósito de inci-
tar ceticismo sobre os benefícios práticos da doutrina - e de doutrinas se-
melhantes - àqueles que mais precisam de sua ajuda. Exploro e desenvolvo
agora os fundamentos desse ceticismo causal.
Para esse fim, não precisamos levar a doutrina ao pé da letra, reconhecen-
do sua própria exposição dos males que procura corrigir e da classe de
beneficiários que pretende atender. Sua letra, além de tudo, não é clara, e, na
medida em que o seja, baseia-se em pressupostos fáticos duvidosos. Em vez
disso, podemos aceitar a terceira das três abordagens da igualdade perante a
lei - a mais histórica e deflacionária - como a mais reveladora. Equipados
com esse entendimento, podemos nos perguntar em que medida esses exem-
plos mais extraordinários de reformismo progressista pessimista no direito
servem aos vagos porém poderosos objetivos de igualdade de oportunidade e
igualdade de expressão, de proteção e incorporação dos marginalizados e dos
oprimidos. Esses objetivos guardam um lugar central no programa de refor-
ma progressista, seja ela pessimista ou não.

116
A5 QUATRO RAfZES - O REFORMISMO PROGRESSISTA PES_SIMISTA

O exemplo da igualdade perante a lei no direito constitucional


norte-americano: problemas de eficdcia

Uma crítica causal da doutrina da igualdade perante a lei como um


reformismo progressista pessimista pode começar com a conjectura conhe-
cida de que a doutrina ajuda menos os membros dos grupos visados que
mais precisam de sua ajuda. Os menos necessitados, de acordo com essa
hipótese, absorvem uma parte desproporcional dos benefícios. Assim, um
negro ou uma mulher que seja membro da classe profissional e de negócios
tem mais chance de obter os benefícios do que um negro ou uma mulher
pertencente à classe trabalhadora. Níveis sucessivos de promoção merito-
crática numa carreira, e a influência decisiva exercida pela admissão inicial
às instituições básicas de educação ou produção, são notadamente mais
evidentes na classe profissional e de negócios do que na classe trabalhadora.
A especialização da experiência reforça a capacidade superior da classe pro-
fissional de mobilizar recursos tanto jurídicos como retóricos na defesa de
seus interesses.
É ainda mais provável que a doutrina beneficie membros da classe tra-
balhadora, tanto operários manuais quanto funcionários administrativos,
mais do que membros da subclasse, principalmente quando a classe traba-
. lhadora é sindicalizada ou organizada de alguma outra forma. A classe inferior
desorganizada, empregada de modo instável em trabalhos não-qualificados,
sem futuro e temporários, é menos capaz de mobilizar as estratégias retóri-
cas e jurídicas de antidiscriminação em sua própria defesa. Além disso, ela
está perto de ser deixada inteiramente fora do mapa: sem voz nem vez, expos-
ta aos extremos da insegurança física e econômica, com garantia no emprego,
sustento na família e segurança no lar negadas, permanece em grande medida
para além do alcance da ajuda que pode vir na forma de proibições à discrimi-
nação racial e sexual.
Um segundo passo no desenvolvimento da crítica surge quando ultra-
passamos a descoberta da desproporção entre necessidade e ajuda e segui-
mos para a investigação dos efeitos dinâmicos dessa desp;bporção sobre as
realidades conjuntas de raça, sexo e classe. A igualdade perante a lei e o
conjunto de leis antidiscriminatórias a ela associado se tornam manifesta-
ções e instrumentos da política de grupismo. Uma combinação de caracte-
rísticas define o caráter especial dessa política. Primeiro, a demanda por
proteção e progresso econômico dos grupos desfavorecidos se une a uma
demanda por reconhecimento e portanto por expressão política e cultural.

117
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Segundo, a política de grupismo opera por uma certa percepção das rela-
ções entre a classe trabalhadora majoritária no país e as minorias oprimidas.
A maioria pode estar estratificada econômica e educacionalmente, e perma-
necer vulnerável ao risco e à instabilidade econômica. Contudo, ela não
sofre de incapacidades profundamente arraigadas, impostas por formas de
preconceito e exploração que têm um toque do Estado. Em compensação,
mulheres e minorias sofrem das incapacidades, produzidas ou toleradas
pelo Estado, de opressão econômica e inexpressão cultural.
Terceiro, a atenção recai sempre sobre a classificação de pessoas em gru-
pos que são mais do que criaturas da política e das instituições: raça, naciona-
lidade, religião, sexo, orientação sexual (na medida em que se acredita que
a orientação sexual é inata) e deficiência física. Qual o denominador comum
desses grupos? Podemos usar o rótulo dos sociólogos, "grupo marcado"
[ascriptive group] e ressaltar dentro dos grupos marcados aqueles que pos-
suem uma manifestação física. O rótulo, contudo, deixa escapar a questão
mais importante. Os grupos que possuem um lugar central na política de
grupismo podem ser plausivelmente concebidos como recebendo muito de sua
realidade e identidade de forças que ultrapassam as construções institucionais
da política. Embora possam ser as vítimas da política e das instituições,
não são apenas seus produtos.
Reconhecer esse elemento recorrente na política de grupismo ·é entender
por que "classe" não pode ser a próxima classificação suspeita, ao lado de raça,
sexo e deficiência física. Pois a classe é uma realidade social que é muito direta-
mente o produto da política e das instituições. O rompimento de diferenças
de classe pode exigir mudanças na estrutura econômica e política da sociedade.
A incorporação de grupos marginalizados e perseguidos à estrutura estabele-
cida pode simplesmente não ser suficiente.
Dentro desse mundo imaginativo, as elites dos grupos pré-políticos e
marginalizados exigirão, em nome dos grupos que representam, uma in-
corp0ração mais igualitária na estrutura estabelecida. Esse impulso assi-
milatório pode se alternar com uma ameaça secessionista: o abandono da
sociedade mais ampla, em direção a um mundo social separado. Assim,
de tempos em tempos, líderes negros norte-americanos voltaram suas costas
ao ideal de uma inserção igualitária na sociedade americana em favor do es-
forço de construir uma nação africana separada. Mesmo quando imbuído
de intenções sinceras e entusiásticas, contudo, é provável que falte ao seces-
sionismo realidade prática. Na prática, ele se torna uma antítese para o que
importa, seu oposto.

118
A5 QUATRO RAfZES - O REFORMISMO PROGRESSISTA PESSIMISTA

Como os principais beneficiários da política de grupismo e de sua ex-


pressão jurídica - as doutrinas da igualdade perante a lei e da antidiscri-
minação - as elites de cada um dos grupos marginalizados é facilmente
seduzida e cooptada para as instituições de elite da ordem social atual,
representando supostamente os membros comuns dos grupos que de fato
deixaram para trás. Alguma coisa terá sido ganha, pela redução do precon-
ceito na vida nacional. Alguma coisa também terá se perdido. No fim do
dia, cada um dos grupos desfavorecidos pode se encontrar desprovido ·de sua
liderança natural. A liderança pode estar presa entre os afagos de cooptação
confortante e as aparências de representação virtual.
A política de grupismo e as suas contrapartidas jurídicas na doutrina da
igualdade perante a lei exageram as diferenças e minoram as semelhanças
nas experiências sociais da opressão e da falta de expressão. Elas deixam de
buscar em instituições relacionadas, em práticas institucionalizadas e em
crenças reconhecidas as raízes comuns para os males a que se dirige ..As
diferenças de raça e sexo são reais; porém, são também relativ:as. Os males em
que elas se· concentram são maiores quando a negação de respeito e expres-'
são converge com as realidades da exclusão econômica e educacional. Elas
são uma coisa quando combinadas a essas realidades, e outra quando
desvinculadas delas. Para atacá-las, devemos reconhecer suas características
comuns e suas raízes partilhadas. Devemos reconstruir instituições econô-
micas que moderem a segmentação hierárquica da força de trabalho. Deve-
mos reconstruir instituições políticas e sociais que favoreçam a auto-organi-
zação da sociedade civil, a mobilização política dos cidadãos e a resolução
rápida de impasses entre os poderes do Estado.
Para tanto, devemos tentar desenvolver práticas de entendimento eco-
nômico e jurídico que nos permitam reconhecer tanto a contingência de
nossas instituições como o seu poder de constrangimento. Então, o vaivém
estéril entre assimilação à estrutura estabelecida e secessão a ela na imagina-
ção política da política grupista dará lugar à política que busca reimaginar
e reconstruir a estrutura. Tal política baseia-se na máxima segundo a qual
para cada progresso na inco'rporação dos marginalizados à vida ativa e pro-
dutiva deve corresponder alguma mudança na estrutura social.
Da incapacidade de reconhecer o traço comum e as causas do sofrimen-
to a que ela reage surge uma quarta característica da política de grupismo:
a política grupista da indignação preocupada com a defesa de direitos en-
contra seu rival na contrapolítica do ressentimento. Nos Estados Unidos, os
políticos e comentaristas políticos populistas de direita se dirigem com

119
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

sucesso à classe trabalhadora masculina branca como uma "minorià' no


sentido da política de grupismo. Esses provocadores têm sua contrapartida
hoje em quase todas as democracias industriais. Sentindo-se como uma
massa nervosa de excluídos, e vitimizados pelas elites em posições de poder
econômico e político, essa "minorià' majoritária pode ser manobrada para
apoiar um ataque contra o Estado e uma rendição aos interesses empresa-
riais. Tal contrapolítica do ressentimento permaneceu sem importância ape-
nas naqueles países onde a homogeneidade social e cultural é maior, o Estado
de bem-estar é o mais bem-sucedido na redução da insegurança econômica
e o sistema tributário é o mais invisível (porque mais dependente de tribu-
tos indiretos).
Assim, a denúncia causal do estilo de reformismo progressista exempli-
ficado pela doutrina da igualdade perante a lei começa com a descoberta da
diferença perturbadora entre aqueles que precisam dela e aqueles que apro-
veitam seus benefícios. A denúncia se desenvolve numa compreensão de
que essa política jurídica tira sua vida da política social de grupismo. O
grupismo ajuda a dividir internamente cada um dos grupos beneficiados e
estimula a contrapolítica da frustração por pessoas da classe trabalhadora,
cujos sofrimentos e inquietações ela é incapaz de resolver. O resultado é
impedir as alianças populares mais amplas e obstruir as ferramentas imagi-
nativas de desenvolvimento dos projetos reconstrutivos necessários para criar
e manter tais alianças.
Esses defeitos da política jurídica do reformismo progressista pessimista
têm maior chance de ficarem menos pronunciados quando o esforço de
reforma a partir dos escalões superiores do judiciário trabalha em aliança
implícita com movimentos de base na sociedade civil. As iniciativas judi-
ciais ajudam a ampliar o espaço no qual os movimentos sociais podem ope-
rar; realocações de direitos podem mudar os ventos em conflitos locais e na
política nacional. De modo contrário, os movimentos sociais podem ajudar
a inspirar e nortear tais iniciativas judiciais, assim como aumentar a pressão
sobre os órgãos políticos do Estado que são mais resistentes.
A parceria entre o judiciário federal e o movimento dos direitos civis no
desenvolvimento da doutrina da igualdade perante a lei nos dá um exem-
plo. Pesquisadores mostraram que muito pouco ocorreu que tenha mudado
as realidades da segregação racial nos dez anos que se seguiram a Brown v.
Board of Education. Não obstante, a aliança implícita entre juízes progres-
sistas e agitadores de base parece ter contribuído para moldar e acelerar a
seqüência maior de conflitos e conquistas de liberdades públicas. O mesmo

120
AS QUATRO RAÍZES - O REFORMISMO PROGRESSISTA PESSIMISTA

pode ser dito hoje da associação entre movimentos feministas e a evolução


judicial dos direitos das mulheres.
Em cada um desses exemplos, encontramos uma ligação vital em qual-
quer prática transformadora: a ligação entre a política guiada pelo Estado,
em cima, e a política baseada na sociedade, por baixo. O problema, contu-
do, é que não há nada na teoria ou prática da análise jurídica racionalizadora
que limitaria seu trabalho reformador a essa circunstância favorável. Da
perspectiva da doutrina jurídica, a aliança aparece antes como um acidente do
que como uma condição ou uma meta. Se pensássemos nela como uma
meta ou como uma condição, nos veríamos forçados a indagar quais estru-
turas institucionais que melhor garantem a sua realização. Precisaríamos
descobrir que maneiras de pensar sobre o direito ajudam a tornar a redefinição
dos direitos vinda de cima sensível ao movimento social de baixo.
Posso agora levar a denúncia causal a um terceiro e último nível. O
problema com a igu,aldade perante a lei, e com o estilo de política progres-
sista que ela exemplifica, está no fato de que ela desvia atenção da estrutura
institucional de sociedade a que nossos interesses, ideais e identidades de
grupo permanecem atrelados. Práticas e instituições não são responsáveis
pela história completa de exclusão e falta de expressão; mas são a parte da
história que o direito pode tratar com maior eficiência. Consciência e cul-
tura também contam; mas o pensamento jurídico consegue transformá-las
melhor quando as imagens de associação humana que sugere surgem mate-
rializadas no corpo de estruturas práticas. Os preconceitos sobre raça e na-
cionalidade, sexo e orientação sexual, idade e deficiência não são ficções;
mas se tornam extremamente mais potentes quando vinculados às realida-
des institucionalmente firmadas da desigualdade econômica e educacional,
da desorganização social e da desmobilização política.
Considere, por exemplo, a segmentação hierárquica da força de trabalho
nas sociedades industriais contemporâneas e a existência, em algumas dessas
sociedades - os Estados Unidos é a mais proeminente de todas-, de uma
subclasse estrutural. Muitas práticas institucionalizadas diferentes, ima-
ginadas e reproduzidas no direito, se juntam para apoiar essa realidade
social: a distinção entre trabalhadores permanentes e temporários, ou entre
trabalhadores e subcontratados, que possibilita a empresas enfrentar o ciclo
econômico por meio da manutenção de uma força de trabalho com dois
níveis; o poder das empresas para exercer controle estrito sobre suas estraté-
gias de investimento e produção, apoiando-se em fundos de investimentos
gerados internamente e invocando a norma da propriedade para negar atri-

121
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

buições a vários grupos de participantes potenciais na empresa; a união


entre uma forma de propriedade privada que permite à concentração do
controle ou da propriedade parecer um instrumento indispensável de eco-
nomias de escala e formas organizacionais e de máquinas que aguçam o
contraste entre atividades de concepção e de execução de tarefas; a íngreme
hierarquia social e cultural do sistema escolar e a capacidade da classe pro-
fissional e de negócios de abandonar as escolas públicas ao seu destino,
associando escolas privilegiadas a vizinhanças privilegiadas ou se definindo
por um sistema paralelo de escolas privadas; as regras que regulam a trans-
missão hereditária e inter vivos da riqueza, que possibilita que as pessoas
herdem diferenciadamente de seus pais, em vez de mais igualitariamente
da sociedade; a elaboração de um sistema tributário que, ao mesmo tempo
que mantém uma redistribuição aparentemente progressiva, não consegue
alcançar resultados efetivamente redistributivos e, através de sua falta de
popularidade, ajuda a impedir a redistribuição que poderia ocorrer mais
eficazmente pelo lado dos gastos e não pelo lado do aumento da receita; a
separação ostensiva entre a assistência social à subclasse e a ajuda econômica
à grande maioria da classe trabalhadora; o abandono da sociedade civil aos
expedientes organizacionais do direito contratual e societário tradicional,
facilitando a divisão entre os organizados e os não-organizados e preparan-
do o" palco em que os grandes interesses organizados podem transacionar
entre si; as estruturas da política eleitoral, que desestimulam o engajamento
cívico ao permitir que o dinheiro compre atenção e ao transformar a escolha
eleitoral numa interrupção, em vez de numa consumação de decisões coti-
dianas; e as formas de organização constitucional que favorecem o acordo
sobre a experimentação, e o impasse sobre o acordo. Embora essas práticas
e instituições reforcem umas às outras, elas não são parte de um sistema
indivisível, nem podemos deduzi-las a partir de concepções institucionais
abstratas como "capitalismo" ou economia de mercado.
O problema com o programa jurídico do reformismo progressista pessi-
mista reside muito mais na sua incapacidade para desafiar essas fontes
institucionais de opressão e exclusão. Como um exercício de reforma práti-
ca, esse projeto ajuda a dissociar os elementos de desvantagem dos agentes
de transformação. Como uma representação· do direito, ele paga pelas
realocações de direito que efetua, conferindo uma áurea de autoridade e
necessidade racional à estrutura institucionalizada da sociedade. Como uma
forma de imaginação social, ele nos deixa sem uma linguagem em que pos-
samos descrever e discutir os futuros alternativos da sociedade. Pois cada

122
A5 QUATRO RAfZES - O REFORMISMO PROGRESSISTA PESSIMISTA

um desses futuros emerge de uma interação entre a mudança de práticas e


instituições estabelecidas e a mudança no entendimento das pessoas acerca
de seus interesses, ideais e identidades.

Aprofundando e generalizando o ceticismo causal·


o direito sob duas economias políticas

Amplio agora esse raciocínio, desenvolvendo-o no contexto de uma vi-


são do lugar do direito em duas economias políticas diferentes: a dualista e
a corporativista. O propósito é sugerir como a doutrina da igualdade pe-
rante a lei e o direito antidiscriminatório exemplificam certa relação evasiva
e mal-direcionada entre reforma jurídica e tensão social, que é característica
do direito na era da análise jurídica racionalizadora. Os limites dessa abor-
dagem equivocada e evasiva revelam-se os limites do reformismo progressista
pessimista e de seu direito. O contraste entre o dualismo e o corporativismo
não exaure as opções político-econômicas nas democracias ricas contemporâ-
neas nem abrange todas as escolhas feitas por qualquer país em especial. Ele
designa, não obstante, uma diferença de direções que é real. Com base
nessa diferença, podemos recontar uma história visivelmente simplificada,
porém, ainda assim, reveladora dos fracassos do direito e das ilusões da
doutrina jurídica.
Os Est~dos Unidos são o país comprometido mais intimamente com o
dualismo na economia política. A economia política dualista é caracteriza-
da por um contraste especialmente rígido entre a indústria de produção de
massa e capital intensivo, com sua vanguarda de negócios organizada flexi-
velmente e baseada em conhecimento, e uma segunda economia de oficinas
e serviços de mão-de-obra intensiva, bem como por uma segmentação para-
lela da força de trabalho, entre uma classe trabalhadora qualificada ou
semiqualificada relativamente privilegiada e uma classe inferior não qualifi-
cada e empregada de forma instável e inconstante; por uma rejeição da
legitimidade da intervenção estata) que penetre toda a economia, bem como
de transações coordenadas pelo governo entre interesses Organizados; e por
uma distinção clara entre as partes do Estado de bem-estar que atendem a
grande massa trabalhadora e aquelas que lidam com a classe inferior. Nessa
circunstância, a resistência à tributação redistributiva será grande; e será
ainda maior se o sistema tributário pretender produzir uma redistribuição
que não consegue alcançar. Um traço notável da política econômica dualista

123
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

é que a classe trabalhadora (autodesignada, nos Estados Unidos, como a


classe média) está, embora relativamente privilegiada, constantemente vul-
nerável. Ela não apenas compete com a classe inferior pela atenção do Esta-
do, mas também não possui nenhum pacote bem definido de direitos tra-
balhistas e sociais que a protejam da insegurança econômica. A decepção
com a política e a hostilidade à atuação estatal ajudam a evitar o surgimento
de alianças e programas que possam alterar as circunstâncias da classe tra-
balhadora. Elas perpetuam uma política de ressentimento frustrado e
derrotista, pela qual todas as parcelas da maioria popular se acreditam víti-
mas das outras parcelas.
Uma economia política dualista possui uma relação recíproca com o
pluralismo social e cultural. Profundas divisões de história, identidade e
. consciência de grupo ajudam a criar tal dualismo. As estruturas institucionais
do dualisJ,110 reforçam essas divisões, ancorando-as nas pressões inelutáveis
da vida cotidiana. A segunda relação - a que vai do dualismo às divisões -
mistura divisões raciais nas divisões de classe: nos Estados Unidos, como
em outras sociedades que possuem alguns dos aspectos do dualismo, a clas-
se inferior é, em larga medida, composta de minorias raciais e também de
mães solteiras e seus filhos.
A primeira relação - a que vai das divisões ao dualismo - lembra a re-
petição de um fardo vergonhoso. Quando a escravidão foi abolida, os escra-
vocratas com maior espírito empreendedor abandonaram seus escravos à
migração e à lavoura de subsistência. Quando a produção fordista de massa
se tornou o cerne do sistema industrial, os industriais mais bem-sucedi-
dos criaram uma força de trabalho relativamente estável e confiável e aban-
donaram o resto da classe trabalhadora à sua própria sorte. Quando a
produção e serviços altamente especializados começaram a substituir a pro-
dução fordista de massa, seus criadores e investidores voltaram sua aten-
ção para uma elite de trabalhadores educados e adaptáveis, e deixaram os
outros aos cuidados do Estado e às pressões de um mercado de trabalho
impiedoso.
Ocorreu uma continuidade irresistível na composição social e racial
do setor marginalizado da sociedade. O preconceito, fomentado pelo Estado
ou não, foi constantemente reacendido pelas exclusões e inquietações en-
dêmicas a essa estrutura dividida. O homem trabalhador branco, compe-
tindo com a classe inferior e com mulheres operárias, e ameaçado por
insegurança econômica, fechamento social e desesperança política em seu
sentimento de segurança e capacidade masculina, foi e permanece sujeito

124
AS QUATRO RA1ZES - O REFORMISMO PROGRESSISTA PESSIMISTA

a todo preconceito sobre raça, sexo e orientação sexual. O preconceito


tem muitas vidas e muitas fontes. Contudo, faz tão pou.co sentido vê-lo e
entendê-lo separado da estrutura real de divisão e hierarquia quanto faria
estudar uma atmosfera planetária separada do planeta que ela encobre.
A preocupação mais ativa e característica do pensamento jurídico no
regime do dualismo passa a ser o direito de antidiscriminação. Nos Estados
Unidos, esse direito encontrou sua expressão mais ambiciosa na doutrina
constitucional da igualdade perante a lei. Os problemas com os quais o
direito antidiscriminatório lida são reais, mas são também limitados e su-
perficiais. O direito e o pensamento jurídico se desenvolvem como se con-
ferissem a prioridade mais alta ao ataque às divisões e desvantagens do
dualismo, só que excluídas as causas e constrangimentos institucionais, e
com a atenção voltada para o preconceito em vez de para a estrutura, embo-
ra preconceito e estrutura estejam de fato ligados intimamente. É verdade
que as divisões e exclusões do dualismo representam, numa economia polí-
tica dualista, uma fonte pertinaz de frustração ao exercício de direitos. Dado
o espírito do direito contemporâneo, elas se tornam o alvo privilegiado de
reforma. O que é notável, contudo, é que um assunto que seria tão intenso
e dominador deva permanecer, não obstante, tão estreito em suas preocu-
pações e tão seletivo em seus juízos.
À pergunta "Por que tão seletiva e, em especial, tão antiestrutural?" há
duas respostas básicas. A primeira resposta é que a prioridade conferida ao
preconceito sobre as instituições apenas expressa a predominância da polí-
tica de grupismo. Para explicar aquela prioridade, devemos explicar essa
política. A segunda resposta é que, por todas as razões exploradas aqui, a
análise jurídica racionalizadora é institucionalmente cega. Essas duas res-
postas estão mais próximas uma da outra do que parecem estar. O anti-
institucionalismo do método de políticas públicas e princípios possui mui-
tas fontes e ramificações. Ele é, entre outras coisas, tanto uma causa quanto
uma conseqüência do esvaziamento da política e do debate político, uma
expressão imaginativa do fardo que pesa sobre o experimentalismo demo-
crático na vida pública e no discurso público.
A relação do direito de antidiscriminação e da igualdade perante a lei às
exclusões e subjugações de uma economia política dualista é característica em
sua seletividade. É característica do modo pelo qual a doutrina jurídica
racionalista imagina a vida em sociedade. O direito oferece uma resposta real
para problemas reais, mas uma resposta que se detém no limiar da mu-
dança estrutural e da reimaginação estrutural. A parada pode ser justificada

125
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

pela objeção de que juízes, autoridades e outros aplicadores legítimos do


direito não devem e não podem servir como agentes de transformação es-
trutural. Contudo, essa objeção surge - a próxima parte deste livro irá sus-
tentar - de uma obsessão empobrecedora, inibidora e supersticiosa, com a
aplicação do direito como a tarefa central da análise jurídica. Nessa visão, os
juízes são o que conta, e mesmo analistas e teóricos do direito não-oficiais se
retratam como juízes quando discutem o direito. É dessa forma que a ima-
ginação antiestrutural ganha um novo sopro de vida.
A mesma qualidade de uma reação interrompida e mal-direcionada rea-
parece no funcionamento do direito numa economia política corporativista.
O corporativismo, num sentido amplo e abrangente, existe para além das
fronteiras de países como a Áustria, que foram tradicionalmente identifica-
dos com instituições corporativistas. Numa forma mais universalista e igua-
litária, nós o encontramos nas socialdemocracias da Escandinávia e nos Paí-
ses Baixos. Numa forma que demonstra mais deferência à desigualdade, e
depende mais da família e da empresa como fontes de assistência e meios de
controle, ele aparece na Alemanha, na França e na Itália. Quando o propó-
sito é entender as diferentes formas e genealogias do Estado de bem-estar,
essas duas variantes devem ser tratadas como tipos distintos, cada qual com
sua agenda de problemas, constrangimentos e oportunidades. Contudo,
nessa discussão da reforma social evasiva no direito e no pensamento jurídi-
co, podemos desconsiderar as diferenças entre eles, ou usar essas diferenças
para ilustrar um problema comum.
A característica central da economia política corporativista é a combina-
ção de um efetivo de direitos sociais que restringe o mercado com uma
prática que conforma a política de negociação entre os grandes interesses
organizados da sociedade. Os principais temas da negociação dos grupos
são o financiamento e o alcance dos direitos econômicos e sociais. Cada
indivíduo desfruta de um pacote de benefícios e direitos que permanece
relativamente isolado contra a pressão da competição no mercado e dos
pontos baixos do ciclo econômico. Essas vantagens protegidas e baseadas
em direitos incluem saúde e educação, reparações por riscos físicos e econô-
micos, cuidados para os jovens, os idosos e os doentes e restrições à demis-
são daqueles que possuam empregos.
Nas socialdemocracias maduras, esses direitos sociais são definidos de
forma menos restrita, distribuídos mais igualitariamente e mais efetiva-
mente dissociados de posições sociais e emprego do que nas. sociedades
mais hierárquicas e estatistas da Europa central e oriental. Os mais aguerri-

126
AS QUATRO RAfZES - O REFORMISMO PROGRESSISTA PESSIMISTA

dos defensores da idéia de Europa entenderam que a coesão social e ima-


ginativa da comunidade depende da superação do hiato entre esses dois
tipos de economia política corporativista pela atribuição de um funda-
mento econômico mais estável às promessas de uma socialdemocracia mais
abrangente. Em ambos os tipos, contudo, podemos encontrar a mesma
dialética desenvolvida entre direitos que permanecem dentro do alcance
ativo e diário da atividade do mercado e direitos que conformam o merca-
do a partir de uma posição exterior. Essa dialética é a forma específica, na
socialdemocracia corporativista, daquela dialética mais própria e univer-
sal do direito contemporâneo: o contraste entre direitos de escolha e di-
reitos retirados do âmbito da escolha para o bem da escolha.
O governo coordena acordos entre os interesses organizados da socieda-
de sobre o conteúdo e o financimento do pacote de direitos sociais, bem
como sobre os agregados macroeconômicos dos quais esse pacote depende:
salário e preço, e até mesmo níveis de poupança e investimento. Esses "con-
tratos sociais" conciliam promessas de direitos com realidades econômicas,
e vigiam as fronteiras entre a esfera do mercado e o domínio das proteções
isoladas do mercado. Mais uma vez, as socialdemocracias mais acabadas
diferem de suas contrapartidas menos socialdemocráticas na abrangência
com que as partes celebrantes do contrato social representam a população
trabalhadora em geral. Nas versões mais desiguais e baseadas em posições
sociais da política econômica corporativista, uma grande parte da popula-
ção permanece excluída das instâncias de negociação e desfavorecidas pelos
acordos negociados. A divisão resultante entre os organizados e os desorga-
nizados reproduz no corporativismo alguns dos aspectos do dualismo. A
semelhança se torna mais forte quando a indústria começa a se apoiar em
imigrantes párias ou trabalhadores de países mais pobres, e passa a tratá-los
como a segunda e dispensável parte de uma mão-de-obra com dois níveis.
Tanto direitos sociais como contratos sociais dependem de uma difun-
dida crença na importância e na legitimidade da presença clara do Estado
na economia. Com esse credo surge um avanço no entendimento da cons-
tituição política das relações jurídicas, sejam privadas ou públicas. A cam-
panha do pensamento jurídico desde o século XIX para se livrar da supers-
ticiosa crença na existência de uma forma natural e pré-política da economia
de mercado, da sociedade civil livre e da democracia representativa encon-
tra apoio nessa idéia reconhecida. O efeito prático para a política partidária
é que as políticas públicas estatais têm mais espaço para manobra do que
aquele que desfrutam sob o dualismo. O debate político está menos sujeito

127
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

a se tornar emaranhado na oposição entre fé e descrença no Estado. O efeito


prático para a reforma jurídica é que redefinições de direitos sociais podem
. ser disputadas e decididas com maior igualdade nos campos do direito
privado e do direito público.
O problema com o corporativismo reside no limite que ele impõe ao
avanço na área nuclear do projeto democrático: a área de coincidência entre
as condições de progresso material e as condições de independência individual.
Os contratos sociais da economia política corporativista correm constan-
temente o risco de se degenerar num sistema de prerrogativas de grupo
hierarquicamente distribuídas, à medida que o novo sistema de direitos sociais
retorna ao ancien régime de privilégios e incapacidades de cada grupo. O
resultado é um constrangimento pesado à inovação prática que opera,
simultaneamente, como constrangimento sobre a igualdade.
Pacotes de direitos sociais nesse sistema político-econômico consolidam
o que de outra forma seriam apenas acordos transitórios contra o desafio econô-
mico e político. Esses direitos arraigados se ampliarão, ultrapassando os
característicos recursos econômicos e educacionais de ação individual efeti-
va. Eles abrangerão os privilégios que cada segmento da força de trabalho
desfruta vis-à-vis seus superiores e subordinados imediatos, bem como as
pretensões que cada setor de negócios tenha sobre os favores do Estado.
Dado que os instrumentos de ação individual passam a se identificar com
as prerrogativas de posições sociais, o espaço para inovação econômica fica
mais restrito. Dado que as divisões de poder político e econômico nunca
coincidem completamente, nenhum conjunto de acordos será capaz de igua-
lar exatamente ambas as formas de poder. Alguns considerar-se-ão perdedores
e revidarão, recusando-se a fornecer trabalho, capital ou votos, conforme
seus interesses ou possibilidades determinem, minando a prática coopera-
tiva de contratos sociais com uma guerra cara de atrito social. Dado que
interesses de grupos são organizados e representados desigualmente, os menos
organizados ou os desorganizados tornar-se-ão os órfãos do sistema. As
socialdemocracias mais acabadas diminuirão essa desigualdade dissociando
direitos de empregos, mas, ao fazê-lo, elas estarão também aumentado a
carga de direitos sociais sobre toda a sociedade - uma carga que deve ser
medida pelo esfriamento da inovação, bem como pelo custo dos direitos.
Dado que os direitos sociais incluem tanto rotinas de grupo como instru-
mentos individuais, os contratos sociais que os definem extrairão uma gama
ampla de assuntos da agenda aberta da política, e reduzirão o escopo de
abertura experimental em políticas públicas e na política.

128
AS QUATRO RAfZES - O REFORMISMO PROGRESSISTA PES~IMISTA

No cerne do progresso prático reside a relação paradoxal entre inova-


ção e cooperação. Ambas são necessárias ao progresso prático. Cada uma
precisa da outra e põe a outra em risco. O crescimento econômico é a área
mais importante, mas não a única, em que se podem investigar essas rela-
ções paradoxais. Uma vez que tenhamos ultrapassado os estágios primiti-
vos de escassez de recursos e simplicidade tecnológica, a inovação nas
técnicas, organizações e idéias logo supera o nível da poupança como um
constrangimento ao crescimento. A inovação econômica depende, em to-
dos os níveis, de cooperação social: cooperação entre os trabalhadores e
entre estes e seus supervisores no local de trabalho; cooperação entre em-
presas - fornecedores, clientes e mesmo concorrentes; cooperação entre
empresas e governos, pelo menos na produção de recursos físicos, sociais
e humanos básicos; e cooperação, na sociedade mais ampla, entre classes e
atividades competindo por atenção e benefícios do Estado. Não obstante,
toda inovação ameaça as estruturas, relações e expectativas nas quais as
práticas cooperativas estão, em cada um desses níveis, incrustadas. De
modo contrário, qualquer prática cooperativa, uma vez assim firmada,
ameaça estrangular progressos inovadores. O problema central do cresci-
mento econômico e do progresso prático em geral é a elaboração de insti-
tuições que moderem a interferência recíproca e explorem o reforço mútuo
de cooperação e inovação; é o avanço em direção a estruturas cooperativas
'que inibam menos a inovação. ·
Reconsiderado nessa perspectiva, o problema do dualismo reside em
que ele deixe insatisfeita a necessidade de cooperação, ou apenas a satisfaça
pelos mecanismos grosseiros e custosos da coerção econômica. O problema
do corporativismo, contudo, é que ele dá rigidez, na forma de contrato
social e direito social, a um sistema específico de cooperação, impondo
limites severos à inovação. Em vez de retirar da agenda da política de curto
prazo apenas aquelas garantias de capacidade necessárias para tornar a autode-
terminação política e econômica efetivas, ele retira da agenda um mundo
inteiro de estruturas sociais. Como resultado, ele deposita um ônus pesado
sobre o experimentalismo político e econômico.
Temos agora todos os elementos para podermos entender as preocupações
mais características da análise jurídica racionalizadora numa economia políti-
ca corporativista: flexibilidade e produção do direito de baixo para cima. Es-
ses devem ser os antídotos aos direitos estabelecidos definidos pelo Estado e à
cooperação orquestrada pelo Estado, da mesma forma como, no dualismo, a
igualdade perante a lei e o direito antidiscriminatório são levados a servir

129
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

como curas a formas selecionadas de apartheid social. Como antes, a resposta


jurídica ao problema social é, a um só tempo, real e superficial, ativa e mal-
direcionada. A forma teórica sofisticada da resposta é o interesse no direito
além do Estado, o direito feito de baixo para cima, auto-regulação e autopoiesis.
A forma prática mais banal é a ênfase conferida ao "princípio da subsidia-
riedade", segundo o qual o poder deve ser transferido o mais longe possível da
administração estatal central, e para baixo, em direção ao indivíduo, à famí-
lia, à empresa e ao governo local. Cada nível mais alto assume apenas aquelas
responsabilidades que o nível imediatamente inferior não tem capacidade
para cumprir eficazmente.
Transferir o poder sem organizar e reorganizar a sociedade é deixá-lo se
acumular nas mãos daqueles que já o desfrutam. É deixar os pequenos des-
potismos da sociedade civil sem correção, seja de longe seja de cima. De
forma mais geral, é diminuir a complexidade de fóruns e forças em níveis
diferentes, com sua promessa de desafio e variação. Um exemplo ilustrativo do
problema é o sistema de gestão e propriedade da empresa pelos emprega-
dos, instituído nas formas do direito de propriedade tradicional.* Se come-
çarmos com a forma simples definida por respeito à distribuição atual de
empregos e à idéia herdada de um direito de propriedade unitário, o com-
promisso com nossos objetivos iniciais de eficiência, igualdade e participação
irá nos levar a dispensar cada um desses dois pressupostos por vez. Tendo
alcançado o ponto de impormos restrições à alienação, acumulação, aquisi-
ção e aplicação de recursos, descobrimos que, para funcionar eficazmente, a
versão não revista da propriedade da empresa pelos empregados, como a
transferência do direito de propriedade consolidado tradicional de um tipo
de proprietário (o investidor-capitalista) para outro (o trabalhador-proprie-
tário), dá lugar a uma visão mais complexa dos poderes de controle divididos
e partilhados entre os trabalhadores-proprietários e as entidades exteriores.
Além disso, se quisermos evitar a busca de vantagens e o dogmatismo das
economias planificadas de comando, essas entidades exteriores não podem
ser apenas burocracias administrativas. Devem ser elas mesmas fundos in-
dependentes e concorrentes, gozando de alguns dos elementos que chama-
mos agora de propriedade. Deve caber aos Estados democráticos o papel
residual, porém decisivo, de estabelecer os limites fundamentais à variação

* Ver a discussão posterior e mais completa sobre a propriedade e a gestão da empresa


pelos empregados nas páginas 190-5.

130
AS QUATRO RAfZES - O REFORMISMO PROGRESSISTA PESSIMISTA

e à desigualdade na alocação descentralizada de recursos produtivos. No fim


do dia, gestão e propriedade da empresa pelos empregados, entendidos como
a mera transferência do direito de propriedade, terão sido substituídos pela
gestão e pela propriedade da empresa pelos empregados interpretados como
um outro nome para a economia de mercado democratizada. Tal economia
fragmenta direitos de propriedade e confere seus diferentes componentes a
conjuntos distintos de titulares.
Na ausência de inovações institucionais como essas, subsidiariedade e trans-
ferência reprimem oportunidades transformadoras. A transformação de com-
promisso transitório em direito estabelecido continua a ter lugar, ainda que
em contextos descentralizados. A campanha contra a rigidez erra seu alvo. A
contrapartida espiritual a essa abdicação prática é a resignação a uma forma
de vida em sociedade em que as pessoas desistem da política e buscam conso-
lo e redenção no "pianíssimo da vida pessoal". Elas anseiam por se tornar
grandes tornando pequena a política, mas seu anseio é equivocado.
Para fugir ao destino dessa desorientação, o direito e o pensamento jurídi-
co no corporativismo teriam que defrontar e reimaginar as formas institucionais
práticas de suas ambições descentralizadoras e antiestatistas. A análise jurídi-
ca racionalizadora, contudo, não consegue realizar esse objetivo sem uma
revolução em seus métodos. Até que coloque a relação entre instituições ou
práticas e idéias ou interesses no cerne de suas preocupações, o analista do
direito permanece condenado a viver na superfície dos fenômenos sociais,
onde conseqüências perversas ultrapassam boas intenções.

Os problemas políticos prdticos da andlise jurídica racionalizadora

Podemos perceber agora, de maneira mais ampla, o que a discussão sobre


a igualdade perante a lei já havia sugerido. A análise jurídica racionalizadora
expressa, de fato, as possibilidades e limitações de um reformismo
institucionalmente conservador. Em especial, ela retira significado, autorida-
de e energia do serviço que pode prestar a um reformismo progressista pessi-
mista: usar a idealização retrospectiva do direito como uma base sobre a qual
se pode melhorar a situação dos mais vulneráveis, aqueles que mais provavel-
mente sofreram derrota e subordinação na produção do direito.
Ao servir a essa família de políticas reformadoras, contudo, a análise
jurídica racionalizadora também lança luz sobre suas limitações, tanto como
formas de prática política quanto como variedades de imaginação política.

131
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Quanto mais profundamente compreendemos a relação entre o projeto


político e seu instrumento jurídico, menos motivos temos para ter fé em
qualquer um dos dois.
O defeito central da análise jurídica racionalizadora como ação política
reside na sua incapacidade para alcançar as fontes mais profundas de desvan-
tagem e exclusão nas instituições e práticas da sociedade. E quando enfim as
alcança, seu foco de atenção permanece tão restrito e sua visão tão superficial
que o movimento de aperfeiçoamento produz freqüentemente resultados
perversos e paradoxais. A essa simples imperfeição estão associadas todas as
outras deficiências do método de políticas públicas e princípios como refor-
ma prática: o papel de iniciativa conferido ao bonapartismo coletivo e enver-
gonhado dos juristas, que transmitem vantagens jurídicas como se vindas dos
céus a pessoas em suas qualidades de vítimas isoladas, em vez de as canalizar
por mecanismos de organização de grupo tendo em vista a mudança e o
progresso; a ênfase nos elementos da experiência de subjugação que são os
menos imediata e claramente ligados à estrutura institucional da sociedade,
tais como a discriminação motivada pelas características físicas de grupos di-
ferentes; a cegueira seletiva às relações entre fontes diferentes de desvantagem
e entre a desvantagem de grupos diferentes; a freqüente inversão da relação
entre a medida de ajuda necessária e a quantia de ajuda oferecida; o
aprofundamento das divisões entre as elites e as pessoas comuns de grupos
beneficiados, bem como entre os grupos que são e os que não são selecionados
para ajuda; a atitude acrítica diante do contexto institucional no qual deve-
mos realizar objetivos programáticos tais como a descentralização e a transferên-
cia de poder; e, de forma mais geral, a correção inquieta e obsessiva dos males
sociais que não podemos atenuar eficazmente sem uma reorganização de nossas
instituições, práticas, interesses e ideais.
Como imaginação política, a análise jurídica racionalizadora sofre de
um impulso para reprimir e congelar a relação interna entre instituições ou
práticas e interesses ou ideais. Ela funciona pela outorga de uma imagem
idealizadora sobre as práticas e as instituições definidas no direito, e encon-
tra no aperfeiçoamento retrospectivo do direito a desculpa por essa elevação
espiritual. O efeito é deixar sem expressão, não-explorada e não-resolvida, a
instabilidade interna característica das posturas programáticas no direito e
na política modernos: a tensão entre interesses reconhecidos ou ideais pro-
fessados e seus veículos institucionais estabelecidos.
À objeção de que podemos esperar levar essa relação interna a cabo em
outros campos de discurso, a resposta é que, para levá-la a cabo de alguma

132
AS QUATRO RAfZES - O REFORMISMO PROGRESSISTA PESSIMISTA

maneira, devemos fazê-lo sob a forma do direito. É como direito que as


instituições e práticas que capturam nossos interesses e ideais vivem em detalhe.
É no pensamento jurídico que proporcionamos um relato substancioso - e
determinante - da relação entre estruturas sociais e das concepções de inte-
resses e ideais que lhes dão sentido. O custo imaginativo maior do estilo
canônico de raciocínio jurídico é negativo: ele preenche o espaço imaginativo
em que outro modo de pensar poderia criar raízes, e o faz no campo de testes
fundamental em que ideais com legitimidade encontram realidades práticas.
Qualquer proposta de reorientação da análise jurídica, contudo, enfrenta
a objeção de que ele pode exigir medidas que ultrapassam o que os juízes
podem realizar legítima e eficazmente. Não podemos progredir no entendi-
mento do potencial da análise jurídica até que apaguemos a idéia de que
juízes, ou outros corri.o eles, são os agentes primários do pensamento jurídico.
Devemos rebaixar o papel do juiz, conferindo-lhe uma responsabilidade
especializada, excepcional e secundária. O corpo cívico como um todo deve se
tornar o interlocutor primário da análise jurídica. O papel primeiro do
jurista deve ser o de servir como assistente técnico do cidadão.

133
AS QUATRO RAfZES DA ANÁLISE
JURÍDICA RACIONALIZADORA
O papel dominante do juiz

O contexto histórico de uma obsessão

As limitações da análise jurídica racionalizadora encontram uma des-


culpa onipresente nos contrangimentos da função jurisdicional. Como
seus antecessores imediatos, a análise jurídica racionalizadora dirigiu-se
precipuamente a juízes ou àqueles que, como funcionários públicos ou
juristas, se colocam, na prática ou mentalmente, no lugar de juízes. Mes-
mo quando teorias contemporâneas do "processo jurídico" transformaram
o judiciário apenas em um sistema de atores jurídicos, ele permaneceu o
primeiro entre pares, no cume da pirâmide de "elaboração racional", da
mesma forma que o processo legislativo foi relegado a uma condição resi-
"dual, um instrumento de último recurso para ser usado quando os poderes de
ponderação racional não funcionam. A toda proposta para reforma e reo-
rientação da análise jurídica pode-se opor a objeção: o que os juízes poderiam
fazer com esse método? A pergunta que sempre interrompe a conversa -
"como os juízes devem julgar?"- permaneceu a questão fundamental na teo-
ria jurídica.
A questão da decisão judicial não merece tal privilégio. O privilégio
encobre acertos indefensáveis e antidemocráticos assumidos de antemão, e
sua continuidade ajuda a interromper o progresso da teoria jurídica. De
forma específica, o privilégio serviu tanto como causa quanto conseqüência
da incapacidade do pensamento jurídico contemporâneo em passar de sua
eterna preocupação com o gozo efetivo de direitos para sua pouco desenvol-
vida compreensão dos caminhos institucionais alternativos de desenvolvi-
mento do exercício de direitos em sociedades livres. A obsessão com o judi-
ciário ajudou a lançar um encanto antiexperimentalista sobre o pensamento
jurídico, seduzindo-o a trair sua vocação original numa democracia. Preci-
samos relegar a questão, "como os juízes devem julgar?", a uma condição
especializada e secundária, como uma questão que exige respostas especiais,

134
AS QUATRO RAÍZES - O PAPEL DOMINANTE DO JUIZ

mas que deixa o campo aberto para práticas de análise jurídica direcionadas
a outros fins. O fim precípuo é a especificação, no pensamento e na prá-
tica, da interação concreta entre ideais ou interesses e instituições ou práticas
pelo meio detalhado do direito e do pensamento jurídico. Antes de inves-
tigar, contudo, a relação da análise jurídica racionalizadora com a condi-
ção modelar do juiz, é útil lembrar alguns aspectos intrigantes da história
dessa condição.
A resolução de conflitos foi, junto com a conquista e a defesa, a fonte
suprema do Estado, pois nenhuma meta foi mais fundamental na história
da sociedade do que o esforço para estabelecer e manter a ordem, ameaçada
por conflito, usurpação e vingança. Aos nossos olhos modernos, portanto,
as formas primeiras de governo parecem não raro ser adjudicatórias. Essa
impressão, contudo, expressa uma meia verdade: confundimos a prática
abrangente de conciliação e julgamento por tais instituições prato-estatais
com o trabalho especializado, embora ambicioso, dos juízes modernos. O
aspecto mais importante a entender sobre essas instituições antigas é que
elas funcionaram num contexto de direito consuetudinário, sobre cujas partes
direito divino e intervenção régia podiam ser sobrepostos.
O direito consuetudinário toma forma em torno de uma série de conti-
nuidades entrelaçadas: do direito com as expectativas reais e exigências que
as pessoas fazem umas das outras de acordo com o papel social que ocupam;
de padrões normativos com comportamentos e crenças tornados rotineiros;
e dos atos pelos quais as pessoas definem o que é o direito com os atos pelos
quais elas o aplicam em casos concretos. O efeito cumulativo dessas con-
tinuidades é a naturalização da sociedade: colocando a maioria das estru-
turas sociais além do alcance de desafio e revisão efetivos, elas se tornam
na prática a ordem natural das coisas. Mesmo na Europa medieval, os
centros emergentes de governo permaneceram divididos entre jurisdictio e
gubernaculum. A jurisdictio reafirmava um direito comum e consuetudinário
no curso de sua aplicação. O gubernaculum principesco intervinha para
administrar crises e usar recursos e poderio humano sem procurar incomo-
dar a ordem natural da sociedade. Quando tal sentido reconhecido de
naturalidade tem que coexistir com uma consciência de diferenças entre
formas de vida em sociedades distintas, ele se transforma numa concepção
ricamente definida de identidade coletiva: os costumes romanos definin-
do o que significa ser um romano.
Só esporádica e ambivalentemente é que a common law da Inglaterra
ou o ius commune da Eurospa continental se desenvolveu em contraste

135
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

mais acentuado com o costume social. Surgiram procedimentos para con-


duzir a resolução de conflitos. Juristas começaram a pensar no direito que
faziam como um produto da história evoluindo no tempo histórico. Socie-
dades começaram a reivindicar poderes maiores para se refazer pelo artifí-
cio de suas leis.

A tarefa jurisdicional e a reconstrução racional

Considere agora o trabalho dos juízes modernos e na posição do judi-


ciário moderno. A aplicação e o desenvolvimento judicial do direito têm
lugar num pano de fundo em que se reconhece que o direito é criado, e é de
fato criado, por agências ou órgãos públicos não-judiciais. Numa democra-
cia, os órgãos políticos do Estado devem ter grande peso entre esses criado-
res do direito. Ainda assim, o poder dos juízes como criadores do direito
parece exceder o que suas responsabilidades ocasionais como guardiães de
direitos individuais constitucionalmente firmados conseguem explicar. His-
toriadores comparativos do direito moderno mostraram como, por volta de
1800, os juízes vieram a assumir, mesmo na Europa continental, responsa-
bilidades maiores para a interpretação e a reorganização reformadora do
direito. Eles não permaneceram servos passivos dos legisladores originais
que muitos dos reformadores e democratas radicais do início do século XIX
queriam que eles fossem. A codificação muitas vezes diminuiu o crescimen-
to do poder dos juízes. O prestígio de juristas acadêmicos e jurisconsultos
privados modificou-o. Ele, não obstante, prosseguiu. Hoje, num país como
a Alemanha, as técnicas de interpretação do direito se tornaram muito mais
parecidas com aquelas dos juízes, digamos, norte-americanos do que as his-
tórias divergentes dessas duas tradições nos levariam a esperar. Os historiadores,
não obstante, não conseguiram explicar por que os juízes continuaram a
assumir cada vez mais poder de criação do direito mesmo onde a cultura jurí-
dica tradicional parecia hostil a suas pretensões.
Podemos encontrar uma resposta na adaptação recíproca de realidades
institucionais e preconcepções espirituais nesses países em que o juiz goza
de maior poder. Ideais do estado de direito e da eficiência administrativa
exigem que o direito seja formulado como um corpo de regras e doutrinas que
confiram direitos típicos e estáveis a grupos amplos de papéis sociais: cida-
dãos, contribuintes, consumidores e trabalhadores; credores e devedores; espo-
sas e filhos. Imagine que haja divisões entre os interesses e as ideologias que

136
AS QUATRO RAfZES - O PAPEL DOMINANTE DO JUIZ

produzem esse corpo de direito, mas que essas divisões não sejam tão pro-
fundas, nem que as elites sejam tão fragmentadas e sectárias que não possam
deixar seus acordos relativamente inacabados e confiar em quadros especiais de
funcionários para completá-los. Uma maneira de entender a análise jurídi-
ca racionalizadora e o significativo poder judicial que ela tanto confere quanto
oculta é dizer que ela serve como o instrumento pelo qual as elites que criam o
direito, nos órgãos políticos do Estado, transferem a responsabilidade de com-
pletar os seus acordos a juízes e outros profissionais da aplicação do direito. A
transferência ostentatória de poder a aplicadores do direito, pelo uso de
regras e princípios indeterminados, é apenas o caso extremo de um hábito
inveterado. Contudo, os juízes poderiam não ser eficientes nessa tarefa de
tornar patente a lógica social oculta do que podem parecer compromissos
frágeis, se a eles coubesse empregar os métodos dos órgãos políticos.
Tampouco, empregando aqueles métodos, poderiam os juízes conciliar a
responsabilidade de aperfeiçoar o direito com a tarefa de respeitar e assegurar
direitos em litígios específicos. Assim, a análise jurídica racionalizadora,
como seus antecessores do século XIX, serve como a ferramenta discursiva
de um dilema institucional.
À medida que as divisões e as alternativas presentes na política democrá-
tica se acentuam, o expediente de tratar o direito como uma série de acordos
inacabados, com uma lógica interna suscetível de ser tornada patente retros-
pectivamente, perde seu apoio na realidade. Não há nenhum esquema racio-
nal em desenvolvimento que fragmentos diferentes do direito possam parecer
exemplificar. Antes de ser um problema para a democracia, a falta de tal
esquema latente é, de certa forma, unia pré-condição do vigor democrático,
pois a democracia se expande quando abre a vida em sociedade ao expe-
rimentalismo consciente. Pela mesma razão, a transferência da responsabi-
lidade de acabamento e reconstrução do direito a um grupo isolado de espe-
cialistas em discussão racional não faz sentido algum. Tal conhecimento
pertence aos cidadãos. Qualquer sociedade pluralista e democrática deve ter
boas razões para deixar alguns de seus acordos incompletos, mas só uma
democracia nas garras de superstição antidemocrática confiará a um quadro de
mistagogos sob a forma de juristas a tarefa de executar e especificar esses
acordos sob a luz de concepções sistemáticas de dever ou de bem-estar suposta-
mente latentes a esses ajustes.
Reconsiderada por esse ângulo, a análise jurídica racionalizadora e a ligação
que ela estabelece entre a aplicação do direito e a reconstrução racional do
direito parece depender de uma impressionante combinação de circunstâncias.

137
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Deve haver suficiente experimentalismo prático com relação à vida em socie-


dade para fazer a criação consciente do direito a fonte principal, e não uma
correção marginal, das estruturas sociais. Contudo, não deve haver tanto
experimentalismo democrático a ponto de tornar suspeita a passagem da
história prospectiva do direito como acertos entre interesses e visões em
disputa e sua história retrospectiva como a corporificação sistemática de
políticas públicas e princípios ligados. A democracia e o experimentalismo
democrático são o que esse acordo constrange. Tal sociedade continua a se agar-
rar a um resíduo poderoso da velha naturalização da vida coletiva sob a égide do
direito consuetudinário - e da contrapartida posterior a essa naturalização
na idéia de um sistema auto-evidente de estruturas e direitos para uma vida
econômica e política livre.
A análise jurídica racionalizadora retira muito de sua força e significado
da crença não testada de uma correspondência natural entre o método de
raciocínio jurídico e as responsabilidades da decisão judicial. Os constran-
gimentos institucionais e ideológicos sobre o papel do juiz numa democra-
cia e o esforço em defender o direito como políticas públicas e princípios
ligados parecem reforçar e justificar um ao outro. Uma vez que tenhamos
decidido que os juízes devem aplicar um método de elaboração racional, e
interpretarmos a elaboração racional como a reconstrução racionalizadora
do direito no vocabulário de políticas públicas e princípios impessoais,
poderemos então designar a todos os outros atores do sistema jurídico - a
agência ou o órgão administrativo, o titular de direito individual e o poder
legislativo - uma variante convenientemente menos rígida de elaboração
racional. Por fim, chegamos à prática residual e resistente à razão da política
eleitoral partidária, o último refúgio, e não a fonte primeira, da produção
do direito. O juiz fica no centro desse sistema imaginativo porque ele deve
ser a corporificação da razão no direito.

Colocando a tarefa jurisdicional em seu lugar

Uma objeção inicial a essa ligação exemplar entre raciocínio jurídico e


decisão judicial é que ser juiz é um papel conformado institucionalmente, e
não uma atividade social com um núcleo permanente e com limites cons-
tantes. É um papel cujos contornos variam de uma sociedade e de uma
época para outra. Um simples experimento mental revela essa condição. De-
veriam a tarefa de resolver conflitos de direito entre litigantes individuais

138
AS QUATRO RAfZES - O PAPEL DOMINANTE.DO JUIZ

e a tarefa de reorganizar práticas organizacionais que frustram o gozo de


direitos (por exemplo pela execução complexa) ser conduzidas pelo mesmo
agente institucional, como é mais ou menos o caso agora, ou deveriam ser
separadas e atribuídas a dois agentes diferentes? Num caso, a função jurisdi-
cional, como entendida hoje nos Estados Unidos, teria que continuar a se
expandir. No outro, teria que se contrair. Nenhum programa metodológico
pode permanecer indiferente ao contexto institucional de sua execução.
Duas realidades afundadas em variação e contingência histórica - a prá-
tica da análise jurídica e a circunstância de ser juiz - não podem se tornar
menos variáveis e contingentes por serem, de alguma maneira, sobrepostas,
como se ficassem naturalmente bem juntas e pertencessem uma à outra.
Ainda assim, essa equiparação arbitrária ajuda a moldar o programa da aná-
lise jurídica racionalizadora.
Uma vez que reconheçamos a estranheza dessa familiar identificação do
raciocínio jurídico com a decisão judicial, podemos também começar a
avaliar suas conseqüências. Estas pertencem a duas classes amplas, das quais
a segunda e menos tangível é, de longe, a mais importante. O primeiro
conjunto de conseqüências é a influência exorbitante exercida sobre a práti-
ca de análise jurídica pelas ambições e ansiedades de um elenco especial de
personagens: os juízes, os funcionários públicos e os juristas privados. Esses
juristas estão na posição imaginária de juízes, ou sussurram, figurativa ou
literalmente, em seus ouvidos.
Essas personagens querem realizar alguma coisa de importante, como
todos queremos quando somos sérios. Também querem conciliar a impor-
tância do seu trabalho com as pretensões limitativas da legitimidade demo-
crática e eficiência prática. A análise jurídica racionalizadora pode ser enten-
dida como apenas a mais recente solução para esse problema. Porque é
reconstrutiva e reformadora, e pode resultar em reinterpretação e nova atri-
buição de direitos, cria uma oportunidade para um trabalho de importân-
cia. Porque ela proclama interpretar o direito, ou desenvolvê-lo sob direção
racional, e porque evita a reimaginação e a reelaboração de estruturas insti-
tucionais, ela respeita limites práticos ao poder de especialistas e limites
democráticos à autoridade de funcionários e profissionais não eleitos. Em
todos esses aspectos, a análise jurídica racionalizadora se assemelha nitida-
mente às formas de análise e prescrição de políticas públicas empregadas
por especialistas políticos com ou sem função pública. Ela segue a lógica
essencial do acerto socialdemocrata, com sua simpatia a políticas de transfe-
rência fiscal e sua renúncia ao desafio institucional.

139
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

O problema reside em subordinar o que a análise jurídica pode fazer


pela república e seus cidadãos ao que ela pode fazer pelos juristas, conci-
liando suas ambições a suas ansiedades. O "status de grupo" fica no cami-
nho da missão mais geral, aprisionando uma tarefa maior dentro dos limi-
tes de preocupações particulares. Esse aprisionamento imporá um custo
intolerável se seu efeito for o de interromper o projeto democrático. Ele
interromperá o projeto se nos negar os instrumentos pelos quais podemos
identificar e resolver a relação instável entre pressupostos sobre instituições
e práticas e definições de interesses e ideais. Essa relação instável está no
coração de cada uma das posições programáticas conhecidas - conservado-
ra, centrista ou progressista - na política democrática contemporânea.
Assim, chegamos à segunda, mais fugidia e mais importante classe de
conseqüências da fascinação obstinada com juízes no pensamento jurídico.
O efeito dessa fascinação é usurpar o campo imaginativo em que práticas
mais construtivas e reconstrutivas de análise jurídica poderiam se desenvol-
ver. O parâmetro de funções dos juízes impõe um constrangimento
paralizante sobre a reinvenção da análise jurídica: qualquer estilo de análise
jurídica mais ambicioso e transformador parecerá apenas aumentar os já
excessivos poderes dos juízes.
Deixemos a análise para os juízes, pode parecer a resposta, e lidemos
com a relação interna de interesses e ideais com instituições e práticas por
todas as outras variedades de argumentos políticos prontamente disponí-
veis, fora do discurso jurídico. O problema é que essa relação interna se
faz de maneira mais importante quando é travada em detalhe. No nível
indispensável de detalhe, ela mora no direito. O direito não descreve
regularidades de comportamento e estruturas sociais; ele seleciona as estru-
turas a partir das quais pretensões, apoiadas pelo poder estatal, terão prosse-
guimento. A doutrina jurídica, por sua vez, relaciona essas estruturas de
concessão e negação de poder a concepções de relacionamento humano:
imagens das formas de associação possíveis e desejáveis nos diferentes cam-
pos da experiência social.
Se as alternativas institucionais e imaginativas de grande escala expressas em
ideologias abrangentes perderam seus poderes de sedução, e os grandes proje-
tos transformadores que elas defenderam desmoronaram em fracasso e frustra-
ção, as alternativas continuam a viver nos detalhes. Em nenhum lugar a
especificidade institucional encontra as concepções imaginativas mais com-
pletamente, e em nenhum lugar o seu encontro tem mais importância para
os poderes e as imp9tências das pessoas do que no direito e no pensamento

140
A5 QUATRO RAÍZES - O PAPEL DOMINANTE DO JUIZ

jurídico. Os advogados têm controle, tanto intelectual como prático, sobre


essa máteria vital. Não ousemos deixá-la a eles, sob o risco de que eles a
representem de um modo motivado pela conciliação egoísta do desejo de
realizar um trabalho importante com a necessidade de evitar embaraço aos
olhos da democracia.
Essa relação entre direito, advogados e cidadãos é típica, e não anômala.
À medida que a política orientada pelo Estado nas democracias industriais
ricas tem seu alcance restringido, da mesma forma como a filosofia abando-
na a pretensão à autoridade subversiva e reconstrutiva, o conflito sobre o
que é fundamental desaparece das arenas centrais da política e da filosofia.
O que foi retirado do palco principal da política e da cultura reaparece,
contudo, sob o disfarce de conhecimento técnico, na prática e no discurso
dos profissionais. Para que o projeto democrático avance, as disciplinas
especializadas e as práticas profissionais devem, de alguma forma, devolver
ao diálogo fundamental da democracia a agenda maior que elas ajudaram a
lhe subtrair. Elas devem devolvê-la enriquecida, e devem devolvê-la de uma
forma que reconheça o caráter inevitável do saber especializado e do conhe-
cimento técnico, ao mesmo tempo transformando a relação entre especia-
listas e cidadãos.
O jurista, não mais o juiz imaginário, deve se tornar o assistente do
cidadão. O cidadão e não o juiz deve ser o interlocutor primeiro da análise
jurídica. O alargamento do sentido de possibilidade coletiva deve se tornar
a missão precípua do pensamento jurídico.

Como devem os juízes julgar?

Suponha, então, que tratemos a questão "como devem os juízes julgar?"


como uma questão especial, que exige uma solução especial. Suponha, ain-
da, que ao sugerirmos essa resposta especial tomemos cuidado para evitar as
ilusões da análise jurídica racionalizadora, suas ilusões sobre a analogia,
sobre arbitrariedade e sobre reforma. Devemos definir o método de uma
maneira que respeite a realidade humana e as necessidades práticas das
pessoas que vão a juízo sem que as subordinemos a um esquema reluzente
de aperfeiçoamento do direito. Devemos estar certos de que nossa prática
judicial deixa aberto e disponível, na prática e na imaginação, o espaço
onde o trabalho real da reforma social pode ocorrer. Devemos evitar o dogma
e aceitar fazer concessões na nossa descrição da prática e também no nosso

141
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

entendimento da sociedade para o qual a prática contribui. Devemos ten-


tar permanecer próximos ao que as decisões judiciais nas democracias con-
temporâneas realmente são.
A visão da análise jurídica num cenário de aplicação de direito que eu
agora sugiro esvazia as vastas esperanças políticas e intelectuais da doutrina
jurídica. Ela é menos ambiciosa na aplicação do direito, contudo, só por-
que é mais ambiciosa fora dela. Além disso, tem a virtude do realismo: ela
descreve o corpo de decisões judiciais reais muito melhor do que o faz o
cânone da análise jurídica racionalizadora. Que ela tivesse que ser superior
ao seu rival estabelecido mesmo nesse aspecto é surpreendente quando lem-
bramos a tendência de qualquer prática discursiva a se tornar uma profecia
auto-realizável e a susceptibilidade de qualquer prática discursiva para ser
influenciada por uma concepção prestigiosa do seu trabalho. A teoria de
um objeto penetra no próprio objeto. Que o programa da análise jurídica
racionalizadora deva exercer alguma influência na prática judicial, especial-
mente nos tribunais superiores, é previsível; que essa influência, não obstante,
permaneceria tão limitada, é revelador.
O cerne da maior parte da análise jurídica num contexto de aplicação
do direito deveria e deve ser a prática do raciocínio analógico orientado
contextualmente na interpretação de leis e decisões judiciais passadas. Esse
raciocínio analógico deve ser guiado pela atribuição de fins aos materiais
interpretados, uma determinação que pode com freqüência permanecer
implícita em situações de práticas estabelecidas, mas que deve ser trazida a
lume sempre que significados e objetivos são contestados. Os objetivos pre-
cisam ser explicados quando contestados de fato, na experiência mais ampla
da sociedade e da cultura e nas circunstâncias de vida dos litigantes, em vez de
apenas pelos advogados em juízo.
A prática do raciocínio analógico finalístico deve, contudo, diferir em dois
aspectos capitais do método recomendado pela análise jurídica racionalizadora
e seu elenco de teorias de apoio. Primeiro, não deveria reconhecer nenhum
impulso a fechamento e abstração: a ascensão conceitua! de juízos finalísticos
em direção a concepções prescritivas sob a forma de teorias de campos intei-
ros do direito e da vida em sociedade. Segundo, deve tentar evitar todo con-
traste rígido entre as genealogias prospectiva e restrospectiva do direito: entre
o direito como ele parece aos que contendem, na política e na opinião públi-
ca, sobre a sua criação e o direito como ele parece após o fato aos intérpretes
profissionais e judiciais. Os objetivos que guiam o analogista devem ser tão
ecléticos em natureza como aqueles que motivam os adversários na produção

142
AS QUATRO RAfZES - O PAPEL DOMINANTE DO )UIZ

original do direito. Eles variam do triunfo de um interesse de grupo sobre o


outro para a força de um conjunto de ansiedades em relação a um conjunto
de temores que as contrabalança.
O que importa é que o juiz forme uma visão desses objetivos que tenha
relação com o mundo real de discurso e conflito do qual aquele fragmento
do direito surgiu. Além disso, a visão deve reconhecer o caráter controverso
e parcial de cada um dos interesses, preocupações e pressupostos a que ele
recorre. Eles contam não porque sejam os melhores ou mais racionais, mas
porque venceram e se estabeleceram há muito tempo no caminho da pro-
dução do direito. A deferência a significados literais e expectativas partilha-
das é simplesmente o caso-limite de um compromisso mais geral com o
respeito à capacidade de partidos e movimentos para vencer na política, e
para inscrever e guardar suas vitórias no direito.
A transposição desse compromisso para um sistema de direito criado
pelos juízes, tal como a common law anglo-americana, apresenta proble-
mas especiais. Pois aqui nunca houve um momento anterior ou posterior
ao discurso racionalizador e retrospectivo dos advogados especializados
em cada período histórico. O aspecto crucial é que a common law após a
democracia e dentro da democracia deve significar alguma coisa diferen-
te, e se desenvolver de forma diferente, do que uma common law fora e
antes da democracia. Para ser tolerável dentro da democracia, a common
law não pode representar a descoberta e o aperfeiçoamento cumulativo de
um mundo de costume natural e constante por um grupo de sábios jurí-
dicos. Também não pode ser o sistema fundamental de categorias de direito
privado que define as formas jurídicas necessárias de economias e socieda-
des livres. Ela existe, tolerada, como um conjunto de compromissos his-
tóricos que as pessoas decidem, eventualmente, revisar. Da perspectiva de
crenças e práticas democráticas, não mais podemos interpretar o corpo
de direito legislado à luz de-idéias e analogias de common law, nem aceitar
a interpretação literal de leis em detrimento da common law. Devemos inter-
pretar a common law no contexto do experimentalismo democrático como
uma região marginal de ajustes e pressupostos que a democracia ainda
não perturbou e que talvez nem sempre precise suplantar. Reforçamos
sua vitalidade e autoridade contínua quando trazemos para o seu desenvol-
vimento caso-a-caso os pressupostos e analogias presentes no processo polí-
tico de criação, e de interpretação judicial, das leis. Dessa forma, nós o tor-
namos nosso em vez de ficarmos esperando que, por seu desenvolvimento
imanente, ele "se auto purifique".

143
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

A prática de raciocínio analógico orientada contextualmente - com seu


respeito a significados literais e entendimentos estabelecidos, sua recusa a
ascensão conceitual, seu empenho em procurar norte nas mentalidades e vo-
cabulários do mundo político verdadeiro de onde vêm as leis e seu reconheci-
mento da natureza controversa e parcial dos interesses e preocupações em
questão - é também uma prática inacabada. É inacabada mesmo como um
método de decisão judicial. Para entender por que ela é inacabada e para
compreender as implicações da sua incompletude, devemos reconhecer que
dois grandes ideais afetam seu trabalho e modificam seu curso. O primeiro é
um ideal de preocupação com os litigantes como pessoas reais, com suas
vulnerabilidades e expectativas. O segundo é um ideal de empenho para fazer
com que a aplicação do direito sirva o fim maior de avançar o poder de um
povo livre para se autogovernar. Temos freqüentemente sorte o suficiente para
servir a esses ideais nos agarrando aos métodos convencionais de decisão judi-
cial. Às vezes, contudo, a lealdade aos ideais exige que rompamos com essa
prática convencional. Desse distanciamento em nome do ideal de preocupação
com as pessoas surge o desvio da "eqüidade". Do distanciamento em nome
do ideal de autogoverno popular vem o desvio do governo judicial.
Em toda cultura, uma grande parte da vida moral consiste nas exigên-
cias e expectativas que as pessoas têm umas com relação às outras em virtude
de seus respectivos papéis. A dependência de nossas idéias de comporta-
mento adequado e justo sobre papéis sociais vale tanto para papéis esco-
lhidos quanto atribuídos. Embora dificilmente o suporíamos a partir dos
escritos morais dos filósofos, as expectativas relacionadas com papéis são o
campo principal em que hábitos comportamentais encontram crenças
prescritivas. Elas são, portanto, o resíduo primeiro de direito consuetudi-
nário na sociedade moderna.
Numa democracia cujas estruturas têm alguma medida de realidade,
porque nem é vítima de desigualdades extremas nem sujeita a domínio
colonial, o direito normalmente se conformará a tais pretensões e expectati-
vas preexistentes. Não se pode negar: o direito também pode ser usado para
modificá-las e portanto para criar resistências a elas. Nas condições de demo-
cracia, contudo, é mais provável que isso aconteça quando já houver um
conflito de percepções morais e políticas, abrindo um espaço a que a inicia-
tiva jurídica se agarra.
Assim, o método analógico e contextualista convencional de decisão ju-
dicial será normalmente capaz de amainar o código popular de justiça ba-
seado em papéis. O juiz logra êxito em fazer com que expectativas morais

144
AS QUATRO RAÍZES - O PAPEL DOMINANTE DO JUIZ

estabelecidas nos mundos sociais dos litigantes se imprimam sobre a práti-


ca finalística de juízos analógicos. Por vezes, o direito o convidará aberta-
mente a fazê-lo pelo uso de princípios abertos, como razoabilidade, dili-
gência e boa-fé, ou pela prática do comércio e usos comerciais. Mais
freqüentemente, ele será capaz de agir sem um convite explícito, como par-
te do esforço justificado de entender e elaborar o direito no contexto dos
mundos sociais e culturais que o produziram.
Às vezes, contudo, o juiz e os litigantes não terão tanta sorte. A interpre-
tação modesta, sensível e de boa-fé do direito resultará, no caso em tela,
num contraste gritante entre o imperativo jurídico e o resultado moral.
Esse contraste pode ser o resultado direto e previsível do direito que as
pessoas queriam criar. Elas podem, por exemplo, ter reformado o direito de
família de modo a subverter as expectativas baseadas em papéis da vida fami-
liar atual. Alternativamente, pode não haver um meio de transpor o hiato
entre o direito e o costume sem ameaçar, ou parecer ameaçar, alguma parte
da estrutura institucionalizada da sociedade.
O problema não é então que a divisão entre costume e direito era ela
mesma intencional, mas sim que não se pode fugir dela sem ampliar dra-
maticamente o que está em jogo no conflito. Por exemplo, se, por respeito
ao ideal de preocupação com as pessoas, usássemos a doutrina da coação
econômica no direito dos contratos para anular todos os contratos celebra-
dos entre membros de classes diferentes, nos encontraríamos com uma au-
toridade circunstancial para subverter e reconstruir a ordem social.
Há circunstâncias em que os juízes podem e devem exercitar um frag-
mento dessa autoridade a fim de que os órgãos políticos e a cidadania tam-
bém possam fazê-lo; eu as analisarei em breve sob a forma da exceção do
governo judicial. Na maior parte, contudo, tal tarefa está além do que os
juízes podem realizar eficaz ou legitimamente. Se eles insistem em realizá-
la, correm o risco de ser levados pela necessidade de conciliar ambição e
modéstia a um reformismo grosseiro e circunstancial, que produz tanto
mal quanto bem.
Haverá situações, contudo, em que um grande fosso se abrirá entre di-
reito e costume. O fosso pode não ser propriamente o projeto do direito
nem sua conseqüência previsível. Os juízes podem criar um recurso jurídi-
co ad hoc, deixando a estrutura da sociedade intocada ou sem ameaça. Aqui
está a oportunidade para o juízo de eqüidade. O microexcepcionalismo do
ajuste eqüitativo é a antiga tentativa de reconcepção de direitos no contexto
de papéis sociais, o sacrifício anômalo do direito ao costume. É uma tenta-

145
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

tiva de diminuir a cota de crueldade na experiência cotidiana, e fazê-lo não


numa grande escala, mas na dimensão de um evento e de um encontro. A
humanidade do juiz responde à humanidade dos litigantes. Tal substituto
temporário não gozaria de futuro nem exerceria influência. Constitui uma
exceção à prática jurisdicional normal, mas uma exceção corretamente
abrangida dentro de uma visão maior da prática.
O ideal de autogoverno popular geralmente encontra sua melhor prote-
ção judicial na modéstia da prática tradicional, por todas as razões explora-
das na minha discussão anterior das fraquezas do vanguardismo jurídico. O
bonapartismo envergonhado das elites jurídicas, que alegam defender as
pessoas de sua própria ignorância, raiva e egoísmo, não tem um passado
encorajador. Mesmo que o juiz escolha sensatamente a linha do avanço
democrático, descobre mais que freqüentemente que a sua deficiência de
poder e legitimidade o impede de lidar com as estruturas instituciona-
lizadas de onde a maior parte da desigualdade e exclusão se origina; que a
fuga de causas últimas é logo tratada com a sua santificação; que seus benefí-
cios acabam desviados para os segmentos não merecedores de grupos mere-
cedores; que sua arrogância e casuísmo ajudam a manter aqueles em situação
de desvantagem desorganizados e divididos; e que os efeitos práticos sejam
tão ínfimos quanto a intervenção corretiva é ruidosa. Além disso, usar qualquer
litígio concreto para levar a história para frente pode, com freqüência, corrom-
per o ideal de preocupação com as pessoas, bem como o ideal de autogoverno
popular, ao subordinar os problemas dos litigantes às aspirações de uma pro-
vidência togada.
Os argumentos deste livro também mostraram, não obstante, existir
circunstâncias em que os juízes podem de modo apropriado trazer para si
a responsabilidade de cortar um nó górdio no direito, com suas espadas
de interpretação construtiva. Eles podem fazê-lo instados pelo ideal de
autogoverno popular. A condição básica que justifica esses atos de inter-
venção judicial é que exista um obstáculo arraigado ao gozo de direitos,
em especial os direitos que compõem o sistema de autogoverno popular.
Chamar o obstáculo de "arraigado" significa dizer que ele resiste a desafio
e oposição pelos mecanismos geralmente disponíveis de ação política e
econômica, e que suas vítimas conseqüentemente se encontram incapazes
de escapar dessa circunstância por seus próprios esforços. Há, assim, duas
variantes principais.
O obstáculo pode estar difundido na experiência de certos grupos, em-
bora seja desencadeado por práticas especiais. Os órgãos políticos do Estado

146
AS QUATRO RAÍZES - O PAPEL DOMINANTE .DÓ JUIZ

não conseguem reagir, geralmente porque a mácula antidemocrática toca as


estruturas relacionadas com a sua formação, tais como as práticas eleitorais
ou o acesso aos meios de comunicação. A solução pode ser uma reformu-
lação arrojada do direito, seja no direito constitucional seja na legislação or-
dinária. Tal arrogação de autoridade tribunícia não passa de um jogo em
busca de apoio. As perspectivas para sua eficácia, bem como a defesa de
sua legitimidade (eficácia e legitimidade se sobrepõem) são, portanto,
muito fortalecidas quando os reformadores podem recorrer a uma corrente
de opinião ampla na sociedade. São também reforçadas quando os refor-
madores agem como os parceiros de movimentos organizados nas áreas da
vida em sociedade em que eles intervêm. A parceria do judiciário federal
americano com os movimentos de liberdades civis, e, depois, com maior
hesitação, tom o movimento feminista, durante o auge da teoria jurídica
progressista, fornece os exemplos mais conhecidos.
Alternativamente, o obstáculo pode estar localizado nas estruturas de
poder de organizações privadas ou práticas sociais. A corrupção do ideal
de autogoverno popular pode parecer menos evidente. Na sua forma mais
sutil e limitada ela pode, não obstante, ser ainda mais insidiosa em minar a
capacidade para autodeterminação individual, assim como a coletiva. Aso-
lução então se encontra na intervenção estrutural, porém episódica, da exe-
cução complexa.
Enquanto não conseguirmos instituir um órgão separado do Estado para
desempenhar esse papel, com maior responsabilidade democrática e maio-
res recursos investigativos, técnicos, financeiros e administrativos do que o
judiciário tradicional ora goza, não haverá nenhum agente institucional
apropriado para realizar essa missão. Melhor um agente pouco apropriado,
contudo, do que absolutamente nenhum. Os juízes podem ser muitas ve-
zes os melhores agentes disponíveis. Pelo menos, eles podem ser os únicos
agentes dispostos.
Eles terão então que testar quão longe seu poder e autoridade, bem
como suas vontades e imaginações, permitem-nos avançar o trabalho da
intervenção estrutural, porém episódica. Precisarão conduzir o trabalho
totalmente conscientes dos constrangimentos que sua incongruência como
agentes impõem sobre a execução da sua tarefa auto-atribuída. Terão razão
para ser tanto céticos quanto humildes. Entenderão, tanto nessa variante
como na outra da técnica judicial de governar, que uma coisa é invocar os
espíritos e outra é que eles venham.

147
KENOSIS: EVITANDO OS DESCAMINHOS
DA TEORIA CONTEMPORÂNEA

A teoria como obstdculo

Antes de nos voltarmos para as implicações construtivas dessa discussão


da análise jurídica racionalizadora para a tarefa do pensamento jurídico fora
do contexto da atividade jurisdicional, há mais um obstáculo a ser trans-
posto: os descaminhos a que as abordagens modernas mais influentes do
direito nos conduzem. Onde quer que a análise jurídica racionalizadora
surja, as escolas de teoria jurídica tornam-se suas ideologias operacionais.
Assim, nos Estados Unidos, hoje, teorias do processo jurídico, de dever
político e de eficiência econômica apresentam propostas alternativas para
fundar e aprimorar o vocabulário de políticas públicas e princípios. Já mos-
trei como, em cada caso, o téorico afirma que parte do esquema racionalizador
está lá, já latente, dentro do direito existente e do conhecimento jurídico
aceito; e parte deve ser adequadamente acrescentada, ou completada, pelo
trabalho de aperfeiçoamento d~ elaboração racional e retrospectiva. A críti-
ca dessas idéias é mais bem realizada quando se critica seu objeto real - a
análise jurídica racionalizadora, melhorada ou não.
Outras idéias, contudo, aparecem no caminho. Essas idéias tratam mais
amplamente da natureza do direito, e da relação do direito com formas de
vida em sociedade e com sistemas de pensamento social. Ao longo das últimas
várias gerações, quatro famílias desse gênero moldaram, com força variável, nos-
sa visão do que podemos fazer com o direito e o pensamento jurídico: a crença
de que a indeterminação ou a maleabilidade da doutrina jurídica é o pro-
blema central do raciocínio jurídico, ligada à tentativa de às vezes radicalizar
ou outras vezes abrandar o elemento de discricionariedade no raciocínio
jurídico; a tentativa (de teóricos como Kelsen e H. L. A. Hart) de distinguir
nitidamente a representação analítica do direito da prática interior da dou-
trina jurídica, e assim escapar da mistura de teoria e ideologia; a visão
funcionalista do direito como a manifestação visível ou a ferramenta ade-

148
KENOSIS: EVITANDO OS DESCAMINHOS DA TEORIA CONTEMPQRÂNEA

quada de exigências práticas e funcionais da vida em sociedade; e a concepção


historicista ou culturalista do direito como a manifestação externa da for-
mação e da vida de um povo, de acordo com a qual cada ordem jurídica
representa o modelo de uma existência nacional distinta.
Devemos nos desfazer dessas abordagens porque cada uma delas,
maculadas por ilusão, nos afastam da descoberta de oportunidade transforma-
dora. Reprimindo o entendimento do possível, todas desviam nosso entendi-
mento do real - das sociedades existentes e seu direito estabelecido, e do que
o pensamento jurídico é e do que pode vir a ser.

A indeterminação radicalizada

Nenhuma obsessão gozou de maior poder de resistência ou exerceu maior


influência na história da teoria jurídica moderna do que a preocupação com a
relativa indeterminação ou maleabilidade da doutrina jurídica. Desde o final
do século XIX, a crítica dos estilos dominantes de raciocínio jurídico tomou,
predominantemente, a forma de um esforço para reconhecer um elemento
maior de elasticidade doutrinária ou discricionariedade judicial. O esforço
para resgatar ou restabelecer o método de reconstrução racional no pensa-
a
mento jurídico, de que o recurso políticas públicas e princípios ligados é a
forma mais recente, operou por uma série de manobras de confissão e fuga:
abandonando um pouco da posição inicial e se agarrando a um resíduo mais
defensável. Surpreendentemente, esses avanços ocorreram com a mesma força
tanto nos países de common law como nos países de tradição romano-germânica
do direito. Eles ecoaram até fora dessas tradições jurídicas hoje universais,
nos debates internos do direito islâmico, judaico e hindu.
O resultado final dessa progressão foi a radicalização da tese da
indeterminação pelos mais resolutos opositores da análise jurídica
racionalizadora. A partir do ponto inicial dos materiais jurídicos dados e
com a ajuda dos métodos disponíveis de argumentação jurídica e os cânones
estabelecidos de interpretação, podemos caracteristicamente deduzir, com
plausibilidade similar, soluções opostas para problemas concretos. Assim,
escolhemos o que alegamos descobrir. Ao encarar essa afirmação, os arau-
tos do pensamento jurídico ortodoxo podem se ver como defensores de
moderação razoável e razoabilidade moderada contra os excessos do
racionalismo e a extravagância do ceticismo, contra a gratuidade do direi-
to como analogia e a irresponsabilidade do direito como ideologia.

149
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

A radicalização da indeterminação é, contudo, um erro; não apenas um


erro sobre o direito e a linguagem, mas também um erro sobre a relação entre
o que os indeterministas radicais querem dizer e o que dizem. Surgindo
como o resultado quase inexorável de uma longa progressão de idéias, a
radicalização da indeterminação faz com que imaginemos que alguma coisa,
há muito tempo, saiu errado nos termos dessa discussão.
Imagine o seguinte diálogo entre o pretenso radicalizador da indeter-
minação e o derradeiro defensor da reconstrução racional. O defensor diz:
"Não me acuse de uma crença ingênua numa teoria de significados deter-
minados da linguagem ou numa correspondência auto-evidente entre palavras
e coisas. Afirmo apenas que é possível comunicar sentidos por uma partici-
pação num mundo comum ou numa tradição partilhada, mesmo que o
mundo ou a tradição seja dividido e descontínuo e mesmo que inclua ape-
nas parte do que nós e nossos interlocutores sejamos, experimentemos e
prezemos. De fato, alguns de vocês desenvolveram descrições esclarecedoras
das formas ocultas de consciência que tornam possível estabelecer e comu-
nicar sentidos. Eu apenas discordo de vocês na avaliação delas, e espero
aperfeiçoá-las expondo-as à luz de reflexão e diálogo. Com certeza, você,
indeterminista radical, concorda que é possível transmitir significados, pois
agora está discutindo comigo". O indeterminista radical responde: "Você
não consegue me entender. Nunca pretendi negar a possibilidade de co-
municação de sentidos. Quero pôr em questão os pressupostos ideológicos
sobre os quais a comunicação se dá. Meu propósito era político antes de ser
lingüístico".
Agora, contudo, podemos perceber o pr~blema com esse diálogo. A tese
da indeterminação radical acaba sendo em grande parte uma metáfora para
outra coisa: uma campanha planejada de crítica social e cultural. A dificulda-
de é que ela não ajuda em nada para nos preparar para essa campanha ou para
esclarecer seus propósitos. Ela é como um beco sem saída. Induz o indetermi-
nista radical a um deserto intelectual e político, e o abandona lá sozinho, deso-
rientado, despreparado e, por fim, inferiorizado - pela impotência.
A marginalidade enviesa a balança. Os reformadores radicais dos séculos
XVIII e XIX queriam amarrar os pés e mãos de juízes para impedir a sub-
versão dos programas legislativos e a usurpação do poder democrático. Os
indeterministas radicais não têm nenhuma ligação orgânica com partidos
ou movimentos, nem se imaginam ou a seus aliados em posições de poder.
Eles gostariam de acreditar que praticamente não importa quem ganha ou
perde na política do Estado e codifica triunfos políticos como direito. Uma

150
KENOSIS: EVITANDO OS DESCAMINHOS DA TEORIA CONTEMPORÂNEA

vez que o direito chega na mão dos intérpretes - assim eles fazem supor -,
tudo vai começar do princípio como se nada tivesse acontecido antes.
Não podemos, apenas ao dizê-lo, transformar uma derrota política num
jogo de palavras. Devemos sacrificar a metáfora da campanha e reconhecer
que o direito pode ser alguma coisa, e que faz diferença o que ele seja. Tendo
rejeitado a indeterminação radicalizada como uma exposição errônea de inten-
ções radicais, devemos prosseguir para repudiar o papel central do problema da .
determinação e da discricionariedade na teoria jurídica.

O projeto de uma teoria pura do direito

Um segundo descaminho influente na teoria jurídica é o projeto de


produzir uma representação analítica do direito que possa desprender-se
tanto de controvérsias normativas sobre qual deve ser o conteúdo do direito
e de controvérsias empírico-causais sobre as causas e as conseqüências de dife-
rentes regras e doutrinas. Embora essa ambição tenha exercido influência
de tempos em tempos na história da teoria jurídica, ela encontrou sua ex-
pressão mais rígida na "teoria pura do direito" de Kelsen. Deixe de lado a
teoria do raciocínio jurídico em Kelsen e seu mais qualificado sucedâneo
inglês, H. L. A. Hart, e considere a idéia central de uma descrição analítica
do direito dissociada de ideologia e sociologia.
Muito do impulso de dissociação veio do desejo de criar um vocabulário
de discussão do direito que fosse livre da idealização do direito produzida
pela prática de reconstrução racional na doutrina jurídica. Desse impulso de
desmitificação surge parte da força que a idéia de análise pura no direito
possui ainda hoje. Contudo, a tentativa de desencantamento pela análise
pura do direito se tornou estéril devido a sua associação a um preconceito
pseudocientífico: a procura pela universalidade e invulnerabilidade intelec-
tual, pela imunidade à controvérsia normativa e empírica. Não dê relevo, ou
dê o menos possível, ao compromisso programático e à conjectura empírica,
pensam eles, e seremos mais fortes. Dessa forma eles se castraram e privaram
sua campanha pela desmitificação do direito e da doutrina jurídica de qualquer
resultado produtivo que ela pudesse esperar alcançar.
É ilustrativo comparar sua estratégia à direção tomada pela teoria eco-
nômica dominante desde a ascensão da análise marginalista e o desenvolvi-
mento da análise de equilíbrio macroeconômico geral. A economia tam-
bém procurou evitar a sua associação a pressupostos empíricos e ideológicos

151
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

controversos. (Compare isso com a economia de Marx, que, originada dos


mesmos pontos de partida, foi em direção oposta, e ambas, como resultado,
se provaram tão produtivas quanto equivocadas.) Ela pagou por sua imuni-
dade metodol6gica com a sua esterilidade explicativa: a máquina analítica
gera conjecturas empíricas somente quando é alimentada com descrições e
explicações de fora e gera conclusões políticas somente quando suprida com
direção programática de fora. Contudo, ela é permanentemente tentada a
se desviar dessa austeridade metodol6gica. Ao sucumbir a essa tentação, ela
repentinamente contrabandeia, pela porta dos fundos, os compromissos assu-
midos de antemão que alega ter jogado fora pela porta da frente; agora com
mais perigo, porque sem a disciplina de teorias e argumentos explícitos.
Uma ciência social como essa está condenada a uma infância eterna.
A economia ortodoxa, não obstante, desfruta de uma dupla vantagem
sobre o projeto de análise pura na teoria jurídica: o grande poder explicativo
do seu resíduo empírico - o esquema psicol6gico do comportamento
maximizador racional e egoísta- e da extraordinária versatilidade do apara-
to matemático que pode ser aplicado na elaboração e desenvolvimento da-
quele esquema. Na falta de tais compensações, a análise pura do direito
degenera em trivialidade vazia.
Por trás do juízo errôneo sobre a invulnerabilidade jaz um equívoco
sobre a relação do método à concepção. Não temos como julgar o valor de
um vocabulário analítico de representação descritiva do direito - ou de qual-
quer outra coisa - senão pela sua utilidade a um esforço explicativo ou
programático concreto. Mais realidade, mais do que a análise jurídica
racionalizadora e suas teorias de apoio podem agüentar, é o que precisamos,
e o que os analistas puros não estão dispostos a nos dar.

A abordagem funcionalista do direito

Uma terceira abordagem mal-direcionada é a explicação funcionalista,


evolucionista e de estruturas profundas do direito e da hist6ria do direito.
Sua forma mais influente na esquerda é o marxismo ortodoxo, transposto
para a teoria jurídica. Sua expressão conservadora mais difundida é um
estilo de explicação funcionalista sociol6gico e econômico de mudança jurí-
dica que vê as instituições jurídicas como impulsionadas por uma força de
convergência a um sistema de melhores práticas disponíveis. Hoje, essas
duas tradições são às vezes combinadas na idéia de "etapas do capitalismo",

152
KENOSIS: EVITANDO OS DESCAMINHOS DA TEORIA CONTEMPORÂNEA

cada uma com sua expressão jurídica inata, só faltando a seqüência transfor-
madora do "socialismo".
O elemento funcionalista nessa abordagem é a crença de que o surgimento
e a difusão dos mecanismos jurídicos podem ser explicados por suas conse-
qüências e, em especial, por sua capacidade (singular) de preencher requi-
sitos imperativos da vida prática em sociedade. O elemento evolucionista é
a idéia de uma progressão ou convergência, se não por um caminho único,
pelo menos em direção a um resultado comum. O elemento de estrutura
profunda é a noção de que os entes fundamentais possuidores das vanta-
gens funcionais explicativas são supostamente sistemas indivisíveis de es-
truturas, tais como o "capitalismo" ou a "economia de mercado", impulsio-
nadas à frente por forças imperativas.
As explicações funcionais não teriam sua natureza característica e força
argumentativa se não se associassem aos pressupostos de estrutura profunda.
Nossa maneira de pensar sobre o direito na sociedade seria muito diferente
dessa se, por exemplo, pensássemos que as vantagens funcionais se estabili-
zam a partir das fontes institucionais e ideológicas que são criadas por várias
seqüências, pouco ligadas, de conflito, inovação e desordem; que ordens
institucionais são divisíveis, de forma que a reforma revolucionária - a
mudança pedaço por pedaço de uma estrutura formativa - seja o método
padrão de sua transformação; que a função interage com a seqüência con-
tingente, deixando um amplo e mal-definido espaço de possibilidade no
qual a vontade e a imaginação podem se mover; e que a sociedade pode ser
organizada de tal forma a fortalecer ou a reprimir esse poder de surpreender
e de recriar.
A crítica da abordagem funcionalista, evolucionista e de estruturas pro-
fundas do direito transforma-se na crítica da teoria social de que ela se
origina. Tratei desse debate em outro lugar e tentei mostrar que, levada às
últimas conseqüências, tal crítica conduz não ao agnosticismo, mas a um
estilo diferente de imaginação teórica, que separa a ambição explicativa da
defesa da necessidade histórica e que coloca o entendimento ao lado da li-
berdade transformadora.
Uma característica da aplicação do método funcionalista e de estruturas
profundas no direito merece uma ênfase especial, pois ela demonstra como o
método funcionalista-necessitário deixa escapar o que é mais interessante so-
bre a história do direito. Ela demonstra como o funcionamento auto-subver-
sivo do próprio pensamento jurídico moderno ajudou a desacreditar e a dissol-
ver a união da explicação funcionalista com pressupostos de estrutura profunda

153
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

no campo inteiro dos estudos sociais e históricos. Essa característica é a cor-


respondência entre (1) crença na realidade e indivisibilidade de sistemas
institucionais hipotéticos - o capitalismo ou a economia de mercado - como
os protagonistas últimos do teste evolutivo funcionalista e (2) crença na exis-
tência de um sistema definido de direitos - principalmente direitos contratuais
e de propriedade, assim como direitos de propriedade contra a intervenção do
Estado. Tais direitos são considerados tanto o resultado da evolução funcio-
nalista como a forma necessária da economia de mercado ou do "capitalismo".
Nessa visão, as diferenças - entre sociedades capitalistas ou economias de
mercado - devem ser computadas como variações menores e transitórias
dos mesmos temas em desenvolvimento.
Contudo, da mesma forma pela qual a história da atividade econômica
tem demonstrado, com clareza crescente, que resultados econômicos seme-
lhantes podem ser produzidos por instituições econômicas divergentes, a
história do direito e do pensamento jurídico também mostrou que as mes-
mas concepções institucionais - como "economia de mercado", "capitalis-
mo" ou "propriedade privadà' - podem ser traduzidas em conjuntos alter-
nativos de estruturas jurídico-institucionais, com conseqüências cruciais
para a natureza da vida em sociedade. Cada uma dessas duas linhas de
descobertas se tornou, pouco a pouco, mais conhecida. Apenas porque não
somos capazes de ligá-las e de extrair delas suas implicações conjuntas é que
a abordagem funcionalista-necessitária mantém, mesmo hoje, uma aparên-
cia de plausibilidade.
Se, por exemplo, uma forma mista de controle societário público e priva-
do ("empresas tipo distrito-vila") aparece na China, somos mais propensos a
considerar isso uma adaptação passageira de princípios de mercado à situação
chinesa se partirmos da preconcepção de que a economia de mercado evolui
em direção a um conjunto bem definido das melhores práticas existentes.
Somos menos propensos a fazer isso se concebermos as instituições existen-
tes como um pequeno subconjunto de um conjunto muito maior e pouco
definido de formas possíveis. Essas crenças contrastantes não vão apenas alte-
rar a nossa interpretação de desenvolvimentos; elas também encorajarão ou
desencorajarão que os desenvolvimentos cheguem mesmo a ocorrer.
De modo contrário, a multiplicação de heresias institucionais bem-sucedi-
das em todo o mundo - e a descoberta de que a heresia bem escolhida é fre-
qüentement~ parte do preço do sucesso- torna cada vez menos possível conceber
as anomalias institucionais como desvios em relação a um modelo padrão de
organização política e econômica. Começamos a considerar cada um dos des-

154
KENOSIS: EVITANDO OS DESCAMINHOS DA TEORIA CONTEMPQRÂNEA

vias como possíveis pontos de partida em direção a alguma coisa diferente,


como experimentos que nascem de compromissos acidentais e que correm o
risco de abortar no percurso, mas que também contêm o potencial para ini-
ciar uma trajetória alternativa de desenvolvimento nacional.
Além disso, o que é bem-sucedido no curto prazo pode acabar impon-
do, na próxima etapa, um constrangimento custoso. Por exemplo, uma
parceria elitista e autoritária entre a atividade comercial e o Estado nas
economias da Ásia oriental pode ter tido sucesso em manter o crescimento
econômico num mundo de produção semi-especializada de massa. Pode,
não obstante, mostrar-se insuficiente e perniciosa quando a evolução in-
dustrial demanda níveis maiores de flexibilidade, conhecimento e autono-
mia de equipes de trabalho.
Devemos agir com base em conjecturas sobre o que torna o sucesso contí-
nuo possível e impede que a economia nacional se conforme a uma natureza
rígida e infensa a mudanças nos destinos econômicos do mundo. Uma chave
para essa capacidade contínua reside na habilidade para conciliar cooperação
e inovação, e para desenvolver formas cooperativas que minorem os empeci-
lhos à inovação. Nós, por essa razão, temos um interesse prático em aprender
como desmontar e recombinar direitos de propriedade de forma que os agen-
tes econômicos possam ter mais acesso aos recursos produtivos, gozando ao
. mesmo tempo de menor oportunidade para obstruir os experimentos de
outras pessoas. Podemos desejar, por exemplo, um regime de propriedade
que favoreça a competição cooperativa porque reconheça múltiplos direitos a
recursos produtivos, ao mesmo tempo negando a um "proprietário" residual
o direito de decidir em última instância.
Reconsiderada do ponto de vista de tais preocupações e descobertas, a
explicação funcionalista do direito acaba se tornando multifacetada e in-
completa, e seus movimentos em direção ao necessitarismo e à convergên-
cia revelam-se uma tentativa equivocada. Além disso, tem.os interesse em
que ela seja equivocada e portanto também em que atuemos como se sou-
béssemos com certeza (o que não é o caso) que ela o seja. A "seleção natural"
das estruturas institucionais lida com os materiais que várias histórias par-
ticulares acabaram por criar; o resultado decorre de um acor~o rudimentar
entre interesses ou superstições preexistentes e poderes ou vantagens alme-
jados; o teste do fracasso ou do sucesso mede alguma coisa existente por
comparação a uma outra coisa existente; a escolha de instituições econômi-
cas é complicada ao ser, ao mesmo tempo, a preferência por uma forma de
vida; o triunfo de curto prazo diverge do potencial de longo prazo; desvios

155
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

dos modelos convencionais de organização podem ser tanto adaptações lo-


cais quanto começos alternativos; e nossas idéias sobre alternativas - princi-
palmente nossas idéias sobre suas formas jurídicas específicas - influenciam
nossa capacidadade de advogá-las e estabelecê-las.
O pensamento jurídico não foi apenas a vítima ou o beneficiário passivo
dessas descobertas; foi seu co-autor. Desde o auge da ciência jurídica do
século XIX, ele ajudou a enfraquecer o que pretendeu defender: a concep-
ção de um conteúdo jurídico embutido na idéia de uma ordem econômica
e política livre. Por sua erosão cumulativa da concepção de um esquema
predeterminado de direitos de propriedade, em particular, e de direitos de
autodeterminação individual e coletiva, em geral, destruiu alguns dos pres-
supostos sobre os quais repousa um necessitarismo funcionalista sobre
instituições.

A abordagem histórico-culturalista do direito

Um quarto descaminho é a abordagem historicista e culturalista do di-


reito como a expressão singular da vida de um povo, a voz de uma tradição
nacional. A expressão exemplar dessa abordagem é O espírito do direito ro-
mano, de Jhering. Sua influência, embora alterada e fragmentária, está por
toda parte. Em alguns casos, as abordagens funcionalista e historicista se
confundiram, quando, por exemplo, culturas políticas nacionais diferentes
e praticamente inalteráveis são responsabilizadas por fazer a corrida pela
vantagem funcional se dar em pistas diferentes: um conjunto de formas
societárias adequado aos americanos, outro aos japoneses e ainda outro para
os alemães. A forma de vida, singular e orgânica, manifesta no detalhe jurí-
dico e desenvolvida como tradição jurídica, torna-se na forte visão historicista
o tópico central do estudo jurídico e o protagonista da história jurídica.
A idéia do direito como a expressão de uma forma de vida singular exa-
gera drasticamente a unidade e a continuidade, e desmerece a natureza de
invenção das culturas manifestas no direito. Por exemplo, tendo entendido
o sistema japonês contemporâneo do emprego vitalício e suas práticas auxi-
liares de direito do trabalho como criaturas de uma cultura avessa a confli-
tos, podemos nos surpreender ao descobrir que esse sistema é uma invenção
relativamente recente da articulação política conservadora de empresários,
políticos e funcionários públicos; que ele resultou de um conflito industrial
severo por várias gerações; e que uma das suas condições e subprodutos foi

156
KENOSIS: EVITANDO OS DESCAMINHOS DA TEORIA CONTEMPORÂNEA

uma divisão acentuada entre os segmentos estáveis e instáveis da força de


trabalho japonesa.
A totalidade de uma cultura - digamos, a dos antigos romanos ou a dos
japoneses contemporâneos - acaba por se assemelhar a esse exemplo, repeti-
do milhares de vezes em milhares de detalhes da administração social. Ins-
tituições se tornam uma segunda natureza, mas somente após terem sido
moldadas e estabilizadas por uma surpreendente história de luta e compromis-
so, de entendimento vacilante e ilusões guarnecidas. As pessoas esquecem os
sofrimentos e mágoas dessa guerra, e os reimaginam como cultura.
Sublinhando esse fato está uma característica contínua das nossa rela-
ção aos contextos institucionais e discursivos em que agimos: há sempre
mais em nós do que há neles, mais poderes de entendimento, desejo e
associação do que eles são capazes de agüentar ou evitar. Conseqüente-
mente, as pessoas têm uma consciência bipartida mesmo nas sociedades e
culturas mais arraigadas e totalizantes. Elas nunca se rendem completa-
mente às rotinas e ortodoxias que parecem controlá-las. Elas mantêm
secretamente uma reserva mental. Se a ordem estabelecida sofre um gol-
pe, elas podem, de uma hora para outra, deixar de lado completamente o
que pareciam ter abraçado.
A estrutura dúplice da consciência tem uma conseqüência importante
para a interpretação do direito e da história do direito. Ela tem um interes-
se extraordinário em exceções, soluções concorrentes, os resíduos e "equívo-
cos" de toda ordem jurídica; pois esses sinais de soluções passadas ou rejei-
tadas, de interesses subjugados e caminhos não trilhados formam o material
com que o lado oculto e oposto da consciência dividida pode trabalhar.
Cada um deles se torna um ponto de partida possível para alternativas mais
gerais no direito. Assim, de embaraços intelectuais e políticos, eles passam
a oportunidades intelectuais e políticas.
O erro do historicismo se tornou, no curso da história recente, ainda
mais grave por razões que têm que ver com o ataque crescente ao necessita-
rismo funcionalista. A imitação de culturas em escala global e a pressão
inexorável para pilhar e recombinar práticas de todas as partes do mundo
em nome do sucesso prático esvaziam cada vez mais o conteúdo costumeiro
das identidades nacionais. Essas identidades se tornam abstratas: separadas
de qualquer conjunto estável de costumes que trace com clareza os limites
entre uma forma de vida e outra. A vontade de diferença supera a diferença
real e se torna, pelo enfraquecimento da diferença, ainda mais intransigen-
te. Costumes verdadeiros podem ser conciliados; identidades coletivas abs-

157
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

tratas não. O historicismo passa de uma ilusão a ameaça, emprestando pres-


tígio às auto-ilusões do nacionalismo.

Kenosis

Após termos rejeitado esses vários descaminhos na teoria jurídica, necessi-


tamos de um terreno comum em que nos situar? Uma teoria normativa e
explicativa abrangente do direito exige nada menos do que uma doutrina
sistemática da sociedade e da personalidade capaz tanto de explicar quanto
de propor. É tolo fazer declarações dogmáticas sobre a impossibilidade de
uma teoria "geral" e identificar os futuros possíveis do pensamento especulativo
com seu passado conhecido. Em outros livros, tentei mostrar que os instru-
mentos já estão à mão para que possamos reconhecer a influência formadora
de estruturas imaginativas e institucionais, descartando ao mesmo tempo a
bagagem determinista que normalmente acompanhou a idéia de estruturas
descontínuas, e com que podemos fazer avançar o projeto democrático,
reinventando muitas das suas formas práticas e pressupostos não experimen-
tados. Há um futuro para a teoria social para além da união da explicação
funcionalista com pressupostos de estrutura profunda, da mesma forma que
há um futuro para a democracia para além da socialdemocracia, e o primeiro
desses futuros pode ajudar a mostrar o caminho para o segundo.
É igualmente dogmático, contudo, insistir num discurso sistemático de
explicações e ideais como o único caminho possível do progresso na nossa
imaginação da sociedade. Este livro arrisca uma concepção distinta, mais pró-
xima dos debates ~ conflitos em que as pessoas realmente se engajam. Ele se
aproveita de um problema específico - como entender um discurso prático
influente, a análise jurídica racionalizadora, e, tendo-o entendido, em que o
transformar. O raciocínio começa pelo meio - as instituições e ideologias que
nos cercam - e procura direção no gênero de ideais políticos que desfruta
agora de maior autoridade em todo o mundo: o projeto democrático. Opera
de baixo para cima e de dentro para fora. Fiel a esse espírito, sua atitude em
relação a descaminhos teóricos gerais como os criticados neste capítulo é
parecida com a atitude que os teólogos patrísticos designaram kenosis: esvazia-
mento. O resultado almejado da kenosis é prontidão. O espaço vazio deve ser
preenchido por idéias de acordo com a nossa necessidade e por ações de
acordo com a nossa capacidade. A ação deliberada pode, e normalmente deve,
fazer as vezes de sistema.

158
A ANÁLISE JURÍDICA COMO
IMAGINAÇÃO INSTITUCIONAL

Objetivos de uma prdtica revista de andlise jurídica

Implícita na minha discussão da análise jurídica racionalizadora está


uma série de critérios ligados para guiar e avaliar a reorientação do pensa-
mento jurídico fora do contexto da atividade jurisdicional. Esses critérios
convergem para produzir a idéia da análise jurídica como imaginação
institucional.
Assim, o método de que precisamos deve estar livre da mácula do
fetichismo institucional e do fetichismo estrutural. O fetichismo insti-
tucional é a identificação de concepções institucionais abstratas, como a
economia de mercado ou a democracia representativa, com um repertório
específico de estruturas contingentes. O fetichismo estrutural é sua
, contrapartida de ordem superior: a incapacidade para reconhecer que as
ordens institucionais e imaginativas da vida em sociedade diferem tanto
em rigidez ou arraigamento como em conteúdo: quer dizer, com relação à
liberdade de ação e entendimento para desafiar e transformar estruturas
que elas constrangem. O método deve nos ajudar a identificar e solucio-
nar a instabilidade interna característica das posições programáticas no
direito e na política contemporâneos: o conflito entre o compromisso com
a definição de ideais e a resignação a estruturas que frustram a realização
desses ideais ou empobrecem o seu significado. Por conseguinte, deve
aproveitar a relação interna entre pensar sobre ideais ou interesses e pen-
sar sobre instituições ou práticas. Ao fazer isso, pode ganhar energia e
direção a partir de uma concepção mais ampla do projeto democrático,
bem como de idéias professadas e interesses reconhecidos mais específi-
cos, pois o projeto democrático, entendido corretamente, é tanto o nosso
mais poderoso gênero de ideais como o nosso modo mais promissor de
conciliar nossa devoção a esses ideais à busca de nossos interesses materiais.
Com esses fins, o método deve fazer justiçá à capacidade do direito e do

159
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

pensamento jurídico para trabalhar num nível de total detalhe na repre-


sentação da relação entre práticas e instituições e interesses e ideais, bem
como para ligar as realidades de poder ao discurso de ambição. Para mo-
bilizar esses recursos, ele precisa se livrar do preconceito analógico; da
crença ilusória na reconstrução racional como o antídoto necessário e su-
ficiente contra a arbitrariedade no direito; da confusão e equívocos do
reformismo conservador; e da obsessão com juízes e a maneira como eles
julgam. Deve eleger os cidadãos como seus interlocutores primeiros e
fundamentais. Deve imaginar sua tarefa como aquela de informar o deba-
te numa democracia sobre seus futuros atuais e alternativos.

Mapeamento e crítica

Esses objetivos se unem na prática de análise jurídica como imaginação


institucional. Essa prática tem dois momentos dialeticamente ligados:
mapeamento e crítica. Dê o nome de mapeamento a uma versão adequada-
mente revista da atividade analógica de pequena escala e sem energia, a forma
de análise jurídica que deixa o direito como uma massa inalterada. O
mapeamento é a tentativa de descrever em detalhe a microestrutura'
institucional juridicamente definida da sociedade por relação aos seus ideais
juridicamente enunciados. Chame o segundo momento dessa prática analíti-
ca de crítica: a versão revista do que o jurista racionalista menospreza como
sendo a transformação da análise jurídica em conflito ideológico. Sua tarefa é
explorar a interação entre as estruturas institucionais detalhadas da socieda-
de, tais como representadas pelo direito, e os ideais ou programas professados
que essas estruturas frustram ou tornam realidade.
O mapeamento é a exploração da estrutura institucional detalhãda da
sociedade, tal como definida juridicamente. Seria um positivismo ingê-
nuo supor que essa estrutura seja incontroversamente evidente e possa ser
retratada sem que se considerem preconcepções teóricas. O objetivo prin-
cipal do mapeamento é produzir uma análise jurídico-institucional deta-
lhada que, embora fragmentária, substitua tal conjunto de preconcepções
por outro.
A perspectiva que deve ser adotada é o ponto de vista do segundo mo-
mento da prática revista de análise jurídica que estou esboçando: o mo-
mento da crítica. Assim, os dois momentos são intimamente ligados; eles
estão relacionados - para usar um vocabulário - dialeticamente e - para usar

160
A ANÁLISE JURÍDICA COMO IMAGINAÇÃO INSTITUCIONAL

outro - internamente. O mapeamento que serve ao propósito da crítica é


uma análise que exibe as instituições formativas da sociedade e seus dogmas
reconhecidos sobre a associação humana como uma estrutura original e sur-
preendente, e, acima de tudo, como uma estrutura que pode ser revista parte
por parte. O sistema estabelecido dessas estruturas e crenças tanto constrange
a realização de nossos ideais sociais professados e interesses de grupo reconhe-
cidos quanto lhes fornece muito do seu significado implícito.
As preconcepções que devem ser substituídas negam a possibilidade ou a
importância da crítica. Tais preconcepções apresentam a maior parte de qual-
quer área substancial e estabelecida do direito ou dos conhecimentos jurídicos
como uma expressão de uma visão política e moral coesa, ou de um conjunto
de necessidades práticas ou de uma seqüência evolucionária imperativa.
Um conjunto de tais abstrações anticríticas que exerce uma influência
especialmente importante no direito e no pensamento jurídico contempo-
râneos é o lochnerismo de segundo escalão, examinado anteriormente. Lem-
bre-se de que o lochnerismo original, mais rudimentar e rejeitado, é o con-
traste entre um direito que está aí, pré-político, como a estrutura jurídica
intrínseca a um tipo aceito e estabelecido de organização econômica ou
estatal - chame-a democracia capitalista liberal ou o que quer que seja-, e
um direito que represente uma intervenção imoral, guiada por interesses
parciais, e redistributiva do Estado nessa estrutura jurídica nuclear. Esse é o
lochnerismo que os notáveis americanos - e seus pares europeus - rejeitaram,
embora eles ainda não o tenham rejeitado completa ou inequivocamente.
O lochnerismo que sobrevive, criando um fluxo constante de abstrações
que impedem o trabalho de mapeamento e crítica, é o lochnerismo criado
para distinguir concessões a interesses ou perspectivas parciais de manifes-
tações de visão moral e política neutras ou necessidade prática. As manifesta-
ções devem ser resgatadas das concessões, e é com fundamento em invocações
das primeiras e em denúncias das segundas que a análise jurídica racionali-
zadora realiza seu trabalho.
A linguagem da política contemporânea normalmente sobrepõe, mais
ou menos diretamente,· tais abstrações ideológicas tranqüilizadoras sobre
promessas de ordem inferior a interesses organizados específicos. A cada
passo, torna-se impossível dizer se as abstrações servem como um disfarce
ideológico para a busca dos interesses ou se, ao contrário, a busca dos inte-
resses está sendo desorientada pelas abstrações. O que falta, principalmen-
te, é o que deveria ser o cerne do discurso político: o campo comum de
trajetórias alternativas de mudança institucional e de políticas. Ajudar a

161
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

desenvolver esse campo comum é uma das tarefas da prática conjunta de


mapeamento e crítica. Uma exigência da realização dessa tarefa é que resis-
tamos ao impulso de racionalizar ou idealizar as instituições e as leis que
possuímos de fato.
Que tipo de entendimento pode-se esperar ver desenvolver pela práti-
ca do mapeamento? Considere o exemplo da relação do direito de pro-
priedade tradicional com as muitas exceções que começam a cercá-lo. O
direito de propriedade, unificando várias faculdades atribuídas ao mesmo
titular, é o próprio modelo da idéia moderna de direito subjetivo, e o
mecanismo fundamental de alocação de pretensões descentralizadas a re-
cursos produtivos. Mesmo assim, encontramos nos sistemas jurídicos con-
temporâneos muitas áreas do direito e da prática que resolvem as ques-
tões de modos que se afastam da lógica desse direito de propriedade. Na
agricultura, por exemplo, pode haver uma parceria entre o Estado e o
núcleo rural familiar que decomponha o direito de propriedade e limite
o caráter absoluto do direito do proprietário em troca de diversas moda-
lidades de apoios estatais. Na indústria de suprimentos de guerra, e
ainda mais sob as condições do capitalismo de guerra, uma decomposi-
ção similar na forma de colaboração entre o poder público e o produtor
privado pode ocorrer. No desenvolvimento dos mercados de capitais con-
temporâneos, vemos a criação contínua de novos mercados a partir de
faculdades jurídicas específicas, separadas do amplo direito de proprieda-
de. A situação, então, começa a assumir o seguinte contorno: o meca-
nismo fundamental é cercado por um número crescente de exceções.
Contudo, mesmo se o direito de propriedade tradicional tivesse sido
esvaziado mais do que de fato foi, continuaria a manter o papel vital de
ocupar o espaço que qualquer outra forma generalizada de alocação des-
centralizada de capital ocuparia. Ocupa o espaço que seria ocupado pelo
método alternativo de alocação descentralizada de capital já prefigurado
nas exceções atuais do direito de propriedade unificado. Esse é um exem-
plo típico do tipo de combinação de unidade e variedade que se poderia
esperar descobrir pelo mapeamento.
O segundo momento dessa prática revista de análise jurídica é a crítica.
A crític~ explora a falta de harmonia entre os ideais sociais professados e os
compromissos programáticos da sociedade, e também entre os interesses de
grupo reconhecidos, e as estruturas institucionais detalhadas que não ape-
nas constrangem a realização desses ideais como lhes fornecessem seu signi-
ficado desenvolvido.

162
A ANÁLISE JURÍDICA COMO IMAGINAÇÃO INSTITUCIONAL

Pode-se agora, com maior clareza, concentrar atenção na relação entre


crítica e mapeamento. O mapeamento fornece materiais para a crítica, e a crí-
tica estabelece a perspectiva e a agenda para o mapeamento. Nada na minha
descrição da prática revista de análise jurídica define o quanto a crítica pode
ela mesma ser informada ou guiada por um tipo de raciocínio moral e polí-
tico mais separado de contexto. Em vez de atacar essa questão agora, contudo,
é suficiente reconhecer o quão pouco necessitamos de uma visão prévia e
segura a seu respeito para começarmos a revisar a prática de análise jurídica
dessa forma e começarmos a praticar a revisão. A abordagem reorientada
pode se mostrar compatível com um amplo espectro de posições sobre a
nossa capacidade de nos vincularmos a uma forma menos histórica de juízo.
Além disso, a nova prática pode ela mesma ter alguma coisa a nos ensinar
sobre os méritos relativos de diferentes visões de autoridade fora do contexto
em disputas morais e políticas.*
Considere agora algumas direções por que poderíamos especificar a rea-
ção anti-racionalizadora à situação do direito e do pensamento jurídico con-
temporâneos. A primeira tarefa- a tarefa do momento de mapeamento - é
entender a situação institucional existente como a estrutura complexa e
contraditória que ela realmente é, como o estranho e surpreendente arranjo
que nós nunca conseguiríamos supor a partir de abstrações como "econo-
mia mistà', "democracia representativà' ou "sociedade industrial". Nessa
visão, o jurista dever operar para alargar o sentido coletivo de realidade e
possibilidade. Ele deve imitar o artista que torna o familiar estranho, recu-
perando para o nosso entendimento da nossa situação um pouco do senti-
mento perdido e reprimido de oportunidade transformadora.
O mapeamento se concentra na tentativa de construir um retrato de nos-
sas instituições - do Estado, da economia, da família - a partir dos materiais
do direito e da doutrina jurídica. É uma tarefa difícil; o material não possui
nenhuma imagem evidente específica. Que tipo de imagem queremos? Pri-
meiro, queremos uma visão que se defina por oposição à descrição
racionalizadora. Essa descrição - lembre-se - pretende mostrar a substância
do direito como estando toda amarrada, de forma a justificar sua parte
maior, ao mesmo tempo permitindo rejeitar uma parte menor dele. A recons-
trução racional no direito justifica e interpreta a maior parte do direito e

* Ver a discussão posterior sobre a campanha para alcançar o meio-termo entre raciona-
lismo e historicismo, p. 207.

163
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

dos conhecimentos jurídicos convencionalmente aceitos tanto como a ex-


pressão de um sistema de concepções morais e políticas em evolução quanto
como o resultado de exigências funcionais inexoráveis. De modo positivo, a
visão que queremos é a visão que sirva aos propósitos do segundo momento
dessa prática analítica: o momento da crítica, quando nos concentramos nas
disparidades do direito e na maneira por que concepções ideais, expressas por
políticas públicas e princípios, ou os interesses de grupo representados por
programas e estratégias, são truncados na sua realização e empobrecidos em
seu significado pelas suas formas institucionais convencionalmente aceitas.
Já ofereci em várias partes deste livro numerosos exemplos do exercício
de mapeamento: as alternativas parciais à idéia do direito de propriedade
unificado que já podemos verificar no direito e práticas atuais; a relação
entre a aplicação tradicional do direito e a intervenção estrutural porém
episódica da execução complexa; as disparidades da igualdade perante a lei
em direito constitucional e o direito antidiscriminatório a ela relacionado;
e, de forma mais geral, a organização dialética do direito contemporâneo
em cada um dos seus ramos como uma dualidade de direitos de escolha
individual e autogoverno popular e direitos criados para assegurar a realida-
de da autodeterminação individual e coletiva.
Necessitamos de uma teoria completa, uma prática de explicação social,
um conjunto de idéias programáticas e uma concepção da relação entre
pensamento programático e explicação social para instruir o mapeamento?
A resposta é: sim e não. Precisamos de tais idéias para desenvolver e elucidar
por completo a prática revista de análise jurídica. Mas não precisamos de
tal teoria para começar o mapeamento.
Já possuímos dois pontos de partida à mão. Um deles é o esforço de
radicalizar os ideais sociais professados ou os programas partidários, de levá-
los além de seus constrangimentos institucionais existentes e de alterar o
seu significado no curso dessa tarefa. Outro ponto de partida é o trabalho
negativista de demolição das concepções e interpretações racionalizadoras
do direito contemporâneo.
Assim, esse mapeamento não envolve nenhuma aceitação ingênua da ima-
gem inferior, analógica e glossatorial do direito como um amontoado disfor-
me e desordenado. Ele requer uma nova e radical reelaboração dessa imagem a
partir do ponto de vista dos compromissos. da crítica. Os momentos de
mapeamento e crítica formam uma unidade dialética. Podemos, não obstante,
reivindicar certas vantagens para a concepção inferior e análogica. Ela apre-
senta o direito existente e o conhecimento jurídico estabelecido livres - ou

164
A ANÁLISE JURfDICA COMO IMAGINAÇÃO INSTITUCIONAL

mais livres - do encanto racionalizador e da perspectiva especial dos notáveis


de Madison, sempre ansiosos por uma visão do direito na base da qual, como
juízes e publicistas, eles podem agir com o mínimo embaraço.
É mais provável que a crítica ocorra em condições em que o mapeamento
predomine na cultura jurídica ou em situações em que a racionalização
predomine? Para responder a essa questão, precisamos ter em mente que o
mapeamento e a crítica são inseparáveis; eles são traços ou momentos da
mesma prática. Da mesma forma como o mapeamento fornece materiais
para a crítica, ele é realizado com os interesses da crítica em mente. Além
disso, como um problema prático, a formação de tal prática analítica trans-
formadora é possível apenas na circunstância histórica em que podemos nos
rebelar contra uma racionalização desenfreada. Pois mesmo quando a análi-
se racionalizadora no direito, e nas áreas correspondentes do pensamento
político e social, transforma nossas instituições em mitos, ela também
generaliza nossos ideais. Ela prepara, assim, o palco em que o mapeador-
crítico pode se pôr a trabalhar.

165
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS
DE UMA SOCIEDADE LIVRE
A socialdemocracia ampliada

A idéia de futuros institucionais alternativos

Imagine a prática do mapeamento e crítica aplicada ao direito e ao pen-


samento jurídico contemporâneos. Suponha-a levada adiante muitas etapas
no futuro, abstraindo de todos os passos intermediários de transição. Pro-
duziríamos diversas concepções alternativas da evolução desejável da social-
democracia, tal como ela é hoje entendida e parcialmente praticada no
mundo do Atlântico Norte. Apresento aqui três dessas concepções, esboçadas
com certa simplicidade e distanciamento das estruturas atuais, que podem
ajudar a revelar a promessa de diversidade oculta sob o véu da conformidade.
Nenhum desses programas se encaixa em nosso espectro atual de direita e
esquerda - um espectro organizado em função de orientações cada vez me-
nos adequadas às preocupações atuais. A verdadeira distinção entre radicais
e conservadores tornou-se menos a diferença entre compromissos estatistas e
antiestatistas do que o contraste entre aqueles que desejam realizar os
programas político-partidários contemporâneos dentro dos limites das
instituições econômicas e estatais que herdamos e aqueles que propõem
revisar essas instituições e, conseqüentemente, redefinir seus compromis-
sos programáticos.
As versões conhecidas dos programas partidários de esquerda e de di-
reita combinam, num caso, um compromisso com a concorrência eco-
nômica, e, no outro, objetivos participativos e redistributivistas, com uma
aceitação das estruturas econômicas e estatais estabelecidas. O problema
é que, quando essas estruturas não são desafiadas, os objetivos progra-
máticos característicos da direita e da esquerda não conseguem ir muito
longe; eles resultam em meras distinções de ênfase que, embora capazes
de ajudar ou prejudicar as pessoas no aqui e agora, não conseguem apre-
sentar alternativas claras para a sociedade. Se aceitamos o arcabouço
institucional estabelecido, não podemos levar as divisões familiares entre

166
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A SOCIALDEMOCRACIA AMPLIADA

esquerda e direita muito a sério; devemos descontar e refrear seus com-


promissos programáticos.
Suponha, contudo, que nos mostremos dispostos a encontrar alternati-
vas ao direito de propriedade unificado de modo a alcançar uma conciliação
maior entre processos descentralizados de decisão econômica e economias
de escala. Ou imagine que nos comprometamos a perseguir objetivos
redistributivos pela reorganização econômica em vez de por meio de esque-
mas de transferência fiscal que tentam compensar, retrospectivamente, pe-
los efeitos desniveladores da economia. Então, teremos radicalizado em vez
de refreado nossos projetos. Radicalizando-os ou refreando-os, teremos aban-
donado nossa visão tradicional da fronteira entre direita e esquerda. Tere-
mos, em especial, rejeitado o modo de estabelecer a fronteira que distingue
atitudes com relação a mercados e atitudes com relação a sua suplantação
por empreendimentos, alocações e regulação feitos pelo Estado.
A fragilidade de distinções ideológicas convencionais entre a esquerda e
a direita não deveria causar espanto, pois essas distinções representam va-
riantes do que pode ser justificadamente descrito como o projeto político
dominante da era moderna. Esse projeto busca encontrar estruturas capa-
zes de explorar a área de coincidência entre as condições institucionais de
ampliação das capacidades produtivas da sociedade - por meio de inovação
e recombinação aceleradas - e as condições institucionais de emancipação
dos indivíduos de papéis e hierarquias sociais arraigados. De acordo com
uma visão difundida, a principal tarefa da filosofia política é encontrar um
ponto de vista - mais profundo e mais neutro - a partir do qual se podem
julgar doutrinas, perspectivas e interesses conflitantes. Contudo, a primei-
ra tarefa da filosofia política pode ser, ao contrário, a de abolir contrastes
ideológicos falsos e superficiais, de forma a melhor investigar os modos pelos
quais podemos tornar mais variado nosso projeto político dominante e uni-
ficado. É um primeiro passo em direção à exploração das rotas alternativas
e divergentes que conduzem para além daquele projeto. A diversidade dos
futuros da democracia não é o problema; é a tarefa e a solução. Precisamos
de idéias que nos ajudem a criar conflitos ideológicos que possamos levar
mais a sério em vez de pretendermos decidir conflitos ideológicos que, na
verdade, não são o que parecem.
Cada um dos três futuros alternativos de uma sociedade.livre que dis-
cuto agora é uma imagem deliberadamente remota de um caminho pos-
sível para o avanço da democracia. Cada um descreve um modo distinto
de continuar o desenvolvimento ora interrompido do pensamento jurídi-

167
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

co, ao transformar sua preocupação central com o gozo efetivo de direitos


num ajuste institucional motivado. Apresento cada um desses caminhos num
ponto distante de nossas estruturas atuais para melhor exibir sua natureza
original. Contudo, a direção importa mais do que a distância. Podemos
ligá-los, por inúmeras etapas de transição, ao aqui e agora. Podemos re-
presentar, por sua vez, cada um desses passos de transição tanto como
uma série de inovações institucionais quanto como um conjunto de alian-
ças de classes ou grupos; inovações e alianças são apenas as faces reversas
uma da outra.
Há, não obstante, uma assimetria crucial nessa correspondência. Cons-
truímos alianças de grupos ao tentar mudar estruturas sociais, tanto pela
utilização do poder estatal quanto pela autotransformação da sociedade civil.
Inovações institucionais bem-sucedidas, assim, transformam o que eram, até
então, parcerias táticas entre grupos diferentes em fusões duradouras de inte-
resses de grupo ou de identidades de grupo. Por exemplo, uma reconstrução
industrial pós-fordista bem-sucedida, derrubando as fronteiras entre a in-
dústria de produção de massa tradicional, a retaguarda econômica de oficinas
e serviços com pouco capital e a vanguarda econômica de produção especia-
lizada e flexível estabeleceria a base para uma aliança popular mais abrangente
do que parece ora ser possível nas democracias industriais ricas.
Contudo, se alianças sociais precisam de inovações institucionais para se
sustentar, inovações institucionais não exigem alianças sociais preexistentes.
Tudo o que demandam são agentes político-partidários e programas
institucionais que tenham aquelas alianças de classe ou de grupos como um
projeto - um projeto, e não uma premissa. Se mudanças institucionais e
alianças de grupo não fossem assimetricamente relacionadas dessa exata
maneira, o problema da mudança estrutural deliberada na história perma-
neceria insolúvel: a dialética ou o curso da história - uma, inacreditável; o
outro, não confiável - teriam que fornecer o que a participação política
consciente seria incapaz de realizar. Pois as alianças e antagonismos de gru-
pos dominantes numa determinada época tendem a pressupor e reforçar a
estrutura institucionalizada da sociedade. Assim, por exemplo, a classe tra-
balhadora industrial, aquartelada na indústria de produção de massa, ima-
gina que seu inimigo seja a subclasse de trabalhadores temporários, que
competem com eles tanto pelos empregos semiqualificados da indústria
tradicional quanto pelas benesses de bem-estar do Estado. Eles procuram
defender seu lugar em vez de mudá-lo. A centelha de movimento deve vir
da ação política armada de imaginação institucional.

168
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A SOCIALDEMOCRACIA AMPI;IADA

Assim, a discussão da passagem do debate atual sobre políticas públicas


para a discussão programática do início deste livro descreve os primeiros
passos nas mesmas discussões cujos passos ulteriores tento agora explorar. A
análise jurídica como imaginação institucional é simplesmente o exercício
dessas discussões, continuado, como pode e deve ser, nos conteúdos deta-
lhados do direito.
Assim como cada um dos três futuros de uma sociedade livre pode ser
ligado, por passos intermediários, ao aqui e agora, cada um representa tam-
bém a opção por uma forma de vida diferente: uma forma de vida que
incentiva certas formas de experiência individual e social ao mesmo tempo
que desincentiva outras. Contrariamente às pretensões daqueles que se-
parariam nitidamente o correto e impessoal do bem faccioso, não há um
conjunto de instituições que seja neutro com relação a formas de vida. A
miragem da neutralidade obstrui a perseguição prática da abertura relativa
à diversidade de experiência como um atributo positivo, porém parcial, de
uma ordem social.
A relação entre instituição e espírito, entre estruturas práticas e formas de
vida, é a chave para o modo pelo qual represento cada um desses três futuros
de uma sbciedade livre. Assim, em cada caso, a discussão começa com a evo-
cação do espírito animador e original, avança para esboçar as estruturas
, institucionais e as formas de direito específicas e conclui com o tratamento
dos problemas práticos e espirituais que podemos esperar que aquela direção
de mudança institucional nos apresente. Longe de serem objeções fatais a
cada um dos projetos, os problemas são sua vida. Ao administrá-los, cada
programa define, de maneira mais completa e realista, sua natureza.
Esses projetos remotos não são predições nem planos. São apenas am-
pliações institucionalmente imaginadas do nosso repertório conhecido de
opções sociais, experimentos mentais a serviço de práticas de ajuste, levados
alguns passos adiante de onde normalmente os levamos no dia-a-dia do
raciocínio político e jurídico. Seu desenvolvimento especulativo não é um
substituto para o paciente trabalho de ajuste com constrangimentos premen-
tes, necessidades imediatas e oportunidades acidentais do aqui e agora. Não
obstante, por meio de tal ampliação da imaginação política e social, pode-
mos lutar mais resolutamente contra a corrente e o destino, e enfraquecer o
poder de nossas circunstâncias sobre o nosso pensamento. Podemos ver mais
claramente as escolhas obscurecidas por nossos compromissos do momento,
e juntar o tático ao visionário.

169
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

A direção da socialdemocracia ampliada

Uma trajetória para o aprofundamento da democracia pode ser designa-


da socialdemocracia ampliada. Dos três caminhos para a reconstrução da
democracia que esboço aqui, este é o que requer menor ruptura com as
estruturas institucionais estabelecidas e herdadas. Portanto, também se
aproxima mais, em sua mensagem espiritual e exigências morais, de uma
percepção hoje dominante nos países industriais ricos. Se essa linha de
desenvolvimento produz, como inovação política, menor interesse do que
as outras alternativas, ela apresenta um interesse proporcionalmente maior
como uma extensão de tendências em operação nas democracias industriais
do momento.
A concepção nuclear que anima a socialdemocracia ampliada é a crença de
qu~ a arena privilegiada da experiência é a vida individual: a capacidade do
indivíduo para definir e executar seus próprios projetos de vida. A política -
a política de governos e partidos políticos - deixa de ser a fonte plausível de
grandes mudanças e esperanças. Quando bem-sucedida, ela segue um curso
mais estreito; seu objetivo passa a consistir em assegurar as eficiências, igual-
dades e condições mínimas que tornam a ação individual efetiva.

O direito e as instituições da socialdemocracia ampliada

Um conjunto de técnicas institucionais que definem a socialdemocracia


ampliada tem que ver com o compromisso de neutralizar a herança de van-
tagem e desigualdade entre indivíduos. Não apenas a transmissão hereditária
de propriedade deve ser fortemente limitada, mas deve ser conferida aos in-
divíduos uma provisão social - um pacote de direitos e recursos - que os
proteja da insegurança econômica extrema e lhes garanta os meios com os
quais possam criar um caminho próprio no mundo. Parte do montante dessa
conta individual pode ser gasta livremente pelo indivíduo, ao passo que ou-
tras partes, relativas a sua educação primária, sua aposentadoria e garantias
contra desemprego, ou seus planos de saúde, se submetem a regras estritas ou
exigem, para que essas regras deixem de incidir, a intervenção de agentes
fiduciários sociais.
A forma de receita pública que financia mais eficazmente o funciona-
mento do Estado na socialdemocracia ampliada é um imposto direto e
universal sobre o consumo. Esse imposto incide sobre a diferença entre a

170
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A SOCIALDEMOCRACIA AMPLIADA

renda e a poupança ou investimento, permitindo uma generosa isenção


para o consumo modesto e uma taxa acentuadamente progressiva para a
parcela tributável da conta de consumo. Tal imposto tem duas conseqüências
favoráveis aos objetivos sociais e econômicos da socialdemocracia amplia-
da. Primeiro, ele transforma a tributação no aliado, em vez de no inimigo, da
poupança e do investimento. Se existir um problema efetivo de baixo con-
sumo, ele pode ser tratado diretamente por uma política macroeconômica
compensatória. Segundo, ele incide sobre o que um socialdemocrata 111ais
deveria querer tributar: a hierarquia de padrões de vida e a apropriação
individual de recursos sociais. Deve-se admitir que, em princípio, ele torna
possível aos austeros acumular riqueza e, assim, poder econômico. Dois
modos diferentes e complementares de controle do poder econômico aten-
dem aos objetivos da socialdemocracia ampliada: a fragmentação do poder
econômico por meio de instrumentos de acesso descentralizado a recursos;
e a franca tributação da riqueza. Juntos, o imposto sobre a riqueza e o im-
posto sobre o consumo dão à socialdemocracia ampliada seu programa fis-
cal. Talvez eles tenham que vir a ser complementados por um imposto
abrangente de valor agregado com alíquota única que, sendo o menos re-
gressivo ou distorsivo dos impostos indiretos, assegure ao Estado as receitas
públicas substanciais que os impostos diretos e redistributivos são incapa-
zes de proporcionar.
Um segundo e sobreposto conjunto de técnicas institucionais no repertó-
rio da socialdemocracia ampliada tem que ver com as exigências de flexibili-
dade e inovação acelerada na vida econômica. A socialdemocracia ampliada
valoriza a abertura de oportunidades para a iniciativa econômica indepen-
dente tanto por sua contribuição ao progresso material quanto por seu apoio
à definição e execução de projetos de vida. Duas formas de participação do
Estado ilustram o compromisso com um crescimento qualitativo do leque de
oportunidades para criatividade empresarial e ação individual.
De acordo com uma dessas participações, o Estado ajudaria a proporcio-
nar a empresas de pequeno e médio porte os meios com os quais se estabe-
leceriam regimes de competição cooperativa. Empresas competindo em certos
aspectos podem cooperar em outros, congregando recursos financeiros,
tecnológicos e comerciais e, assim, assegurando seu acesso a economias de
escala. Bancos e serviços de assistência tecnológica de natureza público-
privada estariam incluídos entre tais formas de apoio a redes entre empre-
sas. Esses esforços construtivos seriam animados pela tentativa de expandir
o espaço de um estilo de produção que atribui um papel central ao apren-

171
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

dizado de grupo. A capacidade para aprender é algo que a democracia e a


inovação econômica têm em comum.
De acordo com outro tipo de participação, o Estado deve tornar dispo-
níveis às pessoas oportunidades para educação e treinamento contínuos por
toda a vida adulta. Os recursos necessários podem ser parte da conta social
de cada um. Eles são uma contribuição tanto para a capacidade de autode-
terminação individual quanto para condições de inovação permanente na
economia. Eles nos permitem prescindir do caro e inibidor princípio da
garantia de emprego.
A moeda comum entre as técnicas de ampliação da igualdade e de
favorecimento da inovação da socialdemocracia ampliada é uma vasta mul-
tiplicação das atribuições da educação. A reconstrução da educação popular
é, a um só tempo, uma exigência da capacidade individual de autodetermi-
nação e da prática de inovação e recombinação econômicas. O conteúdo da
educação deveria se adequar a esses dois objetivos. Seu propósito deve ser o
de desenvolver capacidades práticas e conceituais genéricas. A escola deve
ficar do lado da humanidade e sociedade possíveis, por oposição à experiên-
cia conhecida e à ordem estabelecida. A primazia de preocupações educa-
cionais representa um dos compromissos partilhados por todas as variantes
do aprofundamento da democracia.
Essas campanhas por uma socialdemocracia ampliada têm mais chance
de ser lançadas nas condições de uma economia política corporativista. Pois
o corporativismo ajuda a consolidar muitas das ferramentas práticas e ideo-
lógicas necessárias à construção da socialdemocracia ampliada: grupos de
trabalhadores e de empresários altamente organizados, centros para a nego-
ciação social de estratégias econômicas nacionais e uma difundida aceitação
social da adequação e da utilidade da intervenção estatal ativa no desenvol-
vimento de estratégias nacionais de crescimento econômico.
Ao mesmo tempo, contudo, o corporativismo produz uma impaciência
com a patologia da rigidez. Vantagens transitórias garantidas por grupos
organizados se tornam rapidamente, num sistema corporativista, direitos
adquiridos. Toda a ordem social começa a parecer uma agregação gigantesca
de privilégios particulares de grupos. A rigidez de preços e poderes de veto
que resultam desses privilégios acorrentam a inovação em todos os domínios
da vida prática. Além disso, dado que esses privilégios são distribuídos de-
sigualmente, a rigidez se torna injustiça.
Assim, a socialdemocracia ampliada, facilitada por um estilo corporativista
de economia política, torna-se, ao mesmo tempo, o antídoto à característica

172
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A SOCIALDEMOCRACIA AMPLIADA

tenacidade de interesses de grupo arraigados e desiguais num regime


corporativista. O impulso em direção à maior flexibilidade surge, na social-
democracia ampliada, como a expressão de um impulso tanto para tornar
mais solto quanto para nivelar o denso sistema de compromissos e prerroga-
tivas de grupo, de vantagens políticas, subsídios dissimulados e incapacidades
efetivas que caracterizam as democracias industriais da atualidade, principal-
mente aquelas que mais avançaram na adoção de práticas corporativistas.
De uma perspectiva mais abrangente, é como se o programa da social-
democracia ampliada representasse a síntese entre o liberalismo falso de um
tempo mais remoto e o compromisso socialdemocrata desenvolvido desde a
época da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial. Contudo, é
menos o ponto intermediário entre essas duas orientações políticas do que um
movimento que cria as condições para uma realização mais completa das
pretensões liberais. Esse esforço para tornar o mundo seguro para o ensina-
mento liberal acerca do elemento comum entre progresso econômico e li-
berdade individual exige a reformulação das instituições tradicionalmente
associadas à causa liberal. A busca pelo elemento comum entre progresso
material e independência individual evolui por ajuste cumulativo e dirigido
das práticas e instituições com as quais, no passado, tentamos garantir esse
elemento comum.
As idéias jurídicas com maior afinidade com a socialdemocracia amplia-
da são, portanto, aquelas que enfatizam a criação permanente do direito de
baixo para cima, por organizações sociais. A doutrina jurídica da social-
democracia ampliada não apenas desenvolve a teoria e a prática das organi-
zações intermediárias, que operam no espaço entre o Estado e o agente
privado, mas também dá especial importância a associações que se situem
no meio do caminho entre um contrato e uma sociedade. O mundo da
socialdemocracia ampliada deve ver uma proliferação de muitas formas de
joint venture no uso de recursos produtivos e na prestação de serviços técni-
cos e profissionais: muitas atividades, ora conduzidas dentro da camisa-de-
força de forma societária, seriam empreendidas, em vez disso, sob a forma
de arranjos temporários e específicos de pessoas e recursos.
O outro grande horizonte do direito da socialdemocracia ampliada, por
contraste à prática da iniciativa descentralizada, é a provisão social do indi-
víduo. O indivíduo deve gozar de um conjunto de proteções e imunidades
relativamente isoladas dos riscos do conflito político de curto prazo. A es-
sência prática da linguagem metafísica de direitos fundamentais da tra-
dição anglo-americana mantém sua força: chamar determinada proteção de

173
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

direito fundamental significa dizer que não devemos expô-la a perigo e


perturbação freqüentes no curso normal do conflito político. A proteção se
torna um direito fundamental de fato quando adquire certa medida de
imunidade a esses riscos.
Nem tudo na provisão social do indivíduo merece ser tratado como um
direito estável e sagrado. Numa das extremidades do espectro de força,
clareza e estabilidade na definição dos direitos estão as garantias básicas
contra opressão pública e privada, as liberdades fundamentais de expressão
e associação e os direitos de participação na vida pública. Mesmo esses
direitos, em suas ramificações práticas, se misturam a áreas em que a relati-
vidade dos direitos a recursos torna inevitável a atenuação contextual. As-
sim, a liberdade de expressão pode exigir atuação estatal que assegure a uma
ampla gama de movimentos de opinião organizados e não organizados acesso
aos meios de comunicação de massa. Contudo, ninguém e nenhum grupo
pode possuir um direito certo e irrevogável a uma parcela específica de
recursos de comunicação. Na extremidade oposta do espectro se encontra a
definição das quantias efetivas disponíveis para proteger o indivíduo contra
o risco de catástrofes e financiar sua educação contínua durante toda a vida.
Entre esses dois extremos, muitas reivindicações partilharão algo da força
da clareza de um direito fundamental com algo da relatividade do investi-
mento de recursos sociais na satisfação ou desenvolvimento do direito.
Assim, a teoria jurídica da socialdemocracia ampliada procura direitos
que estejam no meio-termo entre direito público e privado, e entre contra-
to e sociedade. De maneira similar, em sua demarcação das prerrogativas do
indivíduo, ela elabora a doutrina dos direitos híbridos, identificados clara-
mente e exercidos incondicionalmente em alguns apectos, mas sujeitos a
revisão ad hoc e abertos a discussão em outros aspectos. Essas formas híbri-
das, que se originam diretamente do Estado de bem-estar, expressam a
idéia - tão básica para o direito contemporâneo, mesmo nas socialdemocracias
existentes - de que a autodeterminação individual e coletiva depende de
condições empíricas e, portanto, revogáveis.

O espírito e os defensores da socialdemocracía ampliada

O espírito da socialdemocracia ampliada é um espírito de individualis-


mo radical. A política deve se tornar menor para que os indivíduos possam
se tornar maiores. A busca pelo sublime - a experimentação incansável com

174
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A SOCIALDEMOCRACIA AMPLIADA

as fronteiras da experiência - deveria ter lugar no nível das biografias


individuais. Quando transpomos essa busca para a política, assim ensina
a doutrina da socialdemocracia ampliada, perigo e desapontamento são o
resultado. Grandes projetos de reconstrução e regeneração com freqüên-
cia acabam em autoritarismos funestos, eliminando oportunidades de ino-
vação econômica e cultural, em benefício de elites autofavorecedoras e
dissimuladamente benevolentes.
Essa idéia empresta certo peso de autoridade ou, ao menos, inevitabi-
lidade, a hábitos partilhados de vida: em especial, a uma vida em que o
centro de energia permanece no mundo da família e do lazer; as formas
mais vanguardistas e rebeldes da cultura assumem uma aura de sonho,
como se fossem celebrações do espírito incapaz de encontrar morada no
mundo de todo dia; e o consumo individual, cada vez mais variado e refina-
do, aparece como a contrapartida material prosaica a esse narcisismo extra-
vagante e entusiasmado do espírito. Desfrutar essas experiências de decoro
tranqüilo na vida pública e alegrias e ansiedades aceleradas na vida privada
permanece uma marca de privilégio cultural e econômico. A gente traba-
lhadora comum continua a enfrentar as exigências triturantes de trabalhos
mal pagos e instáveis, ao mesmo tempo que encontra resguardo nos resí-
duos ou inícios da vida em comunidade. A ambição da socialdemocracia
ampliada é dar a todos a oportunidade de partilhar das oportunidades de um
experimentalismo privado.
É um fato revelador da direção espiritual e tendência política das demo-
cracias industriais ricas que a preferência por essa versão do avanço da de-
mocracia tenha se firmado mais profundamente nos partidos socialdemo-
cratas; os exatos movimentos que têm herança coletivista mais pronunciada.
Lenta e gradualmente esses partidos romperam seus vínculos privilegiados
com a classe trabalhadora organizada, ativa na indústria de produção de
massa. Eles consideram esse corpo tradicional de pessoas como uma parcela
em declínio da população, presa num setor decadente da economia e perce-
bida por outros, e, no limite, por si própria, como apenas mais uma facção,
com interesses parciais em vez de como a portadora de interesses populares
universais. Quando os partidos trabalhistas e progressistas cortam seus la-
ços privilegiados com as organizações da classe trabalhadora, acreditam
muitas vezes que não têm alternativa senão voltar-se a preocupações genéri-
cas de "qualidade de vida" da classe profissional e de negócios.
Embora essa classe represente apenas uma parcela pequena da popula-
ção, desfruta de predomínio cultural, principalmente sobre as grandes

175
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

massas de funcionários administrativos, no setor de serviços, em lojas e es-


critórios, sem propriedades e impotentes, que se imaginam membros de
uma "classe médià' à qual todos, menos os mais ricos e os mais pobres,
pertencem. O empobrecimento da visão de rotas alternativas de mu-
dança institucional, agravado pelo necessitarismo da teoria de esquerda
tradicional, se vinga nos partidos socialdemocratas da atualidade. Inca-
pazes de imaginar uma trajetória de crescimento econômico e mudança
institucional que romperia as fronteiras entre produção de massa e ou-
tros setores da economia, esses partidos também não conseguem cons-
truir as alianças políticas e sociais que tais trajetórias de desenvolvimento
tanto exigem como produzem. Nesse contexto, a socialdemocracia amplia-
da revoga o que de outro modo pareceria ser sua abdicação a ambições
transformadoras: ela renova a vida do impulso democratizante mesmo em
meio à ruína das alianças, estratégias e projetos que sustentam a sodalde-
mocracia clássica.

A instabilidade interna da socialdemocracia ampliada

Considere agora dois obstáculos básicos ao desenvolvimento do progra-


ma da socialdemocracia ampliada. Esses obstáculos não são objeções fatais
ao programa: eles revelam parte de sua agenda singular de problemas. Uma
seqüência cumulativa de mudanças - de ideais e interesses e também de
instituições e práticas - se desenvolve pela forma como responde a tais
problemas. O entendimento das dificuldades da socialdemocracia ampliada
apresenta um interesse especial: das diferentes rotas para a radicalização
da democracia, esta é a mais próxima das estruturas estabelecidas no mundo
do Atlântico Norte. Ao tratarmos de seus problemas previstos, podemos
desenvolver um entendimento mais profundo de alguns dos problemas es-
pirituais e práticos dessas sociedades existentes. A socialdemocracia ampliada
representa o desenvolvimento hipotético de tendências já atuantes num
mundo que existe: a projeção dessas tendências nos permite explorá-las sem
vinculação a muitas das forças contrárias que escondem atualmente sua
natureza e conseqüências. A primeira categoria de obstáculos à execução do
programa da socialdemocracia ampliada compreende uma série de variações
sobre o tema da instabilidade interna: como sua contrapartida socialdemo-
crata padrão, esse projeto sofre de uma tensão recorrente entre seus com-
promissos igualitários e participativos e seu conservadorismo institucional.

176
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A SOCIALDEMOCRACIA AMPLIADA

Podemos refrear os compromissos, abandonando a grande parte deles que


não pudermos esperar realizar dentro do arcabouço institucional. Alterna-
tivamente, podemos radicalizar os compromissos, transgredindo os limites
institucionais, e nos prepararmos para repensar os compromissos à luz das
estruturas transformadas.
O exemplo mais geral dessa instabilidade interna no programa da social-
democracia ampliada é a tensão entre a energia política exigida para inau-
gurar tal série abrangente de reformas e o refreamento de energia política
que parece necessária para sustentar esse programa. A essência da socialde-
mocracia ampliada é o esforço de deixar de fora a história dos grandes
conflitos coletivos que se utilizam do poder estatal, e a substituição dessa
história pelos esforços e experimentos de indivíduos. Uma vez estimulada,
contudo, e mantida pelo longo período exigido para a realização de um
programa de reforma fundamental, é provável que a energia política altere
os propósitos para cuja persecução havia sido recrutada. Ela desperta as
pessoas para o poder de aspirações que elas podem realizar somente por
meio do esforço de grupo e na vida de grupo. Além disso, a integridade do
projeto socialdemocrata, em cada uma de suas disposições detalhadas, deve
exigir por certo vigilância permanente. Perigos inesperados e imprevisíveis
surgirão - novas formas de desigualdade e conluios desconhecidos de inte-
resse de grupos - para os quais novas soluções, exigindo ação política, po-
dem ser necessárias.
Se formos sustentar energia política continuada, tanto os objetivos
norteadores quanto as formas práticas da socialdemocracia ampliada po-
dem ter que mudar. Em especial, podemos precisar de estruturas - tais
como o voto obrigatório, o financiamento público de campanhas, livre acesso
aos meios de comunicação de massa e sistemas eleitorais de lista fechada -
que operem, em conjunto, para elevar o grau de mobilização política na
sociedade. Uma vez estabelecidas e eficazes, tais estruturas logo incitarão
mudanças paralelas na organização constitucional do Estado e no arcabouço
de direito público da sociedade civil.
Essas mudanças adicionais utilizariam o recurso a plebiscitos e referendos,
o poder para convocar eleições antecipadas e a multiplicação dos órgãos do
Estado para facilitar e acelerar a prática de reformas fundamentais. Elas
também podem fornecer à sociedade civil um arcabouço de direito público
para sua organização: criando formas associativas prontamente disponíveis
para as pessoas, baseadas em princípios relativos a empregos (sindicatos e
associações profissionais), residência (associações de vizinhança) ou objeti-

177
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

vos e experiência compartilhados (organizações de interesse comum), orga-


nizações amplas nas quais tendências concorrentes competiriam por espaço
da mesma forma como partidos políticos competem por posições na estru-
tura do Estado. A cumulação de tais reformas, contudo, logo daria nova
forma tanto aos instrumentos práticos originais quanto à direção espiritual
definidora da socialdemocracia ampliada.
Um segundo exemplo de instabilidade interna no programa da social-
democracia ampliada tem a ver com a conciliação de seu compromisso
com a igualdade de oportunidade e sua dedicação à flexibilidade na pro-
dução. Essa conciliação pode exigir tanto o desenvolvimento de novas
formas de associação entre o poder público e produtores privados quanto
a criação de novos meios de alocação descentralizada de capital, que rom-
pam os limites dos direitos de propriedade tradicionais. A descentralização
do acesso a recursos pode ser vital tanto para a flexibilidade quanto para a
igualdade. Tal acesso descentralizado talvez precise ser combinado com
economias de escala e preservado por um esquema de redistribuição per-
manente em face da desigualdade renascente. A imagem clássica da
propriedade de pequena escala - a pequena produção (petty-commodiry pro-
duction) numa terminologia e a república do pequeno produtor rural (yeoman
republic) em outra - sofria de uma instabilidade corrompedora. Ou ela
. daria lugar a uma concentração rápida, à medida que os produtores bem-
sucedidos devorassem seus concorrentes fracassados, ou seria anulada pelo
intervencionismo igualitário de um Estado redistributivista.
Se os reformadores conciliarem uma ampla gama de escalas na agregação
de recursos econômicos com a necessidade de grandes investimentos em bens
de capital, bem como em infra-estrutura e em gente, e combinarem limites
efetivos a desigualdade de poder econômico com uma ampliação da liberdade
de iniciativa, talvez eles tenham que trilhar um caminho de inovação
institucional cumulativa. Empresas que desenvolvem entre si redes de com-
petição cooperativa podem exigir formas jurídicas que se situem em algum
lugar no espectro que corre do contrato à sociedade. Pode-se exigir que em-
presas públicas e bancos públicos, livres do ônus da obtenção de lucros a
curto prazo, efetuem, sozinhas ou em associação com produtores privados,
investimentos estratégicos a longo prazo. Eles podem ajudar a sustentar o
estabelecimento de redes cooperativo-competitivas de empresas privadas, e
. desenvolver, em parceria com elas, uma vanguarda tecnológica capaz de pro-
. <luzir, sob medida e de acordo com a necessidade, as máquinas e os insumos
que a retaguarda da economia pode assimilar. A parceria do público e do

178
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A SOCIALDEMOCRACIA AMPLIADA

privado pode, por sua vez, exigir o desenvolvimento de organizações interme-


diárias entre o governo e produtores privados, com atributos de ambos. Essas
organizações seriam protegidas contra o controle político direto e incumbi-
das da tarefa de administrar ou distribuir recursos produtivos, sob regimes de
direitos de propriedade condicionais e temporários.
Tais inovações põem à prova o relativo conservadorismo institucional da
socialdemocracia ampliada. Elas indicam a necessidade de mudar a forma
institucional da democracia representativa e da economia de mercado, e de
abrir caminho para uma série contínua de reformas no arcabouço herdado
da organização política e econômica.

Uma política menor para pessoas maiores?

Voltemos nossa atenção agora para um problema espiritual que afeta o


progresso da socialdemocracia ampliada. O sentimento geral do programa
é que a política deve se tornar menor para que os indivíduos possam se
tornar maiores. O problema é que, depois que a política diminui, os indi-
víduos podem acabar diminuindo também. A medida que o Estado se res-
tringe à execução de atribuições residuais de coordenação, supõe-se que o
foco de energia deva passar para os indivíduos, e para as atividades por meio
das quais eles elaboram e executam seus próprios projetos de vida. As pes-
soas devem acalentar desejos fortes e originais, e empreender inovações, na
prática ou no pensamento, das quais possam derivar benefícios coletivos e
irradiar influência exemplar.
Desejo e esforço, contudo, são relacionais em sua natureza: eles normal-
mente buscam expressão em formas conjuntas de vida. Se a socialdemocra-
cia ampliada for bem-sucedida em seu objetivo declarado de criar indiví-
duos fortes, as qualidades da experiência individual logo se tornariam
atributos da vida em grupo. As pessoas desejarão estabelecer práticas ou
comunidades em que as visões e os impulsos que elas valorizam possam ser
expressos ostensivamente. Contudo, à medida que seus desejos venham
buscar expressão em formas partilhadas de vida, o mundo desenergizado da
socialdemocracia ampliada se revelaria uma decepção. Tais desejos sairiam
em busca de futuros sociais alternativos, inclusive futuros explorados nas
outras duas rotas de radicalização da democracia discutidas aqui.
De uma forma ou de outra, a política, tendo esfriado, voltaria a se aque-
cer. O espaço biográfico individual logo se revelaria um terreno demasiado

179
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

estreito para testar um modo original de ser humano. Mas toda incursão no
espaço coletivo reintroduz conflito - conflito político - sobre a relativa
influência que deveria ser garantida a diferentes visões e interesses.
Há dois modos pelos quais a busca de impulso individual forte por uma
voz coletiva pode ser interrompido. Cada uma dessas formas de interrupção
apresenta o problema espiritual da socialdemocracia ampliada sob uma pers-
pectiva diferente. fu pessoas podem violar seu compromisso com a exigência
de uma forma original de vida em grupo porque elas, na verdade, não desen-
volveram visões e desejos fortes e originais. A política permanecerá, então,
pequena, apenas porque os indivíduos mesmos diminuíram.
Alternativamente, os indivíduos podem nutrir desejos fortes de um tipo
muito especial e comprometedor - desejos narcisistas ou auto-referenciais,
prendendo-os num labirinto de subjetividade e voltando-os para o seu inte-
rior, tendo em vista a experimentação com seus próprios gostos e sentimen-
tos. A possibilidade de tais desejos fornece uma exceção clara à natureza
relacional do desejo. É, contudo, uma exceção problemática: seu defeito
reside tanto na natureza restrita da experiência que torna possível como na
parcialidade mutiladora de seu alcance.
Impulsos narcisistas e auto-referenciais não são capazes de fazer jus à conci-
liação das condições irmãs de auto-afirmação: nossa necessidade simultânea
de nos envolvermos com os outros e de controlar ou superar as ameaças de
subjugação e despersonalização a que cada um desses relacionamentos nos
expõe. A experiência com tais desejos pode servir a um propósito de
desestabilização e auto-subversão, relacionado dialeticamente a um plano maior
de liberdade. Não obstante, tal experiência não nos oferece nenhuma pro-
messa real de passagem a uma liberdade e a um autodomínio maiores.
Assim, mais uma vez a política deve crescer sob pena de que os indiví-
duos diminuam; ou a força do esforço pessoal deve tender a diminuir em
proporção ao alcance da política; ou a coexistência de calor na biografia
individual com frieza na história deve ser sustentada pelo predomínio de
desejos auto-referenciais. Aqui, como em sua vulnerabilidade à tensão entre
aspirações ideais e conservadorismo institucional, as deficiências da social-
democracia ampliada espelham e acentuam as fragilidades de uma forma
de vida estabelecida, ao mesmo tempo que ampliam o alcance de seus ideais
mais sedutores. ·

180
IMAGINANDO FUTUROS
ALTERNATIVOS DE UMA SOCIEDADE LIVRE
A poliarquia radical

A direção da poliarquia radical

A radicalização do projeto democrático pode ser conduzida numa se-


gunda direção - a poliarquia radical. A poliarquia radical representa um
afastamento mais decisivo da forma de vida em sociedade estabelecida nas
democracias industriais contemporâneas do que o da socialdemocracia am-
pliada. Mesmo assim, não há nada em sua concepção definidora ou em
suas técnicas características que não possa se erigir a partir de matérias-
primas institucionais e ideológicas já disponíveis.
A idéia básica da poliarquia radical é a transformação da sociedade numa
confederação de comunidades. Essas comunidades não devem ser formadas
com base primariamente em grupos marcados, de acordo com raça ou reli-
gião herdadas. Em vez disso, devem se basear nas forças da experiência e
compromisso partilhados. A herança de raça ou religião pode desempenhar um
papel na autodefinição em muitos desses grupos - apenas um dogmatismo
iliberal lançaria guerra contra os poderes definidores de comunidades da
religião e da raça. Não obstante, comunidades, nessa perspectiva, devem
ser invenções mais do que destinos, casamentos (no sentido moderno, pós-
romântico) em vez de tribos. Tais comunidades não devem abranger tudo
nem excluir rigidamente. Elas não devem nunca abarcar toda a vida de seus
membros, que devem, ao contrário, passar de uma comunidade para outra
em diferentes aspectos da experiência. Além disso, elas devem, em sua maio-
ria, permanecer abertas a pessoas cujas habilidades, ambições ou compromis-
sos COnVHJaill.
Assim, a poliarquia radical representa um com unitarismo liberal. O ponto
de partida dessa doutrina é que, para nós, democratas e modernos, con-
frontados com os problemas reais das sociedades industriais, apenas um
comunitarismo liberal pode ser realista ou atraente. O elemento comunitário
reside na convicção de que as coisas mais importantes na sociedade ocorrem

181
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

em contextos de vidas de grupo em vez de em biografias individuais ou nas


histórias de sociedades. A diversidade criativa é, caracteristicamente, diver-
sidade.nas formas de vida de grupo; e apenas no pano de fundo de comuni-
dades bem distintas, porém abertas, é que se pode desenvolver a verdadeira
individualidade. O elemento liberal resulta da recusa em dar crédito à con-
cepção reacionária e despótica de comunidades que englobam a tudo e a
todos, principalmente quando são baseadas em "laços naturais" anteriores a
ação e escolha conscientes.
Todos os problemas característicos da poliarquia radical têm a ver, de
um modo ou de outro, com a relação tensa entre seu liberalismo e seu
com unitarismo. Contudo, o defensor da poliarquia radical considera es-
ses problemas parte de um preço inevitável. Devemos pagá-lo para fugir
das decepções e frustrações que têm lugar quando o ideal comunitário
serve como o instrumento de um utopismo retrógrado que transforma o
passado em mito para combater os males de uma sociedade supostamente
individualista, ou quando confere uma aura mais branda a estruturas de
poder imodificadas.
Pela primeira desvirtuação, o com unitarismo se transforma numa rejei-
ção da modernidade e complexidade e, portanto, também da individuali-
dade e subjetividade. Pela segunda, o comunitarismo se transforma num
. modo de generalizar a combinação de troca desigual e lealdade sentimenta-
lizada que distingue grande parte da experiência em sociedades hierarqui-
zadas. Assim, o com unitarismo corporativista proposto na Europa do entre-
guerras pela Igreja católica e por reformistas centristas, e adotada por
ideólogos tão diversos como Durkheim e Santi Romano, encontrou seu
fracasso por sua ambivalência não resolvida sobre as estruturas econômicas
estabelecidas e as formas societárias existentes.
Os com unitarismos iliberais entendem a comunidade como organiza-
da em torno de experiências partilhadas e identidades fundidas. Para eles,
a comunidade é definida por contraste a conflito, inclusive conflito de
interesses ou experiências. A poliarquia radical, ao contrário, trata a co-
munidade como a versão diluída do amor - uma área de experimentalismo
intensificado e envolvimento recíproco, com a guarda entre as pessoas
baixada. Tal comunitarismo não é a mera antítese do conflito; ele incor-
pora o conflito a sua vida normal. Tanto os problemas institucionais quanto
espirituais da poliarquia radical decorrem da relação entre seu liberalismo
e seu comunitarismo.

182
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A POLIARQUIA RADICAL

O direito e as instituições da poliarquia radical

A poliarquia radical opera por técnicas de descentralização de poder e


organização da sociedade civil. Ela pretende descentralizar o poder estatal
central para comunidades locais ou especializadas. Ela pretende que aso-
ciedade civil seja organizada, ou melhor, se organize, de modo que possa
receber e exercitar efetivamente esses poderes que lhe são legados. A ligação
entre descentralização e organização é o que mais distingue o programa da
poliarquia radical das idéias liberais ou centristas tradicionais com as quais
superficialmente se parece. O princípio institucional básico é que a cada
etapa na descentralização de poder deve corresponder um avanço na orga-
nização da sociedade civil.
A transferência de poder se dá oferecendo oportunidades de iniciativa
cada vez maiores para as organizações mais próximas aos locais em que as
pessoas vivem e trabalham ou aos contextos em que elas se organizam em
torno de preocupações partilhadas. Assim, uma forma de transferência é o
impulso para dividir grandes unidades produtivas em partes menores, mais
flexíveis e participativas, combinando essas unidades descentralizadas em
redes cooperativo-competitivas de empresas. Outra forma de transferência
é o desenvolvimento de um sistema de empresas controladas pelos traba-
lhadores e de propriedade dos trabalhadores. A gestão e a propriedade da
empresa pelos empregados, bem como a competição cooperativa, ao torna-
rem possível uma conciliação maior de unidades produtivas menores e fle-
xibilidade com economias de escala, são dois caminhos distintos em dire-
ção à transferência de poder econômico. Embora operem por meio de técnicas
parcialmente incompatíveis, eles coincidem em seu sentido político, e sus-
citam problemas similares.
Um segundo exemplo de descentralização de poder é o fortalecimento
do governo local. À medida que os objetivos da poliarquia radical avan-
çam, locais específicos podem adquirir aspectos cada vez mais específicos.
Como resultado, a concepção de governo local pode ultrapassar seu signi-
ficado territorial. A cidadania local pode ser concedida mesmo a pessoas
que estão mais distantes, mas que, por um motivo ou outro, estão em
estrita comunhão com os cidadãos do lugar. Além disso, uma estrutura
de associações locais ou de vizinhança, tornada possível pelo direito (pú-
blico), pode ficar paralela à estrutura estatal, criando uma relação mais
complexa e deliberadamente pluralista, e mesmo conflituosa, entre o apa-
rato de governos locais e a organização das pessoas na sociedade local.

183
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Tanto governos locais quanto organizações sociais na sociedade local po-


dem, por sua vez, ser titulares de direitos de propriedade sobre recursos
produtivos. Eles podem também desenvolver estruturas para a recupera-
ção seletiva de empresas em dificuldades ou que necessitem de recursos.
Tais estruturas podem facilitar as condições em que o capital se torna
disponível para negócios economicamente promissores ou socialmente re-
levantes, e determinar as circunstâncias pelas quais empresas em crise devem
ser socorridas e reconstruídas e quais as maneiras de fazê-lo.
E um terceiro exemplo de descentralização transferiria poder para cor-
pos públicos especialmente organizados e com interesses específicos. Entre
tais corpos públicos podem estar alianças de pais, professores e governos
locais responsáveis por uma confederação de escolas, ou alianças de médi-
cos, hospitais, empresas, um governo local e representantes de pacientes
empenhados em supervisionar serviços de saúde.
A descentralização de poder por tais mecanismos confere crescente
densidade à vida associativa da sociedade. Assim, a descentralização siste-
mática lembra levemente o princípio da subsidiariedade adotado pelos
partidos centristas e democrata-cristãos da política européia contemporâ-
nea: a concepção de que um nível mais alto de governo 'deveria exercer
poder apenas quando aquele poder não pudesse ser exercido eficazmente
-pela entidade mais próxima da vida do indivíduo. O que distingue a
descentralização numa poliarquia radical do princípio da subsidiariedade
e também de formas ingênuas de liberalismo libertário é uma suspeita
militante com relação às instituições e hierarquias herdadas. Transferir
poder para empresas, comunidades e associações existentes numa socie-
dade organizada desigual e hierarquicamente sem reorganizar a sociedade
significa simplesmente abdicar do poder em favor daqueles já organiza-
dos e privilegiados. A principal objeção a um liberalismo conservador
sempre foi sua confiança acrítica na idéia de um espaço pré-político puro
que irá se revelar se formos capazes de afastar a mão pesada do interven-
cionismo estatal. Por oposição, a teoria política e jurídica da poliarquia
radical reconhece que qualquer mundo social é controverso, contingente
e, acima de tudo, construído pela política. Nesse reconhecimento jaz o
significado da ligação-entre descentralização e reorganização.
Para que a descentralização avance, a sociedade civil deve ser reorganizada
de modo que satisfaça a.duas exigências fundamentais: que nenhum grupo
esteja persistente e significativamente em desvantagem no seu nível de asso-
ciação e que a ordem organizacional inteira resista a um impulso recentralizador.

184
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A POLIARQUIA RADICAL

É por isso que cada um dos exemplos precedentes de descentralização sugere


uma seqüência de reformas nas estruturas que regulam a produção, o governo
local e a satisfação de necessidades de bem-estar.
Tais reformas não implicam uma virada abrupta e completa para um
conjunto novo de instituições. O que elas sugerem é um afrouxamento
cumulativo das formas institucionais recebidas em direção a um autogoverno
descentralizado na produção e troca, na vida em comunidade e na distri-
buição de serviços de bem-estar. Tal projeto de reforma enfatiza um tipo de
direito produzido de baixo para cima por redes autônomas de grupos, em
vez de impostas de cima para baixo por um governo central. Esse tipo de
direito se assemelha ao direito público na medida em que proporciona um
local para ação coletiva entre agentes coletivos. Contudo, lembra o direito
privado, na medida em que permanece aberto à diversidade e à divergência.
Entre suas estratégias características estão o desmembramento e o reagrupa-
mento de pacotes de direitos anteriormente unificados e a criação de estru-
turas paralelas na organização de algum segmento da sociedade.
Tanto a competição cooperativa entre confederações de empresas (pelos
motivos já apresentados) quanto a gestão e a propriedade de empresas pelos
empregados (por razões que ainda vamos explorar) exigem a desagregação do
direito de propriedade tradicional. Eles decompõem as faculdades consti-
tuintes do direito de propriedade unificado e atribuem aquelas faculdades
a diferentes titulares. Os titulares gozam desses direitos distintos ao mesmo
tempo e sobre os mesmos recursos produtivos. Precisamos da desagregação
e recombinação do direito de propriedade, num caso, para conciliar a pe-
quena escala com a eficiência das grandes magnitudes e, noutro caso, para
impedir (como mencionarei adiante) que o sistema de propriedade dos
empregados destrua a si mesmo.
Um exemplo da estratégia de estruturas paralelas é a coexistência de
governos locais fortalecidos e de associações de vizinhança fortalecidas -
duas pistas paralelas de organização territorial local, uma dentro e a outra
fora do Estado. O propósito das estruturas paralelas é deixar aberta uma
rota alternativa para a manifestação de descontentamento e para a prática
do experimentalismo. Essas duas estruturas podem ser parceiras, ou podem
ser rivais. Onde uma se fecha para um movimento social específico, a outra
pode ser forçada a se abrir. O que une a técnica das estruturas paralelas à
estratégia de desmembramento e recombinação de direitos é a prática de
um ajuste criado para tornar a sociedade mais hospitaleira ao ajuste de um
tipo descentralizado e mesmo anárquico.

185
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Os paradoxos espirituais de um comunitarismo liberal

Considere agora os problemas espirituais e práticos característicos que o


desenvolvimento da poliarquia radical deve enfrentar. Tanto estes quanto
aqueles têm a ver com a dificuldade de conciliar o liberalismo da poliarquia
radical com seu comunitarismo, o compromisso com o experimentalismo
contínuo e a manutenção da descentralização.
O problema espiritual central da poliarquia radical é a tensão entre a
natureza escolhida, construída e parcial das organizações descentralizadas às
quais esse programa transfere poder e os atributos da vida em grupo que
impõem atenção e lealdade. O poder de sentimentos tribais parece ligado a
sua qualidade "natural", não-escolhida, assim como a sua dissociação de tarefas
práticas. Tais grupos pré-políticos evocam o poder do vínculo familiar, atrain-
do o indivíduo para um mundo de dependência e destino material. Podem as
organizações que compreendem apenas parte da vida de seus membros e
permanecem vinculadas a preocupações e responsabilidades práticas, não
obstante, permanecer com um centro de devoção e laços comuns?
Esse problema da autoridade espiritual de vínculos escolhidos se liga,
por sua vez, a um segundo problema: a capacidade de conter as tendências
expansionistas de ideais de grupos com identidades e impulsos fortes. Su-
ponha que as organizações descentralizadas da poliarquia radical consigam
realmente se tornar e permanecer ímãs de energia social, enclaves de formas
distintas de vida. Imaginei que tais grupos mantenham seus participantes
intimamente vinculados. Será que as pessoas não iriam inevitavelmente afir-
mar essas variedades originais de vida, desejando vê-las refletidas na vida
dos grupos a sua volta? Afinal, a reprodução de si, de sua própria experiên-
cia e compromissos, é a ideologia mais primitiva e universal, ocultando-se
sob o disfarce de crenças mais refinadas e elaboradas.
Parecemos aqui enfrentar um paradoxo que ocupa nitidamente o lugar
do problema dos indivíduos grandes e da política pequena na socialde-
mocracia ampliada. Se o vínculo comunitário é forte numa poliarquia radical,
pode-se esperar que ele produza ideais de grupo parciais e expansivos, e cause
um conflito que deve terminar com o triunfo de alguns projetos e percep-
ções sobre outros. Por outro lado, se as pessoas ficam satisfeitas em restrin-
gir suas visões ao interior de seus enclaves, podemos duvidar se essas visões
chegaram mesmo a ser fortes em algum momento.
Há uma exceção à relação entre a força de formas de vida em grupo e seu
expansionismo: grupos de caráter natural, como famílias, raças ou religiões

186
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A POLIARQUIA RADICAL

herdadas. Para tais grupos, deve haver algum sinal indiscutível de inclusão,
alguma restrição inata à expansão. Contudo, são exatamente esses sinais
naturais de participação em um grupo que um comunitarismo liberal deve
relegar a um papel secundário.
Ambos os aspectos do problema espiritual da poliarquia radical - o poder
de afinidades escolhidas e o refreamento de ideais fortes - dependem, para sua
administração, de uma medida de sucesso na mudança do caráter da experiên-
cia comunitária. Na medida em que entendemos a comunidade e a vivemos
como uma fusão de interesses e identidades por oposição a outras comunida-
des, ambas as facetas do problema se tornam mais agudas. Podemos, contudo,
trilhar outro caminho: a perda de importância do vínculo ao grupo e o enalte-
cimento dos envolvimentos recíprocos entre seus membros individuais.
A lealdade verdadeira, nessa visão, é algo que prestamos a pessoas de
carne e osso, não a tribos e organizações. Cada comunidade, em vez de reali-
zar uma fusão de identidades individuais, apresenta simplesmente uma área
de engajamento recíproco intensificado em alguma esfera prática da vida
em sociedade. O ideal regulador não é a relação entre a criança e seus pais
biológicos, um destino cego que pode se tornar mais benevolente, mas a
relação de um homem ou de uma mulher, no casamento, com a esposa que
ele, ou ela, escolheu.
A questão central é a plausibilidade de se estender para confins mais
amplos da vida em sociedade a experiência psicológica da aliança íntima
sem tribalismo. Aqui, como sempre, seria tolice condicionar um projeto
político ao sucesso na realização de uma mudança drástica e repentina em
nossas disposições atuais. Também não é sábio, contudo, desconsiderar as
interações sutis e penetrantes entre estruturas práticas e experiências subje-
tivas. A principal questão prática da poliarquia radical segue de perto seus
problemas espirituais.

O dilema prdtico da descentralização e da desigualdade

O problema prático central que a realização da poliarquia radical deve


enfrentar é o dilema da descentralização e da desigualdade. Após apresentar
esse problema em sua forma mais geral e abstrata, exploro sua aplicação ao
debate sobre a administração e a propriedade dos empregados na empresa.
Suponha que as regras de descentralização e organização que definem os
objetivos progr;máticos da poliarquia radical representem um esquema rela-

187
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

tivamente estável e definitivo, a ser alterado apenas raramente, e com extrema


dificuldade. Há uma constituição de comunidades e de relações inter-
comunitárias, encontre essa constituição expressão ou não em· formas que
reconheceríamos hoje como constitucionais. Por esse lado do problema, po-
demos mudar as regras de descentralização de poder e organização da socie-
dade civil apenas esporadicamente, e com enorme dificuldade. Além disso,
variedades novas e imprevisíveis de desigualdade continuarão a surgir, não
importa quais sejam as regras de descentralização política e econômica. Al-
guns grupos vão prosperar e expandir, não importa quais restrições aquelas
regras imponham sobre eles. A única garantia- se é que é mesmo uma garan-
tia - contra o renascimento da desigualdade seria uma redistribuição contí-
nua por uma autoridade superior. Contudo, se tal prática redistributiva fosse
estritamente presa â regras, também confrontaria o problema de desigualda-
de recorrente e imprevisível. Se, ao contrário, a prática redistributiva permi-
tisse uma ampla margem de adminÍstração e reinterpretação discricionária, a
autoridade superior teria lidado com os riscos da desigualdade pela renúncia
a parte do compromisso de descentralização.
A relação entre desigualdade recorrente e uma estrutura rigidamente
vinculada a regras, vista através das lentes de uma prática de interpretação
de regras autocontida e anti-revisionária, merece maior análise; ela ilumina
de forma surpreendente a relação entre direito de propriedade e regras. A
concepção clássica de propriedade repousa na idéia de fronteiras rígidas
demarcando uma área em que o proprietário (titular do direito) pode usar
sua propriedade como bem entender, com uma preocupação mínima com
a conseqüência de seu uso sobre os outros. O verdadeiro significado social
da consolidação de todas as faculdades diferentes que compõem aproprie-
dade num direito unificado reside no enfraquecimento da interdependência
social nas decisões práticas da vida econômica. Somente com base nisso é
que o trabalho pode ser comprado e vendido, e seu resultado poupado para
comprar mais trabalho.
Entendida desse modo, a propriedade unificada atenua sua ligação à
noção primitiva de controle sobre coisas, e se funde na noção clássica de
direitos. Pois o que são direitos, na ótica do liberalismo clássico, senão áreas
de ação discricionária claramente demarcadas? Dentro dos limites do direi-
to, o titular age mais ou menos como quiser, livre para desprezar ou
desconsiderar as conseqüências do exercício do direito com relação aos outros.
Ultrapassando os limites do direito, todas as suas ações se tornam suscetí-
veis a um cálculo de conseqüências e interdependências.

188
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A POLIARQUIA RADICAL

Algumas das mais famosas controvérsias na história do pensamento jurí-


dico moderno lidaram com as conseqüências para o sistema de direitos
públicos e privados das colisões inevitáveis entre direitos que supostamente
não podem ser invalidados. Deveríamos ter aprendido com essas controvér-
sias .duas lições de permanente importância para a reorientação da análise
do direito. A primeira lição é a de que não se pode deduzir, por um proce-
dimento analítico, um sistema de direitos único, fechado e coerente a par-
tir da idéia de economia de mercado. A segunda lição é que nenhuma ver-
são real da economia de mercado, do regime de propriedade ou, de maneira
mais geral, de uma sociedade pluralista, pode abolir o conflito. Além disso,
os conflitos persistentes tratarão de temas fundamentais, tais como as pre-
tensões conflitantes do capital e do trabalho, e não de problemas menores
de ajuste ou definição.
A importância exemplar do direito de propriedade tradicional ou dos
direitos clássicos repousa sobre uma prática de interpretação da norma que
é hostil à revisão freqüente dos entendimentos interpretativos aceitos. Tal
prática se prende ao fundo de analogia estabelecida e interpretações conhe-
cidas. Se não fosse assim, as fronteiras rígidas em torno das áreas de exercício
de direitos se revelariam sujeitas a uma subversão permanente, de acordo
com o resultado de uma disputa entre visões políticas e morais conduzida
sob a forma de uma análise das regras existentes.
Uma postura rígida sobre as regras de descentralização e organização,
necessária para sedimentar os objetivos da poliarquia radical, depende da
manutenção de um esquema preciso de propriedade, direitos e regras,
sustentado por uma prática interpretativa anti-revisionária. Tal esquema
é impotente para se defender de uma tendência de desigualdade ou de
expansão, a menos que seja ou ressalvado por uma redistribuição contínua
que subverte seus próprios objetivos descentralizadores, ou suplementado
por restrições à alienação da propriedade, à realocação de recursos e à
acumulação de capital. Tais restrições seriam tão severas que condenariam
â sociedade à pobreza.
As desigualdades assim produzidas seriam ainda mais difíceis de corrigir
porque não teriam de enfrentar o contrapeso do forte poder estatal. Um
Estado forte é aquele capaz de formular e implementar políticas públicas
com certa distância dos interesses dominantes da sociedade, principalmen-
te os interesses econômicos. Embora o marxismo tenha nos acostumado a
pensar no aparato do Estado como a extensão desses interesses, ele é tam-
bém a grande alavanca de sua transformação. Em sua ausência, desigualda-

189
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

des arraigadas e as estruturas que as produzem se tornam naturais. Elas


tomam a forma de um destino lnescapável porque não existe um instru-
mento político prático que pcssa mudá-las.
Considere agora o outro lado do problema da descentralização e da de-
sigualdade na poliarquia radical. Imagine que possamos mudar as regras de
descentralização e organização de modo fácil e freqüente, ou que uma auto-
ridade redistributiva superior, ela mesma não propriamente condicionada
por regras relativamente inalteráveis, possa corrigir as desigualdades que
surgirem. Teremos então lidado com o problema da desigualdade recorren-
te, mas apenas porque comprometemos parte dos objetvos constitutivos da
poliarquia radical. A instância redistributiva será um governo central; como
também o será o fórum em que as pessoas discutem e transformam as estru-
turas de descentralização e organização. À medida que essas estruturas se
tornam, numa poliarquia radical, as estruturas conformadoras das oportu-
nidades de vida das pessoas, o conflito sobre seu conteúdo adquire impor-
tância decisiva. Influência sobre aquele conflito se torna, nessa versão modi-
ficada da poliarquia radical, um ímã de ambição e inquietação.
O sentido do problema da descentralização e desigualdade é que-o pro-
jeto da poliarquia radical não pode se libertar facilmente da mácula da
crença liberal conservadora num espaço de ação humana livre que podemos
_desobstruir ao afastar a mão pesada da intervenção estatal. O reconheci-
mento dessa ligação entre descentralização do poder e organização da socie-
dade civil não é suficiente para tratar adequadamente da interferência entre
esses dois conjuntos de compromissos institucionais. As iniciativas
organizacionais necessárias à contenção da desigualdade acabam por ressal-
var a descentralização, a menos que aceitemos restrições severas tanto sobre
a acumulação de riqueza quanto sobre a mudança de posição na poliarquia
radical. Essas restrições não apenas tornariam as pessoas pobres; elas as im-
pediriam de se tornar ou de permanecer livres. O dilema da descentralização
e desigualdade sugere a fragilidade interrta de um comunitarismo liberal.

O exemplo admonitório da propriedade da empresa pelos empregados

A denúncia apresentada por esse dilema pode parecer demasiado


especulativa para ser de interesse. Não obstante, ela adquire vida quando
examinamos em detalhe o instrumento ou a variante da poliarquia radical
que mais se aproxima dos debates contemporâneos: o regime da propriedade

190
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A POLIARQUIA RADICAL

e gestão da empresa pelos empregados. Imagine um simples experimento


mental elaborado para explorar as limitações do controle dos empregados em
sua versão tradicional, ainda não revista. O experimento mostra que a eco-
nomia da propriedade e gestão da empresa pelos empregados fracassa tanto
do ponto de vista da eficiência quanto da democracia, a menos que se afaste
progressivamente da idéia simples de transferência para os trabalhadores de
uma empresa dos direitos de propriedade tradicionais de que goza o capita-
lista. Cada desvio desse modelo simples produz uma série adicional de difi-
culdades, que deve ser administrada por um afastamento ainda maior da
versão simples.
No fim, o regime transformado da propriedade da empresa pelos em-
pregados - aquele que promete combinar legitimidade democrática com
eficiência econômica - exige uma interação permanente entre a empresa
ou seus empregados e centros de iniciativa e poder exteriores à empresa.
Os trabalhadores não herdam o direito de propriedade tradicional; ape-
nas alguns de seus componentes. A propriedade tradicional não é mera-
mente transferida de um titular (o capitalista) para outro (o empregado);
suas faculdades constituintes são separadas e redistribuídas entre uma
variedade de titulares, que acabam por deter direitos limitados e comuns
sobre os mesmos recursos produtivos. Essa versão revista da gestão da em-
presa pelos empregados renuncia a um esquema simples de descentralização
econômica em benefício de uma visão mais atraente e realista do progres-
so econômico e da flexibilidade democrática. O experimento mental so-
bre a propriedade da empresa pelos empregados anuncia as mudanças no
dilema da descentralização e desigualdade, sugerindo a impossibilidade
de conciliar, nesta, a área mais conhecida da poliarquia, descentralização
forte com igualdade, flexibilidade e eficiência.
Considere primeiro a hipótese mais simples do regime de propriedade da
empresa pelos empregados, definido pela aplicação plena de dois pressupostos
restritivos. O primeiro pressuposto é o princípio de respeito à distribuição
básica de empregos e recursos existente no momento da mudança de regime.
Os trabalhadores adquirem direitos de propriedade plenos sobre as empresas
eín que estejam trabalhando no momento em que o sistema é instituído. O
segundo pressuposto restritivo é o princípio de respeito ao sistema tradicio-
nal de direitos de propriedade. O que cada empregado adquire é a propriedade
privada plena e completamente alienável. O direito é conferido a cada em-
pregado, e dele derivam todas as pretensões mais específicas tanto a um fluxo
de renda sobre os lucros realizados pela empresa quanto ao exercício de con-

191
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

trole sobre a administração. A imagem é a de um sistema produzido pela


transferência simples e sem reservas de direitos de propriedade: cada empre-
gado recebe, pela intervenção providencial da reforma, o mesmo pacote uni-
ficado de direitos de propriedade que poderiam ser, em outro contexto, pos-
suídos pelo empresário capitalista ou pelo Estado empreendedor.
A versão não revista do trabalhador é tão arbitrária em suas conseqüên-
cias distributivas quanto é autodestrutiva em sua operação interna. A aqui-
sição inicial de direitos de propriedade em tal regime é uma brincadeira
de dança das cadeiras econômica. Alguns empregados trabalham em in-
dústrias de capital intensivo; seus empregos estão ligados a quantidades
abundantes de recursos. Outros trabalham em empregos em empresas de
pouco capital. E outros podem estar sem emprego no momento da gran-
de reforma. Ainda assim, no instante da mudança de regime, cada um
receberá muito, pouco ou nada de acordo com o lugar que esteja ocupan-
do nesse esquema de privilégio relativo. Disparidades de situação existen-
tes, separando trabalhadores uns dos outros, seriam repentinamente con-
geladas sob a forma de direitos adquiridos. Parece estranho que uma reforma
animada por uma visão de justiça e regeneração social seja forte o sufi-
ciente para produzir uma mudança arrebatadora na organização econômica
da sociedade e mesmo assim se resigne a uma atribuição de direitos e recur-
sos tão disparatada quanto essa.
Além disso, esse esquema arbitrário logo se desfaria. Algumas das em-
presas de propriedade dos empregados prosperariam, enquanto outras fra-
cassariam, muitas vezes devido a acontecimentos econômicos alheios, tendo
pouca relação com os méritos e falhas dos próprios trabalhadores. A aceita-
ção do regime tradicional de direitos de propriedade garantiria um proces-
so rápido de reconcentração e desigualdade tanto entre empresas quanto
entre os trabalhadores. Empresas bem-sucedidas comprariam seus compe-
tidores menos menos bem-sucedidos. Trabalhadores individuais logo ven-
deriam suas ações nas empresas como lavradores que recebem um pedaço
de terra, e pouco mais, num plano rudimentar de reforma agrária.
Não decorreria muito tempo até que empregos se separassem de pro-
priedade, e uma força de trabalho de dois níveis, de trabalhadores com
posses e trabalhadores assalariados, se desenvolvesse. Alguns trabalhadores
continuariam a trabalhar em empresas em que não possuiriam nenhuma
cota de participação. Outros, tendo vendido suas cotas, ou nunca as tendo
possuído ou tendo-as r.ossuído em empresas que faliram ou foram vendi-
das, encontrar-se-iam procurando empregos num mercado de trabalho as-

192
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A POLIARQUIA 10-mcAL

salariado interempresas. Nada teria mudado nos princípios básicos da or-


dem econômica, exceto que a passagem para a propriedade de empregados
na empresa, instituída no espírito da poliarquia, teria enfraquecido o gover-
no central e seus programas compensatórios de bem-estar.
Considere agora um primeiro nível de afastamento das restrições con-
traproducentes do regime simples. Essa segunda variante mantém o pres-
suposto do direito de propriedade tradicional, mas abandona o pressupos-
to do respeito à distribuição de empregos existente no momento da mudança
de regime. Quando fundamos o regime, reservamos fundos para compen-
sar aqueles que detêm empregos relativamente menos capital-intensivos ou
que não possuem emprego algum. O fim prioritário desses fundos é dar aos
indivíduos desfavorecidos pela distribuição preexistente de empregos o trei-
namento e os recursos de que necessitam para avançar na hierarquia da
vantagem econômica.
A redistribuição corretiva, contudo, não poderia ser limitada ao mo-
mento da mudança de regime; ela precisaria .desfrutar de uma vida dura-
doura, pois todas as forças que levam à recentralização e à desigualdade em
operação na hipótese simples continuariam a funcionar nesse regime revis-
to. Seria paradoxal, beirando o irrealismo, que uma reforma social fosse
forte o suficiente para desafiar a distribuição de oportunidade econômica
ao mesmo tempo que permanecesse indiferente ao momento distributivo
·subseqüente à grande reconstrução. As mesmas forças e compromissos que,
num primeiro momento, produziram a reforma, lutariam para expandir e
perpetuar seu trabalho.
Continuar a prática redistributiva após a instituição do regime signifi-
ca, contudo, violar o outro pressuposto restritivo da hipótese simples: a
manutenção dos direitos de propriedade tradicionais. Significa, também,
na linguagem do dilema da descentralização e desigualdade, limitar am-
bições descentralizadoras em nome de compromissos igualitários. Se a
prática redistributiva toma a forma de uma correção discricionária e
episódica de desigualdades emergentes, ela restringe o direito de proprie-
dade tradicional sem substituí-lo de verdade. Se, como parece mais pro-
vável, a atividade redistributiva torna-se fortemente vinculada a regras,
com o passar do tempo ela dá origem a uma interdependência de fontes
de poder econômico dentro e fora da empresa. Tal interdependência será
expressa numa coexistência complexa de diferentes tipos de direito de
propriedade, conferidos a diferentes categorias de titulares, das quais os
empregados serão apenas mais uma.

193
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Assim, alcançamos um segundo momento de distanciamento da forma


simples de propriedade da empresa pelos trabalhadores. Agora, começamos
a aliviar o segundo pressuposto - o de respeito a direitos de propriedade
tradicionais - e também o primeiro - o de respeito à distribuição preexis-
tente de empregos. Para impedir reconcentração rápida e desigualdade arrai-
gada, impomos restrições ao exercício do direito de propriedade. As principais
restrições são a inalienabilidade das cotas de participação e os limites ao
poder de comprar outras empresas com lucros acumulados. A inalienabi-
lidade pode funcionar pela atribuição do direito de propriedade solidaria-
mente ao conjunto da força de trabalho ou pela proibição à separação de
empregos e cotas de participação. (Para cada uma dessas variações sobre o
tema da inalienabilidade existe uma contrapartida conhecida na história
das tentativas de reformadores de impérios agrário-administrativos para esta-
bilizar a reforma agrária.)
O equivalente e o complemento funcional às restrições sobre alienabi-
lidade é a imposição de limites sobre as empresas bem-sucedidas, limites
relativos a sua acumulação de lucros retidos para o fim de aumentar sua
própria produtividade ou para adquirir outras empresas. A aquisição de ou-
tras empresas pode convidar a uma divisão hierárquica arraigada entre em-
pregados com propriedade e operários assalariados sem propriedade. Contu-
do, mesmo o investimento desimpedido da empresa em si própria pode
sustentar uma desigualdade severa e irreversível de posição e oportunidade
econômica. Os empregados em cada empresa podem simplesmente preferir
investir em incrementos maiores da produtividade de sua própria mão-de-
obra por meio de aperfeiçoamentos tecnológicos. Em vez de comprar outras
empresas e reduzir outros trabalhadores à condição dependente de mão-de-
obra assalariada, eles podem aumentar progressivamente a distância entre os
instrumentos técnicos de seu próprio trabalho e os meios à disposição de
outros trabalhadores em outras empresas. Eles podem se recusar a contratar
novos colegas, ou empregá-los somente raramente e com base em favores e
relacionamentos. Necessitamos, portanto, de restrições sobre a acumulação
para terminar a tarefa das restrições sobre alienação, embora, em certa medida,
as duas categorias de restrições sejam intercambiáveis.
O resultado de tais limites sobre a propriedade tradicional, contudo, é
oferecer aos trabalhadores-proprietários um incentivo para desperdiçar o
valor da empresa, ao subordinar seus interesses futuros à percepção ime-
diata de lucros. Eles desejarão distribuir para si o máximo possível dos
lucros da empresa. Encontramos aqui um perigo que é mais do que hipoté-

194
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A POLIARQUIA RADICAL

tico: ele se revelou o defeito fatal do regime iugoslavo de autogestão. Restri-


ções à alienação e acumulação, necessárias para impedir a opressão econô-
mica e o trabalho assalariado, incentivam, por outro lado, o mal-aprovei-
tamento dos bens. Como pode uma autoridade externa - ou um conjunto
de normas que esteja em seu lugar -vigiar eficazmente contra as duas ameaças
contrastantes e irmãs do aumento e redução do valor da empresa em detri-
mento da relativa igualdade, flexibilidade e abertura nas transações entre as
empresas?
A premência em responder a essa questão nos conduz a um quarto e
último estágio de distanciamento da versão simples do controle dos empre-
gados na empresa. Os riscos concorrentes de desperdício de recursos e de
imperialismo empreendedor não podem ser contidos no arcabouço de di-
reitos de propriedade tradicionais - não, ao menos, sem um intervencionismo
penetrante que minaria o funcionamento de uma economia de mercado e
ridicularizaria o compromisso poliárquico de descentralização.

A poliarquia radical reconstruída

A poliarquia radical capaz de administrar esses problemas espirituais e


institucionais é um programa que tenha sido bem-sucedido na liberação de
sua visão dos resíduos da idéia do século XIX da pequena produção (petty-
commodity production): uma economia de empresas pequenas e indepen-
dentes que, mesmo quando organizadas internamente à base de princípios
cooperativos, permanece incapaz de cooperar. A manutenção de um mun-
do como esse contra as forças da concorrência e da concentração exigiria um
intervencionismo redistributivo permanente. Tal intervencionismo exerce-
ria uma influência inibitória e regressiva sobre a produção, e impediria que
esse comunitarismo se tornasse verdadeiramente liberal.
A idéia de citadelas fechadas de direitos tomando como modelo a pro-
priedade tradicional deve ceder lugar à idéia de direitos múltiplos e sobre-
postos, coexistindo em tensão. O poder de criar o direito, de baixo para
cima ou por secessão à ordem jurídica básica, deve dar as mãos a uma estru-
tura de organização política e econômica envolvendo toda a sociedade que
seja conveniente a um experimentalismo contínuo e descentralizado. O
reconhecimento da necessidade de uma estrutura como essa é o que mais
distingue uma versão corrigida da poliarquia radical de sua contrapartida
não reconstruída.

195
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Apesar de todos os seus defeitos e perigos, a poliarquia radical permane-


ce atraente porque oferece a promessa de generalizar um princípio de or-
dem social que já está começando a revolucionar a forma pela qual as pes-
soas trabalham em conjunto nas empresas e escolas mais bem-sucedidas do
mundo, nas experiências da produção flexível pós-fordista e do aprendiza-
do cooperativo de habilidades práticas. Essa família de formas de coordena-
ção achata hierarquias, evita que se necessite detalhar totalmente contratos e
mistura cooperação· e competição. Ao atenuar o contraste entre supervisão
e execução, e permitindo que planos sejam continuamente revistos à luz da
experiência de sua execução, ela estimula também a contínua revisão de
concepções de interesse e identidade. Ela aproxima estruturas sociais aos proce-
dimentos de razão prática, entendidos como uma interação acelerada entre
idéia e experimento, entre definição de tarefas e realização de tarefas; entre
desagregação e recombinação; entre pressupostos e surpresas.
Ao mesmo tempo, ela abre uma vasta área intermediária entre, de um
lado, os campos mais restritos da negociação formal e impessoal, ou da coor-
denação hierárquica no trabalho, e, do outro, a democracia representativa.
Terminamos por ver e utilizar as formas aceitas de cada um desses mecanis-
mos de coordenação como casos-limite de um repertório menos característico
e mais abrangente de experimentalismo prático. Num mundo como esse,
não colocamos as figuras míticas do cidadão altruísta da república ou do
membro da comunidade preocupado com o próximo no lugar do indivíduo
real, apreensivo, que possui e persegue interesses. Tentamos, em vez disso,
ampliar o escopo de sua atividade, mexendo cumulativamente com seu qua-
dro de práticas institucionalizadas e crenças reconhecidas.
A combinação de vantagem prática e aspiração democrática nessa
visão ganha força adicional pela intervenção de um terceiro elemento: o
desenvolvimento da generosidade na história moral da humanidade contem-
porânea - uma generosidade alimentada pelo desejo de imaginar o caráter
distinto das outras pessoas em vez de se prender às técnicas distanciadoras
de um altruísmo prestativo. O choque violento de ódios de grupo, motiva-
do em grande parte pelo desejo de diferença, afirmado em face do enfraque-
cimento da diferença real, e pela fúria de impotência coletiva para criar
uma diferença verdadeira, obscurece outro desenvolvimento, mais sutil e
progressivo: o lento e hesitante crescimento de nosso poder de reconhecer
e aceitar a originalidade de outras pessoas. Muitas forças contribuíram para
esse resultado: da crescente influência de mulheres instruídas ao predomí-
nio da psicologização sobre o moralismo, e da difusão do aprendizado sobre

196
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A POLIARQUIA RADICAL

outras pessoas e suas circunstâncias ao resíduo romântico-cristão nas histó-


rias convencionais da cultura popular. O projeto da poliarquia radical pro-
mete convergir essas forças intangíveis para a elaboração de estruturas prá-
ticas. As estruturas podem, por sua vez, nutrir as forças, multiplicando
oportunidades para sua manifestação na vida de todo dia.
Por todos esses motivos, a poliarquia radical contém uma mensagem visio-
nária que ultrapassa suas propostas institucionais. Um teste para os outros
dois futuros do projeto democrático explorados aqui - a socialdemocracia
ampliada e a democracia mobilizadora - é sua capacidade para assimilar algu-
ma coisa desse ideal utópico muito mundano.

197
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS
DE UMA SOCIEDADE LIVRE
A democracia mobilizadora

A direção da democracia mobilizadora

Imagine agora uma terceira direção possível para a radicalização do pro-


jeto democrático: a democracia mobilizadora. Para a socialdemocracia am-
pliada, a :verdadeira emoção ocorre na vida do indivíduo; ela quer que a
política se torne menor para que os indivíduos possam se tornar maiores.
Para a poliarquia radical, a emoção acontece nas comunidades e organiza-
ções - as formas originais de vida em grupo para as quais se transfere gra-
dualmente o poder; ela quer que a sociedade se torne uma confederação de
comunidades na qual indivíduos possam trabalhar e prosperar como os
seres comunitários que eles realmente são. Para a democracia mobilizadora,
não há um local privilegiado para emoção verdadeira, ou melhor, o palco
preferido é toda a sociedade; ela quer aquecer a política, tanto a macropolítica
da mudança institucional quanto a micropolítica das relações pessoais, e
afrouxar os estrangulamentos parciais sobre os recursos básicos de constru-
ção de sociedade do poder político, capital econômico e autoridade cultu-
ral. Ela se recusa a abandonar, ou estreitar, o espaço da política abrangendo
toda a sociedade.
A hipótese empírica fundamental subjacente às propostas da democra-
cia mobilizadora é a crença numa relação causal recíproca entre dois atribu-
tos potenciais de uma ordem social: a moderação de suas divisões e hierar-
quias arraigadas e a relativa abertura de suas estruturas a desafio e revisão. O
fundamento da ligação reside no caráter não-naturalista dos fatos sociais.
Um conjunto de relações sociais e estruturas se torna estável, real e palpável
na medida em que fica isolado de distúrbios em meio aos conflitos práticos
e discursivos comuns da sociedade.
A abertura a desafio e revisão não deveria ser tomada erroneamente por
uma circunstância de instabilidade contínua. A questão não é que as estru-
turas institucionais mudem constantemente - uma prática da qual as pes-

198
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A DEMOCRACIA MOBILIZADORA

soas logo buscariam se livrar - mas, no lugar disso, que a distância entre
perseguir interesses dentro de uma determinada estrutura e mudar partes
dessa estrutura, à medida que se avança, diminui. A mudança se torna
banal, à medida que a transparência do contexto institucional da ação, e
sua abertura a ajuste, aumentam. Isso não é uma passagem de estabilidade
para instabilidade; é uma troca na qualidade da estabilidade, uma troca
que apenas avança numa direção a que economias de mercado e a democra-
cia representativa já nos levaram.
O paralelo espiritual à hipótese empírica que informa o programa da de-
mocracia mobilizadora é um esforço para realizar o ideal pagão de grandeza -
revigoramento coletivo e individual, em nosso vocabulário moderno -, que
pode ser mais prontamente conciliado com o ideal cristão do amor, e com
os compromissos igualitários e solidaristas que esse ideal ajudou a motivar.
Na doutrina da democracia mobilizadora, encontramos novas razões para
afirmar as ligações entre as três queixas mais importantes da sociedade mo-
derna: de que somos desiguais demais, separados demais uns dos outros e
pequenos demais. Descobrimos que, para repararmos as duas primeiras
queixas, devemos reparar a terceira.
Em outra direção, a hipótese causal fortalece a pretensão do projeto da
democracia mobilizadora emlevar adiante a antiga esperança radical-democrá-
_tica de explorar a área de intersecção possível entre as condições institucionais
do progresso prático - principalmente de crescimento econômico - e as condi-
ções institucionais da independência do indivíduo de hierarquia extrema e
arraigada. A causa do experimentalismo prático - e suas reivindicações por
uma liberdade mais ampla de ajuste das estruturas - é o que esses dois proje-
tos têm em comum. A democracia mobilizadora aposta na afinidade entre a
flexibilidade que a inovação econômica e tecnológica permanente exige e o
interesse humano numa experiência mais plena de liberdade.

O direito e as instituições da democracia mobilizadora

Três conjuntos de reformas institucionais desenvolvem o programa da


democracia mobilizadora, reconstruindo as formas institucionais do Es-
tado e da política partidária, da economia e da empresa, e da sociedade
civil e suas organizações.
O programa político da democracia mobilizadora consiste na inversão
dos dois conjuntos de técnicas institucionais que caracterizam a tradição

199
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

política e constitucional dominante da democracia moderna: a preferên-


cia por estruturas institucionais que desaceleram a política transformado-
ra por meio de oportunidades para impasse e exigências de consenso; e a
adoção de práticas que ajudam a manter os cidadãos num nível baixo de
mobilização política.
No lugar de estruturas que favorecem impasse ou exigem consenso, a
democracia mobilizadora coloca técnicas constitucionais que facilitam o
uso transformador do poder político e a execução resoluta de experimentos
programáticos. Entre tais técnicas pode estar a mistura engenhosa das ca-
racterísticas de sistemas parlamentares e presidencialistas de maneira que
abram caminhos múltiplos para a conquista do poder estatal central; a prio-
ridade conferida a propostas programáticas sobre a legislação episódica; a
resolução de impasse sobre a adoção de tais propostas por meio de plebisci-
tos e referendos nacionais; e a atribuição aos diferentes poderes do Estado
do poder para convocar eleições antecipadas simultaneamente para todos
os poderes.
Em lugar de práticas hostis à mobilização política dos cidadãos, a de-
mocracia mobilizadora dá preferência a uma intensificação contínua do ní-
vel de mobilização política na sociedade. Para esse fim, ela emprega, nos
contextos das organizações políticas contemporâneas, recursos tais como
regras de voto obrigatório, sistemas eleitorais favoráveis a partidos fortes,
financiamento público de campanhas e livre acesso ampliado aos meios de
comunicação de massa. A hipótese central que anima essas reformas é a
idéia de uma relação causal entre o grau de energia da política e seu conteú-
do estrutural: não existe algo como uma política de baixa energia que tenha
como seu conteúdo a prática freqüente de reforma estrutural. Um progra-
ma que vise diminuir a distância entre a política comum da redistribuição
marginal e a política transformadora da mudança estrutural deve, portan-
to, insistir numa intensificação duradoura do nível de mobilização política.
Na tarefa de reconstrução econômica, a democracia mobilizadora busca
multiplicar as condições sob as quais as pessoas têm acesso a recursos produ-
tivos. Ela fomenta sistemas de competição cooperativa entre empresas; esta-
belece organizações intermediárias entre o Estado e a empresa, com graus
variáveis de independência de ambos, e as torna responsáveis pela alocação
descentralizada de recursos financeiros e tecnológicos em diversos regimes de
propriedade. Esses regimes deveriam se estender desde uma perseguição es-
trita pela maior taxa de retorno para o uso dos recursos até um envolvimento
profundo e privilegiado com uma confederação de empresas. Tais experimen-

200
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A DEMOCRACIA MOBILIZADORA

tos de coexistência entre diferentes regimes de direito contratual e de proprie-


dade numa mesma economia normalmente exigirão o desmembramento do
direito de propriedade tradicional e a atribuição de suas faculdades compo-
nentes a diferentes tipos de titulares. Entre esses sucessores do proprietário
tradicional estarão empresas, trabalhadores, governos locais e nacionais, orga-
nizações intermediárias e fundos sociais.
Uma das precondições desse aumento abrupto na flexibilidade econô-
mica é a dependência permanente num pacote de garantias contra inse-
gurança econômica catastrófica e num direito a reeducação contínua por
toda a vida. Aqui, a democracia mobilizadora, assim como a poliarquia
radical, se intersectam com o projeto da socialdemocracia ampliada. Toda
extensão do projeto democrático requer que as pessoas tenham acesso ga-
rantido aos instrumentos práticos e culturais com os quais se pode conter
a insegurança e elaborar e executar seus próprios projetos de vida. Essas
garantias devem ser protegidas pelo direito. Elas devem se tornar reais
por formas de intervenção corretiva que são tanto localizadas quanto es-
truturais, como a prática ampliada da execução complexa, discutida ante-
riormente neste livro.
A aceleração da política e a intensificação da inovação econômica têm
sua contrapartida e sua condição na auto-organização da sociedade civil. A
sociedade civil fora do Estado deve ser organizada profunda e universal-
mente para que as instituições políticas e econômicas da democracia
mobilizadora conservem sua integridade. Os mecanismos tradicionais do
contrato privado e de constituição de empresas são insuficientes para rea-
lizar esse objetivo, assim como as formas tradicionais do direito de pro-
priedade unificado são incapazes de conciliar maior descentralização e flexi-
bilidade com a escala e agregação necessárias de pessoas e recursos.

Experimentalismo social e direitos humanos

Essas inovações institucionais na organização do Estado, economia e


sociedade civil reforçam a intensidade e ampliam o alcance do experimen-
talismo prático em todas as áreas da experiência social. Ameaçam elas, com
isso, os direitos humanos? A democracia mobilizadora parece exigir que
mais coisas estejam em jogo na política. O respeito aos direitos humanos,
contudo, requer que algo - ao menos as garantias que constituem os pró-
prios direitos - seja retirado da política.

201
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Para avaliarmos a realidade do perigo às proteções pessoais, devemos


olhar para além do vocabulário especulativo dos direitos humanos em dire-
ção aos problemas práticos que esse vocabulário oculta. Duas idéias fortes
se unem para conferir conteúdo empírico resgatável à linguagem normal-
mente elusiva dos direitos. Um componente é uma técnica; o outro, um
objetivo, em nome do qual empregamos propriamente a técnica.
O componente instrumental na idéia de direitos humanos é a retirada
de certos assuntos da agenda da política de curto prazo. Nesse sentido, um
direito fundamental é apenas um direito que adquiriu um grau de proteção
contra perturbação no curso do conflito político e econômico normal. A
rigidez constitucional - a necessidade de enfrentar o teste do voto de uma
maioria qualificada - é apenas a forma mais conhecida dessa imunidade. A
imunidade é sempre relativa: no fim, nada pode impedir que as idéias e
estruturas instituidoras de direitos sejam capturadas pelos conflitos práti-
cos e ideológicos da política. O culto à constituição pode aumentar o obs-
táculo. Também o pode uma doutrina especulativa de direito natural. Eles
o fazem, contudo, a um custo muito alto, incluindo o custo relativo às
próprias preocupações a que discussões de direitos respondem.
O que deveria ser retirado da agenda da política de curto prazo? Apenas
se subscrevermos à crença fetichista de que uma sociedade possui uma for-
ma institucional única e natural acreditaremos que essa pergunta possui
uma resposta óbvia. À medida que nos afastamos do fetichismo, precisamos
dar à questão uma resposta cada vez mais explícita.
De acordo com a teoria social que informa o programa da democracia
mobilizadora, a melhor resposta é que os direitos excluídos dos riscos da
política de curto prazo deveriam cumprir duas tarefas distintas porém
conexas. Eles deveriam proteger o povo contra inseguranças extremas, in-
clusive os riscos de opressão pública e privada. Eles deveriam também pro-
porcionar às pessoas os meios culturais e econômicos de que elas precisam
para definir e executar seus projetos de vida. Alguns direitos, como o acesso
à educação inicial e contínua, fazem parte de ambos os aspectos das imuni-
dades fundamentais.
Se as pessoas não tivessem proteção num abrigo de estabilidades vital-
mente protegidas, elas considerariam o experimentalismo acelerado e am~
pliado da democracia mobilizadora demasiado ameaçador. Elas logo troca-
riam seus temores pelo primeiro despotismo protetor ou organização política
desmobilizada que pudessem encontrar. Vista sob essa luz, a relação dos
direitos humanos ao experimentalismo mais forte que sustenta lembra a

202
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A DEMOCRACIA MOBILIZADORA

relação entre o amor de um pai e a disposição do filho para se arriscar em


aventura e autotransformação.
Se as pessoas não dispusessem dos meios culturais e econômicos com os
quais pudessem elaborar e realizar seus projetos de vida, elas seriam incapa-
zes de utilizar com êxito sua liberdade maior numa democracia mobilizadora.
Suas impotências cedo minariam e perverteriam suas liberdades. Vista des-
se ângulo, a relação dos direitos fundamentais com o experimentalismo
democrático lembra a relação entre visão e vontade.
A democracia mobilizadora não deveria, portanto, ser confundida com
um sistema hostil a exceções relativas (pois todas as exceções devem ser relati-
vas) da agenda da política de curto prazo. Ao contrário, ela floresce a partir
de uma relação dialética indispensável entre o que é acrescido à oportunidade
transformadora e o que é protegido do risco transformador. Pelo bem da polí-
tica, assim como pelo bem da liberdade individual, algumas coisas devem
ser recusadas à política. Podemos desejar que o conteúdo dessa relação
dialética entre as questões sujeitas à política (de curto prazo) e as questões
dela retiradas fosse definido rígida e permanentemente, mas ele não é e não
pode ser, porque possui uma natureza empírica e experimental.
Assim, da mesma forma que não devemos confundir o experimentalismo
ampliado da democracia mobilizadora com uma busca por instabilidade
permanente nas questões sociais, também não devemos esperar que a acele-
ração da política na democracia mobilizadora entre em conflito com os
direitos humanos. Ao que devemos renunciar para alcançar esse objetivo é a
uma ilusão, ainda que a uma ilusão que, durante certo tempo, tenha sido
muitas vezes útil à causa da liberdade. Essa ilusão é a crença num funda-
mento imutável para os direitos humanos. Tal fundamento existiria se fosse
verdade que uma sociedade livre possui uma forma institucional única,
natural ou necessária, ou, pelo menos, que sociedades livres tendem a con-
vergir em direção a tal forma, e que um sistema sacrossanto de direitos é um
dos componentes dessa ordem livre. Essas crenças, contudo, são falsas. A
liberdade não está segura, tampouco pode se desenvolver, quando é refém
de crenças falsas.
O tipo de fetichismo institucional definido por essas ilusões foi um dos
principais elementos da ciência jurídica do século XIX. O pensamento ju-
rídico e político contemporâneo se recusa a abandoná-lo completamente.
Pois, embora raramente defendamos a idéia de um conteúdo institucional
predeterminado para a democracia, tememos que um reconhecimento franco
da contingência dessas instituições democráticas que possuímos colocará

203
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

em perigo os direitos que sustentam a liberdade. A liberdade, contudo,


nada ganha, e muito perde, quando se mistura à superstição. Não importa
qual fundamento secular ou sagrado reivindiquemos aos direitos que pro-
fessamos defender; não podemos evitar conflito sobre seu conteúdo. Por
termos tentado nos amarrar às restrições do fetichismo institucional, tere-
mos nos distanciado da autêntica força motriz da liberdade prática, a rela-
ção empírica entre nossos experimentos políticos e econômicos e os meios
de que necessitamos para experimentar de forma segura e eficaz.
Além disso, ao caminharmos para longe dessa direção real, por respeito
a uma garantia ilusória contra os perigos da política, teremos também re-
duzido os prospectas para a emancipação da sociedade do controle de elites
políticas e econômicas. Pois, de acordo com a teoria social que informa o
projeto da democracia mobilizadora, há um vínculo entre o isolamento das
estruturas institucionais a desafio e revisão e sua capacidade para criar e
manter hierarquias rígidas de poder e vantagem.

Virtude política e realismo político

Uma vez que tenhamos excluído a falsa objeção da hostilidade aos direi-
tos humanos, contudo, as ameaças verdadeiras ao projeto da democracia
mobilizadora começam a entrar em cena. Os aspectos espirituais e práticos
desses perigos têm uma fonte comum na dependência excessiva das insti-
tuições da democracia mobilizadora sobre um nível de vigilância e participa-
ção intensificado permanentemente. A democracia mobilizadora não é outra
versão da tentativa autoritária e utópica de substituir o indivíduo de carne
e osso, preocupado consigo mesmo e perseguidor de interesses, incura-
velmente ambivalente acerca da política e da sociedade, pela figura mítica do
cidadão altruísta e transparente. Ela busca ampliar, e não substituir, a ativida-
de normal de definição e perseguição de interesses.
Se a democracia mobilizadora dependesse do ideal radical-republicano da
participação incondicional, ela se privaria tanto de seu realismo quanto de
sua atratividade. Seu poder de atração repousaria numa imagem parcial e
indefensável das disposições humanas. Na prática, uma minoria de cidadãos
faladores e autopromovedores encontrariam oportunidades ampliadas para
promoção enquanto a maioria se retrairia dessa oligarquia de intrometidos e
buscaria restabelecer um mundo social centrado nas carreiras individuais
e na vida familiar. A maioria resistiria, e com acerto, ao sacrifício de densos

204
IMAGINANDO FUTUROS ALTERNATIVOS - A DEMOCRACIA MOBILIZADORA

compromissos e ambições pessoais, de prazeres materiais e aspirações espiri-


tuais, por uma devoção total a projetos e paixões políticos nacionais.
Um princípio geral de discussão programática subjaz a esse ponto crucial.
Ao considerarmos a relação de reconstrução institucional com a natureza humana,
devemos trilhar um caminho entre dois erros opostos. Sim, é verdade que todas
as facetas da experiência humana são influenciadas pelo contexto institucional
da experiência. Não podemos dividir a vida humana em duas partes e alegar
que apenas uma dessas duas é suscetível à influência política. Mesmo os aspec-
tos mais íntimos da vida - nossos sentimentos mais particulares de amor e
repulsa - permanecem reféns da estrutura organizacional da sociedade.
Por outro lado, contudo, nada nos habilita a mudar nossas disposições
repentina e radicalmente. Uma objeção fatal a um projeto de reforma é
sua dependência num esquema de regeneração humana drástica. Na ausên-
cia de qualquer distinção bem fundamentada entre características humanas
permanentes ou universais e variáveis ou locais, devemos prudentemente
supor que permaneceremos, em comportamento e aspiração, similares
àquilo que somos agora. Não está entre as opções que, em qualquer projeto
reconstrutivo, preocupações privadas sejam substituídas por devoção cívica
altruísta. O que podemos esperar de maneira realista é que, em condições
institucionais favoráveis, o alcance de nossa perseguição normal de interes-
ses privados se ampliará, e que a distinção entre realizar interesses e desafiar
estruturas diminuirá.
Por todas essas razões, a democracia mobilizadora não deve depender da
predominância da paixão política sobre a experiência comum. Não obstante,
qualquer redução de vigilância ou participação oferece perigos peculiares a
esse projeto. O risco apresenta dimensões econômicas, espirituais e de dis-
posição mental. O risco econômico é que uma calmaria no nível de
mobilização permita que as forças em controle do poder estatal beneficiem
seus apoiadores de maneiras que transformem vantagem temporária em
direito adquirido. O âmbito mais livre do experimentalismo transformador
na democracia mobilizadora pode se revelar autodestrutivo se facilitar o
caminho para o conluio entre poder político e vantagem econômica.
O risco de temperamento é que os cidadãos falantes e autopromovedores
podem se sair ainda melhor quando o engajamento geral se retrai do que
quando ele progride. À medida que as pessoas se retraem do aborrecimento
de reuniões constantes sobre tudo e sobre nada, a pequena minoria dos obses-
sivamente engajados pode tomar o controle das instituições participativas,
falando pelos colegas ausentes, distraídos e taciturnos.

205
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

O risco espiritual é que se abra um abismo cada vez maior entre os dogmas
do compromisso cívico dos quais dependem o regime e a realidade humana
com a qual ele deve viver. Na escuridão desse abismo preocupações huma-
nas maiores podem ser reprimidas, enquanto aparências de participação
cívica começam a ocultar a busca estreita de interesses próprios.
A questão mais problemática para a democracia mobilizadora continua a
ser sua incapacidade de economizar adequadamente energia política e virtude
política. O regime está perdido se tiver que escolher entre absorver a atenção
das pessoas e sucumbir a suas preocupações privadas.

206
A CAMPANHA PARA ALCANÇAR UM MEIO-TERMO
ENTRE RACIONALISMO E HISTORICISMO

A deflação do racionalismo

Os problemas e oportunidades explorados neste redirecionamento da


análise jurídica e nesta exploração dos futuros alternativos da democracia
pertencem a um contexto maior do pensamento em nosso tempo. O estilo
prestigioso de doutrina jurídica criticado sob o nome de análise jurídica
racionalizadora exemplifica um movimento teórico que intelectuais con-
temporâneos conduzem em muitos campos do pensamento. Chame-a de a
campanha para alcançar um meio-termo entre o racionalismo e o historicismo
pela deflação do racionalismo e inflação do historicismo.
Por racionalismo quero dizer a idéia de que podemos ter um funda-
mento de justificação e crítica das formas de vida em sociedade, e que
desenvolvemos esse fundamento por ponderação, que produz critérios de
julgamento que atravessam tradições, culturas e sociedades. O cerne do
historicismo é a idéia de que não dispomos de critérios de julgamento
com um valor que transcenda formas de vida e universos de discurso espe-
cíficos e historicamente localizados. As falhas na análise jurídica raciona-
lizadora acabam por ilustrar a fraqueza fundamental nesse movimento
filosófico maior de deflação do racionalismo, inflação do historicismo e
busca pelo ponto médio entre eles.
A análise jurídica como imaginação institucional representa o caso espe-
cial de uma alternativa mais geral a racionalismo e historicismo. A resposta
geral, assim como aquela mais específica que ela generaliza, envolve também
uma revisão da própria questão. A campanha para alcançar um meio-termo
entre o racionalismo e o historicismo somente pode ter êxito mudando radi-
calmente o rumo nos métodos que emprega e os resultados que justifica.
O esforço teórico difundido de se encontrar o ponto médio entre
racionalismo e historicismo muitas vezes serve para justificar um projeto
político específico - o projeto do liberalismo progressista, ou da social-

207
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

democracia institucionalmente conservadora. Não é claro inicialmente se


existe um vínculo mais do que acidental entre a empresa metodológica e o
projeto político. A ligação, assim sugere a discussão que segue, é real porém
complexa. Meu raciocínio se desenvolve em três partes. Primeiro, exploro a
estrutura desse esforço para alcançar um meio-termo entre racionalismo e
historicismo, indicando as contrapartidas jurídicas de suas ocorrências prin-
cipais. Examino então a maneira em que teríamos que reorientar esse movi-
mento teórico para dar-lhe sentido e permitir-lhe alcançar os objetivos que
proclama. Depois, considero as motivações, tanto impessoais ou progra-
máticas quanto pessoais ou existenciais, que poderiam levar alguém hoje,
num contexto como o nosso, a seguir o caminho que defendo.
Comecemos situando a campanha para alcançar um meio-termo entre o
racionalismo e o historicismo num contexto histórico imperfeito. Tome
o racionalismo, de início, como significando uma tentativa de encontrar
um fundamento para crítica e justificação numa prática de ponderação que
produz critérios válidos universalmente e que transcendem contextos espe-
cíficos de discussão e formas de vida em sociedade. A forma moderna carac-
terística desse racionalismo busca identificar um tipo de organização social
que permaneça neutro em relação aos projetos de vida de indivíduos e às
perspectivas de grupos específicos. Podemos também redefinir esse racio-
nalismo moderno afirmativamente como a tentativa de deduzir um plano
de organização social a partir da idéia abstrata de sociedade voluntária; quer
dizer, da idéia de uma associação escolhida entre indivíduos livres e iguais.
Esse racionalismo moderno parece, em cada respeito, ou permanecer
indeterminado demais para proporcionar a orientação que promete, ou se
tornar determinado apenas ao abandonar a neutralidade que reivindica.
Há um racionalismo pré-moderno. Contudo, é muito difícil dizer com
segurança precisamente o que ele é. Às vezes, as pessoas falam de uma dou-
trina do valor objetivo. Em que textos e em que autores encontramos real-
mente essa doutrina? A princípio não parece haver nada em comum entre,
digamos, a tentativa aristotélica de revelar uma estrutura racional latente
em nossa experiência de juízo moral, sob a orientação de uma teoria da
realização humana, e o esforço, exemplificado pela filosofia do Platão do
segundo e do terceiro período, de se afastar abruptamente da opinião moral
comum, por respeito a concepções ideais que se apresentam à imaginação
com autoridade irresistível.
O racionalismo pré-moderno, não obstante, possui uma forma caracte-
rística. Essa forma repousa precisamente na oscilação entre a tentativa de

208
A CAMPANHA PARA ALCANÇAR UM MEIO-TERMO ...

imputar uma estrutura racional à ordem social estabelecida e ao universo


disponível de juízo moral; e o esforço contrário de desafiar juízo e ordem a
partir de uma perspectiva externa e que transcende os costumes. O proble-
ma característico do racionalista pré-moderno é um dilema conhecido. A
atribuição de estrutura e autoridade racional ao juízo moral comum sem-
pre parece privilegiar injustificadamente as idéias e experiências de grupos
e culturas específicos. O esforço contrário de romper com esse mundo do
juízo comum sempre parece ter um fundamento muito discutível para nos
persuadir de fato a nos voltarmos contra as instituições estabelecidas e dogmas
aceitos da sociedade.
Eis duas histórias complementares ligando o racionalismo moderno e
pré-moderno. Uma. história é sobre a evolução das idéias. Ela encontra o
defeito fundamental do racionalismo pré-moderno em sua incapacidade
para manter uma distância crítica de nossa cultura e suas pré-concep-
ções, ao mesmo tempo que continua de alguma forma sensível aos nossos
pontos de partida dados, em relação à crença aceita e à experiência comum.
O racionalismo moderno, com seu impulso característico para a imparcia-
lidade de perspectiva, começa na tentativa de desenvolver um método
menos parcial de julgamento político e moral, fundado em pressupostos me-
nos controversos.
Contudo, os racionalismos dos dias mais recentes acabam por se revelar
ou não-neutros ou indeterminados. Eles chegam a conclusões específicas apenas
porque perdem sua pretensão à neutralidade. Às vezes, por exemplo, eles a
perdem ao aceitar versões atuais da economia de mercado ou da democracia
representativa como aproximações confiáveis a um sistema que consolida as
escolhas de indivíduos; quer dizer, como uma corporificação prática da pers-
pectiva da imparcialidade. Outras vezes, eles a perdem ao reduzir drastica-
mente a complexidade da matéria-prima - intuições morais e quereres pes-
soais - com que trabalham. Em especial, eles desconsideram o modo pelo
qual desejo e crença se adaptam a estruturas práticas e dogmas prestigiados
que, como aspiração e fantasia, eles também desafiam.
Essa história interna sobre a evolução das idéias precisa ser comple-
mentada por uma história externa, uma história sobre a experiência social
real. De acordo com essa história externa, a força motriz na evolução do
racionalismo é a experiência real de agitação, recombinação e reinvenção
das formas de vida em sociedade, tornando-nos cada vez mais conscientes
do quão nossas concepções ideais têm raízes em estruturas práticas histo-
ricamente localizadas. Essa experiência de fervilhamento e recombinação

209
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

produz uma consciência mais aguda do vínculo frágil e decisivo entre


concepções ideais da vida em sociedade e estruturas práticas que cons-
trangem a realização mais completa daquelas concepções ao mesmo tem-
po em que lhes conferem grande parte de seu significado. O que começa
sugerindo modos diferentes de realizar os mesmos ideais acaba expondo
os significados complexos e parcialmente incompatíveis que emprestamos
àqueles ideais. O resultado dessa ação de investigar, forçar e romper é
tanto confirmar quanto desacreditar a sensibilidade de nossos ideais às
aspirações incipientes e desejos vigorosos dos quais eles tiram sua vida e
para os quais dão forma.
O efeito de inovação institucional sobre o nosso entendimento do con-
teúdo e autoridade de ideais sociais aceitos mina a tentativa pré-racionalista
de romper com o juízo moral comum em nome de entendimento ou intui-
ção moral inquestionável. Os mesmos fervilhamento e recombinação mi-
nam a pretensão de qualquer versão particular de uma economia de merca-
do ou de uma democracia representativa para encarnar uma versão confiável
da idéia de sociedade voluntária. Toda essa decepção e descoberta, reprimi-
da porém não totalmente afastada, incentiva o esforço de deflacionar cons-
tantemente as pretensões do racionalismo e enfrentar as pressões descritas
pelas histórias interna e externa que contei.
Um modo de caracterizar a contrapartida a essa deflação do racionalismo
na história das concepções jurídicas é distinguir dois tipos de raciona-
lismo comparados anteriormente: a ciência jurídica do século XIX e a aná-
lise racionalizadora contemporânea. A abordagem firme do século XIX dis-
tinguia um direito verdadeiro ou pré-político - o direito da ordem privada
do contrato ou propriedade e de sua relação adequada aos limites da ação
estatal- e um direito fraco, falso ou politizado, o direito criado pelos gover-
nos para intervir, com fins redistributivos, no sistema puro de direitos pú-
blicos e privados. A forma mais fraca, deflacionada e contemporânea desse
racionalismo jurídico abandona essa distinção entre direito político e pré-
político. Não obstante, ela tenta manter o contraste entre um direito que é
apenas o produto de uma luta entre grupos e um direito encarnando uma
moral pública ou um interesse público.
Na medida em que essa idéia de um direito suprafacções revela, por sua
vez, ser não-neutra ou indeterminada, muitos juristas recuam para uma
visão mais desencantada, porém também mais tangível, de sua tarefa. Eles
adotam o reformismo pessimista, e reinterpretam a análise jurídica
racionalizadora como uma mentira nobre e necessária. Eles tentam impor

210
A CAMPANHA PARA ALCANÇAR UM MEIO-TERMO ...

restrições sobre a negociação entre grupos, para seu próprio benefício, que
ocorre pela política majoritária. Eles buscam proteger os grupos que pare-
cem incapazes de se proteger. Pouco a pouco, o impulso para restringir essa
intervenção corretiva e purificadora ao que possa ser considerado, de modo
plausível, como interpretação do direito e para se ajustar à estrutura
institucional estabelecida na sociedade muda seu sentido. O desejo de rei-
terar fé na necessidade e autoridade das estruturas atuais agora enfraquece.
O que gradualmente tomou seu lugar é um reconhecimento franco dos
constrangimentos, de poder e legitimidade, sobre os papéis institucionais
que o analista do direito pode esperar ocupar e o trabalho reconstrutivo que
ele pode efetivamente empreender. Assim, os juristas acrescentam um ceti-
cismo involuntário a uma benevolência resignada.

A inflação do historicismo

Imagine agora a transformação do historicismo, o outro pólo de onde


o movimento filosófico contemporâneo característico começa. No centro
do historicismo está a tese de que critérios capazes de justificar ou criticar
uma forma de vida em sociedade são os critérios que essa mesma forma de
vida em sociedade produz. Nenhum critério de julgamento atravessa tra-
dições ou culturas. Se é que podemos de alguma forma passar através de
tradições ou culturas, só podemos fazê-lo escolhendo ser pessoas diferen-
tes e viver uma vida diferente; não há uma racionalidade de ordem supe-
rior. Na cultura contemporânea, o historicismo assume uma forma con-
servadora e irônica, recorrente em muitas áreas de pensamento. Com efeito,
ele afirma: tudo o que existe no mundo são formas de vida e conjuntos de
discussões historicamente localizados; nada mais existe. As únicas justifi-
cações disponíveis são aquelas que emergem da tomada de posição numa
dessas formas de vida ou tradições de debate. Devem-se julgar cada um
desses contextos por seus critérios internos, ou, se, excepcionalmente,
está-se disposto a correr o risco de conseqüências autoritárias e descon-
certantes, pelos critérios importados de algum outro contexto; não há
nenhuma outra opção disponível. Desse modo, o historicista irônico e
conservador inverte a afirmação da falta de fundamento último de todas
as sociedades e culturas. Ele transforma essa afirmação numa justificação
para recompromisso com a tradição estabelecida, com uma condição de-
fensiva e irônica.

211
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Uma objeção a tal historicismo é que ele pressupõe a inevitabilidade de


um dilema do qual a história individual e coletiva da experiência moral
freqüentemente escapou: a suposta necessidade de escolher entre um diálo-
go moral e político, que é vivo precisamente porque completamente incrus-
tado numa tradição particular, e um diálogo que é pálido porque tenta
transcender todas as tradições específicas. A crença em tal dilema deixa de
dar conta de um dos fatos mais arrebatadores sobre essa história de crença e
sentimento: as revoluções esporádicas na percepção política e moral. O exem-
plo mais surpreendente de tais rupturas é a ascensão e a propagação das
religiões mundiais, como o cristianismo e o budismo, propondo visões de
como viver que contradisseram violentamente a sabedoria moral dominan-
te das sociedades em que se difundiram.
Uma segunda objeção a esse historicismo passivo e conservador é quanto
ao fato de que ele parece ir de encontro a muitas características de nossa
situação contemporânea. O que torna a busca por justificação premente é
exatamente a percepção de que não dispomos de tradições fechadas e
incontroversas em que possamos nos basear. Se as possuíssemos, não preci-
saríamos de racionalismo ou historicismo. É precisamente a atenuação des-
sas tradições, sua recombinação, sua reconstrução, seu desmantelamento e
mistura que inspira a busca por justificação e crítica, e provoca, como res-
posta, a invenção de tradições fictícias e a vontade de diferença coletiva. Se
as tradições retivessem a originalidade que esse historicismo conservador
supõe, o debate sobre racionalismo e historicismo perderia o sentido.
Uma terceira objeção a esse historicismo é que ele atribui força per-
suasiva a fatos que parecem incapazes de exercer qualquer autoridade
normativa: os fatos da continuidade e do consenso que o historicista toma
como algo intermediário entre um horizonte insuperável de justificação
ou crítica e uma fonte de entendimento de uma ordem moral trans-his-
tórica. Assim, o historicista conservador deve tentar, por sua própria
caraterística, inflacionar o historicismo da mesma forma como o racionalista
deflaciona o racionalismo. A forma mais comum de inflação do historicismo
é tratar as tradições e instituições políticas das democracias industriais do
Ocidente contemporâneo como merecedoras de respeito especial como fonte
de orientação moral e política: não apenas porque são nossas, mas porque, de
alguma forma, elas incorporam ou encarnam uma afirmação de imparcia-
lidade entre indivíduos e seus interesses e ideais. A reivindicação de privilé-
gio pode se estender às instituições, preferências e crenças aptas a se desen-
volver nessas sociedades.

212
A CAMPANHA PARA ALCANÇAR UM MEIO-TERMO ...

Para identificar a forma jurídica típica dessa inflação do historicismo, ima-


gine primeiro uma forma bruta e não desenvolvida de historicismo não in-
flacionado. Não é mais do que um caso-limite, uma posição extrema no
pensamento jurídico contemporâneo, mas ela exerce influência muito maior
no pensamento diário de advogados do que sobre a teoria jurídica. Ela
ensina que o direito deve ser interpretado contra um pano de fundo das
concepções morais e políticas dominantes na sociedade. Há uma cultura
comum, proporcionando todos os instrumentos de que necessitamos para
interpretar e desenvolver o direito quando a inferência lógica se esgota.
Assim, podemos representar a relação entre o analista do direito e seu
objeto como sendo incontroversa em um de dois modos opostos. Ela pode
ser incontroversa porque o concebemos como um tipo de etnógrafo jurídi-
co, descrevendo uma cultura comum à qual ele não precisa se submeter.
Ou podemos supor que a relação seja incontroversa porque pensamos no
intérprete do direito como alguém que cita sua própria consciência; ele
participa sem conflitos de uma cultura e a fala como alguém falaria uma
língua natural. O problema surge quando confrontamos a fragmentação
real dessa cultura hipotética: sua incapacidade para existir numa forma
unitária. Ela permanece presa nas perspectivas conflitantes de classes e co-
munidades específicas. Além disso, as pessoas experimentam ambivalência
entre desejos ou intuições que tomam a estrutura existente como dada, e
aspirações ou fantasias que pressupõem sua superação. A inflação jurídica
do historicismo é um modo de negar essa fragmentação ou contornar suas
conseqüências. Essa inflação freqüentemente se inicia como um esforço para
destacar a parte reconhecida da cultura compartilhada, a parte que conta
mais porque é, de alguma forma, mais imparcial, ou incorpora mais com-
pletamente a idéia de uma sociedade voluntária.
Podemos agora começar a avaliar o caráter geral da campanha para al-
cançar um meio-termo entre o racionalismo e o historicismo. Quando filó-
sofos e teóricos do direito buscam esse ponto médio imaginário entre
racionalismo e historicismo, eles procuram algo que retenha parte da auto-
ridade, distância crítica e impulso do racionalismo, sem reivindicar suas
pretensões a transcendência de contexto. Isso é o que eles querem, e eles o
querem, no mais das vezes, para justificar uma versão do projeto liberal
progressista e socialdemocrata. Isso é o que eles querem, mas podem eles
consegui-lo?

213
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Alcançando um meio-termo entre o racionalismo e o historicismo


na filosofia e na teoria social

Uma forma filosófica ou socioteórica em que encontramos essa campanha


para alcançar um meio-termo entre o racionalismo e o historicismo é exem-
plificada por idéias como a concepção de um consenso abrangente numa
sociedade democrática do filósofo americano Rawls ou pela noção de uma es-
trutura de diálogo não-distorcido do filósofo alemão Habermas. O fator
historicista nessas concepções é a convicção de que certas crenças têm auto-
ridade apenas porque são as crenças mais capazes de prosperar numa democra-
cia moderna. O elemento racionalista correspondente é a concepção de que
uma democracia moderna não é apenas uma sociedade qualquer, mas uma
sociedade cuja estrutura faz valer a promessa de associação voluntária, de
associação entre indivíduos livres e iguais. A autoridade da estrutura se comu-
nica para a autoridade das crenças que florescem em seu interior.
O defeito central nessa abordagem é sua incapacidade para questionar a
autoridade com que a organização estabelecida do governo, da economia e
da sociedade civil rep1esenta a concepção ideal de sociedade voluntária.
Qual parte da estrutura devemos tomar como dada e que parte devemos
desafiar? Até que sejamos capazes de formar essa questão e respondê-la, não
podemos saber realmente de que grau de autoridade as crenças que flores-
cem dentro dessa estrutura devem desfrutar.

Alcançando um meio-termo entre o racionalismo e o historicismo


na análise jurídica

O exemplo mais importante e detalhado da campanha para alcançar um


meio-termo entre o racionalismo e o historicismo na cultura contemporâ-
nea não será encontrado, contudo, nos escritos de filósofos. É a própria
análise jurídica racionalizadora. O elemento racionalista nessa abordagem
predominante de análise jurídica é a alegação de que podemos reconstruir
racionalmente o direito como a expressão parcial de um plano inteligível e
justificável da vida em sociedade. Esse plano pode se conformar a exigências
funcionais e práticas ou pode dar testemunho da progressiva evolução de
concepções morais e políticas. O elemento historicista é dúplice: primeiro,
o reconhecimento da especificidade e do caráter histórico de cada tradição
jurídica; segundo, a convocação feita aos juristas para prestar atenção às

214
A CAMPANHA PARA ALCANÇAR UM MEIO-T):<:RMO ...

circunstâncias de seu tempo e lugar enquanto contemplam o plano implícito


no direito, por meio do trabalho aprimorador da reconstrução racional.
A análise jurídica racionalizadora confere um sentido mais profundo à
busca por um meio-termo entre o racionalismo e o historicismo. Ela em-
presta uma autoridade especial ao direito enquanto cumpre seu trabalho de
elaboração racional e retrospectiva. Ela confere o sentido mais profundo e
empresta a autoridade especial ao representar as estruturas sociais, políti-
cas e econômicas no direito como aproximações rudimentares ao ideal de
uma sociedade civil livre, de uma economia de mercado livre e de uma
democracia representativa livre - ou seja, a uma ordem social em que todos
contam como iguais. As estruturas institucionais de tal sociedade resultam
do exercício de autodeterminação individual e coletiva. T:tl. tradição é mais do
que uma tradição. Tal contexto é mais do que um contexto. Embora parti-
cular, ele dispõe dos meios práticos e conceituais para escapar de sua própria
particularidade e corrigi-la.
Uma coisa é lutar por tal resultado por meio da política e do pensamen-
to. Outra é pressupor que ele já está disponível. Uma parte muito impor-
tante do meu propósito foi explorar o custo desse pressuposto e uma forma
de evitar suportá-lo.
Ao entender a análise jurídica racionalizadora e suas teorias de apoio
como um certo modo de alcançar um meio-termo entre o racionalismo e o
historicismo podemos generalizar nosso entendimento dos fracassos dessa
abordagem do direito. O direito, como vimos, surge para o jurista como o
resultado de duas linhagens. Por um lado, existe a linhagem da luta organi-
zada de partidos e grupos dentro das regras básicas da democracia. Por
outro, no espírito da reconstrução racional, existe a linhagem de um sistema
de exigências práticas ou de concepções normativas. Uma vez· adequada-
mente reinterpretado, o direito quase parece ter sido elaborado de acordo
com um plano. Se o direito é realmente o produto de tal luta entre grupos,
e se a política democrática é para valer e não opera como o instrumento
inconsciente ou involuntário de imperativos práticos ou morais
preestabelecidos, não podemos esperar de maneira razoável que o direito
mostre qualquer plano funcional ou ideal coerente. Na melhor das hipóte-
ses, ele pode conter, em proporções variáveis, os inícios e resíduos de muitos
desses planos. Os notáveis devem intervir para completar histórias meramen-
te sugeridas pelo material que interpretam e desenvolvem. Eles precisarão
exagerar drasticamente à medida que o direito deixa clara tais histórias, sob
pena de que seu trabalho pareça uma usurpação intolerável.

215
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Quando consideramos apenas a forma jurídica dessa tentativa de al-


cançar um meio-termo entre o racionalismo e o historicismo - a forma
assumida pela análise jurídica racionalizadora e pelas teorias que a susten-
tam e se propõem a aperfeiçoá-la-, os vícios desse movimento parecem ser
a manipulação e o vanguardismo. Contudo, uma vez que reconheçamos o
projeto jurídico como o caso especial de um empreendimento mais ge-
ral, comparando suas formas jurídicas e filosóficas, descobrimos que existe
um problema mais essencial. A forma contemporânea dominante da
campanha para alcançar um meio-termo entre o racionalismo e o histori-
cismo condiciona nosso interesse prático na reatribuição progressiva de
direitos e recursos a uma idealização da ordem institucional da socieda-
de. Ela nos desarma imaginativamente na crítica daquela ordem. Não
obstante, nossos programas políticos e nossos ideais espirituais perma-
necem inevitavelmente presos nas estruturas práticas da sociedade.

Reorientando a campanha para alcançar um meio-termo


entre o racionalismo e o historicismo

À luz dessa crítica, como deve ser reorientada a campanha para alcançar
um meio-termo entre o racionalismo e o historicismo? Que métodos dife-
rentes teríamos para empregar e que resultados diferentes ele teria que pro-
duzir para superar essas objeções? O começo de uma resposta a essas ques-
tões é uma percepção de que o que descrevi como a prática unificada de
mapeamento e crítica é apenas um caso especial de tal reorientação da cam-
panha para alcançar um meio-termo entre o racionalismo e o historicismo.
Essa prática começa a partir do meio do material, investigando e explorando
as incongruências entre programas partidários ou concepções ideais profes-
sadas e as estruturas institucionais que tanto constrangem sua realização
quanto empobrecem seu significado.
Reconsidere sob essa luz o lado da crítica dessa prática de mapeamento e
crítica. Comece pela idéia de que a matéria-prima da crítica é uma série de
promessas de felicidade. Criticar é tratar de promessas de felicidade. Promessas
de felicidade são rotas para a realização, reconciliação e correção de nossas aspi-
rações mais fortes, de acordo com concepções que evocam fé e não são inequivo-
camente desconfirmadas pela experiência. Essas promessas de felicidade assu-
mem duas formas principais. Uma delas é um projeto existencial, uma biografia
típica, um modelo de como viver no mundo. Outra forma que elas assumem é

216
A CAMPANHA PARA ALCANÇAR UM MEIO-TERMO ...

uma tradução da idéia abstrata e indeterminada de sociedade numa série de


imagens detalhadas de associação humana; concepções de como as pessoas po-
dem e devem lidar umas com as outras em diferentes áreas da prática social.
Em condições de estabilidade, os momentos silenciosos da história, cada
uma dessas concepções de associação humana aparece unida a estruturas
que a representam na prática e incrustada num domínio incontroverso da
existência social. Assim, um ideal específico de comunidade privada pode
ser exemplificado por práticas de vida familiar, enraizadas num mundo es-
pecífico de família e amizade. Se qualquer parte dessa estrutura sai do lugar,
se começamos a aplicar certos ideais da vida em sociedade a áreas da prática
de que eles haviam sido anteriormente excluídos, ou a escolher entre
efetivações práticas alternativas daquelas concepções herdadas, começamos
a descobrir ambigüidades ocultas nos ideais. Devemos então decidir como
esclarecer as ambigüidades e reinterpretar os ideais.
Pode-se muito bem perguntar: onde está a energia para a transformação,
e onde está a legitimidade para tanto? O racionalista tipicamente supõe
que essas duas questões são diferentes. O historicista é mais propenso a
pensar que elas na verdade são exatamente a mesma. Cada uma dessas duas
visões contém parte da verdade.
Em circunstâncias de estabilidade, a lógica dos interesses de grupo, iden-
tidades coletivas e idéias aceitas sobre a possibilidade social goza de uma
aparência de transparência e necessidade. Contudo, essa aparência resulta
da ausência de desafio real ao contexto que a envolve: as estruturas
institucionais básicas e as imagens reconhecidas de associação humana. Em
tal situação, a energia vem das definições de interesses individuais e de
grupo, das identidades coletivas, das concepções de possibilidade social
perseguidas dentro dos constrangimentos definidos imprecisamente pelas
estruturas e crenças estabelecidas.
Imagine, contudo, que comecemos a perturbar esse contexto. Ele sempre
pode começar a mudar, nem que seja porque uma ambigüidade tática carac-
terística subsiste em nossos modos de defender definições atuais de interes-
ses. Sempre temos táticas para a defesa de interesses que mantêm a estrutura
em seu lugar e outras táticas que arriscam e transformam a estrutura. Então,
à medida que essa estrutura pressuposta começa a ser desafiada, a confiança
das pessoas nas definições estabelecidas de interesse, identidade e possibilida-
de também diminui. Em tais momentos de desafio e agitação, ideais não
mais parecem ser constrangimentos pesados aos interesses. Ao contrário, as
concepções das pessoas sobre o que são seus interesses começam a depender

217
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

cada vez mais explicitamente de histórias que elas contam para si mesmas
acerca dos mundos sociais alternativos para os quais elas poderiam se mudar.
Essas histórias fornecem visões alternativas sobre as direções em que elas po-
dem desenvolver seus ideais e seus interesses.
De acordo com uma visão difundida, a tarefa predpua do juízo político
e da teoria política é discernir - a partir de um ponto de vista imparcial ou,
de algum outro modo, com autoridade - entre os muitos projetos e ideolo-
gias conflitantes com que nos defrontamos na política contemporânea. Um
tema implícito neste livro é que o nosso problema é menos o fato de que
temos projetos demais do que o fato de que temos apenas um projeto: o
único projeto político com autoridade no mundo moderno, o programa do
experimentalismo democrático do século XVIII até hoje, o projeto que li-
berais partilham com socialistas. Seu compromisso central é levantar a grade
de divisão e hierarquia social que pesa sobre nossos relacionamentos práticos,
emocionais e cognitivos uns com os outros.
Temos dois motivos principais para perseguir esse projeto: primeiro,
para aumentar as capacidades práticas produtivas da sociedade; e, segun-
do, para diminuir o grau em que participação na vida em grupo nos prende
a mecanismos de dependência e despersonalização, e assim desmerece a
auto-afirmação, o esforço para desenvolver e manter uma presença indivi-
_dual no mundo. A grande aposta que esse projeto político realiza é que
podemos projetar e estabelecer instituições que nos capacitem a explorar a
área de coincidência potencial entre as condições desses bens morais e prá-
ticos: entre o desenvolvimento das capacidades práticas produtivas da socie-
dade e a criação de condições em que indivíduos conquistem independên-
cia das circunstâncias de dependência e despersonalização. N assas concepções
herdadas das divisões entre versões esquerdistas e direitistas, ou liberais e
socialistas desse projeto político moderno, permanecem emaranhadas num
denso feixe de superstição sobre as formas institucionais de pluralismo polí-
tico e econômico. Uma tarefa da crítica é ir além de distinções falsas ou super-
ficiais entre, por exemplo, compromissos pró-governo ou antigoverno, de
modo que conflitos ideológicos novos e mais significativos possam surgir.
Neste livro, ofereci dois exemplos principais de tal prática de crítica.
Esses exemplos se ligam de uma forma que esclarece tanto a vocação quanto
os limites do direito contemporâneo nas democracias industriais. O pri-
meiro exemplo é a discussão dos constrangimentos que o conservadorismo
institucional impõe sobre a principal idéia animadora do direito e do pen-
samento jurídico contemporâneos: o compromisso de garantir o gozo efeti-

218
A CAMPANHA PARA ALCANÇAR UM MEIO-TERMO ...

vo dos direitos, e em particular daqueles direitos que sustentam a liberdade


individual e o autogoverno popular. O segundo exemplo é a investigação
dos futuros alternativos da democracia, cada um dos quais carrega nossos
interesses e ideais para além do horizonte institucional dentro do qual os
mantemos agora.
O espírito dessa prática crítica se torna claro por comparação à atual
tentativa filosófica de alcançar um meio-termo entre o historicismo e o
racionalismo. Ao contrário daquela tentativa, ele implica uma atitude críti-
ca em relação ao arcabouço institucional da sociedade existente e estabele-
cido. Exige também uma abordagem crítica aos fatos de vontades e intuições.
Primeiro, uma estrutura institucional frágil e substituível ajuda a moldar
essas vontades e intuições. Segundo, elas sofrem de uma ambivalência ca-
racterística. Elas se situam entre desejos ou pré-concepções que preservam a
ordem institucional e a tomam como dada, e aspirações e fantasias que
buscam escapar dessa ordem. Por fim, ao contrário da atual campanha para
alcançar o meio-termo entre o racionalismo e o historicismo, essa prática de
imaginação institucional sugere como podemos chegar a conclusões mais
controversas e inquietadoras, saindo de pontos de partida relativamente
menos controversos: os compromissos estabelecidos do direito contempo-
râneo ou os credos dos grandes grupos de opinião na política.
O hábito da racionalização retrospectiva - do direito, política, produ-
ção e história; a busca por um simulacro especulativo de imparcialidade
de julgamento, ensinando-nos como negociar a distribuição de recursos e
direitos numa estrutura deixada sem desafio; e o abandono dessa busca
em favor de uma adoção conservadora do progressivismo de outrora não
nos ajudarão a seguir esse caminho. O detalhamento e a especificação, na
imaginação e na prática, de variações institucionais sobre a realização e a
reformulação de nossos interesses e ideais é a disciplina de que necessita-
mos. Ela seria uma disciplina sem vida se não fosse animada pela esperan-
ça de continuar vivendo na história como uma história de grandes alter-
nativas práticas e espirituais.

219
PROFECIA E PROSTRAÇÃO
NO PENSAMENTO JURÍDICO

O culto do direito estatal e a busca por uma ordem moral latente

As práticas de análise do direito exploradas, criticadas e redirecionadas neste


livro representam as manifestações mais recentes de uma aliança muito antiga
entre duas idéias. O primeiro parceiro nessa união antecede o Estado. É a idéia
de uma ordem moral latente numa forma de vida em sociedade, uma ordem
manifesta em expectativas e exigências recíprocas, aperfeiçoada e reproduzida
por diálogo contínuo, penetrando e suavizando as realidades do poder e da
escassez e mantida por imagens poderosas de associação humana. Tais imagens
fornecem representações de como as relações entre as pessoas podem e devem
ser em cada domínio da experiência social. O segundo parceiro na união foi a
estadolatria: o culto do Estado, de suas razões e seus editos.
Do casamento entre a crença mais antiga numa ordem latente e a mais
moderna da estadolatria aparece uma busca que permaneceu o tema de
unidade do pensamento jurídico desde o aparecimento do Estado e desde
que juristas começaram a interpretar os produtos legislativos do Estado: a
crença de que um projeto racional e justificável da vida humana deve, ainda que
incompleta e imperfeitamente, estar subjacente aos atos implacáveis e sur-
preendentes do poder. A democracia teve uma relação dúplice com essa
aliança: se a democracia tornou o poder menos terrível, ela também tornou
mais problemática a idéia de uma ordem latente e não escolhida. O método
de políticas públicas e princípios na análise jurídica, florescendo nas sociedades
democráticas e se difundindo pelo mundo todo a partir de sua posição
privilegiada nos Estados Unidos, não é mais do que um passo numa progres-
são histórica de discursos. Nessa progressão, cada estilo de discurso sucessivo
celebra a aliança do poder do Estado com a ordem latente e administra o
significado delicado dessa aliança para a democracia.
A história do pensamento jurídico se tornou agora tão repleta com as
defesas, concessões e compromissos necessários para sustentar a fé nessa

220
PROFECIA E PROSTRAÇÃO NO PENSAMENTO JURfDICO

operação que facilmente nos esquecemos dos rudimentos do empreendi-


mento. É especialmente fácil perder de vista o poder persistente da antiga
concepção de uma ordem moral imanente que os juristas de direito produ-
zido pelo Estado tomaram dos intépretes de direito consuetudinário. Quan-
do as manifestações daquela idéia na vida rotineira da sociedade começaram
a enfraquecer, os juristas e os pastores encontraram novas raízes para ela nos
direitos sagrados das principais tradições religiosas.
Os atrativos da concepção de ordem imanente continuaram, até recen-
temente, a ser mais palpáveis do que no momento se tornaram. Um jovem
instruído em doutrina jurídica numa parte periférica do mundo ocidental
na segunda metade do século XX poderia ainda experimentar esses atrati-
vos ainda pouco enfraquecidos, sob a forma do projeto há tempos fossilizado
da ciência jurídica do século XIX, permanentemente ensaiado nesses luga-
res distantes. Ele poderia estudar direito romano através das lentes a-histó-
ricas dos romanistas tradicionais, lendo Savigny sobre a posse como se o
burocrata alemão e os jurisconsultos romanos fossem quase co-descobridores
contemporâneos da mesma ordem moral. Ele poderia se entusiasmar com o
sentimento de participação numa forma de consciência que pareceria tanto
arcaica quanto indispensável, precedendo as ciências sociais, gerando-as e
ainda cumprindo uma missão que elas foram incapazes de realizar. Identi-
ficando-se com o antigo clero dos juristas, ele poderia ver em seu trabalho
uma fuga hesitante dos acidentes, absurdos e atrocidades da história. Pode-
mos rir dele agora, mas não podemos tão facilmente separar nossas inquieta-
ções de suas simpatias.
A associação da busca por ordem moral com o culto do Estado e seu
direito encontrou seu aspecto progressivo em seu efeito corrosivo sobre
a crença num sistema natural e pré-político de vida em sociedade. Como a
grande alavanca de transformação, o Estado liga mudança social a vonta-
de social. O preço desse recurso ao Estado, contudo, é alto. Ele aumen-
tou constantemente. Reconhecemos apenas parte do custo do fidelismo
sobre o poder.
Podemos esperar purificar esse direito imposto pelo Estado de parte de
sua coerção e violência, submetendo-o à disciplina da responsabilidade de-
mocrática, e retirando da agenda da política de curto prazo aqueles direitos
que definem e protegem os meios de autodeterminação individual e coleti-
va. Não obstante, algo dos horrores da coerção e da violência sempre per-
manece no direito estatal. A busca por uma ordem moral imanente pode,
com a mesma probabilidade, tanto ocultá-los quanto melhorá-los. Este

221
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

livro enfatizou, contudo, um lado diferente do custo de nossa busca por uma
ordem imanente no direito estatal: a imunização das instituições básicas da
sociedade, definidas no direito, contra crítica, desafio e revisão efetivos. Ao
adotarmos formas de pensamento, discurso e prática- como a análise jurídi-
ca racionalizadora - que contribuem para sua imunização, frustramos nossos
interesses, traímos nossos ideais e diminuímos nossas esperanças.

O experimentalismo democrdtico contraposto à ordem moral latente

Para evitarmos pagar esse preço, não basta esfriar o fervor de nossa
estadolatria dissolvendo o vínculo entre o culto do Estado e seu direito e a
busca por uma ordem moral latente. Devemos ir além e nos livrarmos dos
resíduos da própria idéia de uma ordem moral latente. Em seu lugar deve-
mos colocar uma visão das grandes forças construtivas a que a análise jurídi-
ca corno imaginação institucional deve servir.
Urna dessas forças é o experimentalismo prático adotado para intensificar
nossas capacidades de entendimento de nossas circunstâncias e de emancipa-
ção da servidão, da fraqueza e da insegurança. No coração do progresso práti-
co jaz a relação entre cooperação e inovação. Para progredirmos em qualquer
âmbito da vida prática devemos inovar e cooperar. A inovação tanto re-
quer quanto ameaça a cooperação. Ela ameaça a cooperação colocando em
risco as lealdades, reciprocidades e expectativas estáveis nas quais relações
humanas reais se incrustam e a partir das quais os tradicionalistas deduziram
a idéia de ordem moral imanente. A tarefa máxima na elaboração de estrutu-
ras que contribuem para o progresso prático, portanto, é sempre imaginar e
estabelecer as estruturas de cooperação, no nível dos detalhes e no nível do
conjunto, que sejam as menos propensas a impedir inovação permanente.
A outra grande força construtiva é a exigência de auto-afirmação e liberda-
de pessoais. Ela é muito mais do que a necessidade de proteções contra a
opressão estatal. É a busca por soluções - por soluções melhores, e não perfei-
tas ou definitivas - de dois problemas que se intersectam. Nós tanto precisa-
mos das outras pessoas como precisamos ser protegidos delas. Devemos ser
capazes de participar com fervor de sociedades e culturas específicas, de formas
específicas de experiência e consciência, mas mesmo assim não podemos sub-
meter nossas capacidades de desejo ou entendimento a qualquer uma dessas
versões de humanidade ou qualquer agrupamento delas. Além disso, deve-
mos viver de um modo que reconheça a verdade de que há mais nós, indivi-

222
PROFECIA E PROSTRAÇÃO NO PENSAMENTO JUR.fDICO

dualmente como pessoas ou coletivamente como humanidade, do que há nos


mundos institucionais e discursivos que criamos e habitamos; de que eles são
finitos e nós, com relação a eles, somos o infinito. À medida que nos liberta-
mos de estruturas arraigadas de divisão e hierarquia social, diminuímos a cota
de dependência e despersonalização na vida em grupo e começamos a curar o
conflito dilacerante entre as condições de auto-afirmação.
À medida que diminuímos a distância entre a aceitação rotinizada de
um arcabouço institucional e imaginativo de ação humana e a recriação
excepcional do arcabouço, expandimos os prospectos de participação franca
e ativa. Tornamos a participação franca e ativa possível com menos prostra-
ção e ilusão ao mudarmos a relação entre rotina que respeita estruturas e
transformação ou transcendência que desafiam estruturas. Por esses moti-
vos, a democracia interessa à liberdade, entendida em seu sentido mais
amplo de excesso do ser. Ela oferece uma resposta parcial àquela grande
fonte oculta de tristeza humana: a desproporção entre a intensidade de
nossos desejos e a indignidade dos objetos aos quais eles devem normal-
mente se prender. Somos o único objeto apropriado de tais desejos, mas
não nós como somos agora, e sim nós como poderíamos nos tornar, nós
como espíritos originais que serão capazes de se entregar mais completa-
mente uns aos outros porque não serão mais as desventuradas criaturas de
um destino imposto por classes e cultura. Ligar as condições do desenvolvi-
mento dessa liberdade com as exigências de progresso prático por meio do
experimentalismo prático é a verdadeira promessa da democracia.
O requisito essencial para que a união dessas forças espirituais e mate-
riais opere mais rápida e potentemente é que estejamos dispostos, em seu
nome, a ajustar nossas práticas e instituições, nosso entendimento de nos-
sos ideais e interesses e cada um em relação ao outro. Na análise jurídica e na
política econômica - as disciplinas irmãs da imaginação institucional -
devemos desenvolver um diálogo sobre o ajuste, até que, por força de falar-
mos e pensarmos como ajustadores motivados, gradualmente nos tornemos
tanto realistas quanto profetas.

Uma parábola: os judeus e seu direito

Nenhuma religião confere ao direito um lugar mais central em seu siste-


ma de crenças do que o judaísmo. Eis aqui uma pequena história sobre a
religião dos judeus e seu futuro possível. Em seu conteúdo e implicações,

223
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

ela se afasta tanto da religião estabelecida que seria inútil defendê-la. Além
disso, ela quebra um tabu - um tabu intolerável para qualquer um que leve
religião a sério - contra a crítica religiosa da religião. A parábola sugere uma
lição sobre a religião do direito nas sociedades democráticas.
Como o cristianismo ou o islamismo, o judaísmo é uma religião históri-
ca. Ele trata a história como uma cena de acontecimentos decisivos em que
propósito divino e ação humana se encontram, não como um pano de fun-
do epifenomênico para a realidade espiritual permanente. Ele crê que a
realidade do mundo e a individualidade das pessoas são tudo o que há, em
vez de dispensá-las como ilusões que ocultam a verdadeira essência. Ele re-
presenta a relação entre Deus e a humanidade segundo o modelo das relações
entre as pessoas. A revelação de Deus na história lembra a misteriosa e
sempre parcial revelação de uma pessoa a outra. As histórias da religião
contêm verdades que aprofundam as verdades antecipadas nas histórias que
contamos sobre nós mesmos. O pessoal vale mais do que o impessoal.
No centro da religião dos judeus reside o monoteísmo, revelado na
história humana por um conflito entre idolatria e iconodasmo. Deus
escolheu os judeus por motivos que ninguém pode compreender, mas a
singularidade que resulta da escolha pertence mais ao roteiro do que à
mensagem. Quando Deus primeiro fez seu pacto com os judeus por
meio de Abraão (Gênesis, 15 e 17), ele nada disse sobre obediência ao
direito. (Deus realizou o pacto anterior, de Gênesis 7 - do qual ele deu .
o arco-íris como sinal-, por Noé com toda a humanidade em vez de com
os judeus.) Ele apenas disse a Abraão que trilhasse seu caminho perante
ele e que fosse perfeito. Ele ordenou que os judeus circuncizassem seus
filhos homens, e os filhos dos estrangeiros que eles comprassem, como
um símbolo do pacto. Ele os marcou antes de lhes dar quaisquer regras.
Quando Deus testou Abraão, instruindo-o para sacrificar Isaac, ele es-
tava examinando a fé de Abraão - quer dizer, sua confiança - e, portan-
to, também sua esperança, mas não estava estabelecendo direito; ele
deu sua ordem somente para revogá-la no momento de sua execução
premente. A exigência de Deus era tão desconcertante que Abraão nun-
ca a mencionou ao filho que estava próximo de sacrificar, preferindo,
como sugere Kierkegaard, que Isaac odiasse a seu pai em vez de odiar a
Deus. Depois, no Sinai, Deus apresentou regras. Aqui começou um
interesse irresistível pelo direito. Contudo, a fonte inicial de energia
religiosa reside num encontro que não produziu nenhum direito, num
pacto a ser testado repetidas vezes à luz de um conflito entre idolatria e

224
PROFECIA E PROSTRAÇÃO NO PENSAMENTO JU.RfDICO

iconoclasmo, num conflito entre idolatria e iconoclasmo a ser decidido


repetidas vezes à luz do pacto.
Na seqüência da destruição do segundo Templo, os judeus abandona-
ram o elemento sacrificial-cultuai de sua religião. Eles ampliaram o funda-
mento do desenvolvimento rabínico do halakhah - um misto de preceito
bíblico e exegese e casuística rabínica - que se tornou desde então o princi-
pal suporte do judaísmo.
O desenvolvimento do judaísmo rabínico, organizado em torno do es-
tudo e da prática do direito, representou um grande avanço na história da
religião. Ele arrancou a autoridade religiosa de uma casta de pastores e de
uma sucessão de profetas, e conferiu-a, em vez disso, a muitas comunidades
de discurso fragilmente interligadas e a seus líderes. Agindo pelo compro-
misso de reformar os detalhes prosaicos da vida em sociedade, ele ofereceu
aos homens e mulheres uma prática e uma revelação com a qual fosse possí-
vel ligar, e manter ligados, o sagrado e o secular, santificando a experiência do
dia-a-dia e as pessoas comuns. Ele começou a ensinar às pessoas como conci-
liar, como indivíduos e como comunidades, autoconstrução e esquecimento
de si. Contudo, como qualquer forma de liberação espiritual e social, ele con-
tinha um perigo.
O perigo residia e reside na relação ambígua do halakhah com o pacto
de Deus e com o conflito sempre inacabado entre idolatria e iconoclasmo.
O culto do direito pode manifestar o pacto, ou pode ocultá-lo. Ele pode
estimular a disputa entre idolatria e iconoclasmo, ou pode congelá-la. Ele
pode ocultar o pacto e congelar a disputa colocando um sistema de regras -
exigente porém contido - no lugar incontível de uma experiência pessoal: a
analogia vivida entre as demandas insaciáveis que as pessoas fazem umas às
outras, e as demandas insaciáveis que Deus e o homem fazem um ao outro.
Essa insaciabilidade dupla encontra sua única resposta efetiva na aceitação
mútua, e na aceitação de nossa vulnerabilidade à recusa de aceitação por
outras pessoas. Regras e rituais podem ajudar a preparar o palco em que
podemos viver essa ambição menos perturbados por medo e injustiça e com
maior clareza de intenção e expressão. Contudo, as pessoas podem começar
a acreditar que, se ao menos seguirem ao máximo as regras, estarão espiri-
tual e socialmente seguras. Eles podem colocar a conformidade ao direito
no lugar da sensibilidade às pessoas e a Deus, mantendo tanto Deus quan-
to as pessoas atrás de uma cortina de práticas rotineiras. Assim, a obediência
ritual ao direito pode ela mesma tornar-se uma forma de idolatria, impe-
dindo Jacó de lutar mais diretamente contra Deus. Logo, mesmo para os

225
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

ortodoxos, ou para os ortodoxos principalmente, o problema do iconodasmo


e da idolatria pode vir a parecer uma provação do passado.
Durante o longo período de catástrofe e reagrupamento que seguiu da
diáspora à quase exterminação da população judaica européia nas mãos dos
nazistas, os judeus tiveram um motivo para a estrita devoção ao halakhah.
O direito sagrado permaneceu um elo de lembrança e identidade, ligando
os judeus uns aos outros e à sua história e, assim, pelo pacto, também a
Deus. Dentro da religião ortodoxa dos rabinos, uma prática viva de comen-
tário e diálogo desenvolveu preceitos para todos os domínios da vida em
sociedade, informando analogias com concepções (ao mesmo tempo que evi-
tava elevação conceitua! desenfreada) e encontrando razões onde parecia
haver somente acidentes. Fora da religião ortodoxa, no ambiente do
iluminismo europeu e de suas conseqüências, reformadores e críticos invo-
caram interpretações amplas do direito a serviço de uma tentativa de revelar
o núcleo racional e ético dentro da casca de regra e ritual. Esses humanistas
desmistificadores da religião estão para o aparato da ortodoxia moderna
como os fariseus estão para os saduceus. Assim, dois empreendimentos
divergentes se iniciaram, um conduzindo para o interior, em direção à
conformidade com o direito tal como desenvolvido pela prática rabínica;
o outro para fora, em direção à tradução do vocabulário do halakhah numa
linguagem moral ligada às preocupações da humanidade moderna. Cada
um desses empreendimentos se distanciou a seu próprio modo da fonte
original de energia religiosa. Tanto o judaísmo reformado quanto o sio-
nismo prometeram, em seus primórdios, se manter próximos daquela
fonte, mesmo à custa de inequívoca dessacralização do direito. Não obs-
tante, cada uma delas se voltou, posteriormente, ao caminho mais fácil da
interpretação ampla do direito a serviço da convergência com o humanis-
mo secular.
Agora, contudo, há esperança de que a época das catástrofes na história
judaica possa estar chegando ao fim. Deus pode portanto estar prestes a
enfraquecer as bases para a centralidade do halakhah. A tarefa, como Jesus
de Nazaré e outros "judeus marginais" afirmaram de tempos em tempos,
não é destruir o direito, mas realizá-lo - o direito do Sinai e dos profetas em
vez do direito dos midrash e rabinos. Realizar o direito é colocar o amor de
Deus e o amor das pessoas no centro; é abrir-nos a todas as formas de en-
tendimento profético da transcendência da pessoa, feita à imagem de Deus,
sobre a condição finita, bem como das condições de conciliação entre as
pessoas. Não sabemos quem esses profetas poderiam ser nem a língua que

226
PROFECIA E PROSTRAÇÃO NO PENSAMENTO JURÍDICO

falariam. Mas, mais uma vez, nunca sabemos antes de acontecer. Filósofos
judeus contemporâneos não disseram outra coisa. Mesmo eles, contudo,
foram relutantes em extrair as implicações perturbadoras de seu ensinamento
personalista para o culto do direito. À objeção de que perseguir essas impli-
cações seria inventar uma religião diferente, a resposta é que a dialética
permanente da idolatria e do iconoclasmo à luz do pacto é a religião, se
alguma coisa o é. Numa religião histórica, quando a história chega ao fim,
profecia e lembrança voltam-se juntas para a aceitação sincera do presente,
e a fé dá lugar à visão.
De nobis fobula narratur. Todos nós assumimos o lugar dos judeus numa
história como essa. A aliança entre o culto do Estado e a crença numa ordem
moral latente transformou nossa compreensão do direito mais num escudo
contra as forças subversivas, transformadoras e redentoras do experimentalismo
prático e da liberdade individual, do que num instrumento para seu desen-
volvimento na vida institucionalizada da sociedade. Contudo, podemos baixar
o escudo e transformá-lo em algo diferente. Nossa época de dificuldades nunca
termina. Não obstante, a paz duradoura e parcial está lentamente destruin-
do muitos de nossos pretextos para a idolatria de nossas instituições e para
sua representação idólatra no pensamento jurídico e na economia política.
Embora os caminhos institucionais e imaginativos pelos quais as forças cons-
trutivas podem se desenvolver sejam sempre contestáveis e divergentes, eles
também são, como mostra a discussão anterior sobre futuros alternativos da
democracia, específicos. Sua particularidade e sua ligação de volta a nossa cir-
cunstância atual, por inúmeros passos de transição, permite-nos imaginá-las
como direito e empreendê-las como política.

O realista e o visiondrio

Os juristas representaram o direito como a razão codificada nos feitos e


sonhos do poder assim como economistas viram economias de mercado
reais e seu direito como aproximações a um sistema puro de racionalidade e
reciprocidade. Eles cantaram para ganhar a vida, cantando acorrentados.
Esperança e entendimento podem, não obstante, ter successo onde indig-
nação e adoração da história falharam, e arrastar os juristas e economistas
para a tarefa de dar olhos e asas à imaginação institucional.
Nossos interesses e ideais permanecem pregados à cruz de nossas estru-
turas. Não podemos realizar nossos interesses e ideais mais plenamente,

227
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

nem redefini-los mais profundamente, até que aprendamos a refazer e


reimaginar nossas estruturas mais livremente. A história não nos dará essa
liberdade. Devemos conquistá-la no aqui e agora do detalhe jurídico, do
constrangimento econômico e das preconcepções que anestesiam. Não a con-
quistaremos se continuarmos a professar uma ciência da sociedade que reduz
o possível ao real e um discurso sobre o direito que unge o poder com pieda-
de. É verdade que não podemos ser visionários até que nos tornemos realistas.
É verdade também que para nos tornarmos realistas devemos nos transformar
em v1S1onários.

228
ÍNDICE REMISSNO

A preconceito contra a analogia 80-1


abordagem funcionalista do direito 152-6 problemas políticos 131-2
abordagem histórico-cultural do direito racionalismo e historicismo 214-6
156-8 reformismo conservador 70, 103-5
Abraão 224 reformismo progressista pessimista 70,
ação coletiva 46 105-7, 117-23
agências administrativas 48 sistema de direitos 85-102
agentes econômicos, riscos 61 terapia social 107
agricultura, direitos de propriedade 162 antidiscriminação 113, 115, 117, 125,
Alemanha 126, 136 130, 164
alianças de grupos 168 aparência física
altruísmo 196 classificação suspeita 109, 113, 115, 118
análise econômica, política pública 39 grupo marcado [ascriptive group] 118
análise jurídica 9, 36, 87 Aristóteles 208
adjudicação 141-7 Ásia oriental 15 5
como imaginação institucional 40, 41, associações de vizinhança 18 5
159-65, 207, 219 Áustria 126
decisão judicial 138-41 autogestão 183, 195
limites 51-3 autogoverno popular 146, 147
mudança institucional 52, 53
racionalizadora, ver análise jurídica B
racionalizadora banco central 62
redirecionamento 207 bemconium74
modelos teóricos 89-90 bem-estar 128
poder de revisão 89-90, 97-9 corporificação 65
análise jurídica racionalizadora 10, 53, 54, bem-estar, Estado de 20, 26, 43, 123, 126,
70, 71,149,158,161,207,210 Brasil 18
antiexperimentalista 57-8 Brown v. Board ofEducation 120
antiinstitucionalismo 125 budismo212
arbitrariedade 100-2 burocracia 130
difusão 55-7
disparidade racional 116
economia política corporativista 129
e
campanha política, financiamento público
momento da 65-9
177,200
papel do juiz 134-47
capital intensivo, indústria 123
pluralismo de grupos de interesse e
capital, descentralização do acesso 178
72-9

229
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

China 18, 154 D


cidadão, análise jurídica 141 damnum absque injuria 61
ciência jurídica do século XIX 59-65, 70, danos de concorrência 61
80,84,94, 156,203,210 democracia 87, 95
ciência social, e mudança institucional 11-2 common law e 143
classe criação do direito 136-8
desvantagens 113 desconforto com a 95-6, 100
realidade social 118 econômica 105
classe média 176 expressão institucional 17
classe trabalhadora 26, 113, 117, 123 futuros alternativos da democracia 207
homem trabalhador branco 120, 126 inovação institucional 27-9
industrial 168, 175 maioria 86
vulnerável 123-4 radicalização 17 6
classe trabalhadora masculina branca, representativa 13, 43, 57, 77, 104,
política de grupismo 120 127,159,163,179,196,209
classes sociais, Europa 94 democracia mobilizacional 198-9
classificação suspeita 109,111,113, 115 direitos e instituições 199-201
coação econômica 145 experimentalismo social 201-4
codificação, direito 56, 136 natureza humana 205
common law 56, 83, 92, 135, 143, 149 democracia representativa 13, 43, 57, 77,
comunidades 127 104, 127, 159, 163, 196, 209
confederação 181 forma institucional 179
comunitarismo democracias industriais 9, 13,141,175,218
corporativista 182 alianças sociais 168
liberal 181, 186-90 arranjos sociais 36
comunitarismo liberal 181 cidadão médio, raiva e impotência 106
problemas 186-90 estrutura de classes 25-7
conceitualismo 60 formas jurídico-institucionais 17, 213
concorrência econômica 166 males 107
cdnflito ideológico, sociedade 86 depósitos bancários, seguro 62
conflitos, grupos de interesse 72 descentralização
consenso 27, 200 desigualdade 187-90
conservadorismo institucional 103, 176, 218 poder 183, 184
constituição desemprego 22
Estados Unidos 107 desenvolvimento econômico, teoria 37
Due Process Clause 108 desigualdade e descentralização 187-90
conta social 26, 172 determinismo, social e histórico 19
contrapolítica do ressentimento 119 Dewey, John 45
contrato de trabalho 42 direita, diferenciada da esquerda 166-7
contrato social 127, 128, 129 direito 9, 227, 228
controle societário, público e privado 154 abordagem funcionalista 152, 156
corporativismo 22, 126-31, 172 abordagem histórico-culturalista 156-8
comunitário 182 consuetudinário 13 5
costume 145 contemporâneo 41-4
sociedade tribal 8 8 democracia mobilizadora 199-201
crescimento econômico 129 dualismo na economia política 123-31
cristianismo 83, 212, 224 Estado 220-2
crítica, relação entre instituições e ideais genealogias 87-9, 91-7
160-5,216,218,219

230
ÍNDICE REMISSIVO

interpretação construtiva 60, 146 E


interpretação judicial 136 economia, inovação institucional 23-4
judaísmo 224-7 economia de mercado 13, 42-3, 57, 61, 104,
poliarquia radical 183-5 122,127,189,209
políticas e princípios 53-5, 68, 74-7, democratizada 26, 27
90-1, 96, 100-2, 106, 148,220 efeitos desniveladores 20
reformas 68, 69 formas institucionais 17, 23-5, 38, 62,
socialdemocracia ampliada 170-4 112, 154
teoria abrangente 15 8 formas legais 112, 178,
teoria pura 151-2 livre 215
direito consuetudinário 135, 144, 221 livre de constrangimentos estatistas 20
direito, criação/produção do 74, 136, 137 economia institucional, inexistência 37-40
ditadores 88 economia mista 163
direito criado pelos juízes 56, 92, 143 economia política 36
direito do trabalho 29 corporativista 126-31, l 72
direito dos contratos, contratual 19, 27, 29, dualista 123-5, 129-30
122,154,210 economias de comando 130
direito hindu 149 economias de escala 122, 178
direito islâmico 149 educação
direito judaico 126, 223-7 acesso 202
direito legislado 56 continuidade, oportunidades e
direito natural, doutrina 202 treinamentos contínuos,
direito público 27, 43, 128, 175, 177, 185 reeducação contínua 172, 20 l
direito romano 221 hierarquia 122
direito societário, sociedade 27, 122 igualdade perante a lei l 08-11
direitos 41-3 elites
adquiridos 172, 192-3 criação de direitos 92, 13 7
condições práticas do gozo efetivo democracias industriais l 07
dos 44 grupos marginalizados 118
conflitos l 89 empreendimentos 23
corporificação dos 6 5 emprego
frustração 47, 48-9 regulação de emprego 42
fundamental 174 vitalício, sistema japonês 156
gozo efetivo dos 52, 111, 134, 218-9 empresários, autônomos 25
obstáculo arraigado ao gozo efetivo 146 empresas públicas 178
rigidez 202 empresas tipo distrito-vila 154
sistemas de 85-6, 98, 102, 154 energia política, socialdemocracia
direitos da mulher 121 ampliada 177
direitos humanos 201-4 Escandinávia 126,
direitos sociais 126, 127-8, 129 escolas, dessegregação racial 11 O
doutrina da ação estatal 64, 110, 1 q,, 112 escravidão 115, 124
doutrina jurídica estrutura de classes, democracias industriais
indeterminação radical 148 25-7
reinterpretação tática 70-1 esquerda, diferenciada da direita 166-7
Durkheim, Émile 182 Estado
forte 189
como um esquema para o benefício de
elites 106

231
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

estado de direito 85-7, 102, 116, 136 japonês 157


Estados Unidos 220 privilégios 128
direito criado pelos juízes 56 produção de massa 123, 124
economia política dualista 123-5 segmentação hierárquica 121
estrutura de classe 25 segmentada 29
judiciário 49 sindicalização 18
mercado de trabalho 22 formalismo 60
níveis de engajamento político 32 França 56, 126
reformismo progressista pessimista 107 "freios e contrapesos", política de 28
transformação institucional 45 funcionários administrativos 25, 26, 113,
estruturas institucionais, do impasse ou do 117,176
consenso 200
estruturas paralelas 18 5
G
execução complexa 46-7, 67-8
garantia de emprego 22
agentes 46
generosidade 196
experimentalismo democrático 16-1, 22, 26,
governo local, fortalecimento do poder 183
27,218
governo parlamentarista 28, 48
disciplinas instrumentais 36-40
Grande Depressão 173
ordem moral latente 222-3
grandes corporações, como um esquema
pressupostos socioteóricos 31-5
para o benefício de elites 106
experimentalismo social 201-4
grupismo, política de 115, 118-20, 125
explicação de estruturas profundas do
grupos
direito 152-6
formas de vida 186
explicação evolucionista 152-6
organizações intermediárias 173, 200
externalidades, direitos de propriedade 61
grupos de interesse, negociação 126
grupos de interesse, pluralismo de 65, 72-79
F análise jurídica racionalizadora 72-9, 87
falência, Lei de Falências americana 61, 62 gubernaculum 96, 135
famílias 186, 217 Guerra Civil 115
feminismo, movimentos 121, 147
fetichismo estrutural 15 9 H
fetichismo institucional 16-8, 33, 36, 159,
Habermas, Jurgen 214
203,204
halakhah 225-6
tese da convergência 18-21
Hart, H. L. A. 148, 151
filosofia política 167
hegelianismo 19, 36, 94, 97, 100
possibilidade institucional 12-5
herança privada, substituição 26-7
filósofos radicais 36
historicismo 207-8, 211-3
firmas/ empresas
abordagem histórico-culturalista do
competição cooperativa 171, 178,
direito 156-8
183, 185, 196, 200
racionalismo e 214-9
empresas pequenas 195
Holmes, Oliver Wendell, Jr. 41
falência 61, 62
homossexualidade, política 114
propriedade dos empregados,
humanismo secular 226
empresas 192, 194
recuperação seletiva 63
reestruturação 23 I
força de trabalho iconoclasmo 224, 225, 227
dois níveis 127, 192 idade, classificação suspeita 109, 111, 113

232
ÍNDICE REMISSIVO

ideais jurídicos, relação aos fatos sociais 68-9 J


ideais e interesses 14, 132, 15 9 Jacó 225
identidades coletivas 34-5, 217 japoneses 156, 157
ideologia, legitimação 75 Jefferson, Thomas 45
idolatria 224, 225, 227 Jhering, Rudolfvon 41, 156
Igreja católica 182 judaísmo 83
igualdade de oportunidade 178 judaísmo reformado 226
igualdade perante a lei 108-6, 125, 130, 164 judiciário 68
como reformismo progressista federal 120
pessimista 117-23 intervenção estrutural 48
imigrantes 127 juízes 95, 96, 126
imposto sobre consumo 171 como julgar 141-7
independência individual, democracia e 16 papel, contexto histórico 134-6
indivíduos tarefa jurisdicional 136-41
escolhas livres 43 jurisdictio 96, 135
projetos de vida 170, 179, 208 juristas 56, 58, 64, 69, 95, 132, 136, 139,
individualismo, radical 174 140, 163, 215
indústria justiça
capital intensivo 123, 192 distribuição 13
reconstrução pós-fordista 168 princípios de 13
inferências dedutivas 81
instituições
democracia mobilizadora 199-201 K
estrutura 121 Kelsen, Hans 148, 151
exame rigoroso 66 kenosis 158
futuros alternativos l 66-9 Keynes, J. M. 39
mudança 93, 105 keynesianismo 51
poliarquia radical 183-5 Kierkegaard, Soren 224
práticas e l 4, 132, 159
reconstrução 119, 223 L
seleção natural 15 5 liberalismo 173
socialdemocracia ampliada 170-4 clássico 18 8
interesse coletivo, legislação 76-7 conservador 184
interesse público 66, 75-6 progressista 207
interpretação constitucional 78 século XIX 28
intervenção estatal liberdade de expressão 174
intolerância 20 liberdade pessoal 222
legitimidade 66, 127 literalismo, interpretação do direito 56
rejeição 123 lochnerismo 64, 108, 161
intervenção estrutural, agentes de 48-50
Isaac 224
islamismo 83, 224 M
Itália 126 Mansfield, William, 1st Earl 80
Iugoslávia, regime de autogestão 195 mão-de-obra intensiva 123
ius commune 134 mão-de-obra treinada 22-3
mapeamento e crítica, estrutura institucional
160-5, 216
Marx, Karl 19, 152

233
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

marxismo 12, 19, 25, 36, 152, 189 orientação sexual


medidas judiciais estruturais (strnctural grupos marcados [ascriptive groups] 118
injuctions) 46- 7 classificação suspeita 10 9
meio de comunicação, acesso 174,177,200 predisposições adquiridas l 14
mercados de capitais 162
mercados de trabalho, flexíveis 22 p
mobilidade social, de operários para
padrões de vida, hierarquia 171
funcionários administrativos 25, 113
Países Baixos 126
mobilização política
pandectismo 56
nível 200
partidos democrata-cristãos 184
popular 28
pensamento jurídico 9, 38
moeda, monopólio público 62
antidiscriminação 125
monoteísmo 223-4
antiexperimentalista 134
Montesquieu, Charles de 41
desenvolvimento 41-5, 167-8
morais, expectativas 144
direitos públicos e privados 189
moral latente, ordem 220-3
estrutura argumentativa 99-100
moral, julgamento, raciocínio analógico e 82
história 220
moral, risco 62
petty-commodity production 19 5
moral, sensibilidade e mudanças 212
Platão 208
movimento dos direitos civis 120, 147
plebiscito 177, 200
mudança estrutural, 11
poder, descentralização 183-5
mudança social, rotina e revolução 32-3
poliarquia radical 181-2, 201
mulher, classe profissional de negócios
descentralização e desigualdade 187-90,
113, 117
direito e instituições 183-5
problemas 186-90
N reconstruída 195-7
nacionalismo 34 trabalhadores/ empregados de
natureza humana 205-6 empresas 130, 183, 185, 190-5
natureza humana como dado 31-2 política
negociação, grupos de interesse 72 menor 174, 179-80
negociações coletivas 42 retirada da agenda 201-4
negros políticas fiscais
classe profissional e de negócios 113, redistribuição 67
117 transferência 44, 52, 70, 139, 167
nação africana separada 118 preços, rigidez de l 72
neoliberalismo 19 presidencialismo, estilo norte-americano
New Deal 33, 51, 96, 100 28,48
núcleo rural familiar 162 primeira emenda 110, 111
privadas, escolas l 09-11, 122
o privado, direito 27, 30, 38, 43, 66, 94, 128,
operários 25, 26, 113, 117 175,185
organização industrial, pós-fordista 20 privados, arraigamento dos direitos 64
organizações privatização 19
descentralizadas 186 Leste Europeu 18
formas associativas 177, 184 processo jurídico 134
intermediárias 173, 179, 200, 201 processo legal devido 108
produção em massa 123, 124 ,168

234
ÍNDICE REMISSNO

profissionais, políticos 28 reorganização de empresas segundo o


profissional e de negócios, classe 25, 110, "Chapter 11" da Lei das Falências norte-
113,117,122,175 americana 61, 62
progresso material, democracia e 16 reorganização econômica 167
propriedade, direito de 19, 105, 122, 154, revisão judicial 75
155,210 rigidez constitucional 202
conflito entre 60-3, 189-90 riqueza, imposto sobre 171
desagregação do 185, 191, 200-1 risco, agentes econômicos 61
exceções 162
natureza jurídica 20
uansformação 24
s
Santi Romano 182
unitário/unificado 130, 167
Sargentich, Lewis 46
propriedade, herança 170
Savigny, Friedrich von 221
propriedade privada 122
Segunda Guerra Mundial 173
provisão social 170, 173
seguro, depósitos de banco 62
pública, escola (EUA) 109-11, 122
serviços, mão-de-obra intensiva 123
sexo
R classificação suspeita 109, 113
raça 181, 186 diferenças 119
classificação suspeita 109, 113 grupo marcado [ascriptivegroup] 118
diferenças 119 preconceito 124
grupo marcado [ascriptivegroup] 118 sicutere60
preconceito 124 sindicalização tradicional 29
racial, dessegregação - escolas 11 O sionismo 226
racial, segregação 120 Smith, Adam 19
raciocínio analógico 53, 54, 80-4, 101, 142-7 socialdemocracia 67, 70, 126, 207-8
orientado contextualmente 142-7 clássica 178
raciocínio jurídico 86, 138 ampliada 166-80, 198, 201
racionalismo 213 versão liberalizada 20
deflação 207-11 partidos 178
historicismo e 214-9 reconstrução 32
pré-moderno 208 compromisso 12, 51-2, 139, 173
Rawls, John 214 socialismo 23, 43
reconstrução, Guerra Civil e 100, 115 sociedade
recursos, descentralização do acesso 178 conflito ideológico 87
redistribuição 166, 193 estrutura institucional 160-3
referendos 177, 200 grupos mais fi:acos 106
reforma social 108 sociedade civil 20, 27, 57, 115, 122, 130,
dessegregação racial 11 O 188
reformismo conservador 70, 103-5, 107, 131 livre 43, 104, 127,215
reformismo pessimista progressivo 70-1, inovação institucional 29, 30
105-7, 210 organização 201
igualdade perante a lei como 117-23 direito público 177
regras e direitos 42 reorganização 184
Reino Unido, escolas particulares 111 formas institucionais 17, 27
religião 181, 186 sociedade de classe 11 O
desmistificação 226 sociedade industrial 163
grupo marcado [,w:riptive group] 118 sociedades tribais, costume 88

235
O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

subclasse, classe inferior 106, 113, 117-8, trabalhadores desqualificados 113


121-2, 123,124,168 trabalhadores, auto-administração 130-1
subsidiariedade 130-1, 184 tradição romano-germânica do direito 56, 149
sufrágio, qualificações para 28 treinamento 172
suprimentos de guerra 162 Treuhandgesellschaft 63
tribalismo 186-7
T tributação 122, 123
teoria do direito, análise jurídica consumo 171
racionalizadora 9 5 redistributiva 123
teoria do processo jurídico de Hart e Sacks, tributos/impostos indiretos 120, 171-
textos 96
teoria econômica 151 V
teoria jurídica 64, 213 valor agregado, imposto de 171
tese da convergência, fetichismo vida social, formas de 209, 221
institucional 18-21 voto obrigat6rio 177, 200
trabalhador, controle do 131, 183, 185, 190-5
trabalhadores
permanentes e temporários 121
w
relativamente privilegiados 29 Washington, consenso de 19

236

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