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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura

Carnaval, uma festa democrática? Discussão sobre segregação social


e o direito à cidade a partir do universo carnavalesco do Rio de Janeiro

¿Carnaval, una fiesta democrática? Una discusión sobre la segregación social


y el derecho a la ciudad desde el universo carnavalesco de Río de Janeiro

Carnival, a democratic festivity? Discussions about social segregation


and right to the city in the carnival universe of Rio de Janeiro

Thaís CunegattoI

Resumo:

Palavras chave: O objetivo deste artigo é discutir o carnaval carioca enquanto uma
festa urbana nacional, um patrimônio imaterial e uma política pública
Carnaval que aciona identidades sociais e se constrói e reconstrói na medida
em que o Brasil e a cidade do Rio de Janeiro se transformam. O texto
Identidade nacional inicia sua discussão partindo da premissa que o ritual carnavalesco
das escolas de samba se constitui em um universo urbano que
Política pública
engendra relações entre o poder público e as camadas populares
Agência para a posteriori discutir os processos de segregação urbana ligados
à construção de uma identidade nacional. Por fim, o artigo busca
Festa popular refletir sobre as múltiplas dimensões de poder dadas num processo de
oficialização e patrimonialização de uma festa, bem como os intensos
processos de negociação e agência intrínsecos das relações entre
poder público e as camadas populares que vivenciam cotidianamente
o carnaval há gerações.

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Resumen:

El propósito de este artículo es discutir el carnaval de Río de Janeiro Palabras clave:


como una fiesta urbana nacional, un patrimonio inmaterial y una política
pública que desencadena las identidades sociales que construye Carnaval
y reconstruye la medida en que Brasil y la ciudad de Río de Janeiro
cambian. El texto comienza su argumentación partiendo de que los Identidad nacional
rituales carnavalescos de las escuelas de samba constituyen un universo
Política pública
urbano que engendra las relaciones entre el gobierno y las clases
trabajadoras, para despues discutir sobre los procesos de segregación Agencia
urbana vinculada a la construcción de una identidad nacional. Por
último, el artículo busca reflexionar sobre las múltiples dimensiones de Fiesta popular
poder dadas en el proceso de formalización y patrimonialización de la
fiesta, así como los intensos procesos de negociación naturales de las
relaciones entre el gobierno y las clases trabajadoras que diariamente
experimentan el carnaval durante las generaciones.

Abstract:

Keywords: The objective of this essay is to discuss about the carnival from Rio de
Janeiro as a national urban festivity, intangible cultural heritage and also
Carnival a public policy that actuates social identities, building and rebuilding
itself as Brazil and the city of Rio de Janeiro changes. The essay starts
National identity its argument from the premise that the samba school’s rites of carnival
constitutes an urban universe that creates relations between the public
Public policy
power and the popular masses and a posteriori discusses about the
Agency process of urban segregation connected to the development of a national
identity. Lastly, the essay will reflect about the multiple dimensions of
Popular festivity power given in the process of officialization and patrimonialization of a
festivity as well as the intense processes of negotiation and agencies
inherent to these relations between public power and popular masses
that experience the carnival for several generations.

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dade carioca à época. Esse é um mo-


mento crucial, quando o carnaval ganha
Carnaval, uma festa democrática? notoriedade e começa uma trajetória
Discussão sobre segregação social e que o fará ser concebido como o “maior
o direito à cidade a partir do universo espetáculo da Terra”.
carnavalesco do Rio de Janeiro
De acordo com Maria Goldwas-
ser (1975, p. 11), desde o surgimento
Contextualizando o nascimento e a con- das escolas de samba até a consolida-
solidação das escolas de samba cario- ção do carnaval enquanto festa popular
cas no universo sociopolítico brasileiro oficializada e subvencionada pelo Esta-
do, inúmeros processos de adesão às
A criação das escolas de samba exigências governamentais, que iam ao
é parte do processo de urbanização das encontro aos processos de moderniza-
festas populares brasileiras e seu surgi- ção e, consequente “limpeza” e “orde-
mento pode ser pensado como a concre- nação” marcam as transformações do
tização – lúdica, festiva - do processo de carnaval visto, até então, como uma
urbanização da cidade do Rio de Janei- anti-festa caótica a uma empresa buro-
ro. Assim como a cidade, a festa carna- craticamente organizada.
valesca no contexto carioca passou por
processos que visavam aproximá-la do O primeiro concurso de escolas
modelo civilizador europeu. As ideias de samba ocorreu em 1929 e marca uma
de modernidade e de progresso cons- tentativa de conter a folia das ruas, de
tituíam fortemente o imaginário político restringir o espaço da festa com a utili-
da época. Neste sentido, as palavras zação de cordas e de cavalos, a fim de
inscritas na bandeira brasileira “Ordem diminuir o caos festivo de outrora e im-
e Progresso”, serviam de lema estatal e por a ordem na festa carnavalesca. Esse
foram colocadas em prática no processo processo de construção de uma festa
de constituição de uma identidade brasi- mais “deglutível” aos olhos governamen-
leira. O carnaval, elemento festivo cons- tais é marcado, como assinala Maria
titutivo desta identidade, assim como di- Isaura de Queiroz (1992), pela invenção
versas outras instâncias da vida social, de uma tradição, evento esse explicitado
passou por medidas de “regulamenta- na criação da ala das baianas em 1932,
ção” e ordenação impostas durante o que tornava obrigatória a lembrança da
governo Vargas. origem africana do samba enquanto fe-
nômeno festivo e social.
O samba moderno é aquele ca-
racterístico das escolas de samba. De O processo de adesão às normas
acordo com Farias (1995) o ritmo é fru- do Estado, tais como a criação de espa-
to daquilo que José Murilo de Carvalho ços de contenção, tornam possível, em
chama de “pequena África carioca”. Ou 1935, a oficialização por parte do gover-
seja, o autor em questão refere-se a um no federal da festa carnavalesca. Farias
fluxo de imigrantes, oriundos da Bahia, (1995) destaca que o carnaval carioca
em sua maioria descendentes de africa- se torna nesse período um “fato social
nos mulçumanos, que reelaboram sua total”, evocando o pensamento maussia-
música e sua religião através da criação no (2003). Cabe salientar que durante o
dos “ranchos”. Os “ranchos” tiveram seu Estado Novo, período ditatorial instau-
ápice quando se deslocam para a Praça rado por Getúlio Vargas, o nacionalismo
XV, considerado o território da moderni- era um valor exaltado e a construção de

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um orgulho nacional era vivenciada em ra popular, no qual as empresas e as


várias esferas da vida social. casas noturnas tiveram um papel de-
cisivo. Este período coincide com uma
Em 1930, as exigências do gover- forte influência do movimento intelec-
no federal às escolas de samba eram tual modernista, que evocava o primi-
coerentes com os valores defendidos tivismo originário da nação brasileira.
por uma sociedade capitalista industrial, Esses ideais vão ao encontro da cons-
ou seja, o modelo de sociedade ao qual trução de uma identidade brasileira
o Brasil se transformava nessa época. atrelada à noção de mestiçagem, e que
As imposições contribuíam para afas- encontram no carnaval das escolas de
tar o carnaval carioca de suas origens samba, uma série de elementos que
africanas e populares, a tal ponto que os corroboram o discurso identitário de
jurados selecionados para a avaliação um Brasil constituído na e pela mistura
do concurso não eram mais pertencen- harmônica das três raças II.
tes às camadas populares e subalternas
nas quais o carnaval teve sua origem, É um período contraditório atra-
mas pertenciam a uma elite intelectual vessado por momentos de adesões, de
oriunda das classes médias. resistências, de confrontos, enfim, de
negociações, onde se trava uma bata-
Nestes termos, os carros alegó- lha entre o carnaval enquanto expres-
ricos, a comissão de frente, o desfile são artística e popular e a necessária
dividido em alas, enfim, todos esses resposta às exigências dos diferentes
elementos são pertencentes ao carna- patrocinadores, sejam eles ligados aos
val das Grandes Sociedades, de certa governos, às empresas privadas, ou
forma, impostos às escolas de samba. mesmo, à contravenção. Portanto, é
A adesão por parte das escolas aos te- nesse ínterim que se configura e se for-
mas nacionalistas inculcados pelo go- ja o “maior espetáculo da Terra”.
verno federal, bem como os processos
de censura a determinados temas evi- A figura do bicheiro, do mecenas,
denciam a dinâmica de patrimonializa- aparece com força desde o período da
ção da festa carnavalesca carioca, que criação das escolas de samba. Não à toa
mais tarde tornar-se-á um patrimônio a figura de Natal se sobressai, conhecido
nacional brasileiro. por suas atividades com jogo do bicho e
mecenas da tradicional Portela, ganha o
De acordo com Monique Augras apelido de “patrono da alegria”. Investir
(1993), em 1939 foi criado o Departa- no carnaval carioca torna-se uma forma
mento de Imprensa e Propaganda (DIP), de obtenção de reconhecimento, ou ain-
cujo objetivo era regularizar as normas da, de prestígio político e econômico.
carnavalescas. Neste regulamento,
como tentativa de contenção à chama- O reconhecimento do carnaval en-
da expansão comunista, o maior temor quanto festa nacional não garantia o fi-
do período da Guerra Fria, tornava-se nanciamento público às mesmas, o que
obrigatória a apresentação de temas ex- as tornava dependentes ao auxílio finan-
clusivamente nacionais, como forma de ceiro dos mecenas do jogo do bicho. O
combate ao comunismo pela via de um investimento dos bicheiros no carnaval
nacionalismo exacerbado. carioca possibilitava, assim, uma mar-
gem de manobra às escolas de samba,
Esta época é marcada por um que sofriam com a falta de investimento
processo de mercantilização da cultu- público durante a década de 1940.

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A proibição por parte do gover- que não apenas a comunidade carnava-


no à utilização ao espaço público antes lesca vê o carnaval enquanto um espaço
ocupado pelas Grandes Sociedades e democrático, como também, a socieda-
Ranchos, ou seja, a Avenida Rio Branco, de brasileira o percebe dessa forma. É
bem como a falta de investimento, não a partir desta constatação que DaMatta
impendiam o mesmo de utilizar o carna- (1978) formula sua hipótese do carnaval
val como uma festa patriótica e símbolo enquanto rito de unificação da socieda-
do país. Esse paradoxo entre a falta de de brasileira, que seria, por sua vez, an-
um suporte financeiro atrelado a um reco- corado nos valores das camadas popu-
nhecimento simbólico por parte do públi- lares. Vale ressaltar que esse ponto de
co, permitiu aos bicheiros desempenhar vista é altamente criticado por ignorar as
um papel fundamental na emergência e assimetrias e as violências simbólicas
na consolidação das escolas de samba apontadas acima.
na cidade de Rio de Janeiro.
DaMatta (1985) mostra que a se-
O declínio definitivo dos Ranchos paração entre a esfera pública e a pri-
e das Grandes Sociedades deu-se na vada é uma característica típica das
década de 1950. O patrocínio do jogo classes médias e altas da sociedade
do bicho fez do carnaval das escolas brasileira, que se ancora num modelo
de samba uma festa luxuosa, que cati- europeu de civilização, porém nas clas-
vou toda a população brasileira. Mesmo ses populares essa lógica não opera da
que em sua origem a festa tenha surgi- mesma maneira. O espaço da rua, para
do como uma festa popular, aos poucos, as camadas populares, pode ser visto
a elite carioca começou a participar do como uma extensão do espaço domés-
dito “carnaval de avenida”. Em 1956, as tico, fenômeno que pode ser constata-
escolas de samba conquistam a Avenida do pelas portas de suas casas sempre
Rio Branco e, posteriormente, a Presi- abertas, que convidam os vizinhos a en-
dente Vargas, símbolo da modernidade trar e a compartilhar de seus espaços de
da época e ponte situada entre a rica “intimidade”, pelos jogos de futebol em
Zona Sul carioca e a massa de trabalha- meio às ruas e nas festas de bairro que
dores oriundos do “resto da cidade”. mobilizam toda a comunidade. DaMatta,
a partir de suas reflexões inclui o carna-
A partir de 1970 o carnaval se tor- val, ao percebê-lo enquanto um ritual de
na, de acordo com Edson Farias (1995), communitas oriundo da expressão sim-
um evento cosmopolita, mais especifica- bólica das camadas populares, que faz
mente, no sentido de que os brasileiros do espaço da rua uma mistura entre a
não moradores da cidade do Rio de Ja- esfera pública e a espera privada.
neiro são interpelados a conceber a fes-
tividade carnavalesca carioca enquanto Em diálogo com DaMatta, Edson
evento nacional, ao mesmo tempo em Silva de Farias (1995) se indaga sobre
que os turistas do mundo inteiro são a extensão da esfera privada, princi-
convidados a conhecer e a participar da palmente no que tange a relação entre
grande festa nacional. o carnaval e o poder público, questio-
nando se o poder público abre, de fato,
O carnaval, nesse sentido, atua- todas as ruas da cidade para a festa
liza o mito da comunhão humana evo- carnavalesca. Na eminência de uma
cando a espontaneidade e a democracia resposta negativa, o autor afirma que as
de uma festa em que “todos” participam. ruas abertas a “todos”, as ruas destina-
Maria Isaura de Queiroz (1992) ressalta das aos turistas são aquelas conhecidas

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e vivenciadas cotidianamente por uma ção e de adequação ao mercado capi-


elite da zona sul carioca. talista onde o papel da mídia se torna
marcante e decisivo na história da socie-
Os anos 70, marcados pela dita- dade brasileira.
dura militar em quase toda a América
Latina, não foram diferentes no Brasil, O controle, a cronometragem do
coincidindo com um período de grande tempo, neste caso, é a adequação ao
investimento do capital público nas es- “tempo do consumo”. É a troca da liber-
colas de samba. O período entre 1960 dade e da flexibilidade pela norma e o
e 1980 é conhecido como um momento rigor. Nas palavras do secretário de tu-
de intensificação de acumulação capita- rismo do Estado do Rio de Janeiro em
lista, onde as escolas de samba come- uma entrevista ao jornal Última Hora em
çam a se “vender” como um produto às 01/03/1968, a extravagância do tempo
empresas privadas. O governo federal incontrolado dos desfiles tornava anti-tu-
brasileiro, ao mesmo tempo incentiva rístico o carnaval carioca, sendo assim,
a festa carnavalesca e se coloca como o controle do tempo era uma forma de
detentor do monopólio das manifesta- respeito aos turistas.
ções legítimas da cultura brasileira. É
o momento da semi-nacionalização do A televisão funcionou, nesse sen-
carnaval. Os investimentos governa- tido, como instrumento de normatização
mentais focam-se na construção de es- da identidade brasileira face à cultura
paços mais confortáveis para receber os capitalista, onde o eixo Rio de Janeiro
turistas estrangeiros e na elaboração de e São Paulo eram seus representantes
inúmeras regras e regulamentos, com o maiores. Vale salientar que a Rede Glo-
intuito de enquadrar a competição car- bo de Comunicações sempre pertenceu
navalesca e impor uma ordem à festa à elite brasileira: a rica família Marinho,
antes vista como caótica e profana. patrocinada pela ditadura militar à ser-
viço da elite brasileira, em consonância
A duração do desfile de cada es- com interesses do poder público.
cola também foi objeto de controle. Em
1971 foi estabelecido o Fundo Geral do Em 1971, ocorre a primeira trans-
Turismo, que fixa o tempo máximo de 75 missão integral do desfile carnavalesco.
minutos de apresentação por escola de Três anos mais tarde, a transmissão dos
samba. As escolas, nesse momento, são bailes de carnaval é suspendida e o foco
subvencionadas e submetidas a um con- se concentra apenas nos desfiles das es-
trato de prestação de serviço ao gover- colas de samba. Em 1976, a Rede Globo
no, dentro do qual os critérios de julga- contrata 232 profissionais que atuam den-
mento estabelecidos pelo poder público tro da avenida para a exibição do carna-
evidenciam critérios tais como a duração val carioca. Em 1988, a Rede Globo paga
do desfile, o número de participantes e a $800.000 pela exclusividade no direito de
definição de temas (que em sua maioria imagem do carnaval de avenida carioca.
exaltam o Brasil pós 1964), como eviden- Desta forma, a Rede Globo passa a cons-
cia José Luiz de Oliveira (1989, p. 69-70). truir ainda mais uma imagem hegemôni-
ca do carnaval que circula pelo mundo e
A sociedade brasileira se moder- que engendra novas paisagens de poder
nizava com a ajuda massiva do governo virtual que vende imagens sobre o país.
federal em vários setores. O carnaval,
enquanto festa urbana, também é sub- Vale ressaltar que o direito de
metido a esse processo de moderniza- imagem sobre o desfile das escolas de

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samba no carnaval carioca foi objeto de pulares), processo, aliás, em constate


disputa entre as emissoras Rede Globo reformulação e negociação. O carnaval
e Manchete, mas o grande poder eco- é, antes de tudo, uma festa que coloca
nômico e político da primeira assegurou- em evidência os jogos políticos contem-
-lhe a exclusividade. porâneos, figurando como um espaço
onde o lúdico e o político se encontram,
É preciso enfatizar que durante em um processo simbiótico que pode
os anos de 1930, para que o carnaval passar desapercebido se deslocado da
fosse reconhecido enquanto festa na- compreensão daquilo que seria próprio
cional, as escolas de samba tiveram ao contexto sociocultural brasileiro.
que passar por um processo de adap-
tação que se constituía em atenuar e,
mesmo, camuflar as origens africanas. O ritual no universo urbano
Nos 1970, o retorno da ideia de África
Negra e dos elementos do candomblé Segundo Michel Feuillet (1991),
tornaram-se necessários para a cons- o carnaval nunca foi uma festa cristã: «
trução do carnaval como um evento Christianiser ainsi la naissance du car-
cosmopolita e altamente turístico que naval reste surprenant dans la mesure
conta as origens do país. Trata-se de où l’Église non seulement n’a jamais
um período, de acordo com Cavalcanti instauré une telle festivité dans son ca-
(1999), de reinvenção das tradições re- lendrier – le carnaval n’apparaît évidem-
lacionadas às origens do carnaval. ment pas dans la temporalité officielle,
mais elle n’a pas cessé de la condamner
Percebe-se, no entanto, que o car- comme étant une manifestation païen-
naval sempre esteve ligado aos grandes ne, comme œuvre de Satan » (FEUIL-
movimentos pelos quais passou a socie- LET, 1991, p. 19). Assim, a igreja sem-
dade brasileira. Nesse sentido, refuto a pre esteve atenta a este evento social,
afirmação disseminada entre os brasilei- mesmo que nunca o tenha incorporado
ros que vêem o carnaval como um culto oficialmente em calendário festivo.
de alienação do povo, como uma prática
despolitizante, ou ainda, como uma polí- Em uma tentativa de concilia-
tica de “pão e circo” moderna. Para com- ção a Igreja Católica de Salvador, por
preender o processo de consolidação do exemplo, começa a fazer referências à
carnaval enquanto festa nacional e sob a quarta-feira de cinzas, ressignificando-a
perspectiva midiática de um espetáculo como um dia de purificação e, para tan-
cosmopolita é necessário dar-se conta to, passa a realizar uma das mais belas
da intensa negociação dos conflitos es- católicas missas do ano. Michel Agier
tabelecidos entre o Estado-nação e as (2000) narra que a missa da quarta-feira
camadas populares, que perpassa toda de cinzas é ministrada por um bispo, que
a história do carnaval carioca. insistentemente lembra aos fiéis que o
tempo dos pecados vividos durante a
Se em um primeiro olhar identifi- festa deve ceder lugar à purificação no
camos a apropriação e a domesticação período da quaresma.
da cultura popular brasileira por deter-
minados grupos, uma análise mais aten- A lavagem das escadarias da
ta desvelará a existência de um jogo Igreja é, também, um ritual de purifica-
contínuo de adesão e de resistência por ção do espaço e das pessoas que vi-
parte do Estado e das escolas de sam- venciaram a intensidade da festa pagã.
ba (representantes das camadas po- A tentativa da Igreja católica de relem-

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brar os limites cristãos é uma maneira pológico, ela está presente na grande
de restabelecer a ordem, mostrando maioria dos trabalhos sobre o carnaval.
que a religião reconhece os pecados do A utilização deste conceito não banali-
carnaval e os perdoa a seus fiéis. za tal análise, ao contrário, incentiva os
pesquisadores a decifrar o que esses
Ao inverter a ordem moral da vida rituais contemporâneos dizem sobre a
burguesa, a subversão dos valores es- vida social.
tabelece a possibilidade de uma outra
ética de vida mediante a suspensão da Vários autores têm aceito o desa-
moral cristã - que não deixa de existir, no fio de pensar o mundo urbano a partir de
entanto, como referência complementar um ritual e de seus desdobramentos. No
antagônica. É a experiência alucinatória, caso do Carnaval, pensado como um ri-
o despertar dos sentidos face à musica- tual urbano e contemporâneo, é preciso
lidade exuberante e o desejo dos cor- concebê-lo relacionado à dinâmica da ci-
pos, que restabelecem os ritos profanos dade. Embora a origem do carnaval seja
na cidade festiva como um “espaço de rural, o seu apogeu e a forma como ele
celebração” (MAFFESOLI, 1994) onde o existe atualmente encontram-se imersos
profano critica as divindades cristãs. no processo de urbanização e de globa-
lização, ou seja, no universo característi-
O carnaval é associado à celebra- co das cidades como expressão da vida
ção da Páscoa pela Igreja. Esta “incor- urbana, mais ou menos cosmopolita.
poração” foi uma tentativa bem-sucedida
de dominação e de controle sobre as de- O carnaval é o tempo de festa por
mais festas pagãs, que persistiram ape- excelência, conforme aponta DaMatta
sar do advento do cristianismo. (1979). É o momento do extraordiná-
rio, mas sempre relacionado ao ordi-
O carnaval ganhou outros signi- nário/ao cotidiano de muitas maneiras.
ficados e representações com o passar É um evento performático indicador
do tempo, pois ao longo dos anos parece de certos processos culturais, que na
ter “colonizado” outras festas (DUBOIS, percepção de seus próprios agentes
1979). A noção do tempo do carnaval foi, ocupa um tempo e espaço fora das ati-
assim, enriquecida e ampliada. Na ver- vidades diárias, distanciadas das ativi-
dade, a festa carnavalesca contemporâ- dades cotidianas (TAMBIAH, 1985). O
nea ocorre em vários lugares do mundo, carnaval age como um dispositivo de
incluindo a América do Sul e América do mudança de perspectivas que é, por
Norte, ampliando o tema da revitalização certo, promovida pela própria socieda-
ou ressurreição, da ruptura e ao mesmo de (CAVALCANTI, 2010).
tempo da adesão à estrutura social. É
um momento de communitas (TURNER, Duvignaud (1973, p. 186) ressal-
1974), fora da vida cotidiana, de “exalta- ta que o carnaval enquanto momento
ção da impertinência e do grotesco”, en- de transe permite ao homem e à co-
fim, é a história do triunfo da vida sobre letividade superar a “normalidade” e,
a morte. (DUBOIS, 1979). assim, alcançar um estado de espírito
onde tudo é possível, porque duran-
Pensar os carnavais como even- te o transe o homem não é humano,
tos rituais que jogam com o imaginário pois adere a uma natureza. O autor
social e, mesmo, com os estereótipos demonstra como o período festivo abre
de grupos sociais, não é uma perspecti- espaço para o indivíduo tornar-se ou-
va analítica inovadora no campo antro- tro, “a descoberta do outro modifica o

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sujeito que se engaja nesse confronto lista industrial. O autor ressalta, porém,
na mesma medida em que transforma os perigos desta análise que não leva
o primeiro” (1973, p. 187). Esta oportu- em conta que este processo de acumu-
nidade de se colocar no lugar do outro, lação de capital diferencia os habitan-
ou mesmo de jogar com os papéis so- tes das sociedades brasileiras de forma
ciais predeterminados revela o poder desigual e assimétrica e que as classes
transformador da festa. As celebrações baixas podem oferecer resistência à di-
carnavalescas cariocas têm um caráter fusão destas “orientações culturais pa-
urbano que permite aos sujeitos joga- dronizadas”. Neste sentido, Oliven afir-
rem, considerando diferentes aspec- ma que diferentes grupos sociais têm
tos, com suas identidades sociais. práticas e orientações diferenciadas
no que tange a “aspectos que têm con-
A cidade é o espaço onde o indi- sequências e significados diversos de
víduo desempenha suas múltiplas iden- acordo com a posição social tais como
tidades sociais. De acordo com Georg questões políticas” (1980, p. 35)
Simmel (1985), a metrópole permite
uma multiplicidade de papéis sociais Esta homogeneização também é
que são acionados em interação, por discutida por Cavalcanti (2010), quando
meio de uma lógica da modernidade a autora considera o carnaval como uma
baseada na individualidade. Neste sen- festa da cultura popular, um evento com
tido, o autor descreve os espaços urba- características populares. Problematizar
nos onde as relações são baseadas no a palavra “popular” se torna importante.
comércio e o fluxo de dinheiro envolven- Se pensarmos a dimensão do popular
do interações monetárias guiadas pela adicionada ao caráter urbano da vida
lógica e pela divisão social do trabalho, contemporânea, podemos entender que
nas quais o indivíduo é multifacetado e tal característica não pode reduzir-se a
livre para experimentar os vários aspec- condição econômica. A autora explica
tos da sua identidade, desempenhando que o popular não deve ser pensado
papéis sociais distintos. apenas em contraposição à cultura de
elite, mesmo que não possamos negli-
O carnaval é um ritual em que genciar tal ponto. Nas sociedades com-
várias identidades são ativadas e o in- plexas nas quais os atores sociais jogam
divíduo vive a experiência de colocar-se com os estereótipos e acionam suas
no lugar do outro. Durante o carnaval, o identidades de acordo com suas neces-
sujeito pode ser alguém que ele nunca sidades, a dimensão popular é também
seria na vida real. O carnaval é o mo- uma dimensão política que é revelada
mento em que as pessoas se misturam e nos conflitos sociais.
as identidades se perdem ou alteram-se
temporariamente, tornando-se, assim, De acordo com Gilberto Velho
um ritual popular que joga com várias (1994), as grandes cidades tais como o
categorias socioeconômicas: pobres e Rio de Janeiro, passaram por um proces-
ricos, e de gênero, homossexual, hete- so de modernização violento que afetou
rossexual, masculino e feminino. seriamente o sistema de valores e as
relações sociais. A expansão da econô-
Conforme Ruben Oliven (1979), mica de mercado, a industrialização, a
nos estudos das Sociedades Comple- migração e a valorização da cultura de
xas, o cenário urbano apresenta uma massa, contribuíram para o crescimento
aparente homogeneização das classes do individualismo. Nesse processo, as
sociais, devido à intensificação capita- ideologias individualistas ganharam es-

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paço ao mesmo tempo em que o cam- vão (2007), o reconhecimento do samba


po de possibilidades socioculturais, bem como um símbolo nacional aconteceu
como as alternativas e as escolhas de em dois momentos distintos da história
estilos de vida se diversificavam. Segun- do Brasil: em 1930 - no período do Es-
do o autor, as camadas populares e as tado Novo - e época do nascimento das
demais minorias começaram a ser reco- escolas de samba, durante um “pacto
nhecidas e se fazer visíveis na socieda- corporativo entre o estado e as classes
de. Dessa forma, a difusão de valores trabalhadoras” foram feitos os primeiros
individualistas significou um enfraqueci- investimentos governamentais. E em
mento das formas tradicionais de domi- 2007, quando o IPHAN oficializou o car-
nação associadas a uma visão de mun- naval como patrimônio cultural imaterial,
do hierarquizante. o que lhe trouxe mais reconhecimento e,
consequentemente, mais investimento
A noção de individualismo, já governamental que privado.
muito discutida por Simmel (1985) no
seio da sociedade moderna, aponta Michael Herzfeld (1997) mostra
para uma noção de sociedade percebi- como o Estado-nação não só dita as
da enquanto um espaço de competição regras de autoridade, mas também se
e de conflito, mas também, um espaço adapta igualmente aos atores sociais,
de sociabilidade. O conflito, nos ensina da mesma forma que os atores sociais
Simmel, desdobra-se numa forma de se adaptam à história. Herzfeld (1997)
socialização. Nesse sentido, o espaço faz uma importante reflexão sobre a re-
carnavalesco é um momento de socia- lação entre o Estado-nação e a agência
bilidade que passa pelo conflito da com- dos seus cidadãos. O conceito de “inti-
petição e, ao mesmo tempo, estabelece midade cultural” desenvolvido pelo autor,
relações de parceria e de filiação. demonstra a existência de uma barreira
protetora que os grupos sociais formu-
lam para assegurar seu espaço coletivo.
O carnaval como patrimônio: “A intimidade cultural” corresponde aos
entre o poder e o popular valores e aos códigos compartilhados
internamente por grupos sociais, que se
No ano de 2007, o Instituto do Pa- revelam somente quando já fazemos par-
trimônio Histórico Nacional (IPHAN) reco- te dessa intimidade, construída nas rela-
nheceu o samba carioca como parte do ções cotidianas. O conceito de “poética
patrimônio cultural imaterial do Brasil. É social”, crucial para pensarmos as rela-
permitido sugerir a partir da compreensão ções entre os grupos sociais com o Esta-
do contexto histórico e político – onde nas- do-nação, seria esta apresentação criati-
ceram as escolas de samba - que a no- va do grupo social, que revela e esconde
ção de patrimônio é intrínseca à formação as informações de intimidade cultural
deste gênero musical. conforme o contexto, esta apresentação
é considerada por Herzfeld (1997) como
Na década de 1930 quando o car- uma performance de grupos sociais que
naval carioca foi escolhido como a fes- geram o que eles deveriam ou não reve-
ta emblemática do país, portanto como lar sobre eles mesmos, em função do pú-
um símbolo de identidade nacional para blico que os observa.
atender os interesses políticos e ideoló-
gicos da época, a festa carnavalesca foi O conceito de “poética social” de
conduzida em direção ao título de patri- Herzfeld (1997) ajuda a compreender o
mônio nacional. Como indica Oliveira Pa- processo de patrimonialização de algu-

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mas festas de caráter popular. A poética te, porém criam-se dispostitivos e táticas
social é, assim, uma forma de agência que subvertem e traduzem esses valores
que cria táticas (Certeau, 2008) de ação universalisantes em valores locais.
e de reação de grupos sociais para deter-
minadas ações do Estado e vice-versa, Neste contexto, a noção de patri-
que tem estado presente no nascimento mônio cultural imaterial ganha sua força
do carnaval de avenida, perdurando até como um processo de retorno ao mito
a sua consolidação como patrimônio cul- original e às práticas tradicionais, para
tural imaterial. Este longo processo de resignifica-las no processo de recons-
negociação, ainda hoje presente entre o trução da identidade de uma nação. O
poder do Estado e o poder das “classes arquivo criado e apresentado para o pe-
populares” explicita o caráter político e dido de reconhecimento do samba cario-
identitário do carnaval carioca. ca como patrimônio ao IPHAN afirma os
processos de negociações com o Estado
Como sugere Jeròmê Nicolas Nação, destacando o importante papel
(2006), podemos analisar a festa car- dos “sambistas” que conseguiram obter
navalesca como Marc Abèles (2007) e o reconhecimento e a aceitação do go-
Henri-Pierre Jeudy (1990), sob a óptica verno sobre a forma de oficialização do
de um “sub-sistema político” decorren- carnaval sem “calar as formas autênti-
te do sistema social global, onde es- cas praticadas no Rio de Janeiro”, como
tudos sobre ações políticas, tensões, sugere o laudo que reivindica o samba
conflitos e relações de força e poder se enquanto patrimônio imaterial, confir-
fazem pertinentes. A festa parece-me ma a intensa participação do samba na
mais como um sistema unitário e sin- construção da identidade nacional.
gular auto-determinado atravessado de
tensões, que dispõe de autonomia sufi- O carnaval, em sua forma ima-
ciente, portanto, detentor de equilíbrio ginária, é revelado como um arranjo
e de coerência estrutural para exercer de elementos performativos que con-
“influência” a posteriori e in fine sobre o tribuem para definir uma dualidade da
sistema social global. prática do carnaval e o universo polifô-
nico em que é construído nesse ritual. A
Fábio Pavão (2012) ressalta que alegria e o prazer de jogar com as nor-
o avanço do processo de mundialização mas sociais, de reverter a lógica domi-
produziu um movimento que pode ser nante, de sublimar e substancializar as
considerado paradoxal, pois ao mesmo relações sociais, permitem que todos
tempo em que parece impor certa ho- os participantes dos carnavais – atores
mogeneização da cultura, reivindica a e espectadores – detenham instâncias
valorização de traços culturais nacionais organizadoras de forma conjunta a cria-
e locais. Stuart Hall (2006), por sua vez, rem um outro universo, projetando-o
mostra que de um lado as forças domi- para a cena pública.
nantes da homogeneização cultural ame-
açam reduzir as peculiaridades locais O momento de liminaridade do ri-
ao modelo ocidental e, particularmente, tual é propício para este jogo com a re-
àquele dos Estados Unidos. Por outro alidade social. Neste sentido, DaMatta
lado, existe o processo que tenta descen- (1997) mostra que no momento ritual há
tralizar e distanciar estes modelos oci- uma inversão de valores, uma mudança
dentais. De acordo com Hall, não há su- de regras sociais. Maria Isaura Pereira
ficiente poder para confrontar ou inibir a de Queiroz (1992), analisando o Carna-
influência exercida pelo modelo totalizan- val do Rio de Janeiro destaca que, em

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última análise, nada é invertido, “nem os Cada capital, cada cidade, cada comuni-
papéis e valores sexuais, nem as hierar- dade urbana ou rural faz acontecer o seu
quias, nem os modelos políticos”. Quei- carnaval e, assim, evidencia as particu-
roz mostra como a estrutura das danças laridades da região onde é festejado. O
carnavalescas cariocas apresentam os carnaval é, nesse sentido, um fenômeno
mesmos valores do cotidiano, mesmo festivo que fincou raízes na cultura bra-
através de paródia ou da sátira. sileira, tornando-se a sua festa nacional.
Embora a festa carnavalesca ocorra em
É importante notar que pouco im- todo Brasil, nota-se que foi o Rio de Ja-
porta se houver uma inversão propria- neiro o palco, por excelência do carna-
mente dita ou um travestimento da re- val de avenida, do carnaval espetáculo
alidade social. O objetivo do jogo com que atrai turistas do mundo inteiro, por
os imaginários sociais que são ence- consequência é o carnaval que agencia
nados durante o ritual carnavalesco é, grandes somas de subvenções governa-
de diversas formas, a construção desse mentais, e fortes investimentos do setor
espaço político e social que reinven- público, fato que aumenta ainda mais sua
ta a realidade social. Ele permite que escala e gera, ainda, mais retorno turís-
seus participantes joguem com as hie- tico para o evento. Cabe salientar que
rarquias de muitas maneiras. A criação os carnavais que não se encontram no
deste espaço liminar, discursivo e políti- eixo carioca também recebem incentivo
co, destaca os conflitos sociais ao mes- público e privado, representando enor-
mo tempo que permite a sociabilidade memente a cultura brasileira, porém foi
de diferentes grupos sociais. o carnaval carioca o eleito como a festa
que apresenta o Brasil para o mundo.
Como observado em análises de
Herzfeld, Abélès e Certeau, os atores Após tal constatação uma ques-
sociais não são totalmente sujeitos às tão surge: por que o carnaval carioca e
imposições do Estado, bem como o Es- não o carnaval de Salvador foi escolhido
tado não é indiferente às contestações como representante festivo brasileiro,
do povo. É um jogo político em que sendo que a cidade de Salvador, assim
os atores sociais tentam sempre com- como a do Rio de Janeiro, são territórios
preender as regras e as dinâmicas do de valorização e presença da descen-
imaginário, para com eles jogar bem. dência africana no Brasil?
O ritual, assim, não serve apenas para
manter uma estrutura, mas para ne- O carnaval de Salvador (Bahia)
gociar com a dinâmica desta estrutura não era conveniente enquanto símbolo
social, manifestando um momento de de uma mestiçagem harmônica, visto
crítica social onde as pessoas (em prin- que a cidade na época do Estado Novo
cípio) sem voz podem gritar. era composta por uma maioria negra,
cerca de 80% de sua população, perten-
centes às camadas populares e muitas
O universo carnavalesco na cidade do delas à margem da sociedade.
Rio de Janeiro
Tanto o carnaval de Salvador
O carnaval não é exclusivo à ci- como de o Rio de Janeiro possuem ori-
dade Rio de Janeiro, pois o evento car- gens nas festas afrodescendentes. Sal-
navalesco é uma festa que acontece por vador representou um espaço de gran-
todo o país, de norte a sul – Belém, Sal- de expressão dos “folguedos negros”,
vador, Recife, São Paulo, Porto Alegre. dos espaços festivos e folclóricos de

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intensa celebração da cultura africana, nenhum processo de reparação frente


principalmente através da música e da aos danos e as injustiças que os mes-
dança, onde as tradições africanas são mos sofreram por séculos.
exaltadas e comemoradas. A grande
concentração de negros na cidade de Refletir sobre a valorização do
Salvador evidenciava à época, a força carnaval nesse eixo Rio-São Paulo, nos
da descendência africana na cidade obriga a pensar no Brasil e suas divi-
após o período escravagista. Duran- sões políticoadministrativas. A região
te os séculos XVI e XVII grande parte Sudeste, considerada como a mais “de-
dos escravos chegavam nos portos da senvolvida econômica e culturalmente,”
Bahia e do Rio de Janeiro, e lá ficavam torna-se o epicentro do Brasil, fato este
para trabalhar nas atividades ligadas à que explica o motivo pelo qual a cidade
produção de cana de açúcar. do Rio de Janeiro é considerada a eter-
na capital nacional aos olhos do mundo,
Em 1817, o Brasil contava com mesmo que em 1960 tenha cedido o tí-
3,6 milhões de habitantes, sendo 1,9 tulo à Brasília.
milhões escravos, ou seja, mais da me-
tade da população. Em 1850, em virtu- A cidade do Rio de Janeiro se ex-
de da intensa necessidade de mão de pandiu significativamente no fim do sé-
obra para o cultivo do café na região culo XIX, nela havia mais de 800.000
Sudeste, o número de escravos africa- habitantes e, junto com eles, muitos
nos passou para 3,5 milhões. problemas sanitários, de emprego, de
moradia e, ainda, epidemias de varíola,
A influência da cultura africana se tuberculose e febre amarela assolavam
fazia presente, e se faz até os dias de a cidade carioca. No início do século XX
hoje, em todo o território nacional. As durante a administração de Francisco
raízes africanas são partes constituintes Pereira, avenidas e parques foram cria-
de nossa cultura, porém não podemos dos e uma « limpeza social » foi reali-
esquecer que Rio de Janeiro era a cida- zada. As políticas higienistas demoliram
de sede da coroa portuguesa e, posterior as casas que julgavam sem condições
capital republicana, onde os valores con- de higiene e, dessa forma, fizeram com
servadores e escravocratas eram con- que milhares de pessoas da classe po-
testados, mas também, exacerbados. A pular perdessem suas casas e fossem
cidade do Rio de Janeiro foi também o obrigadas a se deslocar para a perife-
palco dos esforços de negação dessa ria. As políticas de higienização visavam
influência relacionada à presença negra. adequar a cidade e torná-la viável à elite
Após a abolição da escravatura, durante brasileira que a praticava. Nessa época,
o período republicano fez-se necessário os valores europeus ganhavam força.
a criação de uma identidade brasileira.
A construção identitária brasileira aludia, O Rio de Janeiro torna-se um
assim, ao mito da democracia racial e centro irradiador de cultura para todas
celebrava a mestiçagem enquanto valor as outras cidades do país tornando-se
constituinte da nação. Essa eminente a porta de entrada das novidades oriun-
exaltação da mestiçagem étnica nada das da Europa, pois era através dele
mais foi que uma tentativa de silencia- que o Brasil conhecia o “exterior”. O Rio
mento e ocultação do longo período de de Janeiro passa a ser o representante
exploração sofrido pela população afro- do mundo no Brasil, ao mesmo tempo
descendente, que propunha uma união em que é o representante do Brasil no
de raças, onde negros seguiriam sem mundo, tornando-se o símbolo da bra-

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silidade tanto na esfera nacional como A multiplicidade regional das ex-


internacional. pressões culturais carnavalescas en-
contradas em todo o território brasileiro
Nessa época estar no Rio de Ja- é homogeneizada a partir do samba dos
neiro significava ser moderno. A cidade “morros” e das periferias do Rio de Ja-
aspirava ao sucesso. Para ser vitorioso neiro. O samba carioca, dessa forma, se
tanto na vida profissional como acadê- superpõe às outras festas e práticas re-
mica, as pessoas eram instigadas a se gionais. As razões pelas quais o samba
instalar na capital nacional da época. carioca, oriundo de camadas marginali-
Nesse sentido, nada mais lógico, me- zadas torna-se a imagem do brasileiro
diante um processo de construção de no exterior é também objeto de estudo
identidade nacional, que investir numa de Hermano Vianna (1995).
festa popular que, assim como a cida-
de, passou por um processo de “lim- De acordo com o autor, a partir
peza sociocultural” e domesticação, ou do governo de Getúlio Vargas um novo
seja, o carnaval carioca. modelo de autenticidade e de identidade
nacional foi forjado com base no referen-
Desta forma, tanto o carnaval ca- cial intelectual que percebia o Brasil en-
rioca como a cidade do Rio de Janeiro, quanto um território de mestiçagem, mas
tornaram-se símbolos do país, bem como também como um espaço da democra-
elementos de construção e de consolida- cia racial, como destaca Darcy Ribeiro
ção da identidade brasileira. O carnaval em sua obra O povo brasileiro (1995). O
de avenida carioca torna-se, assim, uma samba carioca confluía com os ideais de
política pública, uma manobra governa- construção identitária: numa mistura das
mental de reconstrução e de criação de raízes africanas e da colonização euro-
uma unidade brasileira a partir da domes- peia (o Entrudo), a festa carnavalesca
ticação dos extratos populares da festa se transformava no representante maior
adicionados aos elementos de grandio- do “mito das três raças”. Nesse proces-
sidade das antigas Grandes Sociedades. so, o samba carioca expressão da cul-
O processo de adaptação do carnaval tura popular urbana do Rio de Janeiro,
carioca às exigências governamentais conquista o lugar de música nacional e
torna-o mais palatável à elite brasileira, eleva o carnaval carioca também a festa
fazendo-o assim, consagrar-se como a nacional. As outras expressões festivas
festa nacional, por excelência. e musicais são levadas à uma posição
secundária e tornam-se submissas à
Segundo Fabio Pavão (2007), uma imagem homogeneizadora do sam-
a partir da década de 1940, o samba ba e do carnaval carioca (Vianna, 1995).
carioca tornou-se um dos principais
estereótipos de representação da cul-
tura brasileira, sendo incorporado à Considerações finais
indústria cultural americana, fato esse
explicitado na imagem de Zé Cario- O discurso que o carnaval é uma
ca, um papagaio sambista que apa- festa democrática é muitas vezes re-
rece nas telas de Walt Disney como petido pela comunidade carnavalesca
demonstração de uma política de boa e pela sociedade brasileira em geral.
vizinhança dos Estados-Unidos para Partindo da premissa defendida nesse
com o Brasil, fenômeno perceptível na artigo de que a análise da festa carna-
exaltação de Carmem Miranda, que valesca carioca pode servir para a com-
fez fama em Hollywood. prensão dos processos socio-políticos

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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura

brasileiros e serve como um universo CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro.


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mocracia no Brasil? No carnaval cario- ção e imagens do tempo em duas festas popu-
lares. Revista Anthropológicas, ano 14, vol.21(1),
ca, seja ele o de avenida ou o de “blo- 2010. p. 99-127.
cos”, o direito das classes populares à
cidade se estende, se amplifica, porém CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano.
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