Você está na página 1de 4

Mattos, Hebe Maria.

Das cores do silêncio: os significados da liberdade no


Sudeste escravista, Brasil século XZX. 2" ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1998.37913.

Publicado primcirainentc em 1995 da escravidão na segunda metade do


pelo Arqui vo Nacional, este trabalho skculo XIX, Mattos busca identificar
de Hebe Matos, originado em sua tese e confrontar os diferentes significados
de doutoramento, obteve o primeiro da liberdade para senhores, escravos
lugar no Prêmio Arquivo Nacional de e liber~os,com destaque para os últi-
Pesquisa ein 1993. Agora ganhou mos, e suas mediações com os meca-
nova e merecida ediyão. que vai per- nismos de controle social da escravi-
mitir sua circulaçiic~para um público dáo. Nas duas últinias partes. discute
bem maior. as expectativas senhoriais em relação
Ela utilizou uina significativa varie- a liberdade na conjuntura da iminente
dade de fontes, inerecendo destaque abolic;ão da escravidão e a movimen-
os processos crimes e cíveis do Tri- ta939 de senhores e libertos no mun-
bunal da Relac;ão do Rio de Jrineiro, do do trabalho do pós-abolição.
os inventários localizados nos cartó- Na discussão sobre os significados da
rios das cidades de Cainpos e Silva liberdade nas décadas que anlecede-
Jardim, c no Arquivo Nacional, além rain a abolição, ela pormenorizou vi-
de diversos jornais publicados em soes, de direitos senhoriais e escra-
vhrias localidades do interior fluininen- vos, fundadas em práticas produtivas
se. Com elas pode desenvolvcr um e em comportamentos circunscritos
importante trabalho que se cara leri- ;io universo soci;il da escravidão: ino-
zn pcln riqueza da problematiz;l,;ão e i-;lidade geográfica, estratificação
aciiidade da abordagem. Ela busca r.icial. direito a roça própria. acesso
dcmarcar os terinos sobre os quais So- I? propriedade, vida comunitária e
ram redefinidos os padrões de doiiii- constituição familiar, condições de
nação nos últrinos anos da escravi- pernoite fse Ièchado, ou livre) e. em
dão e no pós-abolic;ão no mundo ru- especial, a possibilidade de "viver
ral do Sudeste e, especificamente, em sobre si". Neste sentido, é interessan-
alguns municípios fluininenses. Das te notar como alguns cativos conse-
cores do ,sil~ncioesti dividido em guiram aproxiinar-se da situação dos
quatro partes. Nas duas primeiras, Ijbei-tos. quando tivei-ain acesso à ter-
delineando um cenário marcado por ra, explor-ando sua própria roça; ou,
uina crescente perda de legitimidade quando escravos de ganho, apenas
pagando um jornal pericidico ao seu colocri-10s em situaçno semelhante à
senhor, constituíi-arnurn peqiicno pe- dos colonos, passou a ser referência
cúlio; ou ainda. quando construíram para os produtores tluminenses. A lese
sólidos laços familiares que. cruza- abolicionista passou a se basear na
dos com relaçõcs verticais de paren- idéia de que a liberdade incondicio-
tesco. constituírim complexas redes nal evitaria as Iùgas em massa e per-
de solidariedade que Ihes permitiain initiria a Fixaçào do liberto nas fazen-
melhores condições de vida e, em al- das, garantindo trabalho disciplinado
guns casos, acesso à alfòrria. A auto- e aproveitanicnto da safra. A preocu-
ra mostra como o enorme crescimen- pação coin ;I safra de 1888 tcria se ge-
to dessas situaqóes, em uin contexto neralizado cle tal forma que, às véspe-
de acelerada perda de legitimidade ras da aboliqùo, muitas listas de escra-
sociiil do escravidão. possibilitou unia vos alforriados teriam sido publicadas
crescente autonornização dos movi- nos jornais pesquisados, indicando que
mentos dos escravos. Além dis ;o, vale o propósito parece ter sido a retoma-
ressaltar que neste quadro dc nobili- da do controle da situação, ou se.ja, a
dade escrava houve. gradativanente, reafirniaçáo de que a concessão da li-
quase euin desaparecimen~oda inenção berdadc era uina prerrogativa senho-
à coi- branca corno refcrênci;~i libci- rial. na expectativa de que a su-jeiqão
dade e à negra como idenlitlade ao pessoal pudesse garantir a ascendên-
cativeiro. Parece que, na medida ein cia sohre recém-libertos.'
que crescia o núinero de lihei tos, tal Para o pós-einancipação, ela tenta
associat;ão perdia seu signilicado. mostrar como as expectativas iniciais
Na discussão sobre as disputas em dos senhores, de garantir a continui-
torno da liberdade. a autora lembra o dade da produçáo e a ordem social,
desinqiie que ganhou para os produ- acabaram frustrando-se parcialmente,
tores o desenvolvimento de uma es- ein especial por causa das enormes
tratégia que garantisse a ordem social dificuldades de reestruturação das re-
e. particulaimente, a oferta de niao- laç(ies de dominaçáo. Quanto à conti-
de-obra para a lavoura. Estas preo- nuidade da pi-oduçáo. teria se confi-
cupaqões teriarn aproxirnado produ- gurado um quadro marcado, de um
tores escravistas e abolicionistas his- lado por disputas entre os senhores
tóricos, que com isso ganharam for- pela mão-de-obi-adisponível. inclusi-
ça. O exemplo dado pelos fazendei- ve coin uina significativa movimenta-
ros paulistas. que einancipavani ma- ção de agenciadores de mão-de-obra
ciqanlente seus escravos huscando enviados por senhores de outras pro-

c Mattos. Das <.nr.r.v(10 .vil<;,~cin.pp 230-237

A i r o A i o , 2 ) - 2 2 (1 998-1 999), 389-392


víncias; de outro lado, pelo surgimen- Foner. Ele próprio já mencionou, a
to de um grupo de libertos com um propósito da semelhança entre a ex-
perfil social peculiar, pois, a partir das periência norte-americana e do Caribe,
experiências acumuladas no cativeiro a estreita relação existente entre o con-
e da seelaboração de valores e com- trole do trabalho e do acesso a recur-
portamentos vindos do rnundo dos sos econ6micos no pós-aboliç50.~
broncos. crcclenciavain-se a conlestar Em ahordagein recente sobre a his-
a ascend8ncin que os ex-senhores pre- toriograi'ia brasileira. Ronaldo
tendiam possuir sobre eles. Vainiias argumentou a favor da con-
Mattos mostra. também, como liber- veniEnçiíi da iitilização de diferentes
dade e cativeiro continuaram "catego- escalas de observação, para além dos
rias chaves" na definição da ética do tradicionais paradigmas da macrohis-
trabalho. mesino no pós-abolicfio. fa- tória e damicrohistóiia.' São poucos
zendo com que as estratégias de do- os trabalhos que inci-rsionam com
minação tivessem que considerar o sucesso neste terreno c Das cores do
valor, para os libertos. da mobilidade. .silêricio é, certamentç, um deles. Ele
da autonomia no controle da produ- está entre aqueles que buscam uma
ção, além da legitimidade dos laços nova trajetória para a historiografia
comunitários. Mostra. portanto, como da escravidâo. superando a clássica
naqueles anos o significado da liber- polarização entre a conhecida "teo-
dade não era unívoco, nem era estiti- ria do escravo-coisa" e a chamada
co, ganhando conotação parecida com "históriaculturalis~a".~ Nele, Mattos
aquela dada por Eric Foner, quando a cornbina com inricstria o recurso ao
estudou a propósito dos libertos no sul tratamento seria1 G quantitativo a uma
dos Estados Unidos: um "teri-eno de narrativa centrada em histórias de vida.
conflito". Aliás, essa não é a única pro- através das quais reconstitui o tecido
ximidade com a abordagem feita por das relações sociais onde se desenvol-

' Eric Foiier, "O significado d:i liberdade". Rc,vi.vf(~Bw.ri1eieu de Hisrcíi.ici. 9 ( 1988). pp. 10; para
o seguii<loaspecto. ver Eric Foiier. Norlc~ctléin 00 li/)eecl(itle:( I c,i~r(rrrc~iprr(~lio o .rc+rr leprrdi. Rio
de Janeiro, Paz e Terra: Brasília. CNPq, 1988. 1). 79.
I Roiialdo Vainfas; "Cainiiilios e descainiiilios da história", in Ciro Flamaiion Cardoso e Ronaldo
Vaiiifas (orgs.), Dni~~íiiios (/(i Hi.srtji?ci: c.,wrim cle reorici e rriero(iol(aio (Rio de Janeirn. Cntnpus.
1997), pp. 447-448.
Para abordagens sobrc n historiogr:ifia da escravidiio tio Brasil. ver Stuart B. Schwartz. "Reçeni
trcnds iii tlie studies 01 ~laveryin Bilizil". L~r,so-Br(i?ilia~i RPIV(,MZ 25: 1 í IOKX), pp. 10- 1 1,
Flávio dos Santos Gornei. Histórias ri(, c~iiiloinbolus;itioc:critiho.s e coni~iiiid(ic1r.vrle selizulci.~tlo
Rio de Jcrizeiro-.séc~~ItiX I X , Riu de Janeiro. Arquivo Naçioiial. pp. 19-32: Silvia Honold Lnra.
Ccirr~po.vclci i!iolênciu: e.vc.i,(rvo.vo sorhores ri(r C(rpitriirici cio Rio de Junn<*ii-o.17.i0- 1808, Rio de
Janeiro, Paze Terra. 1988. pp. 103-107: Silvia Huiiold Lxa. "Blowing tlie wiiid: E. P. Thoinpson
e u exl~eriènçianegra i10 Brasil", Pi.n/r,to Hi,vt(íriu, 12 (1905). pp. 43-56
veram mediações entre os significados [o de vista senhorial, muitas vezes o
da liberdade e do cativeiro. conseguin- liberto se encontrava a razoável dis-
do desvendar as definições senhoriais tância do que entendemos como a efe-
de liberdade para os libertos que ga- tiva condição de livre.' É certo que
rantiriam sua doininagáo sobre eles. aqui estamos nos referindo àqueles
Para o Brasil. vários trabalhos j6 se que mantiveram-se lutando pela liber-
dedicaram deinoradarnente às expe- dade dentro dos horizontes do siste-
riências de escravos e libei-10s na luta ma. Com seu trabalho, Mattos con-
com seus senhores e ex-senhores por firma a existência de uma diversida-
melhores condiçóes de vida ainda no de de significados atribuídos à liber-
cativeiro. por sua liberdade ou. ain- dade pelos escravos e i-ecún-libertos.
da. por conquistas que assoçinvain a A j i n i . Burtdeir~~
~ Florcncr
esta últiina. Vale leinbrar que, do pon- Universidade Federal da Bahia

' Maria lilês Cortes de Olivera. O liherto: o seu r~~unclo c 0.r olrrro.r. Strlv(i(101:17W1-1X90, São
Paulo. Corriipio; Brnsílin, CNPq. I 988. I)(?. 3 1-5I , Sidiiey Clialhuob. Vi.viie.s(l(l libcrdude: cinto
histcír-iti (Ias ~ í l l i r n ~lLíi.(ld(l~
(~~ ( / ( I e.\.(.r~v1d(io IIU t.orte. São Paulo. Coiilpanliia das Letras, 1990.
pj,, 102- 1 15; Maiiucla Carneiro da Cunlia. Nexi.os, esrrcrrr~eiros:0.r r.rc.i.~ivo,s libertos e suo
voltu u A f k i c ~ i . S3o Paulo. Brnsiliriise. 1985. pp. 30-40; Eduardo Silva. Dorn Obu d'Africa. o
pt.íri<.i!)~ (!o J>OVO: I O unr lrotrrerti livre de cor: SBo Paulo. Coiiipaiihia
vidu, trrizpo e I > C I I . V I I I I I P I I (I(>
das Leims, 1997

Você também pode gostar