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A SOCIEDADE

DO AMANHÃ
A Sociedade do Amanhã
Uma Previsão da sua
Organização Política e Econômica

Gustave de Molinari

1ª Edição
A Sociedade do Amanhã: Uma Previsão da sua Organização Política e Econômica
Gustave de Molinari
Editora Konkin, 1ª Edição
Email: contato@editorakonkin.com.br
Título Inglês: The Society of Tomorrow | Título Original: La Société Future

Coordenação Editorial
José Aldemar

Tradução e Revisão
Alex Pereira de Souza, Erick Kerbes, José Aldemar, Júnior Gustavo Percebon, Rafael Jesus.

Capa
Gabriel Teixeira Pereira

Diagramação
Gustavo Poletti Kaesemodel

Licença
Domínio Público. Esse livro está livre de restrições de autor e direitos conexos.

ISBN
978-65-85577-03-8 (versão impressa) | 978-65-85577-02-1 (versão digital)
Sumário
Introdução por Hodgson Pratt ............................................................................... 9
Carta Prefacial por Frédéric Passy ...................................................................... 23
Prefácio ........................................................................................................................ 25

PARTE I - O ESTADO DE GUERRA


1. A Formação das Comunidades e as Condições Necessárias .................. 41
2. Competição entre Comunidades Primitivas e seus Resultados ............. 45
3. Competição entre Estados em Processo Civilizacional ........................... 49
4. O Declínio da Competição Destrutiva .......................................................... 53
5. Por Que o Estado de Guerra Continua ......................................................... 59
6. Consequências da Perpetuação do Estado de Guerra .............................. 67

PARTE II - O ESTADO DE PAZ


7. A Garantia Coletiva da Segurança das Nações ........................................... 75
8. A Livre Constituição da Nacionalidade ........................................................ 81
9. A Livre Constituição de Governos e Suas Funções Naturais ................. 89
10. A Livre Constituição de Governos e Suas Funções Naturais (continuação).. 95
11. A Livre Constituição de Governos e Suas Funções Naturais (continuação).. 103
12. Sujeição e Soberania do Indivíduo .............................................................. 107
13. Imposto e Contribuição ................................................................................... 111
14. Produção de Artigos de Consumo Naturalmente Individuais .............. 117
15. Equilíbrio de Produção e Consumo ............................................................. 123
16. Distribuição de Produtos e a Participação do Capital ............................ 133
17. Distribuição de Produtos e a Participação do Trabalho ......................... 141
18. O Problema da População ............................................................................... 147
19. Consumo .............................................................................................................. 155
20. A Expansão da Civilização ............................................................................. 163
21. Resumo e Conclusão ........................................................................................ 169

PARTE III - APÊNDICE


A. O Czar e o Desarmamento ............................................................................... 179
B. Sindicatos Restringindo a Concorrência, ou Trustes ............................... 191
C. Efeitos do Progresso Industrial na Esfera da Produção .......................... 195
D. Custos e Lucros da Colonização do Estado ................................................ 197
E. As Concepções Econômicas e Socialistas da Sociedade do Futuro..... 203
Introdução
por Hodgson Pratt

É uma grande sorte para o mundo moderno que há um número


considerável de pessoas que têm tempo, inclinação e capacidade de
indagar como as comunidades humanas podem melhor garantir uma
existência próspera e a salvação final de desastres ou mesmo impedir
a aniquilação. É uma benção que a necessidade de fazer tais
indagações seja tão amplamente sentida, e que haja um acúmulo tão
grande de fatos, e de argumentos baseados neles, a ponto de permitir
que os pensadores cheguem a um conhecimento completo dos perigos
que ameaçam a sociedade e da melhor maneira de lidar com eles.
Precisamos muito da luz de homens capazes de dar respostas a
perguntas como as seguintes:

• Qual deve ser o objetivo definido de todas as sociedades


humanas?
• Para onde tendem as comunidades e nações agora existentes?
• Quais são seus perigos especiais e como eles podem ser
evitados de uma forma melhor?
• Quais devem ser os verdadeiros ideais de cada povo, para que
possam ser mantidos claramente em vista e realizados?”

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A Sociedade do Amanhã

Os livros tão sábios e ponderados como o de Gustave de


Molinari, o conhecido e mais ilustre economista, devem ser
cuidadosamente estudados por todos os que se preocupam com o bem-
estar de seus semelhantes. Ele estimula o pensamento e a consideração
em relação a esses grandes problemas, e produz massas de fatos e
argumentos, que permitem que seus leitores pensem de forma sólida e
eficaz.
Poucos podem ler seu livro sem perceber claramente quão
grandes são os problemas que estadistas, filósofos e filantropos têm
que enfrentar. É loucura e perfídia confiar que as coisas "encontrem
seu lugar natural". Os povos, assim como os indivíduos, devem saber
até que ponto no mapa da humanidade eles devem se dirigir – onde
estão as rochas e as dunas, qual é o melhor e mais curto caminho. De
qualquer forma, nestes dias, mais do que nunca, há geógrafos morais,
políticos e sociais, ansiosos para apontar o verdadeiro curso e
despertar seus companheiros para a importância esmagadora da
investigação.
Existem, como sabemos, duas grandes escolas de reformadores
sociais, guias e professores: a Escola de Individualistas e a Escola de
Organizadores, se podemos usar o termo: (i) Aqueles que consideram
suficiente fornecer um campo justo para a liberdade e a livre
concorrência a todos os envolvidos na "luta pela vida"; e (ii) aqueles
que dizem que não existe tal coisa como "igualdade de oportunidades"
para os milhões, e que, sem a mais perfeita organização no interesse
desses milhões, os pobres só se tornam mais pobres e os ricos mais
ricos – miséria para muitos, luxo para poucos.
Aqui está a grande questão que deve ocupar as mentes de todos
os que desejam que o mundo humano não seja um terrível fracasso.
Temos aqui diante de nós a questão apresentada sob o título de "O
Futuro da Sociedade", para citar o título do livro de Gustave de
Molinari. Pode-se chamar a questão de perceber esse fim há muito
desejado, a maior felicidade do maior número. Para trazer este grande

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Introdução

problema vividamente perante o leitor, não podemos fazer melhor do


que fazer uma citação de um autor que expõe todo o caso um tanto da
seguinte forma:

"Meio século atrás, eu concebi a possibilidade de chegar a um


entendimento entre as duas Escolas, e eu me dirigi a elas do
seguinte modo: Qual é o Ideal comum aos socialistas e
economistas?Certamente é isso: a realização de um estado de
sociedade em que a produção de todas as coisas boas e
necessárias, vantagens ou bem-estar necessários para manter
e embelezar a vida, seja a mais abundante possível, e em que a
distribuição dessas coisas entre aqueles que as produzem seja
a mais equitativa possível – numa palavra, Abundância e
Justiça. Mas nós procedemos a este fim por diferentes rotas –
vocês por um caminho obscuro que vocês chamam de
organização do trabalho; nós, os economistas, pela ampla e
conhecida rodovia da Liberdade. Por que vocês recusam o
último? 'Porque', dizem vocês, 'é prejudicial aos
trabalhadores; porque até agora não produziu nada além da
opressão dos fracos pelos fortes; porque levou a crises
desastrosas em que milhões foram arruinados ou pereceram;
porque a liberdade sem controle é Anarquia'. Eu respondo, no
entanto, que vocês tem que provar que os males que vocês
atribuem à liberdade, ou ao que eu chamo de 'livre
concorrência', não têm sua origem no monopólio, em
restrições indevidas."

O que Gustave de Molinari deseja fazer é expor, com


abundância de ilustração, o fato de que o que a sociedade humana
precisa não é de uma organização abrangente da indústria e do
comércio como os socialistas desejam, mas de um regime de liberdade
absoluta, um campo justo e sem nenhum favor; e que isso tem sido até
agora impedido pelo despotismo e interferência do estado, a existência
de poderosas classes militares e oficiais cujos interesses pessoais estão
ligados ao militarismo, à conquista e à guerra. O que ele escreve sob
este último título é de grande valor e fortalecerá as mãos daqueles que
estão engajados na cruzada da Paz.

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A Sociedade do Amanhã

A sua demonstração da certa ruína iminente dos estados mais


civilizados, em consequência das vastas e crescentes despesas
militares e da política de anexação, é convincente e merece uma
atenção universal. É a este estado de coisas que ele, naturalmente,
atribui a gravidade da condição financeira e econômica das nações
europeias; e vê que é indispensável pôr fim ao domínio das classes
privilegiadas interessadas em manter a atual política de guerra e
agressão. Então, e somente então, serão libertados os recursos e as
energias das populações industriais, que, sendo liberadas dos fardos
atuais, terão todas uma parte justa dos resultados de seu trabalho. Com
efeito, diz ele, "realize esta grande mudança, e não haverá necessidade
de remédios tão fantasiosos como os prometidos pelo socialismo".
É, de fato, de importância vital que os povos de todos os países
da Europa procurem uma solução para os enormes males de que
padecem – que seja completa e abrangente. Um grande serviço,
portanto, é prestado, como um primeiro passo na reforma necessária,
quando um professor autorizado e confiável de ciência econômica
denuncia o domínio das classes militaristas e governantes. Ele faz isso
porque sabe que é inútil tentar a abolição da miséria social e da
anarquia até que os povos sejam aliviados dos seus atuais fardos
intoleráveis.
Ouça o que este cuidadoso mestre das estatísticas diz: "Dois
terços dos orçamentos europeus consistem em encargos de guerra e
dívidas. A quantidade paga para garantir a 'segurança' excede o risco."
"O gasto total, direto e indireto, absorve metade da riqueza produzida
pelas classes trabalhadoras." Os governos devem, portanto, ser
privados de seu poder ilimitado sobre a vida e a fortuna dos cidadãos,
e esse poder continuará enquanto o estado de guerra existente ou a paz
armada continuarem. Os estados da Europa acumularam mais de 13
bilhões de dívidas, ou 5.900.000.000 em libras esterlinas. No entanto,
enquanto essas cobranças aumentam continuamente, a produtividade
industrial tende a cair.

12
Introdução

O objetivo da classe governante tem sido o de obter lucro de


novas conquistas, a fim de que as vantagens possam ser divididas
entre oficiais civis e militares; enquanto a perda envolvida caiu em um
grau crescente sobre a indústria, e a parte reprodutora da raça foi
absorvida para fins de guerra. "Por isso", diz nosso autor, "a reforma
mais urgente do tempo presente é pôr fim a esse estado latente de
conflito", e ele afirma que o remédio deve ser encontrado em um
"seguro coletivo" contra a guerra. Deveria haver um seguro conjunto
para prover a proteção coletiva dos estados, em vez do atual "seguro
isolado". Ele é ainda de opinião que os efeitos ruinosos da guerra
sobre estados neutros e não beligerantes lhes dão o direito de intervir,
sempre que outros estados se propõem a se envolver em conflitos. De
fato, ele propõe a substituição da "justiça coletiva" pela atual
reivindicação de cada governo de ser um juiz de seus próprios
direitos.
Gustave de Molinari, por conseguinte, sugere que a Europa
constitua uma associação suficientemente forte para obrigar qualquer
nação a submeter os seus litígios a um tribunal arbitral; e que isso
deve ser complementado por tropas suficientes para fazer cumprir o
veredito do tribunal. Por tais disposições, os governos individuais não
mais alegariam que têm o dever de fornecer seguro contra a guerra, e
todas as desculpas para a disposição ilimitada das vidas e
propriedades de seus povos cessariam. Com a grande mudança
política assim inaugurada viria um imenso aumento da liberdade
individual, sendo a "soberania individual" a base necessária das
instituições políticas do futuro; de modo que os recursos de uma
nação não estariam mais à mercê de uma classe, e o indivíduo se
tornaria seu próprio mestre.
O "ideal individualista" é aquele sob o qual todos os cidadãos
estariam associados, não só para a segurança comum, mas para todos
os fins públicos ligados à vida municipal. Então a tributação do estado
seria bastante reduzida, sendo os serviços locais fornecidos por taxas.
Isso levaria a uma grande extensão da empresa produtiva, atualmente

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A Sociedade do Amanhã

dificultada e impedida, e haveria um grande impulso dado à atividade


individual através do aumento da liberdade. Gustave de Molinari tem
uma firme fé nos grandes resultados da "concorrência" ilimitada que
tenderia a reduzir os preços ao nível do custo de produção; e diz que,
com o crescimento das empresas, novos mercados serão encontrados,
e assim aumentará a demanda por mão de obra qualificada; enquanto
o crescimento da maquinaria diminuirá as desigualdades existentes em
matéria de remuneração.
Com o preço do produto sendo diminuído pela maquinaria,
novos mercados crescerão e, com eles, mais demanda por mão de obra
qualificada. Isso significa um aumento do consumo e maiores meios
de provê-lo.
Devemos deixar que os estudantes de economia considerem a
declaração de M. de Molinari sobre as vantagens comparativas de uma
condição das coisas em que a concorrência deve ter uma atuação mais
livre e onde as leis devem interferir o mínimo possível com as
condições sob as quais a indústria é atualmente conduzida (pelo
menos em alguns países). Ele compara os resultados que serão assim
obtidos com os resultados da organização socialista – é claro que em
desvantagem desta última.
Sua esperança para o futuro não se baseia em nenhuma mudança
fundamental na organização da indústria, mas no maior controle
exercido sobre os governos pelas populações – em uma palavra, no
crescimento da liberdade individual.
Sob a ação de grandes "leis naturais" que regulam o crescimento
da sociedade, a civilização cresceu, e Gustave de Molinari pergunta se
o progresso alcançado não diminuiu a quantidade do sofrimento
humano; mas essa questão ele deixa por decidir. "O aumento da
felicidade para o homem pode", diz ele, "ser o resultado do progresso,
mas não o objetivo. Esse objetivo é o aumento do poder da raça
humana, em vista de um destino que é desconhecido para nós.”

14
Introdução

Estas são as palavras finais de seu livro; e alguns filósofos


podem estar contentes com essa conclusão. No entanto, não satisfará o
número crescente diário daqueles que estão consternados com a
condição existente da sociedade, e que encontram suas próprias vidas
infelizes pela atual ordem das coisas; uma em que milhões de homens
e mulheres nas comunidades mais "civilizadas" levam uma existência
que os faz desejar nunca ter nascido, que faz com que a sorte da
animal do campo pareça invejável – vidas em que tudo o que mais
distingue o homem do animal é quase inatingível –, vidas nas quais
todas as nobres esperanças e propósitos, todos os prazeres gloriosos e
divinos são totalmente excluídos.
Esta é verdadeiramente a era das grandes cidades; mas que
quantidade de miséria caótica isso implica! Nessas grandes cidades de
Londres, ou Glasgow, ou Liverpool, ou Birmingham, quantos
milhares de pais se levantam todas as manhãs perguntando-se como
seus filhos e filhas viverão – é uma mera loteria se será sucesso ou
fracasso. Sua educação é, em um grande número de casos, mal
adaptada às suas respectivas necessidades; e seus ganha-pães serão,
portanto, decididos por mero acaso. Um rapaz se tornará um
carpinteiro, um ferreiro, um assistente de loja ou um balconista, um
soldado ou um marinheiro por acaso. "Os pinos quadrados são
colocados em buracos redondos e os redondos em quadrados."
E, em um grande número de casos, nada além do fracasso é o
resultado. Para muitos, quem nasce em uma vila Hindu ou Birmanesa
tem mais sorte do que quem nasce em uma rua de Londres. De
qualquer forma, no primeiro, o futuro ofício ou profissão de uma
criança é estabelecido de antemão por sua casta ou classe, e ele é
preparado para isso intencionalmente desde seus primeiros anos.
Diante do justificado desânimo que muitos de nós sentimos,
arrisco-me a pensar que Gustave de Molinari não deveria ter rejeitado
as propostas das escolas socialistas com tão poucas referências
simplesmente por serem o resultado da "ignorância" e da "negação das

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A Sociedade do Amanhã

leis naturais que governam a humanidade". Parece-me que qualquer


tentativa de elaborar um "Futuro da Sociedade" deveria pelo menos
incluir uma investigação da teoria econômica chamada "Coletivismo".
Qual é, de fato, a exigência socialista, como condição
fundamental de uma sociedade humana que professa ser governada
por um desejo de bem-estar moral de todos os seus membros – para o
qual as condições econômicas corretas são indispensáveis? A grande
revolução exigida é a da substituição do Coletivismo pelo
Individualismo. Se este último falhou completamente em prover o
bem-estar da grande maioria da população em países civilizados, a
exigência pelo primeiro deveria ser ouvida. O objetivo de toda
sociedade humana corretamente constituída é a maior felicidade
possível do maior número possível.
Mas, sob as condições aleatórias e não organizadas existentes,
não há nada dessa igualdade de oportunidades que seja essencial para
que a liberdade individual seja suficiente para a realização do fim em
vista.Atualmente, tudo é confusão e desperdício de meios, porque não
há garantia de que cada homem exerça o ofício para a qual está mais
bem preparado e seja devidamente treinado para isso.
A concorrência não regulamentada é atualmente o único recurso
para os membros de uma comunidade ignorante das condições que são
essenciais para um uso correto do capital e do trabalho. O resultado é
que, enquanto alguns membros da comunidade estão ociosos, outros
são escravos do trabalho excessivo, e um terceiro grupo está fazendo
um trabalho para o qual eles não estão aptos.Isso é bem apontado pelo
Sr. J. A. Hobson em seu admirável trabalho sobre "O Problema
Social".
Ele nos lembra dos resultados dessa falta de adaptação
inteligente dos meios até o fim na Inglaterra. Três quartos da
população da nossa cidade vivem em condições insalubres e quase
intoleráveis e, como ele diz, nenhum aumento da quantidade total de
riqueza material pode compensar a deterioração do trabalho e da vida

16
Introdução

como está acontecendo entre milhões de homens e mulheres. Perante


tais fatos, não é justificável afirmar que não há esperança sem
organização por parte da comunidade? A adoção de métodos capazes
de proporcionar uma existência decente, na doutrina de "um por todos
e todos por um", é um requisito imperativo.
Isto é o que o socialista afirma, e ele tem o direito de dizer ao
economista ortodoxo: Que plano você tem para remediar os tremendos
males da sociedade moderna, além da mera afirmação de certos
axiomas? Não há remédio suficiente na liberdade individual. Uma
grande proporção da comunidade é prejudicada pelo caos geral e pela
confusão, e desconhece tudo o que é necessário para atingir a certeza
de um trabalho remunerado – é uma luta cega de trabalhadores e
distribuidores rivais. No entanto, esta é a competição que deve
resgatar a vasta população de sua atual miséria e desesperança!
O erro dos economistas ortodoxos, parece-me, tem sido o de
pensar apenas em como a soma total da riqueza nacional pode ser
aumentada, ignorando a questão de sua distribuição. No entanto, deve
ser possível prover, em grande medida, para que cada membro da
comunidade faça aquele trabalho particular que melhor lhe permita
viver de acordo com um padrão decente de existência. Quando
encontramos um estado de coisas em que costureiras ganham apenas
dezoito centavos por dia por mais de doze horas de trabalho, toda a
comunidade sofre, assim como o trabalhador, tanto moral quanto
fisicamente. Tais fatos atestam que isso não é uma verdadeira
civilização; é uma barbárie que desonra todos os membros da
comunidade, especialmente aqueles que têm o conhecimento e a
oportunidade de provocar uma mudança. Aqueles que enriquecem e se
tornam poderosos a partir de tal regime industrial participam de
roubos e não podem justificar sua posição no mundo.
A realização dos ideais dos reformadores socialistas significa,
naturalmente, toda uma transformação das condições sociais
existentes, especialmente em um país como a Inglaterra. Aqui, o
monopólio da terra por proprietários hereditários envolve perda para

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A Sociedade do Amanhã

toda a comunidade. Esses proprietários podem desperdiçá-lo em gozo


privado e reivindicar um direito exclusivo à enorme riqueza nacional
que se encontra sob a superfície, pela qual seus antecessores não
pagaram nada. Não pode haver condições corretas de existência
enquanto tal monopólio existir, e não pode haver meios de melhoria
para aqueles que produzem a riqueza nacional por meio de seu
trabalho diário, enquanto essa injustiça autorizada prevalecer.
Enquanto isso, a população se torna totalmente urbana, incapaz de
viver na terra.
Nota-se, no entanto, que surgiu durante o último meio século
uma organização voluntária conhecida pelo nome de "Cooperação".
Ela alcançou resultados notáveis na diminuição da miséria de um
grande número de trabalhadores manuais e no estabelecimento das
bases de um novo sistema de produção, distribuição e troca, ao
mesmo tempo em que deu uma nova esperança de melhoria social e
econômica. Este trabalho notável foi realizado pelos membros mais
esclarecidos e autossuficientes do proletariado, auxiliados, aqui e ali,
por alguns servos da humanidade, como Robert Owen, Leclaire,
Godin, E. Vansittart Neale, Charles Robert e Schultze Delitsch.
Na Grã-Bretanha existem dois milhões de membros destas
sociedades, e a sua organização é, em grande escala, realizada com
grande capacidade administrativa, e os melhores objetivos sociais e
morais não são negligenciados. Parece-me que nenhum estudante do
"Futuro da Sociedade" deve negligenciar a avaliação do verdadeiro
valor e possibilidades de tal organização. O grande propósito a ser
mantido em vista é a realização, em cada comunidade, do mais alto
tipo de existência possível para todos os seus membros; e esse objeto
nunca foi perdido de vista pela União Central dos Cooperadores.
É mérito para os representantes do Partido Trabalhista em vários
países europeus, que este movimento fez grandes progressos. A
Cooperação é capaz de um desenvolvimento muito maior, tanto nas
esferas da produção como do comércio. E é a melhor escola de

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Introdução

formação para aqueles que, no futuro, serão encarregados do dever de


conduzir a vida municipal em escala crescente. Ela irá também formar
homens para a realização das mudanças que os socialistas acolhem.
De fato, a Cooperação é, em certa medida, uma adoção de
princípios socialistas, na medida em que a associação individual pode
ter sucesso, e na ausência da agência direta do estado. A cooperação,
como no caso do socialismo, tem em vista uma nova ordem social.
Seu maior objetivo é realizar a distribuição equitativa dos
rendimentos do trabalho entre todos os que contribuíram para o seu
resultado. Na Cooperação, os trabalhadores fornecem o capital ou o
contratam, em vez de serem eles mesmos contratados pelo capital,
como seu profeta veterano, G. J. Holyoake, declarou em centenas de
discursos. Os resultados materiais de meio século dessas sociedades
podem ser mostrados em números que não têm pouco valor, embora
os resultados morais não possam ser numericamente representados.
Olhando para o último Relatório Anual do Conselho Central de
Cooperativas, verificamos que o número de membros (em 1671
sociedades) é consideravelmente superior a dois milhões e que detêm
ações no valor de quase noventa e seis milhões de libras esterlinas; as
vendas do ano foram de oitenta e cinco milhões e meio, gerando
lucros de nove milhões e meio. Estes representavam o que é chamado
de parte "Distributiva" da organização; enquanto as Sociedades
Produtivas e Agrícolas abrangiram, 34.875 membros, com um capital
de £ 881.568, as vendas totalizaram mais de três milhões. O resultado
produtivo das sociedades individuais e das sociedades atacadistas da
Inglaterra e da Escócia combinadas é estimado em sete milhões e
meio.
"A concepção cooperativa da vida", diz o órgão do movimento,
o Co-operative News, "abrange a ausência de todo o desperdício
evitável através da competição desnecessária em conflitos sociais e
políticos; quando realizado totalmente, não haveria lojistas ociosos,
nem greves e bloqueios. A cooperação, quando aplicada à vida

19
A Sociedade do Amanhã

nacional, não se limitaria à distribuição, produção e transporte, mas se


aplicaria ao planejamento ou replanejamento das cidades, à educação,
às casas. A concepção cooperativa da vida não admite que quaisquer
mãos industriais permaneçam ociosas ou que quaisquer mentes
capazes estejam em pousio."
Foi porque os pioneiros de Rochdale partiram com o objetivo
declarado de "tornar o mundo melhor do que o encontraram", que seus
sucessores, homens e artesãos trabalhadores, fizeram um trabalho
insuperável em sua classe, porque ocorreu de maneira espontânea e
sem qualquer dependência de ajuda externa ou interferência do
governo. Necessariamente existem limites para essa organização
individual; e esta é a justificação do desejo de revolucionar toda a
indústria de uma nação, tal como proposto pelos socialistas.
A referência acima aos elementos morais em ação na
cooperação e ao seu franco reconhecimento por seus principais líderes
nos leva à maior questão de todas: até que ponto qualquer mudança de
condições econômicas proposta garantirá o mais verdadeiro bem-estar
dos homens? — em outras palavras, até que ponto o progresso do
homem em tudo o que é mais elevado e melhor pode ser assegurado?
Pois, por mais engenhosamente concebidos que sejam os novos
esquemas de melhoria social e industrial, qualquer que seja a provisão
que possa ser feita para a liberdade individual, a regra da Lei Moral é
a única condição de todo progresso verdadeiro e sólido.
As "leis" econômicas, referidas por Gustave de Molinari,
embora plenamente reconhecidas e seguidas de ação, não protegerão a
sociedade de catástrofes, mesmo quando um esclarecido interesse
próprio possa levar à abolição da guerra. Não se diminuirá totalmente
a contenda e a violência, de dentro ou de fora, a menos que a lei moral
seja geralmente observada. O "velho Adão" frequentemente
reaparecerá sem ela; e é um erro profundo ignorar o fato.

20
Introdução

A esperança de que a realização do socialismo possa resgatar as


comunidades humanas dos tremendos males que agora as oprimem
baseia-se no fato de que seu objetivo é profundamente ético, se não
religioso. Ela reconhece a necessidade essencial de justiça em todos os
departamentos da vida humana. E é porque as condições corretas de
vida são necessárias para a formação do caráter humano que elas são
tão importantes; na ausência caráter não há garantia de conduta
correta; e a conduta é a base de todo o bem-estar na sociedade. O
objetivo do socialismo pode, portanto, ser justamente dito como sendo
o bem-estar moral da sociedade. E sob que outro sistema da
sociedade, sob que chamadas leis, propõe-se garantir condições
econômicas corretas? Que outros e melhores métodos são sugeridos
por aqueles que professam ser economistas?
O Sr. Frederic Harrison disse que a verdadeira causa de todos os
males industriais encontra-se na falta de um espírito moral mais
elevado naqueles que estão envolvidos na indústria."O reino de Deus",
foi dito, "está na terra, e está preocupado com todos os departamentos
da vida humana". O altruísmo, não o egoísmo, é o bem maior do
indivíduo, e sua realização deve ser encontrada em fazer o bem em
todo o fim de nossa ação individual. "Todos por um, e um por todos"
— como os Cooperadores sempre disseram. Nenhum outro lema de
ordem mais nobre poderia ter sido adotado.
O maior interesse próprio, seja para indivíduos ou comunidades,
é a fidelidade aos princípios morais. Para realizar o próprio bem
maior, devemos viver para o bem dos outros; e o cristianismo torna
todas as coisas subservientes à fraternidade. "As questões econômicas,
sociais e políticas mais difíceis devem ser resolvidas pela ética – que
ensina que a solidariedade enraizada na fraternidade deve ser a base
das relações sociais".1
Gustave de Molinari e outros economistas tratam sua ciência
como um estudo das ações dos homens nos negócios da vida, e
inferem que os homens sempre agirão da mesma maneira e pelos

1"Os Fundamentos da Sociedade", de John Wilson Harper.

21
A Sociedade do Amanhã

mesmos motivos. Mas será que isso é verdade? Não há elementos em


ação nas comunidades modernas que estavam ausentes em períodos
anteriores? Existe agora um sentimento generalizado de solidariedade
moral e fraternidade que antes era desconhecido e que exerce uma
influência crescente sobre as leis, sobre a conduta e sobre as
instituições. É, portanto, um erro profundo separar o estudo da
economia do estudo da ciência; da ciência ética, social, política e
religiosa.
Há imensas possibilidades ao alcance daquele "novo mundo
moral" futuro que se baseará no reconhecimento universal da
Fraternidade. Todo homem que tem essa esperança nele se tornará o
mais nobre e trabalhará com mais afinco para sua realização. Haverá
uma abordagem cada vez maior para um estado perfeito da sociedade,
"quando o homem será semelhante ao homem através de todos os
ciclos do Ano Dourado".

HODGSON PRATT
Le Pecq (Seine et Oise), França

22
Carta Prefacial
AO SR. FISHER UNWIN
por Frédéric Passy

Você está prestes a publicar uma versão em inglês do livro do


meu amigo Gustave de Molinari, “La Société Future”, e você me dá a
honra de solicitar algumas linhas de introdução oriundas da minha
caneta. Escrever adequadamente sobre um livro como esse requereria
tempo o qual minhas idade e obrigações, infelizmente, não me
permitem dar. Já que, entretanto, a oportunidade ocorre, eu estaria
muito relutante em deixar o livro vir à tona sem pelo menos
testemunhar minha estima e admiração pelo caráter e talento do
homem que é hoje, a menos que eu esteja equivocado, o decano de
nossos economistas — eu devo dizer de nossos economistas liberais
— dos homens com quem, embora, (infelizmente!) poucos em
número, eu tive a felicidade de estar lado a lado durante mais da
metade de um século.
Os princípios deles foram proclamados e defendidos na
Inglaterra por meio de as bocas de Adam Smith, Fox, Cobden,
Gladstone e Bright. Na França, eles foram advogados por Quesnay,

23
A Sociedade do Amanhã

Turgot, Say, Michel Chevalier, Laboulaye e Bastiat. E minha crença


cresce anualmente mais forte de que, se não fosse por esses princípios,
as sociedades do mundo presente iriam estar sem riqueza, paz,
grandeza material ou dignidade moral.
Monsieur de Molinari tem mantido esses princípios desde sua
juventude, desde o dia quando — na época de nossa Revolução de
1848 — ele as sustentou pela primeira vez no Soirées de la Rue St.
Lazare. Suas “Conversations Familières sur la Commerce des Grains”
deu-os uma forma nova e atrativa. Ele tem defendido suas convicções
tanto em seus cursos regulares de palestras quanto naquelas outras
palestras por meio das quais ele tem espalhado seus princípios até
dentro das fronteiras da Rússia. Mês após mês, a importante Resenha
da qual ele é editor-chefe as repetem em uma aparência fresca; e
anualmente, por assim dizer, um livro a mais, tão notável pela clareza
de compreensão quanto pelo estilo literário admirável, é publicado
para testemunhar tanto a constância de suas convicções quanto o vigor
resoluto de sua perspectiva mental e a serenidade viril de sua idade
longeva.
O livro que você está prestes a introduzir ao público anglófono
é, de alguma forma, um resumo dos longos estudos dele sobre o
passado, suas observações perspicazes sobre o presente e as previsões
sagazes para o futuro. Vossa Senhoria faz bem quando tenta obter a
publicidade adicional que a obra merece; e me considero afortunado
que você tenha me permitido contribuir, independentemente do quão
pequeno grau, para um fim tão admirável.
Frédéric Passy

24
Prefácio
AS LEIS DA NATUREZA

"Se", escreveu Condorcet, "existe uma ciência que prevê, guia e


promove o avanço da raça humana, ela deve ser baseada nos fatos que
geraram o progresso no passado".3 Mas temos que voltar ainda mais.
Devemos voltar às primeiras causas daquele progresso que a raça
humana realizou desde o seu aparecimento na Terra, e do progresso
que ela ainda está destinada a realizar. Devemos ter uma compreensão
do homem, as leis que determinam e governam suas atividades, a
natureza e as circunstâncias do ambiente em que ele foi colocado para
o cumprimento de um propósito ainda escondido de seus olhos.

O Motivo da Atividade Humana

O homem é um organismo composto de forças vitais, físicas,


intelectuais e morais. Essa matéria e essas forças, que formam o
indivíduo e o espécies, só pode ser preservado e desenvolvido pela
assimilação, ou, para usar o termo econômico, o consumo de materiais

3Condorcet, “ Esquisse d' un Tableau Historique des Progrès de l'Esprit


Humain,” p. 17.
25
A Sociedade do Amanhã

e forças da mesma natureza. Na falta deste consumo, sua vitalidade


desperdiça e é finalmente extinta. Mas desperdício e a extinção da
vitalidade causam dor e sofrimento, e é o estímulo da dor e do
sofrimento que impele o homem a adquirir os materiais necessários
para desenvolvimento e preservação de sua vida.Todos esses materiais
estão presentes em seu ambiente, ar, etc. e a natureza lhe dá um
pequeno número livre de custos. Mas, com exceção dessa minoria,
eles devem ser descobertos, adquiridos e adaptados aos propósitos do
consumo. O homem deve ser um produtor.
O homem também está sujeito a uma necessidade adicional, que
é novamente inerente ao seu ambiente. Ele deve defender a vida e os
meios de seu apoio dos ataques de numerosos espólios e agentes de
destruição. Os riscos aos quais ele está exposto sob essa cabeça
implicam mais dor e mais resistência.
É para atender a essa dupla necessidade – sustento e autodefesa
– que o homem trabalha, trabalha para produzir os bens de consumo e
para destruir os agentes ou elementos que ameaçam sua segurança. O
trabalho, portanto, implica desperdício de força vital, e isso significa
mais resistência e mais dor. A humanidade é, no entanto, compensada
pelo prazer e gozo que deriva de consumir o materiais que sustentam
a vida e de fornecer os serviços que a protegem. Mas sempre, quer se
trate de nutrição ou autodefesa, o prazer dessas ações é comprado com
dor. É uma troca e, como qualquer outra troca, pode resultar em lucro
ou perda. É proveitoso quando a soma da vitalidade, adquirida ou
preservada, excede a quantidade de força vital gasta na tarefa. O
produto pode ser concreto ou de serviço, mas está sempre sujeito aos
custos de produção que são inseparáveis de todo dispêndio de força.
Excesso de despesa sobre reteipts significa, em por outro lado, a
perda, de modo que o homem só é estimulado a trabalhar quando
espera que suas receitas excedam suas despesas, que o prazer supere a
dor. O grau do estímulo varia naturalmente com os montantes
envolvidos e a taxa de lucro esperada; o principal motivo da atividade

26
Prefácio

humana, não menos que o de todas as outras criaturas, é, portanto, a


esperança de lucro. Este motivo, ou força motriz, tem sido chamado
interesse.4

A Lei Natural da Economia do Poder,


ou a Lei das Despesas Mínimas

Do motivo de que falamos, cujas raízes estão profundamente


enraizadas na natureza humana e nas condições da existência humana,
derivamos uma primeira lei natural, a Lei da Economia em Produção,
ou a Lei das Despesas Mínimas. Sob o impulso do interesse, o homem
primeiro satisfaz suas necessidades mais prementes, aquelas que
apelam com maior urgência, ou penalizam a oferta deficiente com o
maior sofrimento.
É somente depois disso que ele se esforça para diminuir o gasto,
selecionando as esferas de atividade mais remuneradoras e
estabelecendo-se para aperfeiçoar processos ou inventar ferramentas
que lhe permitam aumentar os lucros da produção. Aumentando a
margem de ganho, ampliando o excesso de material adquirido ou
poupado sobre o dispêndio de força vital, ele também assegura a
preponderância do prazer compensatório sobre o desconforto, que é
inseparável do esforço.
O indivíduo cuja renda excede os gastos, que possui um lucro,
pode afundá-lo na compra de prazer imediato ou coletá-lo como
capital a ser empregado em um aumento adicional de sua capacidade

4 O economista não deve confundir interesse com egoísmo, muito menos


com a satisfação de necessidades puramente materiais. Significa mais a soma
dos requisitos elementos da natureza humana, tanto material quanto moral.
Um homem não impõe sobre si mesmo os sofrimentos que são inseparáveis
do eifort, nem se abstém de desfrutar dos frutos de seu trabalho, com o único
propósito de satisfazer as necessidades egoístas, presentes ou futuras. A
intenção altruísta é uma freqüente e muitas vezes mais poderoso fator na
determinação de trabalhos de parto ou abstenções. O altruísmo inclui o amor

27
A Sociedade do Amanhã

produtiva. Ele pode, também, simplesmente guardá-lo para


necessidades futuras. Ele, então, serve ao propósito de uma dupla
reserva, correntes de ar sobre as quais podem evitar privações, ou
fornecer os meios de repelir tais chances como podem, doravante,
ameaçar a vitalidade. Quando indivíduos da mesma raça ou de raças
estrangeiras discutem quem obterá os materiais de subsistência, o
vencedor é aquele que tiver dedicado a maior parte dos lucros a fins
remuneratórios, a medidas mais adequadas para conservar ou
aumentar sua força vital.

A Lei da Concorrência para Subsistência

Competição Animal

Uma luta para adquirir os meios de vida tem sido chamada de


competição por uma subsistência. Aparece invariavelmente assim que
o suprimento natural de material deixa de ser suficiente para as
demandas de todos os membros da comunidade, tanto os fracos
quanto os fortes. O homem primitivo, ainda não instruído na produção
artificial, dependia apenas da provisão da natureza, e as consequências

à família e a raça, de verdade e justiça; e seu escopo é limitado apenas pelo


sentimento moral. Sob seu estímulo, homens morreram uns pelos outros,
uma causa, até mesmo uma ideia acalentada. Não há garantia real para a
oposição entre interesse e dever, uma contradição que foi muitas vezes
reiterada. O dever nada mais é do que a obrigação de agir em conformidade
com a justiça, cujo critério é o interesse geral e permanente da espécie. O
senso de justiça - em outras palavras, o senso moral - naturalmente nos
predispõe a conformar a ação ao dever. Este sentido é, sem dúvida,
distribuído de forma mais desigual. Certos indivíduos acham que a
obediência a seus ditames produz uma alegria que supera qualquer dor, e tais
homens perseguem o dever a todo custo e diante de todos os obstáculos,
outros são menos conscientes do estímulo. Um senso de obrigação é muitas
vezes desobedecido, mas cada lapso é seguido por esse sentimento de dor

28
Prefácio

de um déficit logo foram sentidas em uma sociedade que vivia dos


produtos da caça e dos frutos naturais da terra. Os membros mais
eficazes, o caçador de frotas e o caçador habilidoso, se destacaram e
viveram ; os fracos e menos aptos para essas tarefas definharam e
faleceram. Daí a luta original, primeira manifestação de um princípio
que rege todas as coisas criadas, e que denominamos Competição
Animal.

Concorrência Destrutiva, ou o Estado de Guerra

Uma restrição progressiva nas fontes naturais de suprimento


logo obrigou até mesmo o indivíduo mais eficaz a pagar um preço
mais alto por sua parte acusada, e o aumento do custo implicou
aumento do sofrimento. Com a quantidade de trabalho e esforço
necessários para a compra de um meio de subsistência, aumentando
em proporção inversa ao encolhimento da oferta, medidas paliativas
tornaram-se inevitáveis. Duas alternativas se apresentaram - a
competição restrita ou a multiplicação das fontes de subsistência.
Ora, a soma do conhecimento necessário para a produção
artificial das necessidades materiais da vida é tal que a inteligência
mais elevada falha, a menos que seja acompanhada de longa
experiência. Isso é tão verdadeiro que, até hoje, está além da
que é chamado de remorso. Finalmente, há muitos perdons cujo senso moral,
o senso de justiça, é bastante rudimentar; eles cometem todo tipo de injustiça
ou imoralidade para satisfazer suas paixões ou vícios, e são uma ameaça à
sociedade e à raça. A mera autodefesa obriga a sociedade a suplementar esse
senso enfraquecido das obrigações. Portanto, impõe penalidades, regulando
sua incidência de tal forma quea quantidade de prazer obtida ao cometer uma
injustiça é mais do que neutralizada pela punição que se segue. O primeiro
dever da sociedade é, portanto, promover o senso de justiça - o senso moral.
E é igualmente imperativo definir a distinção entre justo e injusto, moral e
imoral, uma vez que o dano ou benefício da sociedade e da espécie está
ligado à oposição entre essas duas idéias. Os interesses do indivíduo e da
espécie são, a seu respeito, idênticos. (Veja o livro “ La Morale
Economique”, do presente autor, i. - A Relação da Moralidade com a
Economia Política; veja também seu “Religião”, capítulo xii. - Religião e
Ciência.)

29
A Sociedade do Amanhã

capacidade de muitas tribos atrasadas. Muito simples, pelo contrário, é


a alternativa vista por um homem forte. A força conhece seu próprio
valor em relação a um concorrente fraco. Quando, mais ainda, vemos
como o resto da criação bruta é incapaz de compreender esse cálculo
elementar, podemos encontrar o primeiro vislumbre da suficiência do
homem em sua apreciação inicial de sua verdade.
A empresa envolveu, sem dúvida, uma certa quantidade de
trabalho e um certo risco. Mas a vitória nas lutas dos desiguais - e em
nenhum lugar há maior desigualdade do que entre os membros da raça
humana - nem sempre implica um esforço profundo ou a tomada de
riscos graves. Em qualquer caso, os fortes logo aprenderam que era
mais lucrativo atacar os fracos do que continuar o sistema anterior de
compartilhar um suprimento inadequado de alimentos.
Onde era costume devorar o corpo real dos derrotados, o novo
sistema era o mais produtivo. Em outras palavras, o esforço ou
sofrimento envolvido na destruição de um inferior era considerado
preferível à alternativa de morar em amizade, mas comer
insuficientemente. o invariável a escolha dessa alternativa mede a
expectativa de lucro que ela oferecia. Onde o canibalismo intervinha
como um acidente, a pessoa de cada vítima era ao mesmo tempo uma
refeição ganha e uma refeição - muitas refeições - poupadas.
Esta segunda forma de competição destrutiva é o puro estado de
guerra. Originada primeiramente na luta do homem pelo domínio
sobre os animais, a questão tornou-se uma entre o homem e o homem.
Um estado de guerra era, a partir de então, inseparável da existência
humana. Como principal motivo da construção de um vasto arsenal de
agências destrutivas, garantiu diretamente o triunfo da humanidade
sobre os animais, embora a natureza muitas vezes os tivesse dado
muito mais vantagens. Indiretamente, determinou as descobertas
industriais que permitiram ao homem multiplicar e complementar
artificialmente a visão da natureza sobre as bases materiais da
existência, em vez de inclinar a cabeça com os animais quando a
produção espontânea se atrasa na corrida com suas demandas. Assim

30
Prefácio

aconteceu que o forte não achou mais lucrativo massacrar, espoliar ou


ainda devorar suas vítimas. Em vez disso, obrigações são impostas, e
a vítima sobrevive como um servo ou escravo. Estados políticos são
formados e competição na forma de guerra é travada entre
comunidades, possuindo território e povos sujeitos, contra as hordas,
ainda em estado de selvageria e dependente da perseguição ou
pilhagem. As comunidades posteriormente competem entre si,
buscando na expansão territorial uma área de suprimento estendida ou
uma maior participação em escravos, servos ou súditos. O auto-
engrandecimento e a autoproteção são praticamente os únicos fins da
guerra moderna.5
O progresso, sob o impulso direto ou indireto dessa segunda
forma de competição, engendrou uma terceira forma—Produtiva ou
Industrial concorrência. Um breve levantamento de sua história nos
mostra que uma ameaça contínua de destruição ção, ou pelo menos de
espoliação, obrigou as comunidades que fundaram e possuíram
Estados políticos a se dedicarem ao aperfeiçoamento de seus
instrumentos e à consolidação das bases materiais de seu poder. Esses
instrumentos e esse tecido podem ser divididos em duas categorias.
Seu primeiro constituinte é um aparato destrutivo, um exército; seu
segundo é um aparato produtivo, capaz de assegurar a subsistência da
comunidade proprietária dentro do Estado, e também de seus
dependentes.
Além disso, deve fornecer os adiantamentos necessários,
primeiro para a montagem e, posteriormente, para a manutenção em
condições de funcionamento, do aparelho destrutivo. Sob pressão do
Estado de Guerra - e tanto mais quanto essa pressão crescia e
aumentava - as comunidades proprietárias do Estado eram impelidas
não apenas a melhorar a arte e os motores da guerra, mas também a
promover as capacidades produtivas de indústrias cuja função não era
apenas fornecer sustento, mas, através do apoio do establishment

5Veja o livro do autor "Les Notions Fondamentales de l'Economie Politique,"


Introdução, página 5.

31
A Sociedade do Amanhã

defensivo, tornar-se a base final de seus poderes de engrandecimento


político. Agora, a expansão da capacidade produtiva de qualquer
indústria depende de duas condições - Segurança e Liberdade.
Sem algum título seguro para os frutos de sua um produtor não
tem motivo para assumir trabalhos tão caros como a descoberta de
novos processos ou a invenção de ferramentas e máquinas, o que
aumentará sua produção. Isso é é ainda mais essencial que um
fabricante seja livre para se dedicar àquela indústria específica para a
qual suas habilidades são mais adequadas e para oferecer seus
produtos nos mercados que geram os maiores retornos.O lugar mais
alto na hierarquia da as nações foram para aquele Estado que
assegurou a mais plena liberdade e a maior segurança para sua
população industrial.O domínio de tal Estado aumenta com sua força,
e a segurança e liberdade que ele garante iniciaram e desenvolveram a
terceira forma de competição: Competição produtiva ou industrial.
Esta forma desloca o Estado de Guerra tão naturalmente como que
substituiu seu antecessor na série.

Competição produtiva ou industrial

Competição no campo da produção, como em todos os outros,


beneficia a espécie ao afirmar que "A corrida é para a frota, a batalha
para os fortes." Mas se as rivalidades da guerra e da paz levam a um
mesmo objetivo, é por caminhos muito diferentes.
Os meios pelos quais a competição do tipo destrutivo ou bélico
ocorre são diretos. Duas tribos que viajam pelas estrelas chegam a
soprar sobre um pedaço de vegetação ou um pedaço de terreno de
caça, e o olF mais forte, se realmente não destruir, o mais fraco
aproveita os meios de subsistência que foram a causa de sua luta. No
estágio posterior, quando a humanidade aprendeu a produção artificial
das necessidades materiais da vida, as comunidades de homens fortes,
que fundaram as empresas comerciais chamadas Estados, lutam pela

32
Prefácio

posse de um território e pela sujeição de seus habitantes. Eles, como


seus predecessores, buscam os meios de subsistência e esperam obtê-
los apropriando-se de todo o lucro líquido obtido pelo trabalho de seus
escravos, servos ou súditos. Eles podem anexar isso sob o disfarce de
trabalho forçado, ou sob o nome de impostos, e podem definir sua
conduta como competição política, mas é diferente em nenhum
particular das ações de um caça ou de uma tribo saqueadora. Ambos
se movem ao longo da estrada reta da destruição competitiva direta, e
ambas as ações são da classe da competição destrutiva ou bélica.
Muito diferentes são os processos de competição industrial,
embora eles também resultem na sobrevivência do mais forte, do mais
apto. O rival mais poderoso ainda leva o primeiro lugar, mas não cabe
mais ao vencedor proclamar ou avaliar sua própria vitória. Esta função
tem passado para um terceiro - para aqueles que consomem os
produtos ou serviços que os concorrentes oferecer.
O consumidor sempre compra no mercado mais barato. Uma
vez que ele tenha verificado a natureza precisa dos produtos que
competem por seu costume, sua própria mercadoria - e isso pode ser
produto real, serviço ou o equivalente monetário de qualquer um -
seleciona invariavelmente aquele mercado no qual pode comandar o
maior retorno. Quando dois mercados são iguais a esse respeito, a
balança comercial se inclina para aquela em que as necessidades ou
demandas do comprador são supridas com bens de melhor qualidade.
O vendedor mais barato - tudo o mais sendo igual - comanda o
mercado, e o vendedor mais barato é o produtor mais poderoso ou
eficaz. A competição produtiva ou industrial, portanto, atua sobre o
produtor estimulando seus poderes e capacidades de produção.
O produtor menos eficaz - seja de mercadorias ou serviços - é
penalizado por não vender; ele não pode, isto é, obter os outros
serviços e bens de que ele próprio precisa, e dos quais depende sua
própria existência. Para aumentar seus poderes ou capacidades de
produção, os produtores aplicam o princípio conhecido como Divisão

33
A Sociedade do Amanhã

do Trabalho. Eles também procuram inventar e fazer uso prático de


pro- processos, ferramentas e máquinas, pelo uso de que um dispêndio
idêntico de trabalho e sofrimento estão habilitados a devolver
produtos, ou serviços, em um relação constantemente crescente.
A concorrência produtiva é apoiada pela Lei da Economia do
Poder, e estes dois cooperam para promover o avanço da capacidade
produtiva. Mas enquanto atua como uma hélice, essa mesma
rivalidade cumpre uma segunda função, e não menos útil. Como pivô
de um equilíbrio, ele suporta as escalas que mantêm o equilíbrio entre
oferta e demanda, entre desembolso e retorno, ao nível do preço
necessário para induzir a criação de produtos ou serviços. A força
motriz, de nossa primeira visão, agora aparece como um "
governador", e seu defensor a esse respeito é uma nova lei - a Lei do
Valor.

A Lei Natural do Valor

O valor é um poder cuja fonte reside no próprio homem. Sua


sede é a soma daquelas forças, vitais, físicas e morais, com as quais o
homem é dotado, e que ele aplica para fins de produção ou destruição.
Aplicado à destruição, constitui valor militar ou de guerra e, embora a
guerra fosse a única sanção da segurança no mundo, esse (aspecto do)
valor era de maior utilidade para a espécie e, portanto, o mais
estimado.6 Não aparece, entretanto, sob a forma de uma agência que
regula a concorrência, até ser vista do ponto de vista da produção.
A produção age através do trabalho, e o trabalho é um dispêndio
de força vital, consequentemente de sofrimento. Além disso, o motivo
desse gasto é a expectativa de lucro. O lucro é, portanto, visto como
6 Não é preciso acrescentar que a destruição no interesse da segurança é um
fator necessário na produção. A capacidade de destruir constitui valor militar.
Se mani fested em limpar umterritoq ' dos animais selvagens que o
infestaram, ou como uma garantia contra as incursões de tribos pré-datory,
enraíza-se no solo, e forma, por assim dizer, os primeiros motivos para
atribuir valor a esse solo. (Veja o autor de " Les Notions Fondamentales
d'Economie Politique", capítulo IV. - The Produce of the Earth.)

34
Prefácio

um produto do trabalho, que permite que um homem persiga o prazer


ou evite uma soma de sofrimento que é maior do que o fator
semelhante em seu gasto original. O poder vital gasto dessa maneira
não é perdido, mas reencarnado. Ele reaparece, mais o lucro obtido,
no produto, e constitui o valor desse produto.
Um homem isolado consome esse valor tão logo o produz. Mas
hoje é o dia da divisão do trabalho e dos sistemas de troca sob a qual o
produtor oferece mercadorias, nas quais o valor foi investido, para
outras mercadorias que ele não possui, ou para aquilo que lhe
permitirá obter essas mercadorias por dinheiro.
O motivo final de toda troca é idêntico, sendo a esperança de
obter uma quantidade maior de energia vital do que foi gasto na
produção da mercadoria oferecida pelo vendedor. Em linguagem
econômica, é a esperança de recuperar os custos de produção mais um
lucro. O produto encomendado pelo vendedor também deve fornecer
ao consumidor, o comprador, com poder vital suficiente - certamente
com uma restauração suficiente de sua vitalidade, para induzi-lo a
comprá-lo com um equivalente suficiente para repor o poder vital
gasto na produção mais um lucro.
O grau desse lucro varia com o valor relativo dos produtos em
questão. O produtor procura elevá-lo ao ponto mais alto possível, e o
comprador se esforça para limitá-lo ao mínimo. A taxa de lucro é, no
entanto, determinada pelo ponto em que a intensidade comparativa
das necessidades ou desejos das duas partes de uma barganha se
encontram - a intensidade do desejo do vendedor de vender e a
intensidade do desejo do comprador de comprar. Essas medidas de
desejo se traduzem em termos de troca como a quantidade de seu
produto, que qualquer uma das partes oferece - a quantidade de
mercadorias oferecidas pelo vendedor e a quantidade de dinheiro
oferecida pelo comprador. Neste ponto podemos conceber diversas
variações na posição do vendedor e do comprador:

35
A Sociedade do Amanhã

• Um produtor pode encontrar um consumidor.


• Um consumidor pode ser atendido por vários produtores, ou a
posição pode ser exatamente invertida.
• Pode haver consumidores e produtores suficientes para erguer
uma competição real em ambos os lados.

Em cada um desses mercados hipotéticos, os preços, ou a taxa


de câmbio, serão determinados pela urgência comparativa de desejos
opostos. Devemos, no momento presente, limitar nossa atenção à
terceira alternativa. Então, se houver vários vendedores, e cada um
tiver um estoque mais ou menos completo, o medo de ser sub-vendido
por um rival obrigará os comerciantes a aumentar sucessivamente os
valores que eles oferecem a um determinado preço. Mas os
compradores, não temendo uma falha no fornecimento, reduzirão
continuamente o preço que estão dispostos a pagar. Os preços cairão,
uma vez que não há aproximação da demanda para a oferta. Em um
mercado vendedor, onde a soma do desejo de comprar supera a do
desejo de vender - de oferta, a recusa de um comprador em aumentar
seus lances pode resultar em sua falha em concluir uma compra, e a
tendência do preço é para cima.
É mais importante notar que os preços de mercado não seguem
apenas as quantidades oferecidas, mas se desenvolvem de acordo com
uma progressão geométrica. Pouca oferta não apenas reduz a oferta no
mercado, mas também aumenta a efetividade da demanda; um excesso
na oferta produz o resultado oposto, já que a urgência do vendedor
aumenta enquanto a da demanda diminui. No primeiro caso, o valor
do produto oferecido aumenta até um ponto em que permite mais do
que o lucro necessário, acima do custos reais de produção; no outro
caso, os preços caem até que os lucros desapareçam ou comece a gerar
prejuízos.7

7 Veja “Cours d'Economie Politique” do autor, Third Lesson, Value and Price.

36
Prefácio

Agora é fácil entender a ação reguladora da concorrência. Ela


tende a continuamente fixar o valor de troca - em outras palavras, a
manter os preços em um ponto que é igual ao custo de produção mais
a quantidade de lucro necessária para induzir o produtor a criar o
produto ou serviço que ele procura vender. Adam Smith
caracteristicamente chamou isso de preço natural. A superoferta e a
superprodução provocam uma queda na corrente de preços e, como
essa queda resulta de um impulso que se desenvolve segundo uma
progressão geométrica, logo cai abaixo do preço natural.
Tão logo este ponto é atingido, a produção tende naturalmente a
diminuir, e o consequente aumento gradual do preço-corrente
freqüentemente repassa o preço natural e erige um lucro excedente.
Mas os movimentos do capital e do trabalho seguem invariavelmente
os lucros. Assim que uma determinada indústria promete retornar mais
do que a taxa normal de lucro, fluxo de capital e trabalho começam a
entrar; a produção é forçada aos trancos e barrancos, e os mercados
estão mais uma vez cheios até a plenitude.
O clamor socialista por regulamentação, seja pelo Estado ou por
qualquer outra autoridade artificial, é, portanto, totalmente absurdo.
Regulação é essencial, mas as duas leis naturais de Produção e Valor
há muito desde que se juntou para protegê-lo. Precisamos apenas
abster-nos de lançar obstáculos no caminho de sua operação
reguladora; ou, se uma obstrução artificial se opuser a essa ação,
garantir sua liberdade na remoção da obstrução, de acordo com seus
próprios métodos. Sua ação deve ser assegurada, mas deve ser
assegurada apenas pela abstenção de toda interferência.
Tal é o motivo, e tais as leis, que governam a atividade humana.
O motivo é o Juro, e as leis são as do Menor Gasto, ou Economia de
Poder, da Competição em suas diversas formas, e do Valor. Sob o
impulso desse motivo e guiado por essas leis, o homem alcançou
aquele progresso que o elevou do nível dos brutos à civilização e
avançou do estado de guerra para o estado de paz.

37
A Sociedade do Amanhã

Enquanto o estado de guerra era uma condição integral da


existência e do progresso, esse motivo e essas leis trabalhavam para a
adaptação da economia política e social a esse estado.
Quando a civilização se tornar a garantia da segurança, e o
estado de guerra for substituído pelo estado de paz, o motivo e as leis
vão se estabelecer, mas trabalhando para outros fins. E, a partir do
ponto em que hoje estamos na longa estrada da evolução, já podemos
olhar para a frente e profetizar sobre a organização política e
econômica da Sociedade do Amanhã. Volumes anteriores de minha
caneta prenunciam esse futuro. As concepções arbitrárias do socialista
não terão parte nisso, pois não serão fundadas em leis que emanam do
cérebro do homem, mas em leis que são de uma origem com aquelas
que governam o mundo físico. Deles Quesnay, um dos pais da
Economia Política, disse, "Estas Leis do Mundo Físico foram
ordenados apenas para o bem, e não deve haver atribuição a eles de
males que são a punição justa e inevitável por sua violação”.

38
PARTE I
O Estado de
Guerra
CAPÍTULO I

A Formação das Comunidades


e as Condições Necessárias à sua
Existência

A formação das comunidades primitivas tem sido atribuída a um


sentimento peculiar no homem de simpatiapara com sua espécie, mas
uma observação mais cuidadosa prova que a humanidade não possui
tal sentimento inato. O aparecimento de tal sentimento resulta de uma
necessidade de apoio mútuo, e dos interesses evocados por essa
necessidade.
Uma comunidade de interesses e necessidades é a base da
amizade humana, enquanto a oposição de necessidades e interesses
não só é capaz de provocar antipatia, mas é notório que nada na terra
tem o mesmo poder de levar um homem ao ódio tão violento e
implacável como um membro de sua própria espécie. As associações
humanas eram, de fato, o produto da necessidade simples. Assim, e
somente assim, o homem poderia perceber os prazeres e evitar
sofrimentos que, caso contrário, ele teria que se contentar em
conceber ou suportar.
41
A Sociedade do Amanhã

Quando, por outro lado, qualquer criatura viva estava melhor


adaptada a uma existência solitária, ela adotava esse modo de vida,
assim como faz o carnívoro. A necessidade de assistência mútua levou
outras ordens a um hábito gregário, e a sociedade humana foi
originada dessa maneira. A vida social se impôs aos homens como o
único meio para o fim desejado — primeiro em seu duelo com as
feras, das quais elas eram ao mesmo tempo concorrentes e presas, e
mais tarde, quando indivíduo combateu indivíduo e tribo se opôs à
tribo. A unidade fisicamente inferior, possuidora de inteligência
suficiente para se unir aos semelhantes, foi capaz de inclinar
arbitrariamente a balança e sobreviver, para o benefício da raça.
Esse primeiro passo levou naturalmente a outros, pois a mera
capacidade de se combinar sob ameaça real de destruição pelos mais
poderosos era insuficiente. A nova confederação teve que aprender os
meios de se perpetuar, e como organizar e combinar esses meios, de
modo a produzir o maior poder obtível, seja para ataque ou defesa.
Assim surgiu uma organização que pode ser rastreada através
das sociedades mais atrasadas, e essa organização é visível, de uma
forma rudimentar, mesmo entre as feras. Isso é o governo.
Um levantamento superficial das condições em que as
sociedades primitivas foram capazes de manter sua unidade e
consolidar suas forças, exibe imediatamente o papel desempenhado
por essa organização e a natureza de seu crescimento. Estas condições
podem ser resumidas como a garantia da segurança interna e externa.
Em outras palavras, aqueles atos que são prejudiciais à
comunidade devem ser distinguidos daqueles que são benéficos a ela;
as duas categorias devem ser claramente definidas e mantidas por uma
penalidade entre os homens. Uma organização destinada a assegurar a
integridade da associação — uma integridade com a qual o bem-estar
de cada membro estava vinculado — só poderia ser formada
combinando todos os indivíduos capazes de discernir a oposição entre
o socialmente prejudicial e o socialmente lucrativo junto àqueles

42
A Formação das Comunidades
e as Condições Necessárias à sua Existência

membros, os individualmente fortes, que eram mais capazes de


reprimir tais atos conforme eram julgados prejudiciais ao corpo
político.
Sem dúvida, as regras chamadas leis, que distinguem o útil do
prejudicial, o bem do mal, são puramente fruto da observação e da
experiência, e sempre mais ou menos adaptadas ao seu propósito.
Elas são, por isso, tanto mais valiosas, tanto mais "justas”,
quanto mais contribuem para a manutenção da comunidade através do
aumento da sua força. De qualquer maneira, elas eram, mesmo desde
o início, uma garantia muito melhor de seu objeto pretendido do que
aquelas regras individuais com as quais eles prosperaram.
Da mesma forma, por mais injusto ou imperfeito que seja o
governo de um estado primitivo, ele garantiu uma segurança maior ao
indivíduo do que este jamais poderia ter obtido para si mesmo. Em
vez de se defender sozinho contra aqueles riscos que eram o fardo
comum de cada membro, a proteção corporativa tornou-se um direito
pessoal, ao mesmo tempo em que ela também era garantida a um
custo bem menos proporcional.
Antes do advento de um “estado”, o indivíduo isolado mantinha
uma existência muito precária ao custo da maior parte de seu tempo e
trabalho. Deste momento em diante, grande parte desse tempo e
trabalho foi libertado, e o “membro de um estado” foi habilitado a
gastá-lo na satisfação de desejos menores, ou na descoberta de
material, ou na invenção de instrumentos e processos, pelos quais ele
imediatamente obteve um maior retorno por seu investimento e um
aumento de prazer ou uma diminuição do sofrimento.
Os membros de uma sociedade estão unidos por interesse
comum, seja ele mera segurança pessoal ou a garantia de seu sustento.
Esse interesse comum naturalmente desperta, e mais tarde desenvolve,
um sentimento de simpatia entre os associados e, em seguida, entre
eles e a comunidade. Não abrange nada além dos limites da
associação, horda, clã ou tribo. Indivíduos fora desses limites, e as

43
A Sociedade do Amanhã

comunidades as quais esses indivíduos pertencem, são considerados


com o desprezo ou ódio naturalmente devido a um concorrente em
assuntos tão vitais. E a competição entre indivíduos ou estados é vital
neste momento, pois até que o homem tenha aprendido como
complementar a oferta natural dos materiais de subsistência sua
existência depende dessa oferta, e sua própria parcela só pode ser
aumentada às custas de um rival.

44
CAPÍTULO II

Competição entre Comunidades


Primitivas e seus Resultados

Conforme a população começou a superar os meios de


subsistência, que a humanidade ainda não tinha aprendido a aumentar
por métodos artificiais, a sociedade primitiva foi obrigada a escolher
entre a eliminação do excesso de população, ou o confisco de áreas de
caça, ou fontes de abastecimento agrícola, pertencentes a alguma tribo
vizinha. Os fortes novamente sobreviveram e os fracos
desapareceram. Mas o novo sistema de associação já estava
assegurando um certo lazer e um grau de alívio da necessidade de
esforço contínuo.
Os mais inteligentes entre os possuidores de poderes inferiores
aproveitaram sua oportunidade e, sob o estímulo contínuo da
necessidade de sobrevivência, inventaram armas e métodos de
destruição que alteraram o equilíbrio natural do poder. A vitória se
inclinou para o lado deles, pelo menos até os homens de vigor terem
aprendido a lucrar com a sabedoria superior deles e a imitar as
habilidades dos mesmos.

45
A Sociedade do Amanhã

Mas um segundo resultado ocorreu nesse meio tempo. Os


mecanismos de destruição foram tão úteis no campo quanto no
conflito real, e um aprimoramento da arte da guerra logo diminuiu o
número de animais selvagens. Aqui estava um novo estímulo, pelo
menos para aquelas tribos cuja força era insuficiente para desapropriar
um vizinho. Os hábitos de observação e a faculdade criativa,
respondendo ao motivo da necessidade, perceberam aquele passo
decisivo no caminho do progresso que, de uma vez por todas, elevou a
humanidade além das regiões do mero animalismo. Pela destruição
sistemática que compartilhava com os animais, e que limitava seu
número aos meios naturais de subsistência, o homem substituiu as
indústrias produtivas, e ao adquirir o poder de expandir
indefinidamente os meios de subsistência, se posicionou a partir
daquele dia como senhor da criação.
Grandes nações, amplamente equipadas com tudo o que é
necessário à manutenção da vida, sucedem agora as tribos de algumas
centenas de indivíduos que arrebatavam uma existência precária de
vastos territórios. Mas as mesmas causas que tornaram possível a sua
ascensão colocaram essas nações face a face com um novo perigo.
Cada avanço foi acompanhado por um novo perigo nas mãos das
tribos que ainda subsistiam pela guerra e perseguição. O espetáculo de
sua riqueza era irresistivelmente atraente, e as perspectivas de uma
incursão bem-sucedida, mensuradas na expectativa de saque,
tornaram-se cada vez mais desejáveis. As nações, por outro lado,
dependendo da agricultura e daquelas artes pacíficas, cuja criação
acompanha o crescimento da indústria aplicada à produção das bases
materiais da vida, perderam suas antigas aptidões para as práticas da
guerra e do campo da caça, mesmo porque deixaram de usá-las.
Nessas condições desiguais, a civilização deveria ter perecido
no início, não tivesse o mesmo processo que determinou a
substituição da agricultura pela perseguição se manifestando de novo.
Em vez de assassinar e roubar, uma nação se impôs sobre, e explorou,

46
Competição entre Comunidades Primitivas e seus Resultados

outra. Uma investida é umexpediente temporário, e as colheitas


repetidas de violência produzem uma safra em contínua diminuição.
As terras abundantes retornaram ao deserto de onde haviam sido
arrancadas, pois o trabalhador jazia morto em seu sulco. Mas tão logo
o espoliador mais perspicaz de seus vizinhos compreendeu a situação,
ele, então, concebeu meios eficazes para perpetuar seu fornecimento,
e até mesmo para aumentar seu rendimento. Aqueles que antes haviam
devastado agora conquistaram a terra para possuí-la; onde eles tinham
destruído eles escravizaram, e a vítima compra sua sobrevivência por
uma rendição de todo o, ou uma parte do, lucro líquido de seus
trabalhos.
O conquistador agora se interessava em proteger suas fontes de
suprimento e começou a conceber sistemas para uma melhor
exploração dos territórios e daspopulações que foram escravizadas.
Esses sistemas são os primeiros ESTADOS POLÍTICOS e sua
garantia contra novas violações externas era sua sujeição àqueles que
haviam visto o valor do novo sistema pela primeira vez.Assim,
constituiu-se mais um avanço mais significativo, cujo processo natural
acabou por garantir a civilização contra os riscos de destruição e um
retorno à barbárie.

47
CAPÍTULO III

Competição entre Estados em


Processo Civilizacional

Assim que a exploração do território conquistado e das


populações sujeitas se tornou geral, com a consequente ascensão do
estado Político — dos estados — as comunidades conquistadoras se
envolveram em duas outras formas de competição. Certas tribos
particularmente guerreiras persistiram nas práticas de destruição e
pilhagem, enquanto os estados, entre si, buscavam todos os meios
possíveis de expansão.
Como os fundadores e proprietários de qualquer outro negócio,
os donos de um estado político desejavam aumentar os lucros da
indústria da qual obtinham seu sustento. Eles podem conseguir isso
seja aumentando os rendimentos líquidos de seu empreendimento, a
exploração de súditos, ou poderiam expandir, conquistar um novo
território e, consequentemente, obter novos súditos. Mas o primeiro
método exigiu um grau de progresso que não era realizável em um
dia: o trabalho dos seus empregados tinha que ser tornado mais

49
A Sociedade do Amanhã

produtivo através de uma melhor administração e de melhores


métodos de exploração. Uma medida ampliada de liberdade e o gozo
de uma proporção maior de seus próprios ganhos também devem ser
assegurados aos trabalhadores.
Agora, o absolutismo daqueles que possuíam os estados,
sancionado pelo direito de apropriação e conquista, não menos do que
pela esmagadora superioridade do poder organizado, permitiu-lhes
usar seus súditos como meros bens. A cupidez natural concedida a
esse “gado humano” não permitia a satisfação de mais do que as
meras necessidades da existência, frequentemente muito menos, e foi
apenas uma experiência longa e dispendiosa da perda causada por sua
própria ganância que forçou os estadistas a reconhecerem que o meio
mais seguro e eficaz de ampliar seu lucro líquido — seja sob a forma
de trabalho forçado ou como impostos, em bens ou em dinheiro — era
incentivar o produtor a aumentar sua produção bruta.
Obter um novo território e mais súditos era comparativamente
fácil. Ambas iniciativas eram concepções naturalmente atraentes ao
espírito e à capacidade de uma casta conquistadora, e surgem, em
todas as épocas e em todos os casos, como o primeiro, muitas vezes o
único, objetivo de seu sistema político.
Mas havia consequências latentes nessa corrida por território e
súditos a explorar, que os concorrentes nunca imaginaram. Os
proprietários de um estado, passíveis de desapropriação total ou
parcial nas mãos de um rival, mantiveram sua posição sujeita a não
negligenciar nenhuma das muitas atividades que consolidam e
garantem a integridade de uma associação política. Eles tiveram que
aprender que a perfeição do material, artístico e pessoal dos exércitos,
é de pouco valor quando desacompanhado por um desenvolvimento
semelhante das instituições políticas e civis, dos sistemas fiscais e
econômicos.

50
Competição entre Estados em Processo Civilizacional

Em todos os lugares e em todas as épocas, foi esta forma de


competição que estimulou os homens a aperfeiçoar as instituições da
política e da guerra, do estado civil, fiscal e econômico. Sempre e em
todas as épocas, também, as comunidades mais avançadas — aquelas
que desenvolvem suas instituições destrutivas e produtivas ao mais
alto grau — tornam-se as mais fortes e vencem a corrida. Nossos
volumes anteriores viram esse processo em ação. Vimos que os
melhores agentes da destruição avançam a produção ampliando
continuamente suas saídas. A segurança da civilização não foi
assegurada nem pelas artes pacíficas nem mesmo pelas da guerra, mas
pela cooperação de ambas.8

8Vejao livro do autor “L'Evolution Economique du XIXme Siècle,” e


também “L'Evolution Politique et la Révolution”.
51
CAPÍTULO IV

O Declínio da
Competição Destrutiva

Já que o lucro é o motivo da guerra não menos do que de todas


as outras ações humanas, uma aliança entre as artes de produção e
destruição logo diminuiu o incentivo que levou as tribos a viver
apenas de pilhagem e violência. Invadir uma comunidade civilizada
tornou-se cada vez menos lucrativo à medida que a arte e o material
da guerra passaram a exigir uma força moral, uma quantidade de
conhecimento e capital, que apenas a civilização pode ordenar. As
expedições, empreendidas em nome da pura pilhagem, cessaram,
portanto, de render aqueles lucros enormes que tinham feito delas a
ocupação favorita das hordas bárbaras.
As incursões tribais tendem a não trazer lucro, ou a garantir
retornos tão perigosos e insatisfatórios que o que era até então uma
regra torna-se cada vez mais raro, ocorre apenas nas fronteiras mais
distantes e menos guardadas, e é finalmente abandonada. Então a
velha ordem é revertida, pois o estado civilizado torna-se o agressor,

53
A Sociedade do Amanhã

subjuga o bárbaro e ocupa seu lugar. Essa expansão da civilização às


custas dos incivilizados começou há muitos séculos, e quando sua
justificação for naturalmente esgotada — provavelmente no século
presente — a causa de muitas guerras terá desaparecido.
De fato, as guerras, empreendidas por esse motivo, já são de
importância secundária, uma vez que raramente exigem o exercício de
mais do que uma parcela mais insignificante dos recursos de um
estado. É quando o estado enfrenta um estado que todo o poder dos
equipamentos militares modernos é visto, e essas ocasiões são o
grande motivo de seu estabelecimento. Tão imenso e tão custoso é
esse aparato que dificilmente há um estado que não gaste em sua
manutenção mais riquezas, mais trabalho e ainda mais inteligência do
que é atribuído a qualquer indústria produtiva, exceto apenas a
agricultura.
Sempre foi difícil definir os verdadeiros lucros derivados de
uma guerra, mas, até que a integridade da civilização fosse finalmente
assegurada da agressão bárbara, esses lucros eram de dois tipos. Todo
conquistador na guerra é recompensado com ganhos materiais e
satisfação moral, mas a vitória naqueles tempos também garantiu um
maior grau de segurança. Essa melhor segurança da civilização era a
medida de seu avanço nas artes da guerra, pois a guerra era seu único
critério possível.
Sejam morais ou materiais, os ganhos da guerra sempre foram
praticamente monopolizados pelo elemento proprietário e governante
dentro do estado vitorioso.Esses lucros nunca foram tão altos quanto
quando a conquista foi seguida por uma partição do território recém
conquistado e seus habitantes, pois os vencedores ganharam, dessa
forma, uma glória e prestígio extras — sobre e acima da glória comum
da vitória — visto que eles escaparam do destino que agora deram aos
vencidos. Enquanto isso, sua vitória também havia protegido seus
próprios escravos, servos ou súditos dos males de uma possível
invasão, com sua inevitável mudança de mestres, dos quais os novos
eram muitas vezes os mais brutais e vorazes. Finalmente, toda guerra

54
O Declínio da Competição Destrutiva

que resultou em um avanço, ainda que fraco, na arte da destruição,


marcou a realização de mais um passo no longo caminho desse
progresso cujo objetivo era o estabelecimento da civilização. Mas,
como a vitória deixou de ser sinônimo do ato de massacrar os
vencidos, mesmo de escravizá-los, esses vários lucros diminuíram. A
derrota de um estado implica agora pouco mais que uma alteração
nominal no trimestre a que a lealdade é devida.
Além disso, uma vez que a segurança da civilização é
estabelecida, os lucros derivados de uma guerra não incluem mais essa
contagem. Mas tais lucros que restam são as prerrogativas do poder
governante no estado e são divididas entre os militares e os civis. Uma
guerra beneficia a hierarquia militar ao acelerar o avanço na
graduação e remuneração; por aqueles "votos" extraordinários, ou
honorários, que uma nação grata concede aos líderes bem sucedidos; e
pela glória adquirida, embora esta tenha diminuído de valor com a
constante diminuição dos danos e perigos dos quais a vitória salva
uma nação, e dos benefícios que ela proporciona. Uma guerra bem-
sucedida beneficia o político ao aumentar seu poder e influência, mas
não se pode dizer que afete consideravelmente a permanência precária
em seu cargo.
Uma guerra – tais guerras, pelo menos, quando ampliam as
fronteiras nacionais – traz lucro para uma terceira classe do estado, os
funcionários, pois amplia o escopo de suas atividades. Mas deve-se
confessar que o lucro desse tipo tende a ser um tanto temporário, pois
é certo que o novo território deve, em última instância, produzir seus
próprios aspirantes a posições administrativas, que disputarão o
campo com os súditos do estado conquistador. Finalmente, o lucro às
vezes é obtido na forma de uma indenização monetária no lugar do
engrandecimento territorial real. A tal indenização é geralmente
dedicada a reparar os inevitáveis desperdícios e danos da guerra, ou a
ampliar os armamentos do vencedor.

55
A Sociedade do Amanhã

Mas, além de ganhar lucros para o vencedor, toda guerra


ocasiona perdas e danos às massas que estão envolvidas nas indústrias
produtivas, e esses males são sentidos pelos súditos dos estados
neutros não menos do que os súditos dos beligerantes reais. A própria
transformação que foi efetuada no mecanismo de destruição também
aumentou a esfera de seus efeitos e a gravidade dos males que ela
acarreta.
As perdas diretas da guerra são as da vida e do capital, e essas
perdas cresceram lado a lado com o aumento do poder que se seguiu
ao crescimento da população, da riqueza e do crédito, particularmente
entre os estados do Velho Mundo e no curso do século passado.
Tampouco a perda de vidas é sentida menos diretamente do que as
perdas de capital, pois é a parte reprodutora de uma população que
entra no exército, e sua destruição implica a perpetuação de um tipo
menos eficaz. A perda direta desse tipo afeta principalmente os
combatentes, a área de danos indiretos segue a extensão dos interesses
internacionais. Os mercados são reduzidos, o volume das trocas é
diminuído, a demanda por capital e trabalho é interrompida. Na
verdade, enquanto as despesas aumentam repentinamente, uma
restrição é colocada sobre a ação das agências que fornecem os meios,
e essas perdas e danos não são compensados por qualquer aumento
correspondente da segurança geral.
Mas, o pior de todos os fardos, a persistência da guerra obriga
cada nação a manter uma vasta maquinaria permanente de destruição,
e todo progresso na arte ou ciência da guerra agora aumenta o custo
desse estabelecimento.
Todo estado deve acompanhar o avanço dos armamentos de seus
vizinhos. Ele deve, em meio à paz, dedicar uma proporção
continuamente crescente da receita para manter a corrida do presente e
pagar as dívidas do passado. Isso também não é tudo. Cada vez mais
homens são retirados das fileiras da indústria e enviados para uma
vida de ociosidade e desmoralização até que seja necessário, no caso,
empregá-los no trabalho de destruição.

56
O Declínio da Competição Destrutiva

Tendo cumprido sua tarefa natural de garantir a segurança, a


guerra agora se tornou prejudicial. Nós veremos que ela está
condenada a dar lugar a umaforma superior de concorrência — a
concorrência produtiva ou industrial .

57
CAPÍTULO V

Por Que o Estado de Guerra


Continua Quando Ele Não Mais
Cumpre um Propósito

A guerra deixou de ser produtora de segurança, mas as massas,


cuja existência depende das indústrias de produção, são obrigadas a
pagar seus custos e sofrer suas perdas sem receber compensação ou
possuir meios para acabar com a contradição. Os governos possuem
esse poder, mas se os interesses dos governos acabam por coincidir
com os interesses dos governados, eles são, em primeira instância,
opostos a eles.
Os governos são empresas — em linguagem comercial ,
“concerns”— que produzem certos serviços, os principais deles são a
segurança interna e externa. Os diretores dessas empresas — os chefes
civis e militares e seus funcionários — estão naturalmente
interessados em seu engrandecimento por causa do benefícios material
e moral que tal engrandecimento assegura a si mesmos. Sua política

59
A Sociedade do Amanhã

doméstica é, portanto, aumentar suas próprias funções dentro do


estado, arrogando terreno pertencente a outras empresas; no exterior,
eles ampliam seu domínio por meio de uma política de expansão
territorial. Não significa nada para eles se essas empreitadas não se
mostrarem rentáveis, uma vez que todos os custos, seja de seus
serviços ou de suas conquistas, são arcados pelas nações que eles
dirigem.
Se, agora, consideramos uma nação como o consumidor do que
seu governo produz, vemos que é do interesse dos governados aceitar
do governo apenas os serviços que este último é capaz de produzir
melhor e a um custo menor do que outras empresas, e comprar o que é
preciso ao menor preço possível. Da mesma forma, uma nação exige
que uma anexação de território resulte em uma ampliação de seus
mercados que seja suficiente para permitir que ela recupere todos os
custos de aquisição, além do lucro; e esse lucro não deve ser menor do
que os retornos que poderiam ter sido garantidos por qualquer outro
emprego de seu capital e trabalho.
Mas essa relação de governo e nação, como produtor e
consumidor, não é um livre mercado. O governo impõe seus serviços,
e a nação não tem escolha senão aceitar. Certas nações, no entanto,
possuem governos constitucionais, e essas nações têm o direito de
assentimento e de ajustar o preço. Mas, apesar das reformas e
revoluções tão frequentes nos últimos cem anos, esse direito falhou
totalmente em estabelecer um equilíbrio entre as posições de
consumidor e provedor de serviços públicos. Ademais, os governos de
hoje estão menos interessados do que seus precursores em abster-se de
abusar dos poderes e recursos de suas nações, enquanto as nações
também estão menos interessadas e talvez menos capazes de se
proteger contra tal abuso.
Sob o antigo sistema, o estabelecimento político, ou o estado,
era a propriedade perpétua daquela associação de homens fortes que o
haviam fundado ou conquistado. Os membros desta associação, de
cima para baixo, sucederam por prescrição hereditária àquela parte do

60
Por Que o Estado de Guerra Continua
Quando Ele Não Mais Cumpre um Propósito

território comum que havia recaído sobre sua parcela na partição


original, e ao exercício dessas funções que estavam ligadas às suas
respectivas posses. Sentimentos de família e propriedade, os mais
fortes incentivos conhecidos pela raça humana, estavam combinados
para influenciar sua ação. Eles pretendiam deixar aos seus
descendentes um patrimônio que não deve ser nem menor em
extensão nem inferior em condição à que eles receberam de seus pais,
e para manter este ideal o poder e os recursos do estado devem ser
aumentados, ou pelo menos mantidos em toda a sua integridade.
Havia também um limite fiscal para as imposições que exigiam
de seus súditos, qualquer ultrapassagem que envolvesse perda pessoal,
muitas vezes envolvia também perigo pessoal.Se eles abusassem de
seu poder soberano como possuidores, seja esgotando a
potencialidade tributável da população ou esbanjando o produto de um
imposto que se tornara excessivo, seu estado caía na pobreza e na
decadência, e eles próprios ficavam à mercê de rivais que eram ainda
muito alertas e prontos para aproveitar qualquer oportunidade de
enriquecimento à custa do decadente ou indefeso.
Os governados eram capazes de conter qualquer abuso de poder
soberano por parte do governo através da pressão que era exercida
sobre o governante por sua esperança de transmitir seu poder a seus
filhos e por essa forma de competição que constituía o estado de
guerra.
Simultaneamente, à medida que os perigos externos diminuíam
e uma evolução contínua na maquinaria da guerra exigia gastos ainda
maiores, a concorrência deixou de exercer pressão contínua. Assim, o
grau de seu estímulo diminuiu. Só que ao mesmo tempo em que os
senhores dos estados não diminuíram nada daqueles tributos e
serviços que exigiam de seus súditos, mas sem a justificativa anterior
de perigo. Portanto, surgiu um descontentamento crescente naquelas
classes cujo poder havia avançado com seu progresso nas artes da
indústria e do comércio, e esse processo continuou até resultar na
queda da velha ordem.

61
A Sociedade do Amanhã

A principal característica que distingue a nova ordem e a separa,


pelo menos em teoria, daquela que a precedeu, é a transferência do
establishment político, do estado, para o próprio povo.Com isso,
naturalmente, passou aquele poder soberano que é inseparável da
propriedade do domínio e dos súditos do estado. Este poder que era
exercido pelo chefe, geralmente hereditário, do governo da associação
política, e que incluía um poder de disposição absoluta sobre a vida e
os bens dos súditos, era justificado pelo estado de guerra original.
Sob as condições que então prevaleciam, era essencial que o
chefe que era responsável pela segurança de um estado tivesse
poderes ilimitados para requisitar a pessoa e os recursos de cada
indivíduo e usá-los de qualquer maneira que ele pudesse julgar boa,
seja para a real defesa do estado ou com o objetivo de aumentar seus
recursos por expansão territorial. A propriedade do estabelecimento
político pode passar para as mãos da nação, mas a necessidade de tal
poder permaneceu. Enquanto o estado de guerra era a ordem que
regulava o mundo, assim por muito tempo foi um poder de disposição
ilimitado sobre o indivíduo, sua vida e bens, um atributo essencial dos
governos responsáveis pela segurança nacional.
Mas, como a experiência já havia demonstrado quão sujeita essa
delegação do poder soberano era ao abuso, era necessário elaborar
medidas que garantissem seu exercício adequado. Além disso, como a
experiência mostrou que a nação não foi capaz de cumprir o ofício de
se governar, os teóricos responsáveis por erguer a nova ordem
retiraram dela todos os poderes além do de nomear os delegados aos
quais o exercício do poder soberano deveria ser confiado. Tal
delegação implicava o risco de um serviço infiel por parte daqueles
que foram escolhidos, e também se previa que poderiam surgir
discrepâncias entre a sua política e a vontade nacional, pela simples
razão da sua manutenção demasiado longa no poder. Um período mais
ou menos restrito foi, portanto, colocado sobre o seu mandato.

62
Por Que o Estado de Guerra Continua
Quando Ele Não Mais Cumpre um Propósito

A experiência também prenunciou outra dificuldade. Os


delegados não são mais capazes do que seus constituintes em cumprir
todo o ofício de um governo. Não é possível que eles se organizem,
mantenham os mecanismos necessários para garantir a segurança
externa e interna e cumpram aquelas outras funções que, com ou sem
razão, são exigidas do “governo.” As novas “constituições”, então,
limitaram o poder soberano delegado ao governo ao exercício da
prerrogativa legislativa, com um direito adicional de delegar o poder
executivo a ministros que deveriam ser responsáveis pelo mesmo e
que deveriam ser obrigados a conformar sua conduta, sob pena de
demissão, à vontade da maioria na assembleia de delegados.
Este método de divisão do poder soberano entre várias agências
executivas era capaz de muitas variações. Em uma monarquia
constitucional, por exemplo, o cargo principal do estado permaneceu
sujeito à transmissão hereditária, mas seu ocupante foi declarado
irresponsável e sua ação foi limitada à única função de nomear, como
ministro responsável, o homem escolhido pela maioria dos
representantes nacionais. Esses representantes são nominalmente
escolhidos pela nação, pelos membros da nação que possuem direitos
políticos, mas, na verdade, eles não são mais do que os candidatos das
associações, ou partidos, que disputam a posição de "condutores do
estado" por conta dos benefícios materiais e morais que acompanham
a posição.
Essas associações, ou partidos políticos, são verdadeiros
exércitos que foram treinados para perseguir o poder; seu objetivo
imediato é, então, aumentar o número de seus adeptos de modo a
controlar uma maioria eleitoral. Aos eleitores influentes são, para esse
fim, prometidas uma parcela de uma ou outra participação nos lucros
que se resultarão do sucesso, mas tais promessas— geralmente cargo
ou privilégio— são resgatáveis apenas por uma multiplicação de
"cargos", que envolve um aumento correspondente de
empreendimentos nacionais, seja de guerra ou de paz. Não significa
nada para um político que o resultado seja o de encargos aumentados
e drenagens mais pesadas da energia vital do povo.

63
A Sociedade do Amanhã

A incessante competição sob a qual eles trabalham, primeiro em


seus esforços para garantir o cargo e depois para manter sua posição,
os obriga a fazer do interesse do partido sua principal preocupação, e
eles não estão em posição de considerar se esse interesse pessoal e
imediato está em harmonia com o bem geral e permanente da nação.
Assim, os teóricos da nova ordem, substituindo a atribuição
permanente do poder soberano, agravaram a oposição de interesses
que era seu pretenso propósito coordenar. Eles também
enfraqueceram, se não destruíram realmente, a única agência que tem
algum poder real para restringir os governos, em sua capacidade de
produtores de serviços públicos, de um abuso do poder soberano em
detrimento daqueles que consomem esses serviços.
As constituições foram, no entanto, pródigas em suas promessas
de garantias contra esta possibilidade, a mais notável das quais, talvez,
foi o poder de censura investido na imprensa —um direito que muitas
vezes tem se provado bastante estéril de resultado. Pois a imprensa
achou mais proveitoso colocar sua voz à disposição dos interesses de
classe ou do partido e ecoar as paixões do momento, em vez de soar a
voz da razão.
Em nenhum lugar a imprensa foi conhecida por agir como um
freio à tendência governamental de aumentar os gastos nacionais. As
razões econômicas, os avanços da indústria e a expansão do crédito,
promoveram ativamente a mesma tendência.
Durante o século passado, a atividade industrial aumentou a
passos largos, e o avanço contínuo na riqueza das nações permitiu-
lhes suportar encargos que teriam esmagado qualquer outra época. O
desenvolvimento do crédito público também forneceu um dispositivo
cuja posteridade foi sobrecarregada com uma proporção
continuamente crescente das despesas de hoje e, em particular, os
custos da guerra foram quase inteiramente custeados assim.

64
Por Que o Estado de Guerra Continua
Quando Ele Não Mais Cumpre um Propósito

E Isso não é tudo. A geração atual, ou pelo menos uma parte


importante e influente dela, tem se interessado pelo sistema de gastar
dinheiro emprestado, uma vez que eles colhem todos os lucros que
resultam do consequente progresso nos negócios, mas só são
obrigados a fornecer uma mera fração dos fundos que devem, em
última análise, pagar esses passivos.
Esta é a verdadeira razão pela qual esse poder soberano, que
ainda é a atribuição do governo, aumentou os passivos das nações em
uma extensão muito maior do que jamais foi conhecido sob a velha
ordem. E fez isso não menos ampliando suas funções de uma maneira
totalmente contrária à economia sã, do que continuando um sistema de
guerras que não são mais justificadas como de qualquer forma
promovendo a segurança da civilização.

65
CAPÍTULO VI

Consequências da Perpetuação
do Estado de Guerra

Enquanto a guerra fosse a garantia necessária de segurança —


uma garantia cujo fracasso deveria ter reduzido continuamente as
sociedades humanas a um estado semelhante ao mero animalismo —
os sacrifícios que acarretou, e as perdas que causou, foram
amplamente compensados por sua contribuição para a permanência da
civilização. Mas essa compensação deixou de existir desde que os
poderes de destruição e produção, alcançados sob seu impulso,
asseguraram uma dominância decisiva às nações civilizadas. Ademais,
o próprio progresso do qual a guerra foi o principal agente aumentou
seu fardo. A guerra moderna implica um maior gasto de vida e capital,
e, direta ou indiretamente, um maior dano. E mesmo que seja
impossível calcular a soma dessas perdas e essa despesa, podemos
obter alguma ideia de seu volume por um levantamento superficial.

67
A Sociedade do Amanhã

Precisamos fazer pouco mais do que analisar alguns números.


Os vários estados da Europa acumularam uma dívida de 130 bilhões
de francos (£5.200.000.000), dos quais a boa soma de 110 bilhões
(£4.400.000.000) foi adicionada durante o século passado.
Praticamente todo esse total colossal foi causado por causa das
guerras. O exército dessas mesmas nações conta com mais de
4.000.000 homens em tempo de paz; em pé de guerra , chega a
12.000.000. Dois terços de seus orçamentos combinados são
dedicados ao serviço dessa dívida e à manutenção de suas forças
armadas pelo mar e terra. Quando nos voltamos para a taxa em que os
encargos públicos aumentaram durante o século, descobrimos que a
contribuição monetária total avançou 400 ou 500 por cento, e que a
"drenagem de sangue" entre as nações continentais seguiu em uma
escala quase idêntica.
No caso específico da França, o orçamento agora está em quatro
bilhões de francos (£160.000.000) contra um no momento da
Restauração; durante o mesmo período, o valor do recrutamento anual
para o exército foi aumentado de 40.000 para 160.000 homens. Outros
estados sofreram um acréscimo muito semelhante aos seus encargos e,
em todos os casos, a segunda metade do século XIX foi marcada por
uma maior taxa de aumento.
É verdade que a população da Europa duplicou desde o ano
1800, e que as invenções maravilhosas que revolucionaram todos os
ramos da indústria produtiva aumentaram a sua capacidade produtiva
em um grau ainda maior. Então, embora as estatísticas disponíveis
sejam reconhecidamente defeituosas, podemos conceber que a
capacidade produtiva tenha se desenvolvido simultaneamente com as
exações sobre a produção.
A taxa de tributação continua a subir, mas há sinais de que a
taxa de produção industrial começa a desacelerar. Quando,
ultimamente, os números da taxa de natalidade, da circulação
comercial geral e do rendimento da tributação exibem um
considerável afrouxamento, é uma prova clara de que a produção geral

68
Consequências da Perpetuação do Estado de Guerra

de riqueza está sofrendo um bloqueio. Enquanto isso, as causas que


determinam uma escala avançada de impostos não exibem tendências
regressivas, e não há motivos para supor que o estado de Guerra, no
século XX, deixará de manter uma taxa de avanço pelo menos igual à
mostrada no século XIX.
Essa é, portanto, uma questão de saber se os impostos que
atendem essas despesas, e a manutenção dessas dívidas, continuarão a
ser suficientes. Se, por exemplo, a França não puder sustentar um
orçamento de oito bilhões de francos (£320.000.000) e o serviço
militar com uma dívida de sessenta bilhões (£2.400.000.000) sobre
seus impostos atuais, o déficit deve ser compensado por um aumento
em sua avaliação ou pela imposição de novos impostos. Mas as leis do
equilíbrio fiscal estabelecem um limite rigoroso ao grau em que é
possível impor novos impostos, ou aumentar as alíquotas daqueles já
em vigor. A produtividade relativa dos impostos logo mostra quando
esse ponto foi ultrapassado, pois então os retornos não apenas deixam
de subir, mas imediatamente começam a cair. A continuação do estado
de Guerra significa, portanto, que chegará um momento em que a
própria classe governante será atingida pelas próprias fontes de seus
meios de subsistência.
Mas os encargos crescentes das despesas militares não são o
único problema imposto pela continuação deste sistema. Igualmente
prejudicial é a necessidade que isso implica ao continuar a dotar os
governos com um poder soberano de disposição sobre a vida e a
propriedade do sujeito. A guerra não reconhece limites para os
sacrifícios que podem exigir de uma nação, e os governos devem
necessariamente ter um poder igual de obrigar esses sacrifícios. O
chefe hereditário da oligarquia, que possuía a organização política sob
o antigo sistema, possuía esse poder absolutamente.
A nova ordem, teoricamente transferiu o poder para a nação,
mas seu exercício prático foi investido nos dirigentes do partido em
posse temporária e precária do cargo. Nós já vimos que essa
transferência resultou em um aumento do abuso do poder soberano e

69
A Sociedade do Amanhã

que todas as garantias erguidas para a proteção do indivíduo se


mostraram ineficazes.Independentemente das intenções de um
governo, sua permanência no cargo é tão incerta que o interesse do
partido deve ser seu principal preocupação. Os governantes, sob o
antigo sistema, tinham apenas queconsiderar uma oligarquia na posse
hereditária das funções políticas superiores, militares e civis.
Se essa oligarquia condescendesse as funções inferiores, muito
mais com as práticas servis da vida industrial e comercial, ela
abdicaria de sua posição.Suas demandas em relação o governo eram
exigentes, mas confinadas a estreitos limites naturais. O alto cargo era
hereditário em algumas famílias, e as obrigações do soberano eram
cumpridas quando ele tinha satisfeito sua ambição e cupidez. O
governo moderno tem que satisfazer um número vastamente maior de
pretendentes igualmente famintos. Enquanto era o bastante encontrar
posições honrosas e sinecuras para os membros das poucas famílias
que constituíam a oligarquia, um estado moderno tem que satisfazer
milhares, pode-se dizer centenas de milhares de famílias, todas
possuidoras de poder político e influência.
Esses homens buscam todo tipo de posição, e pressionar todo
tipo de interesse, e tais coisas só podem ser satisfeitas às custas do
resto da nação. A diplomacia e proteção — de certas classes ou certos
interesses — são adicionadas ao militarismo como fardos do corpo
político. Esses encargos sobre a produção, compartilhados pelo estado
e seus protegidos, podem ser adicionados, ou subtraídos, da parcela
dos agentes reais da produção — capital e trabalho.
Eles são adicionados quando o produtor é capaz de aumentar o
preço de seu produto pela soma total do imposto, como ocorre quando
um país protege um produto doméstico da concorrência de outros
países cujos produtores estão menos sobrecarregados. O imposto é,
neste caso, pago pelo consumidor, e — seja derivado do capital
investido ou do trabalho direto — o poder de compra de sua renda é
correspondentemente diminuído. O fabricante é, no entanto, um
consumidor, e também — nessa função — uma vítima dos resultados

70
Consequências da Perpetuação do Estado de Guerra

de um imposto aduaneiro. Mas o fabricante de um artigo protegido —


e seus sócios comanditários, se os tiver — geralmente é capaz de obter
vantagens que mais do que compensam sua capacidade reduzida de
consumo. Os encargos combinados de tributos e impostos aduaneiros,
recaem sobre as massas, os homens cujos trabalhos estão
desprotegidos.
A concorrência externa às vezes impede que os produtores
aumentem o preço de seu produto no valor total do imposto aduaneiro
protetor. A parte dos lucros reclamada pelo estado deve, neste caso,
ser subtraída das partes dos agentes da produção. Como a carga da
tributação está aumentando a uma taxa praticamente simultânea entre
todas as nações, este caso pode ser considerado excepcional.
A natureza do capital o salva dessa dedução das quotas dos
agentes de produção. O capital em si é fruto da produção, e a
produção é apenas um incidente de sua real intenção. O capital é
formado como um seguro contra as eventualidades da vida, e não
sofre diminuição de uma existência indefinida. Torna-se produtivo —
é aplicado para fins produtivos, somente quando tal aplicação produz
um retorno suficiente para cobrir a privação resultante de tal emprego,
para contrabalançar o risco que o acompanha e para proporcionar
lucro.
Quando os retornos não cobrem essa privação, risco e lucro, o
capital é retirado dali ou deixa de entrar no campo da produção. O
governo pode reduzir as esferas abertas ao capital impondo encargos
sobre essas esferas, mas não tem poder para reduzir a taxa de lucro
necessária para trazer o capital para o campo da produção.
O trabalho — o segundo agente da produção — não tem esse
poder de autoproteção. Ele deve empregar-se na produção ou faltar às
necessidades imediatas de subsistência. A menos que possa emigrar
para países menos sobrecarregados — sempre uma operação difícil e
dispendiosa — a parcela do trabalho é inclinada a suprir as demandas
do governo e de seus protegidos. É essa dedução crescente [pelos

71
A Sociedade do Amanhã

estados] da participação do trabalho nos frutos da produção, que os


socialistas atribuem ao capital. Eles sustentam que a remuneração do
trabalho não aumentou em proporção adequada aos enormes aumentos
dos retornos da produção, porque o capital usou seu poder para
confiscar a maioria, se não todas, das quotas legítimas do trabalhador.
Eles, portanto, provocaram conflitos entre os dois fatores essenciais
da produção — uma ação que inevitavelmente agrava tudo o que
pretende curar.
A força de trabalho sofre de graves males, mas muito distantes
estão estes de serem unicamente devidos à insuficiente remuneração
que o trabalhador tem, em muitos casos, apenas para responsabilizar
sua própria incapacidade para a correta condução da vida. As falhas na
administração do estado são agravadas pelos males no autogoverno
individual: as primeiras não causam as últimas, mas impedem sua
cura.
O poder soberano dos governos sobre a vida e a propriedade do
indivíduo é, de fato, a única fonte e surgimento do militarismo, da
política e da proteção. A lógica da sobrevivência desse poder é que
ainda vivemos em um estado de guerra, e a abolição desse “ estado ” é
a necessidade atual e mais urgente da sociedade. A solução é natural e
inevitável, uma vez que as novas condições de existência social
tornam-se cada vez mais incompatíveis com a sua continuidade. Mas,
enquanto isso, podemos acelerar o impulso, e assim apressar
igualmente a realização desse progresso a que o estado de Paz tornará
possível.9

9Este assunto será encontrado, mais plenamente desenvolvido, no livro do


autor "Grandeur et Décadence de la Guerre".

72
PARTE II
O Estado
de Paz
CAPÍTULO VII

A Garantia Coletiva da
Segurança das Nações

Um Estado de Paz permanente entre todas as nações civilizadas


pode ser assegurado substituindo o sistema atual, do qual cada Estado
é seu próprio garantidor, por sua garantia coletiva de segurança
externa. O custo desse sistema envelhecido é enorme e
constantemente crescente, enquanto sua total incapacidade de
assegurar os fracos contra os fortes fornece uma prova convincente de
que o momento não pode ser adiado por muito tempo antes que essa
mudança momentânea force sua própria aceitação. Ensinada por uma
necessidade idêntica, a sociedade primitiva aprendeu a estabelecer
uma garantia coletiva da segurança da horda, clã ou tribo individuais
há muito tempo.
O homem, em isolamento, gastou a maior parte de seu tempo na
obtenção de subsistência e se defendendode ataques. Ele havia,
portanto, comprado esses serviços pelo preço mais alto, mas a
associação imediatamente reduziu seu custo. A garantia coletiva

75
A Sociedade do Amanhã

continuou a exigir esforços consideráveis por parte de cada associado,


mas houve uma clara economia de tempo e esforço, e a segurança
resultante foi incomparavelmente maior do que qualquer coisa até
então obtida por esforço individual.
Uma garantia mútua desse tipo teve sucesso com uma condição.
O indivíduo deve ceder o direito de julgamento à associação, em todos
os casos em que o interesse ou temperamento o levou a entrar em
conflito com um colega; e o veredito deve ser executado apenas pela
agência do Estado. Quer fosse diretamente exercida, ou delegada a um
executivo agindo in nomine Societatis, o julgamento da comunidade
substituía o do indivíduo.
O julgamento sempre foi executado por um poder irresistível,
enquanto um código de leis — a consequência necessária da mudança
— definia os direitos de cada associado e estabelecia as penalidades
por violação ou tentativa de violação desses direitos. A gravidade das
penas foi graduada de acordo com a gravidade da infração cometida
ou o grau de dano causado pela tentativa.
Por mais imperfeita que tenha sido, e ainda seja, a justiça
coletiva sempre se mostrou, e em todos os casos, superior ao sistema
individual. A experiência atesta a absoluta incapacidade do homem de
exercer um julgamento equitativo, quando seus próprios interesses
estão em jogo. O interesse ou a paixão paralisam a capacidade julgar
corretamente, e leva os homens a manter as pretensões mais
infundadas.
Tal juiz executa seu próprio veredicto, e não importa quão
profundamente seja o fruto de impulso, instinto ou de apetites cegos,
nem quão obviamente todo o direito possa estar do outro lado, sua
execução é apenas uma questão de força pessoal relativa. Enquanto
cada homem é uma lei em si mesmo, o julgamento é invariavelmente
subordinado ao interesse, e sua execução à regra de que "o que o
poder faz é o certo".

76
A Garantia Coletiva da Segurança das Nações

As diferenças nacionais estão sujeitas a influências idênticas.


Cada nação afirma estar certa, e se um senso de justiça obriga
qualquer membro do Estado a admitir que há razão nas reivindicações
de um adversário, a multidão cegada pela paixão, ou o político
cobiçando popularidade, imediatamente os denuncia como traidores.
Quando tais diferenças são submetidas ao arbítrio da guerra, os
indivíduos, de ambos os lados, condenando a injustiça de um
julgamento proferido sob a influência da paixão ou do interesse,
devem ou unir-se em uma luta que seus corações condenam, ou ousar
— e poucos têm coragem — a renegar seu país para não se tornarem
cúmplices de um ato injusto. E, finalmente, entre as nações como
entre os indivíduos, a vitória é para os fortes, sem respeito ao direito
abstrato.
Diante do fato de que o custo de tal autonomia aumenta a cada
dia, é proveitoso que cada nação permaneça juiz e executor do
julgamento, em causas que afetam seus próprios interesses! A
melhoria das comunicações e a enorme extensão da área de segurança
multiplicaram os interesses internacionais e, com eles, as ocasiões de
conflito.
Melhorias inimagináveis nos processos e na maquinaria de
produção, por outro lado, aumentaram os retornos da indústria
produtiva e, com eles, a capacidade de sustentar um gasto
continuamente crescente em armamentos destrutivos. Com a
oportunidade aumentada de diferenças com adversários cujo poder
estava sempre crescendo, compelidos a recorrer às armas sempre que
supunham, com ou sem razão, que a justiça estava do seu lado, as
nações não tiveram outra alternativa senão renovar e ampliar
incessantemente o aparato para defenderseus julgamentos.
O exército e a marinha, sem dúvida, ofereceram carreiras a
certas seções dentro da nação, e estes encorajaram seu
desenvolvimento por razões puramente egoístas. Mas a multidão,
sobre a qual recai o ônus da manutenção, não tem oportunidade de

77
A Sociedade do Amanhã

impor moderação; os armamentos são a garantia de sua segurança.


Nenhuma nação fica, em caso de conflito, propositalmente a mercê
do seu inimigo por falta de meios de defesa, independente do nível de
injustiça ou prejuízo ao qual foi exposta. Ela também não vai
considerar o fato de que, se uma guerra surgir, a batalha terá de ser
travada com armas insuficientes ou antiquadas, e que não haverá outro
jeito do que postergar o momento da rendição.
Se for apenas por uma questão de honra, deve defender seus
direitos, e colocará esse interesse acima de todos os outros. As nações
civilizadas foram, assim, levadas a aumentar seus poderes de
destruição concomitantemente a seu progresso na produção, e até
mesmo em um grau mais alto do que ele. E na Europa, onde os
interesses internacionais são peculiarmente complexos, e cada nação
está ombro a ombro com seus rivais, os povos estão agora curvados
sob o fardo da paz armada. Pode-se argumentar que eles preservaram
pelo menos o direito de julgar sua própria causa e executar esse
veredicto.
Mas esse direito — comprado mais caro a cada dia — agora é
apenas parcialmente existente e, mesmo nesse grau, é desfrutado
apenas pelos mais fortes. Os Estados menores da Europa gastam,
proporcionalmente, tanto quanto os maiores, mas, se seu direito de
julgamento autônomo sobreviveu, nem mesmo eles mesmos sugerirão
que são livres para tentar executá-lo. O que foi chamado de Concerto
da Europa — uma associação de todos os grandes Estados — arrogou-
se não apenas o direito de impedir ou deter tais tentativas, mas até
mesmo de modificar ou reverter completamente seus termos.
Essa associação das Grandes Potências, com suas reivindicações
auto-constituídas de um direito de intervenção entre Estados
soberanos independentes com o propósito declarado de impedi-los de
emitir seus julgamentos individuais, justificou naturalmente sua ação
por alguma pretensão. A pretensão é de um direito superior ao de
qualquer Estado individual — o direito da civilização de interditar
qualquer ato prejudicial à comunidade. Tal afirmação enfatiza um

78
A Garantia Coletiva da Segurança das Nações

novo fator na crescente solidariedade de interesses provocada pelo


progresso industrial e um mercado internacional ampliado. Embora as
relações econômicas e financeiras externas não tivessem grande
importância, e os efeitos da guerra fossem em grande parte locais, os
neutros dificilmente sentiam a reação resultante de uma luta, e esse
laço permaneceu dormente.
Mas a situação mudou assim que surgiram as inúmeras
conexões de um comércio mundial. A menor guerra moderna afeta
interesses neutros tão certamente quanto os dos beligerantes reais. A
partir deste direito, inevitável sob as circunstâncias, surgiu o direito de
potências neutras de intervir e obrigar a referência de disputas a um
árbitro menos violento. Os grandes Estados exerceram-no sobre os
seus vizinhos que eram demasiado fracos para se ressentirem da
interferência. O direito de cada Estado independente de julgar sua
própria causa e executar seu próprio julgamento foi, dessa maneira,
destruído ou limitado, e o estado menor foi, de fato, colocado em uma
posição inferior à de seu vizinho mais poderoso.
Os estados menores, naturalmente, não demoraram a sentir a
indignidade, mas possuíam pequena capacidade de revolta. Um apelo
ao seu direito prescritivo de usar o julgamento da batalha acarretava
em danos a todas as nações. Essas nações tinham seu próprio direito
de evitar esse dano e reivindicar indenização em caso de sua
comissão. Impedidos do exercício individual de seu direito de
soberania, os estados menores podem justificavelmente exigir uma
participação no direito coletivo a que os estados maiores se arrogaram,
e também serem admitidos no Concerto da Europa na posição a que o
seu tamanho relativo lhes dá direito.
Não é difícil prever os resultados prováveis de tal passo, e o
passo será realizado tão logo o fardo de um contínuo estado de guerra,
e os custos esmagadores dos armamentos que isso implica, se tornem
intoleráveis demais.

79
A Sociedade do Amanhã

Seja o laço um de compulsão ou fundado em uma base


voluntária, uma associação de todos os estados da Europa, com os
estados de outras partes do globo, deve comandar poderes superiores
aos de qualquer membro da confederação. Tal confederação poderia
obrigar qualquer membro a submeter todas as disputas a alguma
forma de arbítrio sistemático, e os vereditos de tal tribunal seriam
sancionados por força irresistível.
O desarmamento então se seguiria tão inevitavelmente quanto os
senhores feudais abolindo seus exércitos privados quando
confrontados com um imperador, chefe ou rei investido do exercício
do poder soberano e controlando todas as forças da nação. Cada
Estado reduziria seus armamentos ao ponto exato necessário para
permitir que ele cumprisse seu propósito remanescente — cumprir os
deveres de um garantidor da segurança comum contra o ataque de
povos ainda fora da civilização. A proporção dessas nações é tão
pequena que a força necessária para esta tarefa poderia ser reduzida
dentro de limites semelhantes aos do aparato mantendo a segurança
interna dos Estados, uma vez que o direito à justiça individual foi
suplantado por um sistema de justiça estatal investido de uma
autoridade que emana da entidade nacional.
As economias a serem efetuadas pela cessação de um estado de
guerra serão aparentes, por mais superficial que tenha sido nosso olhar
para as consequências que isso acarreta — os custos esmagadores sob
os quais as nações trabalham e as perdas, direta ou indiretamente,
originadas por ele. Mas esta economia de sangue e tesouro não será
mais do que um incidente dos benefícios que acompanham o advento
de um estado de paz. Um novo ciclo de progresso será aberto, a era de
uma nova e melhor vida para a humanidade.10

10Veja o Apêndice, Nota A — O Czar e o Desarmamento.

80
CAPÍTULO VIII

A Livre Constituição da
Nacionalidade

O primeiro, e não menos importante, avanço que se seguirá ao


estabelecimento de um estado de paz será a livre constituição da
nacionalidade.
Toda a história atesta que foi a força, e em nenhum sentido um
acordo voluntário de ambas as partes, que erigiu as associações
chamadas estados políticos; e neste ponto pode ser útil recapitular o
que já dissemos sobre o assunto. Os membros mais fortes da espécie,
geralmente hordas subsistindo pela perseguição e pilhagem, tomaram
os territórios ocupados por membros mais fracos.
Os conquistadores efetuaram uma divisão dessas terras e
obrigaram os habitantes a trabalhar em seu benefício, seja reduzindo a
população conquistada a um estado de escravidão ou deixando-os na
posse da terra, mas sujeitos a um sistema de servidão ou de simples
sujeição. As origens de um estado político foram uma especulação
comercial na agricultura ou na indústria, e os lucros naturalmente

81
A Sociedade do Amanhã

dependiam da capacidade administrativa de seu proprietário, da


diligência e aptidões produtivas da população sujeita, da fertilidade do
solo e de outras condições semelhantes. Tomados como trabalho
forçado, ou como impostos em bens ou em dinheiro, esses lucros
constituíam a receita dos proprietários e, como tal, não estavam
sujeitos a nenhuma limitação, exceto a de toda a produção líquida de
que os trabalhos dos escravos, servos ou súditos eram capazes. Por um
lado, esses trabalhos apoiaram os proprietários do empreendimento —
hoje devemos chamá-los de acionistas — e, por outro, eles pagaram
pela defesa e engrandecimento do domínio coletivo.
Toda associação que exerce uma atividade industrial deve
inventar um sistema administrativo para dirigir seus diversos serviços.
O estado não foi umaexceção a essa regra. Como todas as outras
empresas, o estado não reconheceu outro fim senão o do interesse, que
identificou com a conservação e o alargamento dos seus lucros. Mas
os lucros só podem ser aumentados de duas maneiras. O rendimento
dos impostos, seja de trabalho, em bens ou em dinheiro, pode ser
aumentado; ou a área de produção pode ser ampliada. O último
método foi preferido pelas associações que possuíam “negócios”
políticos", pois as primeiras exigiam capacidades para um bom
governo, as quais raramente possuíam.
Mas, como uma comunidade só pode estender seu domínio às
custas de um vizinho, a guerra naturalmente se seguiu e, enquanto as
comunidades que se destacaram na guerra aumentaram seu território e
suas propriedades em súditos, elas aumentaram sua renda ao mesmo
tempo. Um comerciante ou fabricante não se importa com a raça,
língua ou costumes individuais de seus clientes, e os estados não
tinham mais consideração pelas pessoas que viviam nos territórios que
adquiriram. Seu único motivo era o interesse, e todas as suas ações
eram exclusivamente voltadas para a obtenção daqueles territórios dos
quais a conquista e a manutenção pareciam as mais fáceis, e que
prometiam as mais altas possibilidades de exploração lucrativa.
Populações inteiras, opostas na raça, na língua e nos costumes, foram

82
A Livre Constituição da Nacionalidade

assim atraídas, quer quisessem ou não, para o domínio da associação


vitoriosa, para deixá-la apenas de acordo com o árbitro de uma nova
guerra, ou de acordo com as disposições familiares, quando uma única
casa teve a chance de adquirir controle soberano completo dentro do
estado.
Hoje consideramos tal método de constituir uma nação, uma
nacionalidade ou um “país”, como bárbaro. Mas, tendo em vista a
diversidade e a desigualdade das várias espécies da raça humana e as
condições sob as quais elas existiam originalmente, esse método não
era apenas o único meio possível, mas também o único método eficaz
de preservar as variedades mais fracas do extermínio. Se os fortes
nunca tivessem achado que era mais lucrativo submeter os fracos —
com o objetivo de viver permanentemente da exploração de suas
habilidades produtivas — do que roubar e massacrar, como fizeram
recentemente os turcomanos e os beduínos; se eles não tivessem, por
esse motivo, se interessado pela sobrevivência daquelas raças que
eram incapazes de garantir sua própria proteção, a civilização nunca
poderia ter acontecido.
Foi a descoberta de que proteger os fracos e predar sua indústria
oferecia lucros maiores do que uma carreira sistemática de invasões
que primeiro estabeleceu e depois aperfeiçoou as artes da produção
industrial. Alto, excessivo mesmo, como era o preço pelo qual o
produtor comprava sua segurança das associações de homens fortes
que se apropriavam dele como escravo, servo ou súdito, ainda havia
uma troca de benefícios, e ele também lucrava com a transação.
Essa apropriação dos fracos pelos fortes era absoluta, e isso era
útil, uma vez que essa situação induziu o proprietário a não
economizar esforços na proteção de sua propriedade. Seus direitos
como dono naturalmente se estendiam à cessão e à troca, por mais
repugnante que seja uma mudança de mestres para os sentimentos da
"propriedade humana". No entanto, a mudança raramente afetava o
status de forma perceptível.Seja por indiferença ou na esperança de
anexar um novo sujeito, os conquistadores respeitavam

83
A Sociedade do Amanhã

voluntariamente as instituições locais e raramente tentaram impor


restrições ao uso da língua nativa.Eles estavam contentes — e era, de
fato, a única coisa necessária para si eles — em coletar os impostos,
em dinheiro ou em bens, que haviam sido exigidos por seus
antecessores. Esses impostos raramente eram aumentados;
ocasionalmente, em todos os casos por um tempo, eles eram
reduzidos.
O conquistador moderno é menos liberal do que seu protótipo
nesses aspectos, e é uma consideração curiosa que esse retrocesso no
tratamento dos povos conquistados seguiu a extensão dos direitos
desfrutados por seus senhores a esses mesmos povos. A conhecida
Teoria da Soberania coloca nas mãos da nação esses direitos de
propriedade e exploração do estado, que até então eram um privilégio
das oligarquias, erguidos pela “conquista” e liderados por uma
“casa”.
Mas, em virtude da mesma teoria, a nação foi declarada “una e
indivisível”, de modo que os súditos, tornando-se soberanos, não estão
mais livres para romper sua conexão do que antes. Pelo contrário, a
nação é inseparável dos súditos, que não pode vender ou trocar; e se,
sob a compulsão da força superior, uma nação é obrigada a cedê-los,
está sob imutável obrigação de tentar sua recuperação na primeira
ocasião possível.
A partir desta teoria da soberania foram derivadas duas
deduções que estão, naturalmente, em oposição absoluta. A primeira
sustenta que uma população que saiu de um estado de sujeição e
adquiriu "donidade" de si mesma não pode ser separada de uma nação
e anexada a outra sem seu próprio consentimento.
Esta opção foi dada aos belgas quando os exércitos da
República conquistaram seu território, e também foi concedida ao
povo de Saboia e Nice em sua cessão à França como um retorno por
seus serviços à causa da unidade italiana. A segunda e contraditória
dedução — emanando desta vez da teoria da indivisibilidade nacional

84
A Livre Constituição da Nacionalidade

— recusa qualquer direito de secessão do estado, e esta recusa tem


sido sancionada por severas penas, como se o direito de adesão a um
Estado não incluísse a liberdade de retirada.
Os Estados Unidos interpretaram a teoria moderna da soberania
assim. As colônias inglesas se incorporaram voluntariamente à União,
mas quando os Estados do Sul desejaram deixá-la, os Estados do
Norte obrigaram-nos a permanecer nela pela força das armas. De fato,
a liberdade desfrutada pelas populações voluntariamente anexadas ou
unidas está limitada ao direito de mudar a forma de sua sujeição. Eles
estavam sujeitos a uma oligarquia, personificada em um rei mais ou
menos absoluto; agora são súditos de uma nação, cujo porta-voz é um
governo constitucional ou republicano. O súdito individual goza da
compensação de uma parte da soberania nacional, mas esse grau,
como se pode imaginar, não é grande. Na França, é uma em trinta e
oito milhões de partes.
Pode-se contestar se essa participação infinitesimal no poder
soberano é garantia suficiente dos direitos individuais e até mesmo
dos direitos de grupos específicos. O governo, mais ou menos
corretamente investido desse poder delegado, impôs um sistema
uniforme a todo o domínio nacional. Sob o pretexto de fortalecer a
nacionalidade unificando-a, nenhuma consideração foi dada à
diversidade das populações nas várias regiões, mas a verdadeira razão
para esse procedimento foi o desejo de assegurar e facilitar o exercício
dos direitos soberanos.
Em suas disposições mais essenciais, pelo menos, a velha teoria
da soberania ainda se mantém, em estados como a Alemanha e a
Rússia. Mesmo a parca aparência de escolha concedida sob a nova
teoria da soberania às populações que são anexadas é negada àqueles
que entram na relação com esses estados. A Rússia ignorou os desejos
da Polônia quando anexou aquele país, e a Alemanha se apropriou da
Alsácia-Lorena sem questionar sua disposição de trocar a
nacionalidade francesa pela alemã. Mas, por outro lado, esses
governos do antigo régime acharam lucrativo tomar emprestadas as

85
A Sociedade do Amanhã

práticas de unificação e assimilação iniciadas por seus irmãos mais


avançados. As populações anexadas por eles são privadas de seus
sistemas legislativo e fiscal, e até mesmo da língua nacional. Eles são
assimilados pela imposição de instituições que eles não gostam e uma
linguagem da qual eles são ignorantes, enquanto o conquistador nunca
pausa para considerar se esses procedimentos despóticos e brutais não
podem ter um efeito reverso ao que pretende, através da exasperação e
repugnância que eles induzem, à assimilação e unificação. E, no
entanto, esses meios de engrandecimento do estado e expansão
nacional, por mais ofensivos que sejam para as populações
compelidas, sob as mais severas penalidades, a transferir seu amor e
fé de uma nação para outra, ainda são justificados pela continuação do
estado de guerra.
Enquanto esse estado continua, as nações devem desenvolver
seus poderes de produção e destruição na maior extensão possível, ou
se preparar para serem engolidas no próximo surto de guerra. Eles
podem ampliar esses poderes por meio de dois métodos — expansão
territorial ou aumento da riqueza e população internas. As extensões
territoriais estão sujeitas a esta regra adicional de que os custos de
aquisição e manutenção, incorridos por conta do novo território, não
devem exceder o aumento líquido da receita garantida pelo
empreendimento bem-sucedido. O simples interesse próprio obriga os
estados a conquistar mais território e a proibir secessões, pois a
secessão, além de acarretar perda de terras e renda, pode acrescentar
exatamente essas perdas aos ativos de uma potência rival. Se a Rússia
se retirar da Polônia, esse país pode se juntar à Prússia em uma guerra
contra si mesma, e uma Irlanda independente pode se tornar a base de
operações e suprimentos para a invasão da Inglaterra.
O Estado de Guerra está em absoluta oposição ao direito de livre
escolha da nacionalidade, de adesão ou de secessão. A França
proclamou solenemente ambos os direitos. Ela permitiu que Bélgica,
Sabóia e Nice exercessem o primeiro, mas cercou suas decisões com
as garantias mais rigorosas. Ela negou qualquer escolha para

86
A Livre Constituição da Nacionalidade

Madagascar, Cochinchina, e os árabes, e se recusa a permitir tanto


quanto um pensamento de retirada para o território que já foi sujeito à
sua bandeira. O território francês, seja por um longo período ou como
resultado de uma conquista recente, permanece francês, a menos que
seja perdido pelas sortes da guerra. Uma garantia coletiva de paz
destruiria essa subserviência ao Estado de Guerra — uma servidão
que tem parecido particularmente intolerável desde o caso da Alsácia-
Lorena. Tal garantia protegeria todos os estados da agressão.
Grande ou pequeno, sua integridade seria apoiada por um poder
superior ao do parceiro mais poderoso, enquanto cada parte
constituinte de um estado seria livre para variar sua nacionalidade à
sua vontade ou conveniência. A secessão não podia ameaçar a
segurança do restante de um estado e, portanto, não poderia ser
contestada. As classes governantes podem não gostar do exercício de
um direito que restringe sua esfera de poder, ou, no caso de uma nação
composta, ameaçar sua capacidade de favorecer seções
numericamente superiores às custas das menos numerosas.
Mas tais ações não poderiam mais ser justificadas por uma
alegação de que serviam ao interesse predominante da segurança
nacional, e a opinião pública deixaria de apoiar a afirmação. O
advento de um Estado de Paz se sincronizará com o desaparecimento
de problemas internos, causados por diferenças de raça, costume e
linguagem. Constituídas voluntariamente, e de acordo com afinidades
naturais, compostas de unidades simpáticas ou homogêneas sob um
sistema adaptado a todas as idiossincrasias, as nações adquirirão o
mais alto desenvolvimento moral e material de que são capazes.
Enquanto a unidade dos estados é mantida apenas pela força, o
favoritismo seccional gera divisões e ódios. Eles desaparecerão
quando uma comunidade de interesse e ação, fundada em uma escolha
comum e amor comum por uma pátria livremente escolhida, for
estabelecida como a base única e suficiente da nacionalidade.

87
CAPÍTULO IX

A Livre Constituição de
Governos e Suas Funções
Naturais

Vimos que a soberania política surgiu do direito de propriedade.


As sociedades guerreiras apoderaram-se de um território e dos seus
habitantes com o propósito de fundar um estado político. Os
conquistadores, tornando-se proprietários, utilizavam a vida e a
propriedade dos súditos de acordo com sua vontade absoluta. Para
manter os estados contra a pressão da concorrência política e armada,
era necessário concentrar os direitos de soberania. Eles se tornaram
hereditários na família de um chefe, que poderia justificadamente ter
usado as palavras de Louis XIV, "l'Etat c'est moi!”.
Este chefe poderia conceder a seus súditos certos direitos, tais
como os direitos de trabalho, de troca e disposição testamentária;
também certas garantias de propriedade e liberdade. Mas permissões
desse tipo eram inteiramente voluntárias; ele mantinha seus direitos de

89
A Sociedade do Amanhã

dono de prossecução. Além disso, ele manteve reivindicações


absolutas sobre vida, liberdade e propriedade para serem usadas
como, e sempre que, necessárias para a manutenção e o bem-estar do
estado. Esse poder supremo — um atributo da soberania — passou
para o estado moderno, cujos cidadãos delegam seu exercício ao
governo.
Sua justificativa original era a destruição, ou expropriação, com
que a competição política e bélica continuamente ameaçava a
associação proprietária em cada estado. A conquista, hoje, implica
pouco mais do que uma mudança nominal de lealdade, e os danos que
inflige são mais morais do que materiais. Mas o direito sobrevive,
embora de forma contraída, e continuará a existir enquanto as nações
forem compelidas a confiar na guerra como sua única garantia contra
a agressão, ou o único meio de fazer cumprir o que cada uma afirma
ser justiça em casos de disputa.
Mas se a segurança e os direitos não são mais enfraquecidos
porque uma garantia coletiva substitui a garantia que cada nação deu a
si mesma, como a garantia nacional de proteção substituiu o sistema
de autodefesa individual, a posição é imediatamente invertida, a
guerra cessa e, com ela, toda a necessidade desse direito ilimitado de
requisição sobre a vida, liberdade e propriedade, que é o atributo
inevitável de um governo encarregado de manter as liberdades
nacionais durante um Estado de Guerra. Sob a nova ordem, os
encargos e serviços que as exigências de segurança nacional exigem
do indivíduo, deixarão de ser incertos ou contingentes. Tornar-se-ão
susceptíveis de valorização e avaliação permanente desde que sejam:

• Que todo cidadão participa de uma garantia da comunidade


civilizada contra hordas bárbaras ou nações em estado inferior
de civilização e fora da garantia coletiva. Mas os avanços
extraordinários nas indústrias de produção e destruição deram
à civilização uma prepotência tão grande que os riscos dessa
classe são insignificantes, e os homens podem facilmente
manter as fronteiras do mundo civilizado contra todos os
ataques.
90
A Livre Constituição de Governos e Suas Funções Naturais

• Que todo cidadão ajude a manter uma força coletiva, que deve
ser forte o suficiente para executar os vereditos da justiça
internacional sobre os estados que recusam obediência ou
tentam manter pela força uma estimativa pessoal de direito.
Uma garantia coletiva da paz das nações implica a renúncia
absoluta, por cada garantidor, dos direitos de julgamento
individual e execução individual do julgamento. Essa
rendição foi há muito imposta a todos os súditos de um
estado, como única base da segurança social, e é
universalmente observada, exceto pelo criminoso e pelo
duelista. Os criminosos quebram essa obrigação em
obediência cega aos ditames da avareza ou daquelas outras
paixões que só podem ser satisfeitas às custas de outrem. Os
duelistas justificam sua omissão negando a suficiência de uma
justiça coletiva no caso de certas ofensas pessoais. A
sociedade geralmente se contenta em ignorar o duelista
enquanto se abstém cuidadosamente de qualquer
reconhecimento de uma reivindicação que esteja em negação
direta à sua própria; mas persegue o criminoso tão
incessantemente que uma força policial numericamente
insignificante é capaz de garantir — embora mais ou menos
imperfeitamente — a vida e a propriedade individuais.

Os estados civilizados não podiam ser tratados como


criminosos, mas o instinto de guerra e uma falsa ideia de honra
nacional poderiam colocar as nações na posição relativa de duelistas.
A garantia coletiva interviria, em tal momento, para impor sua
renúncia ao direito à justiça pessoal e para afirmar o Estado de Paz.
Toda interposição desse tipo seria uma nova demonstração do
poder irresistível da sanção coletiva, e o membro mais forte da
associação deve logo reconhecer sua importância relativa.Então os
garantidores poderão desmobilizar seu contingente de forças armadas,
pois bastará a opinião pública para sancionar os decretos da justiça
internacional. A garantia da paz interna e da segurança externa exigirá
apenas uma contribuição insignificante e constantemente decrescente
dos membros dos estados confederados.

91
A Sociedade do Amanhã

A primazia do interesse nacional sobre todas as outras


reivindicações cessa, neste ponto, de exigir um direito absoluto de
requisição sobre a vida, a propriedade e a liberdade individuais, de
modo que é possível determinar a relação exata e inviolável dos
direitos individuais e governamentais. E veremos que esse ajuste será
fixo e determinado pela natureza dos serviços públicos e pelas
condições de sua produção.
Os serviços públicos são os atributos naturais do governo e são
de duas classes — geral e local. Os serviços gerais estão dentro da
esfera do governo propriamente dito; os serviços locais pertencem às
administrações provinciais e locais.
O primeiro dever do governo é garantir a segurança interna e
externa da nação e dos cidadãos. Os serviços que lhe são próprios
diferem essencialmente dos da associação privada, pois eles são
naturalmente coletivos. Os exércitos protegem uma nação inteira da
agressão externa, e uma força policial existe para benefício igual de
todos os que habitam o distrito ao qual ela serve. Por conseguinte, não
é menos necessário do que apenas que todos os consumidores destes
serviços naturalmente coletivos contribuam para o seu custo
proporcionalmente ao serviço prestado e ao benefício recebido. O
fracasso de um consumidor em suportar sua cota dos custos de tal
produção reage sobre toda a comunidade, que é obrigada a aguentar
uma proporção de desfalque além de sua própria contribuição.
Parece quase supérfluo insistir na minoria essencial dos serviços
naturalmente coletivos. Uma força policial serve a todos os habitantes
dos distritos em que atua, mas o mero estabelecimento de uma padaria
não apazigua sua fome. Pão, com todos os outros alimentos, roupas,
etc., são artigos de consumo naturalmente individual; a previdência
social é um artigo de consumo naturalmente coletivo.
A substituição de uma garantia coletiva de paz para a ação
individual de cada estado deve, consequentemente, restringir o
número de funções, que são o dever natural e essencial do governo,
para:

92
A Livre Constituição de Governos e Suas Funções Naturais

• Uma participação no aparato defensivo comum que protege a


associação da agressão externa;
• Uma participação na maquinaria que garante paz interna
dentro da associação;
• A prestação de segurança interna no seu próprio estado e a
execução posterior desses serviços que são natural e
essencialmente coletivos.

93
CAPÍTULO X

A Livre Constituição de
Governos e Suas Funções
Naturais (continuação)

Temos agora que examinar os métodos e condições pelos quais e


sob os quais os governos mantêm a paz internacional e estabelecem a
segurança interna. Assim que as nações emergirem de sua
subserviência ao Estado de Guerra, e suas partes constituintes
estiverem livres para formar novos grupos ou erigir estados
autônomos, os perigos da revolução e da guerra civil, que são o fruto
da união compulsória entre elementos heterogêneos e incompatíveis,
desaparecerão juntamente com os motivos e pretextos anteriormente
usados para justificar apelos por intervenção externa.
A “Associação dos Estados” só terá que considerar disputas e
dissensões que ocorram entre os membros, e as encaminhará para
tribunais mantidos para esse fim. Esses tribunais aplicarão as mesmas
regras legais que regem o julgamento de ações e causas entre

95
A Sociedade do Amanhã

litigantes individuais, e seus vereditos serão aplicados pela sanção


coletiva da associação. Os estados associados obterão, assim,
segurança externa pelos melhores meios possíveis e ao menor custo
possível, enquanto cada um garantirá a segurança interna em
condições análogas e por um sistema de garantia.
A fim de garantir a plena segurança da pessoa e da propriedade
do consumidor, ou — em caso de dano sofrido — uma compensação
proporcional à sua perda, é necessário que:

• (1) o produtor imponha certas penalidades àqueles que


cometem infrações contra a pessoa ou se apropriam dos bens
de terceiros, e o consumidor deve concordar em se submeter a
essas penalidades, sempre que cometer uma injustiça contra
pessoa ou propriedade;
• (2) o produtor imponha ao consumidor determinadas
restrições destinadas a facilitar a descoberta dos autores dos
delitos;
• (3) o produtor cobrar uma contribuição regular cobrindo seus
custos de produção mais o lucro natural de sua indústria, cada
avaliação a ser graduada de acordo com a posição do
consumidor, a ocupação particular em que ele está envolvido,
e a extensão, natureza e valor, de sua propriedade.11

Deve ser acrescentado que o consumidor renuncia ao direito de


julgar suas próprias causas e de executar seus próprios julgamentos.
A produção de segurança interna, portanto, requer um corpo de
leis — um código — especificando e definindo injustiças contra a
pessoa e a propriedade, com as penalidades próprias de cada um e,
além disso, outras leis especificando as obrigações e encargos, que
não são menos necessários para permitir sua repressão efetiva.
A execução das leis e as condições que acompanham a produção
dos serviços indispensáveis à preservação de toda a sociedade exigem
ainda:
11Extraido de “La Production de la Sécurite”, Journal des Economistes, 15 de
fevereiro de 1849, impresso também em “Les Questions d 'Economie
Politique et de Droit Public”, vol. ii. p. 245.
96
A Livre Constituição de Governos e Suas Funções Naturais

• (1) a instituição de um sistema judicial, adaptado


principalmente a uma descoberta sistemática dos autores
presumíveis de delitos ou crimes contra a pessoa ou
propriedade, de determinar culpa e inocência e, no caso dos
provados culpados, de extirpar as penalidades estabelecidas
no código; em segundo lugar, deve julgar ações e causas;
• (2) a instituição de um serviço policial confiado com a
descoberta e perseguição dos autores de delitos e crimes, e,
em segundo lugar, com a execução das penas repressivas.

Essas são as partes constituintes de uma organização que produz


segurança interna e as condições necessárias para sua ação efetiva.
Uma forma dessa organização essencial é encontrada entre as raças
mais baixas, mas permanece notoriamente imperfeita mesmo entre os
estados mais civilizados e mais avançados. Tampouco é uma causa
distante a ser buscada enquanto o Estado de Guerra continua a impor
suas condições aos governos, os produtores de segurança.
Investido com o exercício do poder soberano ligado à
associação que possuía um território conquistado e seus habitantes, o
governo não devia a essa população apropriada nenhum serviço —
seja de segurança ou de outra forma — mais do que um dono de
rebanho deve um serviço a suas ovelhas ou gado. No entanto, havia
uma diferença entre ovelhas ou o gado e uma tal população. Seja
apropriado pelo direito de conquista, pela devolução hereditária da
propriedade territorial, troca ou compra, tal população pode se
levantar contra seus senhores. Conspirações também podem crescer
dentro do estado, visando a deposição do governo da associação
proprietária.
A segurança pessoal, que nunca distinguiu daquela do estado,
impunha a este governo um primeiro dever de precaução contra este
duplo perigo.O passo inicial nessa direção colocou o sistema
judiciário e policial em dependência do governo, sendo seus primeiros
deveres designados reprimir tentativas contra sua supremacia,
descobrir as intrigas de rivais e supervisionar as ações, até mesmo as

97
A Sociedade do Amanhã

palavras, de súditos descontentes. A segunda medida de autoproteção


era proibir a formação, sem sanção governamental, de qualquer
associação capaz de servir como centro dissidente ou revolucionário,
manter o controle sobre as associações autorizadas estabelecendo um
prazo para sua duração e reservar um direito de dissolução em todos
os casos.
Mas, por mais constante e amplamente preocupado com a
segurança pessoal, o governo foi obrigado a dar algumas garantias à
vida e à propriedade individuais, uma vez que elas são a base de todo
o progresso industrial, e a receita depende da indústria. Que esses
deveres nunca foram mais do que um cuidado secundário, mais
especialmente quando o mandato de um governo era instável, pode ser
provado — se for necessário — pela gravidade muito maior das
penalidades que garantem as pessoas dos que estão no poder e de seus
agentes, quando comparadas com as sanções da vida e da propriedade
de um cidadão.
Mudanças fundamentais poderiam ter sido esperadas quando as
nações deixaram de ser propriedade de uma associação ou de uma
casa soberana. Os governos, instituídos ou aceitos por uma nação —
agora de propriedade própria — deviam à sua nação os serviços pelos
quais ela assumia os encargos e obrigações necessários. O governo
estava, além disso, sob a obrigação de aumentar a eficiência e reduzir
o custo desses serviços. Mas um persistente Estado de Guerra ainda
obrigava os governos a valorizar a segurança da nação acima da
segurança do indivíduo.
Os estados continuaram a fazer avanços nas indústrias de
produção e destruição, e, como cada um era um possível futuro
combatente, o custo da segurança nacional aumentou continuamente.
Sob o novo sistema, também, a competição pelo poder soberano foi
aumentada e, enquanto a posse se tornava cada vez mais precária, os
competidores ansiosos eram menos escrupulosos na escolha dos meios
para alcançá-lo. O governo, cada vez mais ocupado com os problemas
da autoproteção, relegou a proteção do sujeito a uma posição ainda

98
A Livre Constituição de Governos e Suas Funções Naturais

mais secundária. Finalmente, os homens que obtiveram o poder, ou o


mantiveram, por meios estritamente legais, foram incessantemente
obrigados a ampliar o que pode ser denominado o "fundo de salários
políticos", isto é, o número de funcionários e, consequentemente, as
funções do estado.
Sempre ocupados com o problema da segurança nacional, ainda
mais com a manutenção de seu próprio poder, além do mais
carregados com uma multiplicidade de funções incongruentes, os
governos modernos podem com dificuldade cumprir sua tarefa. Esta é
a explicação real do desempenho grosseiramente inadequado de seu
primeiro dever — a proteção da vida e da propriedade do indivíduo.
Mas se um Estado de Paz sucedesse ao Estado de Guerra, se
uma garantia coletiva garantisse a segurança externa das nações; se,
em consequência, a nacionalidade fosse objeto de livre escolha e a
esfera dos governos limitada às suas atribuições naturais, a
concorrência influenciaria a produção desse serviço essencial com
resultados que devem, hoje, parecer quiméricos.
A primeira questão a ser resolvida nesse dia será: "é mais
lucrativo para as nações produzir sua própria segurança, ou contratar
sua produção com uma 'firma' ou empresa que possua os recursos
necessários e a habilidade técnica essencial para produção desse
tipo?" A experiência há muito demonstrou a inferioridade econômica
da produção por um departamento governamental monopolista.
Portanto, é provável que as nações irão preferir contratar, seja por
meio de agentes ou de outra forma, com a “firma”, ou empresa,
oferecendo as condições mais vantajosas e as garantias mais certas do
fornecimento deste artigo, que é de consumo naturalmente coletivo.
Teoricamente, pelo menos, essas condições diferem apenas em
um ponto das do sistema atual, mas esse ponto é essencial.A
seguradora deve indenizar o segurado — se atacado na vida ou na
propriedade — na proporção dos danos sofridos, sem levar em conta a
questão de qualquer tentativa de recuperação contra os autores reais

99
A Sociedade do Amanhã

da injustiça. Nem tal sistema de indenização será totalmente novo,


uma vez que as leis existentes reconhecem o direito à indenização
onde um homem sofreu em uma desordem.
Os estados civilizados afirmam o mesmo princípio em suas
reivindicações de indenização a um de seus súditos que tenha sido
ferido, ou a sua família, se ele tiver sido assassinado, no território de
uma potência inferior ou de uma potência supostamente inferior,
embora tenham o cuidado de recusar reivindicações semelhantes
contra si mesmos. A importância desse princípio será evidente quando
considerarmos quão supremamente eficaz ele deve ser em induzir os
governos a aperfeiçoar sua maquinaria para descobrir e reprimir
ataques à vida e à propriedade individuais.
As condições que regulam o custo da segurança devem diferir
em cada país de acordo com os padrões predominantes de moralidade
e civilização, e diferenças semelhantes nos obstáculos à repressão do
crime. O segurador e o corpo dos segurados estarão interessados
conjuntamente em manter um judiciário imparcial e esclarecido para
julgar crimes e delitos. Adam Smith mostrou há muito tempo como a
concorrência resolve esse problema, e não pode haver dúvida de que a
concorrência entre “empresas” judiciais totalmente independentes
repete a mesma solução.12

12"Os honorários do tribunal", diz Adam Smith ("Wealth of Nations", Livro


V, cap. 1, parte 2), "parecem ter sido originalmente o principal apoio dos
diferentes tribunais de justiça na Inglaterra. Cada tribunal se esforçava para
atrair para si o máximo de negócios possível e, por esse motivo, estava
disposto a tomar conhecimento de muitos processos que não eram
originalmente destinados a cair sob sua jurisdição. O Tribunal de King 's
Bench, instituído apenas para o julgamento de causas criminais, tomou
conhecimento de processos civis, a queixosa fingindo que o réu, ao não fazer
justiça, havia sido culpado de alguma transgressão ou contravenção. O
Tribunal de Exchequer, instituído para a arrecadação da receita do rei, e para
a execução do pagamento de tais dívidas apenas como devidas ao rei, tomou

100
A Livre Constituição de Governos e Suas Funções Naturais

conhecimento de todas as outras dívidas contratuais, alegando o queixoso


que não poderia pagar ao rei, porque o réu não iria pagar-lhe. Em
consequência de tais ficções, veio, em muitos casos, a depender totalmente
das partes, perante qual tribunal elas escolheriam ter seu caso julgado; e cada
tribunal se esforçou, por despacho e imparcialidade superiores, para atrair
para si o maior número possível de causas. A atual constituição admirável
dos tribunais de justiça na Inglaterra foi talvez originalmente, em grande
medida, formada por essa emulação, que antigamente ocorria entre seus
respectivos juízes, cada juiz se esforçando para dar, em sua própria corte, o
remédio mais rápido e mais eficaz que a lei admitiria, para todo tipo de
injustiça."

101
CAPÍTULO XI

Livre Constituição de Governos


e Sua Funções Naturais
(continuação)

Governos, que possuíam, sob o antigo sistema, de um poder


ilimitado sobre os bens e pessoas dos súditos, foram naturalmente
tentados a abusar desse poder para sua própria vantagem imediata, ou
para a da sociedade política e bélica cujo mandato eles detinham.
Esses motivos podem levá-los a fazer grandes aumentos nos encargos
e obrigações das massas subjugadas, mas nunca a anexar as indústrias
que apoiaram esse corpo e, consequentemente, a si mesmos.
Esta foi uma consequência natural da limitação auto-imposta
que confinou os proprietários oligárquicos do estado às funções de
governo, militar ou civil. Seu corpo não tinha motivo para se apropriar
de ocupações industriais, naquele período de desenvolvimento
humano, tanto supostamente quanto realmente inferior, mas
influenciavam o governo apenas para o propósito de induzir a

103
A Sociedade do Amanhã

aquisição armada de novos territórios e novos sujeitos,


consequentemente, de aumentar suas esferas peculiares de atividade.
Portanto, os governos da velha ordem raramente invadiam o domínio
da iniciativa privada. Se eles reservaram um monopólio em certas
classes de produção — na cunhagem de dinheiro, na fabricação de sal
ou tabaco — foi por considerações puramente fiscais. Mesmo esses
monopólios não eram exercidos diretamente, mas delegados, com a
maioria dos outros impostos, a experiência mostrando que uma
"delegação" dava melhores retornos do que os monopólios
governamentais diretos.
O avanço da produção e do comércio resultante da segurança
estendida mudou isso ao erigir uma classe média numerosa e
poderosa, que reivindica uma participação no governo, e até obteve
influência suprema nos estados mais avançados. Os rivais para cargos
políticos são recrutados principalmente entre os membros dessa
classe, e tem sido observado que tais das antigas oligarquias
proprietárias à medida que mantêm uma preponderância em seus
estados, e continuam a fornecer uma maioria no pessoal dos serviços
políticos, militares e administrativos, tendem a uma modificação
semelhante de interesses e a identificar sua causa com a dessa classe
média.
O motivo para esta revolução é aquele progresso que reduziu os
emolumentos da classe proprietária ao aumentar os custos da guerra,
reduzir sua frequência e reduzir seus lucros. Essa perda obrigou a
classe a buscar compensação aumentando os retornos deriváveis da
propriedade desembarcada e assumindo funções até então
desprezadas. Partidos políticos, contendo membros de ambas as
classes, só poderiam obter e manter o poder servindo aos interesses
reais ou supostos de seus constituintes.
O voto fundiário e industrial foi comprado por proteção e
subvenção — ou pela provisão de cargos civis e militares para os
membros mais jovens que não tinham o caráter ou a energia
necessária para criar uma posição para si mesmos. Esta é a explicação

104
A Livre Constituição de Governos e Suas Funções Naturais

daqueles encargos enormes e cada vez maiores com os quais o


militarismo, a política e a proteção sobrecarregam as massas cujo
trabalho fornece seu custo.
Se agora tentarmos estimar o fardo ocasionado pelo grau em que
o governo abusou de seu poder ilimitado sobre a vida individual e a
propriedade em benefício das classes das quais depende, uma análise
dos orçamentos da maioria dos estados civilizados produz o fato
surpreendente de que os dois serviços do exército e a dívida pública
dívida absorvem dois terços de toda a receita.
Um Estado de Guerra, sem dúvida, exige seguro individual
contra agressões externas, mas o prêmio consequente parece
totalmente desproporcional aos riscos assegurados.Pode haver pouca
dúvida de que a enorme força dos exércitos europeus se deve às
carreiras vantajosas oferecidas pelo serviço aos filhos de famílias
aristocráticas e de classe média influentes, ou que a maioria das
guerras que desperdiçaram o mundo sem um bom propósito durante o
século passado não foram empreendidas sob o mandato das massas.
No entanto, voluntariamente ou não, são eles que fornecem o sangue e
o tesouro necessários.
Nem essa também é a única explicação. A sociedade é
fortemente tributada no aumento dos custos que se seguem à
aprovação governamental de produtos e serviços que naturalmente
pertencem à esfera da empresa privada, como correios, telefones,
telégrafos e ferrovias.Acrescente a isso o preço de uma política que
proteja os aluguéis dos interesses fundiários ou os dividendos do
investidor e do elemento empresarial, e é um cálculo justo que a conta
de custos governamental, direta e indireta, absorva pelo menos metade
da renda dessas massas que dependem do salário do trabalho diário.
O servo devia ao seu senhor três dias de trabalho em sete;
governos modernos e seus privilegiados dependentes, exigem um
montante equivalente, mas o valor dos serviços prestados em troca é
quase igual ao trabalho de meio dia.

105
A Sociedade do Amanhã

Cada passo na eterna marcha da rivalidade internacional


aumenta a pressão sobre todas as partes dos mercados mundiais e,
com isso, a necessidade urgente de estabelecer um termo para o
aumento resultante dos custos. As nações devem sucumbir e perecer,
ou deve haver um acordo geral para substituir o atual sistema de
expansão por um que reduza as atribuições do estado. O governo deve
se limitar às funções naturalmente coletivas de fornecer segurança
externa e interna.
Esses serviços, a esfera do governo propriamente dita,
conectam-se com aqueles que se ligam aos sistemas provinciais e
locais. Como o governo central, e impelido por considerações
idênticas, a administração local amplia continuamente seus atributos
pela invasão do domínio da empresa privada, e os orçamentos locais
adicionam seus encargos ao do estado. Essas administrações não
possuem direitos ilimitados sobre os bens e pessoas do indivíduo,
mas, sem definição precisa de poderes, suas reivindicações são
apenas, e nunca mais do que parcialmente, restringidas pelo veto do
sistema central que as mantém em vários graus de dependência.
Este veto não é posto em movimento até que um governo central
considere que seus direitos foram realmente violados, e o que pode ser
chamado de "autonomia local” é a latitude desfrutada pelas
administrações locais em limitar a liberdade e tributar a propriedade
do indivíduo. Portanto, os deveres reais pertencentes aos sistemas
locais não são de forma alguma numerosos. Eles incluem pouco mais
do que um pequeno número de serviços naturalmente coletivos,
construção e manutenção de esgotos, pavimentação, iluminação,
limpeza, etc. Os sistemas policiais são, propriamente, uma parte da
máquina central. No entanto, por menores que sejam esses serviços
locais, não se pode duvidar de que, em comum com os grandes
empreendimentos departamentais do governo central, eles poderiam
ser melhores e mais economicamente realizados pelo emprego de uma
agência privada especializada.13
13Compare "Les Lois Naturelles de l'Economie Politique”, cap. xiv: La
Constitution Naturelle des Gouvernements; la Commune, la Province, l'E tat.

106
CAPÍTULO XII

Sujeição e Soberania
do Indivíduo

Vimos que a sujeição dos fracos pelos fortes é uma


consequência inseparável do Estado de Guerra, uma vez que apenas o
estímulo do direito proprietário pode mudar o interesse do homem
forte em seus concorrentes mais fracos daquele de um espoliador e
destruidor para um de proteção. Graças a muitos avanços morais e
materiais, e toda uma série de transições, o criado, servo ou escravo
tornou-se seu próprio proprietário. Mas, embora livre da dominação
de um mestre, ele permaneceu membro de uma comunidade ou nação
e, consequentemente, sujeito ao poder erigido por essa comunidade ou
nação para sua melhor preservação dos riscos de destruição ou
sujeição, que são consequências de um Estado de Guerra.
Esse poder foi, para esses fins, investido com um direito
ilimitado de disposição sobre as vidas e bens de todos os membros —
uma sujeição efetivamente negando a soberania do indivíduo. Por
mais sério que ele pudesse ser declarado senhor soberano de si

107
A Sociedade do Amanhã

mesmo, de seus bens e de sua vida, o indivíduo ainda era controlado


por um poder investido de direitos que prevaleciam sobre os seus.
Assim, emergindo da escravidão para se tornar membro de uma nação
supostamente livre, ele logo começou a conceber meios de defesa
contra o abuso por parte daqueles que controlavam esse direito.
Agentes, levando seu mandato, mostraram-se incapaz de conter
esse abuso. Então as nações se levantaram contra as oligarquias
proprietárias no estado, tomaram esse direito e confiaram seu
exercício a funcionários próprios.Mas tudo em vão. Os abusos
reapareceram, e não apenas nos estados que mantêm o antigo sistema
de um chefe hereditário, que monopoliza os poderes soberanos da
oligarquia da qual ele é chefe.
Eles apareceram, também, naqueles estados onde o direito
governamental de disposição irrestrita sobre a vida e a propriedade
dos cidadãos foi confiado aos agentes diretos desses cidadãos. O
único remédio possível — restringir essa sujeição com sua prioridade
de reivindicações sobre as da soberania do indivíduo, é incompatível
com um Estado de Guerra.
O abuso precisa continuar com a continuação desse estado, uma
vez que o poder encarregado de garantir as nações contra riscos
ilimitados deve ser investido com um direito correspondentemente
ilimitado de disposição sobre a vida e a propriedade de todos os
cidadãos. Mas a situação muda imediatamente quando substituímos o
Estado de Guerra por um Estado de Paz e sancionamos a liberdade de
cada estado pela garantia coletiva da associação. O poder coercitivo
de tal garantia pode não ser suficiente para acabar com todas as
guerras, mas deve reduzir os riscos de agressão dentro de limites
asseguráveis a um prêmio nominal.
Nem poderia, por mais tempo, justificar aquela subjetividade
absoluta da soberania do indivíduo, que é inseparável das condições
atuais.Um Estado de Paz reduziria essa sujeição à única obrigação de
um prêmio mínimo, pagável em nome da garantia coletiva das nações,
e continuamente redutível até ser abolida pela extensão da civilização.

108
Sujeição e Soberania do Indivíduo

A soberania da vontade individual — para concluir — será a


base do sistema político da futura comunidade. Essa soberania não
pertence mais aos proprietários associados de um território e seus
habitantes, escravos ou súditos; nem a uma entidade idealizada que
herda do estabelecimento político de seu predecessor, e investido de
suas reivindicações irrestritas sobre a vida e a propriedade do
indivíduo.
Pertencerá ao próprio indivíduo, não mais súdito, mas senhor
próprio e soberano de sua pessoa, livre para trabalhar, para trocar os
produtos de seu trabalho; emprestar, dar, planejar, fazer todas as coisas
conforme sua vontade o direcionar. Ele disporá, como lhe aprouver,
das forças e materiais que atendem às suas necessidades físicas,
intelectuais e morais. Mas a própria natureza de algumas dessas
necessidades — tão essencial é a segurança para a raça humana —
não pode ser satisfeita pela ação individual.
Os consumidores individuais de segurança devem, portanto,
associar-se para produzir este serviço de forma eficiente e econômica.
Sua associação tratará, por meio de agentes e no mercado aberto, com
um empreendedor — seja uma “firma” ou “empresa” — possuindo o
capital e o conhecimento necessários para a produção deste serviço de
garantia. Como qualquer outro sistema de seguro, o de vida
individual, de liberdade e de propriedade, está sujeito a duas
condições.
A primeira condição é a do preço; um prêmio deve ser pago,
igual em valor aos custos de produção mais um lucro. A segunda
condição é técnica. A parte assegurada deve se submeter às obrigações
que são indispensáveis à produção do serviço assegurado. Estas
condições são matéria para barganha entre os agentes dos
consumidores associados e os da empresa que assume riscos da classe
específica, e um contrato, rescindível conforme possa ser acordado
pelas partes, incorporará as condições quando acordado.

109
A Sociedade do Amanhã

Contratos semelhantes fornecerão outras necessidades


naturalmente coletivas, como comunicações, saúde pública, etc. Uma
pequena associação que precise desses serviços fará um contrato
direto com os empreendedores do serviço desejado; grandes
associações contratarão através de seus representantes eleitos. Em
vários casos, o indivíduo exerce sua soberania coletivamente, seja por
meio de representantes ou por tratado direto. Mas ele ministrará à
maioria de suas necessidades por esforço pessoal direto.
O dever dos representantes (agentes) é celebrar um contrato, e a
celebração desse contrato esgota o seu mandato. Eles podem, não
obstante, ser chamados a supervisionar a execução de tal contrato, ou
modificar seus termos, caso a experiência descubra falhas ou lacunas
em sua forma, ou caso novos fatos envolvam alguma mudança nas
condições sob as quais seus mandatários vivem. Consumidores
associados de serviços coletivos podem, também, encontrar motivos
para executar uma delegação permanente. Mas a supervisão das
cláusulas em um contrato pode ser suficientemente garantida pela
ação da imprensa pública ou outra associação livre especificamente
formada para esse fim; ou as cláusulas podem não precisar de
modificação. Representantes oficiais dos consumidores seriam
desnecessários neste caso, e a nação pode economizar negociando
diretamente.
Parece provável que todos os serviços naturalmente coletivos
sejam produzidos por uma associação (empresa) com a organização e
o sistema de negócios usuais. Um gerente será encarregado de
executar as decisões do Conselho de Administração, ou das
Assembleias Gerais, às quais prestará contas públicas por suas ações.
Esta será a solução econômica dos problemas de estabelecer e manter
os serviços de um estado, quando a garantia coletiva das nações
assegurar um Estado de Paz.

110
CAPÍTULO XIII

Imposto e Contribuição

A diferença real entre imposto e contribuição só pode ser


apreciada lembrando-se de como os estados políticos foram
constituídos pela primeira vez. Fundadas por comunidades de homens
fortes, essas comunidades foram compelidas a defender sua posse,
interessadas em seu engrandecimento e obrigadas a fornecer ao
governo as forças e os recursos necessários para garantir a segurança e
efetuar a expansão o quanto possível. Os recursos eram uma força
militar, os instrumentos materiais de guerra e meios de subsistência.
Cada membro do corpo associado de proprietários contribuía para eles
na proporção da parcela de território e súditos que recebia na partilha
dos frutos da conquista — uma parcela regulada pelo valor dos
serviços do destinatário naquele momento.
Essa foi uma "contribuição”, e envolveu obrigações simultâneas
ou um contrato recíproco entre a associação personificada em seu
governo e cada colaborador em particular — cada associado. A
associação forneceu seus contribuintes com segurança e outros
serviços necessários por eles; eles reembolsaram a associação,

111
A Sociedade do Amanhã

fornecendo-lhe os meios de produzir esses serviços, e esses meios


eram geralmente pagos na forma de "imposto". Cada parceiro no
domínio comum devia certos serviços pessoais em tempo de guerra, e
também era responsável por um contingente de homens e meios
extraídos da população sujeita de sua senhoria.Os senhores tributavam
esta população à vontade, e não estavam sob qualquer obrigação em
relação aos produtos e serviços assim requeridos.
Se um proprietário se ocupava com o apoio ou o cuidado de
seus escravos; se ele protegia ou ajudava seus servos ou súditos, essas
ações eram ditadas pelas mesmas considerações que induziam os
homens a alimentar ou cuidar de rebanhos. Mas nunca houve qualquer
relação ou proporção entre as imposições, tomadas pelos proprietários
sob a forma de trabalho obrigatório, ou — sob um sistema econômico
mais avançado — na forma de tributos sobre produtos ou dinheiro e
os serviços que prestavam em troca.
As forças e os recursos que fornecem as despesas dos estados
eram assim extraídas, por um lado, dos serviços pessoais daqueles que
compartilhavam o domínio comum; por outro, das taxas de trabalho,
produção ou dinheiro, extorquidas dos escravos, servos ou súditos
desses proprietários. Essas taxas constituíam a receita dos
proprietários e, como tal, eram parcialmente dedicadas ao sustento de
si mesmos e do governo de seu domínio particular, em parte ao
pagamento de sua contribuição para os fundos gerais do estado.
O tempo e a competição política e militar gradualmente
emanciparam os escravos, servos ou súditos dessas propriedades
senhoriais. Eles se tornaram donos de si mesmos, e de bens imóveis
ou pessoais que um número maior ou menor deles tinha sido capaz de
acumular pelo trabalho e pela economia. Até então, o senhor havia
cobrado impostos sem incorrer em qualquer obrigação contrária ou
obedecer a quaisquer outras restrições que não o interesse próprio, o
ponto em que seus bens poderiam ser movidos para fazer resistência
aberta, ou o limite líquido absoluto de sua capacidade produtiva. Esse
imposto deveria, agora, ter sido substituído por um que consistisse em

112
Imposto e Contribuição

parte de aluguel sobre a terra e outros imóveis que permanecessem


propriedade própria do senhor, em parte de uma contribuição análoga
àquela que os membros da comunidade proprietária pagavam ao
governo de seu estado.
Esta última contribuição deveria ter tido a mesma justificativa
de uma troca de serviços mútuos e deveria ter sido ajustada de forma
semelhante à participação nos benefícios totais fornecidos pelo poder
social por meio de seu governo representativo desfrutado por cada
contribuinte. Mas em vez disso, a contribuição, não substituindo o
imposto, foi absorvida por ele. Quando um chefe hereditário, seja rei
ou imperador, concentrou os direitos de soberania em suas próprias
mãos, a maioria das impostos que os senhores tinham até então
cobrado sobre seus súditos passou com eles.
Impostos sobre a venda de imóveis, taxas alfandegárias e de
transporte, o monopólio do sal e o da cunhagem, foram transferidos
dessa maneira. Como compensação por essa redução em suas receitas,
o chefe de estado aliviou os senhores das obrigações e encargos que
incorporavam sua contribuição para a manutenção e o
engrandecimento do domínio comum. Este foi, no entanto, um
movimento retrógrado nessa contribuição, implicando serviços
mútuos, desaparecidos antes do imposto, estabelecidos pela autoridade
do rei como, até então, pela do senhor.
Em certos países, nomeadamente na Inglaterra, os súditos
tinham de fato obtido um direito de consentimento, mas essa mudança
não ocorreu na França e nas outras monarquias continentais. Lá, os
pares de uma casa, cujo chefe havia se tornado rei, foram reduzidos à
condição de súditos e, como tal, estavam sujeitos a impostos à vontade
dele. Eles estavam sem dúvidas isentos de certas impostos cobradas
por eles sobre seus antigos súditos na forma de impostos diretos sobre
a pessoa; mas os impostos indiretos sobre os bens caíram sobre eles
com o resto da comunidade.

113
A Sociedade do Amanhã

Um dos primeiros frutos da Revolução Francesa foi, como


sabemos, a abolição desse sistema. A Declaração dos Direitos do
Homem estabelece que “toda contribuição é estabelecida para o bem
geral e deve recair sobre todas as classes de acordo com suas várias
habilidades”. Esta cláusula marca um retorno ao sistema de
contribuição de impostos; a contribuição agora recai sobre todas as
classes igualmente.
Para que esse repúdio fosse efetivo, os impostos do antigo
sistema — impostos que não implicavam serviços correspondentes —
deveriam ter sido abolidas e substituídos por um sistema de
contribuições, cada uma anexada a um determinado serviço. Os chefes
da Revolução conseguiram facilmente a primeira parte desta reforma,
mas foram incapazes de realizar a segunda.
Eles se contentaram em fornecer os recursos, exigidos pelo
serviço do estado e pelos fardos adicionais da guerra, dos bens
confiscados da Igreja e da nobreza, e por emissões de papel-moeda. A
exaustão precoce desses expedientes temporários os deixou cara a cara
com o problema de um acordo permanente. Mas enquanto o Estado de
Guerra continuava a exigir despesas ainda maiores do que sob a velha
ordem — tais despesas como eram, de fato, ilimitadas ou limitadas
apenas pela capacidade tributável da nação — era impossível impor
um sistema de contribuições pagas diretamente por cada indivíduo e
cada um ligado a algum serviço particular, cujos fardos e benefícios
deveriam ser igualmente calculáveis.
Se os velhos impostos não foram restabelecidas em sua
totalidade, as novas formas apenas incorporaram modificações
nominais e não foram de forma alguma sempre para o melhor.
Qualquer alívio dos fardos neste período, também, não é devido a uma
redução real na tributação, mas aos avanços extraordinários na
produtividade de quase todas as indústrias que se seguiram à aplicação
de novas máquinas e novos processos. Os impostos aumentaram em
vez de diminuir, pois o aumento regular do custo da guerra e uma
política de proteção agora adicionavam tributação no interesse das

114
Imposto e Contribuição

classes influentes aos requisitos legítimos do estado. Poder-se-ia


mesmo sustentar que a tributação era repartida cada vez menos de
acordo com os ditames estritos da justiça, uma vez que o crescimento
contínuo das despesas militares foi seguido por um aumento
desproporcional dos impostos indiretos que não são aparentes em
comparação com os impostos visíveis diretos.
Os gastos também avançaram muito mais rapidamente do que a
receita, e quase todos os estados civilizados foram obrigados a atender
seus déficits por empréstimos. Mas os empréstimos, geralmente
empregados na guerra ou na preparação para a guerra, aumentam os
orçamentos sem prestar qualquer serviço à capacidade produtiva das
nações. Assim, o serviço da dívida nacional da França absorve um
terço prático de toda a receita, de modo que os encargos públicos
aumentam ao mesmo tempo em que as fontes de oferta são
enfraquecidas.
Cidadãos de estados constitucionais obtiveram o direito de
consentir com os gastos públicos e com os impostos que os fornecem,
mas o direito se mostrou estéril. Seus representantes nunca
verificaram o aumento progressivo da tributação e das despesas que
ocorreu em todos os estados, esses avanços — como pode ser provado
além de qualquer disputa — não tendo sido menos, mas muitas vezes
muito mais rápidos, nos estados que possuem constituições.
E esse processo precisa continuar indefinidamente enquanto os
governos, encarregados de garantir a segurança nacional, mantiverem
seu direito de requisição ilimitada sobre a vida, a liberdade e a
propriedade do indivíduo. Mas estabeleça um termo para este Estado
de Guerra, assegure a segurança da civilização por uma garantia
coletiva; deixe o custo deste seguro para o indivíduo ser reduzido até
que corresponda ao risco agora quase infinitesimal; deixe o prêmio a
ser pago contra esse risco ser tão facilmente determinado quanto em
qualquer outra classe de garantia; e o direito ilimitado de requisição,
baseado em um risco ilimitado, perderá sua única justificativa.

115
A Sociedade do Amanhã

Então, no lugar de impostos, fundados sobre esse direito,


aplicados ao escravo por seu senhor, sobre o súdito por seu senhor,
pela nação sobre o indivíduo, e controlados, hoje, por partes que têm
um interesse imediato em aumentar continuamente as despesas do
governo — impostos que não têm relação com os serviços que devem
remunerar, e limitadas apenas pela capacidade tributável dos
tributados; surgirá um sistema de contribuições, cada uma ligada ao
seu próprio serviço naturalmente coletivo.
O montante dessas contribuições será fixado por contrato entre
os consumidores associados e as empresas, ou firmas, que produzem o
serviço requisitado a um valor que a concorrência reduzirá ao seu
ponto mais baixo. O imposto de hoje devora uma proporção cada vez
maior das receitas do indivíduo; as demandas de contribuição serão
restritas a um mínimo, e um mínimo que está diminuindo
continuamente à medida que cada avanço na segurança reduz os
custos de produção.

116
CAPÍTULO XIV

Produção de Artigos de
Consumo Naturalmente
Individuais

Sob esta nova ordem, a associação nacional, livremente


constituída, contrata uma empresa ou firma para garantir a sua
segurança interna e externa; as associações provinciais e outras
associações locais continuam a analogia, contratando para a execução
de serviços naturalmente coletivos, embora locais. As contribuições
específicas exigidas por esses contratos são cobradas diretamente de
todos os associados que vivem nas localidades atendidas, e seu
pagamento libera os contribuintes de todas as obrigações ou serviços
adicionais.
O indivíduo, entretanto, permanece livre para produzir
pessoalmente, ou para adquirir por meio de troca, aqueles produtos e
serviços muito mais numerosos que são os assuntos naturais para o
consumo individual. Parece pouco necessário insistir na maneira pela

117
A Sociedade do Amanhã

qual a produção individual desaparece à medida que cada passo no


caminho do progresso aumenta as economias obtidas pela
especialização e divisão do trabalho.
Esses princípios encontram sua expressão natural na
determinação da formação prática dos empreendimentos comerciais,
que novamente se multiplicam concomitantemente com o crescimento
dos mercados, competem entre si e, consequentemente — sempre
supondo que nenhum obstáculo natural ou artificial intervenha —
tende a garantir economias progressivas no custo de produção.
Quando um sistema de contribuição substitui o de impostos,
muitos obstáculos artificiais, inseparáveis da cobrança destes últimos,
desaparecerão. Esses obstáculos existem se os impostos são coletados
para os propósitos do estado, da província, da comunidade ou mesmo
de indivíduos privilegiados particulares, e são pouco menos nocivos
do que os próprios impostos (impostos cobrados em benefício de uma
determinada classe constituem uma tarifa protecionista). Os
obstáculos naturais já estão desaparecendo diante da segurança
ampliada e da multiplicação e aperfeiçoamento de todos os tipos de
comunicação.
A mais importante e mais frutífera de todas as revoluções que
aconteceram durante o século XIX foi a ampliação dos mercados e a
consequente extensão da concorrência.
A continuação deste processo, com a aplicação irrestrita do
princípio da concorrência aos seus limites extremos de pressão e
intensidade, deve reduzir os custos de produção ao mínimo em todas
as indústrias que não estão fadadas a desaparecer. Toda indústria será,
então, estabelecida e operada na mais estrita conformidade possível
com a lei da Economia do Poder.
A indústria deve empregar a mais perfeita maquinaria e mão-de-
obra mais qualificada, mas deve também adotar a organização mais
econômica e mais adequada que possa ser concebida. A indústria
moderna é prejudicada em todos esses pontos por obstáculos que

118
Produção de Artigos de Consumo Naturalmente Individuais

retardam e agem como um entrave à produção, e os custos de todas


essas deficiências são arcados pelo consumidor do produto ou serviço
produzido.
Nos mercados, naturalmente limitados pela ausência ou
imperfeição dos meios de comunicação e pelas garantias de
segurança, a multiplicação e o desenvolvimento dos empreendimentos
industriais têm sido dificultados desde os primórdios. As forças e os
recursos de uma família, muitas vezes de um único indivíduo,
bastavam para fundar um negócio e até mesmo para conduzi-lo.
Essas empresas, ou "firmas” — como eram chamadas ao atingir
qualquer importância real — eram dirigidas por um proprietário
possuidor do capital necessário. Em certos casos, ele tomava
emprestado esse capital a uma taxa fixa de juros, ou na garantia de
uma certa participação nos lucros potenciais.
O operário ou trabalhador real era geralmente remunerado de
acordo com uma taxa fixa, garantida e pré-paga conhecida como
“salário”. As empresas privadas desse tipo não diferiam em nada das
associações políticas ou casas, na medida em que a continuação ou o
fracasso de ambas dependia da conformidade mais ou menos perfeita
de sua constituição e conduta com a lei da Economia do Poder. A
maioria das empresas industriais foi estabelecida nesta base até agora.
A competição tem ampliado os mercados e melhorado o
maquinário até que esse sistema se mostre inadequado às necessidades
das indústrias mais avançadas. Isso está condenado a desaparecer,
certamente para ocupar um lugar bastante secundário e
progressivamente decrescente no poderoso organismo da Produção.
As firmas privadas já estão desaparecendo para dar lugar a
associações ou empresas, e veremos em breve por que esse novo
sistema está destinado a substituir o primeiro.
Esse reajuste teria sido alcançado há muito tempo, não fosse a
ideia que prevaleceu, correta ou erroneamente, de que grandes
aglomerações de poderes ou recursos eram uma ameaça ao

119
A Sociedade do Amanhã

establishment político. “Nenhum estado dentro do estado” era uma


máxima do governo, e os governos continuam a intervir na questão
das combinações, embora a máxima tenha caído em desuso. Em
nenhum estado a constituição e organização de associações é
inteiramente livre. As leis de associação, limitando a liberdade
individual nesse aspecto, são universais, e a cooperação desse tipo é
ainda mais sobrecarregada por decretos protecionistas e fiscais que
protegem a casa privada contra a sociedade ou empresa, tributando a
renda na forma de dividendos, mas isentando a renda na forma de
lucros.
A ação dos governos na regulamentação e proteção das
associações para fins de produção dificultou a formação de empresas
que possuem maiores poderes e recursos do que as da firma
individual.
As administrações nacionais e municipais inicialmente
dificultaram a formação de tais empresas, impondo essas condições
onerosas e, em seguida, por falta das mesmas empresas, se
comprometeram a produzir serviços que estavam fora de sua
competência. O produtor o e consumidor, consequentemente, sofrem
juntos. Intervenções semelhantes adiaram, quando não impediram, a
transformação da firma em uma empresa, em parte protegendo a
primeira, em parte por meio de leis e estatutos que impedem a
formação da última.
Já observamos as grandes imperfeições no sistema da empresa
— imperfeições muitas vezes neutralizando, se não superando, suas
vantagens indubitáveis sobre a firma. Se a formação de ambas tivesse
sido igualmente livre, a concorrência teria há muito aperfeiçoado a
empresa, e sua indubitável superioridade econômica se tornaria
evidente.
Mas, uma vez que se deixe de obstruir os mercados com as
barreiras artificiais das tarifas — um sistema que anula a redução das
barreiras naturais do espaço, agora afetadas por meios aprimorados de

120
Produção de Artigos de Consumo Naturalmente Individuais

comunicação; uma vez que se conceda liberdade absoluta na formação


e organização de empresas, a empresa se tornará a forma usual, como
se pode dizer que será a necessária, de quase todos os ramos do
empreendimento industrial. Será a forma usual por causa de sua
capacidade de coletar o capital necessário a um custo menor do que é
possível para uma firma privada; será a forma necessária porque
resolverá o problema de equilibrar produção e consumo em um
mercado que se tornou praticamente ilimitado em termos área.14

14Veja o livro do autor “Les Notions Fondamentales de l'Economie


Politique”, parte ii, capítulo iii —Progresso e Organização de
Empreendimentos Comerciais.

121
CAPÍTULO XV

Equilíbrio de Produção e
Consumo

Os artigos de consumo naturalmente individual podem ser


produzidos diretamente — pelas mesmas pessoas que precisam deles,
ou indiretamente — como quando um indivíduo produz um artigo
para trocá-lo por outro do qual ele precisa. A lei da Economia do
Poder tende diariamente a generalizar este último processo. Uma ou
mais indústrias especializam-se na produção de cada artigo de
consumo e, como cada campo da indústria é compartilhado por vários
rivais, seus produtos ou serviços competem nos mercados. O
consumidor, necessitando desses produtos, os compra com produtos
ou serviços de empreendimentos nos quais seu próprio capital ou
trabalho coopera; ou os obtém com uma soma de dinheiro, um
equivalente que é permutável por quase todos os produtos ou serviços.
Todo adiantamento que substitui a produção direta pela indireta
diminui a soma do esforço e do tempo necessários para produzir um
determinado produto e, portanto, permite que a humanidade satisfaça

123
A Sociedade do Amanhã

um número maior de necessidades de uma maneira mais completa.


Assim que o homem satisfaz as necessidades primárias, comuns a
toda a criação animal, ele começa a atender aos desejos que o
distinguem dos animais inferiores. Mas, embora a base final da
civilização, a produção indireta estabelece um duplo problema sobre a
solução do qual depende o bem-estar, até mesmo a existência, da
humanidade. A produção deve equilibrar o consumo, e o produto deve
ser compartilhado entre todos aqueles que participam de sua produção
— os produtores.
Embora a produção direta também encontre a primeira parte
desse problema, ela o resolve com pouca dificuldade. O homem
produz porque a produção satisfaz muitas necessidades — a
necessidade de roupas, de comida e alojamento, de suas aspirações
morais e intelectuais. Essas necessidades competem por satisfação e
— como em qualquer outro tipo de competição — os mais fortes
vencem, aqueles que proporcionam o maior grau de prazer ou evitam
a maior dor.
Não é até que estes estejam satisfeitos que o indivíduo dedica
seus poderes e tempo restantes para o cumprimento dos outros,
escolhidos na ordem de sua intensidade, o grau e o vigor de suas
várias demandas. Os inteligentes e previdentes, entretanto, recusam-se
a seguir o desejo cego; eles calculam e dão a cada um a satisfação que
lhes parece adequada, regulam o consumo e adaptam a produção às
suas demandas. Tais cálculos podem se desviar.
A obediência excessiva aos sussurros do momento e a falta de
previsão podem expor o homem a sofrimentos futuros não menos
agudos do que suas alegrias presentes.Também é fácil calcular
erroneamente as quantidades de produção, ou a quantidade de
produtos obtíveis em troca de um determinado gasto de esforço e
tempo.Um retorno que excede ou é menor do que o esperado causa
um erro equivalente na relação do produto com a necessidade que se
destina a preencher.

124
Equilíbrio de Produção e Consumo

A superprodução reduz a capacidade de satisfação em proporção


à intensidade decrescente do desejo e sua extinção final; a
subprodução aumenta a intensidade do desejo em proporção à
insuficiência do produto para satisfazê-lo. Essa diminuição, ou
aumento, do poder de satisfação, ou — dito economicamente — na
utilidade do produto, não é simplesmente proporcional à relação entre
oferta e demanda.Seus efeitos são progressivos, aumento da oferta
reduzindo a demanda e, inversamente.Em um caso, determina uma
restrição da oferta, no outro da demanda, até que um equilíbrio seja
restaurado entre a oferta do produto e a demanda da necessidade.
Sob o sistema de produção direta, cada indivíduo conhece suas
próprias necessidades e as quantidades que ele considera suficientes
para sua satisfação. Ele, portanto, não experimenta dificuldade em
regular sua produção, mas tal regulamentação parece impossível
quando examinamos pela primeira vez o sistema de produção
indireta.
No entanto, ele opera com uma precisão maravilhosa, devido ao
poder regulador da concorrência, quando livre para agir sem
impedimentos de obstruções naturais ou artificiais. Nenhum
indivíduo, sob esse sistema, empreende a satisfação completa de todas
as suas necessidades, mas se dedica — sozinho ou em conjunto com
os outros — à produção de algum artigo que supra uma necessidade
particular. Aqueles que precisam deste artigo competem por sua posse,
oferecendo outro produto em troca, ou então uma quantidade
equivalente daquela que é permutável pela maioria dos outros
produtos — dinheiro.
Todo produtor, portanto, leva suas mercadorias para o mercado
onde encontra aqueles que as desejam e estão preparado para dar algo
em troca — no caso usual, dinheiro. Seu desejo de comprar constitui a
demanda por seus produtos e, uma vez que seu objetivo é obter a
maior soma possível de dinheiro em troca de uma determinada
quantidade de bens, o objetivo do vendedor é restringir a oferta abaixo
do nível de demanda, nunca exatamente para satisfazer a demanda.

125
A Sociedade do Amanhã

Mas uma vez que o valor de troca dos produtos varia de acordo com
as proporções relativas de oferta e demanda, o vendedor agora obtém
uma soma de dinheiro que é mais do que o equivalente real de seus
custos de produção — um lucro, isto é, em uma escala constantemente
crescente.
Mas a concorrência intervém neste momento e reduz os lucros
ao ponto exato necessário para determinar a produção do artigo em
questão. Uma indústria logo começa a produzir retornos mais altos do
que o custo de produção mais um lucro — e tal lucro é geralmente
considerado incluído nos custos de produção — um dividendo
excedente, como podemos dizer, do que a concorrência causa um
influxo irresistível de capital e trabalho, a produção é forçada para
cima, e o valor de troca do produto, expresso em termos de preço, cai
imediatamente.
Não cai apenas por causa das quantidades aumentadas em
oferta, mas também por causa da menor potência, agora possuída pelo
produto, de satisfazer as necessidades que determinaram sua criação.
O preço não pode, no entanto, cair abaixo do custo de produção, a
menos que de forma temporária e acidental, pois, assim que o produto
deixar de comandar esse mínimo necessário, as forças produtivas
engajadas em uma indústria buscam outros campos mais
remuneradores. Aqui, falhando o restabelecimento completo, elas
perecem, a produção é reduzida e os preços começam a subir.
Quando, pelo contrário, o preço sobe acima dos custos de
produção, a concorrência induz imediatamente o movimento inverso.
Essa ação da concorrência constitui uma lei econômica de gravidade,
que está continuamente trazendo o preço de volta ao ponto central do
custo de produção, e quanto mais o preço vagueia em qualquer
direção, mais ativa é essa lei.
O primeiro resultado dessa ação do princípio competitivo é que
os consumidores colhem os benefícios de cada melhoria na produção.
Nem isso é mais do que justiça, uma vez que o progresso não resulta

126
Equilíbrio de Produção e Consumo

dos esforços do momento aplicados a qualquer indústria, mas é


desenvolvido de geração em geração e em todo o campo da indústria.
Em seguida, quando a produção indireta sucede à produção direta, a
concorrência continua a afirmar seu poder como regulador.
O produtor individual, trabalhando para si mesmo, regula a
produção de acordo com a medida de suas necessidades; e — se ele as
governa em vez de se submeter a seu ditado — na proporção da
demanda que ele considera útil. Se ele achar que sua produção exceda
ou seja inferior à sua necessidade, ele corrige a discrepância com o
objetivo de igualar a soma de seu gozo, ou do sofrimento evitado, com
a soma dos esforços, ou dores, decorrentes do ato de produção. A
concorrência mantém a mesma ordem útil no domínio da produção
indireta, aproximando oferta e demanda a um ponto de equilíbrio que
segue os esforços agregados e sofrimento decorrentes do ato de
produção.
Mas a concorrência não pode cumprir esse dever se for
impedida por obstáculos, naturais ou artificiais, nem mesmo em uma
sociedade não iluminada. A história econômica de qualquer povo
civilizado mostra claramente que a ação da concorrência se
desenvolve de acordo com a medida da emancipação do trabalho, e a
remoção de tais limitações como restringir um mercado aberto.
Em uma época em que o trabalhador era propriedade de uma
associação de homens fortes, interessados, como proprietários, em
assegurar-lhe que a segurança que ele era incapaz de obter para si
mesmo, seus produtos pertenciam ao senhor ou mestre de sua pessoa.
Mas, quando o mestre ou senhor descobriu que era vantajoso libertar-
se da obrigação de sustentar seus escravos ou servos, dando-lhes o
direito de trabalhar para si mesmos e trocar seus vários produtos,
sempre reservando uma reivindicação sobre alguma parte de seus
produtos, essa concessão resultou na construção de monopólios.

127
A Sociedade do Amanhã

Os homens a quem foi concedido o direito de produzir um


determinado artigo e trocá-lo, passaram a reivindicar o controle
absoluto de sua indústria específica. Corporações foram formadas
dentro de cada senhoria, principalmente para proteger o produtor
contra as imposições dos senhores que reivindicavam o aumento dos
royalties sobre os frutos de sua produção, ou a troca de novas
concessões contra um pagamento de dinheiro; secundariamente para
defender seu monopólio dos mercados dentro de uma senhoria da
concorrência externa; e, finalmente, para regular a produção, e assim
fixar os preços de seus produtos de modo a garantir as mais altas taxas
possíveis de lucro.
Em seguida, o costume ou a lei intervieram para proteger o
consumidor, e um limite foi estabelecido acima do qual não era lícito
aumentar os preços, um preço máximo. Já mostramos como o costume
e a lei foram capazes de produzir esse resultado naqueles negócios e
indústrias cuja natureza tornou possível regular a produção, mas que
em outros lugares eram ineficazes.15
A indústria e, em certa medida, o comércio, agora obtiveram a
liberdade.A maioria das indústrias e profissões estão abertas a todos
os possuidores das aptidões e recursos necessários, sem qualquer
limitação do número daqueles que nelas se envolvem. Com exceção
das restrições e proibições destinadas a prejudicar o produtor
estrangeiro, os mercados são igualmente livres para todos os
interessados. Os preços de mercado são regulados pela livre
concorrência, ou — como deveríamos dizer — pela concorrência
libertada dos entraves uma vez impostos pela restrição ao número de
concorrentes, às regras das corporações monopolistas ou às leis e
costumes que ordenam um preço máximo.
Este esboço retrata a posição atual, mas muitas causas
conspiram para reduzir todo o poder da competição e limitar a ação
reguladora que é sua esfera peculiar.Pois, apesar dos amplos mercados
abertos à maioria dos produtos por uma melhor segurança e melhores

15Veja“The Solution of the Social Question” do autor, cap. iii — The


Corporation and the Slave.
128
Equilíbrio de Produção e Consumo

comunicações, as barreiras da alfândega ainda dividem o vasto


mercado mundial. A concorrência, atuando em um campo assim
parcelado e dividido, perde parte de seu poder como estimulante do
progresso, enquanto sua exatidão e eficiência como agente regulador
da produção são ainda mais prejudicadas.
Graças às tarifas protecionistas, os sindicatos, continuando os
antigos sistemas de corporações, limitam a produção à vontade e
mantêm os preços em uma escala mais alta do que seria possível sob
um sistema de livre concorrência.16 Essas tarifas também não são
estáveis, mas suas mudanças contínuas e irregulares criam distúrbios
perpétuos. Um aumento súbito nas taxas reduz a oferta ao eliminar as
ofertas estrangeiras; os preços seguem, e o produtor doméstico
protegido colhe retornos inflacionados, até que as inevitáveis
transferências de trabalho e capital reforcem a oferta (doméstica),
geralmente em grau excessivo.
Em outras ocasiões, as reduções tarifárias inundam os mercados
com mercadorias importadas, os preços caem repentinamente e o
preço mais baixo causa imediatamente uma restrição na oferta. A
concorrência está continuamente trazendo o preço de volta, ou
aproximando-o, ao nível do custo de produção, mas sua ação
reguladora é, dessa forma, continuamente prejudicada.
Estes também não são os únicos obstáculos para o seu sucesso.
O homem não teve sucesso em regular a produtividade de todas as
indústrias. A agricultura é afetada por todas as variações do clima e
por todos os tipos de pragas epidêmicas, mas a perfeição desse ramo
do comércio que é chamado de especulação pode, sem dúvida, atenuar
essa variabilidade das colheitas. Se o excedente de uma estação fosse
retido dos mercados, não haveria um excesso imediato e consequente
colapso dos preços, nem o fracasso das temporadas futuras implicaria
preços aumentados e oferta insuficiente.

16Veja
o Apêndice, Nota B — Sindicatos ou "Trusts" e sua Ação Restritiva na
Competição.

129
A Sociedade do Amanhã

Mas, com meios imperfeitos de armazenamento e preservação, a


insuficiência e as taxas muito altas do capital — sujeitas como estão à
drenagem contínua das despesas governamentais improdutivas —
com a grande antipatia existente à especulação, a ação reguladora da
concorrência sobre os produtos agrícolas é prejudicada pelo tempo,
como é assediada pelo alfândega no caso de outras indústrias.
Finalmente, além desses obstáculos naturais e artificiais,
devemos nos lembrar de nosso conhecimento insuficiente dos
mercados mundiais. Quando os mercados estavam limitados ao
território de uma senhoria, um condado ou uma província, a demanda
era praticamente estável, facilmente estimada e a produção tão
prontamente ajustável. Mas esse conhecimento tem se tornado cada
vez mais difícil a cada ampliação de áreas.
A necessidade disso, sem dúvida, cria e multiplica canais de
informação; números e estimativas de colheita, declarações dos
estoques visíveis de milho, algodão, lã, açúcar, etc., são exibidos de
um canto do mundo para outro. Mas mesmo que esse sistema
abrangesse todos os artigos de produção conhecidos e fosse
aperfeiçoado até o último grau concebível, os controladores da
produção ainda estariam insuficientemente instruídos quanto a toda
escassez ou excedente local.
Essa informação só pode ser obtida pelo conhecimento absoluto
do lucro médio em todos os ramos da produção, e tal informação é
inatingível até que organizações impessoais monopolizem toda a
produção do mundo. A própria natureza de tais instituições as
obrigaria a emitir declarações regulares dos resultados em todos os
ramos de seus empreendimentos.
Descrevemos agora toda uma série de aperfeiçoamentos nos
sistemas existentes de produção e distribuição. Cada uma dessas
imperfeições tem seu remédio, mas até que todos esses remédios se
tornem fato consumado, a ação da competição como princípio
regulador deve permanecer incerta. Veremos que essa incerteza

130
Equilíbrio de Produção e Consumo

acarreta perturbações prejudiciais, como regra geral, para a maioria da


sociedade e que afetam a produção, a distribuição, até mesmo o
consumo, da riqueza. Mas, sob um sistema de liberdade desenfreada,
essas causas de perturbação cessarão gradualmente impedindo a
indústria e o comércio, a produção e o consumo alcançarão um
equilíbrio final, e o ponto desse equilíbrio será o custo médio de
produção mais o custo de levar o produto àqueles que desejam
consumi-lo.

131
CAPÍTULO XVI

Distribuição de Produtos e a
Participação do Capital nos
Procedimentos de Produção

Vimos como a concorrência tende a reduzir o preço de todos os


artigos necessários para o consumo humano, a um ponto que se
aproxima do custo de produção. Com absoluta liberdade a esse
respeito, o consumidor deve poder obter qualquer artigo por uma
quantia igual à despesa envolvida na reconstituição do material e dos
agentes produtivos empregados e em mantê-los continuamente ao seu
serviço. Devemos agora investigar a maneira pela qual os produtos
são divididos entre os dois fatores essenciais da produção — Capital e
Trabalho.
O socialista sustenta que o capital monopoliza a maior parte
desses produtos, mas a revisão mais superficial das condições da
indústria moderna demonstrará porque o capital toma essa parcela
maior e como o progresso incessante induzido pela concorrência tende
a reduzir sua quantidade.

133
A Sociedade do Amanhã

Todas as empresas industriais dependem de uma certa


combinação de agentes de produção, terra, edifícios, ferramentas,
máquinas, matérias-primas, reservas de alimentos; também de
material humano, diretores e trabalhadores. O primeiro deles é
genericamente denominado capital, o último trabalho. O capital pode
ser aplicado a uma empresa sob a forma de dinheiro, caso em que o
produtor o utiliza para adquirir os materiais de que necessita; ou pode
ser aplicado, diretamente, sob a forma desses materiais. Mas, nas
condições industriais atuais, os produtos de um empreendimento são
geralmente recebidos na forma de dinheiro, e é nessa forma que eles
são divididos entre capital e trabalho.
O capital é o produto da poupança. Um homem econômico e
providente não gasta toda a sua renda com os desejos do momento,
mas reserva e acumula uma parte para satisfazer as necessidades
futuras, educar seus filhos, sustentar sua velhice e prover contra as
inúmeras chances e acidentes da vida; ou para aumentar sua renda,
permitindo-lhe participar de algum empreendimento industrial.
Ele pode manter seu capital desempregado e disponível para
necessidades futuras, usá-lo para ampliar seu próprio negócio
aumentando sua maquinaria ou trabalho, ou investi-lo em outro
negócio para um retorno contingente. Ele também pode emprestar a
outros que precisam dele para qualquer finalidade, mas
comprometem-se a fornecer-lhe um retorno fixo — com juros.
Um homem é persuadido a se separar do capital nos dois
últimos casos, primeiro porque procura um retorno suficiente para
indenizar-se pela privação que pode sofrer se seu capital não estiver
disponível no caso de uma dessas eventualidades que determinaram
sua acumulação original; e, em segundo lugar, para recuperar os riscos
do investimento mais uma margem, por menor que seja, suficiente
para induzi-lo a se separar dele em vez de acumulá-lo na ociosidade.
Tais são as condições essenciais da remuneração do capital.

134
Distribuição de Produtos e a Participação
do Capital nos Procedimentos de Produção

A concorrência se aproxima da taxa atual de retorno sobre o


capital em uso direto em relação a esse valor, quer o próprio poupador
empregue seu capital em empreendimentos reais ou o use
indiretamente sob um acordo de compartilhamento de lucros ou por
empréstimo.
Quando a taxa atual cai abaixo dessa escala, ou taxa necessária,
o capital é retirado ou oferecido em quantidades menores, uma vez
que a compensação é inadequada para a privação, ou o risco é
insuficientemente coberto. Quando a taxa corrente passa a taxa
necessária, o capital é atraído ou os valores oferecidos são
aumentados.Esses dois movimentos contrários são acelerados de
acordo com o grau de variação, até que façam com que desapareça.
A participação do capital nos procedimentos da indústria não
pode, por essa razão, ser diminuída até que o progresso tenha
alcançado uma redução permanente da taxa necessária, diminuindo
possíveis privações e possíveis riscos. Uma queda geral na taxa de
juros tem sido aparente durante os últimos cinquenta anos e tem sido
atribuída ao aumento da produção de capital e ao aumento progressivo
do hábito da poupança. Mas se a oferta de capital aumentou, a
demanda não deixou de fazer o mesmo.
A verdadeira razão para essa queda na taxa de remuneração
sobre capital — a taxa de juros —encontra-se no progresso que fez
com que uma proporção maior do capital emprestado ou empregado
em termos de participação nos lucros se tornasse prontamente
realizável. Isso reduziu o inconveniente incorrido na separação de sua
posse real e, consequentemente, o valor da compensação necessária.
Graças à possibilidade de converter instantaneamente bens pessoais
em dinheiro, a privação — muito real em comunidades industriais
menos avançadas — resultante da incapacidade de recuperar ou
converter capital em emprego real, desapareceu.

135
A Sociedade do Amanhã

Sem dúvida, o capitalista que investiu dinheiro em bens pessoais


corre um certo risco de perda no caso de uma realização forçada, mas
ele também pode ser capaz de vender por um prêmio, e essa
possibilidade contrabalança o risco contrário. Sem dúvida, também, o
capital não é de forma alguma todo investido em bens pessoais, mas a
proporção assim colocada aumenta a cada dia, e o resultado de um
estado de concorrência é sempre reduzir a taxa atual em serviços e
produtos para a menor taxa mínima necessária. Entre os retornos
sobre bens imóveis e pessoais, tende a crescer um retorno médio, e
cada aumento na proporção de dinheiro investido em propriedade
convertível em dinheiro tende a reduzir a taxa desse retorno médio.
Quando todo o capital se tornar capaz de conversão imediata, as
considerações que determinam essa taxa média deixarão de incluir a
ideia de compensação pela possível incapacidade de conversão.
Esse fator na determinação da taxa necessária de retorno sobre o
capital tende a desaparecer, mas o que constitui o prêmio sobre os
riscos não é de forma alguma em caso semelhante. Está, de fato, tão
longe de diminuir que quase se pode manter que aumentou nos
últimos anos. Os riscos aos quais o capital está exposto são divisíveis
em duas categorias — particular e geral.
Os riscos particulares surgem do elemento mais ou menos
especulativo que entra em todos os empreendimentos industriais, e a
grande possibilidade de os preços, que seus produtos comandam,
serem influenciados por todos os tipos de considerações. Eles variam
de acordo com a natureza de cada indústria, a indústria de mineração,
particularmente a mineração de ouro, sendo notoriamente
especulativa. Os lucros agrícolas são, mais uma vez, afetados por cada
mudança de clima.
Mas as taxas de retorno dos empreendimentos industriais
tendem regularmente a se aproximar dos riscos de perda, e os retornos
deriváveis de qualquer indústria se aproximam do lucro médio total,
desde que todos estejam igualmente abertos ao capital e ao trabalho. A

136
Distribuição de Produtos e a Participação
do Capital nos Procedimentos de Produção

concorrência, novamente, está sempre buscando as indústrias mais


lucrativas e, portanto, sempre tende a reduzir as taxas de retorno a um
nível comum.
Os riscos gerais atribuem-se em graus variados a todas as
indústrias no país de sua origem, e uma espécie de simpatia estende
sua influência além dela. Eles são o resultado de guerras, de mudanças
na avaliação e taxas de impostos, especialmente da tarifa alfandegária,
e de qualquer causa que surjam cada novo laço que cimenta a
comunidade das nações, melhores meios de comunicação, mercados
ampliados, estende a área de sua influência.
Todas as indústrias estão igualmente sujeitas a riscos
decorrentes de organização imperfeita, erros de julgamento ou
conduta dolosa de seus gerentes. Riscos gerais e particulares também
recaem sobre a parte do capital envolvida na produção que assume as
responsabilidades e recebe a sua remuneração sob a forma de lucros
ou dividendos. A parte do capital que recebe sua remuneração sob a
forma de juros e o trabalho que é remunerado por salários só são
afetados diretamente e quando um empreendimento está à beira do
desastre.
O capital responsável pelo passivo — em linguagem comum, o
capital comercial — assume os riscos de perda e assegura o capital
auxiliar e o trabalho assalariado contra esses riscos. Mas nenhuma
garantia vale mais do que seu garantidor, e pode acontecer, e acontece,
que o empreendimento enfrente tais perdas que o capital comercial
não apenas deixe de pagar os juros sobre o capital emprestado, mas
que mesmo esse capital emprestado seja total ou parcialmente
perdido.
O capital emprestado é, da mesma forma, capaz de divisão sob
duas cabeças, correspondendo à maneira pela qual é empregado. Ou é
investido em empresas específicas, sendo por vezes mais ou menos
convertível e por vezes fixo, ou é emprestado aos governos e
absolutamente convertível à vontade. Esses empréstimos são

137
A Sociedade do Amanhã

garantidos pelo mutuário, não menos do que aqueles emprestados por


indústrias específicas. Sua garantia material é a parte da renda
nacional conforme é coletada de impostos, e isso pode, em última
instância, ser igual à produção anual líquida das atividades nacionais
— desde que o povo esteja disposto a suportar esse fardo
esmagador.Sua garantia moral é a retidão dos governos preocupados e
sua prontidão em atender compromissos.
A garantia da Dívida Nacional Inglesa, por exemplo, pode ser
chamada de absoluta, e pode-se dizer que a taxa de juros naquele país
caiu para o mínimo real de remuneração, sem provisão para garantia
contra riscos. Outros países pagam juros a taxas mais altas, que
variam mais ou menos de acordo com essa garantia de risco. Se a
privação, que constitui o primeiro elemento na remuneração
necessária do capital, está desaparecendo, graças à extensão
progressiva do grau em que o capital é convertível, vimos que os
riscos e o prêmio de garantia contra eles não estão de forma alguma
seguindo na mesma direção.
Esse prêmio, que inclui o lucro necessário do garantidor,
constituirá finalmente os únicos custos de obtenção do uso do capital.
A taxa cairá na medida em que cada avanço — decorrente da
concorrência e imposto pela pressão desse princípio — diminua os
riscos gerais e particulares da indústria. Também não é puramente
utópico sonhar com um tempo em que esses riscos serão tão reduzidos
que o custo de obtenção de capital será praticamente nulo, ou
certamente limitado à taxa mínima necessária para induzir um homem
a emprestar seu dinheiro em vez de mantê-lo desempregado — e tal
ociosidade, deve-se lembrar, implica responsabilidade pelo custo de
armazenamento.
Mas o custo de produção é apenas um ponto imaginário em
torno do qual a concorrência agrupa o preço corrente e o preço real de
um produto ou serviço. Para que o preços corrente coincida com os
custos de produção, com, propriamente falando, o preço natural ou
necessário, a concorrência deve ser absolutamente livre, e o capital

138
Distribuição de Produtos e a Participação
do Capital nos Procedimentos de Produção

deve ser capaz de se mover, sem medo de obstáculos naturais ou


artificiais, para qualquer parte do imenso mercado mundial onde a
demanda é maior e a oferta menor.
Além disso, deve haver um conhecimento completo, ou o
melhor possível, das diversas necessidades desse mercado. Progresso
considerável foi feito a estes respeito durante o século passado, e este
progresso continuará cada vez mais rapidamente à medida que a
produção se acumula nas mãos de associações com capital
convertível.
A moderna Lista da Bolsa de Valores informa aos capitalistas os
valores atuais da maioria dos títulos convertíveis em dinheiro. Os
valores estrangeiros ainda estão cercados com limitações decorrentes
do antigo espírito de monopólio; mas tais obstáculos devem
desaparecer, ou tornarem-se menos eficazes, pois as agências que
investem — os Bancos — multiplicam-se e obtêm maior liberdade e
mais poder.
Tampouco está tão distante o tempo em que o mercado
monetário universal será um livro aberto, e os obstáculos à circulação
do capital serão removidos por meio de melhores comunicações e da
cessação de regulamentações protecionistas. Um equilíbrio será então
estabelecido entre a oferta e a demanda de capital, à taxa mínima de
retorno — uma taxa pouco acima de zero.

139
CAPÍTULO XVII

Distribuição de Produtos e a
Participação do Trabalho nos
Procedimentos de Produção

O trabalho, como o capital, tem uma taxa necessária de


remuneração para a qual ele gravita sob o impulso da concorrência —
a taxa corrente para o serviço. O primeiro elemento nessa taxa é a
soma do custo de produção desse agente de produção — custos de
criação, educação, etc. Esses custos devem ser compensados para que
o trabalho de gerações sucessivas esteja continuamente disponível
para o serviço da produção. O custo de manutenção do trabalhador
deve ser adicionado, e as taxas de ambos os custos variam com a
natureza do trabalho a ser realizado.
O segundo elemento é a taxa de remuneração exigida para
induzir o possuidor de forças produtivas a dedicar esses serviços à
causa da produção. Mas se esse incentivo é indispensável no caso dos
trabalhadores que possuem recursos suficientes para poder existir sem
trabalho, não é assim para a maioria da humanidade que depende do

141
A Sociedade do Amanhã

produto do trabalho para as necessidades básicas da existência.


Somente aqueles indivíduos que possuem uma subsistência
independente, ou recursos que permitam aguardar ou escolher a
oportunidade ou a maneira de seu trabalho, podem comandar um
prêmio além do salário necessário da produção.
Enfrentamos agora um problema cuja importância nunca foi
suficientemente insistida. As mesmas agências que reduzem o
pagamento necessário para o capital, aumentam o pagamento
necessário para o trabalho. Esse efeito da transformação progressiva
da indústria pode ser observado nas duas grandes categorias naturais,
dividindo o trabalho aplicado à produção. Estes são o trabalho
daqueles que dirigem a hierarquia dos funcionários e as muitas
variedades de empregados assalariados, e o trabalho real do operário.
À medida que cada ampliação dos mercados e melhoria na maquinaria
aumenta a escala dos empreendimentos industriais, as funções do
funcionário — o homem que dirige, não menos do que o trabalhador
real — exigem uma maior quantidade de capacidade intelectual e
moral, e um menor equipamento de faculdades físicas ou potências.
A condução de um grande empreendimento exige mais
inteligência e caráter do que um pequeno; há maior responsabilidade
em cada membro da hierarquia dirigente, cada erro e cada má conduta
acarreta penalidades ou perdas mais consideráveis. Esta lei se aplica
igualmente ao mero operário. As consequências de um erro por parte
de um motorista de motor ou de um manobrador podem ser muito
mais graves para a vida e a propriedade do que um erro semelhante
por um condutor de carruagem.
O trabalhador encarregado de vários processos mecânicos em
uma fábrica têxtil usa menos força física do que um antigo fiandeiro
ou tecelão, mas sua mente está sujeita a uma tensão muito maior. Ele
está continuamente concentrando sua atenção na ação de suas
máquinas, e quanto mais rápido seu movimento, maior o apelo à sua
inteligência. Onde o trabalhador é menos capaz de atenção adequada,
a velocidade de sua máquina deve ser reduzida e o custo de produção

142
Distribuição de Produtos e a Participação
do Trabalho nos Procedimentos de Produção

correspondentemente avançado. Finalmente, todo lapso por parte de


um supervisor de máquinas acarreta uma perda proporcional à escala
da operação ou à potência da máquina com a qual ele está ocupado.17
Cada melhoria na qualidade do trabalho implica o aumento dos
custos de produção, e o argumento comum de que um padrão mais
alto vida causou os salários mais altos que prevalecem hoje está,
portanto, afirmando um efeito como a causa. A taxa de remuneração
aumenta nos países onde a maquinaria de produção melhorada requer
uma classe de trabalho superior àquela que era suficiente sob a velha
ordem.
Daí um aumento gradual da taxa de remuneração necessária e,
consequentemente, o padrão mais alto de vida entre as classes
trabalhadoras. O padrão de vida continuará a subir e atingirá seu ponto
mais alto quando a maquinaria usada para fins de produção atingir o
mais alto grau possível de eficiência e economia. Então, também, o
abismo que agora separa o trabalhador que dirige do trabalhador que
apenas labuta será diminuído e as diferenças entre as duas classes de
trabalho serão reduzidas, até mesmo em algum grau abolidas. Pois
essa diferença tem existido por causa da disparidade entre os poderes
do cérebro exigidos pelo diretor e os poderes puramente físicos do
trabalhador.
O custo de produção, que inclui os juros ou lucros necessários, é
apenas um ponto teórico para o qual a concorrência impulsiona o
preço real e atual do trabalho, não menos do que o de todos os outros
tipos de mercadorias. Mas o caso do trabalho apresenta um obstáculo
peculiar a essa ação do princípio competitivo, que não afeta nenhum
outro tipo de mercadoria, ou apenas em grau muito menor.
Esta é a desigualdade entre a posição e os recursos do
empregador e seu homem, o vendedor e comprador do trabalho.Na
época em que o trabalhador se tornou proprietário de seu próprio

17Veja“Cours d'Economie Politique” do autor, Décima Lição — O Lugar do


Operário.

143
A Sociedade do Amanhã

trabalho, havia poucos casos em que seu domínio do tempo e do


espaço não fosse muito inferior ao que o empregador dispunha. O
empregador podia esperar pelo seu trabalho, mas o trabalhador não
podia esperar pelo emprego.
Ele também foi, por falta de informações e recursos, para não
mencionar mais os obstáculos que impediam seus movimentos,
obrigado a buscar seus salários em um mercado mais restrito do que
era comandado pela demanda do empregador. Além disso, as leis que
proíbem a associação corretiva por parte dos trabalhadores
aumentaram e afirmaram essa posição inferior.
Assim, habilitado a aumentar as horas de trabalho e reduzir os
salários à vontade, o empregador muitas vezes pagava muito menos
do que a taxa necessária, e uma continuação do sistema deve ter
reduzido as faculdades produtivas do trabalhador até que sua extinção
final envolvesse ambas as classes em ruína comum. Mas os
desenvolvimentos sobrevieram até que esta disparidade no comando
do tempo e do espaço entre as duas classes tende a desaparecer e o
preço atual e necessário do trabalho a coincidir.
O trabalho conquistou essa melhor posição por associação e
pelo estabelecimento de um fundo comum que permite ao indivíduo
esperar, ganhar tempo — um dispositivo de valor óbvio, mesmo que
tenha levado a abusos. A oferta de trabalho, por causa do comando
inferior do tempo que possuía, foi menos estendida do que a demanda
por ela. Reapresentada em termos, a oferta superou a demanda pela
soma dessa variação. A formação de fundos de campanha reduz essa
variação e, se suficientemente ampla, esses fundos podem até removê-
la completamente.
O comando de tempo e espaço do trabalhador permanece
inferior, mas, como isso não permite mais que o empregador adultere
as taxas adequadas de remuneração, os salários dependem da relação
real de oferta e demanda, do número de trabalhadores que procuram
emprego e do número de homens que os empregadores procuram

144
Distribuição de Produtos e a Participação
do Trabalho nos Procedimentos de Produção

contratar. O excesso de oferta inevitavelmente reduz os salários e uma


oferta deficiente tão inevitavelmente os eleva; nenhum processo
ocorrerá por qualquer outra razão que não seja um real rearranjo das
proporções relativas desses dois fatores.
A concorrência fornece o remédio em ambos os lados. Um
excesso ou falha na oferta é remediado no mercado de trabalho pelos
mesmos meios que regulam todos os outros mercados. O aumento dos
salários induz imediatamente um influxo de outros setores, e uma
queda desvia o excedente para novos canais. Ambos os efeitos
decorrem por progressão geométrica, diferindo o mercado de trabalho
dos outros, a este respeito, apenas na maior necessidade de mobilidade
absoluta dentro dele.
Nas condições atuais, os mercados de capital e produção são
prejudicados por tal restrição, mas a liberdade de trabalho é ainda
menos assegurada, pois, além dos obstáculos naturais da distância e
do preconceito racial, ela encontra os obstáculos artificiais de proteção
e proibição, inspirados pelo espírito de monopólio e, finalmente, nossa
ignorância do estado real dos mercados.18 A ação ordinária da
concorrência já está, no entanto, trabalhando para a remoção de todas
essas deficiências, coordenando o comando do tempo e do espaço
possuídos por ambos os lados e, assim, assegurando a posse final pelo
inferior de sua justa participação nos procedimentos da produção.
Do ponto em que chegamos agora em nossa consideração da
ação estimulante ereguladora da competição podemos começar a
formar uma ideia da futura organização da sociedade sob um Estado
de Paz e Liberdade. A paz será assegurada pela garantia coletiva da
civilização; vastos sistemas de intercomunicação, já em processo de
construção, cingirão a terra com um casaco como de cota de malha;
restrições à liberdade de trabalho, à associação e à troca, serão

18Veja,a respeito de nosso conhecimento dos mercados, o livro do autor “Les


Bonuses du Travail”, capítulo xviii — Progrés a Rcaliser pour Agrandir et
Unifier les Marchés du Travail.

145
A Sociedade do Amanhã

removidas. A produção será então livre para se organizar, sujeita


apenas a uma responsabilidade pelos encargos necessários para
garantir a liberdade individual e a propriedade, e nada impedirá a
criação e o desenvolvimento de organizações que garantam a
distribuição adequada dos produtos e uma divisão correta entre os
vários agentes de produção. No lugar dos atuais mercados limitados
para produtos, capital e trabalho, três mercados gerais serão
formados:

• Um mercado universal para os produtos.


• Um mercado universal para o capital.
• Um mercado universal para o trabalho.

Nesses três mercados livres, sujeitos a nenhuma agência


reguladora exceto a concorrência, produção e consumo, oferta e
demanda, encontrarão seu equilíbrio adequado no nível daquele preço
que constitui a taxa necessária.
Vimos como a maquinaria melhorada e os processos industriais
diminuem a taxa necessária sobre os produtos e o capital, mas
aumentam-na sobre o trabalho. O progresso, por outro lado, reduz a
proporção de trabalho para o capital envolvido em qualquer indústria,
de modo que, qualquer que seja o aumento da taxa necessária sobre o
trabalho, há uma economia nos custos de produção. Uma pergunta, no
entanto, ainda exige solução. Admitindo que é possível ajustar
exatamente a oferta de capital e a produção à demanda de consumo, o
trabalho pode ser controlado de forma semelhante? Esta questão
reapresentada pode ser lida assim: "É possível ajustar a produção de
trabalhadores à demanda do empregador?"

146
CAPÍTULO XVIII

O Problema da População

Podemos tomar como um truísmo que a população é limitada


pelos meios de subsistência. Os meios de subsistência consistem, em
primeiro lugar, naqueles empregos que fornecem — sob qualquer
forma — salários, lucros, juros, dividendos, nomeações, toda a renda
do mundo; em segundo lugar, na soma anual disponível para a
manutenção daqueles membros da sociedade que não possuem meios,
ou meios insultuosos, de subsistência e que consequentemente
dependem mais ou menos da caridade pública ou privada.
Quando a população supera os meios de subsistência deriváveis
dessas duas fontes, o excedente é infalivelmente condenado a perecer,
e Malthus mostrou que a Natureza não é lenta para impor sua
sentença. O apetite sexual é, no entanto, tão urgente que a abstenção e
a contenção são as únicas garantias contra esse desastre, e é essencial
para a multidão, em qualquer sociedade, regular individualmente seu
exercício desses poderes de acordo com os meios de subsistência
possuídos pela comunidade.

147
A Sociedade do Amanhã

Entre as sociedades mais antigas, de fato até tempos muito


recentes, essa regulamentação necessária era uma questão de
compulsão — em todos os eventos em relação à maioria das pessoas.
Comunidades ainda em estado selvagem, ou pertencentes a um tipo
inferior de humanidade, garantiram seu fim pelos bárbaros costumes
do infanticídio e da morte daqueles que ficaram velhos demais para
cuidar de si mesmos.
Em seguida, em sociedades mais avançadas, mas onde a maior
parte do povo ainda estava em estado de serventia ou servidão, os
senhores cuidadosamente regulavam a procriação de servos ou
escravos, ajustando-a às oportunidades de seu emprego. As
regulamentações corporativas e locais substituíram esses sistemas
entre as comunidades comerciais e industriais, onde as classes média e
baixa emergiram da servitude ou servidão e obtiveram o direito de um
autogoverno mais ou menos completo.
Nas oligarquias soberanas e nas chamadas classes livres que
controlavam o governo dos estados, o medo de perder a casta e a
suposta natureza vergonhosa dos casamentos "abaixo de sua posição”
continuavam na mesma direção, nem é admissível ignorar os efeitos
da prostituição, seja sobre eles ou em seu interior. Tão eficazes, de
fato, eram essas agências diretas e subsidiárias que a progênie da
classe alta era frequentemente insuficiente para cumprir todas as suas
funções e, consequentemente, era obrigada a reforçar seus números
admitindo membros de um estrato social inferior ou mesmo de fora
das fronteiras do estado.
A restrição sistemática do estado sobre a população desapareceu
de quase todas as sociedades civilizadas. Todo homem em todas as
classes é livre para gerar filhos à vontade, e os freios que existem
dependem do indivíduo. Mas as classes, recentemente emancipadas ou
apenas parcialmente instruídas, incapazes de refrear seus apetites,
multiplicaram-se desproporcionalmente aos seus meios de
subsistência. Quer seu sustento seja inseguro, expandindo-se sob a
influência do progresso industrial, restringido por obstáculos

148
O Problema da População

artificiais, impostos ou proteção, essas comunidades procriam em


obediência cega aos ditames do apetite. O desenvolvimento
imprudente de instituições de caridade públicas, particularmente na
Inglaterra, aumentou ainda mais o número da classe mais numerosa.
O alargamento anormal das fileiras de resultados do trabalho, a
oferta supera a demanda, e o trabalhador está à mercê do empregador.
Os salários caem e as horas de trabalho são aumentadas, com os
inevitáveis concomitantes de alta mortalidade infantil e uma
expectativa de vida geralmente reduzida entre as classes mais baixas.
Esses resultados, ou, na frase característica de Malthus, “obstáculos
repressivos”, tendem a manter o equilíbrio entre a oferta de trabalho e
os meios de subsistência. As classes média e alta, entretanto, levaram
a restrição ao excesso e, a prostituição promovendo as consequências,
elas sobreviveram, em quase todos os países, apenas pela admissão
contínua de recrutas e pela infusão de sangue novo dos estratos mais
baixos da população.
Esses agentes improvisados mantêm um equilíbrio aproximado
entre a população e os meios de subsistência, mas sua ação envolveu
um declínio na qualidade das pessoas. As classes mais baixas sofriam
de horas excessivas de trabalho, salários inadequados, emprego
precoce de crianças cujos ganhos lamentáveis devem complementar
os dos pais, negligência, cuidados inadequados com a saúde, abusos
viciosos do sistema fiscal e — por último, mas não menos importante
— excesso alcoólico.
A decadência das classes altas é quase exclusivamente devida a
um sistema de casamento, que forma suas conexões de acordo com a
fortuna e a convenção, em vez de afinidade física e intelectual. Todas
as classes populares pagam um alto preço ao hábito generalizado da
prostituição com seu inevitável complemento de doença. Mas as
características individuais são o principal fator no poder de qualquer
sociedade, e o vigor físico e moral decidem a batalha da competição
com muito mais certeza do que o solo frutífero ou a maquinaria
perfeita.Quando um estado de guerra colocava a própria existência da

149
A Sociedade do Amanhã

associação proprietária no estado na dependência das qualidades


bélicas ou do indivíduo, as instituições e os costumes eram todos
direcionados para sua preservação. Casamentos, pureza ameaçadora
de sangue ou as qualidades exigidas de um soldado e governante,
eram proibidos, e a educação era exclusivamente direcionada para a
fortificação e desenvolvimento dessas qualidades.
Mas um Estado de Paz, envolvendo uma competição incessante
entre as nações que possuem ou disputam os mercados do mundo, traz
outras considerações à tona. O sucesso não depende mais da aptidão
de uma única classe, mas das qualidades físicas e morais de todo o
povo. A competição sob a nova ordem pode prosseguir por métodos
menos brutais e menos violentos, mas as sociedades, atrasadas na
corrida, ainda se tornarão decadentes e perecerão.
A remoção de cada obstáculo ao avanço natural e irresistível do
progresso internacional implicará, portanto, um ajuste
correspondentemente cuidadoso de meios, a fim de que o poder não
possa ser perdido por excesso ou falta de população, ou por
deficiência em sua qualidade. O ajuste da população aos meios de
subsistência e a perfeição física e moral do homem parecerão então
ainda mais importantes do que agora; mais importantes para a
sobrevivência e o progresso de uma nação, de fato, do que qualquer
aumento de sua maquinaria ou armas.
Já tentamos — em nosso livro intitulado Viriculture — mostrar
como a sociedade do futuro ajustará a população à subsistência, às
oportunidades de emprego para o trabalho e o capital, e apontar pelo
uso de todo o conhecimento disponível, como o bem-estar físico e
moral da raça pode ser melhor assegurado. Limitaremos aqui nossas
considerações a uma questão frequentemente discutida, mas
argumentada com uma ignorância da lei econômica que permitiu as
soluções mais tolas. Esta questão é a futura população do nosso globo.
A população é limitada pelos meios de subsistência, e esses
meios dependem cada vez mais do número de empregos fornecidos
pelo imenso campo da produção industrial. Esses empregos fornecem

150
O Problema da População

aos membros de comunidades civilizadas os meios de comprar os


sustentos materiais da vida e nenhuma tentativa racional de resolver o
problema da população futura pode, portanto, ser feita sem algum
conhecimento do desenvolvimento potencial dos empregos
produtivos. O progresso industrial deve, de fato, ser a única base de
tal previsão.
O progresso industrial tem dois efeitos opostos. Tende a
substituir a força física pela mecânica em todos os ramos da indústria
produtiva; em outras palavras, aumenta a proporção do fator material
em relação ao fator pessoal.Uma determinada quantidade de produtos
ou serviços é produzida ao custo de menos trabalho, e a qualidade do
produto também é melhorada.
Mil ferroviários, engenheiros, mecânicos, foguistas, etc.,
transportam com facilidade mais material do que um milhão de
carregadores poderia mover; ou mil fiandeiros e tecelões por
processos mecânicos fabricam materiais que um número
incomparavelmente maior de trabalhadores manuais não poderia
produzir em uma vida.
Não é nem mesmo um sonho profetizar que a ciência um dia
aperfeiçoará tanto nosso conhecimento da agricultura que cem mil
homens — lavradores, ceifeiros, semeadores, etc. — colherão uma
quantidade de milho que um milhão de trabalhadores não conseguiria
nem semear.Admitindo, portanto, que a escala de cada indústria
atingiu seus limites, cada melhoria na maquinaria ou nos métodos
significa muito menos espaço para o trabalho humano e muito menos
oportunidades de ganhar um sustento; o processo deve continuar até
que a indústria tenha alcançado seu maior desenvolvimento possível, e
a população do globo sofrerá uma restrição contínua e correspondente.
Mas o mesmo progresso que reduz o trabalho envolvido na
produção de um determinado produto também degrada o valor desse
produto, coloca-o ao alcance de um número maior de consumidores e,
portanto, aumenta a demanda por ele. Este aumento segue o da
capacidade do consumidor, e este, por sua vez, resulta de:

151
A Sociedade do Amanhã

• (1) A melhoria da qualidade da mão-de-obra e consequente


elevação da taxa de sua remuneração, portanto, aumento da
capacidade de consumo de todo tipo de produto.
• (2) Uma queda no preço necessário induzindo uma queda
correspondente no preço corrente, o que novamente aumenta
a capacidade de consumo de todos os outros produtores, e isso
se suas economias no preço de compra deste artigo particular
são dedicadas a comprar uma quantidade maior dele ou a
perseguir outros artigos. Cada melhoria que aumenta a
produtividade de uma indústria aumenta a produção obtida ao
mesmo custo de produção, e esse aumento beneficia
parcialmente o produtor real, parcialmente o consumidor em
geral. O retorno adicional ao produtor e a capacidade
ampliada do consumidor geral aumentam naturalmente a
escala de produção e, portanto, o número de pessoas a quem a
indústria dá emprego. O progresso industrial, então, diminui o
número de pessoas empregadas de acordo com a redução que
ele efetua na soma da força humana necessária para a
produção, mas também aumenta o número de pessoas
empregadas pela medida da capacidade adicional de consumo
que leva a um custo de produção menor.19 Nós devemos agora
comparar a restrição relativa e a expansão do emprego e,
portanto, da população, que são as consequências desse duplo
movimento.

Só podemos conjecturar a economia do poder humano que o


progresso alcançará no futuro, ou que expansão no número de
empregos acompanhará a maior capacidade de consumo resultante
dessas economias.
A economia do trabalho — mesmo quando incluímos o que é
gasto na produção de máquinas que economizam trabalho — já
efetuou uma economia de 90 por cento nos custos de produção de
certas indústrias, mas a capacidade de consumo da imensa maioria dos
envolvidos em ocupações produtivas é extremamente baixa, tão baixa
que muitas vezes mal consegue satisfazer as primeiras necessidades da
19Veja o Apêndice, Nota C — Os Efeitos do Progresso Industrial na
População.

152
O Problema da População

vida, não raramente deixa de fazê-lo. Sabemos, por outro lado, que o
aumento da produtividade pode reduzir os preços, e assim aumentar
os salários, de modo a multiplicar o consumo dez vezes.
Assim, a demanda de um inglês de classe média é dez, até vinte
vezes mais efetiva do que a de um felá egípcio ou de um cule indiano
— pode, quer dizer, comandar dez e vinte vezes a quantidade de
trabalho.Resta apenas admitir que o consumo potencial de qualquer
ser humano é equivalente à quantidade necessária para substituir as
forças físicas e morais consumidas nos esforços produtivos, e é claro
que o consumo exercerá a demanda máxima quando a produção tiver
sido desenvolvida na maior extensão possível.
Se o aumento das capacidades humanas exigidas pela crescente
demanda de consumo mais do que equilibrará a economia de trabalho
alcançada por métodos industriais aprimorados, o tempo deve mostrar.
Só podemos supor que eles vão se equilibrar, e que a população futura
do nosso globo não será mais, se não menos, do que no momento
presente.
Mas podemos afirmar que a capacidade de consumo e a
capacidade de produção avançarão na mesma medida que a
capacidade de progresso do homem, e que a raça do amanhã pode,
humanamente falando, não ser menos superior à de hoje do que esta
última é superior ao seu protótipo de eras pré-históricas.

153
CAPÍTULO XIX

Consumo

Nossa consideração das leis naturais que regem a produção e


distribuição dos materiais da vida nos levou agora às seguintes
conclusões:

• A concorrência atua primeiro em cooperação com a Lei da


Economia do Poder para promover o progresso. Todo
produtor é incessantemente obrigado a aumentar seus poderes
de produção, seja reduzindo seu dispêndio de Poder, ou — o
que é a mesma coisa — criando uma quantidade maior de
produtos pelo mesmo dispêndio; deixando de responder, ele é
distanciado na corrida pela existência, faminto e perece.
• Concorrência coopera com a Lei do Valor para regular a
produção e distribuição dos materiais da vida. Por meios
idênticos aos da Lei da Gravitação física, passa a estabelecer
um equilíbrio entre oferta e demanda no nível de preço
necessário para induzir a produção, e regula a distribuição de
produtos entre os agentes de produção, capital e trabalho, em
termos que assegurem sua reconstituição e cooperação
permanente no ato de produção.

155
A Sociedade do Amanhã

• A produção e a distribuição estão naturalmente relacionadas


com o consumo. Os produtos são produzidos e
compartilhados com vistas ao consumo, ao seu emprego, isto
é, na reconstrução e multiplicação do material e das forças
físicas e morais que constituem a espécie humana. Entre esse
material e essas forças, produtos e serviços são distribuídos, e
a divisão pode ser vantajosa ou desvantajosa de acordo com a
maneira pela qual ministra à conservação e ao aumento da
vitalidade, ou os prejudica. Portanto, é necessário regular a
distribuição.

Deve-se ter em mente que existem duas espécies de consumo —


o coletivo e o individual. O consumo coletivo é essencialmente uma
questão de obrigação; o consumo individual depende do exercício do
livre arbítrio. O consumo coletivo consome os serviços
governamentais implícitos nos termos segurança interna e externa, e
os serviços locais de esgoto, estradas, iluminação, etc., que são a
esfera adequada da administração provincial ou secional.
O caráter coletivo desses serviços torna seu consumo
obrigatório, mas os governos e as administrações locais
empreenderam outros serviços, que são os sujeitos apropriados para o
consumo individual voluntário e, total ou parcialmente, o custo desses
serviços é custeado por impostos e taxas obrigatórios. Impostos foram
estabelecidos sob a velha ordem em virtude dos direitos de
propriedade do mestre sobre seu escravo, do senhor sobre seu servo,
ou do rei sobre seu súdito; e eles estavam ligados ao poder
discricionário conferido por esses direitos.
O coletor fixava seu número e quantidade de acordo com seus
próprios desejos; ele não devia serviços em troca, e a única limitação
ao seu poder era a possibilidade de resistência por aqueles que
pagavam. O novo sistema, tanto de fato quanto em teoria, transformou
o imposto em um pagamento por serviços. Mas a sobrevivência do
Estado de Guerra implica um risco ilimitado, justificando a retenção
pelo governo de um direito igualmente ilimitado de tributar aqueles

156
Consumo

que consomem a segurança que ele proporciona, e organizações


constitucionais e parlamentares, erguidas como controles sobre o
exercício desse direito, não apenas deixam de restringi-lo, mas às
vezes até mesmo o favorecem. Portanto, a proporção da renda
individual, cobrada para o benefício do estado não menos do que para
o de seus protegidos, é agora igual, se não exceder, as taxas
autorizadas sob o sistema anterior.
A Sociedade do Amanhã, sob um Estado de Paz e em uma era
de liberdade assegurada de governo, será capaz de reduzir essa parte
do consumo obrigatório em pelo menos nove décimos; mas, por maior
que seja a proporção da renda disponível para o livre uso do
indivíduo, esse consumo certamente deve ser regulado da mesma
forma. O velho sistema regulava rigidamente o consumo das classes
em sujeição.
As regras estabelecidas em seu interesse pessoal pelo mestre,
senhor ou chefe do estado, visavam a conservação e o aumento
lucrativo de sua propriedade — escravos, servos ou súditos — e eram
aplicadas por penalidades materiais e espirituais, sendo esta última
promulgada pela autoridade religiosa associada ao estado secular. A
maioria dessas regras eram benéficas para o indivíduo, e ele continuou
a cumpri-las após sua emancipação.
Não requer, no entanto, um exame muito cuidadoso da maneira
pela qual o indivíduo livre regula seu consumo, especialmente desde a
remoção de antigas restrições religiosas, para perceber que tal
regulamentação se deteriorou em vez de avançar, e que agora não é
menos defeituosa do que a praticada pelo governo coletivo. Um ponto
particular, mais especialmente observável entre a maioria numérica
que provavelmente foi emancipada cedo demais, é o consumo
imprevidente para as despesas presentes sobre o que deve ser
reservado em caso de necessidade futura, e como um fundo de
garantia contra as chances e mudanças da existência humana. O
autocontrole deficiente também é responsável por uma satisfação
muito grande de desejos desordenados ou viciosos.

157
A Sociedade do Amanhã

Não precisamos nos debruçar sobre os efeitos nocivos que se


seguem a esse autogoverno insuficiente e defeituoso por parte do
consumidor. Além de si mesmo, o indivíduo prejudica a sociedade da
qual é membro, e também todas as outras sociedades em relação à sua
própria. O homem que, sem pensar no amanhã, gasta toda a sua renda
na satisfação de necessidades ou desejos imediatos, não poupa nada
dos ganhos presentes por conta de perdas ou acidentes futuros,
particularmente o supremo acidente da velhice; que, ainda mais,
prejudica suas faculdades produtivas por devassidão e bebida;
promete a si mesmo e a seus dependentes uma vida de sofrimento e
miséria. Aumentar sua renda é mais prejudicial do que benéfico, uma
vez que apenas aumenta as oportunidades de indulgência naqueles
vícios que degradam e enfraquecem sua natureza.
Os efeitos nocivos do mau autogoverno dos indivíduos
prejudicam a sociedade, diminuindo a capacidade produtiva de seus
membros e de sua indústria, e esses efeitos nocivos são perpetuados
em todo o mundo em um declínio na capacidade geral de consumo. O
consumidor, mesmo do nível mais baixo, está, no entanto, atingindo
um grau mais alto de autogoverno, como é mostrado pelo imenso
aumento recente nos depósitos de poupança — particularmente na
Inglaterra e nos Estados Unidos — e o extraordinário aumento no
número de seguros efetuados pelos trabalhadores. No entanto, mesmo
as comunidades industriais mais avançadas mostram muitos membros
incapazes de se sustentar inteiramente e subsistir, totalmente ou em
parte, às custas daqueles que resolveram com sucesso esse problema
vital, na maioria dos casos, apenas com um esforço considerável.
Há muito tempo é necessário ajudar esses infelizes — vítimas,
com demasiada frequência, de incapacidade por parte do governo
coletivo, não menos do que de suas próprias deficiências pessoais. A
caridade privada descobriu que a tarefa estava além de seu controle
assim que a mudança da velha ordem pôs fim à tutela obrigatória do
mestre ou proprietário. A caridade pública teve que intervir. Sob
vários nomes e de várias formas, estabeleceu um imposto de

158
Consumo

assistência social e um fundo público de alívio. Instituições para o


alívio dos indigentes foram estabelecidas, hospitais e refúgios se
multiplicaram. A miséria foi assim aliviada, mas sua principal causa
— imprevidência — agravou-se. Por mais insuficiente que seja a
caridade pública e privada, elas inevitavelmente desencorajam a
previdência. Sua mera existência é equivalente a uma sugestão de que
o indivíduo não precisa confiar apenas em si mesmo para uma solução
do problema da existência, mas pode olhar para os outros para fazer
bons déficits que são muitas vezes o fruto do vício e da ociosidade.
Nem é este o seu único efeito maléfico. O socialismo ensina que a
sociedade é obrigada a ajudar seus membros; a satisfazer as
necessidades para as quais eles são, eles mesmos, incapazes de
fornecer.
Este evangelho dos socialistas — que a sociedade é responsável
pela miséria e sofrimento do indivíduo, levou à chamada legislação
socialista, que começa com decretos de proteção e passa para medidas
de garantia. Tendo limitado as horas legais de trabalho feminino e
infantil nas indústrias manufatureiras, procedeu-se a uma
regulamentação semelhante das horas de trabalhadores adultos.Em
seguida, o governo se comprometeu a assegurar o trabalhador contra
acidentes, doenças e velhice, sendo esses encargos suportados
principalmente por empreendimentos industriais e aliados.
Que o estado deve ser o guardião de seres incapazes de
autoproteção, e cujos guardiões naturais, alheios ao dever, apenas
lutam por uma oportunidade de explorar seus poderes crescentes, é
sem dúvida justificável, por mais arbitrário e duvidosamente eficaz
que o sistema possa ser provado como sendo.
Mas essa consideração não é igualmente válida para as leis de
garantia.Essas leis estão inevitavelmente sujeitas ao defeito de se
aplicarem a classes inteiras, enquanto — seja qual for a capacidade do
indivíduo — ele está sujeito à lei, obrigado a sofrer suas
promulgações e privado do direito de escolher um método mais
aplicável ao seu caso particular.

159
A Sociedade do Amanhã

Elas também circunscrevem o desenvolvimento de uma


indústria, obrigando-a a suportar um fardo que aumenta os custos de
produção. Mas há uma objeção ainda maior.
O socialismo finge que a sociedade é obrigada a garantir a vida
e o bem-estar do indivíduo, mas ignora a consequência inevitável —
que o governo, tendo esse dever de executar, deve ser investido com
os meios — um poder soberano sobre a vida e todas as posses desse
indivíduo. Se o governo tem a obrigação de reduzir imediatamente a
miséria social, os membros da sociedade devem investi-lo com
autoridade para regular seu consumo e reprodução, como o mestre
regulava os de seus escravos. A panacéia para todos os males, o último
passo no caminho do progresso, não seria, portanto, senão um retorno
à primeira e bárbara etapa da escravidão.
Ninguém pode afirmar que a Sociedade do Futuro não será
afligida por um certo número de pessoas incapazes de governar
utilmente suas vidas e regular seu consumo, sem prejudicar a si
mesmas ou aos outros. Uma tutela, complementando a insuficiência
de suas faculdades governantes, e auxiliando o crescimento dessas
faculdades por um sistema apropriado de treinamento, pode ser
necessária. Mas acreditamos que essa tutela já não se mostrou de
forma alguma incompatível com a era da liberdade para a qual a
humanidade está se movendo.20 Os pais sempre foram os
reconhecidos tutores dos filhos menores, com a única condição de que
uma data mais ou menos arbitrária tenha sido fixada para a
emancipação com base em sua “maioridade”.
Mas menoridade não é limitada aos de idade jovem, e não há
razão lógica para rejeitar um direito possuído pelo pai sobre uma
criança e pelo governo sobre os membros da sociedade que são
incapazes de autogoverno. Nenhuma razão justifica uma recusa em
colocar os homens, notoriamente incapazes de suportar todas aquelas
obrigações que se apegam a um estado de completa liberdade, sob o

20Veja“Les Notions Fondamentales” do autor, capítulo V, parte III —


Autogoverno e suas funções de Tutela.

160
Consumo

controle que é adequado para alguém cujas faculdades de controle são


tão imperfeitas. Aqueles que estão conscientes de tais lacunas em seu
senso de responsabilidade sabem a quantidade de liberdade justificada
por seu estado.
A possível organização de um sistema de tutela de indivíduos
sem o poder de autogoverno, em qualquer grau, foi discutida em outro
lugar.21 Tal sistema levará ao progresso, mas o progresso será ainda
melhor assegurado por medidas que estendam a esfera do autogoverno
individual e ampliem a liberdade de consumo na mesma medida de
que a produção já desfruta.

21Veja“Les Bourses du Travail”, Apêndice, página 188; e “Les Notions


Fondamentales”, Apêndice, página 437 — Abolição da Escravidão Negra.

161
CAPÍTULO XX

A Expansão da Civilização

As nações do mundo civilizado começaram a procurar meios de


expansão durante o século XV, e o processo nunca esteve mais ativo
do que no presente momento. O homem branco subjugou a maior
parte do globo. A América e a Austrália estão ocupadas, a África está
em processo de partição e a maior parte da Ásia já está em estado de
dependência. Graças ao poder esmagador de seus armamentos e
capital, as raças brancas encontram pouca oposição real e podem se
intitular mestres do mundo.
No entanto, os métodos de conquista e dominação do homem
branco diferem em poucos elementos essenciais daqueles do bárbaro
que uma vez invadiu a civilização. O bárbaro massacrava e pilhava, e
somente quando a pilhagem deixou de ser tão remuneradora quanto
antes, ele se voltou para uma ocupação permanente dos territórios
conquistados e uma exploração regular de populações dominadas.
Quando a civilização se tornou o poder mais forte, ela usou os
mesmos métodos sobre os bárbaros e outras raças atrasadas. Espanha
e Portugal lideraram, e seus rivais e sucessores — Holanda, Inglaterra,

163
A Sociedade do Amanhã

França — se contentaram em seguir. Com o menor número possível


de exceções, os sistemas coloniais, resultantes da conquista e
descoberta extra-europeias, foram concebidos com o único propósito
de explorar terras estrangeiras para o benefício exclusivo das
oligarquias políticas e militares que governam a pátria, ou corporações
comerciais e industriais às quais, em troca de uma consideração
monetária, essas oligarquias se contentavam em ceder o direito do
comércio colonial e o monopólio da importação de produtos
coloniais.
A insaciável avareza e crueldade sangrenta dos conquistadores
espanhóis tornou-se um sinônimo da história. Seu advento nas Índias
Ocidentais, México e Peru, foi marcado por uma orgia de massacres e
pilhagens, e nada além da exaustão do ouro, prata e outros tesouros
móveis desses países, voltaram os pensamentos desses homens para a
divisão da terra e exploração dos recursos minerais e outros do país,
não excetuando o gado humano — seus habitantes.
Os vastos territórios coloniais da Espanha proporcionaram
amplo espaço para uma atividade frutífera da parte de suas classes
governantes, soldados, oficiais civis, detentores de concessões, que
exploravam suas terras pelo trabalho indígena e, mais tarde — quando
o nativo havia perecido sob o açoite — pelo trabalho de escravos
africanos importados. Alguns monopólios industriais e comerciais
garantiram uma rápida fortuna pelo controle dos mercados coloniais,
mas a nação espanhola não obteve retorno pela enorme despesa de
manter seu império.
Desejosamente cobiçadas pelos governadores oligárquicos de
outros estados, essas colônias exigiam uma guarnição e marinha caras
e eram uma causa incessante de guerra. Essas guerras exigiam
aumento da tributação, assediavam a indústria em casa, multiplicavam
o número de desempregados e reduziam as massas a um estado de
cobiça e miséria. Por seu enriquecimento temporário de algumas
famílias, e seu enriquecimento foi apenas temporário, uma vez que o

164
A Expansão da Civilização

empobrecimento geral da nação logo os dominou com o resto, o


sistema colonial vicioso da Espanha foi a principal causa da ruína
daquele país.
Nem, se o considerarmos do ponto de vista dos interesses
nacionais gerais, o sistema de conquista e exploração foi de benefício
real para qualquer país. As oligarquias governantes, aristocratas ou
burguesas, na Inglaterra, na França ou na Holanda, podem ter se
beneficiado das posses coloniais, mas elas são um fardo sobre a
generalidade que deve pagar por guerras intermináveis, e sofrem os
preços artificialmente aumentados de produtos coloniais protegidos no
mercado interno. E, depois de tudo isso, as colônias se soltaram de
suas pátrias.
Nas colônias espanholas, a guerra de emancipação foi iniciada
por aspirantes nativos ao emprego civil e militar, que procuravam
deslocar os funcionários importados de casa; os líderes nas colônias
inglesas eram colonos — proprietários de terra, comerciantes e
artesãos — reivindicando o direito de seus parentes na pátria de não
serem submetidos a nenhuma tributação que eles próprios não
tivessem aprovado. Assim, para as despesas já incorridas na conquista
colonial e defesa, foi agora adicionado o custo de combater essas
revoltas.
A Guerra da Independência Americana, para não mencionar
nenhuma outra, dobrou a dívida nacional da Inglaterra e carregou as
finanças francesas com um fardo que foi a principal causa da explosão
prematura da Revolução Francesa. Um balanço patrimonial de uma
conta de “Empreendimentos Coloniais”, entre o final do século XV e
a abertura do século XIX, descobriria uma inclinação singular para o
lado do débito. E se for afirmado que a expansão do comércio e da
indústria, devido à colonização, tem sido uma causa ativa de
progresso, a afirmação é verdadeira, mas permanece que o mesmo
progresso poderia ter sido assegurado a um custo menor e por
métodos muito menos bárbaros.

165
A Sociedade do Amanhã

Depois de um período de descanso comparativo, as nações


civilizadas começaram novamente a buscar expansão; mas tão longe
de novidade estão os meios empregados que, enquanto as nações
conquistadas sofrem nada menos do que em tempos anteriores,
aquelas que se expandem o fazem a um custo muito maior. Sob o
antigo sistema, os governos que procuravam conquistar ou explorar
nações fora do pálido civilizado, estavam acostumados a confiar parte
da tarefa — e muitas vezes uma parte muito grande — a empresas
especialmente organizadas.
Eles ainda delegam direitos governamentais a empresas
semipolíticas e semi-mercantis, mas raramente delegam a tarefa de
conquistar e administrar novas colônias reais. A expansão colonial de
hoje pretende fomentar a indústria e o comércio em geral, mas seu
verdadeiro propósito é satisfazer as demandas de classes particulares e
politicamente influentes cujo apoio é essencial para os governos
envolvidos. Essa classe, o elemento ativo no eleitorado, é gananciosa
pelo emprego público, e o funcionalismo assalariado pertence quase
inteiramente às suas fileiras.
Esses homens vivem do orçamento, sejam eles funcionários
civis ou militares, grandes comerciantes ou fabricantes, e seus
agentes, em busca de mercados protegidos da concorrência
estrangeira. Os custos enormemente aumentados de uma guerra
moderna entre povos civilizados e a incapacidade de adquirir novos
territórios por esse meio forçaram as classes governantes a sair dos
limites da civilização em busca de emprego para seus funcionários
excedentes e mercados protegidos para seus comerciantes.
Os benefícios assim garantidos por certas classes são como nada
em comparação com os custos impostos à nação em geral. Tomando o
exemplo único das colônias francesas, essas posses custaram à pátria
uma soma praticamente igual ao valor de suas exportações para os
mesmos lugares, de modo que não é exagero afirmar que a
colonização é a mais cara e menos remuneradora de todos os
empreendimentos executados pelo estado.

166
A Expansão da Civilização

Embora as colônias da Inglaterra lhe custem menos e produzam


um retorno maior, não pode haver dúvida de que o saldo em sua conta
ainda está do lado errado. As estimativas do Colonial Office podem
ser relativamente insignificantes, mas os votos da Marinha e do
Exército aumentam a cada dia, e são em grande parte necessários pela
obrigação da Inglaterra de proteger seu império e estar preparado para
as numerosas brigas que são inseparáveis de uma política de
expansão.
O pagador de impostos inglês sustenta um aparato destrutivo
pouco menor do que colossal, e pouco maior do que uma fração do
que seria suficiente para proteger o Reino Unido propriamente dito. O
imposto desempenha um papel importante na satisfação do custo
desse armamento, e não se deve esquecer que o imposto aumenta a
receita pública em detrimento de uma diminuição correspondente na
renda privada mais o custo de coleta, enquanto, aumentando o custo
da produção geral, também torna o produtor menos capaz de competir
com seus rivais estrangeiros.
A competição diária se torna mais aguda no campo da indústria
não menos do que entre nação e nação, e enquanto a expansão
colonial aumenta o fardo dos estabelecimentos navais e militares,
também enfraquece a indústria britânica e torna a nação decadente.22
Tampouco os efeitos dessa política parecerão menos desastrosos
quando examinados do ponto de vista das nações assim submetidas a
seus irmãos civilizados.Em nenhum caso a conquista e exploração de
território habitado por bárbaros, ou pessoas em um plano inferior de
civilização, trouxe qualquer benefício moral ou material para as
vítimas.
A destruição parece inseparável das conquistas dessa natureza
— destruição no ato da conquista, mas ainda mais dos vícios e
doenças introduzidos pelo conquistador; destruição da riqueza natural
através de um sistema ganancioso e improvisado de exploração que
derruba a árvore para colher o fruto de uma única estação.
22Veja Apêndice, Nota D — Custo e Lucro de um Programa Colonial.

167
A Sociedade do Amanhã

Mas a substituição do Estado de Guerra pelo Estado de Paz dá


imediatamente uma influência preponderante àquela maioria do povo
que se compromete com o trabalho produtivo. Esta classe encontra
pouca utilidade em gastar sangue e tesouros em uma busca vazia de
conquista, apenas rentável para uma minoria de funcionários civis e
militares e certos comerciantes privilegiados.
Embora a necessidade, em consequência da pressão da
concorrência universal, a obrigue a reduzir seus custos de produção ao
mínimo, é mais barato delegar a aquisição e exploração de países,
ainda sem o pálido civilizado, para “Companhias Colonizadoras”
livres, cuja ação na extensão da civilização não será menos rápida,
será mais segura e será muito mais econômica.
O atual sistema pelo qual o governo de um estado assume essas
funções e os contribuintes suportam o custo, apropria todos os lucros
para a classe governante na pátria. O interesse do estado conquistado e
de sua população agora sujeita é totalmente subordinado e
invariavelmente sacrificado ao do conquistador e mestre.Substitui a
agência de companhias, constituída sem limitação quanto ao período
de sua duração, e sem restrições na escolha de pessoal ou método e —
a empresa está em seu próprio risco e perigo — elas tomarão cuidado
para que a riqueza dos países, até então ocupada por raças atrasadas
ou decadentes, seja explorada nas linhas mais científicas.
Tais companhias terão todo o interesse em desenvolver as
faculdades produtivas de seus súditos, e estarão inteiramente prontas
para melhorar sua condição moral e material. A civilização será assim
estendida sem recorrer aos atuais processos bárbaros e dispendiosos
de conquista.23

23Veja
o panfleto do autor, intitulado “La Conquete de la Chine”, C.
Mucquardt, Bruxelas, e Williams e Norgate, Londres, 1856.

168
CAPÍTULO XXI

Resumo e Conclusão

Embora o homem compartilhe muitas de suas faculdades com o


resto da criação animal, apenas ele possui outras, ou desfruta delas em
maior grau.Esta vantagem, juntamente com um organismo
peculiarmente adaptado à aplicação prática de qualquer faculdade,
completa o dote através do qual ele foi capaz de se elevar como
superior a todos os rivais e alcançar a civilização. O homem é o
sujeito de nossas investigações, e é desnecessário discutir se sua
superioridade é devida a um ato final de criação, ou se não é mais do
que o produto de um longo processo de evolução, uma questão
triunfante de uma Inteligência vestida em forma material. Para os
propósitos atuais, precisamos investigar nada mais do que: “Qual foi o
ambiente em que esse ser foi colocado e qual é o escopo de suas
atividades?"
O homem é um organismo composto de matéria e forças vitais,
e o fracasso em nutrir essas forças implica desperdício e destruição
final.A consequência dessa necessidade — a necessidade de sustento
ou material de consumo — implica a necessidade correspondente de

169
A Sociedade do Amanhã

produção. O ambiente em que a humanidade foi colocada também


contém um princípio destrutivo que implica a necessidade de
segurança, ou um meio de garantir a segurança. A prova dessa dupla
necessidade deve ser encontrada no sofrimento que se segue a
qualquer perda de vitalidade.
O homem sofre sempre que sente essas necessidades, mas cada
satisfação de suas demandas é acompanhada por uma sensação de
prazer. Elas podem ser satisfeitas por dois tipos de trabalho —
trabalho produtivo de materiais que servem à vitalidade; trabalho
destrutivo, ou ações como eliminar seres e coisas que o ameaçam.
Mas o trabalho, de qualquer classe, envolve um investimento de força
vital, consequentemente uma dor.
O homem não trabalhará, portanto, a menos que sua ação
obtenha ou assegure uma quantidade de vitalidade superior ao seu
dispêndio, ou a menos que a quantidade de prazer derivada, ou
sofrimento evitado, seja maior do que a responsabilidade incorrida. É
essa margem de ganho, comumente conhecida como “interesse”, que
fornece o estímulo da ação humana, não menos do que de todas as
outras.
Essa esperança de margem de ganho é a primeira parte do
estímulo exercido pelos juros.O homem que se tornou um produtor
deseja imediatamente satisfazer sua necessidade de sustento, ou
segurança, pelo menor dispêndio de trabalho; ou — dito do outro lado
— o produtor se esforça para garantir um retorno constantemente
crescente para o mesmo dispêndio. Mas mesmo esse impulso não
bastaria, tomado isoladamente, para impelir o homem a aperfeiçoar
seus meios de produção ou destruição.
Cada um desses avanços implica esforço, um dispêndio
suplementar de força vital com seu acompanhamento de dor.Nada
além do aumento do esforço ou da dor induzirá um homem a
concordar com esse dispêndio adicional, e o estímulo complementar,
que é a condição essencial de todo progresso, é encontrado na
competição pela mera vida. A competição pela vida, pelos meios de

170
Resumo e Conclusão

subsistência, começou quando a multiplicação da humanidade


ultrapassou os meios de subsistência natural. Na luta que se seguiu
com espécies ou variedades rivais, os fisicamente fortes se tornaram
vencedores e sobreviveram às custas dos fisicamente mais fracos. Mas
a força física não é de forma alguma o único critério de habilidade, e
os fracos foram imediatamente impelidos a fazer todos os esforços
para remediar suas deficiências físicas pela invenção de novos
métodos, armas aprimoradas ou ferramentas.
A concorrência tornou-se o motivo do progresso, pois um
dependia do outro, e a penalidade de permanecer estagnado, ainda
mais de retrocesso, era a total falta de subsistência, um sofrimento
máximo. A ação do princípio competitivo sobre os estágios iniciais da
existência humana foi traçada neste livro. O homem, face a face com
espécies de força superior e dotado de armas naturais mais eficientes,
aprendeu a cooperar e a combinar.
As armas naturais foram suplementadas com artificiais,
indivíduos mais fracos destruídos para que os mais fortes pudessem
obter um suprimento mais abundante de alimentos, e quando foi
finalmente descoberto que mais lucro deveria ser obtido escravizando
os fracos e explorando sistematicamente suas capacidades produtivas,
em vez de espoliar e destruir, essa descoberta abriu uma nova e
frutífera era de progresso, pois envolveu a formação de estados
políticos.
A luta pela existência foi agora transferida para um novo plano.
A associação proprietária nesses empreendimentos — os estados
políticos — competia com comunidades que continuavam a viver da
perseguição e da guerra; finalmente, o estado se opunha ao estado. A
associação proprietária em cada estado subsistia do produto líquido de
suas populações sujeitas, e como isso foi tomado, seja totalmente ou
em parte, na forma de trabalho forçado, impostos ou pagamentos em
bens, o senhor naturalmente desejava aumentar suas posses para
aumentar sua renda. O estado mais forte fez isso às custas do mais
fraco, e a era da competição destrutiva — do Estado de Guerra —

171
A Sociedade do Amanhã

continuou assim em uma escala nova e maior, a vitória inclinando-se


como antes para o lado que dispunha das maiores forças, a maior
soma de capacidade destrutiva. No entanto, um estado é uma unidade
complexa. Precisa de um governo — uma organização adequada à
conservação e ao desenvolvimento de suas forças e capaz de
concentrar e controlar sua ação; um exército — um corpo capaz de
atingir os maiores poderes possíveis de destruição; também uma
população, suficientemente diligente e econômica para fornecer os
meios de apoiar e aplicar o aparato destrutivo do exército. A escala
desses avanços aumenta a cada desenvolvimento do exército, e cada
avanço, sob qualquer cabeça, nos vários poderes dos estados rivais.
Estados que souberam aperfeiçoar esses diversos elementos ao
mais alto nível provaram-se conquistadores no Estado de Guerra,
adquiriram uma superioridade decisiva sobre os bárbaros cujas
incursões deixaram de temer e tornaram-se senhores do mundo. Este
resultado implicou em ainda outro, inimaginável por qualquer um dos
concorrentes, e nada menos que o estabelecimento seguro da
civilização. A guerra, aqui, deixa de ser produtora de segurança e
perde toda a justificativa; seu uso desaparece e ela se torna prejudicial.
O fato de que a guerra se tornou inútil não é, no entanto,
suficiente para garantir a sua cessação. É inútil porque deixa de
ministrar ao benefício geral e permanente da espécie, mas não cessará
até que também se torne inútil, até que esteja longe de render
benefícios para aqueles que a praticam, até que ir à guerra seja
sinônimo de abraçar uma perda.
Uma consideração das guerras modernas sob esse aspecto
produz duas respostas opostas. Cada estado inclui uma classe
governante e uma classe governada. A primeira está interessada na
imediata multiplicação de empregos abertos aos seus membros, sejam
eles prejudiciais ou úteis ao estado, e também deseja remunerar esses
funcionários na melhor taxa possível. Mas a maioria da nação, a classe
governada, paga os funcionários, e seu único desejo é sustentar o
menor número necessário. Um Estado de Guerra, implicando um

172
Resumo e Conclusão

poder ilimitado de disposição sobre a vida e os bens da maioria,


permite que a classe governante aumente os empregos do estado à
vontade — isto é, aumente sua própria esfera de emprego. Uma parte
considerável dessa esfera é encontrada no aparato destrutivo do estado
civilizado — um organismo que cresce a cada avanço no poder dos
rivais.
Em tempos de paz, o exército sustenta uma hierarquia de
militares profissionais, cuja carreira é muito apreciada e assegurada,
senão particularmente remuneradora. Em tempo de guerra, o soldado
obtém uma remuneração adicional, mais glória e uma maior esperança
de progresso profissional, e essas vantagens mais do que compensam
os riscos que ele é obrigado a enfrentar. Desta forma, um Estado de
Guerra continua a ser rentável tanto para a classe governante como um
todo, quanto para os funcionários que administram e oficializam o
exército. Além disso, cada melhoria industrial aumenta esse lucro,
pois o enorme aumento tardio da riqueza que as nações derivam dessa
fonte requer armamentos ampliados, mas também permite a imposição
de impostos mais pesados.
Mas enquanto o Estado de Guerra tornou-se cada vez mais
proveitoso para a classe interessada nos serviços públicos, tornou-se
mais oneroso e mais prejudicial para a maioria infinita que apenas
consome esses serviços. Em tempos de tranquilidade, ela suporta o
fardo da paz armada e o abuso, por parte da classe governante, do
poder ilimitado de tributação exigido pelo Estado de Guerra,
destinado a fornecer os meios de defesa nacional, mas pervertido para
o lucro do governo e seus dependentes. O caso dos governados é
ainda pior em tempo de guerra. Seja qual for a questão da luta, e não
recebendo nenhuma das compensações concedidas em épocas
anteriores, quando uma guerra garantia suas seguranças contra o
ataque dos bárbaros, isso justificava um aumento imediato dos
impostos e um aumento futuro e semi-permanente dos juros sobre
empréstimos, os acidentes inseparáveis da guerra moderna e também

173
A Sociedade do Amanhã

as perdas indiretas que acompanham a desorganização do comércio —


danos cujos efeitos se tornam mais abrangentes com cada extensão no
tempo e área coberta pelas relações comerciais modernas.
O balanço humano sob um Estado de Guerra favorece assim o
governador à custa dos governados, nem pode o olhar mais superficial
sobre os orçamentos da civilização — especialmente se direcionado
para suas provisões para o serviço das Dívidas Nacionais — deixar de
perceber a que trimestre, e em quão grande grau, esse equilíbrio se
inclina. Isso, por si só, não garante que o Estado de Guerra esteja
chegando ao fim, pois a classe governante, nas condições atuais,
dispõe de um poder muito mais formidável do que aquela força
imensa, mas, como podemos chamá-la, amorfa, que está adormecida
nas massas.
Elas, como ninguém pode negar, muitas vezes se levantaram
contra governos que extorquem um preço muito alto por seus
serviços, ou ameaçam sobrecarregá-los com fardos intoleráveis, mas o
sucesso de tais movimentos raramente resulta em mais do que uma
mudança de mestres, e a nova classe governante geralmente tem sido
maior e de qualidade inferior. O resultado dessas revoluções foi o que
sempre precisa ser: fardos aumentados e um recrudescimento do
Estado de Guerra.24
No entanto, este Estado de Guerra deve chegar à sua inevitável
conclusão. Ele drena continuamente e, pode-se dizer, automaticamente
os recursos dos governados e, uma vez que são esses recursos que
sustentam a classe governante, essa classe deve eventualmente
encontrar-se cara a cara com o fim. As mesmas influências que
mantêm o Estado de Guerra, embora já por muito tempo tenham sido
efetivas, então o fecharão, e a humanidade entrará em um novo e
melhor período de existência, o período de Paz e Liberdade.

24Veja“l'Evolution Politique et la Révolution” do autor, capítulo ix — La


Révolution Française.

174
Resumo e Conclusão

Já tentamos esboçar a organização política e econômica que se


seguirá, construída sobre a compreensão das forças motrizes e das leis
naturais que governam a ação humana. A diferença entre essa
organização e o programa socialista é singularmente essencial — ela
cumprirá, enquanto a deles nega, essas leis.25
Uma questão permanece antes que possamos concluir — a
questão dos respectivos papéis desempenhados pelas leis naturais e
pela lei da liberdade humana na efetivação dessa imensa conquista. E,
finalmente, devemos também investigar o fim para o qual esse
trabalho tem sido realizado — um trabalho que elevou a humanidade,
movendo-a cada vez mais longe de seu primeiro estado de
animalismo, sua igualdade com as bestas que perecem.
As leis naturais desempenham o papel mais importante, pois
elas foram os determinantes desse progresso que se resume na única
palavra — Civilização. Passo a passo, elas obrigaram o homem a
avançar sob pena de decadência e destruição. As diferentes
comunidades, juntas formando a raça humana, foram impulsionadas
por sucessivas aplicações do princípio da competição por uma
existência, para inventar e aplicar formas e métodos de governo, de
destruição e produção. As formas e métodos se sucederam em
resposta a novas demandas, e cada um era o mais perfeito concebível
pela época em que apareceu.
Que devem ser a melhor possível, a mais eficiente e a mais
poderoso — devem, isto é, conformar-se no mais alto grau possível à
Lei da Economia do Poder, não precisando de insistência. Que foi
assim, no entanto, não nega qualquer parte à livre ação da
humanidade. Tal ação está sujeita às leis físicas e econômicas.
O homem pode ou não construir de acordo com a lei da
gravidade, mas a desobediência a essa lei envolve a dissolução
precoce de seus edifícios. Da mesma forma, suas ações podem ou não
estar em conformidade com as leis econômicas, mas as sociedades que
25VejaApêndice, Nota E — "A Concepção Econômica e a Socialista da
Sociedade do Futuro".

175
A Sociedade do Amanhã

não respondem aos apelos da concorrência, lançando suas forças,


individual ou coletivamente, em vez de preservá-las e desenvolvê-las,
devem cair em declínio e dar lugar a nações que viveram em
obediência às demandas econômicas. Essas condições governaram o
passado e devem governar o futuro, mas a evolução da espécie tende a
um avanço contínuo nos resultados da ação individual, seja sobre a
sociedade particular da qual o indivíduo é membro ou sobre a
humanidade como um todo.
Não foi assim no início. A inteligência e a vontade de uma
minoria dirigente eram então tudo. Eles lideraram ou deram leis, e
uma multidão passiva seguiu sem pensar, e sem tentar usar seu
potencial poder de controle. Um sistema semelhante prevalece com
muita frequência hoje em dia. Mas quando as obrigações impostas por
um Estado de Guerra tiverem deixado de existir, quando a esfera do
governo coletivo tiver sido reduzida aos seus limites naturais e a ação
individual tiver obtido perfeita liberdade, a influência dos indivíduos
sobre os destinos da sociedade e da raça aumentará rapidamente. Mas
esse aumento implicará um conhecimento mais completo e uma
observância muito mais rigorosa das leis que a sociedade viola para
perecer.
E agora — para que propósito foi criado o poderoso edifício da
Civilização? As leis, nunca feitas pelo homem, obrigaram a um
aumento contínuo de seus poderes sobre as coisas naturais. A
felicidade não é esse fim, pois se o progresso reduziu o sofrimento e
aumentou os prazeres da raça, ninguém pode sustentar que o aumento
do prazer foi a recompensa daqueles que realmente alcançaram
avanços, nem negar que o presente tem muitas vezes sofrido na
esperança de um bem futuro. Menos sofrimento e mais prazer podem
ser acidentes do progresso, mas não são seu fim e propósito.
Tampouco podemos definir esse propósito mais claramente do que
dizendo que é o alargamento das potências humanas para preparar os
homens para um futuro do qual eles não têm conhecimento.

176
PARTE III
Apêndice
NOTA A

O Czar e o Desarmamento

O manifesto do Czar em favor do desarmamento internacional


oferece uma prova clara de que os próprios reis estão sentindo as
consequências desastrosas do contínuo Estado de Guerra. Em 12 de
agosto — novo estilo, 24 de de agosto de 1898, o Conde Mouravieff,
por ordem do Imperador, entregou uma cópia da seguinte Nota ao
representante de cada Potência credenciada na Corte de São
Petersburgo:

Uma paz universal e uma redução dos atuais fardos


intoleráveis impostos a todas as nações pelos armamentos
excessivos de hoje, é o ideal pelo qual todo governo deve se
esforçar.

As visões magnânimas e humanitárias de Sua Majestade, o


Imperador, meu augusto mestre, são inteiramente dedicadas a
esta causa, convencido de que tal medida envolve os interesses
mais essenciais e as aspirações legítimas de todas as

179
A Sociedade do Amanhã

Potências. O Governo Imperial acredita que o momento


presente é muito favorável para uma investigação
internacional sobre os meios mais eficazes de assegurar a paz
real e duradoura de todas as nações e, em particular, para
colocar limites ao alargamento progressivo dos armamentos
atuais.

Os últimos vinte anos viram um movimento particular e geral


em direção ao ideal de uma paz universal. A manutenção da
paz tem sido o primeiro objeto da política internacional. As
Grandes Potências consumaram alianças para essa proposta, e
a melhor garantia de paz permanente iniciou desenvolvimentos
até então inimagináveis no poder armado das nações, que não
se furtam de nenhum sacrifício para ampliar suas forças.

Nenhum desses esforços, até agora, trouxe a solução desejada.


O aumento incessante dos encargos financeiros ameaça as
próprias raízes da prosperidade pública. As potencialidades
intelectuais e físicas dos povos, do trabalho e do capital, são
em sua maior parte desviadas de seus canais naturais e
improdutivamente consumidas. Milhões de libras são gastas
em máquinas de guerra que hoje são consideradas irresistíveis,
mas que uma única nova descoberta amanhã tornará sem
valor. A cultura nacional, o progresso econômico e a produção
de riqueza são paralisados ou abortados; cada avanço
empregado nos armamentos das Potências ministra cada vez
menos para o propósito para o qual foram criados. As crises
econômicas, em grande parte devido a um sistema que arma as
nações cap-à-pié, e aos perigos contínuos inseparáveis frente
tal acumulação de material bélico, transformam a paz armada
de hoje em um fardo tão avassalador que as nações apoiam
isso com dificuldade diariamente crescente. Um
prolongamento indefinido desse sistema precisa, portanto,
inevitavelmente provocar esse cataclismo para cuja prevenção
foi projetado, e o mero pensamento dos horrores que isso
envolve faz todo mundo estremecer. Definir um termo final
sobre esses armamentos e descobrir um meio de prevenir
calamidades que ameaçam o mundo inteiro é o dever supremo

180
Apêndice

de todo estado moderno.

Cheio desses sentimentos, Sua Majestade se digna a ordenar-


me que proponha uma Conferência, sobre o assunto deste
grave problema, entre todos os governos com representantes
credenciados na Corte Imperial.

Esta Conferência deve, com a ajuda de Deus, ser um feliz


presságio para o início do século. Isso fundiria em uma
unidade poderosa os esforços de todos os estados que buscam
sinceramente o triunfo do grande ideal de paz universal,
apesar de todos os problemas e discórdias. Ao mesmo tempo,
deve também cimentar seus esforços por uma consagração
comum aos princípios da equidade e do direito sobre os quais
repousam a segurança dos estados e o bem-estar das nações.

O conde Mouravieff também dirigiu a seguinte circular, datada


de 30 de dezembro de 1898 — 13 de janeiro de 1899, novo estilo —
aos representantes das Potências em São Petersburgo, resumindo os
pontos sugeridos para consideração na Conferência:

Quando, no agosto passado, meu augusto mestre me ordenou


propor aos governos, representados na Corte de São
Petersburgo, uma Conferência para investigar os meios mais
eficazes de assegurar os benefícios de uma paz real e
duradoura a todas as nações e, mais especialmente, de colocar
um termo no atual aumento progressivo de armas, nada
parecia se opor a uma realização mais ou menos precoce desse
projeto.

A resposta ansiosa de quase todas as Potências à sugestão do


Governo Imperial não poderia deixar de justificar essa crença.
Muito consciente dos termos simpáticos em que a maioria dos
governos expressou sua resposta, o Gabinete Imperial, ao
mesmo tempo, experimentou uma satisfação intensa dos
calorosos testemunhos de solidariedade dirigidos a ele de
todos os lados, e que continuam a chegar, de todas as camadas

181
A Sociedade do Amanhã

sociais e de todos os cantos do mundo.

Apesar da grande corrente de opinião que favorece a ideia de


uma pacificação geral, o aspecto do horizonte político mudou
sensivelmente. Várias Potências aumentaram recentemente
seus armamentos, competindo entre si no desenvolvimento de
seu poder militar, uma situação cuja incerteza poderia muito
bem causar indagações sobre se as Potências consideram o
momento presente oportuno para uma discussão internacional
das ideias estabelecidas na circular de 12 de agosto.

Continuando a ter esperança que os elementos de dificuldade


que obscurecem o horizonte político em breve darão lugar a
disposições de uma natureza mais calma e favorável ao
sucesso da conferência projetada, o Governo Imperial é da
opinião que uma troca imediata de ideias preliminares neste
sentido pode ser realizada entre as Potências e uma
investigação iniciada sem demora sobre os meios de limitar o
aumento atual de armamentos militares e navais — uma
questão evidentemente cada vez mais urgente em vista dos
recentes desenvolvimentos na linha desses armamentos — e
para preparar um caminho para a discussão de questões
relacionadas à possibilidade de substituir a ação pacífica da
diplomacia internacional pelo arbitramento da força.

No caso de as Potências considerarem o momento presente


favorável para convocar uma Conferência com base nisso,
certamente será útil ter algum entendimento entre os Gabinetes
quanto ao programa a ser submetido para discussão. Os
assuntos a serem submetidos à discussão internacional na
Conferência podem ser delineados da seguinte forma:

1. Acordo que estabelece um prazo fixo durante o qual


qualquer aumento de armamentos, por mar ou por terra, será
proibido, bem como qualquer aumento das dotações dedicadas
a ele: uma discussão geral sobre possíveis medidas futuras
pelas quais esses armamentos e orçamentos podem aqui ser

182
Apêndice

reduzidos posteriormente.

2. Acordo que proíbe a introdução, para o exército ou


marinha, de novas armas de fogo de qualquer tipo, ou de
pólvoras de maior potência do que aquelas já em uso, seja
para canhões ou armas de pequeno porte.

3. Restrições ao uso, em guerras por terra, de explosivos tão


potentes como os já empregados; e proibição da descarga de
projéteis ou explosivos de qualquer tipo por meio de balões ou
máquinas similares.

4. Proibição do uso, em guerras navais, de torpedeiros


submarinos, mergulhadores ou quaisquer motores destrutivos
de tal natureza, e um compromisso de não construir novos
aríetes.

5. Aplicação às guerras navais das estipulações da Convenção


de Genebra de 1886, com base nos artigos adicionais de 1868.

6. Neutralização, sob o mesmo título, de embarcações ou


lanchas de salvamento de náufragos, durante ou após combate
naval.

7. Revisão da declaração dos usos e costumes de guerra


elaborada pela Conferência de Bruxelas em 1874, mas não
ratificada até a presente data.

8. Aceitação, em princípio, do costume dos bons ofícios, da


mediação e da arbitragem facultativa, em casos apropriados,
com a intenção de evitar conflitos armados entre nações;
acordo quanto aos métodos de aplicação desses princípios e
estabelecimento de um sistema uniforme para todos esses
casos.

183
A Sociedade do Amanhã

Compreendendo sempre que toda a questão das relações


políticas dos estados, do atual status estabelecido pelo Tratado
e também, em geral, todas as questões não diretamente
incluídas no programa adotado pelos Gabinetes, serão
inteiramente excluídas das deliberações da Conferência.

Ao dirigir-me a Vossa Senhoria com este pedido de que tome o


parecer de seu governo sobre o assunto dessa comunicação, eu
imploro acrescentar que, no interesse da grande causa tão
próxima de seu coração, meu augusto mestre, Sua Imperial
Majestade, considera que a Conferência não deve ocorrer na
capital de uma das Grandes Potências — centros de tantos
interesses políticos que possam prejudicar as deliberações
sobre um tema que desperta o mesmo interesse de todos os
países.

Seguindo esta Nota, o Mensageiro Oficial publicou um artigo


altamente estatístico enumerando as forças militares de todas as
Potências.

As forças da Rússia são mais consideráveis do que as de


qualquer outro país europeu. Seu efetivo de paz, com um
recrutamento anual de 280.000 homens, excede 1.000.000
homens. Em uma mobilização, a Rússia pode entrar em campo
com 2.500.000 homens, excluindo uma reserva e milícia que,
juntos, totalizam 6.947.000. A Rússia, portanto, dispõe de
quase 9.000.000soldados treinados. A França ocupa o segundo
lugar com um efetivo permanente de 589.000 homens, e um
efetivo em tempo de guerra de 2.500.000. Seu total, incluindo
reservistas, é de 4.370.000. O exército alemão, cuja
organização é especialmente perfeita, tem um efetivo de paz de
585.000 homens, e pode mobilizar 2.230.000 dentro de dez
dias. Incluindo reservistas, a Alemanha pode entrar em campo
com 4.300.000 homens treinados de todas as unidades.

184
Apêndice

As forças permanentes da Áustria-Hungria somam 365.000,


podendo atingir 2.500.000 numa mobilização, ou, incluindo
reservistas, 4.000.000 combatentes. O efetivo italiano de
174.000 homens pode ser transformado em uma forçade
1.473.000, mais 727.000 reservista, totalizando 2.200.000
combatentes.A Grã-Bretanha ocupa o último lugar na lista,
com um número comparativamente pequeno de 220.000, ou,
acrescido com os voluntários e milícias, resulta num total
máximo de 720.000 combatentes.

Os números dão apenas uma ideia parcial do poder dos


exércitos europeus, pois é difícil compreender o real
significado de um milhão de soldados. É fácil dizer que a
Rússia pode colocar 7.000.000 homens no campo de batalha
em tempos de guerra, mas uma enumeração seria difícil,
exigiria vários meses de trabalho. Para dar uma ideia dos
acidentes desses números imensos, o exército francês,
estendido em formação de linha, cobriria uma distância de 520
quilômetros (cerca de 325 milhas), o da Alemanha 510
(quilômetros 318 ¾ milhas), o da Áustria-Hungria 460
quilômetros (287 ½ milhas), e o Italiano 230 quilômetros
(143¾ milhas).

A Europa é, em suma, um vasto campo de batalha, e todo


europeu passa parte de sua vida em quartéis. A proporção
relativa da população militar em relação à civil é: na França,
11 por cento. ; na Alemanha 8.5 por cento, ou 11 por cento dos
homens; na Áustria-Hungria um pouco mais de 9 por cento; na
Itália, um sétimo da população masculina. A proporção na
Rússia é de 2.5 por cento da população total.

Os espaços abertos de Paris cobrem 7.802 hectares (19.278 ¾


acres) — exatamente um quarto da área livre de Londres. As
forças combinadas das cinco principais Potências ocupariam o
dobro da área dos espaços abertos de Londres e oito vezes a de
Paris. Os reservistas combinados dessas Potências precisariam
de um espaço equivalente a todo o campo aberto de Londres e
quatro vezes o espaço aberto de Paris. Para revisar os

185
A Sociedade do Amanhã

exércitos das cinco principais potências continentais, seria


necessário fornecer um espaço igual a vinte vezes toda a área
superficial da cidade de Paris.

As forças permanentes da Europa somam 4.250.000 homens,


em mobilização 16.410.000, ou, com todos os reservistas,
34.000.000. Em formação de linha este exército colossal se
estenderia de Paris a São Petersburgo, e representaria 10 por
cento do agregado, ou 20 por cento da população masculina
combinada do Continente. Os exércitos da Ásia — ignorando
os pequenos estados — totalizam 500.000 em tempos de paz.
O exército chinês não é capaz de fazer nenhuma estimativa
precisa, mas é estimado em cerca de 1.200.000, com muitos
dos combatentes apenas armados com arcos e flechas. O
Japão, pelo contrário, é admiravelmente organizado e armado.
As forças indígenas da África não tem mais do que 250.000
combatentes.

Em comparação com os números europeus, os do Novo Mundo


são insignificantes. México dispõe de 120.000; Brasil de
28.000 tropas e 20.000 policiais militares. O efetivo de paz dos
Estados Unidos é de 25.000, mas pode ser amplamente
aumentado em caso de necessidade. A República Argentina
mantém 120.000, o Canadá 2.000 tropas inglesas, 1.000
canadenses e 35.000 milicianos.

O efetivo permanente do mundo é de 5.250.000 sempre


armados.

O custo dessas forças enormes é o seguinte:

Rússia: 772.500.000 francos = £30.900.000


Alemanha: 675.000.000 francos = £27.000.000
França: 650.000.000 francos = £26.000.000
Áustria-Hungria: 332.500.000 francos = £13.300.000
Itália: 267.250.000 francos = £10.650.000
Grã-Bretanha: 450.000.000 francos = £18.000.000

186
Apêndice

Ou um total de 3.147.250.000 francos = £125.890.000

O preço por pessoa é, em ordem de custo:

Rússia: 772,50 francos = £30 18s. 9d.


Alemanha: 1.162,50 francos = £46 10s. 0d.
Áustria-Hungria: 1.175,00 francos = £47 0s. 0d.
Itália: 1.535,00 francos = £61 8s. 4d.
França: 1.633,00 francos = £65 6s. 8d.
Grã-Bretanha: 2.045,00 francos = £81 16s. 8d.

Cada cidadão da Rússia paga 6 francos = 5s.; da Itália cerca


de 9 francos = 7s. 6d.; da Áustria-Hungria 10 francos = 8s.
4d.; da Grã-Bretanha 12 francos = 10s.; da Alemanha 13
francos = 10s. 10d. da França 18.25 francos = 15s.3d.

O orçamento militar real da Dinamarca não é mais do que


5.750.000 francos = £230.000, mas, mesmo assim, é um fardo
enorme para um país tão pequeno. Se as nações da Europa
estão constantemente cara a cara com o aumento das dívidas,
a principal causa de sua situação é um efetivo militar em
constante crescimento.

É possível fundamentar alguma estimativa dos custos


potenciais reais da próxima guerra nos números acima. A
última guerra Sino-Japonesa envolveu uma despesa de
1.250.000.000 francos = £50.000.000. Uma guerra europeia
deve custar pelo menos 6.000.000.000 de francos =
£240.000.000, sem qualquer consideração pelas perdas
incalculáveis de homens e materiais. A Alemanha mantém um
cofre permanente de guerra em Spandau com 450.000.000
francos = £18.000.000 — uma quantia que não seria mais do
que uma gota no oceano.

187
A Sociedade do Amanhã

O Mensageiro Oficial encerrou seu artigo assim:

De modo algum os gastos nessa escala colossal poderiam ser


produtivos. Eles esgotam as fontes de receitas nacionais,
aumentam a tributação, paralisam a ação das finanças e do
comércio nacionais e detém o bem-estar geral. As melhores
mentes de todos os países e de todas as épocas têm buscado um
meio de assegurar a paz sem recorrer a armamentos cada vez
maiores — isto é, por princípios de direito e equidade,
operando através do canal de arbitragem, para finalmente
acabar com essa teoria bárbara que identifica o curso da
civilização com todas as oportunidades de melhoria — e elas
são incessantes — nos meios e métodos de destruição.

As edições de la Revue Statistique de 11 e 18 de setembro de


1898 fornecemas seguintes tabelas do orçamento de guerra mundial
— naval e militar.

188
Apêndice

Nota: Os números da China, como apresentados nestas tabelas, foram


retirados de uma estimativa preparada pelo cônsul inglês em Xangai.

189
A Sociedade do Amanhã

A Nota do Czar — (veja o artigo do autor no Le Journal des


Economistes, 15 de setembro de 1898) — uma Nota que poderia ter
sido escrita por um discípulo de Cobden chegou como uma surpresa
desagradável, para a Europa. O nobre governante que a inspirou
certamente era um proprietário de terra, e suas intenções foram
elogiadas por sua indubitável generosidade, mas ele foi explicitamente
informado que o projeto era bastante utópico.
No entanto, seria, sem dúvida, um argumento justo estigmatizar
como utópica a ideia de que a Europa possa continuar a suportar o
fardo esmagador de seus armamentos em crescimento incessante e os
impostos não menos ruinosos que eles necessitam. É crível que as
classes trabalhadoras, arcando com praticamente todo o ônus desse
imposto de sangue, enquanto a classe dominante não arca com um
terço no máximo, um dia se levantarão contra a monstruosa injustiça,
e que o militarismo é o caminho direto para o socialismo. Mas a visão
dos políticos profissionais é curta e todas as coisas além de seu
horizonte são naturalmente quiméricas.
Ainda assim, e embora o ideal do Czar tenha se mostrado estéril
de resultados, sua ação trouxe esse problema a uma publicidade tão
grande que nunca mais poderá cair no esquecimento até que, e a
menos que, deixe de existir, sendo realizado. E podemos, a esse
respeito, lembrar que a Liga dos Neutros deveu seu início a outra
soberana russa, Catarina II — uma liga que avançou notavelmente a
Lei das Nações ao estabelecer a máxima de que "a bandeira cobre a
carga". Outro predecessor de Nicolau II, Alexandre I, impôs à Europa
uma obrigação ao promover a Santa Aliança, que deu início a trinta
anos de paz. Não há motivo para que este exemplo não possa render
mais frutos, sendo constituída uma liga semelhante na base mais
ampla de uma aliança entre todos os estados continentais, pequenos e
grandes.

190
NOTA B

Sindicatos Restringindo a
Concorrência, ou Trustes

Escrito em 1899-1900

O New York Journal of Commerce estimou recentemente o


capital envolvido em Trustes em $3.500.000.000, ou cerca de 50 por
cento de toda o capital dos Estados Unidos. Os livros "Autour du
Monde Milliardaire Américain", de MM. Johanez e o "Les Industries
Monopolisées —(Trusts)—aux Etats Unis”, por M. Paul de Rousiers,
concordam em identificar a principal causa da construção e
multiplicação desses monopólios com a tarifa protecionista mantida
pelos Estados Unidos.
Escreve M. Paul de Rousiers;

Um defensor de Trustes, o Sr. Gunton, argumenta em seu


'Economic and Social Aspects of Trusts' que os trustes não
destroem a potencial competição — isto é, a possibilidade de
competição. Ninguém, por exemplo, impede um homem de

191
A Sociedade do Amanhã

oferecer ao público americano um óleo melhor do que o da


Standard Oil Company e a um preço mais baixo. Isto, porém,
não é verdade, pois a tarifa protecionista fecha os mercados
americanos à concorrência externa de tal forma que a
concorrência potencial é inexistente. Muitos refinadores, se
não fosse pela tarifa, poderiam vender açúcar melhor e mais
barato do que o Sugar Trust. Tampouco é este o único
resultado dessas tarifas, pois, além de fechar o mercado à
concorrência direta, excluem os bens que poderiam afetar
indiretamente os produtos da Trust. O monopólio da Standard
Oil Trust seria ameaçado pela descoberta de um iluminante
que custasse menos que o petróleo, mas um produto que
concorresse com o açúcar em sua própria província poderia
ser excluído por uma nova tarifa. O processo pode ser visto em
ação em todos os países protecionistas. A Província protege
seu óleo impondo um imposto sobre o amendoim, e a
Normandia protege a manteiga taxando a margarina.

[...] Isso, no entanto, é verdade. Embora negociando em um


mercado protegido por tarifas os Trustes não podem manter os
preços em um certo patamar acima do que seria mantido se os
mercados estivessem sujeitos à livre ação da lei da
concorrência.

M. Paul de Rousiers propõe os seguintes recursos contra os


Trustes:

Diretamente, a formação de Trustes não é induzida pela ação


natural das forças econômicas; visto que eles dependem de
proteção artificial, o método mais eficaz de ataque é
simplesmente reduzir o número e a força dessas ocasiões de
proteção ao máximo possível. Podemos atacar as condições
artificiais, mas somos impotentes quando nos opomos às
condições naturais. É, portanto, não apenas mais lucrativo,
mas também mais fácil, atacar o artifício em vez da natureza.

192
Apêndice

Até agora, a América tem seguido exatamente o método


inverso, culpando as forças econômicas que tendem a
concentrar a indústria e enfrentando a questão por meio da
legislação antitruste, uma série de medidas inteiramente
artificiais. Dessa forma, não deve haver entendimento entre
empresas concorrentes, nem acordo sobre tarifas entre
empresas ferroviárias, etc. Os resultados foram lamentáveis —
uma restrição violenta de iniciativas frutíferas e nenhum tipo
de garantia ao público contra as operações do Truste de
empreendimentos privados. Os tribunais americanos deram
sua opinião de que esse tipo de legislação é totalmente
inaproveitável. Não toca na raiz do problema, amplia, em vez
de restringir condições artificiais e, finalmente, regula e
complica assuntos cujas necessidades supremas são a
simplificação e a remoção de restrições.

Mesmo aqueles Trustes, que exigem controle por lidar com


serviços públicos, foram deixados intocados e indistinguíveis
de outros, o que leva a uma maior confusão de interesses
públicos e privados.

Os Trustes, que lidam com serviços públicos, desaparecerão


completamente assim que a administração americana der um
jeito de retomar o controle normal dos interesses com os quais
está investida. Aqueles que lidam com a indústria privada
desaparecerão — com uma ou duas exceções — quando os
mesmos poderes aprenderem a se abster de interferir nas
condições naturais da indústria e do comércio, especialmente
ao cessar toda a legislação protecionista.

Então, e somente então, os Estados Unidos compartilharão do


conhecimento, há muito alcançado pela Inglaterra, de que a
competição não é uma ameaça à concentração industrial.

193
Nota C

Efeitos do Progresso Industrial


na Esfera da Produção

Em um artigo no Fórum de abril de 1898, o Sr. W. T. Harris


pergunta: "Existe realmente trabalho para todos?"
Para resolver esse problema, ele passa a citar estatísticas,
mostrando as mudanças que ocorreram nas diferentes classes de
ocupação durante um período de vinte anos nos Estados Unidos.

195
A Sociedade do Amanhã

Esta tabela mostra que cerca de 100 pessoas a cada mil


abandonaram as ocupações primitivas (Classe I) favorecendo as
restantes nas seguintes proporções:

• Serviço Pessoal, 7 por cento;


• Profissões Liberais, 12 por cento;
• Manufaturas, 27 por cento;
• Comércio, 48 por cento.

No entanto, os métodos de cultura e as máquinas empregadas


foram tão aperfeiçoados que a produção nacional de produtos
agrícolas continua a mais do que atender a todas as demandas. Esta
descoberta leva o Sr. Harris a supor que, concedendo tal avanço em
maquinário e métodos para realizar o trabalho manual — o trabalho
penoso — de um por cento dos homens é o suficiente para todas as
demandas no cuidado e operação dos agentes da produção agrícola —
vestuário, alimentos e abrigo — os 99 por cento restantes ainda
encontrariam uma classe superior de ocupação. Como argumento
colateral, ele alega a afirmação de que nos vinte anos 1870-1890 o
número de jornalistas por milhão de habitantes avançou de 424 para
963; de fotógrafos de 608 para 880; e o de afinadores de piano em
proporção semelhante.26

26Rouxel, A Critical Review of the Chief Recent Economic Publications —


Journal des Economistes.

196
Nota D

Custos e Lucros da
Colonização do Estado

A maioria dos estados europeus alegam considerações


industriais e comerciais, alegam a necessidade de novos mercados,
para sustentar sua conquista e anexação de território pertencente às
chamadas raças inferiores. A intenção é suficientemente louvável, mas
envolve uma questão de custo e lucro derivados desses
empreendimentos. Agora, é um fato lamentável que a Espanha tenha
sido arruinada por suas aspirações coloniais, e poucos programas
recentes do mesmo tipo melhoraram a posição financeira ou
aumentaram a riqueza do conquistador ou do conquistado.
O fabricante ou comerciante, que gastasse dez mil por ano em
despesas ocasionais de comércio para vender mercadorias no valor de
dez mil libras, seria justamente considerado insano, e sua família o
colocaria corretamente sob controle, ou pelo menos o removeria do
gerenciamento de um negócio.

197
A Sociedade do Amanhã

A colonização estatal é, entretanto, conduzida nesta base fútil,


como ficará evidente ao dar uma olhada nos seguintes números de um
artigo de M. Paul Louis no Indépendance Belge.

Números do custo das colônias francesas:

• 5.000.000 francos em 1820;


• 7.000.000 em 1830;
• 20.000.000 em 1850;
• 21.000.000 em 1860;
• 26.000.000 em 1870.

O ano de 1880 marca a véspera de uma grande expansão na


Ásia e na África, e o orçamento salta para 32.000.000, subindo para
59.000.000 em 1890. O Sudão, Daomé e Madagascar logo passam a
duplicá-lo, de modo que atinge 86.000.000 em 1892. O declínio
relativo para 89.000.000 em 1896 é fictício eapenas aparente, pois
empréstimos e estimativas suplementares deste ano elevam-no
finalmente para 100.000.000 e 102.000.000 em 1897. As estimativas
para1898-1899 foram respectivamente de 81.000.000 e 86.000.000,
mas os números são puramente nominais e foram amplamente gastos
em excesso.
O equilíbrio colonial da França nestes últimos anos está assim, e
isso sem levar em conta a Argélia:

• Custos para o país de origem: mais de 100.000.000 francos


• Exportações do país de origem: cerca de 100.000.000 francos.
• Lucro: nenhum

Esta declaração ignora os custos da conquista e do assentamento


inicial!

198
Apêndice

O mesmo artigo continua:

A maior parte desta tarefa sem dúvida foi realizada em certos


casos, mas em muitos dos mais importantes ela apenas
começou. O simples período de conquista exigiu 284.000.000
para a Cochinchina; ; 269.000.000 para o Tonkin; o Sudão
reivindicou pelo menos 200.000.000 entre 1881 e 1898;
Madagascar devorou 150.000.000. Entre 1892 e 1898, o
Daomé aumentou de 70.000.00 para 75.000.000.

Estaríamos provavelmente subestimando, ao invés de


sobrestimar, se dissermos que a Terceira República, ao entrar
em uma série de grandes conquistas, custou à França, pelo
menos, 1.500.000.000 de francos (£60.000.000).

O custo da Argélia até o ano de 1898 foi de mais de


4.000.000.000 francos ou £160.000.000, e o déficit anual, que é
coberto pelo pagador de impostos francês, varia entre 20.000.000 e
30.000.000 francos— uma média de £1.000.000.
E ainda há mais uma conta a ser atendida.O partido
protecionista sujeitou as colônias francesas às mesmas tarifas que a
França, fechando assim mercados que estavam se tornando altamente
lucrativos para outros países, em particular para a Inglaterra.O mal-
estar foi assim gerado — um sentimento amargurado, se não
ocasionado, pelo incidente de Fachoda e a causa de gastos extras
inevitáveis por conta do exército e da marinha.
As colônias da França são compradas a um preço totalmente
exorbitante, e é perfeitamente aceitável que o pequeno alargamento
dos mercados que elas asseguram seja mais do que compensado pela
consequente perda nos mercados mundiais. As colônias recebem
algumas importações, atraem poucos colonos e oferecem um campo
imenso para a multiplicação de funcionários públicos. O Relator do
Orçamento Colonial no Senado apresentou os seguintes números, que
não são desprovidos de interesse a esse respeito:

199
A Sociedade do Amanhã

A colonização, conduzida com base neste princípio, é


simplesmente a proteção estatal do funcionário publico às custas do
restante do estado.
Os apologistas deste sistema reconhecem que as colónias são
dispendiosas tanto para obter como para manter, mas citam o exemplo
da Inglaterra para provar a futura grandeza e riqueza a serem
adquiridas com a sua ajuda. A Inglaterra, dizem esses homens,
adquiriu a maior parte de sua riqueza e poder por esse meio. Esta é a
opinião do partido da Grã-Bretanha, comandado pelo Sr. Chamberlain,
mas não é de forma alguma a visão dos livres comerciantes. O
eminente escritor Lord Farrer, em um artigo na Contemporary Review,
faz uma estimativa moderada e conservadora do comércio colonial
britânico.
O comércio exterior da Inglaterraem 1895 foi avaliado em £
643.000.000,dos quais apenas 25.8 por cento, apenas um quarto, foi
para suas colônias — £ 166.000.000.
A maior parte desse comércio colonial foi para colônias ou
possessões, como Índia, Nova Zelândia e Austrália, que não dão
nenhum tipo de preferência tarifária à Inglaterra. Na verdade, é apenas
o Canadá, de todas as possessões inglesas, que dá tal preferência, e
isso apenas nos últimos anos. Portanto, é provável que, se a Inglaterra
perdesse seu império amanhã, seu comércio colonial sofreria pouca ou
nenhuma diminuição. A perda poderia ferir o orgulho nacional,
certamente o do patriota exaltado, mas reduziria os custos de produção
e assim asseguraria um lucro real para a indústria inglesa.

200
Apêndice

O orçamento colonial real do Império Britânico não é grande,


sendo pouco mais da metade do da França, mas seus enormes gastos
com o exército e a marinha se devem em grande parte às demandas
das colônias espalhadas por todas as partes do globo. É o custo da
proteção dessas colônias que causa uma apreciação na produção
britânica e a prejudica como competidora nos mercados mundiais
regidos pelas puras leis da concorrência. Militarismo, protecionismo,
burocracia e colonialismo estão na ordem de hoje, mas seus próprios
excessos já estão acelerando a aproximação inevitável de seu fim.

Journal des Economistes—Resumo Anual de 1898.

201
Nota E

As Concepções Econômicas e
Socialistas da Sociedade do
Futuro

A organização política e econômica da sociedade, até agora,


variou de acordo com o aparato mental do indivíduo, os riscos de
destruição que ameaçam cada sociedade e o desenvolvimento
comparativo da produção – as condições de existência, em resumo.
Estas condições foram profundamente modificadas,
especialmente durante o último século, pelo progresso que
transformou as artes da produção e da destruição, até que uma
organização política e econômica adequada ao passado não seja mais
adaptada às necessidades modernas. Esta falta de adaptabilidade pode
ser considerada como a primeira causa da propaganda socialista
moderna, uma vez que precipitou uma crise cujos efeitos recaíram
principalmente sobre a classe que subsiste do produto de seu trabalho
diário.

203
A Sociedade do Amanhã

Mais ainda, produziu os sistemas de reorganização social


pregados por Saint Simon, Fourier, Karl Marx e uma série de dii
minores. Por mais numerosos que sejam, todos esses sistemas têm um
ponto em comum: eles ignoram a operação dessas leis da natureza,
que determinaram o progresso humano no passado e continuarão a
fazê-lo até o fim. Se esses propagandistas se limitassem à teoria,
pouco dano resultaria, mas eles geralmente se esforçam para impor
suas ideias à sociedade, antes de tudo, apoderando-se daquele poder
soberano que é atributo do governo. Aqueles que são ardentes tentam
fazer isso por meios puramente revolucionários; os mais moderados
ou tímidos por métodos mais ou menos legais. Mas somente o
governo pode reformar a sociedade, e isso é feito derrubando toda a
resistência.
Sem negar os males, as desordens e a instabilidade, seguindo
esta crise no curso do progresso, o economista, que procura encontrar
o remédio, precisa lutar contra as falsas doutrinas do invasor
socialista. A luta beneficiou ambas as partes. Deu aos economistas a
oportunidade de examinar mais de perto os males que afligem a
classe mais numerosa e mais pobre — para citar Saint Simon —, de
modo que puderam atribuí-los à causa correta.
O socialista, por outro lado, tendo começado por ignorar a
economia e, de fato, toda ciência moral, aprendeu a necessidade de
estudá-las. Por mais inadequado que seja o espírito científico com que
esses homens abordaram o assunto, eles aprenderam a dissociar o
socialismo de alguns de seus erros mais grosseiros, e alguns até
abandonaram a ideia primitiva de seu credo — que o Estado precisa
reconstituir e até absorver a sociedade.
Tão avançados em relação a sua primeira posição estão os
socialistas mais esclarecidos, que não parece inútil esperar que um
estudo mais avançado e mais profundo resulte em uma aliança entre
os líderes do movimento e o professor de economia política
propriamente dita.

204
Apêndice

Foi com essa esperança que, cinquenta anos atrás, o presente


autor dirigiu o seguinte apelo a todos os socialistas sinceros:

Economista e socialista, podemos ser adversários, mas nosso


ideal e propósito são um só. Buscamos uma sociedade em que
não haja restrição na produção de tudo o que é necessário,
seja para sustentar ou embelezar a existência humana.
Buscamos uma sociedade onde a distribuição desses produtos
entre seus criadores esteja de acordo com as doutrinas da pura
justiça. Buscamos — em uma palavra — um ideal que pode ser
expresso em duas palavras, Justiça e Fartura!

Nenhum de vocês negará esta verdade e, se dissermos que


buscamos por caminhos diferentes, essa é toda a nossa
diferença. O vosso caminho segue pelo obscuro e até agora
inexplorado desfiladeiro da organização do trabalho, o nosso
pela larga e bem trilhada estrada da liberdade. Ambos
procuramos liderar uma sociedade hesitante e vacilante, com
nações olhando — mas em vão — para o horizonte na
esperança de um novo farol para guiá-los pelo caminho que
guiou os escravos do Faraó para uma Terra Prometida.

Agora, vocês proscrevem a desobrigação de trabalho e


amaldiçoam a economia política. Vocês irão continuar a fazer
isso, ou se unirão francamente à nossa bandeira e empregar
todos os preciosos dons de vossa natureza — seus poderes
físicos e intelectuais, para alcançar o triunfo de nossa
esperança comum, a causa da liberdade? Pois podemos provar
que nossa causa é comum. Podemos provar que todos os males
que vocês atribuem à liberdade — ou, para usar uma
expressão absolutamente equivalente, à livre concorrência —
não se originam na liberdade, mas no monopólio e na
restrição. Podemos provar que uma sociedade
verdadeiramente livre — uma sociedade livre de todas as
restrições, todas as barreiras, única como será tal sociedade
em todo o curso da história — estará isenta da maioria dos
males, como os sofremos hoje. Podemos provar que a
organização de tal sociedade será a mais justa, a melhor e a
mais favorável à produção e distribuição da riqueza
alcançável pelo homem mortal.

205
A Sociedade do Amanhã

Quando provarmos tudo isso — e podemos fazê-lo — não


posso pensar que vocês hesitarão em sua escolha. Não há
dúvida de que vocês confundem a verdadeira origem dos males
que afligem a sociedade e os remédios para esses males — não
há dúvida de que a verdade está do nosso lado e longe do seu
— nenhuma vaidade mesquinha, partidarismo de propaganda
ou sistema os reterão nas margens do erro.

Sem dúvida, seus corações ficarão tristes. Vocês darão um


adeus arrependido aos sonhos que encantaram suas mentes,
sonhos nos quais vocês foram nutridos e nos quais vocês se
perderam. Mas no final vocês superarão suas vãs, embora,
adoráveis imaginações e, superando sua natural repugnância,
vocês virão até nós. E nós — por Deus, faremos o mesmo, você
pode iluminar nossas débeis inteligências com apenas um
vislumbre daquela luz verdadeira que brilhou em São Paulo:
você pode nos mostrar que a verdade está com o socialismo, e
não com a economia política? Defendemos nosso sistema, mas
apenas enquanto acreditamos que ele é verdadeiro e justo.
Prove-nos, então, que nossos deuses são fracos ídolos de
madeira e pedra, e nós os queimamos; deixe, sem qualquer
reserva, os altares de nossa adoração, rejeitando o retorno
aceito ao rejeitado, e adore de onde outrora saímos.

Um com o outro, estamos acima do preconceito partidário,


tomando esse termo no seu sentido mais restrito. A esfera de
nossa visão é mais ampla, o impulso de nossas asas é muito
grande. A verdade, justiça, a verdadeira utilidade — estes são
nossos guias imortais através dos obscuros círculos do
conhecimento humano! A humanidade — ela é a nossa
Beatrice! [...] 27

Esse apelo, repleto da confiança ingênua da juventude, mostra-


se prematuro no assunto. Mas se ninguém lhe deu ouvidos, natimorto
em um momento imaturo, ainda pode encontrar ouvintes.
27Extraído
de l'Utopie de la Liberté — A Letter to Socialists. Journal des
Economistes, 15 de junho de 1848.

206
Apêndice

E o socialismo, aliado ao economista, pode ainda, nessa aliança,


superar as barreiras dos nossos próprios interesses egoístas e cegos, e
as barreiras ultrapassadas, mas que ainda estão agarradas ao pescoço
de uma transformação que é essencial para que a organização política
e econômica da sociedade se adapte às novas condições das
Sociedades do Amanhã.

207

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