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JACQUES MARITA1N

TRADUÇÃO DE

ALCEU AMOROSO LIMA

3.a EDIÇÃO

J^rvrar/a ./KG IR. &c//fôra


RIO DE JANEIRO
ARTES GRAFICAS INDlIsriUAM RI U ll»A H \ (AGIR)

Título da odlçlbi oi luhint iu i (> »hii 11. nua .


1LI.V IV/j r//ff STATK

ÍNDICE

CAV. I O POVO E O ESTADO


Nação, Carpo Político e Estado ........................................ 9
Comunidade u Sociedade ................................................. 10
A Nação ............................................................................... 13
O Corpo Político .................................................................. 13
O Estado ............................................................................. 22
Crescimento normal e proersso simultâneo de
perversão ........................................................................ 29
O Povo ................................................................................. 36

Cap 11 — O CONCEITO DE SOBERANIA

O Problema ...................................................................... 39
O Príncipe soberano de Jean Bodin .................................. 12
O erro original .................................................... ..... 45
yue significa a Soberania. O Deus mortal de
Hobbes ................. ....................................... ............ 48
Nem o Corpo Político nem o Estado são so­
beranos ........................................................................... 52
0 Povo também não é soberano. O Estado so­
berano de Rousseau ............................................ 5õ
AGIR (LscWôrâ Conclusões .... ........................................................................ 61

Rm* Brinllô Gcnnc.» 12S Rua M/xloo, 9911 Ar. Afonso Pena. Cap. III — O PROBLEMA DOS MEIOS
(ao Indo «In BíbJ. Mun.) Cnlxft Poatnl 8201 (hhíi PoaUl 7.1»
Cahn Po*tal 0040 Trlrhnr. MDM
Telefona! M-Ssoo Telefone; 42-9187 Belo Bnritonte Fim g meios ............................................................................ 67
Sfo Paulo, S. P. Rio de Janeiro, D. F. Mlnsi (Jorali A racionalização técnica da vida política ... 70
ENDEREÇO TELEGRÁFICO: *‘AG1R8A ’ A racionalização moral da vida política .......................... 73
O HOMEM E O ESTADO
JACQUES MARITAIN

1. Tese e hipótese. Climas históricos e 7


Os meios de fiscalizarão pelo povo c o Estad
6 democrático .........................................t................. 79 ideais históricos concretos ............................. 179
2. O clima histórico da civilização moderna 182
O problema doa meios numa sociedade regres­ 3. O princípio da superioridade du Igreja 188
siva ou bárbara 86
4. O princípio de cooperação 198
Alguma- conclusões práticas 209
Cap. IV - OS DIREITOS DO HOMEM
Cap. VTI — O PROBLEMA DO GOVÉRNO MUNDIAL
Homens mútuamente opostos cm suas concep­
ções teóricas podem chegar u um acôrdo A alternativa ................................................................. 219
meramente prático com relaçno a uma lista Pela rejeição da assim chamada soberania do
de direitos humanos 91 Estado 226
O aspecto filosófico do problema w refere à Necessidade de uma sociedade política uni­
fundamentação racional do» direitos hu­ versal ...................................................... 228
manos .................................................................... 98 Teoria plcnamentc política contra teoria mera­
A Lei Natural 100 mente governamental 235
O Primeiro Elemento (ontológico) da Lei Na­ Um Conselho Consultivo Supranacional 246
tural 102
O Segundo Elemento (gno?.eológico) da Lei
Natural 10(5
Os direito:; do Homem e a Lei Natural .... 112
♦Sobre us direitos do Homem em gerul 115
Direitos do Homem em particular ................................ 121

V — .4 CARTA DEMOCRÁTICA

A fó democráticu secular .............................................. 127


Ou hereges políticos ................................... 183
A educação e a Carta democrática 110
Problemas relativos à autoridade .................................. 146
As minorias dinâmicas e proféticas.............................. 161

Cap Vi — .4 IGREJA E 0 ESTADO

Observações preliminares ... .............. 171


Os princípios gerais imutáveis:
1. A Pessoa Humana e o Corpo Político 172
2. A liberdade da Igreja 174
3. A Igreja e o Corpo Político 176
A aplicação doa princípios imutáveis aos acon­
tecimentos históricos:
Capítulo I

O POVO E O ESTADO

Nação, Corpo Político e Estado

Não há tarefa mais ingrata do que procurar, de


modo racional, distinguir e circunscrever, — por outras
palavras, procurar elevar a uni nível científico ou filosó­
fico, — noções correntes que nasceram de necessidades
práticas e contingências da história humana e estão car­
regadas de conotações sociais, culturais e históricas, a
um tempo ambíguas e férteis, conotações essas que, no
entanto, envolvem um núcleo de significado inteligível.
Tais conceitos são incertos, indeterminados, mutáveis e
flutuantes. Ora são utilizados como sinônimos, ora como
antônimos. Todo mundo se sente muito à vontade ao
empregá-los, justamente por não saber exatamente o que
significam. Mas logo que tentamos defini-los e separá-
-los uns dos outros, inúmeros problemas e dificuldades
começam a surgir. Corre-se então o risco de entrar em
um desvio errado ao procurar a sua verdade intrínseca,
tornando analítico e sistemático □ sentido que lhes foi
atribuído pela experiência confusa e concreta da vida.
As observações precedentes se aplicam, de modo sur­
preendente, às noções de Nação, Corpo Político (ou So-
10 JAOQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 11
ciedade Política) e Estado. Nada, entretanto, é mais ne- n,1b próxima do plano biológico, uma sociedade é, an-
cet Bário para uma sólida filosofia política, do que tentar tw, uma obra da razão, relacionando-se maia estreita-
distinguir essas três noções, delimitando claramente o i, 'ii,/ com as propriedades intelectuais e espirituais do
significado genuíno de cada uma. hum< n. Não coincidem neni a mas essências sociais e
Froqüenteniente, quando falamos na linguagem mais iis suas características, nem tampouco suas esferas de
ou menos vaga de todos os dias, servimo-nm desses três
conceitos, e o fazemos de modo legítimo, corno se f ram realização. 1
sinónimos uns dos outros. Quando se trata do seu autên­ Para compro nder essa distinção, devemos recordar
tico significado sociológico e de teoria política, devem (pie a vi la social, coiiiu tal. reúne os homens por motivo
ser distijíguidos com toda precisão. A confusão on a
identificação sistemática, entre Nação e Sociedade Polí­ iu■ i<> comunidade, corão ê usado aqui, é uni con-
< ■ ii ■ ri<-. . r.l ange aa três formas especííiçàs da =ocia-
tica, ou Sociedade Política e Estado, ou Nação o Estado, iHlid.-r,, . u.j o j. e-sc-i Georges Gurvitch distingue sob o~ no­
têm sido uma calamidade para a história moderna. Uma me, de iiin- ar-', ‘comunidade" a “comunhão” (cl. Georges Gur-
nova e exata formulação d três conceitos em questão vitch, Esaavj du Soolologie, Paris, Recuei l Sirey, 1938; “Masses,
é uma das nossas mais urgentes necessidades. O rigor Cmntiuin y, Commnnion,” Pldlosopklcal Bcviw, agôsto do 1041).
de minha anáiise, espero, por conseguinte, que os leitores Concordamos cora u distinção do Prof. Gurvitch. entre Sociedade
Política o Estado (A>s«is rfs Sòciolngic, pág. 60) e também como
mo perdoem, pois visa determinar a importância que têm o fato de. que tanto u Sociedade Política como o Estado são for­
os princípios em filosofia política. mas “ funcionais” e não “snprafimcionaia” da sociabilidade OTga-
mznda. Divergimos dele em três pontoa principais: (1) Sua teo­
ria s6 ac refere U comunidade.-, (no sentido genérico da palavra),
II omitindo a disí nção bárlca entre comunidade (especitilmente a
Nação) o sociedade (especiabnente a Sociedade Política), com a
característica essencialmente racional da última, convertendo as­
Comunidade SocNdtub. sim a Sociedade política cm uma aimplcs ‘'superestrutura” da
Nação. (2) insiste éle no lato de que a Nação é supfw/tiuciwai
Devemos fazer urna distinção preliminar, a saber, (Ha--'., pág. 58), ao pasuo que negemos a existência do qualquer
grupo social (isto é, que implique “em um con­
entre comunidade e sociedade. Não há dúvida que êsses junto infinito de fins e d? valore?) (ífiíd., pág. 59). O infinito
dois têrmoa podem ser legitimamente empregados como em questão é merumente potuiieial e, portanto, não pode ser uma
sinônimos, e eu mesmo freqüentemente o tenho feito. Mas ■ '••terminação específica de qualquer grupo social que seja. Todo
também é lícito e correto atribui-los a duas espécies de grupe social é determinado por um objeto (que ã um fato, não
um fhn, tanto no caso de uma Nação como de qualquer comuni­
grupos sociais que, na realidade, diferem por natureza. dade em geral). A nação é acéfala, não ó suprufuncional: será
Essa distinção, embora tenha sido mal empregada, e da antes infrafuneional. (3) O professor Gurvitch, como muitos au­
maneira mais lamentável, pelos teoristas da superiori­ tores nwdemos, define o Esxado pelo "monopólio da coação incon-
dade da. Vida sôhre a razão, é em si mesma um falo diclonal’ (cf. Gcorgos Gurvitch, Sooioloyy of Law, New York,
Fhilosophical Library, 1942, págs. 238 e s?gs.). O critério da
sociológico reconhecido. Tanto a comunidade como a so­ coação incondicional é unm nota meramenté empírica, que deriva
ciedade são realidades ético-sociais, verdadeiramente hu­ de características mais essenciais e não torna clara a natureza
manas, e não apenas realidades biológicas. Uma comuni­ do Estudo. O verdadeiro critério é a manutenção da lei e da or­
dade, porém, é mais uma obra da natureza, estando assim dem pública, relativas ao bem comum da Sociedade Política.
12 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 13
de certo objeto comum. Nas relações sociais há sempre Mesmo nas sociedades naturais, tais como a socie-
um objeto — seja material, seja espiritual — em tôrno dade familiar e a sociedade política, — isto é, em so­
do qual se tecem as relações entre pessoas humanas. Em ei» da des que são, a um tempo, necessàriamente exigidas e
uma comunidade, como J. T. Delos indicou cum razão,2 espontâneamente esquematizadas peia natureza, — a so­
o objeto é um fato que precede as determinações da in­ co dade deriva finalmente da liberdade humana. Mesmo
teligência humana e da vontade, objeto êsse que atua em comunidades — comunidades regionais, por exemplo,
independente delas, para criar uma psique inconsciente mi comunidades profissionais — que se desenvolvem em
comum, estruturas psicológicas e sentimentos comuns, tôrno de alguma sociedade particular, como seja um es­
assim como costumes comuns. Mas, em uma sociedade, o tabelecimento industrial ou comercial, a comunidade sur­
objeto é uma tarefa a ser feita ou um fim- a ser atingi­ ge da natureza. Quero dizer com isso que essa comuni­
do, que dependem das determinações da inteligência e dade surge da reação e do ajustamento da natureza hu­
da vontade humanas e são precedidos pela atividade, mana a um dado meio histórico ou à repercussão efe­
seja uma decisão, seja pelo menos um consentimento da tiva da sociedade industrial ou comercial em questão sô­
razão dos indivíduos: assim, no caso da sociedade, o ele­ bre o condicionamento natural da existência humana. Na
mento objetivo e racional da vi-la social emerge expli­ comunidade, a pressão social deriva da coação que im­
citamente e assume o papel mais importante. Uma firma põe padrões dc conduta ao homem, e manifesta-se de
comercial, um sindicato operário, uma associação cientí­ maneira deterministica. Na sociedade, a pressão social
fica, são sociedades tanto quanto o corpo político. Gru­ deriva da lei ou de normas racionais, ou então de uma
pos regionais, étnicos, lingiií; ticos, cIiihws sociais, são idéia do finalidade comum. Essa pressão social apela
comunidades. A tribo, o clã, são comunidades que pre­ para a consciência pessoal e para a liberdade, que devem
param o caminho da sociedaú política •• lhe antecipam obedecer à lei, de modo plenamente livre.
o advento. A comunidade i jnn prodido, do iiii.liuto e da Uma sociedade dá sempre origem a comunidades e
hereditariedade em c; ‘ j. ei/cu ;i■ h a sentimentos comunitários, em seu próprio seio ou em
tóricag: a 8O.cie.dadc é um produto da razão e da fôrça suas imediações. Jamais uma comunidade se transforma­
moral (aquilo que os antigos chamavam •'virtude”). ria, por si mesma, em uma sociedade, embora possa vir
Na comunidade as relações sociais procedem de cer­ a ser o terreno natural, de onde derive, por efeito da
tas situações e de certos meios históricos: os padrões co­ razão, uma organização societária.
letivos de sentimento — ou a psique inconsciente cole­
tiva — predominam sôbre a consciência pessoal, fazendo
com que o homem apareça como um produto do grupo III
social. Na sociedade, a consciência pessoal conserva a sua .4 Nacâo
prioridade, o grupo social é moldado pelos homens, pro­ a
cedendo as relações sociais de uma determinada inicia­ Ora, a Nação é. uma comunidade, não uma. socieda­
tiva, de uma determinada idéia e da determinação volun­ de. A Nação é uma das mais importantes, talvez a mais
tária de pessoas humanas. complexa e a mais completa das comunidades geradas
2
pela vida civilizada. Os tempos modernos se defronta­
Cf. J. T. Delos, La Nation (Montréa) F/arbre, 1944). ram com uma tensão antagônica entre a Nação e outra
14 JACQUES MARITATN O HOMEM E O ESTADO 15
comunidade humana de grande importância, n Classe. A Nação tem, ou teve, um solo, uma terra, — o que
E, no entanto, o dinamismo da Nação parece, <b fato, tão significa, como se dá corn o Estado, uma área terri­
ter sido mais forte, por estar mais profuiidiimenli' urai- torial de poder e administração, mas um berço de vida,
zado na natureza. trabalho, sofrimento e sonhos. A Nação tem uma lín­
A palavra nação deriva do latim tm. , i:.to . <la no­ gua, — embora os grupos linguísticos nem sempre cor­
ção de nascimento, mas a nação não é algo de biológico ri pondam aos grupos nacionais. A Nação progride atra-
como a Raça. É qualquer coisa de ético-social: iinia comu­ . • <lc instituições, cuja criação, no entanto, depende
nidade humana baseada nu fato do nascimento ■■ da des­ !■ i d:i p ■ <ia :> do espirito humano, ou da família, ou
cendência, tilas com todas as conotações rumais dêsses 1 . riipos particulares da sociedade, ou do corpo polí-
termos: elevação à vida da razão e d;: dividirdes da ci­ • do que da própria Nação. A Nação tem direitos,
vilização, descendência em trudiçõi i familiares, forma­ cs quais não são mais do que os direitos de pessoas hu­
ção social e jurídica, herarç.-» cultural, cmicepv v.i e ma­ manas, de participarem dos valores humanos peculiares
neiras comuns, recordações histórica . sofrimentos, rei­ a, uma herança nacional. A Nação tem uma vocação his­
vindicações, preconceitos e ressentimenioa. Ih.i.i comu­ tórica, que não é a sua própria, vocação (como se exis­
nidade étnica, de modo geral, pode : i-r definida como tissem certas mônadas nacionais, primordiais e prede-
uma comunidade de normas de r.enl inieih o, radicadas torminadas, cada uma das quais possuísse uma missão
não só no solo físico da origem do grupo, num também no suprema), mas que é apenas uma particularização histó­
solo moral da história. Essa comum lad ■ i .iea .-<• (orna rica e contingente da vocação do homem ao desenvolvi­
uma nação, quando essa situação de :il.o pciv tra na es­ mento e à manifestação de suaa múltiplas potenciali­
fera da autoconsciência, em outras palavras. quando o dades .
grupo étnico se torna consciente do fato de constituir No entanto, a despeito de tudo isso, q. Nação nãp g
nma. comunidade de padrões de sentimento, — ou antes, uma sociedade; não chega a. transpor q limiar da esfera
do fato de ter uma psique inconsciente comum — pos­ política. EL uma comunidade de comunidades, uma tra­
suindo a sua própria unidade e individualidade, a sua ma consciente de sentimentos e representações comuns,
própria vontade de continuar a existir. L na nação 6 urna que a natureza e o instinto humano fizeram pulular em
comunidade de pessoas que se tornaram conscientes de si torno de certos dados físicos, históricos e sociais. Como
mesmas, à medida que a história as foi formando, que toda e qualquer outra comunidade, a Nação é “acéfa­
preservam como um tesouro o seu pr óprio passado, que la”: 8 possui elites e centros de influência, mas não uma
se unem a si mesmas segundo erêern ou irn; ginam ser, cabeça ou autoridade dirigente; possui estruturas, mas
com urna certa introversão inevitável. Êsse despertar não uma forma racional ou uma organização jurídica;
progressivo da consciência nacional é urna característica possui paixões c senhos, mas não um bem comum; pos­
da história moderna. Embora natural e boa em si mesma, sui uma solidariedade entre os seus membros, fideli­
essa consciência veio a hipertrofiar-se de tal maneira que dade, honra, mas não uma amizade cívica; possui mo­
deu origem à praga do Nacionalismo, ao mesmo tempo dos de ser e costumes, mas não normas formais ou uma
que — e provavelmente poi- causa disso — o conceito de ordem própria. A Nação não apela para a liberdade e
Nação e o conceito de Estado eram confundidos e mis­
a Cf. M. Hauriou, Príncipes de D-roit Con^tltatiomiel (Pari?,
turados de um modo infeliz e explosivo.
1023), pág. 29.
Ifi JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E O ESTADO 17

.1 ré i,)oiinabilidade da consciência pessoal, limita-se a in­ vontade de poder, pretendendo impor pela coação legal o
fundir em pessoas humanas uma segunda natureza. Ê um suposto .tipo e gênio da Nação. Transforma-se assim êin
padrão geral no domínio da vida privada, mas ignora tiin EsTaao cúlturál. ideologíco, cesareo-papista e totali­
qualquer princípio de ordem pública. Eis o motivo pelo tário. Ao mesmo tempo, ésse Estado totalitário vem a
qual, na realidade, o grupo nacional não se pode trans­ degenerar, ao perder o sentido da urdem objetiva, da
formar por si mesmo em uma sociedade política; uma justiça e da lei, derivando paru o que é peculiar às rea­
sociedade política pode vir a diferenciar-se progressiva­ lizações das comunidades tribais ou feudais. Os laços
mente dentro de uma vida social confusa, na qual as fun­ universais e objetivos da lei e a relação especifica entre
ções políticas e as atividades comunitárias a princípio se a pessoa inuividuul e o corpo político são assim substituí­
interpenetravam; a idéia de um corpo político pode sur­ dos por laços | essoais derivados do sangue, ou de um
gir do seio de uma comunidade nacional; mas a comu­ compromisso particular de homem para homem, ou do
nidade nacional só pode ser um solo propício e uma oca­ homem para com o clã, o partido ou o chefe.
sião para aquele florescimento. Em si mesma, a idéia Acabei de destacar a distinção entre essa realidade
de corpo político pertence a uma ordem diferente e su­ sociológica, que é uma Comunidade fra.cional, e essa ou­
perior. Logo que o corpo político começa a existir, sur­ tra realidade sociológica que é uma Sociedade Política.
ge algo diferente da comunidade nacional. A análise pre­ Devemos agora acrescentar que, como anteriormente ob­
cedente permite-nos compreender a importância que tive­ servamos, a existência de uma determinada sociedade
ram para a história moderna a confusão entre Nação e produz naturalmente o nascimento de novas comunida­
Estado, o mito de Estado Nacional e o suposto princípio des no seio dèsse grupo social ou em tôrno dêle. Assim,
das nacionalidades, entendido no sentido de que cada uma vez formada certa sociedade política, especialmente
grupo nacional deve apresentar-se como um Estado sepa­ quando possui uma experiência centenária que dá fôrça
rado. 4 Essa confusão deformou tanto a Nação como o a uma genuína amizade cívica, produz naturalmente,
Estado. A agitação começou no terreno democrático no dentro de si mesma, uma comunidade nacional de grau
século XIX, chegando à plena loucura na reação antide­ mais elevado, quer em relação à consciência que essa co­
mocrática do século atual. Consideremos os resultados munidade já existente possui de si mesma, quer em rela­
nos casos mais agudos. ção à própria formação de uma nova Comunidade Nacio­
Desenraizada de sua ordem essencial, perdeu, por­ nal, na qnal se fundiram várias nacionalidades. Portanto,
tanto, a Nação seus limites próprios no curso de um de­ em exata oposição ao assim chamado princípio das nacio­
senvolvimento antinatural e tornou-se uma divindade ter­ nalidades, a Nação depende aqui da existência do corpo
rena cujo egocentrismo é sagrado, servindo-se do poder político e não o corpo político da existência da Nação.
político para subverter tôda ordem estável entre os po­ A Nação não se torna um Estado. Ê o Estado que pro­
vos Quando se identifica com a Nação, ou mesmo com voca o nascimento da Nação. Essa a razão por que uma
a Raça, e quando a febre dos instintos telúricos invade Pi dcração tle Estados multinacional, como os Estados
o seu próprio sangue, o Estado vê exaccrbar-se-lhe a Unidos, é ao mesmo tempo uma .Vuçcw multinacional. Um
autêntico princípio de nacionalidades poderia ser formu­
4 Cf. Roné Johunnct, Le Príncipe des Nationalités (2.a ed., lado da seguinte maneira; o corpo político deveria de­
1’nrÍB, Nouvelle Librairic Nationale, 1923). senvolver, não só seu próprio dinamismo moral, mas lam-
18 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 19

;i bém o respeito pelas liberdades humanas, a tal ponto que tempos, os dois termos são usados como sinônimos, e ten­
‘ as comunidades nacionais, que estão contidas em seu dendo o segundo a suplantar o primeiro. Entretanto, se
seio, veriam, ao mesmo tempo, os seus direitos naturais quisermos evitar sérios enganos, devemos distinguir cla-
I plenamente reconhecidos e tenderiam espontaneamente a ramente o que seja Estado e o que seja Corpo Político.
fundir-se em uma só Comunidade Nacional de mais alta Essas entidades não pertencem a duas categorias diver­
categoria e de maior complexidade. sas, mas diferem entre si como uma parte difere do todo.
Comparemos, sob êsse ponto de vista, quatro exem­ O Corpo Político ou a Sociedade Política, é o todo. O Es-
plos significativos: a Alemanha, o Velho Império Austro- lathi ó uma parle — írparte principal dêsse todo.
-Húngaro, a França e os Estados tinidos. A Alemanha ,\~So<:icdadc 'rolHicã, exigida pela natureza e rea­
é um complexo de nações e t< a sido incapaz de dar nas­ lizada pula razão, é a mais perfeita das sociedades tem­
cimento a um verdadeiro corpo político, compensando porais. É uma realidade humana total e concreta, ten­
êsse insucesso cem uma exaltação inatural do sentimen­ dendo a um bem humano concreto e total — o bem co­
to nacional e com uniu Nação-Estado também inatural. mum. Ê uma obra da razão, nascida dos esforços
A dupla coroa austro-húnpara criou um Estado, mas obscuros da razão desvencilhada do instinto, e implicando
foi incapaz de produzir uma Nação. A França e os Es­ essencialmente uma ordem racional; não constituindo, en-
tados Unidos desfrutaram circiinstAneias partícula rmen­ Lrelahto, um caso de Razão Pura como o próprio homem.
te favoráveis, e bem assim um sentido de liberdade e do O corpo político tem carne e sangue, instintos, paixões,
papel fundamental da livre escolha ou do consentimento reflexos, estruturas psicológicas inconscientes e dinamis­
popular na vida política. Em ambos os casos, isso con­ mo, — tudo isso sujeito, se necessário sob coação legal,
correu para a formação de uma só Nação, concentrada ao comando de uma idéia e de decisões racionais. A Jus­
em torno do corpo político, uma Nação <|uc- realizou a tiça é uma condição primordial para a existência do cor­
sua unidade, em conseqüência de provações centenárias po político, mas a Amizade é a própria forma que lhe dá
ou de um proçesso incessante de ..utocriaeao. Assim, por a vida.n Êsse corpo tende para uma verdadeira comu-
motivos práticos^ podènTOíT'usar de ~ex 11? t, sões como a
Nação americana, a Nação francesa, para designar o & “O Estado é urna parte especial da humanidade considerada
como unidade organizada’* (Jolin W. Burgesg, Polüicttl Sci&noc
corpo político americano ou francês. Entretanto, tal si- c.itd Consttfvtâonfil Law, Boston, Ginn & Co., 1896, I, 50).
nonimia não nos deve iludir e fazer-nos esquecer a dis­ Uma confusão semelhante entre Corpo Político e Estado é
tinção fundamental entre comunidade nacional e Socie­ frequente entr« os juristas. Para Stpry e Cooley, “um estado é
dade política. um corpo político, ou uma sociedade dc homens, unidos para o
fim de promover o seu interesse e segurança mútua, por meio «la
conjugação de todas as suas força?.” (Thomas M. Cooley, Cone-
IV tilational LwMtatione, Boston, 1868, pág. 1; cf. Joseph Story,
('ommfntarirs ov the ConstitKtion of thc United Staies, Boston,
O Corpo Político 1851, I, 142). A palavra “Estado”, prossegue Story (íbicL, pág.
143 > “significa todo o povo, unido em um só corpo poHtico; o
E.-rtado e o povo do Estado são expressões equivalentes.”
Ao contrário cia Nação, tanto o Corpo Político como Cf. Gerald B. Phelan, Justice and Friendship, no “Mari-
o Estado pertencem à ordem da sociedade, mesmo da so­ tnin Volume” da revista Thomiet (New York, Sheed and Ward,
ciedade em sua forma mais alta e “perfeita”. Em nossos 1943).
20 JACQUE3 MARITAIN
0 HOMEM E O ESTADO 21

nhão humana, livremente realizada; vjyg em virtude, do tras sociedades particulares que procedem da livre ini­
devo lamento de pessoas humanas e do seu dom de si ciativa dos cidadãos e deveriam ser tão autônomas quan­
mesmas. Essas pessoas estão prontas a empenhar a sua to possível. Eis por que o elemento pluralistico é inerente
própria vida, as suas posses e a sua honra para o bem a tòda sociedade verdadeiramente política. A vida fami-
dêsse corpo político. O sentimento cívico é, todo êle, ins­ llar, econômica, cultural, educai iva, religiosa, tem tanta
tituído por êsse sentimento de devoção e de amor mútuo, importância para a própria existência e prosperidade do
bem como pelo sentimento da justiça e dajei. corpo político como a própria vida política. Tôda espécie
O homem todo — embora não em razão da sua au­ de lei, desde as normas grupais, espontâneas e não for­
tonomia completa e de tudo aquilo que êle é e possui — muladas, ate ao direito consuetudinário e à lei na plena
é uma parte da Sociedade política. Sendo assim, tôdas as acepção da palavra, contribui para a ordem vital da so­
suas atividades comunitárias, tanto quanto suas ativida­ ciedade política. Visto como, na sociedade política, a au-
des pessoais, têm importância para o todo político. Como loridade vem de baixo, através do povo, é lógico que todo
já indicamos, uma comunidade nacional, de mais alto o dinamismo da autoridade no corpo político deva ser
grau humano, assume espontâneamente a sua firma em constituído por autoridades particulares c parciais, so­
virtude da própria existência do corpo político e, por sua brepondo-se umas às outras, até chegar à autoridade su­
vez. vem a participar da substância do mesmo. Nada é prema do Estado. Finalmente, o bem-estar público e a
mais importante, na ordem da causalidade material, para estrutura jurídica geral são partes essenciais do bem
a vida e a preservação do corpo político, do que a energia comum do corpo político, mas êsse bem comum tem con­
acumulada e a continuidade histórica dessa comunidade sequências muito maiores e mais abundantes, mais con­
nacional, que êle próprio trouxe à existência. Tsto signi­ cretamente humanas, pois é por natureza a boa vida hu­
fica principalmente uma herança de estruturas aceitas mana da multidão e é comum, tanto ao todo como às
e indiscutíveis, de costumes estabelecidos e Hentimentos partes, representadas essas últimas pelas pessoas sôbre
comuns profundamente arraigados, que trazem para a as quais reverte êsse bem comum e que dêle devem be­
vida social qualquer coisa dos elementos físicos determi­ neficiar. 0 bem comum não é apenas a coleção de have­
nados da natureza e da fôrça vital inconsciente, própria res e serviços públicos que a organização da vida comum
dos organismos vegetais. Além disso, é a experiência co- pressupõe, a saber: uma condição fiscal sadia, uma po­
num, herdada, e bem assim os instintos morais e intelec­ derosa fôrça militar, o corpo das leis justas, dos bons
tuais que constituem uma espécie de sabedoria prática costumes e das instituições sábias que fornecem à socie­
empírica, muito mais profunda e densa, e muito mais dade política a sua estrutura, a herança de suas grandes
próxima do dinamismo complexo e oculto da vida hu­ evocações históricas, seus símbolos e suas glórias, suas
mana, do que qualquer construção artificial da razão. tradições vivas e seus tesouros culturais. O bem comum
Assim, não só a comunidade nacional, mas também inclui também a integração sociológica de tôda consciên­
tôdas as comunidades da Nação, se integram na unidade cia cívica, — virtudes políticas e 3enso da lei e da liber­
superior do corpo político. Mas o corpo político também dade —, de tôda atividade, — prosperidade material e
contém, em sua unidade superior, as unidades domésti­ riqueza espiritual •—, dc tôdu sabedoria hereditária ope­
cas, isto é, as famílias, cujos direitos e liberdades essen­ rando de modo Inconsciente, da retidão moral, da jus­
ciais lhe precedem, bem como um grande número de ou­ tiça, da amizade, da felicidade, da virtude e do heroísmo
22 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 23

nas vidas individuais dos membros do corpo político. Na cão autorizada usar do poder e_ da coação, e constituída
I medida cm que tôdas essas coisas são, até certo ponto, por técnicos e especialistas em questões de ordem e bem-
comunicáveis, revertendo a cada membro, ajudando-o a -estar público; em suma, um instrumento ao serviço do
aperfeiçoar sua vida e sua liberdade como pessoa, cons­ homem. Colocar o homem a serviço dêsse instrumento é
tituem elas a boa vida humana da multidão.' uma perversão política. A pessoa humana como indiví­
duo existe para o corpo político, mas o corpo político
existo para n pessoa humana como pessoa. Mas o homem,
V de maneira alguma, existe para o Estado. O Estado é
O Estado que existe para o homem.
Quando afirmamos ser o Estado a parte superior do
Pela enumeração dessas características do corpo po­ corpo político, quer isso dizer que êle é superior aos ou­
lítico, torna-se evidente que o corpo político difere do Es- tros ôrgaoi-i ou partes coletivas dêsse corpo, mas não sig­
. tado. O Estado é Cinicamente a parte do corpo político nifica ser ele superior ao próprio corpo político. A parte
que se refere especialmente à manutenção da lei, ao fo- como lai é inferior ao todo. O Estado é inferior ao corpo
I mento do bem comum e da ordem pública e à adminis- político como um todo, e está a serviço dêsse corpo polí­
' tração dos negócios públicos. () Estado é uma parle que tico como um todo. Será mesmo o Estado a cabeça do
i se especializa no interesse do todo. 8 Não é um homem ou corpo político? Mal se pode dizer que o seja, pois no cor­
' um grupo de homens; ó um conjunto de instituições com­ po humano a cabeça é um instrumento de faculdades es­
binadas em uma máquina altamente aperfeiçoada. Tal pirituais, tais como o intelecto e a vontade, que o corpo
1 obra de arte foi construída pelo homem e serve-se dos todo tem de servir; ao passo que as funções exercidas pe­
cérebros e das energias humanas e nada é sem o homem; io Estado existem para o corpo político e não o corpo
constitui, todavia, uma encarnação superior da razão, político para elas.
uma superestrutura impessoal e duradoura, cujo funcio­ A teoria que acabo de resumir, e que considera o Es-
namento pode ser considerado como racional em segundo liido como uma parte ou um instrumento do corpo polí­
grau, na medida em que a atividade racional nêlo envol­ tico a êste subordinado e dotado da mais alta autori­
vida, articulada pela lei e por um sistema de normas uni­ dade, não por direito próprio ou por ser um fim em si
versais, é mais abstrata, mais separada das contingên­ mesmo, ma- unicamente em virtude das exigências do
cias, da experiência e da individualidade, mais impie­ bem comum e dentro dos seus limites, — essa teoria que
dosa também do que em nossas vidas individuais. estabelece a autêntica noção política do Estado, pode ser
O Estado não é a suprema encarnação da idéia, como designada como uma teoria “instrumentalista”. Moder-
o acreditava Hegel. O Estado não é uma espécie de su­ namente nos defrontamos com outra teoria completa­
per-homem coletivo, O Estado é apenas uma institui- mente distinta: a noção despótica, do Estado, baseada em
uma teoria, “substancialista” ou “absolutista”. Segundo
• Cf. o nosso livro, Tfie Pernon and the Common Good (New essa teoria, o Estado é um sujeito de direitos, isto é, uma
York, Charles Scribner’s Sons, 1947). pessoa moral, e, por conseguinte, um todo. Por êsse mo­
8 Haruld Laski descreveu o Estado como uma instituição de
tivo, ora se sobrepõe ao corpo político, ora o absorve in­
serviço público (A Orammttr of Politiot, London, Allen & Únwín, teiramente, desfrutando do poder supremo em virtude de
1936, pág, 69)
24 JACQUES MARETAIN 0 HOMEM E 0 ESTADO 25

um direito próprio, natural e inalienável, e tendo em vis­ gíLiina concepção jurídica e filosófica (absolutista) do
ta única e exclusivamente o seu próprio bem. Estado, ocorreram simultâneamente.
Não há dúvida de que todas as coisas grandes e po­ Uma explicação adequada dêsse processo histórico
derosas têm uma tendência instintiva e uma tentação es­ necessitaria uma longa e completa análise. Lembro aqui
pecial a ultrapassar os seus próprios limites. O poder apenas que, na Idade Média, a autoridade do Imperador
tende a aumentar o poder; a máquina do poder tende e. nos tempos modernos, a autoridade do Rei absoluto di-
ineeseantemente a expandir-se; a máquina suprema legal ínanavmn do alto, sobrepondo-se, ao corpo político. Du­
e administrativa tende a uma auto-suficiência burocrá­ rante séculos, n autoridade política foi o privilégio de
tica e gostaria de considerar-se a si mesma como um fim tuna “raça social” superior, que tinha direito — e cria que
e não como um meio. Aquêles que se especializam em se tratava de um direito inato e imediatamente concedido
assuntos relativos ao todo têm a propensão de se julgar por Deus — ao poder supremo sôbre o corpo político, bem
como o todo: os estados-maiores vêm a considerar-se co­ como à liderança e à direção moral do mesmo, corpo êsse,
mo sendo todo o exército, as autoridades da Igreja como conforme se supunha, composto de pessoas ainda em mi-
sendo tôda a Igreja, o Estado como sendo todo o corpo uoridade, capazes de fazer petições, protestos ou levan­
político. Pela mesma razão, o Estado tende a atribuir a tamentos, mas não de governar-se a si mesmas. Assim,
si mesmo um bem comum especial -— sua própria preser­ na “idade barroca”, enquanto n realidade do Estado e o
vação e crescimento — ambos diferentes da ordem públi­ sentido do Estado se manifestavam progressivamente co­
ca e do bem-estar, que são o fim imediato do Estado, e mo grandes realizações jurídicas, o conceito de Estado
do bem comum, que é o seu fim último. Todos êsses surgiu mais ou menos confusamente como conceito de um
males são apenas exemplos de excesso ou abuso '‘natural”. todo — às vêzes identificado com a pessoa do rei —. que
Mas houve algo de muito mais específico e sério no se sobrepunha ao corpo político ou que o envolvia, hau­
desenvolvimento da teoria substanciailista ou absolutista rindo o poder do alto, em virtude do seu próprio direito
do Estado. Esse desenvolvimento só pode ser compreen­ natural e inalienável, — quer dizer, um todo que era do­
dido na perspectiva da história moderna e como conse­ tado de soberania. Pois, no sentido autêntico desta pala­
quência das estruturas c concepções peculiares ao Tmpé- vra — que depende da formação histórica do conceito
rio Medieval, à monarquia absoluta da idade clássica em de soberania, antes das várias definições dos juristas —
França, e ao govêrno absoluto do reinado fios Stuarts na a soberania implica não sòmente a posse efetiva do poder
Inglaterra. Releva notar que a própria palavra Estada supremo e o direito ao mesmo, mas também um direito
aparece somente ao longo da história moderna: a noção que é natural e inalienável a um poder que é supremo, is­
de Estado estava implícita no antigo conceito de cidade to é, independente e acima de seus súditos. 9
(polis, c.ivitas), que significava essencialmente corpo po­ Nos tempos da Revolução Francesa, precisamente
lítico, e mais ainda no conceito romano de Império. Tal êsse conceito* de Estado como um todo em si mesmo foi
conceito, todavia, jamais foi expresso de maneira explí­ conservado, deslocando-se, contudo, do Rei para a Nação,
cita na Antiguidade. Segundo uma concepção histórica, erroneamente assimilada com o corpo político; daí terem
infelizmente muito comum, tanto o desenvolvimento nor­ sido identificados os conceitos de Nação, Corpo Político
mal do estado, o que representa em si mesmo um pro­
gresso sadio e autêntico, como o desenvolvimento da ile- Vide cap. II.
26 JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E O ESTADO 27
u Estado. 10 E o próprio conceito de soberania — como E foi assim que, nos tempos modernos, a noção des-
um direito natural ou inato e inalienável a um supremo tic.i ou absolutista do Estado foi amplamente aceita
poder lrcMwe&nd&nte — foi igualmente conservado, des­ entre os princípios democráticos pelos teóricos da demo­
locando-se desta vez do Rei para a Nação. mesmo cracia — antes do advento de Hegel, o profeta e teólogo
leriipu, cm virtude de tuna teoria voluntarista do direito tio Estado totalitário e divinizado. Na Inglaterra as teo­
e da sociedade política, que teve o seu ponto culminante rias do John Austin apenas tenderam a domesticar e ci­
na filosofia do século XVIII, o Estado era identificado vilizar um pouco o velho Leviathan de Hobbes. Èsse pro­
com uma pessoa (uma suposta pessoa moral) e com um cesso de aceitação foi favorecido por uma propriedade
sujeito de direito,11 de modo que o atributo da sobera­ simbólica que pertence verdadeiramente ao Estado, a sa­
nia absoluta conferido à Nação tinha de ser inevitável ber, o fato de que, exatamente como dizemos 20 cabeças
e indiscutivelmente exigido e exercido pelo Estado. de gado para significar 20 animais, do mesmo modo a
parte superior do corpo político representa, naturalmente
Essa confusão entre Estado, Corpo Político e Lei viria a o todo político. Ainda mais, a noção dêsse último é ele­
tornar-se clássica. Apareceu, de modo marcante, na teoria de
A. Esmein (vtefe seus Êlements cie Droii (Jonsti^ttionnelt G.A ed., vada a um mais alto grau de abstração e simbolização, 12
Paris, Recuçíl Sirey, 1914.), quo insistiu em que “o Estado é a
personificação jurídica da Nação.” Limo com os outros corpos políticos), “o Estado” é uma mora
11 A noção dc personalidade moral ou coletiva na qual entidade abstrata que nem ó pessoa moral nem sujeito de direi­
“personalidade” tem o valor de frnalogiu. de proporcionalidade pró- tos. Os direitos quo lhe são atribuídos não são direitos que lhe
pva — aplica-se ao potro como um todo, de maneira autêntica. pertençam por sua própria natureza. São diTeitçs do corpo po­
Com efeito, o povo como um todo (ntn todo natural} é um con­ lítico — que é idculmenl. substituído por essa entidade abstrata
junto de pessoas reais e individuais, e ;t sua unidade, como um o representado reabntulc peles homens que foram colocados cm
todo social, deriva da vontade comum do todos de viverem jun­ funções públicas c investidor de poderes determinados.
tos, que se origina nessas pessoas reais e individuais, i‘~ Sucedeu assim que um grande teorista como Kelscn pole
Em «>n?eqüência disso, a noção do personalidade moral ou fazer do Estado uma abstração meramonto jurídica, identifican­
coletiva aplica-de, roalmènte. ao corpo po/t/íço, que é todo orgâ­ do-a com a Lei e a ordem legal — um conceito que desloca o
nico ccmpcsto do povo. O re.mltado é quo tanto o povo como o Estado da sua verdadeira esfera (isto c, da esfera política) o
corpo político são M/rôo? (ou, detentores) c?r direitos; o povo quo é tanto mais ambíguo quanto o Estado real (como parte e
tem o direito de governar-sc a «i próprio; existe uma relação órgão máximo no. ápice do corpo político) quererá aproveitar-se,
mútua de Justiça entro o corpo político e os seus membros indi­ de fato, dessa essência fictícia que lhe é atribuída como um ens
viduais. TationÍ8, a fim de exigir, paia si própria, os atributos sagrados
ílãs essa roez-ma noção de personalidade moral não se aplica e a " Soberania” da I o.i.
ao JPstocto (que não ó uni todo, mas uma parte cu um órgão Nótfíüe ainda mais que a eocpressão “soberania da lei” é
especial do corpo político), exceto de maneira tnenonento w/a- uma expressão n-.eramente metafórica, que se relaciona com a na­
fôrícu e em virtude de uma ficção jurídica. O Estado não é um tureza racional da lei e a sua qualidade moral e jurídica obri­
sujeito de direitos, um ZtocAfíWòyflfct como muitos modernos too- gatória, mas nada tem u haver com o conceito genuíno dn so­
ris tas, especialmente Jollinek, por engano, o consideram. Em sen­ berania.
tido contrário, Léon Duguit compreendeu cleramente que o Es­ A função concreta do Estado — sua principal função — é
tado nfio ó um sir-ut- do direitos, ma foi a outro extremo e a a.'.?egurftr a ordem legal p n prática ofetiva da Tci. Mas o Es­
sua teoria geral comprometeu a própria noção de direito. tudo não é a lei. E a assim chamada "soberania” do Estado
Os direitos do povo ou do corno político não são. nem podem (viris, cap. IT) não éT d? modo alrum, a “soberania’* mrral c ju­
s<?r, fnirs/endoa ou cedidos ao Estado. Mais ainda, enquanto o rídica (isto é, a propriedade de lij?sr as consciências e de poder
E !' j a corv pblftícõ (nas relações externa u do ú:- $er posta en: ação coercntivameite) da L.ei (a lei justa).
28 JACQUES MARITAIN 29
O HOMEM E O ESTADO

e a consciência da sociedade política é elevada a uma É necessário acentuar o seguinte: o dever mais ur-
idéia muito maia individualizada de si mesma na idéia i-ente que se depara às democracias, hoje em dia, consiste
de Estado. Na noção absolutista do Estado, êsse símbolo em desenvolver a justiça social e melhorar a organização
tornou-se uma realidade, foi hipostasiado. De acordo com econômica do mundo, defendendo-se contra as ameaças
esta noção, o Estado é uma. niônada metafísica, uma pes­ bd.nlltárias vindas de fora e contra a expansão totali­
soa; é um todo em si mesmo, o próprio todo político no tária no mundo. A consecução, todavia, dêsses objetivos
seu grau máximo de unidade e individualidade. Assim implicará inevitavelmente o risco de demasiadas funções
sendo, absorve em si mesmo o corpo político do qual pro­ da vida social serem dirigidas pelo Estado, de cima para
vém, bom como tôdas as vontades particulares ou indivi­ baixo. Seremos, além disso, irremediável mente forçados
duais que, segundo Jean Jacques Rousseau, geraram a a aceitar esse risco, enquanto nossa noção de Estado não
vontade geral a fim de morrerem e ressurgirem mistica- tiver sido reformulada de conformidade com os verdadei­
mente em sua unidade. Goza, além disso, de absoluta so­ ros e autênticos princípios democráticos, e enquanto o
berania como um direito e uma propriedade essenciais. corpo político não tiver renovado suas próprias estrutu­
Èste conceito de Estado, pôsto em prática na história ras e a sua consciência, de maneira que o povo se pre­
humana, arrastou as democracias a intoleráveis contra­ pare de modo mais efetivo para o exercício da Liberdade
dições, na sua vida doméstica e, acima de tudo, na vida e o Estado venha a ser um real instrumento para o bem
internacional. Porque este conceito não faz parte dos au­ comum de todos. Só então poderá essa suprema institui­
tênticos princípios da democracia ; não- pertence à verda­ ção, que a civilização moderna tornou cada vez mais ne­
deira inspiração e filosofia democrática, mas, sim, a uma cessária à pessoa humana no seu progresso político, so­
herança ideológica adulterada que, como um parasita, cial, moral e mesmo intelectual e científico, deixar de ser,
ao mesmo tempo, uma ameaça não só às liberdades da
vem exaurindo a democracia. Durante o período da de­
mocracia individualista ou “liberal”, o Estado, conside­ pessoa humana mas também às da inteligência e da ciên­
cia. Somente então poderão as mais altas funções do Es­
rado como um valor absoluto, manifestou a tendência de tado — garantir a lei e facilitar o desenvolvimento livre
se substituir ao povo, deixando-o assim afastado de certo do corpo político — ser restauradas e readquirido polos
modo da vida política; foi também capaz de lançar as cidadãos o seutido do Estado. Somente então poderá o
guerras entre as nações que perturbaram o século XIX.
Não obstante, depois da era napoleônica, as piores impli­ Estado realizar plenamente sua verdadeira dignidade, que
cações dêste processo de “absolutização” do Estado fo­ provém não do poder e do prestígio, mas do exercício
ram restringidas pela filosofia democrática e política e da justiça.
pelas práticas que então prevaleciam. Só com o advento
dos regimes e das filosofias totalitárias é que essas piores VI
implicações se manifestaram plenamente. Nossa época
teve o privilégio de contemplar o totalitarismo estatal da Crescimento normal e processo simultâneo de perversão
Raça com o Nazismo germânico, da Nação com o Fascis­
mo italiano, da Comunidade Econômica com o Comunis­ A esta altura, quisera eu não ser mal compreendido.
mo russo. Espero que minhas observações anteriores tenham tor­
80 JACQUES MARITA1N 0 HOMEM E O ESTADO 31

nado suficientemente claro que, de modo algum, condeno ver do Estado moderno consiste na efetivação da justiça
ou deprecio o Estado e o seu surpreendente crescimento social.
no decorrer da história moderna. Seria isso tão cega­ Na realidade, êsse dever primacial acarreta inevi-
mente irreal e tão fútil como condenar ou rejeitar as tàvelmente, ao processar-se, a hipertrofia do poder do
realizações mecânicas que transformaram o mundo e que Estado, na medida em que este tem de compensar as de­
poderiam e deveriam transformar-se em instrumentos ficiências de uma sociedade cujas estruturas básicas não
para a libertação do homem. Desde o último período do estão à altura das exigências da justiça. São essas defi­
século XIX foi necessária a intervenção estatal para com­ ciências que constituem a causa primordial da dificul­
pensar o desdém pela justiça e pela solidariedade huma­ dade. E assim tôda objeção teórica nu tôda pretensão par­
na que havia prevalecido durante as fases iniciais da re­ ticular, mesmo quando justificadas nas suas respectivas
volução industrial. A legislação estatal, com relação a esferas, serão infalivelmente consideradas como de so­
empregados e trabalhadores, é, em si mesma, uma exigên­ menos importância em face da necessidade vital — não
cia do bem comum. E sem o poder do Estado — O Estado só de fato mas moral — de satisfazer as necessidades e
democrático — como poderia um corpo político livre re­ os direitos, por tanto tempo menosprezados, da pessoa
sistir à pressão ou à agressão de Estados totalitários? O humana nas camadas mais profundas e mais extensas
crescimento do Estado nos séculos modernos como uma da sociedade humana.
máquina racional ou jurídica e tendo em vista o seu sis­ O problema, a meu ver, é o de distinguir o progresso
tema construtivo interno de lei e de poder, sua unidade, normal do Estado das falsas noções, ligadas ao conceito
sua disciplina; o crescimento do Estado no século atual, de soberania, que o contaminam, e bem assim o de trans­
como uma máquina técnica e tendo em vista as suas fun­ formar as gerais condições de atraso que, ao impor ao
ções legislativas, bem como de supervisão e organização Estado uma tarefa exageradamente pesada, o tornam su­
jeito a uma grave corrupção. Pois o fato é que tanto es­
da vida social e econômica, constituem em si mesmos sas condições sociais como essas falsas noções absolutis­
parte de um progresso normal. tas determinam um processo de perversão que se com­
Tal progresso foi inteiramente corrompido nos Es­ bina com o desenvolvimento normal do Estado e lhe
tados totalitários. Continua, todavia, a ser um progresso exaure tôda a vitalidade. Como descrever êsse processo
normal, embora submetido a muitos riscos, nos Estados de perversão? Ocorre — como se depreende de todas as
democráticos, especialniente no que se refere ao desen­ nossas observações anteriores — quando o Estado se con-
volvimento da justiça social. «idera erradamente como um todo, como o todo da socie­
Podemos não gostar do mecanismo do Estado, como dade política, e, em conseqüência disso, assume o exercí­
eu, por exemplo, não gosto. No entanto, muitas coisas cio cie funções e a realização de tarefas que normalmente
de que não gostamos são necessárias, não só de fato como competem ao corpo político e a seus vários órgãos. Temos
de direito. Em primeiro lugar, a razão primacial pela então o que foi cognominado “o Estado paternalista”, is­
qual os homens reunidos em uma sociedade política, ne­ to é, o Estado que não só superintende politicamente, sob
cessitam do Estado, é a ordem da justiça. Por outro lado, o ponto de vista do bem comum, o que é normal, mas or-
a justiça social é a necessidade crítica por excelência das ganiza diretamente, fiscaliza ou gere, na medida em que
sociedades modernas. Em conseqüência, o principal de­ o julga ser no interesse do bem-estar coletivo, tôdas as
32 JACQUES MAIUTAIN 0 HOMEM B O ESTADO 33

formas da vida do corpo político, quer econômicas, co­ processo não é um ataque contra a propriedade privada,
mei, ciais, industriais, culturais, quer relativas à pesquisa mas sim uma ampliação da mesma. Depende da proeura
científica, à segurança coletiva ou à satisfação das neces­ da iniciativa livre para novas modalidades e ajustamen­
sidades públicas. tos econômicos, que serão um dia sancionados por lei
Acentuemos, a êsse respeito, que as chamadas “na­ na medida do seu êxito prático. Tal processo de asso­
cionalizações” e que são, na realidade, “estatizações”, po­ ciação deriva do próprio desenvolvimento natural do sis­
dem ser oportunas ou necessárias em certos casos, mas tema de livre concorrência, quando a consciência comum
deveriam, por natureza, permanecer excepcionais, limi­ se convence da função social da propriedade privada e
tando-se aqueles serviços públicos relacionados tão inti­ ■ ia necessidade de dar formas orgânicas e institucionais
mamente com a própria existência, com a própria ordem àquela lei do “uso comum”, sôbre a qual Tomás de Aqui-
ou com a própria paz interna do corpo político, que um no insistiu de modo tão particular. 13
risco de má administração é então um mal menor do que Como consequência, acrescentaria o seguinte: se nos­
o risco de ceder o predomínio aos interêsses privados. sa estrutura social presente deve desenvolver-se por vias
O fato é que o Estado tem habilidade e competência em normais, o primeiro passo a dar, exigido pelo bem-estar
assuntos de ordem administrativa, legal e política, mas du coletividade, consistiria em fazer com que o Estado
é inevitàvelmente imperfeito e incompetente em todo sos iniciasse e apoiasse — como se viu ser possível no exem­
outros terrenos e, por consequência, nêles se manifesta plo extraordinário da Emprêsa do Vale Tennessee (Ten-
fàeilmente opressor e inepto. Tornar-se um patrão ou nessee Valley Authority) — projetos de largo âmbito, pla­
um gerente no setor comercial ou industrial, um patrono nejados e dirigidos não pelo píóprio Estado, nem a partir
em arte ou um espírito dirigente em matéria de pintura, do centro político administrativo do país, mas no local
ciência ou filosofia, é contra a natureza de uma suprema respectivo por empresas privadas coordenadas umas às
instituição tão impessoal, por assim dizer, tão abstrata outras e pelas várias comunidades do próprio povo inte­
e separada das circunstâncias mutáveis, das tensões mú­ ressado, sob a superintendência de administradores inde­
tuas, das vicissitudes e do dinamismo da existência so­ pendentes e responsáveis. O Estado lançaria assim, êle
cial concreta. próprio, um movimento de descentralização e do “deses-
Em virtude de uma estranha confusão e interpene­ tatização” progressivas da vida social, visando ao adven­
tração do vocabulário humano, a palavra nacionalização to de algum novo regime personalista e pluralista. 14
expressa um significado socialista, ao passo que a pala­
vra socialização, pelo contrário, se fôsse corretamente 13 Cf. nosso livro, Freedom in the- Modem World (New York,
compreendida, deveria ter conotações personalistas e plu­ Charles Scribner^ Sons, 1936). Apêndice I, “Person and Pro-
perty”.
ralistas. Pois, tomada em seu sentido autentico, refere- 14 Sôbre a noção de pluralismo vido os meus livros, Du. ré-
-se a êsse processo de integração social através do qual •yinm lomporcl et de la liberte (“Freedom in the Modera World”),
a associação numa determinada empresa se estende não cap. I, o Jlumanfeme ÇTrue Humanism”), cap. V. Vide
apenas ao capital invertido, mas também aos operários também as observações do Prof. R. 51. MacIveFs sôbre a “Sa­
e aos patrões, de modo a tornar têdas as pessoas e os ciedade muitgrupai" (Thc Web of Governinent, New York, Mac-
millan Co., 1947, págs. 421 e sc-gs.). Quando desenvolvi essa teo­
vários grupos, nela implicados, de certa forma parti­ ria do principio pluralista, forjando a expressão para meus pró­
cipantes da co-propriedade e da co-administração. Este prios fin.s. não tinha lido os livros de Harold Laski. Só mais
34 JACQUES MAR1TAIN 0 IÍOMEM E 0 ESTADO 35

0 último passo seria dado, em tal novo regime, quan­ e, por conseguinte, uniu instituição especial dotada de um
do o estímulo pelo Estado já não fôsse mais necessário e poder superior para a realização da justiça e a efetiva­
quando tôdas as formas orgânicas da atividade social ção da lei. 0 Estado é, precisamente, essa instituição po-
a econômica, mesmo as mais amplas e mais compreensi­ lílic.i superior. Mas o Estado não é nem um todo, nem
vas, partissem da base, isto é, da livre iniciativa e da ii ii ..ircito de direito, nem un a pessoa. É uma parte
mútua tensão entre os grupos particulares, as comunida­ cio corpo político e, como tal, inferior ao corpo político
des de trabalho, as cooperativas, as uniões, as associações, como uni todo, a èstu aibmdimulo e dedicado ao serviço
os corpos federados de produtores e consumidores, dispos­ tio : \ o bem comum. <J I m comum da sociedade política
tos em ordem hierárquica e institucionalmente reconhe­ «'■ o fim iltinio do b. lado e precede o fim imediato do Es-
cidos. Realizar-se-ia então uma estrutura definidamente tado, que ê a manutenção da ordem pública. 0 Estado
personalista e pluralista da vida social, na qual se desen­ ti oi u:. dever primacial com relação à justiça, que de-
volveriam novos tipos sociais de propriedades e de em­ v ii:. ser exercido somente como uma supervisão última,
presa privada. 0 Estado deixaria assim aos múltiplos em um corpo político fundamentalmente justo nas suas
órgãos do corpo social a iniciativa e administração autô­ estruturas íntimas. Finalmente, o corpo político deve fis­
noma de tôdas as atividades que por natureza lhes per­ calizar o Estado, que possui, todavia, entre as suas atri­
tencem. Sua única prerrogativa, a êsse respeito, seria a buições, as funções de governo. No ápice da pirâmide
sua autêntica prerrogativa de árbitro e superintendente d.e tôdas as estruturas particulares de autoridade que,
máximo, regulando essas atividades espontâneas e autô­ ern uma sociedade democrática, deveriam sempre origi­
nomas sob o ponto do vista superior do bem comum. As­ nar-se de baixo para cima, desfruta o Estado de uma
sim, talvez, venha a ser possível, em um corpo político máxima autoridade supervisora. Mas essa autoridade su­
pluralisticamente organizado, converter o Estado em um prema, recebe-a o Estado do corpo político, isto é, do
órgão superior, que se preocupe apenas com a supervisão
final das realizações alcançadas por instituições nascidas povo. 0 que o Estado possui por si mesmo não ê um direi­
da liberdade, cuja interdependência de relações exprima to natural ao poder supremo. Como conseqüência de uma
a vitalidade de uma sociedade integral mente justa, desde elucidação crítica do conceito de soberania — com □ qual
as suas estruturas básicas. te ocupa o segundo capítulo dêste livro —, a autoridade
suprema do Estado não deveria, de modo algum, ser
♦**
chamada soberania.
Resumindo, o bem comum do corpo político exige Em face de uma sã filosofia política, não existe so­
uma rêde de autoridade e de poder na sociedade política berania., isto c, não existe nenhum direito natural e ina­
lienável a um supremo poder transcendente ou separado
tarde tive conhecimento <lo papel fundamental desempenhado pelo
na sociedade política. Nem o Príncipe nem o Rei nem
conceito de pluralismo na sua filosofia política. Tais fenômenos o Imperador eram realmente soberanos, embora detives­
de convergência intelecúia’ enf.te duas linhas de pensamento muito sem a espada e os atributos da soberania. Assim tam­
diferentes, o mesmo em conflito (como também se deu com re­ bém não é soberano o Estado, como não o é o próprio
lação a outro autor com o têrmo “personalismo"), indicam n ne­ povo. Só Deus é soberano.
cessidade intrínseca do aparecimento de certas idóias básicas em
dado momento da história.
36 JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E 0 ESTADO 37

VII deputados do próprio todo. Tudo isso está de inteiro


acordo com a nossa conclusão de que a expressão mais
O Povo acurada para designar o regime democrático não é “sobe­
rania do povo”, mas sim a sentença de Lincoln: “Gover­
no do povo, pelo povo, para o povo”. Isto significa que o
Discutimos a Nação, o Corpo Político, o Estado. Que povo 6 governado por pessoas que èle mesmo escolheu e
dizer agora do Povo? a quem cometeu um direito de comando, Lendo em vista
Acabo de afirmar que o povo não é soberano, segun­ funções de uma determinada natureza e de certa dura­
do o verdadeiro significado deste termo, visto como, em ção o ■ óbre cujo exercício o povo mantém uma fiscaliza­
tal acepção, a noção de soberania diz respeito a um poder ção regular, acima de tudo por meio de seus represen­
e a uma independência que são supremos, separadamente tantes e das assembléias assim constituídas.16
e acima, do todo governado pelo soberano. E, evidente­ **$
mente, o poder e a independência do povo não são supre­
mos, separadamente e acima do próprio povo. Do povo, Além disso, no que toca à própria noção de povo,
tanto quanto do corpo político, o que temos a dizer não diria cu que o conceito moderno de povo tem uma longa
é que sejam soberanos, mas que têm um direito natural história, derivando de uma singular diversidade de signi­
à plena autonomia. ficados que se fundiram entre si.16 Considerando, toda­
O povo exerce êsse direito quando estabelece a Cons­ via, apenas o significado político da palavra, basta-nos
tituição, escrita ou não escrita, do corpo político, ou quan­ dizer que o povo é a multidão de pessoas humanas que,
do, no caso de um pequeno grupo político, se reúne para reunida sob o império de leis justas, por uma mútua
elaborar uma lei ou tomar uma decisão, ou, então, quando amizade, e para o bem comum de sua existência humana,
elege os seus representantes. Êsse direito é inalienável. constitui uma sociedade política ou um corpo político.
É em virtude dele que o povo superintende o Estado e A noção de corpo político significa a unidade total com­
fiscaliza os seus próprios administradores. É em virtude posta pelo próprio povo. A noção de povo significa o con­
dêsse direito que o povo transfere, àqueles que são desig­ junto de membros organicamente unidos que compõem
nados para cuidar do bem comum, a faculdade de fazer o corpo político. Assim, o que dissemos com relação ao
leis e de governar. Investindo assim êsses homens em Corpo Político e à Nação ou ao Corpo Político e ao Es­
questão com autoridade, dentro de certos limites de du­ tado, pode igualmente aplicar-se ao Povo e à Nação, ou
ração e de poder, — o próprio exercício do direito, que ao Povo e ao Estado. Mais ainda, visto como o povo é
o povo tem de governar-se a si mesmo, restringe-se a si constituído por pessoas humanas que formam um corpo
próprio na mesma proporção, mas não faz com que a político e que, além disso, possuem, cada uma delas, uma
posse dêsse direito cesse ou diminua de qualquer ma­ alma espiritual e um destino supertemporal, o conceito
neira. Os funcionários administrativos, ou, como diz, a
15 Vide infra cap. III, 4 e cap. V, 4; e sôhre a sentença ile
Administração, isto é, as pessoas humanas investidas de
poder executivo, constituem (no sentido mais estrito da Lincoln, Scholasticism and Politics (New York, Macmillan Co.,
1940, págs. 107-108.
palavra “governamental”) o órgão governamental dentro 10 Cf. nosso livro Raieon et raiaove (Paris, Luf, 1947), capi­
do Estado, porque o povo 03 designou, no corpo político, tado XI.
38 JACQUES MARITAJN

de povo é o conceito mais alto e mais nobre entre os con­


ceitos fyndamentais que estamos analisando. 0 povo
constitui a própria Substância — a substância viva e
livre — do corpo político. O povo está acima do Estado,
o povo não existe para o Estado, mas o Estado é que
existe para o povo.
Quisera ainda assinalar que o povo tem uma neces­ Capítulo II
sidade especial do Estado, precisamente porque o Estado
é uma instituição particular especializada em cuidar do O CONCEITO DE SOBERANIA
todo, devendo assim, normalmente, defender e proteger
o povo, seus direitos, e a melhoria de suas vidas contra
o egoísmo e o partícula ri sírio de grupos e de classes pri­ I
vilegiadas. Na França antiga, o povo e o Rei confiavam
um no outro, de modo um tanto ambíguo, na sua luta O Problema
contra a supremacia dos grandes senhores feudais ou da
nobreza. Nos tempos modernos, o mesmo ocorreu entre
o povo e o Estado, em relação à luta pela justiça social. Nenhum conceito despertou atitudes tão contraditó­
No entanto, como vimos, êsse processo normal — quando rias e envolveu os juristas e doutrinadores do século XIX
se corrompa pelo absolutismo do Estado totalitário, que mim redemoinho tão desesperado como o conceito de So­
se eleva à categoria de supremo ordenador do bem e do berania . A razão disso talvez tenha sido o fato de que
mal — conduz ao infortúnio e à escravização do povo êles, desde o início, não examinaram suficientemente,
É também ameaçado e prejudicado quando o povo se nem comprovaram, nem mesmo tomaram a sério o signi­
submete a um Estado que, por melhor que seja, não foi ficado filosófico, original e autêntico do conceito.
liberto da noção da sua pretensa soberania, bem como Na mesma medida em que se desenvolveram pro­
das deficiências de fato do próprio corpo político. Tanto blemas práticos e decisivos relativos ao direito interna­
para manter e fazer frutificar o movimento do Estado cional, tornaram-se mais profundas e mais extensas as
em prol do progresso social como para restituir ao Esta­ controvérsias sobre a Soberania do Estado, considerada
do a sua natureza verdadeira, c mister que muitas fun­ cm seu aspecto exterior, isto é, quanto às relações entre
ções agora exercidas pelo Estado venham a ser distribuí­ Estados. A questão proposta era a de determinar se a
das pelos vários órgãos autônomos de um corpo político comunidade internacional, como um todo, não é a verda­
pluralisticamente estruturado, — quer depois de nm pe­ deira detentora da Soberania, em vez dos Estados indivi­
ríodo de capitalismo de Estado ou de socialismo de Esta­ dualmente considerados. 1 Houve mesmo alguns círculos
do, quer, como é de desejar, durante o próprio processo
de sua atual evolução. Torna-se também necessário que i Cf. Bpbert Lansing, Notes on. Sovtreignty (Washington,
Garnegie Endowmont for International Peaee, 1921), cap. II, “No­
o povo possua a vontade e disponha dos meios que lhe tes on World Sovereignty”, Separata do Amerioan JovtmI of
garantam a sua própria fiscalização do Estado. Intvmationat Law, janeiro, 1921.
40 JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E O ESTADO 41

cru que. se pôs em dúvida a própria noção de Sobera­ nem tampouco pelo fato de criar o conceito de Sobera­
nia.- Foi essa a posição tomada, em primeiro lugar, por nia dificuldades insuperáveis e confusões teóricas no
Triepel e, depois, por alguns outros internacionalistas campo do direito internacional. Sustento-o porque, con­
como Edmund 3 o Foulke. 4 * * 7 Essa disputa, todavia, com siderado em sua autêntica significação c na perspectiva
relação ao conceito de Soberania permaneceu apenas no do devido setor científico ao qual pertence — isto é, a
terreno jurídico e não chegou às raízes filosóficas do filosofia política, — êsse conceito é intrinsecamente errô­
assunto. neo H e capaz de nos desorientar se continuarmos a em­
Meu objetivo, neste ensaio, não é discutir a Sobe­ pregá-lo, sob o pretexto de que foi aceito durante um
rania cm termos de teoria jurídica e sim em têrmos de período muito longo e por inúmeros autores para ser re­
filosofia política. Penso que os motivos para assim pro­ jeitado, ■ .'rn I- varinos cm conta as falsas conotações que
ceder são tanto mais procedentes quanto a Soberania, lhe são inerentes.
em suas origens históricas, como Jellinek certa vez obser­ Ser-nos-á permitido, nesse ponto, fazer uma observa­
vou, é “um conceito político que mais tarde foi transfor­ ção um tanto pedante, mas que diz respeito à precisão
mado" 9 com a intenção de obter um fundamento jurí­ no uso das palavras.
dico para o poder político do Estado. Assim como as palavras pólis ou civitas são fré»
Sustento que a filosofia política deve libertar-se tan­ qüentemente traduzidas por Estado (embora o nome
to da palavra como do c-onccito de Soberania: não por­ mais apropriado seja “comunidade" — commonwealth
que se trate de um conceito antiquado, 8 ou em virtude — ou “corpo político", e não “estado"), da mesma ma­
de uma teoria sociológico-jurídica do “direito objetivo’’;1 neira ns palavras principatus e suprema, potestas são fre­
quentemente traduzidas por “soberania” e as palavras
3 Cf. Iíyinen Ezni Cuhen, Recent Tluwrles of Sovercipnty kúrios ou prineeps (“legislador") por “soberano”. 9 Tal
(Chicago, University of Chicago Prèss, 1937), págs. 82 e segs. tradução é enganadora porque obscurece o problema
8 Stcrling, E. Edmund, Tkc Lawlesao Law of Nations (Wash­ desde o princípio. Principatus (“principalidade”) e su-
ington, D. C., Byrn« & Co., 1925).
4 Roland R. Foulke, .4 Tíreffttóe íw Intarnational Law (Phi- Concordo com Duguit, quanto à necessidade de abandonar
ladelphin, John C. Winston Co., 1920): ‘O têrmo soberania é tanto o conceito da não prestação de contas pelo Estado como o
ambíguo... não temos tempo a perder na perseguição de som­ conceito de Soberania do Estado, mas não concordo com as ra­
bras e, por isso, deixai mos intuiram ente de empregA-lo. A pala­ zões em que fundamenta as suas conclnr-ões.
vra “independência’1 indica, de modo suficiente, tôda idéia abran­ 6 Sob outro ponto de vista filosófico, é essa também a posi­
gida pelo emprego do tSimo soberania, necessário ao estudo do ção de TTaroId J. Laskí. Cf. ôs seus Siitdiea in the Probl&m of
direito internacional’’ (pág. 69). Sovereiynttf (New Haveu, Yale University Press, 1917) e A Granu-
9 Georg Jellinek, Rvcht dea modemen Siftates: Allgcnteinr mar of Politics (New Haven, Yale üniversity Press, 1923).
St<M<8lchro (Berlim, 1900), (pág. 394). O Prof. Maclver, no seu livro Thc Web of Governmcni, fêz
8 Cf. Hugo Preuss, Gemeinãe, Staat, und Rt.ich n/.s Gebiete- processo contra a Soberania em forma magistral (cf. R. M. Maclvejr,
korperechaftcn. (Berlim, 1889) ; Charles E. Merriam, Histury of Thtí JVeò of Governir<ent, Ncw York, Macmillan, 1947, páfi*3. 48-51,
thn Tlicory of Sovereignty tince Rouarrtav. (New York, Oolumbia 69-73).
XJniverHty Ptess, 1900). * Cf. Aristóteles, PoKtfí» III, 15, 1286b3l; IV, 4, !290a32,
7 Cf. Léon Daguit, Law in tht Modem StatM (Naw York, etc., onde Aristóteles diz Kúrioa, a tradução de Oxford, sob a di­
Viking Press, 1919). reção de W. D. Ross, coloca soberano. Tomás de Aquino, Swn.
TheoL, I-IT, 90, 3. obj, 8; 96, 5, corp., obj. 3, e ad 8, etc., onde
42 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 43
prema, potestas (“poder supremo”) significam simples­ “Temos aqui dc encontrar a definição de soberania
mente “autoridade governamental suprema”, não “sobe­ porque até agora não houve nem jurisconsulto, nem filó­
rania”, como se supôs desde o momento em que essa pa­
sofo político que a definisse.” 14
lavra pela primeira vez apareceu no vocabulário de teo­
ria política. Ao contrário, “soberania” era traduzida nes­ “A soberania é o poder abnolutu e perpétuo de uma
se momeuto por majestas, em latim, e por cc/qô rtowiía, República.” u
em grego, como era corrente na época de Jean Bodin. 10 “Ê8se poder é perpétuo'’. ‘ isto é, "durante tôda a
vida daquele que detém o poder”, !U em oposição àque­
le <pi<« “não são senão depositários e guardas dêsse po-
II iler alô o momento em que o povo ou o Príncipe se re­
O Príncipe soberano de Jean Bodin solvam a revogá-lo.” 17

Jean Bodin é considerado com razão como sendo o •n i: í: lo acu parecer, quando se tratava de coisas como a inviu-
iibilui.ub? • -,i propriedade privada, ou dos preceitos do ^n-
pai da teoria moderna da Soberania. Para Bodin, o rei ou d&3 'leis da monarquia” como a Lei Sálica, exprlndndu
não possuía uma Soberania supraterrena, que nada tem n concordância básica ria qual se originam o poder do Príncipe,
de absolutamente superior a si mesma. Deus estava aci­ as humanas e os tribunais eram upemets expressões oh ârgttoa
ma do rei, e o poder supremo do rei sôbre os seus súdi­ da própria Lei Nttlwcd, em consequência do que bçub pronuncia­
mentos eram válidos mesma cru relaçáo rü Scberano. fisse ponto
tos estava, por sua vez, subordinado à “lei de Deus e da dei vistn capeeial do Bodin (baseado, aliás, numa falsa idéiu da
natureza”, ” às exigências da ordem moral.12 Mas o rei Lui Natural) iria ?er repudiado maia tarde por outros teoristas
era Soberano, o rei era dotado de Soberania humana. <!a Soberania c, uesso sentido, ficou êle a meio caminho. É fato,
Consideremos as próprias palavras de Bodin; no caiu :to, que o soberano de Bodin estava sujeito à Lui Na­
tural e a mais nenhuma loi humana distinta da LM, Natural. Ora,
Santo Tomás diz princepe, a tradução iftrig‘da pelos donifcicanes 1 <so ó que c.rstitui a essência do absolutismo político.
ingleses coloca soberana. Sôbre Jean Bodin ver Roger Chauviré. Jean Bodin, auteur de­
10 Cf. Jean Bodin, De la Rípitbíupu) (Paris, chez Jacques la Républit/iVj (Paris, 1914); A. Ponthieux, "Qnelquen documente
du Puy, 1583). livro I, cap. 8. •nédits sur Jean Bodin”, Rcvue dv XVI tfíèek, voL XV (1928),
11 Itnd., livro T, cap. 8. fa-gç, 1-2; A. Ga rosei, Jean B-?din (Milãn, 1935); Piorre Mén&rd,
12 O Sr. Max Adam Shepard (“Soveroiguty al the Cross lload: L/Essor de la Pkflosopkie Politique «u XVI siècle (Paris, Boivin,
A Study of Bodin", PoHtiMl Stfcncc Quarti-rl-y, XLV, 1020, I5S0-6O3) 1936), púffs. 473-54.6; “Lu Républigua de Jean Bodin1' et “Jean
insistiu em quo Bodin estava na enctuzffhadn entre a noção do Bodin et la critique de Ia morale d’Ariatote”, Revitc ThwVste,
Príncipe — submetido à lei (à lei humana), não em súa váí vol. TT7 (1049).
coactiva, maa cm sua viu drreotiva. (<£?. Su?n. Tkcot., I II, 06, 5, i-’< Bodin, op. cit., livro E, cap. 8, pág. 122. “Pois cumpri,
ad 3) e a noção moderna ("jnonwta") do Príncipe, completa­ aqui em primeiro lugnr definir majestade ou Soberania, o que,
mente livre de tôda lei na torra. Vida também as observações até açora, nenhum advogado nu filósofo político definiu” (The
do Prof. Charles McIhvaiiPs ?ôbre Bodin e Hkbbes no eeu artigo Six Eatâ* nf a Cowmonwealf. written by J. Bodin, a famous
“Sovereignty in the present -world’’, Meaetire, n.° 3, 1950. R La^ryor and a man of great Experlence in matters of State; out
verdade» que, Jnevftàvclmente, Bodin permaneceu até çerto ponto of the ITrench and Latne Copies, clone into English, by Richard
tributário da Idade Mé lia e não penetrou até muito longe no Knóllefi. London. Inw. G. Blshop, 16C6, páp. 81).
11 Hrid., pág. 122.
caminho mai-3 tarde trilhado por Hobbes e por Auetln. Mas, se 15 IbícL, pág. 122.
éle forçou o soberano a respeitar o jus gentíum e a lei consti­ 10 Ibid., páçr. 12G.
tucional da monarquia (leges mporii), isso aconteceu porque,
17 H)id„ pág*. 122.
II .IACQUES MARITAIN 0 HOMEM E O ESTADO 45

"Sc o povo atribui o seu poder a alguém enquanto “O Príncipe soberano só presta juramento a Deus.” 24
ele viva, na qualidade de oficial superior ou tenente, ou “A soberania não é limitada, nem em poder, nem
então para se libertar somente do exercício dêsse poder, em encargos, nem por certo tempo.” 33
nesse caso não se trata de um soberano, mas, sim, de um ”0 Príncipe ó a imagem dc Deus." ’*
simples oficial superior, ou tenente, ou regente, oú gover­ “Ora, assim como < .<•< Grande Deus soberano não
nador, ou guarda, o representante do poder de outrem.” 115 pode fazer um outro Deus igual a. êle. em virtude de ser
Porém, "se o poder absoluto lhe é atribuído pwa e infinito e por não pod«r haver, simultaneamente, duas
simplesmente, sem qualidade de magistrado, nem de co­ i >i : hiiinil.' i, como sc d. monstra p >r evidência, — as­
missário, nem do qualquer outra forma precária, é per­ am podeiim . di/.vr que o Príncipe, que apresentamos
feitamente certo que essa pessoa é e pode dizer-se mo­ ■ i m ■(■!: lo a imagem de Deus, não pode criar um súdi-
narca soberano: porque o poso se desfez e se despojou lo igual a êle senão aniquilando o seu próprio poder.” 37
cie seu poder soberano para conceder-lho e nêle o inves­
tir: para êle transferindo o povo todo o seu poder, a III
sua autoridade, as suas prerrogativas e soberanias".lu
Ora, que significa "puder absoluto”? — "O povo ou O êrro original
os regentes de uma República podem atribuir, pura e
simplesmente, o poder soberano e perpétuo a alguém para Fica assim perfeitamente clara a posição de Bodin.
dispor dos bens, das pessoas e de todo o estado a seu Visto como o povo se desfez e se despojou totalmente do
bei prazer, podendo éste em segtcida deixá-los, por sua seu poder total para transferi-lo ao Soberano e nêle in­
vez, a quem lhe aprouver, assim corno o proprietário vesti-lo, o Soberano, então, já não é mais uma parte do
pode doar, pura e simplesmente, os seus bens, sem outra povo e do corpo político: foi “apartado do povo”, foi
causa qM não seja a sua liberalidade, o que é o caráter transformado em um todo, um todo transcendente e se­
parado, que é a sua própria Pessoa soberana e viva, pela
da verdadeira doação, doação essa que não se sujeita a qual o outro todo, o todo imanente ou corpo político, é
condição alguma por já estar perfeita e acabada.” 20
governado de cima para baixo. Quando Jean Bodin diz
Assim é que “o Monarca está separado do povo.” 21 que o Príncipe soberano é a imagem de Deus, essa frase
E “o ponto principal da majestade soberana e do deve ser entendida em sentido pleno, a saber, que o So­
poder absoluto reside principalmente em legislar para os berano — submisso a Deus e devendo só a Êle pres­
súditos, em geral, sem o seu consentimento”.-2 tar contas — transcende o todo político, na mesma me­
"O Príncipe soberano só deve contas a Deus,” 94 dida em que Deus transcende o cosmos. Ou a Sobera­
nia não significa nada, ou significa poder supremo se­
.18 Ibid.t pág. 122. parado e transcendente — não no ápice em si mas acima
IV Ibül.t pág. 127.
2Í- Ibid.j pág. 128.
Ibid., pág. 143. 2* pág. 143.
25 lbid. pá ff. 124.
22 Ibid,, pág. 142. f
28 Tbid., pág. 125. 20 Ibid,t páffs. 156, 161.
27 íbid., Liv. I, cap. 10, pág. 215.
16 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 47

do ápice (“acima de todos os súditos”) 28 — e governan­ da comunidade. Sabiam que o ‘•príncipe” recebe do povo
do todo o corpo polín'c.0 de cima paro, baixo. Eis por que a autoridade ern que é investido. Mas haviam despreza­
ósse poder é absoluto (ab-soluto, isto é, não ligado, sepa­ do e esquecido o conceito de ricariedade Çricarinusness)
rado), e. por consequência, ilimitado tanto em sua exten­ acentuado pelos autores medievais. E substituíram-no
são quanto em sua duração, não tendo de prestar contas pelo conceito de transferência física e de doação.
a nada sobre a terra. Em outras p lavra a discutiram o problema em ter­
Observemos nesse ponto que não há comando sem mos de bens (<ui »od r material), ora possuídos em plena
alguma espécie de separação. Separatus ut imperei, “se­ propriedade, ore. em tutela, em lugar de discuti-lo em
parado, para comandar”, disse Anaxágoras do vorç, o di­ lArnv d" direito possuídos por essência ou por parti-
vino Tntelecto. Afinal de contas, não é certo que qualquer ripnç í Sc o1 ! ■ i material é possuído por um não
homem, pôsto em posição de comando, começa por se­ pode ser possuído pelo outro e só pode tratar então de
parar-se dos outros cm certa medida, seja por meio de transferir a pronriedacD ou de a doar. Mas um direito
uma cadeira maior ou de um escritório menos acessível? pode Ber possuído por um como pertencendo à sua natu-
Pois é precisamente a natureza dessa separação que cons­ rozn e pelo outro cómo sendo dêle participante. Deus
titui o problema em foco. No que toca ao comando polí­ possui, por essência, o direito de comandar. O povo
tico, a separação só é exigida, de modo verdadeiro e possui êsse direito tanto por participação do direito divi­
genuíno, como um estado existencial ou condição para no como por essência, visto que é um direito humano. Os
o exercício do direito de governar. Mas, quando se trata “vigários” do povo ou deputados do povo possuem (“real­
de Soberania, a separação é exigida come» uma qualidade mente possuem”) êsse direito aòmente por participação no
essencial, formando um só todo com a própria posse direito do povo. 29
desse direito, de que se supõe tenha o povo totalmente Na realidade então mesmo no caso da monarquia —
desistido, de tal modo que tôda a essência do poder — mas não absoluta — o que deveriam ter sustentado era
que assim se torna monádico, tão indivisível como a pró­ que, sendo o príncipe o “vigário da multidão” ou o depu­
pria pessoa do Soberano — reside apenas no Soberano. tado do povo, o seu direito, nessa capacidade, é o pró­
Não é de admirar que, no fim das contas, se acabasse prio direito do povo, do qual foi feito participante pela
por atribuir à própria pessoa do Soberano uma essência confiança do povo, direito êsse que continua a existir
diversa da humanidade comum. no povo, pois, de maneira alguma, poderia ter sido de­
Defrontamo-nos aqui com o equivoco fundamental do sentranhado do povo a fim de ser transferido para o
conceito de Soberania e com o êrro original dos teoris- príncipe. E assim o príncipe deveria ser considerado
tas da Soberania. Êles sabiam que o direito ao auto­ como estando no ápice (mas não acima do ápice) da es­
governo é naturalmente possuído pelo povo. Mas, ao con­ trutura política, como uma parte representando o todo (e
siderar êsse direito, substituíram-no pelo de poder total não como um todo separado), ou então como uma pessoa
delegada para o exercício da mais alta autoridade do
28 “Porque a palavra, soberano (isto é, aquêle que está acima corpo político, que detém uma posse vicarial dessa au­
de todos os seus súditos) não poderá convir àquele quc> fêz do toridade como uma participação máxima no direito na-
seu súdito seu companheiro” (ibid., Liv. I, cap. 10; ed, cir.,
pág. 215). 28 Fíde infra, cap. V.
1H JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E O ESTADO 49

tina!mente possuído pelo povo. Essa espécie de príncipe tos de cima para baixo. Urna vez que 0 povo tinha con­
(cujo conceito nunca se concretizou na história huma­ cordado com a lei fundamental do reino e dado ao rei e
na, exceto talvez até certo ponto, no caso de São Luís, aos seus descendentes o poder sflbre êle próprio, povo,
Luís IX de França) estaria separado do povo Quanto à despojara-se de todo o direito a governar-se a si mes­
condição existencial exigida pelo exercício do direito de mo, passando então o clinito natural ao govêrno do corpo
comandar. Não estaria, porém, separado do povo quanto político a residir Intogrnlmonte 0 do modo exclusivo na
à posse dêsse direito — muito ao contrário! — desde pessoa do rol. Tinha, então, o rei, um direito ao poder su­
que o possuía em modo vicarial e por participação. Seria, premo que lhe ern natural e iwiiendvel, inalienável a tal
portanto, responsável perante o povo. Seria um rei, mas ponto que os próprios reis destronados e seus descenden-
não um rei absoluto; um príncipe, mas não um príncipe '»• 1 guardavam èotr direito para sempre, de modo total-
soberano. n nfo independente e sem qualquer consideração para
com a vontade dos súditos.
IV E desde que êsse direito natural e inalienável ao po­
der supremo residia apenas na pessoa do rei — tendo em
Que significa a Soberania. O Deus Mortal de Hobbes vista o corpo político, mas de modo independente dêsse
corpo — o poder do rei cra supremo, não apenas corno o
mais alto poder existente na parte mais alta do corpo po­
O conceito de Soberania tomou forma definida no lítico, mas como um poder monádico e supremo existin­
momento em que a Monarquia absoluta começou a surgir do acima do corpo político e dêle separado. O rei reinava
na Europa. Nenhuma noção correspondente havia sido assim sôbre os seus súditos de cima e cuidava do seu bem
usada na Idade Média com relação à autoridade política. comum de cima. Era uma perfeita imagem política de
Santo Tomás se ocupou com o Príncipe, não com o Sobe­ Deus (um privilégio dos reis que, com o correr dos tem­
rano. Nos tempos feudais, o rei era apenas o Suserano pos, se tornou de certo modo prejudicial a Deus). E tôda
dos Suseranos, cada um dos quais possuía 03 seus pró­ a restrição a essa independência supereminente e a êsse
prios direitos e poderes. Os juristas dos reis medievais poder supremo do rei só poderia vir de uma concessão
apenas de modo muito remoto prepararam o caminho livre e benigna do próprio rei (embora frequentemente
para a noção moderna de Soberania. Só depois da época arrancada de fato sob pressão) a esta ou aquela parte
de Jean Bodin é que essa noção impregnou os juristas da de todo o populacho cá de baixo.
idade barroca. Tal foi a noção cie soberania e 0 objetivo em vista
Mesmo deixando de lado a teoria do direito divino do qual se forjou a palavra Soberania. 81 Não podemos
dos reis,3Ü que iria florescer nos tempos de Luís XIV,
a idéia era de que 0 rei como uma pessoa possuía um
* Quero dizer no vocabulário da teoria política. A palavra
direito natural e inalienável para governar os seus súdi- -sobcrnno“ (do Baixo Latim superamis, ; Ex optiniatum ordine,
princeps”) foi empregada, há muito, na linguagem corrento, sig-
30 Isto é, o poder absoluto diretamente conferido ao rei por iiificando todo alter funcionário dotado de autoridade superior,
Deus, e não indiretamenle através da transferência que o povo por exemplo, “Juiz da COrte". Du Cange (vide Su-mmus) cita um
lhe faz do "poder absoluto da Comunidado". «dito do liei Carlo3 V de França, em 1367, que diz: “Voulons et
ordoiiiions que se. . le Bailli ou autre leur Souverain..."
50 JAGQTTE8 MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 51

empregar o conceito de Soberania, sem evocar mesmo tante e duradoura, a saber, um Podei Comum para man­
inconscientemente essa conotação original. tê-los submissos e dirigir suas ações para o Bem Comum.
•»* “A única maneira de erigir êsse Poder Comum, ca­
paz de defendê-los da invasão dos estrangeiros e dos ma­
Qual é, então, o sentido próprio e genuíno da noção les que se laçam uns aos outros e, com isso, garãpti-los
de Soberania? de tal forma que, por sua própria indústria e pelos fru­
Soberania significa duas coisas: tos da Terra, possam ni.mter-se e viver a contento, — d
Primeiro, um direito à independência suprema e ao que cl< s cnii firam todo o poder e a. força que possuam a
supremo poder, que é um direito natural e inalienável. viu só Romeni ou n unia. Assembléia de homens; que pos­
Segundo, um direito a uma independência e a um sam mdii.rir todas as suas Vontades, por pluralidade de
poder que, em sua própria esfera, são supremos de modo m> ‘cs, a u.ma só Vontade, o que siqnifica dizer que desig­
absoluto ou transcendente, não de modo comparativo ou nam um Homem. nu uma Assembléia de komens para re­
como a parte superior do Lodo. Em outros têrmos. é de presentar-lhes a própria pessoa; e que cada cidadão se
modo separado do todo governado pelo Soberano que a reconheça como autor do que quer que essa pessoa fizer
independência do Soberano é suprema, em relação a èsse ou determinar que se faça em tudo aquilo que disser res­
todo e ao seu poder sôbro êle. Sua independência e seu peito à Paz e à Segurança Comuns. Cada um, portanto,
poder não são apenas supremos em relação a qualquer deve submeter sua Vontade, à Vontade e. ao Jidyamento
outra parte do todo político, como estando no ápice ou dessa pessoa. Isto é mais do que Consentimento ou Con­
na parte mais alta dêsse todo: são supremos de modo cordância: é uma Unidade real de todos êles em uma só
absoluto, pelo fato de se colocarem acima do todo em e mesma Pessoa, feita por contrato) de cada homem com
questão. cada homem, de tal maneira que possa parecer que cada
A Soberania é uma. propriedade de caráter absoluto homem diz a cada homem: “eu autorizo e cedo o meu Di­
e indivisível, de que não se pode participar. NTio admite reito de governar-me, em favor dêsse Homem ou dessa
tampouco graus de diferenciação, puis pertence ao Sobe­ Assembléia de homens, sob a condição de que desistas do
rano. de modo independente do todo político, como um teu Direito em favor dêle e, igualmente, autorizes todas
direito que lhe é próprio. as suas Ações da mesma maneira.” Isso feito, a Multidão
Essa é a autêntica Soberania, aquela Soberania que assim unificada em uma só Pessoa denomina-se uma
os reis absolutos acreditavam possuir e cuja noção trans­ Comunidade (Common-Wealtk); em latim, Civitas. É
mitiram aos Estados absolutos. A significação de tal con­ essa a Geração do grande Leviatã, ou antes (para falar
ceito foi posta em foco pelo Estado Hegeliano e, muito com mais reverência) dêsse Deus Mortal, ao qual deve­
antes de Hegel, pelo Deus Mortal de Hobbes. mos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Em vir­
Leiamos de novo, neste ponto, a página inesquecível tude dessa Autorização, que lhe é dada por cada membro
de Hobbes. “Ao passo que a concordância das criaturas particular da Comunidade, êle dispõe do uso de tanto
irracionais é natural”, diz êle, “a dos homens se realiza Poder e de tanta Fârça a cie confepúlos que, pelo terror,
apenas por meio de um Contrato que é artificial. Por isso, é capaz de formar as vontades de todos êles, de obter a
não é de admirar que alguma coisa a mais seja exigida Paz interna e o auxílio mútuo contra os seus inimigos ex­
(além do Contrato) para tornar sua Concordância cons­ ternos. E néle consiste a Essência da Comunidade, a qual
62 JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E 0 ESTADO 53

(para defini-la) é uma Pessoa, de cujos Atos uma grande tado pelos órgãos do govêrno mediante os quais o todo se
Multidão, por Contrato natural de todos os seus membros governa a si mesmo.
entre si, se tornou Autora, na pessoa do cada um de seus A plena autonomia externa do corpo político signi­
membros, a fim de que aquela Pessoa suprema possa usar fica que êle goza de uma independência comparativa­
a fôrça e dispor dos meios de lodos êles, do modo que jul­ mente suprema em relação comunidade internacional,
gar conveniente, para sua Paz e Defesa Comum. isto é, uma independência que a comunidade internacio­
“A’ aquêle que encarna essa Pessoa ê chamado So­ nal — enquanto permanece puramente moral c não existe
berano, e dele se diz que tem poder soberano, sendo como sociedade política, não possuindo, portanto, uma
todos os demais seus SÚDITOS.” 32 independência política própria — não tem o direito nem
o poder de diminuir forçadamente em relação a si mes­
ma. Em conseqüência disso, cada corpo político, enquan­
V to não faz parte de uma sociedade política maior e supe­
rior, não encontra qualquer poder superior na terra ao
Nem o Corpo Político nem o Estado são soberanos qual se veja forçado a obedecer. A plena autonomia ex­
terna do corpo político significa, igualmente, que pode
exercer externnmente todo poder ao travar guerra com
Agora, qual é na realidade a situação, primeiramen­
outro corpo político.
te, em relação ao corpo político, e em seguida, com rela­
O direito do corpo político a essa autonomia plena
ção ao Estado?
deriva de sua natureza como sociedade perfeita e auto-
O corpo político tem direito à plena autonomia. Em -suficiente. Observemos de passagem que os atuais cor­
primeiro lugar, para realizar a sua autonomia interna, ou pos políticos estão perdendo de fato essa natureza em
seja, com respeito a si próprio: e, em segundo lugar, para proporção cada vez maior, de modo que conservam êsse
realizar a autonomia externa, isto é, com respeito aos direito à plena autonomia unicamente como um rema­
outros corpos políticos. A plena autonomia interna do nescente e em virtude de ainda não estarem suficiente­
corpo político significa que êle se governa a si mesmo mente integrados em uma sociedade política mais ampla,
com uma independência comparativamente suprema, isto realmente perfeita e bastando-se a si mesma. De qual­
é, maior do que a qualquer de suas partes. Portanto, ne­ quer modo, quando um corpo político decide participar
nhuma destas poderá, usurpando o govêrno, substituir-se de uma sociedade política mais vasta, ou seja, de uma
ao todo e infringir a sua liberdade de ação. A plena auto­ sociedade política federal, desiste, pelo mesmo ato, do
nomia interna do corpo político significa, também, que se seu direito à plena autonomia, embora conserve, de fato e
governa a si mesmo por meio de um poder comparativa­ por direito, uma autonomia limitada, muito mais limi­
mente supremo, isto é, maior do que o de qualquer de tada, é óbvio, como autonomia externa do que como auto­
suas partes. Por conseguinte, nenhuma destas poderá, nomia interna.
substituindo-se ao todo, infringir o supremo podei* desfru- Disse eu que o direito do corpo político à plena auto­
nomia, que acaba de ser analisado, é um direito natural
Ltviatkan, ed. R. A. Waller (Cainbriclge: The University ■ mesmo inalienável. Quero dizer com isso que ninguém
Press, 1904), Parte TI, cap. 17.
[iode privar pela fôrça o corpo político dèsse direito. Mas
JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E O ESTA no 55

nân quero dizer que a plena independência em questão co sujeitas às suas lei e administração e só possui um di­
.se.ia inalienável e que o corpo político não possa, livre­ reito a ês.-e poder e a esta independência relativamente
mente, desistir dêsse direito, quando reconhece que não supremos porque os recebe do corpo político, em virtude
é mais uma sociedade perfeita e auto-suficiente, consen­ da constituição ou da estrutura básica que o corpo polí­
tindo então em fazer parte de uma sociedade política de tico determinou para si próprio. E o exercício dêsse direi­
âmbito mais extenso. Por conseguinte, a plena autono­ to pelo Estado permanece subordinado à fiscalização do
mia do corpo político implica em possuir o primeiro ele­ corpo político.
mento inerente à genuína Soberania, a sabor, um direito Além disso, em relação à esfera de atividade externa,
natural e, em certo sentido, irudimóvel, à suprema inde­ só como representante do corpo político e sob sim fisca­
pendência e ao poder supremo. Não inclui, entretanto, o lização é que o Estado desfruta — em relação à comuni­
segundo elemento, pois é claro que o corpo político não dade iniorn-i Honal —■ um direito à suprema independên­
se governa separcutómente de si próprio e como que de cia, o qual (como vimos a respeito do corpo político) só
v,m plano acima cie si mesmo. Por outras palavras, sua é supremo de modo comparativo e suscetível de renún­
independência e seu poder supremo são apenas comna- cia. Só assim possui êle o poder superior de guerrear
rativamente ou relativamente supremos, isto é, próprios outro Estado.
ao todo em questão com relação às suas partes e ainda Há, pois, dois elementos inerentes à verdadeira So­
com relação à comunidade desorganizada dos outros to­ berania. O primeiro é um direito natural e inalienável à
dos. Assim o segundo elemento, inerente à autêntica So­ suprema independência e ao poder supremo. O segundo
berania, a sabor, o caráter absoluta ou transcendentemen- é o caráter absoluta e transcendentemente supremo dessa
te supremo de independência e poder evidentemente não independência e dêsse poder, os quais, no caso de uma
concerne ao conceito propilam ente dito de plena autono­ genuína Soberania, são supremos separadanwn.tr e acima
mia do corpo político. E isso porque a independência e o do todo governado polo Soberano, de tal maneira que, na
poder que caracterizam a verdadeira Soberania são supre­ esfera internacional, tornam até a possibilidade de qual-
mos separadamente e acima do todo governado pelo So­ qqer sociedade política mais ampla e superior incompa­
berano e tornam, na esfera internacional, até a possibi­ tível em si mesma com a própria essência do Soberano.
lidade dc qualquer sociedade política superior, de maior Pois bem, nem o primeiro nem o segundo elemento, ine­
âmbito, incompatível em si mesma com a própria essên­ rentes a uma genuína Soberania, podem ser, em qual­
cia do Soberano. quer hipótese, atribuídos ao Estado. O Estado não é nem
jamais foi autênticamente soberano.
***
Consideremos agora o Estado. O Estado é uma parte VI
e um órgão instrumental do corpo político. Por conse­
guinte, não possui, nem uma independência suprema em O Povo também não é soberano. O Estado soberana
relação ao todo ou um poder supremo sôbre o todo, nem de. Rousseau
um direito próprio a essa independência suprema e a Resumindo, podemos dizer, então, que o conceito de
esse supremo poder. Possui apenas poder e independên­ Soberania, tomado em seu sentido próprio e genuíno, não
cia suprema em relação às outras partes do corpo políti-
66 JAGQUE8 MARITAIS O HOMEM B O ESTADO 57

no aplica ao cprpo político, senão no que diz respeito ao vamos no capítulo anterior, *3 seria um simples contra-
primeiro dos dois elementos que a sua natureza impli­ -senso conceber o povo como se governando a si mesmo,
ca. Não pode tampouco atribuir-se, de modo algum, ao separado de si mesmo e como que de um plano superior
Estado. É, sem dúvida, permitido aplicar o têrmo So­ a si mesmo.
berania em sentido impróprio, significando, apenas, ou o
direito natural do corpo político à plena autonomia, ou
♦**
o direito, que o Estado recebe do corpo político, à máxi­ É, no entanto, tal disparate que constitui o próprio
ma independência e ao máximo poder- em relação às outras núcleo do Contrato Social de Jean-Jacques Rousse.au. O
partes e aos outros órgãos de autoridade da sociedade po­ mito da vontade geral (Volonté Générale'), — que não
lítica, ou então relativamente às relações internacionais significa absolutamente uma simple3 vontade da maioria,
entre Estados. Assim procedendo, todavia, corre-se o risco mas uma Vontade superior e indivisível, emanando do
de se deixar envolver na pior das confusões, visto como a povo como uma unidade solitária e a qual “sempre tem
palavra Soberania implica sempre, de modo obscuro, o razão”, M — êsse mito é apenas um meio de transferir
seu significado genuíno e original. Corremos assim o pe­ para o povo aquele poder separado e transcendente que
rigo de esquecer que nenhuma instituição humana tem, pertencia ao rei absoluto, poder êsse que permanece de
em virtude de sua própria natureza, o direito de governar tal modo separado o transcendente que o povo, pelo exer­
os homens. Qualquer direito ao poder, na sociedade polí­ cício místico da Vontade Geral, tornando-se um único
tica, possui-o um homem ou uma instituição humana na Soberano, passaria a possuir um poder separado, abso­
medida em que um ou outra representam, no corpo polí­ luto e transcendente, um poder superior atuando sôbre
tico, uma parte a serviço do bem comum: — uma parte si mesmo e sôbre a multidão de indivíduos que o compõe.
que recebeu êsse direito, dentro de certos e determinados Como Rousseau escreveu: "O pacto social dá ao corpo
limites, do povo no exercício de seu direito fundamental político um poder absoluto sôbre todos os seus membros
de se governar a si mesmo. e é êsse mesmo poder que, dirigido por uma vontade ge­
No que tange finalmente ao povo, o segundo elemen­ ral, tem o nome de, Soberania.” 35 “A soberania, sendo
to inerente à verdadeira Soberania — a saber, o caráter apenas o exercício da vontade geral, não pode jamais se,r
absoluta e transeendenteniente supremo da independência alienada, e o soberano, que não é senão um ente coletivo,
e do poder, que, em tal Soberania, são supremos, se­ só pode ser representado por si próprio.” 80 A autoridade
paradamente e acima do todo governado pelo Soberano suprema nem se pode modificar nem se alienar: limitá-la
— esse segundo elemento inerente à verdadeira Sobera­
,3íJCl’, acima, cap. I, 7.
nia não está, é óbvio, presente no povo, como não o está 34
no corpo político. É, portanto, melhor dizer do povo, como Jean-Jacques Rousseau, Tke Social Cautract, trad. lienry
J. Tozer (Londres: Allen <fc Unwin, 1920), Livro II, caps. III e
corpo político que tem um direito natural e inalienável à IV, pág. 123; u Segue-se d? que precede que a vontade geral tem
autonomia, isto é, a uma independência e a um po­ sempre razão..,", e pAg. 126: “Porque tem sempre razão a von­
der comparativamente supremo em relação a qualquer tade geral e porque lodos invaríàvelmente desejam a prosperi­
outra parce do próprio todo, o qual é constituído pelo povo, dade de cada um... *
33 lbid„ Livro II, cap. IV, pég 125
c a fim de dar vida e atividade a êsse todo. Como obser­ 38 Jbiâ., cap. I, pág. 119.
fi8 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 59
’• desiruí-la.” aT “0 poder soberano não tem necessidade
gurança até agora, visto que sua vida já não é mais um
de r/arantia em relação aos seus súditos... 0 soberano,
dom da natureza, mas um presente condicional do Es­
polo simples fato de ser, é sempre tudo o que deve ser.” 38
tado.” 43 Finalmente, no que toca aos assuntos religiosos,
Assim Rousseau, que não era um democrata, 39 in­ insistiu êle em oue “o filósofo Hobbcs foi o único que
fundiu, nas novas democracias modernas, uma noção de viu claramente o mal e o seu remédio e que ousou sugerir
Soberania que lhes era antitética e que veio abrir cami­
a união, em uma única autoridade, das duas cabeças da
nho para o Estado totalitário. Em vez de libertar-se do águia, ou seja, reduzir tâdas as coisas à 'unidade política,
poder separado e transcendente dos reis absolutos, êle, sem a piiaJ. nem o estado w m o govêmo jamais serão
ao contrário, levou êsse poder ilegítimo a um absolutismo bem constituídos". 11 O Estado de Rousseau era apenas o
inaudito, a fim de presenteá-lo ao povo. Por isso, é neces­ Leviatã de Hobbcs, coroado com a Vontade Geral, em vez
sário que “cada cidadão seja absolutamente independen­ de o ser com a coroa daqueles que os Jacobinos, em deu
te dos outros e extrem amente dependente do Estado... vocabulário, cognominavam “os reis e os tiranos”.
Pois é apenas o poder do Estado que concede liberdade
a seus membros”. -’0 0 Legislador, êsse super-homem Voltemos, porém, a nosso assunto. Como resultado
descrito pelo Contrato Social, oferece-nos uma visão ante­ dos princípios formulados por Rousseau, e por ter a no­
cipada dos nossos modernos ditadores totalitários, cuja ção, há muito aceita, do poder e da independência trans­
“grande alma é o verdadeiro milagre que há de provar” cendentes e supremos do rei sido simplesmente transferi­
sua “missão”, 41 e os quais têm de “alterar a constitui­ da para o povo, fazendo assim com que tôdas as vonta­
ção do homem com o fim de fortalecê-la”.42 Não pensou des individuais perdessem a sua independência em bene­
Rousseau, além disso, que o Estado tem direito do. vida fício da Vbntcde Cerni, — considerou-se como um prin­
e morte sôbre o cidadão? “Quando o príncipe lhe disse: cípio evidente, ao tempo da Revolução Francesa, que a
é conveniente ao Estado que morras, êle deve morrer, pois Soberania do povo — absoluta, monádica, transcendente
foi somente sob essa condição que êle pôde viver com se- como tôda Soberania — excluía a possibilidade de pos­
suírem, no Estado, qualquer espécie de autonomia todos
M Ibld., Livro IIT, eap. XVI, púg. 190. os corpos ou organizações particulares de cidadãos. “É
sã ZlrtW., Livro I, cap. VII, pág. 113. necessário que nenhuma sociedade parcial exista no Es­
ao Zbí<L, Livro III, cap. IV, pág. 160: “Se existe «tna nação tado?’ 41
de deuses, deveria ser governada democraticamente. Um govôruo
tão perfeito não convém aos homens.” 43 !bid., cap. V. — “E quando o príncipe lhe disse: "Çonvéhi
40 Ibid., Livro II, cap. XII. Assim está no original: “A Lm
de que cada cidadão se mantenha em perfeita independência, em ao Estado que morras, deve êle morrer, porque só sob essa eo-n-
relação aos outros e em extrema (excessivo) dependência da ci­ diçãc é que viveu até então com segurança, e sua vida não é
dade.. . pois só a força do Estado ó que produz a liberdade de mais apenas um dom benéfico da natureza, mas um dom condi­
seus membros. (Car il n’y a que la force do l’état qui fasse a cional do Estado.”
14 rttói; Livro IV, cap. VIII. — “Dc todos 03 autores cris­
liberte de ses membres.) tãos, o filósofo Hobbcs foi o único que viu bem o mal e o re­
«> Ibid., Livro II, cap. VII: 'A grande alma do legislador
é o verdadeiro milagre que deve provar sua missão.’’ médio, que ousou propor a reunião das duas cabeças da águia,
12 ibid. — "Anuêle que ousa empreender a ixisLitudonaliza- assim como tudo reduzir à unidade política, sem a qual jamais
ção dc um pnvo deve sentir-se em condições... de alterar a cons­ será bem -'onstitnído qualquer Estado ou Governo.”
tituição do homem para fortalecê-la.” ■ifi Livro II, cap. III. — “Convém, pois,. .. que não haja
sociedade parcial alguma no fimbho do Estado.”
JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E 0 ESTADO 61
Do mesmo modo, essa transferência para o povo da direito. Uma lei não se torna justa pelo simples fato de
idéia mítica do direito inalienável do rei a nm supremo exprimir a vontade do povo. Uma lei injusta, ainda que
poder transcendente, no estágio primitivo e mítico, pura­ exprima a vontade do povo, não é lei.
mente rousseauniano da filosofia democrática (democrá­ Aqui, mais uma vez, a dialética viciada da Soberania
tica no sentido adulterado do têrmo), resultou cm fazer entrava em ação. Porque Jean Bodin tinha, na verdade,
dos deputados do povo meros instrumentos destituídos de submetido o soberano ã lei de Deus, mas a lógica interna
qualquer direito ao govêrno. 48 Ora, êsses deputados do do conceito era tornar o Soberano livre de qualquer li­
povo possuem — de modo vicarial e por participação mas mitação, mesmo divina. Pelo simples fato de existir, não
o possuem realmente — esse direito ao govêrno, com a era sempre o Soberano, como Ronsseau o afirmara, tudo
responsabilidade que encerra. Desde que foram coloca­ aquilo que devia ser? Na realidade, a Soberania exigia
dos no seu pôsto e nas suas funções, dentro de certos li­ que nenhuma decisão tomada pelo Deus Mortal ou ne­
mites determinados, pelo povo, no exercício do seu direito nhuma lei estabelecida pela Vontade Geral pudesse en­
de plena autonomia, foram êles, na mesma medida, inves­ contrar resistência por parte da consciência individual
tidos de autoridade, em virtude dessa própria escolha do em nome da justiça. A lei não precisava ser justa para
povo e, antes e acima de tudo, em virtude da ordem pela ter fôrça de lei. A Soberania tinha um direito a ser obe­
qual Deus mantém a natureza e as sociedades e somente decida, qualquer que fôsse o seu mandamento. A Sobera­
através da qual podem os homens, em consciência, obe­ nia estava acima da lei moral. O processo consumou-se
decer a outros homens. quando a Soberania da entidade abstrata do Estado se
*** substituiu à Soberania do rei e quando a Soberania do
Estado se confundiu com a Soberania da Nação e a Sobe­
É inútil acrescentar que a vontade do povo não é so­ rania do povo. A Soberania do Estado totalitário dispõe
berana no sentido espúrio de que tudo que agrade ao po­ absolutamente do bem e do mal, assim como da vida e da
vo deve ter fòrça de lei. O direito do povo ao govêrno de morte. É isso justamente o que serve ao interesse do So­
si mesmo procedo da Lei Natural. Por conseguinte, o pró­ berano: isto é, conforme o caso, o Povo, o Estado ou o
prio exercício désse seu direito está sujeito à Lei Natu­ Partido.
ral. Se a Lei Natural é suficientemente válida para dar
ao povo êsse direito básico, também é válida para impor
os seus preceitos não escritos ao exercício dêsse mesmo VII

•w “A soberania não pode ser representada, pelo mesmo mo­ Conclusões


tivo pelo qual nao pode ser alienada... Os deputados do povo
não são vent podem tfc?» seus representantes; são apenas seus co­ Parece-me clara a conclusão a ser tirada de tôdas as
missários; nada podem concluir em definitivo. TÔdu lei que não
foi ratificada pelo próprio povo 6 nula: não c uma loi. O povo in­ considerações precedentes em tôrao do conceito de Sobe­
glês pensa ser livre, engana-se redondamente; só o c durante as rania. Os importantes textos que citei de testemunhas
eleições dos membros do Parlamento: logo depois que êstea são tão insuspeitas como Jean Bodin, Thomas Ilobbes e Jean-
eleitos, ele é escravo; não é pada. Durante os poucos momentos -Jacques Rousseau, bastariam para nos esclarecer sôbre
de sua Uberdade, o uso que dela fax, bem merece que a perca.’
(Cím/rtffc Social, Livro III, cap. XV). o verdadeiro significado desse conceito. Para pensar de
modo coerente em matéria de filosofia política, temos
JACQÜBS MARITA1N O HOMEM E O ESTADO 63

de abandonar n conceito de Soberania, que coincide total­ Mas na esfera política, e com relação aos homens ou
mente com o conceito de absolutismo. ãs repartições encarregado de guiar os povos para o seu
Não se trata apenas de uma questão de palavras. destino terreno, não há uso algum válido para o conceito
Naturalmente somos livres de falar em “onipotência” de Soberania. E isso porque. em última análise, nenhum
enquanto pensamos em um poder de caráter limitado, e poder terreno é a imagem de Deus e o representante de
como somos livres de falar em “tambor” enquanto pen­ Deus. Deus é a própria fonte da autoridade na qual o
samos em flauta. O resultado, contudo, para a retidão do povo investe êsses homt ns ou essas repartições, mas nem
nosso pensamento e para a intercomunicação inteligível por isso são êl vigários de Deus. SÔo vigários do povo
seria muito duvidoso. O professor Quineey Wright obser­ e, nessa qualidade, não podem ser separados do povo por
va, com muita razão, que “o Estado ainda parece exis­ qunlqm r atributo essencial superior.
tir de modo diferente de outras repartições governamen­ A Soberania significa uma independência e um po­
tais subordinadas e de distintas associações, e uma ex­ der que são supremos de modo separado ou transcenden­
pressão faz-se necessária para defini-lo”. 47 Essa expres­ te, exercendo-se sôbre o corpo político como qzee de um
são não é. evidentemente, a de Soberania.
plano superior. Isso porque constituem um direito natu­
A Soberania é um curioso exemplo desses conceitos
que são certos, em determinada ordem de coisas e erra­ ral e inalienável pertencente a um todo (originàriamente
dos em outra. Trata-se de um conceito que perde o seu a pessoa do Príncipe soberano), que é superior ao todo
veneno quando transplantado da política para a metafí­ constituído pelo coroo político ou pelo povo, e que, por
sica. Na esfera espiritual, há um conceito válido de So­ conseguinte, lhes é imposto de cima para baixo ou os
berania. Deus, o Todo separado, é o Soberano do mundo absorve em si próprio. A qualidade assim definida não
criado. De acordo com a Fé Católica, o Papa, enquanto pertence ao Estado. Quando a êle atribuída, vicia o Es­
vigário de Cristo, é o Soberano da Igreja. Mesmo em sen­ tado. O conceito de Soberania implica três sentidos que
tido puramente moral, pode-se dizer que o homem sábio aqui devemos agora considerar.
e, antes e acima de tudo, o homem espiritual possuem Em primeiro lugar, o que se refere à Soberania ex­
uma espécie de soberania. Porque possuem uma indepen­ terna: o Estado soberano — cada Estado soberano indi­
dência suprema, proveniente de cima (do Espírito), em vidualmente considerado — está por direito acima da co­
relação ao mundo das paixões e ao mundo da lei, a cuja munidade das nações e possui uma independência abso­
força coercitiva não estão sujeitos, visto como a sua von­ luta em relação a essa comunidade. Como conseqüência
tade está, por si mesma e espontaneamente, em conso­ não se pode conceber, de modo consistente, qualquer lei
nância com a lei. 46 Éles estão, além disso, “separados a internacional a que os Estados estejam subordinados.
fim de comandar", isto é, para dizer a verdade. E o ho­ Além disso, essa independência absoluta é inalienável
mem espiritual “julga tõdas as coisas e, no entanto, não (irrenunciável'), pois que, cm virtude de seu próprio con­
é julgado por nenhum homem”.49 ceito, o Estado soberano é uma entidade monádica que
47 Quineey Wright, Mandutes under the Leafftut of Nalttms não pode deixar de ser soberana sem deixar de ser um
(Chi.ngo: Un versily of Chicago Prcss, 1930), wágs. !í81-283. Estado. Consequentemente, em tempo algum — enquanto
*s Cf. Tomáa de Aquino, 5uw, TheoL, i-ii, 96, 5. os Estudos agirem de modo coerente com a sua assim cha­
São Paulo, I, Cor., 2:15. mada Soberania — poderão êles desistir dessa indepen­
61 JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E O ESTADO 65

dência suprema para ingressarem em um corpo político tas", w Pois bem, o atributo ansirn definido é tudo quan­
mais amplo ou em uma sociedade universal. to possa ser desejado pelos Potentados, Déspotas e Im­
Em segundo lugar, no que se refere à Soberania in­ peradores deificados, dos tempos antigos, nas suas am­
terna : o Estado soberano possui um poder que — em vez bições mais divinas. Nos tempos modernos, essa quali­
de ser relativamenta mais alto, porque de fato alguma dade foi atribuída ao Estado sôbre a base fictícia de
coisa deve existir no ápice que possa decidir sem apela­ que o Estado é o povo personificado e de que o povo pode
ção — é um poder absolutamente supremo, como é ne­ fazer n que lho aprouver -cm prestar contas. No entanto,
cessário que o seja o poder de um todo monádico super im­ o processa real foi tuna transferência dêsse poder, isento
posto ao todo político ou absorvendo-o em si mesmo. de pre lação de coutas, do Soberano pessoal à suposta
E êsse poder absoluto do Estado soberano sôbre o corpo personalidade jurídica do Estado. Infundiu-se assim nes­
te último um princípio diretamente contrário ao princí­
político ou sôbre o povo ó tanto mais indiscutível quanto o
pio que faz do povo o juiz definitivo do procedimento de
Estado, segundo essa concepção, é confundido com o pró­
seus representantes oficiais no exercício de suas funções.
prio corpo político e se apresenta como a personificação Em conseqüência disso, os Estados democráticos enreda­
dos próprios membros do povo. Não obedecem êles a si
ram-se cm uma séria contradição. Para todos os efei­
mesmos obedecendo ao Estado? Em conseqüência dessa
tos, o Estado era soberano. E o resultado é que procurou
concepção, vemos a idéia pluralista, não apenas desconsi­
sempre com tôda a perseverança, de acôrdo com o prin­
derada, mas ainda rejeitada pela própria lógica neces­
cípio de isenção de contas, escapar à supervisão e ao con­
sária do princípio. Essa concepção produz o centralismo trole do povo.
e não o pluralismo. É sempre ao preço de uma patente
Na medida em que o Estado soberano tem êxito nes­
autocontradição que os Estados soberanos hão de aceitar,
se esforço, a isenção de contas das decisões supremas
com relutância, a menor parcela de autonomia em bene­
pelas quais se abriga o corpo político tem um sentido
fício de instituições ou associações particulares nascidas
claro: significa de fato que o poro é que vai pagar pelas
da liberdade. Pela própria lógica interna da noção de
decisões tomadas pelo Estado em nome da Soberania dêle
Soberania, êsses Estados soberanos tenderão ao totalita­
próprio, povo. .Segundo uma expressão popular em Fran­
rismo . ça, “ce sont toujours les mêmes qui se font tuer", são
Em terceiro lugar, o Estado soberano possui um po­ sempre os mesmos que se deixam matar. As desgraças
der supremo que é exercido sem prestação de contas. Co­ do povo é que pagam as contas das pessoas ou institui­
mo poderia ser concebível essa noção de irresponsabili­ ções supremas, isentas de prestação de contas, tais como
dade do Soberano se não se referisse a qualquer coisa de sejam o Estado, os ministros, as comissões, os conselhos,
supremo, de modo separado e transcendente? Como obser­ os e.s( ados-maiores, os legisladores, os governadores, os
vou o Sr. Robert Lansing, “o poder de fazer tôdas as técnicos, os conselheiros — sem falar na inteligentsia, es-
coisas sem prestar contas" coincide com a Soberania de critorcs, teoristas, cientistas utópicos, conhecedores, pro­
Deus. Quanto à Soberania humana, “pode ser definida fessores e jornalistas.
como sendo o poder de estender a capacidade humana ao
ponto de fazer tôdas as coisas na terra sem prestar con- r,l) Robert Lansing, Notes on Sovorciffnty, pág. 3.
JACQUES MARITAIN

A inteligenisia não foi investida de qualquer man­


dato pelo povo: não é, portanto, responsável perante o
povo, a não ser moralmente. (Ensinar ou escrever na
presunção de que o que assim transmitimos “não tem
conseqüências” só ó permitido aos loucos.) O Estado,
porém, não está isento de prestações de contas. O Estado,
tal qual as repartições e os funcionários, tem de prestar
contas ao povo. Não tem o povo o direito de superinten­ Capítulo III
der e fiscalizar o Estado? Como poderia o Estado sujei­
tar-se a qualquer supervisão se o poder que exerce fôsse O PROBLEMA DOS MEIOS
um poder isento de contas?
Mas, se o Estado deve prestar contas e está sujeito
a uma fiscalização, como pode ser soberano? Como pode 0 Problema dos Meios se apresenta, a meu ver, sob
submeter-se o conceito de Sobercmia a uma, supervisão um duplo aspecto; primeiramente, o problema do Fim e
e a uma prestação de contas? É claro que o Estado não dos Meios; em seguida, o problema do Povo e do Estado,
é soberano. isto é, dos meios pelos quais pode o povo superintender
Nem o é, como vimos, o povo, nem exerce um poder ou fiscalizar o Estado.
sem prestação de contas. Seu direito ao governo de si
mesmo e à plena autonomia faz com que não seja res­
ponsável perante qualquer tribunal ou qualquer reparti­ I
ção particular dentro do corpo político. Mas o poder que
õ povo exerce, seja por meio dos reflexos coletivos e pro­ Fim e meios
cessos extralegais, seja por meio dos trâmites compe­
tentes de uma sociedade verdadeiramente democrática, O problema do Fim e dos Meios é um problema fun­
não é, de modo algum, um poder isento de prestação de damental, podemos mesmo dizer o problema fundamen­
contas. Porque, afinal, é êle mesmo que tem que pagar tal da filosofia política. A despeito das dificuldades que
as contas. O povo está certo de que terá de pagar os seus encerra, sua solução é clara e indefectível no campo fi­
erros com o seu próprio suor e o seu próprio sangue . losófico. No entanto, a fim de ser aplicada no terreno
Os dois conceitos de Soberania e de Absolutismo
prático, tal solução, reivindicada pela verdade, exige, por
foram forjados na mesma bigorna. Devem ser rejeitados sua vez, do homem uma espécie de heroísmo e o leva a
conjuntamente. debater-se em angústias e provações.
Qual é o principal fim e a tarefa mais essencial do
corpo político ou da sociedade política? Não é o de asse­
gurar a conveniência material de indivíduos isolados,
absorvidos cada qual no seu próprio bem-estar o na preo­
cupação de enriquecer. Nem é, tampouco, o de provocar
68 J4CQUES MA RITA IN 0 HOMEM E O ESTADO 69

o domínio industrial sobre a natureza ou o domínio po­ ao menos entre os povos nos quais se enraizou o Cristia­
lítico sôbre outros homens. nismo, uma efetiva — embora, sem dúvida, sempre im­
Ê, antes, o de melhorar as condições da própria perfeita — concretização dos princípios evangélicos na
vida humana ou de alcançar o bem comum da multidão, existência terrena c no comportamento social.
de ta! modo que cada pessoa concreta, não somente em E agora que dizer sôbre os meios? Não sabemos
uma. classe privilegiada, mas através de tôda a massa da nós, como um axioma universal e inviolável como um
população, possa, realmente, alcançar aquela medida de princípio primário indiscutível, que os meios devem ser
independência que é própria da vida civilizada e que é ga­ proporcionados e apropriados ao fim, visto como são co-
rantida simultâneamente pela segurança econômica do minhos para o fim, constituindo, por assim dizer, n pró­
trabalho e da propriedade, pelos direitos políticos, pelas prio fim em processo de elaboração? De modo que apli­
virtudes cívicas e pelo cultivo do espírito. car meios intrinsecamente maus para alcançar um fim
Significa isso que a tarefa política é cssencialmente intrinsecamente bom é simplesmente uma insensatez e um
uma tarefa de civilização e de cultura, para assegurar ao despautério. Sim, sabemos disso, mesmo sem o auxílio
homem a conquista de uma autêntica liberdade de expan­ dos notáveis escritos de Aldous Huxlcy. Sabemos tam­
são ou de autonomia,1 ou, como se exprime o profes­ bém que os homens, no seu comportamento prático, não
sor Nef, para “tomar a fé, a retidão, a sabedoria e a deixam, em regra, de ridicularizar esse axioma venerá­
beleza em fins da civilização”.1 2 Isto representa uma ta­ vel e óbvio, especialmenle no que tange à política. De­
refa de progresso em uma ordem que é essencialmente frontamo-nos, nesse ponto, com o problema da raciona­
humana ou moral, já que a moralidade de outra coisa lização da vida política.
se não ocupa a não ser com o verdadeiro bem humano. É muito difícil que o animal racional submeta a sua
Gostaria eu de acrescentar que uma tal tarefa exige própria vida à pauta da razão. É muito difícil em nossas
realizações históricas em tão larga escala e se defronta existências individuais e é quase insuperàvelmente difí­
com tais obstáculos por parte da natureza humana, que cil na existência do corpo político. No que se refere à
não pode lògicamente ter êxito — uma vez que foi anun­ urganização racional da vida coletiva c política, ainda
ciada a Boa Nova do Evangelho — sem a influência do nos encontramos realmente em uma idade pré-histórica.
Cristianismo na vida política da humanidade e a pene­ Há dois modos opostos de compreender a racionali­
tração do espírito evangélico na própria substância do zação da vida política. O mais fácil — mas que termina
corpo político. Por conseqüência, temos o direito de decla­ mal — é o meio técnico ou “artístico".3 O mais exigente
rar que o fim do Corpo Político é, por natureza, qual­ — mais também o mais construtivo e progressista — é
quer coisa de substancialmente bom e ético, implicando, o meio moral. A racionalização técnica, por meios exter­
nos ao homem, versus a racionalização moral, por meios
1 Cf. nosso ensaio sôbre “A Conquista da Liberdade", em
Freedom its memmg, ed. Ituth Nnnda Anshen (New York: Har-
court, Braee & Co., 1940). 11 Quero dizer, em sentido aristolélico, pertencendo ao domí­
2 John U. Nof. Uniteã Stuteg and Civilizaiion (Chicago:
nio c h virtude intolectual da Arte, como distinta da Morali-
Univcrsity of Chicago Pro.ss, 1942). pág. 252. dada.
70 JACQÜES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 71

qtie são o próprio homem, sua liberdade e virtude — eis desprovido de inteligência, procurando, ao mesmo tempo,
o drama que se depara à história humana. ser forte. Voltaremos a êsse ponto daqui a pouco. Em se­
guida, que, de fato, o maquiavelismo não é eficiente.
Pois, o poder do mal é apenas, na realidade, o poder da
II corrupção, isto é, o desperdício e a dissipação da substân­
cia e da energia do Ser e do Bem Tal espécie de poder
A racionalização técnica da vida política se destrói a si mesmo ao destruir aquele bem que é o
seu próprio objeto. I>o modo que a dialética interior das
vitórias do mal as condena a serem efêmeras. Levemos
Na aurora da ciência e da história moderna, brin­ sempre em conta a dimensão do tempo, a própria dura­
dou-nos Maquiavel, cm seu Príncipe, com uma filosofia ção das fases históricas das nações e dos estados que
da mera racionalização técnica da política. Por outras excede consideravelmente a duração da vida humana.
palavras, êle transformou em sistema racional o modo Tendo cm vista a duração exigida para que a realidade
pelo qual os homens mais frequentemente se comportam política amadureça e frutifique, não digo que uma justa
de fato, submetendo êsse comportamento a uma simples política, mesmo em um futuro distante, haja sempre de
forma artística e a simples regras de arte. Tornou-se ter êxito, nem que o maquiavelismo, mesmo em um futu­
assim, a boa política, por definição, sinônimo de política ro distante, haja sempre de falhar. Porque, quando tra­
amoral mas bem sucedida. Ficou sendo a política a arte tamos de nações, estados e civilizações, permanecemos na
de conquistar, de conservar o podei’ por todos os meios ordem da natureza, onde a mortalidade é natural e onde
— mesmo por bons meios, quando a oportunidade se ofe­ a vida e a morte dependem tanto de causas físicas como
rece, o que não é freqüente — com a única condição de de cansas morais. O que afirmo é que a justiça traba­
que sirvam para alcançai- êxito. lha através de sua própria casualidade, para o bem-
Tentei, em outro lugar, discutir o problema do ma- -estar e o êxito futuro, tal qual a seiva sadia trabalha
quiavelisino. 1 Quero apenas relembrar aqui que a grande para o fruto perfeito. Assim é que o maquiavelismo tra­
fôrça do maquiavelismo provém das contínuas vitórias balha, através de sua própria casualidade, para a ruína
obtidas pelos meios perversos nas realizações políticas da e a bancarrota, como o veneno na seiva trabalha pela en­
humanidade. Provém, ainda, da idéia de que, se um prín­ fermidade e pela morte da árvore.
cipe ou uma nação respeitam a justiça, êle ou ela estão A ilusão característica do maquiavelismo é a ilusão
condenados à escravização por outros príncipes ou nações do êxito imediato. A duração da vida de um homem, ou,
que apenas confiam no poder, na violência, na perfídia, antes, a duração da atividade do príncipe ou do homem
na ambição desregrada. público, delimita o máximo espaço de tempo exigido por
É dupla a resposta. Primeiro, que é perfeitamente aquilo que chamo de êxito imediato. Ora, o êxito ime­
possível respeitar a justiça e não ser, simultaneamente, diato é o êxito de um homem, não é o êxito de um estado
ou de uma nação, de aefirdo com a duração adequada às
1 Cf. "O fim do Maquiavelismo”, Revicw of Política, janeiro vicissitudes de um estado ou às vicissitudes de uma na­
de 1942. ção. Quanto mais tremendo em intensidade parece o poder
72 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 73

do mal. tanto mais fracos em face da duração histórica III


serão os progressos internos e o vigor alcançado por um
estado que empregue tais meios. A racionalização moral da vida política,
Quanto mais perfeitas e mais implacáveis se tornam
as técnicas da opressão, da espionagem mútua e univer­
sal do trabalho forçado, das deportações e dos aniquila­ Existe uma outra espécie de racionalização da vida
mentos cm massa, peculiares aos estados totalitários, política: não é uma racionalização artística ou técnica,
tanto mais difícil se torna qualquer tentativa de mudar mas sim de ordem moral. Isto significa o reconhecimento
ou de vencer, de fora para dentro, êsses gigantescos autô­ dos fins essencialmente humanos da vida política e de
matos maquiavélicos. Êles, porém, não são detentores de suas fontes mais profundas: a justiça, a lei e a amizade
uma fôrça interior inesgotável. Sua monstruosa maqui­ mútua. Significa também um esforço incessante no senti­
naria de violência é um sinal de sua íntima fraqueza hu­ do de pôr as estruturas vivas e dinâmicas do corpo polí­
mana. A desintegração da liberdade e da consciência tico a serviço do bem comum, da dignidade da pessoa
humana, engendrando por toda a parte o mêdo e a humana e do sentimento de amoi- fraterno. Significa sub­
insegurança, é, por si mesmo, um processo de autodes­ meter às formas e normas da razão humana, que é o agui­
truição do corpo político. Por quanto tempo pode, então, lhão da liberdade do homem, a enorme massa de coisas
subsistir o poder de um Estado que se hipertrofia no que condicionam a vida social, tanto naturais como técni­
que diz respeito às fôrças externas ou técnicas e se cas, bem como a formidável estruturação dos interesses
atrofia cada vez mais no que diz respeito às forças in­ antagônicos do poder e da coação também inerentes a
ternas humanas e realmente vitais? É possível que, du­ essa vida social. Significa isso, ainda, basear a atividade
rante algumas gerações, possa levar avante a tarefa que política não em ambição infantil, em ciúmes, em egoísmo,
lhe foi cometida ou permitida. Duvido que possa criar em orgulho e perfídia, em pretensões de prestígio e do­
raízes na duração histórica das nações. minação transformados em regras sagradas do mais sé­
Sendo verdade que a política é qualquer coisa de in­ rio dos jogos, mas, ao contrário, numa consciência desen­
trinsecamente moral, a primeira condição da boa polí­ volvida das mais profundas necessidades da vida da hu­
tica é que seja insta. É verdade, ao mesmo tempo, que manidade, das verdadeiras exigências de paz e de amor e
a justiça e a virtude, em regra, não levam os homens a das energias morais e espirituais do homem. Êsse meio
terem êxito neste mundo, dentro dêste pequeno período de racionalizar a política foi-nos indicado por Aristóte­
que separa, o berço do túmulo, período durante o qual a. les e pelos grandes filósofos da antiguidade e, posterior­
palavra êxito tem para êles sentido. Essa antinomia, mente, pelos grandes pensadores medievais. Depois de
porém, se resolve, em relação às sociedades humanas, por­ uma fase racionalista, na qual alguns erros essenciais
que a obtenção do bem comum, com as condições de pros­ dela se apoderaram e na qual vastas ilusões alimentaram
peridade material que implica, não pode ser comprome­ autênticas esperanças humanas, êsse meio de racionali­
tida ou destruída pelo emprêgo da justiça, se levarmos zação da política resultou na concepção democrática, posta
em conta a duração histórica e se o efeito específico do em prática durante o último século.
emprêgo da justiça fôr considerado em si mesmo, inde­ Deve-se acentuar algo de particiilarmente significa­
pendente dos efeitos de outros fatores em jôgo. tivo a êsse respeito: a democracia é a única maneira de
71 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 75

..I' ançar uma racionalização moral da política. 5 A de- cessàriamente ser morais. A finalidade para a democra­
mocracia é uma organização racional das liberdades fun­ cia é tanto a Justiça como a Uberdade. O cmprêgo pela
dadas sobre a lei. democracia de meios fundamentalmente incompatíveis
Apreciemos agora, sob êsse ponto de vista, a impor­ com a justiça e a liberdade seria, na mesma medida, uma
tância decisiva da sobrevivência e do progresso da demo­ operação de autoaniquilamento.
cracia para a evolução e o destino terreno da humani­ Não nos deixemos enganar, além disso, pela sofís­
dade. Com a democracia enveredou a humanidade pelo tica maquiavélica. Dizem os maquiavélicos que a justiça
caminho da única racionalização autêntica — isto é, a e o respeito pelos valores morais significam fragilidade e
de tipo moral — da vida política. Em outros termos, al­ destruição, e que a fôrça só vale quando é levada a pa­
cançou ela a mais alta realização terrena daquilo de que drão supremo da existência política. Isto é falso. Não
o animal racional é capaz sôbre a terra. A democracia sòmente, como vimos, é o mal incapaz de ter êxito com o
carrega, num vaso frágil, a esperança terrena: diria eu, decorrer dos tempos, bem como a fôrça igualmente se
a esperança biológica cia humanidade. O vaso é, sem dú­ enfraquece quando não se apóia na justiça; — mas é fato
vida, frágil; estamos apenas, bem entendido, dando os que, aqui e agora, a fôrça pode existir juntamente com a
primeiros passos no processo do seu desenvolvimento de­ justiça, e o poder das nações que lutam pela liberdade
mocrático. Estamos, naturalmente, pagando caro, como pode mesmo ser maior do que o das nações que lutam
já o pagamos no passado por erros graves e falências pela escravização. A segunda guerra mundial foi disso
morais. A democracia pode ser desastrada, grosseira e uma prova. Entretanto, a própria fôrça de um corpo po­
defeituosa. Pode merecer o severo julgamento que, em lítico democrático supõe a justiça, porque usa energias
relação às suas realizações na política externa, lhe apli­ humanas como energias de homens livres e não escravos.
cou o jurista francês Emile Giraud, ex-conselheiro jurí­ Ainda mais: um esforço supremo de tôdas as energias da
dico da Liga das Nações, quando escreveu, sôbre o perío­ liberdade, no seu próprio reino espiritual, é indispensá­
do de 1919-1939, um livro intitulado A Nulidade da Polí­ vel para compensar o aumento temporário em fôrça fí­
tica Internacional das Gi andes Democracias.0 Entretanto, sica que é dado aos poderes maquiavélicos pela sua de­
é a democracia a única via através da qual podem passar terminação de utilizar qualquer espécie de meios. E êsse
as energias progressistas da história humana.
esforço supremo não pode surgir quando o corpo político
Da mesma maneira, podemos apreciar a responsabi­
ignora padrões e valores morais. Na realidade, a fôrça
lidade que pesa sôbre os ombros da democracia. Deve­
mos apreciar a importância única e dramática que têm só é supremamente poderosa quando não ela mas a jus­
o Fim e os Meios para a Democracia. No processo de ra­ tiça é o padrão máximo.
cionalização moral da vida política, os meios devem ne- Sabemos que a carne é fraca. Seria insensato exigir
a perfeição e a impecabilidade de todo aquêle que pro­
5 “O Homem, ei*» o fim da democracia. Seu raminho histó­
cura a justiça. Devemos perdoar as democracias pelas
rico c a raetonalisação do Efetado o do Poder/1 (P. Mirkine-Gue- suas fraquezas e deficiências acidentais. Se, entretanto,
tzeviteh, Lcs nn.u.ve.Ue^ tendanees du Droit Conutitiitioimcl, Paris,
Giard, 1931, pág. 46). seus esforços tendentes a arrancar a injustiça de suas
0 Emile Giraud, La Nv.llité dc Ia politiquc internationalc dev próprias vidas e a tornar os seus meios dignos do seus
grtrrules (1919-19S9) (Paris, Recuei! Sirey, 194R). fins fôssem decididamente insuficientes, só então pode-
JACQUES MÁRITAIN O HOMEM E O ESTADO 77

ria a história ser, talvez, menos compassiva com essas realização temporal. Dai uma diferença específica de
democracias do que seria de desejar. perspectiva entre ésses dois ramos da ética.
È possível que o curso presente e futuro da histó­ Assim é que muitos moldes de conduta do corpo polí­
ria humana ponha as democracias em face de provações tico, que os pessimistas do maquiavelismo põem a ser­
tremendas e de fatais alternativas de vida ou morte. viço do amoralismo político, têm na realidade um fundo
Talvez então sejam elas tentadas a perder a sua razão moral. Assim, por exemplo, o emprego pelo estado da
dc viver pelo amor da própria vida. Como o disse Berg- fôrça coercitiva, mesmo o emprêgo cia guerra em caso
son, o sentimento e a filosofia da democracia têm a sua de absoluta necessidade contra um agressor injusto. As­
raiz mais profunda no Evangelho. 7 Tentar reduzir a sim, o emprêgo da espionagem e de métodos que nunca
democracia à tecnocracia, privando-a da sua inspiração podei i levar a cor upçã i de qualquer pessoa, mas que
evangélica e de tôda fé nas realidades supramateriais, não podem deixar de se utilizarem de pessoas corruptas.
supramatemáticas e supra-sensíveis, seria o mesmo que Assim, o emprêgo do métodos policiais que jamais de­
privá-la do seu próprio sangue. A democracia só pode vem violar os direitos humanos do povo, mas que não
viver da inspiração evangélica. Só por virtude da inspi­ podem evitar a severidade para com êle. H Assim, uma
ração evangélica pode, a democracia sobrepujar as suas série de egocentrismos e dc egoísmos que seriam censu­
mais violentas provações e tentações. Só pela virtude ráveis em indivíduos, uma desconfiança e uma suspeita
da inspiração evangélica pode a democracia realizar, de permanente, uma inteligência não propriamente malé­
modo progressivo, sua importantíssima tarefa de racio­ vola, mas, entretanto, não ingênua em relação aos outros
nalização moral da vida política. Estados. Assim, a tolerância pela lei, de certos atos
Minha análise, entretanto, ficaria incompleta se eu maus, 8 o reconhecimento do princípio do mal menor e
não observasse que o hipermoralismo político não é me­ a ratificação do fato consumado (/aít accompli, ou o as­
lhor que o amoralismo e, em última instância, responde sim chamado “estatuto de limitações”), que permite a
aos próprios objetivos do cinismo político. A Política é retenção de ganhos mal obtidos há muito tempo, porque
um ramo da ética, mas um ramo especificamente dis­ novos laços humanos e novas relações vitais lhes infun­
tinto dos outros do mesmo tom. Pois a vida humana diram novos direitos. Tudo isso são coisas eticamente
tem dois fins últimos, sendo um subordinado ao outro: hem fundadas.
um fim último em uma determinada ordem, que é o hem O mêdo de nos contaminarmos ao entrar no con­
comum terreno ou o bonum vitm, eivilÍB, assim como um texto da história não é unia virtude, mas, sim, um meio
fim último absoluto, que é o bem comum transcendente do escapar à virtude. Pensam alguns, ao que parece, que
e eterno. A ética individual leva em conte o bem último pôr mãos nesse universo real c concreto de coisas e re­
subordinado, mas visa diretamente o bem último abso­ lações humanas, onde o pecado existe e circula, é con­
luto; ao passo que a ética política leva em conta o fim trair o pecado, como se o pecado fôsse contraído de fora
último absoluto, mas seu objetivo direto ê o fim último e não de dentro. Isto se chama purismo farisaico. Não
subordinado, isto é, o bem da natureza racional na sua é a doutrina da purificação dos meios.
s Cf. François Clerc, “Les moeurs de la police et )a moraJe",
7 Cf. Hcnri Bergson, Lcs deuto eourees d« la mvrale et de Nova ct Vet era (Fribourg, Suíça, outubro-dezembro de 1949).
la reliffion (Paris, Alcan, 1932), pág. '304. 9 Cf. Tomás de Aquino, Sum. ThcoL, I-IJ, 96, 2.
78 •TACQÜES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 79

Essa doutrina diz respeito, antes e acima de tudo, moral do assassínio consiste em matar um homem, es­
ao problema da hierarquia dos meios. Baseia-se no axio­ cudado em nossa própria e mera autoridade humana, ao
ma de que a ordem dos meios corresponde « ordem dos passo que naquele caso não estaríamos ugindo por nossa
fins. Exige que um fim digno do homem seja procurado própria autoridade, mas sim no cumprimento de uma
por meios dignos do homem. Insiste, antes e acima de função judiciária que é utribuída à própria humanidade
tudo, na vontade positiva dc empregar meios não ape­ em geral, de modo virtual mas não menos real, função
nas bons em geral, mas verdadeiramente proporcionados que deriva, para a humanidade, do próprio Criador de
ao seu fim, trazendo marcados os sinais indefectíveis do todos os seres. Embora na vida civilizada essa autori­
seu fim, — meios nos quais se incorporem essa própria dade judiciária só deva ser exercida por aqueles que fo­
justiça, consubstanciai à essência do bem comum, e essa ram investidos fie podêres de magistrados do Estado, no
própria santificação da vida secular consubstanciai à entanto, mesmo na vida civilizada em caso de extrema e
própria perfeição desta. 10 excepcional emergência, como no caso de legítima defesa
Uma última observação a fazer, relativa a um as­ a que há pouco aludi, pode-se apelar para a participação
pecto particularmente triste da vida humana coletiva. nesse poder de tôda e qualquer pessoa, pelo fato de
Quando o grupo social se encontra em processo de re­ defender o seu direito à vida contra um injusto agressor.
gressão ou perversão e o seu nível moral começa a de­
cair, os preceitos da moralidade não mudam essencial­
mente, mas a maneira pela qual devem ser aplicados é IV
que baixa de nível. Isso porque nossos atos morais são
atos concretos, cuja natureza ou especificação moral po­ l Os meios de fiscalização pelo povo e o
dem ser modificadas conforme a natureza da situação Estado democrático
que temos de enfrentar. Estou discutindo com um ho­
mem. Suponha-se que o mato. Isso constitui um assassí­ O segundo problema a ser discutido é o problema
nio. Suponha-se agora que êsse mesmo homem me ata­ do povo e do Estado, ou seja, dos meios de que pode ser­
que para me matar. Ê um caso de legítima defesa. Se eu vir-se o povo para superintender ou fiscalizar o Estado.
o matar, não será um assassínio. Suponha-se que vivemos Não deixa tal problema de ter certa conexão com o pri­
em um grupo social completamente bárbaro, em uma meiro. pois o povo está naturalmente interessado na jus­
tribo de bandidos, na qual não existem nem leis, nem tri­ tiça, pelo menos, enquanto a paixão o não cega, ao passo
bunais, nem ordem pública. Teríamos então de tomar a que o Estado, quando se torna absolutista ou despótico,
lei em nossas próprias mãos, isto é, seríamos colocados coloca-se a si mesmo acima da justiça.
na posição de executar, com justiça, qualquer ofensor e, Quisera fazer apenas algumas observações com res­
nesse caso, o ato físico de levar êsse homem à morte não peito a dois casos tipicamente distintos: o caso dc um
constituiria moralmente um assassínio. Já que a essência Estado democrático, no qual a liberdade, a lei e a digni­
dade da pessoa humana são princípios básicos e no qual
Vide nossos livros. Freedom ia the Modem World (New 3 a racionalização da vida política é procurada na perspec­
York. Charles Sçribncr’s Sons, 1936), Cap. III, e True Hwnani&m, tiva de valores morais e de normas; e o caso de um Es­
New York, Charles Scribr.er's Sons, 1938), págs. 240-48. tado totalitário, no qual o poder e uma certa tarefa a
80 JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E O ESTADO 81

• pi- empreendida pelo todo são as únicas coisas tomadas tringi-la em benefício do bem comum. Do fato, porém, e
em consideração, e bem assim a racionalização da vida cm face do poder inevitável mente crescente do Estado,
politica é procurada na perspectiva de valores e normas bem como doa empreendimentos de que os Estados tota­
meramente artísticas e técnicas. litários foram capazes no mundo, obedece o povo a um
Consideremos o caso de um Estado democrático. reflexo político sadio quando se apega à liberdade da
Nesse caso, a própria fiscalização do povo sobre o Es­ imprensa como a um bem sagrado e protetor.
tado, mesmo que èste procure escapai’ àquela, está ins­ Temos, em terceiro lugar, os grupos de opinião or­
crita nos princípios e no sistema constitucional do corpo ganizada o outros meios não institucionais através dos
político. O povo possui meios regulares e estatutários de quais certos setores do corpo político atuam sôbre as re­
exercer a sua localização. Os cidadãos escolhem periò- partições governamentais. Trata-se, enfim, de um pro­
dicnnicnte os seus representantes e, direta ou indireta­ cesso normal, mas representa um meio bastante duvidoso
mente, seus funcionários administrativos. Não somente de fiscalização do governo pelo povo. Existem ainda os
poderão remover ésses últimos nas próximas eleições se meios de agitação politica, de pressão ou de propaganda,
os desaprovarem, mas ainda, através das assembléias de empregados, em certos momentos críticos, por grupos de
seus representantes, podem controlar, superintender ou cidadãos que se consideram porta-vozes do povo, que eu
constranger a sua Administração duraute o tempo em chamaria de meios de carne e osso no campo da guer­
que esta exercer o poder. rilha política.
Não quero dizer que as assembléias devam governar Devo dizer, entretanto, que tôda essa primeira cate­
em lugar do poder ou da Administração. Mas para su­ goria de meios, ainda os essenciais, fornecidos pelo su­
perintender, verificar ou modificar a maneira pela qual frágio individual e pelo sistema representativo, não leva
a Administração governa, usam os cidadãos dos vários a uma participação real e ativa, mas apenas insuficien­
processos postos a seu dispor pela Constituição. Nas de­ te, do povo na vida política. Em seu livro Reveille for
mocracias européias o mais usual désses meios é o de Radicais, Saul Alinsky 11 cita uma frase escrita por
substituir uma administração por outra quando as dire­ Toequeville, em 1835, que tomo a liberdade de transcre­
trizes políticas da mesma já não satisfazem. É ou não ver aqui: “Não devemos esquecer”, dizia Toequeville,
um direito do enfermo, embora pouco hábil em medicina, “que é particularmente perigoso escravizar os homeus
de despedir o seu médico quando já não está satisfeito nos menores detalhes da vida. De mim me inclino a
com o tratamento? Com mais razão o povo — de cujo ■ que a liberdade é menos necessária nas grandes
direito básico de governar a si próprio participam aque­ coisas do que nas pequenas, se fora possível estar segu­
les que exercem a autoridade — êsse povo é dirigido pelo ro de umas som possuir as outras. A sujeição nos negó­
seu governo e, no entanto, o fiscaliza. É o povo o juiz cios de pequena monta aparece cada dia e é sentida, in­
último do bom exercício da autoridade. discriminadamente, por tôda a comunidade. Não leva os
Em segundo lugar possui o povo, enquanto livre, os homens à resistência, mas se atravessa em seu caminho
meios — embora não os utilize diretamente — da im­ a cada esquina, até que os força a renunciar ao exercício
prensa, do rádio e de outros meios de exprimir a opinião
pública. Por direito, a liberdade da imprensa não é em 11 Saul Alinsky, Rcveille for Radicais (Chicano, University
sl mesma uma liberdade ilimitada. Pode o Estado res- of Chicago Presa, 1946), págs. 68-69.
82 JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E O ESTADO 83
(lê sua vontade... Ê inútil convocar um povo, que se vital deveria indèfinidamente preceder do povo, dentro
tornou asBim tão dependente do poder central, que es­ do corpo político. For outras palavras, o programa do
colha de tempos a tempos os representantes qêsse poder. povo não deverá ser oferecido ao povo de cima para bai­
Esse raro e breve exercício de sua livre escolha, por mais xo, e por êle aceito, mas deveria ser obra do próprio
importante que seja, não evitará que percam os cidadãos, povo. 14 Significa isso que, na base de tudo, em um ní­
gradualmente, a faculdade de pensar, sentir e agir por vel muito mais profundo que o dos partidos políticos, o
si mesmos... Posso acrescentar que, em breve, serão in­ interesse e a iniciativa do povo em assuntos cívicos de­
capazes de exercer o grande e único privilégio que lhes verão c tnoçnr por um despertar da consciência comum
resta. As nações democráticas, que introduziram a liber­ nas menores comunidades locais e aí permanecer cons-
dade na sua constituição política ao mesmo tempo que tantemente em ação. Entramos aqui no terreno do que
aumentavam o despotismo de sua constituição adminis­ se podem chamar os meio3 de edificação orgânica. Essas
trativa, foram levadas a paradoxos estranhos. Para di­ atividades de crescimento espontâneo representam para
rigir êsses negócios mínimos nos quais só se exige bom o povo meios indiretos, mas eficazes, de superintender,
senso, é o povo considerado como incapaz da tarefa. Mas, de fiscalizar o Estado democrático, não somente por te­
quando se trata de deliberar sobre o destino do govêrno rem uma repercussão normal no comportamento dos par-
de seus país, investe-se então o povo de imensos poderes. tidus políticos, mas ainda por manterem, depois de cria­
Os cidadãos passam a ser, alternativamente, um joguete das no corpo político, correntes de alta potência e virtua­
do seu governante e do seu chefe. Passam a ser mais lidade poderosas que o Estado não pode desconhecer.
do que reis e menos do que homens. É, realmente, difí­ •**
cil conceber como homens, que desistiram inteiramente
do hábito de se governarem a si mesmos, podem ter êxito Há, finalmente, uma ordem de meios completamente
em fazer uma boa escolha daqueles pelos quais vão ser distinta, da qual a nossa civilização ocidental mal tem
governados. Ninguém pode jamais crer que um govêrno consciência e que oferece ao espírito humano um campo
liberal, sábio e enérgico venha a resultar dos sufrágios infinito de descobrimentos: — os meios espirituais sis­
de um povo subserviente”.12 tematicamente aplicados ao reino das coisas temporais,
Tiremos dai duas conclusões. A primeira c que, se­ de que foi um exemplo contundente o Satyagrdha de
gundo o principio pluralístico, tudo aquilo que, no corpo
político, puder ser feito por órgãos particulares ou socie­ do ac esUbelcec a justa noção do Estado e da sua supremacia.
dades de grau inferior ao Estado e nascidas da livre E a tendência restritiva exprime, então, apenas a idéia fun-
iniciativa do povo, deveria ser realizado por êsses órgãos todo em sua integral idade. Pois há mais perfeição em uni todo,
hierárquico^ qualquer função que pode ser assegurada pelo infe­
ou sociedades particulares. 13 A segunda é que a energia 1 * * * * * ri >r <fcw ser exercida por êle sob pena dc detrimento para o
lodo cm sua integralidade. Pois há mais perfeição em um todo,
1- Alexis do Tocqueville, Democracy in América (New York: cujas partes sejam tôdas elas cheias de vida e de iniciativa, do
Barnes & Cu., 18C2), págB. 341-42. que i in um todo cuja» parles sejam apenas instrumentos que
13 "Êssc indicado propósito de restringir as atribuições do Iru! .'imitam a iniciativa dos órgãos superiores da comunidade.”
Estado — que se torna inquietante e perigoso quando acompa­ (Yves Siraon, “Notes snr le fédéralisme prudhonien,” Esprit, abril,
nhado por qualquer espécie de hostilidade relativa à supremacia 1, 1907).
4 Cf Alinsky, op. cit., ehap, IV.
temporal do estado — toraa-so pura o simplesmente salutar quan-
K4 JACQUBE MAR1TA1N 0 HOMEM E O ESTADO 85
Gandhi. ,r! Gostaria de os denominar “meios de guerrilha Tais são os meios de combate espiritual. Esses meios,
espiritual”. os meios peculiares à coratfdn revislcnciu, correspon­
Como se sabe, Satyagraha significa o poder da Ver­ dem ao ato principal da virtude da fortaleza e são assim
dade. Gandhi afirmou constantemente o valor do “Po­ o privilégio do “mais forte dos fortes”, como disse Gan­
der do Amor”, ou do “Poder da Alma”, ou do “Poder dhi. Em livro escrito há muitos anoB, procurei explicar
da Verdade”, como instrumento ou meio de ação polí­ como òssl meios, embora sendo os mais difíceis, são por
tica e aociãl. "A paciência,” disse êle, “a paciência e o natunza <>;; mais podero ns. O própidp Gandhi estava
sofrimento voluntário, a reivindicação da verdade não convencido de que podem .cr aplicados ao Ocidente como
infligindo sofrimento ao nosso adversário mas a nós o foram ao Oriente. Sua própria obra de gênio foi a or­
mesmos”, representam “as armas do mais forte dos ganização sistemática da paciência e do sofrimento vo­
fortes.” luntário como rm método especial ou uma técnica da ati­
Em meu parecer, a. teoria e a técnica de Gandhi vidade política. Sigam êlcs os métodos de Gandhi ou qual­
deveriam ser relacionadas com a noção tomista e escla­ quer outro ainda por ser inventado, tudo leva a crer que
recida pela mesma, isto é, a noção de que o ato prin­ os homens, que dão importância aos valores espirituais,
cipal da virtude da fortaleza não é o ato de atacar mas serão levados, queiram ou não, a procederem de acordo
o de suportar, aguentar, sofrer com constância. Em con­ com essa orientação. Penso que êsses meios de combate
sequência disso, devemos reconhecer que há duas ordens espiritual seriam especialmenie apropriados a três espé­
diferentes de meios de combate tomados no sentido mais cies de luta. Primeiramente, a luta de uma nação domi­
lato da palavra, como existem duas espécies de fortaleza nada por outra a fim do obter a sua liberdade, como se
e de coragem: a coragem que ataca e a coragem que su­ deu com o próprio Gandhi. Em seguida, a luta do povo
porta; a fôrça de coação ou de agressão e a fôrça da para obter ou manter a fiscalização sobre o Estado, como
paciência; a fôrça que inflige um sofrimento nos outros no caso do problema que aqui estamos examinando. Fi­
e a fôrça que suporta o sofrimento que se lhe inflige. nalmente, a luta dos cristãos para transformarem a ci­
Duas diferentes séries de teclas se estendem ao longo de vilização, tornando-a de fato cristã e realmente inspirada
ambos os lados de nossa natureza humana, embora os no Evangelho. Em relação a êsse último ponto, quisera
sons que emitem se confundam constantemente. De um observar que, se os partidos inspirados nos princípios
lado, opondo-se ao mal por ataque e coação, via que, em cristãos, que apareceram na cena política depois da se­
última análise, pode levar ao derramamento, se fôr ne­ gunda Grande Guerra, tivessem tido um sentimento mais
cessário, do sangue alheio. Do outro lado, opondo-se ao profundo do que os homens deles esperavam, êsse aspec­
mal pelo sofrimento e pela resistência, via que, em úl­ to dos problemas dos meios, isto é, a descoberta de uma
tima análise, leva ao sacrifício da própria vida. A êsse nova técnica, afim à de Gandhi, teria sido a primeira
segundo teclado pertencem os meios de combate espi­ preocupação dc seus pensamentos.
ritual. Voltando ao ponto que estamos discutindo, temos, ao
0|i parece, boas razões de crer no seguinte: consideran-
35 Cf. R. R, Diwakar, Satyagraha: The Poiver of Truih, In-
troduetion by Clifford Manshardc (Hinsdnle, Illinois: Henry Ren- 1,1
ner Co., 1948). Du rcjrimc temperei et dc la liboíá (Paris, 1933) (Frce-
dum iri lhe Modem World).
86 JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E O ESTADO 87

do, de urri lado, o crescimento normal dos poderes do Es­ sorvidos pelo Estado, assim como todos os meios tempo­
tudo, a que tantas vêzes já nos referimos, e a parte que rais a que chamei de guerrilha política de carne e osso.
êle necessariamente desempenha nas realizações da jus­ Quanto aos meios espirituais da luta política, reduzir-se-
tiça social e considerando, por outro lado, a ilusão da -iam a nada pelo puro e simples aniquilamento daqueles
idéia absolutista que o Estado tem de si próprio e da sua que, de longe, pareçam capazes de os empregarem. De
suposta soberania, da qual mesmo nas democracias ain­ fato, os êxitos de Gandhi só foram possíveis naquele am­
da sc acha êle imbuído, idéia essa que tende a tornar o biente de relativa liberdade concedida aos nativos das
seu enorme mecanismo opressivo e inumano, os meios es­ colônias pela administração britânica, tanto em virtude
pirituais da luta política podem dotar o povo de uma ar­ de uma velha tradição libera! aristocrática como de uma
ma suprema para alcançar e manter o controle não só dos errônea crença cínica — como foi com razão observado 17
agentes oficiais do govêrno, mais ainda dêsse próprio me­ — em uma possível utilização de Gandhi. O destino a que
canismo gigantesco e anônimo. Embora não possam os é levado, por uma lógica interior, todo o Estado tota­
cidadãos conhecer e superintender suas complicadas en­ litário não é uma revolução que. acabe por dar a fisca­
grenagens legais e administrativas, podem pôr em con­ lização ao povo e sim uma última desintegração, por len­
fronto a máquina inteira com a fôrça humana pura, de ta corrupção, da consciência humana dentro dêle.
sua paciência em suportar o sofrimento na conquista de Tudo isso é exato, mas não resolve o problema dos
exigências justas e inquebrantáveis. meios.Torna-o apenas mais sério e mais trágico. A fim
de formulá-lo nos têrmog mais extremos e efetivos, qui­
sera, por um momento, considerar o caso mais perfeito
V de uma regressão política, a saber, o caso da vida in­
terna de um campo de concentração, ou, como foi cha­
0 problema dos meios numa, sociedade regressiva mado, do universo concentracionário. Pois P.uchenwald,
ou bárbara por exemplo, não era apenas um matadouro; era uma so­
ciedade: o pesadelo de uma sociedade, no qual a conquis­
Examinei o problema das armas do povo em relação ta do poder era um problema de vida ou morte, como o
ao Estado cm uma sociedade democrática. Deve-se dis­ demonstrou a luta implacável entre os verdes e os ver­
cutir agora o mesmo problema no caso de um Estado melhos, isto é, entre os prisioneiros dc direito comum e
totalitário. Ê inútil pensar em discussões dêsse estilo, cs prisioneiros de direito político.
uma vez instaurado êsse tipo de Estado! Por natureza Duas atitudes opostas —• a primeira duvidosa, a se­
o Estado totalitário suprime todo c qualquer meio que gunda simplesmente má — podem ser assumidas por um
tem o povo para fiscalizar ou superintender. O povo se homem forçado a viver mira universo concentracionário.
vê então destituído de todo e qualquer meio, legal ou Ou pode recusar-se a empregar-se a qualquer atividade
institucional, de realmente fiscalizar o Estado. O Estado “política”, porque os meios que terá de empregar — a es-
totalitário é um Estado paternalista. A meu ver, o povo piorr.gcm, a fraude, a traição, a cooperação com os opres-
é uma criança e não conhece qual é o seu próprio bem. 11
É dever do Estado tomá-lo feliz. Os meios, que chamei Cf. Georg Orwüll, 'Refleetions ou Gandhi", Partüfaii Re-
de meios de edificação orgânica, são completamente ab­ •u7ew, janeiro de 1949).
88 JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E O ESTADO 89

si res e os algozes, sem falar nas crueldades praticadas la triste lei, por mim há pouco indicada, segundo a qual
sôbre os companheiros de prisão, bem como o homicídio a aplicação de regras morais, imutáveis em si mesmas,
direto ou indireto — são incompatíveis com a lei moral. assume formas cada vez mais baixas a medida em que
Ou, em caso contrário, pode pôr de lado a lei moral e declina o ambiente social. Não se deve jamais abando­
admitir o emprego de quaisquer meios corruptos a fim nai’ a lei moral. Devemos agarrar-nos a ela lauto mais
de aniquilar a pior espécie de verdugos e salvar assim, quanto mais perverso ou criminoso se torna o meio so­
pelo menos, certo número de pessoas escolhidas ou de cial ou político. A natureza moral, porém, ou especifi­
preparar uma insurreição final. A primeira atitude supõe cação, isto é, o objeto moral dos mesmos atos físicos,
que nos defrontamos com uma “catástrofe dos meios po­ muda quando a situação a que se referem aqueles se mo­
líticos" e que só nos restam meios de atividade evangé­ difica de tal maneira que a relação interior da vontade
licos, práticas de autopurifieação, auto-sacrifício e amor com a ação praticada se modifica ao mesmo tempo de
fraterno. Não nego que tal posição seja justificável, pelo modo pronunciado. Em nossas sociedades civilizadas não
menos no que diz respeito às possibilidades ou à mais alta é um assassínio, é, antes, um ato meritório o de matar
vocação de certos indivíduos. Penso, entretanto, que, mes­ um militar a um soldado inimigo em uma guerra justa.
mo em um universo çonçèntraeionárió, não é possível ao Em sociedades francamente bárbaras, como o campo de
homem, em geral, desistir de tôda espécie de atividade concentração ou mesmo em condições todo particulares
política. como as de resistência clandestina em um pais ocupado,
A segunda atitude supõe que o fim justifica os meios muitas coisas que seriam, por sua natureza moral, obje­
e que Deus não existe. Pois, como escreveu o escritor tivamente fraudulentas, assassínios, perfídias na vida ci­
francês David Rousset, em um livro expressivo sôbre suas vilizada normal, deixam de ter a mesma definição e tor­
experiências em campos alemães de concentração, “não nam-se, quanto à sua natureza moral, coisas éticas ou
é possível ter princípios morais desempenhando o papel objetivamente permissíveis. Ainda há, como sempre, boas
de árbitro ao separar os meios bons dos meios maus, a e más ações. Nem todo e qualquer meio é admissível.
não ser que conservemos êsses princípios morais fora da Ainda é e será sempre verdadeiro que o fim não justifi­
relatividade histórica e social e com isso encontrando pa­ ca os meios. Os princípios morais continuam e sempre
ra êles um fundamento fora da espécie humana, isto é, continuarão a dividir os meios maus dos meios bons.
seja ou não do nosso agrado, em Deus”.16 Mais ainda, Deslocou-se, porém, a linha de demarcação. Na verdade,
aquêle que assume essa posição não pode, com o correr a consciência, aplicando os preceitos morais, é que se tor­
dos tempos, deixar de se corromper a si mesmo pelo fato na o árbitro real e não alguns princípios abstratos perdi­
de sua total adaptação a um meio corrupto. dos em um céu platônico ou em um dicionário de casuís­
Assim, se a primeira posição não é aconselhável co­ tica legal. Não existe código nenhum escrito para aju­
mo regra, e n segunda é essencialmente falsa, qual então dar o homem. Em uma noite escura, cheia de perigos,
a resposta ? A resposta nos obriga a encarar um proble­ a consciência pessoal de cada um, a razão e a virtude
ma oxtromamente difícil da vida moral, bem como aque- 18 moral é que têm de pronunciar, em cada caso particular,
o reto juízo moral. Na resistência européia durante a
18 Cl\ David Rousset, Lcs Jwrs de notre Mort (Pari3: Po­ segunda guerra mundial, muitos conventos que se tinham
vo is, 1U47), pág. 636. transformado em fábricas de documentos falsos, sabiam
JACQUES MARITAIN

por feitamente que tal manufatura era fisicamente, mas


não moralmente, fraudulenta. Em Buchenwald, não ape­
nas aqueles que professavam a doutrina dé que os fins
justificam os meios, mas ainda cristãos, como Eugênio
Kogon e seus amigos, empreenderam com certo êxito
uma ação clandestina para subtrair-se à disciplina feroz
dos seus carcereiros. 19 E em tal atividade clandestina
uma consciência reta, com a clara noção da lei moral, Capítulo IV
tinha de separar os atos admissíveis dos atos inadmissí­
veis em situações inauditas na vida civilizada. OS DIREITOS DO HOMEM
Concluamos que as mesmas considerações se aplicam
aos meios políticos a serem empregados numa sociedade
política francamente regressiva e bárbara;. Embora dis­ I
cutíveis, quanto a situações próprias da vida civilizada,
tais meios ficariam sempre sujeitos aos princípios da lei Homens mütuamenie opostos em suas concepções teóri­
moral e ao julgamento cia consciência iluminada pelas cas podem chegar a um acôrdo meramente prático com
virtudes morais. relação a uma lista de direitos humanos
Os moralistas são sempre pessoas infelizes. Quando
insistem na imutabilidade dos princípios morais, são cen­ Devido ao desenvolvimento histórico da humanidade,
surados por nos imporem exigências insuportáveis. Quan­ a crises crescentes no mundo moderno e ao progresso, em­
do explicam o modo pelo qual êsses princípios imutáveis bora precário, da consciência moral e da reflexão, vieram
devem ser postos em prática, levando em conta a diversi­ os homens a inteirar-se — muito mais perfeitamente do
dade das situações concretas, são censurados por torna­ que antes, mas ainda de modo incompleto — de certo
rem a moralidade relativa. Em ambos os casos, entretan­ número de verdades práticas relativas à sua vida em co­
to, estão apenas sustentando as exigências da razão na mum e sôbre as quais é possível chegar a um acôrdo.
orientação da vida. Taís verdades práticas, contudo, procedem, segundo a
A pior tentação que se depara à humanidade, nas concepção de cada um, de sistemas teóricos extremamen­
épocas de noite escura e de crise universal, é abandonar te diversos, ou mesmo fundamentalmente opostos, que de­
a Razão Moral. A razão não deve jamais abdicar. A ta­ pendem de suas bas.es ideológicas, de suas tradições filo­
refa da ética é uma tarefa humilde, mas também magnâ­ sóficas e religiosas, de seu preparo cultural e de suas
nima ao levar a aplicação mutável dos princípios morais experiências históricas. Como o demonstrou de modo
imutáveis até o próprio coração das agonias de um mun­ muito claro a Declaração Internacional de Direitos publi­
do desgraçado, enquanto nêle existir um lampejo de hu­ cada pelas Nações Unidas cm 1948, não é fácil, sem dú­
manidade . vida, mas é possível estabelecer uma formulação comum
dessas conclusões práticas ou, por outras palavras, dos
19 Cf. Eugéne Kogon, LSEnfer Organisé. traduzido do ale-
vários direitos possuídos pelo homem em sua experiên­
ftão (Par-: La J-uine Parque, 1947). cia pessoal e social. Seria, entretanto, completamente
92 JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E 0 ESTADO 93
fútil procurar uma justificação racional comum para essas pirituais e a escolas antagônicas de pensamento? Visto
conclusões práticas o para êsseS direitos. Se tal fizésse­ como o objetivo da UNESCO é um objetivo prático, po­
mos, correríamos o risco de impor um dogmatismo arbi­ der-se-á alcançar espontaneamente um aeôrdo entre os
trário ou deter-nos-iam diferenças irreconciliáveis. O seus membros, não na base de noções especulativas co­
problema que ora se levanta é o do acordo prático entre muns, mas na de noções práticas comuns; não na afir­
homens que, teoricamente, se opõem uns aos outros. mação de uma idêntica concepção do mundo, do homem
Depara-se-nos aqui o paradoxo de que as justifica­ e do conhecimento, mas na afirmação de um mesmo con­
ções racionais são a um. tempo indispens (ireis e impoten­ junto de convicções que dizem respeito ã ação. Isso c,
tes para criar um acordo entre os homens. São indis­ sem dúvida, muito pouco; é o derradeiro refúgio da con­
pensáveis porque cada um de nós acredita instintiva­ cordância intelectual entre os homens. É, entretanto, su­
mente na verdade e só deseja consentir naquilo que re­ ficiente para o empreendimento de uma grande tarefa.
conheceu como verdadeiro e racionalmente válido. E, Já Seria, muito se nos tornássemos conscientes dêsse corpo
no entanto, as justificações racionais são impotentes para comum de convicções práticas. Quisera aqui observar
estabelecer um aeôrdo entre os homens, porque diferem que a palavra ideologia e a. palavra princípio podem pre­
fundamentahnente e opõem-se mesmo umas às outras. tender-se eui dois sentidos muito diferentes. Acabei de
Haverá nisso alguma surpresa? Os problemas levantados dizer que, no presente estado de separação intelectual
peias justificações racionais são difíceis e as tradições entre os homens, não é possível urn aeôrdo sôbre uma
filosóficas, de que provieram justificações, há muito ideologia especulativa comum, nem sôbre princípios ex­
tempo que têm estado em antagonismo. plicativos comuns. Entretanto, quando se trata, pelo
Durante unia das reuniões da Comissão Nacional contrário, de uma ideologia básica prático e dos princí­
Francesa da UNESCO, na qual se discutiam os Direitos pios básicos de ação, implicitamente reconhecidos cm
do TTomem, espantou-se alguém de que proponentes de nossos dias — de uma maneira vital, se bem que não
ideologias violentamente opostas houvessem concordado formulada, pela consciência dos povos livres — aconte­
no levantamento de uma lista de direitos. Sim, replica­ ce que isso constitui, grosso modo, uma espécie de resí­
ram êles, concordamos na enumeração dêsses direitos, duo comum, uma espécie de lei comum não escrita, no
contanto que não nos perguntem por quê. A partir do ponto de convergência prática de ideologias teóricas
por quê, começa a divergência. e tradições espirituais extremamente diferentes. Para
O tema dos Direitos do Homem fornece-nos um compreendê-lo, basta distinguir precisamente as justifi­
exemplo eminente da situação que tentei descrever numa cações racionais, inseparáveis do dinamismo espiritual de
comunicação à Segunda Conferência Internacional da uma doutrina filosófica ou de uma fé religiosa, das con­
UNESCO, da qual tomo a liberdade de citar algumas dições práticas que, com justificativas próprias para ca­
passagens. “Como”, perguntava eu, “é concebível um da uma, representam, entretanto, para tôdas princípios
aeôrdo entre homens reunidos com o propósito de reali­ analógicos de ação comum. Estou plenamente convenci­
zar, em conjunto, uma tarefa infimamente relacionada do de que o meu modo de justificar a crença nos direitos
com o futuro do espírito, homens que vêm dos quatro do homem e no ideal de liberdade, de igualdade e de fra­
cantos da terra e pertencem não apenas a culturas e ci­ ternidade é o único que se baseia firmemente na verda­
vilizações diferentes, mas ainda a diferentes famílias es­ de. Isso não me impede de concordar, em relação a essas
94 JACQUES MARITA1N 0 HOMEM E O ESTADO 95

conclusões práticas, com aquêle3 que estão convencidos resultar de uma soma enorme de sondagens e purifica­
de que os seus próprios modos de as justificarem — in­ ções que exigiríam intuições mais alia , uma nova siste­
teiramente diversos do meu ou mesmo a èle opostos no matização e a crítica radical a certo número de errng e
seu dinamismo teórico — são também os únicos que têm idéiaa confusas. Tal síntese filosófica, mesmo que conse­
fundamento na verdade. Admitindo que ambos acreditem guisse exercer uma importante influência sôbre a cultu­
em uma Carta democrática, um cristão e um racionalis- ra, ficaria, por essas mesmas razões, como uma doutrina
ta apresentarão, entretanto, justificativas incompatíveis entre outras, aceita por certo número e rejeitada pelos
uma com a outra; a essas justificativas consagrarão demais, não podendo pretender, de fato, uma ascendên­
suas almas, suas inteligências e seu sangue de tal manei­ cia universal sôbre o espírito dos homens.
ra que. por causa das mesmas, poderão chegar até a luta. Será motivo de surpresa o vermos sistemas teóricos
Deus me livre de afirmar que não é importante saber em conflito convergindo, todavia, em suas conclusões prá­
qual dos dois tem razão! Trata-se de uma importância ticas? A história da filosofia moral nos apresenta, fre-
essencial. Êles permanecem, entretanto, de acôrdo quan­ qüentemente, êsse mesmo quadro. Tal fato prova apenas
to às afirmativas práticas dessa Carta e podem formu­ que os sistemas de filosofia moral são o ponto de refle­
lar, em conjunto, princípios comuns de ação.” * xão intelectual sôbre dados éticos que os precedem e re­
No plano das interpretações e das justificações ra­ gulam, revelando um tipo muito complicado de geologia
cionais, no plano especulativo ou teórico, a questão dos da consciência, no qual a obra natural da razão espon­
direitos do homem movimenta todo o sistema de certezas tânea, pré-científica e pré-filosófica é, a cada momento,
morais e metafísicas (ou antimetafísicas), às quais se condicionada pelas aquisições, pelas servidões, pela es­
subordina cada homem. Desde que não exista unidade trutura e pela evolução do grupo social. Existe, dessa
de fé ou unidade de filosofia nos espíritos, as interpreta­ maneira, uma espécie de desenvolvimento e, por assim
ções e as justificações estarão em conflito mútuo. dizer, de crescimento vegetativo do conhecimento moral
No domínio das afirmativas práticas, pelo contrário, e do senso moral, independente dos sistemas filosóficos,
é possível um acôrdo sobre uma declaração comum me­ embora êsses últimos, de modo secundário, reajam, por
diante uma adesão mais pragmática do que teórica e me­ sua vez, mediante uma ação recíproca, sôbre êsse proces­
diante um esforço coletivo de comparar, refundir e aper­ so espontâneo. Sucede, como resultado, que êsses vários
feiçoar os projetos, de modo a torná-los aceitáveis a to­ sistemas, embora disputando entre si sôbre o “por quê”,
dos, como pontos de convergência prática, independente­ prescrevem, nas suas conclusões práticas, regras de com­
mente das divergências relativas às perspectivas teóricas. portamento que aparecem no todo como pràticamenle
Assim, nada impede a obtenção de fórmulas que indica­ idênticas para qualquer período ou cultura. Assim, do
riam progressos notáveis no processo da unificação uni­ ponto de vista sociológico, o fator mais importante no
versal. Não é razoavelmente possível esperar mais que progresso moral da humanidade é o desenvolvimento em­
essa convergência prática de um conjunto de artigos ela­ pírico da consciência que ocorre independente dos siste­
borados em comum. Se desejamos uma reconciliação mas e fundando-se em outra base lógica. Tal consciência
teórica, uma verdadeira síntese filosófica, isto só poderia é, por vezes, facilitada pelos sistemas quando êstes a des­
pertam e a revelam a si mesma e é, outras vêzes, preju­
' Cidade do Móxico, 6 de novembro de 1947. dicada por êles quando êsses sistemas obscurecem as
96 JACQUES MARITAIN O HOMEM E 0 ESTADO 97
:i|ni cepções da razão espontânea, ou então quando com­ outras quaisquer doutrinas políticas ou jurídicas, podem
prometem uma aquisição autêntica da experiência mo­ propor vários argumentos ou diferentes teorias para com-
ral, ligando-a a algum êrro teórico ou a alguma falsa provar ou justificar o direito mdurnl, nms a rejeição des­
filosofia. sas teorias não pude si.' uificir n rejeição da própria lei
II n;.lurai, assim como a rejeição de alguma teoria ou filo­
sofia do direito não leva a i •jelção d* próprio direito.
O aspecto filosófico do problema se refere à fundamen- A vitória do positivismo jurídico no século XIX sôbre a
tação racional dos direitos humanos doutrina do direito natural não .-.Ignifica a morte do pró­
prio direito natural, mas apenas a vitória da escola his­
Do ponto de vista da inteligência, entretanto, o que tórica conservadora sôbre a escola racionalista revolucio­
é essencial é ter uma verdadeira justificação dos valores nária, determinada pelas condições históricas gerais da
morais e das normas morais. No que se refere aos Di­ primeira metade do século XIX. A melhor prova disto
reitos Humanos, o que mais importa a um filósofo é a é o fato de que, no fim daquele século, já se proclamava
questão dos seus fundamentos racionais. o assim chamado "renascimento do direito natural”.2 * * *
O fundamento filosófico dos Direitos do Homem é a A partir do século XVII, começou-se a pensar sôbre
Lei Natural. Lamento não podermos encontrar outra pa­ a Natureza com N grande e a Razão com R grande, como
lavra! Durante a era racionalista, juristas e filósofos de­ espécies de divindades abstratas entronizadas num céu
turparam de tal modo a noção de lei natural, — quer pa­ platônico. Significava isso, consequentemente, que a con­
ra fins conservadores, quer para fins revolucionários, — cordância de um ato humano com a razão queria dizer
apresentaram-na de maneira tão simplificada e tão arbi­ que tal ato procedia de um modêlo preexistente que a
trária que é difícil empregar, hoje em dia. o têrmo, sem Natureza infalível tinha imposto à Razão infalível para
despertar a desconfiança e a suspeita em muitos de nos­ que esta o prescrevesse, arquétipo êsse que devia ser,
sos contemporâneos. Êles deveriam, entretanto, lerabrar- assim, reconhecido de modo imutável e universal em to­
-se de que a história dos direitos do homem está ligada à dos os lugares da terra e em todos cs momentos do tem­
história da Lei Natural, 1 e que o descrédito em que, po. O próprio Pascal acreditava que a justiça entre os ho­
por certo tempo, o positivismo lançou a idéia da Lei Na­ mens deveria ter, de si mesma, aplicações tãq universais
tural, provocou inevitavelmente um descrédito semelhan­ como as proposições de Euclides. Sc a raça humana co­
te para a idéia dos direitos do homem. nhecesse a justiça, “o brilho da verdadeira equidade”,
Como escreveu, com razão, o Sr. Laserson: — "as disse Êle, “teria dominado tòdas as nações e os legisla­
doutrinas da lei natural não devem ser confundidas com dores não teriam tomado como modêlo, em vez dessa jus­
a própria lei natural. As doutrinas da lei natural, como tiça imutável, as fantasias e os caprichos dos Persas ou do
Germanos. Teríamos visto então esta justiça estabelecida
1 Cf. Heinrieh A. Bommen, Z>ie owige Wuderkehr des Na-
itt.rrec.his (Leipzig, Hegner, 1936); Irad. ingl., Tke natural law •! Max M. Laserson, “Positive and Natural Law and Their
(St. Louis: Hcrdcr. 1947). Vide tambéir Charles G. Haines, Tke COTrolation’', ir Inierpretaiions o/ Modem Legal Phèlnscphies:
Itevival of Natural Law Concepts (Cambridge, Harvard Univet- 1'j'Ksays m Ilovor of Roocor Povttd (New York, Oxford Universitv
»ity Press, 1930). Press, 1917).
98 JACQUES MARITAIbJ O HOMEM E O ESTADO 99

em todos os estados do mundo e através de tôdas as ida­ nica de Jean-Paul Richter: cada feira e cada guerra nos
des.”3 Não preciso acrescentar que essas palavras repre­ trazem um novo direito natural.” 4 Mais ainda, essa filo­
sentam uma concepção inteiramente abstrata e irreal da sofia dos direitos, depois de Rousseau e de Kart, acabou
justiça. Esperemos pouco mais de um século e ouviremos por tratar o indivíduo como um deus, tornando todos os
Condorcct promulgar este dogma que, à primeira vista, direitas que lhe eram atribuídos em direitos absolutos e
parece evidente e, no entanto, nada significa: “uma boa ilimitados de um deus.
lei deveria ser boa para todo mundo”, — ou seja, para o Quanto iv> próprio Deus, tinha êle sido, apenas, a
homem das cavernas como para o homem da máquina partir do século XVII, um como que fiador, anexado ar-
a vapor, para as tribos nômades corno para os povos tificialmoute a essa tríade absoluta e auto-subsistente:
agríeolae, — “uma boa lei deveria ser boa paru todo mun­ a Xfitiii zu, a Razão e u Lei Natural, u qual, mesmo se
do como uma proposição verdadeira é verdadeira para Deus não existisse, ainda velaria pelos homens. Final-
todo mundo”. rinnt.e a Vontade ou a Liberdade humana, elevadas tam­
Assim, a concepção dos Direitos do Ilomem elabo­ bém a uma auto-subsistência platônica nesse mundo em-
rada pelo século XVIII pressupunha, sem dúvida, a longa pír-o, inteligível, embora inatingível, que Kaut herdou
história do direito natural desde os tempos antigos e me­ de Leibniz, vinham de fato substituir a Deus como fonte
dievais. Suas origens imediatas, porém, estavam na sis­ suprema e origem da Lei Natural. A Lei Natural ia ser
tematização artificial e na recomposição raeionalista a deduzida da assim chamada autonomia da Vontade. É
que tinha sido essa idéia sujeita desde Grotius e, mais fato que existe uma autêntica noção de autonomia da
geralmente, desde o advento da razão geométrica. Em vontade, a de São Paulo, mas inielizmcnta o século XVIII
virtude de um êrro fatal, a lei natural, que reside no a tinha olvidado. Os direitos da pessoa humana iam en­
âmago da entidade das coisas, como nêle reside a própria tão ser baseados na pretensão de que o homem não está
essência, dessas mesmas coisas e que precede tôda e qual­ sujeito a lei alguma senão à de sua própria vontade e
quer formulação e nem mesmo c conhecida pela razão liberdade. “Uma pessoa”, escreveu Kant, “não está su­
humana em termos de conhecimento conceptual e racio­ jeita a quaisquer outras leis senão àquelas que prescreve
nal, — a lei naturela era assim concebida segundo o mol­ para si mesma, seja só, seja em união com outros ho­
de de um código escrito, aplicável a todos, do qual cacla mens.” n Por outras palavras, o homem deve apenas
lei justa devia ser a transcrição e que determinaria, a “obedecer a si mesmo”, como o disse Jean-Jacqucs Rous-
■priori e sob Lodos os seus aspectos, as normas do compor­ f.ntu, porque tôda medida ou tôda regra oriunda do mun­
tamento humano, através de ordenações supostamente do e da natureza (e, finalmente, sabedoria criadora) des­
prescritas pela Natureza e pela Razão, mas, na realidade, truiria, ao mesmo tempo, sua autonomia e sua dignidade
formuladas de modo arbitrário e artificial. “Corno Warn-
koenig mostrou, oito ou mais sistemas novos de direito suprema.
natural apareceram em cada feira de livros de Leipzig Essa filosofia não construiu nenhum alicerce sólido
desde 1780. Não havia, pois, exagero na observação irô- 8 para os direitos da pessoa humana, porque nada pode ser
1 Rommen, op. cii., pátf. 106.
8Penséea, II, Oeuvres *' Graneis éevivains de France” (Pa­ h bitroductwn to the MEtaphysics of Mòrals, IV, 24.
ris: Rochette, 1921), vol. XIII, n.° 294), 215.
100 JACQUES MAttlTAIN O HOMEM E O ESTADO 101

fundado sôbre a ilusão. Essa filosofia comprometeu e expressa infelizmente num vocabulário pouco claro,6
pulverizou esses direitos, pois levou os homens a conce- de modo que suas qualidades mais profundas foram logo
hê-los como direitos em si mesmos divinos e, por conse­ desconaideradus e omitidas. Podemos ainda reportar-nos
quência, infinitos, escapando a qualquer medida objetiva, a um passado mais antigo, até Santo Agostinho, os Padres
negando todo limite imposto às exigências do ego e, afi­ da Igreja e São Paulo. Lembremo-nos daquele dito de
nal, exprimindo a independência absoluta do sujeito e São Paulo: “quando os Gentios, que não possuem a Lei,
um assim chamado direito absoluto, — que se supõe atri­ praticam por natureza as coisas contidas na Lei, êsses
buído a tudo que pertença ao homem pelo simples fato de Gentios, não tendo a Lei, são uma lei para si mesmos... 7
que existe nêle, — a desenvolver as suas possibilidades Podemos mesmo ir alem, até Cícero, até os Estóicos, até
mais caras à custa dos outros seres. Quando os homens, os grandes moralistas da Antiguidade e os seus grandes
assim instruídos, esbarraram por todos os lados com o Poetas, particularmente Sófocles, Antígone — que tinha
impossível, passaram a crer na bancarrota dos direitos plena consciência de que, transgredindo a lei humana
da pessoa humana. Alguns se voltaram contra êsses di­ e sendo por ela aniquilada, estava obedecendo a um man­
reitos com uma fúria de escravocratas. Outros continuam damento melhor, às leis não escritas e ímMÍdvezs — é a
a invocá-los, mas vivem dominados, no fundo de suas eterna heroína da lei natural. Pois que, como ela o diz,
consciências, pela tentação do ceticismo, que é um dos essas leis não escritas não nasciam do capricho de hoje
mais alarmantes sintomas da crise de nossa civilização. ou de ontem, “mas vivem sempre e para sempre e ne­
nhum homem sabe de onde provêm.”8
111 6 Espcçjalmente porque o Comentário sôbre as Sentenças, no
que toca aos £> tecei los “primários” e “secundários” da Lei Na­
tural, não concorda com o vocabulário da Swmm Theotoffica
A Lei Natural (I-II, 94). O respeito de Santo Tomás pela fraseologia dos juris­
tas também causa confusões, especialmente quando se truta de
Ulpianp.
7 São Paulo, Rom. 2-14.
Procuremos restabelecer nossa fé nos Direitos do Ho­
mem sôbre a base de uma sã filosofia. Tal filosofia ver­ * "Nem eu considerei
dadeira dos direitos da pessoa humana se funda na idéia Seu decreto com força tão determinante
Que pudesse o homem mortal desdenhar
verdadeira de lei natural, considerada sob uma perspec­ O CÓdígò imutável e não escrito do Céu;
tiva ontológica que nos leva, através das estruturas e das nnu é de hoje nem de ontem,
exigências essenciais da natureza criada, à sabedoria do Ma» ví vo eternamente, tendo origem
Autor do Ser. Onde ninguém o sabe;
A idéia autêntica da lei natural é uma herança do Cujas sanções seria temeridade minha
Aos olhos do Céu desafiar,
pensamento greco-cristão. Não se reporta apenas a Gro- Por temer a vontade
tius, que, na realidade, começou a deformá-la, mas an­ De qualquer homem.”
tes dele, a Suárez e a Francisco Vitória e, antes deles Sófocles, Antígone, II, 452-60 (da tradução inglesa
ainda, a Santo Tomás de Aquino. Só êste incluiu a maté­ de George Young).
ria dentro de tuna doutrina totalmente consistente, mas
102 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 103

IV (de que uão partilho) das idéias eternas? O que quero


dizer é que cada ente tem : sua própria lei natural, assim
O Primeiro Elemento (ontológico) da Lei Natural como tem a sua própria essênr' Todo objeto produzido
pela indústria humana, como aquêle instrumento de cor­
Como não tenho aqui tempo de disetttir coisas in­ das a. que, l.ú ] '.;uco, me referi, tem a sua própria lei na­
sensatas (podemos sempre encontrar alguns filósofos tural, que a normalidade do seu f uncionamento, o pró-
muito inteligentes, sem falar no Sr. Bertrand Russel, para I rio modo segundo o qual, por motivo de sua construção
defendê-las brilhantemente), considero como admitido especifica, tem qm ser pôsto cm ação, por outras pala­
que acreditamos na existência de uma natureza humana vras, o mudo segundo o qual “deveria’' ser usado. Em
e que essa natureza humana é a mesma para todos os ho­
mens. Considero também como admitido que o homem é face de uni instrumento desconhecido, seja um saca-ró-
um ser dotado de inteligência e que, como tal. atua com a Ihas, um pião, uma máquina de calcular ou uma bom-
compreensão do que está fazendo e, portanto, com o po­ ba atómica, as crianças ou os homens de ciência, na
der de determinar por si mesmo as finalidades que tem ânsia de os empregarem, jamais duvidarão da existên­
em mira. Por outro lado, dotado de uma natureza ou de cia dessa lei interior típica.
uma estrutura ontológica que é um locim de necessidades Todo e qualquer objeto existente na natureza, uma
inteligíveis, possui o homem finalidades que correspon­ planta, um cachorro, um cavalo, têm a sua própria lei
dem necessariamente à sua constituição essencial e que natural, isto ê, a norma do seu funcionamento, o próprio
são as mesmas para todos, — como todos os pianos, por modo segundo o qual, por motivo de sua estrutura e das
exemplo, quaisquer que sejam os seus modelos particula­ suas finalidades específicas, deveria êle realizar a ple­
res e em qualquer lugar que se encontrem, têm por obje­ nitude de sua entidade em seu crescimento ou em seu
tivo a produção de certas sonoridades harmônicas. Se comportamento. Washington Carver, quando era criança
não produzem tais sons, devem ser afinados ou rejeita­ e curava flores enfermas no seu jardim, tinha um conhe­
dos como inúteis. Mas, já que o homem é dotado de inteli­ cimento obscuro, tanto por inteligência como por conatu-
gência e determina os seus próprios fins, compete-lho har­ ralidade, da lei vegetativa dessas flôres. Os criadores de
monizar-se com os fins necessàriamente exigidos por sua cavalo têm um conhecimento experimental, tanto por In­
natureza. Isto significa que existe, pela própria virtude teligência como por conatural?dade, da lei natural dos ca­
da natureza humana, uma ordem ou uma disposição que valos, uma lei natural segundo a qual o comportamento
a razão humana pode descobrir e segundo a qual deve de um cavalo faz dêle um bom cavalo ou um mau cavalo.
agir a vontade humana para pôr-se em consonância com Pois bem, os cavalos não dispõem de livre arbítrio; sua
os fins essenciais e necessários do ser humano. A lei não lei natural é apenas parte da imensa rêde de tendências e
escrita ou lei natural não é nada mais do que isso. normas essenciais implicadas no movimento do cosmos.
O exemplo que acabei de usar — tirado do mundo do O cavalo individual, que falha no exercício dessa lei eqíii-
artesanato humano — foi propositadamente vulgar e pro­ na, obedece apenas, à ordem universal da natureza da
vocante. Não é verdade, entretanto, que o próprio Platão qual dependem as deficiências de sua natureza indivi­
recorreu à idéia de qualquer obra de arte humana, à dual. Se os cavalos fossem livres, haveria um modo ético
idéia de cama, à idéia de mesa, para explanar sua teoria de se conformarem à lei natural específica dos cavalos.
104 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 105

Mas essa moralidade eqüina é um sonho porque os cava­ to da vida do César estava preliminarmente contido na
les não são livres. idéia de César. As situações humanar são algo de existen­
Quando, há pouco, disse que a lei natural de todos cial. Nem elas nem suas normas próprias estão contidas
os sêres existentes na natureza é o próprio modo segundo na essência do homem. Eu diria que cias, por vêzes, põem
o qual, por motivo de sua natureza e dos seus fins es­ em questão esta próptia essência. Tôda situação dada —
pecíficos, deveriam êles realizar, em seu comportamento, por exemplo, a de Caim cm face de Abel — implica uma
a plenitude da sua entidade, — essa própria palavra de­ relação com a essência do homem, e o assassínio possível
veria tinha apenas um sentido metafísico, como dizemos de um pelo outro é incompatível com os fins gerais, com
que um ólho bom ou normal deveria ser capaz de ler cer­ a estrutura dinâmica ma s íntima dessa essência racional.
tas letras em um quadro-negro a certa distância. Essa Ê rejeitada por ela. Daí a proibição do homicídio ser, ao
mesma palavra deveria só começa a ter sentido moral, mesmo tempo, a essência do homem fundada sóbre ou
isto é, a implicar uma obrigação moral, quando ultrapas­ exigida pela me ma. O preceito — não matarás — é um
samos o limiar do mundo dos agentes livres. A lei natu­ preceito da lei natural. Isso porque o fim primordial e
ral do homem é a lei moral, porque o homem lhe obedece mais geral da natureza humana é conservar o ente, — o
ou desobedece de modo livre e não necessário e ainda ente dêsse existente que é uma pessoa e um universo em
porque o comportamento humano pertence a uma ordem sí mesmo e ainda porque o homem, enquanto homem, tem
particular e privilegiada, quo é irredutível à ordem geral o direito de viver.
do cosmos e tende a um fim último, superior ao bem-co­ Suponhamos uma situação ou um caso completamen-
mum imanente do cosmos. Le novo, inaudito na história humana. Suponhamos, por
O que estou aqui acentuando é o primeiro elemento exemplo, que aquilo que agora chamamos genocídio fôsse
fundamental a ser reconhecido na lei natural, a saber, o tão novo como o seu nome o é. Segundo acabamos de ex­
elemento ontológico. Quero com isso dizer a normalidade plicar, esse comportamento possível se revelará à essên­
do funcionamento, que se baseia na essência dêsse ente: cia humana como incompatível com os fins gerais e à
o homem. A lei natural, em geral, como acabamos de ver. estrutura dinâmica mais íntima desta. Quer isso dizer
é a ferma ideal do desenvolvimento de um certo ente. que seria proibido, pela lei natural. A condenação do
Poderia comparar-se a uma equação algébrica, segundo genocídio pela Assembléia Geral das Nações Unidas9
a qual uma curva se desenvolve no espaço, embora, no sancionou a proibição dêsse crime pela lei natural, — o
caso do homem, a curva tenha de se conformar livremen­ que não significa que essa proibição fizesse parte da es­
te com a equação. Digamos então que, em seu aspecto on­ sência do homem como não sei que atributo metafísico
tológico, a lei natural é uma ordem ideal relacionada com eternamente nela inscrito —, nem que fôsse uma noção
as atividades humanas. É uma linha divisória entre o reconhecida desde as suas origens pela consciência hu­
adequado e o inadequado, o próprio e o impróprio, que mana .
depende da natureza ou da essência humana e das neces­ Resumindo, digamos que a lei natural é, a um tempo,
sidades -'mutáveis nela radicadas. Não quero dizer com algo de ontológico e ideal. É algo de ideal, porque funda­
isso que a própria norma de tôda e qualquer situação hu­ da na essência humana e cm sua estrutura imutável, bem
mana possível esteja contida na essência do homem, co­
mo Leibniz acreditava que todo e qualquer acontecimen­ ’ 11 <ie dezembro de IV48.
106 JACQUES MARJTAIN 0 HOMEM E O ESTADO 107
como nas necessidades inteligíveis que encerra. A lei na­ o mal. É êsse o preâmbulo e o princípio da lei natural.
tural é, além disso, ontológica, porque a essência humana Não é a própria lei. A lei natural ê o conjunto de coisas
ó uma realidade ontológica que não existe separadamen­ a fazer ou a não fazer, que daí derivam de modo neces­
te, mas sim cm cada ser humano, de modo que, pela mes­ sário. Que tôda espécie de êrro e de desvio é possível na
ma razão, a lei natural subsiste como uma ordem ideal determinação dessas c prova apenas que a nossa
na própria substância de todos os homens existentes. vista é fraca, nossa natureza imperfeita e que inúmeros
Em face dessa primeira consideração e tendo em vis­ acidentes podem corromper nossos julgamentos. Montai-
ta p elemento ontológico fundamental que a mesma im­ gne observava inaliciosamente que, entre certos povos, o
plica, a lei natural é coextensiva a todo o campo das nor­ incesto o roubo eram considerados atos virtuosos. Pas­
mas morais naturais, a todo o cãrnpo da moralidade na­ cal se escandalizava com isso. Nada disso prova qualquer
tural. Não apenas as normas primárias e fundamentais coisa contra a lei natural, do mesmo modo que um êrro
da ética natural, mas ainda os seus preceitos mais super­ em uma soma nada prova contra a aritmética, ou os
ficiais significam uma conformidade com a lei natural, erres de certos povos primitivos, para os quais as estré­
ou seja, com obrigações ou direitos naturais dos quais não ias eram buracos da tenda que cobria o mundo, nada
temos agora a menor idéia, mas de que os homens adqui­ provam contra a astronomia.
rirão consciência em um futuro distante. A lei natural é uma lei não escrita. O conhecimen­
Um anjo que conhecesse a essência humana, conso­ to que o homem, dela tem cresceu pouco a pouco, à medi­
ante seu modo angélico de conhecer, e com isso tôdas as da que se lhe desenvolvia a consciência moral. Essa últi­
situações existenciais possíveis do homem, conheceria a ma jazia, a princípio, em estado crepuscular. 10 Os antro­
lei natural na infinidade de sua extensão. Mas nós não a pólogos nos ensinaram entre que. espécie de estruturas de
conhecemos assim. Embora os teoristas do século XVIII vida tribal e no meio de que magia ainda meio adorme­
pensassem conhecê-la. cida se formou primitivamente essa consciência. Isso pro­
V va apenas que o conhecimento que os homens têm da lei
não escrita atravessou um maior número de formas e de
O segundo elemento (gnoseolúgico) da lei natural estágios diferentes do que certos filósofos e teólogos o
julgaram. O conhecimento de nossa própria consciência
Chegamos assim ao segundo elemento fundamental moral c ainda, sem dúvida, imperfeito e, provavelmente,
a ser reconhecido na lei natural, a saber, a lei natural cont’nuará a desenvolver-se e a tornar-se mais requin­
como conhecida, regulando assim, na realidade, a razão tado à medida que a humanidade existe. Só quando o
humana prática que é a medida dos atos humanos. Evangelho tiver penetrado as próprias profundezas da
A lei natural não é uma lei escrita. Os homens a co­ substância humana é que a lei natural aparecerá cm sua
nhecem com maior ou menor dificuldade em graus dife­ flor e em sua perfeição.
rentes, correndo o risco do êrro, nisto como em tudo mais. São assim coisas diferentes a lei e o conhecimento
O único conhecimento prático que todos os homens têm da lei. Entretanto» a lei só tem força de lei quando é
em comum, de modo natural e infalível, eomo um princí­
pio evidente, intelectualmente percebido em virtude dos 10 Cf. Raissa Maritain, H slotre d9 Abrahain ou tes premer*
conceitos implicados, é que devemos fazer o bem e evitar àges de la consciente nwralo (Paris, Dósclée de Brouwer, 1947).
JACQUES MAKITAIN U HOMEM E 0 ESTAbÜ 109
promulgada. Só quando c conhecida c expressa orn asser­ claro por conceito ou juízos conceptuais É um conheci­
ções da razão prática é que a lei natural tem fôrça de mento obscuro, não sítio mático, vital, por conaturalida-
lei. de ou cogenialidade, no qual o intelecto, para poder for­
Acentuemos, nesse ponto, que a razão humana não mular um juízo, consulta e escuta a melodia interior que
descobre as normas cia lei natural de uma maneira abs­ as vibrações das tendências ínl cais manifestam no su­
trata e teórica, como uma série de teoremas geométri­ jeito.
cos. Mais ainda, ela não as descobre pelo exercício con­ Quando reconhecemos elarameute êsse fenômeno fun­
ceptual do intelecto ou por meio do conhecimento racio­ damental e quando, além di co, compreendemos que a
nal. Creio que a doutrina do Tomás de Aquino, nesse dciterina dc Santo Toiu.u’ - ore a matéria requer uma
ponto, deveria ser entendida de um modo mais profundo interpretação histórica e uma efetivação filosófica da
e mais preciso do que geralmente o é. Quando lhe diz idéia de desenvolvimento que a Idade Média não estava
que a razão humana, guiada pelas inclinações da natu­ habilitada a levar às suas consequências, — só então po­
reza humana, descobre as normas da lei natural, signifi­ demos dizer que somos afinal capazes de ter um conceito
ca com isso que o próprio modo ou a maneira pela qual completamente compreensivo da lei natural.
a razão humana conhece a lei natural não é o conheci­ Compreende-se, assim, que o conhecimento humano
mento racional e sim o conhecimento por inclinação. 11 da lei natural foi progressivamente modelado pelas in­
Essa espécie de conhecimento não é um conhecimento clinações da natureza humana, a partir das mais funda­
mentais. Não esperem que eu possa oferecer um quadro
" Êste é. em minha opinião, o verdadeiro sentido implícito a priori dessas inclinações genuínas, arraigadas no ser
em fíarlo Tomás, embora êle não empregasse a própria expressão humano e vitalmente penetradas pela vida pré-conscien­
no tratar da Lei Natural. O conhecimento por inclinação está ge-
ralmento subentendido em tôda sua doutrina da Lei Natural. Só te do espírito e que se desenvolveram ou se difundiram
êle torna essa doutrina perfeitamente consistente. Só êle concorda na medida do movimento da humanidade. Foram confir­
c<un certas afirmações eomo as seguintes: “Omnia iUa ad quae madas na própria história da consciência humana. Des­
homo habet mitiralcrr.- inclinaiiionfrm, ratio na-Lwtilif.er appreken- sas inclinações foram realmente autênticas aquelas que,
dit ui hrína, et per consequetis ul opere prosequenda; et contraria na imensidade do passado humano, orientaram a razão
eorurn, ut mala et vitanda" (I II, 94. 2): ‘ad legem naturre per-
tinet omne illud ad qnod homo inclinatur secundum naturam... no sentido de tornar-se cônscia, pouco a pouco, das nor­
Sed, si loquaniur de actibus virtuosis secundum seipsos, prout mas que foram, de modo mais definido e mais generali­
scilicet in propriis speciebus considerantiir, sic wov omnes actvs zado, reconhecidas pela espécie humana, desde as comu­
virtuosi sunt de legge natnrae. Multa enim secnndum virtuteni nidades sociais mais antigas. Pois o conhecimento dos as­
finnt, ad qw natura non primo inclinai; sed per rationitt inqui-
sitionewt ea ho-minas adinvencrunt, quasl utilia ad bene viven- pectos primordiais da lei natural se exprimiu primeira­
dum” (I-II, 94, 3). O assunto se tornou um tanto obscuro <ni mente em moldes sociais e não tanto em julgamentos
virtude da constante comparação que Santo Tomás emprega nes­ pessoais. De modo que podemos dizer que esse conheci­
ses artigos entro o intelecto especulativo c o prático, e, em con- mento se desenvolveu dentro do tecido, duplamente prote­
seqtiência do que, se refere aos própria principia da Lei Natural
como “qnasi conclvsiones prinerpioritm couimuMum'1 (I-1I. 94. 4). tor das inclinações humanas e da sociedade humana,
Na realidade, êsses própria principia ou preceitos específicos de ãn íi iln:. concluàÕeB no plano especulativo. (E parecem, como con­
Lei Natural não são, de modo algum, conclusões racionalmente clusões inft ridas, ao "pós-conhecimento" dos filósofos que têm de
deduzidas: êJes d «empenham, no plano prático, uma parte eimi- i"fl-dir sôbie os preceitos da Lei Natural c explieá-los.)
I lí) JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 111
Quanto ao segundo elemento fundamental, o do conheci­ esquemas dinâmicos de normas morais, que podem ser
mento que a lei natural implica para ter fõrça de lei, po­ obtidos pelas primeiras mais “primitivas" realizações do
de-se assim dizer que a lei natural. — isto é, a lei natu­ conhecimento por inclinação. E, nessas estruturas ten­
ral naturalnicnte conhecida ou, mais exatamente, aquela denciais ou nesses esquema dinâmico?, podem ocorrer
lei natural, cujo conhecimento está incorporado na heran­ vérios conteúdos ainda defeituosos, — sem falar nas in­
ça mais geral e mais antiga da humanidade —• só com­ clinações corrompidas, transviadas on pervertidas que
preende o campo das normas éticas de que os homens se podem mesclar-se com rs inclinações fundamentais.
tornaram conscientes em virtude do conhecimento por Devemos compreender, ao mesmo tempo, por que
inclinação, em quo são princípios básicos da vida moral, motivo a lei natural implica esscncialmente uma evolu­
progressivamente reconhecidos, desde os princípios mais ção dinâmica e por que a consciência moral, ou o conhe­
comuns até os mais particulares. cimento do lei natural, progrediu desde a idade do ho­
Todas as observações anteriormente feitas podem mem das cavernas de duas maneiras. Primeiramente, no
ajudar-nos a compreender porque duas coisas sucederam. que toca ao modo pelo qual a razão humana se tornou
De um lado, um cuidadoso exame dos dados da antropo­ consciente, de uma maneira cada vez menos crepuscular,
logia mostraria que os esquemas dinâmicos fundamentais tôsea e confusa, das normas primordiais da lei natural.
da lei natural estão sujeitos a um reconhecimento muito Em seguida, quanto ao modo pelo qual a razão humana
mais universal — em todos os lugares e em todos os tem­ se tornou consciente — sempre por meio do conhecimen­
pos — do que parecem a uma visão superficial. Isso, caso to por inclinação — ele seus preceitos ulteriores e supe­
esses esquemas dinâmicos forem entendidos em seu sen­ riores. E êsse conhecimento ainda está em progresso e
tido autêntico, isto é, ainda indeterminado. Por exemplo: há do progredir enquanto durar a história humana. Êsse
suprimir uma vida humana não é como suprimir uma evolver da consciência moral é, na verdade, o exemplo
vida animal; ou então, o grupo familiar tem de satisfazer mais indiscutível do progresso humano.
certas normas fixas; ou então, as relações sexuais têm Dissemos que a lei natural é uma lei não escrita.
de contcr-se dentro de certos limites; ou então, somos C uma lei não escrita no sentido mais perfeito desta ex­
inclinados a contemplar o Invisível; ou então, somos in­ pressão. O conhecimento que dela temos não é obra de
clinados a viver juntos sob certas regras e proibições. uma livre conceptualização. Resulta de uma conceptuali­
Por outro lado, uma imensa dose de relatividade e de va­ zação ligada às inclinações essenciais do ser, da natureza
riações se encontram nas regras, nos costumes e nos viva e da razão que se encontram em ação no homem.
moldes particulares de aeôrdo com os quais, entre todos É uma lei não escrita ainda porque se desenvolve pro-
os povos da terra, a razão humana exprimiu o seu conhe­ porcinnalmente ao grau da. experiência moral e da refle­
cimento mesmo dos aspectos mais fundamentais da lei xão do homem sôbre si mesmo, bem como da experiên­
natural. Como ficou acima indicado, êsse conhecimento cia social de que o homem é capaz nas várias idades da
espontâneo não se baseia em preceitos morais conceptual­ sua história. Ê assim que, nos tempos antigos e medie­
mente descobertos e racionalmente deduzidos, mas em vais, se prestou mais atenção, na lei natural, aos deveres
preceitos morais conhecidos através de uma inclinação. do homem do que aos seus direitos. A obra do século
Êsse conhecimento, de início, se fundamenta em formas XVIII — que foi, na verdade, uma grande obra — con-
ou estruturas tendenciais e gerais, ou, como dissemos, em sistiu cm trazer à plena luz os direitos do homem como
112 JACQUES MÁRITAIN
O HOMEM B O ESTADO 113
sendo também exigidos pela lei natural. Essa descoberta
deveu-se essencial mente a um progresso da experiência universal, nas leis o nas nornias do cosmos e da imensa
moral e social, mediante o qual as inclinações inatas da família das naturezas criadas (e, finalmente, na ordem
natureza humana, quanto aos direitos da pessoa humana, da Sabedoria Criadora) e ainda o falo de têrmos o pri-
foram postas em liberdade, desenvolvendo-se, consequen­ viCgio de participar, ao mesmo tempo, da natureza espi­
temente, em relação a elas, o eonhecwt&nf.o por inclina­ ritual é quí determinam oh direitos que temos em rela­
ção. Mas, de acordo com uma triste lei do conheeimcnto ção a outras pessoas c a todo o conjunto das criaturas.
humano, essa grande conquista acarretou erros ideológi­ Em última análise, visto como tôda criatura atua cm vir­
cos, no campo teórico, que desde o início acentuei. A tude do seu Principio, que é o Ato.Puro; visto como tôda
atenção desviou-se mesmo exclusivamente das obrigações autoridade digna dêase nome (isto é, justa) obriga em
do homem para os seus direitos. Uma visão genuína e consciência, em virtude do Princípio dos sêres, que é a
compreensiva deveria preocupar-se iyualmente com as pura Sabedoria, — assim também todo e qualquer direi­
obrigações e os direitos implicados nas exigências da lei to possuído pelo homem é possuído era virtude do direito
natu ral. de Deus, Que é pura Justiça, de ver respeitada, obede­
cida e amada por tôda inteligência a ordem da sua Sabe­
VI doria era tôdas as coisas. É essencial à lei ser uma
Os direitos do Homt ni e a Lei Natural ordem da razão. Ora, a lei natural, ou seja, a normali­
dade do funcionamento da natureza humana que se nos
Não preciso pedir desculpas por me ter ocupado, tão revela mediante um conhecimento por inclinação, só é
longamente, com o tema da lei natural. Como poderia­
mos compreender os direitos do homem se não tivéssemos Natural por motivos práticos e não filosóficos, num sentido mais
ou raeuofi vago, mesmo em um sentido ‘•utilitário” (como se toda
uma noção suficientemente adequada da lei natural? preocupação polo bem comum o pela realizaçSo dos f-ns da vida
A mesma lei natural que determina os nossos deveres humana pudessem ser classificados como utilitarismo'), só se tor­
mais fundamentais, e em virtude da qual toda lei obriga, na mais manifesta a impossibilidade de separar a Lei Natural
é a mesma lei que nos concede os nossos direitos fun­ dos princípios- morais sobre os quais se formaram os Estados
Unidos.
damentais. 12 13 O fato de estarmos integrados na ordem No seu livro vigoroso e estimulante, Ctourfe on Tnal (Prince*
12 Cf. Edward S. Dore, juiz da Suprema Corte de New York, ton. N. J., Princcton University Prcss, 1949), o Juiz Jerome Frank
também encara a Lei Natural antes do ponto de vista prático que
“Human Rights and Natural Law", New York Lan Journal, 1945; metafísico. Èsse fato dá um valor experimental particularmente
McKnmon, 'The Higher Law”, American Bar Asaociation Journal, significativo ao seu julgamento, quando escreve: “nenhum não»
1947; Lasersou, op. nt.; Lord Wright, presidento da Comissão de -catófro decente pode deixar de aceitar 09 poucos princípios ou
Orimes de Guerra das Nações Unidas, ‘'Natural Law and lnter- preceitos básicos da Lei Natural como representando, no pre­
nutional Law ”, Ess<ms in Honor of Ror-cor Pon.nct; Godírcy P. sente momento e para nm futuro razoavelmente previsível, par­
Schmidt, An Approach to Natural Law (em preparação). O con­ te essenciais de fundamento da civilização” (págs. 3G4-3G5).
ceito do Lei Natural desempenhou, como se sabe, um papel fun­ Note-se final mente que, ao se tratar da aplicação das exigências
damental no pensamonto dos fundadores da República Norte-Ajne- básicas da justiça em casos nos quais faltem até certo ponto es-
ricana. Ao insistir-se (cf. Cornelia Geer Le Boutilier, American tipulnçooH da lei positiva, é inevitável um recurso aos princípios
LRtnoeracy and Natural Law (New York, Columbia University da Lei Natural, criando-se assim, um precedente e novas regras
Piess, 1950), eap. III), em que êsses Pais da Pátria eram esta­ judiciais. Foi o que aconteceu, de modo notável, com o julga­
distas mais do que metafísicos e que usavam o conceito de Lei mento, que fez época, dos criminosos nazista= dc guerra em Nulcw
berg.
114 JACQUES MARTTAIN 0 HOMEM E 0 ESTADO 115

lei, isto é, só obriga em consciência, porque a natureza cia —, existe, de eerto modo nas próprias coisas, isto é,
e as inclinações da natureza manifestam uma ordem como uma exigência da sua essência. Êsse mesmo fato,
da razão, — isto é, da Razão Divina.. A lei natural só é porém, <i falo de as coisa.1 participarem de uma ordem
lei por ser uma participação da Lei Eterna. ideal que transcende a sua existência e necessariamente
A esta altura, vemos que uma filosofia positivista, as governa, não seria, possível se o fundamento dessa or­
que reconheça sòmente os Fatos — assim como qualquer dem ideal, como fundamento «ias próprias essências, não
filosofia idealista ou materialista da Imanência absoluta existisse num Espírito st parado, Absoluto superior ao
— é impotente para estabelecer a existência de certos mundo, naquilo, enfim, que a filosofia perene chama a
direitos que possui por natureza o ser humano; direitos Lei Eterna.
êstes, anteriores e acima de toda legislação escrita ou Para uma filosofia que só reconhece o Fato, a no­
acordos entre governos, direitos que a sociedade civil ção do Valor — refiro-me a um Valor objetivamente
não tem que conceder e sim reconhecer e sancionar como verdadeiro em si, — não é concebível. Como é possível
universalmcnte válidos e que não podem ser abolidos ou então exigir direitos quando não se crê em valores? Se
desrespeitados mesmo temporàriamente, por qualquer é um contra-senso a afirmação de um valor intrínseco e
espécie de necessidade social. Logicamente, o conceito da dignidade do homem, também é um contra-senso a
de tais direitos só pode constituir uma superstição aos afirmação dos direitos naturais do homem.
olhos dessas filosofias. Tais direitos só são-válidos e VII
racionalmente defensáveis se cada indivíduo existente
tem uma natureza ou essência que seja o loous de neces­ Sóbre os direitos do Homem em geral
sidades inteligíveis e liberdades necessárias. Em suma,
êsses direitos só são válidos e racionalmente defensá­ Vamos agora discutir alguns problemas que dizem
veis se o reino da Natureza, considerada como uma cons­ respeito aos direitos do homem em geral. Ocupemo-nos
telação de fatos e de acontecimentos, encerra e revela em primeiro lugar com a distinção entre a Lei Natural
um reino da Natureza, considerado como um universo o a Lei Positiva. Um dos erros capitais da filosofia ra-
de Essências que transcendem o fato e o acontecimento. cionalista dos direitos do homem tem sido considerar a
Por outras palavras, não existe direito algum senão lei positiva como um simples decalque da lei natural,
quando uma certa ordem, — que pode ser violada de que, por suposição, teria de prescrever, em nome da Na­
fato, — é inviolàvelmcnte exigida yor. aquilo que as coi­ tureza, tudo aquilo que a lei positiva prescreve em nome
sas são em seu tipo ou em sua essência inteligíveis, ou da sociedade. Essa concepção esquece um imenso campo
por aquilo que a natureza humana é e para o que existe: das coisas humanas que dependem das condições variá­
uma ordem em virtude da qual tais coisas como a vida, veis da vida social e da livre iniciativa da razão humana,
o trabalho, a liberdade pertencem à pessoa humana, coisas que a lei natural deixa indeterminadas.
que é um existente dotado de alma espiritual e de livre Como já dissemos, a lei natural trata dos direitos
arbítrio. Uma ordem de tal natureza, — que não é ape­ e dos deveres que estão ligados de modo necessário
nas um dado concreto das coisas, mas que exige que ao primeiro princípio: “faze o bem e evita o mal.’’ Eis o
elas a realizem c que se impõem por si mesmas, aos motivo por que os preceitos da lei não escrita são, por
nossos espíritos, ao ponto de nos obrigar em consciên­ si próprios ou pela natureza das coisas (não me refiro
116 JAGQUES MARITAIN 0 HOMEM E O ESTADO 117

ao conhecimento que os homens tenham deles), univer­ se entido, essa lei das nações pertence ao direito positi­
sais e invariáveis. vo o constitui formalmenle uma ordem jurídica (embora
O Jus Gentium ou o Direito Internacional Natural não necessária mente descrita mu urn código) . Mas, no
(Law of Natians) é difícil de definir exatamente por ser que diz respi ito ao seu conteúdo, o jus gentliim compre­
qualquer coisa de intermediário entre a lei natural e a ende tanto coisas que pertencem também à lei natural
lei positiva. Digamos que, no seu sentido mais profun­ (enquanto essas coisas não são apenas conhecidas como
do e mais genuíno, tal corno o formulou Tomas de Aqui- raciona Imente inferidus, mas lamhéni conhecidas por in­
no, a lei das nações, ou antes, a lei comum da civiliza­ clinação) como coisa; que, — embora obrigatórias de
ção difere da lei natural por ser conhecida não por in­ um mudo universal, desde que derivadas de um princí­
clinação, mas sim pelo exercício conceituai da razão; ou pio da lei natural —, estão para lá do conteúdo da lei
seja por um conhecimento racional. 18 Considerada nes- natural (por serem apenas racionalmente inferidas e não
conhecidas por inclinação). Em ambos os casos, o jus
De acordo com Santo Tomás (Suwl. TheoL, I-II, 95,4), jus gentiwn. ou a lei comum da civilização trata, como a lei
gcntwn que ele distingue nitidamente <la lei natural e liga natural, de direitos e deveres que estão ligados ao pri­
de preferência à lei positiva — ee refere a todas as coisas que meiro princípio de um modo necessário. E principalmen­
derivam da lei natural como conclusões do princípios. te porque esse jus gentium nos é revelado por um conhe­
Entretanto, êle também ensina que os própria principia da
Lei Natural são como que conclusões derivadas de principia cani- cimento racional e constitui êle próprio uma obra da ra­
munía (I-II, 94, 4, 5 e 6). E, certamente, os própria. principia da zão, diz respeito, de modo mais especial, à categoria dos
lei natural pertencem à Lei Natural, e não ao jus geniiiwil Pois direitos e des deveres que existem na estrutura da obra
bem, na questão 95,2 Santo Tomás dá a proibição do assassínio natural fundamental realizada pela razão humana, ou
como o exemplo de uma conclusão derivada dc um princípio da seja, o estado da vida civil.
lei natural (não faças mal a ninguém) e pertencendo àquilo que
ó definidu como jus geoithm no art. 4. É evidente, contudo, que A Lei Positiva, isto é, o corpo de leis (seja o di­
a proibição do a$£asãíni.o que está inscrita no Decálogo é um pre­ reito çõnsnetudinário, seja o direito estatutário) em vi­
ceito da lei natural. Qu6 resulta de tudo isso? gor num dado grupo social, ocupa-se com os direitos e os
A única maneira de entender a coerência interna de tudo isso deveres ligados ao primeiro princípio, mas de um modo
e de atinar cor reta mente com a distinção to mi 3 ta entre a Lei Na­
tural e o jus geniii/M, é compreender que um princípio que é contingente, ou seja, em virtude de determinadas for­
como urna conclusão derivada de uni princípio da lei natural mas mas de conduta estabelecidas pela razão e pela vontade
que, na realidade, é conhecido por hictiiiação » mia por dedução do homem quando instituem as leis ou fazem nascer os
racional, faa parte da lei natural. Um preceito, contudo, que é costumes de certa sociedade, estatuindo, por sua própria
conhecido por dedução racional c como uma conclusão concep-
tuahn.fmte inferida de um princípio da lei natural, faz parte do determinação, que, nesse grupo em particular, certas coi­
jus genixum. ftste último pertence à lei positiva, maÍ3 de que à lei sas serão consideradas boas e permitidas e outras coisas
natural, precisamente em virtude da maneira pela qual é conhe­ más e proibidas.
cido e em vir tudo da Intervenção da razão humana no estabeleci­ É, porém, em virtude da lei natural que a lei da?
mento de preceitos eonccptualmcnto concluídos (ao passo que a nações e a lei positiva têm fôrça de lei e sé impõem por
razão da qual depende a lei natural é a Razão divina).
A proibição do assassínio, na medida cm que esse preceito é conhe­
cido por inclinação, pertence à lei natural. A mesma proibição i íi.-i nalmente inferida de iun princípio da lei natural, pertence
do assassínio, se esse preceito é conhecido como uma conclusão ao jus genthim.
118 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 119

si próprias à consciência. Constituem ambas uma prolon- no exercido de modo genuinamente humano, garantindo
gaçap ou uma extensão da lei natural, passando a zonas a liberdade da pessoa humuna perante a comunidade).
objetivas, que podem ser, cada vez menos, suficientemen­ E nr. modalidades particulares do direito à propriedade
te determinadas pelas inclinações essenciais da natureza pnvada, que variam clc ncôrdo com a forma de uma so­
humana. Porquanto é o próprio direito natural gue exi­ ciedade e o estado de desenvolvimento de sua economia,
ge seja lóda coisa, que deixa sem determinar, determi­ são determinadas pela lei positiva.
nada 'subsequentemente, trate-se de um direito ou de um 0 Lnuto das nações do viverem libertas do jugo da
dever existente para todos os homens e dos quais êles inev;.'idade ou da miséria (“freedom leorn want”), bem
se tornam conscientes, não por um conhecimento advin­ como o do vi\ >em libertas do jugo do mêdo ou do ter­
do da inclinação, mas pela razão conceituai — daí o jws ror ("freedom from l'< ar”), como o Presidente Roose-
gentium — ou de um direito ou dever existente apenas veli os definiu em se us Quatro Pontos, correspondem às
para certos homens — e aqui entra o direito positivo — exigências da Lei das Nações que devem ser realizadas
em virtude das normas humanas e contingências próprias pela lei positiva e por uma organização possível, de ca­
do grupo social a que pertencem. Há, portanto, transi­ ráter económico e político do mundo civilizado.
ções imperceptíveis (pelo menos do ponto de vista da .0 direito de sufrágio concedido a cada um de nós
experiência histórica) entre a Lei Natural, a Lei das Na­ para a eleição dos funcionários do Estado deriva da lei
ções e a Lei Positiva. Existe um dinamismo que impele positiva, determinando o caminho pelo qual o direito na­
a lei não «escrita a florescer na lei humana e a tornar es­ tural do povo a se governar a si mesmo deve ser «aplica­
sa última cada vez mais perfeita e justa, no próprio cam­ do em uma sociedade democrática.
po das suas determinações contingentes. Em concordân­ *
cia com êsse dinamismo é que os direitos ria pessoa hu­
mana assumem forma política e social na comunidade. Tratarei, cm seguida, do caráter inalienável dos di­
O direito do homem à existência, à liberdade pessoal reitos naturais do homem. São inalienáveis pelo fato de
e à busca da perfeição na vida moral pertence, de modo se fundarem na própria natureza do homem, que, natu-
estrito, à lei natural. ralmonte, nenhum homem pode perder. Não significa
O direito à propriedade privada dos bens materiais14 isso que êles rejeitem, por natureza, qualquer limitação
pertence à lei natural, na medida em que a humanidade ou que lejam os direitos infinitos de Deus. Assim como
tem o direito de possuir, para o seu próprio uso comum, tôda lei, — particularmente a lei natural, em que êsses
os bens materiais da natureza. Êsse mesmo direito per­ direitos sa fundam, tem por fim o bem comum, assim
tence à Lei das Nações ou Jus Gentíim, sob o ponto de também os direitos do homem têm uma relação intrín­
susta de que a razão conclui necessariamente quo, por seca com o bem comum. Alguns dêles, tais como o direi­
motivo do bem comum, êsses bens materiais devem ser to à existência ou à busca da felicidade, são de tal natu­
de propriedade privada, como um resultado das condi­ reza quo o bem comum ficaria comprometido caso o cor­
ções naturalmente exigidas para a boa gestão dos mes­ po político pudesse restringir, em qualquer medida, a pos­
mos e para o trabalho humano (isto é, o trabalho huma- se que os homens naturalmente dêles têm. Digamos que
11
sâo absolutamente inalienáveis. Outros, tais como o direi­
Cf. Nosso livro, Freedom in lhe Modern World (New York, to de associação ou de palavras, são de tal natureza que
Charles Scribner*s Sons, 1930), Apêndice, I.
120 JACQUES MARITA1N O HOMEM. E O ESTADO 121

o bem comum ficaria comprometido, se o corpo político parênteses, — que a base do estimulo secreto que inces­
não pudesse, de certa maneira, restringir (tanto menos santemente impele as Bociedades a se transformarem,
quanto mais forem as sociedades capazes de liberdade co­ consiste no fato de que o homem possui direitos inaliená­
mum e sobre ela baseadas) a posse que os homens natu- veis, mas está privado da possibilidade de exigir, com
rãlmente dêles têm. Digamos que são apenas substan- justiça, o exercício de alguns dêsses direitos, por motivo
ciálmente inalienáveis. do elemento inumano que permanece na estrutura social
♦ Júr ♦ de cada período.
Essa distinção entre a posse e o exercício de um di­
No entanto, até mesmo os direitos absolutamente reito é de suma importância, penso cu. Indiquei, há
inalienáveis são passíveis de limitação, senão quanto à pouco, como ela nos permite explicar as limitações que
sua posse, pelo menos quanto ao seu exercício. Seja, pois, podem ser impostas, com justiça, ao exercício de certos
minha terceira observação a que se refere à distinção en­ direitos, sob certas circunstâncias, seja pela culpa de al­
tre a posse e o exercício do direito. Mesmo quanto aos gum delinquente ou criminoso individual, seja em virtu­
direitos absolutamente inalienáveis, devemos distinguir de de estruturas sociais cujos defeitos ou cujo primiti-
entre posse e exercício, — ficando o último sujeito a con­ vismo impedem a pretensão, legítima em si mesma, de
dições e limitações ditadas, em cada caso, pela justiça. ser imediatamente efetivada sem prejuízo de direitos
Se um criminoso pode ser condenado, com justiça, a mor­ maiores.
rer, é porque, com seu crime, despojou-se a si mesmo, Gostaria de acrescentar que essa distinção também
não digamos do direito a viver, mas da possibilidade de nos permite compreender que é conveniente por vêzes,
afirmar com justiça êsse direito. Êle separou-se moral­ à medida que a história avança, renunciar ao exercício
mente da comunidade humana, precisamente quanto ao de certos direitos que, não obstante, continuamos a pos­
uso dêsse direito fundamental e “inalienável", que a pu­ suir. Essas considerações se aplicam a muitos problemas
nição que se lhe inflige o priva exatamente de exercer. que dizem respeito, ora às modalidades da propriedade
O direito de receber a herança da cultura humana, particular em uma sociedade que esteja em processo de
através da educação, também é uzn direito fundamental transformação, ora às limitações da assim chamada so­
e absolutamente inalienável. O exercício dêsse direito berania dos estados em uma comunidade internacional
está subordinado às possibilidades concretas de uma so­ em processo de organização.
ciedade determinada. Pode ser contrário à justiça exigir
o uso dêsse direito para todos, hic et nunc, caso êle possa
apenas ser realizado à custa da ruína de todo o corpo VIII
social, como ocorreu com a sociedade escravocrata da Direitos do Homem em particular
Roma antiga ou com a sociedade feudal da Idade Média,
— embora naturalmente essa exigência de uma educação Chegando finalmente ao problema que diz respeito à
universal fosse legítima cm si, como uma coisa que de­ enumeração dos direitos do homem considerados em par­
veria sei- realizada com o decorrer dos tempos. Em tais ticular, começarei poi- relembrar aquilo que já estabele­
casos, o que resta é tentar a mudança do estado social cemos: a saber, o fato de que, em matéria de lei natu­
respectivo. Vemos, por exemplo, — e notemo-lo entre ral, existe imutabilidade em relação às coisas, ou à pró-
122 JACQUES MARITATN O HOMEM E O ESTADO 123

pria lei ontològicamente considerada, mas existe pro­ dadão, mas ainda dos seus direitos como uma pessoa so­
gresso e relatividade quanto à consciência humana da cial, participante do processo de produção e de consu­
lei. Temos, de modo particular, a tendência a hipertro­ mo, especialmente de seus direitos como trabalhador.
fiar e tornar absolutos, ilimitados, irrestritos, sob qual­ Falando em tfirmos gerais, uma nova era da civi­
quer aspecto, os direitos que conhecemos, o que nos. im­ lização terá de reconhecer c definir os direitos do ser
pede, assim, a visão de outro qualquer direito que os humano em suas funções sociais, econômicas e culturais,
contrabalançaria. Assim, na história da humanidade, ne­ — direitos de "produtores” e “consumidores”, direitos de
nhum direito “novo”, quero dizer, nenhum direito que a “técnicos”, direitos daqueles que se dedicam a um tra­
consciência comum houvesse adquirido sem que tivesse balho intelectual, direitos de todos à participação na he­
de lutar pelo seu reconhecimento e sem que tivesse ven­ rança educativa e cultural da vida civilizada. Os mais
cido a oposição acerba dos “velhos direitos”. Foi essa urgentes problemas, entretanto, são os que dizem respei­
a história do direito a um salário justo, bem como de to. de um lado, aos direitos dessa sociedade primordial
direitos similares em face do direito a um acordo mútuo que é a sociedade doméstica, anterior ao estado político,
e livre e em face do direito da propriedade particular. e, de outro, aos direitos da pessoa humana enquanto par­
A luta desse último no sentido de exigir para si o privi­ ticipante das funções de trabalho. 15
légio de um absolutismo divino e ilimitado foi a lamen­ Quero referir-me a direitos tais como ao direito ao
tável epopéia do século XIX. A ela iria seguir-se outra trabalho e à liberdade de escolher livremente o próprio
lamentável epopéia, na qual, ao contrário, o próprio prin­ trabalho; o direito de formar Livremente grupos ou sin­
cípio da propriedade privada seria pôsto em questão e. dicatos profissionais; o direito do trabalhador a ser con­
com êle, tôda e qualquer liberdade pessoal. Pois bem, em siderado socialmente como um adulto e a ter, de um ou
1850, quando começou a vigorar a lei contra os escra­ de outro modo, uma participação ativa nas responsabili­
vos fugitivos, acontecia ou não que o auxílio prestado a dades da vida econômica; o direito de grupos econômi­
tim escravo fugitivo era considerado, pela consciência de cos (sindicatos e comunidades de trabalho) e de outros
muitos, como um atentado criminoso contra o direito de grupos sociais à liberdade e à autonomia; o direito ao
propriedade? Ao contrário, "novos direitos” freqüente- salário justo, isto é, suficiente para garantir a manuten­
mente declaram guerra aos “antigos” e fazem corn que ção da família; o direito a auxílio financeiro por parte
êsses sejam injustamente desconsiderados. No tempo da do governo em casos de necessidade, o seguro contra o
Revolução Francesa, por exemplo, uma lei promulgada desemprego, os benefícios em caso de moléstia, em suma,
em 1791 proibia como “um ataque à liherdade e à De­ á previdência social; o direito de participar, gratuita­
claração dos Direitos do Homem” tóda tentativa feita mente, segundo as possibilidades do corpo social, dos
pelos operários de associarem-se em sindicatos, reunindo bens elementares, tanto materiais como espirituais da
as suas forças para recusar trabalho a não ser por um civilização.
dado salário. Foi isso considerado como uma volta in­ O que está principalmente implicado em tudo isso é
direta ao velho sistema das corporações.
No que diz respeito aos problemas dos nossos dias, 15 Cf. Nosso livro, Thf Riyhts of Man and Natural L<n>

é evidente que a razão humana veio a tornar-se conscien­ (New Ynrk, Charles Scribner’3 Sor.:-, 1043); GcüTgcs Gurvitch,
te, não apenas dos direitos do homem como pessoa e ci­ La Déclaya’i(.m deu droils sociaux íNew Yórk, Maison Française,
1944)
124 JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E O ESTADO 125

a dignidade do trabalho, os sentimentos dos direitos da Se cada um dos direitos do homem fôsse, por natu­
pessoa humana no trabalhador, dos direitos em nome dos reza, absolutamente incondicional e exclusivo de toda e
quais o empregado se encontra perante o empregador qualquer limitação, como uni : tributo divino, é evidente
•em uma relação de justiça e como uma pessoa adulta, que todo conflito entre óles seria irreconciliável.
não como uma criança ou um servo. Existe aqui um Mus quem não sabe, realmente, que êsses direitos,
dado essencial que ultrapassa de longe todo e qualquer sendo humanos, são, como Indo que ô humano, sujeitos
problema de mera técnica econômica ou social, pois se ao condiciomimonto e :i limitação, pelo menos, como vi­
trata de um dado moral, que afeta o homem nas suas mos no que diz respeito ao seu exercício? Nada de mais
profundezas espirituais. normal do que os vários direitos atribuídos ao ser hu­
Estou convencido de que o antagonismo entre os mano sejam limitados uns pelos outros, particularmente
"velhos” e os “novos” direitos do homem, — refiro-me que os direitos econômico-sociais, os direitos de um ho­
aos direitos sociais a que acabo de aludir, especialmente mem como pessoa vivendo em comunidade, não possam
àqueles que dizem respeito à justiça social e visam tan­ conquistar seu lugar na história humana sem restringi­
to a eficácia do grupo social como a libertação das ne­ rem, até certo ponto, as liberdades e os direitos do ho­
cessidades e das servidões econômicas do trabalhador —, mem como pessoa individual. 0 que cria diferenças e
estou convencido de que êsse antagonismo, que muitos antagonismo irredutíveis entre os homens ó a determina­
escritores contemporâneos se comprazem em exagerar, ção do grau dessas restrições e, mais geral mente, a de­
não é, de modo algum, insuperável. Essas duas catego­ terminação da escala de valores que orienta o exercício
rias de direito parecem irreconciliáveis apenas em vir­ e organização concreta dêsses vários direitos. Aqui nos
tude do choque entre as duas ideologias e os dois siste^ defrontamos com o choque entre filosofias políticas in­
mas políticos opostos que apelam para eles, mas dos compatíveis. Porque, a essa altura, já não se trata do
quais, na realidade, êlea são independentes. Nunca acen­ simples reconhecimento das diversas categorias dos di­
tuaremos demais o fato de que o reconhecimento de uma reitos humanos, mas sim do princípio de sua unificação
categoria particular de direitos não é o privilégio de uma dinâmica, de acôrdo com o qual são postos em prática.
escola de pensamento em detrimento de outras. É tão Temos de ocupar-nos com a tonalidade, a clave específica,
pouco necessário ser um discípulo de Rousseau para re­ cm virtude da qual músicas diferentes são tocadas no
conhecer os direitos do indivíduo, como um marxista mesmo teclado, ora em harmonia, ora em discordância
para reconhecer os direitos econômicos e sociais. Na rea­ com a dignidade humana.
lidade, a Declaração universal dos Direitos do Homem, Podemos imaginar, — de acôrdo com o ponto de vis­
adotada e proclamada pelas Nações Unidas a 10 de de­ ta desenvolvido na primeira parte dêsse capítulo, — que
zembro de 1948, inclui tanto os velhos como os novos os advogados de um tipo de sociedade liberal-individua­
direitos. in lista. de uma sociedade comunista ou de uma sociedade
personalista 17 redijam listas similares, porventura idên-
,c Mesmo depois da primeira Grande Guerra, as Dedurueõôs
de Direitos incluídas ntui novas conatittiições que então aparero 17
rtim no cenário europeu, reconheciam a importância dos direi­ Cf. Nossnn livros, Fraedom in lhe Modwn Warld, png. 46
tos sociais. Cf. Botís Jíirkine-Guetzviteh, Les Xouvellea Ten- <j aegs. e Tw> Hwnaniwi (New York. Charle? Scribner’» Sons,
(femees Su Droit ConatitutwnneF’ (Paris. Giard, 1931) C. III. 1938), págs. 127 e segs.
126 JACQUES MARITAIN

ficas, de direitos do homem. Nenhuma das três, entre­


tanto, tocará o instrumento da mesma maneira. Tudo
dependerá do valor supremo, de acôrdo com os qual to­
dos êsses direitos serão ordenados e se limitarão mütua-
mente. Ê em virtude da hierarquia de valores à qual nos
subordinamos que determinaremos c caminho pelo qual
os direitos do homem, econômico-socinis e individuais, de­
veriam, a nossos olhos, passar para o plano da existên­
cia. Aquêles que, por falta de melhor nome, acabamos
de caracterizar corno advogados de um tipo de sociedade A CARTA DEMOCRÁTICA
liberal-individualista, vêem a marca da dignidade huma­
na, antes e acima dc tudo, no poder que tem cada pessoa I
de apropriar-se individualmente dos bens naturais para
poder fazer livremente o que quiserem. Os advogados de A fé democrática secular
um tipo comunista de sociedade vêem a marca da digni­
dade humana, antes e acima de tudo, no poder de sub­ Na era “sacral” da Idade Média fêz-se uma grande
meter êsses mesmos bens ao comando coletivo do corpo tentativa no sentido de construir a vida da comunidade
social, de medo ã “libertar” o trabalho humano (subme­ e da civilização terrenas sôbre o fundamento da unidade
tendo-o à comunidade econômica), e conquistar assim o da fé teológica e do credo religioso. Essa tentativa foi
comando da história. Os advogados de um tipo perso­ bem sucedida durante vários séculos. Falhou, porém,
nalista de sociedade vêem a marca da dignidade huma­ com o correi- dos tempos, depois da Reforma e do Renas­
na, antes e acima de tudo, no poder de colocar êsses mes­ cimento. Uma volta à estrutura sacral da Idade Média
mos bens da natureza a serviço da conquista comum de não é de forma alguma concebível. À medida que a so­
bens intrinsecamente humanos, morais e espirituais e da ciedade civil, ou o corpo político, se tornou, de maneira
liberdade humana de autonomia. Êsses três grupos, ine­ mais perfeita, distinta do domínio espiritual da Igreja,
vitavelmente, acusarão uns aos outros de ignorarem cer­ — um processo que, em si mesmo, não era senão um
tos direitos essenciais do ser humano. Trata-se de saber desenvolvimento da distinção evangélica entre as coisas
qual dêles traça uma imagem fiel e qual uma imagem que pertencem a César e as coisas que pertencem a Deus
falsa do homem. Quanto a mim, bem sei em qual das -, a sociedade civil começou a fundar-se em um bem
três posições me encontro: na terceira corrente que aca­ comum e em uma tarefa comum que pertencem a uma
bo de mencionar. ordem de coisa terrena, “temporal” ou “secular”, da qual
participam, em igual proporção, cidadãos pertencentes a
diferentes grupos ou estirpes. A divisão religiosa entre
o homens é. em si mesma, uma desgraça. Mas é um
Fito. Queiramos ou não, temos de reconhcec-lo.
Nos I empoa modernos fêz-se uma tentativa no sen­
tido de basear a vida da civilização e da comunidade ter-
128 JACQUES MARITA1N 0 HOMEM E 0 ESTADO 129

rena em fundamentos exclusivamente da razão, — ra­ tuern um assunto que exige nossa atenção e que deseja­
zão separadü da religião e do Evangelho. Essa tentativa mos agora discutir.
despertou imensas esperanças nos dois últimos séculos, Uma sociedade de homens livres implica certos prin­
— mas fracassou rapidamente. A razão pura se revelou cípios primordiais que estão no âmago de sua própria
mais incapaz do que a fé de assegurar a unidade espi­ existência. Uma democracia genuína implica unia con­
ritual da humanidade, e o sonho de um credo “científico” cordância fundamenta] entre espíritos e vontade-' com
que viesse a unir os homens na paz e cm convicções co­ relação às bases da vida em comum. Essa democracia
muns sobre os objetivos e princípios fundamentais da tem consciência de si mesma e de seus princípios, e deve
vida c da sociedade humana, desvaneceu-se em nossas ser capaz de defender e de promover sua própria con­
catástrofes contemporâneas. À medida que os aconteci­ cepção da vida social o política. Deve scr portadora, cm
si mesma, de, twn credo humano comum, o credo da Uber­
mentos trágicos das líltimas décadas provavam a falsi­
dade. O êrro do liberalismo burguês consistiu em conce­
dade do racionalismo burguês nos séculos XVIII e XIX,
ber a sociedade democrática como uma espécie de arena
impunha-se-nos o fato de que a religião e a metafísica
na qual tôdas as concepções relativas às bases da vida
constituem parle essencial da cultura humana, e incen­ comum, mesmo as mais destruidoras da liberdade e da
tivos primários e indispensáveis para a própria vida da lei, defrontam-se com a pura e simples indiferença do
sociedade. 1 corpo político, enquanto competem perante a opinião pú­
O resultado provável é que, caso a democracia blica em uma espécie de mercado livre de idéias-mestras,
ingresse em sua nova era histórica com bastante inteli­ sadias ou envenenadas da vida política. A democracia
gência e vitalidade, uma democracia renovada não igno­ burguesa do século XTX foi neutra, mesmo em relação à
rará a religião, como o fez a sociedade burguesa do sé­ liberdade. Assim como não possuía nenhum bem comum
culo XIX, a mn tempo individualista e neutra. Essa de­ real, também não tinha nenhum pensamento comum real.
mocracia renovada, “personalista”, será de tipo plura­ Não possuía cérebro próprio e sim um crânio neutro e
lista . vazio forrado de espelhos. Com isso não é de admirar
Teríamos assim, — supondo que o povo tenha re­ que, antes da Segunda Guerra Mundial, em países que
conquistado a sua fé cristã, ou, pelo menos, reconhecido a propaganda fascista, racista ou comunista ia pertur­
o valor e a lógica da concepção cristã da liberdade, do bar ou corromper, essa democracia se tornasse uma so­
progresso social e da organização política, — teríamos, ciedade sem nenhuma idéia de si mesma e sem nenhuma
de um lado, um corpo político cristãmente inspirado no fé em si mesma, sem nenhuma fé comum, que lhe permi­
estabelecimento da sua própria vida política; de outro tisse resistir à desintegração.
lado, êsse corpo político personalista teria de reconhecer Mas o ponto mais importante de todos, a ser aqui
que homens pertencentes aos mais diversos credos e às registrado, é que essa fé e essa inspiração, bem como o
mais distintas correntes filosóficas e religiosas poderiam conceito de si mesma de que necessita o democracia, —
e deveriam cooperar para a tarefa e para o bem-estar nada disso pertence à ordem do credo religioso e da vida
comum, contanto que concordem, ao mesmo tempo, no eterna, mas à ordem temporal ou secular da vida terrena
que diz respeito aos princípios essenciais de uma socie­ da cultura ou da civilização. A fé, de que aqui se trata,
dade de homens livres. Tais princípios comuns consti- não é uma fé religiosa, mas 8Ím unia fé cívica ou secular.
130 JACQUES MARITAIN (» HOMEM E O ESTADO 131
Nem se trata dèsse substituto filosófico da fé religiosa, Ih-ih moral Devemos, por isso, manter uma distinção
dessa adesão forçada cm virtude dc demonstrações ra­ nmiAi ■ • clara entre, de um lado, o credo humano e tem-
cionais, que os fiiosofos do século XVI11 e XIX procura­ poi.il que r .ta na raiz da vida comum e é apenas um
ram em vão. Uma verdadeira democracia não podo im­ v' ui iiile de conclusões práticas ou de pontos práticos de
por a seus cidadãos, nem pedir-lhes como condição para ccnrefip tieia, e, de outro, as justificações teóricas, as
pertencerem a cidade, qualquer credo filosófico ou reli­ doutrinar. sobre o muudo e a vida, os credos filosóficos
gioso. Essa concepção da cidade era possível durante o u i religiosos que encontraram ou pretendem encontrar,
período “sacraE ue nossa civilização, quando a eomuni- mi razao, essas conclusões práticas.
tiaue de fé cristã era um pré-requisito para a constitui­ () cm-po político tem o direito e o dever de promo­
ção do corpo politico. Em nossos próprios dias só pôde vei- entre os seus cidadãos, principalmente através da
produzir aqueia contrafação inumana, hipócrita ou vio­ eiiiicnção, o credo humano em temporal — e essencial­
lenta, oferecida pelos Estados totalitários que exigem a mente prático —, do qual dependem tanto a comunhão
fé, a oDedâènCia e o amor do homem religioso por seu nacional como a paz civil. Êsse corpo político, porém, não
Deus. 1'roduziu apenas o seu esforço para impor o seu leni direito como organismo meramente temporal ou se­
credo ao espírito das massas, por meio da propaganda, cular, incorporado à esfera em que o Estado moderno
da calunia e da policia. d •,-iTuta de sua autoridade autônoma, de impor aos ci­
Qual é, então, o objeto dessa fé secular de que esta­ dadãos ou dêles exigir uma regra de fé ou um conformis­
mos tratando? Esse objeto é apenas prático, não teórico mo da razão — um credo filosófico ou religioso que se
ou dogmático. A fé secular em questão trata apenas de apresentaria como a única justificação possível da Carta
prmcípios práticos que o espírito humano pode procurar prática através da qual a fé comum secular do povo se
justiiicar, — com maior ou menor êxito, isso é outro exprime. () que importa para o corpo político é que o
assunto —, sob pontos de vista filosóficos mteiramente sentimento democrático se conserve de fato vivo pela ade­
diversos, provàvelmente porque dependem, essencialmen­ são dos espíritos, embora por motivos diversos, a essa
te, de certas apercepções simples, naturais, de que o co­ Carta moral. Os caminhos e os motivos, mediante os
ração humano se torna capaz com o progresso da cons­ quais se realiza essa adesão, pertencem à liberdade dos
ciência moral e que, na realidade, foram despertadas pe­ espíritos e das consciências. Certamente, é de suprema
lo fermento do Evangelho atuando nas profundezas obs­ importância para o bem comum que as asserções práti­
curas da história humana. Eis por que homens, possuin­ cas que constituem a Carta em questão sejam, em si mes­
do concepções diferentes e mesmo opostas, em matéria mas. verdadeiras. Não compete, todavia, ao Estado de­
metafísica ou religiosa, podem convergir, não em virtu­ mocrático julgar dessa verdade. Êsse Estado é que nas­
de de qualquer identidade de doutrina, mas em virtude ceu daquela verdade, tal como foi reconhecida e afirma­
de uma semelhança analógica de princípios práticos, da pelo povo, por cada uni de nós, dentro dos limites de
nas mesmas conclusões práticas, participando da mesma na capacidade.
fé secular prática, contanto que possuam a mesma reve­ Qual si ria o conteúdo dessa Carta moral, dêsse có­
rência, talvez por motivos completamente diversos, pela digo dc moralidade social e política do qual estou tra-
verdade e pela inteligência, pela dignidade humana, pela liindo <• cuja validez está implicada pelo pacto funda­
liberdade e pelu amor fraterno e pelo valor absoluto do mental dc uma sociedade de homens livres? Tal Carla
O HOMEM E o ESTADO 133
132 JACiJUES MAttITAIN
Desejaria, agora, acrescentar duas observações que
trataria, por exemplo, dos seguintes pontos: direitos e nada têm que ver diretamente com o problema que aca­
liberdades da pessoa humana, direitos e liberdades polí­ bamos de discutir, mas untes com os problemas que va­
ticas, direitos sociais e liberdades sociais, responsabilida­ mos considerar no próximo capítulo.
des correspondentes; direitos e deveres de pessoas que Primeiramente: na realidade, quanto mais o corpo
participam de uma sociedade familiar, bem como liber­ político, isto é, o povo —estiver imbuído de convic­
dades e obrigações dessa última em relação ao corpo po­ ções cristãs e convencido da /J religiosa que o inspira,
lítico; direitos e deveres mútuos dos grupos e do Estado; mais profundamenle aderirá ã fé secular na Carta demo­
governo do povo pelo povo e para o povo; funções da crática, pois, na realidade, essa última assumiu uma for­
autoridade em uma democracia política e social; obri­ ma consistontx! na história humana, como resultado da
gação moral, ligando em consciência, no que diz respei­ inspiração do Evangelho, despertando as potencialidades
to às leis justas, assim como à Constituição que garante “naturalmente cristãs" de uma consciência secular co­
as liberdades populares; exclusão do recurso aos golpes mum, mesmo entre a diversidade das correntes e doutri­
políticos (golpes de Estado) em uma sociedade verdadei­ nas espirituais opostas umas às outras e, às vêzes, cor­
ramente livre e governada por leis cuja mudança e evo­ rompidas por uma ideologia adulterada.
lução dependem da maioria política; igualdade humana, Em segundo lugar: à medida que o corpo político, —
justiça entre as pessoas e o corpo político, justiça entre o isto é, ô povo —, estiver imbuído de convicções cristãs, a
corpo político e as pessoas, amizade cívica e um ideal de justificação da Carta democrática oferecida pela filoso­
fraternidade, liberdade religiosa, tolerância e respeito fia cristã seria, na realidade e na mesma proporção, re­
mútuo entre várias comunidades espirituais e ideologias, conhecida como a mais verdadeira. Isso, não como resul­
devoção cívica e amor pela Pátria, reverência por sua tado de qualquer interferência do Estado, mas apenas
história o pela herança recebida, assim como a compre­ como resultado da adesão livre que um número cada vez
ensão das várias tradições que concorrem para criar sua maior de cidadãos daria à fé e à filosofia cristã, em sua
unidade; obrigações de cada pessoa para com o bem co­ própria existência.
mum do corpo político e obrigações de cada Nação pa­ É inútil dizer que nenhuma espécie de pressão reli­
ra com o bem comum da sociedade civilizada, assim co­ giosa seria exercida pela maioria. A liberdade dos cida­
mo a necessidade de ter consciência da unidade do mun­ dãos não cristãos de fundarem suas convicções democrá­
do c da existência de uma comunidade de povos. ticas em motivos diferentes daqueles mais geralmente
É um fato que, em nações democráticas, como os Es­ aceitos não seria de modo nenhum ameaçada. Só a fé
tados Unidos ou a França, possuidoras de uma árdua ex­ secular de todos na Carta secular comum interessaria à
periência histórica de lulas pela liberdade, práticamente autoridade civil e ao Estado.
todo mundo estaria pronto a endossar os princípios de
tal Carta. Dada a virtude de universalidade com a qual II
foi dotada a civilização herdada da Cristandade, como
Toynbee mostrou de modo persuasivo, temos boas razões Os hereges políticos
de esperar que, em tôdas as nações do mundo, o povo, — Precisamos reconhecer o fato de que o corpo político,
digo o povo, quaisquer que sejam os seus governos —, como a Igreja, tem os seus próprios hereges. Mais ainda.
seria capaz de expressar a mesma adesão.
134 JACQUES MAR1TAIN O HOMEM E O ESTADO 135

diz-nos São Paulo que deve haver hereges 1 — e prova­ justiça e da lei. Neste ponto não há problema. Começa
velmente são mais inevitáveis no Estado do que na Igre­ a dificuldade quando se trata da uUvidiulc oral e escrita
ja. Não é certo que insistimos no fato de que existe uma do herege político.
Carta democrática, ou melhor, um credo democrático? E O problema da liberdade de expressão - não é um
que existe uma fé secular democrática? Pois hem, onde problema imples. Tão grande é a confusão, hoje em dia,
quer que exista fé divina ou humana, religiosa ou se­
cular, existem também hereges que ameaçam a unidade ■ Vido o importante relatório, ífnta bnprrxoa l vrc c nr—
da comunidade, quer religiosa, quer civil, Na sociedade pi. xâv l (A a)ul JliKpoimtiblr 1‘ «no'), publicado pela C r.iis-
:'m par» n Libe dnrh da Imprensa sob a presidência >1" Robe t
sãcraJ da Idade Média era o herege o que rompia a uni­ M. Hutchln (Chicano Univor ity of Chieago Prc33, 11)47). Qui­
dade religiosa. Em uma sociedade leiga de homens livres, sera relembrar nesta nota tw vár as recomendações feitas por e«a
o herege é aquêle que quebra “o conjunto das crenças e comissão: . ...
das práticas comuns democráticas”, aquêle que se levanta I. Qurmlo ao rrnvêrno: (1) Que as garantias const-iturio-n a
contra a liberdade ou contra a igualdade fundamental da liberdade de Imprensa sejam reconhecida*. nelas incluindo-se
o rádio e o cinema (21 Que o governo fnclHtO novos i'*ic'ativas
dos homens, ou então contra a dignidade e os direitos da na indur frin da comunicações, qui estimule a prodncão rt° no­
nossa pessoa humana ou o poder moral da lei. vo0 técnicas, mantenha a livre concorrência entro “truBts” me­
Todo aquêle que se lembrar das lições da história diante as leis contra os monopólios, mas que estas leis smrnn
sabe que uma sociedade democrática não deveria ser usndas de maneira a fragmentar ês°es “trnst"" o que, opdo «e
uma sociedade desarmada, que os inimigos da liberdade tornar neressária a concentrarão em nm+ér;a do conv-nin<,r;->o,
procure o governo obter para o niíblico os b"n"fío!oo dop.-,, <• -
pudessem aniquilar calmamente, em nome da liberdade. -entracão. (3) Como umn alternativa aos atna;s remédios indl-
Precisamente por se tratar de uma comunidade de ho­ c "rios contra a difamação, nma lcgslnci ' nela qual a p»r‘,
mens livres, deve ela defender-se com particular energia ofendida possa obter uma retratação, ou nma fonnulaçõo do- fa­
contra aqueles que. por princípio, se recusam a aceitar to- De1 o ofensor, ou wnn oportunidade de repi ca. (4) A r•■vo-
ou mesmo trabalham por destruir os fundamentos da vi­ gaçno -da legislação que pro«be expressões em favor do mudan­
ças revolucionárias em nossas instituições ruando não h tiver
da comum em tal regime, fundamentos êsses que são u perigo Pqu'do e • Itrnl de mie atos de violência resultorão d - t >=s
liberdade e a fé secular prática expressa na Carta de­ expressões (5) Que o gnvêrro. através de meio- de propn -nnda.
mocrática . informo o público d*s fatos relativos à sua orlentnçfo pollt.cn e
Quando o herege político exerce uma atividade polí­ aos propósitos quo essa orientação tenha em vista e qne, nn me­
dida em que as repartições pnTticulnres do propaganda não pos­
tica, encontrará uma atividade política oposta e será de­ sam ou nno queiram proporcionar ao gnvêrno tais meios, possa
tido por ela. atividade livremente desenvolvida pelos ci­ o governo utilizar-se de meios próprios. Outrossim, quan o as
dadãos em um corpo político suficientemente enérgico e i—piç-tu-ãc ’ privados de propaganda não nos«am ou nã- queiram
vivo. Quando se entrega a uma atividade ilefjcd, pro­ fornecer informações sôbre êste pais a outro ou n outros paires
curando usar de violência, encontrará diante de si e será estrangeiro», possa o govêrno empregar meios de propaganda vara
detido por ela, autoridade que numa sociedade de ho­ suprir essa deficiência.
TI. Quanto à imprensa e aos meios de proparnnda: (1) Que
mens livres só se exerce contra êle por assegurar-lhe de as repartições do propaganda aceitem a re?pon abildade de cen­
maneira real e não fictícia as garantias institucionais da tros de informação e de diseuss o (2) Que assumam a respon­
sabilidade de financiar novas atividades experimentais nesses cam­
1 Cor. 11,19. pos. (3) Que membros da imprensa se dediquem a uma vigorosa
critica mútua. (1) Que a imprensa empregue todos os meios pos-
136 JACQÜES MARITAIN 0 HOMEM E O ESTADO 137

que vemos princípios de senso comum, desconsiderados Por outro lado, não gòmente a censura e os métodos
no passado pelos fanáticos de uma falsa e decepcionante policiais, mas também qualquer restrição direta à liber­
liberdade, serem agora usados, de modo falso e decepcio­ dade de expressão, embora inevitáveis em certos casos de
nante, para destruir a verdadeira liberdade. Essas má­ necessidade, são a pior maneira de garantir os direitos
ximas, — que dizem respeito às nossas obrigações para do corpo político na defesa da liberdade, da Carta co­
com a verdade objetiva e para com os direitos do bem mum e da moralidade comum. Isso porque qualquer des­
comum, — que eram estigmatizadas como um ultraje sas restrições contradiz o próprio espírito de uma socie­
contra a autonomia humana, quando a Igreja Católica dade democrática. Uma sociedade democrática sabe que
as promulgava para condenar u liberalismo teolóiíico e as energias íntimas da subjetividade humana, a razão e
que, ao se oporem a uma liberdade de expressão desen­ a consciência constituem as fontes mais valiosas da vida
freada que invocava uma extralimitação como que divi- política. Sabe também que é inútil combater idéias por
namente inspirada, eram, na realidade, de tal natureza meio de cordões sanitários e medidas repressivas. Os
que salvavam a liberdade de expressão —. essas mes­ próprios Estados Totalitários sabem disso, e, consequen­
mas máximas são agora trombeteadas pelo Estado Co­ temente, limitam-se a liquidar os seus hereges, ao mesmo
munista. que as perverte de modo a permitir, nem mais tempo que usam de meios psicotécnicos para domar ou
nem menos, do que o aniquilamento da liberdade de ex­ corromper as próprias idéias.
pressão. Ê uma triste vingança do Tempo, que todos Sabemos ainda que a concordância comum expressa
devem considerar como uma oportunidade para reflexões. na fé democrática não é de natureza doutrinária, mas
Ao discutir a liberdade de expressão, devemos levar simplesmente prática. Por isso, o critério de qualquer in-
em conta vários aspectos da questão. Por um lado, não é
exato que todo pensamento como tal, polo simples fato a) a liberdade de ?xpres?ão é um direito humano, rr.as êsse
de haver nascido em um intelecto humano, tenha o di­ díreito ó apenas um direito “substancialmente” mas não uabso-
lutamente” inalienável (cf. acima capitulo IV, n. 5), Há restri­
reito de propalar-se pelo corpo político. 3 ções para a liberdade de expressão, que são inevitavelmente exi-
tndaã tanto pelo bem comum como por essa própria liberdade,
flfvelp para incrementar a competência, a independência c a efi­ liberdade quê se destruiria a si mesma se se tornasse ilimitada:
ciência de seus funcionários. (5) Que a indústria do rádio fis­ ò) o Estado tem o direito de impor limitações à liberdade
calize os seus programas e trate dos anúncios como o fazem 03 de expressão, em vista dc circunstâncias partlcularmente sérias.
melhores jornais. Mas na realidade. só poderá fazer isso de uma maneira que be­
III. Quanto ao público: <1 > Que organizações, s i n intuito neficie uma sociedade democrática em matérias as inais óbvias
de lucro, ajudem a fornecer a variedade, a quantidade o u quali­ c tangíveis, tendo cm vista esses ingredientes básicos do bem co­
dade dos serviços de imprensa exigido pelo povo americano. (2) mum. que são os mais simples e às mais elementares;
Que se criem centros acadêmicos profissionais de estudo", espe­ c) quáridô se trata do assuntos dc natureza superior que irn-
cializados, de pceouiBa e de publicações no campo da prepagan plicnm tanto n liberdade dc inquéritos como os valores intrínse­
da e one, além disso, as escolas <1? jornalismo existentes explo­ cos da inteligência e da consciência, e com relação aos injrre-
rem os recursos totais de suas Universidades para que seus es dientvS mais vitais e espirituais (que são por at mm/ice os mai;
tudar.tcs possam obter educação mais liberal e mai3 ampla. (3) importante?) do hem comum, as limitações dc fato que sejam
Qnc uma repnrtiçao nova c independente seja estabelecida para postas à iherdade de expressão dependem das instituições cons­
avaliar anualmente as realizações da imprensa e informar sobra trui ivas e reguladoras, dos órgãos e repartições, bem como das
au mesma3. cJtividado? livres espontaneamente desenvolvidas no corpo polí­
3 A fim de resumir as considerações apresentadas nessa se­
tico.
ção eu diria o seguinte:
138 JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E O ESTADO 139

teríerência do Estado no campo da expressão do pensa­ Quero dizer, então, que, mesmo em relação a assun­
mento também deve ser prático e não ideológico. Quan­ tos de ordem superior, o corpo político democrático está
to mais estranho fôr êsse critério em relação ao próprio desarmado? Quero dizer exatamente o contrário. Enten­
conteúdo do pensamento, tanto melhor. E demais, por do que meios positivos construtivos são muito mais efi­
exemplo, que o Estado julgue se uma obra de arte pos­ cazes do que a mera restrição <la liberdade de expressão.
sui uma característica intrínseca de imoralidade, pois E, numa democracia viva, existem inúmeros meios de
nesse caso condenaria Baudelair- ou Joyce. Basta-lhe de­ tal natureza. Consideremos especialincnte o tema dos he­
terminar se um autor ou um editor tencionam ganhar reges políticos. Grupos e ligas de cidadãos poderiam
dinheiro vendendo publicações obscenas. É demais que consagrar-se ao progresso da filosofia democrática, ao es­
o Estado decida se uma teoria política é herética em re­ clarecimento do povo cm relação à Carta comum o à luta
lação à fé democrática. Éãsta-lhe resolver, — sempre intelectual contra as correntes políticas corruptas. 0
com as garantia.1- constitucionais da justiça e da lei, — próprio Estado poderia manter o povo informado dos
Re um herege político ameaça a Carta Democrática pelos julgamentos proferidos contra as ideologias antidemocrá­
atos tangíveis que empreende, ou por receber dinheiro ticas por um corpo especial, constituído por homens cuja
de um Estado estrangeiro para financiar propagandas sabedoria intelectual e cuja integridade moral fossem
antidemocráticas. Podem objetar-me com razão: não será universalmente reconhecidas. 6 Mais importante ainda
a perversão intelectual dos espíritos humanos, não seria que várias organizações, partindo livremente da
será a ruína das verdades primárias, muito mais peri­ base, que numa sociedade pluralista deveriam reunir de
gosa para o bem comum do corpo político do que todo e um lado leitores e espectadores e, de outro lado, escrito­
qualquer trabalho de corrupção? Sim, não há dúvida de res e oradores, poderiam desenvolver, quanto ao uso dos
que o 6. Mas não é menos certo que o Estado não tem meios de comunicação para a massa, um processo inces­
preparação suficiente para tratar de assuntos relativos à sante de auto-regulação, bem como um sentimento cres­
inteligência. cente cie responsabilidade. E ainda mais importante é
Toda vez que o Estado desconhece, essa verdade pri­ que o corpo político, com o sentimento de comunidade
mordial que depende de sua própria natureza, a vítima de que normalmente dispõe, tem às suas ordens a pres­
é a própria inteligência. E, como a inteligência encontra são espontânea da consciência comum e da opinião pú­
sempre a sua desforra, a vítima acaba sempre sendo, de blica, que surgem do cthus nacional, quando êste se en­
um modo ou de outro, o próprio corpo político. Só uma so­ contra firmemente estabelecido, e que são bastante for­
ciedade pode tratar de assuntos da inteligência: essa tes para impedirem que os hereges políticos tomem a li­
sociedade é a Igreja, por ser uma sociedade espiritual. derança. Antes e acima de tudo, dispõe o corpo político
Ela mesma, embora conheça a questão, teve no passado democrático da obra da educação democrática.
algumas tristes experiências ao dar parecer em assun­ de. moral e tendo em vista o bem comum do Reino de Deus, A
tos como o relativo ao movimento da terra, e não recor­ pretensão a uma liberdade ilimitada de expressão, apresentada
re sem muitas apreensões às suas armas espirituais con­ pedo liberalismo teológico, era um desafio direto a êsso direito
tra os seus próprios hereges. 4 da Igreja.
Vide também a Rvromendação I, 5, da Comissão para a
1 A Igreja, sem dúvida, tem direito a limitar a liberdade de Liberdade da Imprensa (vide acima o n.° I deste capitulo e u
expressão em sen próprio domínio espiritual, cm matéria de íó o nota 2).
140 JACQUES MARITAIN
O HOMEM E O ESTADO 141
III
mum, em virtude do qual a Carta em apreço é conside­
rada verdadeira pelo povo, e na medida em que ela de­
.4 educação e a Carta democrática riva daquele acôrdo entre os espíritos e as vontades que
constitui o fundamento da sociedade política. E assim —
A educação é, sem dúvida, o meio primacial para já que, de l'at<», o corpo político se divide em concepções
estimular a fé secular comum na Carta democrática. teóricas fundamentais, e já que o Estado democrático,
A educação depende, antes e acima de tudo, da fa­ como vimos antes, não pode impor um credo filosófico
mília. Pois, o fim da família não é apenas procriar, — a ou religioso o Éslado e o sistema educacional, ao pro­
promiscuidade seria bastante para isso —, mas procriar videnciarem o ensinamento da Carta comum, podem e
flêres humanos, educando-os não só fisica mas espiritual­ devem aderir tfin-sòmente ao reconhecimento prático co-
mente. Sob várias modalidades e formas, por tôda parte nnini dos princípios puramente práticos, de conformi­
e em todos os tempos, tiveram os homens consciência dade com os quais o povo resolveu viver em coletividade,
dessa exigência da lei natural. Eis por que a função do não obstante a divergência ou oposição entre suas tradi­
sistema educativo e a função educacional do Estado são ções espirituais e suas correntes ideológicas.
apenas funções auxiliares com relação ao grupo familiar, Mais ainda, não há crença senão naquilo que se con­
— funções normalmente auxiliares, além disso, já que o sidera intrinsecamente estabelecido como verdade, nem
grupo familiar é incapaz de proporcionar à mocidade tampouco qualquer consentimento do intelecto sem um
tôda a soma de conhecimentos neceBsãrios para a forma­ fundamento e uma justificação teórica: assim, se o Es­
ção de um homem na vida civilizada. Sustento que, ao tado e o sistema educacional devem cumprir com o seu
exercer essa função auxiliar normal, o sistema educativo dever e inculcar a Carta democrática de uma maneira
e o Estado devem prover os futuros cidadãos, não so­ realmente eficaz, não poderão deixar de recorrer — de
mente com um tesouro de técnicas, conhecimentos e sa­ modo que os espíritos entrem na pose de tal fundamen­
bedorias, — educação liberal para todos0 —, mas ainda to e justificação e percebam como verdadeiro o que se
com uma crença autentica e racionalizada na Carta co­ lhes ensina — às tradições filosóficas ou religiosas e às
mum democrática, tal como o exige a própria unidade correntes ideológicas que atuam espontaneamente na
do corpo político. consciência da nação e que concorreram para sua for­
O sistema educacional e o Estado têm o dever de mação histórica.
providenciar o ensinamento dessa Carta da vida comum, A adesão a qualquer dessas correntes ideológicas
defendendo e promovendo assim o bem comum e o es­ depende da liberdade de cada pessoa. Seria, contudo,
tatuto fundamental do corpo político, mesmo na medida pura ilusão pensar que a Carta democrática poderia ser
em que implica a fé secular comum. ensinada eficazmente, caso fôsse separada das raízes que
O sistema educacional e o Estado, todavia, podem lhe dão consistência e vigor no espirito de cada um, e
proceder assim somente em nome do consentimento co- caso fôsse reduzida a uma mera série de fórmulas abs­
tratas, isto é, livrescas, anêmicas e privadas de vida. Os
8 Cf. Robert M. Riitchins, JSducMimi for Freedoin (Bâton que ensinarem a Carta democrática deverão crer nela
Rcuge, Louisiana State University Presa, 1043). com todo o coração e nela depositar todas as suas con­
vicções pessoais, as suas consciências e os surtos profun­
142 JACQUES MARITAIN 0 DOMEM E O ESTADO 143

dos de sua vida moral. Deverão, por isso, explicar e jus­


•*♦
tificar seus artigos à luz da fé filosófica ou religiosa a Traiamos até agora de princípios gerais. Quando se
que aderem, fé essa que estimula sua crença na Carta traia de <>.< aplicar, não desconheço a grande diversidade
comum. de sisleini • educacionais entre países cujas escolas são
Ora, se todo professor concentrar assim as suas con­ mantidas, prlneipalmenie, pelo Eslado e aqueles cuja
vicções filosóficas ou religiosas, a sua fé pessoal e a sua odueaçim principalmontc, <h caráter particular.
alma no esforço tendente a confirmar e vivificar a Carta Quando se trai i de um tdst rna educativo fundado
moral da democracia, torna-se então manifesto que Lai priiici|>.ilnieiite, eortio em I rança, na manutenção e na
ensinamento exige uma certa adaptação espontânea en­
l;; ealizuçao pelo Esl.ido, ofereci algumas sugestões pró­
tre o que dá e o que recebe, entre a inspiração que anima prias em um anexo a edição francesa do meu livro —
o professor e as concepções fundamentais que o estu­ .d incriuilltadu tia educação. '• O pluralismo por mim.
dante haure em seu círculo familiar e em seu meio so­ advogado para as escolas públicas deveria, a meu ver,
cial. conçcpções essas que sua família se julga no de­ r. ferir-se não ao currículo, mas às diferentes inspirações
ver de incentivar e desenvolver nêle. Em ou i ras palavras, de acôrdo com as quais o currículo comum seria ensi­
tal ensinamento deveria despertar nos que o recebem o nado se os membros do magistério fôssem distribuídos e
profundo interesse que depende das crenças morais já agrupados nas diferentes zonas de uma cidade, ou de
formadas ou nêle iniciadas, crenças sem as quais tal en­
todo o país, de conformidade com a sua própria escolha
sinamento perderia a maior parte de sua eficácia vital.
A conclusão ó óbvia. O alvo colimado pelo sistema e a geografia moral das comunidades locais, bem como
educacional e polo Estado é a unidade — unidade que das solicitações e associações de pais de família, de modo
consiste na adesão comum à Carta democrática. Mas, a que suas convicções religiosas ou filosóficas pudessem
fim de alcançar essa unidade prática, torna-se indispen­ mais ou menos corresponder às que prevalecem no am­
sável um são pluralismo nos meios; diferenciações in­ biente social.
teriores devem manifestar-se na estrutura do sistema Nos sistemas educacionais fundados, até certo ponto,
educacional, de maneira a proporcionar um ensinamento como acontece nos Estados Unidos, em escolas primárias,
eficaz da Carta democrática. De um lado, o Estado — ou secundárias e superiores mantidas por instituições parti­
os grupos e repartições do corpo político dedicados à culares, o ensino pluralístico da Carta democrática rea­
educação, ou as autoridades que dirigem o sistema edu­ lizar-se-ia ainda mais fácil se as instituições confessio­
cacional — deveria providenciar para que a Carta de­ nais tivessem mais consciência da influência que a ins­
mocrática fôsse ensinada de maneira compreensiva, con­ piração religiosa exerce sôbre todo o campo da inteli­
vincente e de larga repercussão em tódas as escolas e gência. e se as instituições seculares se libertassem dos
instituições educacionais. De outra parte, e a fim de ali­ preconceitos secularistas que nelas se desenvolveram de
mentar a fé democrática nos espíritos, u sistema educa­ modo crescente, embora muitas delas sejam de origem
cional deveria admitir em si mesmo normas, pluralísli- religiosa.
cas que tornem possível aos professores concentrar tôdas
as suas convicções e as mais íntimas inspirações no en­ * L'Eüiiea,tíon à la. croisér deu ckcmine (Paris, Luf., 1947),
sinamento da Carla democrática. Anexo: problème 1’éeole publique en France”.
144 JACOÜES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 145

Não me ocupo aqui com o problema da instrução re­ capazes de jurar que crêem sinceramente em todos os
ligiosa da mocidade educada em escolas e universidades dispositivos da Carta democrática. Deveriam também ju­
seculares e em instituições de ensino público. Não me rar que, se algum dia deixassem de nela acreditar, soli­
ocupa tampouco com as facilidades que deveriam ser citariam então a transferência para o ensino de outra
oferecida*; relativamente a uma educação religiosa sé­ parie do currículo. Ser-lhes-ia dada a garantia, além
ria. às crianças cujos pais desejem tal educação. O que disso, de que não incorreriam, com isso, em qualquer
estou aqui discutindo é o ensino da Carta democrática prejuízo profissional.
nessas instituições- Quanto ao papei do Estado, não creio que fôsse difí­
A solução mais racional, de acordo com o princípio cil determiná-lo, desde que tenhamos em mente a regra
pluralístico, deveria consistir, a meu ver, em que o en­ de ouro do bem comum. 0 Estado — precisumenle por
sino da Carta democrática fôsse ministrado não por um não ser um substituto do corpo político e sim um órgão
e sim por diferentes mestres pertencentes às principais especial encarregado de manter o que existe no corpo
tradiçÕés filosóficas ou religiosas representadas na po­ político em concordância com o bem comum — o Estado
pulação escolar de um determinado colégio ou escola, lião deveria ficar alheio a êste assunto; pelo contrário,
dirigindo-se cada um desses professores aos estudantes deveria ajudar e estimular o osfôrço educativo praticado
da sua própria tradição espiritual, Por mais lógica, en­ pelas várias instituições particulares, quer confessionais,
tretanto, que essa solução possa ser, não me parece que quer seculares, que emanam das diversas correntes es­
muitos de nossos contemporâneos a considerem exequí­ pirituais em ação no corpo da nacionalidade e a elas
vel. Em cada país, enfim, deve introduzir-se algo de di­ corresponde. Essa ajuda e êsae estímulo não se referem
ferente para garantir o ensinamento real e eficiente da a qualquer espécie de subvenção financeira às próprias
Carta democrática. escolas, * mas sim aos serviços de assistência social para
A idéia é que uma nova disciplma deveria ser in­
troduzida no currículo. Essa nova disciplina reuniria ra­ 8 Quanto ao problema muho controverso relativo à subven­
mos diferentes do conhecimento, tais como a história na­ ção financeira das cacoiae confessionais, o principio geral a ser
cional e a história da civilização como estruturas bási­ considerado poderia, a meu ver, ser expresso do seguinte modo:
ou ai várias confissões religiosas tradicionais de uttaa nação são
cas, e depois as humanidades, as ciências sociais, a filo­ integradas no sistema público escolar, ou produzem apenas es-
sofia social e a filosofia do direito, tôdas elas orientadas cobi? particulares.
para o desenvolvimento e a significação das grandes Nu primeiro caso, o sistema público escolar admite uma ot-
idéias compreendidas na Carta comum. Essa Carta seria gnnizução interna pluralistica, de acordo com a diversidade das
assim ensinada, de uma maneira concreta e compreensí­ tradições -espirituais da nação (cf. o sistema escolar holandês);
u as escolas confessionais — ou as seções do sistema público cs-
vel, à luz dos grandes poetas, pensadores e heróis da hu­ eoliir a e’.as correspondentes — são mantidas pelo Estado. Nesse
manidade e em conexão com a vida histórica da nacio­ caco, a» escolas confessionais já não são autônomas. Estão su­
nalidade, vista como uma trama de feitos e de verdades, bordinadas ao regulamento geral do ai.-.toma csroinr público.
todos cheios de significação e merecidamente recorda­ No segundo caso, as escolas confessionais são cpmpletamenté
autônoma;, mas não são mantidas pelo Estado.
dos. Quanto aos professores, só poderiam encarregar-se Dadas as condições e as dificuldades dos nossos tempos, pa­
dessa nova parte do currículo uquêles que se sentissem rece que, pelo menos na Europa, a melhor das soluções seria que
146 JACQUES MAR1TAIN
0 HOMEM E 0 ESTADO 147
todas as crianças e todos os estudantes. Quanto às esco­
las e as univyrsiuades mretamente mainiuas pelo Éstauo, IV
nau somente aevenam proporcionar toüas as luciiidacles
Problemas rehUivfw à autoridade
para que nelas houvesse instrução reugiosa, niàs ainda
esoa instrução deveria reconnecer expressainente o pa­ 1'ralei do problema da autoridade no regime demo­
pei eàsenciaiinenie ue^õinpennauo péiub princípios e pe­ crático em outro dos meus livros.11 torna-se necessário,
ias» uibpiiuçucb juoeu-ciubi-as na toimaçao e na manucéh- entretanto, resumir algumas considerações sôbre o assun­
çau ua vana utiuucraixca. De^cunsiuerar, som pretexto to, de modo a completarmos suficientemente a nosso
uc uma scpaiaçau entre o i^Slauu e a igreja, lalsa e conceito na Carta democrática. Não me desagrada, além
autipuHucáhieiite íuierpietaua, as traiuçoes religiosas e disso, ter a oportunidade de esclarecer e definir melhor
Um üutreincb íuedAugAvao que lazcm parte ua íterança do algumas posições e creio que de modo mais verdadeiro
cuii-u puiitâcu, ^í^juixuaiia apenas bepuiar a uexuucracxa do que em meus ensaios anteriores.
e a xc uexuourauca ue suas xvutes vita&s mais pivitinuas- Autoridade e Poder são coisas diferentes. Poder ú
a íôrça por meio da qual podemos obrigar os outros a
nos obedecerem. Autoridade é o direito de dirigir e co­
a primeira hipótese fosse aplicada como regia e a segunda como
Um ci>íjApÀCiuvAicti em Ciicuiibt-cAiic aQ parvcuiares. mandar, de ser atendido e obedecido por outros. A Auto­
ura. se o sistema puuiico escolar reje»ta lòda a espécie de ridade exige u Poder. (} Poder s<jm autorid ado ú
piuxkujsme iiitciiiv e su preime ao ensino comum mwameuu **ueu- A autoridade significa, portanto, um direito. Se, no
Lru uii a-re.ng.iu~u, apreaenuu-se emau uniu siluaçao esseitcial- cosmos, uma natureza, como a natureza humana, pode
íuviite MiHULmiatuiia. ru.a liu Sibuêma puuiicu eacoiur pretende conservar-se e desenvolver-se apenas em um estado de
se» um .tiviço j/«uUou e, hü ríuuuacie, hum o e, ja que iuo ba- cultura, e se êsse estado de cultura necessariamente su­
n.ua/ as ncccfioioHuea u as exigcucias tuimamcnwis — que, por põe no grupo social uma função de comando e governo
jusv.^a, eiiain ue sei iguaunente sausiena* — das vanãs ca-
vegurias ue ciuadaus que compõem a nação. Como resultado dessa
dirigida para o bem comum, é sinal que essa função é
CoiK.amçao intrínseca e lanuamenlai, essa situação insausíatona exigida, pela Lei Natural e implica um direito ao coman­
uu p.ue ser íemeüiada: ai guina faica de justiça sempre há de do e ao govêrno.
bloquear um ou outro, dos caminhos indicados, Se us escolas Além disso, se tal função, que é exercida na demo­
ctHxtóvAd-iiais lotem suDvenckunauas peio Estado, os fundos pu- cracia direta pela “multidão” ou pelo próprio povo, só
b. ieos serão usados para fins particulares. Se as escolas ton- pode ser bom exercida, em sociedades maiores e mais
íe/i.iunais não forem subvencionadas pelo Estado, algumas cate-
gtirms ae cidadãos serão obrigadas a pagar duas vezes a mesma diferenciadas, por meio de certos homens que represen­
conta (primeiro, impostos para o sistema escolar publico; segUn- tam o povo e que se ocupam especificamente com os as­
d , auxdio í-inanceno para as suus próprias escolas pnvaduo). suntos relativos à comunidade em geral, — não podemos
o inconveniente implicado na primeira parte da akernativa po­ então fugir à conclusão de que tais homens, uma vez
deria ser considerado, na verdade, como compensando um iuedn-
vepiente ainda mais sério, como seja o do serviço público que assumida a responsabilidade da direção da comunidade,
não é público. ÍMas, de fato, se o Estado não quer adaptar o tèm o direito (recebido do povo e através dele) de serem
s.s.tma <-ãco ar às exigência* legítimas de todas as categorias de obedecidos em virtude do bem comum. Por outras pa-
c. dadãos, a uda menos quererá dispor uo$ fundos públicos para
couii abalançar êsse defeilo. » Scholdshc-ism and Politicfí (New York, MacMillan Cu., 1940),
cap. IV (texto francôs correspondente em Princi^s d^une paiiliqvo
humanütie, New York, Maison Française, 1944, cap. II).
O HOMEM E O ESTADO 149
148 JACQUES MAIUTAIN
próprio, como de um canal através do qual a natureza
faz com que o ccrpo político exista e atue.
lavras, a relação de autoridade entre os homens procede a;; duas afirmações, expressas do modo mais abs-
da Lei Natural. Refiro-me aqui à relação de autoridade tralo 1 ainda indeterminado, t’ornm objeto de concor­
tomada ainda de modo indeterminado e não nu sentido dância i-.cral por parte de uma tradição secular em ma­
de que alguns, em particular, devem comandar e outros, téria de rilosofia política. Interpretaram-nas, contudo,
em particular, devem obedecer. Refiro-me apenas ao sen­ de mar.ura. muito diversas e, por vêzes, contraditórias.
tido geral da relação de autoridade, segundo o qual deve
haver, em uma certa sociedade, quem comande e quem Um primeiro problema, referente à relação entre o
obedeça. Quanto ao modo de deisgnação daqueles que povo e Deus ó o seguinte: será que o povo recebe de
devem comandar, é um outro assunto, de que trataremos Deus o direito ao aulogovâmo e à autoridade de se go­
depois e de um modo racional.10 vernar a si mezmo de um modo meramente transitivo e
Finalmente, visto como a autoridade significa direi­ transitório? Sendo assim, quando um povo designa os
to, tem de ser obedecida por motivo de consciência, isto seus governantes, atua apenas como causa- instrumen­
é, segundo o medo pelo qual homens livres obedecem, e tal, 12 através da qual só Deus (como agente principal)
sempre em virtude do bem comum.11 investe de autoridade aqu&le ou aqueles que foram de­
Peia mesma razão, porém, não há autoridade onde signados ?
_____ não há iustica. Uma autoridade injujta-xnâo c autorida­ Ou será que o povo recebe de Deus o direito ao auto­
de, como uma lei injusta não é lei. Nas origens do senti­ governo e à autoridade de se governar a si próprio, de
mento democrático, não existe o desejo de "obedecer modo inerente? Sendo assim, o povo possui êsse direito
apenas a si próprio”, como Rousseau pensava, mas antes e essa autoridade como “agente, principal” (embora “se­
u desejo de obedecer apenas porque é justo. cundário” uu subordinado, em relação à Causa Prima­
cial) que investe dc autoridade aquele ou aqueles que fo­
*♦* rem eleitos, em virtude do seu próprio poder causal, em­
bora atuando sempre, como tôdas as coisas, em virtude
Qualquer que seja o regime da vida política, a auto­ da ativação universal de Deus?13 Esta segunda parte
ridade, isto é, o direito de dirigir e comandar, deriva do da alternativa é que veio a revelar-se como a verdadeira.
puvo, mas tem a sua fonte primeira no Autor da natu­
reza. A autoridade deriva da vontade ou consenso do i- Instrumental, não no que diz respeito à cucolhn ou designa­
povo, e do seu direito fundamenta] de se governar a si 10 11 ção feita, mas quanto à transmissão da áutorida.
1:1 Essa autoridade, assim, provém de Deus como Fonte Pri­
10 Cf. Suarez, De legibus, lib. III. c. 4, n.° 5: unde potestas mária e Causa Primária, e vem mesmo d'Êle “hnediatamente”,
regia forinaliter ut talis est de jure humano.’ no sentido de que a natureza humana, exigi-do naturnlmcnre
11 Para uma discussão completa da matéria vide Yves Si- aquilo que está necessariamente implicado na vida social, pro­
râon, Nvdwrc and Fitoiclivns of AuUwriiy (Milwaukee, Marquette cede imediatamente de Deus. Cf. Josephus Gredt, O.S.B., Ele-
üniversity Press, 1940}; Dentocraey (em preparo, a publicar-se r.iento Philofophte Aristotelicõ-Thonústicse (St. Lois, Herdei’
pela Üniversity of Chicago Press). O professor Yves Sirnon acen­ 1946), t. II, n.° 1029, 4: "A autoridade política provém imediata-
tuou com razão o fato de que o problema básico da autoridade mente de Deus ou da lei eterna, porquanto a natureza humana
(como um direito do povo como um todo) precudc o problema provém imediatamente de Deus e está naturalmente ordenada à
da necessidade du confiar a autoridade aos membros de um de­ sociedade,"
terminado governo.
.150 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 151
Um segundo problema, referente à relação entre o
o povo, como o indicamos no capitulo II, a Soberania do
povo e os seus governantes, foi o seguinte: quando o povo
monarca absoluto concebida do modo mais absoluto. Em
investe certos homens de «autoridade, renuncia êle pró­
outros (érmos, transformou um povo mítico — o povo
prio ao direito de autogoverno e à autoridade, de se
como sujeito monádico da Vontade Geral indivisível —
reger a si mesmo, qualquer que tenha «sido a maneira —
em uni? pessoa, soberana, separada do povo real (da
transitiva cu inerente — pela qual tenha recebido de
multidão) e governando-o de cima para baixo. Como re­
Deus êsses direitos? Sendo assim, empossados os regen­
sultado dessa concepção, visto como uma ficção imagi­
tes ou o regente, perde □ povo o direito ao autogovêrno e
à autoridade de gòvcrnar-se a si próprio, direito êsse que nária não pode de fato governar, é realmente para o Es­
tado — para o Estado que. segundo a verdadeira filoso­
seria então transferido ao governante ou governantes e
fia democrática, deveria ser superintendido e fiscalizado
de que passariam então a ser os únicos detentores?
pelo povo — oue a Soberania, uma Soberania indivisível
Ou, pelo contrário, quando o povo investe certos ho­
mens de autoridade, conserva- o seu direito ao autogo­ e irresponsável ia ser transferida. For outro lado, a Sobe­
verno e à sua autoridade de governar-se a si próprio? rania não pode ser partilhada. Por conseguinte, o
povo, ou ii Pessoa Soberana, não podia investir qualquer
Nessa segunda hipótese, possuiria o povo êsses direitos
5 representante Oficial de autoridade sôbre êle nróprio,
não apenas de forma inerente, quanto ao modo como os
povo. Só o pnvo, como um todo, poderia fazer leis e os
recebe de Deus, mas também de modo permanente,
homens eleitos por êle não teriam nenhuma autoridade
quanto à manejra. como os atribui aoe seus governantes? í
Na história moderna, como vimos ao discutir o pro­ real ou direito ao comando. Os eleitos do povo eram ape­
blema da soberania, 11 a era dos reis absolutos respon­ nas instrumentos pacíficos e não representantes. Por
deu afirmativamente à primeira parte dessa alternativa questão de princípio, o próprio conceito de representante
e, negativamente, à segunda. No entanto, a resposta ver­ do povo iria desaparecer.
dadeira é não à primeira parte da alternativa e sim- à E, no entanto, tal eonce’tn á «''R^lntamento ess&ncinl
segunda. A compreensão dessa verdade fundamental (há à autêntica filosofia democrática. Tôda teoria do ro^er.
muito tempo indicada por alguns dos grandes escolásti­ em uma sociedade democrática, repou°a sôbre a noção
cos) foi uma conquista da filosofia democrática. A êsse de representação ou vicariedade. em virtude da nual o
respeito, qualquer que se.ia o regime político, monárqui­ próprio direito do povo de gnvernar-so a si pró^Un é
co, aristocrático nu democrático, só a filosofia democrá­ exercido por meio dos representantes oficiai"3 escolhidos
tica é a verdadeira filosofia política. pelo próprio povo. Como mais tarde acentuarei os re­
A dificuldade proveio dc que, no próprio momento presentantes do povo são “enviados”. em nr®são o« co­
em que começou a predominar, foi essa filosofia corrom­ missão pelo povo, a fim de exercerem autoridade o is^o
pida por uma falsa ideologia — r. ideologia da Sobera­ porque o novo os fêz participantes, até certo n^n+n. dg
nia. Em vez de abandonar o conceito de Soberania (que sua própria autoridade. Em outra palavras, porque o
implica um poder supremo transcendente ou separado, povo os converteu em vma-aens p denutadns de si mesmo.
poder supremo vindo de cima), transferiu Rousseau para 14 Aquêles que representam n povo não stín a í»»»»'™"]
do Deus. O Pana na Iéreia. spndó n vivário dp Cristo é
14 a imagem de Cristo. O Prínc;pé na sociedade política,
ViWc cnp. í!
sendo o vigário do povo, é a imagem do povo. Uma grau-
152 JACQUES MARITÁIN 0 HOMEM E O BSTADO 153

de dose de confusão ocorreu, a êsse respeito, nos tempos são “ministros de Dens” ou “funcionários de Deus”, “in-
do absolutismo, porque a autoridade do Rei foi muitas dicados por Deus” (entendamos, através do povo) “para
vêzes concebida segundo o modelo da autoridade do infligir sua terrível vingança sôbré aqnêle que pratica o
Papa, isto é, como vindo de cima, quando na realidade mal”. 17 Nunca ensinou São Paulo que êles fossem a
provinha de baixo. Ainda por outro motivo, havia-se ve­ imagem de Deus. O qu? constitui essenciahnente, em sua
rificado prèviaménte muita confusão na Idade Média: própria ordem temporal ou política, a majestade do rei
porque a solene unção ou coroação do rei. sancionando é o mesmo que constitui a majestade do Presidente de
das alturas sagradas da ordem sobrenatural seu direito uma nação democrática, especialmente quando investido
ao comando na ordem natural, transmitia-lhe, corno ser­ de pedêree constitucionais, como ocorre nos Estados Uni­
vidor ou braço secular da Igreja, um reflexo das virtu­ dos. É certo que o Presidente, bem como o Rei, pode ser
des reais de ordem sobrenatural, como sejam a genero­ um homem extremamente vulgar e privado de qualquer
sidade, a justiça e o amor paternal de Cristo, cabeça da prestígio pessoal. Consideremo-lo, porém, quando atua
Igreja. Sob esse ponto de vista, a Idade Média poderia como chefe supremo do corpo político: milhões de cida­
considerar o rei como a imagem de Cristo.15 16 Mas na dãos com o seu poder coletivo, suas esperanças, sua con­
ordem natural, que é a ordem da vida política, êle não fiança, aua herança secular de sofrimento e de glória,
era a imagem de. Cristo; era a imagem do povo. Alguns seu futuro destino coletivo, sua missão na história da hu­
teólogos, espccialmente da corrente tomlsta, conseguiram manidade. todas essas coisas estão áli presentes na sua
fazer claramente essa distinção. Mas a consciência me­ pessoa, como em um símbolo que as torna presentes aos
dieval permaneceu enredada nessa idéia ambivalente nossos olhos. Nisso reside a majestade, nisso está a essên­
do Príncipe. cia de sua majestade política, não pelo fato de ser um
Há, no poder civil, certo cunho de majestade. Não Soberano, já que, no domínio político, não existe a so-
porque represente a Deus, mas porque representa o povo,
borania como tal, mas pelo fato de ser êle a imagem do
toou, a massa e a sua vontade comum de viver junta­
povo e o mais alto representante do povo. E por trás
mente. E, pelo mesmo motivo, já que representa o povo,
o poder civil recebe a sua autoridade, através do povo, dessa majestade, como seu fundamento supremo, lá está
da Causa Primeira da Natureza e da sociedade humana.’*5 a Lei eterna da Causa Primeira do ser, fonte da autori­
Ensina São Paulo que “não há autoridade que não ve­ dade que reside no povo e da qual participa o vigário
nha de Deus” e que aqueles que empunham a espada do povo. E quando êsse homem é reto e fiel à sua mis­
são há motivos de crer que, estando em jôgn o bem co­
15 Cf. essa passagem <le Braclon: De rerwn divisionc, citada mum do povo e agindo êle em união com o povo, recebe
por Ríchard 0’SuÜivan na sua introdução ao livro Undrr God êle de qualquer modo, por mais obscuro ou tortuoso
and Me Laici Pupers Read lo the Thomas More Society af Lon- que seja alguma inspiração particular (“graça de esta­
d&n, Secovd Series (Oxford, Blackwdl, 1949) : O rei “cfcêveria estar do”, auxilio exigido pelo dever profissional de cada um
subordinado à lei já que e vigário de Deus, como 7*e-u;ia cvidoii-
temente da semelhança com Jesus Cristo, cujo representante é êle de nós), daquele Ser Único, que é o governador supremo
na terra’' (citjus vices fferil in da história humana.
10 E cm certo sentido — acrescentaria um teólogo — da rea­
leza universal de Cristo. Mas isso nem o faz representante de
Cristo, nem imagem de Deus. '7 Rom. 13, 1-7.
154 O HOMEM E O ESTADO 155
JACQUES MAHTTAIN
pela mesma razão, faz com que a obediência a eles devi­
A majestade, de que estou falando, também existe
(de melo particular, nos regimes parlamentares euro­ da, dentro dos limitr dos seus podêrea, seja exigida por
peus) nas assembléias compostas de representantes do justiça.
povo, na medida em que são uma imagem coletiva Par;; compreender corretamente essas coisas, pare­
ce-me necessário elucidar os conceitos filosóficos tradi­
do povo e uma delegação coletiva do povo. (Essas assem­
cionais empregados nessa matéria. Por outras palavras,
bléias deveriam ter conreiência do tal fato; quando per­
para dar sentido perfeito ;. teoria política de Tomás de
dem o sentimento da sua majestade inerente e se com­
Aquino, tão bem desenvolvida por Cajetano,,s Bcllarmi-
portam como um bando de estudantes irresponsáveis ou
de facções que se entredevoram, é um mau sinal para a no31) e Suáreznos séculos XVI e princípios do século
democracia.) E, em cada um desses representantes to­ XVII, parece-me devermos acrescentar ainda alguns es­
mados separadamente, como deputados de urn fragmen­ clarecimentos. cujo princípio encontramos na própria
to do povo, parte dessa própria majestade, embora por noção de vicariedade, tal como Santo Tomás a emprega
assim dizer fracionada, ainda continua a existir. com respeito ao Príncipe, “vigário da multidão”,-1 no­
ção por êle elaborada em outro campo completaniente
*** diverso, a saber, a teoria do símbolo como “vigário” da
coisa significada. ~
Assim é que. em um regime democrático, é a estru­ Nessas condições ficam elucidados dois pontos prin­
tura legal típica do corpo político que dá expressão par­ cipais de doutrina, aos quais já se referiram nessas pre­
ticular e particularmente apropriada à verdade funda­ cedentes observações. O primeiro diz respeito ao fato de
mental reconhecida pela filosofia democrática de que a que. ao investir os governantes de autoridade, não per­
autoridade dos governantes deriva do direito permanente de o povo, de modo algum, a posse do seu direito funda-
de governar-se a si mesmos, inerente ao povo. A autori­
dade, então, derivada do povo, parte da base para che­
1* Cf. Cajetano, Com. d S»wa. Theol., I-1I, 90.3; De ecnnpa-ra-
gar ao ápice da estrutura do corpo político. 0 poder c tiorc (Mci&rita.tii yape fi conr.ilii (Roma*.: apud Institutim An-
exercido por homens nos quais a autoridade, dentro de gclieum, 1936), c, 1.12; C. 11,190; c. 21 359; c. 27,415; Apologia
certos limites, passa periodicamente a residir por desig­ ejusdem tractatuii (tio mesmo volume), c. I, 449-50; c. 8.533;
nação do povo e cuja gestão é fiscalizada pelo povo. Êsse e. 9.550,557-64, 572,590; ç. 16,801.
fato é um sinal da posse ininterrupta, pelo povo, daquele Cf. Bellarmiuo. Coiit rove-reiarum de mcw.bris Eceleniae lí­
ber tertiiut, De Inicia civtr accidaribuB, c. 6; Opera ownia (Paris,
direito de governar-se a si próprio. O exercício dêsse di­ Vives. 1R70), III, 10-12. Tradução ínglêsa Kathleen E. Murphy,
reito autorizou os homens em ouestão a exercerem o co­ De Inicia or ihe Trcatiea on Civi Goverament (New York, For-
mando — o comando político — de outros homens, cm dham 1'niveisity Press. 1928).
virtude da Fonte primacial de toda autoridade. O que eu u» Cf. Suárez, Dcfensio fidei catholicre ti apostolicie ad/vw-
9wt anglicana sectit errmt, lib, 111; De swnyrni pantífirie stfpr-'
quero dizer ó que a ordem supremamente justa estabe­ fcir.pnvalra reges crceflevDa, potentàto, c. 2; Opera (Venetiis,
lecida pela Razão Incriada. que dá força de lei ou de 1719), fols. 111 c sege.; D< legibiis, lib. 111, c. 4.
justa ordenação a tudo aquilo que ' necessário para a -l “Vigário da multidão” (Vicem arrens wHltitfjdinie, Swn.
própria existência e para o bem comum da natureza e Theot., I II, 90,3).
fia sociedade, faz com que a função governativa dêsses -- Cf. no«-so capítulo “Sitiai e Símbolo”, em Tlansiomirp thc
(New York. Charlea SeribnePs Sons, 1941).
homens escolhidos pelo povo seja exercida por direito e.
156 JACQUES MAIUTAIN
O HOMEM E O ESTADO 157
mental ao autogoverno. Refere-se o segundo ao fato de
que os representantes do povo não são meros instrumen­ ccndnte e incríada. O povo, ao designar os seus repre-
tos e sim governantes investidos de autoridade real, ou
seja, o direito de comando. ;-,ritantes, não perde a posse — nem dela desiste — de
sua autoridade a governar-se a si próprio, nem do seu
Quando possuo um bem material, não posso dá-lo a
direito à suprema autonomia.
outro sem perder, por êsse mesmo fato, a posse dêsse Ora, devemos distinguir entre a posse de um direito
bem. "Esse modo de conceber as coisas é que perturbou e o seu exercício. -1 É o próprio exercício do direito do
as teorias clássicas do poder político, especialmente como povo ao governo de si próprio que permite aos governan­
vimos, com a decepcionante teoria da Soberania.23 Mas, tes, escolhidos pelo povo, serem investidos de autorida­
quando se trata de uma qualidade moral ou espiritual, de, de acordo com a duração de suas funções e na medi­
tal como no caso de um direito, posso investir outro ho­ da e segundo o grau de suas atribuições. O próprio exer­
mem de um dos meus direitos sem perder eu mesmo a cício do direito do povo a governar-se a si próprio res­
sua posse, desde que êsse homem o receba de uma ma­ tringe, portanto, na mesma medida, não êsse próprio di­
neira vicaríal — como um vigário de mim mesmo. Nesse reito, mas o exercício que dêle deriva (em outras pala­
caso, êsse homem se torna uma imagem de mim mesmo, vras, o “poder” do povo). O direito do povo a govemar-
e é como tal que participa dêsse próprio direito que, por -se a si próprio só pode ser exercido, na realidade (exceto
essência, é meu. (Acontece o mesmo com o discípulo nos grupos menores ou, no caso particular, de um refe­
que participa cnmo tal da própria ciência que existe em rendum. popular, sem que certos homens sejam coloca­
seu mestre e, se êle a ensina como seu substituto — quero dos no serviço público e, pela mesma, razão, investidos
dizer, em sua simples capacidade de discípulo, transmi­ de verdadeira autoridade. Não faltam exemplos simila­
tindo a ciência de outro — êle ensinará como um vigá­ res, em que o próprio exercício de um direito (por exem­
rio ou como uma imagem do seu mestre, e ainda como plo, o direito de escolher a própria vocação ou um estado
seu deputado. Em ta! caso, o mestre não se terá despo­ de vida) restringe o exercício ulterior do mesmo direito,
jado de nenhum átomo de sua própria ciência.) O povo sem que isso provoque a terminação da posse dêsse di­
possui o direito de governar-se a si próprio de modo ine­ reito ou de qualquer modo a diminua.
rente e permanente. E os governantes, pelo lato de te­ Chegamos assim ao segundo ponto. Os representan­
rem sido feitos vigários ou imagens do povo, são inves­ tes do povo possuem a autoridade em forma vicarial, na
tidos per participationem, no limite dos seus poderes, sua capacidade de vigários ou de imagem do povo, por
dêsse mesmo direito e da autoridade para governar que. ;i êle delegados. Constituem, porém, uma imagem viva e
no povo, exÍBte per essentíam, tal como lhe foi dado pelo ativa do povo, uma imagem que é uma pessoa humana
Autor da natureza e fundado em Sua autoridade trans- dotada de razão, vontade livre e responsabilidade. E só
podem exercer a autoridade vicarial de que são possuí­
2» pr,je acima cap. li. Temo que tal conceito esteja :.a base dos como pessoas humanas e agentes livres, cuja cons­
de alguns pontos de vista escolásticos correntes, que finalmente ciência. pessoal está comprometida no cumprimento de
reduziriam o processo democrático a um momento de livre esco­
lha, pelo povo, do seus senhores (justamente eomo Rousseau ima­ sua missão. A autoridade, assim, que êles exercem, que
ginava que o sistema representativo atuava, ao mesmo tempo que é a própria, autoridade do povo, participada dentro de
o condenava). Cf. Gredt, op. çit., t. II. ns. 1032. 1033.
24 Vide cap. IV, n. V.
0 HOMEM E O ESTAIVO 159
158 JACQUES MA1UTAIN
Em uive:; maia profundo-, encontramos *as necessidades
certos limites e numa dada proporção, é uma autoridade reais da multidão. No nível mais profundo, reside a von­
vicarial mas genuína, mantida, como a autoridade do tade de convivência e a consciência obscura de uma vo­
povo, em virtude da Fonte primeira de toda autoridade. cação e de um destino comuns, e, finalmente, a inclina­
Eles realraente exercem um direito de ordenar e de ser ção naLnr; I <ln vontade humana, considerada em sua es­
obedecidos. Não são meros instrumentos de uma mítica sência, para o bem. Alem disso — e êsse é um ponto de
vontade geral. São governantes reais do povo. Têm de que vamos tratar na própria seção o povo geralmente
conformar suas decisões com cs ditames de sua consciên­ não considera as sua aspirações e os seus interesses
cia, com a_s leis dessa parte especial da Ética, que ó a ma:- capitais como povo, em virtude dos trabalhos e dos
Ética política, com o julgamento de sua virtude (se a sofrimentos quotidianos do cada um. Em tais circunstân­
têm) da prudência política e com aquilo que lhes parece cias, governar em comunhão com o povo significa duas
exigido pelo bem comum, mesmo que, assim procedendo, coisas. De uni lado, educar e despertar o povo no pró­
incorram no desagrado do povo. prio avo de o governar, de modo a pedir-lhe, a cada nova
O fato é que êles são responsáveis perante o povo fase do progresso, aquilo de que êle se tornou consciente
e que a sua gestão dos negócios públicos tem de ser su­ e que deseja realizar. Estou pensando, por exemplo, em
perintendida e fiscalizada pelo povo. É ainda um fato, um esforço real pela educação, fundado no respeito pelo
desde que sua autoridade é apenas a autoridade do povo povo e na confiança dêle, esforço no qual é êle o “agente
por êles participada de modo vicarial, que êles têm de principal”,26 o que é precisamente o oposto ao hábito de
governar, não de um modo separado do povo (exceto impor ao povo idéias através de mera propaganda e de
quanto às condições existenciais de exercerem autorida­ métodos de anúncio comercial. Significa, por outro lado,
de),-5 porém unidos com o povo, em sua própria essên- ter consciência daquilo que é profundo, duradouro e real­
deputados do povo. Há. neste ponto, uma questão mente digno do homem nas aspirações e na psique do
difícil que eu quisera tentar esclarecer. Disse acima que povo. É assim que, mesmo perdendo a popularidade
os representantes do povo devem estar prontos a incor­ pode um governante atuar ainda em comunhão com o
rer na impopularidade se a sua consciência assim o exi­ povo, no mais verdadeiro sentido da expressão, E se êle
ge. O que agora estou dizendo é que devem cumprir com fôr um grande governante, poderá conseguir que essa
suas obrigações em comunhão com o povo. Não serão impopularidade se transforme em uma confiança reno­
contraditórias essas duas afirmações? De modo algum, vada e ainda mais profunda. De qualquer modo, nada
desde que entendamos corretamente a expressão “em existe de comum entre impor despoticamente a sua pró­
comunhão com o povo”. pria vontade ao povo — como uin governante que viva
Naquilo que podemos chamar a psique comum do separado do povo e faca descer sôbre êle a sua autorida­
povo existe uma larga variedade de níveis e de graus. de — e o fato de resistir ao povo, ou tornar-se odiado e
No nível mais superficial encontramos as correntes aci­ rejeitado por êle, mas com êle unido em suas intenções
dentais de opinião, tão passageiras como as ondas do mais profundas e ansioão de se conservar em comunhão
mar, e sujeitas a todos os ventos da ansiedade, do te­
mor, das paixões particulares ou dos interesses privados. 28 Cf. nosso livro Educatwti at the Croasroads (New Jlaven,
Yale University Eress, 1948), págs. 29-31.
-« Vide cap. II, n. III.
JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 161
160

com a sua vontade humana mais profunda que o próprio se • xpres. a nos costumou ou nas necessidades e exigên­
povo por vêzes ignora. cia:. eoluliva. de grupos orgânicos da população, ou en­
Se essa questão é difícil, deve-se ao fato de não ha­ tão em noriíi.o.i espontâneas, em elaboração, em matéria
ver relação mais complexa e misteriosa do que a relação do serviço social e público. Neste ponto poderiamos des­
entre um homem e a multidão, de cujo i»em comum é êle tacar o elemento de verdade que existe na teoria de Du-
responsável, precisamente porque a autoridade que pos­ guit, inm"ilavel em si mesma, sobre a “lei objetiva”.
sui é uma autoridade vicaríãl, em última análise funda­ Coniràriammle a essa leoria, a lei é, e sempre será uma
da em Deus, autoridade essa por êle exercida como um obra da razão daquel quo têm a responsabilidade do
agente livre e responsável, imagem da multidão e dela bem comum. Essa própria razão, porém, do Legislador
deputado. Se quisermos encontrar o mais expressivo tipo tem de dar forma ou exprimir, em uma “palavra” for­
de Legislador — embora transcendente para nosso obje­ ma da, um evrbuni completo, que existe na mente comum,
tivo — pensemos em Moisés, em sua relação com o povo de modo informe c não formulado.
hebreu. Os governantes, porém, de nossas sociedades po­ V
líticas não são profetas diretarnente designados por Deus, As minorias dinâmicas e proféticas
o que torna o seu caso um pouco mais simples. O último problema a ser discutido não se refere maia
A êsse respeito talvez conviesse recordar a distinção,
ao povo, mas sim — como os designaremos? —, diga­
por mini feita em outro ensaio, entre uma íei e um de­
mo-lo, aos servidores e profetas inspirados no povo.
creto. “Lei e decreto pertencem a duas esferas especifi-
O que eu quero dizer é que não basta definir uma
camente distintas: a lei, à esfera das formas estruturais
sociedade democrática por sua estrutura legal. Outro ele­
da autoridade; o decreto, à esfera do exercício existen­
mento desempenha também um papel fundamental, a sa­
cial da autoridade.. . Uma lei é uma regra geral e dura­
ber, o fermento ou a energia dinâmica que anima o mo­
doura (geral, porque determina no corpo social uma certa
vimento político e que não pode ser inscrita em qual­
relação funcional; duradoura, porque dirigida a qual­
quer constituição nem incorporada a qualquer institui­
quer coisa que está para lá do momento ou da circuns­ ção, já que essa energia é, por natureza, a um tempo
tância presente e estabelecida para não mudar). Urn de­ pessoal e contingente, assim como fundada na livre ini­
creto é uma ordenação particular, determinando um
cial iva. Quisera chamar a êsse fator existencial um fa­
ponto de fato na estrutura da lei, e confrontado com certa
tor profético. A democracia não pode passar sem êle.
circunstância em certo tempo.” 27 Eu diria então que um O povo precisa de profetas.
decreto pode ser promulgado, sem muita inconveniência,
E esses servidores ou profetas do povo não são —
embora contrário às correntes dominantes no povo a
ao menos necessàriarnente — eleitos representantes do
certo momento, e forçadamente imposto a uma opinião
povo. Sua missão origina-se em seus próprios corações
pública relutante. Uma lei, porém, só deveria normal­
mente ser promulgada (sempre supondo a sua justiça), e consciências. Nesse sentido, são profetas designados
p. r si mesmos. São necessários no funcionamento nor­
de acordo com a consciência comum do povo, tal como
mal de uma sociedade democrática. São especialmente
37 Príncipes tPune politique hnmanistc, anexo ao cap. II:
necessários nos períodos de crise, nascimento ou renova­
ção fundamental de uma sociedade democrática.
"Poder legislativo e poder executivo."
162 JACQUES MABÍTA1N o homem e o Estado 163

A falar verdade, algo de semelhante se encontra em E, porém, em períodos de crise, nascimento ou trans­
todo e qualquer regime político. Os reis das eras pas­ formação rudical que o papei de servidores inspirados,
sadas estavam cercados de grands convmis, altos funcio­ de profetas do povo, assume a sua plena importância.
nários, conselheiros favoritos ou ministros, cm impiedosa Pensemos, por exemplo, nos patriarcas da Revolução
competição nns com outros. Cada um dêles acreditava f rancesa ou da Constituição Americana, em homens
ou aiegava que seus próprios pontos de vista ou seus es­ como Tom 1’aine ou Ihomas Jeiierson, ou então naque­
forços exprimiam a verdadeira vontade secreta do Rei. le John Brovvn considerado amua como um criminoso
Expunham-se a certos riscos. Quando se enganavam, pelos feulistas e um herói pelos Nortistas — que estava
caíam no desagrado do rei; às vezes, eram exilados ou convencido de ter recebido um mandato divino para ues-
mesmo enforcados. U mesmo ocorre nos Estados totali­ Lruir a escravidão peia força das armas, capturando o
tários com altos funcionários e facções políticas rivais, arsenal de Harper’s herry, em conseqiiencia uo que foi
no seio do partido. enforcado alguns meses mais tarde, em dezembro de
Nas sociedades democráticas é o povo que desempe­ 1859:
nha a parte do rei e são os servidores inspirados do po­ U corpo de John Brown se decompõe no túmulo,
vo que desempenham o papel dos grandes conselheiros. Bua alma, porem, continua marenando.
Em regra, são profetas da emancipação nacional, políti­ Pensemos nos fautores do Jiisorgimento Italiano
ca ou social. ou na libertação da Irlanda. Pensemos ainda uma vez
No funcionamento normal de uma sociedade demo­ em Gandhi ou nos pioneiros do sindicalismo e do movi­
crática, o dinamismo político procede assim de homens mento trabalhista. A tarefa primordial do servidor ins­
que, sentindo-se designados para uma vocação de lide­ pirado do povo é despertar o povo para alguma coisa de
rança, seguem os canais habituais da atividade política melhor do que o trabalho quotidiano, levando-o a sentir
e tornam-se chefes de partidos políticos, chegando ao a obrigação de uma tarefa supra-individual.
poder através do maquinismo legal das eleições. A cir­ Irata-se de um fenômeno social absolutamente vital
cunstância mais feliz para o corpo político ocorre quan­
do os homens mais altamente colocados no estado são e necessário. É, aliás, um fenômeno extremamente peri­
simultâneamente verdadeiros profetas do povo. Acredi­ goso. Já que onde há inspiração e profecia há falsos
to que, em uma democracia renovada, a vocação de lide­ profetas e verdadeiros profetas; usurpadores visando a
rança que acabo de mencionar, — uma imagem sinistra dominação dos homens e servidores intentando libertá-
da qual nos é oferecida pelo Partido único dos Estados -los; inspiração por instintos sombrios e por autêntico
totalitários — deveria ser normalmente exercida por amor. E nada é mais difícil do que o que se chama “dis­
pequenos grupos dinâmicos, livremente organizados e criminação entre os espíritos”. É fácil confundir uma
múltiplos por natureza, (pie não se ocupariam com êxitos inspiração impura com uma inspiração imaculada; mais
eleitorais, mas que se dedicariam inteira mente a uma ainda, é fácil deslizar da inspiração genuína para uma
grande idéia social e política, e que atuariam como um inspiração corrupta. E sabemos que optimi corruptio
fermento quer dentro, quer fora dos partidos políticos. 28
2S
Cf. RosSelli, Socialisme Liberal (Paris, 1930), págs. 47 e
Cf. True Hwmamsm (New Y<rk, Charles Scwbners Sons, sega.
1938), págs. 162 e scgs.
0 HOMEM E O ESTADO 165
164 JACQUES MARITAIN

péssima, a corrupção <lo que há de melhor é o que há que oslão falando. 86 a decisão final do povo pode pro­
de pior. vir ' t figiir.i de retórica catava certa ou errada.
O problema político que se nos depara neste mo­ Cada vi z, porém, que uma parte fala em nome do todo,
mento, é o problema das minorias proféticas conquista­ essa parle h m n tentação de crer que ela 6 o todo. O
doras ou minorias de choque — digo minorias de choque resultado 6 que a parte se esforçará por substituir-se ao
como se diz tropas de choque —, um problema que qual todo ou anb'S tentará forçar o todo a ser "realmente”
quer doutrina democrática deveria considerar com tfida o todo, isto ó, aquilo qtu* a parte quer que o todo seja.
a franqueza. É assim que todo n processo se corrompe, e essa minoria
0 povo tem que. ser despertado, o que significa que profética do choque. oni vez do despertar o povo para a
o povo está dormindo. O povo normalmente prefere dor­ liberdade, como acreditava ou pretendia, dominará o
mir. O despertar é sempre amargo. No que toca aos geus povo e o tornará mais escravizado ainda do que anterior-
interesses quotidianos, o que o povo prefere é ocupar-se mento o fôra.
apenas de seus interêsses usuais; das misérias e das hu­ Durante o século XTX existiu, a êsse respeito, uma
milhações de cada dia. O povo gostaria de ignorar que tremenda ambigiiidade na ideologia democrática. Con­
ó o povo. É um lato que, para o bem ou para o mal da cepções e tendências, inspiradas por uma autêntica de­
humanidade, as grandes transformações históricas das voção ao povo e por uma verdadeira filosofia democrá­
sociedades políticas foram provocadas por minorias, que tica, se confundiram com outros conceitos e ontras ten­
estavam convencidas de representar a vontade real do dências inspiradas por uma filosofia democrática espú­
povo, — de ser despertada —, em contraste com a in­ ria e por uma devoção errada, e até mesmo ditatorial
clinação natural do povo: a de ficar adormecido. No em germe, pelo povo. Homens houve que acreditaram,
tempo do Risorgimento, a grande maioria dos italianos como Jean Tacques Rousseau o disse, que poderiam for­
preferiu, sem dúvida, não ser libertada do jugo austría­ çar o povo a. ser livre. 3" Declaro oue êsses homens foram
co. Se um plebiscito fôsse feito no tempo de Samuel traidores do povo, porque trataram o povo como se fosse
Adams, é provável que a maioria tivesse votado contra um conjunto de criancas enfermas, ao passo que êles
a guerra da Independência. Se um plebiscito tivesse sido é que estavam clamando pelos direitos e pela liberdade
feito em França, em 1940, é altamente provável que a do povo. Aqueles que não têm confiança no povo, mas,
maioria teria votado em favor do Marechal Pétain. O ao mesmo tempo, apelam para os mais altos sentimentos
povo acreditava que êle odiava, da mesma maneira, a e nnríi o sanvue do povo, enganam e traem o povo, O
colaboração com os alemães. Em todos êsses casos, a primeiro axioma e preceito de uma democracia é a con­
maioria estava errada e quem tinha razão eram as mi­ fiança no povo. Confiar no povo, respeitar o povo, con­
norias de choque. Sim, mas pudemos também considerar fiar nêle sobretudo enquanto o despertamos, isto é. en­
quanto os autores dos Estados totalitários usaram désse quanto nos colocamos ao serviço da sua dignidade hu­
poder das minorias insurretas de vanguarda. O proble­ mana.
ma é êste: temos de despertar o povo ou de uliliza-lo? 30 Cf Cr social, Lib, I, cap. VII: “quem quer que se
Temos de despertá-lo como homens ou de empurrá-lo e remar a obedecer à vontade geral será coagido a fazê-lo por
chicoteá-lo como gado? As minorias proféticas dizem todo o corpo: o que apenas significará que há de ser forçado a
nós o povo, quando na realidade só elas, não o povo, é ser livre."
0 HOMEM E O ESTAPO 167
166 JACQUES MARITAIN

a ser livre" alcançar a sua conclusão lógica no sonho


0 desprezo e a desconfiança real, em relação ao totalitário: forçar o povo a ser obediente de modo que o
povo, implicados no princípio de “forçar o povo a ser li­ Estado seja livre e todo-poderoso, ou de modo a tornar
vre”, iriam prejudicar em muitos lugares o espírito de­ o povo feliz sem sua participação, como Dostoiewsky o
mocrático e desenvolver uma filosofia adulterada da exprimiu na sua, Lenda do Grande Inquisidor?
missão de certas minorias que se julgavam esclarecidas. As observações que aqui ficam, tanto quanto a ob­
Procuremos resumir essa filosofia espúria nos três servação da presente situação mundial, obrigam-nos a
seguintes pontos: Primeiramente, visto como as ativida­ encarar muito sòr ia mente. o problema que tudo isso im­
des daquilo que acabamos de chamar as minorias de plica e a pedir à filosofia democrática uma formulação
choque proféticas resultam em uma decisão categórica, mais clara da doutrina do papel representado pelas mi­
e visto como somente os fatos, os acontecimentos, podem norias proféticas de choque. Essa nova explanação do
decidir se essas minorias tinham ou não razão em apre­ problema, tal como a vejo, acentuaria os três pontos se­
sentar-se como a personificação do povo, — sendo assim guintes. de acòrdo com a Carta democrática.
só existe um modo de assegurar o risco que essa mino­ Em primeiro lugar, o recurso a uma atividade ile­
ria está assumindo: a saber o uso integral da violência gal é, em si mesmo, uma exceção, não uma regra, que
de modo a ter êxito a qualquer preço e por qualquer deveria sempre permanecer como tal. Essa exceção só
meio.
se justificaria como um mal menor, quando uma mino­
Em segundo lugar, uma vez vitoriosa essa minoria, ria profética de choque se vê diante de uma situação
tem de empregar o terror para extinguir tôda e qualquer nr- qual a lei já foi ròta ou suspensa, isto é, quando Re
oposição possível.
lhe depara uma forma de poder tirânico. Em segundo
Finalmente, dada a estupidez e a debilidade congê­ lugar, tão excepcional como essa atividade ilegal, o uso
nita do povo, e, por outro lado, o papel indispensável da fôrça ou de medidas violentas de coação pode tor­
das minorias proféticas de choque na história humana, nar-se necessário em tais circunstâncias, mas a justiça
a tendência profunda à emancipação, que trabalha no deve sempre prevalecer. 0 uso do terror, que pune indis­
seio dessa ITistória, exige a ruptura da. lei, como uma criminadamente inocentes e culpados, é sempre um cri­
condirão perpétua e necessária do progresso, e floresce me. Pessoas inocentes podem sofrer, de modo indireto,
no mito messiânico da Revolução. Ê assim que os princí­ conseqüências de medidas públicas justas dirigidas ao
pios fundamentais da fé democrática foram negados em grupo social a que pertencem, mas nenhum inocente
nome da própria democracia. É assim que o mito da deve jamais ser punido, encarcerado ou executado.
Revolução, com R maiúsculo, iria reduzir a nada as mu- Em terceiro lugar, é verdade que sòmente o fato,
tacões reais de estrutura, digamos assim, as revoluções o acontecimento pode decidir se uma minoria profética
particulares (sem R maiúsculo), que possivelmente se­ de choque tom ou não razão em manifestar-se como a
riam necessárias em certos momentos da história huma­ personificação do povo. A única coisa capaz de confir­
na. e que hão de ser fatalmente necessárias enquanto mar essa atitude é a livre aprovação pelo poro, logo que
perdurar a História humana. o povo possa exprimir sua vontade. Isto significa, de
Como, então, nos surpreendermos ao ver uma filo­ um lado, que o uso da fôrça deveria sempre ser provi­
sofia de tal modo espúria acabar no totalitarismo? Como sório e excepcional, bem como a livre consulta do povo
nos surpreendermos ao ver o princípio — “forçar o povo
168 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 169

considerada sempre como um objetivo urgente e inadiá­ Dissemos acima que a democracia não pode dispen­
vel. Significa, por outro lado, que o risco assumido pela sar o fator profético c que o povo necessita de profetas.
minoria profética de choque deve sê-lo de modo leal e Qti : . . . 1.1 minar agora, dizendo que esta é, sem dúvi­
que essa minoria estaria traindo tanto a si própria como da, uma triste necessidade; ou, antes, que, cm uma de­
ao povo, se se agarrasse ao poder por outro qualquer mocracia que atingiu a sua maioridade, em uma socie­
meio, devendo, ao contrário, éstar sempre pronta u per­ dade de homens livres, experimentada nas virtudes da
der a partida se o povo assim o determinar. liberdade e justa no funcionamento das suas estruturas
Finalmente, quais podem ser as armas do povo para fundamentais, a função profética deveria integrar-se na
se proteger tanto a si próprio como ao corpo político não vida regular e nornml do corpo político e derivar do pró­
só contra os falsos servidores ou as minorias proféticas prio povo. A in piração do povo surgiria assim, no cor­
de choque espúrias, mas ainda contra a corrupção dos po político, do i oreício de sua livre atividade comum nas
verdadeiros servidores e das genuínas minorias proféti­ comunidades lcc.is mais elementares e mais humildes.
cas de choque que venham a trocar a luta em favor da E o povo, ao o colher or neus chefes, no nível mais ele­
liberdade pela luta em favor do puro domínio? Nada, mentar e através de processos naturais e experimenta­
a esse respeito, pode substituir a fôrça da ética comum, dos, como concidadãos conhecidos e merecendo a sua
a energia íntima da fé democrática e a moralidade cí­ confiança nos assuntos limitados da comunidade, esta­
vica do próprio povo, o gózo da liberdade real na vida ria assim preparado, de um modo verdadeiramente cons­
quotidiana, assim como de um verdadeiro nível humano ciente, para escolher os seus chefes, como seus autênti­
de vida e ainda a participação ativa do povo na vida cos deputados, no próprio nível do bem comum do corpo
política, a partir de suas camadas inferiores. Se essas político, como uma eonsciêneia política esclarecida.
condições faltarem, abrem-se as portas para tôdas as
decepções.
Existe, entretanto, em qualquer caso uma arma que
o povo deve venerar como um baluarte de suas liberda­
des políticas. Quero referir-me à lihordade de expressão
e de crítica. Representa ela um novo motivo para con­
firmar o que foi dito neste capítulo sôbre a necessidade
vital, cm uma democracia, da liberdade de imprensa,
assim como dos meios de expressão do pensamento, mes­
mo ao preço de grandes riscos, — sempre menores que
a perda da liberdade. Um povo livre precisa de uma
imprensa livre, livre da pressão do Estado e livre tam­
bém de laços económicos servis, assim como do poder do
dinheiro.

♦♦*
Capítulo VI

A IGREJA E O ESTADO

OBSERVAÇõES PRELIMINARES

Antes de me ocupar com os problemas da Igreja e


do Estado, quisera fazer duas observações preliminares.
Primeiramente, a de que minha fé é a fé católica, apos­
tólica, romana. Daí ser o conceito de Igreja, sóbre o qual
se apoiarão os meus argumentos, o conceito católico da
Igreja. Quanto às relações de outras Igrejas ou institui­
ções religiosas com o Estado, o curso da minha argu­
mentação aplicar-se-á, portanto, apenas de maneira in­
direta e restrita. Em segundo lugar, procurarei discutir
o tema na perspectiva de uma filosofia prática adequa­
da, isto é, como filósofo e não como teólogo, mas como
filósofo cristão, que leva em conta os dados teológicos
próprios para lhe fornecerem uma compreensão autên­
tica das realidades concretas de que se trata.
Dividirei a minha discussão em três partes princi­
pais: primeiramente, os princípios gerais imutáveis; em
seguida, o processo analógico segundo o qual, em virtude
de sua própria transcendência, devem êlefi ser aplicados;
finalmente, algumas conclusões práticas relativas ao nos­
so tempo. O problema é altamente controvertido. No co­
meço do século XVII. as posições do Cardeal Belarmino
foram fortemente atacadas, antes que êle se tornasse
172 JACQUES MARITAIN
O HOMEM B O ESTADO 178

uma das maiores autoridades sobre a questão. Hoje em


dia, existe um conflito de opiniões sobre a matéria entro e de suih aspirações supratempornis, que constituem um
homens pertencentes à mesma fé, mas cujas concepções l'lm di* oulia ordem, um fim que transcende o corpo
históricas podem remontar a São Luis ou a Felipe II. polít ico.
Quero dizer que essa subordinação já existe na or-
Darci a minha opinião própria, com a candura e a hu­ d.in tialtirnl cm rclaç.h» aos bons naturais supratempo-
mildade de um leigo firmemente apegado à sua fé e que rais, ligados por si nieMnos no bem comum daquilo que
procura a solução correta, solução essa que, afinal, não deveria ser chamado civilização como uni todo, ou seja,
deveria ser assim tão difícil dc alcançar, se tivermos .. comunidade e piriliml das inteligências. É o que su-
sempre a atenção voltada, ao mesmo tempo, para as ver­ eede, por exemplo, com o sentimento de justiça para com
dades eternas e para a história humana. rodos os homens e de amor por todos os homens; com a
Venho meditando e escrevendo sôbre êsses proble­ vida do espírito e de tudo aquilo que, era nós, é um co­
mas há cêrca de vinte e cinco anos. Tenho, entretanto, meço natural de contemplação; com a dignidade intan­
certa esperança de que não mo deixarei enredar demais gível da verdade, em todos os domínios e em todos os
no labirinto do probelma e serei capaz de discuti-lo em graus, por mais humildes que forem, do conhecimento,
menos de vinte e cinco "disputas”. e com a intangível dignidade da beleza. Tanto a verda­
de como a beleza são mais nobres do que os elementos
I sociais da vida e, quando oprimidos por êsses últimos,
Qs principias gerais imutáveis nunca deixam dc se vingar. Na medida em que a socie­
dade humana tenta libertar-se dessa subordinação, pro­
clamando-se como bem supremo, perverte na mesma me­
I. A PESSOA HUMANA E O COEPO POLÍTICO dida sua própria natureza e a natureza do bem comum
Sob um ponto de vista filosófico, parece-me que a político. 0 bem comum da vida civil é um fim último,
primeira coisa a ser acentuada é a relação entre a pes­ mas um fim último em sentido relativo e em certa or­
soa humnna e o corpo político, a saber, o fato de que a dem, não o fim último absoluto. Esse bem comum es­
pessoa humana é, ao mesmo tempo, parte do corpo po­ tará perdido se se fechar em si mesmo, porque, por sua
lítico e superior a êlc, naquilo que existe de supratempo- própria natureza, visa estimular as finalidades mais al­
ral ou de eterno nela, quanto aos seus interêsses espi­ tas da pessoa humana. A vocação da pessoa humana
rituais e seu último destino. para bens que transcendem o bem comum político está
A própria superioridade do que há de eterno no ho­ incorporada na essência do bem comum político. Igno­
mem em relação à sociedade política pode ser, desde lo­ rar essas verdades é pecar, simultâneamente, contra a
go, considerada no plano puramente natural. Sabemos pessoa humana e contra o bem comum político. Assim,
que o homem todo 6. que está empenhado no bem comum mesmo na ordem natural, o bem comum do corpo polí­
da sociedade civil. Mas também sabemos que, no que diz tico implica em uma ordenação intrínseca, embora indi­
respeito às coisas que nãx> pertencem a César, tanto a reta, a alguma coisa que o transcende. 1
própria sociedade como o seu bem comum estão indi­
1
retamente subordinados à perfeita realização da pessoa Cf. nosso livro, Tlie Pe.rson and the Comman Good (New
York: Charles ScribTieT’s S0713, 1047), cap. IV.
174 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 17Õ

Ora, o cristão conhece que existe uma ordem sobre­ dnde política, e que constituem a herança moral da hu­
natural e que o firn último — o fim último absoluto — manidade, o Ihui comum espiritual da civilização ou da
da pessoa humana é Deus, que determina a participação comunidade dos espiritoa. Mesmo que o ímpio não creia
do homem em Sua vida pessoal e em Sua eterna bem- ncsües valorvH (spiriluaia e particulares, tem de respeitá-
-aventurança. A ordenação direta da pessoa humana para -los. A seiia olhos, a Igreju ou as Igrejas constituem,
Deus transcende todo o bem comum criado, — tanto o mi comunidade social, corpos particulares que devem
bem comum da sociedade política como o intrínseco bem desfrutar daquele direito à liberdade que se identifica,
comum do universo. Aqui reside a rocha da dignidade não aponns com o direito ã livre associação que natural-
da pessoa humana, assim como das exigências inamoví­ nurnte pertence à pessoa humana, mas ainda com o di­
veis da mensagem cristã. Assim, a subordinação indi­ reito de acreditar livremente na verdade reconhecida
reta do corpo político — não como um simples meio, itiíis pela própria consciência, isto é, com o mais fundamen­
como um fim digno cm si próprio, embora de uma digni­ tal e inalienável de todos os direitos humanos. (É assim
dade menor — aos valores supratemporais dos quais que o ímpio, sob o seu próprio ponto de vista — refi­
depende a vida humana, refere-se, antes e acima de tudo, ro-me, sem dúvida, ao ímpio que, pelo menos, acredite
de fato, ao fim sobrenatural, ao qual se ordena direta­ na razão e, além disso, seja um ímpio de espírito de­
mente a pessoa humana. Para resumir tudo isso em uma mocrático — reconhece como qualquer coisa de normal
simples e única expressão, diremos que a lei aqui enca­ e necessário a liberdade da Igreja ou das Igrejas.
rada é a lei da primazia do espiritual. 2 Que é, porém, a Igreja para, o crente? » Para o crente
é a Igreja uma sociedade sobrenatural, ao mesmo tem­
2. A LIBERDADE DA IGREJA po divina e humana — o próprio tipo de uma socie­
dade perfeita ou acabada em si mesma, independente
Elevemo-nos um pouco mais e consideremos a Igre­ e bastando-se a si própria — que reúne em si diferentes
ja em seu próprio plano c em sua própria ordem. Que é homens como concidadãos do reino de Deus c os leva à
a Igreja? Antes de tudo, que é a Igreja para o não vida eterna, já iniciada aqui na terra. Essa sociedade
crente? Aos olhos dos que não têm lo, é a Igreja, ou são sobrenatural é que lhes ensina a verdade revelada, por
as Igrejas associações ou corpos organizados que se ela recebida, e em depósito, pelo próprio Verbo Encar­
ocupam especialmente com as exigências e os credos reli­ nado. Essa sociedade sobrenatural é o próprio corpo cuja
giosos de alguns dos seus concidadãos, isto é, com valores cabeça é Cristo; um corpo visível em razão de sua es­
espirituais aos quais se dedicaram e dos quais dependem sência. em seu credo professado, em seu culto, em sua
os seus critérios morais. Esses valores espirituais cons­ disciplina, em seus sacramentos, bem como na refração
tituem uma parte — de fato a parte mais importante,
como a história no-lo demonstra — desses bens supra­ •> Cf. Uumbert Clérissac, O. P., Lo Myatère de l'Êyt-'se (Pa­
temporais, em relação aos quais mesmo na ordem natu­ ris: Crès, 1918: ed. du Ccrf, 1934) (tradução inrièsa, The Mys-
lery of the Chtcreh, New York: Sheed & Ward, 1937»; e, antes
ral a pessoa humana transcende, como vimos, a socie- e acinia de tudo, o admirável tratado de Mons. Charles Journet,
2 Cf. nosso livro, Primautá du Spivituel (tradução inglesa,
Lfíglinr du Verbo Incarne (Paris: Deselée de Brõuwer, 1941;
cem os ensaios adicionais por êle publicados na revista Nova et
The Thingn tkat are nol CicvaPtí. New York: Charles Scribnex*’s Vetem (Friburgo, Suíça) e na Ravw Thomiste (principalmcntc
Sons, 1930). ns. 1-2, 1949, “Nature du corps de TÈslise”).
176 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 177

de sua personalidade sobrenatural, através de‘sua ativi­ da pelo próprio Cristo, entro as coisas que pertencem
dade e estrutura humana,4 invisível no mistério da gra­ n Deus r as coisas que pertencem a César. A partir do
ça divina e da caridade que vivifica as almas humanas, advento do cri ilianifuno foi a. religião retirada das mãos
mesmo aquelas que pertencem a êsse corpo sem o conhe­ do E. iailo. Distruíram-MB os moldes terrestres e nacio­
cerem e apenas através do movimento interior de seus nais que < nvolviam us coisas espirituais. A universali­
corações, porque vivem fora da esfera da fé explícita, dade da religião, juninmente com a sua liberdade, mani­
mas procuram a Deus em verdade. Para o crente a Igre­ festaram em sua plenitude. Mais ainda, como se po­
ja é o corpo de Cristo sobrenaturalmente constituído pe­ deria niaiiiie, lar i s;. universalidade da Igreja senão
la espécie humana, ou, como Bossuet o disse, le CJirist como um símbolo dc sua superioridade?
répandu et communiqué, o próprio Cri3to difundido e Do ponto de vista do liem comum político, as ativi­
comunicado. dades dos cidadãos como membros da Igreja repercutem
Sob tal perspectiva, deve a liberdade da Igreja ser sohis êne liem comum. Êsses cidadãos e as instituições
não apenas reconhecida como uma exigência da liberda­ por cies im tentada» fazem parte da sociedade política
de de associação e da liberdade de crença religiosa sem e da comunidade nacional. Sob êsse aspecto e dessa ma­
interferência do Estado, mas essa liberdade da Igreja neira pode-se dizer que a Igreja existe no corpo político.
aparece como fundada nos próprios direitos de Deús e Êsse ponto de vista, porém, é parcial e inadequado. Em­
idêntica à Sua própria liberdade em face de qualquer bora exista no corpo político — em qualquer corpo polí­
instituição humana. A liberdade da Igreja exprime a tico — através de certo número de seus membros e de
própria independência do Verbo Encarnado. Como resul­ suas instituições, a Igreja cerno tal, a Igreja na sua es­
tado, o primeiro princípio geral que deve ser estabelecido sência, não é uma parte e sim um todo. Ela constitui
com os problemas ora examinados é a liberdade da, Igre­ um reino absolutamente universal, que abarca tôdas as
ja. de ensinar e pregar e cultuar a liberdade do Evange­ partes do mundo, — e existe tócima do corpo político e
lho, a liberdade da palavra de Deus. de todo e qualquer corpo político.
Não existe qualquer espécie de distinção indepen­
dente de uma ordem de valores. Se as coisas de Deus
3. A IGREJA E 0 CORPO POLÍTICO
são distintas das coisas de César, quer isso dizer que são
Chegamos agora a outro ponto, a saber, a relação melhores. Tal distinção, desenvolvendo suas virtualida­
entre a Igreja e o Corpo Político. É claro, de um lado, des no curso da história humana, resultou na noção da
que a liberdade e a independência de que acabamos de natureza intrinsecamente laica ou secular do corpo polí­
falar, desde que pertencem a uma verdadeira e genuína tico. Não quero dizer que o corpo política seja por na-
sociedade, acarretam para a Igreja a liberdade de desen­ turezn irreligioso ou indiferente à religião, já que os
volver suas próprias instituições e governar-se a si pró­ conceitos — “laico” e “laicizado”, “secular” e “seculari-
pria sem interferência do Corpo Político. Encontramo- zado” - são coisas completamente diferentes. O que eu
nos aqui em face da distinção fundamental, estabeleci­ quero dizer é que, por sua natureza, e já que pertence
estrita mente à ordem natural, o corpo político só se
4 Cf. Charles Journet, "L’Église mystórieuse et visible”, Vowi
ocupa com a vida temporal dos homens e com seu bem
e* Vctera, julho-setembro de 1940. comum temporal. Nesse reino das coisas temporais, como
178 JACQUES MARITAIN 0 HOMEM E 0 ESTADO 179

o acentuou o Papa Leão XIII, o corpo político é plena­ II


mente autônomo. 5 0 Estado, o Rstado moderno, em sua
própria urdem, não obedece ao comando do nenhuma A aplicação dos princípios imutáveis aos Acontecimentos
autoridade superior. A ordem da vida eterna, porém, é históricos
em si mesma superior à ordem da vida temporal. 6
0 Reino de Deus é essencialmcnte espiritual, e peiu l. Tese e hipótese, climas históricos e ideais
próprio fato de que, em sua própria ordem, êle não per­ IIISTOKJCOS CONCRETOS
tence a êsse mundo, de modo algum ameaça os reinos
e as repúblicas da terra. Non eripit mortalia, qui regna Tratemos agora do ver que forniu, ou antes, que for­
dat ctetestia.7 Mas precisamente por ser espiritual, o mas assume o principio da superioridade espiritual da
Reino de Deus é, por natureza, melhor e superior aos Igreja em sua apiicaçao pratica. Que xormu, ou antes,
reinos e repúblicas desta terra. Retiremos da palavra que formas, assume o principio da cooperação necessá­
“superioridade" qualquer conotação acidental de domí­ ria entre a igreja e o Esxauo em sua apucaçao pratica?
nio e hegemonia. Procuremos entender essa palavra em Gom essas questões passamos ao stgunuo promema —
seu sentido mais puro. Significa um pôsto superior na a maneira peia qual os princípios gerais imutáveis, que
escala dos valores, uma dignidade maior. O segundo se relerem a estes prooiemas, sao apiicaveis em meio as
principio geral a ser estabelecido, em relação aos proble­ aventuras e vicissitudes dos poueres terrestres.
mas que estamos examinando, é u superioridade da Igre­ Depara-se-nos, neste ponto, a distinção ireqüente-
ja — isto é, do espiritual — sôbre o corpo político ou o mente empregada pelos teologos entre o que eles ena-
Estado. mam (em seu vocabulário proprio, muno diverso do
Por outro lado, está claro que, por mais distintos usual; a Lese e a hipótese. A *’tese,z significa o modo
que sejam, a Igreja e o corpo político não podem viver peio qual os referidos princípios gerais devem ser apli­
e desenvolver-se em completo isolamento e ignorância cados. A “hipótese” sigiiiiica o campo de possibilidades
um do outro. Seria isso pura e simplesmente antinatu- e de impedimentos práticos oieieciuos pelas circunstan­
ral. Pelo próprio fato de que a mesma pessoa humana cias reais.
ó, simullâneamente, um membro dessa sociedade que é a Essa distinção entre a tese e a hipótese é perfeita­
Igreja e um membro dessa sociedade que é o corpo polí­ mente aceitavel e pode naruralmente ser usada de um
tico, uma divisão absoluta entre essas duas sociedades modo valido. .Não creio, entretanto, que teima raizes
seria o mesmo que cortar a pessoa humana em duas par­ muito tradicionais. E, o que e amua mais importante,
tes. O terceiro princípio geral a ser estabelecido, com muitas vêzes ê empregada de modo incorreto, isto é, com­
relação aos problemas ora examinados, ó a. necessária preendida em sentido unzuoco. iNesse sentido, é a tese
cOoperaç&o entre a Igreja e o corpo político ou o Estado. considerada como o ideai — o ideal absoluto, o ideai em
si mesmo —, quanto ao meio de aplicar os princípios; e
5CL encíclicas Intmortule Dei (“ulraque potéstas eat in suo é somente devido a circunstancia mais forte do que a
génere, maximã”) e Sapicntiir. Chrútianw.
* Cf. Charles Journot, Exiffences chrètiennt* en politique 8 Cf. nosso livro, Du réffimo t&mpòrel et de ta. liberte (tra­
(Paris: Egloff, 1944), cap. II. dução inglesa, Ercedom in the Medem 14 vrld, New Vudu Char­
7 Cf. «nciclica do Papa Pio XI, Quae primut. le* Scribner’s Sons, 1930), cap. II.
180 JACQUES MARITA1N () HOMEM E O ESTADO 181

nossa vontade que renunciamos a pôr em prática — ou lamente proclamarmos uma /< -c que já não temos meios
o executamos de modo indiferente — êsse único meio de realizar — exceto quando temos a oportunidade de
ideal de aplicar os princípios. realizar a nossa imagem do passado pela violência, o
Essa concepção unívoca não leva em conta a reali­ que ainda ú um meio de trair os princípios imutáveis,
dade intrínseca nem um Mantido inteligível do tempo. De colocando em i-eii lugar um fantasma. Para tratar dêsse
um lado, a própria noção de um ideal absoluto, de um problema, teremos uma instrumentação intelectual mui­
ideal em si mesmo, um ideal supratemporal quanto ao to mais adequada íc compreendermos o autêntico valor
modo de aplicar ou realizar princípios, é contraditório da noção filosófica do analopia (pie desempenha um pa­
em si mesmo, desde que qualquer aplicação ou realiza­ pel tão grande na metafísica tomista, e se nos colocar­
ção é essencial e ocorre no tempo e. portanto, é relativa mos na perspectiva da analogia, em oposição à perspec­
a certo grupo de condições históricas. Por outro lado, a tiva da univocidade. Não quero, certamente, significar
concepção correspondente da hipótese é relativa o con­ com isso que o sentido dos princípios gerais que regulam
dições e circunstâncias consideradas de modo meramen­ os problemas em questão é analógico, de tal maneira que
te empírico e sob um ponto de vista de mera conveniên­ êsscH princípios poderiam adquirir, no decorrer dos tem­
cia, como se o tempo fôsse apenas um depósito de refu­ pos, não sei que espécie de novos significados, ao recha­
gos em que tivéssemos que escolher uma ou outra opor­ çarem o seu sentido anterior. O sentido de afirmativas
tunidade mais ou menos aproveitável. Ora, acontece que como esta: “a plena liberdade da Igreja é, ao mesmo
o tempo, realmente, tem um significado e uma direção: tempo, um direito proveniente de Deus e próprio a ela,
a história humana é feita em períodos, cada um dos assim como uma exigência do bem comum da sociedade
quais possui certa estrutura inteligível particular e, por­ política”, ou então “a ordem espiritual é superior à or­
tanto, certas exigências particulares fundamentais, fato dem temporal” ou “a Igreja e o Estado devem cooperar”
êsse que nenhum cérebro político poderia desconsiderar. — o sentido de tais afirmativas é imutável. O que eu
Além disso, a concepção unívoca da Lese e da hipó­ quero dizer é que a aplicação dos princípios é analógica
tese acarreta para nós o risco de confundirmos o assim — quanto mais transcendentes forem os princípios, mais
chamado ideal absoluto como meio de aplicar princípios, analógica a sua aplicação — e que essa aplicação assu­
ou mesmo os próprios princípios imutáveis, com o modo me várias formas típicas com referência aos climas his­
particular segundo o qual os princípios gerais em ques­ tóricos ou às constelações históricas, através dos quais
tão foram aplicados num passado mais ou menos idea­ está passando o desenvolvimento da humanidade. É des­
lizado. Nesse caso, não tomaremos em consideração a se modo que os mesmos princípios imutáveis devem ser
relatividade das formas existenciais do passado, e um aplicados ou realizados no curso dos tempos, de acôrdo
exemplo contingente, oferecido à nossa imaginação, será com modelos tipicamente diferentes.
elevado à categoria de absoluto. Finalmente, a hipótese, Há, na história humana, climas ou constelações de
que é incompatível com essa imagem do passado — de­ condições existenciais típicas que representam certas es­
vido, sem dúvida, às fraquezas dos nossos contemporâ­ truturas inteligíveis, que dizem respeito tanto às carac­
neos — significará um abandono foiçado dos princípios, terísticas sociais, políticas e jurídicas dominantes como
e seremos levados a ceder a êsse abandono com uma às características morais e ideológicas dominantes na
consciência tanto menos perturbada quanto mais violen- vida temporal da comunidade humana, e que constituem
182 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 183

molduras de referência para ob modos de aplicar, na nante da força ou da fortaleza a serviço da justiça. Nes­
existência humana, os princípios imutáveis que a regu­ sa era saenil, os princípios que estamos considerando
lam. E é de acordo com êsses climas históricos, tais co­ eram, portanto, principalmente aplicados em termos do
mo são reconhecidos por uma sadia filosofia da história poder social da Igreja. A dignidade superior da Igreja
aqui indispensável, que devemos conceber os ideais his­ (isto é, o principio) encontrava os seus meios de reali­
tóricos concretos ou as imagens propectivas daquilo que zação através da autoridade que da exercia sobre o 0rín-
devemos esperar para a nossa idade. Êsses ideais nem cipe (isto 6, a aplicação). Dêsse modo, o poder político
são absolutos nem estão ligados a um passado irrealizá­ do Santo Império e dos reis era um instrumento para os
vel, mas são relativos — relativos a um certo tempo — fins espirituais da Igreja. Por êsse caminho, ia a Igreja
e podem ser, além disso, afirmados e reivindicados como confirmar a liberdade do espírito em face da impiedosa
realizáveis. 0 violência do poder temporal, impondo-lhe restrições co­
Os princípios são, assim, absolutos, imutáveis e su- rno a da trégua de Deus. Não esqueçamos, além disso,
pratemporais. E as aplicações particulares e concretas, que, na Idade Média, não apenas era ainda incompleta a
pelas quais têm êles de ser analògicamente realizados, diferenciação do corpo político como tal» mas sucedia
e que são exigidas pelos vários climas típicos que se ainda que a Igreja tinha, na realidade, de compensar
substituem uns aos outro? na história humana — essas inúmeras deficiências da ordem civil, assumindo, pelo
aplicações concretas e particulares mudam de acordo fato de estar ela mesma moldando a civilização em seu
com as estruturas específicas da civilização, cujos traços seio, muitas funções de responsabilidade que, por si pró­
inteligíveis devemos imperativamente reconhecer como prias, deveriam pertencer à sociedade política. 12 Nos sé-
peculiares a cada idade histórica determinada. 12 Para a distinção entre a idade “sacral’ e a idade “se-
f
cu ar“ da civilização, vide Charles Journet, Vftfflwe du verbe in-
2. O CLIMA HISTÓRICO DA CIVILIZAÇÃO MODERNA
carné, pág. 243. O regime da “Cristandade Sacral”, peculiar à
Resumindo muito brcvcmente aquilo que exigiria Idade Média, é minuciosameate analisado nesse livro (pág.s.
253-96). Citemos a pâg. 254: “Seria inexato (diz o autor) defi­
uma longa análise histórica, poderíamos dizer o seguin­ nir a idade medieval como tendo uma época de cunftiFÍ.u entre
te: existiu uma cidade sacral, a era da Cristandade o espiritual e o •temporal. A partir da palavra decisiva de Cristo
medieval caracterizada principalmente, de um lado, pelo RÔbro as coisas que pertencem a Deus e as coisas que pertencem
fato de que a unidade da fé era um pré-requisito para a a César, os dois püdêres, mesmo quando reunidos em um mesmo
unidade politica e que a estrutura básica de referência sujeito, ficarão sempre paVa os cristãos formalmente distintos.
Suas relações, porém, serão caracterizados pelo fato do que, na
era a unidade daquele corpo social, por natureza reli­ cidade medieval, o poder espiritual não ee limitava a atuar sô-
giosamente político, que era a respublica Christiana, 11 e bre o poder temporal como nm elemento regulador de valores
caracterizada, de outra parte, pela idéia dinâmica domi- políticos, sociais» culturais. Tendia, além disso, em virtude de
um processo que se explica historicamente, a associar uma parte
Cf. o mesmo livro e Hnmaniame Intépral (tradução intrlô- do si mermo ao poder temporal, tornando-se nseim, por essa união
sa, Trv.t Hitmft.nism* New York: Charles Scnbner’s Sons, 1938), ao temporal, um elemento campe» ente da cidade. A noção do
cap. IV cristão tendia a se incorporar à noção de cidadão. A noção de
10 Cf. Hivmantefiw Iniégral (Truc fíiimmm), cnps. IV o V.
11
Cristianismo entrava na definição da própria cidade, nno cpe-
Cf. John Courtney Murray, Govemwr-jital itcpression nf nn< como uma causa extrínseca e uma poisaria mas
fíeTOfry, srpRTnfa de PTOccedivfft nf Mr Catholie Thtotogir.al So- ainda como uma causa intrínseca e uma parte integrante. Com
ciety of América, 19-19, pág.s. 56-57.
184 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 185

cílios pós medievais — período que pode ser chamado de próprio, exigido pela própria distinção evangélica entre
idade barroca — desintegrou-se a civilização sacral, ao os domínios de Deus e de César. Êsse processo normal,
passo que, no plano político, a noção e a realidade do entretanto, foi acompanhado e corrompido por um pro­
Estado cresciam cada vez mais. Entretanto, foram pre­ cesso altamente agressivo e estúpido de insulamento, e
servados, mais ou menos, os princípios da civilização sa- finalmente de rejeição, de Deus e do Evangelho da esfe­
cral — em formas que se tornavam cada vez mais rígi­ ra da vida social e política. O fruto dessa atitude pode
das e de natureza mais legal que vital — de tal modo que hoje ser contemplado no ateísmo teocrático do Estado
a noção de uma religião de Estado, 13 por exemplo, veio Comunista.
a ocupar n primeiro plano. Pois bem, aqueles cristãos que estão voltados para o
A idade moderna não é uma idade sacra! e sim se­ futuro e que esperam — mesmo que seja uma esperan­
cular. A ordem da civilização terrestre e da sociedade ça a longo prazo — uma nova Cristandade, uma nova
temporal adquiriu completa diferenciação e plena auto­ civilização cristãmente inspirada, sabem que o “mundo
nomia, 11 fato esse que é perfeitamente normal em si acabou com a neutralidade. Queiram ou não, os Estados
terão de ser obrigados a escolher a favor do Evangelho
eferto, era preciso ser cristão, membro visível da Igreja, para ou contra êle. Serãó modelados, seja pelo espírito tota­
scr cidadão. A cidadu, m consequência sen próprio princí­ litário, seja pelo espírito cristão”. 10 Êles sabem que uma
pio constitucional, era composta exclusivaments dc cristãos. Aque­ nova civilização cristãmente inspirada, caso venha al­
les que não pertenciam visivelmente à igreja, eram rejeitados
da cidade em bloco: os gentios enviados às fronteiras, os ju­ gum dia a desenvolver-se na história, não será, de modo
deus aos guetos. Aqueles quo, anteriormente cristãos, rompiam algum, a Idade Média, mas uma tentativa tipicamente
depois com a Igreja, como os hereges e os cismáticos, consti­ distinta de fazer com que o fermento do Evangelho vivi­
tuíam um perigo ainda pior: ameaçavam destruir as próprias fique as profundezas da existência temporal. Êles sen­
bases da nova cidade e apareciam como inimigos do bem pu­
blico. ” tem que uma nova idade dessa espécie visará a reabili­
Alem disso (págs. 298-300), explica o autor em que sentido tação do homem em Deus e por Deus, não fora de Deus,
êsso rogime “sacral" não era um regime “teocrático”, como o e será uma idade dc santificação da vida secular. Mas ao
dizem, do modo cxngerndamente simplificado, alguns historia­ longo de que linhas podemos imaginar tal evolução?
dores.
13 Sem entrar em uma discussão sôbre o ByllflXmB e o grau Isto significa que os cristãos, de que estou falando, têm
de «autoridade de seus vários artigos, como citações tomadas de de estabelecer e de desenvolver uma sã filosofia cia his­
outros documentos papais, quisera eu apenas observar que, a esse tória moderna, assim como de separar do crescimento
tempo <1855>, quando a proposição 77 (sobro a religião dc Es­ genuíno do tempo e do progresso autêntico da consciên­
tado) foi formulada, as Concordatas concluídas prèviamente es­ cia humana e da civilização os erros mortais que delas
tavam sendo brutalmente violadas em nome do Liberalismo, cuja
luta contra a Igreja se encontrava em pleno desenvolvimento, de se assenhorearam e o joio que também se está alastran­
maneira que, em virtude desse contexto de fatos, a maneira per­ do por entre o trigo e que favorece a maldade dos nos­
niciosa pela qual uma falsa ideologia corrompe fTcqücntemonte sos tempos. A fim de conceber nossa imagem histórica
um processo histórico em formação, &e apresentava então de modo concreta daquilo que podemos esperar de nossos tempos,
patente. Em tais momentos ninguém se decide a desdenhar de
armas de que rcahnente pode dispor.
14 15 Cf. nosso livro ZTte Rights of Man and Natural Law, New
Entenda-se, em sua própria esfera e no domínio quo lhe
é peculiar. Vide supra, seção S deste capítulo. Yofk: Charles Scribners Sons, 1943, pág. 23).
186 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 187

temos de determinar e levar em conta, como um ponto dade de todos os membros do corpo político foi reconhe­
existencial de referência, os elementos típicos fundamen­ cida como um princípio primordial. Em terceiro lugar,
tais que caracterizam a estrutura essencial de nossa épo­ a importância das forças interiores em atividade na pes­
ca; por outras palavras, o clima histórico ou a constela­ soa humana, em contraste com as forças externas de
ção hítetórica que condicionam hoje em dia a existência coação; a liberdade da consciência individual em rela­
e a atividade da comunidade humana. ção ao Estado; o axioma — sempre ensinado pela Igreja
Como acabamos de dizer, o clima histórico da civi­ Católica, mas desconsiderado, em regra, pelos príncipes
lização moderna, em contraste com a civilização medie­ e reis de outrora — de que a fé não pode ser imposta
val, é caracterizado pelo fato de que se trata de uma pela coação18 — tôdas essas asserções se tornaram, mais
civilização “leiga” ou “secular” e não de uma civilização expllcitamonte que antes, partes integrantes e capitais
“sacra!”. Por um lado, a idéia dinâmica dominante não do patrimônio da civilização, devem lo acentuar-se espe­
é a idéia da força ou da fortaleza a serviço da justiça, cialmente se quisermos escapar dos mais graves perigos
mas antes a da conquista da liberdade e a da realização da perversão do corpo social e do totalitarismo de Es­
da dignidade humana. De outro lado, a exigência radical tado. Em quarto .lugar, desenvolveu-se uma consciên­
para nma mútua e sadia cooperação entre a Igreja e o cia racional pelo menos naqueles lugares do mundo ci­
corpo político não é a unidade de um corpo político-re­ vilizado onde se venera ainda o amor pela liberdade —
ligioso como foi a respublica Christiana da Idade Média, que cresce tanto mais quanto mais crescem as ameaças
mas a própria unidade da pessoa humana, membro a um à liberdade — com relação ao fato de que nada põe mais
tempo do corpo político e da Igreja, se ela livremente em perigo tanto o bem comum da cidade terrena como
adere. A unidade da religião não é um pré-requisito para os interesses supratemporais da verdade nos espíritos
a unidade política, e os adeptos de várias religiões ou humanos, do que o enfraquecimento e a desintegração
de vários credos não religiosos têm de partilhar do mes­ das fontes íntimas da consciência. A consciência comum
mo bem comum político ou temporal e de trabalhar por também veio a compreender o fato de que a liberdade
êle. Enquanto o “homem medieval’, como o disse o Pa­ de investigação, mesmo à custa do êrro, é a condição
dre Courtney Murray,1,1 “ingressava no Estado (qualquer normal para terem os homens acesso à verdade, de modo
que fôsse o Estado) a fim de se tornar um ‘cidadão’, que a liberdade de procurar a Deus por caminhos pró­
pela Igreja e por sua porticipação na Igreja, o homem prios, para aquêles que forem educados na ignorância
moderno é um cidadão com plenos direitos políticos, ou na semi-ignorância de Deus, é a condição normal de
seja ou não membro da Igreja.”
Dêsse fato derivam muitas consequências. Primeira­ cular’*, isto 6, à lei civil, para dar forças, «m certas circunstân­
mente, u corpo político não é o braço secular 16 17 do po­ cias concernentes à ordem pública e ao domínio tomporal, a ro­
der espiritual; o corpo político é autônomo e indepen­ eras canônicas relativas a meinbròs da Tgreja, dgnifiea coisa coin-
pletàmente diversa do conceito de ser o poder político o braço se­
dente em sua própria esfera. Em segundo lugar, a igual­ cular ou instrumento dn Igreja. Em uma sociedade pJnralístiea,
16
nada de mais normal do que serem sancionada* pela lei civil as
Murray, op. cif., pág. 57. regras particulares de um corpo autônomo, partindo do ponto de
17Sôbre a questão do “braço secular”, vide ibid., págs. 62 vista próprio da sociedade civil, sempre qüe estejam em jôgo in-
e sege.; Juurnct, IJÉglite ãu. Verte Incarne, págs. 249, 317-26. tórêsses do bem comum.
Note-se, de passagem, que a frase ritual “recurso ao braço se- 18 Vide Journet, UÉgliw At Verbe Zficar^é, págs. 261-64.
188 JACQUES MARITAIN O HOMEM E 0 ESTADO 189

ouvir a mensagem do Evangelho e os ensinamentos da exemplo, o caso de libertar or súditos de um príncipe


Igreja quando a graça iluminar seus corações. 1U apóstata, do seu juramento de obediência. Tais coisas
- Já que são esses os pontos existenciais de referên­ podem ser objeto de admiração na Idade Média. São, po­
cia, como podem sei' os meios de aplicar e de realizar, rém, letra morta em nossa época. U princípio supremo
em nossa era histórica, os princípios supremos que re­ e imutável da primazia do espiritual e da superioridade
gem as relações entre a Igreja e o Estado? Digamos que, da Igreja pode ser aplicado de outra maneira — não me­
cm uma nova civilização cristãmente inspirada, tanto nos exata e ate mais pura '•1 — quando pelo próprio fato
quanto é possível prevê-la, 20 esses princípios seriam em 21 Comentando a Concordata, concluída em 1940 entre a Santa
geral aplicados, menos em termos de poder social do que Sé. e o Estado Português (segundo a qual o Estado Português,
em termos de uma inspiração vivificante da Igreja. O enquanto garante a plena liberdade da Igreja Católica, não sus­
próprio medo de sua atuação sobre o corpo político tem tenta nenhuma igreja oficial, e o clero, exceto quanto ao apoio
sido espiritualizado, tendo a acentuação se deslocado do dado a certfiÀ obras missionárias de além-mar, não recebe qual­
quer subvenção do Estad-o), disse o Cardeal Cerejeira, patriarca
poder e das coações legais (que a Igreja exerce, agora de Lisboa, em notável discurso pronunciado a 18 de novembro
como sempre, na sua esfera espiritual própria sobre os de 1941: .
seus próprios súditos, mas não sobre o Estado) para a "Outro aspecto do regime instituído pola Concordata é o de
influencia moral e a autoridade. Por outras palavras, recíproca autonomia da Igreja e do Esta no. Cada um ó uide pen­
deu te e livre na sua respectiva esferu de competência. Nem o
acentuou-se uma certa moda, ou “estilo”, nas relações Estado tutela a Igreja, nem a Igreja se intromete nas coisas do
externas da Igreja, mais adequadas à própria Igreja e Eatado.
mais afastada das modalidades que foram inevitavel­ Os que falam na supremacia do Estado, devem logo acres­
mente introduzidas no Império Cristão de Coiistantino. centar: escravização da Igreja, e portanto da consciência cató­
E, assim, a dignidade superior da Igreja deve encontrar lica. A autoridade do Estado é absoluta, segundo a própria dou­
trina católica — mas no domínio que lhe pertence.
os seus modos de realização no pleno exercício da força Foi o Cristianismo que introduziu no mundo^ esta separação
superior de sua inspiração, que tudo penetra. do temporal e do espiritual, sôbre que assenta lôda a civilização
cristã. É êle a fonte da liberdade de consciência. Sõ porque exis­
3. O PRINCÍPIO DA SUPERIORIDADE DA IGREJA te, a Igreja não a defende apenas, mas rcaüza-a. Por isso pro­
curam dominá-la ou snprfrhi-la todos os que aspiram ao domínio
O princípio supremo e imutável da superioridade do totalitário, absoluto, do homem.
Reino de Deus sôbre os reinos humanos pode ser aplica­ O Estado Português reconhece a Igreja como ela é e assegu­
do por outros processos que não sejam o de tornar o go- ra-lhe a liberdade; mas não a sustenta, protegendo-u como a re­
ligião de estado...
vêrno civil o braço secular da Igreja, ou de pedir aos O que a Igreja perde em projeção oficial, ganha-o em liber­
reis que expulsem os hereges ou de usar os direitos da dade virginal do ação. Desligada de compromissos com o poder
espada espiritual para se apoderar dos negócios tempo­ político, adquire a sua voz maior autoridade junto das consciên­
rais, em virtude de alguma necessidade espiritual. É, por 1 cias. Deixa a César inteiram ente livre o campo, para melhor
se ocupar do que pertence a Deus. Êle é o puro vaso de cristal
1V
Cf. infra, 1.* parte, III, e notas 33 o 34 dêste capítulo. donde se derrama o tesouro da revelação cristã.”
20 Sôbre a noção e o possível advento de uma “Cristandade O Cardeal Cerejeira pronunciou outro importante discurso
profana” (Cristandade leiga ou secular, em contraste com a Cris­ sôbre o mesmo tema a 18 de novembro dc 1946.
tandade sacral da Idade Média), vide Journet, LfÊglise du Verbe Sôbre a Concordata portuguesa, vide o nosso livro Ratnov. et
Incarne, págs. 24S-52. raisons (Paris: Luí. 1947), cap. XIII; Ccmmon-wcal, 5 de feve-
190 JACqUES MARITAIN 0 HOMEM E 0 ESTADO 191

de que o Estado se aecularizou, as funções supremas de l»i rl: i' do envolvimento poderoso do Estado, que nunca
esclarecimento moral e de orientação ética dos homens, prc.d i > i-viçou senão com a intenção de ser servido,
mesmo no que concerne às medidas e aos princípios re­ 'no nos ('(iqiieçnmoH uimiiis daquilo que constitui o
lativos à ordem social e política, são exercidos pela Igre­ di. liniivo tissemiul e próprio dn superioridade. Um agen-
ja de maneira completa mente livre e autônoma. O mes­ |, u|H rior ii.io f tiqiiêk' que fica fechado e confinado cm
mo acontece quando a autoridade moral da Igreja orien­ i iin uii". li í ndia. Estimula as forças íntimas e as ener­
ta livremente as consciências humanas em cada caso, gias <l<* oiilrii * agentes mesmo quando autônomos em
quando está em jógo qualquer interesse espiritual de mi;■ esferas pucullaire.- cuja posição é mais baixa na
maior importância.32 Então, a dignidade superior e a escala do icr /\ superioridade implica uma influência
autoridade da Igreja se afirmam, não por uma coação penel.ranl.li o vitalizadora. 0 próprio símbolo da superio-
exercida sôbre o poder civil e sim por um esclarecimento i lade da Igreja é o poder moral com o qual ela atua
espiritual levado às almas dos cidadãos, que devem êles vitalmenlo, penetra e estimula, como um fermento espi­
próprios livremente julgar, segundo a sua consciência ritual. a existência temporal e as energias íntimas da
pessoal, tôdas as matérias pertencentes ao bem comum natureza, de modo a levá-las a um nível superior e mais
político. Êste modo de levar a efeito a primazia do espi­ perfeito em sua própria ordem,33 — nessa própria or­
ritual pude ser frustrado ou impedido por métodos de dem do mundo e da vida civilizada dentro da qual o
ação opostos empregados por outros cidadãos. Aliás, não corpo político possui uma autonomia suprema mais in­
existem, nem jamais existiram, métodos infalíveis. Mas, ferior cm relação à ordem espiritual e às coisas que per­
em iguais circunstâncias, parece êsse método ser mais tencem à vida eterna. Isto é exatamente o que os Esta­
seguro a longo prazo, do que os métodos concebidos em dos absolutistas ou totalitários (assim como, no plano in­
termos de autoridade estatal. Pode, êle, asaim, manifes­ telectual a filosofia racionalista) se recusam teimosamen­
tar de modo mais claro a liberdade e a pureza do espiri­ te a admitir, mesmo quando pretendem respeitar a liber­
tual, porque então êsse último não fica na dependência dade de religião, ao encerrarem a religião na sua pró­
do braço secular sempre ávido de predominar e não pre­ pria esfera celeste, impedindo-lhe qualquer influência
cisa encontrar meios, mais ou menos penosos, de se li- na vida terrena, como se fôra possível proibir aos céus
mandar chuva à terra ou brilhar sôbre ela. Isso, porém,
reiro <ie 1943 (nÜJSSe número vários trechos do discur30 de 1941 — isto é, a influência vivificante da Igreja e dos Evan­
são infelixmunlv citadós, por vêzea, de mudo defeituoso); o Tablul, gelhos nas coisas do mundo — é, ao contrário, o que fica
de Londres, 2’ de outubro de 1948; Yves de la Eiière, “Le Con­ assegurado, de modo real e genuíno, em um tipo de civi­
cordai <hi Portugal", Construire, 1941 (Construire foi o substi­ lização cristã e num “estilo” de relações da Igreja com
tuto durante a guerra da revista jesuíta litudon) •, Murray, op. o Estado tais como as que ora estamos discutindo.
cit., págs. 71-72, nota.
22 “Através dos cidadãos livres, que livremente aceitam, a sua ***
doutrina e a sua lei c que, ao mesmo tempo, por livre consenti­
mento, dirigem os, negócios da cidade, a Igreja indiretamente toca Neste ponto, desejaria observar que a frase vulgar
na vida da Cidade: Através dêsses cidadãos livres, também, “problema da Igreja e do Estado” é até certo ponto am-
são os negócios da cidade dirigidos de tal maneira, que indireta­
mente auxiliam a missão sobrenatural du Igreja” (Murray, op,
cit., pág. 43). 33 Vide Jnumet, L’Éfflise ei le Verbc Incarni, páffs. 229-42.
192 JACQUES MÀRTTAIN 0 HOMEM E O ESTADO 193

bígua, pois que significa esta palavra Estado? Houve Em ruma, o princípio supremo de que a sociedade
uma época em que a Igreja tinha que se haver com os política 1< ui obrigações para com a verdade e que o seu
Reis da Cristandade e com os Imperadores Germânicos. bom comum implica o reconhecimento, não apenas por
Houve uma época em que ela tinha de tratar com reis palavras mm por fatos, da existência de Deus, era no
absolutos e depois com Estados modernos absolutos que passado levado a efeito pelo dever inerente aos reis — ou
pretendiam ser entidades pessoais ou suprapessoais que aos Estados absolutistas herdeiros dos reis — de condu­
governavam o corpo político, de cirna para baixo. Hoje zir o corpo político ou o povo àquilo que êsses reis
em dia, ela tem de ter relações ou com Estados totalitá­ ou < ; Estudos absolutistas (dado que possuíssem uma
rios levados por natureza a persegui-la, ou com Estados alma que lhes 1’iísse própria) consideravam como a verda­
democráticos ainda embaraçados nos remanescentes do deira religião. Em nosso clima histórico, porém (uma vez
passado, que ainda não sabem exatamente como lidar ree< nliecida a verdadeira noção do Estado e da sua fun­
com ela por não terem ainda compreendido que não eles, ção moralmente instrumental em uma sociedade democrá?
mas o corpo político, com todo o conjunto da sua orga­ tica), o mesmo principio supremo tem de ser realizado
nização institucional, é que constitui, de agora em dian­ pelo dever inerente ao povo e pôsto em prática pelas suas
te, a dramatis persona com a qual se defronta a Igreja. próprias consciências, isto é, dar expressão e adotar co­
Se o princípio democrático realmente se desenvolver em mo padrão moral inspirador e luminoso para a sua pró­
sua plenitude no mundo, tempo virá em que a Igreja só pria vida social e política aquilo que o próprio povo ou
terá de tratar com os povos, isto é, com sociedades polí­ os cidadãos consideram como sendo a verdadeira reli­
ticas nas quais o Estado não pretenderá mais ser uma gião. Nessas condições tudo dependerá, na prática, da­
pessoa, desempenhando apenas o seu verdadeiro papel quilo que o povo livremente crê em consciência. Tudo
de órgão central do corpo político. O problema da Igreja dependerá da plena liberdade de ensinar e de pregar a
e do Estado não tem o mesmo significado nesses vários palavra de Deus, que é o direito fundamental da Igreja
exemplos. e que é também exigido pelo povo na sua procura da
Consideremos especialmente as obrigações que o ser verdade. Tudo dependerá do grau de eficácia com o
humano — não apenas na sua vida individual, mas tam­ qual os membros da Igreja, lafcato e clero, derem teste­
bém em sua vida social — tem para com a verdade. To­ munho, na sua existência real, de sua fé viva e do Espí­
dos sào obrigados para com a verdade no limite cm que rito de Deus.
a conhecem. Os reis de antigamente — ou os Estados Se uma nova civilização tiver de ser cristãmente ins­
absolutistas herdeiros dos reis e concebidos de uma certa pirada, se o corpo político tiver de ser ativado pelo fer­
maneira hegeliana — tinham uma obrigação para com a mento do Evangelho na própria existência temporal, só
verdade à qual êles próprios aderiam em consciência, será por terem os cristãos sido capazes, como homens li­
como entidades distintas do povo e exercendo uma auto­ vres falando a homens livres, de reviver no povo os sen­
ridade sôbre o corpo político. Mas o corpo político como timentos cristãos e as estruturas morais muitas vêzes in­
tal tem uma obrigação para com a verdade, à qual o pró­ conscientes, encarnadas na história das nações nascidas
prio povo, os cidadãos — que constituem o corpo político da velha cristandade, e por terem conseguido persuadir
— aderem em consciência. 0 corpo político não conhece o povo, ou, pelo menos, a maioria déle, da verdade da fé
outra verdade senão aquela que o povo conhece.
194 JACQUES MARITAIN
0 HOMEM E O ESTADO 195

cristã, ou pelo menos, da legitimidade da filosofia polí­


tica e social cristã. desintegrando o corpo social para grande número de
pessoas cuja força. moral não estivesse no mesmo nível
♦** necessário para pôr em prática essa proibição.-4

Tüiiiíi de Aquino < •lüibvleco o- princípios de^sa matéria


Um corpo político assim cristãmente inspirado, uma cm um ailipo fiiiidnrnrntilJmonte sign<'irnuvú: A lei”, diz êle,
sociedade política realmente e vitalmente cristã, em vir­ “ê <?b1 nbclucid i C"'iiü uiji.i •■v.ii.m ri*gru o medida dos atoa huma­
tude do próprio espírito que a animaria e daria forma nos. Orn, lôdn ili dida dcv< mt honwgentm cnm m et- -a medi­
à sua estrutura — digamos, enfim, urna sociedade polí­ da... logo <’ iiiiri I .iii iü que n ; i óprias l(áô sejam imposta.’ aos
tica evangèlicamente cristã — deveria ter sua própria homem <í< iioôrdü com n sua condição, pois, como o diz Isidoro
(Eiyrii., Lv. V, r. 21), u lei deve ser poseivcl. taa.te c/h relaçao à
moralidade social e política, sua própria concepção da aatnreza mim aos cosftuncs da. h rra.
justiça e da amizade cívica, do bem comum temporal e “Oia, o poder ou a capacidade de agir procede dn íntima dis­
da tarefa comum a empreender, do progresso humano e da posição ou habihts do sujeito. A mesma coisa não é possível para
civilização vitalmente enraizados na consciência cristã. aquele que nau possui virtude o para o homem virtuoso, assim
como para n criança e o homem perfeito (crescido). 0 resultado
Considerando agora um problema novo e particularmen­ é que não temos leis idênticas para crianças e para adultos. Mui­
te difícil que diz respeito à própria sociedade tempo­ tas coisas são permitidas às crianças que a lei pune nos adul­
ral em sua natureza e em sua vida, assim como em tos <>u as considera vergonhosas. Do mesmo modo, muitas, coisas
sua legislação, devemos perguntar a nós mesmos a que podem ser permitidas aos homens que não estão aperfeiçoados
pela virtude, as quais não poderiam ser toleradas nos homens vir­
espécie de noções deveria essa legislação fazer apelo, tuosos.
quando se trata de problemas de consciência ou ques­ “Ora, a lei humana c feita para a multidão, a maior parte
tões diretamente relativas a credos e normas pessoais, da qual ê composta de homens não aperfeiçoados pela virtude.
assim como em relação à lei civil. Devemos manter, Por conseguinte, nem todo vício, de que se abstêm os homens vir­
nesse ponto, que a legislação de uma sociedade cristã tuosos, é proibido pela lei humana e sim apenas as ações mais
gravemente atentatórias da virtude, das quais c possível que se
dêsse tipo jamais poderia e deveria endossar ou apro­ abstenha a maior parte da multidão, e prineipalmente aquelas —
var qualquer procedimento contrário à lei natural. como o homicídio, o roubo etc. — que danificam outras pessoas
Cumpre, porém, compreender igualmente que essa le­ c sem cuja proibição não seria possível preservar a sociedade hu­
gislação poderia e deveria permitir ou autorizar cer­ mana.” Tkeol., I-II, 96, 2.)
E elo prossegue: “A lei humana visa levar os homens à vir­
tos modos de procedimento que se afastassem, até tude, não de um só jato, mas gradualmente. Por conseguinte, não
certo ponto, da Ixn Natural, se a proibição pela lei civil impõe hncdiatanwnte à massa dos homens imperfeitos aquilo que
dêsses modos de proceder prejudicasse o bem comum, ó exigido dos homens já virtuosos, de modo que fossem obriga­
ou porque tal proibição contrariasse o código ético de dos pela lei a abster-se de tôda espécie de mal. Se procedesse
de outra maneira. 03 povos imperfeitos, sendo incapazes de su­
comunidades de cidadãos cuja lealdade para com a Na­ portar tais obrigações, mergulhariam cm mulos ainda piores, como
ção e cuja fidelidade ao seu próprio credo moral, qual­ está dito nos Prov. 30:33: torcer o nariz provocà o sanyue, e
quer que fosse a sua imperfeição, tem uma importân­ ainda ein MaL, 9, 17: se puserdes vinho novo — isto ê, os pre­
cia essencial para o bem comum, ou mesmo porque dessa ceitos da vida perfeita, ctn. velhas odres — isto é, em homens
proibição resultaria uma pior conduta, perturbando ou imperfeitos, o odre se rompe o o vinho se espalha, — isto é, os
preceitos não são cumpridos e de tal omissão partem os homens
para mergulhar em males ainda piores” (ibid., ad 2).
196 JACQUES MARTTAIN O HOMEM E O ESTADO 187

Diríamos, portanto, que, no assunto ora em discus­ mal menor exigiria do Estado um reconhecimento jurí­
são, a legislação civil deveria adaptar-se à variedade dos dico dos códigos morais peculiares a essas minorias com-
credos morais das diversas famílias espirituais, das quais preendid.i no corpo político, cujas regras dc moralida­
essenciahncnte depende o bem comum do corpo social, de, embora defeituosas sob certos aspeclos quanto à sua
— não endossando cu aprovando os mesmos mas apenas perfeita moralidade cristã, provassem representar nm
autorizando-os a existir. Por outras palavras, a lei civil papel import nlr na h rança da nacionalidade e no seu
só deveria estabelecer regras relativas à autorização dos enforco cotntiin para a rcnlizaçan dc uma vida humana
atos sancionados por êsses vários códigos morais ou, en­ saiba. Tal reconhecí mento não seria fundado em um di­
tão, atribuindo-lhes efeitos jurídicos exigidos por sua reito, que não poderíamos saber qual fosse, que qualquer
natureza. O estado, por conseguinte, não deveria tomar espécie de vida moral possuísse i n relação à lei civil, e
a si a responsabilidade désses atos, nem torná-los válidos sim nas exigSàcias do bem comum político. Ésse bem
por um pronunciamento especial, mas apenas registrar comum, em uma sociedade democrática, requer, ao mes­
(sempre que o assunto for de natureza a exigir uma de­ mo tempo, um respeito particular pelas forças íntimas e
cisão das autoridades civis) a validez que lhes fôr atri­ pela consciência da pessoa humana, assim como um cuida­
buída pelos códigos morais em questão. do particular em não impor pela força da lei regras de
Assim, no sentido que acabo de definir, uma aplica­ moralidade estritas demais para a capacidade moral de
ção autêntica do princípio pluralista 25 e do princípio do numerosos grupos da população. Caberia à sabedoria po­
lítica do legislador determinar que comunidades de cida­
Não entendamos Uque pelo Tato de poderem tôoàs as opi- dãos poderiam desfrutar dessa condição legal pluralísti-
Tiiõeà humanas, dê qualquer espécie, serem ensinadas e propaga­ ca que acabamos de descrever.
das, tenha a comunidade obrigação de reconhecer como juridica­ Veríamos, como resultado disso, cm alguma possível
mente válida para cada grupo espiritual a lei elaborada por ésse sociedade futura as leis do corpo político reconhecendo
grupo de acôrdu com os seus próprios princípios. Não é esse
o meu parecer. Pára mim, êsse princípio significa que. a fim cm tais matérias, — não cm virtude do nm direito per­
de evitar males maiores (isto é, a ruína da paz social e a petri­ tencente a qualquer procedimento moral e apenas em
fica çã o ou, pelo contrário, a desintegração das consciências), a virtude das decisões livres da sabedoria política, — os
comunidade poderia e deveria tolerar (tolerar não e aprovar), códigos morais de que dependem as consciências das
formas de culto mais ou menos distantes do verdadeiro: os ritos
dos infiéis devem ser tolerados. ensinou Santo Tomás de Aquino
(Sum. Theol., II-II, 10, 11). A tolerância dessas fornias de culto porei et dc la íibertê (Freed&m. in lhe modem world). cap. I,
leva também à dos modos de conceber o sentido da vida c a3 n.° 12. Em tal concepção pluralista, como observei (pág. 80, cd.
fornias de comportamento. Por conseguinte, aos vários grupos francesa; pág. 6G ed. inglesa), “a legislarão civil deve coincidir
espirituais que vivem dentro de um corpo político, deveria con- ou concorrer com a Lei Canônie» para cs católicos”, enquanto
codcr sc uma condição jurídica particular que o poder legislativo quo rara as outras tradições espirituais podo ser diferente, em-
<frt. própria comunidade, e.m sabedoria, política, deveria adap­ boia ponwre orientada na direção des verdadeiros princípios mo­
tar, de um lado, à sua própria condição e. de outro, à linha ge­ rai.-. Pode observar-se, a respeito disso, que o art. 24 da Con­
ral da legislação que leva à vida virtuosa e às prescrições da lei cordata portuguesa proíbe o divórc o apenas àqr.r-les que con­
moral, h plena realização da qual deveria tentar dirigir, tanto traíram um casamento católico. “Essa determinação”, comenta
quanto possível» essa diversidade de formas” {Humanismo Inté- o padre John Courtncy Murray, “ilustra o que eu quis dizer ao
ffral, págs. 172-73: True Huma^iism, págs. 160-61; acrescentei al­ afirmar que o Estado organiza o que existe na rociedade” (op.
gumas correções à tradução inglesa). Cf. também Dit régi ve tem- cit.. pág. 72, nota).
198 JACQEES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 199
principais famílias espirituais que formam a comunidade mente ao Estado, em oufro, especialmente ao corpo polí­
nacional e a sua complexa herança moral. Tal procedi­ tico — ocupa-se com as formas específicas de auxílio
mento, porém, só seria justificável, se o corpo político, mútuo entre n Igreja e a sociedade política.
ao garantir êsse conjunto de liberdades a suas próprias
partes, tomasse em consideração os interesses morais do
todo e restringisse quanto possível ao mínimo as derro­ A forma nuüs tprul c indireta de cooperação
gações às mais altas exigências da lei natural que os
legisladores permitiriam como um mal menor em vista Quanto ao primeiro ponto (a forma mais geral e in­
do bem comum. O objetivo final da lei é tornar os direta de assistência mútua), diria eu com o padre John
homens moralmente bons. A lei civil deveria adaptar-se, Courtney Murray, no notável estudo que escreveu BÔbre
tendo em vista o bem maior a que pode atingir a multi­ o assunto, que “a principal assistência, ajuda e prote­
dão. a vários modos de vida sancionados por vários ção" que o corpo político e o Estado “devem à Igreja"
credos morais, mas deveria opor resistência a quaisquer (diríamos melhor à pessoa humana no que se refere ao
modificações que representassem apenas evidente relaxa­ seu destino eterno) consiste no cumprimento total dos
mento da moralidade e decadência de costumes. Deveria seus próprios deveres com respeito aos seus próprios
ainda manter, em todos os casos, uma orientação geral fins, no seu próprio respeito da lei natural e na realiza­
no sentido da vida virtuosa, fazendo com que o procedi­ ção plena de seu dever político de criar tais condições
mento geral tendesse, em cada plano social, ao cumpri­ na sociedade — políticas, sociais econômicas, culturais
mento pleno da lei moral. — que favorecerão os fins da personalidade humana, o
gôzo pacífico de todos os seus direitos, o desempenho li­
vre de todos os seus deveres, o desenvolvimento comple­
4. O PRINCÍPIO DE COOPERAÇÃO to de todos os seus podêres. Existe aqui uma tarefa ma­
Voltemos, porém, às relações entre a Igreja e o Es­ terial, o fomento da prosperidade, a distribuição equita­
tado, e consideremos o nosso segundo princípio imutável, tiva das coisas materiais que são o amparo da dignidade
o princípio de cooperação. As coisas que pertencem a humana. Ilá também uma tarefa moral, a garantia efe­
César não são apenas distintas das coisas que pertencem tiva da ordem jurídica. Essa organização da sociedade,
a Deus, mas devem cooperar com elas. Como deveria de acordo com as exigências da justiça, “é a primeira
funcionar, no tipo particular de sociedade política cristã contribuição e a mais própria e necessária” do corpo po­
que estamos discutindo, o princípio da cooperação ne­ lítico e do Estado para os interesses espirituais da Igreja,
cessária entre a Igreja e o corpo político? — “uma contrihuição indireta, mas sem a qual é impos­
O problema, parece-me, apresenta três aspectos ca­ sível a realização dos fins da Igreja, ou pelo menos de
pitais: o primeiro, que diz respeito tanto ao corpo polí­ obtenção muito difícil." 26
tico como ao Estado, refere-se à forma mais geral e in­ 20 Murray, óp. rii., pág. 48: “Nnda 6 mais claro do
direta de assistência mútua entre êles e a Igreja; o se­ que a
tnsdstôncin do Papa em que o exercício consciente polo Estado
gundo, que se refere especialmente ao Estado ou à auto­ de sen poder direto sfthre a vidn temporal é o exercício essen­
ridade civil, diz respeito ao reconhecimento público de cial de seu poder o do seu dever indiretos de favorecer e de apoiar
Deus; o terceiro — que, em um caso, se refere especial­ as finalidades da Igreja... O problema espiritual de nosso tempo
concentra-se de fato na ordem temporal. E o moderna “Estado
200 JACQUES MAR1TAIN O HOMEM E O ESTADO 201

O reconhecimento público da existência de Dèus auxiliada e não o poder político ou as vantagens tempo­
rais a que queiram fazer ju - ern seu nome alguns de
Quanto ao segundo ponto (o reconhecimento público seus membros. No estado de desenvolvimento e de cons­
da existência de Deus), já tive ocasião de observar que ciência que as sociedades modernns alcançaram, uma
uma sociedade política, real e vitalmente cristã, teria discriminação social ou política em favor da Igreja, ou
consciência da doutrina e da moralidade que nela ilu­ a concessão de privilégios jurídicos aos seus sacerdotes -r
mina — isto é, para a maioria do povo — os princípios ou aos seus fiéis, seriam precisamente de natureza a
da Carta democrática e que a guia na efetivação dêsses comprometer, em vez de auxiliar, essa missão espiritual.
princípios. Deveria tal sociedade ter consciência da fé Falei dos sacerdotes ou “ministros" da Igreja. Nó
que a inspirou, exprimindo-a püblicamente. É óhvio, na que concerne à sua especial situação, convém entrar em
verdade, que para qualquer povo essa expressão pública
de uma fé comum deveria de preferência assumir as certas explicações detalhadas, mesmo à custa de uma
formas daquela confissão religiosa à qual a história e digressão bastante longa.
as tradições dêsse povo estivessem mais vitalmente liga­ A isenção das obrigações militares concedida em
das. Mas as outras confissões religiosas institucional­ certos países aos ministros do culto não é um privilégio
mente reconhecidas também deveriam participar dessa social. Não ser exposto a derramar sangue representa,
pública expressão, como acontece nos Estados Unidos para um homem, una alto privdégio moral. Essa isenção,
atualmente — e seriam também representadas nos conse­ porém, também é, tio ponto de vista terrestre e temporal,
lhos da nacionalidade, de modo a poderem defender seus uma situação socialmente humilhante, dada a exceção
próprios direitos e liberdades, cooperando na tarefa co­ que iszo implica, a uma regra comum e a princípios co­
mum. Quanto aos cidadãos que não pertencessem a qual­ muns no regime moderno da nação armada. E isso sem
quer confissão religiosa, teriam apenas de compreender falar do ressentimento a que, por vêzes, os expõem uma
que o corpo político como um todo teria a mesma liber­ isenção imposta àqueles que são consagrados a Deus,
dade em relação à pública expressão de sua própria fé pelo reconhecimento de sua missão cssencialmente pací­
como êles. na qualidade de indivíduos, eram livres em re­ fica na comunidade humana.
lação à expressão de suas próprias convicções não re­ Por outro lado, convém fazer uma distinção entre
ligiosas . uma simples adequação da lei ou do costume a certas
funções e a certos estados de vida diferentes, que inte­
Aa formas específicas de mútua cooperação ressam ao bem comum do corpo social — um privilé­
gio jurídico, considerado como atribuindo certas vanta-
Quanto ao terceiro ponto — as formas específicas
de auxílio mútuo entre o corpo político e a Igreja — 27 O fato de eximir os clérigos em geral, qualquer que seja
gostaria de fazer algumas observações preliminares. Ê a sua confissão religiosa, de derramarem sangue na guerra, nao
evidente que a missão espiritual da Igreja é que deve ser é um priviléf/io n èles concedido, mas ante uma condição social­
mente humilhante, condição que, em certas circunstâncias, pode­
de bem-estar", pelo simples fato de servir ao bem-estaí humano, ria mesmo criar um ressentimento contra eles, condição que lhes
serviria melhor à Tgreja do qne jamais o fizeram .Tustiniano ou é imposta polo reconhecimento de sua missão essenc.ialmente pací­
Carlos Magno’’ (íhíd., pág. 48). fica na comunidade humana.
202 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 203

gens temporais a uma categoria particular em virtude condições de realização (aquilo a que se chama “a hipó­
de uma infração ao princípio da igualdade de todos pe­ tese”) de uma ial situação ideal supõem com efeito, dado
rante a lei. Os direitos enumerados no Código de Direito o estado de fato criado pelo advento das sociedades mo­
Canônico no capitulo de privileffiis elericoruni pelos dernas e dos regimes democráticos, um povo no qual a
quais a Igreja, do seu ponto de vista próprio, sanciona divisão em matéria religiosa tivesse desaparecido, e no
certas exigências particulares do estatuto adequado ao qual a fé católica seria a única fé religiosa. Nesse caso
clero, deveriam ser reconhecidos por uma sociedade civil seria a Igreja Católica, evidentemente, a única a desfru­
de tipo pluralista como incluídos no primeiro caso: ade­ tar de falo direitos e liberdades atribuídos por principio
quação da lei ou do costume a certas funções e a certos aos diversos corpos religiosos institucionalmente reco­
estados de vida variados. nhecidos em uma sociedade política cristã do tipo que
Incluem-se também no mesmo caso, evidentemente, descrevemos. Em tais condições, o ideal considerado na
certas vantagens concedidas por vezes ao clero que a “lese” se realizaria de fato era uma situação efetiva­
Igreja por seu lado no seu próprio plano de sociedade mente privilegiada, mas que não implicaria nem vanta­
autônoma não pensa inscrever no seu código nem con­ gens temporais concedidas a uma categoria de crentes
sidera como direitos exigidos pelo estado clerical. Assim por oposição às outras, nem derrogação do princípio de
é que, em certos países como, por exemplo, nos Estados igualdade de todos perante a lei, nem. ainda menos, qual­
Unidos, as companhias de estradas de ferro concedem quer pressão exercida pelo Estado em matéria de cons­
aos ministros do culto uma redução de tarifas. Poder-se- ciência, nem qualquer papel instrumental de braço se­
-ia aliás conceber que certas vantagens dêsse tipo fôssem cular da Igreja concedido ao Estado. Era verdade, essa
concedidas também a pessoas exercendo outras funções, situação ideal corresponderia aos direitos da Igreja, —
como, por exemplo, a função médica. De qualquer modo, o primeiro dos quais é de transmitir a verdade divina, —
o uso dessas vantagens supõe, naqueles que delas apro­ assim como corresponderia às exigências do ideal a pro­
veitam. uma atitude bastante modesta de modo a impe­ mover, — exigências essas, das quais mais tocam o cora­
dir que essas pequenas desigualdades possam parecer ção cristão, — antes e acima de tudo cm virtude daquilo
chocantes ou mesmo escandalizar o povo, como aconte­ que elas pressuporiam, isto é, o desaparecimento da di­
cia no século XIII, com o aparato equestre dos abades visão religiosa no mundo e a adesão geral à verda­
beneditinos (Santo Tomás de Aquino viajava em lombo deira fé.
de burro, como convinha a um membro de uma Ordem Deixemos, porém, de lado êsse parêntese e voltemos
mendicante.) à nossa exposição. O cuidado que o Estado deve ter em
Notemos enfim, para evitar qualquer interpretação não se embfenhàr pelas coisas da religião não significa
falsa, que nada do que dizemos no presente capítulo se que, em matéria de moral e religião, o Estado deva
opõe a que. — do ponto de vista daquilo a que se costu­ conservar-se indiferente ou reduzido a uma completa
ma chamar a “tese” e sob a condição de. nos entendermos impotência. O Estado não tem autoridade para impor
sòhre o alcance real das palavras, — uma situação jurí­ qualquer espécie de fé ao domínio íntimo da consciên­
dica privilegiada para a Igreja seja considerada como cia nem tampouco para extirpar qualquer fé do aludido
a situação exigida e o ideal a promover, em virtude dos domínio. Mas o Estado, como vimos no capítulo prece­
direitos daquela como mensageira da verdade divina. As dente, tem de favorecer, pelos meios adequados, a mora-
204 JACQUKS MARJTAIN O HOMEM E O ESTADO 205-

1 idade geral através cio exercício da justiça e do cumpri­ aceni nado nesse capítulo) de que a sociedade temporal
mento da lei, e hem assim superintender o desenvolvi­ se tornou secular ou < driUiniente temporal, unindo em
mento de condições e processos sadios no corpo político sua tarefa comum e em seu bem comum homens per­
para a boa vida humana, tanto material como racional. tencentes a diversas famílias religiosas, tem como con­
E quanto a matérias religiosas, tem o Estado de tratar sequência que o prmeipio da igualdade dos direitos deve
delas em certo plano, que é o plano da paz civil e do si r aplicado — não “a doutrinas” nem a “credos”, o que
bem-estar, e considerando-as do sen ponto de vista, que não teria qualquer sentido — mas u cidadãos que per­
é o ponto de vista do bem comum temporal. O poder tencem a ensas diferentes famílias religiosas, que o
civil, por exemplo, como dissemos, tem do solicitar as corpo político, de seu próprio ponto de vista, considera
preces das comunidades religiosas historicamente enrai­ como parte de súa herança moral comum. Não ê fato,
zadas na vida do povo e isso porque ele representa o como prèvlamente ob. ervamos, que através dos cidadãos
próprio povo. E não é senão normal que, ao aplicar as membros da Igreja é que a Igreja, a qual está acima do
leis relativas ao exercício do direito de associação, deve­ corpo político, penetra na esfera do corpo político e do
ria o Estado conceder reconhecimento institucional àque­ seu i.em comum temporal? É, pois, sob ó ptonto de vista
las comunidades religiosas — assim como a tôdas as dos cidadãos que compõem o corpo político que o Estado
associações religiosas ou seculares,, educativas, científi­ definirá as suas próprias posições em relação ao status
cas ou dedicadas ao serviço social, cuja atividade é de urídico da Igreja, dentro da esfera temporal e em rela­
alta importância para o bem-estar comum — em contra­ ção ao bem comum temporal.
dição com outros grupos religiosos ou associações secula­ Sucederia, assim, que a sociedade política a que me
res que desfrutam de liberdade, mas não de um reconhe­ estou referindo — e supondo que a Fé da maioria do
cimento institucional. Além disso, considerando o fato da povo dessa sociedade pertença à Fé Católica — saberia
formação de alguma seita religiosa que vise a destruição perfeitamente que a própria Igreja não participa da so­
das bases da vida comum — per exemplo, ao prescrever ciedade política, mas está acima dela. E nessas condições
o suicídio coletivo ou o aniquilamento racial — deveria reconheceria a personalidade jurídica da Igreja, tanto
ter o Estado competência para dissolver tal seita reli­ quanto a sua autoridade espiritual no governo dos seus
giosa, assim como qualquer outra associação de caráter membros dentro dos limites de sua jurisdição espiritual,
criminoso ou destrutivo da segurança nacional. Tudo isso e com ela se entenderia como uma sociedade perfeita e
diz respeito à administração da justiça e implica a igual­ perfeitamente independente, com a qual a sociedade po­
dade de direitos de todos os cidadãos, qualquer que seja lítica. estabeleceria convênios e com cuja autoridade su­
sua raça, sua condição social ou sua confissão religiosa. prema manteria relações diplomáticas. No entanto, para
Deveria ainda ser indicado, a êsse respeito, primei­ que tudo assim se passasse, teria essa sociedade política
ramente, que os sujeitos de direito não são entidades cristã de reconhecer que, cm sua própria er.iera tempo­
abstratas como “a verdade” ou “o erro” e sim pessoas ral, e com relação aos direitos que lhe são próprios, os
humanas individual ou coletivamente consideradas; em cidadãos cristãos (juntamente com as atividades coleti­
seguida, que a igualdade de direitos de todos os cidadãos vas que êles e suas diferentes instituições livremente de­
é o principio fundamental das sociedades democráticas sempenham na comunidade nacional) não são legalmen­
modernas. Por isso, o próprio fato (tantas vêzes por nós te mais privilegiados que os demais cidadãos.
206 O HOMEM E O ESTADO 207
JACQUES MARITAIN
a sociedade política crista de qae iit. estamos ocupando
Em outros termos, essa sociedade política cristã teria consciência do fato de que as verdades e os esti­
compreenderia que existe apenas um bem comum tempo­ mules cri' aos, bem como a inspiração do Evangelho, ao
ral, o do corpo político, assim como só existe um bem «.iuspi iI.ik i.i a consciência cmimiii r ao refletirem-se no
comum sobrenatural, u do Reino de Deus, que é supra- plano da t ■ i; imitmi temporal, constituem a própria alma,
politicq. Desde que a sociedade política fique realmente a própria im-çu inlrrior <■ o baluarte espiritual da demo­
diferenciada em seu tipo secular, o fato de inserir no cracia. Assim como u democracia, sob pena de se desin­
corpo político uni bem comum particular ou parcial, isto tegrar, Lmii de defender e de Incrementar a carta de-
é, o bem comum temporal dos fiéis de uma religião (mes­ mocráticn, .! ■ im tanióçni a democracia cristã, isto é, uma
mo que se trate da verdadeira religião), exigindo para democracia plenamenLe consciente de suas origens, tem
êlés uma posição jurídica privilegiada, seria o mesmo de manter bem vivo em seu seio o sentimento cristão
que inserir no corpo político um princípio de divisão e, da dignidade humana e da igualdade humana, bem como
nessas condições, representaria isso uma interferência no da justiça e da liberdade, sob pena igualmente de se de­
bem comum temporal. 28 sintegrar. Paru a sociedade política, realmente e vital­
Depois dessas observações preliminares, chego ao mente cristã, que estamos considerando, suprimir todo
ponto em discussão, a saber, as formas específicas de au- contato real e tôda conexão com o corpo político, isto é,
xíiio mútuo entre a Igreja e a sociedade política. todo auxilio mútuo entre êle e a Igreja, seria nem mais
Como observamos na primeira parte dêste capítulo, nem menos do que um suicídio.
o homem é, simultâneamente, membro do corpo político Quais são, nesse caso, as lormas específicas de mútua
e dessa sociedade supratemporal que é a Igreja, caso assistência entre a Igreja e o corpo político?
participe da Igreja. Sua personalidade ficaria dividida A mais fundamental de tódas elas é o reconheci­
em duas partes se a sua participação temporal fôsse se- mento e a garantia pelo Estado da plena liberdade da
cionada de sua participação espiritual. As duas partici­ Igreja. O fato de garantir a liberdade de alguém é cer­
pações têm de estar sempre em conexão e contato. Ora, tamente uma forma de cooperação com essa pessoa e
um contato e uma conexão reais, ou representam um de assistência a ela, uma forma real, muito real mesmo,
contato e uma conexão de antagonismo, ou então cons­ embora negativa. Tem sido uma ilusão dos tempos mo­
tituem um contato e uma conexão de auxílio mútuo. dernos acreditar que liberdade mútua significa mútua
Além disso, o próprio bem comum da sociedade tempo­ ignorância. Fosso eu ignorar aquele cuja liberdade ga­
ral supõe que as pessoas humanas são indiretamente ranto? A teoria da mútua ignorância entre o Estado e a
amparadas por essa sociedade temporal na sua marcha Igreja é. uma teoria decepcionante. Ou leva, de fato, o
para a finalidade extratemporal que lhes é própria e cons­ Estado a intrometer-se em assuntos espirituais (como su­
titui uma condição essencial da busca da felicidade. Fi­ cedeu em França durante o século XIX), opondo-se à
nalmente (mesmo deixando de lado o fato, definido pela Igreja, com a pretensão de definir e de pôr em prática
teologia, de que a natureza humana, em sua condição o que êle entende por liberdade da Igreja ; ou leva o Es­
existencial, precisa da graça divina para atingir os seus tado, de fato, a reconhecer realmente a Igreja (sem pre­
mais altos fins humanos, tanto sociais como individuais), cisar, para isso, de ter uma religião oficial) de modo a
28 Heinrieh Rojnmen, “Church and State”, fíetnew of garantir, de um ou de outro modo, a liberdade da Igreja.
?ol>tic8, julho de 1950.
208 JACQUES M.4RITAIN
0 HOMEM E O ESTADO 209
Garantir à Igreja uma liberdade plena e o exercí­
cio livre de sua missão espiritual é urna exigência funda­ que é espiritual? Para êsse último elemento, além disso,
mental dos direitos por Deus concedidos à Igreja, tanto podre j.ir.lliar melhor representa ser mais amparado em
quanto a expressão do respeito pelos direitos primordiais sua própria I areia.
da pessoa humana. Ademais, é uma exigência do próprio As nn e que o corpo político, bem corno suas insti­
bem comum do corpo político. É uma condição para a tuições o repartições livres, utilizando-se de sua própria
irradiação do fermento do Evangelho, por todo o corpo liberdade elo ação existencial, dentro da estrutura das
social, de que necessita, em sua própria esfera de ação, leis, deveriam pedir mais à Igreja. Deveriam pedir, na
o bem comum temporal. Ao garantir a plena liberdade base du liberdade c da igualdade de direitos para todos
da Igreja em sua missão espiritual, está o Estado atuan­ os cidadãos, a sua cooperação no campo de tôdas as ati­
do em seu próprio terreno, por estar garantindo o bem vidades que visam o maior esclarecimento dos espíritos
comum do corpo político. E, como vimos, pode o Estado humanos e da vida. Deveriam positivamente facilitar o
conceder essa garantia — e ó assim que melhor pode trabalho religioso, social e educativo por meio do qual a
assegurá-la em nossa era histórica — sem atribuir ne­ Igreja — tanto quanto os outros grupos espirituais ou
nhum privilégio especial aos cidadãos que sejam mem­ culturais cuja cooperação para o bem comum fôsse re­
bros da Igreja. conhecida por êles — contribui livremente para □ bem-
Há, finalmente, uma segunda forma específica de -estar comum. Removendo obstáculos e abrindo portas,
assistência miítua que também se torna indispensável. o corpo político e suas repartições e instituições livres
Já não me refiro agora a uma assistência negativa, como facilitariam positivamente o esforço dos apóstolos do
é o caso da garantia da liberdade, mas a uma assistên­ Evangelho em sua ida às massas e participação na vida
cia positiva. Já não falo, agora, do Estado, mas do corpo das mesmas, em sua assistência ao trabalho social e mo­
político com suas repartições e suas instituições livres. ral da nacionalidade, em sua preocupação de proporcio­
Na sociedade política cristã, de que estamos tratando, nar ao povo um tempo de repouso a que faz jus a digni­
essa forma positiva de assistência nào implicaria qual­ dade humana e ao desenvolver nele o sentido da liber­
quer infração à regra básica de igualdade legal e de di­ dade e da fraternidade. 2I>
reitos iguais para todos os cidadãos. O Estado não aju­ Deveria ser essa, em minha opinião, a cooperação
daria em nada a Igreja pelo fato de lhe conceder um positiva entre o corpo político e a Igreja. Tenhamos con­
tratamento jurídico privilegiado ou procurando ganhar fiança na ação fecundante da verdade. Entre tóda- as
sua adesão por meio de vantagens temporais atentató­ instituições religiosas ou culturais que assim cooperas­
rias de sua própria liberdade. O melhor processo de que sem livremente com o corpo político, a Igreja, que é de­
dispõe o corpo político para ajudar a Igreja em sua mis­ positária da verdadeira fé — em contraste com credos
são espiritual c o de pedir a assistência da Igreja para o religiosos cuja mensagem é mais ou menos deficiente e,
seu próprio bem comum temporal. O conceito de auxílio com mais razões ainda, com filosofias humanas mais ou
não é um conceito unilateral e sim bilateral. Afinal, não menos errôneas — aproveitaria melhor as oportunidades
será mais normal que os elementos superiores, ou de a todos oferecidas pela liberdade.
maior valor em si mesmos, ajudem os de menor digni­ 89 Cf. nossos livros, Huinanisrne intégrul, págs. 184-85 (True
dade, do que fazer com que o que é terrestre ajude o Hwnanism, pãgs. 172-73) e Th Rights oj Jiu.i anel Natural I,aw
(págs. 28-29).
210 JACQUES MARITAIN*
O HOMEM E O ESTADO 211
III Compreendidas assim a.-; c<>isas, vemos que muitos
Algumas conclusões práticas problemas que embaraçam a consciência contemporânea
são resolvidos por esse mesmo critério.
O presente é apenas um limite, uma linha de demar­ Vemos, de um lado, que a condenação do liberalis­
cação entre o passado e o futuro. Só podemos, assim, mo teológico pela Igreja Católica nau será jamais modi­
entender o presente em termos do passado ou em termos ficada. Isso porque o liberalismo teológico impura a falsa
do futuro. Eis por que me parece aconselhável que os filosofia da autonomia metafísica absoluta da razão e
cristãos meditem um pouco, a seu jeito, sobre o futuro. da vontade do homem, e porque também converteu as
No que diz respeito à minha tentativa de esboçar chamadas “liberdades modernas'' em valores de tal modo
um futuro tipo de sociedade política cristã, como quer absolutos e ilimitados, que as obrigações do homem para
que vejamos os seus traços especiais, o que a mim me com a verdade ou para com o bem comum simplesmente
preocupa e imporia é que os princípios gerais supremos desapareceram. Insistiu, além disso, em que os próprios
são imutáveis e que os meios de os aplicar ou realizar princípios, que haviam sido aplicados na Idade Média ou
são analógicos e mudam de acordo com a variedade dos na idade barroca, de uma maneira que hoje seria inacei­
climas históricos. Assim, os princípios que foram aplica­ tável, eram princípios efêmeros, suplantados pela evo­
dos, om um certo sentido, pela civilização sacra! da Ida­ lução das idéias e das sociedades. Tais posições são in­
de Média, continuam a ser verdadeiros, mas devem ser trinsecamente errôneas. Isso, entretanto, não significa
aplicados de outro modo em nossa moderna civilização que as “liberdades modernas”, sadiamente interpretadas,
secularizada. 30 devam ser rejeitadas. Isso tampouco impede que a Igre-
já promova, em nossos dias, liberdades como a liberda­
Para exprimir de outro modo o mesmo ponto, poderiamos de de consciência, a liberdade de ensino, etc.81
u.'-ar da distinção, que acentuei em capítulo precedente, entre a Por outro lado, verificamos a indiscutível voracida­
posse de um diieito e o seu exercício. Posso possuir um direito, de de afirmações como a da fumosa réplica que o Car­
por exemplo, a liberdade pessoal, c ser proibido pela justiça de deal Manning deu a Gladstoue. “Se amanhã os católicos
exigir o seu cumprimento do fato, se o meu pais está compro­
metido em uir.a guerra justa e determina a minha mobilização. estivessem no poder na Inglaterra”, escreveu o Cardeal
A Igreja não perde nenhum dos direitos essenciais que ela Manning, “nenhuma lei penal seria imposta à fé de qual­
reivindicou ou exereou no pastado. No entanto, pode renunciar quer homem. Quiséramos que todos os homens acredi­
ao exercício de alguns desses direitos, não por ser forçada a fa­ tassem plenamente na verdade, mas uma fé forçada é
zê-lo, mas voluntariamente, em virtude do respeito pelo bem co­
mum, vieto como já mudou o contexto histórico. Ela exerceu no uma hipocrisia odiosa a Deus e ao homem... Se os ca­
passado o dÍTeito de anular e invalidar uma lei civil que preju­ tólicos amanhã se convertessem na raça imperial destes
dicasse fortemente o bem-estar espiritual do povo. Ela continua reinos, jamais usariam do poder político para molestar
a possuir ésso direito cm sua essência. Se cia, porém, reivindi­ a situação religiosa dividida e herediiária desse povo.
casse o exercício atual dêsse direito no clima histórico de nos­
sos dias, êsse próprio exercício prejudicaria tanto o bem comum Não fecharíamos uma só de suas Igrejas, Colégios ou Es­
da Igreja como o da sociedade civil. É assim que, por motivo de colas. Continuariam a possuir as mesmas liberdades de
justiça (justiça, tanto cm Teiação ao hem comum da civilização,
como do Reino de Deus), desiste a Igreja do exercício de tal 81 Cf. nosso livro, liaison e rninons, págs. 280-83.
direito.
0 HOMEM E 0 ESTADO 213
212 JACQUES MARITAIN
acarretariam não apenas para êles próprios, mas para
que nÓH desfrutamos como minoria.” ;i'
Tal afirmação é a própria ação da Igreja no mundo, assim como para
válida não apenas para a Inglaterra, mas para tôda e a paz e o hem comum da sociedade civil. 11
qualquer nação amante da liberdade. Não se refere essa Sei também que, do lado oposto, há pessoas que, por
afirmação às exigências de uma hipótese aceita de má amor da tolerância civil, quereriam que a Igreja e o cor­
vontade, mas às exigências dos próprios princípios sa­ po político vivessem em um isolamento total e absoluto.
diamente aplicados à estrutura existencial do clima his­ Ora, deixem-me explicar como depoimento de alguém
tórico dos nossos tempos. Mesmo que um só cidadão di­ que ama os Estados Unidos, que um europeu, chegando
vergisse da fé religiosa de todo o povo, seu direito à di­ à América, se surpreende pelo fato de que a expressão
vergência não poderia ser molestado pelo poder público ‘‘separação entre a Igreja e o Estado”, que é, em si mes­
em uma sociedade democrática moderna inspirada pelo ma, uma expressão ambígua, não tem o mesmo signifi­
cristianismo. Mesmo que, pela graça de Deus, voltasse cado nos Estados Unidos e na Europa. Na Europa evsa
a unidade religiosa, não seria jamais concebível qual­ expressão significa ou significava êsse isolamento com­
quer retorno ao regime sacral, no qual o poder civil era pleto que deriva de mal-entendidos e de lutas seculares
o instrumento ou o braço secular do poder espiritual, em e que produziu os resultados mais funestos. Essa mesma
uma sociedade democrática moderna cristãmente inspi­ expressão nos Estados Unidos realmente significa, jun­
rada. Os católicos estão prontos a dai- a sua vida pela tamente com uma recusa a conceder qualquer privilégio
liberdade; não se prendem a essas afirmativas como a a uma confissão religiosa de preferência a outras, assim
uma escapatória e sim como a um assunto de obrigação como à existência de uma religião oficial do Estado, uma
moral ou de justiça. Isso não quer dizer que êle3 desde­ distinção entre o Estado e as igrejas compatível com a
nhem de qualquer modo o princípio da superioridade da boa vontade e a mútua cooperação. Distinção formal e
ordem espiritual sôbre a ordem temporal e o princípio da cooperação de fato, eis um tesouro histórico cujo valor
cooperação necessária entre a Igreja e o corpo político, está um europeu mais preparado que qualquer outro
mas. pelo contrário, significa que o afirmam e mantêm para apreciar devidamente em virtude de suas próprias
mais do que nunca. amargas experiências. Queira Deus possa essa concepção
Bem sei que há pessoas favoráveis ao conceito da ser cuidadosamente mantida c não venha a ser substi­
intolerância civil baseadas nas exigências da verdade tuída pela concepção européia da separação entre a Igre­
religiosa.Ora, o que êles deveriam fazer fôra propor ja e o Estado.
francamente a sua solução para o mundo, exigir que o A Constituição dos Estados Unidos lança as suas raí­
Estado convertesse em cidadãos de segunda classe todos zes, não apenas em Locke ou no Racionalismo do século
os não-cristãos e os não-ortodoxos. Deveriam estar pron­ :l No vocabulário teológico, n noção de "tolerância civil”
tos a enfrentar as consequências que tais exigências
(imposição «o Estado do respeito pelas consciências) foi cnnhnda
42 Henry Edward Munning, Thc Vatican. Dccrrcx in Their
em contraste a outra expressão, óbviamente errônea, de “tolerân­
cia dogmática", que significa quo, na própria esfera da consciên­
Bearinff <m Civil Allej/iance (Londres, 1875), págs. 98-06. cia em relação à revelação divina, tem o homem ilircito à liber­
38 Cf. as observações feitas pelo padre Mux Pribilla, “ Dog-
dade em relação eoir. n verdade. Seria afirmar o espirito hu­
matlsche Intoleranz und búrgerlische Toleranz”, Stimincn der Zeit, mano não tem ubrigaçno alguma para com n verdade.
abril de 1949, e pelo padre Robert Roquette S. J., na sua “Chro-
nique de la vic róligieuse*’, Mudes, setembro, 1949.
214 JACQUES MARITA1N O HOMEM E O ESTADO 215

XVIII, mas sim na herança secular do pensamento e da oéa: um de qualquer solenidade oficial maia importante
civilização cristã. ar’ Apesar de ter surgido em um mo­ constituem, no comp< rlaruonl.o prático da nacionalidade,
mento de equilíbrio instável (como o são todos os mo­ unr; expressão desse espírito e dessa inspiração.
mentos da história) na história das idéias, o paradoxo
dessa constituição foi que, em virtude do autêntico sen­ ♦♦*
timento religioso dos patriarcas da independência, ela
surgiu como um fruiu da força vital e perene do cristia­ Acusam, por vêzes, a Igreja Católica, de ser uma
nismo, embora marcada com espírito de laicidade e até "‘Igreja autoritária”, como se a autoridade — isto é. o
mesmo de certo racionaiismo. Apesar de três séculos direito de ser ouvida — que ela exerce sòbre os seus fiéis,
de trágicas vicissitudes e de divisão espiritual, essa cons­ ao velar pela preservação da verdade revelada e da mo­
tituição representou uma realização temporal considerá­ ralidade cristã, resultasse num estímulo às tendências au­
vel nos primórdios dos Estados Unidos como nação. Pa­ toritárias na esfera das atividades e da vida civil.:ul Per­
recia que as perdas sofridas pela história humana no mitam-me dizer que os que fazem essa censura carecem,
domínio supremo da integridade e da unidade da fé, as­ ao mesmo tempo, de visão teológica e histórica.
sim como no interêsse pela verdade teológica, fossem o Falta-lhes visão histórica, por não compreenderem
preço pago, em relação ã fraqueza c às misérias huma­ a importância da diversidade dos climas históricos que,
nas, pela liberação naquele momento de energias cristãs em tempos passados, tez cla autoridade da Igreja sobre
temporais muito humildes, que, a todo custo, devem pe­ o Estado um requisito do bom comum da civilização.
netrar a existência histórica da humanidade. É incalculá­ Essa diversidade de climas históricos é a que. atualmen­
vel o significado que tem, para a filosofia política, a te, produz a liberdade recíproca da Igreja e do Estado.
promulgação cia Constituição americana no fim do sé­ Falta-lhes visão teológica, por não verem que a au­
culo XVIII. Essa constituição pode ser descrita como um toridade da Igreja, em sua própria esfera de ação, não
documento cristão leigo da mais alta relevância, infil­ c mais do que o laço de sua ligação com Deus e com sua
trado pela filosofia do momento. Ao espírito e à inspira­ missão. Essa autoridade está ligada à sua própria orga­
ção dêsse grande documento político-cristão repugna a nização, exatamente em contraste com a organização da
idéia de tornar a sociedade humana indiferente a Deus sociedade civil. Como o disse o Papa Pio XII, em um
e a qualquer fé religiosa. O dia de dar graças a Deus discurso pronunciado em 2 de outubro de 1915, a fun­
e de orações públicas, a invocação do nome de Deus por dação da Igreja como sociedade foi feita de cima para
baixo, ao passo que a sociedade política se origina de
35 Como escrevi no livro Scholastlri&m anã Politi&i (New
York: MacMWan Co., 1940), pág. 91; “sua estrutura pouco deve ao Estou me referindo a autores sérios e não no Sr. Paul
a Rousseau, se devo crer em alguns amigos meus dominicanos Blanshard. O seu modo de tratar a questão Mnmrica-H. Frecdom
de que essa Constituição tem antes certa relação com idéhv que and Catiiolic Pnwer, Boston: Bcacnn Presa, 1949, cap. 111} não é
presidiram, na Idade Média, à Constituição da Ordem de São Do­ digno de discussão, pois ó simplesmente desleal, como o resto de
mingos.” Sòbre a história do significado da atirude americana SOU livro, cujas crítica-. cm vez de esclarecerem o assunta, sSo
em relação ao problema da Igreja e do Estado, vitte Anson Phcljra ronsiantemente adulteradas por interpretações preconcebidas e mn-
Stokes, Chfuxh ar. d Sfàtc in the Unitcd Statee (New York: Har- lev ilentes, confundindo tudo do modo indigno, até o ponto de atri­
pes & Brm. 1950); Wilfrid Parsons, S. J., The Firxt F>erdntn buir h Igreja Católica “um sistema completo de feitidsmo e ds
(New York: MacMillan Co., 1948).
216 JACQÜES MARITAIN 0 HOMEM E O ESTADO 217

baixo para cima.37 Por outras palavras, a autoridade da noma, embora subordinada. Os bispos não estão para o
Igreja vem de cima, mas a autoridade da sociedade po­ Papa, como generais para um comandante-chefe ou co­
lítica vem de baixo. Enquanto na Igreja o Papa é o vi­ mo os funcionários para a administração central. De
gário de Cristo, os governantes da sociedade política são acordo com os dispositivos básicos sôbre o» quais se fun­
os vigários do povo. O resultado ó a ênfase especial, co­ da a constituição da Igreja Católica, os bispos estão in­
locada, na sociedade civil, sôbre a liberdade política, que vestidos da plenitude do sacerdócio. São êles os sucesso­
corresponde, na esfera da Igreja, à ênfase especial em res dos Apóstolos. Cada um dêles é o esposo de sua Igre­
sua autoridade docente. ja local. O govérno central da Igreja respeita seus direitos
Note-se, ademais, que nenhum governo é, de fato, e sua legítima liberdade de ação. Leva em conta, em um
menos autoritário do que o governo da Igreja Católica. grau muito mais considerável do que geralmente se pen­
Governa eem o recurso da fôrça policial e da coação fí­ sa, as várias tendências e iniciativas, fundadas em cir­
sica a. imensa multidão por cujo bem comum espiritual cunstâncias particulares, do episcopado e dos fiéis de
é ela a responsável. Temos aqui uma sociedade, cuja or­ cada nação. Leva em conta ainda o senthnwLo da Igreja,
dem depende da influência não material exercida sôbre que não é apenas a autoridade eclesiástica e sim o corpo
as almas humanas, por meio do ensino, da pregação, do total de Cristo, tanto o laicato como o clero.
culto e da vida sacramental, e só de modo secundário A Igreja, cm sua própria essência, é objeto de fé
pelo poder externo da lei. O Papa fala às consciências teológica. Ela pertence à ordem dessas realidades ocul­
dos homens. Êle conta com a vitalidade interior da fé tas na vida divina e que se tomam conhecidas pela re­
para que suas palavras sejam ouvidas. Para impor suas velação divina daquilo a que chamamos mistérios sobre­
diretivas doutrinárias e morais sôbre o povo católico, naturais. 0 resultado é que entre o crente, que pensa na
recorre às sanções espirituais do Direito Canônico, mas Igreja em termos de Fé, e o incréu. que nela pensa em
relativamente só em circunstâncias excepcionais. târmos meramente humanos, há uma espécie de incom­
Dispõe êle de uma autoridade suprema e soberana preensão mútua inevitável. O primeiro sabe que a vida
sôbre a Igreja.38 Mas essa autoridade suprema é exer­ que a anima é a vida da graça do Cristo, comunicada por
cida sôbre uma estrutura vasta e variada, formada por Deus. Essa graça é recebida por seres humanos imper­
todas as igrejas locais, que possuem a sua própria vida feitos que a abandonam toda a vez que praticam o mal.
dentro do todo, e cujos pastores desfrutam, dentro de Èlo sabe, portanto, que a Igreja é impecável, embora
sua esfera dc ação, de uma autoridade genuína e autò- composta de pecadores. 0 incréu, ao contrário, atribui-
-Ihe todos os erros de seus membros. Êle não compreende
que. mesmo na ordem natural, uma nação, por exemplo,
37 °A fundação da Igreja como sociedade se realizou, pm con­
traste com a origem do Estado, não do baixo para cima, mas possui uma vida própria — felizmente para os que a
dc cima para baixo** (discurso na inauguração do novn ano ju­ amam — superior (embora não provindo diretamente de
rídico do Tribunal da Rota, 2 de outubro dc. JÒ45, citado no Oaser- Deus) , aos desalentadores defeitos de muitos de seus ci­
vutorc Romano, 3 do outubro do 1945). Cajetano, em 1511, já dadãos. Êsse3 homens dc Fé, que possuem a concepção
tinha tornado bem clara a diferença entre a origem do poder na mais verdadeira e mais alta da essência transcendente
Igreja e na roeiedade civil om seu opúsculo Dc comparutiQiie awfa
ritatiü pdjisB et cotíciliL da Igreja e de sua santidade substancial — manifestada
33 Cf. supra, cap. II, parte VII» tanglvelmente em seus santos e em todos os frutos de
218 JACQUES IIARITAIN

santidade que dela provêm — são os que mais livre­


mente percebem, sem titubear, as fraquezas de seus
membros e os motivos por que, em maior ou menor es­
cala, o comportamento dos cristãos não pode deixar de
trair a Cristandade.
No decurso de 20 séculos, ao pregar o Evangelho às
nações e ao resistir aos poderes terrenos, de carne e osso,
para contra êles defender as liberdades do espírito, a
[greja ensinou aos homens a liberdade. Hoje em dia, as CAPITULO Vil
forças cegas que, há 200 anos, a assaltam, em nome da
liberdade e da pessoa humana deificada, arrancaram l'i-
nalmcnte a sua máscara. Aparecem como são na reali­ O PROBLEMA DO GOVÊRNO MUNDIAL *
dade. Anseiam por escravizar o homem. Os tempos mo­
dernos, por mais desgraçados que sejam, tem o mérito I
de fazer rejubilar aqueles que amam a Igreja e que
amam a liberdade. A situação histórica com que se de­
frontam está definitivamente clara. O grande drama de A alternativa
nossos dias é a confrontação do homem com o Estado to­
talitário, que não é mais do que o velho e falso Deus do Em 1944, publicou o Sr. Mortimer Adler um livro
Império sem lei. que tudo dobra sob a sua cerviz e para intitulado Como Pensar sôbte a Guerra e a Paz, no qual
a sua própria adoração. A causa da liberdade e a causa advogava, de modo convincente, o Governo Mundial co­
da Igreja se confundem na defesa do homem. mo sendo o único meio de assegurar a paz. Foi êsse livro
escrito pouco antes do advento daquilo que agora cha­
mam a idade atômica. Ê essa uma prova de que os fi­
lósofos não precisam ser estimulados pela bomba atômi­
ca quando querem pensar. No entanto, o advento da
bomba atômica é um convite poderoso a pensar, tanto
para os Estados que, não possuindo uma alma própria,
* Tràtarei, neste capítulo, do problema do governo mundial,
?ob o pento do vista da filosofia política e nno sob o da atividade
prática imediata. Além disso, procurarei, cm minha discussão do
tema, esclarecer as posições do grupo, Cujo tratamento do pro­
blema mais dirôtamente se aproxiníou, em minha opiniã-o, dos
aspectos filosóficos nele contidos. Refiro-me ao grupo da Univer­
sidade .de Chicago.
Por coi^egmnte, Rendo aqui o meu principal propósito o de-
- envolvimento dv meus próprios pontos de vista sôbre a teoria
filosófica do governo muudia.. nenhuma tentativa foi feita de
220 JACQUES MARITAIN
í> HO VEM E O ESTADO 221
acham mais dificuldade em pensar do que o fazem os
cérebros mecânicos, como para os povos que, enquanto Procuro de preferência investigar as razões dessa
não são atomizados, ainda possuem cérebros humanos. alternativa.
O problema do Govêrno Mundial — eu preferiria O fato fundamental é a interdependência, já hoje
dizer o problema de uma organização do mundo genui­ indiscutível, das nações, fato êsse que não é garantia al­
namente política — é o problema da paz duradoura. guma de paz, como muita gente por certo tempo acre­
Aliás pudéramos dizer que. de certo modo, o problema da ditou, por querer acreditar, mas antes uma expectativa
paz duradoura não é mais do que o próprio problema de guerra. Por que isso? Porque essa interdependência
da paz, o que significa estar hoje a humanidade em face das nações é, por excelência, uma interdependência eco­
de uma alternativa: ou a paz duradoura ou o sério risco nômica, não um? interdependência politicamente orga­
de total destruição. nizada, desejada e construída. Em outros termos, é por
Não preciso encarecer a realidade e o significado ter surgido essa interdependência em virtude de proces­
dessa alternativa, que resulta do fato de serem as guer­ sos meiamente técnicos ou materiais e não em conse­
ras modernas guerras mundiais e guerras totais, que en­ quência de um processo simultâneo genuinamente polí­
volvem toda a vida humana, tanto no que diz respeito às tico ou racional.
mais profundas estruturas da vida social como quanto ao Citando uma sentença do Sr. Emery Reves, diz Mor-
vulto da população mobilizada para a guerra c por ela timer Adler, no seu capítulo sôbre A Comunidade Eco­
ameaçada, em cada nação. nômica, que “os progressos técnicos que tornam o mundo
menor, e mais interdependente em suas partes, podem
analisar a vasta diversidade de pontos de vista contraditórios, ter duas conseqüências: 1) uma aproximação política
que leria de ser considerada numa discussão prática completa e econômica ou 2) lutas e dissídios mais devastadores
dessa matéria. Quanto ao material eitado, restringi-me a alvr-n que nunca, precisamente em virtude da proximidade em
pouco* livros do grupo de Chicago, mais diretamente ligndos r. >» que os homens se encontram uns dos outros. Qual dessas
tópicos de minha discussão. Para responder, desde Jogo, h crí­ duas possibilidades virá a ocorrer depende de causas
tica de provincianismo que tal método poderia merecer (se o lei­
tor se enganasse quanto nos ibjeiivos reais do autor), quero essencialmente não técnicas”. E êle com razão acrescen­
deixar aqui constância do interesse e da importância do várias ta: “ambas ocorrerão dentro da próxima grande época
contribuições que, a ôsse respeito, têm vindo de várias parles e histórica, mas a segunda antes da primeira”. ’
muito especialmente do autoridades no assunto como os senhores Uma interdependência essencialmente econômica,
Machw, Carr, Clarence Streit. Cord, Meyer. Kelsen. Herbort
IToover, CulberUon. Goodrich, Hambro, Woodward e a Comissão sem nenhuma reforma fundamental correspondente das
Shotwel!, sem esquecer as fortes objeções apresentada* pelos se­ estruturas morais e políticas da existência humana, só
nhores Wítlter TJppman e lleinhold Niebuhr; quisera ainda men­ pode impor, em virtude de necessidades materiais, uma
cionar os livrop do Júlia E. Johnsen: Umted Natiòn* or IVprtf interdependência política parcial e fragmentária e de
Govermnrnt ("The Rcfcrence Shelf”. vol. XIX, n.° 5. abril de crescimento muito lento. Essa norma de interdependên­
1947) e Federal World Gcwrnment (“The Reference Shelí”. vol.
XX, n.° 5, setembro de 1948). nrsim como n inquérito geral cm. cia será recebida com relutância e hostilidade, porque
preendido peia Duke University, sob u direçílo do professOt TTor- navega contra o vento da natureza enquanto as nações
nell Hart. Vide também J. Warhurg. Faitft. Pttrposc aud Power 1 Mortimer J. Adler, How to Thhtk about VFrtr r.nd Pracr
(New York, 1950), cap. V.
(New York: Simon & Schustcr, 1944>, pág’. 228-29. A citaçno
de Emery Reve foi tirada do aeu Dcmocratic Manifesto.
•TACqUES MAIUTAIN
nos.a atual civilização. Trata-se é de saber se a cons­
viverem ua suposição de sua plena autonomia política. tância humana a ini..digcnci.i moral, conjugadas ao es­
Enquanto essa interdependência essencialmente econô­ torço d- energias criadoras, conseguirão transformar a
mica se basear na estrutura e sôbre o fundo daquela Máquina < in urna torça positiva a serviço da humani­
autonomia política plena e subentendida das nações, não dade. 1'rala-s'' de saber, por outras palavras, se essa
fará senão exasperar as exigências competitivas e o or­ consciência e e sa inteligência conseguirão impor à con-
gulho das nações. O progresso industrial só tende a ace­
lerar êsse processo, como n demonstrou o Professor John cupiscência do homem, com a sua incomparável apare­
lhagem técnica, unia razão coletiva mais forte do que o
Nef no seu livro O Caminho da Guerra Total.2 Eis por instinto, sem que tenhamos de passar por um período de
que temos o privilégio de. contemplar hoje em dia um experiência e de êrro mais terrível para a nossa espécie
mundo cada vez mais econômicamente uno e cada vez do que as eras pré-históricas.:i
mais dividido pelas exigências patológicas de naciona­
lismos opostos. ♦*»
A essa altura temos duas observações a fazer. Em
primeiro lugar, tanto a vida econômica como a vida po­ Não são, porém, suficientes as precedentes conside­
lítica dependem da natureza e da razão. Dependem da rações. Devemos considerar outro fator que desempenha
natureza, pois são dominadas por fôrças e leis materiais um papel considerável no desenvolvimento dessa alter­
e pela evolução deteimiinística, mesmo quando o espírito nativa: ou a paz prolongada ou um risco sério de des­
humano intervém no processo com suas descobertas téc­ truição total. São as razões dessa alternativa que esta­
nicas. Dependem também da razão, enquanto se ocupam mos agora procurando.
com os fins da existência humana e o domínio da liber­ Êsse fator é o Estado moderno, com a sua falsa
dade e da moralidade, assim como por estabelecerem li­ pretensão de ser uma pessoa, uma pessoa sôbrc-humana,
vremente, de acordo com a Lei Natural., uma ordem de gozando, por isso, de um direito de soberania absoluta.
relações humanas. Em segundo lugar, são a natureza e a Em um ensaio notável intitulado "O Estado Moder­
matéria que dominam o processo econômico, ao passo no como Perigo para a Paz”, 1 um jurista belga, Fernand
que a razão e a liberdade dominam o processo genui­ de Visséher, oferece à nossa consideração êste fato pri­
namente político. mordial: a amoralidade f undamental da política exterior
Todemos dizer, por conseguinte, que o espetáculo dos Estados modernos. Essa amoralidade fundamental
hoje oferecido a nossos olhos não é senão um exemplo tem por princípio e regra única a raison cVEtat, que eleva
dessa lei desgraçada da história humana de que a maté­ o interesse particular de um Estado à lei suprema de sua
ria é mais veloz do que o espírito. A inteligência huma­ atividade, especialmente em suas relações com os demais
na é sempre sobrepujada quando procura lutar com a Estados. E o msemo autor prossegue na explicação de
marcha da matéria. É provável que a descoberta do fogo que a raiz dêsse mal é a falsa suposição de que o Estado
tenha obrigado o homem das cavernas a enfrentar pro­
R Cf. Prauee, my coitntoy (New York: Longmans Green &
blemas não dessemelhantes daqueles que se deparam à
Co., 1941), páç. 108.
4 1'ornand de Vissclwr, L'Êiat moderne: Duny?r pottr la
- John U. Nef, La Ruutc de la (juerre totale (Paris: Armand paíx: Ext.rait dc la revuc Le Flambcaii (1940-47).
Colin, 1949).
0 HOMEM E 0 ESTAI 10 225
09 4 JACQUES MARITAIN
funções \< rdiulci> ■ '■ irctriu.'. Essa consequência, de­
é uma pessoa, uma pessoa suprema, que tem, por con­ riva do noçoes ei radas <|iu- se ligaram ao conceito do
seguinte, sua justificação suprema, uma razão suprema EsLadu moduruo e das quais a democracia, se tiver de
de ser e um fim supremo em si mesmo, possuindo um sobreviver, ha de libertar-se.
direito supremo à sua própria preservação e a um cres­ ub-orvemos lambem, com de Visacher, que essa in­
cimento em poder, por Lodo e qualquer meio. clinação doa Estados modernos ao domínio supremo e à
Essa falsa suposição já foi prèviamente discutida.5 suprema amorulidade, que contradiz a natureza do Es­
O Sr. de Vfescher chama a isso uma “heresia” política tado auteiil icatneidx; democrático e BÓ pode prejudicar
e pensa que ela deriva de uma confusão fatal, em vir­ as suas melhores iniciativas, é constantemente refreada
tude da qual uma simples metáfora, tecnicamente útil nas nações democráticas, especialmente no que diz res­
na linguagem dos juristas — a noção de “personalida­ peito as atividades iniuiiuts ou domésticas do Estado,
de jurídica” —, foi tomada por uma realidade e deu ori­ isso porque, nas nações democráticas, a idéia básica de
gem, por êsse motivo, a “um dos mais detestáveis mi­ justiça, de lei, e de bem comum, sòbre as quais se fun­
tos de nosso tempo.” Como vimos, possui êsse mito raí­ da u próprio Estado, os direitos e a liberdade dos cida­
zes muito mais profundas, eu diria raízes hegelianas. dãos, a constituição e as livres instituições do corpo polí­
Hegel não inventou, deu apenas plena expressão meta­ tico, a fiscalização exercida pelas assembléias dos re­
física à idéia do Estado como sendo uma pessoa sôbre- presentantes do povo, a pressão da opinião pública, a li­
-humana. Os Estados modernos eram pràticamente he­ berdade de expressão, a liberdade de ensino e a liber­
gel ianos muito antes da existência de Hegel e de sua teo­ dade de imprensa, — tendem por si próprias a refrear
ria. O Estado moderno, herdeiro des reis de vutrora, essa perniciosa tendência, contendo o Estado, de um
concebeu-se a si mesmo como uma pessoa superior ao modo ou de outro, dentro dos seus limites próprios e na­
corpo político. Essa pessoa, ou dominava de cima o cor­ turais.
po político, ou o absorvia em si mesma. Ora, desde que Naquilo que concerne, porém, à atividade exterior
o Estado não é de fato uma pessoa, e sim um simples ou internacional do Estado, isto é, suas relações com os
mecanismo impessoal de leis abstratas e de poder con­ outros Estados, nada pode refrear a tendência dos Esta­
creto, êsse mecanismo impessoal é que se torna sôbre-hu- dos modernos — na medida em que foram contamina­
mano, assim que essa falsa idéia desenvolve todas as dos pelo vírus hegeliano — ao supremo domínio c à su­
suas potencialidades, O resultado disso é a inversão to­ prema amoralidade. Essas inclinações, nesse caso, só en­
tal da ordem natural das coisas. Já não será o Estado contram oposição nas forças contrárias de outros Esta­
que se coloque a serviço dos homens e sim os homens dos. Pois já não existe nenhuma fiscalização poderosa,
que ficarão a serviço dos fins peculiares ao Estado. nenhuma opinião pública internacional organizada, às
Não esqueçamos, além disso, que essa tendência ao quais se submetem esses Estados. E quanto à lei superior
supremo domínio e à suprema amoralidade, que se de­ da justiça, eles a consideram incorporada aos seus pró­
senvolveu de modo total e continua a exercer-se de modo prios e supremos interesses. Longe de mim a idéia de
integral nos Estados totalitários, não é, de maneira al­ desconsiderar o trabalho feito por instituições inter­
guma, inerente ao Estado em sua natureza real e cm suas nacionais, como a antiga Liga das Nações ou a atual
Organização das Nações Unidas, com o intuito de re-
5 Vide supra, caps. I c II.
22G JACQUES MARITAIN
0 HOMEM E 0 ESTADO 227
mediar essa situação. Êsse trabalho, entretanto, não po­
de alcançar as raízes do mal e permanece inevitavel­ podemos usar, e freqüen temente usamos, n expressão
mente precário e subsidiário, pelo próprio fato de que “soberania do Estado” para significar um conceito polí­
tais instituições são órgãos criados e postos em ação pe­ tico genuíno, a saber, a. plena independência ou autono­
los Estados soberanos, cujas decisões podem elas ape­ mia do corpo politico. In felizmente, a “soberania do Es­
nas registrar. Na realidade, os Estados modernos, no que tado” é precisamente a expressão urrada para designar tal
diz respeito às suas relações internacionais, estão atuan­ conceito, porque o objeto a que ela se refere não é o Es­
do em uma espécie de vácuo, como entidades supremas tado e sim o corpo político e, como vimos no capitulo II,
e inquebrantáveis, transcendentes e absolutas. Enquanto o próprio corpo politico não é genuinamente soberano.
o Estado moderno se torna inevitavelmente mais forte, O verdadeiro nome é autonomia. Infelizmente, também,
no que toca à superintendência da vida nacional, en­ essa própria autonomia do corpo politico já não existe
quanto os poderes com os quais se arma tornam-se cada em sua plenitude. Na realidade, as nações não são mais
vez mais perigosos para a paz das nações — ao mesmo autônomas em sua vida econômica. Mesmo em sua vida
tempo as relações exteriores da política internacional política, desfrutam apenas de uma semi-autonomia. Sua
entre nações se reduzem estritamente a contatos entre vida política é constantemente ameçada pelo perigo
essas entidades supremas em sua concorrência mútua e premente e contínuo de guerra, e seus negócios domésti­
implacável. Essas relações se processam apenas com uma cos são penetrados pela ideologia e pela pressão de ou­
vaga e remota participação do povo — suas aspirações tras nações. Ora, não basta observar que os corpos polí­
humanas e suas deliberações humanas — no meio de ticos modernos deixaram realmente de ser “soberanos”,
acontecimentos decisivos que se desenrolam acima do nesse sentido impróprio que significa plena autonomia.
povo, em um céu jupiteriano e inatingível. Não basta tampouco exigir dos Estados soberanos que
limitem e submetam parcialmente sua soberania, como
se se tratasse apenas de tornar mais ou menos restrito
II em sua extensão um privilégio genuína e realmente con­
Pela rejeição da assim chamada soberania do Estado substanciai ao Estado e, além disso, como se sua sobera­
nia pudesse ser limitada em sua própria esfera.
Daquilo que até agora dissemos, resulta claramonte Isto não basta. Devemos descer até às raízes, isto
que há dois obstáculos principais para o estabelecimento é, libertarmo-nos do conceito hegeliano ou pseudo-hege-
de uma paz duradoura. O primeiro dêsses obstáculos é liano do Estado como uma pessoa, uma pessoa supra-
a assim chamada soberania absoluta dos Estados moder­ -humana. Devemos compreender que o Estado é apenas
nos. 0 segundo é a repercussão da interdependência eco­ uma parte (uma parte superior, mas uma parte), e um
nômica de todas as nações sôbre o nosso estágio irracio­ agente instrumental do corpo político. Restituiremos com
nal da evolução política, no qual nenhuma organização isso o Estado às suas funções verdadeiras, normais e
política mundial corresponde à unificação material do necessárias, bem como à sua autêntica dignidade. Com­
universo. preenderemos assim que o Estado não é, nem jamais foi,
No que diz respeito à assim chamada soberania ab­ soberano, porque soberania significa um direito natural
soluta dos Estados modernos, não ignoro o fato de que (que não pertence ao Estado e sim ao corpo político
como sociedade perfeita) a um poder supremo e a uma
228 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 229

independência, que são supremamente separados do to­ e as nações procuram vive r juntos, sem que cada um dê-
do que o soberano governa e situados acima dêle. Essa les desista de sua soberania.”7 O resultado é que, se al­
segunda soberania não é privilégio nem do Estado nem gum dia a guerra se tornar impossível, será que então a
do ccrpo político. Se o Estado fósse soberano no sentido anarquia entre as nações foi suprimida; por outras pa­
auLent.co da expressão, não poderia jamais desistir de lavras, o governo mundial terá sido estabelecido.
sua soberania nem mesmo restringi-la. Ora, o corpo polí­ Seguindo uma linha de raciocínio semelhante, o Sr.
tico. que não é soberano mas tem direito a plena auto­ Stringfellow Barr, depois de descrever 4 Peregrinação
nomia, pode livremente desistir dêsse direito sc reco­ do llomerti Ocidental, escreve: "O problema perante o
nhecer que já não é uma sociedade perfeita e decidir qual se encontrava a geração do Segundo Armistício, a
ingres-ar numa sociedade política mais vasta e mais primeira geração da Idade Atômica, foi claramente o
verdadeiramente perfeita.0 mais velho de todos os problemas políticos: como encon­
trar um govêrno para uma comunidade que o não pos­
III suía, mesmo quando cada fração desta comunidade já
vivia sob um govêrno que lhe era próprio. Êsse problema
Necessidade de uma, sociedade política universal fòra resolvido por tribos que se tinham congregado para
formar uma aldeia; por aldeias que se tinham congre­
Quanto ao segundo obstáculo principal ao estabele­ gado para formar estados-cidades, como os da Itália do
cimento de urna paz duradoura, a saber, o Estado atual Renascimento; por estados-cidades que se tinham con­
da desorganização política do globo, tocamos aqui na es­ gregado para formar impérios, ou estados-nações sobe­
sência do problema em aprêço. ranos. Agora já não eram aldeias e sim estados-nações
Se nos colocarmos na perspectiva de necessidades que constituíam frações governadas de uma comunidade
racionais, desdenhando por um momento as interferên­ não governada. O que havia de terrivelmente novo nesse
cias circunstanciais da história, e se nos transportarmos problema é que, a êsse tempo, a comunidade era univer­
para as conclusões finais iluminadas pelas exigências ló­ sal, ligada entre si por bem ou por mal, pela ciência mo­
gicas em aprêço, veremos nitidamente como os advo­ derna, pela moderna tecnologia e pelas necessidades cla­
gados de um Governo Mundial ou de um só mundo poli­ morosas da indústria moderna.” Assim é que o homem
ticamente organizado apresentam os seus argumentos. de hoje, alargando a sua imaginação, tem que com­
Recordemos ràpidamente êsses argumentos. Distin­ preender, com respeito a todo o planeta, a força do ar­
guindo as condições básicas estruturais pressupostas pela gumento de Alexandre Hamilton, no primeiro dos Fe-
guerra das várias causas que incitam à guerra (c que deralist Papers, isto é, como o cita Stringfellow Barr,
podem ser resumidas na natureza humana e na sua ne­ “que o preço da paz é a justiça, o preço da justiça é a
cessidade de bens materiais), — afirma o Sr. Mortimer lei. o preço da lei é o govêrno, e que o govêrno tem de
Adler que “a única causa da guerra é a anarquia”, isto aplicar a lei a homens e a mulheres e não apenas a go­
é, *‘a situação daqueles que procuram viver juntos sem vernos subordinados”.8
governo”. "Aparece a anarquia sempre que os homens
7 Adler, op. c't.. pág. 69.
n Vide caps. I e II. * Strmprfellow Barr, TA< Pilgrimaye nf Western Mcn (New
York: Harcourt, Brncc & Co., 1919), pág. 341.
230 JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 231

Finalmente, o reitor Hutchins mostrou admirável­ de internacional, cuia existência e cuja dignidade sem­
mente, em sua conferência sôbre Santo Tomás e o Esta­ pre foi afirmada pelos doutores e juristas cristãos,
do Mundial,'1 que o conceito de uma sociedade política assim como pela consciência comum da humanidade.
universal pluralista coincide perfeitamente corn os prin­ Essa base moral era reforçada, quanto poRsível, por
cípios básicos da filosofia política de Tomás de Aqnino. laços legais c costumeiros, nascidos de um mútuo acôr­
Para Tomás de Aquino, assim como para Aristóteles, a do. Em suma, êsse rudimento de uma sociedade inter­
auto-suficiência (não digo auto-suficiência total, digo nacional se fundava tanto na lei natural como no jus
auto-suficiência real, embora relativa) é a propriedade gentitnn, isto é. na lei comum da civilização. Sempre
essencial de uma sociedade perfeita. Tal é o objetivo ao que faltava a espada da lei. Deus sabe como eram
qual tendem, na humanidade, as formas políticas. O cumpridas essas obrigações! Quando esses corpos polí­
primeiro bem que uma sociedade perfeita procura ga­ ticos particulares, isto é, os nossos assim chamados Es­
rantir — um bem que. se confunde com a sua própria tados nacionais, se tornaram incapazes de alcançar a
unidade e a sua vida — é a sua própria paz, tanto in­ sua plena autonomia e a paz. deixando assim de corres­
terna como exterior. Ora, quando nem essa paz nem a ponder ao conceito de sociedade perfeita, então tudo
auto-suficiência podem ser atingidas por uma forma mudou de figura. Já agora é a sociedade internacional
particular de sociedade — como, por exemplo, a cidade que deve tornar-se sociedade perfeita. Já não é apenas
— já não essa e sim uma forma mais ampla de socie­ sôbre uma base moral, mas sôbre uma base jurídica em
dade — como, por exemplo, o Reino — é que represen­ sua plenitude oue as obrigações dos corpos políticos par­
ta a sociedade perfeita. Seguindo a mesma linha de ticulares têm de ser cumpridas para com o todo, uma
argumentação, podemos concluir o seguinte: quando vez que êsses corpos políticos particulares se tornaram
nem a paz nem a auto-suficiência podem ser alcançadas partes de um todo organizado politicamente. Já não é
por certo Reinos, por certas Nações ou por certos Es­ mais nm virtude apenas da lei natural e do jus gen-
tados, é sinal de que já não são sociedades perfeitas. tium que essa sociedade internacional tem de ser orga­
Nesse caso será, então, uma sociedade mais ampla, de­ nizada politicamente, mas em virtude das lei’ positivas
finida por sua capacidade de realizar a autonomia e a qne o mundo politicamente organizado há de estabelecer
paz, que se tornará uma sociedade perfeita. Em nossos e que seus governos terão de pôr em execução.
tempos, a sociedade que corresponderá a êsse tipo há Durante o período de transição, como com razão ob­
de ser a comunidade internacional politicamente orga­ serva o Sr. Hutchins, a fundação de um Estado Mundial
nizada. nela fôrea, tanto como qualquer tentativa por parte de
De acôrdo com os mesmos princípios, foi sempre um Estado no sentido d? impor sua vontade a out.ro
sôbre uma base moral que os Reinos e os Estados, en­ qualquer Estado, terá de ser contrariada como uma ne-
quanto correspondiam mais ou menos ao conceito de so­ <-nção (b> Lei Natural. Êsse govêrno mundial só poderá
ciedade perfeita, cumpriram suas obrigações para com ser fundado pelo processo normal e autêntico que. têm
essa "comunidade de todo o mundo”, com essa socieda- sevuido as sociedades políticas, isto é. pelo exercício dá
9 Robcrt M. TTutchina, St. Thomafí and fhc World Staie liberdade, da razão e das virtudes humanas. Enouanto
(Aquiná‘s íeclure, 1949, MilwjtuLeç: Marquette University Pres?, não se fundar uma sociedade política mundial de tipo
1949). pluralista, os corpos políticos particulares, moldados pela
232 .JACQUES MARITAIN O HOMEM E O ESTADO 233

história permanecerão como as únicas unidades políticas compreendido, de acórdo com o propósito de seus «auto­
em que foi levado a efeito o conceito de sociedade polí­ res, como uma simples “proposta à História, tendente
tica, perfeita, por menos que êsscs corpos políticos cor­ a estimular outros estudos c* discussões", parece-me ser
respondam ao ideal que temos em mente. Sejam gran­ êle, não só o melhor entre os vários planos de organiza­
des ou pequenos, fortes ou fracos, conservam o seu di­ ção internacional que hoje se encontram em estado de
reito à plena independência, assim como êsse direito de elaboração, mas ainda o modelo mais compreensivo e
fazer a paz ou a guerra que é inerente à sociedade per­ mais equilibrado que pod: ria ser elaborado por eminen­
feita c no exf reíeio do qual, hoje em dia, a lei moral tes ciem stas políticos " para exasperar os realistas
lhes pede maior domínio de si do que nunca. irritados e, ao mesmo tempo, incentivar o pensamento
No entanto, o objetivo final está claramente deter­ o a meditação dos homens de boa vontade e de largas
minado. Uma vez estabelecida a sociedade perfeita exi­ vistas.
gida pelos nossos tempos, isto é, a sociedade política
mundial, deverá cia, por exigência fundamental da jus­
tiça, respeitar até o máximo as liberdades — essenciais
ao bem comum do mundo — contidas nesses preciosos Muitas objeções, naturalmente, foram levantadas à
depositários de vida política, moral e cultural, que são idéia de um tíovêrno Mundial. Quisera apenas aludir à
as suas partos c. ntitutivas. Mas os Estados particula­ mais importante de tòdas, que insiste sôbre o fato dc
res terão renunciado aos seus respectivos direitos a uma que a idéia é bela, mas totalmente impossível de pôr-se
independência absoluta. Essa renúncia se traduzirá prin­ em prática. Seria, por conseqüência, altamente perigosa,
cipalmente em sua esfera exterior de atividades, e o pelo fato de correr o risco de dirigir no sentido de uma
Estado Mundial terá de desfrutar — dentro dos limites brilhante utopia esforços que deveriam ser orientados
estritos das modalidades equilibradas, próprias de uma para realizações mais modestas porém possíveis. A res­
criação tão completamente nova da razão humana, — posta deve ser que a idéia, se fôr fundada, como acre­
de poderes natural mente exigidos por uma sociedade per­
feita. Ésses poderes serão, naturalmente, o poder legis­ ditamos, em uma filosofia política verdadeira e sadia,
lativo, o poder executivo e o poder judiciário, com a não pode ser impossível cm si mesma. Por conseguinte,
fôrça coercitiva necessária para assegurar o cumpri­ compete à inteligência e à energia humanas torná-la,
mento da lei.
Devo ainda acrescentar que a Constituição, na qual "» A Comissão paru elfttiorar uma constituição mundial foi
composta dos senhores: Robert M. Itutchina, G. A. Bonrese, Mor-
serão algum dia definidos os direitos e os deveres, bem timer J. Adler. Stringfelluw Barr, Albert Guérard, Harold A.
como as estruturas governamentais dêsse Estado Mun­ Iniiis, Erich Kahlér. Wilber G. Katz, Churlcs H. Mcllwaiu, Ro­
dial, terão de ser fruto de esforços e de experiências bert Redfisj.d c RejdEprd G. Tugwell.
comuns, bem como de tentativas difíceis, feitas pela his­ O "Projeto Preliminar" foi impresso em março de 1948, em
tória de hoje e do futuro. O Projeto Preliminar de uma um número da revisla mensal Gownnõw Cause (University of
Chicagro), um ‘ periódico do mundo uno", dedicado à defesa e à
Constituição Mundial, que é conhecido como o Plano de difusão dêsse plano, sob a direção do Sr. G. A. Borceso, cujo
Chicago ou o Plano Eutchins, parece-me ser um início infatigável esfôrço concorreu particularmente para a elaboração
particularmente valioso. Se êsse Projeto Preliminar fôr do plano.
234 JACQUBS MAR1TAIN 0 HOMEM E 0 ESTADO 235

com o tempo, passível de realização, cm relação ao enor­ IV


me e, entretanto, contingente número de obstáculos e de Teoria plenamente política contra teoria meramente
empecilhos acumulados pelas condições sociológicas e his­ governamental
tóricas ao longo da vida da humanidade.
Devo confessar, nesse ponto, que, na qualidade de Até agora tratei apenas dos aspectos mais gerais
aristotélico, não tenho muito de idealista. Se a idéia de do problema. Estaria tentado, talvez, a terminar aqui o
uma soeiedade política mundial fôsse apenas uma bela meu ensaio. Pouparia assim a paciência do leitor. Pare­
idéia, não faria muito caso dela. Considero-a uma gran­ ce-me, entretanto, que o assunto exige ainda algumas
de idéia, mas também uma idéia sadia e verdadeira. No considerações complementares. Minha discussão não está
entanto, quanto maior é uma idéia no que tange à fra­ concluída e neste’ capítulo devo ainda desenvolver uma
queza e às dificuldades da condição humana, mas caute­ nova série de considerações.
la devemos ter ao tratar dela E tanto mais atentos de­ O motivo disso é que o problema foi formulado em
vemos ser em não pedir sua imediata realização. Esta termos de solução final e em termos de govêrno univer­
observação, se me permitem dizê-lo. parece-me muito sal, — em termos, portanto, acima de tudo, de Estado e
pouco simpática para ser formulada em países genero­ de govêrno. Ora, se recordarmos a distinção, feita no
sos, como os Estados Unidos, onde as boas idéias são primeiro capitulo deste livro, entre estado e corpo polí­
consideradas como qualquer coisa que deve pôr-se em tico, veremos que a própria ideia de um govêrno mun­
prática imediatamente e só parecem merecer interesse dial pode ser concebida de duas maneiras opostas.
na medida do que são capazes desta imediata realiza­ O problema é. portanto, o seguinte: de que maneira uma
ção. Não seria bom, tanto para a causa dessa idéia como sadia filosofia política poderia conceber um govêrno
para a causa da paz, usar a idéia de um Governo Mun­ mundial? Uma primeira forma possível de conceber um
dial, como uma arma contra as instituições internacio­ govêrno mundial seria reduzir toda a matéria à 'mica e
nais, limitadas e precárias, que, na hora atual, repre­ exclusiva consideração do estado e do govêrno. Chame­
sentam os únicos meios políticos existentes à disposição mos a isso a teoria ■meramente governamental da orga­
dos homens para conservar a trégua entre as nações. nização mundial. A segunda maneira possível de con­
Além disso, os partidários do conceito de um Governo ceber um govêrno mundial focaliza a matéria sob a con­
Mundial sabem perfeitamente — o Sr. Mortimer Adler sideração universal nu integral do corpo político ou da
acentuou, de modo todo especial, êsse aspecto do proble­ sociedade política. Chamemos a esta a teoria da organi­
ma — que essa concepção só pode alcançar umn existên­ zação mundial plcnamente política.
cia. ponderável depois de muitos anos de luta e de esfor­ Julgo que essa teoria plenamente política é a boa e
ço. Eles sabem, portanto, que a sua solução para uma que a teoria meramente governamental seria errada e
paz perpétua futura nân tem. seguramente, maior eficá­ desastrosa. Não conheco ninguém que jamais se tenha
cia para a precária paz de boie do que o têm as insti­ levantado para defendê-la. Mas os pecados de omissão
tuições a que acabamos de aludir. Os prós e os contras, devem ser evitados tanto quanto os outros. O ponto oue
no problema do Govêrno Mundial, não dizem respeito eu quero acentuar é a necessidade de esclarecer a maté­
aos nossos dias e sim às futuras gerações. ria, de modo a evitar tôda a possibilidade de confundir
236 JACQUE3 MAKITAIN 0 HOMEM E 0 ESTADO 237

uma teoria com a outra, evitando desentendimentos pre­ Aquilo a que acabei de chamar uma teoria mera-
judiciais à própria idéia de uma organização política mente governa mental cunBide faria todo o problema, isto
mundial. é, a Existência e a Natureza do Governo Mundial, tanto
Acentuemos, uma vez mais, que a realidade política quanto a Passagem do atual estado de coisas para a si­
fundamental não é o Estado e sim o corpo político com tuação do Govúrno Mundial, na perspectiva do Estado e
as suas variadas instituições, as múltiplas comunidades do govêrno separadamente da perspectiva do corpo polí­
que supõe e a comunidade moral que dêle nasce. O corpo tico. () resultado seria urn processo que se desenvolve­
político é o povo organizado sob leis justas. O Estado ria artificialmente e contra as tendências naturais, tendo
6 a instituição particular que se especializa em assuntos como resultado um Estado sem um corpo político ou
que dizem respeito ao bem comum do corpo político, uma sociedade política própria, um cérebro mundial sem
fi, portanto, a instituição política suprema. O Estado, um corpo mundial. Seiülo assim, o Governo Mundial se­
porém, é uma parle e não um todo e suas funções são ria um Superestado absoluto, ou um Estado superior
meramente instrumentais. Se êle vela pela ordem públi­ privado de corpo político e meramente sobreposto aos
ca. se dá fôrcn executiva às leis e se possui um poder, Estados particulares, interferindo na vida dêstes, mesmo
tudo isso existe em benefício do corpo político e do povo. que proviesse de uma eleição popular e possuísse uma
Sendo uma parte a serviço do povo, tem de ser fiscali­ representação popular, já que êsse procedimento é, na­
zado pelo povo. turalmente, o único autêntico. O Estado Mundial terá de
Aquilo que, em francês, se chama le gouvememenf ser fundado e mantido, não por delegação dos vários
(o governo) e, nos Estados Unidos, a Administração ou governos e sim pelo livre sufrágio dos homens e das
os funcionários administrativos, isto é. os homens encar­ mulheres. Mas êsse processo necessário será puramente
regados do bom comum, participam ao mesmo tempo técnico ou jurídico e totalmente insuficiente para mudar,
de qualquer modo, as circunstâncias a que estou aludin­
do corpo político e do Estado. Por serem, entretanto, a do. Assim como a ambição de tornar-se uma pessoa sobe­
cabeca do povo e os representantes do povo em benefí­ rana foi transferida do Imperador do Santo Império
cio de quem exercem uma função vicarinl e pelo qual, Germânico para os reis — quando os reis franceses re­
em um regime democrático, são escolhidos, sua função cusaram obediência ao Santo Império — e, por sua vez,
governamental está arraigada no corpo político e não dos reis para os Estados, — a mesma ambição seria
no Estado. Não é por estar a sua função radicada no transferida dos Estados para o Superestado Mundial.
Estado que êles participam do corpo político e. sim, por Ocorreria, assim, que, por uma trágica inconsistência,
estar a sua função enraizada no corpo politico é que ao mesmo tempo que acabaria com o mito moderno do
fazem parte do Estado. Estado com relação a todos os Estados particulares, os
Se assim é oue as coisas se passam, deveríamos homens encontrariam de novo o mito do Estado como
dizer de preferência, como do início observei, o Proble­ pessoa — pessoa soberana e pessoa sóbre-humana — en­
ma da Organização Política Mundial e não o Problema tronizado no ápice do universo. Tôdas as conseqüências
do Ganêmo Mundial. Não se trata simplesmente de um implicadas na concepção hegeliana do Estado poderiam
Governo Mundial. Trata-se de uma Sociedade Política assim desencadear-se por tôda a humanidade com uma
Mundial. força irresistível.
0 HOMEM E O ESTADO 239
238 JACQtTES MARITATN

Quisera, nesse ponto, fazer ainda algumas observa­


A procura cie um tal Superestado, compreendendo ções sôbre a comparação que espontâneamente se apre­
tôdas as nações, outra coisa realmente não é do que a senta e que, citando o Sr. Stringfellow Barr, empreguei
procura da velha utopia de um Império universal. Essa na primeira parte dêste capítulo, entre a passagem da
utopia foi tentada em eras passadas sob a forma do tribo à aldeia, da aldeia à cidade, da cidade ao reino ou
domínio imperial de uma única nação sôbre tôdas as à sociedade política moderna e a passagem da nossa so­
outras. A tentativa, na idade moderna, de um Superes­ ciedade política atual para uma sociedade política mun­
tado Mundial absoluto seria a procura de um Império dial. As atividades em questão, na transição de um esta­
multinacional democrático, que não haveria de ser melhor do a outro, são naturalmente apenas analógicas e reali­
do que os outros. zam-se por formas múltiplas e excessivamente variadas.
*** O Sr. Max Ascoli criticou severamente essa compara­
ção, 11 acusando de pura ingenuidade a noção de que as
Aquilo que acabamos de caracterizar como sendo nossas sociedades políticas atuais, amadurecidas pela his­
uma teoria meramente governamental de um govêrno tória, poderiam ou deveriam transformar-se cm uma so­
mundial está exatamente no extremo oposto de tudo ciedade política mundial por um suposto processo mecâ­
aquilo cm que realmente pensam aqueles que defendem nico de expansão e de extensão. Essa crítica, em meu
a idéia de um govêrno mundial. Ésse Superestado mun­ parecer, se aplica ao modo como as coisas seriam conce­
dial estaria particularmente em contradição com a fi- bidas em uma teoria meramente governamental. Não se
losnfia política dos autores do plano de Chicago. Haverá, aplica ao modo como as coisas são concebidas na teoria
porém, quem considere tudo isso precipitadamente e de plenamente política da organização mundial.
modo superficial, enganando-se assim com os nossos pro­ Sob outro ponto de vista, iíenri Bergson, ao distin­
pósitos. Quanto mais insistimos no que deve ser feito, guir as sociedades fechadas, que são temporais e terres­
rnais nos capacitamos dos perigos dos falsos caminhos. tres, das sociedades abertas, que são espirituais, insistiu
Uma teoria meramente governamental da organização no fato que essa espécie de amizade que une os membros
mundial seria um dêsses caminhos erradas, porque par­ da aldeia ou da cidade pode alargar-se de uma sociedade
tiria da analogia entre o Estado em suas relações com fechada para outra sociedade fechada mais ampla, mas,
os indivíduos e o Estado Mundial em suas relações com quando se trata de amar a todos os homens, nesse caso
os Estados particulares, na simples perspectiva do poder o problema é o de passar de uma espécie de sociedade
supremo. a outra espécie. Trata-se de passar do domínio das so­
A teoria -plenamente política da organização mun­ ciedades fechadas para o domínio, infinitamente diverso,
dial segue o caminho verdadeiro, porque tem em mira a da sociedade aberta e espiritual, na qual o homem se une
mesma analogia, mas na perspectiva das exigências bá­ aos outros homens por êsse mesmo amor que criou o
sicas da liberdade e da vida política. Como Adler e mundo. Tudo isso é verdadeiro. Mas aqui também a
Hutchins repetidamente recordaram, o problema consiste 11 Cf. Max, Ascoli, Thu Ptnccr of Frccdem (New York: For­
em elevar a comunidade internacional à condição de rar, Strans, 1949), Parte III, cap. ÍV.
12 Cf. Henri Bergson, deux eourcca de la. morale et de la
uma sociedade perfeita ou de unia Bociedade internacio­
nal politicamente organizada. rehyion (Paris: Alean, 1932), cap. IV, "Da sociedade fechada à
240 JACQÜES MARITAIN
(» HOMEM E O ESTADO 241
simples consideração da medida de extensão é apenas
acidental. Se os homens devem passar das nossas socie­ cessos de liberdade que os poios da h / eu. ulguin dia po­
dades políticas atuais para urna sociedade política mun­ derão realizar a sua vontade cpmwn de viver juntos.
dial, passarão para o âmbito de uma sociedade fechada Essa simples sentença nos dá a medida <la magnitude da
mais ampla, tão ampla quanto o conjunto total das na­ revolução moral — a verdadeira revolução agora pro­
ções e, nesse caso, a amizade cívica terá de se alargar posta as esperanças e as virtudes da humanidade sô-
na mesma proporção e maneira. A amizade física, entre­ bre cujas necessidades o Sr. Mortimer Adler tanto acen­
tanto, permanecerá infinitamente diversa da caridade, tuou em seu livro.
assim como a sociedade mundial permanecerá infinita­ Viver juntos não significa ocupar o mesmo lugar
mente diversa do Reino de Deus. no espaço. Não significa, tampouco, ser submetidos às
No entanto, estas observações nos tornam conscien­ mesmas condições externas ou pressões físicas, nem ao
tes de um ponto decisivo. A passagem a que estamos mesmo modelo de vida. Não significa marchar juntos,
aludindo implica uma mudança, não apenas no tamanho Zusammenmarshieren. Viver juntos significa participar
da extensão, mas, antes e ac.ima de tudo, na medida da como homens, não como animais, isto é, na base de uma
profundidade: uma mudança nas estruturas intimas da livre aceitação básica, de certo conjunto de sofrimentos
sociabilidade e da moralidade humana. e tarefas comuns.
Nas épocas passadas da história, a vontade dos ho­ A razão pela qual os homens gostam de viver juntos
mens no sentido de viverem juntos, que é básica na for­ é uma razão positiva, uma razão criadora. Não é por te­
mação das sociedades políticas, era, em regra — com merem qualquer perigo que os homens gostam de viver
a esplêndida exceção dos Estados Unidos — realizada juntos. 0 temor da guerra não é e nunca foi o motivo
por tôda a espécie de meios, salvo a liberdade. Foi leva­ pelo qual os homens quiseram viver juntos e formar uma
da a efeito até mesmo pela guerra. É triste dize-lo, mas sociedade política. Os homens quiseram viver juntos e
é verdade, que as guerras têm sido os meios mais co­ formar uma sociedade política para realizar uma tarefa
muns — por serem os mais primitivos e brutais — de em comum. Quando os homens tiverem vontade de vivei’
misturar e caldear os povos uns com os outros, forçan­ juntos em uma sociedade de âmbito mundial, será por­
do-os a se conhecerem uns aos outros e a viverem uns com que terão vontade de realizar juntos uma tarefa de âm­
os outros, conquistadores e conquistados, num mesmo lu­ bito mundial. Qual será essa tarefa? A conquista da li­
gar, desenvolvendo com o tempo, entre si, uma espécie de berdade. O problema é tornar os homens conscientes
congenialidade infeliz. Mais tarde é que poderá aparecer dessa tarefa e do fato de que ela é digna de sacrifícios
a amizade cívica. aceitos para ser levada a efeito.
Ésse tempo passou, pelo menos no que tange aos Dada a condição humana, o mais expressivo sinô­
princípios democráticos e às exigências da justiça. Agora, nimo de viver juntos é sofrer juntos. Quando os homens
se uma sociedade política mundial fôr algum dia funda­ formam uma sociedade política, não querem partilhar
da, há de ser por processos de liberdade. Será, por pro- dos sofrimentos comuns por amor uns aos outros. Que­
rem aceitar o sofrimento comum por amor de uma tarefa
sociedaãe aberta, da cidade à humanidade, não se passará ja­ comum e de um bem comum. A vontade de realizar uma
mais por meio de um alargamento. Não são d?, mesma essência'’
(página 288). tarefa comum de âmbito mundial deve, portanto, ser bas­
tante forte para animar a vontade de partilhar de certos
242 JACQUES MAR1TA1N 0 ÜOMKm E o ks iAlx) 245

sofrimentos comuns, que essa tarefa torna inevitáveis, dial digno do homem e dos seus afins.” 1:1 E ainda:
assim como do hem comum de uma sociedade de âmbito “O preço da paz é a renúnciu, até certo ponto, do êxito
mundial. Que espécie de sofrimento? Os sofrimentos que como sendo a força orientadora nuns intensa do pensa­
a solidariedade acarreta. Basta dizer que a própria exis­ mento, do trabalho e da política. ’1' Trata-se nem mais
tência de uma sociedade cie âmbito mundial acarretará nem menos do que lazer com que a ciencni seja comple­
inevitavelmente profundas modificações nas estruturas tada pela sabedoria u o critério do êxito, ultrapassado
sociais e econômicas da vida nacional e internacional pelo critério do bem e pela devoção ao bem.
dos povos. E essas modificações, por sua vez, acarretarão Uni corpo político e u/a povo organizado. Natural­
sérias repercussões nos negócios individuais e livres de mente, a unidade de um corpo político mundial seria
uma quantidade de indivíduos, que não são os mais nume­ muito diversa da unidade que caracteriza os reinos ou
rosos no mundo, mas os mais apegados ao lucro indi­ as nações e à qual está habituado o nosso modo de pen­
vidual. A própria existência' de uma sociedade do âmbito sar. Não seria mesmo uma unidade federal e sim, diga­
mundial terá como consequência inevitável uma certa mos, uma umidade pluralista, que só se realiza através da
igualização — ccrtamente relativa, mas, sem embargo, perene diversidade dos corpos políticos particulares e
ponderável e séria — no nível de vida de tõdas as pes­ mesmo acentuando essa diversidade. E um fato, porem,
soas. Para falar com toda a franqueza: é possível que, que, ao dizermos de uma comunidade de nações que ela
se as coisas fossem bem contadas, os povos das nações (leve formar w» corpo político, mesmo levando em conta
ocidentais aceitassem, a favor da paz e de uma organi­ as condições a que deve estar submetida essa unidade,
zação política mundial que garantisse uma paz duradou­ estamos afirmando que a comunidade de povos deve for­
ra, uma redução séria em seu nível de vida, a fim de mar um só povo, mesmo levando em conta as condições
garantir aos povos do outro lado da cortina, de ferro uma a que deve estar sujeita essa unidade pluralista. Isso
elevação proporcional em seus níveis de vida. No en­ significa que, entre todos os povos, deveria desenvolver-
tanto, isso exigiria uma espécie de heroísmo moral, para -se o sentimento do bem comum dêsse povo uno, ultra­
o qual me parece que ainda estamos muito mal prepa­ passando e dominando o sentimento do bem comum pe­
rados. Os povos se sentem hoje infelizes e seria necessá­ culiar a cada corpo político. Um sentimento de amizade
rio que enfrentassem novas obrigações e sacrifícios, li­ cívica, tão amplu quanto êsse povo uno, deveria desen­
gados à vida de outros homens no outro extremo do pla­ volver-se simultâneamente, visto como o amor cívico e
neta, a fim de se promoverem, com o tempo, a paz, a fe­ a amizade entre concidadãos é a própria alma ou a for­
licidade e a liberdade de todos. ma que anima tôda e qualquer sociedade política. Insis­
Podemos meditar, a êsse respeito, duas sentenças lu­ tir em que èsse sentimento de uma amizade cívica e de
minosas do Sr. John Nef: “A ciência e as máquinas”, um bem comum mundial é um requisito preliminar para
escreveu êle, “permitiram à humanidade dominar e diri­
gir os recursos materiais do planêta, de tal maneira que ,a Do capítulo “Renovação’' (1050), de um livro ainda iné­

tornaram indispensável um governo mundial. Ao mesmo dito ‘French Civilization and Universal Commumty’'.
11 Nef, Lu Roule ctc la guerra totule, pág. 161: “O preço da
tempo, a ciência e as máquinas estão privando os indiví­ paz...6o abandono, em larga escala, do êxito como princípio tanto
duos e as sociedades da visão e do domínio de si mes­ do pensamento como <lo trabalho e da política."
mos e só tal domínio poderá tornar êsse governo mun-
O HOMEM E O ESTADO 245
244 JACQÊES MARITA1N
envolvido, resguardado 0 considerado como sagrado pela
a fundação de uma sociedade política mundial, seria mesma vontade que deveria tender, além de tudo isso,
pôr o carro diante dos bois. No entanto, é inegável que a uma convivência universal e realizaria êsse objetivo
se poderia começar desde já a fazer alguma coisa nesse pela fundação de uma sociedade política mundial.
sentido entre os povos. A esta altura conviria elaborar um novo conceito. 0
Além disso, o sentimento do bem comum da comu­ conceito de sociedade política imperfeita. Entendo por
nidade dos povos, com a inclinação à boa vontade e ao isso, naturalmente, uma parte de certa espécie de socie­
companheirismo que isso implica, está implícita e vir­ dade política perfeita que os antigos não conheceram c
tualmente contido nessa vontade livremente desenvolvida na qual, em virtude de sua própria extensão, as funções
de conviver, que é a condição primordial para a funda­ e propriedades inerentes à autonomia estão divididas
ção de uma sociedade política mundial que surja através entre uma multiplicidade de corpos políticos particula­
da liberdade. res e de um organismo comum central. Em uma socie­
*♦* dade política mundial as nações se tornariam de direito
e com as garantias de uma ordem jurídica superior, aqui­
Vemos, portanto, que o nascimento de uma socieda­ lo que já são de fato. Por ora, 0 são de um modo anár­
de política mundial deve resultar de um processo de cres­ quico e mão plenamente autônomo e, por isso, podemos
cimento vital do qual têm de participar tôdas as insti­ chamá-las de sociedades políticas imperfeitas. Êsse Es­
tuições, oficiais ou privadas, de qualquer modo interes­ tado Mundial, considerado em si mesmo, apenas com
sadas em qualquer espécie de aproximação e de coope­ sua vida e suas instituições supranacionais, separada­
ração internacional. De qualquer modo, a parte funda­ mente das nações que 0 constituem, seria também uma
mental terá de ser representada pela vontade do povo, sociedade política imperfeita. Só a sociedade mundial
em cada nação. Essa vontade de viverem juntos, em uma considerada como um todo, tanto com 0 Estado supra­
sociedade mundial, tem de ser tão poderosa que possa nacional como com a multiplicidade das nações, seria uma
vencer os obstáculos causados pelo mito dos Estados sociedade política perfeita.
considerados como pessoas soberanas, ou pelos conceitos Pelo mesmo motivo, devemos compreender que a
dos governos. E ainda devem ter-se em mente 03 obstá­ independência das nações não seria ameaçada pela cria­
culos, quiçá mais graves, causados nos próprios povos ção de uma sociedade política mundial. Seria, ao con­
pelo infortúnio e pelo cansaço, pela lentidão da inteli­ trário. assegurada de modo mais perfeito. Os E"tados
gência e pelo egoísmo natural. teriam de renunciar ao privilégio de ser pessoas sobera­
Vemos, também, a. êsse respeito, como teria 0 Estado nas, isto é. a um privilégio que nunca possuiram. Teriam
Mundial um corpo político que lhe seria próprio. Êsse de renunciar à sua plena independência, isto é, a qual­
corpo político mundial do tipo pluralista seria formado, quer coisa que já perderam de fato. Teriam de renun­
não apenas pelas instituições nacionais e supranacionais, ciar a algo de que agora dispõem, mas cujo uso se tor­
exigidas pelo governo mundial, mas ainda e principal­ nou para êles mais prejudicial do que proveitoso, tanto
mente pelos próprios corpos políticos particulares, com para as nações como para o mundo cm geral, a saber,
suas próprias vidas e estruturas políticas, suas próprias a propriedade que cada um tem de gozar de uma inde­
tradições nacionais e culturais, sua multiplicidade de pendência suprema. No entanto, em sua mútua interde­
instituições e de comunidades própria. Tudo isso seria
() HOMEM E O ESTADO 247
246 JACQÜES MARITAIN

pendência, alcançariam as nações um grau de indepen­ dessa base universal, criando assim uma semi-universa-
lidade que progressivamente abarcaria o lodo, receio
dência real, embora imperfeita, mais alta do que a de
que ora dispõem. Isso pelo fato de que a sua vida polí­ que nos levasse antes ã guerra do que à paz.
tica interna, libertando-se da ameaça de guerra e da in­ Uma segunda conclusão é que a passagem a um
terferência de nações rivais, se tomaria mais autônoma, mundo só, politicamente organizado, só pode ocorrer
de fato, do que atualmente o é. depois de um longo decurso de tempo. Bem sei que o
Ilá quem receie que, acentuando a importância da tempo é relativo. É relativo não apenas no sentido de
justiça, como o projeto de Chicago o faz, o principal de­ que um tempo de longa duração em relação à nossa pró­
vei* do Estado Mundial seria o de estender sôbre tôdas pria existência é um tempo curto em relação à história,
as coisas o poder celestial do governo mundial. Essas mas ainda no sentido de que o tempo flui mais rapida­
pessoas têm em mente um Estado sem um corpo político. mente à medida que a história prossegue. Nem por isso
Garantir a justiça pela lei, que é sempre a principal fun­ parecerá menos longo o período de maturação à nossa
ção do Estado, seria naturalmente a principal função infeliz espécie.
do Estado Mundial. Essa função, porém, não poderia Ê lamentável que a paz perpétua não possa ser es­
dispensar e antes pressuporia todos os demais canais tabelecida imediatamente depois da descoberta da bomba
competentes — legais, costumeiros, sociais, morais e até atômica. Não é menos lamentável do que o fato de que
mesmo vegetativos — através dos quais se processa a fôsse. necessário ter descoberto a bomba atômica. Não
justiça, de um ou de outro modo, na existência infinita­ é menos lamentável do que o fato de que. 20 séculos
mente diversificada das nações. Precária como é a jus­ depois da Boa Nova de Belém, esteja ainda a humani­
tiça humana, nada é mais primordialmente necessário dade em uma idade pré-histórica, no que diz respeito à
para a comunidade humana do que a justiça. A êsse aplicação do Evangelho à vida quotidiana. Ora, o pro­
respeito, não podemos dizer que o nosso mundo moder­ cesso da história humana não se encontra em um estágio
no sofre de superalimentação. de livre desenvolvimento criador. Tem de levar em conta
os seus próprios prejuízos. Estamos pagando dívidas
históricas seculares. 0 velho Israel, em tais momentos,
V voltava-se para Deus, em atitude de contrição e de es­
Um Conselho Consultivo Supranacional perança. Nós somos mais orgulhosos e menos abertos à
esperança. Mais de uma vez tive ocasião de exprimir o
Quanto à aplicação daquilo qne vimos explanando, parecei- de que os nossos problemas mais importantes
uma conclusão podemos tirar no sentido de que a transi­ não podem ser resolvidos de modo decisivo, antes daque­
ção para uma sociedade política mundial pressupõe uma les tempos de grande crise e de grande reconciliação,
vontade de convivência desenvolvida em todos os povos, anunciados por São Paulo.
especialmente em todos os grandes povos da terra. Todo No entanto, é um fato qne o processo criador está
esforço de fundar um Estado Mundial sem a presença sempre em ação, visível ou invisível, no seio da história.
Os períodos mais tristes são freqücntemente os mais fe­
15 Cf. McGeorge Bundy, “An Impossible World Rcpnblic", cundos. Se as nações ainda têm de se desembaraçar, de
Repórter, 22 de novembro de 1949. modo precário e muito pouco brilhante, dos perigos da
2-18 •TACQÜES MATUTAI N O HOMEM E O ESTADO 249

destruição universal e, se a fundação de uma comunida­ bilidade de ser aceita pelos Estados e poderia quiçá ler
de política mundial organizada só pode ser esperada em a oportunidade de se tornar êsse inicio a que acima me
um futuro distante, isto constitui apenas um motivo para referi.
aguardar, de modo ainda mais esperançoso, essa funda­ Suponhamos uma espécie de conselho mundial cuja
ção. É isso mais um motivo para empreender, desde já, função seria apenas uma função de sabedoria ética e po­
com uma energia ainda maior, a tarefa de a preparar lítica. e que seria composto das autoridades mais altas
e de despertar a consciência comum da necessidade im­ e mais experimentadas em ciências morais e jurídicas.
perativa de nos orientarmos nessa direção. Suponhamos que os membros dêsse supremo conselho
Essa tarefa já foi, como sabemos, empreendida pelos consultivo seriam escolhidos entre todas as nações do
mais corajosos e mais lúcidos pioneiros. Em Chicago, mundo, de acôrdo com certo método eqüitativo de desig­
foi iniciada seis dias depois de a primeira bomba atômi­ nação e seriam diretamente eleitos pelos povos de todas
ca ter caído sôbre Hiroshima. Essa tarefa terá, primei­ as nações entre homens prèviamente propostos pelas
ramente, de se desenvolver como um esforço profundo e mais altas instituições e pelos governos de cada Estado.
contínuo de educação e de esclarecimento, de discussão Suponhamos, porém, que, uma vez eleitos, perdessem
e de estudo. Terá de ser desenvolvida também pelos es­ sua cidadania natural e se lhes desse uma cidadania uni­
forços, por mais limitados que sejam, dos diversos orga­ versal. de modo a ficarem independentes de todo e qual­
nismos cooperadores das Nações Unidas. Terá ainda de quer govêrno e completamente livres no exercício de sua
o ser através dos vários esforços promovidos, por tôda responsabilidade espiritual.
a parte, no sentido de se realizar a idéia federalista. Suponhamos que fôssem materialmente desarmados,
Êsses esforços são particularmente valiosos, em minha sem nenhum outro meio de ação senão as suas próprias
opinião, quando tendem a objetivos bem definidos e que declarações c protegidas apenas pelos compromissos mú­
se podem realizar em um outro terreno parcial e, ao mes­ tuos entre os Estados. Suponhamos ainda que fôssem
mo tempo, se defendem do perigo de criar apenas novos privados de todo poder e mesmo, em contraste com a
e mais amplos moldes para a .concorrência universal que atual Côrte Internacional de Justiça, de todo poder judi­
estão justamente procurando eliminar. ciário. Nenhum governo poderia apelar para éste con­
Não haverá, porém, qualquer meio de inserir, na selho, solicitando-lhe qualquer espécie de decisão, pois
presente estrutura do mundo, um germe, por menor que não teria qualquer conexão jurídica com as Nações Uni­
seja, ou um primeiro início, por mais fraco que seja, das. Seriam apenas livres de dizer aos governos e às
que pudesse vir a ser útil no caso em que, algum dia. nações aquilo que considerassem justo.
melhores tempos tornassem possível a preparação polí­ Na medida em que êsse supremo conselho consulti­
tica para a fundação de uma sociedade política univer­ vo atuasse de maneira realmente sábia, independente e
sal? A imaginação de cada um pode trabalhar quanto firme, e resistisse às pressões que sôbre êle fôssem exer­
queira nesse sentido Ser-me-ia permitido fazer também cidas. sua autoridade moral se tornaria cada vez mais
uma sugestão a esse respeito? forte, bem como sua influência sôbre a opinião pública
Minha sugestão é que uma nova instituição, que não seria a voz da consciência dos povos.
teria poder algum por si nrópria. mas seria dotada de Penso que. sendo realmente uma instituição mun­
uma indiscutível avtorifladr moral, teria talvez proba­ dial. escudada em sua constituição contra a interferên­
250 JACQUES MARITAIN
O HOMEM i: O ESTADO 251
cia de qualquer governo; sendo, ao mesmo tempo, pri­ já não podem hoje Ser usados e, entretanto, o fato de
vada de podêres e exercendo uma função mera mente desistir de uma distinção entre o justo e o injusto, tan­
moral, — teria probabilidades de debelar os temores.
São êsses temores de manobras de envolvimento, de per­ to em caso de guerra como em qualquer outra hipótese,
nos levaria simplesmente a abdicar da razão moral.
da de prestígio, etc., que corrompem as atividades das Bom seria se, em certas e determinadas conjunturas in­
organizações internacionais. A consequência será que ternacionais sérias, um senado de homens sábios pudes­
algum dia, tendo em conta que mesmo os governos mais se dizer ao povo qual era, em sua opinião, o caminho da
cínicos são forçados a render homenagem, embora de justiça.
bôca. para fora, ao fator moral, — é possível que novas Antes e acima de tudo, porém, se existisse tal sena­
circunstâncias que tornem a situação ainda mais deses-
peradora venham fazer com que êsse supremo conselho do de homens sábios, seria o primeiro sinal da possibili­
consultivo possa vir a ser aceito por todos os Estados e dade de uma organização mundial realmente supranacio­
governos. nal que estimularia a consciência dos povos no sentido
O que me faz apreciar tal idéia é que, por êsse meio, desse grande movimento da inteligência e da vontade do
se poderia oferecer a possibilidade da superveniência de qual depende a genuína e construtiva revolução exigida
qualquer coisa que é absolutamente indispensável e mais por nossa era histórica, isto é, a fundação de uma comu­
exigida do que nunca, a saber, uma opinião internacio­ nidade mundial politicamente organizada.
Ao exprimir, no fim dêste capítulo, uma sugestão
nal organizada. prática de minha própria autoria, temo ter cedido, tal­
É fato, também que, por êsse meio, se poderia es­
vez, à velha tentação dos filósofos, que desejariam ver a
clarecer muita gente em relação aos mais complexos razão, através cia instrumentabilidade de certos homens
problemas temporais que dizem respeito ao bem comum
do mundo e sôbre os quais, nas nações democráticas, sábios, aceita como autoridade em negócios humanos. Se­
ria essa, suponho, uma ilusão menos séria, — e de qual­
tem o povo de tomar uma decisão. Alguns desses pro­ quer modo menos freqüente - - do que a convicção, acumu­
blemas são mesmo de natureza a torturar as consciên­
cias humanas. Penso especialmente no problema da lada por tantos fatalistas, de que se deve evitar tôda e
qualquer confiança na voz da razão, quando procuramos
guerra justa. Todo mundo sabe que participar de uma orientar o Homem e o Estado.
guerra injusta é sem cúmplice de um homicídio. Diz-se,
por outro lado, ao povo que as coisas se tornaram tão
abscuras e complexas que já lhe falta competência para
julgar cada caso particular. Sou eu, então, forçado a
participar daquilo que é, porventura, um crime, por ser
o men governo melhor juiz do que eu nessa matéria,
mesmo que eu fôsse um alemão ao tempo da invasão
hitleriana? Por outro lado, a sistemática objeção de cons­
ciência é uma ilusão trágica não menos perniciosa para
a justiça do que a cega obediência. Os velhos processos
de distinguir uma guerra justa de uma guerra injusta

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