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SOCIOLOGIA

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Índice

A Sociologia estuda o quê? ...................................................................................................... 9

A Sociologia é uma ciência? .................................................................................................... 10

Será possível aplicar o método científico à Sociologia? .......................................................... 12

Qual a utilidade da Sociologia? ................................................................................................ 13

Instituições Sociais .................................................................................................................... 14

FAMÍLIA ...................................................................................................... 15

KATHLEEN GOUGH: A ORIGEM DA FAMÍLIA ................................................................ 16

OS PRIMATAS SOCIÁVEIS ................................................................................................... 17

SAMUEL KOENIG: ORIGENS DA FAMÍLIA ....................................................................... 18

LÉVI-STRAUSS: FORMAS ELEMENTARES DO PARENTESCO ...................................... 20

ÉMILE DURKHEIM: A FAMÍLIA É UM FATO SOCIAL .................................................... 22

MISES: A SOCIEDADE SURGIU DO DESEJO DE COOPERAR ......................................... 23

ELY CHINOY: FAMÍLIA E SOCIALIZAÇÃO ....................................................................... 25

SPENCER: A SOCIEDADE COMEÇOU COM OS AGREGADOS SOCIAIS SIMPLES ...... 27

ROGER SCRUTON: FAMÍLIA E AUTORIDADE ................................................................... 29

RELIGIÃO ...................................................................................................... 30

MONTESQUIEU: RELIGIÃO E PROGRESSO SOCIAL ......................................................... 31

FRÉDÉRIC LE PLAY: FUNÇÃO DAS CRENÇAS RELIGIOSAS .......................................... 32

EDWARD B. TYLOR: RELIGIÃO E ANIMISMO ................................................................... 33

ROBERTSON SMITH: IMPORTÂNCIA DOS RITOS E PRÁTICAS RELIGIOSAS ............. 34

JAMES FRAZER: OS PRINCÍPIOS DA MAGIA ..................................................................... 36

DURKHEIM: AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA .................................. 37

MARCEL MAUSS E HENRI HUBERT: O SACRIFÍCIO ......................................................... 39

FUSTEL DE COULANGES: A RELIGIÃO ANTIGA ............................................................... 40

CHRISTOPHER DAWSON: RELIGIÃO E CULTURA ............................................................ 42

MAX WEBER: SENTIDO DA AÇÃO RELIGIOSA .................................................................. 43

GERSHOM SCHOLEM: EXPERIÊNCIA MÍSTICA ................................................................. 44

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LINGUAGEM ................................................................................................. 45

HJELMSLEV: ESTUDO DA LINGUAGEM ............................................................................. 46

FERDINAND DE SAUSSURE: LÍNGUA E LINGUAGEM ..................................................... 47

LÉVI-STRAUSS: LINGUAGEM E SOCIEDADE ..................................................................... 49

EDWARD HALL: LÍNGUA E PERCEPÇÃO SENSORIAL ..................................................... 51

LÚCIA SANTAELLA: AS VÁRIAS MANIFESTAÇÕES DA LINGUAGEM ......................... 52

SHANNON: TEORIA MATEMÁTICA DA COMUNICAÇÃO ................................................. 53

JAKOBSON: LINGUÍSTICA E TEORIA DAS COMUNICAÇÕES .......................................... 55

ESTADO ........................................................................................................... 57

THOMAS HOBBES: A CONDIÇÃO NATURAL DA HUMANIDADE


E A NECESSIDADE DO ESTADO ............................................................................................. 58

FRANZ OPPENHEIMER: A GÊNESE DO ESTADO ................................................................ 60

FRAZER: EVOLUÇÃO DO MAGO/ SACERDOTE PARA REI ............................................... 62

WEBER: O ESTADO É A LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA .................................................. 63

FUSTEL DE COULANGES: EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA PARA A CIDADE.


MUDANÇA NA MENTALIDADE RELIGIOSA ........................................................................ 64

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA: PÚBLICO X PRIVADO, FAMÍLIA X CIDADE ......... 66

ESTADO EGÍPCIO: CENTRALIZAÇÃO E MONOPÓLIO ....................................................... 67

A UNIFICAÇÃO DA CHINA ...................................................................................................... 68

SCRUTON: ESTADO E AUTORIDADE .................................................................................... 69

ALFRED STEPAN: ESTADO E SOCIEDADE CIVIL ............................................................... 70

HEGEL: O ESTADO É A REALIDADE EM ATO DA LIBERDADE CONCRETA ................ 71

DIREITO .......................................................................................................... 73

MONTESQUIEU: O ESPÍRITO DAS LEIS ............................................................................... 74

MAINE: A LEI ANTIGA ............................................................................................................. 75

HANS KELSEN: TEORIA PURA DO DIREITO ....................................................................... 76

DURKHEIM: DIREITO, MORAL E RELIGIÃO ....................................................................... 78

MARX E ENGELS: ESTADO, DIREITO E CLASSES SOCIAIS ............................................. 80

ROSCOE POUND: PROBLEMAS DA INTERPRETAÇÃO ECONÔMICA


DO FENÔMENO JURÍDICO ....................................................................................................... 81

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E. R. GRAU: ELEMENTOS DO DIREITO ................................................................................. 83

BENTHAM: PRINCÍPIOS DA MORAL E DA LEGISLAÇÃO ................................................. 85

HAYEK: ESTADO DE DIREITO X AUTORITARISMO .......................................................... 86

PROPRIEDADE PRIVADA ........................................................................... 88

JOHN LOCKE: FUNDAMENTO DA PROPRIEDADE ............................................................ 89

ROBERT NOZICK: PROBLEMAS DA APROPRIAÇÃO ORIGINAL .................................... 91

DURKHEIM: DIREITO DE PROPRIEDADE E COMUNISMO


NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS ............................................................................................ 93

MALINOWSKI: PROPRIEDADE ENTRE OS NATIVOS ....................................................... 94

MARCEL MAUSS: DIREITO DAS COISAS E DAS PESSOAS


NAS SOCIEDADES ANTIGAS ................................................................................................. 95

STUART MILL: DIREITO DE PROPRIEDADE ....................................................................... 96

HOPPE: NEGAR A EXISTÊNCIA DA PROPRIEDADE PRIVADA


SIGNIFICA CAIR EM AUTOCONTRADIÇÃO ........................................................................ 98

KANT: DO DIREITO DE PROPRIEDADE ............................................................................... 100

NEOILUMINISMO: IMPOSTO NÃO É ROUBO ...................................................................... 101

COMÉRCIO ..................................................................................................... 103

MARCEL MAUSS: FORMA E RAZÃO DA TROCA NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS ..... 104

MALINOWSKI: O ―KULA‖ COMO UMA FORMA DE TROCA E COMÉRCIO


NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS ............................................................................................. 106

ADAM SMITH: O PRINCÍPIO QUE DÁ ORIGEM À DIVISÃO DO TRABALHO ................ 107

SAY: PRESERVAÇÃO DO PODER DE COMPRA ................................................................... 108

MONTESQUIEU: NATUREZA E IMPORTÂNCIA DO COMÉRCIO ..................................... 109

MISES: MOEDA E CÁLCULO ECONÔMICO .......................................................................... 110

EDUCAÇÃO ..................................................................................................... 111

ROSSITER: EDUCAÇÃO E ESTADO ........................................................................................ 112

HARRI BROWNE: PROBLEMAS DA EDUCAÇÃO ESTATAL .............................................. 114

GRAMSCI: EDUCAÇÃO E HEGEMONIA ................................................................................ 115

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RAFAEL NOGUEIRA: APONTAMENTOS SOBRE O CONCEITO
DE ―EDUCAÇÃO BANCÁRIA‖ DE PAULO FREIRE ............................................................. 117

GABRIEL DE ARRUDA CASTRO: CINCO IDEIAS


INDEFENSÁVEIS DE PAULO FREIRE .................................................................................... 120

ROGÉRIO MARINHO: PAULO FREIRE, O PATRONO


DO FRACASSO EDUCACIONAL BRASILEIRO .................................................................... 122

DEWEY: A ESCOLA-LABORATÓRIO .................................................................................... 123

BERGER & LUCKMANN: SOCIALIZAÇÃO PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA ....................... 124

NOVAS ABORDAGENS NA EDUCAÇÃO .............................................................................. 126

CIÊNCIA ......................................................................................................... 129

CIÊNCIA E TECNOLOGIA NOS PRIMÓRDIOS DA CIVILIZAÇÃO .................................... 130

COLIN A. RONAN: AS ORIGENS DA CIÊNCIA ..................................................................... 131

LÉVI-STRAUSS: A CIÊNCIA DO CONCRETO ........................................................................ 132

LUÍS DA CÂMARA CASCUDO: FOGO E CIVILIZAÇÃO ...................................................... 134

BACHELARD: O ESPÍRITO CIENTÍFICO ................................................................................. 135

CIÊNCIA: EXPERIÊNCIA, PODER E PAIXÃO ......................................................................... 136

CIÊNCIA: INCENTIVOS PRIVADOS x ESTATAIS .................................................................. 139

ORGANIZAÇÃO ............................................................................................. 140

CHIAVENATO: IMPORTÂNCIA DAS ORGANIZAÇÕES ....................................................... 141

TAYLOR: ADMINISTRAÇÃO CIENTÍFICA ............................................................................. 142

BARNARD: A ORGANIZAÇÃO É UM SISTEMA DE FORÇAS COORDENADAS


CONSCIENTEMENTE .................................................................................................................. 143

ORGANIZAÇÕES E CADEIA DE SUPRIMENTOS ................................................................... 144

A SOCIEDADE DAS ORGANIZAÇÕES ..................................................................................... 145

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A Sociologia estuda o quê?
Estuda a ação humana no contexto das organizações sociais, das instituições e
dos processos sociais, englobando também a relação destes com o meio ambiente ou
com os aspectos biológicos. Por se ocupar da sociedade como um todo, a Sociologia
deve ser, necessariamente, eclética: busca elementos na História, na Geografia, na
Filosofia, na Economia, no Direito, nas pesquisas de levantamento social (estatísticas),
na Biologia, na Arqueologia e numa série de outras áreas do conhecimento. Entretanto,
a sociologia deve ter um objeto de estudo próprio e um método próprio de proceder no
estudo da sociedade, caso contrário, sua existência não faria nenhum sentido.

O que é ação humana?


Ação humana é comportamento propositado.
Também podemos dizer: ação é a vontade
posta em funcionamento, transformada em
força motriz; é procurar alcançar fins e
objetivos; é a significativa resposta do ego aos
estímulos e às condições do seu meio
ambiente; é o ajustamento consciente ao
estado do universo que lhe determina a vida.

Mises

Ação Humana é um comportamento consciente, racional, em que o ser humano


visa algum fim e procura os meios para a sua realização. O que move toda ação humana
é o desejo de sair de uma situação menos satisfatória para outra mais satisfatória. Todo
ser humano age, e cada um atribui, de maneira subjetiva, razões para seus atos. Por mais
que sejamos influenciados pelo meio externo (sociedade, clima, sistema fisiológico,
fatos psicológicos etc.), a escolha intencional dos seres humanos sempre estará presente,
o que resulta no seguinte ponto: as ações humanas são imprevisíveis.
Por Organização Social devemos entender a maneira como as várias sociedades
estão dispostas, isto é, quais os padrões existentes em cada sociedade. Por exemplo,
toda sociedade possui um grupo primário, que é resultado da associação íntima entre
pessoas unidas por afetos, propósitos comuns e interdependência; em toda sociedade as
pessoas cooperam entre si, isto é, há uma divisão do trabalho, embora nem todas as
pessoas tenham consciência da complexidade da cooperação ou nem todas as ações
humanas sejam realizadas com o propósito deliberado de cooperar, mesmo que estejam
de fato cooperando; toda sociedade possui uma estratificação social, que é a maneira
como um indivíduo ou grupo é visto pelos outros membros (inferior, superior, melhor,
pior, capaz, incapaz, etc.) e segundo a qual funções e tarefas são atribuídas a cada um.
Uma Instituição Social é um conjunto de papéis, regras, normas e procedimentos
organizados em função de alguma atividade social e reconhecidos pelos membros da

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sociedade. Exemplos de instituições: a família, a religião, a educação, a propriedade
privada, o comércio, o Estado e a ciência. As instituições tiveram enorme importância
para a Sociologia, pois são os principais blocos formadores da sociedade, assim como
os blocos de concreto formam as paredes de uma construção.
Os Processos Sociais se referem às mudanças que ocorrem gradativamente nos
costumes, instituições, leis, preconceitos e demais regras que definem o comportamento
humano. Indica também como as pessoas interagem com os costumes, instituições, leis,
etc., aceitando-os, recusando-os ou modificando-os.

A Sociologia é uma ciência?


Antes de procurarmos responder a essa pergunta, é necessário entender o que é
uma ciência. Toda ciência possui dois elementos essenciais: o racional e o empírico.

Racional Empírico

● O elemento Racional permite ao observador/ pesquisador organizar e sintetizar os


dados da experiência, realizar deduções lógicas e constatar a evidência de uma dada
teoria.
● O elemento Empírico é o que possibilita a constatação de um fato, através da
repetição de um fenômeno de interesse. É o momento da medição, coleta de dados ou
simples observação direta.

O método científico possui as seguintes etapas:

Observação

Hipótese
Experiências
Lei

Teoria

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Observação → Momento em que o cientista procura entender como e por que algo
acontece.
Hipótese → Uma possível explicação do que foi observado. É provisória, até ser
confirmada.
Experiências → Testar e comprovar se a hipótese levantada é verdadeira ou falsa. Caso
seja falsa, uma nova hipótese é formulada e novas experiências são realizadas.
Lei → Caso a hipótese seja confirmada, o cientista promove uma síntese, modelagem e
generalização dos resultados obtidos, formulando uma regra segundo a qual
determinadas coisas acontecem.
Teoria → É um conjunto de hipóteses e/ou de leis aplicáveis a vários fenômenos

A Sociologia procura aplicar ao estudo do homem e da


sociedade os métodos da ciência. Funda-se na suposição, comum a
todas as ciências sociais, de que o método científico pode oferecer
significativa contribuição ao nosso conhecimento do caráter, das
ações e das instituições do homem e à solução dos problemas
práticos que os homens enfrentam em sua experiência coletiva. (...)

A principal característica da análise e da observação científica é


a objetividade. A validade de qualquer conclusão e a fidedignidade de
qualquer observação são – ou deveriam ser – independentes dos
valores e crenças do cientista. Dois mais dois é igual a quatro, seja a
soma feita por um comunista, um católico, um muçulmano ou um
feiticeiro africano. As mulheres nos Estados Unidos, como na maioria
dos países, vivem mais tempo do que os homens, e a essa conclusão
deveriam chegar tanto os homens como as mulheres com base nos
dados de que dispõem. O cientista procura seguir seus dados e a
lógica de sua análise aonde quer que possam conduzi-lo.
Teoricamente, ele conserva suas opiniões filosóficas, suas fidelidades
políticas, suas crenças religiosas, suas preferências sociais e seus
sentimentos pessoais de modo que não exerçam a menor influência
nos resultados que obtém.
É provável que a objetividade seja muito mais difícil de se
conseguir em todas as ciências sociais do que nas ciências naturais,
pois os homens trazem inevitavelmente ao estudo de si mesmos e da
sua sociedade um conjunto de ideias que lhes podem influenciar as
observações e conclusões. Como o demonstraram claramente os
psicólogos, os homens veem, com frequência, o que estão preparados
para ver – ou o que desejam ver. Os fatos de que se advertem ou,
mais precisamente, os fenômenos do mundo que os rodeia e que eles
referem como fatos, são, na maior parte, determinados pelas coisas
que aprenderam, pelas crenças que adotam, pelos valores que
aceitam.

Ely Chinoy

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Será possível aplicar o método
científico à Sociologia?

Conforme podemos perceber, em Sociologia (que é uma ciência social) é difícil


evitar que os valores e ideias pré-concebidas do sociólogo interfiram nos resultados. A
própria escolha do objeto de estudo é influenciada pelos valores que ele, o sociólogo,
possui. Entretanto, isso não significa que a construção de um conhecimento científico
na Sociologia seja impossível.
Vamos analisar a questão por meio de um exemplo. Suponha que o cientista
queira investigar a causa (ou as causas) do crime.

Observação do crime: Hipótese: o crime Experiências: verificar


como e por que ocorre onde há muita se a pobreza gera
acontece? pobreza criminosos. Como?!?

Lei: a pobreza gera


Teoria: Os fatores X, Y
criminalidade. Ou
e Z induzem à
então: a pobreza não
criminalidade.
gera criminalidade

A primeira etapa (Observação) é o que move a investigação: a curiosidade. Um


problema é apresentado, e então o cientista (ou investigador) quer saber as causas
daquele fenômeno. Então ele propõe uma hipótese, baseada na dedução, na indução, na
sua vivência, cultura ou quaisquer outros fatores. A próxima etapa é o momento em que
o cientista testa sua hipótese; como fazer isso em ciências sociais? Existe um laboratório
humano onde possamos alterar as variáveis e colher os resultados? Evidentemente que
não, e é aí que as coisas começam a complicar.
Além de não ser possível utilizar um laboratório com humanos, ainda há outros
pontos a serem considerados: existem inúmeras (ou infinitas) variáveis que influenciam
o comportamento humano, e uma experiência teria que mapear todas essas variáveis; os
seres humanos agem intencionalmente, isto é, visando um fim, um propósito, ao
contrário das variáveis do mundo físico que apenas seguem as leis naturais.
As variáveis da natureza podem ser previstas, pelo menos em parte, por meio de
relações de causa e efeito, mas o comportamento humano jamais pode ser previsto, pois
cada um age segundo escolhas, de acordo com a vontade livre. Isso significa que uma
ciência social é impossível? Não. Voltando ao nosso exemplo, o cientista poderia

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verificar, através de estatísticas, se há alguma correlação entre pobreza e criminalidade.
Ele faria isso verificando não apenas para uma determinada região, mas para várias
regiões diferentes no tempo e espaço, e a partir daí tentaria chegar a algum resultado
científico. E mesmo que a ação humana seja imprevisível, ainda assim é possível chegar
a regularidades estatísticas, prever a probabilidade de ocorrência de um evento. Por
exemplo, no Natal, as vendas sobem. Isso é uma regularidade estatística comprovada,
mesmo diante do fato de que cada consumidor age segundo seus propósitos, suas
escolhas. Mas, quão grandes serão as vendas? Isso ninguém pode prever com rigor, pois
inúmeros fatores podem influenciar as escolhas dos agentes individuais.

Vários outros métodos têm sido utilizados na análise dos fenômenos sociais.
Alguns cientistas sociais compararam certas práticas existentes em sociedades
diferentes das nossas para melhor compreender nossos próprios costumes. Outros
analisaram a sociedade em termos de função, onde cada costume ou instituição teria
uma função específica a desempenhar. Outros, ainda, procuraram chegar à objetividade
na Sociologia por meio da interpretação de uma dada ação, reconhecendo o caráter
intencional do próprio investigador. Enfim, várias práticas foram adotadas ao longo da
formação da Sociologia, e é importante que o estudante perceba, gradativamente, as
diferenças entre as ciências naturais e as ciências sociais.

Qual a utilidade da Sociologia?


As pesquisas em Sociologia podem desvendar questões importantes sobre a
sociedade e o comportamento humano em geral. Muitas noções populares tidas como
verdadeiras mostraram ser, no entanto, falsas, depois de analisadas sob o ponto de vista
sociológico. Ou ainda, estudos sociológicos mostraram que há uma tendência das
pessoas, em qualquer lugar e tempo, a considerar natural aquilo que é muito comum em
sua sociedade – um hábito, um costume ou um valor. Como se nossos próprios padrões
fossem a medida de todas as coisas.
Entretanto, a Sociologia também pode conduzir a equívocos, não só pela
complexidade dos fenômenos sociais, mas também pelo fato de os valores e
preconceitos do sociólogo afetarem os resultados finais de uma pesquisa. Dentre todos
esses equívocos, o maior de todos é julgar que o conhecimento sociológico deveria ser
utilizado para interferir na sociedade – nas instituições, costumes, preconceitos, etc. de
um povo. Como se as constatações da Sociologia, ainda que fossem totalmente
irrefutáveis, determinassem como deveria ser organizada a sociedade – supondo que tal
organização fosse possível e desejável.
Ora, a mera constatação de preconceitos, de etnocentrismos e de visões
deturpadas das pessoas comuns não nos deve induzir a acreditar que devemos, de forma
brusca, romper com essas práticas, por serem consideradas por nós como atitudes
indesejadas. A história nos mostrou que todas as tentativas realizadas nesse sentido
resultaram em retrocesso social, morte, escassez e autoritarismo. E os fatos históricos
devem nos alertar para esta verdade sociológica: a interferência nas instituições,
costumes, normas, preconceitos, valores, etc. de uma sociedade sempre levam a
resultados desastrosos, por mais bem intencionados que sejam esses reformistas.
Por fim, a utilidade de algo é relativa, isto é, depende de quem julga. A
Sociologia pode ser útil para alguns, e inútil para outros, dependendo dos interesses de
cada um. Caberá ao estudante verificar a utilidade de se estudar Sociologia.

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INSTITUIÇÕES SOCIAIS

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FAMÍLIA
A família é a mais básica unidade social existente. Provavelmente foi a primeira
forma de agrupamento surgido na história. Na família se inicia o processo de
socialização: experimentamos emoções, afetos e simpatias; aprendemos as noções
básicas de convivência – linguagem, moral, normas e padrões estéticos. A família é
também o grupo primário mais importante na vida de uma pessoa. É na família e nos
grupos primários que ocorrem as experiências mais significativas na vida de um ser
humano, onde adquire características e sentimentos humanos básicos; onde a
personalidade se forma, e onde a individualidade é desenvolvida ou reprimida.
Pouco se sabe sobre o surgimento da família nos tempos primitivos, e ao longo
dos últimos séculos, muita especulação foi produzida a respeito. Estudos realizados por
antropólogos como Lewis Henry Morgan (1818-1881) ou por teóricos como Friedrich
Engels (1820-1895), embora importantes para a época, demonstram concepções
arraigadas sobre tipos de família e valores considerados importantes para nós, pessoas
modernas e ocidentais. Somente no século XX surgiram estudos mais rigorosos que
procuraram delimitar mais precisamente certos termos, romper com antigos
preconceitos e lançar novas luzes sobre o tema. Dentre os vários estudos destacam-se os
de Charles Horton Cooley, Social Organization (1909), Robert Briffault, The Mothers
(1927), Bronisław Malinowski, The family among the Australian aborigines : a
sociological study (1913), George P. Murdock, Social Structure (1949), Claude Lévi-
Strauss, Les structures élémentaires de la parenté (1949), Radcliffe-Brown, Structure
and Function in Primitive Society (1952), Olga Lang, Chinese Family and Society
(1946) e William J. Goode, The Family and Social Network (1957).
Nem todas as sociedades seguem o padrão de família que conhecemos hoje,
formada por pai, mãe e filhos. Existem e existiram vários tipos: as poligâmicas e as
poliândricas, por exemplo. Entre os trobriandeses, a família é do tipo matrilinear; é o tio
materno que cuida do filho, não o pai. Em algumas sociedades o casamento entre
primos é proibido, em outras não. Em alguns lugares, homens trocam de mulheres entre
si, estabelecendo novas famílias; em outros, ocorre o inverso – mulheres trocam de
esposos e constituem novas famílias.

Os textos a seguir procuram esclarecer várias questões relacionadas a esta


importante instituição, a família. São trechos retirados de várias obras, alguns inclusive
com visões conflitantes. O importante é que o estudante anote no caderno as várias
visões apresentadas, compare-as entre si e construa o seu próprio conhecimento.

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KATHLEEN GOUGH: A ORIGEM DA FAMÍLIA
Eleanor Kathleen Gough Aberle (1925-1990) era
antropóloga britânica. Realizou pesquisas no sul e sudeste da
Ásia. Em sua obra A Origem da Família, a autora destaca
algumas fontes que podem esclarecer qual a origem dessa
instituição. Leia o texto abaixo e indique quais são essas fontes.
Mostre também quais as principais limitações no uso dessas
fontes. Responda também: quem surgiu primeiro, a família ou a
linguagem? Justifique sua resposta.

Desconhecemos a altura exata do aparecimento da família, se bem que supomos


que tal possa ter acontecido, provavelmente, entre 2 milhões de anos e 100.000 anos
atrás. Tampouco sabemos se o seu aparecimento foi simultâneo o use surgiu em
diversos lugares e em diversas ocasiões. Outro problema é averiguar se algum tipo de
família embrionária apareceu antes, ao mesmo tempo ou depois da linguagem. Isto
significa, se aceitarmos que a linguagem é o sinal distintivo da humanidade, que nem
sequer sabemos se os nossos antepassados adquiriram as bases da vida familiar antes
ou após terem alcançado a condição humana. É muito provável que a linguagem e a
família se tenham desenvolvido conjuntamente durante um longo período de tempo,
mas é difícil prova-lo.
Ainda que a origem da família não deixe de ser tema de mera especulação,
sempre é preferível a especulação apoiada em alguns testemunhos do que a que deles
carece. Os testemunhos proveem de três fontes. A primeira é constituída pela vida
física e social dos primatas não humanos, especialmente os macacos do Velho Mundo e
do Novo Mundo, mas, sobretudo, dos grandes macacos (que são os parentes mais
próximos do homem). A segunda fonte é constituída pelos utensílios e lugares de
refúgio do homem pré-histórico e dos proto-humanos. (...) A terceira é a vida familiar
dos caçadores e colhedores de produtos silvestres que tem sido estudada na atualidade.
Estas fontes são todas imperfeitas. No que respeita aos macacos e grandes
macacos, se bem que sejam nossos primos não são nossos antepassados; por outro lado,
os fósseis hominídeos dizem-nos pouco acerca da vida social destas populações.
Finalmente, os povos caçadores e colhedores da atualidade não possuem a tecnologia e
a vida social incipientes que tiveram os humanos dos primeiros tempos; todos eles
mostram o resultado de uma grande e especializada adaptação a um meio ambiente
marginal. Todavia, tais fontes, tomadas conjuntamente, oferecem valiosas pistas para a
investigação. (...)
Todos os primatas compartilham características sem as quais a família não teria
podido estabelecer-se. Assim, os bebês nascem relativamente desprotegidos; mamam
durante vários meses ou anos e a partir daí necessitam, todavia, de um cuidado
prolongado. A infância alarga-se à medida que as espécies se vão aproximando do ser
humano. A maioria dos macacos alcançam a puberdade aproximadamente entre os
quatro e os cinco anos e a maturidade social entre, também aproximadamente, os cinco
e os dez. Os chimpanzés, pelo contrário, mamam até os três anos; as fêmeas atingem a
puberdade entre os sete e os dez anos e os machos alcançam a maturidade sexual e
começam a ter relações sexuais aos treze anos. A infância longa e o cuidado maternal
produzem relações íntimas entre os filhos da mesma mãe e esta brinca com todos eles e
procura auxiliar os pequenos até que cresçam.
GOUGH, K. The Origin of the Family. New Hogtown Press. 1973.

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OS PRIMATAS SOCIÁVEIS

O parentesco do homem com os primatas, em especial com os macacos, é muito


próximo. A face e a morfologia do homem e do gorila fazem lembrar uma origem
ancestral comum. Os cientistas contemporâneos estão verificando que esse paralelo
homem – macaco se aplica igualmente ao comportamento social. Nossos primos da
selva são bastante evoluídos, vivendo, sob alguns aspectos, como o homem primitivo.
(...)
Raramente são encontrados gorilas vivendo solitários nas
selvas. Movimentam-se, via de regra, sem pequenos grupos
familiares que permanecem juntos no decurso do ano inteiro. Sob a
direção de um adulto macho, o grupo é geralmente constituído por
duas ou mais fêmeas com filhotes e certo número de machos
jovens. Por vezes duas famílias se juntam para constituir uma
unidade. Quando as fêmeas levam crias, os machos dispensam-lhes
atenção constante. Ante qualquer ameaça, o chefe faz uma
demonstração de força batendo com as mãos no peito e emitindo
bramidos. Geralmente isso basta para amedrontar os animais
predadores. (...)
Tão sociáveis quanto os gorilas, os chimpanzés movimentam-se em grupos
ainda mais numerosos, atingindo às vezes o respeitável número de 80, na época da
maturação das frutas. Embora os agrupamentos se mostrem pouco estáveis com relação
aos indivíduos que os compõem, as fêmeas com crias tendem a unir-se com dois
machos, enquanto que as que não têm filhos se juntam com outros machos em grupos
separados. Contrastando com os bandos de babuínos, que parecem ser dominados pelo
macho maior e mais vigoroso, os grupos de chimpanzés são comandados pelo membro
mais idoso e mais experiente – situação semelhante à de certas comunidades humanas.
Muito resta ainda que estudar acerca do comportamento dos chimpanzés na
selva. Entre outras coisas, tal sorte de estudo poderia trazer algum esclarecimento sobre
os ciclos vitais e as normas de comportamento dos mais remotos e verdadeiros
ancestrais do próprio homem – comportamento esse agora oculto em resíduos fósseis
ressequidos e poeirentos. (...)
Quando se separa do grupo, as probabilidades de sobrevivência de um babuíno
se reduzem quase a zero. Mais que qualquer outro primata, os babuínos tornaram-se
dependentes, constituindo bandos, a fim de proteger-se e criar os filhos. Um leão é
criado pela mãe para tornar-se auto suficiente; um babuíno, em contraste, é preparado
para ocupar o lugar adequado na ordem social do grupo de que faz parte.
A história dessa infância lembra, sob vários aspectos, o provável
desenvolvimento do homem primitivo. Durante um período de 11 a 15 meses,
correspondente à primeira infância, o filhote de babuíno raramente se afasta da mãe,
agarrando-se ao pelo dela ou trepando-lhe às costas. Chega, então, uma época em que
participa das brincadeiras de outros babuínos jovens, com os quais aprende os
rudimentos do comportamento social dos adultos. Durante esse tempo o jovem babuíno
firma relações de amizade que podem prolongar-se por muitos anos. Após a puberdade,
os machos encontram seu lugar na hierarquia adulta da força, tomando parte na
responsabilidade da defesa do grupo. As fêmeas tornam-se mães e, juntamente com as
crias, vão constituir objeto de proteção dos demais elementos adultos.

Ruth Moore. BIBLIOTECA DA NATUREZA LIFE – A Evolução.


Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1977, p. 137-142.

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SAMUEL KOENIG: ORIGENS DA FAMÍLIA
Samuel Koenig (1899-1972) era sociólogo no Brooklyn
College, Nova York. De origem austríaca, foi para os Estados
Unidos em 1921, estudou na universidade de Minnesota, formou-
se na universidade de Marquette em 1929 e se tornou PhD em
1935 na universidade de Yale. O texto abaixo foi retirado da obra
Elementos de Sociologia. Antes de ler, pesquise o significado dos
termos horda e clã. Depois leia e responda: quais as principais
teorias sobre o surgimento da família?

De todas as instituições estudadas pelo sociólogo, aquela com a qual temos um


contato mais íntimo e, talvez, o maior interesse é a família. Ela tem, por isso, sido
submetida a extensas análises, principalmente nos últimos anos, quando suas formas e
funções na sociedade ocidental parecem estar passando por grandes revisões. (...)
Devemos, em primeiro lugar, estabelecer uma distinção entre ―família‖ e
―casamento‖. A família é um tipo de agrupamento ou organização; o casamento é uma
relação, que Bronislaw Malinowski definiu como ―um contrato para a produção e
manutenção de filhos‖. Meyer F. Nimkoff, em Marriage and the Family, definiu a
família como ―uma associação mais ou menos durável de marido e mulher, com ou
sem filhos‖. Conforme Sumner e Keller, a família é ―uma miniatura da organização
social, incluindo pelo menos duas gerações, caracteristicamente formada sobre vínculo
sanguíneo‖. Assim, pode-se considerar que a família é anterior ao casamento, pois é
provável que o homem vivesse em famílias antes de regularizá-las pelo casamento.
Família é uma palavra de origem latina. Inicialmente designava um grupo constituído
de pais, filhos, servos e escravos. O termo grego correspondente é oikonomia, do qual
saiu a palavra economia: isto implica que a família é essencialmente uma organização
econômica.
O tamanho e a composição da família variam muito, dependendo da sociedade e
da época. (...) No aspecto puramente biológico, a função da família é perpetuar a raça.
Na família humana, porém, há outras funções um pouco menos importantes do que a
básica de propagação da espécie. São funções econômicas, religiosas, protetoras,
educacionais e de prestígio, que recebem maior ou menor ênfase segundo a sociedade e
a época. Entre as principais funções da família estão, primeiro, a socialização dos
indivíduos para que se tornem membros da sociedade em que vivem e, segundo, a
perpetuação das realizações culturais do grupo. (...)
A família é encontrada em toda sociedade humana; pode-se dizer mesmo que
essa instituição precede o homem, pois existe em muitas espécies de animais,
particularmente nos mamíferos. O biólogo americano Herbert S. Jennings salientou que
entre os animais cuja prole depende de um dos pais para sua subsistência há uma
relação mais ou menos durável entre os dois. (...)
Como acontece com outras instituições básicas, apenas se pode inferir a origem
da família e as formas que assumiu no passado, e não as estabelecer definitivamente. O
mesmo se dá em relação às razões de seu aparecimento. Por isso, desenvolveram-se
diversas teorias sobre o que aconteceu no início. Enquanto alguns pesquisadores
acreditam que a pequena horda for a forma original da organização humana, outros
argumentam que foi a família. Sumner e Keller sustentam que o pequeno bando,
fracamente unido, geralmente organizado com base em parentesco sanguíneo, mais do
que em diferenças de idade, foi o primeiro grupo societário. Outra autoridade no
assunto, Robert Briffault, concebeu-o como um clã materno, ou um grupo de mães e

18
seus filhos. A família, para esse escritor, foi um desenvolvimento posterior. Por outro
lado, Westermarck expressou a opinião de que a família foi o núcleo original da
sociedade. Divergindo das duas opiniões, Malinowski afirmou que a família e o grupo
maior, ou clã, coexistiam, que condições dentro da sociedade determinaram qual era
mais importante e, portanto, nem a família nem o grupo maior podem ser considerados,
universalmente, como anterior ou posterior ao outro. Alguns estudiosos do assunto,
dentre os quais Briffault, tenderam a considerar os fatores econômicos de importância
capital para o surgimento e perpetuação da família, enquanto outros acentuam os
fatores psicológicos, sexual e outros. (...)
Há diversas teorias sobre a forma original da família. No começo do
desenvolvimento da Antropologia, em meados do século passado, apareceu uma teoria,
desenvolvida mais ou menos independentemente e com variações acrescentadas por
diversos pensadores, de que a família patriarcal, isto é, a família em que o pai é o único
dirigente do lar, foi o tipo mais antigo. O principal defensor dessa teoria foi o jurista
inglês Henry Sumner Maine, que expos a ideia em Ancient Law, publicada em 1861.
No mesmo ano, entretanto, um jurista suíço, interessado em Antropologia, Johann J.
Bachofen, publicou Das Mutterrecht (Direito Maternal), em que defendeu uma teoria
oposta. Baseando-se em dados coletados a respeito de diversas civilizações antigas,
Bachofen afirmou que, nos primeiros tempos, a humanidade vivia num estado de
promiscuidade e que o mais antigo tipo de família foi o matriarcal, em que as mulheres
gozavam de supremacia religiosa e política. Entre os adeptos da teoria de Bachofen
está Lewis H. Morgan, às vezes mencionado como ―o pai da Antropologia americana‖.
Seu livro Ancient Society, publicado em 1877, onde expos suas ideias, baseou-se, ao
contrário da obra de Bachofen, em pesquisas reais, de primeira mão, entre os índios,
particularmente os iroqueses, com os quais viveu durante muito tempo. Morgan
afirmou que a família se desenvolveu através de vários estágios, desde o mais baixo – a
promiscuidade – até o mais alto – a monogamia – e que o matriarcado primitivo cedeu
lugar, com o progresso da sociedade, ao patriarcado mais adiantado. Opinião
semelhante foi expressa por outro estudioso dessa instituição, J. F. McLennan, em
Primitive Marriage.
As teorias formuladas por Maine, Bachofen e Morgan têm sido consideradas
por antropólogos e sociólogos como contribuições valiosas, constituindo primeiras
tentativas numa época de quase completa falta de informações. A acumulação de dados
e provas cientificamente coletados, contudo, provocou o abandono quase completo
dessas teorias, especialmente a referente ao matriarcado.
Um dos primeiros a reptar sua validade foi George Elliot Howard, cuja
principal obra, A History of Matrimonial Institutions, apareceu em 1904. Pesquisas
posteriores, notadamente as de Malinowski, desaprovaram totalmente a teoria do
matriarcado. Atualmente, os entendidos afirmam que um verdadeiro matriarcado
provavelmente jamais existiu. É verdade que a família matrilinear (aquela em que a
descendência é reconhecida e a propriedade transmitida através da mãe) existiu, e ainda
existe, em inúmeras sociedades primitivas, mas isso não implica o predomínio da mãe,
pois nesse sistema as mulheres podem estar em posição subordinada. No patriarcado,
por outro lado, em que os homens são definitivamente a autoridade, as mulheres podem
desfrutar muitos direitos e privilégios. A alegação de que o sistema patriarcal significa
uma cultura superior é também rejeitada, pois esse sistema é encontrado em povos dos
mais baixos níveis de cultura primitiva, enquanto o sistema matrilinear prevalece em
povos dos mais altos níveis de desenvolvimento.

KOENIG, Samuel. Elementos de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. 5ªed. p. 156-162.

19
LÉVI-STRAUSS: FORMAS ELEMENTARES DO PARENTESCO
Claude Lévi-Strauss (1908-2009) foi um antropólogo
francês. Produziu uma vasta obra sobre os povos indígenas,
analisando suas estruturas de parentesco, seus costumes, técnicas
e vários outros aspectos. Seu convívio com esses povos
(incluindo os indígenas do Brasil) o fez chegar a conclusões
importantes sobre a cultura e a sociedade. Em sua obra As
Estruturas Elementares do Parentesco, fez uma distinção entre
estruturas elementares e estruturas complexas de parentesco.
Conforme escreveu:

“Entendemos por estruturas elementares do parentesco os sistemas nos quais a nomenclatura


permite determinar imediatamente o círculo dos parentes e os dos aliados, isto é, os sistemas
que prescrevem o casamento com um certo tipo de parente. Ou, se preferirmos, os sistemas que,
embora definindo todos os membros do grupo como parentes, dividem-nos em duas categorias,
a dos cônjuges possíveis e a dos cônjuges proibidos. Reservamos o nome de estruturas
complexas para os sistemas que se limitam a definir o circulo dos parentes e que deixam a
outros mecanismos, econômicos ou psicológicos, a tarefa de proceder à determinação do
cônjuge. A expressão "estruturas elementares" corresponde, portanto, neste trabalho, ao que os
sociólogos chamam habitualmente casamento preferencial. Não pudemos conservar esta
terminologia porque o objeto fundamental deste livro é mostrar que as regras do casamento, a
nomenclatura, o sistema dos privilégios e das proibições são aspectos inseparáveis de uma
mesma realidade, que é a estrutura do sistema considerado.”

LÉVI-STRAUS, C. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis: Vozes, 1982, p.19.

O texto abaixo foi retirado da obra A Família. Nela, o autor faz uma crítica à visão
evolucionista de que as famílias promíscuas e poligâmicas seriam típicas de períodos
primitivos, enquanto a família monogâmica seria característica das sociedades
avançadas (modernas). Além disso, afirma que embora sejam raros os casos de
sociedade onde não existam laços familiares, não se poderia afirmar a universalidade da
família; ele cita como exemplo os nayar (Malabar, Índia), onde o casamento não criava
laços permanentes entre um homem e uma mulher, sendo praticamente uma cerimônia
simbólica apenas. Leia o texto abaixo e indique as críticas que Lévi-Strauss fez às
visões propagadas sobre a família e seus tipos.

Durante a segunda metade do século XIX e nos princípios do século XX, os


antropólogos trabalhavam sob a influência do evolucionismo biológico. A sua ideia era
ordenar dados de forma a que coincidissem as instituições dos povos mais simples com
uma das primeiras etapas da evolução da humanidade, enquanto que as nossas
instituições corresponderiam às etapas mais avançadas da evolução. Assim, por
exemplo, a família baseada no matrimônio monogâmico – que se considerava, na nossa
sociedade, a instituição mais louvável e apreciada – não podia encontrar-se nas
sociedades selvagens, que neste caso eram equiparadas com as sociedades típicas dos
alvoreceres da humanidade. Assistiu-se, por conseguinte, a uma distorção e a uma
interpretação errônea dos fatos: mais ainda, inventaram-se caprichosamente etapas
―primígenas‖ da evolução tais como o ―matrimônio de grupo‖ e ―promiscuidade‖, para
explicar o período em que o homem era tão bárbaro que desconhecia as sutilezas da
vida social próprias do homem civilizado. Qualquer costume diferente dos nossos era
cuidadosamente selecionado como vestígio de um tipo mais antigo de organização

20
social.
Esta forma de abordagem do problema perdeu a validade quando a acumulação
de dados tornou evidente o seguinte fato: o tipo de família característico da civilização
moderna, ou seja, baseado no matrimônio monogâmico, no estabelecimento
independente do casal recém casado, na relação afetiva entre pais e filhos, etc., se bem
que nem sempre seja fácil de reconhecer por detrás da complicada rede de estranhos
costumes e instituições dos povos primitivos, é pelo menos patente nas sociedades que
parecem ter permanecido – ou voltado – ao nível cultural mais simples. Tribos como os
andamaneses das ilhas do Oceano Índico, os fueguinos da extremidade meridional da
América do Sul, os nambicuara do centro do Brasil e os bosquímanes da África do
Sudoeste – para citar apenas alguns exemplos – que vivem em pequenos bandos
seminômades, que carecem ou possuem uma organização política muito simples e que
têm um nível tecnológico muito baixo – alguns destes desconhecem os tecidos, a
cerâmica e a construção de choças – não têm outra estrutura social para além da
família, a maior parte das vezes baseada na monogamia. (...)
Durante os últimos anos, os antropólogos fizeram grandes esforços para
demonstrar que, inclusive entre os povos que praticam o empréstimo de esposas (...)
estes costumes não devem ser interpretados como sobrevivência do ―casamento de
grupo‖, porquanto coexistem com a família e, para além do mais, implicam o seu
reconhecimento. (...) Em muitos casos sucede que as famílias poligâmicas não são mais
do que uma combinação de várias famílias monogâmicas nas quais uma mesma pessoa
desempenha o papel de vários cônjuges. (...)
Evidente se torna que o problema da família não deve ser tratado de forma
dogmática. De fato, é uma das questões mais escorregadias dentro do estudo da
organização social. Pouco sabemos acerca do tipo de organização social que prevaleceu
nas primeiras etapas da humanidade, já que os restos humanos que possuímos dos
paleolítico superior, ou seja, de há uns 60 000 anos, consistem fundamentalmente em
fragmentos de esqueletos e utensílios de pedra que não proporcionam senão uma
informação muito insuficiente acerca das leis e costumes sociais. Por outro lado,
quando consideramos a ampla diversidade de sociedades humanas que foram
observadas, digamos, desde Heródoto até os nossos dias, a única coisa que podemos
dizer é o seguinte: a família conjugal e monogâmica é muito frequente.
Tentar resolver este problema implica, em primeiro lugar, definir aquilo que
entendemos por ―família‖. (...) Tal palavra serve para designar um grupo social que
possui pelo menos as três características seguintes: 1) Tem a sua origem no casamento.
2) É formado pelo marido pela esposa e pelos filhos nascidos do casamento, ainda que
seja concebível que outros parentes encontrem o seu lugar junto do grupo nuclear. 3)
Os membros da família estão unidos por a) laços legais, b) direitos e obrigações
econômicas, religiosas e de outro tipo c) uma rede precisa de direitos e proibições
sexuais, além duma quantidade variável e diversificada de sentimentos psicológicos
tais como amor, afeto, respeito, temor, etc. (...)
Entre a maior parte dos povos, o casamento tem pouco a ver com a satisfação
do impulso sexual, dado que o ordenamento sexual proporciona numerosas
oportunidades para que ele se verifique; tais oportunidades não são apenas externas ao
matrimônio, mas também, inclusive, por vezes estão em contradição com ele. (...)
Se, como vimos, é certo que as considerações sexuais não são de importância
fundamental para o casamento, as necessidades econômicas estão presentes, em lugar
primordial, em todas as sociedades. Mostramos já que o que converte o casamento
numa necessidade fundamental nas sociedades tribais é a divisão sexual do trabalho.
STRAUSS, Lévi; GOUGH, K.; SPIRO, M. A Família: Origem e Evolução.
Porto Alegre: Editorial Villa Martha, 1980, p. 7-28.

21
ÉMILE DURKHEIM: A FAMÍLIA É UM FATO SOCIAL
Émile Durkheim (1858-1917) foi um sociólogo
francês. Em sua obra As Regras do Método Sociológico,
ele afirma que os fatos sociais são exteriores ao indivíduo,
e que, portanto, suas características não deveriam ser
buscadas nos indivíduos isolados, mas somente no todo,
no grupo. Leia o texto abaixo e responda: por que os fatos
sociais são exteriores ao indivíduo? De que maneira são
inculcadas nas crianças as formas de pensar e agir de uma
sociedade? Por que a família é um fato social?

Eis, portanto, uma ordem de fatos que apresentam características muito


especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo,
e que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõem a
ele. Por conseguinte, eles não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, já
que consistem em representações e em ações; nem com os fenômenos psíquicos, os
quais só têm existência na consciência individual e através dela. Esses fatos
constituem, portanto, uma espécie nova, e é a eles que deve ser dada e reservada a
qualificação de sociais. (...)
Apliquemos esse princípio à sociologia. Se, como nos concedem, essa síntese
sui generis que constitui toda sociedade produz fenômenos novos, diferentes dos que se
passam nas consciências solitárias, cumpre admitir que esses fatos específicos residem
na sociedade mesma que os produz, e não em suas partes, isto é, em seus membros.
Neste sentido, portanto, eles são exteriores às consciências individuais, consideradas
como tais, assim como os caracteres distintivos da vida são exteriores às substâncias
minerais que compõem o ser vivo. Não se pode reabsorvê-los nos elementos sem que
haja contradição, uma vez que, por definição, eles supõem algo mais do que esses
elementos contêm. Assim se acha justificada, por uma razão nova, a separação que
estabelecemos mais adiante entre a psicologia propriamente dita, ou ciência do
indivíduo mental, e a sociologia. Os fatos sociais não diferem apenas em qualidade dos
fatos psíquicos; eles têm outro substrato, não evoluem no mesmo meio, não dependem
das mesmas condições. O que não quer dizer que não sejam, também eles, psíquicos de
certa maneira, já que todos consistem em modos de pensar ou de agir. Mas os estados
da consciência coletiva são de natureza diferente dos estados da consciência individual;
são representações de uma outra espécie. (...)
Que a matéria da vida social não possa se explicar por fatores puramente
psicológicos, ou seja, por estados da consciência individual, é o que nos parece de todo
evidente. Com efeito, o que as representações coletivas traduzem é o modo como o
grupo se pensa em suas relações com os objetos que o afetam. Ora, o grupo não é
constituído da mesma maneira que o indivíduo, e as coisas que o afetam são de outra
natureza. Representações que não exprimem nem os mesmos sujeitos, nem os mesmos
objetos, não poderiam depender das mesmas causas. Para compreender a maneira como
a sociedade representa a si mesma e o mundo que a cerca, é a natureza da sociedade, e
não a dos particulares, que se deve considerar. Os símbolos com os quais ela se pensa
mudam conforme o que ela é.

DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007, 3ª ed.
p. 123, prefácio, XXII, XXIII, XXIV.

22
MISES: A SOCIEDADE SURGIU DO DESEJO DE COOPERAR
Ludwig von Mises (1881 – 1973) foi um economista e teórico social. De origem
austríaca, formulou sua concepção sobre a sociedade e a economia a partir de um viés
diferente da Sociologia clássica: definiu a sociedade como a totalidade das relações
inter-humanas engendradas pela cooperação. Criticando as visões que consideram a
sociedade como uma entidade com vida própria, procurou defini-la apenas como um
aspecto da ação humana. Conforme ele escreveu em Teoria e História:

“Ela (a sociedade) não existe ou vive fora da conduta das pessoas. É uma orientação
da ação humana. A sociedade não pensa nem age. Indivíduos, ao pensar e agir, formam
um complexo de relações e fatos que são chamados de fatos e relações sociais.”

MISES, Teoria e História. Uma Interpretação da Evolução Social e Econômica.


São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2014, p. 182.

Para Mises, a sociedade não é nem a soma de indivíduos, nem uma entidade
dotada de realidade independente. Não é nem anterior, nem posterior ao indivíduo.
Indivíduo e sociedade se formaram conjuntamente ao longo da história, e a transição do
ancestral humano primitivo para o homo sapiens já trouxe consigo os rudimentos de
uma sociedade – ou, o que é a mesma coisa para ele, de uma cooperação social.
O texto abaixo foi retirado da obra Ação Humana. Leia-o e compare com a visão
de Durkheim sobre a sociedade. Quais as diferenças? Anote e explique cada uma.
Responda também: 1) Como surgiram as primeiras famílias e comunidades humanas? 2)
Por que a sociedade não existe?

A sociedade é a consequência do comportamento propositado e consciente. Isso


não significa que os indivíduos tenham firmado contratos por meio dos quais teria sido
formada a sociedade. As ações que deram origem à cooperação social, e que
diariamente se renovam, visavam apenas à cooperação e à ajuda mútua, a fim de atingir
objetivos específicos e individuais. Esse complexo de relações mútuas criadas por tais
ações concertadas é o que se denomina sociedade. Substitui, pela colaboração, uma
existência isolada – ainda que apenas imaginável – de indivíduos. Sociedade é divisão
de trabalho e combinação de esforços. Por ser um animal que age, o homem torna-se
um animal social.
O ser humano nasce num ambiente socialmente organizado. Somente nesse
sentido é que podemos aceitar quando se diz que a sociedade – lógica e historicamente
– antecede o indivíduo. Com qualquer outro significado, este dito torna-se sem sentido
ou absurdo. O indivíduo vive e age em sociedade. Mas a sociedade não é mais do que
essa combinação de esforços individuais. A sociedade em si não existe, a não ser
através das ações dos indivíduos. É uma ilusão imaginá-la fora do âmbito das ações
individuais. Falar de uma existência autônoma e independente da sociedade, de sua
vida, sua alma e suas ações, é uma metáfora que pode facilmente conduzir a erros
grosseiros.
É inútil perguntar se é a sociedade ou o indivíduo que deve ser considerado
como fim supremo, e se os interesses da sociedade devem ser subordinados aos do
indivíduo ou vice-versa. Ação é sempre ação de indivíduos. O elemento social ou
relativo à sociedade é certa orientação das ações individuais. A categoria fim só tem
sentido quando referida à ação. (...)
No quadro da cooperação social podem emergir, entre os membros da

23
sociedade, sentimentos de simpatia e amizade e uma sensação de comunidade. Esses
sentimentos são a fonte, para o homem, das mais agradáveis e sublimes experiências.
São o mais precioso adorno da vida; elevam a espécie animal homem às alturas de uma
existência realmente humana. Entretanto, esses sentimentos não são como tem sido
afirmado, os agentes que engendraram as relações sociais. São fruto da cooperação
social e só vicejam no seu quadro; não precederam o estabelecimento de relações
sociais e não são a semente de onde estas germinam.
Os fatos fundamentais que fizeram existir a cooperação, a sociedade e a
civilização, e que transformaram o animal homem num ser humano, é o fato de que o
trabalho efetuado valendo-se da divisão do trabalho é mais produtivo que o trabalho
solitário, e o fato de que a razão humana é capaz de perceber esta verdade. Não fosse
por isso, os homens permaneceriam sempre inimigos mortais uns dos outros, rivais
irreconciliáveis nos seus esforços para assegurar uma parte dos escassos recursos que a
natureza fornece como meio de subsistência. Cada homem seria forçado a ver todos os
outros como seus inimigos; seu intenso desejo de satisfazer seus próprios apetites o
conduziria a um conflito implacável com seus vizinhos. Nenhum sentimento de
simpatia poderia florescer em tais condições.
Alguns sociólogos têm afirmado que o fato subjetivo original e elementar na
sociedade é uma ―consciência da espécie‖ (F.H. Giddings, The Principles of Sociology.
Nova York, 1926, p. 17.). Outros sustentam que não haveria sistemas sociais se não
houvesse um ―senso de comunidade ou de propriedade comum‖ (R.M. MacIiver,
Society. Nova York, 1937, p. 6-7.). Podemos concordar, desde que estes termos um
pouco vagos e ambíguos sejam corretamente interpretados. Podemos chamar de
consciência da espécie, senso de comunidade ou senso de propriedade comum, o
reconhecimento do fato de que todos os outros seres humanos são virtuais
colaboradores na luta pela sobrevivência, porque são capazes de reconhecer os
benefícios mútuos da cooperação, enquanto que os animais não têm essa faculdade.
Entretanto, não devemos esquecer que são os dois fatos essenciais acima mencionados
que fazem existir tal consciência ou tal senso de existência. Num mundo hipotético,
onde a divisão do trabalho não aumentasse a produtividade, não haveria sociedade. Não
haveria qualquer sentimento de benevolência e de boa vontade.
O princípio da divisão do trabalho é um dos grandes princípios básicos do
devenir cósmico e da mudança evolucionária. Os biologistas tinham razão em tomar
emprestado da filosofia social o conceito de divisão do trabalho e em adaptá-lo a seu
campo de investigação. Existe divisão do trabalho entre as várias partes de qualquer
organismo vivo. Mais ainda, existem no reino animal, colônias integradas por seres que
colaboram entre si; tais entidades, formadas, por exemplo, por formigas ou abelhas,
costumam ser chamadas, metaforicamente, de ―sociedades animais‖. Mas não devemos
jamais nos esquecer de que o traço característico da sociedade humana é a cooperação
propositada; a sociedade é fruto da ação humana, isto é, apresenta um esforço
consciente para a realização de fins. Nenhum elemento desse gênero está presente, ao
que se saiba, nos processos que resultaram no surgimento dos sistemas estruturais e
funcionais de plantas e de corpos animais ou no funcionamento das sociedades de
formigas, abelhas e vespas. A sociedade humana é um fenômeno intelectual e
espiritual. É a consequência da utilização deliberada de uma lei universal que rege a
evolução cósmica, qual seja a maior produtividade da divisão do trabalho. Como em
todos os casos de ação, o reconhecimento das leis da natureza é colocado a serviço dos
esforços do homem desejoso de melhorar suas condições de vida.

MISES, L. Ação Humana. Um Tratado de Economia.


São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil. 3.1ª ed. 2010, p. 183-185.

24
ELY CHINOY: FAMÍLIA E SOCIALIZAÇÃO
O texto abaixo foi retirado da obra Sociedade – Uma Introdução à Sociologia,
de Ely Chinoy. Faça um contraponto com o texto de Durkheim, anotando no caderno os
principais pontos comuns e diferentes; faça a mesma coisa com o texto de Mises visto
anteriormente. Depois responda: 1) Como ocorre o processo de socialização? 2) Qual a
importância dos juízos éticos (certo e errado, bom e mau, etc.) para a formação dos
hábitos e costumes nos seres humanos? 3) Qual a importância da consciência que os
seres humanos possuem da própria identidade pessoal e social? Como isso afeta a
sociedade de uma forma geral?

A vida humana é vida de grupo. O indivíduo isolado é ficção (...). Os homens


não vivem separados, cada qual em busca de uma solução particular para os problemas
de sobrevivência. Vivem juntos, partilhando uma forma comum de vida (uma cultura),
que lhes regula a existência coletiva e lhes proporciona métodos para se adaptarem ao
mundo que os rodeia e controlarem e manipularem, até certo ponto, as forças da
natureza.
Encarando a experiência humana de um ponto de vista sociológico, que acentua
os traços coletivos da vida social e os aspectos partilhados e padronizados do
comportamento, damos a impressão de estar desprezando a pessoa individual. Os
sociólogos estudam a sociedade e a cultura, as relações e normas sociais, as crenças
partilhadas e os valores comuns, a estrutura social e o comportamento padronizado,
como distintos dos indivíduos que se conformam às normas sociais, adotam as crenças
e valores que prevalecem em seu grupo e participam das relações incorporadas em
estruturas sociais, ou deles se desviam. Entretanto, a sociedade e a cultura, bem como
todas as demais abstrações que empregamos, não vivem, não se comportam, não
reagem, não se adaptam, não se ajustam, a não ser em sentido metafórico. Só agem os
indivíduos, sós ou com outros. Tudo o que podemos observar se restringe a esses
indivíduos – que diferem, a certos respeitos, uns dos outros – enquanto frequentam a
escola, assumem compromissos matrimoniais, cuidam de crianças, trabalham, votam,
tomam decisões políticas, escrevem livros, vão à igreja, e se empenham numa série de
outras atividades que constituem um modo de viver. A cultura e a sociedade só se
tornam tangíveis no espírito e nas ações dos indivíduos. (...)
Em certo sentido, porém, a cultura e a sociedade transcendem o indivíduo, pois
não dependem de nenhuma pessoa ou pessoas específicas em cujas atitudes e ações
encontram expressão. (...) A cultura possui uma patente continuidade, que se estende
além da existência dos que a possuem, criam e utilizam, e a estrutura da sociedade
persiste apesar da contínua substituição de seus membros.
Sem a sociedade, o indivíduo não sobrevive. Como vimos anteriormente, os
homens não possuem habilidades nem conhecimentos instintivos e também não
possuem padrões herdados de comportamento, além das respostas automáticas, ou
reflexos, como agarrar, o chupar, o reflexo patelar, o piscar, e assim por diante. Os
instrumentos com que enfrentam o meio e organizam a existência coletiva derivam da
cultura. Além disso, a criança requer não apenas a satisfação de necessidades físicas,
através de outras pessoas, durante um tempo relativamente longo em confronto com
outros animais, mas também precisa da sua atenção e do seu cuidado. (...)
O processo de socialização, que transforma a matéria-prima humana num ser
social, executa duas funções importantes. De um lado, prepara o indivíduo para os
papeis que há de desempenhar, fornecendo-lhe o repertório necessário de hábitos,

25
crenças e valores, os padrões apropriados de reação emocional e modos de percepção,
as habilidades e o conhecimento requeridos. De outro lado, transmite o conteúdo da
cultura de uma geração a outra, provê a sua persistência e continuidade.
O principal órgão nesses processos é, geralmente, a família ou o grupo de
parentesco. Acudindo às necessidades do bebê indefeso, os pais – inicialmente, na
maioria dos casos, a mãe – estabelecem com ele uma relação que lhe será de
importância central no desenvolvimento futuro. A criança descobre como assegurar a
satisfação de suas exigências corporais pela comunicação com outros, através do som e
dos gestos. A princípio, como membro largamente passivo da família e, depois, mais
ativamente, aprende a desempenhar papeis apropriados e adquire habilidades, atitudes e
modos de reagir que lhe permitem participar da vida social fora do círculo familial.
Porque nossos laços primeiros e mais estreitos nos ligam, normalmente, a pais, irmãos
e, às vezes, a outros familiares, a experiência e as expectativas familiais têm um peso
emocional especial e são, por conseguinte, de particular importância no modelar a
personalidade e no transmitir exigências e expectativas culturais. (...)
A socialização é um processo complexo, de múltiplas facetas. À medida que
cresce o indivíduo, seus impulsos biológicos são dirigidos para canais culturalmente
padronizados. As respostas apropriadas são ―impostas‖, as não apropriadas ―extintas‖
por um sistema de prêmios e castigos. Ele aprende, através de gestos ou ações, a
conseguir comida, carinhos ou a eliminação do desconforto, e a responder às ações dos
outros como se espera que responda. Finalmente, passa a fazer três refeições por dia,
em lugar de quatro, e pegar na comida com instrumentos em lugar de enfiá-la na boca
com os dedos, a executar suas funções corporais na ocasião adequada e no lugar
adequado. Grande parte dessa aprendizagem, portanto, consiste no desenvolvimento de
hábitos que se conformam aos costumes da sociedade.
A canalização de impulsos e a aquisição de hábitos aceitáveis não são processos
mecânicos, mas estão ligadas a juízos do que é certo e do que é errado, do que é bom e
do que é mau. Não se aprende apenas a fazer alguma coisa de determinada maneira,
senão também que esta é a maneira certa ou correta de fazê-lo. Os valores, que impõem
e sustentam muitos hábitos, são aprendidos principalmente dos pais, às vezes
didaticamente pela instrução direta, em parte pelas expressões de aprovação ou
desaprovação da conformidade ou da não conformidade. (...) As crianças adquirem
valores – e atitudes e crenças – não apenas através de preceitos explícitos e
recompensas ou castigos manifestos, mas também através da sugestão, da implicação,
do exemplo. (...)
O indivíduo, entretanto, é mais que um simples feixe de hábitos e valores,
atitudes e crenças, todos aprendidos e culturalmente padronizados. Esse feixe de
elementos psicológicos está organizado numa estrutura, a ―personalidade‖, cujas partes
se relacionam mutuamente e não se acham ordenadas ao acaso. Uma personalidade,
portanto, possui atributos que a tornam mais do que a mera soma de suas partes. (...)
De importância central da personalidade é o eu, a consciência e o sentimento da
própria identidade pessoal e social que tem o indivíduo. O eu exerce uma função de
integração para a personalidade; a significação de hábitos, atitudes, valores e crenças
depende, quase sempre, da relação deles com os sentimentos da pessoa em relação ao
seu eu. Reagimos mais pronta e mais intensamente aos acontecimentos externos que
colidem com nossa imagem e nossas avaliações de nós mesmos do que àqueles em que
o nosso eu não está envolvido. (...)

CHINOY, Ely. Sociedade – Uma Introdução à Sociologia.


São Paulo: Cultrix, 3ª ed., 1973, p. 113, 116, 120-1, 124-5.

26
SPENCER: A SOCIEDADE COMEÇOU COM
OS AGREGADOS SOCIAIS SIMPLES
Herbert Spencer (1820 – 1903) é considerado um dos
grandes nomes da sociologia britânica. Através da influência de
seus pais que eram quakers (de origem protestante), Spencer
possuía uma mente independente, voltada ao individualismo.
Essa perspectiva individualista é o ponto de partida de suas
análises sociológicas, característica essa que o distingue
radicalmente da sociologia francesa.
Influenciado pelo pensamento britânico, Spencer afirmou,
muito antes de Mises, que a cooperação era o princípio básico da
sociedade: desde os tempos mais remotos, os seres humanos
despenderam esforços para satisfazer suas necessidades, e só
obtiveram sucesso quando começaram a cooperar entre si, afirmou Spencer. Em sua
obra Principles of Sociology, escreveu:

“A simples reunião de indivíduos num grupo não faz deles uma sociedade. Uma
sociedade, no sentido sociológico, é formada apenas quando, além da justaposição, há
cooperação. Enquanto os membros do grupo não combinam suas energias para
alcançar algum fim ou fins comuns, há pouco para mantê-los juntos. Eles são
impedidos de se separar apenas quando os desejos de cada um são mais atendidos pela
união de seus esforços com os dos outros, do que agindo sozinho.
Cooperação, então, é ao mesmo tempo aquilo que não pode existir sem uma
sociedade e aquilo para o qual existe uma sociedade. Pode ser uma junção de muitas
forças para afetar algo que a força de um único homem pode afetar; ou pode ser uma
repartição de atividades diferentes para pessoas diferentes, que separadamente
participam nos benefícios das atividades uns dos outros. O motivo para se agir em
conjunto, originalmente, pode ser a defesa contra inimigos; ou pode ser a obtenção
mais fácil de alimento, pela perseguição ou de outra maneira; ou pode ser, e
comumente é, ambos. Em qualquer caso, no entanto, as unidades passam do estado de
perfeita independência para o estado de dependência mútua; e tão rapidamente quanto
fazem isto, se tornam unidos numa sociedade, com razão assim chamada.”
SPENCER, H. Principles of Sociology. New York: D. Appleton and Company, 1898, vol. II, p.244

Observe que quando Spencer se refere à cooperação, ele tem em mente não
apenas uma ação voluntária entre os membros formadores do grupo, mas também, e
principalmente, uma relação onde cada um, sem ter a intenção de cooperar e agindo
apenas segundo seu próprio interesse, acaba contribuindo para o bem-estar de todos os
membros (sem ter consciência disso). Essas são as duas formas de organização que
proporcionam a cooperação entre os membros. Conforme ele mesmo escreveu:

“Esta organização social, necessária como um meio para a ação combinada, é de dois
tipos. Embora estes dois tipos geralmente coexistam e estejam mais ou menos
interconectados, contudo eles são distintos em suas origens e naturezas. Existe uma
cooperação espontânea que cresce sem ser pensada, durante a busca de fins privados;
e há uma cooperação que, conscientemente idealizada, implica reconhecimento distinto
de fins coletivos. As maneiras pelas quais os dois são respectivamente estabelecidos e
realizados apresentam contrastes marcantes.”
SPENCER, op. cit., p. 244.

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Cada forma de cooperação é característica de um tipo de sociedade, de acordo
com Spencer. Ao primeiro tipo ele dá o nome de Agregados Sociais Simples, e ao
segundo, Agregados Sociais Complexos. As primeiras formas de agrupamento humano,
incluindo a família, eram do tipo simples, e as sociedades modernas industriais, do tipo
complexo.
Nos agregados sociais mais simples, cada porção (parte) é semelhante às outras
e, portanto, possuem funções semelhantes. Por exemplo, em sociedades primitivas,
como as tribais, os indivíduos se assemelham, possuem quase que as mesmas aptidões
físicas e mentais, e também executam tarefas semelhantes. As partes são pouco
dependentes umas das outras. Todos são, ao mesmo tempo, caçadores, guerreiros,
artífices de suas próprias armas, etc. Além disso, nessas sociedades o todo pode ser
dividido mais facilmente e formar novas unidades, já que são semelhantes. E ainda,
nesse tipo de agregado a posição de cada indivíduo é fixa; o indivíduo deve subordinar
seus fins individuais aos fins coletivos, sociais. Em suma, deve viver em função da
comunidade. A ideia de propriedade privada ainda é mal definida, embora não seja
inexistente.
Nos agregados sociais complexos, é diferente. Há uma interdependência maior
entre as partes. Por exemplo, se for cortado o fornecimento de matérias-primas para
certos tipos de indústria, isso pode comprometer toda a sociedade, talvez aniquilá-la.
Esta característica é devida à grande especialização das partes, o que significa a
existência de uma grande divisão do trabalho. Nesses agregados o indivíduo age tendo
em vista fins particulares, e não fins coletivos. A individualização se torna grande, e os
fins sociais exercem pouca influência sobre cada integrante. A ideia de propriedade
privada já é muito desenvolvida. E como exemplo de agregados sociais mais complexos
teríamos a nossa sociedade moderna.
A passagem de um tipo de agregado social para outro ocorreu ao longo de um
processo evolutivo, assim como aconteceu com os organismos, desde a modificação dos
tipos mais simples, no início da formação da Terra, até o aparecimento dos mais
complexos. Este crescimento do mais simples para o mais complexo apenas é possível
quando a estrutura se torna mais complexa. Ela deve ser plástica e, ao mesmo tempo, ter
a capacidade de retenção. Nos organismos, vários fatores podem obstruir a modificação
da estrutura e, consequentemente, a evolução dos mesmos. Na sociedade, igualmente.
A conclusão a que chegamos é que nas primeiras comunidades humanas o
sentimento coletivista era intenso, enquanto que a ideia de individualidade era pouco
desenvolvida. Por isso, a cooperação de que participavam não se realizava com as
mesmas ideias complexas que nós, modernos, possuímos hoje. Visava-se acima de tudo
o ―bem coletivo‖. Essa característica é marcante em todos os povos primitivos, em todas
as tribos analisadas até hoje. Alguns teóricos utilizaram o nome de ―comunismo
primitivo‖ para se referirem a esses povos.

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ROGER SCRUTON: FAMÍLIA E AUTORIDADE
Roger Scruton (1944-2020) foi um filósofo inglês. O texto
abaixo é da obra O que é Conservadorismo. Leia-o e responda: 1) por
que o surgimento da família não pode ser pensado em termos de um
contrato entre as partes? 2) Qual a principal diferença entre o
pensamento de Scruton e de Mises? 3) Qual o papel da autoridade na
formação do afeto nas crianças?

Pensemos na família. Eu já sugeri que seria absurdo pensar nos laços familiares como
sendo contratuais, ou em obrigações familiares como tendo surgido, de algum modo, de um
livre abandono da autonomia ou até mesmo de algum acordo implícito que ascende até a
consciência num momento posterior, por assim dizer. Aqui a linguagem do contrato, até
mesmo como metáfora, falha em estabelecer contato com os fatos. E é por causa disso que
individualistas radicais – aqueles que não conseguem reconhecer virtude alguma em qualquer
arranjo que, em última instância, não derive da escolha consciente – começaram a atacar a
família, a fabricar a ideia de sua ―dispensabilidade‖, a declarar guerra a ela por considera-la
uma forma de ―opressão patriarcal‖, da qual mulheres e crianças devem ser libertadas caso
queiram desfrutar de uma liberdade e satisfação próprias.
Se fosse acidental o fato de os seres humanos crescerem para amar, necessitar e
depender uns dos outros; se fosse acidental o fato de as crianças se sentirem ligadas a seus pais
e os pais a suas crianças por meio de vínculos inexoráveis que circunscrevem as possibilidades
do prazer e da dor posteriores; se fosse acidental o fato de a vida doméstica ser até hoje (exceto
no caso de uma minoria) tão difícil quanto no passado, então talvez a ―crítica radical‖ tivesse
alguma força. Os conservadores certamente se mostrarão céticos quanto a isso. Suas raras
tentativas de expressar a verdade sobre o mundo provavelmente se baseiam na observação e
carregam uma descrença na mutabilidade imediata da natureza humana. Portanto, eles
admitirão que esses fatos não são acidentais e que o vínculo familiar é dispensável apenas se o
prazer, a diligência, o amor, a tristeza, a paixão e a obediência também o forem – isto é, apenas
no caso da minoria que pode persuadir-se (por qualquer razão) a renunciar a essas coisas.
A família é, portanto, uma pequena unidade social que compartilha com a sociedade
civil a condição única de ser não contratual, de surgir (tanto para as crianças como para os pais)
não da escolha, mas da necessidade natural. E (para inverter a analogia) é óbvio que o vínculo
que liga o cidadão à sociedade não é, do mesmo modo, voluntário, mas um tipo de relação
natural. (...)
Desde o início fica claro que uma criança deve ser influenciada pelo poder de seus
pais: seu amor por eles conceder-lhes-á esse poder, e os pais, mesmo quando permissivos, não
se evadem de seu exercício, assim como um oficial não deixa de comandar suas tropas quando
permite que essas fiquem constantemente à vontade. Uma criança é o que é em virtude da
vontade de seus pais e, consequentemente, eles têm a obrigação inalienável de formá-la e de
influenciar o desenvolvimento dela. Nesse mesmo processo está o poder, e faz-se necessário
um poder estabelecido, uma vez que ele já reside com o pai desde o primeiro momento em que
a criança está no mundo. Ora, há uma noção segundo a qual toda criança não apenas tem
necessidade de que seus pais exerçam esse poder, mas também exigirá que eles o façam, por
estimar a proteção deles. Não pode haver um ato de amor a uma criança (e nenhum ato de
amor) que não seja, em primeiro lugar, um exercício de poder estabelecido. Do contrário, como
a criança poderia reconhecer, dentre todos os seres que a circundam, aquele que é sua origem,
isto é, sua principal proteção e sua fonte de amor? Certamente, a criança deve sentir a
influência de uma vontade em sua vida e de um desejo por sua vida, além do seu próprio. Ela
deve sentir o limite gerado pelo amor de outra pessoa por ela. E a criança só é tirada de sua
autoimersão e levada a reconhecer seu pai como um ser autônomo (um ser que não apenas lhe
dá amor, mas o dá livremente e é a quem ela deve amor em retribuição) quando ela reconhece a
existência de um poder objetivo sobre o que fará.
SCRUTON, R. O que é conservadorismo. São Paulo: É Realizações, 2015, p.69-71.

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RELIGIÃO

A religião é tão antiga quanto a humanidade. Desde os primórdios, quando se


formaram os primeiros agrupamentos humanos, as pessoas atribuíram características
sagradas a objetos, pessoas e rituais, guiando suas condutas a partir de tal significado, e
também esperando que outras pessoas assim o façam.
O caráter sagrado de algo não vem da reação de um único indivíduo; é
necessário que outros também tenham a mesma expectativa e a mesma reação. Os
rituais religiosos são realizados mais em meios coletivos do que de forma privada, isto
é, as pessoas que participam do fenômeno religiosos visam muitos mais fins coletivos
do que fins particulares. Isso ajuda a explicar por que o pensamento religioso esteve tão
enraizado nas sociedades primitivas, já que nestas o sentimento coletivista é muito forte.
Surgiram ao longo da história muitas teorias sobre a religião. Os iluministas
franceses, com exceção de Montesquieu, viam-na como o oposto ao ―espírito das
luzes‖, isto é, como sinônimo de atraso, irracionalidade e, portanto, algo que deveria ser
combatido; segundo Voltaire, a religião era fruto da estupidez das ralés. Já os
iluministas britânicos não foram hostis à religião, pelo contrário, viam nela um
instrumento que promove a convivência pacífica e respeitosa entre as pessoas,
possuindo um papel de sancionadora da moral.
Não se sabe ao certo como e por que surgiu a religião, se pela busca da
compreensão de algo que ultrapassa os limites do conhecimento humano, se pela
necessidade de separação entre ―corpo‖ e ―alma‖, ou se por alguma intuição inata
relativa à existência de um ser supremo e superior, ou quaisquer outros motivos. O que
é mais importante à Sociologia é explicar o fenômeno religioso como uma instituição,
suas formas assumidas em várias épocas e lugares e principalmente a função
desempenhada em cada sociedade – incluindo a nossa. Além disso, explicar como a
religião se inter-relaciona com outras instituições ou com outros aspectos da vida dos
seres humanos – comércio, política, moral, etc.
Em qualquer sociedade, o fenômeno religioso pode ser observado em crenças e
rituais considerados sagrados; entretanto, é necessário encontrar definições adequadas
para entendermos onde e como a religião ocorre. Essas definições serão dadas ao longo
das leitura dos textos que se seguem.

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MONTESQUIEU: RELIGIÃO E PROGRESSO SOCIAL
Charles Louis de Secondat, barão de Montesquieu
(1689 - 1755) foi um filósofo francês. Viajando por vários
países e regiões distantes, conheceu costumes e leis
diferentes, o que lhe permitiu desenvolver uma ampla visão
sobre muitos assuntos relacionados à sociedade.
Embora faça parte do Iluminismo francês, seu
pensamento diverge do desses teóricos, podendo ser
considerado como uma exceção para a época. Isso se
reflete, entre outras coisas, na postura que adota perante a
religião: ao invés de criticá-la, como fizeram seus compatriotas (por exemplo, Voltaire),
Montesquieu reconheceu sua importância para a humanidade, principalmente a religião
cristã.
Montesquieu é considerado por muitos como o principal precursor da Sociologia
na França. Embora esta área do conhecimento não existisse ainda, seus principais temas
e objetos de estudo já eram analisados por Montesquieu, tais como a diversidade
humana e social, a proposta de colocar ordem no caos social através do estudo das leis
que regem a sociedade, tipos de governo, educação, direito civil, comércio, família,
religião e muitos outros.
Leia o texto abaixo e indique qual a importância da religião para Montesquieu.

A religião cristã está afastada do puro despotismo: é que, sendo a brandura tão
recomendada no Evangelho, ela se opõe à cólera despótica com a qual o príncipe faria
justiça e exerceria suas crueldades.
Proibindo esta religião a pluralidade de esposas, os príncipes são menos
enclausurados, menos separados de seus súditos e, consequentemente, mais homens;
estão mais dispostos a fazer leis e mais capazes de sentir que não podem tudo.
Enquanto os príncipes maometanos condenariam incessantemente à morte, ou
são mortos, a religião, entre os cristãos, torna os príncipes menos tímidos e, consequen-
temente, menos cruéis. O príncipe confia em seus súditos, e os súditos no príncipe.
Coisa admirável! A religião cristã, que parece não ter outro objetivo senão a felicidade
na outra vida, proporciona também a nossa nesta vida.
É a religião cristã que, apesar da grandeza do império e do vício do clima,
impediu o despotismo de se estabelecer na Etiópia, e levou para o centro da África os
costumes da Europa e suas leis.
O príncipe herdeiro da Etiópia goza de um principado, e dá aos outros súditos o
exemplo de amor e de obediência. Bem próximo desse país, vemos o maometismo
mandar encerrar os filhos do rei de Senaar; com sua morte, o Conselho os manda
degolar em benefício do que sobe ao trono.
Que se ponham, de um lado, diante dos olhos as chacinas contínuas dos reis e
dos chefes gregos e romanos; e, de outro, a destruição dos povos e das cidades pelos
mesmos chefes; Timur e Gengis-Cã, que devastaram a Ásia; e veremos que devemos
ao cristianismo, no governo, certo direito político, e na guerra certo direito das gentes,
que a natureza humana não poderia reconhecer de modo suficiente.
É o direito das gentes que faz com que, entre nós, a vitória deixe aos povos
vencidos estas grandes coisas: a vida, a liberdade, as leis, os bens, e sempre a religião,
desde que não nos deixemos cegar.

MONTESQUIEU, O Espírito das Leis. Livro XXIV, cap. III.

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FRÉDÉRIC LE PLAY: FUNÇÃO DAS CRENÇAS RELIGIOSAS
Pierre-Guillaume-Frédéric Le Play (1806 – 1882)
foi um engenheiro de minas e, posteriormente, teórico
das questões sociais, por isso mesmo considerado como
um dos precursores da Sociologia. Embora seja
reconhecido pelo desenvolvimento de técnicas de
pesquisas sistemáticas no âmbito da família, sua análise
baseia-se na totalidade social, a qual inclui religião,
política, economia, etc., incluindo a relação entre
progresso material e moral. Ao visitar a Inglaterra em
1836, comparou a estabilidade daquela sociedade com a
desordem vivida por outras regiões da Europa,
principalmente a França, e chegou à conclusão de que o
sentimento antirreligioso levava à desagregação social, enquanto que o respeito pela
religião levava à harmonia e à prosperidade.
O texto abaixo foi retirado de sua obra La Réforme de la société. Leia-o e
compare com o texto de Montesquieu. O que eles têm em comum e no que são
diferentes? Depois responda: 1) Segundo Le Play, existe alguma tendência inata nos
seres humanos? Se sim, qual é essa tendência? 2) Qual a importância do Decálogo para
o progresso das sociedades, desde os tempos mais remotos?

O estudo metódico das sociedades europeias me ensinou que a felicidade


individual e a prosperidade pública são proporcionais à energia e à pureza das
convicções religiosas. Afirmo, sem temor algum, que qualquer investigador que
começar de novo este estudo segundo as regras do método, isto é, com um espírito
despojado de toda ideia preconcebida, será levado à mesma conclusão pela evidência
dos fatos.
Todas as investigações sobre o passado, feitas com a ajuda de historiadores
competentes, chegam a este resultado. Em todas as idades da história, desde as épocas
prósperas do antigo Egito até as da cristandade, foi observado que os povos imbuídos
das mais firmes crenças em Deus e na vida futura se elevaram sempre rapidamente
sobre os demais, tanto pela virtude e talento como pelo poderio e riqueza.
Os dez preceitos do Decálogo lembram aos homens a distinção entre o bem e o
mal em fórmulas simples, facilmente compreendidas pelas inteligências menos
desenvolvidas. Sob certas influências, cuja ação se manifestou o tempo todo, estes
preceitos se impõem ao corpo social com uma autoridade irresistível, determinando
então que todos reajam, por vontade própria, contra suas próprias tendências inatas
más. Por último, em caso de necessidade, os poderes sociais obrigam o indivíduo a
praticar certos deveres e a abster-se dos atos que podem ser prejudiciais para ele ou
para o seu próximo. As sociedades prósperas nunca foram capazes de substituir este
conjunto tão claro e tão preciso de ensinamentos e de restrições; às vezes adicionaram
leis muito complicadas; mas estas não resultaram benéficas senão quando foram os
corolários naturais dos dez mandamentos. Em resumo, a fonte da felicidade e da paz foi
encontrada sempre no Decálogo; desde as primeiras épocas da história vemos que os
povos submetidos a esta lei suprema prosperam; aqueles que a transgredem sofrem e os
que insistem em sua rebeldia perecem.

LE PLAY, F. La réforme de la société - Le travail.

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EDWARD B. TYLOR: RELIGIÃO E ANIMISMO
Edward Burnett Tylor (1832 – 1917) foi um antropólogo
britânico; um dos primeiros a fornecer uma definição precisa de
cultura e um dos primeiros a realizar pesquisa de campo. Em sua
obra Primitive Culture afirmou que a forma mais antiga de
crença religiosa era o animismo, a crença em seres espirituais. O
trecho abaixo foi retirado dessa obra. Leia-o e responda: Qual a
definição de religião ele combate, e qual definição propõe no
lugar?

Existem, ou têm existido, tribos de homens com uma cultura tão baixa que não têm
nenhuma concepção religiosa? Esta é praticamente a questão da universalidade da religião, que
há tantos séculos tem sido afirmada e negada, com uma confiança em flagrante contraste com a
evidência imperfeita na qual tanto a afirmação quanto a negação se baseiam. Os etnógrafos, se
procurassem uma teoria do desenvolvimento para explicar a civilização e considerassem seus
estágios sucessivos surgidos um do outro, receberiam com interesse particular relatos de tribos
desprovidas de toda religião. Aqui, eles diriam naturalmente, existem homens que não têm
religião porque dentre seus antepassados não existiam aqueles que representam uma condição
pré-religiosa da raça humana, da qual, com o passar do tempo, surgiram condições religiosas.
No entanto, não parece aconselhável começar a partir desse ponto em uma investigação do
desenvolvimento religioso. (...) O caso tem o mesmo grau de semelhança ao das tribos que
afirmam existir sem linguagem ou sem o uso do fogo; naturalmente falando parece que nada
proíbe a possibilidade de tal existência, mas, na verdade, tais tribos não são encontradas.
Assim, a afirmação de que tribos não religiosas rudes são conhecidas na existência real,
embora teoricamente possível, e talvez verdade de fato, não se baseia atualmente em prova
suficiente que, para um estado de coisas excepcional, temos o direito de exigir. (...)
Quão enganosos são os julgamentos aos quais a amplitude e a generalidade são dadas
pelo uso de palavras amplas em sentidos restritos. Lang, Moffat e Azara são autores a quem a
etnografia deve muito conhecimento de valor das tribos que visitaram, mas ao que parece,
dificilmente reconhecem nada além da teologia organizada e estabelecida das raças superiores
como religião. Eles atribuem a falta de religião a tribos cujas doutrinas são diferentes das deles,
da mesma maneira que os teólogos atribuem o ateísmo com frequência àqueles cujas
divindades diferem das suas, desde o tempo em que os antigos arianos invasores descreveram
as tribos indígenas da Índia como adeva, isto é, "sem Deus", e os gregos fixaram o termo
correspondente  aos primeiros cristãos como incrédulos nos deuses clássicos, até às
épocas relativamente modernas, quando os descrentes, tanto os que praticavam bruxaria quanto
os da sucessão apostólica, foram denunciados como ateus. (...)
O primeiro requisito em um estudo sistemático das religiões das raças inferiores é
estabelecer uma definição rudimentar de religião. Ao exigir nesta definição a crença em uma
divindade suprema ou julgamento após a morte, a adoração de ídolos ou a prática de sacrifício,
ou outras doutrinas ou ritos parcialmente difundidos, sem dúvida muitas tribos podem ser
excluídas da categoria religiosa. Mas essa definição restrita tem a falha de identificar a religião
antes com desenvolvimentos particulares do que com o motivo mais profundo que os
fundamenta. Parece melhor recorrer imediatamente a essa fonte essencial e simplesmente
reivindicar, como uma definição mínima de religião, a crença nos seres espirituais. Não se pode
afirmar positivamente que toda tribo existente reconheça a crença nos seres espirituais, pois a
condição nativa de um número considerável é obscura a esse respeito, e com a rápida mudança
ou extinção pela qual estão passando, pode permanecer assim.

TAYLOR, E. B. Primitive Culture. Capítulo XI (trechos).

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ROBERTSON SMITH: IMPORTÂNCIA DOS RITOS
E PRÁTICAS RELIGIOSAS
William Robertson Smith (1846-1894) foi um estudioso
escocês das religiões semitas. Era professor de línguas orientais e
exegese do Antigo Testamento. Escreveu artigos na 9ª edição da
Enciclopédia Britânica sobre a Bíblia, o que lhe rendeu, em
1877, a sua suspensão como professor.
Em sua obra Lectures on the Religion of the Semites,
Robertson Smith deu muito mais ênfase aos ritos e cerimônias do
que à crença no sobrenatural, quando analisou o fenômeno
religioso. De acordo com ele, as religiões antigas se
caracterizaram em instituições e práticas, através de ritos e
cerimônias; os mitos associados a crenças e credos teriam sido
uma consequência dos primeiros – ritos e cerimônias.
Analisando o Velho Testamento, concluiu que a prática precede a crença.
O texto abaixo foi retirado da obra acima citada. Leia-o e responda: 1) Por que é
necessário estudar a religião a partir dos ritos e práticas, ao invés de começar o estudo
pelas crenças ou mitos? 2) Dê exemplos de ritos e práticas encontrados em religiões e
povos diversos.

Em conexão com toda religião, antiga ou moderna, encontramos, por um lado,


certas crenças e, por outro, certas instituições práticas rituais e regras de conduta.
Nosso hábito moderno é olhar a religião do lado da crença, e não da prática; pois, até
tempos relativamente recentes, quase as únicas formas de religião estudadas seriamente
na Europa foram as de várias igrejas cristãs, e todas as partes da cristandade concordam
que o ritual é importante apenas em conexão com sua interpretação. Assim, o estudo da
religião significou principalmente o estudo das crenças cristãs, e a instrução religiosa
começou habitualmente com o credo, os deveres religiosos sendo apresentados ao
aluno como decorrentes das verdades dogmáticas que ele é ensinado a aceitar. Tudo
isso nos parece tão óbvio que, quando abordamos alguma religião estranha ou antiga,
naturalmente assumimos que aqui também nosso primeiro negócio é procurar um credo
e encontrar nele a chave do ritual e da prática. Mas as religiões antigas geralmente não
tinham credo; eles consistiam inteiramente de instituições e práticas. Sem dúvida, os
homens não seguem habitualmente certas práticas sem lhes atribuir um significado;
mas, como regra, descobrimos que, embora a prática fosse rigorosamente fixa, o
significado associado a ela era extremamente vago, e o mesmo rito era explicado por
pessoas diferentes de maneiras diferentes, sem que houvesse conseqüência de
ortodoxia ou heterodoxia. Na Grécia antiga, por exemplo, certas coisas foram feitas em
um templo, e as pessoas concordaram que seria ímpio não fazê-las. Mas se você
perguntasse por que elas foram feitas, provavelmente teria várias explicações
mutuamente contraditórias de pessoas diferentes, e ninguém teria achado uma questão
de menor importância religiosa qual dessas você escolheu adotar. De fato, as
explicações oferecidas não teriam sido de um tipo que suscitasse qualquer sentimento
forte; pois, na maioria dos casos, teriam sido apenas histórias diferentes sobre as
circunstâncias em que o rito veio a ser estabelecido pela ordem ou pelo exemplo direto
do deus. O rito, em suma, estava ligado não a um dogma, mas a um mito.
Em todas as religiões antigas, a mitologia ocupa o lugar do dogma; isto é, o
conhecimento sagrado de sacerdotes e pessoas, na medida em que não consiste em
meras regras para a realização de atos religiosos, assume a forma de histórias sobre os

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deuses; e essas histórias fornecem a única explicação que é oferecida sobre os preceitos
da religião e as regras prescritas do ritual. Mas, estritamente falando, essa mitologia
não era parte essencial da religião antiga, pois não possuía sanção sagrada nem força
vinculativa para os adoradores. Os mitos ligados a santuários e cerimônias individuais
eram meramente parte do aparato do culto; serviram para excitar a fantasia e sustentar
o interesse do adorador; mas muitas vezes lhe era oferecida uma escolha de vários
relatos da mesma coisa e, desde que ele cumprisse o ritual com precisão, ninguém se
importava com o que ele acreditava sobre sua origem. A crença em uma certa série de
mitos não era obrigatória como parte da religião verdadeira, nem se supunha que,
acreditando, um homem adquirisse méritos de religiões e conciliasse o favor dos
deuses. O que era obrigatório ou meritório era o desempenho exato de certos atos
sagrados prescritos pela tradição religiosa. Sendo assim, segue-se que a mitologia não
deve ocupar o lugar de destaque que muitas vezes lhe é atribuído no estudo científico
das religiões antigas. Na medida em que os mitos consistem em explicações do ritual,
seu valor é totalmente secundário, e pode-se afirmar com confiança que em quase todos
os casos o mito foi derivado do ritual, e não o ritual do mito; pois o ritual era fixo e o
mito era variável, o ritual era obrigatório e a fé era o critério do adorador. Agora, de
longe, a maior parte dos mitos das religiões antigas está ligado ao ritual de certos
santuários, ou às observâncias religiosas de tribos e distritos específicos. Em todos
esses casos, é provável, na maioria dos casos, certo que o mito seja apenas a explicação
de um uso religioso; e, geralmente, é uma explicação que não poderia ter surgido até
que o sentido original do uso tivesse passado ou ao menos caído no esquecimento.
Como regra geral, o mito não é explicação da origem do ritual para quem não acredita
que seja uma narrativa de ocorrências reais, e o mitólogo mais ousado não acreditará
nisso. Mas, se não for verdade, o próprio mito precisa ser explicado, e todo princípio de
filosofia e senso de comunhão exige que a explicação seja buscada, não em teorias
alegóricas arbitrárias, mas nos fatos reais de rituais ou costumes religiosos aos quais o
mito anexa. A conclusão é que, no estudo das religiões antigas, devemos começar, não
com mitos, mas com rituais e usos tradicionais. Tampouco pode ser justamente contra
essa conclusão que existem certos mitos que não são meras explicações das práticas
tradicionais, mas exibem o início de uma especulação religiosa mais ampla, ou de uma
tentativa de sistematizar e reduzir para ordenar a variedade heterogênea de cultos locais
e crenças. Pois nesse caso o caráter secundário dos mitos é ainda mais claramente
marcado. Ou são produtos da filosofia primitiva, refletindo sobre a natureza do
universo; ou são de alcance político, sendo projetados para fornecer um fio de união
entre as várias adorações de grupos, originalmente distintos, que foram unidos em um
organismo social ou político; ou, finalmente, devem-se ao jogo livre da imaginação
épica. Mas filosofia política e poesia são algo mais, ou menos sonolento, do que
religião pura e simples.
Não pode haver dúvida de que, nos estágios posteriores das religiões antigas, a
mitologia adquiriu uma importância cada vez maior. Na luta do paganismo com o
ceticismo, por um lado, e o cristianismo, por outro, os partidários da antiga religião
tradicional foram levados a procurar idéias de um elenco moderno, que pudessem
representar como o verdadeiro significado interno dos ritos tradicionais. Para esse fim,
eles se apossaram dos antigos mitos, e aplicaram a eles um sistema alegórico de
interpretação. O mito interpretado pelo auxílio da alegoria tornou-se o meio favorito de
infundir um novo significado em formas antigas. Mas as teorias assim desenvolvidas
são os mais falsos dos falsos guias quanto ao significado original das antigas religiões.

SMITH, W. R. Lectures on the Religion of the Semites.


London: Adam and Charles Black. 1894, p.16-9.

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JAMES FRAZER: OS PRINCÍPIOS DA MAGIA
James George Frazer (1854-1941) foi um antropólogo
britânico. Sua principal obra, O Ramo de Ouro, reúne uma enorme
quantidade de costumes primitivos de épocas e lugares diferentes,
e são organizados de forma sistemática de modo a permitir a
elaboração de teorias sobre as sociedades. O principal tema
abordado nessa obra é a religião e sua relação com a magia, a
ciência e a realeza.
O texto abaixo foi retirado da obra acima citada. Leia-o e
responda: Quais os dois tipos de magia? Explique e dê exemplos.

Se analisarmos os princípios lógicos nos quais se baseia a magia, provavelmente


concluiremos que eles se resumem em dois: primeiro, que o semelhante produz o semelhante,
ou que um efeito se assemelha à sua causa; e, segundo, que as coisas que estiveram em contato
continuam a agir umas sobre as outras, mesmo à distância, depois de cortado o contato físico.
Ao primeiro princípio podemos chamar lei da similaridade, ao segundo, lei do contato ou
contágio. Do primeiro desses princípios, a lei da similaridade, o mago deduz a possibilidade de
produzir qualquer efeito desejado simplesmente imitando-o; do segundo, que todos os atos
praticados sobre um objeto material afetarão igualmente a pessoa com a qual o objeto estava
em contato, quer ele constitua parte de seu corpo ou não. Os sortilégios baseados na lei da
similaridade podem ser chamados de magia homeopática ou imitativa; os que têm fundamento
na lei do contato ou contágio podem ser chamados de magia por contágio. Para indicar o
primeiro desses ramos da magia, a palavra "homeopática" talvez seja preferível, pois a
denominação alternativa, "imitativa" ou "mimética", sugere — se é que não deixa implícita —
a participação de um agente imitador consciente, limitando com isso, em demasia, o alcance da
expressão. E isso porque o mago implicitamente acredita que os mesmos princípios que aplica
à sua arte são os que regulam as operações da natureza inanimada; em outras palavras, ele
supõe tacitamente que as leis da similaridade e do contato são de aplicação universal e não
limitadas apenas às ações humanas. Em suma, a magia é um sistema espúrio de lei natural, bem
como um guia enganoso de comportamento: é tanto uma falsa ciência quanto uma arte
abortiva. Considerada como um sistema de lei natural, isto é, como um conjunto de regras que
determinam a sequência dos acontecimentos em todo o mundo, pode ser chamada de magia
teórica; considerada como uma coleção de preceitos observados por seres humanos com o fim
de conseguir seus objetivos, pode ser chamada de magia prática. Devemos ter presente, ao
mesmo tempo, que o mago primitivo só conhece a magia em seu aspecto prático: ele nunca
analisa os processos mentais em que sua prática se baseia, nunca reflete sobre os princípios
abstratos que cercam seus atos. Para ele, como para a grande maioria dos homens, a lógica é
implícita, e não explícita: ele pensa exatamente do mesmo modo que digere seu alimento, na
total ignorância dos processos intelectuais e fisiológicos essenciais a uma e a outra operação.
Em suma, para ele a magia é sempre uma arte, jamais uma ciência; a simples ideia de ciência
está ausente de sua mente subdesenvolvida. Cabe ao estudioso da filosofia traçar a linha de
pensamento que subjaz à prática do mago; separar os poucos e simples fios de que a confusa
meada se constitui; isolar os princípios abstratos de suas aplicações concretas; em suma,
discernir a ciência espúria por trás da arte bastarda. Se nossa análise da lógica do mago está
certa, seus dois grandes princípios são, em essência, apenas duas aplicações errôneas e
diferentes da associação de ideias. A magia homeopática fundamenta-se na associação de
ideias pela similaridade, ao passo que a magia de contágio baseia-se na associação de ideias
pela contiguidade. A primeira comete o erro de supor que a semelhança implica igualdade; a
segunda, o de supor que o contato, uma vez estabelecido, não se rompe nunca. Na prática,
porém, os dois ramos se combinam com frequência, ou, para sermos mais exatos, enquanto a
magia homeopática ou imitativa pode ser praticada por si mesma, a magia por contágio de um
modo geral envolve a aplicação do princípio homeopático que rege a outra.
FRAZER, J. G. O Ramo de Ouro.

36
DURKHEIM: AS FORMAS ELEMENTARES
DA VIDA RELIGIOSA
O texto abaixo é de Émile Durkheim, retirado da obra As Formas Elementares
da Vida Religiosa. Leia-o e responda: Quais os elementos que definem uma religião?

Para saber qual a religião mais primitiva e mais simples que a observação nos permite
conhecer, é preciso primeiro definir o que convém entender por religião, caso contrário
correríamos o risco de chamar de religião um sistema de ideias e de práticas que nada teria de
religioso, ou de deixar de lado fatos religiosos sem perceber sua verdadeira natureza. (...) O que
é necessário e possível é indicar um certo número de sinais exteriores, facilmente perceptíveis,
que permitem reconhecer os fenômenos religiosos onde quer que se encontrem, e que impedem
que os confundamos com outros. (...)
Deixando de lado toda concepção da religião em geral, consideremos as religiões em
sua realidade concreta e procuremos destacar o que elas podem ter em comum; pois a religião
só pode ser definida em função das características que se encontram por toda parte onde houver
religião. Introduziremos portanto nessa comparação todos os sistemas religiosos que podemos
conhecer, os do presente e os do passado, os mais simples e primitivos assim como os mais
recentes e refinados, pois não temos nenhum direito e nenhum meio lógico de excluir uns para
só reter os outros. (...)
Uma noção tida geralmente como característica de tudo o que é religioso é a de
sobrenatural. Entende-se por isso toda ordem de coisas que ultrapassa o alcance de nosso
entendimento; o sobrenatural é o mundo do mistério, do incognoscível, do incompreensível. A
religião seria, portanto, uma espécie de especulação sobre tudo o que escapa à ciência e, de
maneira mais geral, ao pensamento claro. (...) É certo que o sentimento do mistério não deixou
de desempenhar um papel importante em certas religiões, especialmente no cristianismo. Mas é
preciso acrescentar que a importância desse papel variou singularmente nos diferentes
momentos da história cristã. (...) Em todo caso, o que é certo é que essa noção só aparece muito
tarde na história das religiões; ela é totalmente estranha não somente aos povos chamados
primitivos, mas também a todos os que não atingiram um certo grau de cultura intelectual. (...)
Ele [o primitivo] não vê nelas [nas explicações sobrenaturais] uma espécie de ultima ratio
[última razão] a que a inteligência só se resigna em desespero de causa, mas sim a maneira
mais imediata de representar e compreender o que observa a seu redor. Para ele, não há nada de
estranho em poder-se, com a voz ou o gesto, comandar os elementos, deter ou precipitar o
curso dos astros, provocar a chuva ou pará-la, etc. Os ritos que emprega para assegurar a
fertilidade do solo ou a fecundidade das espécies animais de que se alimenta não são, a seus
olhos, mais irracionais do que o são, aos nossos, os procedimentos técnicos que os agrônomos
utilizam para a mesma finalidade. (...) A ideia de sobrenatural, tal como a entendemos, data de
ontem: ela supõe, com efeito, a ideia contrária, da qual é a negação e que nada tem de
primitiva. Para que se pudesse dizer de certos fatos que são sobrenaturais, era preciso já ter o
sentimento de que existe uma ordem natural das coisas, ou seja, que os fenômenos do universo
estão ligados entre si segundo relações necessárias chamadas leis. (...)
Uma outra ideia pela qual se tentou com frequência definir a religião é a da divindade.
―A religião‖, diz A. Réville, ―é a determinação da vida humana pelo sentimento de um vínculo
que une o espírito humano ao espírito misterioso no qual reconhece a dominação sobre o
mundo e sobre si mesmo, e ao qual ele quer sentir-se unido‖. É verdade que, se entendemos a
palavra divindade num sentido preciso e estrito, a definição deixa de fora grande quantidade de
fatos manifestamente religiosos. As almas dos mortos, os espíritos de toda espécie e de toda
ordem, com que a imaginação religiosa de tantos povos diversos povoou a natureza, são
sempre objeto de ritos e, às vezes, até de um culto regular; no entanto não se trata de deuses no
sentido próprio da palavra. Mas, para que a definição os compreenda, basta substituir a palavra
deus pela de ser espiritual, mais abrangente. Foi o que fez Tylor. (...) Contudo, por mais
evidente que possa parecer essa definição, em consequência de hábitos de espírito que devemos
à nossa educação religiosa, há muitos fatos aos quais ela não é aplicável e que, no entanto,

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dizem respeito ao domínio da religião. (...) Existem grandes religiões em que a ideia de deuses
e espíritos está ausente, nas quais, pelo menos, ela desempenha tão-só um papel secundário e
apagado. É o caso do budismo. (...)
Descartadas essas definições, é a nossa vez de nos colocarmos diante do problema.
Em primeiro lugar observemos que, em todas essas fórmulas, é a natureza da religião
em seu conjunto que se tenta exprimir diretamente, procede-se como se a religião formasse
uma espécie de entidade indivisível, quando ela é um todo formado de partes; é um sistema
mais ou menos complexo de mitos, de dogmas, de ritos, de cerimônias. Ora, um todo não pode
ser definido senão em relação às partes que o formam. É mais metódico, portanto, procurar
caracterizar os fenômenos elementares dos quais toda religião resulta, antes do sistema
produzido por sua união. Esse método impõem-se sobretudo pelo fato de existirem fenômenos
religiosos que não dizem respeito a nenhuma religião determinada. É o caso dos que
constituem a matéria do folclore. Em geral, são restos de religiões desaparecidas,
sobrevivências inorganizadas; mas há outras também que se formam espontaneamente sob a
influência de causas locais. (...)
Os fenômenos religiosos classificam-se naturalmente em duas categorias fundamentais:
as crenças e os ritos. As primeiras são estados da opinião, consistem em representações; os
segundos são modos de ação determinados. (...)
Todas as crenças religiosas conhecidas, sejam simples ou complexas, apresentam um
mesmo caráter comum: supõem uma classificação das coisas, reais ou ideais, que os homens
concebem, em duas classes, em dois gêneros opostos, designados geralmente por dois termos
distintos que as palavras profano e sagrado traduzem bastante bem. A divisão do mundo em
dois domínios que compreendem, um, tudo o que é sagrado, outro, tudo o que é profano, tal é o
traço distintivo do pensamento religioso: as crenças, os mitos, os gnomos, as lendas, são
representações ou sistemas de representações que exprimem a natureza das coisas sagradas, as
virtudes e os poderes que lhes são atribuídos, sua história, suas relações mútuas e com as coisas
profanas. Mas, por coisas sagradas, convém não entender simplesmente esses seres pessoais
que chamamos deuses ou espíritos: um rochedo, uma árvore, uma fonte, um seixo, um pedaço
de madeira, uma casa, em uma palavra, uma coisa qualquer pode ser sagrada. (...)
As crenças propriamente religiosas são sempre comuns a uma coletividade deter-
minada, que declara aderir a elas e praticar os ritos que lhe são solidários. Tais crenças não são
apenas admitidas, a título individual, por todos os membros dessa coletividade, mas são
próprias do grupo e fazem sua unidade. Os indivíduos que compõem essa coletividade sentem-
se ligados uns aos outros pelo simples fato de terem uma fé comum. Uma sociedade cujos
membros estão unidos por se representarem da mesma maneira o mundo sagrado e por tradu-
zirem essa representação comum em práticas idênticas, é isso a que chamamos uma igreja. (...)
Algo bem diferente se dá com a magia. Claro que as crenças mágicas jamais
deixam de ter alguma generalidade; com frequência estão difusas em largas camadas de
população e há inclusive muitos povos em que seu número de praticantes não é menor
que o da religião propriamente dita. Mas elas não têm por efeito ligar uns aos outros
seus adeptos e uni-los num mesmo grupo, vivendo uma mesma vida. Não existe igreja
mágica. Entre o mágico e os indivíduos que o consultam, como também entre esses in-
divíduos, não há vínculos duráveis que façam deles os membros de um mesmo corpo
moral, comparável àquele formado pelos fiéis de um mesmo deus, pelos praticantes de
um mesmo culto. O mágico tem uma clientela, não uma igreja, e seus clientes podem
perfeitamente não manter entre si nenhum relacionamento, ao ponto de se ignorarem
uns aos outros; mesmo as relações que estabelecem com o mágico são, em geral, aci-
dentais e passageiras; são em tudo semelhantes às de um doente com seu médico. (...)
Chegamos, pois, à seguinte definição: uma religião é um sistema solidário de
crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças
e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles
que a elas aderam.
DURKHEIM, E. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.3-32.

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MARCEL MAUSS E HENRI HUBERT: O SACRIFÍCIO
Marcel Mauss (1872-1950) foi um antropólogo francês. Juntamente com Henri
Hubert (1872-1927) redigiu a obra Sobre o Sacrifício, de onde o trecho abaixo foi
retirado. Leia-o e responda: qual a importância do sacrifício para as religiões?

Convém dar uma definição exterior dos fatos que designamos por ―sacrifício‖.
A palavra sugere imediatamente a ideia de consagração, e poder-se-ia pensar
que as duas noções se confundem. Com efeito, é certo que o sacrifício sempre implica
uma consagração: em todo sacrifício um objeto passa do domínio comum ao domínio
religioso – ele é consagrado. Mas as consagrações não são todas da mesma natureza.
Há aquelas que esgotam seus efeitos no objeto consagrado, seja ele qual for, homem ou
coisa. É o caso, por exemplo, da unção. Na sagração de um rei, somente a
personalidade religiosa do rei é modificada: fora dela nada é alterado. No sacrifício, ao
contrário, a consagração irradia-se para além da coisa consagrada, atingindo, entre
outras coisas, a pessoa moral que se encarrega da cerimônia. O fiel que forneceu a
vítima, objeto da consagração, não é no final da operação o que era no começo. Ele
adquiriu um caráter religioso que não possuía, ou se desembaraçou de um caráter
desfavorável que o afligia; elevou-se a um estado de graça ou saiu de um estado de
pecado. Em ambos os casos ele é religiosamente transformado. (...)
Vê-se qual é o traço distintivo da consagração no sacrifício: que a coisa
consagrada sirva de intermediário entre o sacrificante, ou o objeto que deve receber os
efeitos úteis do sacrifício, e a divindade à qual o sacrifício é endereçado. O homem e o
deus não estão em contato imediato. Assim é que o sacrifício se distingue da maior
parte dos fatos designados como ―aliança pelo sangue‖, em que se produz, pela troca de
sangue, uma fusão direta da vida humana e da vida divina. Diremos o mesmo de certos
casos de oferenda de cabelos, pois também aqui o sujeito que sacrifica está, por parte
de sua pessoa que é oferecida, em comunicação direta com o deus. É certo que há
conexões entre esses ritos e o sacrifício, mas eles devem ser distinguidos.
Essa primeira característica não é porém suficiente, já que não permite
distinguir o sacrifício desses fatos maldefinidos que convém nomear como
―oferendas‖. Com efeito, não há oferenda em que o objeto consagrado não se
interponha igualmente entre o deus e o oferecedor e em que este último não seja
afetado pela consagração. Mas se todo sacrifício é, de fato, uma oblação, há oblações
de espécies diferentes. (...)
Deve-se chamar ―sacrifício‖ toda oblação, mesmo vegetal, em que a oferenda,
ou uma parte dela, é destruída, embora o costume pareça reservar o termo apenas à
designação dos sacrifícios sangrentos. (...)
Chegamos então à seguinte fórmula: o sacrifício é um ato religioso que
mediante a consagração de uma vítima modifica o estado da pessoa moral que o efetua
ou de certos objetos pelos quais ela se interessa. (...)
O sacrifício é um ato religioso que só pode se efetuar num meio religioso e por
intermédio de agentes essencialmente religiosos. Ora, antes da cerimônia, em geral,
nem o sacrificante, nem o sacrificador, nem o lugar, nem os instrumentos, nem a vítima
têm esse caráter no grau que convém. Assim, a primeira fase do sacrifício tem por
objeto conferir-lhes esse caráter. Eles são profanos, e é preciso que mudem de estado.
Para tanto, são necessários ritos que os introduzem no mundo sagrado e ali os
comprometam mais ou menos profundamente.

MAUSS, M. & HUBERT, H. Sobre o Sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 17-28.

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FUSTEL DE COULANGES: A RELIGIÃO ANTIGA
Numa Denis Fustel de Coulanges (1830-1889) foi um historiador
francês estudioso das sociedades antigas, principalmente Grécia e Roma.
Seu rigor investigativo e profundidade de análise levaram-no a publicar
sua importante obra A Cidade Antiga, da qual foi extraído o texto abaixo.
Nela, ele destaca o papel da religião nas sociedades gregas e romanas
antigas e quais os ritos associados a ela. Dentre as muitas concepções
antigas desses povos, destaca-se a crença numa existência além da vida,
não numa outra dimensão, mas debaixo da terra, junto ao corpo – como
se alma e corpo continuassem ligados, mesmo após a morte. Daí a
existência do rito fúnebre, prática que sobrevive até hoje nos tempos mo-
dernos, mesmo que as pessoas possuam outras crenças religiosas. Somente num momento pos-
terior surgiu entre esses povos a ideia de uma região subterrânea habitada pelas almas, de modo
a receberem, cada uma, a pena ou recompensa de acordo com a conduta praticada em vida.
Fustel de Coulanges também afirmou que cada família tinha o seu culto, não sendo este,
portanto, público, mas privado. Por isso não haviam regras uniformes nem a imposição, de fora,
de um ritual comum. De acordo com este autor, a origem da família antiga não está no
sentimento ou na força física do pai, mas na religião doméstica e seu culto dos antepassados.
Leia o texto abaixo e responda: 1) Por que os antigos punham flores e alimentos junto
aos túmulos? 2) Qual a importância da religião antiga? 3) O que o fogo representava? 4) Cite
algumas diferenças entre as religiões antigas e as modernas.

Atentemos bem ao fato de não bastar que o corpo fosse depositado na terra. Era ainda
preciso observarem-se certos ritos tradicionais e pronunciarem-se determinadas fórmulas. (...)
Uma vez que, sem eles, as almas andavam errantes e apareciam aos vivos, é porque só
mediante a sua rigorosa observância se fixavam e encerravam nos túmulos. E como existiam
fórmulas com esta virtude, os antigos também possuíam outras fórmulas tendo eficácia
contrária; a de evocar as almas e fazê-las sair momentaneamente do sepulcro.
Pode-se ver em escritores antigos como o homem constantemente vivia atormentado
pelo receio de que, depois da sua morte, não se observassem tais ritos. Era isto motivo para
amargas inquietações. Temia-se menos a morte do que a privação de sepultura. Porque na
sepultura está o repouso e a bem-aventurança eterna. (...)
O ser que vive debaixo da terra não se encontra tão desprendido do humano que não te-
nha necessidade de alimento. Por isso, em certos dias do ano, se leva a refeição a cada túmulo.
Ovídio e Virgílio (...). descrevem-nos o costume de se cercar o túmulo de grandes
grinaldas de plantas e de flores e de sobre o mesmo se colocarem pastéis, frutas, sal e ainda ali
se verterem o leite, o vinho e algumas vezes o sangue de uma vítima.
Enganar-nos-íamos muito se acreditássemos ver nessa refeição fúnebre apenas uma
espécie de comemoração. O alimento que a família lhe leva destina-se efetivamente ao morto, e
exclusivamente a este. (...)
Desde os mais remotos tempos, deram estas crenças lugar a normas de conduta. Como,
entre os antigos, o morto necessitasse de alimento e de bebida, concebeu-se, como dever dos
vivos, satisfazer-lhe esta sua necessidade. O cuidado de levar aos mortos os alimentos não
esteve a cargo do capricho ou dos sentimentos variáveis dos homens; foi obrigatório. Assim se
estabeleceu toda esta religião da morte, cujos dogmas cedo desapareceram, durando, no
entanto, os seus ritos até o triunfo do cristianismo.
Os mortos eram tidos como entes sagrados. Os antigos davam-lhes os epítetos mais
respeitosos que podiam encontrar no seu vocabulário; chamavam-lhes bons, santos, bem-
aventurados. Tinham por eles tanta veneração quanto o homem pode ter pela divindade que
ama ou teme. Para o seu pensamento cada morto era um deus. (...)
Os gregos davam de bom grado aos mortos o nome de deuses subterrâneos. Em
Ésquilo, o filho invoca seu falecido pai com estas palavras: ―Oh, tu que és um deus sob a
terra‖. Eurípedes, falando de Alceste, acrescenta: ―Junto do teu túmulo o viandante parará e

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dirá: ‗Aqui vive agora a divindade bem-aventurada‘‖. Os romanos davam aos mortos o nome
de deuses manes. ―Prestai aos deuses manes quanto lhes é devido‖, diz Cícero, ―são homens
que abandonaram esta vida terrena; considerai-os como seres divinos‖.
Os túmulos eram os templos destas divindades. Por isso tinham a inscrição sacramental
Dis Manibus, em grego Theoíz khthoníois. O deus vivia enterrado no seu túmulo, Manesque
sepulti, no dizer de Virgílio. Diante do túmulo havia um altar para os sacrifícios igual ao que há
em frente dos templos dos deuses. (...)
Toda casa de grego ou de romano possuía altar; neste altar devia haver sempre restos
de cinza e brasas. Era obrigação sagrada do dono de cada casa conservar o fogo, dia e noite.
Desgraçada daquela casa onde o fogo se extinguisse! Ao anoitecer de cada dia se cobriam de
cinza os carvões, para deste modo se evitar que eles se consumissem inteiramente durante a
noite; ao despertar, o primeiro cuidado do homem era avivar o fogo e alimentá-lo com alguns
ramos secos. O fogo só deixava de brilhar sobre o altar quando toda a família havia morrido;
lar extinto, família extinta, eram expressões sinônimas entre os antigos.
E, evidentemente, o uso de manter-se sempre o fogo sobre o altar remonta a antiga
crença. As regras e os ritos observados a este respeito mostram-nos não ser então este entre as
gentes um costume qualquer, insignificante. Não lhes era permitido alimentar este fogo com
qualquer espécie de madeira; a religião distinguia, entre as árvores, aquelas espécies que
podiam ser empregadas com este fim, e aquelas outras de que era impiedade servirem-se. A
religião ensinava ainda como este fogo devia permanecer sempre puro, o que em sentido literal
significava que nenhum objeto sujo lhe devia ser atirado e que, em sentido figurado, nenhuma
ação culposa deveria ser cometida em sua presença. (...)
Este fogo tinha algo de divino; adoravam-no, prestavam-lhe verdadeiro culto.
Davam-lhe como oferenda tudo quanto julgavam pudesse agradar a um deus: flores,
frutas, incenso, vinho. Imploravam-lhe proteção, que supunham poderosa. Dirigiam-lhe
fervorosas preces para dele conseguirem os fins eternos desejados pro todo o homem:
saúde, riqueza e felicidade. (...)
Não podemos representar esta antiga religião como aquelas fundadas mais tarde, em
civilização mais avançada. Há muitos séculos já que o gênero humano só admite uma doutrina
religiosa, sob duas condições: uma, a de anunciar um só deus; em segundo lugar, desde que, de
igual modo, se dirija a todos os homens e seja acessível a todos, sem repelir sistematicamente
qualquer classe ou raça. Mas a religião dos tempos primevos não obedecia a nenhum destes
dois requisitos. Além de não dar à adoração dos homens um só deus, ainda os seus deuses não
aceitavam indistintamente a adoração de todos e quaisquer homens. Não se apresentavam como
deuses do gênero humano. Não se assemelhavam mesmo nem a Brama, pelo menos, deus de
toda uma grande casta, nem ao Zeus pan-heleno, que o foi de toda uma nação. Nesta religião
primitiva cada um dos seus deuses não podia ser adorado por mais de uma família. A religião
era puramente doméstica.
É preciso esclarecer esta importante situação porque sem o fazermos nunca se
compreenderá a íntima correspondência estabelecida entre as velhas crenças e a constituição
das famílias grega e romana.
O culto dos mortos não o podemos de modo algum aproximar daquele que os cristãos
têm pelos santos. Uma das primeiras regras do culto dos mortos estava no fato de este apenas
poder ser prestado aos mortos de cada família que pelo sangue lhes pertencia. O funeral só
podia realizar-se religiosamente quando presidido pelo parente mais próximo. Quanto à
refeição fúnebre, que se renova em épocas determinadas, só a família tinha o direito de assistir,
estando todo o estranho rigorosamente excluído dela. Acreditava-se que o morto só aceitava a
oferenda quando esta lhe fosse prestada da mão dos seus; queria apenas o culto dos seus
descendentes. A presença de um homem estranho na família logo perturbava o repouso dos
manes. Por essa razão, a lei proibia o estrangeiro de se aproximar do túmulo. Tocar com o pé,
mesmo por descuido, numa sepultura era ato ímpio, que obrigava a fazer ato de reconciliação
com o morto, e exigindo ainda do delinquente a sua purificação.

COULANGES, F. A Cidade Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 10-12, 14-15, 18-19, 28-29.

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CHRISTOPHER DAWSON: RELIGIÃO E CULTURA
Christopher Dawson (1889-1970) foi um estudioso britânico de
religião e cultura. Dentre outras teses que defendeu, destacou a importância da
religião católica medieval no desenvolvimento da sociedade ocidental
moderna, negando desta maneira aquelas visões que consideram a Idade
Média como uma época de estagnação.
O texto abaixo foi retirado da obra Inquéritos Sobre Religião e
Cultura. Leia-o e responda: 1) Qual a visão que os iluministas possuíam da
religião? 2) Qual a importância da religião?

Desde a ascensão do movimento científico moderno no século XVIII tem-se


verificado, entre os sociólogos e os historiadores da cultura, a tendência de negligenciar
o estudo da religião nos seus aspectos sociais fundamentais. Os apóstolos do
iluminismo do século XVIII se concentravam especialmente na dedução das leis da
vida social e do progresso com base em um número pequeno de princípios racionais
simples. Eles espezinhavam as realizações vistosas e profundamente enraizadas da
crença tradicional com a crueldade de pioneiros na selva tropical. Eles não sentiam
necessidade alguma de compreender o desenvolvimento das religiões históricas e a sua
influência no curso da história humana; para eles, a religião histórica era
essencialmente negativa, pois representava o poder claudicante e obscurantista que
desviava o espírito humano de seu caminho rumo ao progresso e ao iluminismo.
Seguindo Condorcet, eles explicavam as origens religiosas como o produto das
artimanhas do primeiro charlatão e da simplicidade do primeiro tolo. (...)
Uma cultura social, até mesmo a do tipo mais primitivo, nunca é simplesmente
uma unidade material. Ela envolve não apenas certa uniformidade na organização
social e no modo de vida, mas também uma disciplina psíquica contínua e consciente.
Mesmo uma língua comum, uma das primeiras exigências da vida civilizada, só pode
lograr mediante a passagem dos séculos e o esforço cooperativo – tanto de pensamento
quanto de ação comuns. Desde a aurora da cultura primitiva os homens vêm tentando,
ainda que de forma crua e simbólica, compreender as leis da vida e a elas adaptar a sua
atividade social. O homem primitivo nunca encarou o mundo da maneira moderna,
como um sistema passivo, ou na melhor das hipóteses, mecânico, como um depositório
das energias humanas, uma simples matéria para a mente humana moldar. Ele via o
mundo como um organismo vivo e pleno de forças misteriosas, mas poderosas do que
as dele próprio, e a sua vida consistia em aplaca-las e se colocar a serviço delas. E a
primeira necessidade de um povo, não menos vital do que o alimento ou as armas, era o
arcabouço ou armamento psíquico com o qual os homens se fortaleciam contra as
forças poderosas e misteriosas que os cercavam. No que diz respeito a toda a vida
social de um povo primitivo, fica impossível traçarmos uma linha divisória entre a
religião e a magia e entre a lei e a moral porque elas se encontram intimamente
entrelaçadas. O mesmo pode-se dizer em relação à civilização mais antiga. O primeiro
desenvolvimento de uma cultura mais elevada no Oriente Próximo, os primórdios da
agricultura e da irrigação e a ascensão da vida citadina foram profundamente religiosos
em sua concepção. Os homens não aprenderam a controlar as forças da natureza, a
tornar a terra dadivosa e a criar rebanhos e manadas como uma tarefa prática da
organização econômica da qual eles dependiam para a consecução de seus próprios
empreendimentos e do trabalho ativo. Eles encaravam essas atividades como um ritual
religioso no qual eles cooperavam como sacerdotes ou hierofantes no grande mistério
cósmico da fertilização e do florescimento da natureza.
DAWSON, C. Inquéritos Sobre Religião e Cultura. São Paulo: É Realizações, 2017, p.117-119.

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MAX WEBER: SENTIDO DA AÇÃO RELIGIOSA
Maximilian Karl Emil Weber (1864-1920) era alemão.
Estudou história, direito e economia, tendo se destacado como um
dos fundadores da Sociologia. Dentre os vários assuntos a que se
dedicou, destaca-se o estudo sobre as religiões mundiais,
principalmente as orientais. Weber deu um enfoque diferente à
Sociologia, ao considerar que o sentido atribuído à ação pelo
indivíduo, e não os aspectos externos, eram importantes para a
análise sociológica.
O texto abaixo foi retirado da obra Economia e Sociedade.
Leia-o e responda: 1) No que consiste o fenômeno religioso para Weber? 2) Existe
racionalidade nas ações mágicas ou religiosas, segundo o autor? Justifique.

Não é da ―essência‖ da religião que nos ocuparemos, e sim das condições e


efeitos de determinado tipo de ação comunitária cuja compreensão também aqui só
pode ser alcançada a partir das vivências, representações e fins subjetivos dos
indivíduos – a partir do ―sentido‖ –, uma vez que o decurso externo é extremamente
multiforme. A ação religiosa ou magicamente motivada, em sua existência primordial,
está orientada para este mundo. As ações religiosa ou magicamente exigidas devem ser
realizadas ―para que vás muito bem e vivas muitos e muitos anos sobre a face da
Terra‖. Mesmo rituais como sacrifícios humanos, extraordinários sobretudo entre uma
população urbana, foram realizados nas cidades marítimas fenícias, sem qualquer
expectativa dirigida ao além. A ação religiosa ou magicamente motivada é, ademais,
precisamente em sua forma primordial, uma ação racional, pelo menos relativamente:
ainda que não seja necessariamente uma ação orientada por meios e fins, orienta-se,
pelo menos, pelas regras da experiência. Assim como esfregando-se um pau numa peça
de madeira provocam-se centelhas, a mímica ―mágica‖ do conhecedor faz cair chuva
do céu. E as fagulhas produzidas pelo pau esfregado na madeira são, como a chuva
obtida pelas manipulações do fazedor de chuvas, um produto ―mágico‖. A ação ou o
pensamento religioso ou ―mágico‖ não pode ser apartado, portanto, do círculo de ações
cotidianas ligadas a um fim, uma vez que também seus próprios fins são, em sua
grande maioria, de natureza econômica. Somente nós, do ponto de vista de nossa
concepção atual da natureza, poderíamos distinguir imputações causais objetivamente
―corretas‖ e ―erradas‖, e reconhecer estas últimas como irracionais e a ação
correspondente como ―magia‖. A própria pessoa que age de modo mágico faz suas
distinções, em primeira instância, somente segundo a cotidianidade maior ou menor
dos fenômenos. Nem toda pedra, por exemplo, serve como fetiche. Nem toda pessoa
tem a capacidade de ficar em êxtase e produzir, por conseguinte, aqueles efeitos de
natureza meteorológica, terapêutica, divinatória ou telepática que, segundo a
experiência, só se conseguem desse modo. Não exclusivamente, mas sobretudo, é a
essas forças extraordinárias que se atribuem tais nomes específicos – mana, orenda ou,
como fazem os iranianos, maga (daí a palavra mágico) –, para as quais empregamos
aqui de uma vez por todas o nome ―carisma‖. O carisma pode ser – e somente neste
caso merece em seu pleno sentido esse nome – um dom pura e simplesmente vinculado
ao objeto ou à pessoa que por natureza o possui e que por nada pode ser adquirido. Ou
pode e precisa ser proporcionado ao objeto ou à pessoa de modo artificial, por certos
meios extracotidianos.

WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: UnB, p.279-280.

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GERSHOM SCHOLEM: EXPERIÊNCIA MÍSTICA
Gershom Gerhard Scholem (1897-1982) foi um teórico
alemão. Estudou matemática, filosofia e língua hebraica, destacando-
se nos estudos sobre o judaísmo e cabala. O trecho abaixo foi retirado
da obra A Cabala e seu Simbolismo. Leia-o e responda: 1) O que é
uma experiência mística? 2) Por que ela possui dois aspectos ao
mesmo tempo, um ―conservador‖ e outro ―revolucionário‖?

Um místico, na medida em que participa ativamente da vida religiosa de uma


comunidade, não age dentro de um vácuo. (...) O que interessa à história das religiões é o
impacto do místico sobre o mundo histórico, seu conflito com a vida religiosa do seu tempo e
com sua comunidade. (...)
Um místico é um homem que foi favorecido por uma experiência imediata e, para ele,
real, do divino, da realidade última, ou que pelo menos se esforça para conseguir uma tal
experiência. Sua experiência pode sobrevir-lhe através de uma iluminação repentina, ou pode
ser o resultado de prolongados e, amiúde, complicados preparativos. Do ponto de vista
histórico, a busca mística do divino ocorre, quase exclusivamente, no âmbito de uma tradição
prescrita – as exceções parecem restringir-se aos tempos modernos, com sua dissolução de
todos os laços tradicionais. Onde quer que semelhante tradição prevaleça, uma autoridade
religiosa, estabelecida muito antes do místico ter nascido, é reconhecida pela comunidade
desde há muitas gerações. Fundamentada na experiência específica da comunidade, esta
autoridade tem-se desenvolvido através do intercâmbio entre a comunidade e aqueles
indivíduos que interpretaram sua experiência fundamental e, destarte, ajudaram a comunidade a
expressar-se, ou seja, tornaram-na articulada. Existe pois uma escala de valores recebida da
tradição; existe igualmente um grupo de doutrinas e dogmas aceitos como afirmações
autênticas a respeito da experiência religiosa de uma dada comunidade. E existe, ainda, um
corpo de ritos e costumes que se crê tradicionalmente transmitir os valores e expressar o ânimo
e o ritmo da vida religiosa. Meios muito diferentes podem ser investidos de autoridade
religiosa. Podem ter um caráter impessoal, como um livro sagrado, por exemplo, ou
nitidamente pessoal. (...)
Um místico opera dentro do contexto de tais instituições e autoridades tradicionais. (...)
Do ponto de vista do historiador, a soma dos fenômenos religiosos conhecidos como
misticismo consiste nas tentativas de místicos de comunicar a outros suas ―vias‖, suas
iluminações, sua experiência. Não fosse por tais tentativas, seria impossível considerar o
misticismo como um fenômeno histórico. E é precisamente no curso dessas tentativas que o
misticismo se choca com a autoridade religiosa.
Todo misticismo possui dois aspectos contraditórios ou complementares: um
conservador e outro revolucionário. O que significa isso?
Tem-se afirmado que os místicos estão sempre procurando encher odres velhos com
vinho novo – exatamente o que a conhecida passagem dos Evangelhos nos adverte a não fazer.
Parece-me que esta formulação é extremamente apropriada e da maior relevância para o nosso
problema. Como é que um místico pode ser um conservador, um campeão e intérprete da
autoridade religiosa? (...) A resposta é que esses místicos parecem redescobrir as fontes da
autoridade tradicional. Ao perceber as bases antigas dessa autoridade, eles não sentem desejo
de modifica-la. Pelo contrário, tentam preservá-la no seu sentido mais estrito. (...)
De um modo geral, pois, tende a experiência do místico a confirmar a autoridade
religiosa debaixo da qual ele vive; sua teologia e símbolos são projetados para dentro de sua
experiência mística, porém não brotam dela. Mas o misticismo tem mais um outro aspecto
contrastante: precisamente porque o místico é o que é, precisamente porque se acha em
relacionamento direto, produtivo, com o objeto de sua experiência, ele transforma o conteúdo
da tradição na qual vive. Ele contribui não somente para a manutenção da tradição, mas
também para seu desenvolvimento.
SCHOLEM, G. G. A Cabala e seu Simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 1988, p.11-16.

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LINGUAGEM
A linguagem é um importante atributo do ser humano. Nascida ao mesmo tempo
em que as primeiras formas de sociedade, se manifesta de diferentes maneiras, sendo a
língua sua forma mais importante. Outros tipos de linguagem podem ser a vestimenta,
os gestos, a disposição das casas, o comportamento ou as trocas econômicas.
Faz-se necessário, pois, distinguir entre linguagem e língua, assim como entre
língua e fala. Essas questões serão respondidas ao longo da leitura dos textos abaixo.
Embora o estudo da língua e da linguagem pertença aos domínios da Linguística,
da Filologia, da Gramática e da Semiologia, seu estudo é relevante à Sociologia por se
tratar de uma importante instituição social. O caráter social tanto da língua quanto da
linguagem fica evidente numa primeira observação, quando notamos as diferenças
regionais num mesmo idioma ou as manifestações de folclore; mas muitos outros
aspectos podem ser descobertos quando adentramos nesse fascinante estudo. Por
exemplo, a relação entre o surgimento dos primeiros agrupamentos humanos e as
primeiras formas de linguagem, ou ainda, entre estas e as primeiras manifestações
religiosas. Conforme veremos, alguns autores perceberam que nas várias instituições
humanas ocorre um tipo de comunicação; portanto, a religião seria também um tipo de
linguagem. No limite, até as relações de parentesco seriam manifestações da linguagem.
O estudo das variações da língua ao longo do tempo ganhou a atenção dos
primeiros filólogos e linguistas, principalmente no século XIX. Através desse tipo de
análise, puderam constatar origens etimológicas de variados grupos, bem como aspectos
culturais de povos que viveram há muito tempo, e dos quais não restou nada senão
pequenos objetos encontrados em escavações. Entretanto, essa prática não pode ser
tomada como rigorosamente confiável, conforme demonstraram estudiosos diversos do
assunto, como o antropólogo Franz Boas. Segundo este, pode ocorrer uma mudança
completa na língua e na cultura, sem uma mudança correspondente no tipo físico
(étnico); ou pode ocorrer variações étnicas (como miscigenação entre etnias) sem uma
mudança correspondente na língua ou cultura; e ainda, pode acontecer variações
culturais profundas sem que uma grande variação étnica ou na língua ocorra.
Alguns autores entenderam que poderia ocorrer linguagem inclusive entre os
animais, como por exemplo, entre as abelhas, que emitem sinais detectáveis por outras
abelhas – através de movimentos cuidadosamente captados e observados. Já outros
estudiosos contestaram tais interpretações, como o linguista Benveniste (1902-1976),
para o qual a linguagem é um diálogo entre duas ou mais partes, enquanto que num
sistema de sinais (como o das abelhas) não há diálogo; além disso, na linguagem a
mensagem pode ser transmitida a uma terceira pessoa, enquanto que num sistema de
sinais a mensagem não vai além do receptor; por fim, a linguagem para Benveniste é
constituída de infinitos conteúdos, enquanto que o sistema de sinais é limitado a uma
quantidade de sinais específicos (como um programa de computador, por exemplo).
Esperamos que a leitura dos textos seguintes o ajude a entender essas e outras
questões.

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HJELMSLEV: ESTUDO DA LINGUAGEM
Louis Trolle Hjelmslev foi um linguista dinamarquês. Seus
estudos basearam-se no estudo formal da linguagem, isto é, utilizando-
se critérios mais racionais e lógicos. Isso o levou a desenvolver a
teoria da Glossemática.
O texto abaixo foi retirado da obra Prolegômenos a uma
Teoria da Linguagem. Leia-o e responda: 1) O que é a linguagem? 2)
Qual a importância de seu estudo? 3) O que é significa considerar a
linguagem como um meio ou como um fim em si mesmo? Justifique.

A linguagem – a fala – é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é


inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao
qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua
vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última
e mais profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso último e indispensável do
homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a existência, e quando o
conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador. Antes mesmo do
primeiro despertar de nossa consciência, as palavras já ressoavam à nossa volta, prontas para
envolver os primeiros germes frágeis de nosso pensamento e a nos acompanhar
inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes ocupações da vida cotidiana até os
momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças às
lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor. A linguagem não é um simples
acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o
indivíduo, é o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pai para filho. Para
o bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade, da terra natal e da nação, o título de
nobreza da humanidade. O desenvolvimento da linguagem está tão inextricavelmente ligado ao
da personalidade de cada indivíduo, da terra natal, da nação, da humanidade, da própria vida,
que é possível indagar-se se ela não passa de um simples reflexo ou se ela não é tudo isso: a
própria fonte do desenvolvimento dessas coisas.
É por isso que a linguagem cativou o homem enquanto objeto de deslumbramento e de
descrição, na poesia e na ciência. A ciência foi levada a ver na linguagem sequências de sons e
de movimentos expressivos, suscetíveis de uma descrição exata, física e fisiológica, e cuja
disposição forma signos que traduzem os fatos da consciência. Procurou-se, através de
interpretações psicológicas e lógicas, reconhecer nesses signos as flutuações da psique e a
constância do pensamento: as primeiras na evolução e na vida caprichosa da língua; a segunda,
em seus próprios signos, dentre os quais distinguiu-se a palavra e a frase, imagens concretas do
conceito e do juízo. A linguagem, como sistema de signos, devia fornecer a chave do sistema
conceitual e a da natureza psíquica do homem. A linguagem, como instituição social
superindividual, devia contribuir para a caracterização da nação; a linguagem, com suas
flutuações e sua evolução, devia abrir caminho ao conhecimento do estilo da personalidade e
ao conhecimento das longínquas vicissitudes das gerações desaparecidas. A linguagem
ganhava assim uma posição-chave que iria abrir perspectivas em muitas direções.
Assim considerada, e mesmo quando é objeto da ciência, a linguagem deixa de ser um
fim em si mesma e torna-se um meio: meio de um conhecimento cujo objeto principal reside
fora da própria linguagem, ainda que seja o único caminho para chegar até esse conhecimento,
e que se inspira em fatos estranhos a este. Ela se torna, então, o meio de um conhecimento
transcendental – no sentido próprio, etimológico do termo – e não o fim de um conhecimento
imanente. É assim que a descrição física e fisiológica dos sons da linguagem corre o risco de
cair no físico e no fisiológico puros, e que a descrição psicológica e lógica dos signos – isto é,
das palavras e das frases – reduz-se facilmente a uma psicologia, uma lógica e uma ontologia
puras, perdendo de vista, com isso, seu ponto de partida linguístico.
HJELMSLEV, L. T. Prolegômenos a uma Teoria da Linguagem. In: Os Pensadores.
São Paulo: Abril Cultural, 1975. Vol. XLIX, p.185-6.

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FERDINAND DE SAUSSURE: LÍNGUA E LINGUAGEM
Ferdinand de Saussure (1857-1913) foi um linguista suíço. Seus
estudos sobre a estrutura da linguagem levaram-no a considera-la como
um fenômeno social, uma instituição. Como tal, pode ser analisada de
forma síncrona (existente num determinado momento) e diacrônica
(como muda ao longo do tempo). A maioria dos estudos se concentrava
na análise diacrônica, mas Saussure insistiu na importância de se
entender a estrutura da linguagem como um sistema funcional em si
mesmo, isto é, na análise síncrona; além disso, destacou que as duas
análises são distintas em seus princípios e métodos.
Saussure ministrou cursos de linguística em Genebra entre os anos de 1907 e
1910. Em 1916, três anos após sua morte, alguns de seus discípulos reuniram e
compilaram as anotações de alunos que frequentaram esses cursos, e então surgiu o
Curso de Linguística Geral, uma obra que influenciou toda a Linguística do século XX
e que até hoje é referência na área.
O texto abaixo foi retirado justamente da obra Curso de Linguística Geral. Leia-
o e responda: 1) Qual a diferença entre língua e linguagem? 2) Qual a importância de se
estudar a língua quando se procura estudar a linguagem? 3) Por que o estudo da
linguagem interessa à Sociologia? 4) A função da linguagem é natural ou arbitrária?
Justifique.

O fenômeno linguístico apresenta perpetuamente duas faces que se


correspondem e das quais uma não vale senão pela outra. Por exemplo:
1º) As sílabas que se articulam são impressões acústicas percebidas pelo
ouvido, mas os sons não existiriam sem os órgãos vocais; assim, um n existe somente
pela correspondência desses dois aspectos. Não se pode reduzir então a língua ao som,
nem separar o som da articulação vocal; reciprocamente, não se podem definir os
movimentos dos órgãos vocais se se fizer abstração da impressão acústica.
2º) Mas admitamos que o som seja uma coisa simples: é ele quem faz a
linguagem? Não, não passa de instrumento do pensamento e não existe por si mesmo.
Surge daí uma nova e temível correspondência: o som, unidade complexa acústico-
vocal, forma por sua vez, com a ideia, uma unidade complexa, fisiológica e mental. E
ainda mais:
3º) A linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impossível
conceber um sem o outro. Finalmente:
4º) A cada instante, a linguagem implica ao mesmo tempo um sistema
estabelecido e uma evolução: a cada instante, ela é uma instituição atual e um produto
do passado. Parece fácil, à primeira vista, distinguir entre esses sistemas e sua história,
entre aquilo que ele é e o que foi; na realidade, a relação que une ambas as coisas é tão
íntima que se faz difícil separá-las. Seria a questão mais simples se se considerasse o
fenômeno linguístico em suas origens; se, por exemplo, começássemos por estudar a
linguagem das crianças? Não, pois é uma ideia bastante falsa crer que em matéria de
linguagem o problema das origens difira do das condições permanentes; não se sairá
mais do círculo vicioso, então.
Desse modo, qualquer que seja o lado por que se aborda a questão, em nenhuma
parte se nos oferece integral o objeto da Linguística. Sempre encontramos o dilema: ou
nos aplicamos a um lado apenas de cada problema e nos arriscamos a não perceber as
dualidades assinaladas acima, ou, se estudarmos a linguagem sob vários aspectos ao
mesmo tempo, o objeto da Linguística nos aparecerá como um aglomerado confuso de
coisas heteróclitas, sem liame entre si. Quando se procede assim, abre-se a porta a

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várias ciências – Psicologia, Antropologia, Gramática normativa, Filologia, etc. –, que
separamos claramente da Linguística, mas que, por culpa de um método incorreto,
poderiam reivindicar a linguagem como um de seus objetos.
Há, segundo nos parece, uma solução para todas essas dificuldades: é
necessário colocar-se primeiramente no terreno da língua e toma-la como norma de
todas as outras manifestações da linguagem. De fato, entre tantas dualidades, somente
a língua parece suscetível duma definição autônoma e fornece um ponto de apoio
satisfatório para o espírito.
Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é
somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo,
um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções
necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos
indivíduos. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; em lugar
superior de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela
pertence além disso ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar
em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade.
A língua, ao contrário, é um todo por si e um princípio de classificação. Desde
que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem
natural num conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação.
A esse princípio de classificação poder-se-ia objetar que o exercício da
linguagem repousa numa faculdade que nos é dada pela Natureza, ao passo que a
língua constitui algo adquirido e convencional, que deveria subordinar-se ao instinto
natural em vez de adiantar-se a ele.
Eis o que pode se responder.
Inicialmente, não está provado que a função da linguagem, tal como ela se
manifesta quando falamos, seja inteiramente natural, isto é: que nosso aparelho vocal
tenha sido feito para falar, assim como nossas pernas para andar. Os linguistas estão
longe de concordar nesse ponto. Assim, para Whitney, que considera a língua uma
instituição social da mesma espécie que todas as outras, é por acaso e por simples
razões de comodidade que nos servimos do aparelho vocal como instrumento da
língua; os homens poderiam também ter escolhido o gesto e empregar imagens visuais
em lugar de imagens acústicas. Sem dúvida, esta tese é demasiado absoluta; a língua
não é uma instituição social semelhante às outras em todos os pontos; além disso,
Whitney vai longe demais quando diz que nossa escolha recaiu por acaso nos órgãos
vocais; de certo modo, já nos haviam sido impostas pela Natureza. No ponto essencial,
porém, o linguista americano nos parece ter razão: a língua é uma convenção e a
natureza do signo convencional é indiferente. A questão do aparelho vocal se revela,
pois, secundária no problema da linguagem. (...)
Para atribuir à língua o primeiro lugar no estudo da linguagem, pode-se, enfim,
fazer valer o argumento de que a faculdade – natural ou não – de articular palavras não
se exerce senão com ajuda de instrumento criado e fornecido pela coletividade; não é,
então, ilusório dizer que é a língua que faz a unidade da linguagem.

SAUSSURE, F de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1969, p.15-18.

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LÉVI-STRAUSS: LINGUAGEM E SOCIEDADE
O antropólogo Claude Lévi-Strauss já foi lido em texto anterior. Nesta
passagem, ele analisa alguns aspectos interessantes da linguagem, notando que há
comunicação em aspectos inusitados da sociedade. Leia-o e responda: 1) O que é
manifestação consciente e inconsciente da linguagem? 2) Que outros sistemas sociais
podem ser vistos como um tipo de linguagem? Explique.

A linguagem é um fenômeno social. Entre os fenômenos sociais, é ela que


apresenta mais claramente os dois caracteres fundamentais que propiciam um estudo
científico. Primeiramente, quase todas as condutas linguísticas se situam no nível do
pensamento inconsciente. Falando, não temos consciência das leis sintáticas e
morfológicas da língua. Além disto, não temos um conhecimento consciente dos
fonemas que utilizamos para diferenciar o sentido de nossas palavras; somos ainda
menos conscientes – supondo-se que que pudéssemos sê-lo às vezes – das oposições
fonológicas que permitem analisar cada fonema em elementos diferenciais. Enfim, a
falta de apreensão intuitiva persiste, mesmo quando formulamos as regras gramaticais
ou fonológicas de nossa língua. Esta formulação emerge unicamente no plano do
pensamento científico, ao passo que a língua vive e se desenvolve como uma
elaboração coletiva. Mesmo o sábio não consegue jamais confundir completamente
seus conhecimentos teóricos e sua experiência de sujeito falante. Sua maneira de falar
se modifica muito pouco sob o efeito de interpretações que ele possa dar disto, e que
provêm de outro nível. Na linguística, pode-se, pois, afirmar que a influência do
observador sobre o objeto da observação é desprezível: não basta que o observador
tome consciência do fenômeno para que este seja modificado.
A linguagem apareceu muito cedo no desenvolvimento da humanidade. Mas,
mesmo levando em consideração a necessidade de documentos escritos para
empreender um estudo científico, reconhecer-se-á que a escrita data de muito tempo e
que fornece séries suficientemente longas para tornar possível a análise matemática. As
séries disponíveis da linguística indo-europeia, semítica e sino-tibetana são da ordem
de 4 ou 5.000 anos. (...)
De todos os fenômenos sociais, somente a linguagem parece presentemente
suscetível de um estudo verdadeiramente científico, que explique a maneira pela qual
ela se formou e preveja certas modalidades de sua evolução ulterior. Estes resultados
foram obtidos graças à fonologia, e na medida em que ela soube, além das
manifestações conscientes e históricas da língua, sempre superficiais, atingir realidades
objetivas. Estas consistem em sistemas de relações, que são o produto da atividade
inconsciente do espírito. De onde as perguntas: seria possível realizar uma redução
desse tipo em relação a outros tipos de fenômenos sociais? Em caso afirmativo, um
método idêntico conduziria aos mesmos resultados? E, finalmente, se respondêssemos
afirmativamente à segunda pergunta, poderíamos admitir que diversas formas de vida
social são substancialmente de mesma natureza, sistemas de comportamento, dos quais
cada um é uma projeção no plano do pensamento consciente e socializado, das leis
universais que regem a atividade inconsciente do espírito? (...)
Em seu estudo acerca da evolução do estilo do vestuário feminino, Kroeber
investigou a moda, isto é, um fenômeno social intimamente ligado à atividade
inconsciente do espírito. Raramente sabemos exatamente por que um determinado
estilo nos agrada ou por que sai de moda. Kroeber mostrou que essa evolução,
aparentemente arbitrária, obedece a leis, que não são acessíveis à observação empírica
nem tampouco a uma apreensão intuitiva dos fatos da moda. Manifestam-se apenas

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quando se mede um certo número de relações entre os vários elementos do vestuário.
Tais relações podem ser expressas na forma de funções matemáticas, cujos valores,
calculados num determinado momento, fornecem uma base para a previsão. (...)
Apliquei um método análogo ao estudo da organização social, principalmente
das regras de casamento e dos sistemas de parentesco. Foi assim possível estabelecer
que as regras de casamento observáveis nas sociedades humanas não devem ser
classificadas – como se costuma fazer – em categorias heterogêneas e diversamente
intituladas: proibição do incesto, tipos de casamento preferencial etc. Todas elas
representam modos de garantir a circulação das mulheres no seio do grupo social, isto
é, de substituir um sistema de relações consangüíneas, de origem biológica, por um
sistema sociológico de aliança. (...)
Pois bem, a hipótese inicial foi confirmada pela demonstração – obtida de modo
puramente dedutivo – de que todos os mecanismos de reciprocidade conhecidos pela
antropologia clássica (isto é, aqueles fundados numa organização dualista e o
casamento por troca entre parceiros em número de 2, ou de um múltiplo de 2)
constituem casos particulares de uma forma de reciprocidade mais geral, entre um
número qualquer de parceiros. Tal forma geral de reciprocidade tinha permanecido
oculta, porque os parceiros não dão uns aos outros (e não recebem uns dos outros): não
se recebe daquele a quem se dá e não se dá àquele de quem se recebe. Cada qual dá a
um parceiro e recebe de outro, no interior de um ciclo de reciprocidade que opera num
único sentido. (...)
Toda a demonstração (...) pode ser levada a bom termo com uma condição:
considerar as regras de casamento e os sistemas de parentesco como uma espécie de
linguagem, ou seja, um conjunto de operações destinadas a garantir um certo tipo de
comunicação entre os indivíduos e os grupos. O fato de aqui a ―mensagem‖ ser
constituída pelas mulheres do grupo que circulam entre os clãs, linhagens ou famílias
(e não, como na linguagem em si, pelas palavras do grupo circulando entre indivíduos)
não altera em nada a identidade do fenômeno, considerado em ambos os casos.
Seria possível ir mais longe? Ao alargarmos a noção de comunicação para nela
incluir a exogamia e as regras que decorrem da proibição do incesto, podemos lançar
algumas luzes sobre uma questão ainda misteriosa, a da origem da linguagem.
Comparadas à linguagem, as regras do casamento formam um sistema complexo do
mesmo tipo que ela, porém mais grosseiro, e no qual um bom número de traços
arcaicos, comuns a ambos, se encontram preservados. Todos reconhecemos que as
palavras são signos, mas os poetas são ainda, entre nós, os últimos a saber que as
palavras também foram valores. Em compensação, o grupo social considera as
mulheres como valores de um tipo essencial, mas temos dificuldade em compreender
que tais valores possam se integrar em sistemas significativos, qualidade que mal
começamos a atribuir aos sistemas de parentesco. Tal equívoco fica evidente numa
crítica algumas vezes feita às Estruturas elementares do parentesco: ―livro
antifeminista‖, disseram alguns, porque as mulheres nele são tratadas como objetos. É
legítima a surpresa diante do fato de se atribuir às mulheres o papel de elementos num
sistema de signos. Porém, vale lembrar que, se as palavras e os fonemas perderam (de
modo mais aparente do que real, aliás) seu caráter de valores, para se tornarem meros
signos, a mesma evolução não poderia se reproduzir integralmente no que diz respeito
às mulheres. As palavras, ao contrário das mulheres, não falam. Estas são ao mesmo
tempo signos e produtoras de signos e, enquanto tais, não podem ser reduzidas ao
estado de símbolos ou ocorrência de símbolos.

STRAUSS, C. L. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, s/d, p.72-8.

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EDWARD HALL: LÍNGUA E PERCEPÇÃO SENSORIAL
Edward Twitchell Hall Jr (1914-2009) foi um antropólogo
americano cujos estudos se basearam no tema da comunicação.
Estudando culturas diversas, observou de que modo a comunicação se
manifestava em cada uma delas, não apenas através da língua, mas por
meio de gestos, tipos de construção de casas, dormitórios, distância entre
os falantes, disposição espacial dos objetos e uma série de outros
elementos. Sua teoria ficou conhecida como comunicação proxêmica.
O texto abaixo foi retirado da obra A Dimensão Oculta. Leia-o e responda: 1) O
que é a língua, segundo Hall? 2) Por que pessoas com a mesma experiência, mas em
culturas diferentes, possuem visões diferentes em relação a essa mesma experiência?
Há cerca de cinquenta e três anos, Franz Boas estabeleceu os fundamentos de que a
comunicação constitui o núcleo da cultura e, na verdade, da própria vida. Nos vinte anos
subsequentes, Boas e dois outros antropólogos, Edward Sapir e Leonard Bloomfield, todos
falando idiomas indo-europeus, defrontaram-se com as línguas, radicalmente diferentes, dos
índios americanos e dos esquimós. O conflito entre esses dois sistemas de linguagem distintos
produziu uma revolução, no tocante à natureza da linguagem em si. Até então, os estudiosos
europeus tomavam as línguas indo-europeias como modelos para todas as línguas. Boas e seus
seguidores descobriram, com efeito, que cada família de idiomas é uma lei em si, um sistema
fechado, cujos modelos os linguistas precisam revelar e descrever. Era preciso que o cientista
da linguística evitasse, conscientemente, a armadilha de projetar as regras ocultas de sua
própria língua naquela que estava sendo estudada.
Na década de 30, Benjamin Lee Whorf, químico e engenheiro, porém diletante do
campo da linguística, começou a estudar com Sapir. Os ensaios de Whorf, baseados em seu
trabalho com os índios Hopi e Shawnee, tiveram implicações revolucionárias para a relação da
língua com o pensamento e também com a percepção. A língua, disse ele, é mais do que apenas
um meio de expressão do pensamento. Trata-se, na verdade, de um elemento na formação do
pensamento. Além disso, para empregar uma imagem bem atual, a própria percepção que o
homem tem do mundo em torno de si é programada pela língua que fala, exatamente como um
computador. Como este, a mente do homem só registra e estrutura a realidade externa de
acordo com o programa. E já que dois idiomas muitas vezes programam o mesmo tipo de
eventos de maneira completamente diferente, nenhuma crença ou sistema filosófico devem ser
considerados isolados da língua.
Só nos últimos anos, e apenas para um punhado de pessoas, as implicações do
pensamento de Whorf tornaram-se evidentes. Difíceis de captar, elas se mostraram algo
assustadoras, quando analisadas cuidadosamente. Chocam-se com a raiz da doutrina do ―livre
arbítrio‖ porque, segundo indicam, todos os homens são prisioneiros de sua língua, na medida
em que não dão maior atenção a ela.
A tese deste livro, e a de The Silent Language, anterior a ele, é de que os princípios
estabelecidos por Whorf e seus companheiros linguistas com relação à língua aplicam-se,
também, ao resto do comportamento humano – na verdade, a toda cultura. Era crença antiga
que a experiência fosse partilhada por todos os homens e que existisse sempre a possibilidade
de ultrapassar a língua e a cultura e, de alguma forma, recorrer à experiência, para alcançar
outro ser humano. Esta crença implícita (e, muitas vezes, explícita), referente à relação do
homem com a experiência, baseava-se em suposições de que, quando dois seres humanos são
submetidos à mesma ―experiência‖, virtualmente os dois sistemas nervosos centrais estão
sendo alimentados com os mesmos dados, e os dois têm registros similares.
A pesquisa proxêmica coloca em séria dúvida a validade desta suposição,
particularmente quando as culturas são diferentes. (...) Pessoas de culturas diferentes não
apenas falam línguas diversas mas, o que é talvez mais importante, habitam em diferentes
mundos sensoriais.
HALL, E. T. Jr. A Dimensão Oculta.

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LÚCIA SANTAELLA: AS VÁRIAS
MANIFESTAÇÕES DA LINGUAGEM
Maria Lucia Santaella Braga (1944) é doutora na área
de Letras. Dentre os seus vários estudos, destacam-se os na
área da Semiótica. O texto abaixo foi retirado de sua obra O
que é Semiótica, no qual ela analisa as diferenças entre a língua
e a linguagem. Leia-o e responda: 1) Qual é essa diferença? 2)
Cite exemplos de linguagens modernas.

O século XX viu nascer e está testemunhando o crescimento de duas ciências da


linguagem. Uma delas é a Linguística, ciência da linguagem verbal. A outra é a Semiótica,
ciência de toda e qualquer linguagem. (...)
Tão natural e evidente, tão profundamente integrado ao nosso próprio ser é o uso da
língua que falamos, e da qual fazemos uso para escrever — língua nativa, materna ou pátria,
como costuma ser chamada —, que tendemos a nos desaperceber de que esta não é a única e
exclusiva forma de linguagem que somos capazes de produzir, criar, reproduzir, transformar e
consumir, ou seja, ver-ouvir-ler para que possamos nos comunicar uns com os outros.
É tal a distração que a aparente dominância da língua provoca em nós que, na maior
parte das vezes, não chegamos a tomar consciência de que o nosso estar-no-mundo, como
indivíduos sociais que somos, é mediado por uma rede intrincada e plural de linguagem, isto é,
que nos comunicamos também através da leitura e/ou produção de formas, volumes, massas,
interações de forças, movimentos; que somos também leitores e/ou produtores de dimensões e
direções de linhas, traços, cores... Enfim, também nos comunicamos e nos orientamos através
de imagens, gráficos, sinais, setas, números, luzes... Através de objetos, sons musicais, gestos,
expressões, cheiro e tato, através do olhar, do sentir e do apalpar. Somos uma espécie animal
tão complexa quanto são complexas e plurais as linguagens que nos constituem como seres
simbólicos, isto é, seres de linguagem.
Cumpre notar que a ilusória exclusividade da língua, como forma de linguagem e meio
de comunicação privilegiados, é muito intensamente devida a um condicionamento histórico
que nos levou à crença de que as únicas formas de conhecimento, de saber e de interpretação
do mundo são aquelas veiculadas pela língua, na sua manifestação como linguagem verbal oral
ou escrita. O saber analítico, que essa linguagem permite, conduziu à legitimação consensual e
institucional de que esse é o saber de primeira ordem, em detrimento e relegando para uma
segunda ordem todos os outros saberes, mais sensíveis, que as outras linguagens, as não-
verbais, possibilitam.
No entanto, em todos os tempos, grupos humanos constituídos sempre recorreram a
modos de expressão, de manifestação de sentido e de comunicação sociais outros e diversos da
linguagem verbal, desde os desenhos nas grutas de Lascaux, os rituais de tribos "primitivas",
danças, músicas, cerimoniais e jogos, até as produções de arquitetura e de objetos, além das
formas de criação de linguagem que viemos a chamar de arte: desenhos, pinturas, esculturas,
poética, cenografia etc. E, quando consideramos a linguagem verbal escrita, esta também não
conheceu apenas o modo de codificação alfabética criado e estabelecido no Ocidente a partir
dos gregos. Há outras formas de codificação escrita, diferentes da linguagem alfabeticamente
articulada, tais como hieróglifos, pictogramas, ideogramas, formas estas que se limitam com o
desenho.
Em síntese: existe uma linguagem verbal, linguagem de sons que veiculam conceitos e
que se articulam no aparelho fonador, sons estes que, no Ocidente, receberam uma tradução
visual alfabética (linguagem escrita), mas existe simultaneamente uma enorme variedade de
outras linguagens que também se constituem em sistemas sociais e históricos de representação
do mundo.

SANTAELLA, L. O que é Semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.9-11.

52
SHANNON: TEORIA MATEMÁTICA DA COMUNICAÇÃO
Claude Elwood Shannon (1916-2001) era um
cientista americano, graduado em Engenharia Elétrica e
Matemática. Trabalhou com computadores, cibernética e
teoria da informação, sendo um dos grandes responsáveis
pelo desenvolvimento da comunicação binária conforme
utilizada atualmente pelos sistemas digitais.
Antes dele, engenheiros e pesquisadores como
Norbert Wiener, Harry Nyquist e Ralph Vinton Lyon
Hartley haviam desenvolvido teorias sobre a comunicação.
Baseado nessas influências e em tantas outras como do
matemático Boyle e do criptoanalista e matemático Alan
Turing, Shannon desenvolveu uma teoria da comunicação
que até hoje é referência na área das comunicações
analógicas e digitais, principalmente esta última.

O conceito de informação está relacionado à incerteza. Para se entender melhor


o que isso significa, suponha que sejam apresentadas três notícias diferentes:

1. No próximo Natal as pessoas irão comemorar o nascimento de Jesus.


2. O volume de chuva previsto para esse ano será o maior dos últimos 50 anos.
3. O preço da gasolina será R$ 1,00/litro a partir de amanhã em todos os postos do país.

De todas essas informações, qual lhe prenderia mais a atenção? Certamente que a
terceira, a não ser que você seja uma pessoa totalmente alheia ao que ocorre no mundo.
E qual informação chamou menos a atenção? A explicação para isso foi dada por
Shannon: quanto maior a incerteza, maior a quantidade de informação; e vice-versa,
quanto menor a incerteza (ou maior a certeza) sobre algo, menor será a quantidade de
informação recebida. Isso pode ser expresso pela noção de probabilidades: quanto maior
a probabilidade de ocorrência de um evento, menor a quantidade de informação contida,
e quanto menor a probabilidade de ocorrência de um evento, maior quantidade de
informação terá. Dizer que as pessoas irão comemorar o nascimento de Jesus no Natal é
um evento praticamente certo (100% de chances de ocorrer); já afirmar que o volume de
chuva será o maior dos últimos 50 anos possui probabilidade não muito grande de
ocorrência, por isso trará grande informação; afirmar que o preço da gasolina será de
apenas 1 real por litro em todo o país a partir de amanhã é um evento praticamente
impossível, e por tal motivo, seria uma mensagem com uma quantidade imensa de
informação.
Shannon procurou dar um tratamento matemático à informação, não se
interessando pelos aspectos semânticos ou linguísticos relacionados à mesma. Por
questões envolvendo praticidade, tratamento matemático adequado, codificação binária
e noção intuitiva da informação, Shannon utilizou logaritmos para expressar a medida
da informação, conforme resumidamente expresso abaixo.

Em que I é a quantidade de informação obtida na mensagem e P é a probabilidade de


ocorrência da mensagem.
Shannon também mostrou de que maneira os ruídos podem corromper a
mensagem original e, consequentemente, limitar a quantidade de informação
transmitida por um meio qualquer (cabo, ondas eletromagnéticas, etc.). Entende-se por
53
ruído tudo aquilo que, na mensagem, não interessa ao destinatário. Por exemplo, quando
se fala ao telefone com alguém, o interesse é ouvir o que a pessoa está dizendo, da
forma mais clara possível, sem zumbidos, cortes na fala ou qualquer outro tipo de
distorção. Ou ainda, num ambiente onde várias pessoas falam ao mesmo tempo, você
certamente prenderá sua atenção às conversas que sejam do seu interesse, ignorando o
resto; esse resto será então o ruído. O que é ruído para uns pode não ser para outros.
Embora o conceito de informação desenvolvido por Shannon tenha sido pensado
no âmbito da engenharia e teoria das comunicações dentro da área de ciências exatas,
vários estudiosos procuraram aplicar essas ideias em contextos envolvendo
organizações ou mesmo instituições sociais. Muitos deles procuraram entender de que
forma os sistemas socioculturais se ligam entre si e trocam informações, como tais
informações são corrompidas ou distorcidas pelas circunstâncias sociais/ culturais, e
quais os limites envolvidos nesse processo. Já outros argumentaram que o tratamento
matemático dado à teoria das comunicações jamais poderia ser de grande utilidade para
o entendimento dos processos que ocorrem dentro da sociedade.
O texto abaixo foi retirado da obra The Mathematical Theory of Communication,
escrito por Shannon em parceria com o matemático Warren Weaver. Leia-o e responda:
1) por que o um sistema de comunicação deve ser projetado visando cada possível
seleção? 2) Explique as partes de um sistema de comunicação.

O problema fundamental da comunicação é o de reproduzir em um ponto


exatamente ou aproximadamente uma mensagem selecionada em outro ponto.
Frequentemente as mensagens têm significado; isto é, elas se referem ou estão
correlacionadas, de acordo com algum sistema, com certas entidades físicas ou
conceituais. Esses aspectos semânticos da comunicação são irrelevantes para o
problema de engenharia. O aspecto significativo é que a mensagem real é aquela
selecionada em um conjunto de mensagens possíveis. O sistema deve ser projetado
para operar sob cada possível seleção, e não apenas sob aquela que realmente será
escolhida, pois isso é desconhecido no momento do projeto.
Se o número de mensagens no conjunto for finito, esse número ou qualquer
função monotônica desse número poderá ser considerada como uma medida da
informação produzida quando uma mensagem é escolhida no conjunto, sendo todas as
opções igualmente prováveis. Como apontado por Hartley, a escolha mais natural é a
função logarítmica. Embora essa definição deva ser generalizada consideravelmente
quando considerarmos a influência das estatísticas da mensagem e quando tivermos um
intervalo contínuo de mensagens, em todos os casos usaremos uma medida
essencialmente logarítmica. (...)
Chamamos de sistema de comunicação ao tipo indicado esquematicamente na
figura abaixo.

SHANNON, C. E., WEAVER, W. The Mathematical Theory of Communication.


Urbana: The University of Illinois Press. 1964, p.31-34.

54
JAKOBSON: LINGUÍSTICA E TEORIA DAS COMUNICAÇÕES
O texto abaixo foi retirado de uma conferência proferida
pelo linguista Roman Jakobson (1896-1982) e compilada no livro
Linguística e Comunicação. Nesta passagem, Jakobson procura
mostrar quais as relações podem ser estabelecidas entre a teoria da
linguagem e outras disciplinas como Antropologia ou mesmo
Engenharia de Comunicações. Leia o texto abaixo e responda: 1)
Qual a relação entre linguagem e cultura? 2) Qual foi a contribuição
de Charles Sanders Pierce para a Linguística? 3) Qual a importância
da Engenharia das Comunicações para as análises Linguísticas? 4)
Quais são os fatores fundamentais da comunicação linguística?

Se, agora, estudamos a linguagem juntamente com os antropólogos, devemo-


nos regozijar com a ajuda que eles nos trazem. Com efeito, os antropólogos têm sempre
afirmado e provado que a linguagem e a cultura se implicam mutuamente, que a
linguagem deve ser concebida como uma parte integrante da vida social, que a
Linguística está estreitamente ligada à Antropologia Cultural. É inútil insistir nesse
problema que C. Lévi-Strauss apresentou de modo tão esclarecedor. Gostaria, antes, de
voltar ao que dizia D. Bidney, durante a discussão da tarde: um gênero mais próximo
ainda que o gênero cultura engloba a espécie linguagem. A linguagem é um caso
particular dessa subclasse de signos que, sob o nome de símbolos, nos foi descrita de
modo tão penetrante por Chao (...). É por isso que, quando determinamos o que seja
linguagem, devemos, com H. L. Smith, compará-la aos outros sistemas simbólicos, por
exemplo, o sistema de gestos (...). Esse sistema de gestos oferece – estou de acordo –
semelhanças instrutivas com a linguagem e também – é bom acrescentar – diferenças
não menos notáveis. Em face da iminente tarefa de analisar e comparar os deferentes
sistemas semiológicos, devemos lembrar-nos não somente da divisa de F. de Saussure
de que a Linguística é parte integrante da ciência dos signos, mas também, e antes de
tudo, da obra monumental de seu eminente contemporâneo, um dos maiores
precursores da análise estrutural linguística, Charles Sanders Pierce. Pierce não só
estabeleceu a necessidade da Semiótica como esboçou-lhe também as grandes linhas.
Quando se estudarem cuidadosamente as ideias de Pierce a respeito das teorias dos
signos, dos signos linguísticos em particular, ver-se-á o preciosos auxílio que trazem às
pesquisas sobre as relações entre a linguagem e os outros sistemas de signos. Seremos
então capazes de discernir os traços próprios do signo linguístico. No mais, só se pode
concordar com nosso amigo N. McQuown, que compreendeu perfeitamente que não há
igualdade entre os diferentes sistemas de signos e que o sistema semiótico mais
importante, a base de todo o restante, é a linguagem: a linguagem é de fato o próprio
fundamento da cultura. Em relação à linguagem, todos os outros sistemas de símbolos
são acessórios ou derivados. O instrumento principal da comunicação informativa é a
linguagem.
No estudo da linguagem em ação, a Linguística tem sido solidamente escorada
pelo impressionante desenvolvimento de duas disciplinas aparentadas, a teoria
matemática da comunicação e a teoria da informação. As pesquisas dos engenheiros de
comunicações não estavam no programa desta Conferência, mas é sintomático que a
influência de C. E. Shannon e W. Weaver, de N. Wiener e R. M. Fano, ou do excelente
grupo de Londres, seja encontrada praticamente em todos os trabalhos.
Involuntariamente, mantivemos discussões usando termos como codificação,
decodificação, redundância, etc. Qual é, então, exatamente, a relação entre a teoria da

55
comunicação e a Linguística? Haveria por acaso conflito entre esses dois métodos de
abordagem? Não, de modo algum! Em verdade, a Linguística estrutural e as pesquisas
dos engenheiros de comunicações convergem no que respeita à sua destinação. Mas
então, de que ordem é exatamente a utilidade da teoria da comunicação para a
Linguística e vice-versa? É preciso reconhecer que, sob certos aspectos, os problemas
da troca de informação encontram, por parte dos engenheiros, uma formulação mais
exata e menos ambígua, um controle mais eficaz das técnicas utilizadas, bem como
prometedoras possibilidades de quantificação. Por outro lado, a imensa experiência
acumulada pelos linguistas no tocante à linguagem e à sua estrutura permite-lhes expor
as fraquezas dos engenheiros quando estes lidam com material linguístico. A par da
colaboração entre linguistas e antropólogos, creio que uma colaboração sistemática dos
linguistas, e talvez dos antropólogos também, com os engenheiros de comunicações
será muito frutuosa.
Analisemos os fatores fundamentais da comunicação linguística: qualquer ato
de fala envolve uma mensagem e quatro elementos que lhe são conexos: o emissor, o
receptor, o tema (topic) da mensagem e o código utilizado. A relação entre esses quatro
elementos é variável. E. Sapir analisou os fenômenos linguísticos principalmente do
ponto de vista de sua ―função cognitiva‖, a qual ele considerava como a função
essencial da linguagem. Mas essa ênfase da mensagem no seu tema está longe de ser a
única possibilidade. Desde há algum tempo, tanto nos Estados Unidos como em outros
países os linguistas começam a dar mais atenção às possibilidades evidenciadas pela
ênfase da mensagem em outros fatores, em particular a ênfase nos dois protagonistas
do ato de comunicação, o emissor e o receptor. É assim que acolhemos com prazer as
penetrantes observações de Smith acerca dos elementos linguísticos que servem para
caracterizar quem fala, sua atitude em relação ao que diz e a quem o ouve. (...)
Mencionamos os fatores implicados no ato da fala, mas nada dissemos das
interações e permutações possíveis entre esses fatores – por exemplo, os papeis de
emissor e de receptor podem confundir-se ou alternar-se, o emissor e o receptor podem
tornar-se o tema da mensagem, etc. Mas o problema essencial para a análise do
discurso é o código comum ao emissor e ao receptor e subjacente à troca de
mensagens. Qualquer comunicação seria impossível na ausência de um certo repertório
de ―possibilidades preconcebidas‖ ou de ―representações pré-fabricadas‖ como dizem
os engenheiros, e notadamente D. M. MacKay, um dos mais próximos dos linguistas
entre eles. Quando li tudo o que escreveram os engenheiros de comunicações (...) sobre
código e mensagem, dei-me conta, é claro, de que desde há muito esses dois aspectos
complementares são familiares às teorias linguísticas e lógicas da linguagem, tanto aqui
como alhures; é a mesma dicotomia que encontramos sob denominações diversas tais
como langue-parole (língua-fala), Sistema Linguístico Enunciado, Legisigns-Sinsigns,
Type-Token (tipo-caso particular), Sign-de-sign, Sign-event etc., (modelo semiótico-
processo semiótico) mas devo confessar que os conceitos de código e mensagem
introduzidos pela teoria da comunicação são muito mais claros, muito menos
ambíguos, muito mais operacionais do que tudo o que nos oferece a teoria tradicional
da linguagem para exprimir essa dicotomia. (...)
A teoria da comunicação parece-me uma boa escolar para a Linguística
estrutural, assim como a Linguística estrutural é uma escola útil para os engenheiros de
comunicações. Penso que a realidade fundamental com que se tem de haver o linguista
é a interlocução – a troca de mensagens entre emissor e receptor, entre remetente e
destinatário, entre codificador e decodificador.

JAKOBSON, R. Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1977, 9ªed., p.17-22.

56
ESTADO
A origem do Estado remonta às épocas mais remotas da humanidade. Embora a
―cidade-Estado‖ tenha surgido na Grécia antiga em torno do século VIII a.C., cidades
muito antigas com governo e estrutura administrativa básica já haviam surgido bem
antes. Algumas dessas cidades provavelmente nem existem mais, porém outras
conseguiram se manter até hoje, como é o caso de Damasco, cujas evidências
arqueológicas indicam a existência de habitações há pelo menos 11 mil anos atrás, ou
Aleppo, na qual foram encontradas escavações que datam de 13 mil anos atrás,
indicando que nessa época ela já era habitada. Outro exemplo é Jericó, considerada a
primeira cidade murada do mundo, e que possui uma idade de aprox. 11 mil anos.
Quando nos referimos ao Estado como instituição, pensamos na sua complexa
estrutura administrativa, nas relações de poder, taxação, leis, ou ainda, no aparato
militar. Envolve também a política no sentido restrito da palavra, cujo estudo é de
grande importância para as Ciências Sociais. Entretanto, há um aspecto essencial
quando se trata do Estado, que talvez seja o mais importante, ao mesmo tempo o mais
negligenciado, e que está provavelmente na origem dessa instituição, nos primórdios da
humanidade: a autoridade. Sem a atribuição de uma autoridade a um chefe, grupo ou
pessoa considerada excepcional ou capacitada para dirigir os assuntos da comunidade,
cidade ou nação, jamais existiria o Estado, nem hoje, nem em qualquer época antiga.
Ora, sabemos que o princípio da autoridade também está na raiz do surgimento da
família e da religião, instituições já analisadas; isso implica uma possível relação entre o
surgimento do Estado e o surgimento das primeiras comunidades humanas, incluindo o
aspecto mágico/religioso. Esse assunto será discutido também nos textos seguintes.
Várias teorias sobre a origem e a função do Estado foram formuladas ao longo
dos séculos por filósofos, historiadores, cientistas sociais e economistas, dentre outros
teóricos. Muitas dessas teorias são conflitantes entre si, conforme serão vistas nessa
parte. As mais famosas tendem a ver no Estado apenas o aspecto da dominação,
violência e usurpação pela força (roubo), dentre as quais se destacam: a visão marxista
ou anarco-comunista, segundo a qual o Estado seria o instrumento que a classe
dominante utiliza para exercer seu poder sobre a classe dominada; a visão anarco-
capitalista (libertária) que entende o Estado como surgido a partir da dominação de
grupos mais fortes sobre outros mais fracos, e que por isso deveria ser abolido,
deixando-se apenas para o mercado as regulações sociais. Outras teorias tendem a
enfatizar o aspecto da legitimidade existente em qualquer relação envolvendo
governantes e governados, ou entre o Estado e os súditos: é o caso de Weber, para o
qual o Estado seria caracterizado pelo monopólio do uso legítimo da violência.
O estudo dos textos a seguir o tornará apto a compreender melhor esses temas.

57
THOMAS HOBBES: A CONDIÇÃO NATURAL DA HUMANIDADE
E A NECESSIDADE DO ESTADO
O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) utilizou o
conceito de estado de natureza para se referir à condição natural do
homem, e desta maneira justificar a necessidade do Estado para que
as paixões humanas possam ser freadas. Hobbes rejeitou a
afirmação de Aristóteles segundo a qual o homem seria um ―animal
político‖, sociável por natureza; afirmou, pelo contrário, que o
homem por natureza é egoísta, ávido de prazer, ambicioso e
antissocial. Portanto, só contra a vontade que os homens vivem em
sociedade, dizia Hobbes, e não espontaneamente, como queria
Aristóteles. A origem da sociedade, de acordo com ele, não provém da boa vontade dos
seres humanos entre si, mas do medo recíproco.
Hobbes faz parte de uma corrente filosófica conhecida como contratualismo.
Entretanto, ao contrário do que muitos pensam, ele não julgava que a sociedade teria
surgido de forma artificial, a partir de um acordo prévio entre as partes; e a partir daí,
tivessem surgido as leis e o Estado. Ao invés disso, ele afirma que o contrato é
implícito: cada ser humano concorda em transferir seu direito de natureza (isto é, o
direito de usar de todos os meios para garantir a própria vida) em favor de um terceiro, o
soberano. Essa é a atitude mais racional, e somente isso justifica o contrato.
O texto abaixo foi retirado da obra O Leviatã. Leia-o e responda: (1) Por que, no
Estado de Natureza, nem a vida e nem a propriedade estão seguras? (2) Quais as causas
da discórdia entre os homens? (3) Por que, na guerra, a força e a fraude são as duas
virtudes mais importantes? Faça um paralelo com situações reais: presídios, campos de
batalha, etc. (4) Qual a importância do Estado para a manutenção da sociedade? (5)
Faça uma pesquisa sobre o ―Leviatã‖, relatado na Bíblia, no Livro de Jó.

A natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades do corpo e do espírito


que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou
de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em
conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para
que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não
possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem
força suficiente para matai o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se
com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo. (...)
Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de
atingirmos nossos fins. Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo
tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no
caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas
seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro e disto se segue que,
quando um invasor nada mais tem a recear do que o poder de um único outro homem,
se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é provavelmente de
esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para desapossá-lo e
privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho; mas também de sua vida e de sua
liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos outros.
E contra esta desconfiança de uns em relação aos outros, nenhuma maneira de
se garantir é tão razoável como a antecipação; isto é, pela força ou pela astúcia,
subjugar as pessoas de todos os homens que puder, durante o tempo necessário para
chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande para

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ameaçá-lo. E isto não é mais do que sua própria conservação exige, conforme é
geralmente admitido. (...)
Por outro lado, os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros
(e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de
manter a todos em respeito. (...)
De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de
discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória.
A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda,
a segurança; e a ter-ceira, a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem
senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos,
para defendê-los; e os terceiros por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma
diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido
a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua
profissão ou seu nome.
Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem
sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram
naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra
todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas
naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente
conhecida. (...)
Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo
homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o
qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua
própria e sua própria invenção. Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois
seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso
das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis,
nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não
há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não
há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte
violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta. (...)
Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é
consequência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e
injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há
lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais. A
justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. Se assim
fosse, poderiam existir num homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo
que seus sentidos e paixões. São qualidades que pertencem aos homens em sociedade,
não na solidão. Outra consequência da mesma condição é que não há propriedade, nem
domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é
capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo. É pois esta a
miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples
natureza. Embora com uma possibilidade de escapar a ela, que em parte reside nas
paixões, e em parte em sua razão.
As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o
desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de
consegui-las através do trabalho. E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno
das quais os homens podem chegar a acordo. Essas normas são aquelas a que por outro
lado se chama leis da natureza.

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Nova Cultura, 2000, p. 107-111.

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FRANZ OPPENHEIMER: A GÊNESE DO ESTADO
Franz Oppenheimer (1864-1943) foi um sociólogo
alemão. Contrariamente ao que diziam os filósofos
contratualistas, afirmou que o Estado não surgiu de um
contrato, mas da conquista, da violência, do roubo e da força.
De acordo com ele, existem duas formas de se obter riqueza:
pelo trabalho e pelas trocas voluntárias entre os agentes (meio
econômico); ou pelo confisco e apoderação dos bens alheios
através da violência e todo tipo de roubo (meio político). O
Estado, de acordo com ele, enquadra-se nesta última forma:
como uma soma de privilégios e posições dominantes trazidas
à tona por meio do poder extra econômico, isto é, pelo poder
político. Dessa maneira, o Estado não seria uma instituição
natural surgida na sociedade, tal como a família ou a religião, mas algo imposto pela
coerção.
Franz Oppenheimer exerceu bastante influência sobre teóricos que consideram
desnecessária, e até imoral, a existência do Estado. Dentre eles, destacam-se Albert Jay
Nock e os anarcocapitalistas, como Rothbard e Hoppe.
O texto abaixo foi retirado da obra The State. Leia-o e responda: 1) Como surgiu
o Estado na história da humanidade, de acordo com o autor? 2) Qual a relação entre a
atitude dos nômades e a ação do Estado, segundo Oppenheimer? 3) Faça uma pesquisa
sobre o Anarcocapitalismo e anote quais as principais ideias desses teóricos com relação
ao Estado e sua interferência na sociedade.

À ideia de Estado original puramente sociológica, acrescentei a fase econômica


e a formulei da seguinte maneira:
O que, então, é o Estado como um conceito sociológico? O Estado,
completamente em sua gênese, essencialmente e quase completamente durante os
primeiros estágios de sua existência, é uma instituição social forçada por um grupo
vitorioso de homens sobre um grupo derrotado, com o objetivo exclusivo de regular o
domínio do grupo vitorioso sobre os vencidos, e garantir-se contra a revolta de dentro e
ataques do exterior. Teleologicamente, este domínio não tinha outra finalidade que não
a exploração econômica dos vencidos pelos vencedores.
Nenhum Estado primitivo conhecido na história se originou de qualquer outra
maneira. Sempre que uma tradição confiável relata outra forma, é porque se trata ou da
fusão de dois Estados primitivos totalmente desenvolvidos em um corpo de
organização mais completa, ou então é uma adaptação para homens da fábula das
ovelhas, que fez de um urso o seu rei, a fim de ser protegido contra o lobo. Mas,
mesmo neste último caso, a forma e o conteúdo do Estado tornou-se precisamente a
mesma daqueles estados onde não houve intervenção alguma, os quais se tornaram
imediatamente ―estados de lobo‖.
O pouco de história que aprendemos na escola é suficiente para provar esta
doutrina genérica. Em todos os lugares encontramos alguma tribo guerreira de homens
selvagens rompendo as fronteiras de algumas pessoas menos guerreiras, estabelecendo-
se como nobreza e fundando seu Estado. Na Mesopotâmia, de onda resulta onda, de
Estado resulta Estado – babilônios, amoritas, assírios, árabes, medos, persas,
macedônios, partianos, mongóis, seldshuks, tártaros, turcos; no Nilo, hicsos, núbios,
persas, gregos, romanos, árabes, turcos; na Grécia, os Estados dóricos são exemplos

60
típicos; na Itália, romanos, ostrogodos, lombardos, francos, germanos; na Espanha,
cartagineses, visigodos, árabes; na Gália, romanos, francos, burgúndios, normandos; na
Grã-Bretanha, saxões, normandos. Na Índia, onda após onda de clãs guerreiros
inundaram todo o país, chegando além das ilhas do Oceano Índico. Assim também com
a China. Nas colônias europeias, encontramos o mesmo tipo, onde quer que elementos
estabelecidos da população tenham sido encontrados, como por exemplo, na América
do Sul e México. Onde este elemento está faltando, onde apenas caçadores itinerantes
são encontrados, os quais podem ser exterminados, mas não subjugados, os
conquistadores recorrem ao artifício de importação de massas de homens vindos de
longe para serem explorados, para serem objeto perpétuo de trabalho forçado, e assim o
comércio escravo surge. (...)
Por toda parte, seja no arquipélago malaio, ou no ―grande laboratório
sociológico da África‖, em todos os lugares do planeta onde o desenvolvimento de
tribos tem alcançado absolutamente uma forma superior, o Estado cresceu a partir da
submissão de um grupo de homens por outro. Sua justificativa básica, a sua raison
d‘être, era e é a exploração econômica dos subjugados. (...)
Deixando de lado as formações estatais do novo mundo, que não têm grande
relevância na história universal, a causa da gênese de todos os estados é o contraste
entre camponeses e pastores, entre trabalhadores e ladrões, entre terras inferiores e
pradarias. Ratzel, sobre a sociologia do ponto de vista geográfico, expressa isso
habilmente: ―Deve ser lembrado que os nômades nem sempre destroem a civilização
inimiga do povo assentado. Isso se aplica não só a tribos, mas também aos Estados,
mesmo para aqueles de pouco poder. O caráter guerreiro dos nômades é um grande
fator na criação dos estados. Ele encontra expressão nas nações imensas da Ásia
controladas por dinastias nômades e exércitos nômades, como Pérsia, governada pelos
Turcos; China, conquistada e governada pelos mongóis e manchus; e nos estados da
Índia mongóis e de radjaputa, bem como nos estados na fronteira do Sudão, onde a
fusão dos elementos antigamente hostis não se desenvolveu até agora, embora eles
sejam unidos em benefício mútuo. Em nenhum lugar é mostrado, de forma tão clara
como aqui na fronteira dos povos nômades e camponeses, que as grandes obras de
impulso da civilização feitas por parte dos nômades não são resultado da atividade
civilizadora, mas de façanhas guerreiras, que são antes de tudo prejudiciais ao trabalho
pacífico. Sua importância reside na capacidade dos nômades em manter unidas as raças
sedentárias que de outra forma seriam desfeitas. Isso, no entanto, não exclui a grande
aprendizagem de seus súditos... No entanto, nenhum destes povos trabalhadores e
inteligentes tinha ou podia ter a vontade e o poder de governar, o espírito militar, e o
sentido para a ordem e subordinação que convém a um Estado. Por essa razão, os
senhores nascidos no deserto do Sudão dominam seu povo negro, assim como os
manchus governam seus súditos chineses. Isso ocorre de acordo com uma lei, válida de
Timbuctoo a Pequim, na qual surgem formações estatais vantajosas em terras
camponesas ricas ao lado de uma vasta pradaria; onde uma alta cultura material de
povos sedentários é violentamente subjugada ao serviço de moradores da pradaria com
energia, capacidade de guerra e desejo de governar‖.

OPPENHEIMER, Franz. The State. New York: B. W. HUEBSCH, 1922, p. 15-20, 53-55.

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FRAZER: EVOLUÇÃO DO MAGO/ SACERDOTE PARA REI
O texto abaixo é do antropólogo James Frazer, da mesma obra analisada
anteriormente, O Ramo de Ouro. Aqui, ele procura mostrar a íntima relação existente
entre os primitivos magos sacerdotes, que faziam ―magias‖ para toda a tribo, e o
surgimento dos reis. O autor diferencia ―magia privada‖, que é aquela realizada para
beneficiar ou prejudicar pessoas, da ―magia pública‖, que é aquela realizada em prol de
toda a comunidade. Leia o texto abaixo e responda: 1) Como surgiu a figura do
governante (rei) e do Estado? 2) Segundo Frazer, por que há mais liberdade numa
tirania absoluta do que numa ―democracia‖ da vida selvagem?

Na sociedade selvagem, encontra-se habitualmente (...) o que poderíamos


chamar de magia pública, ou seja, a feitiçaria praticada em favor de toda a comunidade.
Sempre que se realizam cerimônias desse tipo em prol do bem comum, é evidente que
o mago deixa de ser apenas um praticante privado, tornando-se em certa medida um
funcionário público. O desenvolvimento dessa classe de funcionários é de grande
importância para a evolução, tanto política quanto religiosa, da sociedade. Quando se
passa a achar que o bem estar da tribo depende da realização desses mitos mágicos, o
mago se eleva a uma posição muito influente e de grande reputação, podendo alcançar
a dignidade e a autoridade de chefe ou de rei.
Assim, na medida em que foi afetando a constituição da sociedade selvagem, a
profissão pública da magia tendeu a colocar o controle da situação nas mãos do homem
mais capaz: transferiu o exercício do poder por muitos para um único — substituiu a
democracia pela monarquia, ou, antes, por uma oligarquia de anciãos, pois, de um
modo geral, a comunidade selvagem é governada não por todo o conjunto de homens
adultos, mas por um conselho de anciãos. Essa mudança, qualquer que tenha sido a sua
causa, e qualquer que tenha sido o caráter desses primeiros governantes, foi muito be-
néfica em seu conjunto. A ascensão da monarquia parece ser uma condição essencial
para a superação da selvajaria pela humanidade. Nenhum ser humano é tão cons-
trangido pelo costume e pela tradição quanto esse selvagem democrático; em nenhum
estágio da sociedade, portanto, é o progresso tão lento e tão difícil quanto nesse.
Não é por acaso, pois, que os primeiros e grandes passos no sentido da
civilização foram dados pelos governos despóticos e teocráticos, como aqueles do
Egito, da Babilônia e do Peru, onde o governante supremo, em seu duplo caráter de rei
e de deus, exigia e recebia a sujeição servil de seus súditos. Dificilmente exageraríamos
dizendo que, nessa época, o despotismo é o melhor amigo da humanidade e, por mais
paradoxal que pareça, da liberdade. Afinal de contas, há mais liberdade, no melhor
sentido — liberdade de pensar os próprios pensamentos e de determinar o próprio
destino —, sob o mais absoluto despotismo, sob a mais esmagadora tirania, do que sob
a aparente liberdade da vida selvagem, onde a sorte do homem está fixada, do berço à
sepultura, pelo modelo férreo do costume hereditário.
Portanto, na medida em que a profissão pública da magia foi um dos caminhos
pelos quais os homens mais capazes adquiriram o poder supremo, ela contribuiu para
emancipar a humanidade do peso da tradição e elevá-la a uma vida mais ampla, mais
livre, com uma visão mais abrangente do mundo. Não foi pequeno esse serviço
prestado à humanidade. E se lembrarmos ainda que, numa outra direção, a magia abriu
caminho para a ciência, seremos forçados a admitir que, se a arte negra praticou muito
mal, foi também fonte de grande bem; que, se é filha do erro, foi igualmente a mãe da
liberdade e da verdade.

FRAZER, Op. cit., p. 111-5.

62
WEBER: O ESTADO É A LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA
O sociólogo alemão Max Weber, já visto anteriormente, procura analisar o
Estado a partir das motivações individuais e busca entender por que os súditos se
deixam dominar pelo poder estatal. Além disso, procura averiguar quais as diferenças
entre dominação e simples uso da força, buscando conceituar quais os tipos de
dominação existentes. Usar a força é coagir alguém e obrigá-lo a agir desta ou daquela
maneira, contra a vontade dele; dominação é utilizar a força com o consentimento de
outro. Numa relação de dominação sempre há uma relação dual: um expectativa por
parte daquele que domina e uma obediência por parte daquele que é dominado. Tanto
um quanto outro acreditam na legitimidade da dominação.
O texto abaixo foi retirado da obra Ciência e Política: Duas Vocações. Leia-o e
responda: 1) Quais são os três motivos ou três fundamentos que legitimam a
dominação? Explique cada um deles. 2) Volte ao texto anterior (Frazer) e responda: O
mago sacerdote se enquadra em qual desses três tipos? 3) Explique por que, segundo
Weber, o Estado detém o monopólio do uso legítimo da violência.

Assim como todos os agrupamentos políticos que o precederam no tempo, o Estado


consiste em uma relação de dominação do homem pelo homem, com base no instrumento da
violência legítima – ou seja, da violência considerada como legítima. Por conseguinte, o Estado
pode existir somente sob condição de que os homens dominados se submetam à autoridade
continuamente reivindicada pelos dominadores. Consequentemente, formulam-se as seguintes
indagações: Em que condições eles se submetem e por quê? Essa dominação se apoia em que
justificações internas e em que meios externos?
Primordialmente existem – e veremos aqui três razões internas que justificam a
dominação, existindo, consequentemente, três fundamentos da legitimidade. Inicialmente, a
autoridade do ―passado eterno‖, ou seja, dos costumes santificados pela validez imemorial e
pelo hábito, enraizados nos homens, de respeitá-los. Assim se apresenta o ―poder tradicional‖,
que o patriarca ou o senhor de terras exercia antigamente. Em segundo lugar, existe a
autoridade que se baseia em dons pessoais e extraordinários de um indivíduo (carisma) –
devoção e confiança estritamente pessoais depositadas em alguém que se diferencia por
qualidades prodigiosas, por heroísmo ou por outras qualidades exemplares que dele fazem o
chefe. Desse jeito é o poder ―carismático‖, exercido pelo profeta ou – no domínio político –
pelo dirigente guerreiro eleito, pelo soberano escolhido por meio de plebiscito, pelo grande
demagogo ou pelo dirigente de um partido político. E por fim, existe a autoridade que se impõe
pela ―legalidade‖, pela crença na validez de um estatuto legal e de uma ―competência‖ positiva,
estruturada em regras racionalmente estabelecidas ou, em outras palavras, a autoridade fincada
na obediência, que reconhece obrigações concernentes ao estatuto estabelecido. Assim é o
poder, tal qual o exerce o ―servidor do Estado‖ atualmente e como o exercem os detentores do
poder que dele se aproximam sob esse aspecto.
Na realidade concreta, é dispensável dizer que a obediência dos súditos é condicionada
por motivos extremamente poderosos, implantados pelo medo ou pela esperança – tanto pelo
medo de uma vingança das potências mágicas ou dos detentores do poder quanto a esperança
de uma recompensa nesta terra ou em outro mundo. Da mesma forma, a obediência pode ser
condicionada por outros interesses e os mais variados. (...)
Agora, voltaremos a atenção, em especial, para o segundo tipo de legitimidade, a saber,
o poder nascido da submissão ao ―carisma‖ puramente pessoal do ―chefe‖. Efetivamente, esse
tipo nos conduz à fonte de vocação, na qual se encontram seus traços mais característicos. (...)
Mostra a história que líderes carismáticos surgem em todos os domínios e em todas as épocas.
Entretanto, revestiram o aspecto de duas figuras essenciais: de um lado, a do mágico e do
profeta e, de outro lado, a do chefe escolhido para dirigir a guerra, do chefe do grupo, do
condutor.

WEBER, Max. Ciência e Política: Duas Vocações. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 61-2.

63
FUSTEL DE COULANGES: EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA PARA A
CIDADE. MUDANÇA NA MENTALIDADE RELIGIOSA
O historiador já visto, Fustel de Coulanges, analisou o surgimento do Estado a
partir de uma visão diferente. Na obra A Cidade Antiga o autor procura mostrar como se
deu o desenvolvimento da família até a cidade, bem como o papel desempenhado pela
religiosidade de cada grupo particular que se uniu. Leia o texto abaixo e responda: 1)
Qual a relação entre a estreiteza das ideias e a estreiteza da forma de sociedade? 2)
Segundo o autor, a concepção de um deus único, infinito, etc., é típica de sociedades
avançadas ou primitivas? Justifique através do texto. 3) De que modo a mudança da
mentalidade religiosa contribuiu para a evolução da sociedade?

Até aqui não demos nenhuma data, e ainda continuaremos a não poder
apresentá-la. Na história das sociedades antigas as épocas indicam-se mais facilmente
pela sucessão de ideias e das instituições que pela sequência dos anos.
O estudo das antigas regras de direito privado faz-nos entrever, para além dos
tempos chamados históricos, um período de séculos durante o qual a família aparece
como única forma de sociedade existente. Esta família podia então contar, no seu
extenso quadro, milhares de seres humanos. Mas, nestes limites, a associação humana
aparece ainda bastante acanhada: muito acanhada para as necessidades materiais,
porque seria difícil a esta família ter os recursos suficientes para todos os acasos da
vida; e muito acanhada ainda para as necessidades morais da nossa natureza, porque já
vimos quanto, neste pequeno mundo, a inteligência do divino se revelou mesquinha e
sua moral incompleta.
A estreiteza desta sociedade primitiva correspondia à pequenez da ideia que se
fazia da divindade. Cada família tinha os seus deuses, e o homem só conhecia e
adorava as divindades domésticas. Mas não deve ter-se contentado muito tempo com
estes deuses, tão abaixo do que sua inteligência podia atingir. Se ainda eram precisos
muitos séculos para chegar a compreender Deus como um ser único, incomparável,
infinito, pelo menos devia aproximar-se insensivelmente desse ideal, aumentando, de
geração em geração, a sua concepção e fazendo recuar pouco a pouco a linha do
horizonte que separa, para ele, o Ser divino das coisas terrenas.
A ideia religiosa e a sociedade humana iam, portanto, desenvolver-se ao mesmo
tempo.
A religião doméstica proibia a duas famílias misturarem-se e confundirem-se.
Mas era possível que muitas famílias, sem sacrificarem coisa alguma da sua religião
particular, se unissem, pelo menos para a celebração de outro culto que lhes fosse
comum. E foi isto que se deu. Certo número de famílias formou um grupo, ao qual a
língua grega deu o nome de fratria e a latina o de cúria. (...) Esta nova associação não
se realizou sem algum alargamento da ideia religiosa. Ao mesmo tempo que essas
famílias se uniram, logo conceberam uma divindade superior a seus deuses domésticos
que, comum a todos, velava por todo o grupo. Erigiram-lhe altar, acenderam o fogo
sagrado e instituíram-lhe o culto. (...)
A tribo, tanto como a família e a fratria, constitui-se em corpo independente,
com culto especial de onde se excluía o estrangeiro. Quando formada, nenhuma nova
família podia nela ser admitida. Duas tribos de modo algum podiam fundir-se em uma
só, porque a sua religião a isso se opunha. Mas, assim como muitas fratrias estavam
reunidas em uma tribo, muitas tribos puderam associar-se, sob condição de o culto de
cada uma delas ser respeitado. No dia em que nasceu essa aliança nasceu a cidade.
Pouco importa investigar-se a causa determinadora de muitas tribos vizinhas

64
assim se unirem. Ou a união fosse voluntária, ou imposta pela força superior de alguma
tribo, ou tornada obrigatória pela vontade poderosa de algum homem, temos como
certo ter sido ainda o culto que estabeleceu este vínculo de nova associação. As tribos
agrupadas para formar a cidade nunca deixaram de acender o fogo sagrado e de ter
religião comum.
Assim, a sociedade humana, nesta raça, não se expandiu à maneira de um
círculo que se alastrasse paulatinamente, de um lugar a outro, mas, ao contrário, pela
junção de pequenos grupos, já constituídos há muito tempo. Muitas famílias formaram
a fratria, muitas fratrias a tribo, e muitas tribos a cidade. Família, fratria, tribo, cidade
são, portanto, sociedades perfeitamente análogas e nascidas umas das outras por uma
série de federações.
No entanto – convém registrar –, à medida que estes diferentes grupos se
associam, nenhum perde a sua individualidade nem a sua independência. Ainda que se
reúnam muitas famílias em uma só fratria, cada uma se mantém constituída como na
época do seu isolamento; coisa alguma lhes faz alterar o culto, o sacerdócio, o direito
de propriedade ou a sua justiça interna. Em seguida, associam-se as cúrias, mas
continuando a ter cada uma o seu culto, as suas reuniões, as suas festas e o seu chefe.
Da tribo passa-se à cidade, mas as tribos, por essa mesma razão, não são dissolvidas e
cada uma continua a formar um corpo, pouco mais ou menos como se a cidade não
existisse. Em religião, subsistiu grande quantidade de pequenos cultos, acima dos quais
se estabeleceu o culto comum; em política, continuou a funcionar uma infinidade de
pequenos governos, acima dos quais se colocou o governo comum.
A cidade era uma confederação. Por isso se viu obrigada, pelo menos durante
alguns séculos, a respeitar a independência religiosa e civil das tribos, das cúrias e das
famílias, e ainda por isso não teve desde logo o direito de intervir nos negócios
particulares de cada um desses pequenos corpos. A cidade nada tinha a ver com quanto
se passasse no seio de cada família: não era juiz do que por lá se passava e deixava ao
pai o direito e o dever de julgar sua mulher, seu filho ou o seu cliente. Por essa razão o
direito privado, prefixado na época do isolamento das famílias, pôde durar nas cidades
até muito tarde, sem se modificar. (...)
Assim, a cidade não é um agregado de indivíduos, mas uma confederação de
muitos grupos já anteriormente constituídos e que a cidade deixa subsistir. Sabe-se,
pelos oradores áticos, como cada ateniense fazia, ao mesmo tempo, parte de quatro
sociedades distintas: era membro de uma família, de uma fratria, de uma tribo e de uma
cidade. Mas não entra em todas as quatro ao mesmo tempo e no mesmo dia, como o
francês que, desde o momento em que nasce, fica logo pertencendo, na mesma ocasião,
a determinada família, à comuna, ao departamento e à Pátria. O homem entra em
épocas diversas nas quatro sociedades e de qualquer modo subindo de uma para a
outra. A criança, primeiramente, é admitida na família por uma cerimônia religiosa
realizada dez dias depois do seu nascimento. Alguns anos mais tarde, entra na fratria
por nova cerimônia. (...) Enfim, aos dezesseis ou dezoito anos, apresenta-se par ser
admitida na cidade. Nesse dia, diante do altar e da carne fumegante da vítima,
pronuncia o juramento pelo qual se obriga, entre outras coisas, a respeitar sempre a
religião da cidade. A partir desse dia, está iniciado no culto público e ei-lo cidadão.
Olhando atentamente para esse jovem ateniense, subindo de degrau em degrau, de culto
em culto, ficaremos com a mesma imagem dos graus por que passou outrora a
associação humana. A jornada em que esse jovem é obrigado a caminhar foi, antes
dele, trilhada pela sociedade.

COULANGES, Op. cit., p. 124-5, 134-7

65
SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA:
PÚBLICO X PRIVADO, FAMÍLIA X CIDADE
O texto abaixo é do historiador brasileiro Sérgio Buarque
de Holanda (1902-1982), retirado da obra Raízes do Brasil. Nesta
passagem, o autor afirma que a transição da família para a cidade
não ocorreu de forma gradual, mas através de uma transgressão.
Leia o texto abaixo e responda: (1) Por que a transição da família
para a cidade ocorre de forma descontínua, por meio de uma
ruptura? (2) Qual a relação entre o mito de Antígona e Creonte e a
oposição entre família e cidade ou, em outras palavras, qual a
relação deste mito com a oposição público x privado? (3) Cite
exemplos em que ocorra a oposição entre público x privado (ou entre valores familiares
e valores da cidade/ Estado), e casos onde os interesses privados se sobreponham aos
interesses públicos.

O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de
certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo.
Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e
até uma oposição. A indistinção fundamental entre as duas formas é prejuízo romântico que
teve os seus adeptos mais entusiastas durante o século décimo nono. De acordo com esses
doutrinadores, o Estado e as suas instituições descenderiam em linha reta, e por simples
evolução da Família. A verdade, bem outra, é que pertencem a ordens diferentes em essência.
Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples
indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da
Cidade. Há nesse fato um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do
abstrato sobre o corpóreo e não uma depuração sucessiva, uma espiritualização de formas mais
naturais e rudimentares, uma procissão das hipóstases, para falar como na filosofia alexandrina.
A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência.
Ninguém exprimiu com mais intensidade a oposição e mesmo a incompatibilidade
fundamental entre os dois princípios do que Sófocles. Creonte encarna a noção abstrata,
impessoal da Cidade em luta contra essa realidade concreta e tangível que é a família.
Antígona, sepultando Polinice contra as ordenações do Estado, atrai sobre si a cólera do irmão,
que não age em nome de sua vontade pessoal, mas da suposta vontade geral dos cidadãos, da
pátria:

E todo aquele que acima da Pátria


Coloca seu amigo, eu o terei por nulo.

O conflito entre Antígona e Creonte é de todas as épocas e preserva-se sua veemência


ainda em nossos dias. Em todas as culturas, o processo pelo qual a lei geral suplanta a lei
particular faz-se acompanhar de crises mais ou menos graves e prolongadas, que podem afetar
profundamente a estrutura da sociedade. O estudo dessas crises constitui um dos temas
fundamentais da história social. (...)
Onde quer que prospere e assente em bases muito sólidas a ideia de família – e
principalmente onde predomina a família de tipo patriarcal – tende a ser precária e a lutar
contra fortes restrições a formação e evolução da sociedade segundo conceitos atuais. A crise
de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social é, assim, especialmente sensível no nosso
tempo devido ao decisivo triunfo de certas virtudes antifamiliares por excelência, como o são,
sem dúvida, aquelas que repousam no espírito de iniciativa pessoal e na concorrência entre os
cidadãos.

HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1971, p.101-108.

66
ESTADO EGÍPCIO: CENTRALIZAÇÃO E MONOPÓLIO
O texto abaixo é um trecho da coleção Grande História Universal já citada
anteriormente. Ele nos dá uma visão geral de como era a vida administrativa no antigo
Egito, bem como a grande intervenção do Estado em quase todos os âmbitos da vida
social. Leia o texto atentamente e responda: (1) Que setores da atividade comercial o
Estado egípcio comandava? (2) Baseando-se em tudo o que já foi lido, este monopólio
exercido pelo Estado egípcio era algo necessário, como nos dá a entender o texto, ou
imposto pelas autoridades pelo uso da força? (3) Faça uma comparação com as
sociedades atuais, principalmente o Brasil, e verifique em quais setores o Estado detém
o monopólio e controle.

Embora não faltassem no Egito pequenos proprietários, locatários e artesãos


independentes, o poder central deixava bem pouco espaço à iniciativa privada e tendia
a absorver todas as atividades econômicas: da agricultura (a maior parte da terra era
propriedade do soberano, que a fazia trabalhar pelos seus subordinados), ao artesanato
(em grande parte concentrado nas oficinas do Estado); das atividades minerais (as
minas de ouro e as pedreiras eram controladas pelo faraó) ao comércio com o exterior;
da mais pequena atividade (a própria produção do papel era exclusiva do Estado) às
grandes obras públicas, através das quais este desempenhava um papel fundamental na
redistribuição da riqueza. Além disso, o Estado podia contar com importantes receitas
fiscais, asseguradas por um aparelho burocrático muito eficiente. O imposto mais
relevante afetava os produtos agrícolas: as colheitas e o gado eram alvo de censos
periódicos, efetuados por funcionários estatais, e o camponês egípcio tinha de pagar
sobre estes bens um imposto em espécie. (...)
A complexa máquina estatal egípcia tinha uma estrutura piramidal: no vértice
estava o faraó. Para as funções importantes era ajudado – a partir da IV dinastia – por
um ciaty. (..) De nomeação régia direta, agia em nome do faraó e só a ele devia prestar
contas. Era o chefe do executivo e responsável pelos quatro departamentos em que a
administração se encontrava dividia: o tesouro, a agricultura, os arquivos reais e a
justiça. Havia também um longo grupo de funcionários intermediários: inspetores do
tesouro, inspetores dos celeiros (responsáveis pela armazenagem e distribuição dos
excedentes agrícolas), inspetores do gado, chefes de missão (intermediários entre o
poder central e as autoridades periféricas). Por outro lado, o funcionamento do aparelho
administrativo era assegurado por uma série de escribas, que tinham a obrigação de
registrar todos os fatos relevantes e de manter coligados os vários setores da
administração pública.
As relações comerciais com o exterior afetavam apenas algumas matérias-
primas essenciais, das quais o Egito não dispunha, tais como madeiras preciosas,
importadas de Biblos; o ouro, proveniente da Núbia e do deserto oriental; o bronze, que
chegava da Síria e do Sinai. Por outro lado, o Egito estabeleceu, desde os tempos mais
antigos, relações comerciais com o Mediterrâneo Oriental (Creta, as ilhas do mar Egeu,
a Anatólia) e com o mítico país do Punt (Somália) para o aprovisionamento de
produtos valiosos de origem africana: ébano, marfim, incenso, animais exóticos e peles
de leopardo. O comércio externo foi sempre monopólio estatal, até porque a
organização das expedições comerciais via terra ou via mar requeria uma grande
disponibilidade financeira e uma grande capacidade organizativa que só o faraó ou os
sacerdotes possuíam.

Adaptado de: Grande História Universal, p. 37.

67
A UNIFICAÇÃO DA CHINA
O texto abaixo foi retirado da obra já citada Atlas da História do Mundo, de
Geoffrey Barraclough, e trata brevemente da história da China antiga. Leia-o e
responda: (1) o crescimento do Estado na China, tal como no Egito, trouxe malefícios
ou prosperidade para a nação?

Entre 403 e 221 a.C., sete Estados importantes lutaram pela supremacia da
China. Foi o período dos Estados beligerantes. (...) Foi um período de guerras
constantes, entre reinos poderosos e organizados, que substituíram a antiga ordem
social feudal por governos centralizados constituídos de burocratas e não nobres
hereditários. Desenvolveram eficazmente sistemas tributários e legais para prover a
subsistência de exércitos e obras públicas.
O surgimento desses Estados coincidiu com mudanças sócio-econômicas. A
introdução das ferramentas de ferro a partir de 500 a.C. e o uso da tração animal
contribuíram para aumentar a produtividade agrícola. Os novos Estados faziam
drenagem e irrigação para preparar terras para o cultivo. Nessas terras surgiu uma nova
ordem social que rompeu com o rígido sistema comunitário das aldeias. A população se
multiplicou. Comércio e indústria prosperavam à medida que os Estados construíam
estradas e surgiam grandes cidades. Foi um período de inovação na tecnologia, na
ciência e no governo, e de agitação filosófica, quando se impuseram as principais
correntes do pensamento chinês: confucionismo, taoísmo e legalismo.
No Estado de Ch‘in, a aristocracia feudal foi substituída por uma burocracia
rígida e centralizada. A população foi divida em grupos de famílias, com
responsabilidades mútuas, e organizada de forma a fornecer mão-de-obra para
construções e o exército. O novo sistema entrou em vigor através de um código penal
rigoroso. Quando o primeiro imperador Ch‘in Shin Huang-ti unificou a China, essa
ordem se estendeu pelo país. Embora as facções hostis tenham sido eliminadas, os
encargos impostos ao povo e as tensões regionais levaram à queda do império em 206
a.C., logo após a morte do imperador.
Após um período de guerra civil, a nova Dinastia Han, fundada por um homem
de origem humilde, passou a dominar a China. Os Han viram-se forçados a reintroduzir
um sistema de principados feudais, distribuídos para suas famílias e defensores.
Seguindo as diretrizes gerais do governo Ch‘in, com menos rigor, os Han aos poucos
desenvolveram um governo central e um sistema de administração local eficazes.
Os Ch‘in haviam tomado medidas defensivas contra os nômades Hsiung-nu do
norte e haviam avançado para o sul, penetrando em áreas ocupadas por povos
aborígines não-chineses. No governo de Wu-ti (140-78 a.C.), a China retomou a
ofensiva contra os Hsiung-nu e reconstruiu a muralha Ch‘in, estendendo-a até o
noroeste. Abriram a rota para a Ásia Central e, após 59 a.C., por pouco tempo
controlaram os Estados-oásis da bacia do Tarim. Iniciaram um comércio de exportação,
principalmente de seda, para Pártia e o Império Romano. Os Han também reafirmaram
as conquistas Ch‘in na região de Cantão, eliminaram os reinos Yüeh da costa sudeste
no fim do século 2 e ocuparam o norte do Vietnã. (...)
O Império Han prosperou e cresceu rapidamente: neste período de estabilidade,
a população da China atingiu cerca de 57 milhões. Muitas cidades floresceram e a
maior delas, a capital Chang-na, abrigava 250 mil pessoas e era o centro de uma cultura
extraordinária. No início do da era cristã, o Império Han rivalizava com o Império
Romano em tamanho e riqueza.

BARRACLOUGH, G. Atlas da História do Mundo. p. 80

68
SCRUTON: ESTADO E AUTORIDADE
O texto abaixo é do filósofo Roger Scruton, já visto anteriormente. Nesta parte,
ele argumenta que o Estado só existe porque as pessoas reconhecem sua autoridade,
assim como a reconhecem nas várias instituições e situações sociais. Dessa maneira, ele
desfecha uma crítica a uma concepção importante já analisada: a que considera o Estado
como existindo apenas por meio da coerção. Em sua obra Pensadores da Nova
Esquerda, Scruton fez um crítica à visão de Weber analisada anteriormente, afirmando
que ele não soube diferenciar consentimento e coerção; enxergou uma obediência
voluntária onde pudesse existir, por exemplo, uma ordem tirânica, ou uma coação pela
lei onde existe consentimento e vontade de agir conforme a lei – não matar, não roubar,
etc.
Leia o texto abaixo e responda: 1) O que é autoridade? 2) Qual o papel da
autoridade na formação dos vários grupos ou instituições sociais? 3) Por que a visão
marxista sobre autoridade é irrelevante para a prática política?

É um fato notável que as pessoas reconheçam autoridade em seus


companheiros, em organizações sociais, em instituições e no Estado. É igualmente
notável que essa autoridade possa exigir a obediência dessas pessoas a tal ponto que
elas possam morrer voluntariamente por ela, assim como poderiam fazê-lo por
qualquer ideal ou credo religioso. (...)
―Autoridade‖ pode significar muitas coisas. Pode significar, particularmente,
poder legítimo ou estabelecido. Em qualquer um dos sentidos, ela pode ser concedida,
delegada, removida, respeitada, ignorada ou rechaçada. Uma pessoa que tem
autoridade recebeu-a de certa fonte – embora ela possa também ter autoridade noutro
sentido, de acordo com o qual ela não significa o princípio de governo legítimo ou
estabelecido, mas o dom natural de exigir obediência. Para o marxista, a ―autoridade‖
bem como o conceito de ―legitimidade‖ por meio da qual ela se dignifica são
simplesmente partes da regra da ideologia de classe, conceitos pertencentes a uma
―hegemonia‖ predominante e inculcados por ela. Os dois conceitos pertencem ao
imenso movimento inconsciente por meio do qual o poder procurou entrincheirar-se
nas instituições reconhecidas e por meio do qual a natureza histórica (isto é, a
impermanência) dessas instituições é encoberta. (...)
É importante perceber que tais ideias – quer sejam verdadeiras quer sejam falsas
– poder ser irrelevantes para a prática da política. O que diferencia a atividade política
do agrupamento biológico do rebanho é que a estrutura da primeira é determinada
pelos conceitos daqueles que se engajam nela, ao passo que a do segundo obedece
apenas a leis inexoráveis da natureza inconsciente. E pode-se tentar de todas as
maneiras solapar a ―ideologia predominante‖ que primeiramente colocou a
legitimidade no centro da consciência comum, mas não se terá êxito em fazer as
pessoas tirarem de suas mentes um conceito que lhes é indispensável em suas atuais
relações com o mundo. As pessoas têm a ideia de legitimidade e enxergam o mundo
pintado com suas cores; e é o modo como elas encaram o mundo que determina como
agem nele. Ora, a crença na legitimidade existe e sempre existirá como parte de uma
consciência política comum, e não é feliz uma sociedade na qual as pessoas não podem
ver a legitimidade em plena vigência, na qual elas veem apenas a coerção do Estado e o
poder estabelecido.

SCRUTON, Op. Cit., p.64-66.

69
ALFRED STEPAN: ESTADO E SOCIEDADE CIVIL
Alfred C. Stepan (1936-2017) foi um cientista político
americano. Utilizando o método da política comparada, estudou
sobre a democracia e os regimes autoritários em variados países,
incluindo Peru e Brasil. Também analisou de que maneira a
democracia seria possível em nações com grandes diversidades
linguísticas e étnicas, e principalmente, religiosas.
O texto abaixo foi retirado da obra The State and Society:
Peru in Comparative Perspective, traduzida em português no
Brasil com o nome Estado, Corporativismo e Autoritarismo. Leia-o e responda: 1) Qual
a diferença entre Estado e governo? 2) Quais as relações possíveis entre o Estado e a
sociedade civil? 3) Por que o Estado não é unitário ou monolítico?

O Estado deve ser considerado como algo mais do que o ―governo‖. São os sistemas
administrativos, legais, burocráticos e coercitivos contínuos que tentam não só estruturar as
relações entre a sociedade civil e a autoridade pública numa forma de governo, como também
estruturar melhor muitas relações decisivas dentro da sociedade civil. Os estados consolidados
modernos devem ser comparados não em termos de se eles estruturam essas relações, mas em
termos do grau em que e os meios pelos quais fazem isso.
Segundo, o Estado deve ser considerado como um mecanismo de domínio e controle.
As leis e procedimentos burocráticos do Estado podem refletir a sociedade civil, mas podem
também dar poder ao Estado para dar forma às exigências feitas pela sociedade civil a este.
Uma tarefa principal da pesquisa é determinar a extensão pela qual qualquer Estado particular
(a) é processualmente neutro e permite um processo autônomo e competitivo de agregação de
interesse às atuais exigências compulsórias a estes, (b) é um instrumento de classe no qual o
alcance total dos seus poderes coercitivos, administrativos e legais são usados para dominar
algumas frações da classe e proteger outras, ou (c) consegue algum grau de autonomia da
sociedade civil e assim contribui com o seu próprio peso para os resultados da política.
Terceiro, o Estado não é necessariamente unitário ou monolítico. Cada Estado é
composto de várias partes, tais como a executiva, a administração permanente, a judiciária e o
aparelho coercitivo. O grau pelo qual uma elite estratégica responsável pelo aparelho do Estado
controla de fato todas as suas partes componentes, varia. Mesmo naqueles casos em que em
teoria as partes componentes estão fundidas na executiva, o controle real do aparelho do Estado
pode variar dependendo da unidade ou desunião da elite estratégica. Qualquer análise de uma
tentativa dessa elite de usar o aparelho do Estado para estruturar a sociedade deve portanto
levar em conta a composição do Estado e a unidade ideológica e organizacional da elite
estratégica.
Quarto, Weber acentua que ―o domínio organizado, que requer administração contínua,
exige que o contato humano seja condicionado pela obediência‖. Isto levanta a questão não só
da natureza das exigências de obediência pelo Estado como também se elas são feitas com
sucesso e qual o custo que pode ter este sucesso. Quando estamos considerando as tentativas da
elite estratégica de instaurar um novo padrão de relações entre o Estado e a sociedade civil,
devemos ter consciência de pelo menos três relacionamentos diferentes sociedade-Estado
possíveis: (1) instauração de novas estruturas do Estado para conseguir o que Antônio Gramsci
chamaria de aceitação ―hegemônica‖ da sociedade civil, (2) instauração na qual a sociedade
civil só é condicionada à obediência devido ao poder coercitivo esmagador do Estado, e (3)
fracasso da instauração devido à resistência eficaz dentro da sociedade civil ao esforço da elite
estratégica de estabelecer ―jurisdição compulsória‖ e um ―monopólio da força‖.

STEPAN, Alfred. Estado, Corporativismo e Autoritarismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p.16-17.

70
HEGEL: O ESTADO É A REALIDADE EM ATO
DA LIBERDADE CONCRETA
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um
filósofo alemão. Um dos grandes temas analisados por ele foi o
do Estado e sua relação com a liberdade humana, levando-o a
concluir que somente pelo Estado e no Estado tal liberdade
poderia concretizar-se e manifestar-se no mais alto grau possível.
Somente através do Estado a vontade particular poderia se
conciliar com o universal e, desta maneira, manifestar sua
racionalidade.

Vamos analisar mais detidamente alguns pontos chaves do pensamento de


Hegel.

- A liberdade, um valor que nós tanto prezamos hoje em dia, foi sendo construída ao
longo da história. Ganhou suas primeiras feições na organização mais primitiva, a
família, e foi se aperfeiçoando ao longo do tempo, quando surgiu a propriedade privada
antiga, o direito primitivo e as primeiras sociedades. A liberdade, portanto, é histórica.

- Liberdade não é a mesma coisa que vontade arbitrária. A liberdade é racional,


universal, e deve ter um conteúdo objetivo. O ser humano deve reconhecer não apenas o
seu ato como livre, mas também o de todos os outros homens.

- Se a humanidade tivesse permanecido apenas no estágio em que existiam as


instituições primitivas, a vontade humana seria sempre arbitrária, particular, e nunca
universal. Os interesses de cada um estariam em conflito, e nunca haveria uma
reconciliação, um ponto em comum.

- Somente quando surge o Estado é que os interesses particulares vão, gradativamente,


se transformando também em interesse universal. Por isso Hegel diz que somente no
Estado a liberdade pode se realizar, isto é, pode ser construída continuamente e
incorporar conteúdos.

- A liberdade não existiu no mundo apenas como ideia. Ela tomou corpo na realidade
concreta: nas instituições, no comércio, nas leis, na economia, nas artes, no moral, nos
costumes, etc.

O texto abaixo foi retirado da obra Princípios da Filosofia do Direito. Leia-o e


responda: 1) Qual a diferença entre moral objetiva e moral subjetiva? 2) Por que o
Estado é a realidade em ato da Ideia moral objetiva? 3) O que é a conciliação entre o
particular e o universal?

O Estado é a realidade em ato da Ideia moral objetiva, o espírito como vontade


substancial revelada, clara para si mesma, que se conhece e se pensa, e realiza o que
sabe e porque sabe. No costume tem o Estado a sua existência imediata, na consciência
de si, no saber e na atividade do indivíduo, tem a sua existência mediata, enquanto o
indivíduo obtém a sua liberdade substancial ligando-se ao Estado como à sua essência,
como ao fim e ao produto da sua atividade. (...)

71
O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta
adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em si e para si: esta
unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu
valor supremo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os
indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais elevado dever.
Quando se confunde o Estado com a sociedade civil, destinando-o à segurança e
proteção da propriedade e da liberdade pessoais, o interesse dos indivíduos enquanto
tais é o fim supremo para que se reúnem, do que resulta ser facultativo ser membro de
um Estado. Ora, é muito diferente a sua relação com o indivíduo. Se o Estado é o
espírito objetivo, então só como membro é que o indivíduo tem objetividade, verdade e
moralidade. A associação como tal é o verdadeiro conteúdo e o verdadeiro fim, e o
destino dos indivíduos está em participarem numa vida coletiva; quaisquer outras
satisfações, atividades e modalidades de comportamento têm o seu ponto de partida e o
seu resultado neste ato substancial e universal. Considerada abstratamente, a
racionalidade consiste essencialmente na íntima unidade do universal e do indivíduo e,
quanto ao conteúdo no caso concreto de que aqui se trata, na unidade entre a liber-dade
objetiva, isto é, entre a vontade substancial e a liberdade objetiva como consciência
individual, e a vontade que procura realizar os seus fins particulares; quanto à forma,
constitui ela, por conseguinte, um comportamento que se determina segundo as leis e
os princípios pen-sados, isto é, universais. Esta ideia é o ser universal e necessário em
si e para si do espírito. (...)
Contra o princípio da vontade individual, é preciso ter presentes os seguintes
princípios fundamentais: a vontade objetiva é o racional em si no seu conceito, quer
seja ou não conhecido do indivíduo e aceito pelo seu livre-arbítrio, e o termo oposto, o
saber e o querer, a subjetividade da liberdade que só se afirma no princípio que
examinamos, apenas contém um momento unilateral da ideia da vontade racional que
só é verdadeiramente ela mesma quando em si também é o que é para si. (...)
É o Estado a realidade em ato da liberdade concreta. Ora, a liberdade concreta
consiste em a individualidade pessoal, com os seus particulares, de tal modo possuir o
seu pleno desenvolvimento e o reconhecimento dos seus direitos para si (nos sistemas
da família e da sociedade civil) que, em parte, se integram por si mesmos no interesse
universal e, em parte, consciente e voluntariamente o reconhecem como seu particular
espírito substancial e para ele agem como seu último fim. Daí provém que nem o
universal tem valor e é realizado sem o interesse, a consciência e a vontade
particulares, nem os indivíduos vivem como pessoas privadas unicamente orientadas
pelo seu interesse e sem relação com a vontade universal; deste fim são conscientes em
sua atividade individual. O princípio dos Estados modernos tem esta imensa força e
profundidade: permitirem que o espírito da subjetividade chegue até a extrema
autonomia da particularidade pessoal ao mesmo tempo que o reconduz à unidade
substancial, assim mantendo esta unidade no seu próprio princípio.
Em face do direito privado e do interesse particular, da família e da sociedade
civil, o Estado é, por um lado, necessidade exterior e poder mais alto; subordinam-se
lhe as leis e os interesses daqueles domínios mas, por outro lado, é para eles fim
imanente, tendo a sua força na unidade do seu último fim universal e dos interesses
particulares do indivíduo; esta unidade exprime-se em terem aqueles domínios deveres
para com o Estado na medida em que também têm direitos

HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. P. 216-226.

72
A
DIREITO
O Direito é uma importante instituição social. Embora associado ao conjunto de
leis ou com a legislação de um país, pode ser entendido de uma forma mais ampla como
um fenômeno relacionado à moral de uma sociedade – costumes, tradições, hábitos, etc.
Além disso, o Direito está relacionado às demais instituições, como família, Estado ou
comércio, de modo que seu estudo exige que se façam conexões com estas.
Segundo Luís da Câmara Cascudo, o Direito é uma ―norma fixada para a
conduta humana na continuidade cronológica‖; por isso, sua origem deveria ser objeto
de estudo da Antropologia, principalmente. De acordo com ele:

O que faz nascer o Direito é o costume. Direito, capitalização do costume no plano da


normalidade. O normal é o lícito, permitido, ajustado ao equilíbrio da economia e
convivência grupais. A norma jurídica é a proibição ao estranho, ao anômalo, ao
irregular, interrompendo o ritmo tranquilo da diuturnidade tranquila.

CASCUDO, L.C. Civilização e Cultura. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. Vol. 2, p.406-407.

Várias áreas procuraram estudar o Direito: a Filosofia, a Sociologia e a própria


Jurisprudência, é claro. Entretanto, alguns autores julgaram que o estudo do Direito não
deveria se misturar com outras áreas, embora tivesse com elas uma interdependência;
outros afirmaram que seria impossível entender completamente o fenômeno do Direito
sem relacioná-lo com outros elementos da sociedade, tal como a cultura.
Ao pesquisarmos sobre a origem do Direito, observaremos que esta instituição
existe desde a formação da sociedade, embora não existisse, no princípio, um conjunto
sistematizado de normas e condutas escritas, mas apenas regras ou preceitos proibitivos
relacionados a tabus ou observâncias sobre o que se pode e o que não se pode fazer.
Além disso, nas sociedades primitivas o Direito se confundia com a Religião, com os
costumes e com a própria linguagem, fenômenos tão antigos quanto a vida em
sociedade.
Quando comparamos as sociedades no tempo e no espaço, a primeira evidência
que surge é o fato de cada povo possuir suas próprias leis, códigos de ética, conduta,
proibições e sanções. Isso levou muitos teóricos a defenderem o princípio do
relativismo cultural/ético, de acordo com o qual cada prática não deve ser considerada
correta ou errada, mas apenas diferente, e ser entendida a partir de sua lógica própria.
Outros teóricos procuraram comparar diferentes sociedades, principalmente sua
variação no tempo, e associar um desenvolvimento ou evolução envolvendo o sistema
legal/jurídico ao longo da história.
Após a leitura dos textos a seguir, vários aspectos relacionados ao Direito e aos
costumes serão compreendidos. Boa leitura!

73
MONTESQUIEU: O ESPÍRITO DAS LEIS
O texto abaixo foi retirado da obra já vista, O Espírito das Leis, de Montesquieu.
Essa obra é considerada o início de uma Sociologia do Direito: nela o autor faz uma
distinção entre direito natural e direito positivo, descrevendo e comparando as diversas
leis existentes em sociedades diversas, no tempo e no espaço.
Leia o texto e responda: 1) Por que as leis positivas (do direito) são necessárias
para qualquer sociedade? 2) Como nascem as leis positivas? 3) O que é liberdade para
Montesquieu? 4) Explique o princípio dos três poderes descritos pelo autor, e por que
eles devem se contrapor um ao outro.

Logo que os homens estão em sociedade, perdem o sentimento de suas


fraquezas; a igualdade que existia entre eles desaparece, e o estado de guerra começa.
(...) O direito das gentes está naturalmente baseado neste princípio: as diversas nações
devem fazer-se, na paz, tanto bem quanto for possível e, na guerra, o mínimo de mal
possível, sem prejudicar seus verdadeiros interesses.
O objetivo da guerra é a vitória; o da vitória, a conquista; o da conquista, a
conservação. Desse princípio e do precedente devem derivar todas as leis que formam
o direito das gentes.
Todas as nações têm um direito das gentes. (...) Fora do direito das gentes, que
diz respeito a todas as sociedades, existe um direito político para cada uma. Sem um
governo, nenhuma sociedade poderia subsistir. (...)
É melhor dizer que o governo mais de acordo com a Natureza é aquele cuja
disposição particular melhor se relaciona com as disposições do povo para o qual foi
estabelecido.
As forças individuais não se podem reunir sem que todas as vontades se
reúnam. À reunião dessas vontades (...) é o que denominamos Estado Civil.
A lei, em geral, é a razão humana, na medida em que governa todos os povos da
terra, e as leis políticas e civis de cada nação devem ser apenas os casos particulares em
que se aplica essa razão humana. (...)

É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a liberdade
política não consiste nisso. Num Estado, isto é, numa sociedade em que há leis, a
liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser
constrangido a fazer o que não se deve desejar.
Deve-se ter sempre em mente o que é independência e o que é liberdade. A
liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer
tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal
poder. (...)
Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder
executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o executivo das que
dependem do direito civil. Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz leis por certo
tempo ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a paz
ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões.
Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos. (...)
Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou
dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as
resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos.

MONTESQUIEU, Op. cit., p.35-36, 155-157.

74
MAINE: A LEI ANTIGA
Henry James Sumner Maine (1822-1888) foi um jurista
britânico e pioneiro na área do direito comparado. O texto abaixo foi
retirado de sua obra Ancient Law, na qual faz uma distinção entre
sociedades estáveis e progressistas, afirmando que nestas havia um
movimento do status para o contrato. Ele defendia a ideia de que a
noção de indivíduo estava substituindo a de família, como unidade
principal de que o Direito Civil se ocupa.
Leia o texto e responda: Qual a relação entre os códigos antigos e as leis modernas?

O sistema mais célebre de jurisprudência conhecido no mundo começa, conforme


termina, com um código. Desde o início até o final de sua história, os expositores do Direito
Romano empregavam consistentemente uma linguagem que implicava que o corpo de seu
sistema repousava nas Doze Tábuas Decemvirais e, portanto, sobre as bases do direito escrito.
Exceto em um particular, nenhuma instituição anterior às Doze Tábuas foi reconhecida em
Roma. A descida teórica à jurisprudência romana a partir de um código, a atribuição teórica do
direito inglês à tradição imemorial não escrita, foram as principais razões pelas quais o
desenvolvimento de seu sistema diferia do nosso. Nenhuma teoria correspondia exatamente aos
fatos, mas cada uma produzia consequências da maior importância.
Dificilmente preciso dizer que a publicação das Doze Tábuas não é o primeiro ponto
em que podemos retomar a história do direito. O código romano antigo pertence a uma classe
na qual quase todas as nações civilizadas do mundo podem dar uma amostra e que, no que diz
respeito aos mundos romano e helênico, eram amplamente difundidas sobre eles em épocas não
muito distantes umas das outras. Apareceram sob circunstâncias extremamente semelhantes e
foram produzidas, a nosso conhecimento, por causas muito semelhantes. Inquestionavelmente,
muitos fenômenos jurídicos estão por trás desses códigos e os precedem no ponto do tempo.
Existem poucos registros documentais que professam fornecer-nos informações sobre os
primeiros fenômenos da lei; mas, até que a filologia efetue uma análise completa da literatura
sânscrita, nossas melhores fontes de conhecimento são, sem dúvida, os poemas homéricos
gregos, considerados obviamente não como uma história de ocorrências reais, mas como uma
descrição, não totalmente idealizada, de um estado de sociedade conhecida pelo escritor. (...)
Quando a lei primitiva já foi incorporada em um Código, há um fim no que pode ser
chamado de desenvolvimento espontâneo. Daí em diante, as mudanças efetuadas nele, se são
realizadas, o são deliberadamente e de fora. É impossível supor que os costumes de qualquer
raça ou tribo permanecessem inalterados durante todo o longo período - em alguns casos, o
imenso - intervalo entre a declaração de um monarca patriarcal e a publicação por escrito. Seria
inseguro também afirmar que nenhuma parte da alteração foi efetuada deliberadamente. Mas,
pelo pouco que sabemos sobre o progresso da lei durante esse período, somos justificados em
supor que o objetivo estabelecido teve a menor participação na produção de mudanças. Tais
inovações nos primeiros usos que se revelam parecem ter sido ditadas por sentimentos e modos
de pensamento que, sob nossas atuais condições mentais, somos incapazes de compreender.
Uma nova era começa, no entanto, com os códigos. Onde quer que, após essa época, tracemos
o curso da modificação legal, podemos atribuí-lo ao desejo consciente de melhoria ou a todos
os eventos de objetos abrangidos que não sejam aqueles que foram almejados nos tempos
primitivos.
Pode parecer, à primeira vista, que nenhuma proposição geral digna de confiança possa
ser extraída da história dos sistemas jurídicos subsequentes aos códigos. O campo é muito
vasto. Não podemos ter certeza de que incluímos um número suficiente de fenômenos em
nossas observações ou que entendemos com precisão aqueles que observamos. Mas o
empreendimento será visto como mais viável, se considerarmos que, após a época dos códigos,
a distinção entre sociedades estacionárias e sociedades progressistas começa a se fazer sentir.

MAINE, H. J. S. Ancient Law. London: John Murray, Albemarle Street, 1861, p.1-2, 21-22.

75
HANS KELSEN: TEORIA PURA DO DIREITO
Hans Kelsen (1881-1973) foi um jurista austríaco. Em
sua obra Teoria Pura do Direito, da qual foi extraído o trecho
abaixo, Kelsen procura delimitar uma ciência do Direito que
fosse desvinculada de tudo o que não correspondesse ao
próprio Direito, isto é, ele buscou uma pureza metodológica
nessa área, de modo a afastar todos os elementos que fossem
estranhos a essa ciência. Isso significava desvincular o Direito
da Sociologia, da Psicologia, da Moral, da Teologia ou da
Política; os assuntos relacionados ao Direito deveriam ser
vinculados a discussões dentro do próprio Direito, e nada mais. Por isso, afirmou que o
objeto de estudo da ciência jurídica era a norma.
A teoria de Kelsen é vista como uma teoria formal do Direito por utilizar uma
linguagem rígida e lógica e por abstrair conceitos utilizados em outras áreas, tal como a
ideia de justiça. Também não importava como as normas são produzidas ou como
deveriam ser produzidas; tratava-se apenas de descrever as normas através de outras
normas. Uma norma dá significação a um ato jurídico, que por sua vez produz outra
norma, e assim sucessivamente.
Leia o texto abaixo e responda: 1) Qual a diferença entre uma manifestação
externa da conduta humana e a sua significação jurídica? 2) Explique o significado de
norma.

Se se parte da distinção entre ciências da natureza e ciências sociais e, por


conseguinte, se distingue entre natureza e sociedade como objetos diferentes destes
dois tipos de ciência, põe-se logo a questão de saber se a ciência jurídica é uma ciência
da natureza ou uma ciência social, se o Direito é um fenômeno natural ou social. Mas
esta contraposição de natureza e sociedade não é possível sem mais, pois a sociedade,
quando entendida como a real ou efetiva convivência entre homens, pode ser pensada
como parte da vida em geral e, portanto, como parte da natureza. Igualmente o Direito -
ou aquilo que primo conspectu se costuma designar como tal - parece, pelo menos
quanto a uma parte do seu ser, situar-se no domínio da natureza, ter uma existência
inteiramente natural. Se analisarmos qualquer dos fatos que classificamos de jurídicos
ou que têm qualquer conexão com o Direito - por exemplo, uma resolução parlamentar,
um ato administrativo, uma sentença judicial, um negócio jurídico, um delito, etc. -,
poderemos distinguir dois elementos: primeiro, um ato que se realiza no espaço e no
tempo, sensorialmente perceptível, ou uma série de tais atos, uma manifestação externa
de conduta humana; segundo, a sua significação jurídica, isto é, a significação que o
ato tem do ponto de vista do Direito. Numa sala encontram-se reunidos vários
indivíduos, fazem-se discursos, uns levantam as mãos e outros não - eis o evento
exterior. Significado: foi votada uma lei, criou-se Direito. Nisto reside a distinção
familiar aos juristas entre o processo legiferante e o seu produto, a lei. Um outro
exemplo: um indivíduo, de hábito talar, pronuncia, de cima de um estrado,
determinadas palavras em face de outro indivíduo que se encontra de pé à sua frente. O
processo exterior significa juridicamente que foi ditada uma sentença judicial. Um
comerciante escreve a outro uma carta com determinado conteúdo, à qual este responde
com outra carta. Significa isto que, do ponto de vista jurídico, eles fecharam um
contrato. Certo indivíduo provoca a morte de outro em consequência de uma
determinada atuação. Juridicamente isto significa: homicídio.
Mas esta significação jurídica não pode ser percebida no ato por meio dos

76
sentidos, tal como nos apercebemos das qualidades naturais de um objeto, como a cor,
a dureza, o peso. Na verdade o indivíduo que, atuando racionalmente, põe o ato, liga a
este um determinado sentido que se exprime de qualquer modo e é entendido pelos
outros. Este sentido subjetivo, porém, pode coincidir com o significado objetivo que o
ato tem do ponto de vista do Direito, mas não tem necessariamente de ser assim. Se
alguém dispõe por escrito do seu patrimônio para depois da morte, o sentido subjetivo
deste ato é o de um testamento. Objetivamente, porém, do ponto de vista do Direito,
não o é, por deficiência de forma. (...)
O fato externo que, de conformidade com o seu significado objetivo, constitui
um ato jurídico (lícito ou ilícito), processando-se no espaço e no tempo, é, por isso
mesmo, um evento sensorialmente perceptível, uma parcela da natureza, determinada,
como tal, pela lei da causalidade. Simplesmente, este evento como tal, como elemento
do sistema da natureza, não constitui objeto de um conhecimento especificamente
jurídico - não é, pura e simplesmente, algo jurídico. O que transforma este fato num ato
jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu
ser tal como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema da natureza,
mas o sentido objetivo que está ligado a esse ato, a significação que ele possui. O
sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o fato em
questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe
empresta a significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo
esta norma. A norma funciona como esquema de interpretação. Por outras palavras: o
juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou
antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma
interpretação normativa. Mas também na visualização que o apresenta como um
acontecer natural apenas se exprime uma determinada interpretação, diferente da
interpretação normativa: a interpretação causal. A norma que empresta ao ato o
significado de um ato jurídico (ou antijurídico) é ela própria produzida por um ato
jurídico, que, por seu turno, recebe a sua significação jurídica de uma outra norma. O
que faz com que um fato constitua uma execução jurídica de uma sentença de
condenação à pena capital e não um homicídio, essa qualidade - que não pode ser
captada pelos sentidos - somente surge através desta operação mental: confronto com o
código penal e com o código de processo penal. Que a supramencionada troca de cartas
juridicamente signifique a conclusão de um contrato, deve-se única e exclusivamente à
circunstância de esta situação fática cair sob a alçada de certos preceitos do código
civil. O ser um documento, um testamento válido, não só segundo o seu sentido
subjetivo mas também de acordo com o seu sentido objetivo, resulta de ele satisfazer às
condições impostas por este código para que possa valer como testamento. Se uma
assembleia de homens constitui um parlamento e se o resultado da sua atividade é
juridicamente uma lei vinculante - por outras palavras: se estes fatos têm esta
significação -, isso quer dizer apenas que toda aquela situação de fato corresponde às
normas constitucionais. Isso quer dizer, em suma, que o conteúdo de um acontecer
fático coincide com o conteúdo de uma norma que consideramos válida.
Ora, o conhecimento jurídico dirige-se a estas normas que possuem o caráter de
normas jurídicas e conferem a determinados fatos o caráter de atos jurídicos (ou
antijurídicos). Na verdade, o Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma
ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o
comportamento humano. Com o termo ―norma‖ se quer significar que algo deve ser ou
acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira.

KELSEN, H. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Marins Fontes, 1998, p.2-4.

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DURKHEIM: DIREITO, MORAL E RELIGIÃO
Émile Durkheim também analisou o Direito e suas relações com a moral e a religião de
um povo. Na sua obra Da Divisão do Trabalho Social, já vista, ele associou o tipo de sociedade
à forma do direito: nas sociedades primitivas, simples, onde o pensamento coletivista é grande e
a divisão do trabalho pequena, o direito repressivo é predominante; já nas sociedades avançadas,
complexas, onde o pensamento individualista é mais acentuado e a divisão do trabalho grande, o
direito restitutivo é predominante. O direito repressivo combate e reprime os atos criminosos
porque eles violam costumes, crenças e preceitos éticos considerados importantes à
coletividade, e justamente porque os fins coletivos, nessas sociedades, são mais importantes do
que os fins individuais; no direito restitutivo o ato criminoso fere apenas o indivíduo ou um
pequeno grupo, e não valores considerados importantes à coletividade, pois nessas sociedades
os fins individuais são mais importantes do que os fins coletivos, e por isso, a pena é uma
restituição, um acordo entre as partes, uma compensação que o agente delituoso é obrigado a
fornecer à parte prejudicada.
O texto abaixo foi retirado da obra Ética e Sociologia da Moral. Leia-o e responda: 1)
Qual a relação entre direito, moral e religião? 2) Como surgiu o direito? 3) Procure no Decálogo
(Bíblia) exemplos de preceitos morais e de preceitos jurídicos. 4) Explique a frase: ―o direito
não é verdadeiro nem falso; ele é adequado ou inadequado ao objetivo que é sua razão de ser‖.

É tão correto entender a religião surgindo da moral quanto a moral da religião.


No início, direito, moral e religião se combinaram numa síntese da qual é impossível
dissociar os elementos. Nenhum desses fenômenos é anterior ao outro; mas eles
finalmente se separaram da mistura indiferenciada onde existiam em estado de
germinação. Durante muito tempo, tanto o poder de legislar quanto a responsabilidade
de guardar a moral foram funções pertencentes ao sacerdote. Temos um exemplo
impressionante dessa mistura primitiva no Decálogo, onde se encontram reunidos
mandamentos relativos ao respeito pelo dia do descanso, pela vida e pela propriedade
alheia. O Decálogo mostra uma ligeira tendência à diferenciação, pois os cinco
primeiros mandamentos são ético-religiosos e os últimos são realmente prescrições
jurídicas. (...)
Os costumes têm sido vistos como simples hábitos generalizados. Um indivíduo
adota por acaso uma forma de agir e é imitado por outros ansiosos por se valer do
exemplo. O hábito se espalha entre os indivíduos até gradualmente se tornar coletivo.
Mas essa teoria supõe erradamente que o indivíduo é a principal força da vida social.
Língua e religião não foram inventadas um dia por alguém cujo exemplo foi seguido
voluntária ou forçosamente pelos outros. Do fato de os fenômenos coletivos não
existirem fora das consciências dos indivíduos não se segue que eles se originem dessa
consciência; ao contrário, eles são obra da comunidade. Fenômenos coletivos não saem
dos indivíduos para se espalharem pela sociedade; emanam da sociedade e se difundem
então entre os indivíduos. Os indivíduos os aceitam, não os criam, embora cada um
tenha contribuído infinitesimalmente para a sua criação. (...)
Os costumes, como fatos coletivos, devem ter como causa outros fatos
coletivos. De fato, se, em vez de tentar descobrir racionalmente como as coisas se
teriam dado, alguém observar historicamente como realmente aconteceram, há de
descobrir que todos os costumes sociais têm origem em outros costumes sociais.
Quando desaparecem ou se modificam as causas que geraram a formação de um
costume, ele não se modifica; continua, em virtude da lei geral da inércia à qual os
costumes, como tudo mais, estão sujeitos. Às vezes acontece de eles persistirem assim,
sem propósito e sem razão, verdadeiras petrificações do passado. Entretanto, de modo
geral eles retêm flexibilidade suficiente para se adaptar a outros fins e assim dar origem
a novos costumes. De fato, esse processo não passa de uma metamorfose. De qualquer
78
forma, na sucessão ininterrupta de costumes que geram outros costumes, nunca vemos
a menor lacuna, a menor articulação por onde se possa introduzir o artifício individual.
Mas finalmente, se retornamos de costume em costume, o que vamos encontrar
na origem? Ainda mais fatos sociais, a saber, crenças e práticas religiosas. Poder-se-ia
com certeza acrescentar preceitos jurídicos, mas, como são inseparáveis dos religiosos,
a distinção não é significativa. (...) Não havia entre as tribos selvagens direito escrito
ou estabelecido; as nuances que distinguem os preceitos legais dos morais eram des-
conhecidas entre elas. Tanto uns quanto os outros eram colocados indiscriminadamente
sob a sanção dos costumes, que tinham maior poder de coação. A autoridade dos
costumes não era algo vago como acontece hoje; era, por ser unificada, uma autoridade
clara. Qualquer desvio dos costumes merecia rigorosa punição. Então, pouco a pouco,
essa homogeneidade se quebrou. O direito se separou dos costumes e assumiu os meios
de punição que até então haviam sido a força dos costumes em geral. A partir de então
os costumes retiveram apenas os meios internos de coerção, tais como a estima ou a
reprovação pública com todos os graus que esses sentimentos comportam. (...)
Os fins morais têm o caráter particular de serem considerados obrigatórios.
Uma pessoa normal não pensa neles sem pensar, ao mesmo tempo, que devem ser
cumpridos. Em outras palavras, a concepção desses fins não é um fato primitivo da
consciência; pelo contrário, eles nos aparecem como implicados em julgamentos
dotados de caráter imperativo. A análise os separa e isola, mas nesse estado não passam
de abstrações intelectuais. O que é realmente primário e concreto na vida moral são as
normas, os preceitos de que deriva todo o resto. (...)

Qual seria a causa prática que gerou o direito?


Responde o autor [Jhering], a necessidade de assegurar as condições de
existência da sociedade. Mas é necessário dar ao termo ―condições‖ um significado
muito amplo. ―Condições‖ não pode significar apenas as indispensáveis à
sobrevivência pura e simples, mas tudo aquilo cuja falta faria a existência nos parecer
sem valor. Honra não é uma condição necessária da vida, mas qual o homem de valor,
qual o povo que aceitaria uma vida sem honra? O direito depende, portanto,
simultaneamente de causas objetivas e de causas subjetivas. Ele não se relaciona
apenas ao ambiente físico, ao clima, número de habitantes, etc., mas até mesmo a
preferências, ideias, à cultura da nação. E a razão de ele ser variável, de tornar
obrigatório num lugar o que é proibido em outro. Pascal tinha razão: ―O que é verdade
num lado dos Pirineus é erro no outro‖. Mas não se trata aqui de verdade, e ela não é
comprometida por todas essas variações. Pois, uma vez mais, o direito não é verdadeiro
nem falso; ele é adequado ou inadequado ao objetivo que é sua razão de ser. (...)
[Segundo a doutrina do direito natural] a única função do direito é proteger os
indivíduos uns dos outros. A sociedade é representada como um enorme conjunto de
feras selvagens que o legislador mantém afastadas umas das outras, confinada cada
uma à sua jaula para evitar que se devorem. Mas os teóricos do direito natural têm uma
compreensão errada da verdadeira natureza da sociedade e se esquecem de que esta não
pode ser reduzida a uma massa de cidadãos, nem o interesse social reduzido à soma dos
interesses individuais. Ademais, mesmo que se aceite essa definição absolutamente
negativa de direito, não é difícil deduzir dela algumas consequências muito positivas.
Os indivíduos não se isolam uns dos outros por um abismo, ao contrário, eles se
amontoam uns sobre os outros de tal forma que um não pode se mexer sem que todos
os outros o sintam. Não existe uma única ação humana que não interfira no interesse de
alguém, que não prejudique alguém, e que, em consequência, possa não ser objeto de
medidas legislativas.
DURKHEIM, E. Ética e Sociologia da Moral. São Paulo: Marin Claret, 2016, p.39-69.

79
MARX E ENGELS: ESTADO, DIREITO E CLASSES SOCIAIS
Para Marx, o Estado é uma das esferas da alienação
humana. Alienação é um termo retirado de Hegel: a perda da
essência em favor de um ser outro. Isso significa que, para Marx,
o Estado surge como algo estranho, embora tenha sido criado pela
própria sociedade civil, pelo povo. O Estado representa os
interesses da comunidade, mas tais interesses estão separados de
cada um dos indivíduos, como algo estranho (alienado).
De acordo com a visão de Marx e Engels, a base real para
a existência do Estado são os interesses antagônicos, defendidos
por classes antagônicas. O Estado seria um instrumento de classe, por meio do qual a classe
dominante faria valer seus interesses, numa determinada época. Por classe dominante eles
entendem todos os que detém o poder econômico, o que na linguagem deles significa ser dono
dos meios de produção – máquinas, ferramentas, indústria, etc.
Em sua obra A Origem da Família, da Sociedade Privada e do Estado, Engels afirmou
que quando a sociedade chega a um determinado grau de desenvolvimento, de modo que os
antagonismos de classe se tornam irreconciliáveis, torna-se necessário um poder para manter os
conflitos dentro de certos limites. Este poder é o Estado, que surge como um poder
aparentemente por cima da sociedade, mas que na verdade seria um instrumento que a classe
dominante usaria para oprimir a classe dominada.
O texto abaixo foi retirado da obra A Ideologia Alemã, de Marx e Engels. Leia-o e
responda: 1) Qual a relação do Estado e do Direito com a propriedade? 2) De acordo com Marx,
qual seria a forma de se reconciliar o interesse particular com o interesse comunitário?

Com a divisão do trabalho está dada, ao mesmo tempo, a contradição entre o interesse
de cada um dos indivíduos ou de cada uma das famílias e o interesse comunitário de todos os
indivíduos que mantêm intercâmbio uns com os outros; e a verdade é que este interesse
comunitário de modo nenhum existe meramente na representação, como universal, mas antes
de mais nada na realidade, como dependência recíproca dos indivíduos entre os quais o
trabalho está dividido.
E é precisamente por esta contradição do interesse particular com o interesse
comunitário que o interesse comunitário assume uma forma autônoma como Estado, separado
dos interesses reais dos indivíduos e do todo, e ao mesmo tempo como comunidade ilusória,
mas sempre sobre a base real dos laços existentes em todos os conglomerados de famílias (...) e
especialmente, como mais tarde desenvolveremos, das classes desde logo condicionadas pela
divisão do trabalho, e que se diferenciam em todas essas massas de homens, e das quais uma
domina todas as outras. (...)
Por ser uma classe, e não já um estado (ou ordem social), a burguesia é obrigada, desde
logo, a organizar-se nacionalmente, e não já localmente, e a dar ao seu interesse médio uma
forma geral. Pela emancipação da propriedade privada em relação à comunidade, o Estado
adquiriu uma existência particular a par, e fora, da sociedade civil; mas ele nada mais é do que
a forma de organização que os burgueses se dão, tanto externa com internamente, para garantia
mútua da sua propriedade e dos interesses. (...)
Como o Estado é a forma em que os indivíduos de uma classe dominante fazem valer
os seus interesses comuns e se condensa toda a sociedade civil de uma época, segue-se que
todas as instituições comuns que são mediadas pelo Estado adquirem uma forma política. Daí a
ilusão de que a lei assentaria na vontade, e para mais na vontade dissociada da sua base real, na
vontade livre. (...)
Todas as vezes que, pelo desenvolvimento da indústria e do comércio, se formaram
novas formas de intercâmbio, por exemplo, companhias de seguros e outras, o direito foi
sempre obrigado a incluí-las entre os modos de aquisição de propriedade.

MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã.

80
ROSCOE POUND: PROBLEMAS DA INTERPRETAÇÃO
ECONÔMICA DO FENÔMENO JURÍDICO
Nathan Roscoe Pound (1870-1964) foi um jurista
americano. Definiu a lei como uma forma de controle social
exercida através da aplicação sistemática da força da sociedade
politicamente organizada. De acordo com ele, a jurisprudência e
a Sociologia do Direito estão relacionadas em três aspectos: na
ordem legal, nos princípios de disputa e no processo judicial.
Segundo Roscoe Pound, a concepção de Weber sobre a
lei está mais próxima da concepção do jurista do que a visão de
outros sociólogos, pois para os juristas a lei está relacionada à
adaptação de interesses em choque. Nesse sentido, Pound também fez severas críticas à
teoria marxista do Direito, segundo a qual as leis seriam sempre feitas para atender aos
interesses da classe dominante, no caso moderno, a ―classe burguesa‖.
O texto abaixo foi retirado da obra The Ideal Element in Law. Leia-o e responda:
Por que a visão de Marx sobre o Direito é equivocada?

A interpretação econômica começou na quinta década do século XIX, quando Marx


aplicou a dialética hegeliana à economia política inglesa, às teorias dos historiadores franceses
da Revolução Francesa e à sua própria experiência do movimento proletário. Com base nisso,
ele sugeriu uma nova maneira de entender a história. (...)
Uma forma analítica de interpretação econômica foi solicitada principalmente por
Brooks Adams. De acordo com essa interpretação, toda lei é feita, e é feita conscientemente,
por homens que fazem e moldam preceitos legais para se adequarem aos fins da classe social
dominante. Mas esses fins são determinados pela economia. Assim, toda lei é o produto de
causas econômicas. A lei é vista como um produto consciente da vontade humana. A base de
sua obrigação é a autoridade. Até agora, segue [o pensamento de] Austin. Mas é concebido que
a vontade que cria leis é determinada inteiramente pela operação das leis econômicas.
Brooks Adams considerava o direito uma manifestação da vontade da classe social
dominante, determinada por motivos econômicos. Ele afirma que os ideais de justiça nada
tiveram a ver com o curso real da evolução da lei ou do desenvolvimento de doutrinas legais.
Ele diz que "as regras da lei são estabelecidas pelo interesse próprio da classe dominante, na
medida em que possa impor sua vontade àqueles que são mais fracos". (...)
Do ponto de vista da interpretação econômica neo-realista, a jurisprudência tem a ver
com os fins de grupos ou pessoas que estão no poder no momento e exercem a força de uma
sociedade politicamente organizada para sua própria vantagem econômica. Esta é uma versão
econômico-realista do utilitarismo social. Direito e lei são simplesmente poder. Os que estão no
poder generalizam seus fins e os colocam em termos universais, e assim nos dão regras e
princípios de direito. Essa interpretação foi solicitada de várias formas pelos juristas socialistas,
especialmente em conexão com o determinismo econômico. Foi posteriormente adotado por
diferentes tipos de realistas e por alguns juristas da esquerda neo-kantiana.
Nenhum dos tipos de interpretação econômica pode ser aceito como uma descrição
completa ou explicação suficiente do desenvolvimento ou do conteúdo da lei. Nenhum pode
nos dar mais do que uma explicação parcial de certos fenômenos particulares. O que eu disse
sobre a escola histórica e devo dizer sobre os sociólogos mecânicos também se aplica aos
adeptos da interpretação econômica. Suas limitações auto impostas impedem uma fecunda
ciência do direito. Mas existem três objeções especiais a uma interpretação econômica
exclusiva em qualquer uma de suas formas.
Em primeiro lugar, é uma teoria da legislação, e não da lei, no sentido do corpo de
fundamentos ou guias de decisão de autoridade. É uma explicação de algumas características
dos processos judiciais e administrativos em ação, e não uma teoria da ordem jurídica. É uma
teoria do elemento vontade, o elemento imperativo no corpo dos preceitos oficiais, e não do

81
elemento tradicional, o elemento da experiência desenvolvida pela razão, que desempenha um
papel muito maior na história do direito e, a longo prazo, controla um sistema de direito. Além
disso, não é uma interpretação da parte mais duradoura da legislação que põe de forma
autoritária os preceitos legais que se desenvolveram a partir da experiência e foram formulados
na tradição judicial ou doutrinária. É antes uma interpretação da parte menos importante da
legislação que lida com detalhes particulares ou assuntos especiais e estabelece preceitos
arbitrariamente para eles, sem levar em consideração os princípios gerais do sistema jurídico.
(...)
Não devemos esquecer que a administração da justiça visa conscientemente mais do
que os defensores de uma interpretação econômica exclusiva de todos os fenômenos da ordem
jurídica ouvirão falar. Devemos levar em conta até que ponto a ação judicial é movida pelas
exigências lógicas de um sistema tradicional; na medida em que é restrito por uma tradição de
ensino, uma técnica tradicional e o que pode ser chamado de arte do ofício do advogado,
mesmo contra o interesse próprio. Isso deve ser lembrado especialmente quando, como nos
tempos modernos, a administração da justiça está nas mãos da profissão com uma longa
tradição de princípios, um ideal de justiça recebido e uma ciência sistemática, na qual a
dedução lógica dos princípios recebidos torna-se um hábito. (...)
Um segundo ponto é que os fenômenos da história do direito que são comprovados
pela doutrina da interpretação econômica não a sustentam.
A confiança principal daqueles que insistem na interpretação econômica como
explicação suficiente de todos os itens de constatação judicial e determinação judicial de causas
é "a regra do companheiro de serviço", a regra da lei comum de que um funcionário não pode
responsabilizar seu empregador por danos causados por negligência de um colega de trabalho
durante o emprego. Uma declaração típica da tese de interpretação econômica foi feita por
Walter Lippman: ―Segundo a antiga lei comum da Inglaterra, um trabalhador ferido poderia
processar o mestre por danos. Se ele tivesse sido ferido por negligência de um colega, ele ainda
poderia processar o mestre porque a lei responsabilizava o mestre pelos atos de seu servo... Em
1837, esse sistema de lei foi alterado em uma decisão proferida por Lord Abinger. Depois
disso, tornou-se lei que o mestre não era responsável por ferir um trabalhador quando o
ferimento foi causado por um colega de trabalho‖. Há aqui duas declarações totalmente
erradas. Não era lei comum da Inglaterra antes de 1837 que um empregador fosse responsável
por danos a um funcionário por negligência de outro funcionário no curso de seu emprego
comum. Essa questão ainda não havia surgido. Se tivesse, provavelmente teria sido
considerado que um funcionário assumiu o risco de negligência de seus colegas de trabalho
como um incidente do que eles estavam fazendo. De qualquer forma, a lei não foi alterada pela
decisão do Tribunal de Justiça em 1837. Mas, além do erro fundamental na declaração do Sr.
Lippman, outros argumentam que a regra estabelecida em 1837 era uma exceção arbitrária a
um princípio estabelecido do lei comum. (...)
Terceiro, uma teoria da causação mecânica pela operação inevitável do conflito de
classe elimina completamente a eficácia do esforço. Uma ciência do direito não menos severa
resulta, do que se segue, da concepção de uma lei natural finalmente determinada ou das teorias
extremas da jurisprudência histórica do século XIX ou da sociologia mecânica. As teorias do
direito tornam-se prontamente teorias de fazer lei e encontrar lei. Não pode ser uma boa teoria
da criação de leis ou do processo judicial que o legislador e o juiz adotam para formular o
interesse próprio da classe social dominante. Sem dúvida, o elemento ideal do direito é
grandemente afetado pela estrutura econômica da sociedade e, portanto, os preceitos legais são
gradualmente afetados em seu conteúdo e aplicação. No entanto, é significativo que a tradição
do direito comum tenha se mostrado resistente às condições econômicas. A lei fundiária
americana insiste que a terra deve ser tratada como uma aquisição fixa e permanente, como se
fôssemos uma comunidade de cavalheiros ingleses; não como um ativo que pode ser repassado
prontamente de mão em mão, que é a maneira pela qual é considerado pelos homens de
negócios.
POUND, R. The Ideal Element in Law.

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E. R. GRAU: ELEMENTOS DO DIREITO
O texto abaixo é de Eros Roberto Grau (1940), retirado da obra Elementos de
Direito Econômico. Eros foi ministro do STF de 2004 a 2010.
Nesta passagem, Eros Grau procura fornecer uma visão geral do Direito, sua
função na sociedade e importância. De acordo com ele, o Direito tende a equilibrar duas
situações opostas, a da liberdade ilimitada e a do poder despótico. Leia o texto e
responda: 1) Qual a função do Direito na sociedade? 2) Por que o Direito não pode ser
confundido com o Estado, ou como expressão da vontade do Estado? 3) Qual a crítica
que o autor faz à visão formalista do Direito? Cite um representante dessa visão
formalista. 4) Segundo o autor, o Direito é um produto cultural. Explique essa visão. 5)
De acordo com o autor, o Direito é anterior ao Estado. Você concorda com essa
afirmativa? Justifique. Volte à parte que trata do tema ―Estado‖, e recorde-se de que
seus primórdios remontam às sociedades primitivas.

O Direito é um instrumento de organização social. Compreende um sistema de normas


que regula – para o fim de assegurá-la – a preservação das condições de existência do homem
em sociedade. Sem penetrar, nesta oportunidade, os traços que o distinguem da moral e dos
costumes – o que nos levaria à análise dos requisitos de coercibilidade, heteronomia,
bilateralidade e atributividade – observamos que, ao mesmo tempo em que protege e assegura
a liberdade de agir do indivíduo, subordinando-a ao interesse coletivo, o Direito demarca as
áreas abrangidas por ambos (liberdade e interesse coletivo), tendendo à determinação de um
ponto de equilíbrio entre esses dois valores. Pois o Direito organiza a vida social exata e
precisamente na medida em que opera a conciliação entre as aspirações do homem à
individualidade e sua necessidade de convivência social.
Muitas vezes o Direito é descrito desde outras perspectivas, inteiramente incompatíveis
com a visão que, em seus termos gerais, acabo de colocar. Isso ocorre, exemplificadamente,
quando se afirma serem Direito e Estado as duas faces de uma mesma moeda. Então o Direito é
referido como termo oposto à liberdade. Seria isso verdadeiro? Respondida afirmativamente a
questão, findaríamos por entender amalgamados, em uma só unidade, Direito e Estado. O
Direito, no entanto – que não pretendo conceituar, mas apenas referir de modo compreensível –
como se verá, não pode ser reduzido a uma ótica tão singela quanto perigosa. (...)
Se toda história do homem e da sociedade encerra uma tentativa de compatibilização
entre ideais individuais e ideais sociais, essa compatibilização só pode ser operada,
institucionalmente, através do Direito.
A liberdade é essencial ao desenvolvimento do ser humano. O seu exercício, no
entanto, deve estar sujeito a limitações, enquanto subordinado ao interesse coletivo, tutelado ou
representado pelas expressões do poder. Este, por sua vez, deve também ser exercido dentro de
determinados limites, ultrapassados os quais o exercício das liberdades passa a estar
injustificadamente obstaculizado. É o Direito, mais uma vez, que deve tracejar as fronteiras das
áreas de exercício das liberdades individuais e das manifestações do poder.
O Direito, assim, não se coloca em oposição à liberdade. É força que atua,
concomitantemente, em relação à liberdade e ao poder. À consumação do pleno equilíbrio entre
tais valores, portanto – condição indispensável ao evolver da convivência social – é que o
Direito tende. (...)
De toda sorte, funcionando efetivamente o Direito como instrumento de organização
social, aproximado o termo de equilíbrio a cujo alcance está destinado, parece-me que não seria
de todo ingênuo admitir que acabe por se estabelecer um processo, não de conflito, mas de
interação mútua entre liberdade e poder, nutrido pelo Direito. Enquanto instrumento legítimo
de organização social, o Direito instrumentará a convivência harmoniosa entre liberdade e
poder, realizando, em sua plenitude, a sua função de instrumento de organização social. (...)
O Direito não pode e nem deve ser entendido como mera identidade do Estado. As suas
categorias são explicativas e não justificativas do exercício do poder. Não é possível, assim,

83
concebermos o Direito como ciência que tem como único objeto o conhecimento das normas
jurídicas, sem as valorar. Se o admitíssemos, teríamos que concluir que qualquer conteúdo
pode caber no Direito, visto que teria ele valor apenas enquanto forma. Daí, então, o risco de
passarmos a divisar nele não um instrumento de organização da sociedade, mas, simplesmente,
um instrumento de organização do poder. A noção de Direito desenvolvida por Kelsen – que
devemos tomar exemplarmente como antinômica da aqui exposta – acaba por reconhecer os
regimes despóticos ou totalitários como Estados de Direito.
É indispensável, para que possamos compreender o Direito, a consideração do seu
conteúdo. Apenas a partir de tal consideração será possível penetrarmos a distinção posta por
Goodhart entre o ―império pelo Direito‖ – que pode ser o instrumento mais eficaz para impor
um governo tirânico – e o ―império sob o Direito‖ – que é o fundamento essencial da liberdade.
É a observação do conteúdo do Direito, pois, que nos permitirá distinguir momentos históricos
em que esteja ele ou não a cumprir a sua finalidade, funcionando, na primeira hipótese, como
instrumento de organização da sociedade, na segunda como mero instrumento de organização
do poder. Mais ainda, desta visão não redutiva depende a lucidez indispensável para que o
possamos divisar em sua correta posição face à liberdade e ao poder, em interação com essas
forças e não em conflito com uma ou outra.
Esta tomada de posição nos levará, necessariamente, à recusa de visões exclusivamente
formalistas, estruturadas a partir, basicamente, das inicial contribuição de Stammler e da escola
de Viena. O Direito não é apenas a expressão da vontade do soberano ou do Estado, um
conjunto de regras coerente e lógico. A ideia de Direito está umbilicalmente comprometida
com o ideal de Justiça – isto é imprescindível afirmarmos desde logo. Pois justamente isso é
que sempre se recusaram a admitir os neo-kantianos, ensejando a Luís Recaséns Siches as
observações de que é necessário reivindicar para os problemas éticos, jurídicos e políticos seu
caráter próprio; a atitude do que permanece no neo-kantismo equivale à do explorador que
durante toda a sua vida se entretém com bússolas e demais instrumentos de orientação,
renunciando a realizar qualquer viagem; a eles pedimos Ética e nos dão Lógica: perguntamos
por um trajeto e nos respondem explicando-nos detalhadamente os princípios a que se ajusta a
construção da via férra. (...)
Para que possamos compreender adequadamente o Direito, pois, é necessário e
indispensável analisar o seu conteúdo. É impossível penetrarmos o sentido de uma norma
jurídica se não nos apropriarmos do conhecimento relacionado à matéria que nela se normatiza.
(...)
Desejo enfatizar, no caso, a circunstância de que o Direito é um produto cultural – ―a
mais nobre das criações humanas‖, como a ele se referiu Rubens Gomes de Souza – e as
realidades humanas são o elemento sobre o qual se processa a sua criação. Vale dizer: tais
realidades são o elemento de criação do Direito. O indivíduo se desenvolve em sociedade. Na
busca de condições que viabilizem esse desenvolvimento, os grupos sociais valoram situações
objetivas e, face a elas, adotam determinados princípios e ideias, dos quais defluem sentidos
por eles admitidos e consentidos como convenientes à convivência social. A partir desses
sentidos sociais é que se processa a luta pela criação do Direito, resultado da atuação das forças
sociais. A luta pela criação do Direito, assim, é o resultado da atuação destas forças, sob a
inspiração dos ideais individuais e ideais sociais.
Pois bem: como produto cultural, não apenas o Direito não é somente poder,
como também não pode a vontade do Estado ser considerada a fonte do Direito le-
gítimo – mesmo porque, como adverte Karl Olivecrona, o Direito é anterior ao Estado
e o Estado não é um poder fora do Direito: o Estado está condicionado pelo Direito.
A compreensão do Direito como produto cultural – e não como expressão de
uma só vontade: do soberano, do Estado, do povo ou do legislador – e de sua
destinação à finalidade da organização social nos permite perceber que, na evolução
das manifestações das forças sociais em luta, um clima de extremo dinamismo
caracteriza os processos de sua criação e aplicação.

GRAU, E. R. Elementos de Direito Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1981, p.1-7.

84
BENTHAM: PRINCÍPIOS DA MORAL E DA LEGISLAÇÃO
O texto abaixo é do filósofo Jeremy Bentham (1748-1832), retirado da obra
citada abaixo. Nesta parte, ele define o importante princípio que ficou conhecido como
utilitarismo. Leia e responda: 1) No que consiste a ideia básica do utilitarismo? 2) O
que é comunidade, segundo o autor? Por que é absurdo falar em ―interesse da
comunidade‖, ou ―interesse coletivo‖, ou ainda, ―interesse social‖? 3) Qual a função do
governo? 4) O termo ―interesse próprio‖ é uma redundância. Pesquise o significado do
termo ―redundância‖, e depois justifique por que ―interesse próprio‖ é uma redundância.

Por princípio de utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova


qualquer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa
cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a
promover ou a comprometer a referida felicidade. Digo qualquer ação, com o que tenciono
dizer que isto vale não somente para qualquer ação de um indivíduo particular, mas também de
qualquer ato ou medida de governo.
O termo utilidade designa aquela propriedade existente em qualquer coisa, propriedade
em virtude da qual o objeto tende a produzir ou proporcionar benefício, vantagem, prazer, bem
ou felicidade (tudo isto, no caso presente, se reduz à mesma coisa), ou (o que novamente
equivale à mesma coisa) a impedir que aconteça o dano, a dor, o mal, ou a infelicidade para a
parte cujo interesse está em pauta; se esta parte for a comunidade em geral, tratar-se-á da
felicidade da comunidade, ao passo que, em se tratando de um indivíduo particular, estará em
jogo a felicidade do mencionado indivíduo.
O interesse da comunidade, eis uma das expressões mais comuns que pode ocorrer na
terminologia e na fraseologia moral. Em consequência, não é de estranhar que muitas vezes se
perca de vista o seu significado exato. Se a palavra tiver um sentido, será o seguinte. A
comunidade constitui um corpo fictício, composto de pessoas individuais que se consideram
como constituindo os seus membros. Qual é, neste caso, o interesse da comunidade? A soma
dos interesses dos diversos membros que integram a referida comunidade.
É inútil falar do interesse da comunidade, se não se compreender qual é o interesse do
indivíduo. Diz-se que uma coisa promove o interesse de um indivíduo, ou favorece ao interesse
de um indivíduo, quando tende a aumentar a soma total dos seus prazeres, ou então, o que vale
afirmar o mesmo, quando tende a diminuir a soma totla das suas dores.
Por conseguinte, afirmar-se-á que uma determinada ação está em conformidade com o
princípio da utilidade, ou, para ser mais breve, à utilidade, quando a tendência que ela tem a
aumentar a felicidade for maior do que qualquer tendência que tenha a diminuí-la.
Pode-se afirmar que uma medida de governo (a qual constitui apenas uma espécie
particular de ação, praticada por uma pessoa particular ou por pessoas particulares) está em
conformidade com o princípio de utilidade – ou é ditada por ele – quando, analogamente, a
tendência que tem a aumentar a felicidade da comunidade for maior do que qualquer tendência
que tenha a diminuí-la. (...)
A missão dos governantes consiste em promover a felicidade da sociedade, punindo e
recompensando.
A parte da missão de governo que consiste em punir constitui mais particularmente o
objeto da lei penal. A obrigatoriedade ou necessidade de punir uma ação é proporcional à
medida em que tal ação tende a perturbar a felicidade e à medida em que a tendência do
referido ato é perniciosa. Ora, a felicidade consiste naquilo que já vimos, ou seja, em desfrutar
prazeres e estar isento de dores.
A tendência geral de um ato é mais perniciosa ou menos perniciosa, de acordo com a
soma total das suas consequências, isto é, conforme a diferença entre a soma das consequências
boas e a soma das consequências funestas.

BENTHAM, J. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação.


São Paulo: Abril Cultural, 1979, p.4-19. Coleção ―Os Pensadores‖.

85
HAYEK: ESTADO DE DIREITO X AUTORITARISMO
Friedrich August von Hayek (1899-1992) foi um teórico
austríaco que escreveu sobre questões econômicas, sociais e políticas.
O principal tema de suas obras é a defesa do livre mercado, tendo o
estado de Direito como consequência inevitável.
O texto abaixo foi retirado de sua obra O Caminho da
Servidão. Leia-o e responda: 1) O que é o estado de Direito? 2) Quais
as principais características do planejamento econômico coletivista e
suas implicações ao estado de Direito?

A característica que mais claramente distingue um país livre de um país


submetido a um governo arbitrário é a observância, no primeiro, dos grandes princípios
conhecidos como o estado de Direito. Deixando de lado os termos técnicos, isso
significa que todas as ações do governo são regidas por normas previamente
estabelecidas e divulgadas – as quais tornam possível prever com razoável grau de
certeza de que modo a autoridade usará seus poderes coercitivos em dadas
circunstâncias, permitindo a cada um planejar suas atividades individuais com base
nesse conhecimento. Embora esse ideal nunca venha a ser de todo realizado, uma vez
que os legisladores e os homens incumbidos de aplicar a lei são criaturas falíveis, fica,
porém, bem clara a questão essencial, ou seja, a necessidade de reduzir tanto quanto
possível o arbítrio concedido aos órgãos executivos que exercem o poder de coerção.
Se toda lei restringe até certo ponto a liberdade individual, alterando os meios que cada
um pode empregar na busca dos seus objetivos, sob o estado de Direito impede-se que
o governo anule os esforços individuais mediante ação ad hoc.
Segundo as regras do jogo conhecidas, o indivíduo é livre para perseguir suas
metas e desejos pessoais, tendo a certeza de que os poderes do governo não serão
empregados no propósito deliberado de fazer malograr os seus esforços. A distinção
que estabelecemos entre a criação de uma estrutura permanente de leis – no âmbito da
qual a atividade produtiva é orientada por decisões individuais – e a gestão das
atividades econômicas por uma autoridade central caracteriza-se assim, claramente,
como um caso particular da distinção mais geral entre o estado de Direito e o governo
arbitrário. Sob o primeiro, o governo limita-se a fixar normas determinando as
condições em que podem ser usados os recursos disponíveis, deixando aos indivíduos a
decisão relativa aos fins para os quais eles serão aplicados.
Sob o segundo, o governo dirige o emprego dos meios de produção para
finalidades específicas. As normas do primeiro tipo podem ser estabelecidas de
antemão, como normas formais que não visam às necessidades e desejos de pessoas
determinadas. Destinam-se apenas a servir de meio a ser empregado pelos indivíduos
na consecução de seus vários objetivos. Além disso, aplicam-se ou deveriam aplicar-se
a períodos bastante longos, de modo que se torne impossível saber se auxiliarão a
certas pessoas mais do que a outras. Poderiam ser definidas como uma espécie de
instrumento de produção que permite às pessoas prever o comportamento daqueles
com que têm de colaborar, e não como meios que visam a atender necessidades
específicas.
O planejamento econômico do tipo coletivista implica, necessariamente, o
oposto do que acabamos de dizer. A autoridade planejadora não pode limitar-se a criar
oportunidades a serem utilizadas por pessoas desconhecidas como lhes aprouver. Não
pode sujeitar-se de antemão a regras gerais e formais que impeçam a arbitrariedade. Ela

86
deve prover as necessidades reais das pessoas na medida em que forem surgindo, e
depois determinar quais delas são prioritárias. É obrigada a tomar constantes decisões
que não podem basear-se apenas em princípios formais e, ao tomá-las, deve estabelecer
distinções de mérito entre as necessidades das diferentes pessoas. Quando o governo
tem de resolver quantos porcos é necessário criar, quantos ônibus terão de ser postos
em circulação, quais as minas de carvão a explorar ou a que preço serão vendidos os
sapatos, essas decisões não podem ser deduzidas de princípios formais nem
estabelecidas de antemão para longos períodos. Dependem inevitavelmente das
circunstâncias ocasionais, e ao tomar tais decisões será sempre necessário pesar os
interesses de várias pessoas e grupos. No final, a opinião de alguém determinará quais
os interesses preponderantes; e essa opinião passará a integrar a legislação do país,
impondo ao povo uma nova categoria social.
A distinção que acabamos de fazer entre Direito formal, ou justiça, e normas
substantivas, é muito importante e ao mesmo tempo uma das mais difíceis de
estabelecer com exatidão na prática. No entanto, o princípio em que se baseia é
bastante simples. A distinção existente entre essas duas espécies de normas é a mesma
que haveria entre estabelecer um regulamento de trânsito e prescrever às pessoas aonde
devem ir; ou entre mandar instalar placas de trânsito e ordenar às pessoas que tomem
esta ou aquela estrada. As normas formais indicam antecipadamente que linhas de ação
o estado deverá adotar em certas situações, definidas em termos gerais, sem referência
a tempo e lugar nem a indivíduos em particular. Referem-se a situações típicas em que
qualquer um pode se encontrar e em que a existência de tais regras será útil para uma
grande variedade de objetivos individuais. O conhecimento de que em tais situações o
estado agirá de um modo definido ou exigirá que as pessoas procedam de determinada
maneira é oferecido aos indivíduos para permitir-lhes traçar seus próprios planos. As
normas formais são, pois, simplesmente instrumentais no sentido de que poderão ser
úteis a pessoas ainda desconhecidas, para as finalidades que essas pessoas resolvam
dar-lhes e em circunstâncias que não podem ser previstas em detalhe. Com efeito, o
critério mais importante das normas formais no sentido que aqui lhes atribuímos é não
conhecermos seu efeito concreto, não sabermos a que objetivos específicos atenderão,
a que pessoas específicas servirão – e também o fato de lhes ser dada apenas a forma
mais apropriada, de um modo geral, a beneficiar todas as pessoas a quem elas dizem
respeito. Não implicam uma escolha entre determinados objetivos ou pessoas, pois não
podemos saber de antemão por quem e de que modo serão usadas. (...)
À medida que o planejamento se torna cada vez mais amplo, faz-se necessário
abrandar na mesma proporção as disposições legais, mediante referência ao que é
―justo‖ ou ―razoável‖: isto significa que é preciso cada vez mais deixar a decisão do
caso concreto ao poder discricionário do juiz ou da autoridade competente. Poder-se-ia
escrever uma história do declínio do estado de Direito, do desaparecimento do
Rechtsstaat, com base na introdução progressiva dessas fórmulas vagas na legislação e
na jurisdição, e na crescente arbitrariedade, mutabilidade e imprecisão do Direito e da
judicatura (de onde o desrespeito que lhes advém), os quais em tais circunstâncias não
podem deixar de converter-se num instrumento político. A propósito, é importante
salientar mais uma vez que o declínio do estado de Direito vinha se processando de
modo acentuado na Alemanha algum tempo antes da subida de Hitler ao poder, e que
uma política governamental bastante próxima do planejamento totalitário já realizara
boa parte da tarefa completada em seguida pelos nazistas.

HAYEK, F. O Caminho da Servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil,
6ª ed., 2010, p.89-94.

87
PROPRIEDADE PRIVADA
A propriedade privada pensada como valor envolve a existência do princípio
básico de respeito à posse de uma pessoa sobre algo obtido legitimamente. Esse
princípio existe tanto nos costumes quanto na lei, sendo generalizado por toda a
sociedade. Alguns autores estenderam esse princípio à posse do próprio corpo,
considerado como auto-propriedade (self-ownership): cada pessoa sendo proprietária
exclusiva de si mesma.
Já a propriedade privada enquanto instituição social diz respeito a relações
complexas no Direito, costumes, Estado, relações comunitárias e sociedade em geral.
Nesse sentido, se caracteriza pela existência de normas que definem quem possui o que
e como podem usufruir de seus bens; definem também os limites relacionados à
apropriação legítima.
Segundo o sociólogo e demógrafo americano Kingsley Davis, a propriedade
privada é um sistema de direitos e obrigações do proprietário de um bem escasso
perante outras pessoas. Outros teóricos como Murray Rothbard e Hans-Hermann Hoppe
negaram o caráter institucional da propriedade privada, pensando-a não apenas como
um valor, mas um direito natural, assim como o próprio corpo. Esses temas serão vistos
nos textos a seguir.
Atualmente, o termo objeto é entendido como algo completamente separado da
pessoa que o possui. Isso se reflete, por exemplo, no Direito: direito das coisas e direito
pessoal. Reflete-se também na visão pejorativa do termo objeto; transformar alguém em
objeto é considerado algo ruim, é diminuir uma pessoa à condição de coisa. Entretanto,
nem sempre foi assim: nas sociedades antigas, ou nas primitivas, o objeto está ligado à
pessoa que o possui, de modo a estabelecer uma ligação mágico/ritualística que não se
encerra quando objeto e pessoas são separadas. Ou ainda, clãs ou tribos trocavam
pessoas entre si da mesma forma que trocam objetos, e ambos eram considerados
sagrados ou de suma importância. Esses assuntos também serão vistos adiante.
Como objeto estava ligado à pessoa nas primeiras sociedades, é natural pensar
que a noção de propriedade privada atual (posse sobre as coisas) só poderia ser
desenvolvida a partir de um desenvolvimento concomitante da noção de indivíduo.
Numa sociedade onde a individualidade é pouco expressiva, e onde os fins individuais
são pequenos comparados à busca pelos fins coletivos, é natural que a própria noção de
propriedade privada seja também arcaica, pouco expressiva. Essa constatação foi feita
por Spencer e, posteriormente, repetida por Durkheim.
O objetivo dessa parte é fornecer noções básicas para o entendimento desses e
outros assuntos relacionados à propriedade privada, bem como à sua relação com outras
instituições.

88
JOHN LOCKE: FUNDAMENTO DA PROPRIEDADE
O filósofo John Locke (1632-1704) viveu na
Inglaterra na época em que estavam ocorrendo os
Enclosure Acts, conhecidos como política dos cercamentos:
quando grandes campos abertos e terras comuns foram
cercadas e o seu direito de propriedade legal foi transferido
para a iniciativa privada. Nesse contexto, Locke
posicionou-se absolutamente a favor de tais políticas, e os
motivos que o levaram a apoiá-las podem ser encontrados
na passagem abaixo, retirada do famoso capítulo V da obra
Segundo Tratado sobre o Governo Civil.
John Locke foi um pensador jusnaturalista. Isso significa que, para ele, haviam
direitos naturais em cada ser humano que eram independentes do contexto político,
como por exemplo o direito à propriedade. A função do Estado e das leis seria, portanto,
preservar esses direitos, e em hipótese alguma violá-los. Locke entendia a propriedade
de cada pessoa eram três: a vida, a liberdade e os bens. A primeira e a segunda já
nascem e são intrínsecas a cada um; a terceira deve ser conquistada de forma legítima, e
não através do roubo.
Leia o texto abaixo e responda: 1) Segundo Locke, o que faz com que algo seja
uma propriedade de alguém? 2) Quais os limites para a apropriação legítima, segundo
Locke? Cite e explique-os. 3) Quais os argumentos utilizados por ele para defender os
Enclosure Acts?

Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens,


cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer
direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos, pode dizer-
se, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe
forneceu o no qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se lhe
algo que lhe pertence e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o do
estado comum em que a natureza o colocou, anexou-lhe por esse trabalho algo que o
exclui do direito comum de outros homens. Desde que esse trabalho é propriedade
exclusiva do trabalhador, nenhum outro homem pode ter direito ao que se juntou, pelo
menos quando houver bastante e igualmente de boa qualidade em comum para
terceiros.
Aquele que se alimenta das bolotas colhidas debaixo de um carvalho ou das
maçãs apanhadas nas árvores da floresta, com toda certeza delas se apropriou para si.
Ninguém pode negar que lhe pertença o alimento. Pergunto então: Quando começaram
a pertencer-lhe? Quando as digeriu? Quando as comeu? Quando as cozinhou? Quando
as trouxe para casa? Quando as colheu? E é evidente que, se a colheita, de início, não
as fez dele, nada mais poderia tê-lo feito. Este trabalho estabeleceu uma distinção entre
o comum e elas; juntou-lhes algo mais do que fez a natureza, a mãe comum de todos,
tornado-as assim direito privado dele. E poderá alguém dizer que não tivesse direito a
essas bolotas ou às maçãs de que se apropriou por não ter tido o consentimento de
todos os homens para que se tornassem dele? Seria roubo tomar de tal maneira para si o
que pertencia a todos em comum? Se semelhante consentimento fosse necessário, o
homem morreria de fome, apesar da abundância que Deus lhe deu. Vê-se nos terrenos
em comum, que assim ficam por pacto, que é a tomada de qualquer parte do que é
comum com a remoção para fora do estado em que a natureza o deixou que dá início à

89
propriedade, sem o que o comum nenhuma utilidade teria. E a tomada desta ou daquela
parte não depende do consentimento expresso de todos os membros da comunidade.
Assim a grama que o meu cavalo pastou, a turfa que o criado cortou, o minério que
extraí em qualquer lugar onde a ele tenho direito em comum com outros, tornam-se
minha propriedade sem a adjudicação ou o consentimento de qualquer outra pessoa. O
trabalho que era meu, retirando-os do estado comum em que se encontravam, fixou a
minha propriedade sobre eles. (...)
Assim esta lei da razão torna o veado propriedade do índio que o matou;
permite-se que pertençam os bens àquele que lhes dedicou o próprio trabalho, embora
anteriormente fossem direito comum a todos. (...)
A isto talvez se objete que ―se colher bolotas ou outros frutos da terra, etc., dá a
eles direito, então qualquer um pode açambarcar tanto quanto queira‖. Ao que
respondo: Não é certo. A mesma lei da natureza que nos dá por esse meio a
propriedade também a limita igualmente. ―Deus nos deu de tudo abundantemente‖ (I
Tim 6, 17) é a voz da razão confirmada pela inspiração. Mas até que ponto no-lo deu?
Para usufruir. Tanto quanto qualquer um pode usar com qualquer vantagem para a vida
antes que se estrague, em tanto pode fixar uma propriedade pelo próprio trabalho; o
excedente ultrapassa a parte que lhe cabe e pertence a terceiros. Deus nada fez para o
homem estragar e destruir. (...) A extensão de terra que um homem lavra, planta,
melhora, cultiva, cujos produtos usa, constitui a sua propriedade. Pelo trabalho, por
assim dizer, separa-a do comum.
Deus deu o mundo em comum aos homens; mas, como o fez para benefício
deles e maior conveniência da vida que fossem capazes de retirar dele, não é possível
supor tivesse em mente que devesse ficar sempre em comum e inculto. Deu-o para uso
do diligente e racional – e o trabalho tinha de servir-lhe ao direito de posse –, não à
fantasia e ambição dos brigões e altercadores. (...)
Certo é que, no começo, antes que o desejo de ter mais do que precisa tivesse
alterado o valor intrínseco de tudo quanto somente depende da própria utilidade para a
vida do homem, ou tivessem concordado em que um pedacinho de metal amarelo que
se conservasse sem desgaste ou decomposição equivaleria a um grande pedaço de
carne ou a um monte inteiro de trigo, embora os homens tivessem o direito de se
apropriar, pelo trabalho, cada um para si, de tudo quanto na natureza pudessem fazer
uso, não poderia isto ser demasiado, nem em prejuízo de terceiros, se a mesma
abundância ainda se apresentasse aos que fizessem uso da mesma diligência. Ao que,
permitam-me juntar que aquele que toma posse da terra pelo trabalho não diminui mas
aumenta as reservas comuns da Humanidade. As provisões que servem para o sustento
da vida humana produzidas em um acre de terra fechada e cultivada – falando mui
conservadoramente – são dez vezes mais do que pode produzir um acre de terreno de
igual fertilidade aberto e em comum. Portanto, aquele que cerca um pedaço de terra e
tem maior volume de conveniências da vida retirado de dez acres do que poderia ter de
cem abandonados à natureza, pode dizer-se verdadeiramente que dá noventa acres aos
homens.

LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. 5ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p.227-31.

90
ROBERT NOZICK: PROBLEMAS DA APROPRIAÇÃO ORIGINAL
Robert Nozick (1938-2002) foi um filósofo americano. Sua
mais importante teoria é a ideia de que o Estado deveria proteger
os direitos básicos contra o uso da força, da fraude e do roubo.
Argumentando contra John Rawls, o qual propôs uma teoria da
justiça baseada na equidade e não no interesse próprio, Nozick
afirmou que tal pensamento é perigoso e que todo Estado deveria
se restringir ao mínimo possível.
O trecho abaixo foi retirado de sua importante obra
Anarquia, Estado e Utopia. Nessa parte, Nozick está ponderando os vários argumentos
utilizados por Locke no texto anterior. Leia-o e responda: Quais as críticas que ele faz?

Julga ele [Locke] os direitos de propriedade em um objeto sem dono como


originário do fato de alguém misturar seu trabalho com o mesmo. Isso dá origem a
numerosas questões. Quais são as fronteiras daquilo com que o trabalho é misturado?
Se um astronauta privado limpa um lugar em Marte, misturou ele seu trabalho com
todo o planeta (que passa a ser seu), todo o universo, ou apenas com um dado lote?
Que lote um ato transforma em propriedade? A área mínima (possivelmente não
contínua), de modo que um ato reduz a entropia nessa área, e não em outro local?
Poderá terra virgem (sobrevoada a alta altitude por um avião para fins de pesquisa
ecológica) ser posta sob regime de propriedade, segundo o princípio lockeano?
Construir uma cerca em torno de um território presumivelmente nos tornaria
proprietários apenas da cerca (e da terra imediatamente embaixo dela).
Por que misturar nosso trabalho com alguma coisa nos torna proprietário dela?
Talvez porque possuímos nosso próprio trabalho, de modo que passamos a possuir uma
coisa antes sem dono que é saturada com aquilo que possuímos. A propriedade infiltra-
se no resto. Mas por que misturar aquilo que possuo com aquilo que não possuo não é
uma maneira de perder o que tenho, e não de ganhar o que não tenho? Se possuo uma
lata de suco de tomate e derramo-a no mar, de modo que suas moléculas (tornadas
radioativas para que eu possa controlar isso) se misturem uniformemente com o mar,
passo eu, por isso, a possuir o mar ou gastei totalmente meu suco de tomate? Talvez a
ideia, em vez disso, seja que trabalhar em alguma coisa melhora-a e a torna mais
valiosa e todos têm direito a possuir uma coisa cujo valor eles criaram. (Reforçando
isso, talvez, haja a ideia de que trabalhar é desagradável. Se alguma pessoa faz coisas
sem esforço, como os personagens do desenho animado O Submarino Amarelo, que
deixam flores na esteira do barco, teriam menos direito aos seus próprios produtos, cuja
criação nada lhes custou?). Ignoremos o fato de que trabalhar em alguma coisa poderia
torna-la menos valiosa (como borrifar com spray cor-de-rosa um pedaço de madeira
flutuante que encontramos). Por que deveria nosso direito de propriedade estender-se a
todo o objeto e não apenas ao valor adicionado que nosso trabalho produziu? (Essa
referência a valor poderia servir também para delimitar a extensão da propriedade,
como, por exemplo, substituir ―reduz a entropia em‖ por ―aumenta o valor de‖ nos
critérios de entropia acima). Nenhum esquema prático ou coerente de propriedade por
valor adicionado foi ainda elaborado e ele provavelmente não resistiria às objeções. (...)
Será implausível considerar melhorar um objeto como suficiente para conferir
plena propriedade ao mesmo, se o estoque de objetos sem dono foi limitado. Isso
porque um objeto que passa a propriedade de alguém muda a situação de todas as
outras pessoas, uma vez que, antes, elas tinham liberdade (...) de usá-lo, o que não
acontece mais. Esta mudança na situação dos outros (retirando-lhes a liberdade de agir

91
no tocante a um objeto que antes não tinha dono), porém, não precisa tornar-lhes pior a
situação. Se eu me aproprio de um grão de areia de Coney Island, ninguém mais pode
fazer o que quiser com aquele grão. Mas sobram grãos à vontade para que façam com
eles o que quiserem. Ou, se não grãos de areia, outras coisas. Alternativamente, as
coisas que faço com o grão de areia de que me apropriei pode melhorar a posição dos
demais, compensando-lhes a perda de liberdade para usá-lo. O ponto crucial é se a
apropriação de um objeto sem dono torna pior a situação dos demais.
A condição de Locke, de que tenha sido ―deixado tanto e tão bom em comum
para os outros‖ visa a garantir que a situação destes não ficará pior. (Se esta condição é
satisfeita, há qualquer motivação para sua condição posterior de não desperdício?).
Frequentemente se diz que essa condição aplicava-se outrora, mas não mais agora. Mas
parece haver aqui um argumento para a conclusão de que se a condição não mais se
mantém, então não pode jamais ter-se mantido, de modo a gerar direitos de propriedade
permanentes e de herança. Consideremos a primeira pessoa Z para quem não há o
suficiente e tão bom para que se aproprie. A última pessoa Y a apropriar-se deixou Z
sem sua liberdade anterior de agir sobre um objeto e, assim, piorou lhe a situação.
Assim, a apropriação praticada por Y não é permitida pela condição de Locke. Por
conseguinte, a penúltima pessoa X acabou com a apropriação permissível. Neste caso,
o antepenúltimo apropriador, W, acabou com a apropriação permissível e assim, uma
vez que agravou a situação de X, a apropriação que ele praticou não era permissível. E
assim vai, recuando até a primeira pessoa, A, que se apropriou de um direito de
propriedade permanente. (...)
Será tornada pior a situação de pessoas que não podem se apropriar de alguma
coisa (não havendo mais objetos acessíveis e úteis não possuídos por alguém) por um
sistema que permita a apropriação e a propriedade permanente? Neste ponto aparecem
várias considerações sociais bem conhecidas favoráveis à propriedade privada: ela
aumenta o produto social, pondo os meios de produção nas mãos daqueles que podem
usá-los da forma mais eficiente (lucrativa?); a experimentação é estimulada, porque,
com pessoas separadas controlando os recursos, não há uma única pessoa ou pequeno
grupo com quem alguém com uma nova ideia tenha que convencer para submetê-la a
teste; a propriedade privada permite às pessoas decidirem sobre o padrão e tipos de
riscos que desejam correr, levando a tipos especializados de aceitação dos mesmos; a
propriedade privada protege pessoas no futuro, levando alguns a reter recursos tirados
do consumo corrente para futuros mercados; proporciona fontes alternativas de
emprego para pessoas impopulares que não têm que convencer qualquer única pessoa
ou grupo a contratá-las, etc. Essas considerações entram em uma teoria lockeana para
sustentar a alegação de que a apropriação da propriedade privada satisfaz à intenção
por trás da condição ―o suficiente e tão bom‖, mas não como justificação utilitarista da
propriedade. (...)
Cabe notar que não são apenas as pessoas que defendem a propriedade privada
que necessitam de uma teoria de como os direitos à propriedade legitimamente
surgiram. Os que acreditam em propriedade coletiva, como, por exemplo, os que
acham que um grupo de pessoas que vive em uma área possui conjuntamente o
território ou seus recursos minerais, têm também que fornecer uma teoria de como
surgem esses direitos de propriedade. Precisam demonstrar por que as pessoas que nele
vivem têm direitos de decidir o que deve ser feito com a terra e recursos que lá existem
e que pessoas que vivem em outro local não os têm (no tocante à mesma terra e aos
recursos).

NOZICK, R. Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1991, p. 193-197.

92
DURKHEIM: DIREITO DE PROPRIEDADE E COMUNISMO
NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS
O texto abaixo é de Durkheim, da obra Da Divisão do Trabalho Social. Nesta
parte, ele analisa algumas características das sociedades primitivas e, repetindo as ideias
de Spencer, chama o tipo de vínculo nessas sociedades de solidariedade mecânica. Leia
e responda: (1) Por que nessas sociedades o comunismo está sempre presente? (2) O
que é preciso ocorrer para que a propriedade deixe de ser coletiva e se torne individual?
(3) Por que as pessoas passam a atribuir o direito de propriedade ao chefe?

Não apenas o clã tem por base a consanguinidade, mas os diferentes clãs de um
mesmo povo se consideram muito frequentemente como parentes uns dos outros. Entre
os iroqueses, eles se tratam, segundo o caso, de irmãos ou de primos. Entre os Hebreus
(...) o ancestral de cada um dos clãs que compõe a tribo é apontado como descendente
do fundador desta última [da tribo], o que é por ele próprio encarado como um dos
filhos do pai da raça. (...)
Mas de qualquer maneira que se denomine esta organização, tal como a horda
de que é um prolongamento, ela não comporta evidentemente outra solidariedade que
aquela derivada das similitudes, visto que a sociedade é formada e segmentos similares
e que estes, por sua vez, só abrangem elementos homogêneos. Cada clã sem dúvida
tem sua fisionomia própria e se distingue portanto dos outros; mas a solidariedade, por
sua vez, é tanto mais fraca quanto mais heterogêneos eles seja, e vice-versa. Para que a
organização segmentar seja possível, é preciso, ao mesmo tempo, que os segmentos se
pareçam, sem o que não seriam unidos, e que eles se diferenciem, sem o que se
perderiam uns nos outros e se diluiriam. (...) Essas sociedades constituem o lugar típico
da solidariedade mecânica, tanto que delas derivam seus principais caracteres
fisiológicos. Sabemos que nelas a religião penetra toda a vida social, isto porque esta é
composta quase exclusivamente de crenças e práticas comuns, que tiram da adesão
unânime uma intensidade muito particular. (...)
É daí também que deriva o comunismo, que se tem muitas vezes assinalado en-
tre esses povos. O comunismo, com efeito, é o produto necessário dessa coesão espe-
cial que absorve o indivíduo dentro do grupo, a parte no todo. A propriedade não é em
definitivo que a extensão da pessoa sobre as coisas. Onde a personalidade coletiva é a
única, a propriedade também não pode deixar de ser coletiva. Ela só pode se tornar in-
dividual quando o indivíduo, se desligando da massa, se torne ele também um ser pés-
soal e distinto, não apenas enquanto organismo, mas enquanto elemento da vida social.
Onde, pois, a sociedade tem tal caráter religioso e, por assim dizer, sobre-
humano, cuja origem mostramos na constituição da consciência comum, ele se
transmite necessariamente ao chefe que a dirige e que se encontra assim situada muito
acima do resto dos homens. Onde os indivíduos são mera dependência do tipo coletivo,
eles tornam-se naturalmente dependentes da autoridade central que o encarna. Do
mesmo modo ainda, o direito de propriedade que a comunidade exercia sobre as coisas
de uma maneira indivisível, passa integralmente para a personalidade superior que se
encontra assim constituída. Os serviços propriamente profissionais prestados por esta
última são, pois, insignificantes face ao poder extraordinário de que ela é investida. Se,
nesses tipos de sociedade, o poder diretor possui tanta autoridade, não é, como se diz,
porque tenham necessidade especial de uma direção enérgica; mas essa autoridade é
toda uma emanação da consciência, e ela é grande porque essa própria consciência
comum é muito desenvolvida.
DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. In: Coleção Grandes Cientistas. p. 87-9.

93
MALINOWSKI: PROPRIEDADE ENTRE OS NATIVOS
Bronisław Kasper Malinowski (1884-1924) foi um
antropólogo polonês, atuando como professor na Inglaterra. Fez
várias pesquisas de campo em regiões diversas como na Austrália
e nas Ilhas Trobriand, esta última resultando no livro Argonautas
do Pacífico Ocidental, da qual foi extraído o texto abaixo. Nessa
obra ele analisa o Kula, um sistema de troca diferente de tudo o
que conhecemos na sociedade ocidental. Leia o texto e responda:
Qual a noção de propriedade para os nativos?

A propriedade, no sentido mais amplo da palavra, é a relação, em geral muito


complexa, existente entre um objeto e a comunidade social em que ele se encontra. Na
etnologia, é extremamente importante que não se dê a essa palavra uma significação mais
restrita do que a que acabamos de definir, pois que os tipos de propriedade variam muito de
região para região. Constitui erro especialmente grave usar-se a palavra propriedade com o
significado muito definido a ela atribuído em nossa própria sociedade. É óbvio que esse
significado pressupõe a existência de condições econômicas e legais altamente desenvolvidas,
tais como as que encontramos em nosso próprio meio; portanto, o termo ―possuir‖, tal qual o
usamos, não tem sentido quando aplicado à sociedade nativa. Ou, então, o que é bem pior, sua
aplicação introduz na nossa descrição várias ideias preconcebidas e, antes mesmo que
tenhamos começado a relatar as condições nativas, já teremos distorcido a perspectiva do leitor.
A propriedade tem, naturalmente, um sentido específico diferente em cada tipo de
sociedade nativa, visto que em cada uma delas os costumes e as tradições vinculam à palavra
uma série diferente de funções, rituais e privilégios. Além disso, é variável a gama social
daqueles que desfrutam desses privilégios. Entre a propriedade puramente individual e o
coletivismo há uma escala completa de misturas e combinações.
Nas ilhas Trobriand existe uma palavra que, pode-se dizer, denota de maneira
aproximada a propriedade: é o prefixo toli-, acompanhado do nome do objeto que se possui.
Dessa maneira a palavra composta toli-waga (pronunciada sem hiato) significa o ―proprietário‖
ou ―senhor‖ de uma canoa (waga); toli-bagula, o senhor de uma roça (bagula = terreno,
cultivado, roça); toli-bunukwa, dono do porco; toli-megwa, proprietário, especialista em magia,
etc. Essa palavra tem de ser usada como chave para o entendimento das ideias nativas; mas,
mais uma vez, é com cautela que a devemos usar. Em primeiro lugar porque, como todas as
palavras nativas abstratas, ela cobre uma variedade de significados e seu sentido varia
conforme o seu contexto. E mesmo com referência a um determinado objeto, várias pessoas
podem reivindicar o direito de propriedade, ou seja, alegar que são toli- em relação a esse
objeto. Em segundo lugar, as pessoas que têm pleno direito de facto de usar determinado
objeto, podem não estar autorizadas a dar a si mesmas o título de toli- desse objeto. (...)
A palavra toli-, nesse caso, limita-se a um só indivíduo, que se denomina toli-waga. Às
vezes seus parentes maternos mais próximos, tais como irmãos e sobrinhos maternos, podem
coletivamente atribuir a si mesmos o nome de toli-waga, mas isso seria um abuso do termo.
Ora, até mesmo o simples privilégio de fazer uso exclusivo desse título é altamente valorizado
pelos nativos. (...) [Essa é uma] faceta da psicologia social trobriandesa, ou seja, sua ambição,
vaidade e desejo de conseguir renome e ser elogiado. Os nativos, para os quais o Kula e as
expedições marítimas são tão importantes, associam o nome da canoa ao do seu toli-;
identificam seus poderes mágicos à boa sorte da canoa na navegação e no Kula;
frequentemente usam o nome de uma pessoa como se fosse o nome da canoa, dizendo que
fulano de tal navegou aqui ou acolá, comentando sobre a rapidez com que navega, etc.

MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1976, p.99-100.

94
MARCEL MAUSS: DIREITO DAS COISAS E DAS PESSOAS
NAS SOCIEDADES ANTIGAS
O texto abaixo foi retirado da obra Sociologia e
Antropologia, do antropólogo já visto Marcel Mauss. Nessa
parte, o autor afirma que entre os antigos a separação entre
coisas e pessoas era pouco perceptível, principalmente para nós
modernos. A propriedade estava ligada à pessoa, família, clã ou
tribo, assim como estes estavam ligados à propriedade (ou coisa,
objeto, bem). Além disso, os aspectos mágicos, religiosos e
morais estavam fortemente ligados ao sentimento de posse e
propriedade, de modo que não podemos utilizar nossas
modernas categorias da economia para entender as sociedades
que nos precederam.
Leia o texto abaixo e responda: De que maneira a propriedade estava ligada à
família nas sociedades antigas e primitivas?

Vivemos em sociedades que distinguem fortemente (a oposição é agora


criticada pelos próprios juristas) os direitos reais e os direitos pessoais, as pessoas e as
coisas. Essa separação é fundamental: ela constitui a condição mesma de uma parte de
nosso sistema de propriedade, de alienação e de troca. No entanto, é alheia ao direito
que acabamos de estudar [das sociedades antigas]. (...)
Há certamente um vínculo nas coisas, além dos vínculos mágicos e religiosos,
os das palavras e dos gestos do formalismo jurídico.
Esse vínculo é ainda marcado por alguns velhíssimos termos do direito dos
latinos e dos povos itálicos. A etimologia de alguns desses termos parece apontar tal
sentido. (...)
Na origem, seguramente, as próprias coisas tinham uma personalidade e uma
virtude.
As coisas não são os seres inertes que o direito de Justiniano e nossos direitos
concebem. Em primeiro lugar, elas fazem parte da família: a família romana
compreende as rés e não apenas as pessoas. Temos ainda sua definição no Digeste, e é
muito significativo que, quanto mais remontamos na antiguidade, tanto mais o sentido
da palavra família denota as rés que fazem parte dela, designando mesmo os víveres e
os meios de vida da família. A melhor etimologia da palavra família é certamente a que
a aproxima do sânscrito dhaman, casa. (...)
A rés não deve ter sido, na origem, a coisa bruta e apenas tangível, o objeto
simples e passível de transação que ela se tornou. Parece que a melhor etimologia é a
que compara com a palavra sânscrita rah, ratih, dádiva, presente, coisa agradável. A
rés deve ter sido, antes de tudo, o que dá prazer a uma outra pessoa. Por outro lado, a
coisa é sempre marcada, selada, com a marca de propriedade da família. Compreende-
se assim que, com as coisas mancipi, a tradição solene, mancipatio, crie um vínculo de
direito. Pois, nas mãos do accipiens, ela permanece ainda, em parte e por um momento,
da "família" do primeiro proprietário; continua ligada a ele e obriga o atual possuidor
até que este seja desonerado pela execução do contrato, isto é, pela tradição
compensatória da coisa, do preço ou serviço que obrigará, por sua vez, o primeiro
contratante.

MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p.265-270.

95
STUART MILL: DIREITO DE PROPRIEDADE
John Stuart Mill (1806-1873) foi um teórico inglês que
escreveu temas ligados tanto à Filosofia quanto à Economia,
destacando-se em seus escritos sobre liberdade civil, ética, lógica
e economia de mercado. Mill também se debruçou sobre
questões que hoje são discutidas na Sociologia, razão pela qual
até hoje é citado também neste meio.
O texto abaixo foi retirado da obra Princípios de
Economia Política. Leia-o e responda: 1) Como surgiu a
propriedade privada, segundo o autor? 2) No que consiste, hoje
em dia, o direto à propriedade privada? 3) Segundo o
pensamento comunista, os trabalhadores deveriam ter direito ao produto total de seu
trabalho, por serem eles os únicos que produzem. Qual argumento Stuart Mill formula
para contrapor a este raciocínio? 4) Segundo Mill, mesmo aqueles que não possuem
propriedade hoje, e não têm possibilidade de adquiri-la, estão em melhores condições do
que se a humanidade não houvesse formado um estoque de poupança prévio. Por quê?

A propriedade privada, como instituição, não deveu sua origem a nenhuma


daquelas considerações de utilidade que militam pela manutenção dela, uma vez
estabelecida. Sabe-se bastante sobre épocas primitivas, tanto da história passada quanto
de estados análogos da sociedade em nossos dias, para mostrar que os tribunais (que
sempre precedem às leis) foram originalmente fundados, não para determinar direitos,
mas par reprimir a violência e dirimir disputas. Tendo em vista sobretudo esse objetivo,
com bastante naturalidade, outorgavam reconhecimento legal ao primeiro ocupante,
tratando como agressora a pessoa que primeiro iniciasse a violência de privar ou tentar
privar outra pessoa da propriedade. Conseguia-se, assim, a preservação da paz, que
representava o escopo original do Governo civil; ao mesmo tempo, confirmando e
reconhecendo àqueles que já possuíam a propriedade – mesmo em se tratando daquilo
que não era fruto do trabalho pessoal –, o Governo civil dava incidentalmente uma
garantia a eles e a outros de que seriam protegidos no que era assim objeto de
propriedade.
A instituição da propriedade, se limitada a seus elementos essenciais, consiste
no reconhecimento, em cada pessoa, de um direito a dispor com exclusividade daquilo
que ele ou ela produziu com seu próprio trabalho, ou então recebeu, mediante doação
ou acordo honesto, sem emprego de força ou fraude, daqueles que o produziram. O
fundamento de tudo é o direito dos produtores àquilo que eles mesmos produziram.
Pode-se, portanto, objetar à instituição, como hoje existe, que ela reconhece em
indivíduos direitos de propriedade sobre coisas que não produziram. Por exemplo
(alegar-se-á), os operários de uma manufatura criam, com seu trabalho e sua
habilidade, o produto total; no entanto, ao invés de esse produto pertencer a eles, a lei
lhes dá apenas seu salário estipulado, e transfere o produto propriamente dito a alguém
que apenas forneceu os fundos, sem talvez contribuir em nada para o trabalho
propriamente dito, nem mesmo na forma de supervisão. A resposta a isso é que o
trabalho de manufaturar é apenas uma das condições que têm que associar-se para
produzir a mercadoria. O trabalho não pode ser executado sem matérias-primas e sem
máquinas, nem sem um estoque de gêneros de primeira necessidade, fornecido
adiantadamente para manter os trabalhadores durante a produção. Ora, todas essas
coisas são os frutos de trabalho feito anteriormente. Se os proprietários desses frutos

96
fossem os trabalhadores, não teriam que dividir o produto do seu trabalho com
ninguém, ao passo que, não sendo eles proprietários dos referidos frutos, se deve dar
um equivalente àqueles que são os donos desses frutos – compensando, portanto, a
estes, tanto pelo trabalho anterior quanto pela abstenção deles, abstenção em virtude da
qual o produto do trabalho anterior, ao invés de ser por eles gasto em auto-satisfação,
foi reservado para o uso da produção. É possível que o capital não tenha sido criado – e
na maioria dos casos não o foi – pelo trabalho e a abstinência do proprietário atual, mas
tenha sido criado pelo trabalho e abstenção de alguma pessoa anterior, que, na
realidade, sem dúvida, pode ter perdido injustamente a posse dele, mas que, na presente
época do mundo, com muito maior probabilidade transferiu seus direitos ao capitalista
atual, por doação ou mediante contrato voluntário; a abstenção, no mínimo, deve ter
sido prolongada por cada proprietário sucessivo até chegarmos aos dias de hoje. Se
alguém alegar – como se pode efetivamente afirmar com verdade – que aqueles que
herdaram as poupanças de outros desfrutam de uma vantagem que possivelmente de
maneira alguma mereceram, em relação às pessoas trabalhadoras cujos predecessores
não lhes deixaram nada, direi o seguinte: não somente admito, mas até defendo
vigorosamente, que essa vantagem imerecida deve ser limitada, na medida em que se
conciliar com a justiça, àqueles que acharam conveniente dispor de suas poupanças
dando-as a seus descendentes. Todavia, se é verdade que os trabalhadores estão em
posição de desvantagem, se comparados àqueles cujos predecessores pouparam,
também é verdade que os trabalhadores estão em situação muito melhor do que se
aqueles predecessores não tivessem poupado. Participam da vantagem, embora não em
medida igual à dos herdeiros. As condições de cooperação entre o trabalho presente e
os frutos do trabalho e da poupança do passado são matéria de acerto entre as duas
partes. Um é necessário ao outro. Os capitalistas nada podem fazer sem trabalhadores,
nem os trabalhadores sem capital. Se os trabalhadores competem por emprego, os
capitalistas, por sua parte, competem por mão-de-obra, até a extensão plena do capital
circulante do país. Muitas vezes fala-se da concorrência como se ela fosse
necessariamente a causa da miséria e da degradação da classe obreira, como se os
salários altos não fossem um produto da concorrência, tanto quanto os salários baixos.
A remuneração da mão-de-obra é o resultado da lei da concorrência nos Estados
Unidos, tanto quanto o é na Irlanda, e muito mais do que na Inglaterra.
O direito de propriedade inclui, portanto, a liberdade de adquirir por contrato. O
direito de cada um àquilo que produziu implica um direito àquilo que foi produzido por
outros se isso for obtido por consentimento livre destes; com efeito, os produtores
devem tê-lo cedido gratuitamente ou então devem tê-lo trocado por algo que
consideraram equivalente; impedi-los de fazê-lo seria infringir seu direito de
propriedade sobre o produto de seu próprio trabalho. (...)
A propriedade não implica outra coisa além do seguinte: o direito de cada um a
suas próprias faculdades, àquilo que com elas podem produzir, bem como a tudo aquilo
que puder obter através delas em um comércio honesto; além disso, seu direito de dar
isso a qualquer outra pessoa, se o quiser, e o direito dessa outra pessoa de recebe-lo e
desfrutar dele.

MILL, J. S. Princípios de Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1983.


(Os Economistas), p. 182-195.

97
HOPPE: NEGAR A EXISTÊNCIA DA PROPRIEDADE PRIVADA
SIGNIFICA CAIR EM AUTOCONTRADIÇÃO
Hans-Hermann Hoppe (1949) é um teórico alemão da escola
austríaca. Estudou Filosofia, Sociologia e Economia, dedicando-se a
temas na área da ética, economia e política.
Durante seu PhD, Hoppe foi aluno de Habermas, e este
desenvolveu, juntamente com Karl Otto-Appel, uma teoria que
ficou conhecida como ―ética do discurso‖ ou ―ética comunicativa‖:
o critério de verdade é o consenso dos que argumentam; cada agente
procura harmonizar seus interesses através de um consenso na
discussão. Isso é conseguido através das regras da linguagem que fazem parte de
qualquer comunicação, estabelecidas numa situação ideal de fala, e por isso, racionais.
De acordo com Habermas, as regras do discurso não são convenções, mas
pressuposições inevitáveis da argumentação. Isso levou Habermas e Appel a afirmarem
que a não observância dessas regras discursivas levaria a uma contradição
performativa. Como exemplo de uma contradição performativa, temos a frase: ―Chove,
mas eu não acredito‖; há uma afirmação na primeira parte da frase, e logo em seguida
uma negação da afirmação anterior – uma contradição lógica. Habermas e Appel
concluíram que uma tal afirmação é irracional; portanto, se pudéssemos formular um
princípio qualquer e este não entrasse em contradição performativa, então ele deveria
valer como fundamento absoluto. Esse seria o fundamento da ética, inclusive.
Essa ideia serviu de base para as análises de Hoppe. Ele aplicou este princípio na
fundamentação da propriedade privada: negar a sua existência seria uma contradição
performativa. E mais ainda: a partir da contradição performativa poderia se chegar a
uma ética. Daí nasceu a famosa ética argumentativa de Hoppe.
Segundo Hoppe, para que algo seja considerado como propriedade privada, é
necessário cumprir os seguintes requisitos: apresentar uma conexão causal com alguma
necessidade humana e estar sob total controle do possuidor. Alguns elementos podem
apresentar conexão com uma necessidade, mas não estar sob o controle de ninguém, por
exemplo, a floresta habitada por índios; nesse caso, não é propriedade de ninguém, ou
seja, Hoppe nega que os índios fossem os proprietários naturais da terra.
O texto abaixo foi retirado da obra Ética e Economia da Propriedade Privada,
de Hoppe. Leia-o e responda: 1) Por que negar a existência da propriedade privada seria
uma contradição performativa, segundo ele? 2) Por que a existência da propriedade
privada não pode depender da autorização de terceiros, de acordo com o autor?

Se uma pessoa fosse negar a validade da instituição da apropriação original e da


propriedade privada, as consequências seriam claras: se a pessoa A não fosse a
proprietária de seu próprio corpo e dos bens e lugares originalmente produzidos e/ou
apropriados por seu corpo, bem como dos bens voluntariamente (contratualmente)
adquiridos de outros proprietários anteriores, então apenas duas alternativas existiriam,
a saber: Ou uma outra pessoa, B, deveria ser reconhecida como a proprietária do corpo
de A, bem como dos bens e lugares apropriados, produzidos ou adquiridos por A; ou
ambas as pessoas, A e B, deveriam ser consideradas igualmente co-proprietárias de
todos os corpos, lugares e bens existentes. (...)
Toda ação de uma pessoa requer o uso de algum meio escasso (pelo menos o
uso do corpo dessa pessoa e do espaço que ele ocupa). Porém, se todos os bens
pertencessem simultaneamente a todas as pessoas, então ninguém, em nenhum
momento e em nenhum lugar, teria a permissão de fazer qualquer coisa, a menos que

98
ele anteriormente tivesse obtido a permissão de todos os outros co-proprietários.
Entretanto, fica o dilema: como é que uma pessoa poderia conceder tal permissão
sendo que ela não é a dona exclusiva de seu próprio corpo (incluindo suas cordas
vocais)? Afinal, é através de seu corpo que a autorização deve ser expressa. De fato,
antes de dar seu consentimento, ela teria de obter o consentimento de outra pessoa, que
a autorizaria a expressar a sua própria autorização. Mas essa outra pessoa não poderia
dar esse consentimento sem antes ter obtido, de uma outra pessoa, a autorização para
tal, e assim por diante. (...)
Se as pessoas têm ou não quaisquer direitos e, caso tenham, quais são eles, é
algo que só pode ser decidido por meio da argumentação (debate proposicional). Uma
justificativa - prova, conjectura, refutação - é uma proposição argumentativa. Qualquer
um que negue essa afirmação estaria envolvido em uma contradição performativa, pois
sua negação iria por si só constituir um argumento. O seu próprio ato de negar é em si
uma argumentação. Mesmo um relativista ético teria de aceitar essa primeira
afirmação, que é apropriadamente conhecida como o apriorismo da argumentação. (...)
Dedutivamente, somente se ambos os lados de um conflito forem capazes de
incorrer mutuamente em uma argumentação, é que poderemos considerar a questão do
problema moral. E, apenas nesse caso, a pergunta sobre se há ou não uma solução para
esse problema se torna uma pergunta significante. (...)
Ademais, segue-se do apriorismo da argumentação que, tudo o que deve ser
tomado como pressuposição para uma argumentação, isto é, tudo o que deve ser
considerado como uma precondição lógica e praxeológica para uma argumentação, não
pode, por sua vez, ter a sua validade contestada argumentativamente. Pois, ao fazer
isso, a pessoa cairia em contradição performativa - uma auto-contradição. (...)
Uma pessoa só pode propor alguma coisa e esperar que o oponente se convença
da validade do argumento - ou o negue e proponha outra coisa - se o seu direito e o do
seu oponente sobre o controle exclusivo de seus respectivos corpos e espaços forem
pressupostos. De fato, é exatamente esse reconhecimento mútuo que o proponente e o
oponente têm a respeito da propriedade de seus próprios corpos e do espaço que
respectivamente ocupam que constitui o characteristicum specificum de todas as
argumentações proposicionais: embora uma pessoa possa não concordar quanto à
validade de uma proposição específica, ela pode, no entanto, concordar com o fato de
que ela discorda de algo. Ademais, esse direito à propriedade que alguém tem sobre o
próprio corpo e sobre o espaço que ele ocupa deve ser considerado, tanto pelo
proponente como pelo oponente, aprioristicamente (ou incontestavelmente) auto-
evidente. Qualquer um que afirme que a sua argumentação é que é válida vis-à-vis a de
um oponente, já estaria automaticamente pressupondo que ele e seu oponente têm
controle exclusivo sobre seus respectivos corpos e espaços ocupados por eles. Quando
uma pessoa diz "Eu afirmo que isso e isso é verdade e desafio você a provar que estou
errado", ela está automaticamente assumindo as condições acima.
Mais ainda: seria igualmente impossível uma pessoa incorrer em alguma
argumentação e depender da força proposicional de seu argumento se essa pessoa não
pudesse ser a proprietária (controle exclusivo) de outros meios escassos (além de seu
corpo e do espaço que ele ocupa). Se essa pessoa não tivesse esse direito, ela já estaria
morta. Expandindo-se essa situação universalmente, todos nós já estaríamos mortos, e
todo o problema de ter de justificar regras - bem como qualquer outro problema -
simplesmente não existiria. Logo, unicamente pela virtude do fato de essa pessoa estar
viva, o direito de propriedade sobre outras coisas deve ser pressuposto como válido,
também. Ninguém que esteja vivo pode argumentar o contrário.
HOPPE, H. H. Ética e Economia da Propriedade Privada.
Retirado do Instituto Ludwig von Mises Brasil. https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=200

99
KANT: DO DIREITO DE PROPRIEDADE
Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo prussiano.
Publicou vasta obra sobre assuntos que incluem epistemologia e ética.
O trecho abaixo foi retirado da obra Metafísica dos Costumes, onde ele
analisou a doutrina do direito e a doutrina da virtude. Leia-o e
responda: 1) De onde vem o direito de propriedade, segundo Kant? 2)
Segundo Kant, uma pessoa que vivesse sozinha na Terra não teria
direito a coisa alguma. Explique por quê.

A explicação usual de um direito a uma coisa (ius reale, ius in re) segundo a
qual ―é um direito contra todo possuidor dela‖ é uma definição nominal correta. Mas o
que me torna capaz de recuperar um objeto externo de qualquer um que o está
ocupando e de constrange-lo (per vindicationem) a reinstaurar-me em sua posse?
Poderia esta relação jurídica externa de minha escolha ser uma relação direta com uma
coisa corpórea? Alguém que pensa que seu direito é uma relação direta com coisas e
não com pessoas teria que pensar (ainda que apenas obscuramente) que visto que aí
existe a correspondência de um direito, de um lado, com um dever, do outro, uma coisa
externa sempre permanece sob obrigação relativamente ao primeiro possuidor, muito
embora tenha deixado suas mãos; que, uma vez que se encontra obrigada a ele, rejeita
qualquer outro que pretenda ser o seu possuidor. Dessa forma, ele pensaria no meu
direito como se este fosse um espírito guardião que acompanhasse a coisa, sempre me
apontando destacadamente quaisquer outras pessoas que quisessem dela tomar posse e
a protegendo contra qualquer arremetida delas. É, portanto, absurdo pensar numa
obrigação de uma pessoa em relação a coisas ou o contrário, mesmo que talvez seja
permissível, se houver necessidade para tanto, tornar essa relação jurídica perceptível
retratando-a e expressando-a desta maneira.
Assim, a definição real deveria ser nos seguintes termos: um direito a uma coisa
é um direito ao uso privado de uma coisa da qual estou de posse (original ou instituída)
em comum com todos os outros, pois esta posse em comum é a única condição sob a
qual é possível a mim excluir todo outro possuidor do uso privado de uma coisa, visto
que, a menos que tal posse em comum seja assumida, é inconcebível como eu, que não
estou de posse da coisa, poderia ainda ser prejudicado por outros que estão de posse
dela e a estão usando. Por minha escolha unilateral não posso obrigar um outro a
abster-se do uso de uma coisa, uma obrigação que, de outro modo, ele não teria;
consequentemente, só sou capaz de fazê-lo através da escolha conjunta de todos que a
possuem em comum; de outra maneira, teria que conceber um direito a uma coisa
como se a coisa tivesse uma obrigação comigo, da qual meu direito contra todo outro
possuidor dela é então derivado, o que constitui uma explicação absurda.
Pela expressão direito de propriedade (ius reale) deveria ser entendido não
apenas um direito a uma coisa (ius in re), mas também a soma de todas as leis que têm
a ver com coisas que são minhas ou tuas. Mas está claro que alguém que estivesse
totalmente sozinho sobre a Terra não poderia realmente nem ter nem adquirir qualquer
coisa externa como sua, uma vez que não há relação alguma de obrigação entre ele,
como uma pessoa, e qualquer outro objeto externo, como uma coisa.
Consequentemente, falando estrita e literalmente, não há também direito a uma coisa.
Aquilo que se designa como um direito a uma coisa é somente o direito que alguém
tem contra uma pessoa que está de posse dela em comum com todos os outros (na
condição civil).
KANT, I. Metafísica dos Costumes.

100
NEOILUMINISMO: IMPOSTO NÃO É ROUBO
O texto abaixo foi retirado de um artigo publicado no site Neoiluminismo,
intitulado Imposto não é Roubo! – um apelo à defesa consistente do liberalismo. Nesse
artigo, os autores procuram se contrapor ao chavão ―imposto é roubo‖ propagado por
libertários, como Hoppe, ou mesmo por liberais e conservadores. Ao construírem sua
argumentação, os autores levantam questões importantes envolvendo posse,
propriedade, fato empírico, fato normativo, norma, legitimidade do imposto e muitos
outros. Eles também explicam o que é conhecido em Filosofia Moral como falácia
naturalística: um juízo moral jamais pode ser deduzido a partir de um conjunto de
premissas puramente factuais ou descritivas. Por exemplo: do fato de fumar fazer mal à
saúde não implica que alguém não deva fumar.
Leia o texto e responda: 1) Qual a diferença entre posse e propriedade? 2) Qual a
diferença entre fato empírico e fato normativo? 3) Explique a ―Lei de Hume‖ citada
pelos autores.

Há uma diferença fundamental entre os conceitos de posse (ou controle) e


propriedade. Embora essa diferença seja evidente e de fácil compreensão após o exame
analítico dessas palavras, há uma confusão muito comum observada nos debates acerca
do assunto. Antes de discutirmos esses conceitos, precisamos compreender duas coisas
importantes: o que é um fato empírico e o que é um fato normativo.
Um fato empírico é um estado de coisas que é expresso por um juízo
contingente cuja justificação se dá por meio do apelo à experiência. João observa que
Ana está sentada e formula a proposição ―Ana está sentada no momento‖. Essa
proposição indica algo que é o caso e que poderia não ser o caso. É, portanto, algo
contingente e está na ordem do ser. Um fato normativo, por sua vez, é um estado de
coisas que é expresso por um juízo necessário (necessidade deôntica e não física,
metafísica ou lógica) cuja justificação se dá por meio do apelo à razão prática. Por
exemplo, imagine que João descobre que Ana firmou um contrato com Paulo que inclui
a obrigação de pagar R$ 50,00 em troca de um serviço e formula a proposição ―Ana
tem a obrigação de pagar R$ 50,00 a Paulo‖. Essa proposição aponta para algo que
deve ser o caso e inclui o conceito normativo ―obrigação‖, que implica um vínculo
jurídico/moral/institucional pelo qual uma pessoa deve fazer ou não algo que beneficia
outra. É algo que está na ordem do dever-ser.
Como isso se conecta aos conceitos de posse e propriedade? O primeiro (posse
ou controle) está no campo do empiricamente factual (na arena dos fatos empíricos), é
a condição subjetiva de qualquer uso possível. Portanto, estamos nos referindo à mera
posse empírica. Exemplos: eu estou em posse de um celular neste momento. O padre
está em posse de uma Bíblia. A criança está em posse de uma pedra. O segundo
(propriedade) está no campo do que é normativo. Trataremos aqui dela (direito à posse
exclusiva legítima). Exemplos: este celular é minha propriedade. Eu tenho a
propriedade desta casa. Aquele garfo na mão (i.e. na posse) do cliente é propriedade do
dono do restaurante.
Um juízo acerca de posse é apenas a descrição de um fato empírico. Nesse caso,
um ladrão pode estar em posse de um celular que é propriedade de outra pessoa. É
juridicamente meu aquilo com o que estou ligado de tal forma que o uso por parte de
outrem sem permissão declarada (declaratio) infringe meu título sobre a coisa. Esse
título consiste em ter a faculdade de usar e dispor da coisa e também no direito de
retomá-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha5. Exemplos:
uma pessoa entrou em minha casa enquanto eu não estava e tomou meu celular sem

101
permissão. Eu tenho o direito de obrigá-la a devolvê-lo. Note que o pronome
possessivo aqui tem um tipo de implicação muito maior do que a mera posse: diz
respeito a essa relação jurídica que é expressa no conceito de propriedade.
Há, portanto, a necessidade fundamental de estabelecermos normas (que são
parâmetros de correção) para que possamos falar de propriedade, pois, caso contrário,
estaríamos falando apenas de descrições empíricas desprovidas de qualquer
normatividade (normatividade esta que diz respeito a obrigações expressas por meio de
imperativos). (...) A ação de tomar algo de outrem só se torna ilegítima a partir do
estabelecimento de um parâmetro de correção que diga que algo é errado ou certo. É,
portanto, necessário um esquema conceitual normativo, ou seja, um esquema de
parâmetros de correção (normas) para a ação humana. (...)
Como já estabelecido, os movimentos físicos realizados pelos seres humanos só
possuem normatividade, e podem ser caracterizados propriamente como ação, a partir
do momento em que os colocamos sob a ótica de um esquema conceitual específico,
caso contrário, seriam apenas eventos empíricos descritos naturalisticamente. É por
isso que precisamos de esquemas conceituais normativos com base nos quais podemos
falar de roubo (que é um tipo de ação que identifica a violação de uma norma),
propriedade (que diz respeito à atribuição de um objeto como legitimamente
pertencente a alguém) e imposto (que, dependendo do esquema normativo em questão,
será um tipo de ação – a cobrança – legítima ou ilegítima).
No que consiste o direito de propriedade privada? Primeiro, percebamos que no
conceito de direito está inclusa analiticamente, pelo princípio de contradição, a
competência para o uso da coerção contra quem o viola, coerção esta que é um aspecto
essencial do conceito de direito. Após isso, diríamos que o direito diz respeito a um
título de um certo indivíduo perante um certo objeto que coloca obrigações em todos os
outros indivíduos (obrigações como ―respeite o que eu decidir fazer com esse objeto‖,
―não o use sem a minha permissão‖ etc). É, portanto, importante notar que o direito de
propriedade privada possui também tanto um aspecto unilateral quanto um aspecto
intersubjetivo. Unilateral na medida em que a minha aquisição de um objeto não diz
respeito a ninguém senão a mim, isto é, eu não preciso da permissão explícita de
ninguém para apropriar-me de um dado objeto; intersubjetivo na medida em que esse
ato unilateral tem repercussões para todos os outros indivíduos já que a reivindicação
do objeto em questão como meu limita a gama de ações das outras pessoas com
respeito a tal objeto. É indispensável ratificar que é a composição desses três aspectos
(coerção, unilateralidade e intersubjetividade) que proporciona o que entendemos como
propriedade privada e suas implicações gerais. Remover quaisquer dos três aspectos
retira da noção de propriedade privada o seu status de direito.
Entendido esse triplo aspecto, podemos notar que não é um simples fato natural
o que entendemos por propriedade privada. Do mero fato de alguém usar um certo
objeto de modo pioneiro, não é possível derivar uma obrigação universal para que as
outras pessoas sigam as suas escolhas referentes a tal objeto, sob pena de colapsar a
distinção entre a ordem empírica e a ordem normativa, violando a Lei de Hume.

Nota: A lei de Hume foi um termo cunhado por R.M Hare para designar a tese de que
de nenhum conjunto de premissas puramente empiricamente descritivas podemos
derivar uma conclusão que contenha algum termo normativo.

Alexandre Lopes, Raffz Vieira e Otfried Max.


Imposto não é Roubo! – um apelo à defesa consistente do liberalismo. In: Neoiluminismo.

102
COMÉRCIO
O comércio, juntamente com a propriedade privada e a divisão do trabalho, faz
parte de um conjunto geralmente chamado de instituições econômicas, ou às vezes,
simplesmente, economia. Aqui, optou-se por analisar a propriedade e o comércio como
instituições à parte, sendo a divisão do trabalho parte integrante desta última. Dessa
maneira, importantes aspectos sociológicos relacionados a essas instituições podem ser
melhor avaliados e compreendidos, evitando assim que se caia em armadilhas e erros
que muitas vezes ocorrem na análise desses fenômenos.
A primeira armadilha é confundir comércio com troca. Embora as origens do
comércio remontem às primeiras formas de troca nas sociedades primitivas, é necessário
ter em mente que o comércio só surge de forma significativa a partir de um contexto
complexo envolvendo instituições, grau da divisão do trabalho e aperfeiçoamento
mínimo da tecnologia utilizada na produção de bens e serviços. Esse erro levou muitos
teóricos, inclusive sociólogos, a interpretarem equivocadamente aquele famoso trecho
da obra A Riqueza das Nações, de Adam Smith, no qual afirma haver uma tendência
humana à troca, a partir do momento em que surge a divisão do trabalho na história da
humanidade. A socióloga americana Ellen Meiksins Wood (1942-2016) entendeu nessa
passagem que Smith estaria defendendo uma tendência natural da humanidade ao
comércio; e no contexto de sua crítica àqueles que associam comércio com
―capitalismo‖, concluiu que para Smith haveria uma tendência natural para o
―capitalismo‖. Nada mais absurdo do que interpretar o pensamento de tal economista a
partir dessa ótica obtusa marxista.
Outro equívoco, também oriundo do pensamento marxista, é atribuir ao
comércio atual características que só existiriam na era moderna, e não em épocas
anteriores, como se atualmente a forma de produzir, a divisão do trabalho e a aquisição
da propriedade privada fossem diferentes, em essência, de épocas anteriores. E mais: o
pensamento marxista enxergou nas características básicas do comércio – busca pelo
lucro, competição, acumulação de capital, etc. – princípios norteadores da sociedade
moderna, como se toda a sociedade civil, hoje, funcionasse apenas pela lógica mercantil
do lucro, da maximização da produção, competição, etc., incluindo aí o Estado e o
Direito, conforme vimos anteriormente. Marx denominou de ―Modo de Produção
Capitalista‖ a sociedade moderna com essas características.
Dissociar ―capitalismo‖ de comércio é tão equivocado quanto associá-lo ao
comércio. Isso porque o termo ―capitalismo‖, ou o termo ―Modo de Produção
Capitalista‖, são problemáticos e dependem da definição que se dá a esses termos, além
do que, são tipificações que não correspondem à realidade. São apenas entidades que
procuram enquadrar a complexidade da ação humana e da vida em sociedade em
fórmulas simplistas, esquemas reducionistas. Esses termos são evitados aqui.
Outro erro, dessa vez vindo de teóricos da Economia ou da Filosofia, ou mesmo
da Sociologia, é julgar que os princípios aplicados hoje ao comércio, como a busca pelo
lucro, a otimização da produção ou entendimento do comércio como algo que traz
vantagens mútuas, tenham existido desde todo o sempre no ser humano – desta vez sim,
a crítica da socióloga Ellen M. Wood faria algum sentido, se nos referirmos não a uma
tendência ao ―capitalismo‖, mas a uma tendência ao comércio. Alguns textos a seguir
analisam as razões da troca nas sociedades primitivas, e nos ajudarão a entender
questões complicadas como essas.

103
MARCEL MAUSS: FORMA E RAZÃO DA TROCA
NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS
O texto abaixo é do antropólogo já visto anteriormente, Marcel Mauss. Foi
retirado de seu famoso Ensaio Sobre a Dádiva, publicado junto com outros textos na
obra Sociologia e Antropologia. Nesse texto, o autor procura mostrar que nas primeiras
formas de sociedade ou nas sociedades primitivas, os motivos que levam as pessoas a
estabelecer troca entre si não são puramente comerciais, baseados na lei da oferta e da
procura ou outros motivos que orientam a ação dos agentes econômicos modernos. Ao
invés disso, as trocas são realizadas por motivos complexos. Leia o texto e responda:
Que motivos são esses?

Na civilização escandinava e em muitas outras, as trocas e os contratos se fazem sob a


forma de presentes, em teoria voluntários, na verdade obrigatoriamente dados e retribuídos.
Este trabalho é um fragmento de estudos mais vastos. Há anos nossa atenção dirige-se
ao mesmo tempo para o regime do direito contratual e para o sistema das prestações
econômicas entre as diversas seções ou subgrupos de que se compõem as sociedades ditas
primitivas, e também as que poderíamos chamar arcaicas. Existe aí um enorme conjunto de
fatos. E fatos que são muito complexos. Neles, tudo se mistura, tudo o que constitui a vida
propriamente social das sociedades que precederam as nossas — até às da proto-história.
Nesses fenômenos sociais "totais", como nos propomos chamá-los, exprimem-se, de uma só
vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas sendo políticas e
familiares ao mesmo tempo —; econômicas — estas supondo formas particulares da produção
e do consumo, ou melhor, do fornecimento e da distribuição —; sem contar os fenômenos
estéticos em que resultam esses fatos e os fenômenos morfológicos que essas instituições
manifestam.
De todos esses temas muito complexos e dessa multiplicidade de coisas sociais em
movimento, queremos considerar aqui apenas um dos traços, profundo mas isolado: o caráter
voluntário, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito, e no entanto obrigatório e
interessado, dessas prestações. (...)
Qual é a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico,
faz que o presente recebido seja obrigatoriamente retribuído? Que força existe na coisa dada
que faz que o donatário a retribua? (...)
Nas economias e nos direitos que precederam os nossos, nunca se constatam, por assim
dizer, simples trocas de bens, de riquezas e de produtos num mercado estabelecido entre os
indivíduos. Em primeiro lugar, não são indivíduos, são coletividades que se obrigam
mutuamente, trocam e contratam; as pessoas presentes ao contrato são pessoas morais: clãs,
tribos, famílias, que se enfrentam e se opõem seja em grupos frente a frente num terreno, seja
por intermédio de seus chefes, seja ainda dessas duas maneiras ao mesmo tempo. Ademais, o
que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas, bens móveis e imóveis, coisas úteis
economicamente. São, antes de tudo, amabilidades, banquetes, ritos, serviços militares,
mulheres, crianças, danças, festas, feiras, dos quais o mercado é apenas um dos momentos, e
nos quais a circulação de riquezas não é senão um dos termos de um contrato bem mais geral e
bem mais permanente. Enfim, essas prestações e contraprestações se estabelecem de uma
forma sobretudo voluntária, por meio de regalos, presentes, embora elas sejam no fundo
rigorosamente obrigatórias, sob pena de guerra privada ou pública. Propusemos chamar tudo
isso o sistema das prestações totais. O tipo mais puro dessas instituições nos parece ser repre-
sentado pela aliança de duas fratrias nas tribos australianas ou norte-americanas em geral, onde
os ritos, os casamentos, a sucessão de bens, os vínculos de direito e de interesse, posições mili-
tares e sacerdotais, tudo é complementar e supõe a colaboração das duas metades da tribo. (...)
Por um lado, Turner nos diz: "Depois das festas do nascimento, depois de ter recebido
e retribuído os oloa e os tonga — ou seja, os bens masculinos e os bens femininos –, o marido
e a mulher não se encontravam mais ricos do que antes. Mas tinham a satisfação de ter visto o
que eles consideravam como uma grande honra: massas de propriedades reunidas por ocasião

104
do nascimento de seu filho." (...)
Os taonga são, pelo menos na teoria do direito e da religião maori, fortemente ligados à
pessoa, ao clã, ao solo; são o veículo de seu mana, de sua força mágica, religiosa e espiritual.
Num provérbio (...) lhes é rogado que destruam o indivíduo que os aceitou. É porque contêm
dentro deles essa força, caso o direito, sobretudo a obrigação de retribuir, não seja observado.
A propósito do hau, do espírito das coisas, em particular o da floresta e dos animais de
caça que ela contém, Tamati Ranaipiri, um dos melhores informantes maori de R. Elsdon Best,
nos oferece inteiramente ao acaso, e sem nenhuma prevenção, a chave do problema.

"Vou lhes falar do hau... O hau não é o vento que sopra. De modo nenhum. Suponha que você
possua um artigo determinado (taonga) e que me dê esse artigo; você me dá sem preço fixado.
Não fazemos negociações a esse respeito. Ora, dou esse artigo a uma terceira pessoa que,
depois de transcorrido um certo tempo, decide retribuir alguma coisa em pagamento (utu), ela
me dá de presente alguma coisa (taonga). Ora, esse taonga que ela me dá é o espírito (hau) do
taonga que recebi de você e que dei a ela. Os taonga que recebi pelos taonga (vindos de você),
é preciso que eu os devolva. Não seria justo (tika) de minha parte guardar esses taonga para
mim, fossem eles desejáveis (rawè) ou desagradáveis (hino). Devo dá-los de volta, pois são um
hau do taonga que você me deu. Se eu conservasse esse segundo taonga, poderia advir-me um
mal, seriamente, até mesmo a morte. Assim é o hau, o hau da propriedade pessoal, o hau dos
taonga, o hau da floresta. Kali ena. (Basta sobre esse assunto.)"

Se o presente recebido, trocado, obriga, é que a coisa recebida não é inerte. Mesmo
abandonada pelo doador, ela ainda conserva algo dele. Por ela, ele tem poder sobre o
beneficiário, assim como por ela, sendo proprietário, ele tem poder sobre o ladrão. Pois o
taonga é animado pelo hau de sua floresta, de seu território, de seu chão; ele é realmente
"nativo": o hau acompanha todo detentor. Ele acompanha não apenas o primeiro donatário,
mesmo eventualmente um terceiro, mas todo indivíduo ao qual o taonga é simplesmente
transmitido. No fundo, é o hau que quer voltar ao lugar de seu nascimento, ao santuário da
floresta e do clã e ao proprietário. É o taonga ou seu hau - que é, aliás, ele próprio uma espécie
de indivíduo – que se prende a essa série de usuários, até que estes retribuam com seus próprios
taonga, suas propriedades ou então seu trabalho ou comércio, através de banquetes, festas e
presentes, um equivalente ou um valor superior que, por sua vez, darão aos doadores
autoridade e poder sobre o primeiro doador, transformado em último donatário. Eis aí a ideia
dominante que parece presidir, em Samoa e na Nova Zelândia, à circulação obrigatória das
riquezas, tributos e dádivas.
A prestação total não implica somente a obrigação de retribuir os presentes recebidos,
mas supõe duas outras igualmente importantes: obrigação de dar, de um lado, obrigação de
receber, de outro. (...)
Será fácil encontrar um grande número de fatos relativos à obrigação de receber. Pois
um clã, os membros da família, um grupo de pessoas, um hóspede, não são livres para não
pedir a hospitalidade, para não receber presentes, para não negociar, para não contrair aliança,
pelas mulheres e pelo sangue. Os Dayak desenvolveram inclusive todo um sistema de direito e
de moral sobre o dever de não deixar de partilhar a refeição a que se assiste ou que se viu
preparar.
Não menos importante é a obrigação de dar; seu estudo poderia fazer compreender de
que maneira os homens passaram a trocar coisas. Podemos indicar apenas alguns fatos. Recusar
dar, negligenciar convidar, assim como recusar receber, equivale a declarar guerra; é recusar a
aliança e a comunhão. (...)
Todas essas instituições exprimem unicamente apenas um fato, um regime social, uma
mentalidade definida: é que tudo, alimentos, mulheres, filhos, bens, talismãs, solo, trabalho,
serviços, ofícios sacerdotais e funções, é matéria de transmissão e de prestação de contas. Tudo
vai e vem como se houvesse troca constante de uma matéria espiritual que compreendesse
coisas e homens, entre os clãs e os indivíduos, repartidos entre as funções, os sexos e as
gerações.
MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p.187-203.

105
MALINOWSKI: O “KULA” COMO UMA FORMA DE TROCA E
COMÉRCIO NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS
No texto a seguir, retirado da obra já vista Argonautas do Pacífico Ocidental,
Malinowski associa o processo de troca nas sociedades primitivas com o comércio,
destacando suas diferenças e gradações. Ele destaca o sistema do Kula já analisado em
texto anterior. Leia o texto abaixo e responda: Como e por que ocorrem trocas entre os
povos primitivos?

Ao estudar quaisquer questões sociológicas nas ilhas Trobriand, ao descrever o aspecto


cerimonial da vida tribal, constantemente deparamos com esse ―dar e receber‖, com a permuta
de presentes e pagamentos. Já tive a oportunidade de citar várias vezes essa característica geral.
(...) Até mesmo um passeio pela ilha (...) revela ao etnógrafo atento essa realidade econômica.
Ele encontra grupos de visitantes – mulheres carregando, na cabeça, grandes cestas de
alimentos, homens com cargas sobre os ombros – e, interpelando-os, fica sabendo que esses
são presentes a serem oferecidos, sob um dos vários nomes que lhes são atribuídos, em
cumprimento a alguma obrigação social. Quando a manga, a fruta-pão ou a cana de açúcar
estão maduras, os primeiros frutos são oferecidos ao chefe ou aos parentes por afinidade. (...)
Foi de propósito que falei sobre modalidades de transação, de presentes e contra
presentes, em vez de tipos de comércio ou de escambo porque, embora existam modalidades
desse último, há tantos pontos de transição e gradação entre comércio puro e simples e a troca
de presentes, que é impossível estabelecer uma separação rígida entre eles. Com efeito, traçar
linhas divisórias apenas para servir à nossa própria terminologia e às nossas próprias distinções
é contrário aos princípios sadios da metodologia. Para tratarmos corretamente desses fatos, é
preciso que façamos um levantamento completo de todas as modalidades de pagamento e de
presentes. Nesse levantamento encontraremos de um lado o caso extremo do presente puro e
simples, ou seja, algo que se oferece sem retribuição. Então, passando por várias modalidades
usuais de presente ou de pagamento, retribuídos parcial ou condicionalmente, difíceis de
distinguir, chegaremos às modalidades de transação, nas quais se observa uma equivalência
mais ou menos estrita entre presente e contra presente. Finalmente, no extremo, encontraremos
a troca em espécie propriamente dita. (...)
Para o teórico interessado sobretudo em problemas de evolução, o Kula pode inspirar
algumas reflexões sobre as origens da riqueza e do valor, do comércio e das relações
econômicas em geral. Pode também lançar alguma luz sobre o desenvolvimento da vida
cerimonial e sobre a influência de objetivos e ambições econômicas na evolução das relações
intertribais e do direito internacional primitivo. Para o estudioso que vê os problemas de
etnologia principalmente do ponto de vista do contato de culturas, e que está interessado na
difusão de instituições, crenças e objetos pela transmissão, o Kula não é menos importante.
Mostra um novo tipo de contrato intertribal, de relações entre várias comunidades ligeira mas
claramente diversas em cultura, e relações que não são esporádicas e acidentais, mas
regulamentadas e permanentes. (...)
Há um aspecto do Kula para o qual devo chamar a atenção, tendo-se em vista sua
importância teórica. Vimos que essa instituição apresenta vários aspectos intimamente ligados
e que se influenciam mutuamente. Para tomar apenas dois: a iniciativa econômica e o ritual
mágico formam um todo inseparável, onde as forças da crença mágica e os esforços do homem
moldam-se e influenciam-se mutuamente. (...)
Parece-me que uma análise e comparação mais profunda da maneira pela qual dois
aspectos da cultura dependem funcionalmente um do outro, deve fornecer algum material
interessante para a reflexão teórica.

MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 140, 142, 372-373.

106
ADAM SMITH: O PRINCÍPIO QUE DÁ ORIGEM
À DIVISÃO DO TRABALHO
Adam Smith (1723-1790) foi um filósofo escocês que dedicou-
se a temas ligados à Ética e à Economia. Considerado um clássico das
ciências econômicas, mostrou de forma simples e direta as vantagens
do comércio nas várias sociedades, defendendo portanto o livre
mercado. O texto abaixo foi retirado da obra A Riqueza das Nações.
Leia-o e responda: 1) Segundo Smith, a tendência à troca é natural no
ser humano? E a tendência ao comércio? Qual a diferença? 2) Qual a
relação entre divisão do trabalho e comércio?

Essa divisão do trabalho, da qual derivam tantas vantagens, não é, em sua origem, o
efeito de uma sabedoria humana qualquer, que preveria e visaria esta riqueza geral à qual dá
origem. Ela é a consequência necessária, embora muito lenta e gradual, de uma certa tendência
ou propensão existente na natureza humana que não tem em vista essa utilidade extensa, ou
seja: a propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra.
Não é nossa tarefa investigar aqui se essa propensão é simplesmente um dos princípios
originais da natureza humana, sobre a qual nada mais restaria a dizer, ou se – como parece mais
provável – é uma consequência necessária das faculdades de raciocinar e falar. De qualquer
maneira, essa propensão encontra-se em todos os homens, não se encontrando em nenhuma
outra raça de animais, que não parecem conhecer nem essa nem qualquer outra espécie de
contratos. Por vezes, tem-se a impressão de que dois galgos, ao irem ao encalço de uma lebre,
parecem agir de comum acordo. Cada um a faz voltar-se para seu companheiro, ou procura
interceptá-la quando seu companheiro a faz voltar-se para ele. Mas isso não é efeito de algum
contrato, senão da concorrência casual de seus desejos acerca do mesmo objeto naquele
momento específico. Ninguém jamais viu um cachorro fazer uma troca justa e deliberada de
um osso por outro, com um segundo cachorro. Ninguém jamais viu um animal dando a
entender a outro, através de gestos ou gritos naturais: isto é meu, isto é teu, estou disposto a
trocar isto por aquilo. (...) No caso de quase todas as outras raças de animais, cada indivíduo,
ao atingir a maturidade, é totalmente independente e, em seu estado natural, não tem
necessidade da ajuda de nenhuma outra criatura vivente. O homem, entretanto, tem necessidade
quase constante da ajuda dos semelhantes, e é inútil esperar esta ajuda simplesmente da
benevolência alheia. Ele terá maior probabilidade de obter o que quer, se conseguir interessar a
seu favor a autoestima dos outros, mostrando-lhes que é vantajoso para eles fazer-lhe ou dar-
lhe aquilo de que ele precisa. É isto o que faz toda pessoa que propõe um negócio a outra. Dê-
me aquilo que eu quero, e você terá isto aqui, que você quer – esse é o significado de qualquer
oferta desse tipo; e é dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos serviços de
que necessitamos. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que
esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimo-
nos não à sua humanidade, mas à sua autoestima, e nunca lhes falamos das nossas próprias
necessidades, mas das vantagens que advirão para eles. Ninguém, a não ser o mendigo, sujeita-
se a depender sobretudo da benevolência dos semelhantes. (...)
Assim como é por negociação, por escambo ou por compra que conseguimos uns dos
outros a maior parte dos serviços recíprocos de que necessitamos, da mesma forma é essa
mesma propensão ou tendência a permutar que originalmente gera a divisão do trabalho. (...)
Como é o poder de troca que leva à divisão do trabalho, assim a extensão dessa divisão
deve sempre ser limitada pela extensão desse poder, ou, em outros termos, pela extensão do
mercado. Quando o mercado é muito reduzido, ninguém pode sentir-se estimulado a dedicar-se
inteiramente a uma ocupação, porque não poderá permutar toda a parcela excedente de sua
produção que ultrapassa seu consumo pessoal pela parcela de produção do trabalho alheio, da
qual tem necessidade.

SMITH, A. A Riqueza das Nações. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Economistas), p.49-53.

107
SAY: PRESERVAÇÃO DO PODER DE COMPRA
Jean-Baptiste Say (1767-1832) foi um teórico francês. Atuando
como comerciante e vivendo na Inglaterra, veio a se interessar por
economia, defendendo a importância do comércio e do livre mercado, assim
como Smith. Em sua obra Tratado de Economia Política, da qual foi
extraído o texto abaixo, Say estabeleceu um princípio que mais tarde ficou
conhecido como Lei de Say. O texto abaixo explica esse princípio. Leia-o e
responda: 1) O que é a Lei de Say? 2) Por que uma nação jamais pode estar
com super-estoque de capitais, de acordo com este princípio? 3) Ainda
segundo este princípio, por que é errado dizer que ―a riqueza de uns existe
por causa da pobreza de outros‖?

É bom observar que um produto acabado oferece, a partir desse instante, um mercado
para outros produtos equivalente a todo o montante de seu valor. Com efeito, quando o último
produtor acabou um produto, seu maior desejo é vendê-lo para que o valor desse produto não
fique ocioso em suas mãos. Por outro lado, porém, ele tem igual pressa em desfazer-se do
dinheiro que sua venda lhe propicia, para que o valor do dinheiro tampouco fique ocioso. Ora,
não é possível desfazer-se de seu dinheiro, senão procurando comprar um produto qualquer.
Vê-se, portanto, que só o fato da criação de um produto abre, a partir desse mesmo instante, um
mercado para outros produtos.
É por isso que uma boa colheita não favorece apenas os cultivadores, mas também, ao
mesmo tempo, os vendedores de todos os outros produtos. Compra-se mais sempre que se
colhe mais. Uma colheita má, ao contrário, prejudica todas as vendas. O mesmo acontece com
respeito às colheitas feitas pelas artes e o comércio. Um ramo de comércio que prospera
fornece com que comprar, propiciando, consequentemente, vendas a todos os demais
comércios; por outro lado, quando uma parte das manufaturas ou dos tipos de comércio entra
em declínio, a maior parte dos outros sofre com isso.
Sendo assim, de onde vem – perguntar-se-á – essa quantidade de mercadorias que, em
determinadas épocas, obstruem a circulação, sem poder encontrar compradores? Por que essas
mercadorias não se compram umas às outras?
Minha resposta é que mercadorias que não se vendem ou que se vendem com perda
ultrapassam a soma das necessidades que delas se tem, seja porque foram produzidas em
quantidades excessivas, seja porque outras produções decaíram. Certos produtos se encontram
em grande abundância porque outros vieram a faltar.
Em termos mais vulgares: muitas pessoas compraram menos porque ganharam menos,
e ganharam menos porque encontraram dificuldades no emprego de seus meios de produção ou
então porque esses meios lhe faltaram.
Por isso, pode-se observar que as épocas em que certos gêneros não se vendem bem
são exatamente aquelas em que outros gêneros sobem a preços excessivos; ora, como esses
preços elevados seriam motivo para favorecer sua produção, é preciso que causas maiores ou
meios violentos, como desastres naturais ou políticos, a avidez ou a incapacidade dos
Governos, mantenham por força essa penúria, de um lado, que causa uma obstrução, do outro.
Quando cessa essa causa de doença política, os meios de produção se voltam para as estradas
em que a produção permaneceu atrasada; avançando por esses caminhos, ela favorece o avanço
da produção em todos os outros. Um tipo de produção raramente ultrapassaria os demais e seus
produtos seriam raramente aviltados se sempre se deixassem todos à sua inteira liberdade.
Uma segunda consequência do mesmo princípio é que cada um está interessado na
prosperidade de todos e que a prosperidade de uma espécie de indústria favorece a
prosperidade de todas as outras. Com efeito, sejam quais forem a indústria que se cultive e o
talento que se exerça, encontra-se lhes o emprego e tira-se lhes um lucro tanto melhor quanto
mais se está cercado de pessoas que também ganham. Um homem de talento, encontrado a
vegetar tristemente numa região que declina, encontraria mil empregos para suas faculdades
numa região produtiva em que se poderia empregá-lo e pagar sua capacidade.
SAY, J.B. Tratado de Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p.139-140.

108
MONTESQUIEU: NATUREZA E IMPORTÂNCIA DO COMÉRCIO
O texto abaixo é da obra já vista de Montesquieu, Do Espírito das Leis. Nesta
parte, ele analisa o comércio em suas várias faces, entre os vários povos de diferentes
épocas. Embora estivesse carregado de preconceitos de sua época, Montesquieu
conseguiu captar, de forma surpreendente, os benefícios da prática dessa instituição – o
comércio – bem como os vícios decorrentes de péssimas práticas governamentais
relativas à boa circulação de bens e serviços.
Leia o texto abaixo e responda: 1) Quais as principais vantagens trazidas pelo
comércio, nas diferentes nações do mundo? 2) Por que a Inglaterra se destacou de
outros países, segundo o autor? 3) A quem interessa as guerras praticadas entre as
nações?

O comércio afasta os preconceitos destruidores; e é quase uma regra geral que,


onde quer que haja costumes amenos, exista comércio e, onde quer que haja comércio,
existam costumes amenos.
Não nos espantemos, portanto, se nossos costumes são menos rudes que
outrora. O comércio fez com que o conhecimento dos costumes de todas as nações
penetrasse em toda parte; compararam-nos mutuamente e disso resultaram grandes
benefícios. (...)
O efeito natural do comércio é trazer a paz. Duas nações que comerciam juntas
tornam-se reciprocamente dependentes; se uma tem interesse em comprar, a outra tem
em vender; e todas as uniões estão baseadas nas mútuas necessidades. (...)
O comércio tem relação com a constituição. No governo de um só, é
comumente baseado no luxo e, apesar de estar também baseado em suas necessidades
reais, seu objetivo primordial é proporcionar, à nação que o faz, tudo o que pode servir
a seu orgulho, delícias e fantasias. No governo de muitos, ele é mais amiúde baseado
na economia. Os negociantes, que têm em suas vistas todas as nações da terra, levam a
uma o que tiram de outra. (...)
Numa nação que está na servidão, trabalha-se mais para conservar do que para
adquirir. Numa nação livre, trabalha-se mais para adquirir do que para conservar. (...)
A Inglaterra quase não mantém tarifa regulamentada com as demais nações; sua
tarifa muda, por assim dizer, com cada parlamento, pelos direitos particulares que
suprime ou impõe. Quis também conservar sobre isso sua independência.
Soberanamente zelosa do comércio que nela se faz, pouco se prende a tratados e apenas
depende de suas leis.
Outras nações deixaram os interesses políticos sobrepujarem os do comércio; a
Inglaterra sempre subordinou os interesses políticos aos de seu comércio.
É o povo do mundo que melhor soube prevalecer-se, ao mesmo tempo, dessas
três grandes coisas: da religião, do comércio e da liberdade. (...)
O comércio, ora destruído pelos conquistadores, ora impedido pelos monarcas,
percorre a terra, foge de onde é oprimido, radica-se onde o deixam respirar: reina hoje
onde só se viam desertos, mares e rochedos; onde reinava não há senão desertos. (...)
A história do comércio é a da comunicação dos povos. Suas diversas
destruições e certos fluxos e refluxos de populações e de devastações constituem seus
maiores acontecimentos.
Os efeitos do comércio são as riquezas; a consequência das riquezas, o luxo; a
do luxo, a perfeição das artes. As artes, no estágio em que as encontramos na época de
Semíramis, indicam-nos um grande comércio já estabelecido.
MONTESQUIEU, Op. cit., p.291-306.

109
MISES: MOEDA E CÁLCULO ECONÔMICO
O texto abaixo foi retirado da obra Ação Humana, a mesma analisada
anteriormente. Aqui, Mises analisa a importância da moeda para o cálculo econômico
dos agentes, assim como os limites associados a este cálculo. Leia-o e responda: 1) Qual
a importância da moeda e do sistema de preços para o cálculo econômico? 2) Numa
economia onde existisse um dirigismo central por parte do governo sobre o que e como
produzir, quais seriam as dificuldades em relação ao cálculo econômico? 3) Considere
um exemplo prático: se o preço da gasolina subisse, mas o governo mantivesse
artificialmente seu preço anterior (abaixo do real), quais seriam as consequências dessa
política para a eficiente alocação de recursos dos agentes econômicos? Use a teoria de
Mises abaixo para explicar.
A tecnologia e as considerações que dela derivam seriam de pouca utilidade
para o agente homem, se não fosse possível introduzir nos seus esquemas técnicos os
preços em moeda dos bens e serviços. Os projetos e desenhos dos engenheiros seriam
exercícios meramente acadêmicos, se não pudessem comparar custo e receita em
relação a uma mesma base. (...)
Assim sendo, a moeda se torna o veículo do cálculo econômico. Não estamos,
desta forma, atribuindo outra função à moeda. A moeda é o meio de troca usado
universalmente e nada mais. Precisamente porque a moeda é o meio de troca universal,
porque a maior parte dos bens e serviços pode ser comprada e vendida no mercado pela
utilização da moeda, e somente na medida em que assim seja, é que o homem pode
utilizar os preços em moeda para efetuar os seus cálculos. As relações de troca entre
moeda e os vários bens e serviços estabelecidos no mercado até ontem, e as que,
segundo se espera, serão estabelecidas amanhã, são as ferramentas mentais do
planejamento econômico. Onde não existirem preços em moeda, não existirão
quantidades econômicas. Neste caso, existirão apenas várias relações quantitativas
entre as várias relações de causa e efeito do mundo exterior; não haverá meio de o
homem descobrir qual o tipo de ação melhor serviria aos seus esforços para diminuir,
tanto quanto possível, o desconforto. (...)
A tarefa que o agente homem pretende realizar utilizando-se do cálculo
econômico é a de estabelecer o resultado da ação pelo contraste de custos e benefícios.
Pelo cálculo econômico, ou se estima qual será o resultado de uma futura ação ou se
constata o resultado de uma ação passada. Neste segundo caso, a constatação não é
feita apenas com propósitos didáticos e históricos. Seu significado prático é mostrar
quanto cada um pode consumir sem prejudicar a futura capacidade de produzir. Foi
tendo em vista esse problema que se desenvolveram as noções fundamentais do cálculo
econômico – de capital e renda, lucro e prejuízo, consumo e poupança, custo e
benefício. A utilização, na prática, dessas noções, e de todas as outras que delas
derivam, está inseparavelmente ligada ao funcionamento de um mercado no qual bens
e serviços de qualquer natureza sejam trocados mediante o uso de um meio de troca
universalmente aceito, qual seja, a moeda. (...)
O cálculo econômico é tão eficiente quanto pode ser. Nenhuma reforma poderia
aumentar sua eficiência. Propicia ao agente homem todos os serviços que podem ser
obtidos com a computação numérica. Não consiste, evidentemente, num meio de
conhecer condições futuras com certeza, nem retira da ação o seu caráter especulativo.
Mas isto só pode ser considerado como uma deficiência por aqueles que não chegam a
perceber o fato de que a vida não é rígida, que todas as coisas estão em permanente
mutação e que os homens não podem ter nenhuma certeza quanto ao futuro.
MISES, Op. cit., p. 260-265.

110
EDUCAÇÃO
Pensada como uma instituição, a educação é essencial para a sobrevivência de qualquer
sociedade. Por meio dela, a geração atual transmite à geração seguinte sua bagagem científica,
econômica, política, religiosa e artística; em suma, sua herança cultural. Toda sociedade
existente, portanto, satisfez essa necessidade, não importa de que maneira: se através de escolas,
de instrução familiar, por meio da igreja, de rituais mágicos ou trocas entre grupos.
Muitas pessoas confundem a instituição educação com a instituição de ensino chamada
escola. Embora nas sociedades modernas ocidentais as escolas tenham desempenhado esse
importante papel de preparação dos jovens para a vida adulta, por meio da aquisição de
conhecimentos e da socialização, não é correto limitar o fenômeno da educação às escolas, nem
mesmo supor que uma sociedade poderia regredir caso estas deixassem de desempenhar o papel
que tiveram até hoje. Isso porque toda instituição muda com o tempo, principalmente nos dias
de hoje, em que a informação se tornou muito mais acessível a todos, incluindo as formas de
obtenção da mesma, através de tecnologias diversas – aplicativos, vídeos aulas, jogos, redes
sociais e muitos outros recursos que surgem a cada dia. Além disso, as próprias formas de
socialização também mudaram, de modo a nos fazer repensar o papel da escola nesse contexto.
A educação foi tema amplamente discutido dentro da Sociologia e da Filosofia. No
século XVII, João Amós Comênio criticou os métodos de instrução da época, principalmente a
ênfase dada à lógica e aos clássicos, defendendo no lugar um ensino adaptado ao
desenvolvimento mental da criança e aos interesses desta. John Locke, filósofo já visto,
argumentava que a educação deveria visar à disciplina mental, e que a instrução prática era mais
importante que a instrução pelo livro. No século XVIII, o filósofo Rousseau propôs um sistema
de educação que permitisse ao ser humano, que ele acreditava nascer bom e puro, dirigir suas
inclinações naturais e melhor adapta-lo à sociedade corrupta. Sua teoria influenciou toda a
geração seguinte: Pestalozzi, segundo o qual a educação deveria se adequar às necessidades da
criança e focar no desenvolvimento harmonioso de todas as suas faculdades; Froebel,
considerado o fundador do ―jardim da infância‖, pelo menos, desse termo que até hoje ficou
consagrado (Kindergarten), um educador alemão de acordo com o qual a educação deveria ter
como função proporcionar às crianças (vistas metaforicamente como plantinhas de um jardim)
aprendizagem sobre elementos essenciais à sociedade como verdade, justiça, responsabilidade e
iniciativa, através do professor (visto como o jardineiro). Não por meio de estudos, mas através
da vivência prática – brinquedos, atividades práticas, contato com a natureza, trabalhos
artísticos, etc. Mais especificamente dentro da Sociologia: Augusto Comte já argumentava que
o progresso humano depende da educação; Spencer valorizou o conhecimento científico e
prático; Durkheim enfatizou o aspecto impositivo da educação (vista como fato social), ao
argumentar que ela consistia num esforço contínuo de imposição, por parte da geração mais
velha sobre a geração mais nova, de modos de ver, sentir e agir.
Muitas questões se colocam quando se discute o papel da educação, como instituição, e
da escola, em particular. O sociólogo Lester F. Ward defendeu a educação (escola) como meio
de progresso social. Já o sociólogo William Graham Sumner não via a educação (escolar) como
um meio de solucionar os problemas do mundo, pensando que não passava de uma panaceia.
Esses assuntos serão vistos nos textos seguintes.
Isso nos leva a outro ponto: é função do Estado garantir o acesso à escola? Se sim, de
que forma? Se não, por quê? Além disso, o Estado deve impor os conteúdos ministrados dentro
da sala de aula? O professor deve ter liberdade para ensinar? Até que ponto? Qual a diferença,
se é que existe, entre educar e doutrinar? Qual o papel da igreja? Qual a relação entre educação
familiar e educação vinda da escola? Uma deve se sobrepor à outra? Em que medida?
Como se nota, são várias questões que se colocam, muitas delas, inclusive, bastante
atuais e temas de conflitos entre professores, alunos e pais de alunos. Que os textos seguintes o
ajudem a pensar melhor sobre isso.

111
ROSSITER: EDUCAÇÃO E ESTADO
Lyle H. Rossiter é um psiquiatra americano estudioso dos casos de patologia e
desordens mentais. Nesta parte, ele argumenta que a educação consiste em fornecer
autonomia e torna-lo competente para a vida em sociedade. Leia e responda: 1)
Explique o que é ―força do ego‖ e resiliência. 2) Por que o estado paternalista é
prejudicial ao desenvolvimento das competências de um ser humano?

Todos os seres humanos começam a vida num estado de completo desamparo e


dependência. Este fato e diversos outros sobre o crescimento e desenvolvimento humano têm
implicações profundas na política social. A questão central a esse respeito é até que ponto e de
que maneira esse estado inicial de dependência é resolvido durante o curso do
desenvolvimento, e até que ponto é substituído por uma autoconfiança competente e
consistente com as normas sociais e culturais de uma determinada sociedade. Numa sociedade
fundamentada em princípios coletivistas, o desenvolvimento da competência individual na
população como um todo deve estar limitado para preservar uma relação dependente e
submissa das pessoas para com um governo dominante. Numa sociedade livre fundamentada
nos princípios individualistas, por outro lado, o resultado apropriado do desenvolvimento de
uma criança é uma pessoa adulta que é essencialmente autoconfiante: ela é minimamente
competente para atuar economicamente, socialmente e politicamente através da cooperação
voluntária numa comunidade de pessoas semelhantes, sob um governo constitucionalmente
limitado. Uma população de tais pessoas é fortemente inclinada, por natureza, a estabelecer
regras de convivência que protejam a liberdade individual e os direitos de propriedade, e que
ao mesmo tempo garantam a segurança material, a associação social e a regulação da força e da
influência entre seus membros.
A transformação de uma criança desamparada e dependente num adulto competente é
uma das maravilhas da natureza humana. O processo é imensamente complexo e compreendido
apenas parcialmente. Mas está claro que a criança alcança a competência ao se tornar uma
pessoa ética e moral bem como alguém com habilidades sociais e ocupacionais. O adulto
competente adquiriu:

● Padrões altos de comportamento ético e moral.


● As capacidades auto regulatórias de uma consciência forte.
● Capacidades instrumentais para trabalhar e se relacionar.
● A habilidade para produzir e cooperar voluntariamente numa comunidade porque
deseja, e não porque é forçado por uma autoridade governamental. (...)

Os fundamentos psicológicos que permitem a um indivíduo competente produzir e


cooperar são adquiridos no início da infância. Eles consistem em habilidades e atitudes
aprendidas para a satisfação de necessidades e desejos normais, e em capacidades adquiridas
para a inibição de impulsos patológicos, especialmente aqueles envolvendo inclinações
sexuais, agressivas e gananciosas, anseios por dependência, e impulsos de autoelogio. As
capacidades de produção econômica e cooperação social, juntamente com as inibições éticas e
morais aprendidas, tornam-se os elementos centrais da habilidade do indivíduo para sobreviver
numa vida em comunidade. (...)
A habilidade de funcionar adaptativamente sob pressão é algumas vezes descrita como
―força do ego‖. A capacidade de recuperar a competência depois de alguma perda de função
devida a uma tensão severa é chamada de ―resiliência‖. Essas habilidades são, por definição,
adaptativas e possuem as características de hábitos: elas são tendências duradouras e
persistentes a pensar, sentir, comportar-se e relacionar-se de certas maneiras úteis em resposta a
certos tipos de eventos. Aptidões que contribuem para a força do ego e para a resiliência
incluem uma capacidade normal de observar fatos e raciocinar sobre eles, de invocar a
experiência passada para resolver problemas presentes, de tolerar a frustração, de adiar a
satisfação presente por recompensar futuras, e de cooperar com os outros numa troca

112
mutuamente benéfica. A força do ego não deve ser interpretada como autoestima; ela, na
verdade, denota a possibilidade de lidar com situações difíceis. A resiliência é a capacidade de
lidar com e recuperar a eficiência funcional depois de perdas ou infortúnios sérios ou
persistentes.
Essas habilidades contribuem para o que é comumente chamado de caráter, termo que
também implica a disposição a agir com honestidade, integridade, responsabilidade, auto-
direcionamento e confiança nas interações com outros. Entre outras coisas, pessoas com um
bom caráter tipicamente mantêm promessas e honram contratos, respeitam a soberania de
outras pessoas e seu direito de propriedade e, tanto quanto seja possível, assumem a
responsabilidade por si mesmas ao prover para suas próprias necessidades e para as daqueles
com quem assumiram alguma obrigação voluntária. Pessoas com caráter não fazem
reivindicações legalmente executáveis sobre o tempo, o esforço ou os bens materiais de outras
pessoas. Elas não se sentem no direito de serem subsidiadas por pessoas com quem não
possuem uma relação pessoal ou uma obrigação contratual prévias. (...)
As instituições e arranjos de uma sociedade, suas regras principais de vivência,
desenvolvem-se gradualmente a partir dos significados atribuídos por seus membros aos
processos econômicos, sociais e políticos. Esses processos, nas democracias, evoluem em
grande parte pela aprovação do eleitorado e pela política de pressão sobre interesses especiais.
Mas a aprovação do eleitorado e o apelo dos interesses especiais são ambas expressões do que
o governo significa para os seus cidadãos. A ascensão da agenda esquerdista ao poder resultou
de um significado particular atribuído ao governo pelos povos das sociedades ocidentais, a
saber, que o Estado é uma fonte da qual se satisfaz os anseios do povo por formas diversas de
cuidado paternal. Como resposta ao convite dos políticos esquerdistas, as pessoas agora pedem
a intervenção do governo em todos os principais setores da vida: creches, educação pública
escolar e pré-escolar, educação sexual, regulamentação dos empregos, segurança ocupacional,
qualidade e confiabilidade de produtos, ética no local de trabalho, regulamentação da moeda e
dos bancos, regulamentação de alimentos e remédios, políticas de saúde, compensação por
deficiências pessoais, segurança da aposentadoria etc. Diante do clamor das pessoas, os oficiais
do governo têm se tornado administradores do cuidado paternal, da proteção e das
indulgências, desde o berço até o túmulo. Os políticos que se identificam com esses anseios e
os exploram em forma de legislação e propaganda de campanha têm desfrutado de grande
sucesso nas urnas.
Mas o custo da infantilização das pessoas é uma ampla deformação de sua
competência. Grande parte da população tem adotado uma dependência infantil dos programas
assistenciais do governo. O Estado moderno assumiu o papel de um pai aparentemente
benigno, generoso, onipotente e semelhante a deus, que serve como tutor, gerente, provedor e
cuidador, tudo em detrimento das pessoas. Nós temos, na verdade, elevado nossos governos ao
status paternal na crença de que estaremos em melhor situação se eles cuidarem de nós do que
se o fizermos nós mesmos. Deslocamos nossas premissas sobre a condição humana de uma
concepção ética e religiosa, de que devemos alcançar uma boa vida através de trabalho duro e
responsabilidades individuais e cooperativas, para uma concepção coletivista e secular da vida,
a de uma competição manipuladora pelas recompensas do estado. (...)
Esse anseio por ser cuidado, por ser aliviado das responsabilidades da vida adulta, tem
sua origem na infância. Ele é satisfeito adequadamente pelas ligações de dependência entre a
criança e seus pais. Mas não é satisfeito adequadamente pelas ligações de dependência entre o
adulto e o Estado. (...)
Influências familiares, especialmente as que surgem das características de
personalidade dos pais, são obviamente críticas para o crescimento e desenvolvimento da
criança. Elas refletirão os ideais culturais, valores e proibições mais amplos da sociedade como
um todo. Reciprocamente, as instituições de uma determinada sociedade refletirão suas práticas
de criação das crianças e sua ênfase relativa em autonomia ou dependência, cooperação ou
oposição, moralidade ou imoralidade.
ROSSITER, L. H. A Mente Esquerdista – As causas psicológicas da loucura política.
Campinas: Vide Editorial, 2016, p.39-43, 47-48, 77.

113
HARRI BROWNE: PROBLEMAS DA EDUCAÇÃO ESTATAL
O texto abaixo foi escrito por Harry Browne (1933-2006) e
retirado do Instituto Mises Brasil. Browne era americano; atuou
como escritor e consultor de investimentos, se envolvendo também
com política. Tinha um pensamento libertário. Nesse texto, o autor
reflete sobre a educação e quais as consequências de seu controle
por parte do Estado. Leia-o e responsa: 1) Por que uma escola
pública nunca irá ser eficiente? 2) Para o autor, qual a solução para
a educação?

Tempo e recursos parece haver de sobra para ensinar as crianças a se conformarem


com a ideologia e o pensamento politicamente correto da moda. Porém, se os pais reclamam
que seus filhos não estão aprendendo ciências, português, história e matemática, os políticos
respondem que está faltando dinheiro, os professores respondem que são mal pagos e vários
"agentes sociais" dizem que a nova metodologia de ensino, com maior ênfase na 'consciência
social do aluno', é bastante superior ao velho e reacionário método clássico de educação. E, no
final, todos se unem para concluir que o grande problema realmente é o governo, que destina
pouco dinheiro para a educação — logo, novos impostos são necessários. (...)
O problema não são professores despreparados. O problema não é a falta de recursos
ou a falta de participação dos pais. O problema é que as escolas são administradas pelo
governo.
Podemos ver isso claramente ao comparar a educação pública com a indústria de
computadores — um dos ramos menos regulados em todo o mundo.
● A educação está sob o comando de políticos e burocratas, gente que jamais irá
enfrentar pessoalmente as consequências de suas próprias medidas, por mais que arruínem a
educação de nossos filhos. E assim, os custos da educação vão ficando cada vez maiores, ano
após ano, ao mesmo tempo em que a qualidade e a utilidade decrescem velozmente.
● A produção de computadores, notebooks e afins está sob o comando de
empreendedores, pessoas que visam ao lucro e que, por isso mesmo, têm de estar sempre
encontrando novas maneiras de nos satisfazer, produzindo cada vez mais com cada vez menos
— caso contrário, perderão o que investiram e irão à falência. E assim, computadores,
notebooks e demais apetrechos tecnológicos vão ficando cada vez mais baratos, ano após ano
(ou mês após mês), ao mesmo tempo em que sua qualidade e utilidade aumentam velozmente.

Ao contrário das empresas de tecnologia, as escolas públicas são organizações


monopolistas isoladas da concorrência — e inteiramente sustentadas pela coerção do governo.
Um sistema de vouchers para as escolas privadas, nos moldes defendidos por alguns liberais
genuínos, não tornaria as escolas públicas mais competitivas simplesmente porque as escolas
do governo não precisam competir. (Em nível universitário, já temos os exemplos práticos do
ProUni e do Fies, que nada mais é do que uma variância desse esquema de vouchers. O único
resultado foi piorar a educação das universidades particulares que recebem esse subsídio, pois
agora elas não mais têm de competir por novos alunos; o governo já garante a receita.)
Não importa quantos alunos as escolas públicas percam para as escolas privadas e para
aqueles heróis que, à revelia do governo, praticam ensino doméstico; o fato é que as escolas
públicas ainda obtêm seus recursos por meio da força — e quanto maiores os seus fracassos,
mais eles são utilizados como desculpa para se exigir ainda mais recursos.
Dado que o governo possui livre acesso a um recurso que empresas privadas não têm
— o dinheiro dos pagadores de impostos —, ele consegue oferecer seus serviços
"gratuitamente". Eles não são realmente gratuitos, é claro; no contexto estatal, "gratuito"
significa que todas as pessoas pagam pelo serviço, queiram elas ou não.

BROWNE, H. A Educação Estatal – e como ela seria em um livre mercado.


In: Instituto Ludwig von Mises Brasil.

114
GRAMSCI: EDUCAÇÃO E HEGEMONIA
Antonio Gramsci (1891-1937) foi um teórico italiano de
orientação marxista. Gramsci procurou romper com algumas
visões mecanicistas no marxismo, de acordo com as quais uma
revolução comunista ocorreria inevitavelmente, de forma
espontânea, a partir do momento em que as condições materiais e
econômicas para isso já estivessem dadas. Ao invés disso, Gramsci
afirmou que uma revolução só ocorreria quando uma mentalidade
revolucionária existisse previamente na sociedade. Isto é, quando
houvesse um tipo de pensamento hegemônico comunista.
O conceito de hegemonia é fundamental no pensamento de Gramsci e de toda
uma geração que retomou seu pensamento a partir dos anos 1950. Hegemonia é a
direção moral e intelectual exercida por uma classe, numa sociedade dada. Uma classe
só se tornaria politicamente e economicamente dominante se tivesse, antes de tudo, um
domínio hegemônico sobre a sociedade. Essa hegemonia, de acordo com ele, se
manifesta em diferentes esferas da sociedade – na ciência, nas empresas, no comércio,
na família, na religião, etc.. E cada cientista, empresário, comerciante, padre ou cidadão
é um intelectual orgânico; cada um desempenhando um papel importante na reprodução
do sistema econômico vigente. Esses intelectuais são formados na educação técnica e
científica da escola. Daí o papel exercido por essa instituição na perpetuação do sistema
―capitalista‖.
Para romper com esse sistema, segundo Gramsci, era necessário criar um
pensamento contra-hegemônico que se estabelecesse gradativamente nas diversas
instituições, principalmente escolas e igrejas, de modo a mudar os rumos do ensino e
criar novos intelectuais orgânicos que defendessem a causa comunista, a única que, para
Gramsci, era a correta.
O texto abaixo foi retirado da obra Os Intelectuais e a Organização da Cultura.
Leia-a e responda: Qual a função da escola para a criação de um sistema comunista?

Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no


mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico,
uma ou mais camadas de intelectuais que he dão homogeneidade e consciência da
própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no politico:
o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia
politica, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc. (...)
Cada grupo social "essencial", contudo, surgindo na história a partir da estrutura
econômica anterior e como expressão do desenvolvimento desta estrutura, encontrou –
pelo menos na história que se desenrolou até aos nossos dias – categorias intelectuais
preexistentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma continuidade
histórica que não fora interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais
modificações das formas sociais e políticas. (...)
Todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então: mas nem todos os
homens desempenham na sociedade a função de intelectuais. (...)
Formam-se assim, historicamente, categorias especializadas para o exercício da
função intelectual; formam-se em conexão com todos os grupos sociais, mas
especialmente em conexão com os grupos sociais mais importantes, e sofrem
elaborações mais amplas e complexas em ligação com o grupo social dominante. Uma
das mais marcantes características de todo grupo social que se desenvolve no sentido
do domínio é sua luta pela assimilação e pela conquista "ideológica" dos intelectuais

115
tradicionais, assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o
grupo em questão elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos.
O enorme desenvolvimento alcançado pela atividade e pela organização escolar
(em sentido lato) nas sociedades que surgiram do mundo medieval indica a importância
assumida no mundo moderno pelas categorias e funções intelectuais: assim como se
buscou aprofundar e ampliar a "intelectualidade" de cada indivíduo, buscou-se
igualmente multiplicar as especializações e aperfeiçoá-las. É este o resultado das
instituições escolares de graus diversos, inclusive dos organismos que visam a
promover a chamada "alta cultura", em todos os campos da ciência e da técnica.
A escola é o instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis. A
complexidade da função intelectual nos vários Estados pode ser objetivamente medida
pela quantidade das escolas especializadas e pela sua hierarquização: quanto mais
extensa for a "área" escolar e quanto mais numerosos forem os "graus verticais" da
escola, tão mais complexo será o mundo cultural, a civilização, de um determinado
Estado. (...)
A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como é o
caso nos grupos sociais fundamentais, mas é "mediatizada", em diversos graus, por
todo o contexto social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são
precisamente os "funcionários". Poder-se-ia medir a "organicidade" dos diversos
estratos intelectuais, sua mais ou menos estreita conexão com um grupo social
fundamental, fixando uma gradação das funções e das superestruturas de baixo para
cima (da base estrutural para cima). Por enquanto, pode-se fixar dois grandes "planos"
superestruturais: o que pode ser chamado de "sociedade civil" (isto é; o conjunto de
organismos chamados comumente de "privados") e o da "sociedade política ou
Estado", que correspondem à função de "hegemonia" que o grupo dominante exerce
em toda a sociedade e àquela de ―domínio direto" ou de comando, que se expressa no
Estado e no governo "jurídico". Estas funções são precisamente organizativas e
conectivas. Os intelectuais são os "comissários" do grupo dominante para o exercício
das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do
consenso "espontâneo" dado pelas grandes massas da população à orientação impressa
pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce "historicamente"
do prestígio (e, portanto, da confiança) que o grupo dominante obtém, por causa de sua
posição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparato de coerção estatal que
assegura "legalmente" a disciplina dos grupos que não "consentem", nem ativa nem
passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos momentos
de crise no comando e na direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo. (...)
É verdade que a própria função organizativa da hegemonia social e do domínio
estatal dá lugar a uma certa divisão do trabalho e, portanto, a toda uma gradação de
qualificações, em algumas das quais não mais aparece nenhuma atribuição diretiva e
organizativa: no aparato da direção estatal e social existe toda uma série de empregos
de caráter manual e instrumental (de ordem e não de conceito, de agente e não de
oficial ou funcionário, etc.); mas, evidentemente, é preciso fazer esta distinção, como é
preciso fazer também qualquer outra. De fato, a atividade intelectual deve ser
diferenciada em graus, inclusive do ponto de vista intrínseco; estes graus, nos
momentos de extrema oposição, dão lugar a uma verdadeira e real diferença
qualitativa: no mais alto grau, devem ser colocados os criadores das várias ciências, da
filosofia, da arte, etc.; no mais baixo, os "administradores" e divulgadores mais
modestos da riqueza intelectual já existente, tradicional, acumulada?

GRAMSCI, A. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. RJ: Civilização Brasileira, 1982, p.3-12.

116
RAFAEL NOGUEIRA: APONTAMENTOS SOBRE O CONCEITO
DE “EDUCAÇÃO BANCÁRIA” DE PAULO FREIRE
Rafael Nogueira é formado em Filosofia e Direito pela Universidade Católica de
Santos. O texto abaixo foi retirado da obra Desconstruindo Paulo Freire. Leia-o e
responda: 1) O que é a ―educação bancária‖ segundo Paulo Freire? 2) Quais as críticas
que o autor (Rafael Nogueira) faz a essa metáfora de Freire? 3) Qual a relação do
pensamento de Paulo Freire com o pensamento marxista?

Paulo Freire explica a concepção bancária de educação no capítulo 2 da sua


obra Pedagogia do oprimido. (...) No final das contas, Freire quer denunciar um
modelo pedagógico que considera falido, estéril e inócuo, e propor outro, vivo,
coletivo, prático.
Recorramos às palavras dele, para melhor interpretá-lo:

Na visão „bancária‟ da educação, o „saber‟ é uma doação dos que se julgam sábios
aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações
instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que constitui
o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre
no outro.

Enxerguemos o cenário. Paulo Freire parecia crer que a visão bancária vigorava
no Brasil. Ele publicou essa obra em 1968, no exílio. Ela foi traduzida para dezenas de
idiomas, o que nos faz pensar que não só ele tomava por certo que essa era a visão
dominante. O Brasil passava pela ditadura militar. O mundo estava imerso na Guerra
Fria, cujo antagonismo principal era ideológico: capitalismo contra socialismo. Freire
usa a figura do banco como negativa, criticável, diria, até, abominável.
Um dos símbolos capitalistas (pelo menos, para as cabeças socialistas) é usado
como metáfora de má educação, de despersonalização, de mecanização, de
objetificação; a alternativa seria, então, humanizadora, afetiva, ativa. Há indícios claros
de inspiração ideológica. Mas tornemos a analisar os aspectos propriamente
pedagógicos, com mais explicações do autor a respeito da visão bancária:

A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização


mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em „vasilhas‟,
em recipientes a serem „enchidos‟ pelo educador. Quanto mais vá „enchendo‟ os
recipientes com seus „depósitos‟, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem
docilmente „encher‟, tanto melhores educandos serão. (…) O educador, que aliena a
ignorância, se mantém em posições fixas, invariáveis. Será sempre o que sabe,
enquanto os educandos serão sempre os que não sabem. A rigidez destas posições
nega a educação e o conhecimento como processos de busca.

O problema da visão bancária de Paulo Freire, que nesta segunda citação já


começa a ficar flagrante, é que a metáfora ideológica do banco – uma crítica aos seus
inimigos brasileiros, os burgueses, vistos como aliados dos militares, e aos seus
inimigos ideológicos no mundo todo, a classe dominante – é uma atrapalhada. Ele quer
atribuir ao banco uma carga negativa, mas ele fala em depósitos. O leitor reclama de
depósitos em sua conta?
O que eu mais ouço no meu dia a dia é a pergunta: ―Débito ou crédito?‖. Eu
gostaria de receber mais depósitos e menos débitos em conta. Do ponto de vista

117
pedagógico, se há depósito, há valores em jogo. Que valores? Os conhecimentos.
Conhecimentos são tesouros. O professor os deposita na conta bancária do aluno, que é
sua memória. O aluno pode recebê-los de forma dócil ou indócil, mas continua sendo
uma doação de valores. Ou uma troca. Quantos cursos não fazemos, pagando caro por
eles, para recebermos de volta os valores monetários em forma de conhecimento?
E quando Freire fala em educadores que são sempre os que sabem, e em
educandos, sempre os que não sabem, desconsidera que, num depósito, os valores saem
de uma conta e são transferidos a outra conta. O belo do conhecimento é que, quando o
professor deposita, o aluno ganha e ele não perde.
O que é tão ruim assim na educação bancária? Voltemos às palavras de Freire
para tentar descobrir:

Nela, o educador aparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja
tarefa indeclinável é „encher‟ os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos
que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em
cuja visão ganhariam significação. A palavra, nestas dissertações, se esvazia da
dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade
alienada e alienante. Daí que seja mais som que significação e, assim, melhor seria
não dizê-la.

Por que os conteúdos ministrados pelos professores são meros retalhos? Por que
são desconectados da totalidade em que se engendram? Talvez porque Freire tenha sido
formado (na prática, não na academia) lecionando para adultos analfabetos. É claro que
um professor não deve pressupor que, por ser iletrado, um adulto, da cidade ou do
campo, não tenha inteligência, conhecimentos, valiosas memórias, experiência etc. É
muito mais interessante mesmo partir da realidade do aluno, e usar palavras do
cotidiano dele para melhor alfabetizá-lo, aprendendo com ele o que não se sabe. O
Brasil foi construído, sobretudo, por analfabetos! Mas isso precisa ser transformado em
―práxis‖, ―revolução‖, ―utopia‖? É algo óbvio, não?
Freire não erra integralmente. A metáfora, ainda que ruim e cheia de
atrapalhações e imprecisões, era cabível em seu tempo, quando falar em banco causava
arrepios nos progressistas. Hoje, sabemos que os progressistas têm contas bem gordas
nos bancos. (...)
A quem tem dúvida sobre o aspecto ideológico embutido na visão freiriana,
explanarei mais claramente adiante, mas já é possível ver pelas citações acima e por
meio desta aqui:

Deste modo, a prática „bancária‟, implicando o imobilismo a que fizemos referência,


se faz reacionária, enquanto a concepção problematizadora, que, não aceitando um
presente „bem-comportado‟, não aceita igualmente um futuro pré-dado, enraizando-se
no presente dinâmico, se faz revolucionária.

Freire chega ao ápice de sua crítica/proposta quando diz que ―ninguém educa
ninguém‖. Vejamos:

Ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se


educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos
cognoscíveis que, na pratica „bancária‟, são possuídos pelo educador que os descreve
ou os deposita nos educandos passivos.

118
Como ser, então, educado por Freire para melhor educar? Não é um tanto
impositiva a sua ideia?
É muito claro para mim, que já dei aula para crianças, adolescentes e adultos,
que o significado etimológico da palavra educar (do latim ex docere: conduzir para
fora) ganha vida, sim, na escola, sobretudo quando tratamos com crianças e
adolescentes. Mas os adultos dos cursos técnicos onde lecionei também esperavam de
mim conhecimentos, por mais que eu os respeitasse como sujeitos pensantes e
experimentados. Senão, não me procurariam.
Freire diz que a educação libertadora destaca o ato de pensar, de buscar, enfim,
de ser. A educação bancária desumaniza, não encoraja o pensamento nem a busca. Os
problemas mais flagrantes dessas ideias são estes: ele não parece pensar com muita
habilidade e não é possível ao aluno pensar (a não ser que o faça como um hominídeo)
sem receber os valores que representam a herança do passado, e isso não é só questão
de convivência sem método, o que toma formidavelmente o tempo e a energia por falta
de planejamento, mas, sim, de transmissão de conhecimentos acumulados. Aprender
pela descoberta faria cada geração ter de se demorar imensamente em processos que
podem ser vencidos por meio dos ―depósitos bancários‖.
Os seus pontos altos parecem redundar em evidências a qualquer bom educador
que respeita os seus alunos. Respeitar no sentido de olhá-los como seres inteligentes,
que querem aprender e memorizar, sim, mas também se desenvolver, ganhar
habilidades e crescer em competências múltiplas que os tornem capazes de buscar sua
felicidade. E esta pode não estar na visão revolucionária, coletivista e utópica de Paulo
Freire.
Parece-me, apenas, um escritor presunçoso e impreciso. Presunçoso porque de
suas palavras confusas e vagas viria a esperança de melhores dias. Bom, ninguém pode
negar que Paulo Freire parecia um profeta. Impreciso porque sua proposta não fica
clara ao longo do livro – nem de nenhum outro –, porque ela tem mais conteúdo datado
e ideológico do que técnico e metódico, e porque, enquanto teoria, contradiz sua
própria ideia central. Seus fundamentos são materialistas. Sua concepção de homem é
matério-corporal, sua ideia de história é filiada à escola materialista-dialética,
enxergando tudo como luta de classes, e sua visão política não é voltada à preservação
da liberdade, mas à ―práxis‖ que visa ao enfrentamento entre as classes sociais. (...)
Em muitas reuniões pedagógicas de que participei, ouvi dos meus superiores a
narrativa histórica que antigamente (às vezes, em referência à antiguidade, noutras
vezes, aos jesuítas), a educação era bancária, ―conservadora‖, impositiva, e que agora,
a educação era libertadora, humanizadora, criativa. Narrativas revolucionárias, mas
elas mesmas arrogantes e impositivas. O passado era a escuridão, e o futuro, a
esperança. São os discípulos de Freire.
Os jesuítas são sempre pintados como péssimos exemplos, agentes de violência
cultural. Impunham suas teorias e visões de mundo sobre os nativos. O curioso é que os
jesuítas são conhecidos justamente por aprender o Tupi, fazer-lhe uma gramática
escrita, adaptar ensinamentos cristãos aos hábitos e crenças indígenas, para melhor lhes
transmitir a fé. No Japão, alguns aprenderam até a meditar.
O leitor vai me dizer: ―Olha aí, sob esse disfarce, eles queriam transmitir a fé!‖.
Mas Freire também tinha sua agenda. Afinal, ele era vinculado, primeiro, com João
Goulart, depois, com o Partido dos Trabalhadores, o PT. Não sejamos ingênuos,
passivos, abjetos. Temos que pensar!

NOGUEIRA, R. Apontamentos sobre a educação bancária Um estudo sobre a originalidade, a


aplicabilidade, a veracidade e a atualidade do conceito de educação bancária de Paulo Freire. In:
Desconstruindo Paulo Freire, de Thomas Giulliano Ferreira dos Santos (org.).

119
GABRIEL DE ARRUDA CASTRO: CINCO IDEIAS
INDEFENSÁVEIS DE PAULO FREIRE
O artigo abaixo foi escrito para o jornal Gazeta do Povo, por Gabriel de Arruda
Castro. Leia-o e responda: 1) Quem são os ―opressores‖ e quem são os ―oprimidos‖,
segundo a visão de Freire? 2) Segundo Freire, como vencer a ―dominação‖ do
―opressor‖ sobre o ―oprimido‖? 3) Quais as consequências das ideias de Paulo Freire
para a educação brasileira? 4) Qual a visão de Freire sobre a família? 5) Segundo Freire,
por que era preciso combater a ―invasão cultural‖?

Publicado em 01/06/2017 e atualizado em 19/09/2019

Durante décadas, Paulo Freire foi a referência incontestável da educação


brasileira. Ainda hoje, ele não tem concorrentes em número de citações nas faculdades
de Pedagogia. Mas, se merece crédito por ter chamado atenção para o problema do
analfabetismo no país, Freire adotou um viés ideológico que já era problemático nos
anos 1960 e não pode ser tomado como referência nos dias de hoje.

Veja cinco ideias indefensáveis que Paulo Freire apoia em seu principal livro,
Pedagogia do Oprimido:

1) O mundo se divide entre opressores e oprimidos

Freire defende uma pedagogia ―que faça da opressão e de suas causas objeto da
reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua
libertação‖.
Ao adaptar a noção da constante luta de classes de Karl Marx, o pedagogo usa
um esquema binário: os estudantes não teriam opção senão buscar sua liberdade diante
dos opressores. A noção freiriana de libertação é pouco detalhada pelo autor, mas um
detalhe da obra traz uma boa pista do que ele tinha em mente: a descrição apaixonada
que ele faz do regime de Cuba – o próximo item da lista.

2) Che Guevara é um exemplo de amor

Quando Pedagogia do Oprimido foi escrito, os fuzilamentos sumários feitos em


Cuba já eram notórios. O próprio Che Guevara havia admitido a prática do alto da
tribuna das Nações Unidas. No entanto, Freire enxergava apenas qualidades no
guerrilheiro convertido em ditador.

"O que não expressou Guevara, talvez por sua humildade, é que foram exatamente esta
humildade e a sua capacidade de amar que possibilitaram a sua ‗comunhão‘ com o
povo. (...). Este homem excepcional revelava uma profunda capacidade de amar e
comunicar-se", escreveu.

120
3) A educação deve estar a serviço da revolução

"O sentido pedagógico, dialógico, da revolução, que a faz 'revolução cultural'


também, tem de acompanhá-la em todas as suas fases", propôs Freire.
A implicação é que o ensino deve estar a serviço da ideologia. A ideia de Paulo
Freire abre as portas para a pregação política em sala de aula, com as vítimas de
sempre: os alunos.

4) A família é opressora

Em Pedagogia do Oprimido não há qualquer menção ao papel da família na


educação. O ensino é visto como uma tarefa do professor, subentendido o
protagonismo do Estado nessa função. A lógica de Paulo Freire é esta: como a
sociedade é opressora, a família reproduz os mecanismos opressores dentro de casa.

"As relações pais-filhos, nos lares, refletem, de modo geral, as condições objetivo-
culturais da totalidade de que participam. E, se estas são condições autoritárias, rígidas,
dominadoras, penetram nos lares que incrementam o clima da opressão", diz um trecho
do livro.

5) É preciso combater a ―invasão cultural‖

A educação, por definição, depende da transmissão de conhecimentos e valores


acumulados ao logo da história. No Brasil, essa história vem sobretudo das grandes
tradições da filosofia grega, do direito romano, da matriz cristã. Interpretar o ensino
dessa tradição como uma ―imposição de valores‖ a ser combatida significa isolar os
alunos do contexto histórico do país onde vivem.

Freire quer os estudantes protegidos da ―invasão‖: "Neste sentido, a invasão


cultural, indiscutivelmente alienante, realizada maciamente ou não, é sempre uma
violência ao ser da cultura invadida, que perde sua originalidade ou se vê ameaçado de
perdê-la", prega.

Entre os herdeiros ideológicos de Paulo Freire estão as correntes que defendem


uma versão do Português sem erros nem acertos – o que, no fim das contas, prejudica a
inserção de jovens carentes no mercado de trabalho.

In: https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/cinco-ideias-indefensaveis-de-paulo-
freire-0z1mo7zd2a3kpg79729vsihvg/
Acesso em 07 de fevereiro de 2020.

121
ROGÉRIO MARINHO: PAULO FREIRE, O PATRONO DO
FRACASSO EDUCACIONAL BRASILEIRO
O texto abaixo foi retirado de Ilisp. Leia-o e anote as principais ideias.

O sistema de ensino brasileiro é um dos mais ineficientes do planeta. Crianças e ado-


lescentes sabem muito pouco do que deveriam saber: dominam precariamente a língua portu-
guesa e não possuem habilidades básicas em matemática. A falta de aprendizado é o nosso
maior obstáculo educacional. Tal precariedade é resistente e subsiste à revelia das questões
fiscais e de investimento público. É um ensino ruim quando o dinheiro é farto ou escasso.
As raízes da precariedade do ensino brasileiro podem ser encontradas na formação de
nossos professores. Há muito, cursos universitários, públicos e privados, foram invadidos pela
demagogia política mais abjeta. De fato, o ensino pedagógico de nível superior furtou-se a
ensinar aos jovens mestres técnicas de aulas, metodologias baseadas em evidências científicas e
conhecimento de como as pessoas aprendem. (...)
O estudante de pedagogia forma-se sem conhecer os elementos fundantes de sua futura
profissão e muitos sequer desfrutam de estágios profissionais sérios e sistemáticos. No Brasil,
abandonou-se a pedagogia em prol de discursos políticos e formação de militantes. O maior
símbolo desse tipo de educação é o famoso, muito comentado e pouco lido, Paulo Freire.
O tema não é novo. Desde que estreou no cenário público e político, Paulo Freire
causou polêmicas e motivou inúmeros intelectuais brasileiros a denunciar suas artimanhas
revolucionárias. Em setembro de 1963, por exemplo, o jornal Estado de São Paulo endossou a
análise demolidora de Dulce Salles Cunha Braga, na época vereadora em São Paulo, sobre o
―método de alfabetização‖ do intelectual comunista: ―esse método, em si, apresenta sérias
lacunas, sendo passível de críticas fundamentais no que se refere à sua oportunidade e
eficiência. O mais grave, porém é que segundo depoimentos de pessoas de ilibada idoneidade,
o método em causa tem sido veículo de doutrinação marxista, sob pretexto de alfabetização.‖ A
professora Dulce foi a primeira senadora paulista, vereadora por três vezes e deputada estadual
também por três vezes.
A Pedagogia do Oprimido, livro mais famoso de Paulo Freire, é obra recheada de
elogios a Fidel Castro, Che Guevara, Mao Tsé-Tung, Lenin e às revoluções comunistas. Freire
ignora o sangue de inocentes derramado por esses tiranos e assassinos, responsáveis por
genocídios covardes e produz um panfleto socialista com quase nada de pedagogia. Seu
objetivo, coberto por um manto de palavras confusas e desconexas, é estabelecer as bases de
uma revolução socialista no Brasil por meio da subversão cultural de estudantes em prol do
velho e refutado materialismo marxista.
Prega em seu livro sinuoso a revolta dos alunos diante da autoridade do professor e da
família. O patrono da educação brasileira esforçasse-se, utilizando uma linguagem tosca e
truncada, em demonizar a família e a autoridade paterna: ―as relações pais-filhos, nos lares,
refletem, de modo geral, as condições objetivo-culturais da totalidade de que participam. E, se
estas são condições autoritárias, rígidas, dominadoras, penetram nos lares que incrementam o
clima da opressão‖. Tudo para ele é opressão, exploração e domínio.
De 1989 a 1991, Freire teve a oportunidade de pôr em prática suas ideias copiadas da
tradição teórica marxista. Foi secretário de educação de São Paulo na gestão de Luiza
Erundina. O legado do idolatrado militante foi a promoção automática dos estudantes. Freire
considerava a autoridade do professor em avaliar os alunos como algo opressor. A libertação é
promover estudantes mesmo que não tenham aprendido a contento o conteúdo programado. É a
perpetuação da falta de qualidade do ensino.
Precisamos urgentemente promover uma profunda revisão na formação de nossos
professores. Jamais poderemos superar nossas dificuldades sem introduzir no ensino superior
pedagogias realmente científicas e calcadas em evidências empíricas. Não podemos continuar
apenas com a politização canhota e que tanto mal faz ao ensino nacional. Precisamos de mais
ciência e menos ideologia barata e mistificadora.
In: http://www.ilisp.org/artigos/paulo-freire-o-patrono-do-fracasso-educacional-brasileiro/

122
DEWEY: A ESCOLA-LABORATÓRIO
John Dewey (1859-1952) foi um filósofo e também um educador americano.
Seus estudos se destacam na área do Pragmatismo, corrente filosófica iniciada por
Peirce, Frege, William James e outros, cuja principal ideia era a de que os efeitos
práticos deveriam ser levados em conta a partir de uma determinada concepção. Ou
seja, o sentido total de uma ideia corresponde às consequências práticas resultantes da
aplicação da mesma. Compreender é avaliar os efeitos daquilo que é pensado. Dewey
levou a teoria pragmática para o âmbito da educação.
O texto abaixo foi escrito por Andrea Parravicini, estudioso de Dewey. Leia-o e
responda: 1) Como o método pragmático poderia contribuir para melhorar a educação
no Brasil? 2) De exemplos de atividades práticas que poderiam ser desenvolvidas nas
diversas disciplinas, a exemplo da escola de Dewey. Incluindo a disciplina Sociologia.

Dewey é famoso em todo o mundo, inclusive entre os não especialistas, sobretudo pelo
seu trabalho no âmbito pedagógico, que o levou a criar, em Chicago, a sua escola-laboratório.
(...)
Em janeiro de 1896, Dewey lançou, na Universidade de Chicago, a University School,
que tinha dezesseis alunos, todos menores de 12 anos, e dois professores. Pouco a pouco, a
escola foi se expandindo, tanto que, em 1902, já tinha quase cento e cinquenta alunos, mais de
vinte docentes e cerca de dez diplomados que trabalhavam como auxiliares. Não tardou a se
transformar em um fenômeno internacional, conhecida como a Dewey School ou, como foi
denominada oficialmente, Laboratory School. (...)
Tradicionalmente, o sistema educativo baseou-se (…) em uma ideia de conhecimento
como algo abstrato e separado da práxis que o determina. Normalmente, o docente transmite
aos discentes o seu saber e os conceitos que considera válidos sem os vincular a nenhuma
atividade, como um saber abstrato, o que tem como consequência a ideia, que Dewey considera
socialmente nociva e filosoficamente errônea, de que o saber e o fazer são dois mundos
separados.
Na escola de Dewey, pelo contrário, as crianças aprendiam um saber simulando e
desempenhando atividades que normalmente desempenham na vida real. Envolviam-se em
projetos práticos, em que se dava liberdade às tendências naturais e aos interesses de cada
criança para que se expressassem e se desenvolvessem. A aprendizagem era uma consequência
natural da atividade, aprendia-se o que se necessitava a fim de realizar tarefas úteis para as
finalidades da atividade. Durante a formação, praticavam-se as atividades mais variadas, da
costura à carpintaria, ao trabalho do ferro ou à cozinha, e as crianças aprendiam também a
elaborar os instrumentos de que necessitavam para realizar as diferentes tarefas.
A cozinha, por exemplo, era especialmente útil para experimentar e aprender quase
todas as disciplinas científicas lecionadas na escola, tanto que preparar o pão se transformou
em um curso trienal frequentado por alunos dos 6 aos 8 anos. Uma vez por semana, pedia-se às
crianças que preparassem e servissem uma refeição e, durante essas atividades, elas podiam
aprender aritmética (medindo e pesando os ingredientes com instrumentos fabricados por eles
próprios), química e física (observando os processos que se produziam ao cozinhar, como a
combustão), biologia (estudando os processos de digestão e nutrição), e assim sucessivamente.
Em razão de seu caráter lúdico, prático e construtivo, as aulas eram, portanto, divertidas.
Segundo o testemunho de dois docentes da escola-laboratório, lecionavam-se sem ―qualquer
sensação de aborrecimento nem por parte das crianças nem por parte dos docentes‖.
Os alunos aprendiam conceitos teóricos por meio de atividades que tinham uma
finalidade precisa. Desse modo, o saber era inseparável do fazer, o conhecimento
transformava-se em algo concreto, cujo sentido instrumental era iluminado pela atividade
prática e pelos objetos da própria atividade.

PARRAVICINI, A. Dewey – Experimentar o Pensamento. São Paulo: Salvat, s/d, p.77-82.

123
BERGER & LUCKMANN: SOCIALIZAÇÃO
PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA
Peter Ludwig Berger (1929-2017) foi
um sociólogo austríaco emigrado para os
Estados Unidos. Em parceria com Thomas
Luckmann (1927-2016), sociólogo alemão,
escreveu a obra A Construção Social da
Realidade, da qual foi extraído o texto abaixo.
Esses autores receberam influência da
Fenomenologia, corrente filosófica que
influenciou a Sociologia a partir das obras de Alfred Schütz. Uma das características da
fenomenologia sociológica é a ênfase na intersubjetividade, a interação das pessoas
umas com as outras e a maneira como cada um interage diante de outras subjetividades.
O tema da socialização é amplamente analisado por estes autores, sendo a linguagem
considerada, por eles, como o mais importante instrumento nesse processo.

Leia o texto abaixo e responda: 1) O que é socialização primária e socialização


secundária? 2) Em qual dos dois processos a educação se enquadra? 3) De que forma a
socialização primária influi na secundária? Como resolver esse problema, pensando em
termos educacionais?

Sendo a sociedade uma realidade ao mesmo tempo objetiva e subjetiva,


qualquer adequada compreensão teórica relativa a ela deve abranger ambos estes
aspectos. Conforme tivemos ocasião de dizer, estes aspectos recebem correto
reconhecimento se a sociedade for entendida em termos de um processo dialético em
curso, composto de três momentos, exteriorização, objetivação e interiorização. No que
diz respeito ao fenômeno social, estes momentos não devem ser pensados como
ocorrendo em uma sequência temporal. Ao contrário, a sociedade e cada uma de suas
partes são simultaneamente caracterizadas por estes três momentos, de tal modo que
qualquer análise que considere apenas um ou dois deles é insuficiente. O mesmo é
verdade com relação a um membro individual da sociedade, o qual simultaneamente
exterioriza seu próprio ser no mundo social e interioriza este último como realidade
objetiva. Em outras palavras, estar em sociedade significa participar da dialética da
sociedade.
Contudo, o indivíduo não nasce membro da sociedade. Nasce com a
predisposição para a sociabilidade e torna-se membro da sociedade. Por conseguinte,
na vida de cada indivíduo existe uma sequência temporal no curso da qual é induzido a
tomar parte na dialética da sociedade. O ponto inicial deste processo é a interiorização,
a saber, a apreensão ou interpretação imediata de um acontecimento objetivo como
dotado de sentido, isto é, como manifestação de processos subjetivos de outrem, que
desta maneira torna-se subjetivamente significativo para mim. (...) [A interiorização]
constitui a base primeiramente da compreensão de nossos semelhantes e, em segundo
lugar, da apreensão do mundo como realidade social dotada de sentido.
Esta apreensão não resulta de criações autônomas de significado por indivíduos
isolados, mas começa com o fato do indivíduo ―assumir‖ o mundo no qual os outros já
vivem. (...) Na forma complexa de interiorização, não somente ―compreendo‖ os
processos subjetivos momentâneos do outro mas ―compreendo‖ o mundo em que vive
e esse mundo torna-se o meu próprio. Isto pressupõe que ele e eu participamos do

124
tempo de um modo que não é apenas efêmero e numa perspectiva ampla, que liga
intersubjetivamente as sequencias de situações. Agora, cada um de nós não somente
compreende as definições das situações partilhadas mas somos capazes de defini-las
reciprocamente. Estabelece-se entre nós um nexo de motivações que se estende para o
futuro. Mais importante ainda é o fato de haver agora uma contínua identificação
mútua entre nós. Não somente vivemos no mesmo mundo mas participamos cada qual
do ser do outro.
Somente depois de ter realizado este grau de interiorização é que o indivíduo se
torna membro da sociedade. O processo ontogenético pelo qual isto se realiza é a
socialização, que pode assim ser definida como a ampla e consistente introdução de um
indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela. A socialização
primária é a primeira socialização que o indivíduo experimenta na infância, e em
virtude da qual torna-se membro da sociedade. A socialização secundária é qualquer
processo subsequente que introduz um indivíduo já socializado em novos setores do
mundo objetivo de sua sociedade. (...)
É imediatamente evidente que a socialização primária tem em geral para o
indivíduo o valor mais importante e que a estrutura básica de toda socialização
secundária deve assemelhar-se à da socialização primária. (...)
A socialização primária cria na consciência da criança uma abstração
progressiva dos papéis e atitudes dos outros particulares para os papéis e atitudes em
geral. (...) O indivíduo identifica-se agora não somente com os outros concretos mas
com uma generalidade de outros, isto é, com uma sociedade. Somente em virtude desta
identificação consigo mesmo alcança estabilidade e continuidade. O indivíduo tem
agora não somente uma identidade em face deste ou daquele outro significativo, mas
uma identidade em geral, subjetivamente apreendida como constante, não importando
que outros, significativos ou não, sejam encontrados. (...)
A socialização secundária é a interiorização de ―submundos‖ institucionais ou
baseados em instituições. A extensão e caráter destes são, portanto, determinados pela
complexidade da divisão do trabalho e a concomitante distribuição social do
conhecimento. (...) A socialização secundária é a aquisição do conhecimento de
funções específicas, funções direta ou indiretamente com raízes na divisão do trabalho.
(...) A socialização secundária exige a aquisição de vocabulários específicos de
funções, o que significa em primeiro lugar a interiorização de campos semânticos que
estruturam interpretações e condutas de rotina em uma área institucional. (...)
Os processos formais de socialização secundária são determinados por seu
problema fundamental, a suposição de um processo precedente de socialização
primária, isto é, deve tratar com uma personalidade já formada e um mundo já
interiorizado. (...) Isto representa um problema, porque a realidade já interiorizada tem
a tendência a persistir. Sejam quais forem os novos conteúdos que devam agora ser
interiorizados, precisam de certo modo sobrepor-se a esta realidade já presente. (...)
Na socialização secundária, as limitações biológicas tornam-se cada vez menos
importantes nas sequências de aprendizagem, que agora estabelecem-se em termos das
propriedades intrínsecas do conhecimento que deve ser adquirido, ou seja, em termos
da estrutura fundamental desse conhecimento. Por exemplo, para aprender certas
técnicas de caça é preciso aprender primeiro a escalar montanhas ou para aprender o
cálculo é preciso aprender primeiro álgebra.

BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. A Construção Social da Realidade.


Petrópolis: Vozes, 1986, p.173-188.

125
NOVAS ABORDAGENS NA EDUCAÇÃO
O advento de novas tecnologias, da acessibilidade das mesmas a um número
cada vez maior de pessoas e da era da informação fizeram surgir novas abordagens
educacionais e levaram educadores do mundo todo a repensarem velhas práticas
educacionais. Dentre as várias abordagens destacam-se: o retorno ao pragmatismo (visto
anteriormente), as metodologias ativas e as tecnologias educacionais.
As metodologias ativas procuram envolver o aluno no processo de
aprendizagem, de modo que ele não seja apenas um espectador, mas um elemento
dinâmico que vai atrás do conhecimento, que faz por ele mesmo, enfim, que busca por
meios diversos adquirir alguma competência. O estudante pode fazer isso de várias
maneiras: ensinando, praticando alguma habilidade aprendida, montando algo,
buscando tecnologias ou utilizando algum aplicativo. Essas metodologias ativas deram
origem a várias práticas como por exemplo a ―sala de aula invertida‖ (flipped classrom),
em que o aluno busca por conteúdos virtuais, lives, hangouts, cursos online e muito
mais.
As tecnologias educacionais complementam as metodologias ativas. Tais
tecnologias incluem qualquer ferramenta ou tecnologia utilizadas com o intuito de
aumentar a eficiência do processo de aprendizado.
O texto abaixo refere-se às tecnologias educacionais e foi escrito pelos autores
Huang, Yang e Spector. Leia-o e responda: 1) Qual o papel da atitude na aprendizagem?
2) Cite exemplos de tecnologias que poderiam ser utilizadas na aprendizagem de
disciplinas como Física, Química, Matemática ou Biologia. 3) Agora cite exemplos de
tecnologias que poderiam ser utilizadas na aprendizagem de Sociologia. 4) Qual a
importância do ―fazer‖ na aprendizagem?

Tecnologia educacional refere-se ao uso de ferramentas, tecnologias, processos,


procedimentos, recursos e estratégias para melhorar as experiências de aprendizagem
em uma variedade de ambientes, como aprendizagem formal, aprendizagem informal,
aprendizagem não formal, aprendizagem ao longo da vida, aprendizagem sob demanda,
local de trabalho aprendizado e aprendizado just-in-time. As abordagens de tecnologia
educacional evoluíram dos primeiros usos das ferramentas de ensino e se expandiram
rapidamente nos últimos anos para incluir dispositivos e abordagens como tecnologias
móveis, realidades virtuais e aumentadas, simulações e ambientes imersivos,
aprendizado colaborativo, redes sociais, computação em nuvem, salas de aula
invertidas e mais. (...)

Conceitos Chave
• Atitude - uma disposição mental ou maneira de pensar sobre algo (local, pessoa, evento,
atividade etc.); atitudes estão ligadas a determinadas pessoas que creem em algo e sua vontade
de se envolver em atividades específicas.
• Competência - um conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes específicas que
permitem que uma pessoa realize efetivamente uma tarefa específica.

• Educação - esforços sistemáticos para desenvolver (a) conhecimentos e habilidades básicas e


especializadas, (b) habilidades para resolver problemas, (c) trabalhadores produtivos, (d)
capacidade de raciocínio de ordem superior, (d) cidadãos responsáveis e / ou ( f) aprendizes ao
longo da vida (Spector, 2015).
• Tecnologia educacional - ―o estudo e a prática ética de facilitar o aprendizado e melhorar o

126
desempenho, criando, usando e gerenciando processos e recursos tecnológicos apropriados‖
(definição do AECT; Januszewski & Molenda, 2008, p. 1); o uso disciplinado de abordagens
pedagógicas, estratégias instrucionais, mídia, ferramentas e tecnologias para melhorar
consistentemente o aprendizado, a instrução e o desempenho.

• Aprendizado - caracterizado por mudanças estáveis e persistentes no que uma pessoa ou


grupo de pessoas acredita, sabe e é capaz de fazer (Spector, 2015).
• Aprendizado formal - sequências estruturadas de instrução em apoio ao aprendizado
intencional, tipicamente definidas em um contexto institucional com metas e objetivos
explícitos.
• Aprendizagem informal - aprendizagem que ocorre fora do contexto de um ambiente formal;
exemplos incluem viagens de campo, museus e aprendizado incidental no contexto das
atividades cotidianas; algumas atividades e experiências informais de aprendizagem visam
complementar ou suprir experiências e atividades formais de aprendizagem (Spector, 2015).
• Instrução - que visa apoiar, facilitar ou aprimorar o aprendizado e o desempenho (Gagné,
1985; Spector, 2015).
• Projeto instrucional - planejamento, criação, aprimoramento, seleção, sequenciamento,
gerenciamento e avaliação de atividades e recursos em apoio às metas e objetivos almejados
(Spector, 2015).
• Aprendizagem intencional - aprendizagem orientada para objetivos e proposital, comum na
aprendizagem formal e em situações de aprendizagem no local de trabalho.
• Aprendizagem ao longo da vida - aprendizagem que está em andamento na vida de um
indivíduo; é tipicamente voluntário, auto selecionado e auto regulado; esses esforços podem
estar associados a interesses pessoais ou objetivos profissionais (às vezes chamados de
aprendizagem ao longo da vida).

• Mídia - um meio de representar, apresentar, disseminar e armazenar informações em vários


formatos, alguns dos quais podem ser digitais.
• Recursos multimodais - recursos existentes em vários formatos e modalidades, incluindo
texto, áudio, vídeo, animações, gráficos, simulações e realidades virtuais e aumentadas;
também conhecido como recursos multimídia; a explosão de recursos multimodais na era
digital criou a necessidade de desenvolver informações, tecnologia, alfabetização visual e
digital, além da alfabetização tradicional em idiomas.
• Aprendizagem não formal - uma forma de aprendizagem que existe entre a aprendizagem
formal e a informal que geralmente é um pouco estruturada, pode ter objetivos e
frequentemente associada a atividades organizadas; muita aprendizagem para adultos se
enquadra nessa categoria difusa, que inclui atividades como clubes de culinária, dança e leitura.
• Tecnologia - a aplicação prática e proposital do conhecimento (uma definição tradicional
vinculada à etimologia do termo do grego - techné, ou habilidade, e logos, ou razão); o uso
popular envolve coisas físicas, como em smartphones, tablets, quadros interativos etc. No
contexto da tecnologia educacional e consistente com a definição do AECT, é o uso e a
aplicação do conhecimento na forma de tecnologia, mídia, procedimentos e recursos para
apoiar vários aspectos do aprendizado, instrução e desempenho que compreendem o foco da
tecnologia educacional.

Princípios Relevantes
• As pessoas aprendem o que fazem; esse princípio é derivado da psicologia comportamental
(por exemplo, reforçar um comportamento desejado aumenta a probabilidade de ocorrer) e
encontra suporte na ciência neural (por exemplo, quando uma ação é repetida frequentemente,

127
as conexões neurais no cérebro associadas a essa ação são fortalecidas, aumentando a
probabilidade de recorrência no futuro); Uma implicação desse princípio básico é que as
atividades de aprendizado devem ser projetadas com o desempenho futuro desejado em mente.
• Quanto mais tempo uma pessoa gasta em uma tarefa de aprendizado, maior a probabilidade
de que ela domine a tarefa.
• Fornecer feedback oportuno e informativo enquanto um aluno está envolvido em uma tarefa
de aprendizado provavelmente facilitará o domínio da tarefa. (...)

Está bem estabelecido que o aprendizado anterior geralmente prediz o


aprendizado futuro - ou seja, é provável que os alunos que lutaram com um assunto no
passado continuem lutando. Isso implica que estar ciente das experiências e
desempenho anteriores de um aluno pode ajudar um instrutor a desenvolver atividades
de aprendizagem apropriadas para esse aluno. Além disso, a tecnologia pode
desempenhar um papel fundamental para ajudar um instrutor a desenvolver atividades
de aprendizado personalizadas e individualmente apropriadas, como será discutido em
um capítulo posterior. (...)
O aprendizado é um processo contínuo natural que ocorre em situações
organizadas e em atividades cotidianas. Como tal, a história da aprendizagem é
coincidente com a história dos seres humanos. O ensino também tem uma longa
história que é aproximadamente coincidente com a história das famílias e tribos
humanas. Várias ferramentas e técnicas têm sido usadas para apoiar o ensino e a
aprendizagem ao longo dos tempos, de modo que também se possa concluir que a
tecnologia educacional tem uma história muito longa (Spector & Ren, 2015). É comum
dividir a história humana em períodos ou épocas amplas, como o período primitivo, o
período agrícola, o período industrial, a era da informação e a era emergente da
sociedade inteligente. (...)
No início da história da humanidade, é provável que objetos reais tenham sido
usados para apoiar o aprendizado. Por exemplo, um ancião que ensina uma criança a
caçar pode usar uma lança real para ajudar a criança a aprender a mirar e atirar, talvez
inicialmente em uma árvore e não em um animal. O ábaco foi um dispositivo de
cálculo inicial usado para acompanhar os inventários, e seu uso teve que ser treinado à
medida que a responsabilidade passava de uma pessoa para outra. (...)
Desde muito cedo, os registros eram mantidos e as histórias eram gravadas em
pergaminhos e em imagens que eram usadas para ensinar a cada nova geração coisas
que haviam acontecido e que poderiam afetar seu futuro. As pessoas aprenderam
negócios no local de trabalho usando ferramentas reais por muitos anos; aprendizado e
treinamento no trabalho permanecem em uso em muitos campos.
A invenção da prensa de impressão de Gutenberg, no século XV, tornou
possível compartilhar informações e conhecimentos com um grupo muito maior de
indivíduos do que anteriormente. Seu uso se tornou difundido na Europa no século
XVI, e os livros se tornaram um recurso primário usado em muitos contextos
educacionais. Vale a pena notar que levou cem anos ou mais para que a tecnologia da
impressora fosse amplamente adotada. Quanto tempo os smartphones levaram para
serem amplamente adotados? A imprensa transformou o aprendizado e a instrução,
bem como os arranjos sociais, políticos e econômicos, embora demorassem algumas
centenas de anos para que essas transformações ocorressem. É provável que efeitos
transformadores semelhantes ocorram devido a tecnologias novas e emergentes?
HUANG, R.; SPECTOR, J. M.; YANG, J. Educational Technology: a Primer for the 21st Century.
Singapura: Springer, 2019, p.4-11.

128
CIÊNCIA
Pensar a ciência como instituição significa considerar não apenas os progressos
realizados na era moderna, aproximadamente a partir do século XV, mas analisar a
cultura material de uma sociedade, as técnicas e conhecimentos à disposição num
determinado contexto, seja na Idade da Pedra ou no século XXI. Entretanto, é inegável
que a partir da Idade Moderna a ciência tomou uma proporção nunca antes vista na
história, vindo a afetar toda a vida em sociedade e todas as outras instituições.
As primeiras descobertas de nossos antepassados demoraram milhões de anos,
mesmo as mais simples, como a utilização de paus e pedras. Entretanto, esses primeiros
passos lentos e difíceis deram aos nossos ancestrais um domínio sobre outros animais e
sobre a natureza, e a partir daí seguimos por uma jornada evolutiva até os dias atuais.
Dentre as primeiras grandes inovações tecnológicas, destacam-se a fabricação de
utensílios de pedra, o domínio do fogo, as técnicas agrícolas e de domesticação de
animais e, finalmente, a metalurgia. Cada etapa correspondeu a uma significativa
mudança na família, na religião, nas formas de comércio, nas relações de poder entre
chefes e súditos, enfim, em todas as instituições, modificando também a maneira como
os seres humanos criavam suas concepções de mundo. Entretanto, as mesmas
concepções de mundo existentes e as instituições arraigadas exerceram uma grande
força no sentido de limitar e, principalmente, moldar a maneira como os progressos
ocorreram nas várias épocas e lugares. Uma instituição só pode ser pensada se analisada
em sua totalidade, se for relacionada a outras instituições, aos processos sociais, aos
costumes e práticas presentes num determinado contexto.
Embora a religião e as visões mágicas sejam vistas como inimigas da ciência,
nota-se que os lugares onde as técnicas e as artes mais se desenvolveram foram
precisamente aqueles onde a religião foi predominante. As primeiras formas de
conhecimento na geometria, na medicina ou entre os artesãos eram misturadas a
concepções de mundo míticas, a noções que envolviam deuses, magia e forças
sobrenaturais.
O mesmo ocorreu em relação às outras instituições, como o comércio: os
maiores progressos científicos ocorreram em contextos onde o comércio era mais
desenvolvido, e vice-versa, isto é, o desenvolvimento científico e tecnológico trouxe um
avanço nas relações comerciais. Ciência e educação também estão intimamente ligadas,
uma influenciando a outra. Tudo isso nos remete novamente ao que foi dito
anteriormente: uma instituição deve ser analisada em conexão com outras instituições.
Todas elas são interdependentes. Talvez isso já tenha ficado claro, a partir de tudo o que
foi visto até agora. Se não, talvez a leitura dos textos seguintes o ajudem a entender essa
importante ideia.

129
CIÊNCIA E TECNOLOGIA
NOS PRIMÓRDIOS DA CIVILIZAÇÃO
O texto abaixo aborda o surgimento das primeiras tecnologias utilizadas pela
humanidade nos seus primórdios, em lugares e épocas distintas. Foi retirado da ―Grande
História Universal – O princípio da civilização‖. Leia-o e responda: 1) De que modo a
utilização de utensílios de pedra modificou a relação do homem com a natureza e dos
seres humanos entre si? 2) Responda a mesma pergunta feita no item 1, mas desta vez
para a utilização do fogo. 3) Qual a relação entre religião e ciência, no Egito antigo?

Os utensílios de pedra construídos pelo homem do Paleolítico representam a


primeira tentativa de intervir e modificar as matérias-primas disponíveis na natureza.
Temos, pois, que analisar os avanços da técnica por meio da qual o homem primitivo
regulou as suas relações com a natureza, melhorando e simplificando a sua experiência
prática. A técnica, durante o Paleolítico, distinguiu-se por um aproveitamento da
matéria, fortemente condicionado pelas características que lhe são próprias. Não
conseguiu ainda alterar a sua composição, como aconteceu com o metal e com a argila.
Os instrumentos líticos eram obtidos exclusivamente por lascagem e retoque. A
polidura e a perfeição que começaram a ser implantadas no Paleolítico Superior foram
inicialmente usadas na fabricação de objetos decorativos e artísticos, mas só se
difundirão na época pós-paleolítico. (...)
Completa o panorama tecnológico do Paleolítico o uso do fogo, que parece
remontar à sua fase mais antiga, como testemunham os ossos e o sílex queimado, as
hastes de lenha com as pontas queimadas provenientes das várias estações e
encontradas em diversos abrigos rochosos ou em grutas. Inicialmente o fogo era apenas
conservado, em seguida é descoberta a forma de o produzir, por meio de fricção de
pedaços de bissulfureto de ferro, provocando chispas suficientemente quentes para
inflamar materiais combustíveis. (...)
No Egito a cultura técnico-científica nasceu e desenvolveu-se essencialmente
no âmbito sacerdotal. As ―escolas da vida‖ anexas ao templo e destinadas à formação
das classes dirigentes – ministros de culto ou funcionários do Estado – foram centros
culturais de alto nível, onde se cultivavam disciplinas (Astronomia, Medicina,
Arquitetura, Magia) das quais o sacerdote era o único depositário. De resto, a estreita
união entre o conhecimento técnico-científico e o saber sacro encontrava uma
confirmação mítica na figura de Imhotep (século XXVII a.C), grande sacerdote de
Heliópolis, arquiteto, astrônomo (é-lhe atribuída a elaboração do calendário solar),
taumaturgo e patrono dos médicos.
Característica peculiar da ciência egípcia, para aquele tempo avançadíssima em
muitos campos, é o ter-se desenvolvido não tanto sobre a base de um autêntico método
científico, mas mais numa base empírica impulsionada por necessidades de caráter
eminentemente prático. Geometria e matemática, por exemplo, desenvolveram-se
rapidamente no Egito (desde a primeira época dinástica) para a solução de problemas
concretos que se colocavam quando, depois do transbordo do Nilo, era necessário
redefinir as fronteiras das propriedades por razões cadastrais e fiscais. Os egípcios
faziam uso de um sistema numérico decimal, conheciam as frações e a raiz quadrada e
sabiam calcular a superfície de um círculo ou o volume de um cilindro.

Grande História Universal – O Princípio da Civilização. Barcelona: Ediciones Folio, 2006, p.48-52

130
COLIN A. RONAN: AS ORIGENS DA CIÊNCIA
O texto abaixo foi escrito por Colin A. Ronan, retirado da História Ilustrada da
Ciência. Leia-o e responda: 1) Quais os elementos necessários a qualquer ciência? 2)
Compare com o texto de James Frazer já visto, p.34, e indique o que esse texto tem em
comum com as ideias de Frazer, e o que possuem de discordância.

A ciência tem demonstrado ser uma enorme aventura intelectual. Engajar-se nela
requer uma vívida imaginação criadora, temperada por uma firme disciplina, baseada num
corpo consistente de observações comprovadas, e a ciência tem atraído alguns dos melhores
intelectos de cada civilização que se desenvolveu até um estágio em que lhe é possível
enfrentar o desafio da natureza. Porque a ciência não se resume apenas na coleta de fatos –
embora isso seja necessário; é um sistema de correlação lógica dos fatos que, juntos,
consolidam uma hipótese ou o corpo de uma teoria. Essa teoria é por si mesma temperada pelas
perspectivas proporcionadas pelos tempos em que é formulada. A teoria deve ser sólida o
suficiente para atrair intelectos treinados no pensamento lógico e, ao mesmo tempo, bastante
aberta para deixar espaço a desenvolvimentos e ajustamentos, à luz de descobertas mais
recentes. Tal teoria, por vezes conhecida como um paradigma, mudará, de tempos em tempos,
por inúmeras razões, como veremos. A ciência é um conjunto de conhecimentos crescentes e
em expansão, até o ponto em que aquelas mudanças são motivadas por experiências ainda mais
complexas, mas, quando estas são provocadas por motivos religiosos, filosóficos, sociais ou
econômicos, a história da ciência se prende a todas as oscilações da história mais geral.
É impossível examinar a história ou a teoria da ciência sem se defrontar com a magia.
(...) A magia foi um modo legítimo de expressar uma síntese do mundo natural e do seu
relacionamento com o homem. Quando, numa sociedade primitiva, o mago, impostor ou
curandeiro se propõe provocar chuva por meios artificiais, ele expressa sua compreensão de
uma ligação entre a chuva e o crescimento das plantações, entre um e outro aspecto da natureza
e sua estimativa de que a sobrevivência do homem depende do comportamento do mundo
natural. Ele sente que há alguma conexão entre o homem e o mundo que o cerca, algum
entendimento primitivo de que, conhecido o procedimento correto, o homem pode controlar as
forças da natureza e coloca-las a seu serviço.
Quais eram as crenças essenciais da magia, tal como foi encontrada entre os povos
mais antigos e como ainda persiste em algumas culturas atuais mais primitivas? A magia
exprimiu o que, de um modo geral, era uma visão anímica da natureza. O mundo era povoado e
controlado por espíritos e forças espirituais ocultas, que habitavam talvez os animais, ou as
árvores, ou o mar e o vento, e a função do mago consistia em submeter essas forças ao seu
objetivo, persuadir os espíritos a cooperar. Fazia invocações, lançava feitiços e preparava
poções, pois via um mundo de afinidades e solidariedade. (...)
Existem aqueles que negam ter havido uma ciência genuína nos tempos pré-históricos.
Para eles, a medicina primitiva, a cirurgia pré-histórica e a tecnologia de então eram todas
puramente práticas, sem qualquer abstração dos princípios subjacentes. Contudo, pelo que se
conhece de magia, está claro que havia uma doutrina básica e um conjunto de princípios que
estabeleciam que o mundo não era habitado apenas por um conjunto visível de seres humanos,
animais, plantas e minerais, mas também por um mundo invisível de espíritos e forças
espirituais. Algumas dessas forças podiam ser percebidas por qualquer pessoa, como no caso
do trovão e do relâmpago, ou se manifestar através de um tremor de terra ou uma enchente. A
doença e a peste eram encaradas como manifestações dos espíritos do mal. Assim, os
fenômenos naturais do mundo físico eram relacionados com o mundo dos espíritos, e
desenvolviam-se procedimentos para lidar com ambos os mundos. Certamente, esses princípios
básicos não seriam, hoje, considerados científicos, mas, nos tempos primitivos, pressupor tais
intervenções era um ato de racionalização; oferecia um paradigma aceitável para explicar os
diversos fenômenos experimentados pelo homem.

RONAN, C. A. História Ilustrada da Ciência. São Paulo: Círculo do Livro, 1991, Vol. I, p.12-14.

131
LÉVI-STRAUSS: A CIÊNCIA DO CONCRETO
O texto abaixo é do antropólogo já visto, Lévi-Strauss, retirado de sua famosa obra O
Pensamento Selvagem. Nessa passagem, o autor nega certas características atribuídas aos
nativos, em relação ao seu conhecimento sobre o mundo que os rodeia. Leia-o e responda: 1)
Que características são essas, que ele (o autor) procura rebater? 2) Explique a seguinte
passagem: ―cada coisa sagrada deve estar em seu lugar‖. Como isso se relaciona à ciência? 3)
Lévi-Strauss era um pensador estruturalista, e por tal motivo, negava que havia uma evolução
ou continuidade entre técnicas nativas e técnicas modernas, entre o pensamento dos primeiros e
o dos segundos. Retire do texto uma passagem que confirme essa ideia. Você concorda com o
autor nesse ponto? Justifique.

Aprouve-nos, durante muito tempo, mencionar línguas a que faltam termos para
exprimir conceitos, tais como os de árvore ou animal, se bem que elas possuam todas
as palavras necessárias a um inventário minucioso de espécies e de variedades. Mas,
invocando esses casos em favor de uma suposta inaptidão dos ―primitivos‖ ao
pensamento abstrato, omitíamos, então, outros exemplos, que atestam que a riqueza em
palavras abstratas não é só apanágio das línguas civilizadas. Assim o chinuque, língua
do noroeste da América do Norte, faz uso de palavras abstratas para designar muitas
propriedades ou qualidades dos seres e das coisas. ―Este procedimento‖, diz Boas, ―é
nela mais frequente do que em qualquer outra língua que eu conheça‖. A sentença: o
homem mau matou a pobre criança, traduz-se assim em chinuque: a maldade do
homem matou a pobreza da criança; e para dizer que uma mulher usa um cesto
demasiadamente pequeno: ela coloca raízes de potentilha na pequenez de um cesto para
conchas. (...)
A triagem conceptual varia conforme a língua, e, como observava muito bem,
no século XVIII, o redator da palavra ―nome‖ na Enciclopédia, o uso de termos mais
ou menos abstratos não é função de capacidades intelectuais, mas de interesses
desigualmente marcados e detalhados de cada sociedade particular, dentro da sociedade
nacional. (...)
Como na linguagem profissional, a proliferação conceptual corresponde a uma
atenção mais firme, em relação às propriedades do real, a um interesse mais desperto
para as distinções que aí podem ser introduzidas. Este apetite de conhecimento objetivo
constitui um dos aspectos mais negligenciados do pensamento daqueles que nós
chamamos ―primitivos‖. Se é raramente dirigido para realidades do mesmo nível que
aquelas às quais se liga a ciência moderna, implica diligências intelectuais e métodos
de observação semelhantes. Nos dois casos, o universo é objeto de pensamento, ao
menos tanto quanto meio de satisfazer necessidades.
Cada civilização tende a superestimar a orientação objetiva de seu pensamento;
é, por isso, então, que ela nunca está ausente. Quando cometemos o erro de crer que o
selvagem é exclusivamente governado por suas necessidades orgânicas ou econômicas,
não reparamos que ele nos dirige a mesma censura, e que, a seus olhos, seu próprio
desejo de saber parece melhor equilibrado que o nosso. (...)
[Pode-se concluir] que as espécies animais e vegetais não são conhecidas na
medida em que sejam úteis [aos nativos]; elas são classificadas úteis ou interessantes
porque são primeiro conhecidas.
Objetar-se há que tal ciência não pode ser muito eficaz num plano prático. Mas,
precisamente, seu primeiro objetivo não é de ordem prática. Ela responde a exigências
intelectuais antes, ou em vez, de satisfazer necessidades.
A verdadeira questão não é saber se o contato de um bico de picanço cura dores
de dentes, mas, se é possível, de certo ponto de vista, fazer juntos ―irem‖ o bico do

132
picanço e o dente do homem (congruência, cuja fórmula terapêutica não constitui mais
que uma aplicação hipotética, entre outras) e, por intermédio desses agrupamentos de
coisas e de seres, introduzir um princípio de ordem no universo; porquanto a
classificação, qualquer que seja, possui uma virtude própria em relação à falta de
classificação. (...)
Ora, essa exigência de ordem está na base do pensamento que nós chamamos
primitivo, mas somente na medida em que está na base de qualquer pensamento: pois é
sob o ângulo das propriedades comuns que chegamos mais facilmente às formas de
pensamento que nos parecem muito estranhas.
―Cada coisa sagrada deve estar em seu lugar‖, notava, com profundeza, um
pensador indígena (Fletcher 2, p.34 [citação de Lévi-Strauss]). Poder-se-ia mesmo
dizer que é isso que a torna sagrada, pois, suprimindo-a, ainda que por pensamento,
toda a ordem do universo se encontraria destruída; ela contribui, pois, para mantê-la ao
ocupar o lugar que lhe cabe. Os requintes do ritual, que podem parecer ociosos quando
examinados superficialmente e de fora, explicam-se pela preocupação, que se poderia
chamar ―micro-perequação‖: não deixar escapar nenhum ser, objeto ou aspecto, para
assegurar-lhe um lugar dentro de uma classe. (...)
Essa preocupação da observação exaustiva e do inventário sistemático das
relações e das ligações pode levar, às vezes, a resultados de boa ordem científica: é o
caso dos índios blackfoot, que diagnosticavam a aproximação da primavera pelo
desenvolvimento dos fetos do bisão, extraídos do ventre das fêmeas mortas durante a
caça. Entretanto, não se podem isolar esses resultados de tantas outras aproximações do
mesmo gênero declaradas ilusórias pela ciência. Mas não será que o pensamento
mágico, essa ―gigantesca variação sobre o tema do princípio da causalidade‖, diziam
Hubert e Mauss, se distingue menos da ciência pela ignorância ou pelo desprezo do
determinismo, do que por uma exigência de determinismo mais imperiosa e mais
intransigente e que a ciência pode, quando muito, julgar insensata e precipitada? (...)
A exigência de organização é uma necessidade comum à arte e à ciência (...),
em consequência, ―a taxonomia, que é a organização por excelência, possui um
eminente valor estético‖. Por conseguinte, causará menor surpresa que o senso estético,
reduzido a seus próprios recursos, possa abrir caminho à taxonomia e, mesmo,
antecipar alguns de seus resultados.
Não voltamos, contudo, à tese vulgar (aliás admissível, na perspectiva estreita
em que se coloca), segundo a qual a magia seria uma modalidade tímida e balbuciante
da ciência: pois nos privaríamos de todos os meios de compreender o pensamento
mágico se pretendêssemos reduzi-lo a um momento ou a uma etapa da evolução
técnica e científica. Mais como uma sombra que antecipa a seu corpo, ela é, num
sentido, completa como ele, tão acabada e coerente em sua imaterialidade, quanto o ser
sólido por ela simplesmente precedido. O pensamento mágico não é uma estreia, um
começo, um esboço, parte de um todo ainda não realizado; forma um sistema bem
articulado; independente, neste ponto, desse outro sistema que constituirá a ciência,
exceto quanto à analogia formal que os aproxima e que faz do primeiro uma espécie de
expressão metafórica do segundo. Em lugar, pois, de opor magia e ciência, melhor
seria coloca-las em paralelo, como duas formas de conhecimento, desiguais quanto a
seus resultados teóricos e práticos (pois, sob este ponto de vista, é verdade que a
ciência se sai melhor que a magia, se bem que a magia preforme a ciência, no sentido
de que triunfa também algumas vezes), mas não pelo gênero de operações mentais, que
ambas supõem, e que diferem menos em natureza que em função dos tipos de
fenômenos a que se aplicam.
LÉVI-STRAUSS, O Pensamento Selvagem. São Paulo: Companhia Editora Nacional, p.19-34.

133
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO: FOGO E CIVILIZAÇÃO
O texto abaixo foi escrito por Luís da Câmara Cascudo
(1898-1986), retirado da obra Civilização e Cultura. No trecho
abaixo, Cascudo destaca a importância da técnica de manuseio do
fogo para o desenvolvimento da civilização, ajudando a moldar
muitas das práticas adotadas pela humanidade em seu trajetória
pela história. Leia-o e responda: 1) Qual a relação entre o uso do
fogo e o surgimento da família? 2) E qual a relação entre o uso do
fogo e o surgimento da religião? 3) Qual a relação entre a técnica e
a cultura de um povo?

Ninguém pode precisar a época em que uma criatura ―inventou‖ a utilização racional
do fogo e menos saber o nome dessa criatura. Verifica-se semelhantemente com o instrumento
de trabalho. Bergson batizou de homo faber, muito mais expressivo que sapiens, a espécie
inventiva do aparelhamento simplificador e mais eficiente para matar caça. O sapiens é o
Homem de Cro-Magnon. Um milhão de anos antes, o australopithecus prometheus vivo e
bulindo na África do Sul, fazia armas com os ossos longos dos animais abatidos. (...)
O fogo foi o elemento da estabilidade humana em caráter decisivo. Fixa, auxilia,
defende. A caverna tornou-se habitável pela presença do lume, afugentando as feras e
espavorindo os fantasmas. Depois de assar, tostar a carne, manter o calor saboroso, o fogo
iluminava fazendo o sol perdurar no ambiente do abrigo de pedra.
A iluminação mesmo bruxuleante possibilitou o trabalho noturno, tratamento de peles e
couro, afiação e preparo de armas, gravação, desenho nas paredes, furamento de búzios, dentes
de ursos e de felinos para pulseiras e colares, orifícios e ornamentos nos bastões de mando,
apitos de caça, relevos pacientes que eram amuletos e ornamentações. E também as primeiras
lucubrações devem ao clarão da fogueira doméstica os benefícios da forma mental iniciante.
Lucubração, etimologicamente, só se verifica durante a noite e com luz de candeia, e é
cogitação, meditação, concentração. Nenhum primitivo teria clima e tempo para pensar durante
as horas solares. Sentado, mastigando o punho como o Penseur de Rodin, seguindo a ideia, fa-
lo-ia à noite. O pensamento foi de início uma atividade noturna.
O fogo forneceu outro elemento: o círculo humano à volta, derredor do lume
aquecedor, a possibilidade lógica do serão. Ainda hoje nos climas frios a volta da lareira é uma
constante inesquecível para quem dela participou. Disputando a divisão equitativa de calor e
parte da luz a todos devida, os homens tomaram posição circular, equidistantes, igualados pela
necessidade de obter do mesmo foco as vantagens divinas do aquecimento e da luminosidade.
O fogo impôs as primeiras posições coletivas para o grupo humano. A primeira seria o
círculo tendo a fogueira no centro. Ainda é a forma de reunião nativa, ameríndia, africana,
oceânica, universal pela antiguidade. É o fogo-do-conselho, posterior, no cerimonial das juntas
consultivas. Mesa redonda sem o lume, mantendo a projeção inicial do arranjo instintivo. O
fogo estava no meio da caverna. Explicava o círculo aproveitador dos benefícios. Quando no
neolítico o homem possuiu casa, melhorando a gruta ou construindo as choças pastoris e antes
para vigiar o plantio, o fogo teve local fixo e, para não tomar muito espaço, útil para outros
misteres, foi arrumado junto à parede ou próximo, impossibilitando a roda mas criando o
semicírculo, a volta à roda da lareira, viva onde haja inverno frio. (...)
A pedra que defende o lume diz-se lar e daí ―larários‖ os deuses domésticos e a
comunidade familiar, casa, ambiente íntimo e sagrado do lar. O fogo, assando, tostando caça,
pesca, raízes, frutos, daria depois a cerâmica, os alimentos conservados, a têmpera dos metais.
Significaria o sol, a pureza, a perpetuidade do espírito, alma, a fé; com o corpo sacerdotal,
virgens votivas, vigilantes e puras, guarda do fogo sagrado, o derradeiro culto que se apagaria
na Roma Imperial.

CASCUDO, Luís da Câmara. Civilização e Cultura. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973, p.157-161.

134
BACHELARD: O ESPÍRITO CIENTÍFICO
Gaston Bachelard (1884-1962) foi um filósofo francês
cujas reflexões sobre a ciências se tornaram referência. No trecho
abaixo, retirado da obra A Formação do Espírito Científico,
Bachelard destaca qual deve ser a postura do cientista, quais
hábitos deve vencer, etc. Leia o texto e responda: 1) Por que a
ciência se opõe à opinião? 2) Defina, de acordo com o autor,
―instinto formativo‖ e ―instinto conservativo‖. 3) Faça uma
reflexão sobre a nossa disciplina: é possível o ―espírito
científico‖ na Sociologia? Justifique. 4) Reflita se é possível
utilizar o ―espírito científico‖ em áreas como Política, por
exemplo, e como a opinião das pessoas não versadas no assunto
pode criar concepções equivocadas em tal área.

A ciência, tanto por sua necessidade de coroamento como por princípio, opõe-
se absolutamente à opinião. Se, em determinada questão, ela legitimar a opinião, é por
motivos diversos daqueles que dão origem à opinião; de modo que a opinião está, de
direito, sempre errada. A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em
conhecimento. Ao designar os objetos pela utilidade, ela se impede de conhece-los.
Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la. Ela é o
primeiro obstáculo a ser superado. Não basta, por exemplo, corrigi-la em determinados
pontos, mantendo, como uma espécie de moral provisória, um conhecimento vulgar
provisório. O espírito científico proíbe que tenhamos uma opinião sobre questões que
não compreendemos, sobre questões que não sabemos formular com clareza. Em
primeiro lugar, é preciso saber formular problemas. E, digam o que disserem, na vida
científica os problemas não se formulam de modo espontâneo. É justamente esse
sentido do problema que caracteriza o verdadeiro espírito científico. Para o espírito
científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode
haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído.
O conhecimento adquirido pelo esforço científico pode declinar. A pergunta
abstrata e franca se desgasta: a resposta concreta fica. A partir daí, a atividade espiritual
se inverte e se bloqueia. Um obstáculo epistemológico se incrusta no conhecimento não
questionado. Hábitos intelectuais que foram úteis e sadios podem, com o tempo,
entravar a pesquisa. Bergson diz com justeza: ―Nosso espírito tem a tendência
irresistível de considerar como mais clara a ideia que costuma utilizar com frequência‖.
A ideia ganha assim uma clareza intrínseca abusiva. Com o uso, as ideias se valorizam
indevidamente. Um valor em si opõe-se à circulação dos valores. É fator de inércia
para o espírito. Às vezes, uma ideia dominante polariza todo o espírito. Um
epistemólogo irreverente dizia, há vinte anos, que os grandes homens são úteis à
ciência na primeira metade de sua vida e nocivos na outra metade. O instinto formativo
é tão persistente em alguns pensadores, que essa pilhéria não deve surpreender. Mas, o
instinto formativo acaba por ceder a vez ao instinto conservativo. Chega o momento em
que o espírito prefere o que confirma seu saber àquilo que o contradiz, em que gosta
mais de respostas do que de perguntas. O instinto conservativo passa então a dominar,
e cessa o crescimento espiritual.

BACHELARD, G. A Formação do Espírito Científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p.18-19.

135
CIÊNCIA: EXPERIÊNCIA, PODER E PAIXÃO
O trecho abaixo foi retirado da obra Uma História da Ciência, escrito por
Michael Mosley e John Lynch. Nesta obra, os autores procuram mostrar de que modo o
contexto histórico influencia o desenrolar das pesquisas científicas.
Leia o texto abaixo e responda: 1) De que modo um avanço científico influencia
em outras áreas da ciência? Cite exemplos diferentes daqueles mostrados no texto
abaixo. 2) Newton e Leibniz inventaram o cálculo diferencial quase que ao mesmo
tempo. De acordo com o texto abaixo, por que isso ocorre muitas vezes no meio
científico? 3) De que modo a busca pelo lucro ou a ambição financeira contribuem para
o avanço da ciência? Novamente, mostre exemplos diferentes daqueles que foram
citados no texto abaixo.

A ciência está de tal modo intrincada em nossas vidas que mal notamos sua
presença. Nossas redes de comunicações móveis depende da mecânica orbital, que
permite o posicionamento de satélites no céu; da química do combustível de foguetes;
dos materiais usados em plásticos e chips de silício dos computadores, telefones e
baterias. A medicina moderna depende não só do conhecimento aprofundado da
bioquímica das células, mas também de um entendimento profundo da estrutura
atômica da matéria, permitindo o exame de órgãos e ossos, e o diagnóstico das
doenças. O acesso à energia que alimenta nossas vidas agitadas depende da
compreensão da geologia das profundezas da Terra e das leis da termodinâmica. Nossa
capacidade de cultivar o solo e produzir alimentos depende da manipulação, pelos
biólogos, do processo evolutivo de animais e plantas que vivem conosco. Nada do que
fazemos hoje é intocado pela ciência. Se entendermos melhor como se chega a essa
situação, estaremos mais bem-preparados para responder às incertezas do futuro.
A história da ciência muitas vezes é narrada como uma série de grandes
avanços, revoluções e lampejos de genialidade dos cientistas. Mas sempre há um antes,
um depois e um contexto histórico. O desenvolvimento científico não se dá no vazio
nem numa torre de marfim. A ciência sempre foi parte do mundo em que é praticada, e
este mundo está sujeito a todas as complexidades da política, da personalidade, da
paixão e do lucro. Portanto, no desenrolar dessa história, encontraremos personagens
que trabalharam na atmosfera política e religiosa em que respiravam e estavam sujeitos
às mesmas pressões que aqueles que viviam à sua volta. Somente se entendermos seu
mundo poderemos compreender por que os extraordinários progressos da ciência
aconteceram onde e quando se deram.
Na história da ciência, muitas vezes se constata que as descobertas são feitas,
mais ou menos ao mesmo tempo, por pessoas diferentes. Charles Darwin desenvolveu
a teoria da evolução por seleção natural ao longo de alguns anos, em meados do século
XIX. Enquanto isso, outro homem, Alfred Russel Wallace, também formulou, de
maneira independente, uma teoria que, em muitos aspectos, era incrivelmente parecida.
Por quê? A ideia de que a diversidade do mundo natural podia ser explicada
pela evolução já era muito debatida; Darwin e Wallace faziam parte de um mundo
sedento de viagens e explorações, e, em suas expedições, viram coisas que os
intrigaram; os dois haviam lido um livro de Thomas Malthus que explicava como as
populações se mantêm sob controle pela fome e pelas doenças. Acima de tudo, eles
partilhavam a mesma atmosfera histórica, uma sociedade movida pela competição. A
vida vitoriana era dominada pela ideia de progresso, e as consequências do sucesso ou
do fracasso em se adaptar ao ambiente comercial e industrial se faziam sentir em todas
as camadas sociais. Foi no contexto dessa combinação de fatores que ambos se

136
inspiraram para concluir que a pressão da seleção natural podia ser a força motriz da
evolução.
A conjuntura na qual se deu o avanço do conhecimento científico não significa
apenas acontecimentos históricos. Invenções e descobertas tecnológicas, direta ou
indiretamente, foram essenciais para a história da ciência. No início do século XV, a
invenção da imprensa (da imprensa com tipos móveis), atribuída ao alemão Johann
Gutenberg, teve uma série de resultados científicos. Os efeitos desse evento singular se
propagaram pelo mundo conhecido e se expandiram com o passar dos séculos, dando
origem à primeira revolução das informações. Antes, para todos os efeitos, o
conhecimento era limitado pelo alto custo da produção de livros, que deveriam ser
copiados à mão. No início daquele século, uma pessoa instruída possuía no máximo
meia dúzia de volumes. Depois da invenção da imprensa, era possível ter uma
biblioteca, uma coleção de títulos sobre diferentes assuntos que não necessariamente
concordavam uns com os outros. Os volumes impressos eram veículo de pensamento
contemporâneo em todas as áreas – científica, literária e religiosa –, estimulando o
questionamento das autoridades tradicionais. Mas há um aspecto pouco considerado na
invenção da imprensa. A leitura passava a ser uma atividade privada; não estava mais
sujeita a qualquer supervisão. Esta foi uma de muitas mudanças que ajudaram a moldar
as criativas mentes individuais responsáveis por futuras conquistas científicas.
A disponibilidade de novas tecnologias muitas vezes produziu grandes avanços
em áreas da ciência nas quais, de um momento para o outro, se tornava possível medir
e observar coisas até então impensáveis. Os exemplos mais óbvios são o telescópio e o
microscópio, que transformaram a compreensão do cosmo e o funcionamento da célula
viva. Contudo, muitas das invenções tecnológicas e dos avanços da ciência que vieram
depois desses aparelhos surgiram por motivos nada científicos, como o motor a vapor,
criado para suprir uma necessidade comercial – sua invenção foi obra de engenheiros
práticos que só queriam ganhar algum dinheiro. Uma vez produzido, o mecanismo
converteu-se em objeto de estudo, e os cientistas tentaram entender os princípios da
energia que possibilitavam seu funcionamento. O resultado disso foi a descoberta de
leis fundamentais da física que corroboravam a natureza de nosso Universo.
Como em outros ramos da atividade, as pressões financeiras desempenharam
papel significativo no progresso da ciência, ditando seus rumos. O uso do telescópio
por Galileu no estudo dos astros foi em grande parte movido por dinheiro. Quando
ouviu os primeiros rumores sobre o novo e maravilhoso invento, o ―óculo espião‖, ele
se entusiasmou e agiu porque estava em difícil situação financeira – ele era um
professor de matemática de meia-idade, sem muitas perspectivas, e precisava melhorar
de status e de finanças. A notícia da invenção do telescópio deve ter parecido um
presente dos céus, a oportunidade de impressionar um novo mecenas entre as famílias
ricas da Itália no século XVII. Claro que ele não fazia a menor ideia de como seu uso
brilhante do dispositivo revolucionaria a ciência do cosmo.
Em escala um pouco maior, os exploradores e botânicos que se lançaram em
expedições rumo ao desconhecido no decorrer dos séculos XVII e XVIII pelos menos
em parte foram motivados pela procura de novas espécies passíveis de exploração
comercial. Antigos aventureiros já haviam revelado a fabulosa riqueza que podia ser
obtida com a descoberta e venda, no Velho Mundo, de plantas como o tabaco. A busca
do ouro verde trouxe novos conhecimentos sobre a vida no planeta e incentivou uma
outra compreensão de nossas origens animais.

MOSLEY, M.; LYNCH, J. Uma História da Ciência. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p.9-11.

137
CIÊNCIA: INCENTIVOS PRIVADOS x ESTATAIS
Assim como no caso da educação, há um debate atual no mundo todo sobre
quais seriam as responsabilidades do Estado no desenvolvimento científico de um país.
Alguns julgam que o Estado deveria investir pesado em pesquisas científicas nas
universidades e institutos, como se a sobrevivência desta, a ciência, dependesse disso-
assim como julgam que sem o investimento do Estado não haveria educação. Dessa
forma, em muitos países do mundo, somas vultuosas são destinadas ao setor de
pesquisas tecnológicas e científicas.
Entretanto, há também um questionamento em torno desse assunto, da mesma
maneira como foi feito em relação à educação. Se observarmos a história da ciência,
veremos que a maioria das pesquisas e descobertas úteis à humanidade vieram de
esforços individuais, privados, e não de centros de pesquisa estatais. Conforme escreveu
o economista Milton Friedman:

Os grandes avanços da civilização – quer na arquitetura ou na pintura, quer na ciência


ou na literatura, quer na indústria ou na agricultura – nunca vieram de governos
centralizados. In: Capitalismo e Liberdade

Devemos acrescentar também que as melhores universidades e centros de


pesquisas do mundo são privados, e não estatais. No Brasil, onde predomina o
monopólio estatal sobre a pesquisa e a ciência, quase não há produção relevante nesta
área, sendo que resultados significativos surgem raramente.
O texto abaixo, escrito por Rodrigo Constantino, e retirado da obra Privatize Já,
procura lançar algumas luzes sobre essa questão. Enquanto lê o texto, reflita sobre as
seguintes questões: 1) De que maneira empresas privadas podem trazer benefícios à
população, se pensam somente no lucro? 2) Por que as estatais são ineficientes, segundo
o texto? 3) De acordo com o texto, qual o caminho para que a ciência prospere num
país? Justifique.

Quando diversas empresas precisam concorrer em um mercado altamente


competitivo, elas são guiadas por uma ―mão invisível‖ para atender diferentes
demandas existentes. É por essa razão que tantos laboratórios farmacêuticos investem
bilhões em pesquisa para fornecer, no mercado, novos e melhores remédios. Não é
porque são obrigados pelo governo, ou porque leis exigem que essas empresas criem
novos produtos por bondade. Elas querem lucrar bilhões de dólares – e conseguirão
atingir esse objetivo se descobrirem curas, vacinas e remédios.
Os laboratórios eficientes lucram mais, podem investir e crescer, e sobrevivem.
Lembremos o caso recente do Truvada, desenvolvido pelo laboratório Gilead Sciences,
que pode reduzir em até 73% o risco de contração do HIV, vírus da AIDS. Trata-se de
mais um golaço do capitalismo, possível porque o laboratório estava em busca de
lucro, investindo pesado em pesquisa (mais de 1 bilhão de dólares só em 2011), graças
ao seu faturamento acima de 8 bilhões no último ano. Os supermercados investem em
mais comodidade para os clientes, as fábricas de telefones criam celulares com dois
chips, rádio e câmeras a preços cada vez menores, as lojas de móveis ficam atentas às
necessidades domésticas, todos pelo mesmo motivo: desejam o lucro.
Imagine, por exemplo, o que seria do exame pré-natal sem empresas
competindo para lucrar bilhões de dólares. Desde os anos 60, diversas companhias
entraram numa corrida tecnológica para conseguir desenvolver um aparelho acessível

138
que mostrasse o feto ao vivo, capaz de encantar os pais e detectar más-formações antes
do nascimento. Mais de quarenta empresas participam dessa competição nos anos 80,
entre elas gigantes como a Toshiba, a General Electric e a Siemens. Mas a disputa
acabou sendo vencida por uma empresa menor, a Acuson, que criou o primeiro sistema
completamente informatizado de ultrassonografia.
Não foi a bondade de cientistas e executivos que os fez criar essa maravilha
tecnológica, mas o desejo de lucrar. O que de fato aconteceu: em 2000 a Acuson foi
vendida para a Siemens por 700 milhões de dólares. (...)
É o escrutínio dos acionistas interessados na rentabilidade do negócio que
garante essa eficiência e essa inovação. Se os pesquisadores ficarem jogando paciência
no computador em vez de trabalhar, ou perdendo tempo demais com bate-papo sobre
futebol na cafeteria, são os seus lucros que ficarão reduzidos. Eles têm total interesse,
portanto, na busca por excelência da empresa. Para isso, precisam motivar os
funcionários, oferecendo vantagens e benefícios, especialmente para os melhores. A
meritocracia é o corolário da propriedade privada. Os donos punem a incompetência e
premiam o sucesso, pois essa é a melhor forma de seus negócios prosperarem.
No comércio livre, portanto, quem deixar de oferecer um serviço melhor e mais
barato vai logo ser ultrapassado por um concorrente. (...) A IBM era a gigante do setor
de tecnologia, fundada ainda no século 19. A especialidade da empresa era a fabricação
de hardware, mas novos concorrentes conseguiram ultrapassar a empresa nessa área.
Ficasse ela imóvel e acomodada como uma típica estatal, e teria inevitavelmente
sucumbido. Mas a empresa conseguiu se reinventar, mudou seu foco para serviços e
soluções de tecnologia, desfez-se de vários negócios, e não só sobreviveu, como
deslanchou. (...)
Basta comparar o caso da IBM com a realidade da grande maioria das
repartições públicas e empresas estatais. Os donos não estão presentes na empresa, pois
os acionistas estão diluídos por toda a população, sem que cada um tenha poder e
controle sobre sua fatia. O funcionário da estatal descobre que a troca de favores e a
afinidade ideológica com o chefe são formas mais eficazes de promoção do que sua
eficiência e trabalho duro.
O lucro da empresa perde importância, pois não há cobrança dos sócios e os
benefícios não ficam com os funcionários mais eficientes. Se a empresa estatal oferecer
produtos ruins e caros, não corre o risco de fechar as portas. Há até uma inversão nesse
incentivo: uma área deficitária de uma estatal pode muito bem demandar mais verbas
públicas, pois pode alegar que faltam recursos para oferecer melhores serviços. O
fracasso é premiado ao invés de ser punido. Isso ocorre o tempo todo no setor público
de todo o mundo. (...)
Se no livre mercado uma empresa privada for ineficiente, ela irá à falência. Essa
pressão obriga as empresas privadas a melhorar, ou desaparecer, cedendo lugar para
outras mais competentes. Nas estatais, essa pressão não se faz presente, pois, quando
elas ―quebram‖, basta o governo aportar mais capital, dinheiro da ―viúva‖, que a vida
continua.
Uma das maiores inversões comuns ao discurso de esquerda é que empresários
só focam no curto prazo, enquanto os políticos vão cuidar dos interesses da nação no
longo prazo. É justamente o contrário: como o empresário é dono do seu negócio, ele
tem total interesse em preservá-lo lucrativo ao longo do tempo, pois isso aumenta seu
fluxo de caixa e o valor presente do seu ativo. Já os políticos que controlam estatais
vivem de olho nas próximas eleições.

CONSTANTINO, R. Privatize Já. São Paulo: Leya, 2012, p.23-28.

139
ORGANIZAÇÃO
A organização finaliza a nossa lista de instituições. Não é por acaso que ela foi
colocada por último: além de ser um fenômeno tipicamente atual, ela é notável pelo fato
de modificar todas as outras instituições, não apenas no sentido de influenciá-las –
como ocorre na influência mútua entre as instituições já vistas – mas principalmente por
impor às demais instituições sua forma de estruturação e arranjo, sua lógica e seus
padrões de racionalização. Isso significa que escolas, igrejas, hospitais, etc. tendem a se
organizar segundo os princípios adotados em empresas, corporações, etc. Isso será
melhor analisado nos textos seguintes.
Tradicionalmente, não há na Sociologia estudos satisfatórios sobre a
organização, razão pela qual ela está ausente das listas de instituições estudadas por esta
disciplina. O objetivo nesta parte é justamente suprir tal lacuna, mostrando a
importância da organização para o mundo atual e os desafios de se pensar a sociedade a
partir da presença desse importante elemento. Um esforço que exige mudança de
paradigma e a necessidade de se pensar a sociedade do século XXI para além dos
antigos esquemas simplificadores como classe, dominação, exploração, etc.
A organização não é sinônimo de corporação, sendo esta apenas um tipo
daquela. E também nem toda organização tem fins econômicos. São tão heterogêneas
quanto possível. Esses assuntos também serão vistos nos textos a seguir.
O desenvolvimento da organização fez surgir novas formas de comércio, de
relações entre fornecedores e clientes, de empresas entre si; deu origem a conceitos
novos como Cadeia de Suprimentos, que é mais um novo paradigma a ser considerado
no estudo da sociedade, e novamente ignorado pela Sociologia tradicional.
A leitura dos textos a seguir o ajudará a entender melhor todas essas questões.

140
CHIAVENATO: IMPORTÂNCIA DAS ORGANIZAÇÕES
O texto abaixo foi retirado da obra Administração, de Idalberto Chiavenato
(1936). Leia-a e responda: 1) O que é uma organização? Cite exemplos. 2) Qual a
relação entre as organizações e a sociedade em geral? 3) Se pensarmos na organização
como uma instituição, no que ela se difere das demais instituições vistas até aqui?

Vivemos em um mundo de organizações. Tudo o que a sociedade requer e do


qual necessita é inventado, criado, desenvolvido, produzido e comercializado por
organizações. As organizações são extremamente heterogêneas e bem diferenciadas:
organizações governamentais (como ministérios, secretarias, repartições públicas),
organizações não-governamentais (ONGs como o terceiro setor, que envolve atividades
culturais, sociais, filantrópicas, de representação), empresas em geral (indústrias,
bancos, comércio, entretenimento, informação, energia, segurança). Além disso, as
organizações podem se apresentar em diversas dimensões e tamanhos: grandes, médias,
pequenas, microempresas, empreendimentos, etc.
As organizações não funcionam ao léu. Elas não sobrevivem, crescem ou se
tornam bem-sucedidas por mero acaso. O sucesso organizacional não é fruto exclusivo
da sorte, mas de uma série infindável e articulada de decisões, ações, aglutinação de
recursos, competências, estratégias e uma busca permanente de objetivos para alcançar
resultados cada vez melhores. O que leva uma organização rumo à excelência e ao
sucesso não são apenas produtos, serviços, competências e recursos. É o modo como
ela arranja tudo isso e é administrada. A administração é o veículo pelo qual as
organizações são alinhadas e conduzidas para alcançar excelência em suas ações e
operações para chegar ao êxito no alcance de resultados. Administração é antes de tudo
alcançar resultados com os meios de que se dispõe. Fazer maravilhas com os recursos e
competências disponíveis. Esse é o encanto da administração: transformar recursos e
competências em resultados tangíveis e extraordinários. A administração é a maneira
pela qual as coisas acontecem nas organizações. Sem ela o mundo moderno jamais
seria o que é hoje. (...)
Em toda a sua história, o ser humano sempre inventou maneiras de melhor
aplicar seus esforços para, assim, conseguir melhores resultados de suas ações. E isso
ficou evidenciado a partir do momento em que aprendeu a reunir forças, juntou
pessoas, ideias e experiências e passou a trabalhar em conjunto. Foi a etapa em que o
ser humano inventou a organização – o motor do desenvolvimento econômico e social
responsável por nossa chegada ao mundo moderno, o carro-chefe da inovação e da
transformação da sociedade contemporânea.
Entre todas as criações do homem, a que avulta e sobressai por ser a mais
complexa e maravilhosa é indiscutivelmente a organização – a forma organizada de
trabalhar, criar, projetar, produzir e distribuir bens e serviços. Não existem duas
organizações iguais; cada qual tem sua personalidade própria, sua natureza especial,
suas características ímpares, desempenho e resultados. (...)
As organizações operam em ambientes diferentes, rodeadas de um universo de
fatores econômicos, políticos, tecnológicos, legais, sociais, culturais e demográficos
que interagem entre si e se alternam constantemente, proporcionando um campo
dinâmico de forças caracterizado por enorme mudança e instabilidade ao redor. No
fundo, as organizações recebem influências de seu meio ambiente, mas, em
contrapartida, nele também provocam profundas influências.

CHIAVENATO, I. Administração. RJ: Elsevier; São Paulo: Anhanguera, 2010, p.2-3.

141
TAYLOR: ADMINISTRAÇÃO CIENTÍFICA
O texto a seguir foi escrito por Richard L. Daft, retirado da obra Administração.
Nessa parte, o autor destaca os feitos e contribuições do engenheiro Frederick Winslow
Taylor para a área da administração científica, bem como de Henry Gantt e do casal
Frank B. Gilbreth e Lilian M. Gilbreth. Leia-o e responda: 1) Qual a importância da
administração científica para as organizações? 2) De que modo o aumento da eficiência
produtiva nas organizações pode beneficiar as sociedades? 3) Quais as principais ideias
científicas defendidas por Taylor? 4) Qual a relação entre desenvolvimento das
organizações e desenvolvimento da ciência?

O sucesso um tanto limitado das organizações em alcançar melhorias na


produtividade da mão-de-obra levou um jovem engenheiro a sugerir que o problema
estava mais nas práticas administrativas do que na mão-de-obra. Frederick Winslow
Taylor (1856-1915) insistia que a gerência em si teria de mudar e, além disso, que o
modo da mudança deveria ser determinado apenas pelo estudo científico;
consequentemente, o rótulo administração científica emergiu. Taylor sugeria que as
decisões baseadas nas regras gerais e na tradição fossem substituídas por
procedimentos precisos desenvolvidos depois de um estudo cuidadoso das situações
individuais.
A filosofia de Taylor está sintetizada na sua declaração, ―No passado o homem
havia sido o primeiro. No futuro, o sistema deve ser o primeiro‖. A abordagem da
administração científica é ilustrada pelo descarregamento de ferro dos vagões de trens e
carregamento do aço acabado na siderúrgica de Bethlehem Steel em 1898. Taylor
calculava que com movimentos, ferramentas e sequência corretos, cada homem
conseguia carregar 47,5 toneladas por dia em vez das 12,5 toneladas normais. Ele
também elaborou um sistema de incentivo que pagava para cada homem 1,85 dólar por
dia por cumprir o novo padrão, um aumento da taxa anterior de 1,15 dólar. A
produtividade na Bethlehem Steel Aumentou da noite para o dia.
Embora tenha sido conhecido como o ―pai da administração científica‖, Taylor
não estava só nessa área. Henry Gantt, um associado de Taylor, desenvolveu o Gráfico
de Gantt – um gráfico de barras que mede o trabalho planejado e concluído ao longo de
cada estágio de produção por tempo decorrido. Dois outros importantes pioneiros nessa
área foram o casal Frank B. e Lilian M. Gilbreth. Frank B. Gilbreth (1868-1924) foi
pioneiro no estudo de tempos e movimentos e chegou a muitas de suas técnicas
administrativas independentemente de Taylor. Ele enfatizava a eficiência e ficou
conhecido pela sua busca em encontrar ―uma maneira mehor‖ de fazer o trabalho.
Embora Gilbreth seja conhecido por um estudo anterior com pedreiros, este trabalho
teve um grande impacto nas cirurgias médicas, reduzindo drasticamente o tempo que
os pacientes ficavam nas mesas de operação. Os cirurgiões conseguiram salvar
inúmeras vidas mediante a aplicação do estudo de tempos e movimentos. Lilian M.
Gilbreth (1878-1972) estava mais interessada no aspecto humano do trabalho. Quando
seu marido morreu, com 56 anos, ela tinha 12 filhos com idades entre 2 e 19. A
destemida ―primeira-dama da administração‖ seguiu em frente e apresentou um
trabalho no lugar de seu falecido marido, continuou com seus seminários e
consultorias, deu palestras e tornou-se professora da Universidade de Purdue. Ela foi
pioneira no campo da psicologia industrial e fez contribuições substanciais para a
administração científica dos recursos humanos.

DRAFT, R. L. Administração. São Paulo: Thomson Learning, 2007, p.31-2.

142
BARNARD: A ORGANIZAÇÃO É UM SISTEMA
DE FORÇAS COORDENADAS CONSCIENTEMENTE
O texto abaixo foi escrito por Arménio Rego e Miguel Pina e Cunha,
prefaciando a obra As Funções do Executivo, de Chester Barnard (1886-1961). Barnard
foi um pioneiro na área que mais tarde ficou conhecida como cultura organizacional.
Ele definiu a organização como um sistema de atividades pessoais ou de forças
coordenadas conscientemente; salientou que a boa vontade, a espontaneidade e a
disposição para cooperar eram condições fundamentais para que se levassem adiante
atividades numa organização. Barnard definiu ―conceitos estruturais‖ e ―conceitos
dinâmicos‖. Os conceitos estruturais eram o indivíduo, o sistema cooperativo, a
organização formal e o conjunto organização formal/informal, enquanto que os
conceitos dinâmicos eram o livre arbítrio, a cooperação, a comunicação, a autoridade, o
processo de decisão e o equilíbrio dinâmico.
Leia o texto e responda: 1) Para Barnard, por que o desejo de cooperação não
poderia basear-se fundamentalmente em incentivos monetários?

Barnard foi, pois, um teórico com experiência prática, e um prático dotado de


perspicácia teórica. Os seus contatos com acadêmicos vários, sobretudo de Harvard,
posicionaram-no no seio de um grupo preocupado em desenvolver quadros teóricos
que explicassem o comportamento humano nas organizações. Foi nessa moldura
intelectual que Barnard escreveu The Functions of the Executive, publicado em 1938.
Nele procurou sistematizar conhecimento emergente da interação entre as suas próprias
experiências e os quadros conceituais desenvolvidos na sua rede de académicos.
Para Barnard, as organizações deveriam ser consideradas sistemas cooperativos
capazes de integrar as contribuições dos seus participantes individuais. A cooperação e
a coordenação encontrar-se-iam, pois, no cerne da atividade da gestão, como corolário
da definição de organização proposta pelo autor:
―Um sistema cooperativo é um complexo de componentes físicos,
biológicos, pessoais e sociais que estão numa relação sistemática
específica devido à cooperação de duas ou mais pessoas com
vista a pelo menos uma finalidade‖.
Um dos problemas mais complexos da atividade de gestão constitui o cerne da
obra de Barnard: como pode a organização estabelecer objetivos a partir do topo e
esperar que esses objetivos sejam voluntariamente abraçados na base? Até hoje, as
organizações debatem-se com este problema. Barnard considerava que o desejo de
cooperação não poderia basear-se fundamentalmente nos incentivos monetários. Para
ele, essa vontade teria que brotar de um imperativo moral partilhado entre os gestores e
o resto da organização. A função essencial do executivo seria, por conseguinte, a
criação de um código moral para os membros da organização.
Este código deveria criar um propósito comum e suscitar a lealdade e a adesão
aos valores organizacionais. O bom sistema cooperativo sobrepor-se-ia aos pequenos
ditames dos códigos e interesses pessoais. De novo, a função essencial do executivo
consistiria em gerar a crença num propósito comum. Se o gestor seria capaz de
desenhar sistemas eficientes, do executivo esperar-se-ia, na perspectiva barnardiana,
algo mais: a descoberta e a promulgação da visão moral da organização, capaz de
suscitar empenhamento voluntário.

BARNARD, C. I. As Funções do Executivo. Lisboa: Edições Sílabo, 2019, p.7-8.

143
ORGANIZAÇÕES E CADEIA DE SUPRIMENTOS
O texto abaixo é de Martin Christopher, retirado da obra Logística Empresarial.
Leia-a e responda: 1) O que é a cadeia de suprimentos (Supply Chain)? 2) De que
maneira o gerenciamento da cadeia de suprimentos está mudando os paradigmas das
organizações?

Tradicionalmente, a maior parte das organizações vê-se como agentes que


existem independentemente de outras e que, de fato, precisam competir com elas para
sobreviver. Há quase uma ética darwiniana da ―sobrevivência do mais adaptado‖ a
orientar boa parte da estratégia corporativa. No entanto, tal filosofia pode ser
autodestrutiva caso ela incentive a competição em vez da cooperação. Por trás desse
conceito aparentemente paradoxal está a ideia de integração da cadeia de suprimentos.
A cadeia de suprimentos é a rede de organizações envolvidas, por meio de
vínculos a montante e a jusante, nos diferentes processos e atividades que produzem
valor na forma de produtos e serviços destinados ao consumidor final. Assim, por
exemplo, um fabricante de camisas faz parte de uma cadeia de suprimentos que se
estende a montante passando pelos fabricantes de tecidos e de fibras, e a jusante
passando pelos distribuidores e por aqueles que revendem ao consumidor final. Cada
uma dessas organizações, por definição, depende da outra e, no entanto,
paradoxalmente, por tradição, não cooperam em alto grau entre si.
Gerenciamento da cadeia de suprimentos não é o mesmo que ―integração
vertical‖. A integração vertical normalmente implica ser o proprietário de fornecedores
a montante e de clientes a jusante. Essa já foi considerada uma estratégia desejável,
mas, atualmente, cada vez mais as organizações se concentram no seu ―negócio
principal‖ – em outras palavras, naquilo que elas sabem fazer bem e onde podem obter
vantagem competitiva. Tudo mais é ―terceirizado‖ – em outras palavras, é adquirido
fora da empresa. Assim, por exemplo, empresas que antes talvez fizessem seus
próprios componentes, agora apenas montam o produto final, como o fazem os
fabricantes de automóvel. Outras empresas também podem subcontratar a fabricação;
por exemplo, a Nike, em calçados e roupas esportivas. Às vezes, essas empresas têm
sido chamadas organizações ―virtuais‖ ou ―em rede‖.
É claro que essa tendência tem muitas implicações para o gerenciamento da
cadeia de suprimentos, não sendo menos importante o desafio de integrar e coordenar o
fluxo de materiais provindos de grande número de fornecedores, geralmente
estrangeiros, e igualmente gerenciando a distribuição do produto final por vários
intermediários.
No passado, o relacionamento com fornecedores e clientes a jusante (como
distribuidores ou varejistas) costumava ser mais antagônico que cooperativo. Ainda
hoje algumas empresas procuram obter reduções de custo ou aumento do lucro à custa
de seus parceiros da cadeia de suprimentos. Empresas como estas não percebem que a
simples transferência de custos a montante e a jusante não as torna mais competitivas.
A razão para tanto é que, no final das contas, todos os custos seguirão para o mercado
final e serão refletidos no preço pago pelo consumido final. As empresas de ponta
reconhecem a falácia desse método convencional e, em vez disso, procuram tornar a
cadeia de suprimentos mais competitiva como um todo por meio do valor agragado e
da redução geral de custos. Elas perceberam que a verdadeira competição não é a de
empresa contra empresa, mas cadeia de suprimentos contra cadeia de suprimentos.

CHRISTOPHER, M. Logística Empresarial. São Paulo: Cengage Learning, 2009, p.16-17.

144
A SOCIEDADE DAS ORGANIZAÇÕES
O autor do texto abaixo, Peter Drucker (1909-2005), é
considerado um dos grandes nomes da administração moderna.
Seu maior enfoque é o estudo da organização e o comportamento
das pessoas na organização, entendida como uma instituição com
fins especiais. De acordo com ele, todas as instituições sociais
estão convergindo para um tipo de arranjo, um tipo de formação,
que tem por base a lógica das organizações, e inclusive isto seria o
que está unindo, cada vez mais, instituições que tiveram origens e
propósitos diferentes na história.
O trecho a seguir foi retirado da obra Sociedade Pós-
Capitalista. Leia-o e responda: 1) O que é uma organização e qual a sua função? 2)
Qual a diferença entre instituições como hospital, escolas, etc. e uma organização? 3)
Por que o estudo da organização é tão negligenciado por sociólogos e cientistas
sociais/políticos, segundo o autor?
Uma organização é um grupo humano, composto por especialistas que trabalham em
conjunto em uma tarefa comum. Ao contrário da sociedade, da comunidade ou da família – os
agregados sociais tradicionais – uma organização não é concebida e baseada na natureza
psicológica dos seres humanos, nem em suas necessidades biológicas. Contudo, embora seja
uma criação humana, ela é feita par durar – talvez não para sempre, mas por um período de
tempo considerável.
Uma organização é sempre especializada. Ela é definida por sua tarefa. A comunidade
e a sociedade, em contraste, são definidas por um elo que mantém os seres humanos unidos,
seja ele o idioma, a cultura, a história ou a localização. Uma organização é eficaz somente se se
concentra em uma tarefa. A orquestra sinfônica não tenta curar doentes; ela toca música. O
hospital cuida de doentes, mas não tenta tocar Beethoven. Um clube de alpinismo, formado
para escalar os picos do Himalaia, não cuida dos desabrigados do Nepal, por piores que sejam
as suas condições. A escola concentra-se em ensino e aprendizado, a empresa em produzir bens
e serviços, a igreja em converter pecadores e salvar almas, os tribunais em resolver conflitos,
os militares em combater em guerras, a American Heart Association na pesquisa e na
prevenção da degeneração cardíaca e de moléstias circulatórias. A sociedade, a comunicação e
a família são; as organizações fazem. (...)
Em todos os países desenvolvidos, a sociedade transformou-se em uma sociedade de
organizações, na qual todas ou quase todas as tarefas são feitas em e por uma organização:
empresas e sindicatos; as forças armadas e os hospitais; escolas e universidades; uma série de
serviços comunitários – alguns deles repartições públicas, muitas outras (especialmente nos
Estados Unidos) instituições sem fins lucrativos do ―setor social‖. Mas também há as
orquestras sinfônicas – centenas delas nos Estados Unidos –, os museus e as fundações,
associações comerciais e defensores dos consumidores e assim por diante.
Contudo, ninguém nos Estados Unidos – ou em qualquer outro lugar – falava em
―organizações‖ até depois da Segunda Guerra Mundial. Mais uma vez, o Concise Oxford, o
respeitado dicionário inglês, não continha o termo em seu atual significado na edição de 1950.
Os cientistas políticos e sociais falam em ―governo‖ e ―empresa‖, de ―sociedade‖, ―tribo‖,
―comunidade‖ e ―família‖. Mas ―organização‖ ainda não entrou no vocabulário político,
econômico e sociológico. (...)
A função das organizações é tornar produtivos os conhecimentos. As organizações
tornam-se fundamentais para a sociedade em todos os países desenvolvidos, devido à passagem
de conhecimento para conhecimentos.
Quanto mais especializados forem os conhecimentos, mais eficazes serão. Os melhores
radiologistas não são aqueles que mais conhecem a respeito de medicina; são os especialistas
que sabem como obter imagens do interior do corpo através de raios-X, ultrassom, tomografia

145
computadorizada ou ressonância magnética. Os melhores pesquisadores de mercado não são
aqueles que mais conhecem a respeito de pesquisa de mercado. Entretanto, nem os
radiologistas nem os pesquisadores de mercado obtêm resultados sozinhos; seu trabalho é
somente um ―insumo‖, que não se transforma em resultado a menos que seja juntado ao
trabalho de outros especialistas.
Os conhecimentos por si mesmos são estéreis. Eles somente se tornam produtivos se
forem soldados em um só conhecimento unificado. Tornar isso possível é a tarefa da
organização, a razão para a sua existência, a sua função.
Hoje em dia certamente exageramos na especialização, em especial nos meios
acadêmicos. Mas a cura não está em se tentar dar aos especialistas uma ―educação liberal‖ para
transformá-los em ―generalistas‖ (como eu mesmo costumava propor durante muitos anos).
Hoje sabemos que isso não funciona. Os especialistas são eficazes somente como especialistas
– e os trabalhadores de conhecimento precisam ser eficazes. Os mais eficazes deles querem ser
somente especialistas restritos. Os neurocirurgiões ficam melhores com a prática; os tocadores
de trompa de pistões não tocam violino, nem deveriam. Os especialistas precisam ser expostos
ao universo do conhecimento. Mas eles necessitam trabalhar como especialistas, e se
concentrar em ser especialistas. E para que isso produza resultados, é necessária uma
organização.
Por que levou tanto tempo para que os estudiosos reconhecessem a organização, apesar
dela ter ser tornado uma realidade social predominante décadas atrás? A resposta nos revela
muito a respeito de organização.
Não é de se surpreender que os advogados não se tenham preocupado com este novo
fenômeno. ―Organização‖ não é um termo legal, assim como ―comunidade‖ e ―sociedade‖, e
também não é um termo econômico. Algumas organizações têm objetivos econômicos,
influenciam a economia e são por ela influenciadas, como no caso de empresas e sindicatos.
Muitas outras – as igrejas e os escoteiros – não estão dentro da esfera do economista. Mas por
que os cientistas políticos e sociólogos em sua maioria ignoraram um fenômeno que afeta de
forma tão profunda a forma de governo e a sociedade?

Não há menção alguma a organizações nas obras do fundador da sociologia, o


francês Augusto Comte (1798-1857). Mas em seu tempo não existia nenhuma.
Entretanto, as organizações também não foram mencionadas na mais influente
crítica não marxista à sociedade moderna, Gemeinschaft und Gesellschaft
(Comunidade e Sociedade), publicada em 1888 pelo alemão Ferdinand Tönnies
(1855-1936), nem nas obras dos patronos da moderna sociologia, o alemão Max
Weber (1864-1920) e o suíço-italiano Vilfredo Pareto (1848-1923). Os três
estavam altamente conscientes – e altamente críticos – da ascensão das grandes
empresas e dos grandes sindicatos, mas ignoraram a organização como um
fenômeno. E ela ainda é ignorada em livros mais recentes sobre ciências sociais.

A explicação é que a organização é ignorada precisamente porque ela afeta


profundamente tanto o estado como a sociedade. A organização é incompatível com aquilo que
tanto os políticos como os cientistas sociais ainda assumem como sendo a norma. (...)
Existe ainda uma outra razão pela qual se tem dado até agora tão pouca atenção às
organizações. Exércitos, igrejas, universidades, hospitais, empresas e sindicatos têm sido
vistos, estudados e analisados por muito tempo e em grande detalhe. Mas cada um foi tratado
como único e sui generis. (...) Só muito recentemente foi compreendido o fato delas todas
[essas instituições] pertencerem à mesma espécie; todas elas são ―organizações‖. Elas são o
meio ambiente feito pelo homem, a ―ecologia social‖ da sociedade pós-capitalista. Elas têm
entre si muito mais pontos em comum do que diferenças. Como já dissemos, as pessoas, em
sua maioria (...) ainda pensam em ―gerência de empresas‖ quando ouvem ―gerência‖ e ainda
não compreenderam que a gerência é uma função genérica, pertencente a todas as
organizações.
DRUCKET, P. A Sociedade Pós-Capitalista. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1996, p.27-31.

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FIM

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