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SOCIOLOGIA
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Índice
FAMÍLIA ...................................................................................................... 15
RELIGIÃO ...................................................................................................... 30
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LINGUAGEM ................................................................................................. 45
ESTADO ........................................................................................................... 57
DIREITO .......................................................................................................... 73
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E. R. GRAU: ELEMENTOS DO DIREITO ................................................................................. 83
MARCEL MAUSS: FORMA E RAZÃO DA TROCA NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS ..... 104
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RAFAEL NOGUEIRA: APONTAMENTOS SOBRE O CONCEITO
DE ―EDUCAÇÃO BANCÁRIA‖ DE PAULO FREIRE ............................................................. 117
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A Sociologia estuda o quê?
Estuda a ação humana no contexto das organizações sociais, das instituições e
dos processos sociais, englobando também a relação destes com o meio ambiente ou
com os aspectos biológicos. Por se ocupar da sociedade como um todo, a Sociologia
deve ser, necessariamente, eclética: busca elementos na História, na Geografia, na
Filosofia, na Economia, no Direito, nas pesquisas de levantamento social (estatísticas),
na Biologia, na Arqueologia e numa série de outras áreas do conhecimento. Entretanto,
a sociologia deve ter um objeto de estudo próprio e um método próprio de proceder no
estudo da sociedade, caso contrário, sua existência não faria nenhum sentido.
Mises
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sociedade. Exemplos de instituições: a família, a religião, a educação, a propriedade
privada, o comércio, o Estado e a ciência. As instituições tiveram enorme importância
para a Sociologia, pois são os principais blocos formadores da sociedade, assim como
os blocos de concreto formam as paredes de uma construção.
Os Processos Sociais se referem às mudanças que ocorrem gradativamente nos
costumes, instituições, leis, preconceitos e demais regras que definem o comportamento
humano. Indica também como as pessoas interagem com os costumes, instituições, leis,
etc., aceitando-os, recusando-os ou modificando-os.
Racional Empírico
Observação
Hipótese
Experiências
Lei
Teoria
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Observação → Momento em que o cientista procura entender como e por que algo
acontece.
Hipótese → Uma possível explicação do que foi observado. É provisória, até ser
confirmada.
Experiências → Testar e comprovar se a hipótese levantada é verdadeira ou falsa. Caso
seja falsa, uma nova hipótese é formulada e novas experiências são realizadas.
Lei → Caso a hipótese seja confirmada, o cientista promove uma síntese, modelagem e
generalização dos resultados obtidos, formulando uma regra segundo a qual
determinadas coisas acontecem.
Teoria → É um conjunto de hipóteses e/ou de leis aplicáveis a vários fenômenos
Ely Chinoy
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Será possível aplicar o método
científico à Sociologia?
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verificar, através de estatísticas, se há alguma correlação entre pobreza e criminalidade.
Ele faria isso verificando não apenas para uma determinada região, mas para várias
regiões diferentes no tempo e espaço, e a partir daí tentaria chegar a algum resultado
científico. E mesmo que a ação humana seja imprevisível, ainda assim é possível chegar
a regularidades estatísticas, prever a probabilidade de ocorrência de um evento. Por
exemplo, no Natal, as vendas sobem. Isso é uma regularidade estatística comprovada,
mesmo diante do fato de que cada consumidor age segundo seus propósitos, suas
escolhas. Mas, quão grandes serão as vendas? Isso ninguém pode prever com rigor, pois
inúmeros fatores podem influenciar as escolhas dos agentes individuais.
Vários outros métodos têm sido utilizados na análise dos fenômenos sociais.
Alguns cientistas sociais compararam certas práticas existentes em sociedades
diferentes das nossas para melhor compreender nossos próprios costumes. Outros
analisaram a sociedade em termos de função, onde cada costume ou instituição teria
uma função específica a desempenhar. Outros, ainda, procuraram chegar à objetividade
na Sociologia por meio da interpretação de uma dada ação, reconhecendo o caráter
intencional do próprio investigador. Enfim, várias práticas foram adotadas ao longo da
formação da Sociologia, e é importante que o estudante perceba, gradativamente, as
diferenças entre as ciências naturais e as ciências sociais.
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INSTITUIÇÕES SOCIAIS
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FAMÍLIA
A família é a mais básica unidade social existente. Provavelmente foi a primeira
forma de agrupamento surgido na história. Na família se inicia o processo de
socialização: experimentamos emoções, afetos e simpatias; aprendemos as noções
básicas de convivência – linguagem, moral, normas e padrões estéticos. A família é
também o grupo primário mais importante na vida de uma pessoa. É na família e nos
grupos primários que ocorrem as experiências mais significativas na vida de um ser
humano, onde adquire características e sentimentos humanos básicos; onde a
personalidade se forma, e onde a individualidade é desenvolvida ou reprimida.
Pouco se sabe sobre o surgimento da família nos tempos primitivos, e ao longo
dos últimos séculos, muita especulação foi produzida a respeito. Estudos realizados por
antropólogos como Lewis Henry Morgan (1818-1881) ou por teóricos como Friedrich
Engels (1820-1895), embora importantes para a época, demonstram concepções
arraigadas sobre tipos de família e valores considerados importantes para nós, pessoas
modernas e ocidentais. Somente no século XX surgiram estudos mais rigorosos que
procuraram delimitar mais precisamente certos termos, romper com antigos
preconceitos e lançar novas luzes sobre o tema. Dentre os vários estudos destacam-se os
de Charles Horton Cooley, Social Organization (1909), Robert Briffault, The Mothers
(1927), Bronisław Malinowski, The family among the Australian aborigines : a
sociological study (1913), George P. Murdock, Social Structure (1949), Claude Lévi-
Strauss, Les structures élémentaires de la parenté (1949), Radcliffe-Brown, Structure
and Function in Primitive Society (1952), Olga Lang, Chinese Family and Society
(1946) e William J. Goode, The Family and Social Network (1957).
Nem todas as sociedades seguem o padrão de família que conhecemos hoje,
formada por pai, mãe e filhos. Existem e existiram vários tipos: as poligâmicas e as
poliândricas, por exemplo. Entre os trobriandeses, a família é do tipo matrilinear; é o tio
materno que cuida do filho, não o pai. Em algumas sociedades o casamento entre
primos é proibido, em outras não. Em alguns lugares, homens trocam de mulheres entre
si, estabelecendo novas famílias; em outros, ocorre o inverso – mulheres trocam de
esposos e constituem novas famílias.
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KATHLEEN GOUGH: A ORIGEM DA FAMÍLIA
Eleanor Kathleen Gough Aberle (1925-1990) era
antropóloga britânica. Realizou pesquisas no sul e sudeste da
Ásia. Em sua obra A Origem da Família, a autora destaca
algumas fontes que podem esclarecer qual a origem dessa
instituição. Leia o texto abaixo e indique quais são essas fontes.
Mostre também quais as principais limitações no uso dessas
fontes. Responda também: quem surgiu primeiro, a família ou a
linguagem? Justifique sua resposta.
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OS PRIMATAS SOCIÁVEIS
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SAMUEL KOENIG: ORIGENS DA FAMÍLIA
Samuel Koenig (1899-1972) era sociólogo no Brooklyn
College, Nova York. De origem austríaca, foi para os Estados
Unidos em 1921, estudou na universidade de Minnesota, formou-
se na universidade de Marquette em 1929 e se tornou PhD em
1935 na universidade de Yale. O texto abaixo foi retirado da obra
Elementos de Sociologia. Antes de ler, pesquise o significado dos
termos horda e clã. Depois leia e responda: quais as principais
teorias sobre o surgimento da família?
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seus filhos. A família, para esse escritor, foi um desenvolvimento posterior. Por outro
lado, Westermarck expressou a opinião de que a família foi o núcleo original da
sociedade. Divergindo das duas opiniões, Malinowski afirmou que a família e o grupo
maior, ou clã, coexistiam, que condições dentro da sociedade determinaram qual era
mais importante e, portanto, nem a família nem o grupo maior podem ser considerados,
universalmente, como anterior ou posterior ao outro. Alguns estudiosos do assunto,
dentre os quais Briffault, tenderam a considerar os fatores econômicos de importância
capital para o surgimento e perpetuação da família, enquanto outros acentuam os
fatores psicológicos, sexual e outros. (...)
Há diversas teorias sobre a forma original da família. No começo do
desenvolvimento da Antropologia, em meados do século passado, apareceu uma teoria,
desenvolvida mais ou menos independentemente e com variações acrescentadas por
diversos pensadores, de que a família patriarcal, isto é, a família em que o pai é o único
dirigente do lar, foi o tipo mais antigo. O principal defensor dessa teoria foi o jurista
inglês Henry Sumner Maine, que expos a ideia em Ancient Law, publicada em 1861.
No mesmo ano, entretanto, um jurista suíço, interessado em Antropologia, Johann J.
Bachofen, publicou Das Mutterrecht (Direito Maternal), em que defendeu uma teoria
oposta. Baseando-se em dados coletados a respeito de diversas civilizações antigas,
Bachofen afirmou que, nos primeiros tempos, a humanidade vivia num estado de
promiscuidade e que o mais antigo tipo de família foi o matriarcal, em que as mulheres
gozavam de supremacia religiosa e política. Entre os adeptos da teoria de Bachofen
está Lewis H. Morgan, às vezes mencionado como ―o pai da Antropologia americana‖.
Seu livro Ancient Society, publicado em 1877, onde expos suas ideias, baseou-se, ao
contrário da obra de Bachofen, em pesquisas reais, de primeira mão, entre os índios,
particularmente os iroqueses, com os quais viveu durante muito tempo. Morgan
afirmou que a família se desenvolveu através de vários estágios, desde o mais baixo – a
promiscuidade – até o mais alto – a monogamia – e que o matriarcado primitivo cedeu
lugar, com o progresso da sociedade, ao patriarcado mais adiantado. Opinião
semelhante foi expressa por outro estudioso dessa instituição, J. F. McLennan, em
Primitive Marriage.
As teorias formuladas por Maine, Bachofen e Morgan têm sido consideradas
por antropólogos e sociólogos como contribuições valiosas, constituindo primeiras
tentativas numa época de quase completa falta de informações. A acumulação de dados
e provas cientificamente coletados, contudo, provocou o abandono quase completo
dessas teorias, especialmente a referente ao matriarcado.
Um dos primeiros a reptar sua validade foi George Elliot Howard, cuja
principal obra, A History of Matrimonial Institutions, apareceu em 1904. Pesquisas
posteriores, notadamente as de Malinowski, desaprovaram totalmente a teoria do
matriarcado. Atualmente, os entendidos afirmam que um verdadeiro matriarcado
provavelmente jamais existiu. É verdade que a família matrilinear (aquela em que a
descendência é reconhecida e a propriedade transmitida através da mãe) existiu, e ainda
existe, em inúmeras sociedades primitivas, mas isso não implica o predomínio da mãe,
pois nesse sistema as mulheres podem estar em posição subordinada. No patriarcado,
por outro lado, em que os homens são definitivamente a autoridade, as mulheres podem
desfrutar muitos direitos e privilégios. A alegação de que o sistema patriarcal significa
uma cultura superior é também rejeitada, pois esse sistema é encontrado em povos dos
mais baixos níveis de cultura primitiva, enquanto o sistema matrilinear prevalece em
povos dos mais altos níveis de desenvolvimento.
KOENIG, Samuel. Elementos de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. 5ªed. p. 156-162.
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LÉVI-STRAUSS: FORMAS ELEMENTARES DO PARENTESCO
Claude Lévi-Strauss (1908-2009) foi um antropólogo
francês. Produziu uma vasta obra sobre os povos indígenas,
analisando suas estruturas de parentesco, seus costumes, técnicas
e vários outros aspectos. Seu convívio com esses povos
(incluindo os indígenas do Brasil) o fez chegar a conclusões
importantes sobre a cultura e a sociedade. Em sua obra As
Estruturas Elementares do Parentesco, fez uma distinção entre
estruturas elementares e estruturas complexas de parentesco.
Conforme escreveu:
O texto abaixo foi retirado da obra A Família. Nela, o autor faz uma crítica à visão
evolucionista de que as famílias promíscuas e poligâmicas seriam típicas de períodos
primitivos, enquanto a família monogâmica seria característica das sociedades
avançadas (modernas). Além disso, afirma que embora sejam raros os casos de
sociedade onde não existam laços familiares, não se poderia afirmar a universalidade da
família; ele cita como exemplo os nayar (Malabar, Índia), onde o casamento não criava
laços permanentes entre um homem e uma mulher, sendo praticamente uma cerimônia
simbólica apenas. Leia o texto abaixo e indique as críticas que Lévi-Strauss fez às
visões propagadas sobre a família e seus tipos.
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social.
Esta forma de abordagem do problema perdeu a validade quando a acumulação
de dados tornou evidente o seguinte fato: o tipo de família característico da civilização
moderna, ou seja, baseado no matrimônio monogâmico, no estabelecimento
independente do casal recém casado, na relação afetiva entre pais e filhos, etc., se bem
que nem sempre seja fácil de reconhecer por detrás da complicada rede de estranhos
costumes e instituições dos povos primitivos, é pelo menos patente nas sociedades que
parecem ter permanecido – ou voltado – ao nível cultural mais simples. Tribos como os
andamaneses das ilhas do Oceano Índico, os fueguinos da extremidade meridional da
América do Sul, os nambicuara do centro do Brasil e os bosquímanes da África do
Sudoeste – para citar apenas alguns exemplos – que vivem em pequenos bandos
seminômades, que carecem ou possuem uma organização política muito simples e que
têm um nível tecnológico muito baixo – alguns destes desconhecem os tecidos, a
cerâmica e a construção de choças – não têm outra estrutura social para além da
família, a maior parte das vezes baseada na monogamia. (...)
Durante os últimos anos, os antropólogos fizeram grandes esforços para
demonstrar que, inclusive entre os povos que praticam o empréstimo de esposas (...)
estes costumes não devem ser interpretados como sobrevivência do ―casamento de
grupo‖, porquanto coexistem com a família e, para além do mais, implicam o seu
reconhecimento. (...) Em muitos casos sucede que as famílias poligâmicas não são mais
do que uma combinação de várias famílias monogâmicas nas quais uma mesma pessoa
desempenha o papel de vários cônjuges. (...)
Evidente se torna que o problema da família não deve ser tratado de forma
dogmática. De fato, é uma das questões mais escorregadias dentro do estudo da
organização social. Pouco sabemos acerca do tipo de organização social que prevaleceu
nas primeiras etapas da humanidade, já que os restos humanos que possuímos dos
paleolítico superior, ou seja, de há uns 60 000 anos, consistem fundamentalmente em
fragmentos de esqueletos e utensílios de pedra que não proporcionam senão uma
informação muito insuficiente acerca das leis e costumes sociais. Por outro lado,
quando consideramos a ampla diversidade de sociedades humanas que foram
observadas, digamos, desde Heródoto até os nossos dias, a única coisa que podemos
dizer é o seguinte: a família conjugal e monogâmica é muito frequente.
Tentar resolver este problema implica, em primeiro lugar, definir aquilo que
entendemos por ―família‖. (...) Tal palavra serve para designar um grupo social que
possui pelo menos as três características seguintes: 1) Tem a sua origem no casamento.
2) É formado pelo marido pela esposa e pelos filhos nascidos do casamento, ainda que
seja concebível que outros parentes encontrem o seu lugar junto do grupo nuclear. 3)
Os membros da família estão unidos por a) laços legais, b) direitos e obrigações
econômicas, religiosas e de outro tipo c) uma rede precisa de direitos e proibições
sexuais, além duma quantidade variável e diversificada de sentimentos psicológicos
tais como amor, afeto, respeito, temor, etc. (...)
Entre a maior parte dos povos, o casamento tem pouco a ver com a satisfação
do impulso sexual, dado que o ordenamento sexual proporciona numerosas
oportunidades para que ele se verifique; tais oportunidades não são apenas externas ao
matrimônio, mas também, inclusive, por vezes estão em contradição com ele. (...)
Se, como vimos, é certo que as considerações sexuais não são de importância
fundamental para o casamento, as necessidades econômicas estão presentes, em lugar
primordial, em todas as sociedades. Mostramos já que o que converte o casamento
numa necessidade fundamental nas sociedades tribais é a divisão sexual do trabalho.
STRAUSS, Lévi; GOUGH, K.; SPIRO, M. A Família: Origem e Evolução.
Porto Alegre: Editorial Villa Martha, 1980, p. 7-28.
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ÉMILE DURKHEIM: A FAMÍLIA É UM FATO SOCIAL
Émile Durkheim (1858-1917) foi um sociólogo
francês. Em sua obra As Regras do Método Sociológico,
ele afirma que os fatos sociais são exteriores ao indivíduo,
e que, portanto, suas características não deveriam ser
buscadas nos indivíduos isolados, mas somente no todo,
no grupo. Leia o texto abaixo e responda: por que os fatos
sociais são exteriores ao indivíduo? De que maneira são
inculcadas nas crianças as formas de pensar e agir de uma
sociedade? Por que a família é um fato social?
DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007, 3ª ed.
p. 123, prefácio, XXII, XXIII, XXIV.
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MISES: A SOCIEDADE SURGIU DO DESEJO DE COOPERAR
Ludwig von Mises (1881 – 1973) foi um economista e teórico social. De origem
austríaca, formulou sua concepção sobre a sociedade e a economia a partir de um viés
diferente da Sociologia clássica: definiu a sociedade como a totalidade das relações
inter-humanas engendradas pela cooperação. Criticando as visões que consideram a
sociedade como uma entidade com vida própria, procurou defini-la apenas como um
aspecto da ação humana. Conforme ele escreveu em Teoria e História:
“Ela (a sociedade) não existe ou vive fora da conduta das pessoas. É uma orientação
da ação humana. A sociedade não pensa nem age. Indivíduos, ao pensar e agir, formam
um complexo de relações e fatos que são chamados de fatos e relações sociais.”
Para Mises, a sociedade não é nem a soma de indivíduos, nem uma entidade
dotada de realidade independente. Não é nem anterior, nem posterior ao indivíduo.
Indivíduo e sociedade se formaram conjuntamente ao longo da história, e a transição do
ancestral humano primitivo para o homo sapiens já trouxe consigo os rudimentos de
uma sociedade – ou, o que é a mesma coisa para ele, de uma cooperação social.
O texto abaixo foi retirado da obra Ação Humana. Leia-o e compare com a visão
de Durkheim sobre a sociedade. Quais as diferenças? Anote e explique cada uma.
Responda também: 1) Como surgiram as primeiras famílias e comunidades humanas? 2)
Por que a sociedade não existe?
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sociedade, sentimentos de simpatia e amizade e uma sensação de comunidade. Esses
sentimentos são a fonte, para o homem, das mais agradáveis e sublimes experiências.
São o mais precioso adorno da vida; elevam a espécie animal homem às alturas de uma
existência realmente humana. Entretanto, esses sentimentos não são como tem sido
afirmado, os agentes que engendraram as relações sociais. São fruto da cooperação
social e só vicejam no seu quadro; não precederam o estabelecimento de relações
sociais e não são a semente de onde estas germinam.
Os fatos fundamentais que fizeram existir a cooperação, a sociedade e a
civilização, e que transformaram o animal homem num ser humano, é o fato de que o
trabalho efetuado valendo-se da divisão do trabalho é mais produtivo que o trabalho
solitário, e o fato de que a razão humana é capaz de perceber esta verdade. Não fosse
por isso, os homens permaneceriam sempre inimigos mortais uns dos outros, rivais
irreconciliáveis nos seus esforços para assegurar uma parte dos escassos recursos que a
natureza fornece como meio de subsistência. Cada homem seria forçado a ver todos os
outros como seus inimigos; seu intenso desejo de satisfazer seus próprios apetites o
conduziria a um conflito implacável com seus vizinhos. Nenhum sentimento de
simpatia poderia florescer em tais condições.
Alguns sociólogos têm afirmado que o fato subjetivo original e elementar na
sociedade é uma ―consciência da espécie‖ (F.H. Giddings, The Principles of Sociology.
Nova York, 1926, p. 17.). Outros sustentam que não haveria sistemas sociais se não
houvesse um ―senso de comunidade ou de propriedade comum‖ (R.M. MacIiver,
Society. Nova York, 1937, p. 6-7.). Podemos concordar, desde que estes termos um
pouco vagos e ambíguos sejam corretamente interpretados. Podemos chamar de
consciência da espécie, senso de comunidade ou senso de propriedade comum, o
reconhecimento do fato de que todos os outros seres humanos são virtuais
colaboradores na luta pela sobrevivência, porque são capazes de reconhecer os
benefícios mútuos da cooperação, enquanto que os animais não têm essa faculdade.
Entretanto, não devemos esquecer que são os dois fatos essenciais acima mencionados
que fazem existir tal consciência ou tal senso de existência. Num mundo hipotético,
onde a divisão do trabalho não aumentasse a produtividade, não haveria sociedade. Não
haveria qualquer sentimento de benevolência e de boa vontade.
O princípio da divisão do trabalho é um dos grandes princípios básicos do
devenir cósmico e da mudança evolucionária. Os biologistas tinham razão em tomar
emprestado da filosofia social o conceito de divisão do trabalho e em adaptá-lo a seu
campo de investigação. Existe divisão do trabalho entre as várias partes de qualquer
organismo vivo. Mais ainda, existem no reino animal, colônias integradas por seres que
colaboram entre si; tais entidades, formadas, por exemplo, por formigas ou abelhas,
costumam ser chamadas, metaforicamente, de ―sociedades animais‖. Mas não devemos
jamais nos esquecer de que o traço característico da sociedade humana é a cooperação
propositada; a sociedade é fruto da ação humana, isto é, apresenta um esforço
consciente para a realização de fins. Nenhum elemento desse gênero está presente, ao
que se saiba, nos processos que resultaram no surgimento dos sistemas estruturais e
funcionais de plantas e de corpos animais ou no funcionamento das sociedades de
formigas, abelhas e vespas. A sociedade humana é um fenômeno intelectual e
espiritual. É a consequência da utilização deliberada de uma lei universal que rege a
evolução cósmica, qual seja a maior produtividade da divisão do trabalho. Como em
todos os casos de ação, o reconhecimento das leis da natureza é colocado a serviço dos
esforços do homem desejoso de melhorar suas condições de vida.
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ELY CHINOY: FAMÍLIA E SOCIALIZAÇÃO
O texto abaixo foi retirado da obra Sociedade – Uma Introdução à Sociologia,
de Ely Chinoy. Faça um contraponto com o texto de Durkheim, anotando no caderno os
principais pontos comuns e diferentes; faça a mesma coisa com o texto de Mises visto
anteriormente. Depois responda: 1) Como ocorre o processo de socialização? 2) Qual a
importância dos juízos éticos (certo e errado, bom e mau, etc.) para a formação dos
hábitos e costumes nos seres humanos? 3) Qual a importância da consciência que os
seres humanos possuem da própria identidade pessoal e social? Como isso afeta a
sociedade de uma forma geral?
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crenças e valores, os padrões apropriados de reação emocional e modos de percepção,
as habilidades e o conhecimento requeridos. De outro lado, transmite o conteúdo da
cultura de uma geração a outra, provê a sua persistência e continuidade.
O principal órgão nesses processos é, geralmente, a família ou o grupo de
parentesco. Acudindo às necessidades do bebê indefeso, os pais – inicialmente, na
maioria dos casos, a mãe – estabelecem com ele uma relação que lhe será de
importância central no desenvolvimento futuro. A criança descobre como assegurar a
satisfação de suas exigências corporais pela comunicação com outros, através do som e
dos gestos. A princípio, como membro largamente passivo da família e, depois, mais
ativamente, aprende a desempenhar papeis apropriados e adquire habilidades, atitudes e
modos de reagir que lhe permitem participar da vida social fora do círculo familial.
Porque nossos laços primeiros e mais estreitos nos ligam, normalmente, a pais, irmãos
e, às vezes, a outros familiares, a experiência e as expectativas familiais têm um peso
emocional especial e são, por conseguinte, de particular importância no modelar a
personalidade e no transmitir exigências e expectativas culturais. (...)
A socialização é um processo complexo, de múltiplas facetas. À medida que
cresce o indivíduo, seus impulsos biológicos são dirigidos para canais culturalmente
padronizados. As respostas apropriadas são ―impostas‖, as não apropriadas ―extintas‖
por um sistema de prêmios e castigos. Ele aprende, através de gestos ou ações, a
conseguir comida, carinhos ou a eliminação do desconforto, e a responder às ações dos
outros como se espera que responda. Finalmente, passa a fazer três refeições por dia,
em lugar de quatro, e pegar na comida com instrumentos em lugar de enfiá-la na boca
com os dedos, a executar suas funções corporais na ocasião adequada e no lugar
adequado. Grande parte dessa aprendizagem, portanto, consiste no desenvolvimento de
hábitos que se conformam aos costumes da sociedade.
A canalização de impulsos e a aquisição de hábitos aceitáveis não são processos
mecânicos, mas estão ligadas a juízos do que é certo e do que é errado, do que é bom e
do que é mau. Não se aprende apenas a fazer alguma coisa de determinada maneira,
senão também que esta é a maneira certa ou correta de fazê-lo. Os valores, que impõem
e sustentam muitos hábitos, são aprendidos principalmente dos pais, às vezes
didaticamente pela instrução direta, em parte pelas expressões de aprovação ou
desaprovação da conformidade ou da não conformidade. (...) As crianças adquirem
valores – e atitudes e crenças – não apenas através de preceitos explícitos e
recompensas ou castigos manifestos, mas também através da sugestão, da implicação,
do exemplo. (...)
O indivíduo, entretanto, é mais que um simples feixe de hábitos e valores,
atitudes e crenças, todos aprendidos e culturalmente padronizados. Esse feixe de
elementos psicológicos está organizado numa estrutura, a ―personalidade‖, cujas partes
se relacionam mutuamente e não se acham ordenadas ao acaso. Uma personalidade,
portanto, possui atributos que a tornam mais do que a mera soma de suas partes. (...)
De importância central da personalidade é o eu, a consciência e o sentimento da
própria identidade pessoal e social que tem o indivíduo. O eu exerce uma função de
integração para a personalidade; a significação de hábitos, atitudes, valores e crenças
depende, quase sempre, da relação deles com os sentimentos da pessoa em relação ao
seu eu. Reagimos mais pronta e mais intensamente aos acontecimentos externos que
colidem com nossa imagem e nossas avaliações de nós mesmos do que àqueles em que
o nosso eu não está envolvido. (...)
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SPENCER: A SOCIEDADE COMEÇOU COM
OS AGREGADOS SOCIAIS SIMPLES
Herbert Spencer (1820 – 1903) é considerado um dos
grandes nomes da sociologia britânica. Através da influência de
seus pais que eram quakers (de origem protestante), Spencer
possuía uma mente independente, voltada ao individualismo.
Essa perspectiva individualista é o ponto de partida de suas
análises sociológicas, característica essa que o distingue
radicalmente da sociologia francesa.
Influenciado pelo pensamento britânico, Spencer afirmou,
muito antes de Mises, que a cooperação era o princípio básico da
sociedade: desde os tempos mais remotos, os seres humanos
despenderam esforços para satisfazer suas necessidades, e só
obtiveram sucesso quando começaram a cooperar entre si, afirmou Spencer. Em sua
obra Principles of Sociology, escreveu:
“A simples reunião de indivíduos num grupo não faz deles uma sociedade. Uma
sociedade, no sentido sociológico, é formada apenas quando, além da justaposição, há
cooperação. Enquanto os membros do grupo não combinam suas energias para
alcançar algum fim ou fins comuns, há pouco para mantê-los juntos. Eles são
impedidos de se separar apenas quando os desejos de cada um são mais atendidos pela
união de seus esforços com os dos outros, do que agindo sozinho.
Cooperação, então, é ao mesmo tempo aquilo que não pode existir sem uma
sociedade e aquilo para o qual existe uma sociedade. Pode ser uma junção de muitas
forças para afetar algo que a força de um único homem pode afetar; ou pode ser uma
repartição de atividades diferentes para pessoas diferentes, que separadamente
participam nos benefícios das atividades uns dos outros. O motivo para se agir em
conjunto, originalmente, pode ser a defesa contra inimigos; ou pode ser a obtenção
mais fácil de alimento, pela perseguição ou de outra maneira; ou pode ser, e
comumente é, ambos. Em qualquer caso, no entanto, as unidades passam do estado de
perfeita independência para o estado de dependência mútua; e tão rapidamente quanto
fazem isto, se tornam unidos numa sociedade, com razão assim chamada.”
SPENCER, H. Principles of Sociology. New York: D. Appleton and Company, 1898, vol. II, p.244
Observe que quando Spencer se refere à cooperação, ele tem em mente não
apenas uma ação voluntária entre os membros formadores do grupo, mas também, e
principalmente, uma relação onde cada um, sem ter a intenção de cooperar e agindo
apenas segundo seu próprio interesse, acaba contribuindo para o bem-estar de todos os
membros (sem ter consciência disso). Essas são as duas formas de organização que
proporcionam a cooperação entre os membros. Conforme ele mesmo escreveu:
“Esta organização social, necessária como um meio para a ação combinada, é de dois
tipos. Embora estes dois tipos geralmente coexistam e estejam mais ou menos
interconectados, contudo eles são distintos em suas origens e naturezas. Existe uma
cooperação espontânea que cresce sem ser pensada, durante a busca de fins privados;
e há uma cooperação que, conscientemente idealizada, implica reconhecimento distinto
de fins coletivos. As maneiras pelas quais os dois são respectivamente estabelecidos e
realizados apresentam contrastes marcantes.”
SPENCER, op. cit., p. 244.
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Cada forma de cooperação é característica de um tipo de sociedade, de acordo
com Spencer. Ao primeiro tipo ele dá o nome de Agregados Sociais Simples, e ao
segundo, Agregados Sociais Complexos. As primeiras formas de agrupamento humano,
incluindo a família, eram do tipo simples, e as sociedades modernas industriais, do tipo
complexo.
Nos agregados sociais mais simples, cada porção (parte) é semelhante às outras
e, portanto, possuem funções semelhantes. Por exemplo, em sociedades primitivas,
como as tribais, os indivíduos se assemelham, possuem quase que as mesmas aptidões
físicas e mentais, e também executam tarefas semelhantes. As partes são pouco
dependentes umas das outras. Todos são, ao mesmo tempo, caçadores, guerreiros,
artífices de suas próprias armas, etc. Além disso, nessas sociedades o todo pode ser
dividido mais facilmente e formar novas unidades, já que são semelhantes. E ainda,
nesse tipo de agregado a posição de cada indivíduo é fixa; o indivíduo deve subordinar
seus fins individuais aos fins coletivos, sociais. Em suma, deve viver em função da
comunidade. A ideia de propriedade privada ainda é mal definida, embora não seja
inexistente.
Nos agregados sociais complexos, é diferente. Há uma interdependência maior
entre as partes. Por exemplo, se for cortado o fornecimento de matérias-primas para
certos tipos de indústria, isso pode comprometer toda a sociedade, talvez aniquilá-la.
Esta característica é devida à grande especialização das partes, o que significa a
existência de uma grande divisão do trabalho. Nesses agregados o indivíduo age tendo
em vista fins particulares, e não fins coletivos. A individualização se torna grande, e os
fins sociais exercem pouca influência sobre cada integrante. A ideia de propriedade
privada já é muito desenvolvida. E como exemplo de agregados sociais mais complexos
teríamos a nossa sociedade moderna.
A passagem de um tipo de agregado social para outro ocorreu ao longo de um
processo evolutivo, assim como aconteceu com os organismos, desde a modificação dos
tipos mais simples, no início da formação da Terra, até o aparecimento dos mais
complexos. Este crescimento do mais simples para o mais complexo apenas é possível
quando a estrutura se torna mais complexa. Ela deve ser plástica e, ao mesmo tempo, ter
a capacidade de retenção. Nos organismos, vários fatores podem obstruir a modificação
da estrutura e, consequentemente, a evolução dos mesmos. Na sociedade, igualmente.
A conclusão a que chegamos é que nas primeiras comunidades humanas o
sentimento coletivista era intenso, enquanto que a ideia de individualidade era pouco
desenvolvida. Por isso, a cooperação de que participavam não se realizava com as
mesmas ideias complexas que nós, modernos, possuímos hoje. Visava-se acima de tudo
o ―bem coletivo‖. Essa característica é marcante em todos os povos primitivos, em todas
as tribos analisadas até hoje. Alguns teóricos utilizaram o nome de ―comunismo
primitivo‖ para se referirem a esses povos.
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ROGER SCRUTON: FAMÍLIA E AUTORIDADE
Roger Scruton (1944-2020) foi um filósofo inglês. O texto
abaixo é da obra O que é Conservadorismo. Leia-o e responda: 1) por
que o surgimento da família não pode ser pensado em termos de um
contrato entre as partes? 2) Qual a principal diferença entre o
pensamento de Scruton e de Mises? 3) Qual o papel da autoridade na
formação do afeto nas crianças?
Pensemos na família. Eu já sugeri que seria absurdo pensar nos laços familiares como
sendo contratuais, ou em obrigações familiares como tendo surgido, de algum modo, de um
livre abandono da autonomia ou até mesmo de algum acordo implícito que ascende até a
consciência num momento posterior, por assim dizer. Aqui a linguagem do contrato, até
mesmo como metáfora, falha em estabelecer contato com os fatos. E é por causa disso que
individualistas radicais – aqueles que não conseguem reconhecer virtude alguma em qualquer
arranjo que, em última instância, não derive da escolha consciente – começaram a atacar a
família, a fabricar a ideia de sua ―dispensabilidade‖, a declarar guerra a ela por considera-la
uma forma de ―opressão patriarcal‖, da qual mulheres e crianças devem ser libertadas caso
queiram desfrutar de uma liberdade e satisfação próprias.
Se fosse acidental o fato de os seres humanos crescerem para amar, necessitar e
depender uns dos outros; se fosse acidental o fato de as crianças se sentirem ligadas a seus pais
e os pais a suas crianças por meio de vínculos inexoráveis que circunscrevem as possibilidades
do prazer e da dor posteriores; se fosse acidental o fato de a vida doméstica ser até hoje (exceto
no caso de uma minoria) tão difícil quanto no passado, então talvez a ―crítica radical‖ tivesse
alguma força. Os conservadores certamente se mostrarão céticos quanto a isso. Suas raras
tentativas de expressar a verdade sobre o mundo provavelmente se baseiam na observação e
carregam uma descrença na mutabilidade imediata da natureza humana. Portanto, eles
admitirão que esses fatos não são acidentais e que o vínculo familiar é dispensável apenas se o
prazer, a diligência, o amor, a tristeza, a paixão e a obediência também o forem – isto é, apenas
no caso da minoria que pode persuadir-se (por qualquer razão) a renunciar a essas coisas.
A família é, portanto, uma pequena unidade social que compartilha com a sociedade
civil a condição única de ser não contratual, de surgir (tanto para as crianças como para os pais)
não da escolha, mas da necessidade natural. E (para inverter a analogia) é óbvio que o vínculo
que liga o cidadão à sociedade não é, do mesmo modo, voluntário, mas um tipo de relação
natural. (...)
Desde o início fica claro que uma criança deve ser influenciada pelo poder de seus
pais: seu amor por eles conceder-lhes-á esse poder, e os pais, mesmo quando permissivos, não
se evadem de seu exercício, assim como um oficial não deixa de comandar suas tropas quando
permite que essas fiquem constantemente à vontade. Uma criança é o que é em virtude da
vontade de seus pais e, consequentemente, eles têm a obrigação inalienável de formá-la e de
influenciar o desenvolvimento dela. Nesse mesmo processo está o poder, e faz-se necessário
um poder estabelecido, uma vez que ele já reside com o pai desde o primeiro momento em que
a criança está no mundo. Ora, há uma noção segundo a qual toda criança não apenas tem
necessidade de que seus pais exerçam esse poder, mas também exigirá que eles o façam, por
estimar a proteção deles. Não pode haver um ato de amor a uma criança (e nenhum ato de
amor) que não seja, em primeiro lugar, um exercício de poder estabelecido. Do contrário, como
a criança poderia reconhecer, dentre todos os seres que a circundam, aquele que é sua origem,
isto é, sua principal proteção e sua fonte de amor? Certamente, a criança deve sentir a
influência de uma vontade em sua vida e de um desejo por sua vida, além do seu próprio. Ela
deve sentir o limite gerado pelo amor de outra pessoa por ela. E a criança só é tirada de sua
autoimersão e levada a reconhecer seu pai como um ser autônomo (um ser que não apenas lhe
dá amor, mas o dá livremente e é a quem ela deve amor em retribuição) quando ela reconhece a
existência de um poder objetivo sobre o que fará.
SCRUTON, R. O que é conservadorismo. São Paulo: É Realizações, 2015, p.69-71.
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RELIGIÃO
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MONTESQUIEU: RELIGIÃO E PROGRESSO SOCIAL
Charles Louis de Secondat, barão de Montesquieu
(1689 - 1755) foi um filósofo francês. Viajando por vários
países e regiões distantes, conheceu costumes e leis
diferentes, o que lhe permitiu desenvolver uma ampla visão
sobre muitos assuntos relacionados à sociedade.
Embora faça parte do Iluminismo francês, seu
pensamento diverge do desses teóricos, podendo ser
considerado como uma exceção para a época. Isso se
reflete, entre outras coisas, na postura que adota perante a
religião: ao invés de criticá-la, como fizeram seus compatriotas (por exemplo, Voltaire),
Montesquieu reconheceu sua importância para a humanidade, principalmente a religião
cristã.
Montesquieu é considerado por muitos como o principal precursor da Sociologia
na França. Embora esta área do conhecimento não existisse ainda, seus principais temas
e objetos de estudo já eram analisados por Montesquieu, tais como a diversidade
humana e social, a proposta de colocar ordem no caos social através do estudo das leis
que regem a sociedade, tipos de governo, educação, direito civil, comércio, família,
religião e muitos outros.
Leia o texto abaixo e indique qual a importância da religião para Montesquieu.
A religião cristã está afastada do puro despotismo: é que, sendo a brandura tão
recomendada no Evangelho, ela se opõe à cólera despótica com a qual o príncipe faria
justiça e exerceria suas crueldades.
Proibindo esta religião a pluralidade de esposas, os príncipes são menos
enclausurados, menos separados de seus súditos e, consequentemente, mais homens;
estão mais dispostos a fazer leis e mais capazes de sentir que não podem tudo.
Enquanto os príncipes maometanos condenariam incessantemente à morte, ou
são mortos, a religião, entre os cristãos, torna os príncipes menos tímidos e, consequen-
temente, menos cruéis. O príncipe confia em seus súditos, e os súditos no príncipe.
Coisa admirável! A religião cristã, que parece não ter outro objetivo senão a felicidade
na outra vida, proporciona também a nossa nesta vida.
É a religião cristã que, apesar da grandeza do império e do vício do clima,
impediu o despotismo de se estabelecer na Etiópia, e levou para o centro da África os
costumes da Europa e suas leis.
O príncipe herdeiro da Etiópia goza de um principado, e dá aos outros súditos o
exemplo de amor e de obediência. Bem próximo desse país, vemos o maometismo
mandar encerrar os filhos do rei de Senaar; com sua morte, o Conselho os manda
degolar em benefício do que sobe ao trono.
Que se ponham, de um lado, diante dos olhos as chacinas contínuas dos reis e
dos chefes gregos e romanos; e, de outro, a destruição dos povos e das cidades pelos
mesmos chefes; Timur e Gengis-Cã, que devastaram a Ásia; e veremos que devemos
ao cristianismo, no governo, certo direito político, e na guerra certo direito das gentes,
que a natureza humana não poderia reconhecer de modo suficiente.
É o direito das gentes que faz com que, entre nós, a vitória deixe aos povos
vencidos estas grandes coisas: a vida, a liberdade, as leis, os bens, e sempre a religião,
desde que não nos deixemos cegar.
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FRÉDÉRIC LE PLAY: FUNÇÃO DAS CRENÇAS RELIGIOSAS
Pierre-Guillaume-Frédéric Le Play (1806 – 1882)
foi um engenheiro de minas e, posteriormente, teórico
das questões sociais, por isso mesmo considerado como
um dos precursores da Sociologia. Embora seja
reconhecido pelo desenvolvimento de técnicas de
pesquisas sistemáticas no âmbito da família, sua análise
baseia-se na totalidade social, a qual inclui religião,
política, economia, etc., incluindo a relação entre
progresso material e moral. Ao visitar a Inglaterra em
1836, comparou a estabilidade daquela sociedade com a
desordem vivida por outras regiões da Europa,
principalmente a França, e chegou à conclusão de que o
sentimento antirreligioso levava à desagregação social, enquanto que o respeito pela
religião levava à harmonia e à prosperidade.
O texto abaixo foi retirado de sua obra La Réforme de la société. Leia-o e
compare com o texto de Montesquieu. O que eles têm em comum e no que são
diferentes? Depois responda: 1) Segundo Le Play, existe alguma tendência inata nos
seres humanos? Se sim, qual é essa tendência? 2) Qual a importância do Decálogo para
o progresso das sociedades, desde os tempos mais remotos?
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EDWARD B. TYLOR: RELIGIÃO E ANIMISMO
Edward Burnett Tylor (1832 – 1917) foi um antropólogo
britânico; um dos primeiros a fornecer uma definição precisa de
cultura e um dos primeiros a realizar pesquisa de campo. Em sua
obra Primitive Culture afirmou que a forma mais antiga de
crença religiosa era o animismo, a crença em seres espirituais. O
trecho abaixo foi retirado dessa obra. Leia-o e responda: Qual a
definição de religião ele combate, e qual definição propõe no
lugar?
Existem, ou têm existido, tribos de homens com uma cultura tão baixa que não têm
nenhuma concepção religiosa? Esta é praticamente a questão da universalidade da religião, que
há tantos séculos tem sido afirmada e negada, com uma confiança em flagrante contraste com a
evidência imperfeita na qual tanto a afirmação quanto a negação se baseiam. Os etnógrafos, se
procurassem uma teoria do desenvolvimento para explicar a civilização e considerassem seus
estágios sucessivos surgidos um do outro, receberiam com interesse particular relatos de tribos
desprovidas de toda religião. Aqui, eles diriam naturalmente, existem homens que não têm
religião porque dentre seus antepassados não existiam aqueles que representam uma condição
pré-religiosa da raça humana, da qual, com o passar do tempo, surgiram condições religiosas.
No entanto, não parece aconselhável começar a partir desse ponto em uma investigação do
desenvolvimento religioso. (...) O caso tem o mesmo grau de semelhança ao das tribos que
afirmam existir sem linguagem ou sem o uso do fogo; naturalmente falando parece que nada
proíbe a possibilidade de tal existência, mas, na verdade, tais tribos não são encontradas.
Assim, a afirmação de que tribos não religiosas rudes são conhecidas na existência real,
embora teoricamente possível, e talvez verdade de fato, não se baseia atualmente em prova
suficiente que, para um estado de coisas excepcional, temos o direito de exigir. (...)
Quão enganosos são os julgamentos aos quais a amplitude e a generalidade são dadas
pelo uso de palavras amplas em sentidos restritos. Lang, Moffat e Azara são autores a quem a
etnografia deve muito conhecimento de valor das tribos que visitaram, mas ao que parece,
dificilmente reconhecem nada além da teologia organizada e estabelecida das raças superiores
como religião. Eles atribuem a falta de religião a tribos cujas doutrinas são diferentes das deles,
da mesma maneira que os teólogos atribuem o ateísmo com frequência àqueles cujas
divindades diferem das suas, desde o tempo em que os antigos arianos invasores descreveram
as tribos indígenas da Índia como adeva, isto é, "sem Deus", e os gregos fixaram o termo
correspondente aos primeiros cristãos como incrédulos nos deuses clássicos, até às
épocas relativamente modernas, quando os descrentes, tanto os que praticavam bruxaria quanto
os da sucessão apostólica, foram denunciados como ateus. (...)
O primeiro requisito em um estudo sistemático das religiões das raças inferiores é
estabelecer uma definição rudimentar de religião. Ao exigir nesta definição a crença em uma
divindade suprema ou julgamento após a morte, a adoração de ídolos ou a prática de sacrifício,
ou outras doutrinas ou ritos parcialmente difundidos, sem dúvida muitas tribos podem ser
excluídas da categoria religiosa. Mas essa definição restrita tem a falha de identificar a religião
antes com desenvolvimentos particulares do que com o motivo mais profundo que os
fundamenta. Parece melhor recorrer imediatamente a essa fonte essencial e simplesmente
reivindicar, como uma definição mínima de religião, a crença nos seres espirituais. Não se pode
afirmar positivamente que toda tribo existente reconheça a crença nos seres espirituais, pois a
condição nativa de um número considerável é obscura a esse respeito, e com a rápida mudança
ou extinção pela qual estão passando, pode permanecer assim.
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ROBERTSON SMITH: IMPORTÂNCIA DOS RITOS
E PRÁTICAS RELIGIOSAS
William Robertson Smith (1846-1894) foi um estudioso
escocês das religiões semitas. Era professor de línguas orientais e
exegese do Antigo Testamento. Escreveu artigos na 9ª edição da
Enciclopédia Britânica sobre a Bíblia, o que lhe rendeu, em
1877, a sua suspensão como professor.
Em sua obra Lectures on the Religion of the Semites,
Robertson Smith deu muito mais ênfase aos ritos e cerimônias do
que à crença no sobrenatural, quando analisou o fenômeno
religioso. De acordo com ele, as religiões antigas se
caracterizaram em instituições e práticas, através de ritos e
cerimônias; os mitos associados a crenças e credos teriam sido
uma consequência dos primeiros – ritos e cerimônias.
Analisando o Velho Testamento, concluiu que a prática precede a crença.
O texto abaixo foi retirado da obra acima citada. Leia-o e responda: 1) Por que é
necessário estudar a religião a partir dos ritos e práticas, ao invés de começar o estudo
pelas crenças ou mitos? 2) Dê exemplos de ritos e práticas encontrados em religiões e
povos diversos.
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deuses; e essas histórias fornecem a única explicação que é oferecida sobre os preceitos
da religião e as regras prescritas do ritual. Mas, estritamente falando, essa mitologia
não era parte essencial da religião antiga, pois não possuía sanção sagrada nem força
vinculativa para os adoradores. Os mitos ligados a santuários e cerimônias individuais
eram meramente parte do aparato do culto; serviram para excitar a fantasia e sustentar
o interesse do adorador; mas muitas vezes lhe era oferecida uma escolha de vários
relatos da mesma coisa e, desde que ele cumprisse o ritual com precisão, ninguém se
importava com o que ele acreditava sobre sua origem. A crença em uma certa série de
mitos não era obrigatória como parte da religião verdadeira, nem se supunha que,
acreditando, um homem adquirisse méritos de religiões e conciliasse o favor dos
deuses. O que era obrigatório ou meritório era o desempenho exato de certos atos
sagrados prescritos pela tradição religiosa. Sendo assim, segue-se que a mitologia não
deve ocupar o lugar de destaque que muitas vezes lhe é atribuído no estudo científico
das religiões antigas. Na medida em que os mitos consistem em explicações do ritual,
seu valor é totalmente secundário, e pode-se afirmar com confiança que em quase todos
os casos o mito foi derivado do ritual, e não o ritual do mito; pois o ritual era fixo e o
mito era variável, o ritual era obrigatório e a fé era o critério do adorador. Agora, de
longe, a maior parte dos mitos das religiões antigas está ligado ao ritual de certos
santuários, ou às observâncias religiosas de tribos e distritos específicos. Em todos
esses casos, é provável, na maioria dos casos, certo que o mito seja apenas a explicação
de um uso religioso; e, geralmente, é uma explicação que não poderia ter surgido até
que o sentido original do uso tivesse passado ou ao menos caído no esquecimento.
Como regra geral, o mito não é explicação da origem do ritual para quem não acredita
que seja uma narrativa de ocorrências reais, e o mitólogo mais ousado não acreditará
nisso. Mas, se não for verdade, o próprio mito precisa ser explicado, e todo princípio de
filosofia e senso de comunhão exige que a explicação seja buscada, não em teorias
alegóricas arbitrárias, mas nos fatos reais de rituais ou costumes religiosos aos quais o
mito anexa. A conclusão é que, no estudo das religiões antigas, devemos começar, não
com mitos, mas com rituais e usos tradicionais. Tampouco pode ser justamente contra
essa conclusão que existem certos mitos que não são meras explicações das práticas
tradicionais, mas exibem o início de uma especulação religiosa mais ampla, ou de uma
tentativa de sistematizar e reduzir para ordenar a variedade heterogênea de cultos locais
e crenças. Pois nesse caso o caráter secundário dos mitos é ainda mais claramente
marcado. Ou são produtos da filosofia primitiva, refletindo sobre a natureza do
universo; ou são de alcance político, sendo projetados para fornecer um fio de união
entre as várias adorações de grupos, originalmente distintos, que foram unidos em um
organismo social ou político; ou, finalmente, devem-se ao jogo livre da imaginação
épica. Mas filosofia política e poesia são algo mais, ou menos sonolento, do que
religião pura e simples.
Não pode haver dúvida de que, nos estágios posteriores das religiões antigas, a
mitologia adquiriu uma importância cada vez maior. Na luta do paganismo com o
ceticismo, por um lado, e o cristianismo, por outro, os partidários da antiga religião
tradicional foram levados a procurar idéias de um elenco moderno, que pudessem
representar como o verdadeiro significado interno dos ritos tradicionais. Para esse fim,
eles se apossaram dos antigos mitos, e aplicaram a eles um sistema alegórico de
interpretação. O mito interpretado pelo auxílio da alegoria tornou-se o meio favorito de
infundir um novo significado em formas antigas. Mas as teorias assim desenvolvidas
são os mais falsos dos falsos guias quanto ao significado original das antigas religiões.
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JAMES FRAZER: OS PRINCÍPIOS DA MAGIA
James George Frazer (1854-1941) foi um antropólogo
britânico. Sua principal obra, O Ramo de Ouro, reúne uma enorme
quantidade de costumes primitivos de épocas e lugares diferentes,
e são organizados de forma sistemática de modo a permitir a
elaboração de teorias sobre as sociedades. O principal tema
abordado nessa obra é a religião e sua relação com a magia, a
ciência e a realeza.
O texto abaixo foi retirado da obra acima citada. Leia-o e
responda: Quais os dois tipos de magia? Explique e dê exemplos.
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DURKHEIM: AS FORMAS ELEMENTARES
DA VIDA RELIGIOSA
O texto abaixo é de Émile Durkheim, retirado da obra As Formas Elementares
da Vida Religiosa. Leia-o e responda: Quais os elementos que definem uma religião?
Para saber qual a religião mais primitiva e mais simples que a observação nos permite
conhecer, é preciso primeiro definir o que convém entender por religião, caso contrário
correríamos o risco de chamar de religião um sistema de ideias e de práticas que nada teria de
religioso, ou de deixar de lado fatos religiosos sem perceber sua verdadeira natureza. (...) O que
é necessário e possível é indicar um certo número de sinais exteriores, facilmente perceptíveis,
que permitem reconhecer os fenômenos religiosos onde quer que se encontrem, e que impedem
que os confundamos com outros. (...)
Deixando de lado toda concepção da religião em geral, consideremos as religiões em
sua realidade concreta e procuremos destacar o que elas podem ter em comum; pois a religião
só pode ser definida em função das características que se encontram por toda parte onde houver
religião. Introduziremos portanto nessa comparação todos os sistemas religiosos que podemos
conhecer, os do presente e os do passado, os mais simples e primitivos assim como os mais
recentes e refinados, pois não temos nenhum direito e nenhum meio lógico de excluir uns para
só reter os outros. (...)
Uma noção tida geralmente como característica de tudo o que é religioso é a de
sobrenatural. Entende-se por isso toda ordem de coisas que ultrapassa o alcance de nosso
entendimento; o sobrenatural é o mundo do mistério, do incognoscível, do incompreensível. A
religião seria, portanto, uma espécie de especulação sobre tudo o que escapa à ciência e, de
maneira mais geral, ao pensamento claro. (...) É certo que o sentimento do mistério não deixou
de desempenhar um papel importante em certas religiões, especialmente no cristianismo. Mas é
preciso acrescentar que a importância desse papel variou singularmente nos diferentes
momentos da história cristã. (...) Em todo caso, o que é certo é que essa noção só aparece muito
tarde na história das religiões; ela é totalmente estranha não somente aos povos chamados
primitivos, mas também a todos os que não atingiram um certo grau de cultura intelectual. (...)
Ele [o primitivo] não vê nelas [nas explicações sobrenaturais] uma espécie de ultima ratio
[última razão] a que a inteligência só se resigna em desespero de causa, mas sim a maneira
mais imediata de representar e compreender o que observa a seu redor. Para ele, não há nada de
estranho em poder-se, com a voz ou o gesto, comandar os elementos, deter ou precipitar o
curso dos astros, provocar a chuva ou pará-la, etc. Os ritos que emprega para assegurar a
fertilidade do solo ou a fecundidade das espécies animais de que se alimenta não são, a seus
olhos, mais irracionais do que o são, aos nossos, os procedimentos técnicos que os agrônomos
utilizam para a mesma finalidade. (...) A ideia de sobrenatural, tal como a entendemos, data de
ontem: ela supõe, com efeito, a ideia contrária, da qual é a negação e que nada tem de
primitiva. Para que se pudesse dizer de certos fatos que são sobrenaturais, era preciso já ter o
sentimento de que existe uma ordem natural das coisas, ou seja, que os fenômenos do universo
estão ligados entre si segundo relações necessárias chamadas leis. (...)
Uma outra ideia pela qual se tentou com frequência definir a religião é a da divindade.
―A religião‖, diz A. Réville, ―é a determinação da vida humana pelo sentimento de um vínculo
que une o espírito humano ao espírito misterioso no qual reconhece a dominação sobre o
mundo e sobre si mesmo, e ao qual ele quer sentir-se unido‖. É verdade que, se entendemos a
palavra divindade num sentido preciso e estrito, a definição deixa de fora grande quantidade de
fatos manifestamente religiosos. As almas dos mortos, os espíritos de toda espécie e de toda
ordem, com que a imaginação religiosa de tantos povos diversos povoou a natureza, são
sempre objeto de ritos e, às vezes, até de um culto regular; no entanto não se trata de deuses no
sentido próprio da palavra. Mas, para que a definição os compreenda, basta substituir a palavra
deus pela de ser espiritual, mais abrangente. Foi o que fez Tylor. (...) Contudo, por mais
evidente que possa parecer essa definição, em consequência de hábitos de espírito que devemos
à nossa educação religiosa, há muitos fatos aos quais ela não é aplicável e que, no entanto,
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dizem respeito ao domínio da religião. (...) Existem grandes religiões em que a ideia de deuses
e espíritos está ausente, nas quais, pelo menos, ela desempenha tão-só um papel secundário e
apagado. É o caso do budismo. (...)
Descartadas essas definições, é a nossa vez de nos colocarmos diante do problema.
Em primeiro lugar observemos que, em todas essas fórmulas, é a natureza da religião
em seu conjunto que se tenta exprimir diretamente, procede-se como se a religião formasse
uma espécie de entidade indivisível, quando ela é um todo formado de partes; é um sistema
mais ou menos complexo de mitos, de dogmas, de ritos, de cerimônias. Ora, um todo não pode
ser definido senão em relação às partes que o formam. É mais metódico, portanto, procurar
caracterizar os fenômenos elementares dos quais toda religião resulta, antes do sistema
produzido por sua união. Esse método impõem-se sobretudo pelo fato de existirem fenômenos
religiosos que não dizem respeito a nenhuma religião determinada. É o caso dos que
constituem a matéria do folclore. Em geral, são restos de religiões desaparecidas,
sobrevivências inorganizadas; mas há outras também que se formam espontaneamente sob a
influência de causas locais. (...)
Os fenômenos religiosos classificam-se naturalmente em duas categorias fundamentais:
as crenças e os ritos. As primeiras são estados da opinião, consistem em representações; os
segundos são modos de ação determinados. (...)
Todas as crenças religiosas conhecidas, sejam simples ou complexas, apresentam um
mesmo caráter comum: supõem uma classificação das coisas, reais ou ideais, que os homens
concebem, em duas classes, em dois gêneros opostos, designados geralmente por dois termos
distintos que as palavras profano e sagrado traduzem bastante bem. A divisão do mundo em
dois domínios que compreendem, um, tudo o que é sagrado, outro, tudo o que é profano, tal é o
traço distintivo do pensamento religioso: as crenças, os mitos, os gnomos, as lendas, são
representações ou sistemas de representações que exprimem a natureza das coisas sagradas, as
virtudes e os poderes que lhes são atribuídos, sua história, suas relações mútuas e com as coisas
profanas. Mas, por coisas sagradas, convém não entender simplesmente esses seres pessoais
que chamamos deuses ou espíritos: um rochedo, uma árvore, uma fonte, um seixo, um pedaço
de madeira, uma casa, em uma palavra, uma coisa qualquer pode ser sagrada. (...)
As crenças propriamente religiosas são sempre comuns a uma coletividade deter-
minada, que declara aderir a elas e praticar os ritos que lhe são solidários. Tais crenças não são
apenas admitidas, a título individual, por todos os membros dessa coletividade, mas são
próprias do grupo e fazem sua unidade. Os indivíduos que compõem essa coletividade sentem-
se ligados uns aos outros pelo simples fato de terem uma fé comum. Uma sociedade cujos
membros estão unidos por se representarem da mesma maneira o mundo sagrado e por tradu-
zirem essa representação comum em práticas idênticas, é isso a que chamamos uma igreja. (...)
Algo bem diferente se dá com a magia. Claro que as crenças mágicas jamais
deixam de ter alguma generalidade; com frequência estão difusas em largas camadas de
população e há inclusive muitos povos em que seu número de praticantes não é menor
que o da religião propriamente dita. Mas elas não têm por efeito ligar uns aos outros
seus adeptos e uni-los num mesmo grupo, vivendo uma mesma vida. Não existe igreja
mágica. Entre o mágico e os indivíduos que o consultam, como também entre esses in-
divíduos, não há vínculos duráveis que façam deles os membros de um mesmo corpo
moral, comparável àquele formado pelos fiéis de um mesmo deus, pelos praticantes de
um mesmo culto. O mágico tem uma clientela, não uma igreja, e seus clientes podem
perfeitamente não manter entre si nenhum relacionamento, ao ponto de se ignorarem
uns aos outros; mesmo as relações que estabelecem com o mágico são, em geral, aci-
dentais e passageiras; são em tudo semelhantes às de um doente com seu médico. (...)
Chegamos, pois, à seguinte definição: uma religião é um sistema solidário de
crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças
e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles
que a elas aderam.
DURKHEIM, E. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.3-32.
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MARCEL MAUSS E HENRI HUBERT: O SACRIFÍCIO
Marcel Mauss (1872-1950) foi um antropólogo francês. Juntamente com Henri
Hubert (1872-1927) redigiu a obra Sobre o Sacrifício, de onde o trecho abaixo foi
retirado. Leia-o e responda: qual a importância do sacrifício para as religiões?
Convém dar uma definição exterior dos fatos que designamos por ―sacrifício‖.
A palavra sugere imediatamente a ideia de consagração, e poder-se-ia pensar
que as duas noções se confundem. Com efeito, é certo que o sacrifício sempre implica
uma consagração: em todo sacrifício um objeto passa do domínio comum ao domínio
religioso – ele é consagrado. Mas as consagrações não são todas da mesma natureza.
Há aquelas que esgotam seus efeitos no objeto consagrado, seja ele qual for, homem ou
coisa. É o caso, por exemplo, da unção. Na sagração de um rei, somente a
personalidade religiosa do rei é modificada: fora dela nada é alterado. No sacrifício, ao
contrário, a consagração irradia-se para além da coisa consagrada, atingindo, entre
outras coisas, a pessoa moral que se encarrega da cerimônia. O fiel que forneceu a
vítima, objeto da consagração, não é no final da operação o que era no começo. Ele
adquiriu um caráter religioso que não possuía, ou se desembaraçou de um caráter
desfavorável que o afligia; elevou-se a um estado de graça ou saiu de um estado de
pecado. Em ambos os casos ele é religiosamente transformado. (...)
Vê-se qual é o traço distintivo da consagração no sacrifício: que a coisa
consagrada sirva de intermediário entre o sacrificante, ou o objeto que deve receber os
efeitos úteis do sacrifício, e a divindade à qual o sacrifício é endereçado. O homem e o
deus não estão em contato imediato. Assim é que o sacrifício se distingue da maior
parte dos fatos designados como ―aliança pelo sangue‖, em que se produz, pela troca de
sangue, uma fusão direta da vida humana e da vida divina. Diremos o mesmo de certos
casos de oferenda de cabelos, pois também aqui o sujeito que sacrifica está, por parte
de sua pessoa que é oferecida, em comunicação direta com o deus. É certo que há
conexões entre esses ritos e o sacrifício, mas eles devem ser distinguidos.
Essa primeira característica não é porém suficiente, já que não permite
distinguir o sacrifício desses fatos maldefinidos que convém nomear como
―oferendas‖. Com efeito, não há oferenda em que o objeto consagrado não se
interponha igualmente entre o deus e o oferecedor e em que este último não seja
afetado pela consagração. Mas se todo sacrifício é, de fato, uma oblação, há oblações
de espécies diferentes. (...)
Deve-se chamar ―sacrifício‖ toda oblação, mesmo vegetal, em que a oferenda,
ou uma parte dela, é destruída, embora o costume pareça reservar o termo apenas à
designação dos sacrifícios sangrentos. (...)
Chegamos então à seguinte fórmula: o sacrifício é um ato religioso que
mediante a consagração de uma vítima modifica o estado da pessoa moral que o efetua
ou de certos objetos pelos quais ela se interessa. (...)
O sacrifício é um ato religioso que só pode se efetuar num meio religioso e por
intermédio de agentes essencialmente religiosos. Ora, antes da cerimônia, em geral,
nem o sacrificante, nem o sacrificador, nem o lugar, nem os instrumentos, nem a vítima
têm esse caráter no grau que convém. Assim, a primeira fase do sacrifício tem por
objeto conferir-lhes esse caráter. Eles são profanos, e é preciso que mudem de estado.
Para tanto, são necessários ritos que os introduzem no mundo sagrado e ali os
comprometam mais ou menos profundamente.
MAUSS, M. & HUBERT, H. Sobre o Sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 17-28.
39
FUSTEL DE COULANGES: A RELIGIÃO ANTIGA
Numa Denis Fustel de Coulanges (1830-1889) foi um historiador
francês estudioso das sociedades antigas, principalmente Grécia e Roma.
Seu rigor investigativo e profundidade de análise levaram-no a publicar
sua importante obra A Cidade Antiga, da qual foi extraído o texto abaixo.
Nela, ele destaca o papel da religião nas sociedades gregas e romanas
antigas e quais os ritos associados a ela. Dentre as muitas concepções
antigas desses povos, destaca-se a crença numa existência além da vida,
não numa outra dimensão, mas debaixo da terra, junto ao corpo – como
se alma e corpo continuassem ligados, mesmo após a morte. Daí a
existência do rito fúnebre, prática que sobrevive até hoje nos tempos mo-
dernos, mesmo que as pessoas possuam outras crenças religiosas. Somente num momento pos-
terior surgiu entre esses povos a ideia de uma região subterrânea habitada pelas almas, de modo
a receberem, cada uma, a pena ou recompensa de acordo com a conduta praticada em vida.
Fustel de Coulanges também afirmou que cada família tinha o seu culto, não sendo este,
portanto, público, mas privado. Por isso não haviam regras uniformes nem a imposição, de fora,
de um ritual comum. De acordo com este autor, a origem da família antiga não está no
sentimento ou na força física do pai, mas na religião doméstica e seu culto dos antepassados.
Leia o texto abaixo e responda: 1) Por que os antigos punham flores e alimentos junto
aos túmulos? 2) Qual a importância da religião antiga? 3) O que o fogo representava? 4) Cite
algumas diferenças entre as religiões antigas e as modernas.
Atentemos bem ao fato de não bastar que o corpo fosse depositado na terra. Era ainda
preciso observarem-se certos ritos tradicionais e pronunciarem-se determinadas fórmulas. (...)
Uma vez que, sem eles, as almas andavam errantes e apareciam aos vivos, é porque só
mediante a sua rigorosa observância se fixavam e encerravam nos túmulos. E como existiam
fórmulas com esta virtude, os antigos também possuíam outras fórmulas tendo eficácia
contrária; a de evocar as almas e fazê-las sair momentaneamente do sepulcro.
Pode-se ver em escritores antigos como o homem constantemente vivia atormentado
pelo receio de que, depois da sua morte, não se observassem tais ritos. Era isto motivo para
amargas inquietações. Temia-se menos a morte do que a privação de sepultura. Porque na
sepultura está o repouso e a bem-aventurança eterna. (...)
O ser que vive debaixo da terra não se encontra tão desprendido do humano que não te-
nha necessidade de alimento. Por isso, em certos dias do ano, se leva a refeição a cada túmulo.
Ovídio e Virgílio (...). descrevem-nos o costume de se cercar o túmulo de grandes
grinaldas de plantas e de flores e de sobre o mesmo se colocarem pastéis, frutas, sal e ainda ali
se verterem o leite, o vinho e algumas vezes o sangue de uma vítima.
Enganar-nos-íamos muito se acreditássemos ver nessa refeição fúnebre apenas uma
espécie de comemoração. O alimento que a família lhe leva destina-se efetivamente ao morto, e
exclusivamente a este. (...)
Desde os mais remotos tempos, deram estas crenças lugar a normas de conduta. Como,
entre os antigos, o morto necessitasse de alimento e de bebida, concebeu-se, como dever dos
vivos, satisfazer-lhe esta sua necessidade. O cuidado de levar aos mortos os alimentos não
esteve a cargo do capricho ou dos sentimentos variáveis dos homens; foi obrigatório. Assim se
estabeleceu toda esta religião da morte, cujos dogmas cedo desapareceram, durando, no
entanto, os seus ritos até o triunfo do cristianismo.
Os mortos eram tidos como entes sagrados. Os antigos davam-lhes os epítetos mais
respeitosos que podiam encontrar no seu vocabulário; chamavam-lhes bons, santos, bem-
aventurados. Tinham por eles tanta veneração quanto o homem pode ter pela divindade que
ama ou teme. Para o seu pensamento cada morto era um deus. (...)
Os gregos davam de bom grado aos mortos o nome de deuses subterrâneos. Em
Ésquilo, o filho invoca seu falecido pai com estas palavras: ―Oh, tu que és um deus sob a
terra‖. Eurípedes, falando de Alceste, acrescenta: ―Junto do teu túmulo o viandante parará e
40
dirá: ‗Aqui vive agora a divindade bem-aventurada‘‖. Os romanos davam aos mortos o nome
de deuses manes. ―Prestai aos deuses manes quanto lhes é devido‖, diz Cícero, ―são homens
que abandonaram esta vida terrena; considerai-os como seres divinos‖.
Os túmulos eram os templos destas divindades. Por isso tinham a inscrição sacramental
Dis Manibus, em grego Theoíz khthoníois. O deus vivia enterrado no seu túmulo, Manesque
sepulti, no dizer de Virgílio. Diante do túmulo havia um altar para os sacrifícios igual ao que há
em frente dos templos dos deuses. (...)
Toda casa de grego ou de romano possuía altar; neste altar devia haver sempre restos
de cinza e brasas. Era obrigação sagrada do dono de cada casa conservar o fogo, dia e noite.
Desgraçada daquela casa onde o fogo se extinguisse! Ao anoitecer de cada dia se cobriam de
cinza os carvões, para deste modo se evitar que eles se consumissem inteiramente durante a
noite; ao despertar, o primeiro cuidado do homem era avivar o fogo e alimentá-lo com alguns
ramos secos. O fogo só deixava de brilhar sobre o altar quando toda a família havia morrido;
lar extinto, família extinta, eram expressões sinônimas entre os antigos.
E, evidentemente, o uso de manter-se sempre o fogo sobre o altar remonta a antiga
crença. As regras e os ritos observados a este respeito mostram-nos não ser então este entre as
gentes um costume qualquer, insignificante. Não lhes era permitido alimentar este fogo com
qualquer espécie de madeira; a religião distinguia, entre as árvores, aquelas espécies que
podiam ser empregadas com este fim, e aquelas outras de que era impiedade servirem-se. A
religião ensinava ainda como este fogo devia permanecer sempre puro, o que em sentido literal
significava que nenhum objeto sujo lhe devia ser atirado e que, em sentido figurado, nenhuma
ação culposa deveria ser cometida em sua presença. (...)
Este fogo tinha algo de divino; adoravam-no, prestavam-lhe verdadeiro culto.
Davam-lhe como oferenda tudo quanto julgavam pudesse agradar a um deus: flores,
frutas, incenso, vinho. Imploravam-lhe proteção, que supunham poderosa. Dirigiam-lhe
fervorosas preces para dele conseguirem os fins eternos desejados pro todo o homem:
saúde, riqueza e felicidade. (...)
Não podemos representar esta antiga religião como aquelas fundadas mais tarde, em
civilização mais avançada. Há muitos séculos já que o gênero humano só admite uma doutrina
religiosa, sob duas condições: uma, a de anunciar um só deus; em segundo lugar, desde que, de
igual modo, se dirija a todos os homens e seja acessível a todos, sem repelir sistematicamente
qualquer classe ou raça. Mas a religião dos tempos primevos não obedecia a nenhum destes
dois requisitos. Além de não dar à adoração dos homens um só deus, ainda os seus deuses não
aceitavam indistintamente a adoração de todos e quaisquer homens. Não se apresentavam como
deuses do gênero humano. Não se assemelhavam mesmo nem a Brama, pelo menos, deus de
toda uma grande casta, nem ao Zeus pan-heleno, que o foi de toda uma nação. Nesta religião
primitiva cada um dos seus deuses não podia ser adorado por mais de uma família. A religião
era puramente doméstica.
É preciso esclarecer esta importante situação porque sem o fazermos nunca se
compreenderá a íntima correspondência estabelecida entre as velhas crenças e a constituição
das famílias grega e romana.
O culto dos mortos não o podemos de modo algum aproximar daquele que os cristãos
têm pelos santos. Uma das primeiras regras do culto dos mortos estava no fato de este apenas
poder ser prestado aos mortos de cada família que pelo sangue lhes pertencia. O funeral só
podia realizar-se religiosamente quando presidido pelo parente mais próximo. Quanto à
refeição fúnebre, que se renova em épocas determinadas, só a família tinha o direito de assistir,
estando todo o estranho rigorosamente excluído dela. Acreditava-se que o morto só aceitava a
oferenda quando esta lhe fosse prestada da mão dos seus; queria apenas o culto dos seus
descendentes. A presença de um homem estranho na família logo perturbava o repouso dos
manes. Por essa razão, a lei proibia o estrangeiro de se aproximar do túmulo. Tocar com o pé,
mesmo por descuido, numa sepultura era ato ímpio, que obrigava a fazer ato de reconciliação
com o morto, e exigindo ainda do delinquente a sua purificação.
COULANGES, F. A Cidade Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 10-12, 14-15, 18-19, 28-29.
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CHRISTOPHER DAWSON: RELIGIÃO E CULTURA
Christopher Dawson (1889-1970) foi um estudioso britânico de
religião e cultura. Dentre outras teses que defendeu, destacou a importância da
religião católica medieval no desenvolvimento da sociedade ocidental
moderna, negando desta maneira aquelas visões que consideram a Idade
Média como uma época de estagnação.
O texto abaixo foi retirado da obra Inquéritos Sobre Religião e
Cultura. Leia-o e responda: 1) Qual a visão que os iluministas possuíam da
religião? 2) Qual a importância da religião?
42
MAX WEBER: SENTIDO DA AÇÃO RELIGIOSA
Maximilian Karl Emil Weber (1864-1920) era alemão.
Estudou história, direito e economia, tendo se destacado como um
dos fundadores da Sociologia. Dentre os vários assuntos a que se
dedicou, destaca-se o estudo sobre as religiões mundiais,
principalmente as orientais. Weber deu um enfoque diferente à
Sociologia, ao considerar que o sentido atribuído à ação pelo
indivíduo, e não os aspectos externos, eram importantes para a
análise sociológica.
O texto abaixo foi retirado da obra Economia e Sociedade.
Leia-o e responda: 1) No que consiste o fenômeno religioso para Weber? 2) Existe
racionalidade nas ações mágicas ou religiosas, segundo o autor? Justifique.
43
GERSHOM SCHOLEM: EXPERIÊNCIA MÍSTICA
Gershom Gerhard Scholem (1897-1982) foi um teórico
alemão. Estudou matemática, filosofia e língua hebraica, destacando-
se nos estudos sobre o judaísmo e cabala. O trecho abaixo foi retirado
da obra A Cabala e seu Simbolismo. Leia-o e responda: 1) O que é
uma experiência mística? 2) Por que ela possui dois aspectos ao
mesmo tempo, um ―conservador‖ e outro ―revolucionário‖?
44
LINGUAGEM
A linguagem é um importante atributo do ser humano. Nascida ao mesmo tempo
em que as primeiras formas de sociedade, se manifesta de diferentes maneiras, sendo a
língua sua forma mais importante. Outros tipos de linguagem podem ser a vestimenta,
os gestos, a disposição das casas, o comportamento ou as trocas econômicas.
Faz-se necessário, pois, distinguir entre linguagem e língua, assim como entre
língua e fala. Essas questões serão respondidas ao longo da leitura dos textos abaixo.
Embora o estudo da língua e da linguagem pertença aos domínios da Linguística,
da Filologia, da Gramática e da Semiologia, seu estudo é relevante à Sociologia por se
tratar de uma importante instituição social. O caráter social tanto da língua quanto da
linguagem fica evidente numa primeira observação, quando notamos as diferenças
regionais num mesmo idioma ou as manifestações de folclore; mas muitos outros
aspectos podem ser descobertos quando adentramos nesse fascinante estudo. Por
exemplo, a relação entre o surgimento dos primeiros agrupamentos humanos e as
primeiras formas de linguagem, ou ainda, entre estas e as primeiras manifestações
religiosas. Conforme veremos, alguns autores perceberam que nas várias instituições
humanas ocorre um tipo de comunicação; portanto, a religião seria também um tipo de
linguagem. No limite, até as relações de parentesco seriam manifestações da linguagem.
O estudo das variações da língua ao longo do tempo ganhou a atenção dos
primeiros filólogos e linguistas, principalmente no século XIX. Através desse tipo de
análise, puderam constatar origens etimológicas de variados grupos, bem como aspectos
culturais de povos que viveram há muito tempo, e dos quais não restou nada senão
pequenos objetos encontrados em escavações. Entretanto, essa prática não pode ser
tomada como rigorosamente confiável, conforme demonstraram estudiosos diversos do
assunto, como o antropólogo Franz Boas. Segundo este, pode ocorrer uma mudança
completa na língua e na cultura, sem uma mudança correspondente no tipo físico
(étnico); ou pode ocorrer variações étnicas (como miscigenação entre etnias) sem uma
mudança correspondente na língua ou cultura; e ainda, pode acontecer variações
culturais profundas sem que uma grande variação étnica ou na língua ocorra.
Alguns autores entenderam que poderia ocorrer linguagem inclusive entre os
animais, como por exemplo, entre as abelhas, que emitem sinais detectáveis por outras
abelhas – através de movimentos cuidadosamente captados e observados. Já outros
estudiosos contestaram tais interpretações, como o linguista Benveniste (1902-1976),
para o qual a linguagem é um diálogo entre duas ou mais partes, enquanto que num
sistema de sinais (como o das abelhas) não há diálogo; além disso, na linguagem a
mensagem pode ser transmitida a uma terceira pessoa, enquanto que num sistema de
sinais a mensagem não vai além do receptor; por fim, a linguagem para Benveniste é
constituída de infinitos conteúdos, enquanto que o sistema de sinais é limitado a uma
quantidade de sinais específicos (como um programa de computador, por exemplo).
Esperamos que a leitura dos textos seguintes o ajude a entender essas e outras
questões.
45
HJELMSLEV: ESTUDO DA LINGUAGEM
Louis Trolle Hjelmslev foi um linguista dinamarquês. Seus
estudos basearam-se no estudo formal da linguagem, isto é, utilizando-
se critérios mais racionais e lógicos. Isso o levou a desenvolver a
teoria da Glossemática.
O texto abaixo foi retirado da obra Prolegômenos a uma
Teoria da Linguagem. Leia-o e responda: 1) O que é a linguagem? 2)
Qual a importância de seu estudo? 3) O que é significa considerar a
linguagem como um meio ou como um fim em si mesmo? Justifique.
46
FERDINAND DE SAUSSURE: LÍNGUA E LINGUAGEM
Ferdinand de Saussure (1857-1913) foi um linguista suíço. Seus
estudos sobre a estrutura da linguagem levaram-no a considera-la como
um fenômeno social, uma instituição. Como tal, pode ser analisada de
forma síncrona (existente num determinado momento) e diacrônica
(como muda ao longo do tempo). A maioria dos estudos se concentrava
na análise diacrônica, mas Saussure insistiu na importância de se
entender a estrutura da linguagem como um sistema funcional em si
mesmo, isto é, na análise síncrona; além disso, destacou que as duas
análises são distintas em seus princípios e métodos.
Saussure ministrou cursos de linguística em Genebra entre os anos de 1907 e
1910. Em 1916, três anos após sua morte, alguns de seus discípulos reuniram e
compilaram as anotações de alunos que frequentaram esses cursos, e então surgiu o
Curso de Linguística Geral, uma obra que influenciou toda a Linguística do século XX
e que até hoje é referência na área.
O texto abaixo foi retirado justamente da obra Curso de Linguística Geral. Leia-
o e responda: 1) Qual a diferença entre língua e linguagem? 2) Qual a importância de se
estudar a língua quando se procura estudar a linguagem? 3) Por que o estudo da
linguagem interessa à Sociologia? 4) A função da linguagem é natural ou arbitrária?
Justifique.
47
várias ciências – Psicologia, Antropologia, Gramática normativa, Filologia, etc. –, que
separamos claramente da Linguística, mas que, por culpa de um método incorreto,
poderiam reivindicar a linguagem como um de seus objetos.
Há, segundo nos parece, uma solução para todas essas dificuldades: é
necessário colocar-se primeiramente no terreno da língua e toma-la como norma de
todas as outras manifestações da linguagem. De fato, entre tantas dualidades, somente
a língua parece suscetível duma definição autônoma e fornece um ponto de apoio
satisfatório para o espírito.
Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é
somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo,
um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções
necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos
indivíduos. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; em lugar
superior de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela
pertence além disso ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar
em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade.
A língua, ao contrário, é um todo por si e um princípio de classificação. Desde
que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem
natural num conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação.
A esse princípio de classificação poder-se-ia objetar que o exercício da
linguagem repousa numa faculdade que nos é dada pela Natureza, ao passo que a
língua constitui algo adquirido e convencional, que deveria subordinar-se ao instinto
natural em vez de adiantar-se a ele.
Eis o que pode se responder.
Inicialmente, não está provado que a função da linguagem, tal como ela se
manifesta quando falamos, seja inteiramente natural, isto é: que nosso aparelho vocal
tenha sido feito para falar, assim como nossas pernas para andar. Os linguistas estão
longe de concordar nesse ponto. Assim, para Whitney, que considera a língua uma
instituição social da mesma espécie que todas as outras, é por acaso e por simples
razões de comodidade que nos servimos do aparelho vocal como instrumento da
língua; os homens poderiam também ter escolhido o gesto e empregar imagens visuais
em lugar de imagens acústicas. Sem dúvida, esta tese é demasiado absoluta; a língua
não é uma instituição social semelhante às outras em todos os pontos; além disso,
Whitney vai longe demais quando diz que nossa escolha recaiu por acaso nos órgãos
vocais; de certo modo, já nos haviam sido impostas pela Natureza. No ponto essencial,
porém, o linguista americano nos parece ter razão: a língua é uma convenção e a
natureza do signo convencional é indiferente. A questão do aparelho vocal se revela,
pois, secundária no problema da linguagem. (...)
Para atribuir à língua o primeiro lugar no estudo da linguagem, pode-se, enfim,
fazer valer o argumento de que a faculdade – natural ou não – de articular palavras não
se exerce senão com ajuda de instrumento criado e fornecido pela coletividade; não é,
então, ilusório dizer que é a língua que faz a unidade da linguagem.
SAUSSURE, F de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1969, p.15-18.
48
LÉVI-STRAUSS: LINGUAGEM E SOCIEDADE
O antropólogo Claude Lévi-Strauss já foi lido em texto anterior. Nesta
passagem, ele analisa alguns aspectos interessantes da linguagem, notando que há
comunicação em aspectos inusitados da sociedade. Leia-o e responda: 1) O que é
manifestação consciente e inconsciente da linguagem? 2) Que outros sistemas sociais
podem ser vistos como um tipo de linguagem? Explique.
49
quando se mede um certo número de relações entre os vários elementos do vestuário.
Tais relações podem ser expressas na forma de funções matemáticas, cujos valores,
calculados num determinado momento, fornecem uma base para a previsão. (...)
Apliquei um método análogo ao estudo da organização social, principalmente
das regras de casamento e dos sistemas de parentesco. Foi assim possível estabelecer
que as regras de casamento observáveis nas sociedades humanas não devem ser
classificadas – como se costuma fazer – em categorias heterogêneas e diversamente
intituladas: proibição do incesto, tipos de casamento preferencial etc. Todas elas
representam modos de garantir a circulação das mulheres no seio do grupo social, isto
é, de substituir um sistema de relações consangüíneas, de origem biológica, por um
sistema sociológico de aliança. (...)
Pois bem, a hipótese inicial foi confirmada pela demonstração – obtida de modo
puramente dedutivo – de que todos os mecanismos de reciprocidade conhecidos pela
antropologia clássica (isto é, aqueles fundados numa organização dualista e o
casamento por troca entre parceiros em número de 2, ou de um múltiplo de 2)
constituem casos particulares de uma forma de reciprocidade mais geral, entre um
número qualquer de parceiros. Tal forma geral de reciprocidade tinha permanecido
oculta, porque os parceiros não dão uns aos outros (e não recebem uns dos outros): não
se recebe daquele a quem se dá e não se dá àquele de quem se recebe. Cada qual dá a
um parceiro e recebe de outro, no interior de um ciclo de reciprocidade que opera num
único sentido. (...)
Toda a demonstração (...) pode ser levada a bom termo com uma condição:
considerar as regras de casamento e os sistemas de parentesco como uma espécie de
linguagem, ou seja, um conjunto de operações destinadas a garantir um certo tipo de
comunicação entre os indivíduos e os grupos. O fato de aqui a ―mensagem‖ ser
constituída pelas mulheres do grupo que circulam entre os clãs, linhagens ou famílias
(e não, como na linguagem em si, pelas palavras do grupo circulando entre indivíduos)
não altera em nada a identidade do fenômeno, considerado em ambos os casos.
Seria possível ir mais longe? Ao alargarmos a noção de comunicação para nela
incluir a exogamia e as regras que decorrem da proibição do incesto, podemos lançar
algumas luzes sobre uma questão ainda misteriosa, a da origem da linguagem.
Comparadas à linguagem, as regras do casamento formam um sistema complexo do
mesmo tipo que ela, porém mais grosseiro, e no qual um bom número de traços
arcaicos, comuns a ambos, se encontram preservados. Todos reconhecemos que as
palavras são signos, mas os poetas são ainda, entre nós, os últimos a saber que as
palavras também foram valores. Em compensação, o grupo social considera as
mulheres como valores de um tipo essencial, mas temos dificuldade em compreender
que tais valores possam se integrar em sistemas significativos, qualidade que mal
começamos a atribuir aos sistemas de parentesco. Tal equívoco fica evidente numa
crítica algumas vezes feita às Estruturas elementares do parentesco: ―livro
antifeminista‖, disseram alguns, porque as mulheres nele são tratadas como objetos. É
legítima a surpresa diante do fato de se atribuir às mulheres o papel de elementos num
sistema de signos. Porém, vale lembrar que, se as palavras e os fonemas perderam (de
modo mais aparente do que real, aliás) seu caráter de valores, para se tornarem meros
signos, a mesma evolução não poderia se reproduzir integralmente no que diz respeito
às mulheres. As palavras, ao contrário das mulheres, não falam. Estas são ao mesmo
tempo signos e produtoras de signos e, enquanto tais, não podem ser reduzidas ao
estado de símbolos ou ocorrência de símbolos.
50
EDWARD HALL: LÍNGUA E PERCEPÇÃO SENSORIAL
Edward Twitchell Hall Jr (1914-2009) foi um antropólogo
americano cujos estudos se basearam no tema da comunicação.
Estudando culturas diversas, observou de que modo a comunicação se
manifestava em cada uma delas, não apenas através da língua, mas por
meio de gestos, tipos de construção de casas, dormitórios, distância entre
os falantes, disposição espacial dos objetos e uma série de outros
elementos. Sua teoria ficou conhecida como comunicação proxêmica.
O texto abaixo foi retirado da obra A Dimensão Oculta. Leia-o e responda: 1) O
que é a língua, segundo Hall? 2) Por que pessoas com a mesma experiência, mas em
culturas diferentes, possuem visões diferentes em relação a essa mesma experiência?
Há cerca de cinquenta e três anos, Franz Boas estabeleceu os fundamentos de que a
comunicação constitui o núcleo da cultura e, na verdade, da própria vida. Nos vinte anos
subsequentes, Boas e dois outros antropólogos, Edward Sapir e Leonard Bloomfield, todos
falando idiomas indo-europeus, defrontaram-se com as línguas, radicalmente diferentes, dos
índios americanos e dos esquimós. O conflito entre esses dois sistemas de linguagem distintos
produziu uma revolução, no tocante à natureza da linguagem em si. Até então, os estudiosos
europeus tomavam as línguas indo-europeias como modelos para todas as línguas. Boas e seus
seguidores descobriram, com efeito, que cada família de idiomas é uma lei em si, um sistema
fechado, cujos modelos os linguistas precisam revelar e descrever. Era preciso que o cientista
da linguística evitasse, conscientemente, a armadilha de projetar as regras ocultas de sua
própria língua naquela que estava sendo estudada.
Na década de 30, Benjamin Lee Whorf, químico e engenheiro, porém diletante do
campo da linguística, começou a estudar com Sapir. Os ensaios de Whorf, baseados em seu
trabalho com os índios Hopi e Shawnee, tiveram implicações revolucionárias para a relação da
língua com o pensamento e também com a percepção. A língua, disse ele, é mais do que apenas
um meio de expressão do pensamento. Trata-se, na verdade, de um elemento na formação do
pensamento. Além disso, para empregar uma imagem bem atual, a própria percepção que o
homem tem do mundo em torno de si é programada pela língua que fala, exatamente como um
computador. Como este, a mente do homem só registra e estrutura a realidade externa de
acordo com o programa. E já que dois idiomas muitas vezes programam o mesmo tipo de
eventos de maneira completamente diferente, nenhuma crença ou sistema filosófico devem ser
considerados isolados da língua.
Só nos últimos anos, e apenas para um punhado de pessoas, as implicações do
pensamento de Whorf tornaram-se evidentes. Difíceis de captar, elas se mostraram algo
assustadoras, quando analisadas cuidadosamente. Chocam-se com a raiz da doutrina do ―livre
arbítrio‖ porque, segundo indicam, todos os homens são prisioneiros de sua língua, na medida
em que não dão maior atenção a ela.
A tese deste livro, e a de The Silent Language, anterior a ele, é de que os princípios
estabelecidos por Whorf e seus companheiros linguistas com relação à língua aplicam-se,
também, ao resto do comportamento humano – na verdade, a toda cultura. Era crença antiga
que a experiência fosse partilhada por todos os homens e que existisse sempre a possibilidade
de ultrapassar a língua e a cultura e, de alguma forma, recorrer à experiência, para alcançar
outro ser humano. Esta crença implícita (e, muitas vezes, explícita), referente à relação do
homem com a experiência, baseava-se em suposições de que, quando dois seres humanos são
submetidos à mesma ―experiência‖, virtualmente os dois sistemas nervosos centrais estão
sendo alimentados com os mesmos dados, e os dois têm registros similares.
A pesquisa proxêmica coloca em séria dúvida a validade desta suposição,
particularmente quando as culturas são diferentes. (...) Pessoas de culturas diferentes não
apenas falam línguas diversas mas, o que é talvez mais importante, habitam em diferentes
mundos sensoriais.
HALL, E. T. Jr. A Dimensão Oculta.
51
LÚCIA SANTAELLA: AS VÁRIAS
MANIFESTAÇÕES DA LINGUAGEM
Maria Lucia Santaella Braga (1944) é doutora na área
de Letras. Dentre os seus vários estudos, destacam-se os na
área da Semiótica. O texto abaixo foi retirado de sua obra O
que é Semiótica, no qual ela analisa as diferenças entre a língua
e a linguagem. Leia-o e responda: 1) Qual é essa diferença? 2)
Cite exemplos de linguagens modernas.
52
SHANNON: TEORIA MATEMÁTICA DA COMUNICAÇÃO
Claude Elwood Shannon (1916-2001) era um
cientista americano, graduado em Engenharia Elétrica e
Matemática. Trabalhou com computadores, cibernética e
teoria da informação, sendo um dos grandes responsáveis
pelo desenvolvimento da comunicação binária conforme
utilizada atualmente pelos sistemas digitais.
Antes dele, engenheiros e pesquisadores como
Norbert Wiener, Harry Nyquist e Ralph Vinton Lyon
Hartley haviam desenvolvido teorias sobre a comunicação.
Baseado nessas influências e em tantas outras como do
matemático Boyle e do criptoanalista e matemático Alan
Turing, Shannon desenvolveu uma teoria da comunicação
que até hoje é referência na área das comunicações
analógicas e digitais, principalmente esta última.
De todas essas informações, qual lhe prenderia mais a atenção? Certamente que a
terceira, a não ser que você seja uma pessoa totalmente alheia ao que ocorre no mundo.
E qual informação chamou menos a atenção? A explicação para isso foi dada por
Shannon: quanto maior a incerteza, maior a quantidade de informação; e vice-versa,
quanto menor a incerteza (ou maior a certeza) sobre algo, menor será a quantidade de
informação recebida. Isso pode ser expresso pela noção de probabilidades: quanto maior
a probabilidade de ocorrência de um evento, menor a quantidade de informação contida,
e quanto menor a probabilidade de ocorrência de um evento, maior quantidade de
informação terá. Dizer que as pessoas irão comemorar o nascimento de Jesus no Natal é
um evento praticamente certo (100% de chances de ocorrer); já afirmar que o volume de
chuva será o maior dos últimos 50 anos possui probabilidade não muito grande de
ocorrência, por isso trará grande informação; afirmar que o preço da gasolina será de
apenas 1 real por litro em todo o país a partir de amanhã é um evento praticamente
impossível, e por tal motivo, seria uma mensagem com uma quantidade imensa de
informação.
Shannon procurou dar um tratamento matemático à informação, não se
interessando pelos aspectos semânticos ou linguísticos relacionados à mesma. Por
questões envolvendo praticidade, tratamento matemático adequado, codificação binária
e noção intuitiva da informação, Shannon utilizou logaritmos para expressar a medida
da informação, conforme resumidamente expresso abaixo.
54
JAKOBSON: LINGUÍSTICA E TEORIA DAS COMUNICAÇÕES
O texto abaixo foi retirado de uma conferência proferida
pelo linguista Roman Jakobson (1896-1982) e compilada no livro
Linguística e Comunicação. Nesta passagem, Jakobson procura
mostrar quais as relações podem ser estabelecidas entre a teoria da
linguagem e outras disciplinas como Antropologia ou mesmo
Engenharia de Comunicações. Leia o texto abaixo e responda: 1)
Qual a relação entre linguagem e cultura? 2) Qual foi a contribuição
de Charles Sanders Pierce para a Linguística? 3) Qual a importância
da Engenharia das Comunicações para as análises Linguísticas? 4)
Quais são os fatores fundamentais da comunicação linguística?
55
comunicação e a Linguística? Haveria por acaso conflito entre esses dois métodos de
abordagem? Não, de modo algum! Em verdade, a Linguística estrutural e as pesquisas
dos engenheiros de comunicações convergem no que respeita à sua destinação. Mas
então, de que ordem é exatamente a utilidade da teoria da comunicação para a
Linguística e vice-versa? É preciso reconhecer que, sob certos aspectos, os problemas
da troca de informação encontram, por parte dos engenheiros, uma formulação mais
exata e menos ambígua, um controle mais eficaz das técnicas utilizadas, bem como
prometedoras possibilidades de quantificação. Por outro lado, a imensa experiência
acumulada pelos linguistas no tocante à linguagem e à sua estrutura permite-lhes expor
as fraquezas dos engenheiros quando estes lidam com material linguístico. A par da
colaboração entre linguistas e antropólogos, creio que uma colaboração sistemática dos
linguistas, e talvez dos antropólogos também, com os engenheiros de comunicações
será muito frutuosa.
Analisemos os fatores fundamentais da comunicação linguística: qualquer ato
de fala envolve uma mensagem e quatro elementos que lhe são conexos: o emissor, o
receptor, o tema (topic) da mensagem e o código utilizado. A relação entre esses quatro
elementos é variável. E. Sapir analisou os fenômenos linguísticos principalmente do
ponto de vista de sua ―função cognitiva‖, a qual ele considerava como a função
essencial da linguagem. Mas essa ênfase da mensagem no seu tema está longe de ser a
única possibilidade. Desde há algum tempo, tanto nos Estados Unidos como em outros
países os linguistas começam a dar mais atenção às possibilidades evidenciadas pela
ênfase da mensagem em outros fatores, em particular a ênfase nos dois protagonistas
do ato de comunicação, o emissor e o receptor. É assim que acolhemos com prazer as
penetrantes observações de Smith acerca dos elementos linguísticos que servem para
caracterizar quem fala, sua atitude em relação ao que diz e a quem o ouve. (...)
Mencionamos os fatores implicados no ato da fala, mas nada dissemos das
interações e permutações possíveis entre esses fatores – por exemplo, os papeis de
emissor e de receptor podem confundir-se ou alternar-se, o emissor e o receptor podem
tornar-se o tema da mensagem, etc. Mas o problema essencial para a análise do
discurso é o código comum ao emissor e ao receptor e subjacente à troca de
mensagens. Qualquer comunicação seria impossível na ausência de um certo repertório
de ―possibilidades preconcebidas‖ ou de ―representações pré-fabricadas‖ como dizem
os engenheiros, e notadamente D. M. MacKay, um dos mais próximos dos linguistas
entre eles. Quando li tudo o que escreveram os engenheiros de comunicações (...) sobre
código e mensagem, dei-me conta, é claro, de que desde há muito esses dois aspectos
complementares são familiares às teorias linguísticas e lógicas da linguagem, tanto aqui
como alhures; é a mesma dicotomia que encontramos sob denominações diversas tais
como langue-parole (língua-fala), Sistema Linguístico Enunciado, Legisigns-Sinsigns,
Type-Token (tipo-caso particular), Sign-de-sign, Sign-event etc., (modelo semiótico-
processo semiótico) mas devo confessar que os conceitos de código e mensagem
introduzidos pela teoria da comunicação são muito mais claros, muito menos
ambíguos, muito mais operacionais do que tudo o que nos oferece a teoria tradicional
da linguagem para exprimir essa dicotomia. (...)
A teoria da comunicação parece-me uma boa escolar para a Linguística
estrutural, assim como a Linguística estrutural é uma escola útil para os engenheiros de
comunicações. Penso que a realidade fundamental com que se tem de haver o linguista
é a interlocução – a troca de mensagens entre emissor e receptor, entre remetente e
destinatário, entre codificador e decodificador.
56
ESTADO
A origem do Estado remonta às épocas mais remotas da humanidade. Embora a
―cidade-Estado‖ tenha surgido na Grécia antiga em torno do século VIII a.C., cidades
muito antigas com governo e estrutura administrativa básica já haviam surgido bem
antes. Algumas dessas cidades provavelmente nem existem mais, porém outras
conseguiram se manter até hoje, como é o caso de Damasco, cujas evidências
arqueológicas indicam a existência de habitações há pelo menos 11 mil anos atrás, ou
Aleppo, na qual foram encontradas escavações que datam de 13 mil anos atrás,
indicando que nessa época ela já era habitada. Outro exemplo é Jericó, considerada a
primeira cidade murada do mundo, e que possui uma idade de aprox. 11 mil anos.
Quando nos referimos ao Estado como instituição, pensamos na sua complexa
estrutura administrativa, nas relações de poder, taxação, leis, ou ainda, no aparato
militar. Envolve também a política no sentido restrito da palavra, cujo estudo é de
grande importância para as Ciências Sociais. Entretanto, há um aspecto essencial
quando se trata do Estado, que talvez seja o mais importante, ao mesmo tempo o mais
negligenciado, e que está provavelmente na origem dessa instituição, nos primórdios da
humanidade: a autoridade. Sem a atribuição de uma autoridade a um chefe, grupo ou
pessoa considerada excepcional ou capacitada para dirigir os assuntos da comunidade,
cidade ou nação, jamais existiria o Estado, nem hoje, nem em qualquer época antiga.
Ora, sabemos que o princípio da autoridade também está na raiz do surgimento da
família e da religião, instituições já analisadas; isso implica uma possível relação entre o
surgimento do Estado e o surgimento das primeiras comunidades humanas, incluindo o
aspecto mágico/religioso. Esse assunto será discutido também nos textos seguintes.
Várias teorias sobre a origem e a função do Estado foram formuladas ao longo
dos séculos por filósofos, historiadores, cientistas sociais e economistas, dentre outros
teóricos. Muitas dessas teorias são conflitantes entre si, conforme serão vistas nessa
parte. As mais famosas tendem a ver no Estado apenas o aspecto da dominação,
violência e usurpação pela força (roubo), dentre as quais se destacam: a visão marxista
ou anarco-comunista, segundo a qual o Estado seria o instrumento que a classe
dominante utiliza para exercer seu poder sobre a classe dominada; a visão anarco-
capitalista (libertária) que entende o Estado como surgido a partir da dominação de
grupos mais fortes sobre outros mais fracos, e que por isso deveria ser abolido,
deixando-se apenas para o mercado as regulações sociais. Outras teorias tendem a
enfatizar o aspecto da legitimidade existente em qualquer relação envolvendo
governantes e governados, ou entre o Estado e os súditos: é o caso de Weber, para o
qual o Estado seria caracterizado pelo monopólio do uso legítimo da violência.
O estudo dos textos a seguir o tornará apto a compreender melhor esses temas.
57
THOMAS HOBBES: A CONDIÇÃO NATURAL DA HUMANIDADE
E A NECESSIDADE DO ESTADO
O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) utilizou o
conceito de estado de natureza para se referir à condição natural do
homem, e desta maneira justificar a necessidade do Estado para que
as paixões humanas possam ser freadas. Hobbes rejeitou a
afirmação de Aristóteles segundo a qual o homem seria um ―animal
político‖, sociável por natureza; afirmou, pelo contrário, que o
homem por natureza é egoísta, ávido de prazer, ambicioso e
antissocial. Portanto, só contra a vontade que os homens vivem em
sociedade, dizia Hobbes, e não espontaneamente, como queria
Aristóteles. A origem da sociedade, de acordo com ele, não provém da boa vontade dos
seres humanos entre si, mas do medo recíproco.
Hobbes faz parte de uma corrente filosófica conhecida como contratualismo.
Entretanto, ao contrário do que muitos pensam, ele não julgava que a sociedade teria
surgido de forma artificial, a partir de um acordo prévio entre as partes; e a partir daí,
tivessem surgido as leis e o Estado. Ao invés disso, ele afirma que o contrato é
implícito: cada ser humano concorda em transferir seu direito de natureza (isto é, o
direito de usar de todos os meios para garantir a própria vida) em favor de um terceiro, o
soberano. Essa é a atitude mais racional, e somente isso justifica o contrato.
O texto abaixo foi retirado da obra O Leviatã. Leia-o e responda: (1) Por que, no
Estado de Natureza, nem a vida e nem a propriedade estão seguras? (2) Quais as causas
da discórdia entre os homens? (3) Por que, na guerra, a força e a fraude são as duas
virtudes mais importantes? Faça um paralelo com situações reais: presídios, campos de
batalha, etc. (4) Qual a importância do Estado para a manutenção da sociedade? (5)
Faça uma pesquisa sobre o ―Leviatã‖, relatado na Bíblia, no Livro de Jó.
58
ameaçá-lo. E isto não é mais do que sua própria conservação exige, conforme é
geralmente admitido. (...)
Por outro lado, os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros
(e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de
manter a todos em respeito. (...)
De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de
discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória.
A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda,
a segurança; e a ter-ceira, a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem
senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos,
para defendê-los; e os terceiros por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma
diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido
a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua
profissão ou seu nome.
Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem
sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram
naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra
todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas
naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente
conhecida. (...)
Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo
homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o
qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua
própria e sua própria invenção. Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois
seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso
das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis,
nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não
há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não
há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte
violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta. (...)
Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é
consequência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e
injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há
lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais. A
justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. Se assim
fosse, poderiam existir num homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo
que seus sentidos e paixões. São qualidades que pertencem aos homens em sociedade,
não na solidão. Outra consequência da mesma condição é que não há propriedade, nem
domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é
capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo. É pois esta a
miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples
natureza. Embora com uma possibilidade de escapar a ela, que em parte reside nas
paixões, e em parte em sua razão.
As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o
desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de
consegui-las através do trabalho. E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno
das quais os homens podem chegar a acordo. Essas normas são aquelas a que por outro
lado se chama leis da natureza.
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FRANZ OPPENHEIMER: A GÊNESE DO ESTADO
Franz Oppenheimer (1864-1943) foi um sociólogo
alemão. Contrariamente ao que diziam os filósofos
contratualistas, afirmou que o Estado não surgiu de um
contrato, mas da conquista, da violência, do roubo e da força.
De acordo com ele, existem duas formas de se obter riqueza:
pelo trabalho e pelas trocas voluntárias entre os agentes (meio
econômico); ou pelo confisco e apoderação dos bens alheios
através da violência e todo tipo de roubo (meio político). O
Estado, de acordo com ele, enquadra-se nesta última forma:
como uma soma de privilégios e posições dominantes trazidas
à tona por meio do poder extra econômico, isto é, pelo poder
político. Dessa maneira, o Estado não seria uma instituição
natural surgida na sociedade, tal como a família ou a religião, mas algo imposto pela
coerção.
Franz Oppenheimer exerceu bastante influência sobre teóricos que consideram
desnecessária, e até imoral, a existência do Estado. Dentre eles, destacam-se Albert Jay
Nock e os anarcocapitalistas, como Rothbard e Hoppe.
O texto abaixo foi retirado da obra The State. Leia-o e responda: 1) Como surgiu
o Estado na história da humanidade, de acordo com o autor? 2) Qual a relação entre a
atitude dos nômades e a ação do Estado, segundo Oppenheimer? 3) Faça uma pesquisa
sobre o Anarcocapitalismo e anote quais as principais ideias desses teóricos com relação
ao Estado e sua interferência na sociedade.
60
típicos; na Itália, romanos, ostrogodos, lombardos, francos, germanos; na Espanha,
cartagineses, visigodos, árabes; na Gália, romanos, francos, burgúndios, normandos; na
Grã-Bretanha, saxões, normandos. Na Índia, onda após onda de clãs guerreiros
inundaram todo o país, chegando além das ilhas do Oceano Índico. Assim também com
a China. Nas colônias europeias, encontramos o mesmo tipo, onde quer que elementos
estabelecidos da população tenham sido encontrados, como por exemplo, na América
do Sul e México. Onde este elemento está faltando, onde apenas caçadores itinerantes
são encontrados, os quais podem ser exterminados, mas não subjugados, os
conquistadores recorrem ao artifício de importação de massas de homens vindos de
longe para serem explorados, para serem objeto perpétuo de trabalho forçado, e assim o
comércio escravo surge. (...)
Por toda parte, seja no arquipélago malaio, ou no ―grande laboratório
sociológico da África‖, em todos os lugares do planeta onde o desenvolvimento de
tribos tem alcançado absolutamente uma forma superior, o Estado cresceu a partir da
submissão de um grupo de homens por outro. Sua justificativa básica, a sua raison
d‘être, era e é a exploração econômica dos subjugados. (...)
Deixando de lado as formações estatais do novo mundo, que não têm grande
relevância na história universal, a causa da gênese de todos os estados é o contraste
entre camponeses e pastores, entre trabalhadores e ladrões, entre terras inferiores e
pradarias. Ratzel, sobre a sociologia do ponto de vista geográfico, expressa isso
habilmente: ―Deve ser lembrado que os nômades nem sempre destroem a civilização
inimiga do povo assentado. Isso se aplica não só a tribos, mas também aos Estados,
mesmo para aqueles de pouco poder. O caráter guerreiro dos nômades é um grande
fator na criação dos estados. Ele encontra expressão nas nações imensas da Ásia
controladas por dinastias nômades e exércitos nômades, como Pérsia, governada pelos
Turcos; China, conquistada e governada pelos mongóis e manchus; e nos estados da
Índia mongóis e de radjaputa, bem como nos estados na fronteira do Sudão, onde a
fusão dos elementos antigamente hostis não se desenvolveu até agora, embora eles
sejam unidos em benefício mútuo. Em nenhum lugar é mostrado, de forma tão clara
como aqui na fronteira dos povos nômades e camponeses, que as grandes obras de
impulso da civilização feitas por parte dos nômades não são resultado da atividade
civilizadora, mas de façanhas guerreiras, que são antes de tudo prejudiciais ao trabalho
pacífico. Sua importância reside na capacidade dos nômades em manter unidas as raças
sedentárias que de outra forma seriam desfeitas. Isso, no entanto, não exclui a grande
aprendizagem de seus súditos... No entanto, nenhum destes povos trabalhadores e
inteligentes tinha ou podia ter a vontade e o poder de governar, o espírito militar, e o
sentido para a ordem e subordinação que convém a um Estado. Por essa razão, os
senhores nascidos no deserto do Sudão dominam seu povo negro, assim como os
manchus governam seus súditos chineses. Isso ocorre de acordo com uma lei, válida de
Timbuctoo a Pequim, na qual surgem formações estatais vantajosas em terras
camponesas ricas ao lado de uma vasta pradaria; onde uma alta cultura material de
povos sedentários é violentamente subjugada ao serviço de moradores da pradaria com
energia, capacidade de guerra e desejo de governar‖.
OPPENHEIMER, Franz. The State. New York: B. W. HUEBSCH, 1922, p. 15-20, 53-55.
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FRAZER: EVOLUÇÃO DO MAGO/ SACERDOTE PARA REI
O texto abaixo é do antropólogo James Frazer, da mesma obra analisada
anteriormente, O Ramo de Ouro. Aqui, ele procura mostrar a íntima relação existente
entre os primitivos magos sacerdotes, que faziam ―magias‖ para toda a tribo, e o
surgimento dos reis. O autor diferencia ―magia privada‖, que é aquela realizada para
beneficiar ou prejudicar pessoas, da ―magia pública‖, que é aquela realizada em prol de
toda a comunidade. Leia o texto abaixo e responda: 1) Como surgiu a figura do
governante (rei) e do Estado? 2) Segundo Frazer, por que há mais liberdade numa
tirania absoluta do que numa ―democracia‖ da vida selvagem?
62
WEBER: O ESTADO É A LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA
O sociólogo alemão Max Weber, já visto anteriormente, procura analisar o
Estado a partir das motivações individuais e busca entender por que os súditos se
deixam dominar pelo poder estatal. Além disso, procura averiguar quais as diferenças
entre dominação e simples uso da força, buscando conceituar quais os tipos de
dominação existentes. Usar a força é coagir alguém e obrigá-lo a agir desta ou daquela
maneira, contra a vontade dele; dominação é utilizar a força com o consentimento de
outro. Numa relação de dominação sempre há uma relação dual: um expectativa por
parte daquele que domina e uma obediência por parte daquele que é dominado. Tanto
um quanto outro acreditam na legitimidade da dominação.
O texto abaixo foi retirado da obra Ciência e Política: Duas Vocações. Leia-o e
responda: 1) Quais são os três motivos ou três fundamentos que legitimam a
dominação? Explique cada um deles. 2) Volte ao texto anterior (Frazer) e responda: O
mago sacerdote se enquadra em qual desses três tipos? 3) Explique por que, segundo
Weber, o Estado detém o monopólio do uso legítimo da violência.
WEBER, Max. Ciência e Política: Duas Vocações. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 61-2.
63
FUSTEL DE COULANGES: EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA PARA A
CIDADE. MUDANÇA NA MENTALIDADE RELIGIOSA
O historiador já visto, Fustel de Coulanges, analisou o surgimento do Estado a
partir de uma visão diferente. Na obra A Cidade Antiga o autor procura mostrar como se
deu o desenvolvimento da família até a cidade, bem como o papel desempenhado pela
religiosidade de cada grupo particular que se uniu. Leia o texto abaixo e responda: 1)
Qual a relação entre a estreiteza das ideias e a estreiteza da forma de sociedade? 2)
Segundo o autor, a concepção de um deus único, infinito, etc., é típica de sociedades
avançadas ou primitivas? Justifique através do texto. 3) De que modo a mudança da
mentalidade religiosa contribuiu para a evolução da sociedade?
Até aqui não demos nenhuma data, e ainda continuaremos a não poder
apresentá-la. Na história das sociedades antigas as épocas indicam-se mais facilmente
pela sucessão de ideias e das instituições que pela sequência dos anos.
O estudo das antigas regras de direito privado faz-nos entrever, para além dos
tempos chamados históricos, um período de séculos durante o qual a família aparece
como única forma de sociedade existente. Esta família podia então contar, no seu
extenso quadro, milhares de seres humanos. Mas, nestes limites, a associação humana
aparece ainda bastante acanhada: muito acanhada para as necessidades materiais,
porque seria difícil a esta família ter os recursos suficientes para todos os acasos da
vida; e muito acanhada ainda para as necessidades morais da nossa natureza, porque já
vimos quanto, neste pequeno mundo, a inteligência do divino se revelou mesquinha e
sua moral incompleta.
A estreiteza desta sociedade primitiva correspondia à pequenez da ideia que se
fazia da divindade. Cada família tinha os seus deuses, e o homem só conhecia e
adorava as divindades domésticas. Mas não deve ter-se contentado muito tempo com
estes deuses, tão abaixo do que sua inteligência podia atingir. Se ainda eram precisos
muitos séculos para chegar a compreender Deus como um ser único, incomparável,
infinito, pelo menos devia aproximar-se insensivelmente desse ideal, aumentando, de
geração em geração, a sua concepção e fazendo recuar pouco a pouco a linha do
horizonte que separa, para ele, o Ser divino das coisas terrenas.
A ideia religiosa e a sociedade humana iam, portanto, desenvolver-se ao mesmo
tempo.
A religião doméstica proibia a duas famílias misturarem-se e confundirem-se.
Mas era possível que muitas famílias, sem sacrificarem coisa alguma da sua religião
particular, se unissem, pelo menos para a celebração de outro culto que lhes fosse
comum. E foi isto que se deu. Certo número de famílias formou um grupo, ao qual a
língua grega deu o nome de fratria e a latina o de cúria. (...) Esta nova associação não
se realizou sem algum alargamento da ideia religiosa. Ao mesmo tempo que essas
famílias se uniram, logo conceberam uma divindade superior a seus deuses domésticos
que, comum a todos, velava por todo o grupo. Erigiram-lhe altar, acenderam o fogo
sagrado e instituíram-lhe o culto. (...)
A tribo, tanto como a família e a fratria, constitui-se em corpo independente,
com culto especial de onde se excluía o estrangeiro. Quando formada, nenhuma nova
família podia nela ser admitida. Duas tribos de modo algum podiam fundir-se em uma
só, porque a sua religião a isso se opunha. Mas, assim como muitas fratrias estavam
reunidas em uma tribo, muitas tribos puderam associar-se, sob condição de o culto de
cada uma delas ser respeitado. No dia em que nasceu essa aliança nasceu a cidade.
Pouco importa investigar-se a causa determinadora de muitas tribos vizinhas
64
assim se unirem. Ou a união fosse voluntária, ou imposta pela força superior de alguma
tribo, ou tornada obrigatória pela vontade poderosa de algum homem, temos como
certo ter sido ainda o culto que estabeleceu este vínculo de nova associação. As tribos
agrupadas para formar a cidade nunca deixaram de acender o fogo sagrado e de ter
religião comum.
Assim, a sociedade humana, nesta raça, não se expandiu à maneira de um
círculo que se alastrasse paulatinamente, de um lugar a outro, mas, ao contrário, pela
junção de pequenos grupos, já constituídos há muito tempo. Muitas famílias formaram
a fratria, muitas fratrias a tribo, e muitas tribos a cidade. Família, fratria, tribo, cidade
são, portanto, sociedades perfeitamente análogas e nascidas umas das outras por uma
série de federações.
No entanto – convém registrar –, à medida que estes diferentes grupos se
associam, nenhum perde a sua individualidade nem a sua independência. Ainda que se
reúnam muitas famílias em uma só fratria, cada uma se mantém constituída como na
época do seu isolamento; coisa alguma lhes faz alterar o culto, o sacerdócio, o direito
de propriedade ou a sua justiça interna. Em seguida, associam-se as cúrias, mas
continuando a ter cada uma o seu culto, as suas reuniões, as suas festas e o seu chefe.
Da tribo passa-se à cidade, mas as tribos, por essa mesma razão, não são dissolvidas e
cada uma continua a formar um corpo, pouco mais ou menos como se a cidade não
existisse. Em religião, subsistiu grande quantidade de pequenos cultos, acima dos quais
se estabeleceu o culto comum; em política, continuou a funcionar uma infinidade de
pequenos governos, acima dos quais se colocou o governo comum.
A cidade era uma confederação. Por isso se viu obrigada, pelo menos durante
alguns séculos, a respeitar a independência religiosa e civil das tribos, das cúrias e das
famílias, e ainda por isso não teve desde logo o direito de intervir nos negócios
particulares de cada um desses pequenos corpos. A cidade nada tinha a ver com quanto
se passasse no seio de cada família: não era juiz do que por lá se passava e deixava ao
pai o direito e o dever de julgar sua mulher, seu filho ou o seu cliente. Por essa razão o
direito privado, prefixado na época do isolamento das famílias, pôde durar nas cidades
até muito tarde, sem se modificar. (...)
Assim, a cidade não é um agregado de indivíduos, mas uma confederação de
muitos grupos já anteriormente constituídos e que a cidade deixa subsistir. Sabe-se,
pelos oradores áticos, como cada ateniense fazia, ao mesmo tempo, parte de quatro
sociedades distintas: era membro de uma família, de uma fratria, de uma tribo e de uma
cidade. Mas não entra em todas as quatro ao mesmo tempo e no mesmo dia, como o
francês que, desde o momento em que nasce, fica logo pertencendo, na mesma ocasião,
a determinada família, à comuna, ao departamento e à Pátria. O homem entra em
épocas diversas nas quatro sociedades e de qualquer modo subindo de uma para a
outra. A criança, primeiramente, é admitida na família por uma cerimônia religiosa
realizada dez dias depois do seu nascimento. Alguns anos mais tarde, entra na fratria
por nova cerimônia. (...) Enfim, aos dezesseis ou dezoito anos, apresenta-se par ser
admitida na cidade. Nesse dia, diante do altar e da carne fumegante da vítima,
pronuncia o juramento pelo qual se obriga, entre outras coisas, a respeitar sempre a
religião da cidade. A partir desse dia, está iniciado no culto público e ei-lo cidadão.
Olhando atentamente para esse jovem ateniense, subindo de degrau em degrau, de culto
em culto, ficaremos com a mesma imagem dos graus por que passou outrora a
associação humana. A jornada em que esse jovem é obrigado a caminhar foi, antes
dele, trilhada pela sociedade.
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SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA:
PÚBLICO X PRIVADO, FAMÍLIA X CIDADE
O texto abaixo é do historiador brasileiro Sérgio Buarque
de Holanda (1902-1982), retirado da obra Raízes do Brasil. Nesta
passagem, o autor afirma que a transição da família para a cidade
não ocorreu de forma gradual, mas através de uma transgressão.
Leia o texto abaixo e responda: (1) Por que a transição da família
para a cidade ocorre de forma descontínua, por meio de uma
ruptura? (2) Qual a relação entre o mito de Antígona e Creonte e a
oposição entre família e cidade ou, em outras palavras, qual a
relação deste mito com a oposição público x privado? (3) Cite
exemplos em que ocorra a oposição entre público x privado (ou entre valores familiares
e valores da cidade/ Estado), e casos onde os interesses privados se sobreponham aos
interesses públicos.
O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de
certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo.
Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e
até uma oposição. A indistinção fundamental entre as duas formas é prejuízo romântico que
teve os seus adeptos mais entusiastas durante o século décimo nono. De acordo com esses
doutrinadores, o Estado e as suas instituições descenderiam em linha reta, e por simples
evolução da Família. A verdade, bem outra, é que pertencem a ordens diferentes em essência.
Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples
indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da
Cidade. Há nesse fato um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do
abstrato sobre o corpóreo e não uma depuração sucessiva, uma espiritualização de formas mais
naturais e rudimentares, uma procissão das hipóstases, para falar como na filosofia alexandrina.
A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência.
Ninguém exprimiu com mais intensidade a oposição e mesmo a incompatibilidade
fundamental entre os dois princípios do que Sófocles. Creonte encarna a noção abstrata,
impessoal da Cidade em luta contra essa realidade concreta e tangível que é a família.
Antígona, sepultando Polinice contra as ordenações do Estado, atrai sobre si a cólera do irmão,
que não age em nome de sua vontade pessoal, mas da suposta vontade geral dos cidadãos, da
pátria:
HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1971, p.101-108.
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ESTADO EGÍPCIO: CENTRALIZAÇÃO E MONOPÓLIO
O texto abaixo é um trecho da coleção Grande História Universal já citada
anteriormente. Ele nos dá uma visão geral de como era a vida administrativa no antigo
Egito, bem como a grande intervenção do Estado em quase todos os âmbitos da vida
social. Leia o texto atentamente e responda: (1) Que setores da atividade comercial o
Estado egípcio comandava? (2) Baseando-se em tudo o que já foi lido, este monopólio
exercido pelo Estado egípcio era algo necessário, como nos dá a entender o texto, ou
imposto pelas autoridades pelo uso da força? (3) Faça uma comparação com as
sociedades atuais, principalmente o Brasil, e verifique em quais setores o Estado detém
o monopólio e controle.
67
A UNIFICAÇÃO DA CHINA
O texto abaixo foi retirado da obra já citada Atlas da História do Mundo, de
Geoffrey Barraclough, e trata brevemente da história da China antiga. Leia-o e
responda: (1) o crescimento do Estado na China, tal como no Egito, trouxe malefícios
ou prosperidade para a nação?
Entre 403 e 221 a.C., sete Estados importantes lutaram pela supremacia da
China. Foi o período dos Estados beligerantes. (...) Foi um período de guerras
constantes, entre reinos poderosos e organizados, que substituíram a antiga ordem
social feudal por governos centralizados constituídos de burocratas e não nobres
hereditários. Desenvolveram eficazmente sistemas tributários e legais para prover a
subsistência de exércitos e obras públicas.
O surgimento desses Estados coincidiu com mudanças sócio-econômicas. A
introdução das ferramentas de ferro a partir de 500 a.C. e o uso da tração animal
contribuíram para aumentar a produtividade agrícola. Os novos Estados faziam
drenagem e irrigação para preparar terras para o cultivo. Nessas terras surgiu uma nova
ordem social que rompeu com o rígido sistema comunitário das aldeias. A população se
multiplicou. Comércio e indústria prosperavam à medida que os Estados construíam
estradas e surgiam grandes cidades. Foi um período de inovação na tecnologia, na
ciência e no governo, e de agitação filosófica, quando se impuseram as principais
correntes do pensamento chinês: confucionismo, taoísmo e legalismo.
No Estado de Ch‘in, a aristocracia feudal foi substituída por uma burocracia
rígida e centralizada. A população foi divida em grupos de famílias, com
responsabilidades mútuas, e organizada de forma a fornecer mão-de-obra para
construções e o exército. O novo sistema entrou em vigor através de um código penal
rigoroso. Quando o primeiro imperador Ch‘in Shin Huang-ti unificou a China, essa
ordem se estendeu pelo país. Embora as facções hostis tenham sido eliminadas, os
encargos impostos ao povo e as tensões regionais levaram à queda do império em 206
a.C., logo após a morte do imperador.
Após um período de guerra civil, a nova Dinastia Han, fundada por um homem
de origem humilde, passou a dominar a China. Os Han viram-se forçados a reintroduzir
um sistema de principados feudais, distribuídos para suas famílias e defensores.
Seguindo as diretrizes gerais do governo Ch‘in, com menos rigor, os Han aos poucos
desenvolveram um governo central e um sistema de administração local eficazes.
Os Ch‘in haviam tomado medidas defensivas contra os nômades Hsiung-nu do
norte e haviam avançado para o sul, penetrando em áreas ocupadas por povos
aborígines não-chineses. No governo de Wu-ti (140-78 a.C.), a China retomou a
ofensiva contra os Hsiung-nu e reconstruiu a muralha Ch‘in, estendendo-a até o
noroeste. Abriram a rota para a Ásia Central e, após 59 a.C., por pouco tempo
controlaram os Estados-oásis da bacia do Tarim. Iniciaram um comércio de exportação,
principalmente de seda, para Pártia e o Império Romano. Os Han também reafirmaram
as conquistas Ch‘in na região de Cantão, eliminaram os reinos Yüeh da costa sudeste
no fim do século 2 e ocuparam o norte do Vietnã. (...)
O Império Han prosperou e cresceu rapidamente: neste período de estabilidade,
a população da China atingiu cerca de 57 milhões. Muitas cidades floresceram e a
maior delas, a capital Chang-na, abrigava 250 mil pessoas e era o centro de uma cultura
extraordinária. No início do da era cristã, o Império Han rivalizava com o Império
Romano em tamanho e riqueza.
68
SCRUTON: ESTADO E AUTORIDADE
O texto abaixo é do filósofo Roger Scruton, já visto anteriormente. Nesta parte,
ele argumenta que o Estado só existe porque as pessoas reconhecem sua autoridade,
assim como a reconhecem nas várias instituições e situações sociais. Dessa maneira, ele
desfecha uma crítica a uma concepção importante já analisada: a que considera o Estado
como existindo apenas por meio da coerção. Em sua obra Pensadores da Nova
Esquerda, Scruton fez um crítica à visão de Weber analisada anteriormente, afirmando
que ele não soube diferenciar consentimento e coerção; enxergou uma obediência
voluntária onde pudesse existir, por exemplo, uma ordem tirânica, ou uma coação pela
lei onde existe consentimento e vontade de agir conforme a lei – não matar, não roubar,
etc.
Leia o texto abaixo e responda: 1) O que é autoridade? 2) Qual o papel da
autoridade na formação dos vários grupos ou instituições sociais? 3) Por que a visão
marxista sobre autoridade é irrelevante para a prática política?
69
ALFRED STEPAN: ESTADO E SOCIEDADE CIVIL
Alfred C. Stepan (1936-2017) foi um cientista político
americano. Utilizando o método da política comparada, estudou
sobre a democracia e os regimes autoritários em variados países,
incluindo Peru e Brasil. Também analisou de que maneira a
democracia seria possível em nações com grandes diversidades
linguísticas e étnicas, e principalmente, religiosas.
O texto abaixo foi retirado da obra The State and Society:
Peru in Comparative Perspective, traduzida em português no
Brasil com o nome Estado, Corporativismo e Autoritarismo. Leia-o e responda: 1) Qual
a diferença entre Estado e governo? 2) Quais as relações possíveis entre o Estado e a
sociedade civil? 3) Por que o Estado não é unitário ou monolítico?
O Estado deve ser considerado como algo mais do que o ―governo‖. São os sistemas
administrativos, legais, burocráticos e coercitivos contínuos que tentam não só estruturar as
relações entre a sociedade civil e a autoridade pública numa forma de governo, como também
estruturar melhor muitas relações decisivas dentro da sociedade civil. Os estados consolidados
modernos devem ser comparados não em termos de se eles estruturam essas relações, mas em
termos do grau em que e os meios pelos quais fazem isso.
Segundo, o Estado deve ser considerado como um mecanismo de domínio e controle.
As leis e procedimentos burocráticos do Estado podem refletir a sociedade civil, mas podem
também dar poder ao Estado para dar forma às exigências feitas pela sociedade civil a este.
Uma tarefa principal da pesquisa é determinar a extensão pela qual qualquer Estado particular
(a) é processualmente neutro e permite um processo autônomo e competitivo de agregação de
interesse às atuais exigências compulsórias a estes, (b) é um instrumento de classe no qual o
alcance total dos seus poderes coercitivos, administrativos e legais são usados para dominar
algumas frações da classe e proteger outras, ou (c) consegue algum grau de autonomia da
sociedade civil e assim contribui com o seu próprio peso para os resultados da política.
Terceiro, o Estado não é necessariamente unitário ou monolítico. Cada Estado é
composto de várias partes, tais como a executiva, a administração permanente, a judiciária e o
aparelho coercitivo. O grau pelo qual uma elite estratégica responsável pelo aparelho do Estado
controla de fato todas as suas partes componentes, varia. Mesmo naqueles casos em que em
teoria as partes componentes estão fundidas na executiva, o controle real do aparelho do Estado
pode variar dependendo da unidade ou desunião da elite estratégica. Qualquer análise de uma
tentativa dessa elite de usar o aparelho do Estado para estruturar a sociedade deve portanto
levar em conta a composição do Estado e a unidade ideológica e organizacional da elite
estratégica.
Quarto, Weber acentua que ―o domínio organizado, que requer administração contínua,
exige que o contato humano seja condicionado pela obediência‖. Isto levanta a questão não só
da natureza das exigências de obediência pelo Estado como também se elas são feitas com
sucesso e qual o custo que pode ter este sucesso. Quando estamos considerando as tentativas da
elite estratégica de instaurar um novo padrão de relações entre o Estado e a sociedade civil,
devemos ter consciência de pelo menos três relacionamentos diferentes sociedade-Estado
possíveis: (1) instauração de novas estruturas do Estado para conseguir o que Antônio Gramsci
chamaria de aceitação ―hegemônica‖ da sociedade civil, (2) instauração na qual a sociedade
civil só é condicionada à obediência devido ao poder coercitivo esmagador do Estado, e (3)
fracasso da instauração devido à resistência eficaz dentro da sociedade civil ao esforço da elite
estratégica de estabelecer ―jurisdição compulsória‖ e um ―monopólio da força‖.
STEPAN, Alfred. Estado, Corporativismo e Autoritarismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p.16-17.
70
HEGEL: O ESTADO É A REALIDADE EM ATO
DA LIBERDADE CONCRETA
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um
filósofo alemão. Um dos grandes temas analisados por ele foi o
do Estado e sua relação com a liberdade humana, levando-o a
concluir que somente pelo Estado e no Estado tal liberdade
poderia concretizar-se e manifestar-se no mais alto grau possível.
Somente através do Estado a vontade particular poderia se
conciliar com o universal e, desta maneira, manifestar sua
racionalidade.
- A liberdade, um valor que nós tanto prezamos hoje em dia, foi sendo construída ao
longo da história. Ganhou suas primeiras feições na organização mais primitiva, a
família, e foi se aperfeiçoando ao longo do tempo, quando surgiu a propriedade privada
antiga, o direito primitivo e as primeiras sociedades. A liberdade, portanto, é histórica.
- A liberdade não existiu no mundo apenas como ideia. Ela tomou corpo na realidade
concreta: nas instituições, no comércio, nas leis, na economia, nas artes, no moral, nos
costumes, etc.
71
O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta
adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em si e para si: esta
unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu
valor supremo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os
indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais elevado dever.
Quando se confunde o Estado com a sociedade civil, destinando-o à segurança e
proteção da propriedade e da liberdade pessoais, o interesse dos indivíduos enquanto
tais é o fim supremo para que se reúnem, do que resulta ser facultativo ser membro de
um Estado. Ora, é muito diferente a sua relação com o indivíduo. Se o Estado é o
espírito objetivo, então só como membro é que o indivíduo tem objetividade, verdade e
moralidade. A associação como tal é o verdadeiro conteúdo e o verdadeiro fim, e o
destino dos indivíduos está em participarem numa vida coletiva; quaisquer outras
satisfações, atividades e modalidades de comportamento têm o seu ponto de partida e o
seu resultado neste ato substancial e universal. Considerada abstratamente, a
racionalidade consiste essencialmente na íntima unidade do universal e do indivíduo e,
quanto ao conteúdo no caso concreto de que aqui se trata, na unidade entre a liber-dade
objetiva, isto é, entre a vontade substancial e a liberdade objetiva como consciência
individual, e a vontade que procura realizar os seus fins particulares; quanto à forma,
constitui ela, por conseguinte, um comportamento que se determina segundo as leis e
os princípios pen-sados, isto é, universais. Esta ideia é o ser universal e necessário em
si e para si do espírito. (...)
Contra o princípio da vontade individual, é preciso ter presentes os seguintes
princípios fundamentais: a vontade objetiva é o racional em si no seu conceito, quer
seja ou não conhecido do indivíduo e aceito pelo seu livre-arbítrio, e o termo oposto, o
saber e o querer, a subjetividade da liberdade que só se afirma no princípio que
examinamos, apenas contém um momento unilateral da ideia da vontade racional que
só é verdadeiramente ela mesma quando em si também é o que é para si. (...)
É o Estado a realidade em ato da liberdade concreta. Ora, a liberdade concreta
consiste em a individualidade pessoal, com os seus particulares, de tal modo possuir o
seu pleno desenvolvimento e o reconhecimento dos seus direitos para si (nos sistemas
da família e da sociedade civil) que, em parte, se integram por si mesmos no interesse
universal e, em parte, consciente e voluntariamente o reconhecem como seu particular
espírito substancial e para ele agem como seu último fim. Daí provém que nem o
universal tem valor e é realizado sem o interesse, a consciência e a vontade
particulares, nem os indivíduos vivem como pessoas privadas unicamente orientadas
pelo seu interesse e sem relação com a vontade universal; deste fim são conscientes em
sua atividade individual. O princípio dos Estados modernos tem esta imensa força e
profundidade: permitirem que o espírito da subjetividade chegue até a extrema
autonomia da particularidade pessoal ao mesmo tempo que o reconduz à unidade
substancial, assim mantendo esta unidade no seu próprio princípio.
Em face do direito privado e do interesse particular, da família e da sociedade
civil, o Estado é, por um lado, necessidade exterior e poder mais alto; subordinam-se
lhe as leis e os interesses daqueles domínios mas, por outro lado, é para eles fim
imanente, tendo a sua força na unidade do seu último fim universal e dos interesses
particulares do indivíduo; esta unidade exprime-se em terem aqueles domínios deveres
para com o Estado na medida em que também têm direitos
72
A
DIREITO
O Direito é uma importante instituição social. Embora associado ao conjunto de
leis ou com a legislação de um país, pode ser entendido de uma forma mais ampla como
um fenômeno relacionado à moral de uma sociedade – costumes, tradições, hábitos, etc.
Além disso, o Direito está relacionado às demais instituições, como família, Estado ou
comércio, de modo que seu estudo exige que se façam conexões com estas.
Segundo Luís da Câmara Cascudo, o Direito é uma ―norma fixada para a
conduta humana na continuidade cronológica‖; por isso, sua origem deveria ser objeto
de estudo da Antropologia, principalmente. De acordo com ele:
CASCUDO, L.C. Civilização e Cultura. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. Vol. 2, p.406-407.
73
MONTESQUIEU: O ESPÍRITO DAS LEIS
O texto abaixo foi retirado da obra já vista, O Espírito das Leis, de Montesquieu.
Essa obra é considerada o início de uma Sociologia do Direito: nela o autor faz uma
distinção entre direito natural e direito positivo, descrevendo e comparando as diversas
leis existentes em sociedades diversas, no tempo e no espaço.
Leia o texto e responda: 1) Por que as leis positivas (do direito) são necessárias
para qualquer sociedade? 2) Como nascem as leis positivas? 3) O que é liberdade para
Montesquieu? 4) Explique o princípio dos três poderes descritos pelo autor, e por que
eles devem se contrapor um ao outro.
É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a liberdade
política não consiste nisso. Num Estado, isto é, numa sociedade em que há leis, a
liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser
constrangido a fazer o que não se deve desejar.
Deve-se ter sempre em mente o que é independência e o que é liberdade. A
liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer
tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal
poder. (...)
Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder
executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o executivo das que
dependem do direito civil. Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz leis por certo
tempo ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a paz
ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões.
Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos. (...)
Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou
dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as
resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos.
74
MAINE: A LEI ANTIGA
Henry James Sumner Maine (1822-1888) foi um jurista
britânico e pioneiro na área do direito comparado. O texto abaixo foi
retirado de sua obra Ancient Law, na qual faz uma distinção entre
sociedades estáveis e progressistas, afirmando que nestas havia um
movimento do status para o contrato. Ele defendia a ideia de que a
noção de indivíduo estava substituindo a de família, como unidade
principal de que o Direito Civil se ocupa.
Leia o texto e responda: Qual a relação entre os códigos antigos e as leis modernas?
MAINE, H. J. S. Ancient Law. London: John Murray, Albemarle Street, 1861, p.1-2, 21-22.
75
HANS KELSEN: TEORIA PURA DO DIREITO
Hans Kelsen (1881-1973) foi um jurista austríaco. Em
sua obra Teoria Pura do Direito, da qual foi extraído o trecho
abaixo, Kelsen procura delimitar uma ciência do Direito que
fosse desvinculada de tudo o que não correspondesse ao
próprio Direito, isto é, ele buscou uma pureza metodológica
nessa área, de modo a afastar todos os elementos que fossem
estranhos a essa ciência. Isso significava desvincular o Direito
da Sociologia, da Psicologia, da Moral, da Teologia ou da
Política; os assuntos relacionados ao Direito deveriam ser
vinculados a discussões dentro do próprio Direito, e nada mais. Por isso, afirmou que o
objeto de estudo da ciência jurídica era a norma.
A teoria de Kelsen é vista como uma teoria formal do Direito por utilizar uma
linguagem rígida e lógica e por abstrair conceitos utilizados em outras áreas, tal como a
ideia de justiça. Também não importava como as normas são produzidas ou como
deveriam ser produzidas; tratava-se apenas de descrever as normas através de outras
normas. Uma norma dá significação a um ato jurídico, que por sua vez produz outra
norma, e assim sucessivamente.
Leia o texto abaixo e responda: 1) Qual a diferença entre uma manifestação
externa da conduta humana e a sua significação jurídica? 2) Explique o significado de
norma.
76
sentidos, tal como nos apercebemos das qualidades naturais de um objeto, como a cor,
a dureza, o peso. Na verdade o indivíduo que, atuando racionalmente, põe o ato, liga a
este um determinado sentido que se exprime de qualquer modo e é entendido pelos
outros. Este sentido subjetivo, porém, pode coincidir com o significado objetivo que o
ato tem do ponto de vista do Direito, mas não tem necessariamente de ser assim. Se
alguém dispõe por escrito do seu patrimônio para depois da morte, o sentido subjetivo
deste ato é o de um testamento. Objetivamente, porém, do ponto de vista do Direito,
não o é, por deficiência de forma. (...)
O fato externo que, de conformidade com o seu significado objetivo, constitui
um ato jurídico (lícito ou ilícito), processando-se no espaço e no tempo, é, por isso
mesmo, um evento sensorialmente perceptível, uma parcela da natureza, determinada,
como tal, pela lei da causalidade. Simplesmente, este evento como tal, como elemento
do sistema da natureza, não constitui objeto de um conhecimento especificamente
jurídico - não é, pura e simplesmente, algo jurídico. O que transforma este fato num ato
jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu
ser tal como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema da natureza,
mas o sentido objetivo que está ligado a esse ato, a significação que ele possui. O
sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o fato em
questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe
empresta a significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo
esta norma. A norma funciona como esquema de interpretação. Por outras palavras: o
juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou
antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma
interpretação normativa. Mas também na visualização que o apresenta como um
acontecer natural apenas se exprime uma determinada interpretação, diferente da
interpretação normativa: a interpretação causal. A norma que empresta ao ato o
significado de um ato jurídico (ou antijurídico) é ela própria produzida por um ato
jurídico, que, por seu turno, recebe a sua significação jurídica de uma outra norma. O
que faz com que um fato constitua uma execução jurídica de uma sentença de
condenação à pena capital e não um homicídio, essa qualidade - que não pode ser
captada pelos sentidos - somente surge através desta operação mental: confronto com o
código penal e com o código de processo penal. Que a supramencionada troca de cartas
juridicamente signifique a conclusão de um contrato, deve-se única e exclusivamente à
circunstância de esta situação fática cair sob a alçada de certos preceitos do código
civil. O ser um documento, um testamento válido, não só segundo o seu sentido
subjetivo mas também de acordo com o seu sentido objetivo, resulta de ele satisfazer às
condições impostas por este código para que possa valer como testamento. Se uma
assembleia de homens constitui um parlamento e se o resultado da sua atividade é
juridicamente uma lei vinculante - por outras palavras: se estes fatos têm esta
significação -, isso quer dizer apenas que toda aquela situação de fato corresponde às
normas constitucionais. Isso quer dizer, em suma, que o conteúdo de um acontecer
fático coincide com o conteúdo de uma norma que consideramos válida.
Ora, o conhecimento jurídico dirige-se a estas normas que possuem o caráter de
normas jurídicas e conferem a determinados fatos o caráter de atos jurídicos (ou
antijurídicos). Na verdade, o Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma
ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o
comportamento humano. Com o termo ―norma‖ se quer significar que algo deve ser ou
acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira.
KELSEN, H. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Marins Fontes, 1998, p.2-4.
77
DURKHEIM: DIREITO, MORAL E RELIGIÃO
Émile Durkheim também analisou o Direito e suas relações com a moral e a religião de
um povo. Na sua obra Da Divisão do Trabalho Social, já vista, ele associou o tipo de sociedade
à forma do direito: nas sociedades primitivas, simples, onde o pensamento coletivista é grande e
a divisão do trabalho pequena, o direito repressivo é predominante; já nas sociedades avançadas,
complexas, onde o pensamento individualista é mais acentuado e a divisão do trabalho grande, o
direito restitutivo é predominante. O direito repressivo combate e reprime os atos criminosos
porque eles violam costumes, crenças e preceitos éticos considerados importantes à
coletividade, e justamente porque os fins coletivos, nessas sociedades, são mais importantes do
que os fins individuais; no direito restitutivo o ato criminoso fere apenas o indivíduo ou um
pequeno grupo, e não valores considerados importantes à coletividade, pois nessas sociedades
os fins individuais são mais importantes do que os fins coletivos, e por isso, a pena é uma
restituição, um acordo entre as partes, uma compensação que o agente delituoso é obrigado a
fornecer à parte prejudicada.
O texto abaixo foi retirado da obra Ética e Sociologia da Moral. Leia-o e responda: 1)
Qual a relação entre direito, moral e religião? 2) Como surgiu o direito? 3) Procure no Decálogo
(Bíblia) exemplos de preceitos morais e de preceitos jurídicos. 4) Explique a frase: ―o direito
não é verdadeiro nem falso; ele é adequado ou inadequado ao objetivo que é sua razão de ser‖.
79
MARX E ENGELS: ESTADO, DIREITO E CLASSES SOCIAIS
Para Marx, o Estado é uma das esferas da alienação
humana. Alienação é um termo retirado de Hegel: a perda da
essência em favor de um ser outro. Isso significa que, para Marx,
o Estado surge como algo estranho, embora tenha sido criado pela
própria sociedade civil, pelo povo. O Estado representa os
interesses da comunidade, mas tais interesses estão separados de
cada um dos indivíduos, como algo estranho (alienado).
De acordo com a visão de Marx e Engels, a base real para
a existência do Estado são os interesses antagônicos, defendidos
por classes antagônicas. O Estado seria um instrumento de classe, por meio do qual a classe
dominante faria valer seus interesses, numa determinada época. Por classe dominante eles
entendem todos os que detém o poder econômico, o que na linguagem deles significa ser dono
dos meios de produção – máquinas, ferramentas, indústria, etc.
Em sua obra A Origem da Família, da Sociedade Privada e do Estado, Engels afirmou
que quando a sociedade chega a um determinado grau de desenvolvimento, de modo que os
antagonismos de classe se tornam irreconciliáveis, torna-se necessário um poder para manter os
conflitos dentro de certos limites. Este poder é o Estado, que surge como um poder
aparentemente por cima da sociedade, mas que na verdade seria um instrumento que a classe
dominante usaria para oprimir a classe dominada.
O texto abaixo foi retirado da obra A Ideologia Alemã, de Marx e Engels. Leia-o e
responda: 1) Qual a relação do Estado e do Direito com a propriedade? 2) De acordo com Marx,
qual seria a forma de se reconciliar o interesse particular com o interesse comunitário?
Com a divisão do trabalho está dada, ao mesmo tempo, a contradição entre o interesse
de cada um dos indivíduos ou de cada uma das famílias e o interesse comunitário de todos os
indivíduos que mantêm intercâmbio uns com os outros; e a verdade é que este interesse
comunitário de modo nenhum existe meramente na representação, como universal, mas antes
de mais nada na realidade, como dependência recíproca dos indivíduos entre os quais o
trabalho está dividido.
E é precisamente por esta contradição do interesse particular com o interesse
comunitário que o interesse comunitário assume uma forma autônoma como Estado, separado
dos interesses reais dos indivíduos e do todo, e ao mesmo tempo como comunidade ilusória,
mas sempre sobre a base real dos laços existentes em todos os conglomerados de famílias (...) e
especialmente, como mais tarde desenvolveremos, das classes desde logo condicionadas pela
divisão do trabalho, e que se diferenciam em todas essas massas de homens, e das quais uma
domina todas as outras. (...)
Por ser uma classe, e não já um estado (ou ordem social), a burguesia é obrigada, desde
logo, a organizar-se nacionalmente, e não já localmente, e a dar ao seu interesse médio uma
forma geral. Pela emancipação da propriedade privada em relação à comunidade, o Estado
adquiriu uma existência particular a par, e fora, da sociedade civil; mas ele nada mais é do que
a forma de organização que os burgueses se dão, tanto externa com internamente, para garantia
mútua da sua propriedade e dos interesses. (...)
Como o Estado é a forma em que os indivíduos de uma classe dominante fazem valer
os seus interesses comuns e se condensa toda a sociedade civil de uma época, segue-se que
todas as instituições comuns que são mediadas pelo Estado adquirem uma forma política. Daí a
ilusão de que a lei assentaria na vontade, e para mais na vontade dissociada da sua base real, na
vontade livre. (...)
Todas as vezes que, pelo desenvolvimento da indústria e do comércio, se formaram
novas formas de intercâmbio, por exemplo, companhias de seguros e outras, o direito foi
sempre obrigado a incluí-las entre os modos de aquisição de propriedade.
80
ROSCOE POUND: PROBLEMAS DA INTERPRETAÇÃO
ECONÔMICA DO FENÔMENO JURÍDICO
Nathan Roscoe Pound (1870-1964) foi um jurista
americano. Definiu a lei como uma forma de controle social
exercida através da aplicação sistemática da força da sociedade
politicamente organizada. De acordo com ele, a jurisprudência e
a Sociologia do Direito estão relacionadas em três aspectos: na
ordem legal, nos princípios de disputa e no processo judicial.
Segundo Roscoe Pound, a concepção de Weber sobre a
lei está mais próxima da concepção do jurista do que a visão de
outros sociólogos, pois para os juristas a lei está relacionada à
adaptação de interesses em choque. Nesse sentido, Pound também fez severas críticas à
teoria marxista do Direito, segundo a qual as leis seriam sempre feitas para atender aos
interesses da classe dominante, no caso moderno, a ―classe burguesa‖.
O texto abaixo foi retirado da obra The Ideal Element in Law. Leia-o e responda:
Por que a visão de Marx sobre o Direito é equivocada?
81
elemento tradicional, o elemento da experiência desenvolvida pela razão, que desempenha um
papel muito maior na história do direito e, a longo prazo, controla um sistema de direito. Além
disso, não é uma interpretação da parte mais duradoura da legislação que põe de forma
autoritária os preceitos legais que se desenvolveram a partir da experiência e foram formulados
na tradição judicial ou doutrinária. É antes uma interpretação da parte menos importante da
legislação que lida com detalhes particulares ou assuntos especiais e estabelece preceitos
arbitrariamente para eles, sem levar em consideração os princípios gerais do sistema jurídico.
(...)
Não devemos esquecer que a administração da justiça visa conscientemente mais do
que os defensores de uma interpretação econômica exclusiva de todos os fenômenos da ordem
jurídica ouvirão falar. Devemos levar em conta até que ponto a ação judicial é movida pelas
exigências lógicas de um sistema tradicional; na medida em que é restrito por uma tradição de
ensino, uma técnica tradicional e o que pode ser chamado de arte do ofício do advogado,
mesmo contra o interesse próprio. Isso deve ser lembrado especialmente quando, como nos
tempos modernos, a administração da justiça está nas mãos da profissão com uma longa
tradição de princípios, um ideal de justiça recebido e uma ciência sistemática, na qual a
dedução lógica dos princípios recebidos torna-se um hábito. (...)
Um segundo ponto é que os fenômenos da história do direito que são comprovados
pela doutrina da interpretação econômica não a sustentam.
A confiança principal daqueles que insistem na interpretação econômica como
explicação suficiente de todos os itens de constatação judicial e determinação judicial de causas
é "a regra do companheiro de serviço", a regra da lei comum de que um funcionário não pode
responsabilizar seu empregador por danos causados por negligência de um colega de trabalho
durante o emprego. Uma declaração típica da tese de interpretação econômica foi feita por
Walter Lippman: ―Segundo a antiga lei comum da Inglaterra, um trabalhador ferido poderia
processar o mestre por danos. Se ele tivesse sido ferido por negligência de um colega, ele ainda
poderia processar o mestre porque a lei responsabilizava o mestre pelos atos de seu servo... Em
1837, esse sistema de lei foi alterado em uma decisão proferida por Lord Abinger. Depois
disso, tornou-se lei que o mestre não era responsável por ferir um trabalhador quando o
ferimento foi causado por um colega de trabalho‖. Há aqui duas declarações totalmente
erradas. Não era lei comum da Inglaterra antes de 1837 que um empregador fosse responsável
por danos a um funcionário por negligência de outro funcionário no curso de seu emprego
comum. Essa questão ainda não havia surgido. Se tivesse, provavelmente teria sido
considerado que um funcionário assumiu o risco de negligência de seus colegas de trabalho
como um incidente do que eles estavam fazendo. De qualquer forma, a lei não foi alterada pela
decisão do Tribunal de Justiça em 1837. Mas, além do erro fundamental na declaração do Sr.
Lippman, outros argumentam que a regra estabelecida em 1837 era uma exceção arbitrária a
um princípio estabelecido do lei comum. (...)
Terceiro, uma teoria da causação mecânica pela operação inevitável do conflito de
classe elimina completamente a eficácia do esforço. Uma ciência do direito não menos severa
resulta, do que se segue, da concepção de uma lei natural finalmente determinada ou das teorias
extremas da jurisprudência histórica do século XIX ou da sociologia mecânica. As teorias do
direito tornam-se prontamente teorias de fazer lei e encontrar lei. Não pode ser uma boa teoria
da criação de leis ou do processo judicial que o legislador e o juiz adotam para formular o
interesse próprio da classe social dominante. Sem dúvida, o elemento ideal do direito é
grandemente afetado pela estrutura econômica da sociedade e, portanto, os preceitos legais são
gradualmente afetados em seu conteúdo e aplicação. No entanto, é significativo que a tradição
do direito comum tenha se mostrado resistente às condições econômicas. A lei fundiária
americana insiste que a terra deve ser tratada como uma aquisição fixa e permanente, como se
fôssemos uma comunidade de cavalheiros ingleses; não como um ativo que pode ser repassado
prontamente de mão em mão, que é a maneira pela qual é considerado pelos homens de
negócios.
POUND, R. The Ideal Element in Law.
82
E. R. GRAU: ELEMENTOS DO DIREITO
O texto abaixo é de Eros Roberto Grau (1940), retirado da obra Elementos de
Direito Econômico. Eros foi ministro do STF de 2004 a 2010.
Nesta passagem, Eros Grau procura fornecer uma visão geral do Direito, sua
função na sociedade e importância. De acordo com ele, o Direito tende a equilibrar duas
situações opostas, a da liberdade ilimitada e a do poder despótico. Leia o texto e
responda: 1) Qual a função do Direito na sociedade? 2) Por que o Direito não pode ser
confundido com o Estado, ou como expressão da vontade do Estado? 3) Qual a crítica
que o autor faz à visão formalista do Direito? Cite um representante dessa visão
formalista. 4) Segundo o autor, o Direito é um produto cultural. Explique essa visão. 5)
De acordo com o autor, o Direito é anterior ao Estado. Você concorda com essa
afirmativa? Justifique. Volte à parte que trata do tema ―Estado‖, e recorde-se de que
seus primórdios remontam às sociedades primitivas.
83
concebermos o Direito como ciência que tem como único objeto o conhecimento das normas
jurídicas, sem as valorar. Se o admitíssemos, teríamos que concluir que qualquer conteúdo
pode caber no Direito, visto que teria ele valor apenas enquanto forma. Daí, então, o risco de
passarmos a divisar nele não um instrumento de organização da sociedade, mas, simplesmente,
um instrumento de organização do poder. A noção de Direito desenvolvida por Kelsen – que
devemos tomar exemplarmente como antinômica da aqui exposta – acaba por reconhecer os
regimes despóticos ou totalitários como Estados de Direito.
É indispensável, para que possamos compreender o Direito, a consideração do seu
conteúdo. Apenas a partir de tal consideração será possível penetrarmos a distinção posta por
Goodhart entre o ―império pelo Direito‖ – que pode ser o instrumento mais eficaz para impor
um governo tirânico – e o ―império sob o Direito‖ – que é o fundamento essencial da liberdade.
É a observação do conteúdo do Direito, pois, que nos permitirá distinguir momentos históricos
em que esteja ele ou não a cumprir a sua finalidade, funcionando, na primeira hipótese, como
instrumento de organização da sociedade, na segunda como mero instrumento de organização
do poder. Mais ainda, desta visão não redutiva depende a lucidez indispensável para que o
possamos divisar em sua correta posição face à liberdade e ao poder, em interação com essas
forças e não em conflito com uma ou outra.
Esta tomada de posição nos levará, necessariamente, à recusa de visões exclusivamente
formalistas, estruturadas a partir, basicamente, das inicial contribuição de Stammler e da escola
de Viena. O Direito não é apenas a expressão da vontade do soberano ou do Estado, um
conjunto de regras coerente e lógico. A ideia de Direito está umbilicalmente comprometida
com o ideal de Justiça – isto é imprescindível afirmarmos desde logo. Pois justamente isso é
que sempre se recusaram a admitir os neo-kantianos, ensejando a Luís Recaséns Siches as
observações de que é necessário reivindicar para os problemas éticos, jurídicos e políticos seu
caráter próprio; a atitude do que permanece no neo-kantismo equivale à do explorador que
durante toda a sua vida se entretém com bússolas e demais instrumentos de orientação,
renunciando a realizar qualquer viagem; a eles pedimos Ética e nos dão Lógica: perguntamos
por um trajeto e nos respondem explicando-nos detalhadamente os princípios a que se ajusta a
construção da via férra. (...)
Para que possamos compreender adequadamente o Direito, pois, é necessário e
indispensável analisar o seu conteúdo. É impossível penetrarmos o sentido de uma norma
jurídica se não nos apropriarmos do conhecimento relacionado à matéria que nela se normatiza.
(...)
Desejo enfatizar, no caso, a circunstância de que o Direito é um produto cultural – ―a
mais nobre das criações humanas‖, como a ele se referiu Rubens Gomes de Souza – e as
realidades humanas são o elemento sobre o qual se processa a sua criação. Vale dizer: tais
realidades são o elemento de criação do Direito. O indivíduo se desenvolve em sociedade. Na
busca de condições que viabilizem esse desenvolvimento, os grupos sociais valoram situações
objetivas e, face a elas, adotam determinados princípios e ideias, dos quais defluem sentidos
por eles admitidos e consentidos como convenientes à convivência social. A partir desses
sentidos sociais é que se processa a luta pela criação do Direito, resultado da atuação das forças
sociais. A luta pela criação do Direito, assim, é o resultado da atuação destas forças, sob a
inspiração dos ideais individuais e ideais sociais.
Pois bem: como produto cultural, não apenas o Direito não é somente poder,
como também não pode a vontade do Estado ser considerada a fonte do Direito le-
gítimo – mesmo porque, como adverte Karl Olivecrona, o Direito é anterior ao Estado
e o Estado não é um poder fora do Direito: o Estado está condicionado pelo Direito.
A compreensão do Direito como produto cultural – e não como expressão de
uma só vontade: do soberano, do Estado, do povo ou do legislador – e de sua
destinação à finalidade da organização social nos permite perceber que, na evolução
das manifestações das forças sociais em luta, um clima de extremo dinamismo
caracteriza os processos de sua criação e aplicação.
GRAU, E. R. Elementos de Direito Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1981, p.1-7.
84
BENTHAM: PRINCÍPIOS DA MORAL E DA LEGISLAÇÃO
O texto abaixo é do filósofo Jeremy Bentham (1748-1832), retirado da obra
citada abaixo. Nesta parte, ele define o importante princípio que ficou conhecido como
utilitarismo. Leia e responda: 1) No que consiste a ideia básica do utilitarismo? 2) O
que é comunidade, segundo o autor? Por que é absurdo falar em ―interesse da
comunidade‖, ou ―interesse coletivo‖, ou ainda, ―interesse social‖? 3) Qual a função do
governo? 4) O termo ―interesse próprio‖ é uma redundância. Pesquise o significado do
termo ―redundância‖, e depois justifique por que ―interesse próprio‖ é uma redundância.
85
HAYEK: ESTADO DE DIREITO X AUTORITARISMO
Friedrich August von Hayek (1899-1992) foi um teórico
austríaco que escreveu sobre questões econômicas, sociais e políticas.
O principal tema de suas obras é a defesa do livre mercado, tendo o
estado de Direito como consequência inevitável.
O texto abaixo foi retirado de sua obra O Caminho da
Servidão. Leia-o e responda: 1) O que é o estado de Direito? 2) Quais
as principais características do planejamento econômico coletivista e
suas implicações ao estado de Direito?
86
deve prover as necessidades reais das pessoas na medida em que forem surgindo, e
depois determinar quais delas são prioritárias. É obrigada a tomar constantes decisões
que não podem basear-se apenas em princípios formais e, ao tomá-las, deve estabelecer
distinções de mérito entre as necessidades das diferentes pessoas. Quando o governo
tem de resolver quantos porcos é necessário criar, quantos ônibus terão de ser postos
em circulação, quais as minas de carvão a explorar ou a que preço serão vendidos os
sapatos, essas decisões não podem ser deduzidas de princípios formais nem
estabelecidas de antemão para longos períodos. Dependem inevitavelmente das
circunstâncias ocasionais, e ao tomar tais decisões será sempre necessário pesar os
interesses de várias pessoas e grupos. No final, a opinião de alguém determinará quais
os interesses preponderantes; e essa opinião passará a integrar a legislação do país,
impondo ao povo uma nova categoria social.
A distinção que acabamos de fazer entre Direito formal, ou justiça, e normas
substantivas, é muito importante e ao mesmo tempo uma das mais difíceis de
estabelecer com exatidão na prática. No entanto, o princípio em que se baseia é
bastante simples. A distinção existente entre essas duas espécies de normas é a mesma
que haveria entre estabelecer um regulamento de trânsito e prescrever às pessoas aonde
devem ir; ou entre mandar instalar placas de trânsito e ordenar às pessoas que tomem
esta ou aquela estrada. As normas formais indicam antecipadamente que linhas de ação
o estado deverá adotar em certas situações, definidas em termos gerais, sem referência
a tempo e lugar nem a indivíduos em particular. Referem-se a situações típicas em que
qualquer um pode se encontrar e em que a existência de tais regras será útil para uma
grande variedade de objetivos individuais. O conhecimento de que em tais situações o
estado agirá de um modo definido ou exigirá que as pessoas procedam de determinada
maneira é oferecido aos indivíduos para permitir-lhes traçar seus próprios planos. As
normas formais são, pois, simplesmente instrumentais no sentido de que poderão ser
úteis a pessoas ainda desconhecidas, para as finalidades que essas pessoas resolvam
dar-lhes e em circunstâncias que não podem ser previstas em detalhe. Com efeito, o
critério mais importante das normas formais no sentido que aqui lhes atribuímos é não
conhecermos seu efeito concreto, não sabermos a que objetivos específicos atenderão,
a que pessoas específicas servirão – e também o fato de lhes ser dada apenas a forma
mais apropriada, de um modo geral, a beneficiar todas as pessoas a quem elas dizem
respeito. Não implicam uma escolha entre determinados objetivos ou pessoas, pois não
podemos saber de antemão por quem e de que modo serão usadas. (...)
À medida que o planejamento se torna cada vez mais amplo, faz-se necessário
abrandar na mesma proporção as disposições legais, mediante referência ao que é
―justo‖ ou ―razoável‖: isto significa que é preciso cada vez mais deixar a decisão do
caso concreto ao poder discricionário do juiz ou da autoridade competente. Poder-se-ia
escrever uma história do declínio do estado de Direito, do desaparecimento do
Rechtsstaat, com base na introdução progressiva dessas fórmulas vagas na legislação e
na jurisdição, e na crescente arbitrariedade, mutabilidade e imprecisão do Direito e da
judicatura (de onde o desrespeito que lhes advém), os quais em tais circunstâncias não
podem deixar de converter-se num instrumento político. A propósito, é importante
salientar mais uma vez que o declínio do estado de Direito vinha se processando de
modo acentuado na Alemanha algum tempo antes da subida de Hitler ao poder, e que
uma política governamental bastante próxima do planejamento totalitário já realizara
boa parte da tarefa completada em seguida pelos nazistas.
HAYEK, F. O Caminho da Servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil,
6ª ed., 2010, p.89-94.
87
PROPRIEDADE PRIVADA
A propriedade privada pensada como valor envolve a existência do princípio
básico de respeito à posse de uma pessoa sobre algo obtido legitimamente. Esse
princípio existe tanto nos costumes quanto na lei, sendo generalizado por toda a
sociedade. Alguns autores estenderam esse princípio à posse do próprio corpo,
considerado como auto-propriedade (self-ownership): cada pessoa sendo proprietária
exclusiva de si mesma.
Já a propriedade privada enquanto instituição social diz respeito a relações
complexas no Direito, costumes, Estado, relações comunitárias e sociedade em geral.
Nesse sentido, se caracteriza pela existência de normas que definem quem possui o que
e como podem usufruir de seus bens; definem também os limites relacionados à
apropriação legítima.
Segundo o sociólogo e demógrafo americano Kingsley Davis, a propriedade
privada é um sistema de direitos e obrigações do proprietário de um bem escasso
perante outras pessoas. Outros teóricos como Murray Rothbard e Hans-Hermann Hoppe
negaram o caráter institucional da propriedade privada, pensando-a não apenas como
um valor, mas um direito natural, assim como o próprio corpo. Esses temas serão vistos
nos textos a seguir.
Atualmente, o termo objeto é entendido como algo completamente separado da
pessoa que o possui. Isso se reflete, por exemplo, no Direito: direito das coisas e direito
pessoal. Reflete-se também na visão pejorativa do termo objeto; transformar alguém em
objeto é considerado algo ruim, é diminuir uma pessoa à condição de coisa. Entretanto,
nem sempre foi assim: nas sociedades antigas, ou nas primitivas, o objeto está ligado à
pessoa que o possui, de modo a estabelecer uma ligação mágico/ritualística que não se
encerra quando objeto e pessoas são separadas. Ou ainda, clãs ou tribos trocavam
pessoas entre si da mesma forma que trocam objetos, e ambos eram considerados
sagrados ou de suma importância. Esses assuntos também serão vistos adiante.
Como objeto estava ligado à pessoa nas primeiras sociedades, é natural pensar
que a noção de propriedade privada atual (posse sobre as coisas) só poderia ser
desenvolvida a partir de um desenvolvimento concomitante da noção de indivíduo.
Numa sociedade onde a individualidade é pouco expressiva, e onde os fins individuais
são pequenos comparados à busca pelos fins coletivos, é natural que a própria noção de
propriedade privada seja também arcaica, pouco expressiva. Essa constatação foi feita
por Spencer e, posteriormente, repetida por Durkheim.
O objetivo dessa parte é fornecer noções básicas para o entendimento desses e
outros assuntos relacionados à propriedade privada, bem como à sua relação com outras
instituições.
88
JOHN LOCKE: FUNDAMENTO DA PROPRIEDADE
O filósofo John Locke (1632-1704) viveu na
Inglaterra na época em que estavam ocorrendo os
Enclosure Acts, conhecidos como política dos cercamentos:
quando grandes campos abertos e terras comuns foram
cercadas e o seu direito de propriedade legal foi transferido
para a iniciativa privada. Nesse contexto, Locke
posicionou-se absolutamente a favor de tais políticas, e os
motivos que o levaram a apoiá-las podem ser encontrados
na passagem abaixo, retirada do famoso capítulo V da obra
Segundo Tratado sobre o Governo Civil.
John Locke foi um pensador jusnaturalista. Isso significa que, para ele, haviam
direitos naturais em cada ser humano que eram independentes do contexto político,
como por exemplo o direito à propriedade. A função do Estado e das leis seria, portanto,
preservar esses direitos, e em hipótese alguma violá-los. Locke entendia a propriedade
de cada pessoa eram três: a vida, a liberdade e os bens. A primeira e a segunda já
nascem e são intrínsecas a cada um; a terceira deve ser conquistada de forma legítima, e
não através do roubo.
Leia o texto abaixo e responda: 1) Segundo Locke, o que faz com que algo seja
uma propriedade de alguém? 2) Quais os limites para a apropriação legítima, segundo
Locke? Cite e explique-os. 3) Quais os argumentos utilizados por ele para defender os
Enclosure Acts?
89
propriedade, sem o que o comum nenhuma utilidade teria. E a tomada desta ou daquela
parte não depende do consentimento expresso de todos os membros da comunidade.
Assim a grama que o meu cavalo pastou, a turfa que o criado cortou, o minério que
extraí em qualquer lugar onde a ele tenho direito em comum com outros, tornam-se
minha propriedade sem a adjudicação ou o consentimento de qualquer outra pessoa. O
trabalho que era meu, retirando-os do estado comum em que se encontravam, fixou a
minha propriedade sobre eles. (...)
Assim esta lei da razão torna o veado propriedade do índio que o matou;
permite-se que pertençam os bens àquele que lhes dedicou o próprio trabalho, embora
anteriormente fossem direito comum a todos. (...)
A isto talvez se objete que ―se colher bolotas ou outros frutos da terra, etc., dá a
eles direito, então qualquer um pode açambarcar tanto quanto queira‖. Ao que
respondo: Não é certo. A mesma lei da natureza que nos dá por esse meio a
propriedade também a limita igualmente. ―Deus nos deu de tudo abundantemente‖ (I
Tim 6, 17) é a voz da razão confirmada pela inspiração. Mas até que ponto no-lo deu?
Para usufruir. Tanto quanto qualquer um pode usar com qualquer vantagem para a vida
antes que se estrague, em tanto pode fixar uma propriedade pelo próprio trabalho; o
excedente ultrapassa a parte que lhe cabe e pertence a terceiros. Deus nada fez para o
homem estragar e destruir. (...) A extensão de terra que um homem lavra, planta,
melhora, cultiva, cujos produtos usa, constitui a sua propriedade. Pelo trabalho, por
assim dizer, separa-a do comum.
Deus deu o mundo em comum aos homens; mas, como o fez para benefício
deles e maior conveniência da vida que fossem capazes de retirar dele, não é possível
supor tivesse em mente que devesse ficar sempre em comum e inculto. Deu-o para uso
do diligente e racional – e o trabalho tinha de servir-lhe ao direito de posse –, não à
fantasia e ambição dos brigões e altercadores. (...)
Certo é que, no começo, antes que o desejo de ter mais do que precisa tivesse
alterado o valor intrínseco de tudo quanto somente depende da própria utilidade para a
vida do homem, ou tivessem concordado em que um pedacinho de metal amarelo que
se conservasse sem desgaste ou decomposição equivaleria a um grande pedaço de
carne ou a um monte inteiro de trigo, embora os homens tivessem o direito de se
apropriar, pelo trabalho, cada um para si, de tudo quanto na natureza pudessem fazer
uso, não poderia isto ser demasiado, nem em prejuízo de terceiros, se a mesma
abundância ainda se apresentasse aos que fizessem uso da mesma diligência. Ao que,
permitam-me juntar que aquele que toma posse da terra pelo trabalho não diminui mas
aumenta as reservas comuns da Humanidade. As provisões que servem para o sustento
da vida humana produzidas em um acre de terra fechada e cultivada – falando mui
conservadoramente – são dez vezes mais do que pode produzir um acre de terreno de
igual fertilidade aberto e em comum. Portanto, aquele que cerca um pedaço de terra e
tem maior volume de conveniências da vida retirado de dez acres do que poderia ter de
cem abandonados à natureza, pode dizer-se verdadeiramente que dá noventa acres aos
homens.
LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. 5ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p.227-31.
90
ROBERT NOZICK: PROBLEMAS DA APROPRIAÇÃO ORIGINAL
Robert Nozick (1938-2002) foi um filósofo americano. Sua
mais importante teoria é a ideia de que o Estado deveria proteger
os direitos básicos contra o uso da força, da fraude e do roubo.
Argumentando contra John Rawls, o qual propôs uma teoria da
justiça baseada na equidade e não no interesse próprio, Nozick
afirmou que tal pensamento é perigoso e que todo Estado deveria
se restringir ao mínimo possível.
O trecho abaixo foi retirado de sua importante obra
Anarquia, Estado e Utopia. Nessa parte, Nozick está ponderando os vários argumentos
utilizados por Locke no texto anterior. Leia-o e responda: Quais as críticas que ele faz?
91
no tocante a um objeto que antes não tinha dono), porém, não precisa tornar-lhes pior a
situação. Se eu me aproprio de um grão de areia de Coney Island, ninguém mais pode
fazer o que quiser com aquele grão. Mas sobram grãos à vontade para que façam com
eles o que quiserem. Ou, se não grãos de areia, outras coisas. Alternativamente, as
coisas que faço com o grão de areia de que me apropriei pode melhorar a posição dos
demais, compensando-lhes a perda de liberdade para usá-lo. O ponto crucial é se a
apropriação de um objeto sem dono torna pior a situação dos demais.
A condição de Locke, de que tenha sido ―deixado tanto e tão bom em comum
para os outros‖ visa a garantir que a situação destes não ficará pior. (Se esta condição é
satisfeita, há qualquer motivação para sua condição posterior de não desperdício?).
Frequentemente se diz que essa condição aplicava-se outrora, mas não mais agora. Mas
parece haver aqui um argumento para a conclusão de que se a condição não mais se
mantém, então não pode jamais ter-se mantido, de modo a gerar direitos de propriedade
permanentes e de herança. Consideremos a primeira pessoa Z para quem não há o
suficiente e tão bom para que se aproprie. A última pessoa Y a apropriar-se deixou Z
sem sua liberdade anterior de agir sobre um objeto e, assim, piorou lhe a situação.
Assim, a apropriação praticada por Y não é permitida pela condição de Locke. Por
conseguinte, a penúltima pessoa X acabou com a apropriação permissível. Neste caso,
o antepenúltimo apropriador, W, acabou com a apropriação permissível e assim, uma
vez que agravou a situação de X, a apropriação que ele praticou não era permissível. E
assim vai, recuando até a primeira pessoa, A, que se apropriou de um direito de
propriedade permanente. (...)
Será tornada pior a situação de pessoas que não podem se apropriar de alguma
coisa (não havendo mais objetos acessíveis e úteis não possuídos por alguém) por um
sistema que permita a apropriação e a propriedade permanente? Neste ponto aparecem
várias considerações sociais bem conhecidas favoráveis à propriedade privada: ela
aumenta o produto social, pondo os meios de produção nas mãos daqueles que podem
usá-los da forma mais eficiente (lucrativa?); a experimentação é estimulada, porque,
com pessoas separadas controlando os recursos, não há uma única pessoa ou pequeno
grupo com quem alguém com uma nova ideia tenha que convencer para submetê-la a
teste; a propriedade privada permite às pessoas decidirem sobre o padrão e tipos de
riscos que desejam correr, levando a tipos especializados de aceitação dos mesmos; a
propriedade privada protege pessoas no futuro, levando alguns a reter recursos tirados
do consumo corrente para futuros mercados; proporciona fontes alternativas de
emprego para pessoas impopulares que não têm que convencer qualquer única pessoa
ou grupo a contratá-las, etc. Essas considerações entram em uma teoria lockeana para
sustentar a alegação de que a apropriação da propriedade privada satisfaz à intenção
por trás da condição ―o suficiente e tão bom‖, mas não como justificação utilitarista da
propriedade. (...)
Cabe notar que não são apenas as pessoas que defendem a propriedade privada
que necessitam de uma teoria de como os direitos à propriedade legitimamente
surgiram. Os que acreditam em propriedade coletiva, como, por exemplo, os que
acham que um grupo de pessoas que vive em uma área possui conjuntamente o
território ou seus recursos minerais, têm também que fornecer uma teoria de como
surgem esses direitos de propriedade. Precisam demonstrar por que as pessoas que nele
vivem têm direitos de decidir o que deve ser feito com a terra e recursos que lá existem
e que pessoas que vivem em outro local não os têm (no tocante à mesma terra e aos
recursos).
92
DURKHEIM: DIREITO DE PROPRIEDADE E COMUNISMO
NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS
O texto abaixo é de Durkheim, da obra Da Divisão do Trabalho Social. Nesta
parte, ele analisa algumas características das sociedades primitivas e, repetindo as ideias
de Spencer, chama o tipo de vínculo nessas sociedades de solidariedade mecânica. Leia
e responda: (1) Por que nessas sociedades o comunismo está sempre presente? (2) O
que é preciso ocorrer para que a propriedade deixe de ser coletiva e se torne individual?
(3) Por que as pessoas passam a atribuir o direito de propriedade ao chefe?
Não apenas o clã tem por base a consanguinidade, mas os diferentes clãs de um
mesmo povo se consideram muito frequentemente como parentes uns dos outros. Entre
os iroqueses, eles se tratam, segundo o caso, de irmãos ou de primos. Entre os Hebreus
(...) o ancestral de cada um dos clãs que compõe a tribo é apontado como descendente
do fundador desta última [da tribo], o que é por ele próprio encarado como um dos
filhos do pai da raça. (...)
Mas de qualquer maneira que se denomine esta organização, tal como a horda
de que é um prolongamento, ela não comporta evidentemente outra solidariedade que
aquela derivada das similitudes, visto que a sociedade é formada e segmentos similares
e que estes, por sua vez, só abrangem elementos homogêneos. Cada clã sem dúvida
tem sua fisionomia própria e se distingue portanto dos outros; mas a solidariedade, por
sua vez, é tanto mais fraca quanto mais heterogêneos eles seja, e vice-versa. Para que a
organização segmentar seja possível, é preciso, ao mesmo tempo, que os segmentos se
pareçam, sem o que não seriam unidos, e que eles se diferenciem, sem o que se
perderiam uns nos outros e se diluiriam. (...) Essas sociedades constituem o lugar típico
da solidariedade mecânica, tanto que delas derivam seus principais caracteres
fisiológicos. Sabemos que nelas a religião penetra toda a vida social, isto porque esta é
composta quase exclusivamente de crenças e práticas comuns, que tiram da adesão
unânime uma intensidade muito particular. (...)
É daí também que deriva o comunismo, que se tem muitas vezes assinalado en-
tre esses povos. O comunismo, com efeito, é o produto necessário dessa coesão espe-
cial que absorve o indivíduo dentro do grupo, a parte no todo. A propriedade não é em
definitivo que a extensão da pessoa sobre as coisas. Onde a personalidade coletiva é a
única, a propriedade também não pode deixar de ser coletiva. Ela só pode se tornar in-
dividual quando o indivíduo, se desligando da massa, se torne ele também um ser pés-
soal e distinto, não apenas enquanto organismo, mas enquanto elemento da vida social.
Onde, pois, a sociedade tem tal caráter religioso e, por assim dizer, sobre-
humano, cuja origem mostramos na constituição da consciência comum, ele se
transmite necessariamente ao chefe que a dirige e que se encontra assim situada muito
acima do resto dos homens. Onde os indivíduos são mera dependência do tipo coletivo,
eles tornam-se naturalmente dependentes da autoridade central que o encarna. Do
mesmo modo ainda, o direito de propriedade que a comunidade exercia sobre as coisas
de uma maneira indivisível, passa integralmente para a personalidade superior que se
encontra assim constituída. Os serviços propriamente profissionais prestados por esta
última são, pois, insignificantes face ao poder extraordinário de que ela é investida. Se,
nesses tipos de sociedade, o poder diretor possui tanta autoridade, não é, como se diz,
porque tenham necessidade especial de uma direção enérgica; mas essa autoridade é
toda uma emanação da consciência, e ela é grande porque essa própria consciência
comum é muito desenvolvida.
DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. In: Coleção Grandes Cientistas. p. 87-9.
93
MALINOWSKI: PROPRIEDADE ENTRE OS NATIVOS
Bronisław Kasper Malinowski (1884-1924) foi um
antropólogo polonês, atuando como professor na Inglaterra. Fez
várias pesquisas de campo em regiões diversas como na Austrália
e nas Ilhas Trobriand, esta última resultando no livro Argonautas
do Pacífico Ocidental, da qual foi extraído o texto abaixo. Nessa
obra ele analisa o Kula, um sistema de troca diferente de tudo o
que conhecemos na sociedade ocidental. Leia o texto e responda:
Qual a noção de propriedade para os nativos?
MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1976, p.99-100.
94
MARCEL MAUSS: DIREITO DAS COISAS E DAS PESSOAS
NAS SOCIEDADES ANTIGAS
O texto abaixo foi retirado da obra Sociologia e
Antropologia, do antropólogo já visto Marcel Mauss. Nessa
parte, o autor afirma que entre os antigos a separação entre
coisas e pessoas era pouco perceptível, principalmente para nós
modernos. A propriedade estava ligada à pessoa, família, clã ou
tribo, assim como estes estavam ligados à propriedade (ou coisa,
objeto, bem). Além disso, os aspectos mágicos, religiosos e
morais estavam fortemente ligados ao sentimento de posse e
propriedade, de modo que não podemos utilizar nossas
modernas categorias da economia para entender as sociedades
que nos precederam.
Leia o texto abaixo e responda: De que maneira a propriedade estava ligada à
família nas sociedades antigas e primitivas?
95
STUART MILL: DIREITO DE PROPRIEDADE
John Stuart Mill (1806-1873) foi um teórico inglês que
escreveu temas ligados tanto à Filosofia quanto à Economia,
destacando-se em seus escritos sobre liberdade civil, ética, lógica
e economia de mercado. Mill também se debruçou sobre
questões que hoje são discutidas na Sociologia, razão pela qual
até hoje é citado também neste meio.
O texto abaixo foi retirado da obra Princípios de
Economia Política. Leia-o e responda: 1) Como surgiu a
propriedade privada, segundo o autor? 2) No que consiste, hoje
em dia, o direto à propriedade privada? 3) Segundo o
pensamento comunista, os trabalhadores deveriam ter direito ao produto total de seu
trabalho, por serem eles os únicos que produzem. Qual argumento Stuart Mill formula
para contrapor a este raciocínio? 4) Segundo Mill, mesmo aqueles que não possuem
propriedade hoje, e não têm possibilidade de adquiri-la, estão em melhores condições do
que se a humanidade não houvesse formado um estoque de poupança prévio. Por quê?
96
fossem os trabalhadores, não teriam que dividir o produto do seu trabalho com
ninguém, ao passo que, não sendo eles proprietários dos referidos frutos, se deve dar
um equivalente àqueles que são os donos desses frutos – compensando, portanto, a
estes, tanto pelo trabalho anterior quanto pela abstenção deles, abstenção em virtude da
qual o produto do trabalho anterior, ao invés de ser por eles gasto em auto-satisfação,
foi reservado para o uso da produção. É possível que o capital não tenha sido criado – e
na maioria dos casos não o foi – pelo trabalho e a abstinência do proprietário atual, mas
tenha sido criado pelo trabalho e abstenção de alguma pessoa anterior, que, na
realidade, sem dúvida, pode ter perdido injustamente a posse dele, mas que, na presente
época do mundo, com muito maior probabilidade transferiu seus direitos ao capitalista
atual, por doação ou mediante contrato voluntário; a abstenção, no mínimo, deve ter
sido prolongada por cada proprietário sucessivo até chegarmos aos dias de hoje. Se
alguém alegar – como se pode efetivamente afirmar com verdade – que aqueles que
herdaram as poupanças de outros desfrutam de uma vantagem que possivelmente de
maneira alguma mereceram, em relação às pessoas trabalhadoras cujos predecessores
não lhes deixaram nada, direi o seguinte: não somente admito, mas até defendo
vigorosamente, que essa vantagem imerecida deve ser limitada, na medida em que se
conciliar com a justiça, àqueles que acharam conveniente dispor de suas poupanças
dando-as a seus descendentes. Todavia, se é verdade que os trabalhadores estão em
posição de desvantagem, se comparados àqueles cujos predecessores pouparam,
também é verdade que os trabalhadores estão em situação muito melhor do que se
aqueles predecessores não tivessem poupado. Participam da vantagem, embora não em
medida igual à dos herdeiros. As condições de cooperação entre o trabalho presente e
os frutos do trabalho e da poupança do passado são matéria de acerto entre as duas
partes. Um é necessário ao outro. Os capitalistas nada podem fazer sem trabalhadores,
nem os trabalhadores sem capital. Se os trabalhadores competem por emprego, os
capitalistas, por sua parte, competem por mão-de-obra, até a extensão plena do capital
circulante do país. Muitas vezes fala-se da concorrência como se ela fosse
necessariamente a causa da miséria e da degradação da classe obreira, como se os
salários altos não fossem um produto da concorrência, tanto quanto os salários baixos.
A remuneração da mão-de-obra é o resultado da lei da concorrência nos Estados
Unidos, tanto quanto o é na Irlanda, e muito mais do que na Inglaterra.
O direito de propriedade inclui, portanto, a liberdade de adquirir por contrato. O
direito de cada um àquilo que produziu implica um direito àquilo que foi produzido por
outros se isso for obtido por consentimento livre destes; com efeito, os produtores
devem tê-lo cedido gratuitamente ou então devem tê-lo trocado por algo que
consideraram equivalente; impedi-los de fazê-lo seria infringir seu direito de
propriedade sobre o produto de seu próprio trabalho. (...)
A propriedade não implica outra coisa além do seguinte: o direito de cada um a
suas próprias faculdades, àquilo que com elas podem produzir, bem como a tudo aquilo
que puder obter através delas em um comércio honesto; além disso, seu direito de dar
isso a qualquer outra pessoa, se o quiser, e o direito dessa outra pessoa de recebe-lo e
desfrutar dele.
97
HOPPE: NEGAR A EXISTÊNCIA DA PROPRIEDADE PRIVADA
SIGNIFICA CAIR EM AUTOCONTRADIÇÃO
Hans-Hermann Hoppe (1949) é um teórico alemão da escola
austríaca. Estudou Filosofia, Sociologia e Economia, dedicando-se a
temas na área da ética, economia e política.
Durante seu PhD, Hoppe foi aluno de Habermas, e este
desenvolveu, juntamente com Karl Otto-Appel, uma teoria que
ficou conhecida como ―ética do discurso‖ ou ―ética comunicativa‖:
o critério de verdade é o consenso dos que argumentam; cada agente
procura harmonizar seus interesses através de um consenso na
discussão. Isso é conseguido através das regras da linguagem que fazem parte de
qualquer comunicação, estabelecidas numa situação ideal de fala, e por isso, racionais.
De acordo com Habermas, as regras do discurso não são convenções, mas
pressuposições inevitáveis da argumentação. Isso levou Habermas e Appel a afirmarem
que a não observância dessas regras discursivas levaria a uma contradição
performativa. Como exemplo de uma contradição performativa, temos a frase: ―Chove,
mas eu não acredito‖; há uma afirmação na primeira parte da frase, e logo em seguida
uma negação da afirmação anterior – uma contradição lógica. Habermas e Appel
concluíram que uma tal afirmação é irracional; portanto, se pudéssemos formular um
princípio qualquer e este não entrasse em contradição performativa, então ele deveria
valer como fundamento absoluto. Esse seria o fundamento da ética, inclusive.
Essa ideia serviu de base para as análises de Hoppe. Ele aplicou este princípio na
fundamentação da propriedade privada: negar a sua existência seria uma contradição
performativa. E mais ainda: a partir da contradição performativa poderia se chegar a
uma ética. Daí nasceu a famosa ética argumentativa de Hoppe.
Segundo Hoppe, para que algo seja considerado como propriedade privada, é
necessário cumprir os seguintes requisitos: apresentar uma conexão causal com alguma
necessidade humana e estar sob total controle do possuidor. Alguns elementos podem
apresentar conexão com uma necessidade, mas não estar sob o controle de ninguém, por
exemplo, a floresta habitada por índios; nesse caso, não é propriedade de ninguém, ou
seja, Hoppe nega que os índios fossem os proprietários naturais da terra.
O texto abaixo foi retirado da obra Ética e Economia da Propriedade Privada,
de Hoppe. Leia-o e responda: 1) Por que negar a existência da propriedade privada seria
uma contradição performativa, segundo ele? 2) Por que a existência da propriedade
privada não pode depender da autorização de terceiros, de acordo com o autor?
98
ele anteriormente tivesse obtido a permissão de todos os outros co-proprietários.
Entretanto, fica o dilema: como é que uma pessoa poderia conceder tal permissão
sendo que ela não é a dona exclusiva de seu próprio corpo (incluindo suas cordas
vocais)? Afinal, é através de seu corpo que a autorização deve ser expressa. De fato,
antes de dar seu consentimento, ela teria de obter o consentimento de outra pessoa, que
a autorizaria a expressar a sua própria autorização. Mas essa outra pessoa não poderia
dar esse consentimento sem antes ter obtido, de uma outra pessoa, a autorização para
tal, e assim por diante. (...)
Se as pessoas têm ou não quaisquer direitos e, caso tenham, quais são eles, é
algo que só pode ser decidido por meio da argumentação (debate proposicional). Uma
justificativa - prova, conjectura, refutação - é uma proposição argumentativa. Qualquer
um que negue essa afirmação estaria envolvido em uma contradição performativa, pois
sua negação iria por si só constituir um argumento. O seu próprio ato de negar é em si
uma argumentação. Mesmo um relativista ético teria de aceitar essa primeira
afirmação, que é apropriadamente conhecida como o apriorismo da argumentação. (...)
Dedutivamente, somente se ambos os lados de um conflito forem capazes de
incorrer mutuamente em uma argumentação, é que poderemos considerar a questão do
problema moral. E, apenas nesse caso, a pergunta sobre se há ou não uma solução para
esse problema se torna uma pergunta significante. (...)
Ademais, segue-se do apriorismo da argumentação que, tudo o que deve ser
tomado como pressuposição para uma argumentação, isto é, tudo o que deve ser
considerado como uma precondição lógica e praxeológica para uma argumentação, não
pode, por sua vez, ter a sua validade contestada argumentativamente. Pois, ao fazer
isso, a pessoa cairia em contradição performativa - uma auto-contradição. (...)
Uma pessoa só pode propor alguma coisa e esperar que o oponente se convença
da validade do argumento - ou o negue e proponha outra coisa - se o seu direito e o do
seu oponente sobre o controle exclusivo de seus respectivos corpos e espaços forem
pressupostos. De fato, é exatamente esse reconhecimento mútuo que o proponente e o
oponente têm a respeito da propriedade de seus próprios corpos e do espaço que
respectivamente ocupam que constitui o characteristicum specificum de todas as
argumentações proposicionais: embora uma pessoa possa não concordar quanto à
validade de uma proposição específica, ela pode, no entanto, concordar com o fato de
que ela discorda de algo. Ademais, esse direito à propriedade que alguém tem sobre o
próprio corpo e sobre o espaço que ele ocupa deve ser considerado, tanto pelo
proponente como pelo oponente, aprioristicamente (ou incontestavelmente) auto-
evidente. Qualquer um que afirme que a sua argumentação é que é válida vis-à-vis a de
um oponente, já estaria automaticamente pressupondo que ele e seu oponente têm
controle exclusivo sobre seus respectivos corpos e espaços ocupados por eles. Quando
uma pessoa diz "Eu afirmo que isso e isso é verdade e desafio você a provar que estou
errado", ela está automaticamente assumindo as condições acima.
Mais ainda: seria igualmente impossível uma pessoa incorrer em alguma
argumentação e depender da força proposicional de seu argumento se essa pessoa não
pudesse ser a proprietária (controle exclusivo) de outros meios escassos (além de seu
corpo e do espaço que ele ocupa). Se essa pessoa não tivesse esse direito, ela já estaria
morta. Expandindo-se essa situação universalmente, todos nós já estaríamos mortos, e
todo o problema de ter de justificar regras - bem como qualquer outro problema -
simplesmente não existiria. Logo, unicamente pela virtude do fato de essa pessoa estar
viva, o direito de propriedade sobre outras coisas deve ser pressuposto como válido,
também. Ninguém que esteja vivo pode argumentar o contrário.
HOPPE, H. H. Ética e Economia da Propriedade Privada.
Retirado do Instituto Ludwig von Mises Brasil. https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=200
99
KANT: DO DIREITO DE PROPRIEDADE
Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo prussiano.
Publicou vasta obra sobre assuntos que incluem epistemologia e ética.
O trecho abaixo foi retirado da obra Metafísica dos Costumes, onde ele
analisou a doutrina do direito e a doutrina da virtude. Leia-o e
responda: 1) De onde vem o direito de propriedade, segundo Kant? 2)
Segundo Kant, uma pessoa que vivesse sozinha na Terra não teria
direito a coisa alguma. Explique por quê.
A explicação usual de um direito a uma coisa (ius reale, ius in re) segundo a
qual ―é um direito contra todo possuidor dela‖ é uma definição nominal correta. Mas o
que me torna capaz de recuperar um objeto externo de qualquer um que o está
ocupando e de constrange-lo (per vindicationem) a reinstaurar-me em sua posse?
Poderia esta relação jurídica externa de minha escolha ser uma relação direta com uma
coisa corpórea? Alguém que pensa que seu direito é uma relação direta com coisas e
não com pessoas teria que pensar (ainda que apenas obscuramente) que visto que aí
existe a correspondência de um direito, de um lado, com um dever, do outro, uma coisa
externa sempre permanece sob obrigação relativamente ao primeiro possuidor, muito
embora tenha deixado suas mãos; que, uma vez que se encontra obrigada a ele, rejeita
qualquer outro que pretenda ser o seu possuidor. Dessa forma, ele pensaria no meu
direito como se este fosse um espírito guardião que acompanhasse a coisa, sempre me
apontando destacadamente quaisquer outras pessoas que quisessem dela tomar posse e
a protegendo contra qualquer arremetida delas. É, portanto, absurdo pensar numa
obrigação de uma pessoa em relação a coisas ou o contrário, mesmo que talvez seja
permissível, se houver necessidade para tanto, tornar essa relação jurídica perceptível
retratando-a e expressando-a desta maneira.
Assim, a definição real deveria ser nos seguintes termos: um direito a uma coisa
é um direito ao uso privado de uma coisa da qual estou de posse (original ou instituída)
em comum com todos os outros, pois esta posse em comum é a única condição sob a
qual é possível a mim excluir todo outro possuidor do uso privado de uma coisa, visto
que, a menos que tal posse em comum seja assumida, é inconcebível como eu, que não
estou de posse da coisa, poderia ainda ser prejudicado por outros que estão de posse
dela e a estão usando. Por minha escolha unilateral não posso obrigar um outro a
abster-se do uso de uma coisa, uma obrigação que, de outro modo, ele não teria;
consequentemente, só sou capaz de fazê-lo através da escolha conjunta de todos que a
possuem em comum; de outra maneira, teria que conceber um direito a uma coisa
como se a coisa tivesse uma obrigação comigo, da qual meu direito contra todo outro
possuidor dela é então derivado, o que constitui uma explicação absurda.
Pela expressão direito de propriedade (ius reale) deveria ser entendido não
apenas um direito a uma coisa (ius in re), mas também a soma de todas as leis que têm
a ver com coisas que são minhas ou tuas. Mas está claro que alguém que estivesse
totalmente sozinho sobre a Terra não poderia realmente nem ter nem adquirir qualquer
coisa externa como sua, uma vez que não há relação alguma de obrigação entre ele,
como uma pessoa, e qualquer outro objeto externo, como uma coisa.
Consequentemente, falando estrita e literalmente, não há também direito a uma coisa.
Aquilo que se designa como um direito a uma coisa é somente o direito que alguém
tem contra uma pessoa que está de posse dela em comum com todos os outros (na
condição civil).
KANT, I. Metafísica dos Costumes.
100
NEOILUMINISMO: IMPOSTO NÃO É ROUBO
O texto abaixo foi retirado de um artigo publicado no site Neoiluminismo,
intitulado Imposto não é Roubo! – um apelo à defesa consistente do liberalismo. Nesse
artigo, os autores procuram se contrapor ao chavão ―imposto é roubo‖ propagado por
libertários, como Hoppe, ou mesmo por liberais e conservadores. Ao construírem sua
argumentação, os autores levantam questões importantes envolvendo posse,
propriedade, fato empírico, fato normativo, norma, legitimidade do imposto e muitos
outros. Eles também explicam o que é conhecido em Filosofia Moral como falácia
naturalística: um juízo moral jamais pode ser deduzido a partir de um conjunto de
premissas puramente factuais ou descritivas. Por exemplo: do fato de fumar fazer mal à
saúde não implica que alguém não deva fumar.
Leia o texto e responda: 1) Qual a diferença entre posse e propriedade? 2) Qual a
diferença entre fato empírico e fato normativo? 3) Explique a ―Lei de Hume‖ citada
pelos autores.
101
permissão. Eu tenho o direito de obrigá-la a devolvê-lo. Note que o pronome
possessivo aqui tem um tipo de implicação muito maior do que a mera posse: diz
respeito a essa relação jurídica que é expressa no conceito de propriedade.
Há, portanto, a necessidade fundamental de estabelecermos normas (que são
parâmetros de correção) para que possamos falar de propriedade, pois, caso contrário,
estaríamos falando apenas de descrições empíricas desprovidas de qualquer
normatividade (normatividade esta que diz respeito a obrigações expressas por meio de
imperativos). (...) A ação de tomar algo de outrem só se torna ilegítima a partir do
estabelecimento de um parâmetro de correção que diga que algo é errado ou certo. É,
portanto, necessário um esquema conceitual normativo, ou seja, um esquema de
parâmetros de correção (normas) para a ação humana. (...)
Como já estabelecido, os movimentos físicos realizados pelos seres humanos só
possuem normatividade, e podem ser caracterizados propriamente como ação, a partir
do momento em que os colocamos sob a ótica de um esquema conceitual específico,
caso contrário, seriam apenas eventos empíricos descritos naturalisticamente. É por
isso que precisamos de esquemas conceituais normativos com base nos quais podemos
falar de roubo (que é um tipo de ação que identifica a violação de uma norma),
propriedade (que diz respeito à atribuição de um objeto como legitimamente
pertencente a alguém) e imposto (que, dependendo do esquema normativo em questão,
será um tipo de ação – a cobrança – legítima ou ilegítima).
No que consiste o direito de propriedade privada? Primeiro, percebamos que no
conceito de direito está inclusa analiticamente, pelo princípio de contradição, a
competência para o uso da coerção contra quem o viola, coerção esta que é um aspecto
essencial do conceito de direito. Após isso, diríamos que o direito diz respeito a um
título de um certo indivíduo perante um certo objeto que coloca obrigações em todos os
outros indivíduos (obrigações como ―respeite o que eu decidir fazer com esse objeto‖,
―não o use sem a minha permissão‖ etc). É, portanto, importante notar que o direito de
propriedade privada possui também tanto um aspecto unilateral quanto um aspecto
intersubjetivo. Unilateral na medida em que a minha aquisição de um objeto não diz
respeito a ninguém senão a mim, isto é, eu não preciso da permissão explícita de
ninguém para apropriar-me de um dado objeto; intersubjetivo na medida em que esse
ato unilateral tem repercussões para todos os outros indivíduos já que a reivindicação
do objeto em questão como meu limita a gama de ações das outras pessoas com
respeito a tal objeto. É indispensável ratificar que é a composição desses três aspectos
(coerção, unilateralidade e intersubjetividade) que proporciona o que entendemos como
propriedade privada e suas implicações gerais. Remover quaisquer dos três aspectos
retira da noção de propriedade privada o seu status de direito.
Entendido esse triplo aspecto, podemos notar que não é um simples fato natural
o que entendemos por propriedade privada. Do mero fato de alguém usar um certo
objeto de modo pioneiro, não é possível derivar uma obrigação universal para que as
outras pessoas sigam as suas escolhas referentes a tal objeto, sob pena de colapsar a
distinção entre a ordem empírica e a ordem normativa, violando a Lei de Hume.
Nota: A lei de Hume foi um termo cunhado por R.M Hare para designar a tese de que
de nenhum conjunto de premissas puramente empiricamente descritivas podemos
derivar uma conclusão que contenha algum termo normativo.
102
COMÉRCIO
O comércio, juntamente com a propriedade privada e a divisão do trabalho, faz
parte de um conjunto geralmente chamado de instituições econômicas, ou às vezes,
simplesmente, economia. Aqui, optou-se por analisar a propriedade e o comércio como
instituições à parte, sendo a divisão do trabalho parte integrante desta última. Dessa
maneira, importantes aspectos sociológicos relacionados a essas instituições podem ser
melhor avaliados e compreendidos, evitando assim que se caia em armadilhas e erros
que muitas vezes ocorrem na análise desses fenômenos.
A primeira armadilha é confundir comércio com troca. Embora as origens do
comércio remontem às primeiras formas de troca nas sociedades primitivas, é necessário
ter em mente que o comércio só surge de forma significativa a partir de um contexto
complexo envolvendo instituições, grau da divisão do trabalho e aperfeiçoamento
mínimo da tecnologia utilizada na produção de bens e serviços. Esse erro levou muitos
teóricos, inclusive sociólogos, a interpretarem equivocadamente aquele famoso trecho
da obra A Riqueza das Nações, de Adam Smith, no qual afirma haver uma tendência
humana à troca, a partir do momento em que surge a divisão do trabalho na história da
humanidade. A socióloga americana Ellen Meiksins Wood (1942-2016) entendeu nessa
passagem que Smith estaria defendendo uma tendência natural da humanidade ao
comércio; e no contexto de sua crítica àqueles que associam comércio com
―capitalismo‖, concluiu que para Smith haveria uma tendência natural para o
―capitalismo‖. Nada mais absurdo do que interpretar o pensamento de tal economista a
partir dessa ótica obtusa marxista.
Outro equívoco, também oriundo do pensamento marxista, é atribuir ao
comércio atual características que só existiriam na era moderna, e não em épocas
anteriores, como se atualmente a forma de produzir, a divisão do trabalho e a aquisição
da propriedade privada fossem diferentes, em essência, de épocas anteriores. E mais: o
pensamento marxista enxergou nas características básicas do comércio – busca pelo
lucro, competição, acumulação de capital, etc. – princípios norteadores da sociedade
moderna, como se toda a sociedade civil, hoje, funcionasse apenas pela lógica mercantil
do lucro, da maximização da produção, competição, etc., incluindo aí o Estado e o
Direito, conforme vimos anteriormente. Marx denominou de ―Modo de Produção
Capitalista‖ a sociedade moderna com essas características.
Dissociar ―capitalismo‖ de comércio é tão equivocado quanto associá-lo ao
comércio. Isso porque o termo ―capitalismo‖, ou o termo ―Modo de Produção
Capitalista‖, são problemáticos e dependem da definição que se dá a esses termos, além
do que, são tipificações que não correspondem à realidade. São apenas entidades que
procuram enquadrar a complexidade da ação humana e da vida em sociedade em
fórmulas simplistas, esquemas reducionistas. Esses termos são evitados aqui.
Outro erro, dessa vez vindo de teóricos da Economia ou da Filosofia, ou mesmo
da Sociologia, é julgar que os princípios aplicados hoje ao comércio, como a busca pelo
lucro, a otimização da produção ou entendimento do comércio como algo que traz
vantagens mútuas, tenham existido desde todo o sempre no ser humano – desta vez sim,
a crítica da socióloga Ellen M. Wood faria algum sentido, se nos referirmos não a uma
tendência ao ―capitalismo‖, mas a uma tendência ao comércio. Alguns textos a seguir
analisam as razões da troca nas sociedades primitivas, e nos ajudarão a entender
questões complicadas como essas.
103
MARCEL MAUSS: FORMA E RAZÃO DA TROCA
NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS
O texto abaixo é do antropólogo já visto anteriormente, Marcel Mauss. Foi
retirado de seu famoso Ensaio Sobre a Dádiva, publicado junto com outros textos na
obra Sociologia e Antropologia. Nesse texto, o autor procura mostrar que nas primeiras
formas de sociedade ou nas sociedades primitivas, os motivos que levam as pessoas a
estabelecer troca entre si não são puramente comerciais, baseados na lei da oferta e da
procura ou outros motivos que orientam a ação dos agentes econômicos modernos. Ao
invés disso, as trocas são realizadas por motivos complexos. Leia o texto e responda:
Que motivos são esses?
104
do nascimento de seu filho." (...)
Os taonga são, pelo menos na teoria do direito e da religião maori, fortemente ligados à
pessoa, ao clã, ao solo; são o veículo de seu mana, de sua força mágica, religiosa e espiritual.
Num provérbio (...) lhes é rogado que destruam o indivíduo que os aceitou. É porque contêm
dentro deles essa força, caso o direito, sobretudo a obrigação de retribuir, não seja observado.
A propósito do hau, do espírito das coisas, em particular o da floresta e dos animais de
caça que ela contém, Tamati Ranaipiri, um dos melhores informantes maori de R. Elsdon Best,
nos oferece inteiramente ao acaso, e sem nenhuma prevenção, a chave do problema.
"Vou lhes falar do hau... O hau não é o vento que sopra. De modo nenhum. Suponha que você
possua um artigo determinado (taonga) e que me dê esse artigo; você me dá sem preço fixado.
Não fazemos negociações a esse respeito. Ora, dou esse artigo a uma terceira pessoa que,
depois de transcorrido um certo tempo, decide retribuir alguma coisa em pagamento (utu), ela
me dá de presente alguma coisa (taonga). Ora, esse taonga que ela me dá é o espírito (hau) do
taonga que recebi de você e que dei a ela. Os taonga que recebi pelos taonga (vindos de você),
é preciso que eu os devolva. Não seria justo (tika) de minha parte guardar esses taonga para
mim, fossem eles desejáveis (rawè) ou desagradáveis (hino). Devo dá-los de volta, pois são um
hau do taonga que você me deu. Se eu conservasse esse segundo taonga, poderia advir-me um
mal, seriamente, até mesmo a morte. Assim é o hau, o hau da propriedade pessoal, o hau dos
taonga, o hau da floresta. Kali ena. (Basta sobre esse assunto.)"
Se o presente recebido, trocado, obriga, é que a coisa recebida não é inerte. Mesmo
abandonada pelo doador, ela ainda conserva algo dele. Por ela, ele tem poder sobre o
beneficiário, assim como por ela, sendo proprietário, ele tem poder sobre o ladrão. Pois o
taonga é animado pelo hau de sua floresta, de seu território, de seu chão; ele é realmente
"nativo": o hau acompanha todo detentor. Ele acompanha não apenas o primeiro donatário,
mesmo eventualmente um terceiro, mas todo indivíduo ao qual o taonga é simplesmente
transmitido. No fundo, é o hau que quer voltar ao lugar de seu nascimento, ao santuário da
floresta e do clã e ao proprietário. É o taonga ou seu hau - que é, aliás, ele próprio uma espécie
de indivíduo – que se prende a essa série de usuários, até que estes retribuam com seus próprios
taonga, suas propriedades ou então seu trabalho ou comércio, através de banquetes, festas e
presentes, um equivalente ou um valor superior que, por sua vez, darão aos doadores
autoridade e poder sobre o primeiro doador, transformado em último donatário. Eis aí a ideia
dominante que parece presidir, em Samoa e na Nova Zelândia, à circulação obrigatória das
riquezas, tributos e dádivas.
A prestação total não implica somente a obrigação de retribuir os presentes recebidos,
mas supõe duas outras igualmente importantes: obrigação de dar, de um lado, obrigação de
receber, de outro. (...)
Será fácil encontrar um grande número de fatos relativos à obrigação de receber. Pois
um clã, os membros da família, um grupo de pessoas, um hóspede, não são livres para não
pedir a hospitalidade, para não receber presentes, para não negociar, para não contrair aliança,
pelas mulheres e pelo sangue. Os Dayak desenvolveram inclusive todo um sistema de direito e
de moral sobre o dever de não deixar de partilhar a refeição a que se assiste ou que se viu
preparar.
Não menos importante é a obrigação de dar; seu estudo poderia fazer compreender de
que maneira os homens passaram a trocar coisas. Podemos indicar apenas alguns fatos. Recusar
dar, negligenciar convidar, assim como recusar receber, equivale a declarar guerra; é recusar a
aliança e a comunhão. (...)
Todas essas instituições exprimem unicamente apenas um fato, um regime social, uma
mentalidade definida: é que tudo, alimentos, mulheres, filhos, bens, talismãs, solo, trabalho,
serviços, ofícios sacerdotais e funções, é matéria de transmissão e de prestação de contas. Tudo
vai e vem como se houvesse troca constante de uma matéria espiritual que compreendesse
coisas e homens, entre os clãs e os indivíduos, repartidos entre as funções, os sexos e as
gerações.
MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p.187-203.
105
MALINOWSKI: O “KULA” COMO UMA FORMA DE TROCA E
COMÉRCIO NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS
No texto a seguir, retirado da obra já vista Argonautas do Pacífico Ocidental,
Malinowski associa o processo de troca nas sociedades primitivas com o comércio,
destacando suas diferenças e gradações. Ele destaca o sistema do Kula já analisado em
texto anterior. Leia o texto abaixo e responda: Como e por que ocorrem trocas entre os
povos primitivos?
106
ADAM SMITH: O PRINCÍPIO QUE DÁ ORIGEM
À DIVISÃO DO TRABALHO
Adam Smith (1723-1790) foi um filósofo escocês que dedicou-
se a temas ligados à Ética e à Economia. Considerado um clássico das
ciências econômicas, mostrou de forma simples e direta as vantagens
do comércio nas várias sociedades, defendendo portanto o livre
mercado. O texto abaixo foi retirado da obra A Riqueza das Nações.
Leia-o e responda: 1) Segundo Smith, a tendência à troca é natural no
ser humano? E a tendência ao comércio? Qual a diferença? 2) Qual a
relação entre divisão do trabalho e comércio?
Essa divisão do trabalho, da qual derivam tantas vantagens, não é, em sua origem, o
efeito de uma sabedoria humana qualquer, que preveria e visaria esta riqueza geral à qual dá
origem. Ela é a consequência necessária, embora muito lenta e gradual, de uma certa tendência
ou propensão existente na natureza humana que não tem em vista essa utilidade extensa, ou
seja: a propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra.
Não é nossa tarefa investigar aqui se essa propensão é simplesmente um dos princípios
originais da natureza humana, sobre a qual nada mais restaria a dizer, ou se – como parece mais
provável – é uma consequência necessária das faculdades de raciocinar e falar. De qualquer
maneira, essa propensão encontra-se em todos os homens, não se encontrando em nenhuma
outra raça de animais, que não parecem conhecer nem essa nem qualquer outra espécie de
contratos. Por vezes, tem-se a impressão de que dois galgos, ao irem ao encalço de uma lebre,
parecem agir de comum acordo. Cada um a faz voltar-se para seu companheiro, ou procura
interceptá-la quando seu companheiro a faz voltar-se para ele. Mas isso não é efeito de algum
contrato, senão da concorrência casual de seus desejos acerca do mesmo objeto naquele
momento específico. Ninguém jamais viu um cachorro fazer uma troca justa e deliberada de
um osso por outro, com um segundo cachorro. Ninguém jamais viu um animal dando a
entender a outro, através de gestos ou gritos naturais: isto é meu, isto é teu, estou disposto a
trocar isto por aquilo. (...) No caso de quase todas as outras raças de animais, cada indivíduo,
ao atingir a maturidade, é totalmente independente e, em seu estado natural, não tem
necessidade da ajuda de nenhuma outra criatura vivente. O homem, entretanto, tem necessidade
quase constante da ajuda dos semelhantes, e é inútil esperar esta ajuda simplesmente da
benevolência alheia. Ele terá maior probabilidade de obter o que quer, se conseguir interessar a
seu favor a autoestima dos outros, mostrando-lhes que é vantajoso para eles fazer-lhe ou dar-
lhe aquilo de que ele precisa. É isto o que faz toda pessoa que propõe um negócio a outra. Dê-
me aquilo que eu quero, e você terá isto aqui, que você quer – esse é o significado de qualquer
oferta desse tipo; e é dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos serviços de
que necessitamos. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que
esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimo-
nos não à sua humanidade, mas à sua autoestima, e nunca lhes falamos das nossas próprias
necessidades, mas das vantagens que advirão para eles. Ninguém, a não ser o mendigo, sujeita-
se a depender sobretudo da benevolência dos semelhantes. (...)
Assim como é por negociação, por escambo ou por compra que conseguimos uns dos
outros a maior parte dos serviços recíprocos de que necessitamos, da mesma forma é essa
mesma propensão ou tendência a permutar que originalmente gera a divisão do trabalho. (...)
Como é o poder de troca que leva à divisão do trabalho, assim a extensão dessa divisão
deve sempre ser limitada pela extensão desse poder, ou, em outros termos, pela extensão do
mercado. Quando o mercado é muito reduzido, ninguém pode sentir-se estimulado a dedicar-se
inteiramente a uma ocupação, porque não poderá permutar toda a parcela excedente de sua
produção que ultrapassa seu consumo pessoal pela parcela de produção do trabalho alheio, da
qual tem necessidade.
SMITH, A. A Riqueza das Nações. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Economistas), p.49-53.
107
SAY: PRESERVAÇÃO DO PODER DE COMPRA
Jean-Baptiste Say (1767-1832) foi um teórico francês. Atuando
como comerciante e vivendo na Inglaterra, veio a se interessar por
economia, defendendo a importância do comércio e do livre mercado, assim
como Smith. Em sua obra Tratado de Economia Política, da qual foi
extraído o texto abaixo, Say estabeleceu um princípio que mais tarde ficou
conhecido como Lei de Say. O texto abaixo explica esse princípio. Leia-o e
responda: 1) O que é a Lei de Say? 2) Por que uma nação jamais pode estar
com super-estoque de capitais, de acordo com este princípio? 3) Ainda
segundo este princípio, por que é errado dizer que ―a riqueza de uns existe
por causa da pobreza de outros‖?
É bom observar que um produto acabado oferece, a partir desse instante, um mercado
para outros produtos equivalente a todo o montante de seu valor. Com efeito, quando o último
produtor acabou um produto, seu maior desejo é vendê-lo para que o valor desse produto não
fique ocioso em suas mãos. Por outro lado, porém, ele tem igual pressa em desfazer-se do
dinheiro que sua venda lhe propicia, para que o valor do dinheiro tampouco fique ocioso. Ora,
não é possível desfazer-se de seu dinheiro, senão procurando comprar um produto qualquer.
Vê-se, portanto, que só o fato da criação de um produto abre, a partir desse mesmo instante, um
mercado para outros produtos.
É por isso que uma boa colheita não favorece apenas os cultivadores, mas também, ao
mesmo tempo, os vendedores de todos os outros produtos. Compra-se mais sempre que se
colhe mais. Uma colheita má, ao contrário, prejudica todas as vendas. O mesmo acontece com
respeito às colheitas feitas pelas artes e o comércio. Um ramo de comércio que prospera
fornece com que comprar, propiciando, consequentemente, vendas a todos os demais
comércios; por outro lado, quando uma parte das manufaturas ou dos tipos de comércio entra
em declínio, a maior parte dos outros sofre com isso.
Sendo assim, de onde vem – perguntar-se-á – essa quantidade de mercadorias que, em
determinadas épocas, obstruem a circulação, sem poder encontrar compradores? Por que essas
mercadorias não se compram umas às outras?
Minha resposta é que mercadorias que não se vendem ou que se vendem com perda
ultrapassam a soma das necessidades que delas se tem, seja porque foram produzidas em
quantidades excessivas, seja porque outras produções decaíram. Certos produtos se encontram
em grande abundância porque outros vieram a faltar.
Em termos mais vulgares: muitas pessoas compraram menos porque ganharam menos,
e ganharam menos porque encontraram dificuldades no emprego de seus meios de produção ou
então porque esses meios lhe faltaram.
Por isso, pode-se observar que as épocas em que certos gêneros não se vendem bem
são exatamente aquelas em que outros gêneros sobem a preços excessivos; ora, como esses
preços elevados seriam motivo para favorecer sua produção, é preciso que causas maiores ou
meios violentos, como desastres naturais ou políticos, a avidez ou a incapacidade dos
Governos, mantenham por força essa penúria, de um lado, que causa uma obstrução, do outro.
Quando cessa essa causa de doença política, os meios de produção se voltam para as estradas
em que a produção permaneceu atrasada; avançando por esses caminhos, ela favorece o avanço
da produção em todos os outros. Um tipo de produção raramente ultrapassaria os demais e seus
produtos seriam raramente aviltados se sempre se deixassem todos à sua inteira liberdade.
Uma segunda consequência do mesmo princípio é que cada um está interessado na
prosperidade de todos e que a prosperidade de uma espécie de indústria favorece a
prosperidade de todas as outras. Com efeito, sejam quais forem a indústria que se cultive e o
talento que se exerça, encontra-se lhes o emprego e tira-se lhes um lucro tanto melhor quanto
mais se está cercado de pessoas que também ganham. Um homem de talento, encontrado a
vegetar tristemente numa região que declina, encontraria mil empregos para suas faculdades
numa região produtiva em que se poderia empregá-lo e pagar sua capacidade.
SAY, J.B. Tratado de Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p.139-140.
108
MONTESQUIEU: NATUREZA E IMPORTÂNCIA DO COMÉRCIO
O texto abaixo é da obra já vista de Montesquieu, Do Espírito das Leis. Nesta
parte, ele analisa o comércio em suas várias faces, entre os vários povos de diferentes
épocas. Embora estivesse carregado de preconceitos de sua época, Montesquieu
conseguiu captar, de forma surpreendente, os benefícios da prática dessa instituição – o
comércio – bem como os vícios decorrentes de péssimas práticas governamentais
relativas à boa circulação de bens e serviços.
Leia o texto abaixo e responda: 1) Quais as principais vantagens trazidas pelo
comércio, nas diferentes nações do mundo? 2) Por que a Inglaterra se destacou de
outros países, segundo o autor? 3) A quem interessa as guerras praticadas entre as
nações?
109
MISES: MOEDA E CÁLCULO ECONÔMICO
O texto abaixo foi retirado da obra Ação Humana, a mesma analisada
anteriormente. Aqui, Mises analisa a importância da moeda para o cálculo econômico
dos agentes, assim como os limites associados a este cálculo. Leia-o e responda: 1) Qual
a importância da moeda e do sistema de preços para o cálculo econômico? 2) Numa
economia onde existisse um dirigismo central por parte do governo sobre o que e como
produzir, quais seriam as dificuldades em relação ao cálculo econômico? 3) Considere
um exemplo prático: se o preço da gasolina subisse, mas o governo mantivesse
artificialmente seu preço anterior (abaixo do real), quais seriam as consequências dessa
política para a eficiente alocação de recursos dos agentes econômicos? Use a teoria de
Mises abaixo para explicar.
A tecnologia e as considerações que dela derivam seriam de pouca utilidade
para o agente homem, se não fosse possível introduzir nos seus esquemas técnicos os
preços em moeda dos bens e serviços. Os projetos e desenhos dos engenheiros seriam
exercícios meramente acadêmicos, se não pudessem comparar custo e receita em
relação a uma mesma base. (...)
Assim sendo, a moeda se torna o veículo do cálculo econômico. Não estamos,
desta forma, atribuindo outra função à moeda. A moeda é o meio de troca usado
universalmente e nada mais. Precisamente porque a moeda é o meio de troca universal,
porque a maior parte dos bens e serviços pode ser comprada e vendida no mercado pela
utilização da moeda, e somente na medida em que assim seja, é que o homem pode
utilizar os preços em moeda para efetuar os seus cálculos. As relações de troca entre
moeda e os vários bens e serviços estabelecidos no mercado até ontem, e as que,
segundo se espera, serão estabelecidas amanhã, são as ferramentas mentais do
planejamento econômico. Onde não existirem preços em moeda, não existirão
quantidades econômicas. Neste caso, existirão apenas várias relações quantitativas
entre as várias relações de causa e efeito do mundo exterior; não haverá meio de o
homem descobrir qual o tipo de ação melhor serviria aos seus esforços para diminuir,
tanto quanto possível, o desconforto. (...)
A tarefa que o agente homem pretende realizar utilizando-se do cálculo
econômico é a de estabelecer o resultado da ação pelo contraste de custos e benefícios.
Pelo cálculo econômico, ou se estima qual será o resultado de uma futura ação ou se
constata o resultado de uma ação passada. Neste segundo caso, a constatação não é
feita apenas com propósitos didáticos e históricos. Seu significado prático é mostrar
quanto cada um pode consumir sem prejudicar a futura capacidade de produzir. Foi
tendo em vista esse problema que se desenvolveram as noções fundamentais do cálculo
econômico – de capital e renda, lucro e prejuízo, consumo e poupança, custo e
benefício. A utilização, na prática, dessas noções, e de todas as outras que delas
derivam, está inseparavelmente ligada ao funcionamento de um mercado no qual bens
e serviços de qualquer natureza sejam trocados mediante o uso de um meio de troca
universalmente aceito, qual seja, a moeda. (...)
O cálculo econômico é tão eficiente quanto pode ser. Nenhuma reforma poderia
aumentar sua eficiência. Propicia ao agente homem todos os serviços que podem ser
obtidos com a computação numérica. Não consiste, evidentemente, num meio de
conhecer condições futuras com certeza, nem retira da ação o seu caráter especulativo.
Mas isto só pode ser considerado como uma deficiência por aqueles que não chegam a
perceber o fato de que a vida não é rígida, que todas as coisas estão em permanente
mutação e que os homens não podem ter nenhuma certeza quanto ao futuro.
MISES, Op. cit., p. 260-265.
110
EDUCAÇÃO
Pensada como uma instituição, a educação é essencial para a sobrevivência de qualquer
sociedade. Por meio dela, a geração atual transmite à geração seguinte sua bagagem científica,
econômica, política, religiosa e artística; em suma, sua herança cultural. Toda sociedade
existente, portanto, satisfez essa necessidade, não importa de que maneira: se através de escolas,
de instrução familiar, por meio da igreja, de rituais mágicos ou trocas entre grupos.
Muitas pessoas confundem a instituição educação com a instituição de ensino chamada
escola. Embora nas sociedades modernas ocidentais as escolas tenham desempenhado esse
importante papel de preparação dos jovens para a vida adulta, por meio da aquisição de
conhecimentos e da socialização, não é correto limitar o fenômeno da educação às escolas, nem
mesmo supor que uma sociedade poderia regredir caso estas deixassem de desempenhar o papel
que tiveram até hoje. Isso porque toda instituição muda com o tempo, principalmente nos dias
de hoje, em que a informação se tornou muito mais acessível a todos, incluindo as formas de
obtenção da mesma, através de tecnologias diversas – aplicativos, vídeos aulas, jogos, redes
sociais e muitos outros recursos que surgem a cada dia. Além disso, as próprias formas de
socialização também mudaram, de modo a nos fazer repensar o papel da escola nesse contexto.
A educação foi tema amplamente discutido dentro da Sociologia e da Filosofia. No
século XVII, João Amós Comênio criticou os métodos de instrução da época, principalmente a
ênfase dada à lógica e aos clássicos, defendendo no lugar um ensino adaptado ao
desenvolvimento mental da criança e aos interesses desta. John Locke, filósofo já visto,
argumentava que a educação deveria visar à disciplina mental, e que a instrução prática era mais
importante que a instrução pelo livro. No século XVIII, o filósofo Rousseau propôs um sistema
de educação que permitisse ao ser humano, que ele acreditava nascer bom e puro, dirigir suas
inclinações naturais e melhor adapta-lo à sociedade corrupta. Sua teoria influenciou toda a
geração seguinte: Pestalozzi, segundo o qual a educação deveria se adequar às necessidades da
criança e focar no desenvolvimento harmonioso de todas as suas faculdades; Froebel,
considerado o fundador do ―jardim da infância‖, pelo menos, desse termo que até hoje ficou
consagrado (Kindergarten), um educador alemão de acordo com o qual a educação deveria ter
como função proporcionar às crianças (vistas metaforicamente como plantinhas de um jardim)
aprendizagem sobre elementos essenciais à sociedade como verdade, justiça, responsabilidade e
iniciativa, através do professor (visto como o jardineiro). Não por meio de estudos, mas através
da vivência prática – brinquedos, atividades práticas, contato com a natureza, trabalhos
artísticos, etc. Mais especificamente dentro da Sociologia: Augusto Comte já argumentava que
o progresso humano depende da educação; Spencer valorizou o conhecimento científico e
prático; Durkheim enfatizou o aspecto impositivo da educação (vista como fato social), ao
argumentar que ela consistia num esforço contínuo de imposição, por parte da geração mais
velha sobre a geração mais nova, de modos de ver, sentir e agir.
Muitas questões se colocam quando se discute o papel da educação, como instituição, e
da escola, em particular. O sociólogo Lester F. Ward defendeu a educação (escola) como meio
de progresso social. Já o sociólogo William Graham Sumner não via a educação (escolar) como
um meio de solucionar os problemas do mundo, pensando que não passava de uma panaceia.
Esses assuntos serão vistos nos textos seguintes.
Isso nos leva a outro ponto: é função do Estado garantir o acesso à escola? Se sim, de
que forma? Se não, por quê? Além disso, o Estado deve impor os conteúdos ministrados dentro
da sala de aula? O professor deve ter liberdade para ensinar? Até que ponto? Qual a diferença,
se é que existe, entre educar e doutrinar? Qual o papel da igreja? Qual a relação entre educação
familiar e educação vinda da escola? Uma deve se sobrepor à outra? Em que medida?
Como se nota, são várias questões que se colocam, muitas delas, inclusive, bastante
atuais e temas de conflitos entre professores, alunos e pais de alunos. Que os textos seguintes o
ajudem a pensar melhor sobre isso.
111
ROSSITER: EDUCAÇÃO E ESTADO
Lyle H. Rossiter é um psiquiatra americano estudioso dos casos de patologia e
desordens mentais. Nesta parte, ele argumenta que a educação consiste em fornecer
autonomia e torna-lo competente para a vida em sociedade. Leia e responda: 1)
Explique o que é ―força do ego‖ e resiliência. 2) Por que o estado paternalista é
prejudicial ao desenvolvimento das competências de um ser humano?
112
mutuamente benéfica. A força do ego não deve ser interpretada como autoestima; ela, na
verdade, denota a possibilidade de lidar com situações difíceis. A resiliência é a capacidade de
lidar com e recuperar a eficiência funcional depois de perdas ou infortúnios sérios ou
persistentes.
Essas habilidades contribuem para o que é comumente chamado de caráter, termo que
também implica a disposição a agir com honestidade, integridade, responsabilidade, auto-
direcionamento e confiança nas interações com outros. Entre outras coisas, pessoas com um
bom caráter tipicamente mantêm promessas e honram contratos, respeitam a soberania de
outras pessoas e seu direito de propriedade e, tanto quanto seja possível, assumem a
responsabilidade por si mesmas ao prover para suas próprias necessidades e para as daqueles
com quem assumiram alguma obrigação voluntária. Pessoas com caráter não fazem
reivindicações legalmente executáveis sobre o tempo, o esforço ou os bens materiais de outras
pessoas. Elas não se sentem no direito de serem subsidiadas por pessoas com quem não
possuem uma relação pessoal ou uma obrigação contratual prévias. (...)
As instituições e arranjos de uma sociedade, suas regras principais de vivência,
desenvolvem-se gradualmente a partir dos significados atribuídos por seus membros aos
processos econômicos, sociais e políticos. Esses processos, nas democracias, evoluem em
grande parte pela aprovação do eleitorado e pela política de pressão sobre interesses especiais.
Mas a aprovação do eleitorado e o apelo dos interesses especiais são ambas expressões do que
o governo significa para os seus cidadãos. A ascensão da agenda esquerdista ao poder resultou
de um significado particular atribuído ao governo pelos povos das sociedades ocidentais, a
saber, que o Estado é uma fonte da qual se satisfaz os anseios do povo por formas diversas de
cuidado paternal. Como resposta ao convite dos políticos esquerdistas, as pessoas agora pedem
a intervenção do governo em todos os principais setores da vida: creches, educação pública
escolar e pré-escolar, educação sexual, regulamentação dos empregos, segurança ocupacional,
qualidade e confiabilidade de produtos, ética no local de trabalho, regulamentação da moeda e
dos bancos, regulamentação de alimentos e remédios, políticas de saúde, compensação por
deficiências pessoais, segurança da aposentadoria etc. Diante do clamor das pessoas, os oficiais
do governo têm se tornado administradores do cuidado paternal, da proteção e das
indulgências, desde o berço até o túmulo. Os políticos que se identificam com esses anseios e
os exploram em forma de legislação e propaganda de campanha têm desfrutado de grande
sucesso nas urnas.
Mas o custo da infantilização das pessoas é uma ampla deformação de sua
competência. Grande parte da população tem adotado uma dependência infantil dos programas
assistenciais do governo. O Estado moderno assumiu o papel de um pai aparentemente
benigno, generoso, onipotente e semelhante a deus, que serve como tutor, gerente, provedor e
cuidador, tudo em detrimento das pessoas. Nós temos, na verdade, elevado nossos governos ao
status paternal na crença de que estaremos em melhor situação se eles cuidarem de nós do que
se o fizermos nós mesmos. Deslocamos nossas premissas sobre a condição humana de uma
concepção ética e religiosa, de que devemos alcançar uma boa vida através de trabalho duro e
responsabilidades individuais e cooperativas, para uma concepção coletivista e secular da vida,
a de uma competição manipuladora pelas recompensas do estado. (...)
Esse anseio por ser cuidado, por ser aliviado das responsabilidades da vida adulta, tem
sua origem na infância. Ele é satisfeito adequadamente pelas ligações de dependência entre a
criança e seus pais. Mas não é satisfeito adequadamente pelas ligações de dependência entre o
adulto e o Estado. (...)
Influências familiares, especialmente as que surgem das características de
personalidade dos pais, são obviamente críticas para o crescimento e desenvolvimento da
criança. Elas refletirão os ideais culturais, valores e proibições mais amplos da sociedade como
um todo. Reciprocamente, as instituições de uma determinada sociedade refletirão suas práticas
de criação das crianças e sua ênfase relativa em autonomia ou dependência, cooperação ou
oposição, moralidade ou imoralidade.
ROSSITER, L. H. A Mente Esquerdista – As causas psicológicas da loucura política.
Campinas: Vide Editorial, 2016, p.39-43, 47-48, 77.
113
HARRI BROWNE: PROBLEMAS DA EDUCAÇÃO ESTATAL
O texto abaixo foi escrito por Harry Browne (1933-2006) e
retirado do Instituto Mises Brasil. Browne era americano; atuou
como escritor e consultor de investimentos, se envolvendo também
com política. Tinha um pensamento libertário. Nesse texto, o autor
reflete sobre a educação e quais as consequências de seu controle
por parte do Estado. Leia-o e responsa: 1) Por que uma escola
pública nunca irá ser eficiente? 2) Para o autor, qual a solução para
a educação?
114
GRAMSCI: EDUCAÇÃO E HEGEMONIA
Antonio Gramsci (1891-1937) foi um teórico italiano de
orientação marxista. Gramsci procurou romper com algumas
visões mecanicistas no marxismo, de acordo com as quais uma
revolução comunista ocorreria inevitavelmente, de forma
espontânea, a partir do momento em que as condições materiais e
econômicas para isso já estivessem dadas. Ao invés disso, Gramsci
afirmou que uma revolução só ocorreria quando uma mentalidade
revolucionária existisse previamente na sociedade. Isto é, quando
houvesse um tipo de pensamento hegemônico comunista.
O conceito de hegemonia é fundamental no pensamento de Gramsci e de toda
uma geração que retomou seu pensamento a partir dos anos 1950. Hegemonia é a
direção moral e intelectual exercida por uma classe, numa sociedade dada. Uma classe
só se tornaria politicamente e economicamente dominante se tivesse, antes de tudo, um
domínio hegemônico sobre a sociedade. Essa hegemonia, de acordo com ele, se
manifesta em diferentes esferas da sociedade – na ciência, nas empresas, no comércio,
na família, na religião, etc.. E cada cientista, empresário, comerciante, padre ou cidadão
é um intelectual orgânico; cada um desempenhando um papel importante na reprodução
do sistema econômico vigente. Esses intelectuais são formados na educação técnica e
científica da escola. Daí o papel exercido por essa instituição na perpetuação do sistema
―capitalista‖.
Para romper com esse sistema, segundo Gramsci, era necessário criar um
pensamento contra-hegemônico que se estabelecesse gradativamente nas diversas
instituições, principalmente escolas e igrejas, de modo a mudar os rumos do ensino e
criar novos intelectuais orgânicos que defendessem a causa comunista, a única que, para
Gramsci, era a correta.
O texto abaixo foi retirado da obra Os Intelectuais e a Organização da Cultura.
Leia-a e responda: Qual a função da escola para a criação de um sistema comunista?
115
tradicionais, assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o
grupo em questão elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos.
O enorme desenvolvimento alcançado pela atividade e pela organização escolar
(em sentido lato) nas sociedades que surgiram do mundo medieval indica a importância
assumida no mundo moderno pelas categorias e funções intelectuais: assim como se
buscou aprofundar e ampliar a "intelectualidade" de cada indivíduo, buscou-se
igualmente multiplicar as especializações e aperfeiçoá-las. É este o resultado das
instituições escolares de graus diversos, inclusive dos organismos que visam a
promover a chamada "alta cultura", em todos os campos da ciência e da técnica.
A escola é o instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis. A
complexidade da função intelectual nos vários Estados pode ser objetivamente medida
pela quantidade das escolas especializadas e pela sua hierarquização: quanto mais
extensa for a "área" escolar e quanto mais numerosos forem os "graus verticais" da
escola, tão mais complexo será o mundo cultural, a civilização, de um determinado
Estado. (...)
A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como é o
caso nos grupos sociais fundamentais, mas é "mediatizada", em diversos graus, por
todo o contexto social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são
precisamente os "funcionários". Poder-se-ia medir a "organicidade" dos diversos
estratos intelectuais, sua mais ou menos estreita conexão com um grupo social
fundamental, fixando uma gradação das funções e das superestruturas de baixo para
cima (da base estrutural para cima). Por enquanto, pode-se fixar dois grandes "planos"
superestruturais: o que pode ser chamado de "sociedade civil" (isto é; o conjunto de
organismos chamados comumente de "privados") e o da "sociedade política ou
Estado", que correspondem à função de "hegemonia" que o grupo dominante exerce
em toda a sociedade e àquela de ―domínio direto" ou de comando, que se expressa no
Estado e no governo "jurídico". Estas funções são precisamente organizativas e
conectivas. Os intelectuais são os "comissários" do grupo dominante para o exercício
das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do
consenso "espontâneo" dado pelas grandes massas da população à orientação impressa
pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce "historicamente"
do prestígio (e, portanto, da confiança) que o grupo dominante obtém, por causa de sua
posição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparato de coerção estatal que
assegura "legalmente" a disciplina dos grupos que não "consentem", nem ativa nem
passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos momentos
de crise no comando e na direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo. (...)
É verdade que a própria função organizativa da hegemonia social e do domínio
estatal dá lugar a uma certa divisão do trabalho e, portanto, a toda uma gradação de
qualificações, em algumas das quais não mais aparece nenhuma atribuição diretiva e
organizativa: no aparato da direção estatal e social existe toda uma série de empregos
de caráter manual e instrumental (de ordem e não de conceito, de agente e não de
oficial ou funcionário, etc.); mas, evidentemente, é preciso fazer esta distinção, como é
preciso fazer também qualquer outra. De fato, a atividade intelectual deve ser
diferenciada em graus, inclusive do ponto de vista intrínseco; estes graus, nos
momentos de extrema oposição, dão lugar a uma verdadeira e real diferença
qualitativa: no mais alto grau, devem ser colocados os criadores das várias ciências, da
filosofia, da arte, etc.; no mais baixo, os "administradores" e divulgadores mais
modestos da riqueza intelectual já existente, tradicional, acumulada?
116
RAFAEL NOGUEIRA: APONTAMENTOS SOBRE O CONCEITO
DE “EDUCAÇÃO BANCÁRIA” DE PAULO FREIRE
Rafael Nogueira é formado em Filosofia e Direito pela Universidade Católica de
Santos. O texto abaixo foi retirado da obra Desconstruindo Paulo Freire. Leia-o e
responda: 1) O que é a ―educação bancária‖ segundo Paulo Freire? 2) Quais as críticas
que o autor (Rafael Nogueira) faz a essa metáfora de Freire? 3) Qual a relação do
pensamento de Paulo Freire com o pensamento marxista?
Na visão „bancária‟ da educação, o „saber‟ é uma doação dos que se julgam sábios
aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações
instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que constitui
o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre
no outro.
Enxerguemos o cenário. Paulo Freire parecia crer que a visão bancária vigorava
no Brasil. Ele publicou essa obra em 1968, no exílio. Ela foi traduzida para dezenas de
idiomas, o que nos faz pensar que não só ele tomava por certo que essa era a visão
dominante. O Brasil passava pela ditadura militar. O mundo estava imerso na Guerra
Fria, cujo antagonismo principal era ideológico: capitalismo contra socialismo. Freire
usa a figura do banco como negativa, criticável, diria, até, abominável.
Um dos símbolos capitalistas (pelo menos, para as cabeças socialistas) é usado
como metáfora de má educação, de despersonalização, de mecanização, de
objetificação; a alternativa seria, então, humanizadora, afetiva, ativa. Há indícios claros
de inspiração ideológica. Mas tornemos a analisar os aspectos propriamente
pedagógicos, com mais explicações do autor a respeito da visão bancária:
117
pedagógico, se há depósito, há valores em jogo. Que valores? Os conhecimentos.
Conhecimentos são tesouros. O professor os deposita na conta bancária do aluno, que é
sua memória. O aluno pode recebê-los de forma dócil ou indócil, mas continua sendo
uma doação de valores. Ou uma troca. Quantos cursos não fazemos, pagando caro por
eles, para recebermos de volta os valores monetários em forma de conhecimento?
E quando Freire fala em educadores que são sempre os que sabem, e em
educandos, sempre os que não sabem, desconsidera que, num depósito, os valores saem
de uma conta e são transferidos a outra conta. O belo do conhecimento é que, quando o
professor deposita, o aluno ganha e ele não perde.
O que é tão ruim assim na educação bancária? Voltemos às palavras de Freire
para tentar descobrir:
Nela, o educador aparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja
tarefa indeclinável é „encher‟ os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos
que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em
cuja visão ganhariam significação. A palavra, nestas dissertações, se esvazia da
dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade
alienada e alienante. Daí que seja mais som que significação e, assim, melhor seria
não dizê-la.
Por que os conteúdos ministrados pelos professores são meros retalhos? Por que
são desconectados da totalidade em que se engendram? Talvez porque Freire tenha sido
formado (na prática, não na academia) lecionando para adultos analfabetos. É claro que
um professor não deve pressupor que, por ser iletrado, um adulto, da cidade ou do
campo, não tenha inteligência, conhecimentos, valiosas memórias, experiência etc. É
muito mais interessante mesmo partir da realidade do aluno, e usar palavras do
cotidiano dele para melhor alfabetizá-lo, aprendendo com ele o que não se sabe. O
Brasil foi construído, sobretudo, por analfabetos! Mas isso precisa ser transformado em
―práxis‖, ―revolução‖, ―utopia‖? É algo óbvio, não?
Freire não erra integralmente. A metáfora, ainda que ruim e cheia de
atrapalhações e imprecisões, era cabível em seu tempo, quando falar em banco causava
arrepios nos progressistas. Hoje, sabemos que os progressistas têm contas bem gordas
nos bancos. (...)
A quem tem dúvida sobre o aspecto ideológico embutido na visão freiriana,
explanarei mais claramente adiante, mas já é possível ver pelas citações acima e por
meio desta aqui:
Freire chega ao ápice de sua crítica/proposta quando diz que ―ninguém educa
ninguém‖. Vejamos:
118
Como ser, então, educado por Freire para melhor educar? Não é um tanto
impositiva a sua ideia?
É muito claro para mim, que já dei aula para crianças, adolescentes e adultos,
que o significado etimológico da palavra educar (do latim ex docere: conduzir para
fora) ganha vida, sim, na escola, sobretudo quando tratamos com crianças e
adolescentes. Mas os adultos dos cursos técnicos onde lecionei também esperavam de
mim conhecimentos, por mais que eu os respeitasse como sujeitos pensantes e
experimentados. Senão, não me procurariam.
Freire diz que a educação libertadora destaca o ato de pensar, de buscar, enfim,
de ser. A educação bancária desumaniza, não encoraja o pensamento nem a busca. Os
problemas mais flagrantes dessas ideias são estes: ele não parece pensar com muita
habilidade e não é possível ao aluno pensar (a não ser que o faça como um hominídeo)
sem receber os valores que representam a herança do passado, e isso não é só questão
de convivência sem método, o que toma formidavelmente o tempo e a energia por falta
de planejamento, mas, sim, de transmissão de conhecimentos acumulados. Aprender
pela descoberta faria cada geração ter de se demorar imensamente em processos que
podem ser vencidos por meio dos ―depósitos bancários‖.
Os seus pontos altos parecem redundar em evidências a qualquer bom educador
que respeita os seus alunos. Respeitar no sentido de olhá-los como seres inteligentes,
que querem aprender e memorizar, sim, mas também se desenvolver, ganhar
habilidades e crescer em competências múltiplas que os tornem capazes de buscar sua
felicidade. E esta pode não estar na visão revolucionária, coletivista e utópica de Paulo
Freire.
Parece-me, apenas, um escritor presunçoso e impreciso. Presunçoso porque de
suas palavras confusas e vagas viria a esperança de melhores dias. Bom, ninguém pode
negar que Paulo Freire parecia um profeta. Impreciso porque sua proposta não fica
clara ao longo do livro – nem de nenhum outro –, porque ela tem mais conteúdo datado
e ideológico do que técnico e metódico, e porque, enquanto teoria, contradiz sua
própria ideia central. Seus fundamentos são materialistas. Sua concepção de homem é
matério-corporal, sua ideia de história é filiada à escola materialista-dialética,
enxergando tudo como luta de classes, e sua visão política não é voltada à preservação
da liberdade, mas à ―práxis‖ que visa ao enfrentamento entre as classes sociais. (...)
Em muitas reuniões pedagógicas de que participei, ouvi dos meus superiores a
narrativa histórica que antigamente (às vezes, em referência à antiguidade, noutras
vezes, aos jesuítas), a educação era bancária, ―conservadora‖, impositiva, e que agora,
a educação era libertadora, humanizadora, criativa. Narrativas revolucionárias, mas
elas mesmas arrogantes e impositivas. O passado era a escuridão, e o futuro, a
esperança. São os discípulos de Freire.
Os jesuítas são sempre pintados como péssimos exemplos, agentes de violência
cultural. Impunham suas teorias e visões de mundo sobre os nativos. O curioso é que os
jesuítas são conhecidos justamente por aprender o Tupi, fazer-lhe uma gramática
escrita, adaptar ensinamentos cristãos aos hábitos e crenças indígenas, para melhor lhes
transmitir a fé. No Japão, alguns aprenderam até a meditar.
O leitor vai me dizer: ―Olha aí, sob esse disfarce, eles queriam transmitir a fé!‖.
Mas Freire também tinha sua agenda. Afinal, ele era vinculado, primeiro, com João
Goulart, depois, com o Partido dos Trabalhadores, o PT. Não sejamos ingênuos,
passivos, abjetos. Temos que pensar!
119
GABRIEL DE ARRUDA CASTRO: CINCO IDEIAS
INDEFENSÁVEIS DE PAULO FREIRE
O artigo abaixo foi escrito para o jornal Gazeta do Povo, por Gabriel de Arruda
Castro. Leia-o e responda: 1) Quem são os ―opressores‖ e quem são os ―oprimidos‖,
segundo a visão de Freire? 2) Segundo Freire, como vencer a ―dominação‖ do
―opressor‖ sobre o ―oprimido‖? 3) Quais as consequências das ideias de Paulo Freire
para a educação brasileira? 4) Qual a visão de Freire sobre a família? 5) Segundo Freire,
por que era preciso combater a ―invasão cultural‖?
Veja cinco ideias indefensáveis que Paulo Freire apoia em seu principal livro,
Pedagogia do Oprimido:
Freire defende uma pedagogia ―que faça da opressão e de suas causas objeto da
reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua
libertação‖.
Ao adaptar a noção da constante luta de classes de Karl Marx, o pedagogo usa
um esquema binário: os estudantes não teriam opção senão buscar sua liberdade diante
dos opressores. A noção freiriana de libertação é pouco detalhada pelo autor, mas um
detalhe da obra traz uma boa pista do que ele tinha em mente: a descrição apaixonada
que ele faz do regime de Cuba – o próximo item da lista.
"O que não expressou Guevara, talvez por sua humildade, é que foram exatamente esta
humildade e a sua capacidade de amar que possibilitaram a sua ‗comunhão‘ com o
povo. (...). Este homem excepcional revelava uma profunda capacidade de amar e
comunicar-se", escreveu.
120
3) A educação deve estar a serviço da revolução
4) A família é opressora
"As relações pais-filhos, nos lares, refletem, de modo geral, as condições objetivo-
culturais da totalidade de que participam. E, se estas são condições autoritárias, rígidas,
dominadoras, penetram nos lares que incrementam o clima da opressão", diz um trecho
do livro.
In: https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/cinco-ideias-indefensaveis-de-paulo-
freire-0z1mo7zd2a3kpg79729vsihvg/
Acesso em 07 de fevereiro de 2020.
121
ROGÉRIO MARINHO: PAULO FREIRE, O PATRONO DO
FRACASSO EDUCACIONAL BRASILEIRO
O texto abaixo foi retirado de Ilisp. Leia-o e anote as principais ideias.
122
DEWEY: A ESCOLA-LABORATÓRIO
John Dewey (1859-1952) foi um filósofo e também um educador americano.
Seus estudos se destacam na área do Pragmatismo, corrente filosófica iniciada por
Peirce, Frege, William James e outros, cuja principal ideia era a de que os efeitos
práticos deveriam ser levados em conta a partir de uma determinada concepção. Ou
seja, o sentido total de uma ideia corresponde às consequências práticas resultantes da
aplicação da mesma. Compreender é avaliar os efeitos daquilo que é pensado. Dewey
levou a teoria pragmática para o âmbito da educação.
O texto abaixo foi escrito por Andrea Parravicini, estudioso de Dewey. Leia-o e
responda: 1) Como o método pragmático poderia contribuir para melhorar a educação
no Brasil? 2) De exemplos de atividades práticas que poderiam ser desenvolvidas nas
diversas disciplinas, a exemplo da escola de Dewey. Incluindo a disciplina Sociologia.
Dewey é famoso em todo o mundo, inclusive entre os não especialistas, sobretudo pelo
seu trabalho no âmbito pedagógico, que o levou a criar, em Chicago, a sua escola-laboratório.
(...)
Em janeiro de 1896, Dewey lançou, na Universidade de Chicago, a University School,
que tinha dezesseis alunos, todos menores de 12 anos, e dois professores. Pouco a pouco, a
escola foi se expandindo, tanto que, em 1902, já tinha quase cento e cinquenta alunos, mais de
vinte docentes e cerca de dez diplomados que trabalhavam como auxiliares. Não tardou a se
transformar em um fenômeno internacional, conhecida como a Dewey School ou, como foi
denominada oficialmente, Laboratory School. (...)
Tradicionalmente, o sistema educativo baseou-se (…) em uma ideia de conhecimento
como algo abstrato e separado da práxis que o determina. Normalmente, o docente transmite
aos discentes o seu saber e os conceitos que considera válidos sem os vincular a nenhuma
atividade, como um saber abstrato, o que tem como consequência a ideia, que Dewey considera
socialmente nociva e filosoficamente errônea, de que o saber e o fazer são dois mundos
separados.
Na escola de Dewey, pelo contrário, as crianças aprendiam um saber simulando e
desempenhando atividades que normalmente desempenham na vida real. Envolviam-se em
projetos práticos, em que se dava liberdade às tendências naturais e aos interesses de cada
criança para que se expressassem e se desenvolvessem. A aprendizagem era uma consequência
natural da atividade, aprendia-se o que se necessitava a fim de realizar tarefas úteis para as
finalidades da atividade. Durante a formação, praticavam-se as atividades mais variadas, da
costura à carpintaria, ao trabalho do ferro ou à cozinha, e as crianças aprendiam também a
elaborar os instrumentos de que necessitavam para realizar as diferentes tarefas.
A cozinha, por exemplo, era especialmente útil para experimentar e aprender quase
todas as disciplinas científicas lecionadas na escola, tanto que preparar o pão se transformou
em um curso trienal frequentado por alunos dos 6 aos 8 anos. Uma vez por semana, pedia-se às
crianças que preparassem e servissem uma refeição e, durante essas atividades, elas podiam
aprender aritmética (medindo e pesando os ingredientes com instrumentos fabricados por eles
próprios), química e física (observando os processos que se produziam ao cozinhar, como a
combustão), biologia (estudando os processos de digestão e nutrição), e assim sucessivamente.
Em razão de seu caráter lúdico, prático e construtivo, as aulas eram, portanto, divertidas.
Segundo o testemunho de dois docentes da escola-laboratório, lecionavam-se sem ―qualquer
sensação de aborrecimento nem por parte das crianças nem por parte dos docentes‖.
Os alunos aprendiam conceitos teóricos por meio de atividades que tinham uma
finalidade precisa. Desse modo, o saber era inseparável do fazer, o conhecimento
transformava-se em algo concreto, cujo sentido instrumental era iluminado pela atividade
prática e pelos objetos da própria atividade.
123
BERGER & LUCKMANN: SOCIALIZAÇÃO
PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA
Peter Ludwig Berger (1929-2017) foi
um sociólogo austríaco emigrado para os
Estados Unidos. Em parceria com Thomas
Luckmann (1927-2016), sociólogo alemão,
escreveu a obra A Construção Social da
Realidade, da qual foi extraído o texto abaixo.
Esses autores receberam influência da
Fenomenologia, corrente filosófica que
influenciou a Sociologia a partir das obras de Alfred Schütz. Uma das características da
fenomenologia sociológica é a ênfase na intersubjetividade, a interação das pessoas
umas com as outras e a maneira como cada um interage diante de outras subjetividades.
O tema da socialização é amplamente analisado por estes autores, sendo a linguagem
considerada, por eles, como o mais importante instrumento nesse processo.
124
tempo de um modo que não é apenas efêmero e numa perspectiva ampla, que liga
intersubjetivamente as sequencias de situações. Agora, cada um de nós não somente
compreende as definições das situações partilhadas mas somos capazes de defini-las
reciprocamente. Estabelece-se entre nós um nexo de motivações que se estende para o
futuro. Mais importante ainda é o fato de haver agora uma contínua identificação
mútua entre nós. Não somente vivemos no mesmo mundo mas participamos cada qual
do ser do outro.
Somente depois de ter realizado este grau de interiorização é que o indivíduo se
torna membro da sociedade. O processo ontogenético pelo qual isto se realiza é a
socialização, que pode assim ser definida como a ampla e consistente introdução de um
indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela. A socialização
primária é a primeira socialização que o indivíduo experimenta na infância, e em
virtude da qual torna-se membro da sociedade. A socialização secundária é qualquer
processo subsequente que introduz um indivíduo já socializado em novos setores do
mundo objetivo de sua sociedade. (...)
É imediatamente evidente que a socialização primária tem em geral para o
indivíduo o valor mais importante e que a estrutura básica de toda socialização
secundária deve assemelhar-se à da socialização primária. (...)
A socialização primária cria na consciência da criança uma abstração
progressiva dos papéis e atitudes dos outros particulares para os papéis e atitudes em
geral. (...) O indivíduo identifica-se agora não somente com os outros concretos mas
com uma generalidade de outros, isto é, com uma sociedade. Somente em virtude desta
identificação consigo mesmo alcança estabilidade e continuidade. O indivíduo tem
agora não somente uma identidade em face deste ou daquele outro significativo, mas
uma identidade em geral, subjetivamente apreendida como constante, não importando
que outros, significativos ou não, sejam encontrados. (...)
A socialização secundária é a interiorização de ―submundos‖ institucionais ou
baseados em instituições. A extensão e caráter destes são, portanto, determinados pela
complexidade da divisão do trabalho e a concomitante distribuição social do
conhecimento. (...) A socialização secundária é a aquisição do conhecimento de
funções específicas, funções direta ou indiretamente com raízes na divisão do trabalho.
(...) A socialização secundária exige a aquisição de vocabulários específicos de
funções, o que significa em primeiro lugar a interiorização de campos semânticos que
estruturam interpretações e condutas de rotina em uma área institucional. (...)
Os processos formais de socialização secundária são determinados por seu
problema fundamental, a suposição de um processo precedente de socialização
primária, isto é, deve tratar com uma personalidade já formada e um mundo já
interiorizado. (...) Isto representa um problema, porque a realidade já interiorizada tem
a tendência a persistir. Sejam quais forem os novos conteúdos que devam agora ser
interiorizados, precisam de certo modo sobrepor-se a esta realidade já presente. (...)
Na socialização secundária, as limitações biológicas tornam-se cada vez menos
importantes nas sequências de aprendizagem, que agora estabelecem-se em termos das
propriedades intrínsecas do conhecimento que deve ser adquirido, ou seja, em termos
da estrutura fundamental desse conhecimento. Por exemplo, para aprender certas
técnicas de caça é preciso aprender primeiro a escalar montanhas ou para aprender o
cálculo é preciso aprender primeiro álgebra.
125
NOVAS ABORDAGENS NA EDUCAÇÃO
O advento de novas tecnologias, da acessibilidade das mesmas a um número
cada vez maior de pessoas e da era da informação fizeram surgir novas abordagens
educacionais e levaram educadores do mundo todo a repensarem velhas práticas
educacionais. Dentre as várias abordagens destacam-se: o retorno ao pragmatismo (visto
anteriormente), as metodologias ativas e as tecnologias educacionais.
As metodologias ativas procuram envolver o aluno no processo de
aprendizagem, de modo que ele não seja apenas um espectador, mas um elemento
dinâmico que vai atrás do conhecimento, que faz por ele mesmo, enfim, que busca por
meios diversos adquirir alguma competência. O estudante pode fazer isso de várias
maneiras: ensinando, praticando alguma habilidade aprendida, montando algo,
buscando tecnologias ou utilizando algum aplicativo. Essas metodologias ativas deram
origem a várias práticas como por exemplo a ―sala de aula invertida‖ (flipped classrom),
em que o aluno busca por conteúdos virtuais, lives, hangouts, cursos online e muito
mais.
As tecnologias educacionais complementam as metodologias ativas. Tais
tecnologias incluem qualquer ferramenta ou tecnologia utilizadas com o intuito de
aumentar a eficiência do processo de aprendizado.
O texto abaixo refere-se às tecnologias educacionais e foi escrito pelos autores
Huang, Yang e Spector. Leia-o e responda: 1) Qual o papel da atitude na aprendizagem?
2) Cite exemplos de tecnologias que poderiam ser utilizadas na aprendizagem de
disciplinas como Física, Química, Matemática ou Biologia. 3) Agora cite exemplos de
tecnologias que poderiam ser utilizadas na aprendizagem de Sociologia. 4) Qual a
importância do ―fazer‖ na aprendizagem?
Conceitos Chave
• Atitude - uma disposição mental ou maneira de pensar sobre algo (local, pessoa, evento,
atividade etc.); atitudes estão ligadas a determinadas pessoas que creem em algo e sua vontade
de se envolver em atividades específicas.
• Competência - um conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes específicas que
permitem que uma pessoa realize efetivamente uma tarefa específica.
126
desempenho, criando, usando e gerenciando processos e recursos tecnológicos apropriados‖
(definição do AECT; Januszewski & Molenda, 2008, p. 1); o uso disciplinado de abordagens
pedagógicas, estratégias instrucionais, mídia, ferramentas e tecnologias para melhorar
consistentemente o aprendizado, a instrução e o desempenho.
Princípios Relevantes
• As pessoas aprendem o que fazem; esse princípio é derivado da psicologia comportamental
(por exemplo, reforçar um comportamento desejado aumenta a probabilidade de ocorrer) e
encontra suporte na ciência neural (por exemplo, quando uma ação é repetida frequentemente,
127
as conexões neurais no cérebro associadas a essa ação são fortalecidas, aumentando a
probabilidade de recorrência no futuro); Uma implicação desse princípio básico é que as
atividades de aprendizado devem ser projetadas com o desempenho futuro desejado em mente.
• Quanto mais tempo uma pessoa gasta em uma tarefa de aprendizado, maior a probabilidade
de que ela domine a tarefa.
• Fornecer feedback oportuno e informativo enquanto um aluno está envolvido em uma tarefa
de aprendizado provavelmente facilitará o domínio da tarefa. (...)
128
CIÊNCIA
Pensar a ciência como instituição significa considerar não apenas os progressos
realizados na era moderna, aproximadamente a partir do século XV, mas analisar a
cultura material de uma sociedade, as técnicas e conhecimentos à disposição num
determinado contexto, seja na Idade da Pedra ou no século XXI. Entretanto, é inegável
que a partir da Idade Moderna a ciência tomou uma proporção nunca antes vista na
história, vindo a afetar toda a vida em sociedade e todas as outras instituições.
As primeiras descobertas de nossos antepassados demoraram milhões de anos,
mesmo as mais simples, como a utilização de paus e pedras. Entretanto, esses primeiros
passos lentos e difíceis deram aos nossos ancestrais um domínio sobre outros animais e
sobre a natureza, e a partir daí seguimos por uma jornada evolutiva até os dias atuais.
Dentre as primeiras grandes inovações tecnológicas, destacam-se a fabricação de
utensílios de pedra, o domínio do fogo, as técnicas agrícolas e de domesticação de
animais e, finalmente, a metalurgia. Cada etapa correspondeu a uma significativa
mudança na família, na religião, nas formas de comércio, nas relações de poder entre
chefes e súditos, enfim, em todas as instituições, modificando também a maneira como
os seres humanos criavam suas concepções de mundo. Entretanto, as mesmas
concepções de mundo existentes e as instituições arraigadas exerceram uma grande
força no sentido de limitar e, principalmente, moldar a maneira como os progressos
ocorreram nas várias épocas e lugares. Uma instituição só pode ser pensada se analisada
em sua totalidade, se for relacionada a outras instituições, aos processos sociais, aos
costumes e práticas presentes num determinado contexto.
Embora a religião e as visões mágicas sejam vistas como inimigas da ciência,
nota-se que os lugares onde as técnicas e as artes mais se desenvolveram foram
precisamente aqueles onde a religião foi predominante. As primeiras formas de
conhecimento na geometria, na medicina ou entre os artesãos eram misturadas a
concepções de mundo míticas, a noções que envolviam deuses, magia e forças
sobrenaturais.
O mesmo ocorreu em relação às outras instituições, como o comércio: os
maiores progressos científicos ocorreram em contextos onde o comércio era mais
desenvolvido, e vice-versa, isto é, o desenvolvimento científico e tecnológico trouxe um
avanço nas relações comerciais. Ciência e educação também estão intimamente ligadas,
uma influenciando a outra. Tudo isso nos remete novamente ao que foi dito
anteriormente: uma instituição deve ser analisada em conexão com outras instituições.
Todas elas são interdependentes. Talvez isso já tenha ficado claro, a partir de tudo o que
foi visto até agora. Se não, talvez a leitura dos textos seguintes o ajudem a entender essa
importante ideia.
129
CIÊNCIA E TECNOLOGIA
NOS PRIMÓRDIOS DA CIVILIZAÇÃO
O texto abaixo aborda o surgimento das primeiras tecnologias utilizadas pela
humanidade nos seus primórdios, em lugares e épocas distintas. Foi retirado da ―Grande
História Universal – O princípio da civilização‖. Leia-o e responda: 1) De que modo a
utilização de utensílios de pedra modificou a relação do homem com a natureza e dos
seres humanos entre si? 2) Responda a mesma pergunta feita no item 1, mas desta vez
para a utilização do fogo. 3) Qual a relação entre religião e ciência, no Egito antigo?
Grande História Universal – O Princípio da Civilização. Barcelona: Ediciones Folio, 2006, p.48-52
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COLIN A. RONAN: AS ORIGENS DA CIÊNCIA
O texto abaixo foi escrito por Colin A. Ronan, retirado da História Ilustrada da
Ciência. Leia-o e responda: 1) Quais os elementos necessários a qualquer ciência? 2)
Compare com o texto de James Frazer já visto, p.34, e indique o que esse texto tem em
comum com as ideias de Frazer, e o que possuem de discordância.
A ciência tem demonstrado ser uma enorme aventura intelectual. Engajar-se nela
requer uma vívida imaginação criadora, temperada por uma firme disciplina, baseada num
corpo consistente de observações comprovadas, e a ciência tem atraído alguns dos melhores
intelectos de cada civilização que se desenvolveu até um estágio em que lhe é possível
enfrentar o desafio da natureza. Porque a ciência não se resume apenas na coleta de fatos –
embora isso seja necessário; é um sistema de correlação lógica dos fatos que, juntos,
consolidam uma hipótese ou o corpo de uma teoria. Essa teoria é por si mesma temperada pelas
perspectivas proporcionadas pelos tempos em que é formulada. A teoria deve ser sólida o
suficiente para atrair intelectos treinados no pensamento lógico e, ao mesmo tempo, bastante
aberta para deixar espaço a desenvolvimentos e ajustamentos, à luz de descobertas mais
recentes. Tal teoria, por vezes conhecida como um paradigma, mudará, de tempos em tempos,
por inúmeras razões, como veremos. A ciência é um conjunto de conhecimentos crescentes e
em expansão, até o ponto em que aquelas mudanças são motivadas por experiências ainda mais
complexas, mas, quando estas são provocadas por motivos religiosos, filosóficos, sociais ou
econômicos, a história da ciência se prende a todas as oscilações da história mais geral.
É impossível examinar a história ou a teoria da ciência sem se defrontar com a magia.
(...) A magia foi um modo legítimo de expressar uma síntese do mundo natural e do seu
relacionamento com o homem. Quando, numa sociedade primitiva, o mago, impostor ou
curandeiro se propõe provocar chuva por meios artificiais, ele expressa sua compreensão de
uma ligação entre a chuva e o crescimento das plantações, entre um e outro aspecto da natureza
e sua estimativa de que a sobrevivência do homem depende do comportamento do mundo
natural. Ele sente que há alguma conexão entre o homem e o mundo que o cerca, algum
entendimento primitivo de que, conhecido o procedimento correto, o homem pode controlar as
forças da natureza e coloca-las a seu serviço.
Quais eram as crenças essenciais da magia, tal como foi encontrada entre os povos
mais antigos e como ainda persiste em algumas culturas atuais mais primitivas? A magia
exprimiu o que, de um modo geral, era uma visão anímica da natureza. O mundo era povoado e
controlado por espíritos e forças espirituais ocultas, que habitavam talvez os animais, ou as
árvores, ou o mar e o vento, e a função do mago consistia em submeter essas forças ao seu
objetivo, persuadir os espíritos a cooperar. Fazia invocações, lançava feitiços e preparava
poções, pois via um mundo de afinidades e solidariedade. (...)
Existem aqueles que negam ter havido uma ciência genuína nos tempos pré-históricos.
Para eles, a medicina primitiva, a cirurgia pré-histórica e a tecnologia de então eram todas
puramente práticas, sem qualquer abstração dos princípios subjacentes. Contudo, pelo que se
conhece de magia, está claro que havia uma doutrina básica e um conjunto de princípios que
estabeleciam que o mundo não era habitado apenas por um conjunto visível de seres humanos,
animais, plantas e minerais, mas também por um mundo invisível de espíritos e forças
espirituais. Algumas dessas forças podiam ser percebidas por qualquer pessoa, como no caso
do trovão e do relâmpago, ou se manifestar através de um tremor de terra ou uma enchente. A
doença e a peste eram encaradas como manifestações dos espíritos do mal. Assim, os
fenômenos naturais do mundo físico eram relacionados com o mundo dos espíritos, e
desenvolviam-se procedimentos para lidar com ambos os mundos. Certamente, esses princípios
básicos não seriam, hoje, considerados científicos, mas, nos tempos primitivos, pressupor tais
intervenções era um ato de racionalização; oferecia um paradigma aceitável para explicar os
diversos fenômenos experimentados pelo homem.
RONAN, C. A. História Ilustrada da Ciência. São Paulo: Círculo do Livro, 1991, Vol. I, p.12-14.
131
LÉVI-STRAUSS: A CIÊNCIA DO CONCRETO
O texto abaixo é do antropólogo já visto, Lévi-Strauss, retirado de sua famosa obra O
Pensamento Selvagem. Nessa passagem, o autor nega certas características atribuídas aos
nativos, em relação ao seu conhecimento sobre o mundo que os rodeia. Leia-o e responda: 1)
Que características são essas, que ele (o autor) procura rebater? 2) Explique a seguinte
passagem: ―cada coisa sagrada deve estar em seu lugar‖. Como isso se relaciona à ciência? 3)
Lévi-Strauss era um pensador estruturalista, e por tal motivo, negava que havia uma evolução
ou continuidade entre técnicas nativas e técnicas modernas, entre o pensamento dos primeiros e
o dos segundos. Retire do texto uma passagem que confirme essa ideia. Você concorda com o
autor nesse ponto? Justifique.
Aprouve-nos, durante muito tempo, mencionar línguas a que faltam termos para
exprimir conceitos, tais como os de árvore ou animal, se bem que elas possuam todas
as palavras necessárias a um inventário minucioso de espécies e de variedades. Mas,
invocando esses casos em favor de uma suposta inaptidão dos ―primitivos‖ ao
pensamento abstrato, omitíamos, então, outros exemplos, que atestam que a riqueza em
palavras abstratas não é só apanágio das línguas civilizadas. Assim o chinuque, língua
do noroeste da América do Norte, faz uso de palavras abstratas para designar muitas
propriedades ou qualidades dos seres e das coisas. ―Este procedimento‖, diz Boas, ―é
nela mais frequente do que em qualquer outra língua que eu conheça‖. A sentença: o
homem mau matou a pobre criança, traduz-se assim em chinuque: a maldade do
homem matou a pobreza da criança; e para dizer que uma mulher usa um cesto
demasiadamente pequeno: ela coloca raízes de potentilha na pequenez de um cesto para
conchas. (...)
A triagem conceptual varia conforme a língua, e, como observava muito bem,
no século XVIII, o redator da palavra ―nome‖ na Enciclopédia, o uso de termos mais
ou menos abstratos não é função de capacidades intelectuais, mas de interesses
desigualmente marcados e detalhados de cada sociedade particular, dentro da sociedade
nacional. (...)
Como na linguagem profissional, a proliferação conceptual corresponde a uma
atenção mais firme, em relação às propriedades do real, a um interesse mais desperto
para as distinções que aí podem ser introduzidas. Este apetite de conhecimento objetivo
constitui um dos aspectos mais negligenciados do pensamento daqueles que nós
chamamos ―primitivos‖. Se é raramente dirigido para realidades do mesmo nível que
aquelas às quais se liga a ciência moderna, implica diligências intelectuais e métodos
de observação semelhantes. Nos dois casos, o universo é objeto de pensamento, ao
menos tanto quanto meio de satisfazer necessidades.
Cada civilização tende a superestimar a orientação objetiva de seu pensamento;
é, por isso, então, que ela nunca está ausente. Quando cometemos o erro de crer que o
selvagem é exclusivamente governado por suas necessidades orgânicas ou econômicas,
não reparamos que ele nos dirige a mesma censura, e que, a seus olhos, seu próprio
desejo de saber parece melhor equilibrado que o nosso. (...)
[Pode-se concluir] que as espécies animais e vegetais não são conhecidas na
medida em que sejam úteis [aos nativos]; elas são classificadas úteis ou interessantes
porque são primeiro conhecidas.
Objetar-se há que tal ciência não pode ser muito eficaz num plano prático. Mas,
precisamente, seu primeiro objetivo não é de ordem prática. Ela responde a exigências
intelectuais antes, ou em vez, de satisfazer necessidades.
A verdadeira questão não é saber se o contato de um bico de picanço cura dores
de dentes, mas, se é possível, de certo ponto de vista, fazer juntos ―irem‖ o bico do
132
picanço e o dente do homem (congruência, cuja fórmula terapêutica não constitui mais
que uma aplicação hipotética, entre outras) e, por intermédio desses agrupamentos de
coisas e de seres, introduzir um princípio de ordem no universo; porquanto a
classificação, qualquer que seja, possui uma virtude própria em relação à falta de
classificação. (...)
Ora, essa exigência de ordem está na base do pensamento que nós chamamos
primitivo, mas somente na medida em que está na base de qualquer pensamento: pois é
sob o ângulo das propriedades comuns que chegamos mais facilmente às formas de
pensamento que nos parecem muito estranhas.
―Cada coisa sagrada deve estar em seu lugar‖, notava, com profundeza, um
pensador indígena (Fletcher 2, p.34 [citação de Lévi-Strauss]). Poder-se-ia mesmo
dizer que é isso que a torna sagrada, pois, suprimindo-a, ainda que por pensamento,
toda a ordem do universo se encontraria destruída; ela contribui, pois, para mantê-la ao
ocupar o lugar que lhe cabe. Os requintes do ritual, que podem parecer ociosos quando
examinados superficialmente e de fora, explicam-se pela preocupação, que se poderia
chamar ―micro-perequação‖: não deixar escapar nenhum ser, objeto ou aspecto, para
assegurar-lhe um lugar dentro de uma classe. (...)
Essa preocupação da observação exaustiva e do inventário sistemático das
relações e das ligações pode levar, às vezes, a resultados de boa ordem científica: é o
caso dos índios blackfoot, que diagnosticavam a aproximação da primavera pelo
desenvolvimento dos fetos do bisão, extraídos do ventre das fêmeas mortas durante a
caça. Entretanto, não se podem isolar esses resultados de tantas outras aproximações do
mesmo gênero declaradas ilusórias pela ciência. Mas não será que o pensamento
mágico, essa ―gigantesca variação sobre o tema do princípio da causalidade‖, diziam
Hubert e Mauss, se distingue menos da ciência pela ignorância ou pelo desprezo do
determinismo, do que por uma exigência de determinismo mais imperiosa e mais
intransigente e que a ciência pode, quando muito, julgar insensata e precipitada? (...)
A exigência de organização é uma necessidade comum à arte e à ciência (...),
em consequência, ―a taxonomia, que é a organização por excelência, possui um
eminente valor estético‖. Por conseguinte, causará menor surpresa que o senso estético,
reduzido a seus próprios recursos, possa abrir caminho à taxonomia e, mesmo,
antecipar alguns de seus resultados.
Não voltamos, contudo, à tese vulgar (aliás admissível, na perspectiva estreita
em que se coloca), segundo a qual a magia seria uma modalidade tímida e balbuciante
da ciência: pois nos privaríamos de todos os meios de compreender o pensamento
mágico se pretendêssemos reduzi-lo a um momento ou a uma etapa da evolução
técnica e científica. Mais como uma sombra que antecipa a seu corpo, ela é, num
sentido, completa como ele, tão acabada e coerente em sua imaterialidade, quanto o ser
sólido por ela simplesmente precedido. O pensamento mágico não é uma estreia, um
começo, um esboço, parte de um todo ainda não realizado; forma um sistema bem
articulado; independente, neste ponto, desse outro sistema que constituirá a ciência,
exceto quanto à analogia formal que os aproxima e que faz do primeiro uma espécie de
expressão metafórica do segundo. Em lugar, pois, de opor magia e ciência, melhor
seria coloca-las em paralelo, como duas formas de conhecimento, desiguais quanto a
seus resultados teóricos e práticos (pois, sob este ponto de vista, é verdade que a
ciência se sai melhor que a magia, se bem que a magia preforme a ciência, no sentido
de que triunfa também algumas vezes), mas não pelo gênero de operações mentais, que
ambas supõem, e que diferem menos em natureza que em função dos tipos de
fenômenos a que se aplicam.
LÉVI-STRAUSS, O Pensamento Selvagem. São Paulo: Companhia Editora Nacional, p.19-34.
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LUÍS DA CÂMARA CASCUDO: FOGO E CIVILIZAÇÃO
O texto abaixo foi escrito por Luís da Câmara Cascudo
(1898-1986), retirado da obra Civilização e Cultura. No trecho
abaixo, Cascudo destaca a importância da técnica de manuseio do
fogo para o desenvolvimento da civilização, ajudando a moldar
muitas das práticas adotadas pela humanidade em seu trajetória
pela história. Leia-o e responda: 1) Qual a relação entre o uso do
fogo e o surgimento da família? 2) E qual a relação entre o uso do
fogo e o surgimento da religião? 3) Qual a relação entre a técnica e
a cultura de um povo?
Ninguém pode precisar a época em que uma criatura ―inventou‖ a utilização racional
do fogo e menos saber o nome dessa criatura. Verifica-se semelhantemente com o instrumento
de trabalho. Bergson batizou de homo faber, muito mais expressivo que sapiens, a espécie
inventiva do aparelhamento simplificador e mais eficiente para matar caça. O sapiens é o
Homem de Cro-Magnon. Um milhão de anos antes, o australopithecus prometheus vivo e
bulindo na África do Sul, fazia armas com os ossos longos dos animais abatidos. (...)
O fogo foi o elemento da estabilidade humana em caráter decisivo. Fixa, auxilia,
defende. A caverna tornou-se habitável pela presença do lume, afugentando as feras e
espavorindo os fantasmas. Depois de assar, tostar a carne, manter o calor saboroso, o fogo
iluminava fazendo o sol perdurar no ambiente do abrigo de pedra.
A iluminação mesmo bruxuleante possibilitou o trabalho noturno, tratamento de peles e
couro, afiação e preparo de armas, gravação, desenho nas paredes, furamento de búzios, dentes
de ursos e de felinos para pulseiras e colares, orifícios e ornamentos nos bastões de mando,
apitos de caça, relevos pacientes que eram amuletos e ornamentações. E também as primeiras
lucubrações devem ao clarão da fogueira doméstica os benefícios da forma mental iniciante.
Lucubração, etimologicamente, só se verifica durante a noite e com luz de candeia, e é
cogitação, meditação, concentração. Nenhum primitivo teria clima e tempo para pensar durante
as horas solares. Sentado, mastigando o punho como o Penseur de Rodin, seguindo a ideia, fa-
lo-ia à noite. O pensamento foi de início uma atividade noturna.
O fogo forneceu outro elemento: o círculo humano à volta, derredor do lume
aquecedor, a possibilidade lógica do serão. Ainda hoje nos climas frios a volta da lareira é uma
constante inesquecível para quem dela participou. Disputando a divisão equitativa de calor e
parte da luz a todos devida, os homens tomaram posição circular, equidistantes, igualados pela
necessidade de obter do mesmo foco as vantagens divinas do aquecimento e da luminosidade.
O fogo impôs as primeiras posições coletivas para o grupo humano. A primeira seria o
círculo tendo a fogueira no centro. Ainda é a forma de reunião nativa, ameríndia, africana,
oceânica, universal pela antiguidade. É o fogo-do-conselho, posterior, no cerimonial das juntas
consultivas. Mesa redonda sem o lume, mantendo a projeção inicial do arranjo instintivo. O
fogo estava no meio da caverna. Explicava o círculo aproveitador dos benefícios. Quando no
neolítico o homem possuiu casa, melhorando a gruta ou construindo as choças pastoris e antes
para vigiar o plantio, o fogo teve local fixo e, para não tomar muito espaço, útil para outros
misteres, foi arrumado junto à parede ou próximo, impossibilitando a roda mas criando o
semicírculo, a volta à roda da lareira, viva onde haja inverno frio. (...)
A pedra que defende o lume diz-se lar e daí ―larários‖ os deuses domésticos e a
comunidade familiar, casa, ambiente íntimo e sagrado do lar. O fogo, assando, tostando caça,
pesca, raízes, frutos, daria depois a cerâmica, os alimentos conservados, a têmpera dos metais.
Significaria o sol, a pureza, a perpetuidade do espírito, alma, a fé; com o corpo sacerdotal,
virgens votivas, vigilantes e puras, guarda do fogo sagrado, o derradeiro culto que se apagaria
na Roma Imperial.
CASCUDO, Luís da Câmara. Civilização e Cultura. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973, p.157-161.
134
BACHELARD: O ESPÍRITO CIENTÍFICO
Gaston Bachelard (1884-1962) foi um filósofo francês
cujas reflexões sobre a ciências se tornaram referência. No trecho
abaixo, retirado da obra A Formação do Espírito Científico,
Bachelard destaca qual deve ser a postura do cientista, quais
hábitos deve vencer, etc. Leia o texto e responda: 1) Por que a
ciência se opõe à opinião? 2) Defina, de acordo com o autor,
―instinto formativo‖ e ―instinto conservativo‖. 3) Faça uma
reflexão sobre a nossa disciplina: é possível o ―espírito
científico‖ na Sociologia? Justifique. 4) Reflita se é possível
utilizar o ―espírito científico‖ em áreas como Política, por
exemplo, e como a opinião das pessoas não versadas no assunto
pode criar concepções equivocadas em tal área.
A ciência, tanto por sua necessidade de coroamento como por princípio, opõe-
se absolutamente à opinião. Se, em determinada questão, ela legitimar a opinião, é por
motivos diversos daqueles que dão origem à opinião; de modo que a opinião está, de
direito, sempre errada. A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em
conhecimento. Ao designar os objetos pela utilidade, ela se impede de conhece-los.
Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la. Ela é o
primeiro obstáculo a ser superado. Não basta, por exemplo, corrigi-la em determinados
pontos, mantendo, como uma espécie de moral provisória, um conhecimento vulgar
provisório. O espírito científico proíbe que tenhamos uma opinião sobre questões que
não compreendemos, sobre questões que não sabemos formular com clareza. Em
primeiro lugar, é preciso saber formular problemas. E, digam o que disserem, na vida
científica os problemas não se formulam de modo espontâneo. É justamente esse
sentido do problema que caracteriza o verdadeiro espírito científico. Para o espírito
científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode
haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído.
O conhecimento adquirido pelo esforço científico pode declinar. A pergunta
abstrata e franca se desgasta: a resposta concreta fica. A partir daí, a atividade espiritual
se inverte e se bloqueia. Um obstáculo epistemológico se incrusta no conhecimento não
questionado. Hábitos intelectuais que foram úteis e sadios podem, com o tempo,
entravar a pesquisa. Bergson diz com justeza: ―Nosso espírito tem a tendência
irresistível de considerar como mais clara a ideia que costuma utilizar com frequência‖.
A ideia ganha assim uma clareza intrínseca abusiva. Com o uso, as ideias se valorizam
indevidamente. Um valor em si opõe-se à circulação dos valores. É fator de inércia
para o espírito. Às vezes, uma ideia dominante polariza todo o espírito. Um
epistemólogo irreverente dizia, há vinte anos, que os grandes homens são úteis à
ciência na primeira metade de sua vida e nocivos na outra metade. O instinto formativo
é tão persistente em alguns pensadores, que essa pilhéria não deve surpreender. Mas, o
instinto formativo acaba por ceder a vez ao instinto conservativo. Chega o momento em
que o espírito prefere o que confirma seu saber àquilo que o contradiz, em que gosta
mais de respostas do que de perguntas. O instinto conservativo passa então a dominar,
e cessa o crescimento espiritual.
135
CIÊNCIA: EXPERIÊNCIA, PODER E PAIXÃO
O trecho abaixo foi retirado da obra Uma História da Ciência, escrito por
Michael Mosley e John Lynch. Nesta obra, os autores procuram mostrar de que modo o
contexto histórico influencia o desenrolar das pesquisas científicas.
Leia o texto abaixo e responda: 1) De que modo um avanço científico influencia
em outras áreas da ciência? Cite exemplos diferentes daqueles mostrados no texto
abaixo. 2) Newton e Leibniz inventaram o cálculo diferencial quase que ao mesmo
tempo. De acordo com o texto abaixo, por que isso ocorre muitas vezes no meio
científico? 3) De que modo a busca pelo lucro ou a ambição financeira contribuem para
o avanço da ciência? Novamente, mostre exemplos diferentes daqueles que foram
citados no texto abaixo.
A ciência está de tal modo intrincada em nossas vidas que mal notamos sua
presença. Nossas redes de comunicações móveis depende da mecânica orbital, que
permite o posicionamento de satélites no céu; da química do combustível de foguetes;
dos materiais usados em plásticos e chips de silício dos computadores, telefones e
baterias. A medicina moderna depende não só do conhecimento aprofundado da
bioquímica das células, mas também de um entendimento profundo da estrutura
atômica da matéria, permitindo o exame de órgãos e ossos, e o diagnóstico das
doenças. O acesso à energia que alimenta nossas vidas agitadas depende da
compreensão da geologia das profundezas da Terra e das leis da termodinâmica. Nossa
capacidade de cultivar o solo e produzir alimentos depende da manipulação, pelos
biólogos, do processo evolutivo de animais e plantas que vivem conosco. Nada do que
fazemos hoje é intocado pela ciência. Se entendermos melhor como se chega a essa
situação, estaremos mais bem-preparados para responder às incertezas do futuro.
A história da ciência muitas vezes é narrada como uma série de grandes
avanços, revoluções e lampejos de genialidade dos cientistas. Mas sempre há um antes,
um depois e um contexto histórico. O desenvolvimento científico não se dá no vazio
nem numa torre de marfim. A ciência sempre foi parte do mundo em que é praticada, e
este mundo está sujeito a todas as complexidades da política, da personalidade, da
paixão e do lucro. Portanto, no desenrolar dessa história, encontraremos personagens
que trabalharam na atmosfera política e religiosa em que respiravam e estavam sujeitos
às mesmas pressões que aqueles que viviam à sua volta. Somente se entendermos seu
mundo poderemos compreender por que os extraordinários progressos da ciência
aconteceram onde e quando se deram.
Na história da ciência, muitas vezes se constata que as descobertas são feitas,
mais ou menos ao mesmo tempo, por pessoas diferentes. Charles Darwin desenvolveu
a teoria da evolução por seleção natural ao longo de alguns anos, em meados do século
XIX. Enquanto isso, outro homem, Alfred Russel Wallace, também formulou, de
maneira independente, uma teoria que, em muitos aspectos, era incrivelmente parecida.
Por quê? A ideia de que a diversidade do mundo natural podia ser explicada
pela evolução já era muito debatida; Darwin e Wallace faziam parte de um mundo
sedento de viagens e explorações, e, em suas expedições, viram coisas que os
intrigaram; os dois haviam lido um livro de Thomas Malthus que explicava como as
populações se mantêm sob controle pela fome e pelas doenças. Acima de tudo, eles
partilhavam a mesma atmosfera histórica, uma sociedade movida pela competição. A
vida vitoriana era dominada pela ideia de progresso, e as consequências do sucesso ou
do fracasso em se adaptar ao ambiente comercial e industrial se faziam sentir em todas
as camadas sociais. Foi no contexto dessa combinação de fatores que ambos se
136
inspiraram para concluir que a pressão da seleção natural podia ser a força motriz da
evolução.
A conjuntura na qual se deu o avanço do conhecimento científico não significa
apenas acontecimentos históricos. Invenções e descobertas tecnológicas, direta ou
indiretamente, foram essenciais para a história da ciência. No início do século XV, a
invenção da imprensa (da imprensa com tipos móveis), atribuída ao alemão Johann
Gutenberg, teve uma série de resultados científicos. Os efeitos desse evento singular se
propagaram pelo mundo conhecido e se expandiram com o passar dos séculos, dando
origem à primeira revolução das informações. Antes, para todos os efeitos, o
conhecimento era limitado pelo alto custo da produção de livros, que deveriam ser
copiados à mão. No início daquele século, uma pessoa instruída possuía no máximo
meia dúzia de volumes. Depois da invenção da imprensa, era possível ter uma
biblioteca, uma coleção de títulos sobre diferentes assuntos que não necessariamente
concordavam uns com os outros. Os volumes impressos eram veículo de pensamento
contemporâneo em todas as áreas – científica, literária e religiosa –, estimulando o
questionamento das autoridades tradicionais. Mas há um aspecto pouco considerado na
invenção da imprensa. A leitura passava a ser uma atividade privada; não estava mais
sujeita a qualquer supervisão. Esta foi uma de muitas mudanças que ajudaram a moldar
as criativas mentes individuais responsáveis por futuras conquistas científicas.
A disponibilidade de novas tecnologias muitas vezes produziu grandes avanços
em áreas da ciência nas quais, de um momento para o outro, se tornava possível medir
e observar coisas até então impensáveis. Os exemplos mais óbvios são o telescópio e o
microscópio, que transformaram a compreensão do cosmo e o funcionamento da célula
viva. Contudo, muitas das invenções tecnológicas e dos avanços da ciência que vieram
depois desses aparelhos surgiram por motivos nada científicos, como o motor a vapor,
criado para suprir uma necessidade comercial – sua invenção foi obra de engenheiros
práticos que só queriam ganhar algum dinheiro. Uma vez produzido, o mecanismo
converteu-se em objeto de estudo, e os cientistas tentaram entender os princípios da
energia que possibilitavam seu funcionamento. O resultado disso foi a descoberta de
leis fundamentais da física que corroboravam a natureza de nosso Universo.
Como em outros ramos da atividade, as pressões financeiras desempenharam
papel significativo no progresso da ciência, ditando seus rumos. O uso do telescópio
por Galileu no estudo dos astros foi em grande parte movido por dinheiro. Quando
ouviu os primeiros rumores sobre o novo e maravilhoso invento, o ―óculo espião‖, ele
se entusiasmou e agiu porque estava em difícil situação financeira – ele era um
professor de matemática de meia-idade, sem muitas perspectivas, e precisava melhorar
de status e de finanças. A notícia da invenção do telescópio deve ter parecido um
presente dos céus, a oportunidade de impressionar um novo mecenas entre as famílias
ricas da Itália no século XVII. Claro que ele não fazia a menor ideia de como seu uso
brilhante do dispositivo revolucionaria a ciência do cosmo.
Em escala um pouco maior, os exploradores e botânicos que se lançaram em
expedições rumo ao desconhecido no decorrer dos séculos XVII e XVIII pelos menos
em parte foram motivados pela procura de novas espécies passíveis de exploração
comercial. Antigos aventureiros já haviam revelado a fabulosa riqueza que podia ser
obtida com a descoberta e venda, no Velho Mundo, de plantas como o tabaco. A busca
do ouro verde trouxe novos conhecimentos sobre a vida no planeta e incentivou uma
outra compreensão de nossas origens animais.
MOSLEY, M.; LYNCH, J. Uma História da Ciência. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p.9-11.
137
CIÊNCIA: INCENTIVOS PRIVADOS x ESTATAIS
Assim como no caso da educação, há um debate atual no mundo todo sobre
quais seriam as responsabilidades do Estado no desenvolvimento científico de um país.
Alguns julgam que o Estado deveria investir pesado em pesquisas científicas nas
universidades e institutos, como se a sobrevivência desta, a ciência, dependesse disso-
assim como julgam que sem o investimento do Estado não haveria educação. Dessa
forma, em muitos países do mundo, somas vultuosas são destinadas ao setor de
pesquisas tecnológicas e científicas.
Entretanto, há também um questionamento em torno desse assunto, da mesma
maneira como foi feito em relação à educação. Se observarmos a história da ciência,
veremos que a maioria das pesquisas e descobertas úteis à humanidade vieram de
esforços individuais, privados, e não de centros de pesquisa estatais. Conforme escreveu
o economista Milton Friedman:
138
que mostrasse o feto ao vivo, capaz de encantar os pais e detectar más-formações antes
do nascimento. Mais de quarenta empresas participam dessa competição nos anos 80,
entre elas gigantes como a Toshiba, a General Electric e a Siemens. Mas a disputa
acabou sendo vencida por uma empresa menor, a Acuson, que criou o primeiro sistema
completamente informatizado de ultrassonografia.
Não foi a bondade de cientistas e executivos que os fez criar essa maravilha
tecnológica, mas o desejo de lucrar. O que de fato aconteceu: em 2000 a Acuson foi
vendida para a Siemens por 700 milhões de dólares. (...)
É o escrutínio dos acionistas interessados na rentabilidade do negócio que
garante essa eficiência e essa inovação. Se os pesquisadores ficarem jogando paciência
no computador em vez de trabalhar, ou perdendo tempo demais com bate-papo sobre
futebol na cafeteria, são os seus lucros que ficarão reduzidos. Eles têm total interesse,
portanto, na busca por excelência da empresa. Para isso, precisam motivar os
funcionários, oferecendo vantagens e benefícios, especialmente para os melhores. A
meritocracia é o corolário da propriedade privada. Os donos punem a incompetência e
premiam o sucesso, pois essa é a melhor forma de seus negócios prosperarem.
No comércio livre, portanto, quem deixar de oferecer um serviço melhor e mais
barato vai logo ser ultrapassado por um concorrente. (...) A IBM era a gigante do setor
de tecnologia, fundada ainda no século 19. A especialidade da empresa era a fabricação
de hardware, mas novos concorrentes conseguiram ultrapassar a empresa nessa área.
Ficasse ela imóvel e acomodada como uma típica estatal, e teria inevitavelmente
sucumbido. Mas a empresa conseguiu se reinventar, mudou seu foco para serviços e
soluções de tecnologia, desfez-se de vários negócios, e não só sobreviveu, como
deslanchou. (...)
Basta comparar o caso da IBM com a realidade da grande maioria das
repartições públicas e empresas estatais. Os donos não estão presentes na empresa, pois
os acionistas estão diluídos por toda a população, sem que cada um tenha poder e
controle sobre sua fatia. O funcionário da estatal descobre que a troca de favores e a
afinidade ideológica com o chefe são formas mais eficazes de promoção do que sua
eficiência e trabalho duro.
O lucro da empresa perde importância, pois não há cobrança dos sócios e os
benefícios não ficam com os funcionários mais eficientes. Se a empresa estatal oferecer
produtos ruins e caros, não corre o risco de fechar as portas. Há até uma inversão nesse
incentivo: uma área deficitária de uma estatal pode muito bem demandar mais verbas
públicas, pois pode alegar que faltam recursos para oferecer melhores serviços. O
fracasso é premiado ao invés de ser punido. Isso ocorre o tempo todo no setor público
de todo o mundo. (...)
Se no livre mercado uma empresa privada for ineficiente, ela irá à falência. Essa
pressão obriga as empresas privadas a melhorar, ou desaparecer, cedendo lugar para
outras mais competentes. Nas estatais, essa pressão não se faz presente, pois, quando
elas ―quebram‖, basta o governo aportar mais capital, dinheiro da ―viúva‖, que a vida
continua.
Uma das maiores inversões comuns ao discurso de esquerda é que empresários
só focam no curto prazo, enquanto os políticos vão cuidar dos interesses da nação no
longo prazo. É justamente o contrário: como o empresário é dono do seu negócio, ele
tem total interesse em preservá-lo lucrativo ao longo do tempo, pois isso aumenta seu
fluxo de caixa e o valor presente do seu ativo. Já os políticos que controlam estatais
vivem de olho nas próximas eleições.
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ORGANIZAÇÃO
A organização finaliza a nossa lista de instituições. Não é por acaso que ela foi
colocada por último: além de ser um fenômeno tipicamente atual, ela é notável pelo fato
de modificar todas as outras instituições, não apenas no sentido de influenciá-las –
como ocorre na influência mútua entre as instituições já vistas – mas principalmente por
impor às demais instituições sua forma de estruturação e arranjo, sua lógica e seus
padrões de racionalização. Isso significa que escolas, igrejas, hospitais, etc. tendem a se
organizar segundo os princípios adotados em empresas, corporações, etc. Isso será
melhor analisado nos textos seguintes.
Tradicionalmente, não há na Sociologia estudos satisfatórios sobre a
organização, razão pela qual ela está ausente das listas de instituições estudadas por esta
disciplina. O objetivo nesta parte é justamente suprir tal lacuna, mostrando a
importância da organização para o mundo atual e os desafios de se pensar a sociedade a
partir da presença desse importante elemento. Um esforço que exige mudança de
paradigma e a necessidade de se pensar a sociedade do século XXI para além dos
antigos esquemas simplificadores como classe, dominação, exploração, etc.
A organização não é sinônimo de corporação, sendo esta apenas um tipo
daquela. E também nem toda organização tem fins econômicos. São tão heterogêneas
quanto possível. Esses assuntos também serão vistos nos textos a seguir.
O desenvolvimento da organização fez surgir novas formas de comércio, de
relações entre fornecedores e clientes, de empresas entre si; deu origem a conceitos
novos como Cadeia de Suprimentos, que é mais um novo paradigma a ser considerado
no estudo da sociedade, e novamente ignorado pela Sociologia tradicional.
A leitura dos textos a seguir o ajudará a entender melhor todas essas questões.
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CHIAVENATO: IMPORTÂNCIA DAS ORGANIZAÇÕES
O texto abaixo foi retirado da obra Administração, de Idalberto Chiavenato
(1936). Leia-a e responda: 1) O que é uma organização? Cite exemplos. 2) Qual a
relação entre as organizações e a sociedade em geral? 3) Se pensarmos na organização
como uma instituição, no que ela se difere das demais instituições vistas até aqui?
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TAYLOR: ADMINISTRAÇÃO CIENTÍFICA
O texto a seguir foi escrito por Richard L. Daft, retirado da obra Administração.
Nessa parte, o autor destaca os feitos e contribuições do engenheiro Frederick Winslow
Taylor para a área da administração científica, bem como de Henry Gantt e do casal
Frank B. Gilbreth e Lilian M. Gilbreth. Leia-o e responda: 1) Qual a importância da
administração científica para as organizações? 2) De que modo o aumento da eficiência
produtiva nas organizações pode beneficiar as sociedades? 3) Quais as principais ideias
científicas defendidas por Taylor? 4) Qual a relação entre desenvolvimento das
organizações e desenvolvimento da ciência?
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BARNARD: A ORGANIZAÇÃO É UM SISTEMA
DE FORÇAS COORDENADAS CONSCIENTEMENTE
O texto abaixo foi escrito por Arménio Rego e Miguel Pina e Cunha,
prefaciando a obra As Funções do Executivo, de Chester Barnard (1886-1961). Barnard
foi um pioneiro na área que mais tarde ficou conhecida como cultura organizacional.
Ele definiu a organização como um sistema de atividades pessoais ou de forças
coordenadas conscientemente; salientou que a boa vontade, a espontaneidade e a
disposição para cooperar eram condições fundamentais para que se levassem adiante
atividades numa organização. Barnard definiu ―conceitos estruturais‖ e ―conceitos
dinâmicos‖. Os conceitos estruturais eram o indivíduo, o sistema cooperativo, a
organização formal e o conjunto organização formal/informal, enquanto que os
conceitos dinâmicos eram o livre arbítrio, a cooperação, a comunicação, a autoridade, o
processo de decisão e o equilíbrio dinâmico.
Leia o texto e responda: 1) Para Barnard, por que o desejo de cooperação não
poderia basear-se fundamentalmente em incentivos monetários?
143
ORGANIZAÇÕES E CADEIA DE SUPRIMENTOS
O texto abaixo é de Martin Christopher, retirado da obra Logística Empresarial.
Leia-a e responda: 1) O que é a cadeia de suprimentos (Supply Chain)? 2) De que
maneira o gerenciamento da cadeia de suprimentos está mudando os paradigmas das
organizações?
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A SOCIEDADE DAS ORGANIZAÇÕES
O autor do texto abaixo, Peter Drucker (1909-2005), é
considerado um dos grandes nomes da administração moderna.
Seu maior enfoque é o estudo da organização e o comportamento
das pessoas na organização, entendida como uma instituição com
fins especiais. De acordo com ele, todas as instituições sociais
estão convergindo para um tipo de arranjo, um tipo de formação,
que tem por base a lógica das organizações, e inclusive isto seria o
que está unindo, cada vez mais, instituições que tiveram origens e
propósitos diferentes na história.
O trecho a seguir foi retirado da obra Sociedade Pós-
Capitalista. Leia-o e responda: 1) O que é uma organização e qual a sua função? 2)
Qual a diferença entre instituições como hospital, escolas, etc. e uma organização? 3)
Por que o estudo da organização é tão negligenciado por sociólogos e cientistas
sociais/políticos, segundo o autor?
Uma organização é um grupo humano, composto por especialistas que trabalham em
conjunto em uma tarefa comum. Ao contrário da sociedade, da comunidade ou da família – os
agregados sociais tradicionais – uma organização não é concebida e baseada na natureza
psicológica dos seres humanos, nem em suas necessidades biológicas. Contudo, embora seja
uma criação humana, ela é feita par durar – talvez não para sempre, mas por um período de
tempo considerável.
Uma organização é sempre especializada. Ela é definida por sua tarefa. A comunidade
e a sociedade, em contraste, são definidas por um elo que mantém os seres humanos unidos,
seja ele o idioma, a cultura, a história ou a localização. Uma organização é eficaz somente se se
concentra em uma tarefa. A orquestra sinfônica não tenta curar doentes; ela toca música. O
hospital cuida de doentes, mas não tenta tocar Beethoven. Um clube de alpinismo, formado
para escalar os picos do Himalaia, não cuida dos desabrigados do Nepal, por piores que sejam
as suas condições. A escola concentra-se em ensino e aprendizado, a empresa em produzir bens
e serviços, a igreja em converter pecadores e salvar almas, os tribunais em resolver conflitos,
os militares em combater em guerras, a American Heart Association na pesquisa e na
prevenção da degeneração cardíaca e de moléstias circulatórias. A sociedade, a comunicação e
a família são; as organizações fazem. (...)
Em todos os países desenvolvidos, a sociedade transformou-se em uma sociedade de
organizações, na qual todas ou quase todas as tarefas são feitas em e por uma organização:
empresas e sindicatos; as forças armadas e os hospitais; escolas e universidades; uma série de
serviços comunitários – alguns deles repartições públicas, muitas outras (especialmente nos
Estados Unidos) instituições sem fins lucrativos do ―setor social‖. Mas também há as
orquestras sinfônicas – centenas delas nos Estados Unidos –, os museus e as fundações,
associações comerciais e defensores dos consumidores e assim por diante.
Contudo, ninguém nos Estados Unidos – ou em qualquer outro lugar – falava em
―organizações‖ até depois da Segunda Guerra Mundial. Mais uma vez, o Concise Oxford, o
respeitado dicionário inglês, não continha o termo em seu atual significado na edição de 1950.
Os cientistas políticos e sociais falam em ―governo‖ e ―empresa‖, de ―sociedade‖, ―tribo‖,
―comunidade‖ e ―família‖. Mas ―organização‖ ainda não entrou no vocabulário político,
econômico e sociológico. (...)
A função das organizações é tornar produtivos os conhecimentos. As organizações
tornam-se fundamentais para a sociedade em todos os países desenvolvidos, devido à passagem
de conhecimento para conhecimentos.
Quanto mais especializados forem os conhecimentos, mais eficazes serão. Os melhores
radiologistas não são aqueles que mais conhecem a respeito de medicina; são os especialistas
que sabem como obter imagens do interior do corpo através de raios-X, ultrassom, tomografia
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computadorizada ou ressonância magnética. Os melhores pesquisadores de mercado não são
aqueles que mais conhecem a respeito de pesquisa de mercado. Entretanto, nem os
radiologistas nem os pesquisadores de mercado obtêm resultados sozinhos; seu trabalho é
somente um ―insumo‖, que não se transforma em resultado a menos que seja juntado ao
trabalho de outros especialistas.
Os conhecimentos por si mesmos são estéreis. Eles somente se tornam produtivos se
forem soldados em um só conhecimento unificado. Tornar isso possível é a tarefa da
organização, a razão para a sua existência, a sua função.
Hoje em dia certamente exageramos na especialização, em especial nos meios
acadêmicos. Mas a cura não está em se tentar dar aos especialistas uma ―educação liberal‖ para
transformá-los em ―generalistas‖ (como eu mesmo costumava propor durante muitos anos).
Hoje sabemos que isso não funciona. Os especialistas são eficazes somente como especialistas
– e os trabalhadores de conhecimento precisam ser eficazes. Os mais eficazes deles querem ser
somente especialistas restritos. Os neurocirurgiões ficam melhores com a prática; os tocadores
de trompa de pistões não tocam violino, nem deveriam. Os especialistas precisam ser expostos
ao universo do conhecimento. Mas eles necessitam trabalhar como especialistas, e se
concentrar em ser especialistas. E para que isso produza resultados, é necessária uma
organização.
Por que levou tanto tempo para que os estudiosos reconhecessem a organização, apesar
dela ter ser tornado uma realidade social predominante décadas atrás? A resposta nos revela
muito a respeito de organização.
Não é de se surpreender que os advogados não se tenham preocupado com este novo
fenômeno. ―Organização‖ não é um termo legal, assim como ―comunidade‖ e ―sociedade‖, e
também não é um termo econômico. Algumas organizações têm objetivos econômicos,
influenciam a economia e são por ela influenciadas, como no caso de empresas e sindicatos.
Muitas outras – as igrejas e os escoteiros – não estão dentro da esfera do economista. Mas por
que os cientistas políticos e sociólogos em sua maioria ignoraram um fenômeno que afeta de
forma tão profunda a forma de governo e a sociedade?
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FIM
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