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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DO EXERCÍCIO E DO


ESPORTE
DISCIPLINA: Cultura, esporte e identidade
DOCENTE: Prof. Dr. Marcelo Moreira Antunes
DISCENTE: Luiz Felipe Machado Pinto

RESENHA CRÍTICA DO LIVRO


A busca da excitação: Desporto e Lazer no processo civilizacional
Autores: Norbert Elias e Eric Dunning

Após anos de negligência por parte da sociologia à assuntos referentes


ao esporte, o livro “A busca de excitação”, muito por parte de Eric Dunning, sob
a orientação de Norbert Elias, dá luz ao tema. Para além de debater o esporte
em si, o livro é composto por textos originais e alguns já publicados pelos
autores, os quais circundam por temas como a violência, a construção do
desporto, a busca do alívio das tensões rotineiras, a busca do lazer e o papel da
masculinidade ameaçada. Todos estes como pano de fundo para uma das mais
famosas teorias de Elias, o processo civilizatório.

Iniciando a caracterização do texto por sua estrutura física, a obra original


foi lançada em 1986, com o título Quest for excitement, sport and leisure in the
Civilizing process. A presente versão data de 2019, lançada pela editora 70. A
obra conta com um total de 560 páginas, distribuídos em 10 capítulos. A presente
versão da obra em português, foi traduzida por Manuela de Almeida e Silva e
revisada por Vanessa Domingues e Kátia Loureiro.

Quanto aos autores, iniciando por Norbert Elias, Sociólogo, apresentado


como de origem alemã, teve no entanto seu nascimento na região da Breslávia,
Polônia, em 1897. Sob os horrores do regime nazista, exilou-se em 1933 na
França. No entanto, foi na Inglaterra, a partir de 1954 na universidade de
Leicester, que obteve real notoriedade. Apesar de publicar ativamente antes
mesmo de Leicester, devido aos embates da 2º guerra mundial, sagrou-se
tardiamente como um dos grandes pensadores da história, a partir da década de
1970. Publicou durante sua carreira aproximadamente 22 obras. Com destaque
para os dois volumes do “Processo civilizatório” (Über den Prozess der
Zivilisation) de 1939. Grande crítico da construção dos modos e costumes
europeus na direção da civilidade, dedicou-se a analisar, inclusive
historicamente, a origem e evolução dos mesmos. Dando base para críticas
também fora da Europa. Faleceu aos 93 anos em Amsterdã, em 1990. Dentre
seus prêmios destaca-se a Grã-cruz do Mérito com Estrela da Ordem do Mérito
da República Federal da Alemanha (1986) e o Prêmio Theodor W. Adorno (1977)
(NORBERT ELIAS FOUNDATION, 2022).

Eric Dunning nascido em 1936, na Cidade de Londres, Inglaterra,


destacou-se pelo pioneirismo nos estudos em sociologia do esporte. Sua
formação na Universidade de Leicester, teve Norbert Elias como mentor durante
seu mestrado, com o qual trabalhou por mais de 30 anos em diferentes obras.
Destacou-se ainda como um dos fundadores do Sir Norman Chester Centre for
Football Research, com diferentes estudos sobre o futebol. Em destaque,
estudos sobre o Hooliganismo. Após diversas parcerias, em 1999 lança seu
primeiro livro solo “Sport Matters: Sociological Studies of Sport, Violence and
Civilization”, ainda hoje um clássico da sociologia do esporte. Em diferentes
momentos rende elogios a seu mestre, inclusive em 2012, ao publicar o livro
“Norbert Elias e a Sociologia Moderna” em co-autoria com Jason Hughes. Em
boa parte suscitado pelas experiências acadêmicas junto a Elias. Faleceu em
2019, em Leicester, aos 82 anos. Dentre prêmios destaca-se a DLitt honoris
causa em 2013 (NORBERT ELIAS FOUNDATION, 2022a). No Brasil, foi
membro do conselho editorial do Jornal de Ciências do Exercício e Esporte da
Universidade Federal do Paraná.

Ao iniciar as observações levantadas ao longo da presente obra, afirma-


se que em diferentes grupos sociais ao longo da história, o jogo, a disputa entre
dois ou mais participantes esteve presente. No entanto a configuração pela qual
estes se manifestavam sofreu diferentes influências, dentre elas quanto a seu
significado social, o que modificou radicalmente seu formato. Para citar um
período remoto destes jogos e sua significação, dentre os mais emblemáticos,
encontramos a dualidade envolta nos jogos gregos, levantada por Elias e
Dunning na presente obra. Muito se atribui a cultura grega quanto ao processo
de civilização de diferentes povos, dada importância à cultura, filosofia e por
vezes a seus jogos. Ao propor uma dualidade quanto a cultura grega, é referido
ao fato da violência extrema com que aconteciam seus jogos em contraposição
ao evoluído senso e necessidade instrucional de sua sociedade, algo que nos
dias atuais nos parece extremamente antagônicos. Apesar de vários serem os
jogos, com objetivos que transitavam do empoderamento social dos praticantes
ao entretenimento dos espectadores, a fim de analisar a dualidade proposta a
partir das proposições de Elias e Dunning, um jogo, uma luta, um desporto
denominado Pancrácio, servirá neste primeiro momento como base.

Apesar da prática ser aludida por muitos como o antepassado do atual


M.M.A (Mix Martial Arts), os relatos sobre a violência atrelada ao mesmo e as
impressões dos espectadores, são marcantes. A disputa era basicamente um
combate entre duas pessoas, sem regras explícitas, onde este apenas era
interrompido por desistência ou morte. Os autores chamam atenção sobre o
sentimento envolto nestes jogos, em um contraponto a clássica e pretensamente
equilibrada sociedade grega. Vê-se por exemplo na ausência da palavra
“consciência”, o que denotaria um arrependimento, ou até mesmo um sentimento
de empatia pelo próximo, o que a sociedade grega não apresentava em relação
aos mortos em combate. No entanto, antes de propor a sociedade grega como
cruel, é importante analisar, como em outras culturas, não a partir de nossa
cultura, mas das próprias construções relacionadas aquele grupo. Este equívoco
de conclusão se estende na análise de várias civilizações, as quais perpassam
as construções acerca de seus jogos. Nesta medida Elias propõe uma
perspectiva mais ampla, a qual contemple diferentes aspectos envoltos ao
problema, a qual denomina de análise configuracional. A mesma utilizada por
Elias e citada por Dunning na análise de diferentes contextos desportivos ao
longo dos textos.

Elias propõe a impossibilidade de analisar-se fatos e sociedades a partir


da separação do homem e sociedade. Para tal criou dois conceitos inter-
relacionados, os quais são base de uma série de analises atribuídas a ele.
Primeiramente o conceito de “configurações”, o qual refere-se a teia de relações
de indivíduos interdependentes, ligados entre si em diferentes níveis e maneiras.
Atrelado a isto temos o conceito de “seres humanos abertos”, em referência ao
caráter aberto, pessoal e orientado para os outros, inseridos nesta configuração
(ELIAS; DUNNING, 2019, p. 68). A partir destes é possível refletir o como uma
sociedade, tida hoje como civilizada, pode compartilhar com culturas como a
clássica grega, o gosto por jogos de enfrentamento, o que os autores denominam
por vezes em seus textos de “luta”, não aludindo somente a artes de combate,
mas a diferentes esportes de contato físico.

Ao analisar as construções gregas acerca do que hoje temos como


esporte, os autores propunham a “gênese do desporto”, a qual permeia o
processo civilizatório, a partir da redução da violência nos jogos, assim como a
própria reconstrução de conceitos sociais por parte de espectadores e
praticantes. Para tal, os autores propõem a Inglaterra como o berço dos
desportos. Apesar desta não ser de fato a detentora dos mais diversos desportos
que hoje conhecemos, seu papel na construção de regras desportivas, a
inserção do desporto escolar, da etiqueta e criação de clubes de prática
desportiva para as mesmas, lhe atribuíra tal importância. Visto o processo de
industrialização sofrida pela mesma por volta da segunda metade do século 18,
um novo conceito, o de “lazer”, ganha força entre os até então trabalhadores.
Apesar do entendimento contemporâneo de lazer por vezes ser proferido como
sinônimo de tempo livre, Elias propõe o que denominou de “espectro do tempo
livre”. Este basicamente se divide em rotinas do tempo livre, atividades
intermediárias e atividades de lazer (ELIAS; DUNNING, 2019, p.210).

Em primeira análise diz-se de tempo livre aquele que não é destinado


formalmente ao trabalho, visto que na Inglaterra do século 18, o tempo centrava-
se na produtividade voltada ao processo industrial e ao trabalho, consumindo a
maior parte do tempo dos envolvidos no processo. Não pormenorizando o
espectro do tempo livre, os autores propunham que este tempo livre divide-se
em atividade rotineiras como pagamento de impostos e cuidar do jardim. Outras
fisiológicas, como dormir e comer. As atividades de lazer destinavam-se a busca
do prazer, da excitação não sexual, o que de acordo com os autores, cria uma
complexa relação entre a necessidade de excitação, os controles sociais para
evitar-se excessos não civilizados e a liberação das tensões provocada pelas
rotinas. Assim o desporto ganha notoriedade, onde através de prazeres de
violência controlada, socialmente aceitável e menor risco de morte, os civilizados
podem liberar estas tensões durante uma disputa.
O desporto – qualquer que seja – é uma atividade de grupo
organizada, centrada num confronto entre pelos menos duas
partes. Exige um certo tipo de esforço físico. Realiza-se de
acordo com regras conhecidas, que definem os limites da
violência que são autorizadas, incluindo aquelas que definem se
a força física pode ser totalmente aplicada (ELIAS; DUNNING,
p.333).

Um exemplo que reflete o limite da violência proposto por regras


desportivas e de conduta, é referido no “jogo da raposa”. Em suma, o objetivo
principal é o de caça a uma raposa, utilizando cães de caça e montaria para tal.
Apesar do objetivo envolver a morte da raposa, há uma série de requisitos a
serem seguidos. Não apenas por estes estarem envoltos nas regras da
competição, mas para proporcionar uma “boa caçada”. Entende-se a boa caçada
como a liberação de tensões a partir deste esporte, o qual detém seu momento
de catarse, ao pegar a raposa, porém sobre condições extremas de perigo
controlado. É algo levantado ao logo do livro, ou seja, sob que condições que
não a da morte e violência, as tensões são expurgadas? Existe de fato um ponto
de corte coletivo para que o desporto satisfaça a necessidade de excitação?
Assim, recorrendo a análise configuracional de Elias, vê-se que apesar do lazer,
da excitação e do sair da rotina deter níveis individuais, a aceitação do grupo e
os limites sociais sempre devem estar atrelados, satisfazendo-se mutuamente.

Ainda na Inglaterra, os jogos que primeiramente eram destinados a elite


como forma de lazer, logo chegaram a classe trabalhadora, assumindo inclusive
novos formatos e sentidos. Inclusive destaca-se o pioneirismo inglês nas
adaptações de esportes e jogos populares na reconfiguração como desporto
(ELIAS; DUNNING, 2019, p.319). A busca pela excitação não apenas atrela-se
aos praticantes diretos, mas a seus espectadores. Na Inglaterra contemporânea,
pretensamente civilizada, os torcedores de diferentes equipes futebolísticas
assumiram características peculiares de violência. Não mais relacionado as
questões dentro de campo, mas influenciados diretamente pelo que acontecia
fora dele. Aos atores denominou-se como Hooligans e aos processos denotados
de seus atos e comportamentos de “hooliganismo”. Dunning dirigiu especial
atenção ao estudo deste grupo, visto que distanciava-se e por vezes
antagonizava o processo civilizatório proposto por Elias. Elias propunha a
civilidade como um refinamento das maneiras, algo o qual nos distanciaria da
violência, a partir inclusive do controle das tensões e de seus mecanismos
sociais. No entanto o hooliganismo apresenta-se como um formato empoderador
das classes mais baixas, perante a exclusão social promovida pela elite. Tidos
por vezes como “os rudes”, a estes não apenas atribuiu-se a selvageria fora de
campo, mas maneiras de asseio e linguajar tidos como repulsivos em diferentes
esferas sociais. No entanto, seria esta uma construção real, ou mero artifício
burguês para impossibilitar a aproximação e consecutiva solução, das dores
deste grupo? Se em um primeiro momento a prática excludente de diferentes
esportes ligava-se a necessidade masculina de empoderar-se como “macho”,
seria a inserção das mulheres nos jogos e até mesmo atos de violência
cometidos por ambos os sexos, algo que descaracterizaria a violência como um
ato masculinizante?

Apesar de Elias e Dunning proporem o mimetismo nas práticas


desportivas, um espelhamento parcial das condições sociais, em especial na
necessidade de liberação das tensões, ao enxergar movimentos como o
hooliganismo, vê-se que para além da prática, seus espectadores são
componente fundamental para compreender esta nova, ou não, referência de
civilidade.

Existem cento e uma maneiras de dominarmos as nossas


emoções – por uma boa razão. Se toda a gente atenuasse
ou eliminasse as restrições, toda a estrutura da nossa
sociedade se desfazia [...] (ELIAS; DUNNING, 2019, p.241)

Enxergar para além do que acontece dentro da área de prática do jogo,


passa pelo processo de profissionalização pelo qual estes se encontram. O jogo
que em um primeiro momento é tido dentro do espectro do lazer, voltado a
liberação de tensões e sendo um antagonista, por vezes famigerado do trabalho,
no desporto tornou-se como emprego, carreira e sustento. O atleta que até então
em seu cerne era amador, aquele que ama, não mais pratica esporte para aliviar
as tensões de seu trabalho, visto que este agora é de fato seu labor. Assim, onde
mais este aliviaria suas tensões, senão pelo jogo? Seu papel de entreter, de ator
é agora levado ao extremo do espetáculo, deixando a prioridade do prazer de si,
para os outros.

Autores como Guy Debord compartilha com Elias as bases marxistas da


escola de Frankfurt. Para Debord o processo de espetacularização, deturpa o
cerne do que esta a acontecer, desviando-o para o mercado de consumo. “O
espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social”
(DEBORD, 2016, p.30). No entanto Elias e Dunning de forma alguma demonizam
o espetáculo, sendo apenas lúcidos quanto ao fato deste existir e assim como o
desporto, possuir suas próprias configurações sociais. O desporto agora
destinado a resultados, não apenas para os atletas, mas para sua equipe, seus
fãs e patrocinadores. Seria agora a busca pela excitação do olhar, mais intensa
e propícia que a proporcionada pela prática? Visto que de acordo com Elias e
Dunning a prática superior dos atletas, frustra os amadores, fazendo com que
estes sintam-se inferiores, baseando-se meramente em um processo de
imitação.

Por fim a obra “A busca da excitação: Desporto e lazer no processo


civilizacional”, mostra-se como uma obra de referência para a sociologia do
esporte e demais profissionais da área. Apesar de diferentes conceitos lançados
pelos autores, alguns na década de 1960, ainda serem compartilhados, vê-se a
necessidade de utilizá-los com parcimônia. Como a própria obra expunha, o
processo civilizatório está em constante mudança e adapta-se não apenas ao
momento, mas ao grupo analisado. É necessário ter-se como base as diferentes
reflexões, em especial sobre a violência, apresentadas no livro, para que a partir
de observações contemporâneas busque-se alternativas para o entendimento, e
porque não, do controle das mesmas.

Aos profissionais envoltos no universo esportivo, compreender o fulcro da


violência no esporte é manutenir como já apresentado, a própria prática
desportiva. Seja esta orientada para o lazer ou rendimento, como praticante ou
como espectador, o desporto e suas configurações mudam a todo momento.
Para influenciar positivamente o processo, é preciso estar a par destas
mudanças.
REFERÊNCIAS

DEBORD, Guy, A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Ed. Contraponto,


2016.

ELIAS, Norbert e DUNNING, Eric A Busca da Excitação: Desporto e Lazer no


Processo Civilizacional. Lisboa, Edições 70, 2019.

NORBERT ELIAS FOUNDATION, 2019. Disponível em: < http://norbert-


elias.com/pt/sobre-norbert-elias/ >. Acesso em: 21/03/2022.

NORBERT ELIAS FOUNDATION, 2019a. Disponível em: < http://norbert-


elias.com/about-elias-foundation/in-memoriam/#1552662704268-e815dd07-
db7e>. Acesso em: 21/03/2022.

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