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_|_ Humanística

1. Introdução à vida intelectual, J. B. Libanio


2. A norma linguística, Marcos Bagno [org.]
3. A inclusão do outro: estudos de teoria política, Jürgen Habermas
Jürgen Habermas

A INCLUSÃO DO O U T I O
estudos de teoria política

Tradução:
George Sperber
Paulo Astor Soethe [UFPR]

Edições Loyola
T ítulo original:
Die Einbeziehung des Anderen — Studien zur politischen Theorie
© Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main 1996
Zweite Auflage 1997
Alie Rechte vorbehalten
ISBN: 3-518-58233-X

E dição B rasileira
Direção
Fidel Garcia Rodríguez, SJ

Edição de texto
Marcos Marcionilo

Revisão
Albertina Pereira Leite Piva
Diagramação
Ronaldo Hideo Inoue

Edições Loyola
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ISBN: 85-15-02438-1

© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2002


Sumário

Prefácio........................................................................................ ... 7

1 Uma visão genealógica do teor cognitivo da m oral..................... . 11

2 Reconciliação por meio do uso público da razão......................... . 61


O desigti da condição prim itiva......................................................................... . 63
O fato do pluralismo e a idéia do consenso ab rangente............................... . 73
Autonomia privada e pública............................................................................ . 82

3 “Racional” versus “verdadeiro”


— ou a moral das imagens de m undo......................................... . 89
A m oderna situação de p a rtid a ........................................................................ . 93
De Hobbes a K ant............................................................................................... . 95
A alternativa ao procedimentalismo k an tian o ................................................ . 98
Uma “terceira” perspectiva para o racio n al..................................................... 102
O últim o estágio da justificação....................................................................... 105
Filósofos e cidadãos............................................................................................ 111
O âmago do liberalism o.................................................................................... 116

4 O Estado nacional europeu


— sobre o passado e o futuro da soberania e da nacionalidade .... 121
“Estado” e “Nação” ............................................................................................. 123
A nova forma de integração social................................................................... 128
A tensão entre nacionalismo e republicanism o............................................. 131
A unidade da cultura política na multiplicidade das subculturas............... 134
Limites do Estado nacional: restrições da soberania in tern a........................ 138
“Superação” do Estado nacional: supressão ou suprassunção?................... 142

3 Inserção — inclusão ou confinamento?..................................... 147


Construções da soberania popular no direito co n stitucional..................... 153
Sentido e falta de sentido da autodeterm inação n acio n a l............................ 159
Inclusão com sensibilidade para as diferenças................................................164
Democracia e soberania do Estado: o caso das intervenções hum anitárias... 167
Somente um a Europa das Pátrias?................................................................... 172

A E u ro p a n e c e ss ita d e u m a C o n s titu iç ã o ? ............................................ 177

A id é ia k a n tia n a d e p a z p e rp é tu a
— à d is tâ n c ia h is tó ric a d e 200 a n o s ........................................................ 185

A lu ta p o r re c o n h e c im e n to n o E sta d o d e m o c rá tic o d e d i r e i t o ...... 229


A “política do reconhecimento” tayloriana..................................................... 232
Lutas por reconhecimento — os fenômenos e os planos de sua análise.... 238
A im pregnação ética do Estado de d ire ito ...................................................... 243
Coexistência eqüitativa versus preservação da espécie...................................248
Imigração, cidadania e identidade nacional.................................................... 255
A política para a concessão de asilo na Alemanha unificada........................262

T rês m o d e lo s n o rm a tiv o s d e d e m o c r a c ia ............................................. 269

S o b re a co esão in te r n a e n tr e E sta d o d e d ir e ito e d e m o c r a c ia ...... 285


Qualidades formais do direito m o d e rn o ........................................................ 286
Sobre a relação complementar entre direito positivo e moral autônom a.... 288
Sobre a mediação entre soberania popular e direitos h u m a n o s.................. 290
Sobre a relação entre autonom ia privada e p ú b lica....................................... 293
O exemplo das políticas feministas de eq u ip aração ......................................295

A p ê n d ic e a Facticidade e validação ...................................................... 299


O bom e o ju s to .................................................................................................... 300
A neutralização de conflitos de valor e a “acedência de diferenças” ............308
Forma e conteúdo: o cerne “dogmático” do procedim entalism o................ 326
Problemas da construção te ó ric a .......................................................................338
Sobre a lógica dos discursos jurídicos..............................................................353
Sobre o teor político do paradigma procedim ental.........................................365
Comentários sociológicos: mal-entendidos e e stím u lo s................................373

F o n te s d o s c a p ít u lo s ....................................................................................... 385

ín d ic e d e n o m e s ............................................................................................... 387
Prefácio

Os estudos que compõem o presente livro surgiram depois da


publicação de Faktizitat und Geltung, em 1992. Eles têm em comum o
interesse pela questão das conseqüências que hoje resultam do conteú­
do universalista dos princípios republicanos — a saber, para as socie­
dades pluralistas, nas quais os contrastes multiculturais se agudizam,
para os estados nacionais, que se reúnem em unidades supranacionais,
e para os cidadãos de uma sociedade mundial que foram reunidos
num a involuntária comunidade de risco, sem ter sido consultados.
Na primeira parte, defendo o conteúdo racional de uma moral
baseada no mesmo respeito por todos e na responsabilidade solidária
geral de cada um pelo outro. A desconfiança moderna diante de um
universalismo que, sem nenhuma cerimônia, a todos assimila e iguala
não entende o sentido dessa moral e, no ardor da batalha, faz desapa­
recer a estrutura relacionai da alteridade e da diferença, que vem sen­
do validada por um universalismo bem entendido. Na Teoria da Ação
Comunicativa, formulei esses princípios básicos de modo que eles cons­
tituíssem uma perspectiva para condições de vida que rompesse a fal­
sa alternativa entre “comunidade” e “sociedade”. A essa orientação da
teoria da sociedade corresponde, na teoria da moral e do direito, um
universalismo dotado de um a marcada sensibilidade para as diferen­
ças. O mesmo respeito para todos e cada um não se estende àqueles
que são congêneres, mas à pessoa do outro ou dos outros em sua al­
teridade. A responsabilização solidária pelo outro como um dos nossos
se refere ao “nós” flexível numa comunidade que resiste a tudo o que é
substancial e que amplia constantemente suas fronteiras porosas. Essa
comunidade moral se constitui exclusivamente pela idéia negativa da
abolição da discriminação e do sofrimento, assim como da inclusão
dos marginalizados — e de cada marginalizado em particular — , em *

* Tradução: George Sperber.

7
uma relação de deferência mútua. Essa comunidade projetada de modo
construtivo não é um coletivo que obriga seus membros uniformiza­
dos à afirmação da índole própria de cada um. Inclusão não significa
aqui confinamento dentro do próprio e fechamento diante do alheio.
Antes, a “inclusão do outro” significa que as fronteiras da comunidade
estão abertas a todos — também e justamente àqueles que são estra­
nhos um ao outro — e querem continuar sendo estranhos.
A segunda parte contém uma discussão com John Rawls, para a
qual fui convidado pela redação e pelo editor do Journal ofPhilosophy.
Nela, procuro demonstrar que a teoria do discurso é mais apropriada
para formular, em termos de conceitos, as intuições morais que nor­
teiam Rawls e que me norteiam. É claro que minha réplica também
serve ao intuito de esclarecer as diferenças entre o liberalismo político
e um republicanismo kantiano tal como eu o entendo.
A terceira parte pretende contribuir para o esclarecimento de uma
controvérsia que voltou a surgir na Alemanha depois da reunificação.
Continuo a fiar a linha que iniciei outrora num ensaio sobre “Cidada­
nia e Identidade Nacional”1. Do conceito, inspirado pelo romantis­
mo, da nação como uma comunidade de cultura e de destino, etnica-
mente enraizada, que pode reivindicar uma existência própria como
Estado, alimentam-se até hoje muitas convicções e opiniões proble­
máticas: o apelo a um pretenso direito à autodeterminação nacional,
o rechaço simétrico do multiculturalismo e da política de direitos hu­
manos, assim como a desconfiança diante da transferência de direitos
de soberania a instituições supranacionais. Os apologistas da nação-
povo deixam de perceber que são justamente as notáveis conquistas
históricas do estado nacional democrático e seus princípios constitu­
cionais republicanos os que podem dar-nos lições a respeito de como
deveriamos lidar com os problemas da atualidade, decorrentes da pas­
sagem inevitável a formas de socialização pós-nacionais.
A quarta parte ocupa-se da realização dos direitos humanos em
nível global e nacional. O bicentenário do texto sobre a Paz perpétua
dá-nos motivo para um a revisão do conceito kantiano dos direitos do
cidadão do mundo, à luz de nossa experiência histórica. Os Estados-
sujeitos, outrora soberanos, que perderam há muito a pressuposição
de inocência de que partia o direito constitucional, não podem mais

1. Faktizitàt und Geltung, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1992, pp. 632-660.

8 A INCLUSÃO DO OUTRO
invocar o princípio da não-intromissão nos assuntos internos. O de­
safio do multiculturalismo comporta-se de forma a especular em face
da questão das intervenções por motivos humanitários. Também aqui
há minorias que procuram proteger-se de seu próprio governo. Essa
discriminação assume, porém, no contexto de um Estado de direito
legítimo em seu todo, a forma mais sutil do poder pela maioria, em
que uma cultura de maioria se funde à cultura política geral. Contudo,
em oposição à proposta comunitarista de Charles Taylor, sustento que
uma “política do reconhecimento” — à qual cabe garantir, com igual­
dade de direitos, a coexistência de diferentes subculturas e formas de
vida dentro de uma só comunidade republicana — tem de cumprir
seu papel sem direitos coletivos nem garantias de sobrevivência.
A quinta parte lembra pressupostos básicos da teoria do discurso
a respeito da concepção de democracia e de Estado de direito. Esse modo
de ver a política deliberativa permite sobretudo uma maior precisão
da igualdade de origem da soberania popular e dos direitos humanos.
Já em setembro de 1992, a Cardozo School of Law de New York
organizou uma conferência científica, por ocasião da publicação, próxi­
ma então, de Faktizitãt und Geltung. O posfácio contém, por extenso,
a minha réplica aos reparos feitos naquela oportunidade, pelos quais
sou grato.

J. H.
Starnberg, janeiro de 1996

P refácio 9
1
Uma visão genealógica do
teor cognitivo da morar

O
Frases ou manifestações morais têm, quando podem
ser fundamentadas, um teor cognitivo. Portanto, para termos
clareza quanto ao possível teor cognitivo da moral, temos de
verificar o que significa “fundamentar moralmente” alguma
coisa. Ao mesmo tempo, devemos diferenciar entre, por um
lado, o sentido dessa questão quanto à teoria da moral, ou
seja, se manifestações morais expressam algum saber e como
elas podem ser eventualmente fundamentadas, e, por outro
lado, a questão fenomenológica a respeito de qual teor cogni­
tivo os próprios participantes desses conflitos vêem em suas
manifestações morais. De início, falo em “fundamentação
moral” de maneira descritiva, tendo em vista a prática rudi­
mentar de fundamentação que tem seu lugar nas interações
cotidianas do m undo vivido.
Aqui nós pronunciamos frases que têm o sentido de exi­
gir dos outros determinado comportam ento (ou seja, de
reclamar o cumprimento de um a obrigação), de fixar um a *

* Tradução: Paulo Astor Soethe e George Sperber.

11
forma de agir para nós mesmos (ou seja, de assumirmos uma obri­
gação), de admoestar outros ou nós mesmos, de reconhecer erros, de
apresentar desculpas, de oferecer indenizações etc. Nesse primeiro ní­
vel, as declarações morais servem para coordenar os atos de diversos
atores de um modo obrigatório. É claro que essa “obrigação” pressupõe
o reconhecimento intersubjetivo de normas morais ou de práticas
habituais, que fixam para uma comunidade, de modo convincente, as
obrigações dos atores, assim como aquilo que cada um deles pode es­
perar do outro. “De modo convincente” quer dizer que, toda vez que a
coordenação das ações fracassa no primeiro nível, os membros de uma
comunidade moral invocam essas normas e apresentam-nas como
“motivos” presumivelmente convincentes para justificar suas reivin­
dicações e críticas. As manifestações morais trazem consigo um poten­
cial de motivos que pode ser atualizado a cada disputa moral.
Regras morais operam fazendo referência a si mesmas. Sua ca­
pacidade de coordenar as ações comprova-se em dois níveis de inte­
ração, acoplados de modo retroativo entre si. No primeiro nível, elas
dirigem a ação social de forma imediata, na medida em que compro­
metem a vontade dos atores e orientam-na de modo determinado.
No segundo nível, elas regulam os posicionamentos críticos em caso
de conflito. Uma moral não diz apenas como os membros da comu­
nidade devem se comportar; ela simultaneamente coloca motivos para
dirimir consensualmente os respectivos conflitos de ação. Fazem par­
te do jogo da linguagem moral as discussões, as quais, do ponto de
vista dos participantes, podem ser resolvidas convincentemente com
ajuda de um potencial de fundamentações igualmente acessível a to­
dos. Devido a essa relação íntima com a branda força de convenci­
mento inerente aos motivos, os deveres morais recomendam-se, do
ponto de vista sociológico, como alternativa a outras espécies de solu­
ção de conflitos, não orientadas pelo acordo mútuo. Dito de outra
forma, se a moral carecesse de um teor cognitivo crível, ela não seria
superior às formas mais dispendiosas de coordenação da ação (como
o uso direto da violência ou a influência sobre a ameaça de sanções ou
a promessa de recompensas).
Quando dirigimos o olhar para as discussões morais, temos de
incluir as reações provindas dos sentimentos na classe das manifesta­
ções morais. O conceito central do dever já não se refere apenas ao teor
dos mandamentos morais, mas também ao caráter peculiar da valida­

12 A INCLUSÃO DO OUTRO
ção do dever ser, que se reflete também no sentimento de assumir uma
obrigação. Posicionamentos críticos e autocríticos diante de infrações
manifestam-se em atitudes dos sentimentos; do ponto de vista de ter­
ceiros, como repulsa, indignação e desprezo; do ponto de vista do atin­
gido diante de seu próximo, como sentimento de humilhação ou de
ressentimento; do ponto de vista da primeira pessoa, como vergonha e
culpa1. A isso correspondem, enquanto reações afirmativas dos senti­
mentos, a admiração, a lealdade, a gratidão etc. Como esses sentimen­
tos que assumem posição exprimem implicitamente juízos, a eles cor­
respondem valorações. Julgamos ações e intenções como “boas” ou
“más”, enquanto o vocabulário das virtudes se refere a características
das pessoas que agem. Também nesses sentimentos e valorações m o­
rais se revela a pretensão de que os juízos morais possam ser funda­
mentados. Pois eles diferenciam-se de outros sentimentos e valora­
ções pelo fato de estar entretecidos com deveres racionalmente exigí-
veis. Nós justamente não entendemos essas manifestações como ex­
pressão de sensações e preferências meramente subjetivas.
A partir do fato de haver normas morais “em vigor” para os inte­
grantes de uma comunidade, não segue necessariamente que as mes­
mas tenham, consideradas em si, um conteúdo cognitivo. Um obser­
vador sociológico pode descrever um jogo de linguagem moral como
um fato social e pode até mesmo explicar por que os integrantes estão
“convictos” de suas regras morais, sem ele mesmo estar em condições
de acompanhar o raciocínio que explica a plausibilidade desses m oti­
vos e interpretações12. Um filósofo não pode dar-se por satisfeito com
isso. Ele aprofundará a fenomenologia das respectivas disputas m o­
rais para descobrir o que os participantes fazem quando (acreditam)
justificar algo moralmente3. É claro que “perscrutar” significa algo dife­

1. Cf. P. F. Strawson, Freedom and Resentment, London 1974.


2. Cf. H. L. A. H art defendeu essa opinião e considerou que a unidade dos siste­
mas jurídicos provém de regras fundamentais ou cognitivas, que legitimam o corpus
das regras in toto, sem ser elas mesmas capazes de um a justificação racional. Tal como
a gramática de um jogo de linguagem, tam bém a “regra cognitiva” enraíza-se num a
práxis, que um observador só pode constatar como fato, enquanto ela representa, para
os que dela participam, um a evidência cultural manifesta, “que é aceita e da qual se
pressupõe a sua validade”. H. L. A. Hart, Der Begriff des Rechts, Frankfurt am Main
1973,155.
3. Cf. a brilhante fenomenologia da consciência moral e m : L. Wingert, Gemein-
sinn und Moral, Frankfurt am Main 1993, Cap. 3.

U ma visão genealógica d o teor cognitivo da moral 13


rente de meramente “entender” as manifestações. O acompanhamen­
to reflexivo da práxis da justificação no m undo vivido, do qual nós
mesmos participamos como leigos, permite traduções reconstrutoras
que incentivam um a compreensão crítica. Nesse posicionamento me­
todológico, o filósofo amplia a perspectiva de participação fixada para
além do círculo dos participantes imediatos.
Os resultados de tais esforços podem ser inspecionados nos prin­
cípios da filosofia moral desenvolvidos na modernidade. É claro que
essas teorias se diferenciam segundo seu grau de disponibilidade her­
menêutica. Segundo a medida em que se interessam pelo saber moral
utilizado intuitivamente pelos participantes, elas conseguem recolher
reconstrutivamente mais ou menos elementos do conteúdo cognitivo
das nossas intuições morais cotidianas.
O não-cognitivismo severo quer desmascarar o conteúdo cogniti­
vo da linguagem moral como sendo, em tudo, ilusão. Ele tenta mostrar
que, por trás das manifestações que para os participantes parecem juí­
zos e posicionamentos morais passíveis de justificação, se escondem
apenas sentimentos, posicionamentos ou decisões de origem subjeti­
va. Descrições revisionistas semelhantes às do emotivismo (Stevenson)
e do decisionismo (Popper e o primeiro Hare) foram encontradas pelo
utilitarismo, que vê nas preferências a origem do sentido “obrigatório”
das orientações de valor e dos deveres. Contudo, diferentemente do
não-cognitivismo severo, ele substitui a autoconsciência moral irrefle-
tida dos participantes por um cálculo de benefícios, feito a partir da
perspectiva do observador, e, nessa medida, oferece uma fundamenta­
ção que parte da teoria da moral para o jogo moral de linguagem.
Nesse sentido, o utilitarismo tange algumas formas do não-cog­
nitivismo atenuado, que leva em conta a autoconsciência dos sujeitos
que agem moralmente, seja tendo em vista sentimentos morais (como
é o caso da tradição da filosofia moral escocesa), seja a orientação se­
gundo normas vigentes (como no caso do contratualismo de cunho
hobbesiano). Contudo, a autoconsciência do sujeito que julga moral­
mente recai em revisão. Em seus posicionamentos e julgamentos, pre-
sumidamente justificados de modo objetivo, deveríam exprimir-se de
fato apenas motivos racionais, sejam sentimentos ou situações de inte­
resses (fundamentáveis pela razão dos seus fins).
O cognitivismo atenuado também deixa intacta a autoconsciência
da práxis cotidiana das fundamentações morais, na medida em que

14 A INCLUSÃO DO OUTRO
atribui às valorações “fortes” um status epistêmico. A consciência re­
flexiva daquilo que, considerado como um todo, é “bom” para mim
(ou para nós) ou que é “determinante” para o meu (ou o nosso) modo
consciente de levar a vida torna possível (na tradição de Aristóteles ou
de Kierkegaard) uma espécie de acesso cognitivo às orientações de valor.
Aquilo que, em cada caso, é valioso ou autêntico impõe-se-nos, em
certa medida, e diferencia-se das meras preferências por meio de uma
qualidade obrigatória, que remete para além da subjetividade das ne­
cessidades e das preferências. Contudo, a compreensão intuitiva de
justiça é revista. A partir da perspectiva de uma concepção própria e
individual do bem, a justiça adaptada às relações interpessoais apre­
senta-se como apenas um valor (seja qual for sua forma de pronun-
ciação), junto a outros valores, e não como escala de medida para jul­
gamentos imparciais, independente dos contextos.
O cognitivismo severo quer, ainda, fazer justiça à reivindicação
categórica de validade dos deveres morais. Ele tenta reconstruir o con­
teúdo cognitivo do jogo moral de linguagem em toda a sua amplidão.
Diferentemente do neo-aristotelismo, na tradição kantiana não se trata
do esclarecimento de uma práxis de fundamentação moral, que se m o­
vimenta dentro do horizonte de normas reconhecidas e incontestes,
mas da fundamentação de um ponto de vista moral, a partir do qual
tais normas podem ser julgadas em si de forma imparcial. Aqui a teo­
ria moral fundamenta a possibilidade da fundamentação, na medida
em que reconstrói o ponto de vista que os próprios membros das so­
ciedades pós-tradicionais assumem intuitivamente, quando, diante de
normas morais básicas que se tornaram problemáticas, só podem re­
correr a motivos sensatos. Porém, diferentemente das formas de jogo
empíricas do contratualismo, esses motivos não são concebidos como
motivos relativos aos atores, de modo que o núcleo epistêmico da va­
lidade do dever ser permanece intato.
Em primeiro lugar, caracterizarei a situação inicial, na qual a fun­
damentação religiosa para a validade da moral é desvalorizada (II).
Esse é o pano de fundo para um questionamento genealógico, diante
do qual eu gostaria de examinar as duas variantes do empirismo clás­
sico (III), duas interessantes tentativas de renovação do programa de
explicação empirista (IV-V) e as duas tradições que remontam a Aris­
tóteles (VI) e a Kant (VII). Tudo isso serve para preparar as duas ques­
tões sistemáticas, a respeito de quais intuições morais é possível re­

U ma visão genealógica do teor cognitivo da moral 15


construir sensatamente (VIII) e se é possível fundamentar em si o
ponto de vista desdobrado a partir da teoria do discurso (IX).

O
As tentativas de explicação do “ponto de vista moral” lembram
que os mandamentos morais, após o desmoronamento de uma visão
de m undo “católica”, obrigatória para todos, e com a passagem para as
sociedades de cosmovisão pluralista, não mais podem ser justificados
publicamente segundo um ponto de vista divino transcendente. Se­
gundo esse ponto de vista, para além do mundo, era possível objetivar
o m undo como um todo. O “ponto de vista moral” deve reconstruir
essa perspectiva intramundialmente, quer dizer, deve recuperá-la den­
tro dos limites de nosso m undo compartilhado intersubjetivamente,
sem perder a possibilidade do distanciamento do m undo como um
todo, nem a da universalidade de um olhar que abarca o mundo todo.
Contudo, junto com essa mudança de perspectivas no sentido de uma
“transcendência de dentro”4, surgem as seguintes questões: primeiro,
se é possível, a partir da liberdade subjetiva e da razão prática do homem
abandonado por Deus, fundamentar a força obrigatória específica das
normas e dos valores em geral; e, segundo, como se modifica com
isso, se possível for, a peculiar autoridade do dever ser. Nas sociedades
ocidentais profanas, as intuições morais cotidianas ainda estão marca­
das pela substância normativa das tradições religiosas por assim dizer
decapitadas, declaradas juridicamente como questão privada — sobre­
tudo pelos conteúdos da moral da justiça judaica, do Antigo Testa­
mento, e da ética do amor cristão, do Novo Testamento. Esses elemen­
tos são transmitidos por meio dos processos de socialização, embora
freqüentemente de forma implícita ou sob outras denominações. Uma
filosofia moral que se entenda como reconstrução da consciência moral
cotidiana coloca-se com isso diante do desafio de examinar até que
ponto essa substância pode ser justificada racionalmente.
Os ensinamentos proféticos transmitidos pela via bíblica tinham
à sua disposição interpretações e motivos que conferiram às normas

4. J. Habermas, “Transzendenz von innen, Transzendenz ins Diesseits”. In: idem,


Texte und Kontexte, Frankfurt am Main 1991,127-156; a este respeito, Th. M. Schmidt,
“Immanente Transzendenz”, in L. Hauser, E. Nordhofen (ed.), Im Netz der Begriffe.
Religionsphilosophische Analysen, Freiburg 1994,78-96.

16 A INCLUSÃO DO OUTRO
morais uma força de convencimento pública. Eles explicavam por que
os mandamentos de Deus não são ordens cegas, mas podem requerer
validação própria, em um sentido cognitivo. Se mesmo sob as condi­
ções de vida m oderna não há um equivalente funcional para a moral
como ela mesma, e se o jogo de linguagem moral não pode ser sim­
plesmente substituído por um controle qualquer do comportamento
— percebido como tal — , então o sentido cognitivo de validade com ­
provado fenomenologicamente leva-nos a perguntar se a força per-
suasiva de normas e valores já aceitos é algo assim como uma aparên­
cia transcendental ou se ela pode ser justificada também sob condi­
ções pós-metafísicas. A filosofia moral não precisa apresentar ela pró­
pria os fundamentos e as interpretações que, nas sociedades seculari-
zadas, ocupam o lugar dos fundamentos e das interpretações religio­
sas desvalorizadas — ao menos publicamente. Contudo, ela precisaria
designar o gênero de fundamentos e interpretações que poderíam as­
segurar ao jogo de linguagem moral um a força de convicção suficien­
te, também sem uma retaguarda religiosa. Tendo em vista esse ques­
tionamento genealógico, gostaria de (1) lembrar a base de validação
monoteísta de nossos mandamentos morais e (2) determinar mais
precisamente o desafio proveniente da moderna situação de partida.
(1) A Bíblia origina os mandamentos morais na revelação da pa­
lavra de Deus. Esses mandamentos devem ser objeto de obediência
imediata, pois estão munidos da autoridade de um Deus onipotente.
Nessa medida, a validade de seu dever ser estaria munida apenas da
qualidade de um “dever”, na qual se reflete o poder ilimitado de um
soberano. Deus pode obrigar à obediência. Essa interpretação volunta-
rista, porém, ainda não confere à norm a um sentido cognitivo. Esse,
ela o ganha apenas pelo fato de que os mandamentos morais são inter­
pretados como manifestações da vontade de um Deus onisciente e ab­
solutamente justo e bondoso. Os mandamentos não surgem do arbítrio
de um todo-poderoso, mas são manifestações da vontade de um sábio
deus criador, que é também um deus salvador justo e bondoso. A par­
tir das duas dimensões da ordem da criação e da história da salvação
podem ser obtidos fundamentos ontoteológicos e soteriológicos para
o fato de os mandamentos divinos serem dignos de aceitação.
A justificação ontoteológica recorre a uma instalação do m undo
devido à sábia legislação do deus criador. Ela confere ao homem e à
comunidade humana um status destacado em meio à criação e, com

U ma visão genealógica d o teor cognitivo da moral : 17


isso, seu “destino”. Junto com a metafísica da criação entra em jogo a
conceptualidade do direito natural das éticas cosmologicamente fun­
damentadas, que conhecemos também nas cosmovisões impessoais
das religiões asiáticas e na filosofia grega. Aquilo que as coisas são por
sua essência tem um conteúdo teleológico. Também o homem é parte
de tal ordem essencial; é nela que ele pode ler quem ele é e quem deve
ser. O conteúdo racional das leis morais obtém assim uma legitima­
ção ontológica a partir da instalação razoável de tudo o que é.
A justificação soteriológica dos mandamentos morais recorre, por
outro lado, à justiça e à bondade de um deus salvador, que no fim dos
tempos irá resgatar sua promessa de salvação, condicionada por uma
vida moral e obediente às leis. Ele é juiz e salvador num a mesma pes­
soa. À luz de seus mandamentos, Deus julga o modo como cada pessoa
conduziu sua vida, de acordo com seus méritos. Ao mesmo tempo,
seu espírito de justiça garante uma sentença apropriada para as histó­
rias de vida de cada indivíduo, incomparáveis entre si, enquanto sua
bondade leva em consideração simultaneamente a falibilidade do espí­
rito humano e o caráter pecaminoso da natureza humana. Os m anda­
mentos morais adquirem um sentido sensato através dos dois: pelo
fato de indicarem o caminho para a salvação pessoal, e também por
serem aplicados de modo imparcial.
É claro que falar em “mandamentos” morais é algo de certo modo
enganador, na medida em que o caminho da salvação não está traçado
por um sistema de regras, mas por meio de uma forma de vida autori­
zada por Deus e recomendada à imitação. Esse é, por exemplo, o sen­
tido da imitação de Cristo. Também outras religiões universais, e até
mesmo a filosofia, com seu ideal do sábio e da vida contemplativa,
adensam a substância moral de suas doutrinas em formas de vida exem­
plares. Isso significa que, em interpretações religioso-metafísicas do
mundo, o justo está entretecido com certos conceitos do bem viver. O
modo como devemos nos comportar nos relacionamentos interpes­
soais resulta de um modelo de conduta exemplar.
Aliás, o ponto de referência de um deus que aparece in persona,
que no dia do Juízo Final julgará cada um dos destinos individuais,
significa uma diferenciação importante entre dois aspectos da moral.
Cada pessoa tem uma relação comunicativa dupla com Deus, tanto
como membro da comunidade dos fiéis, com a qual Deus fechou uma
aliança, quanto como indivíduo isolado na história de sua vida, que não

18 A INCLUSÃO DO OUTRO
pode se fazer representar por outro diante de Deus. Essa estrutura co-
municacional marca o relacionamento moral — mediado por Deus —
com o próximo, sob os pontos de vista da solidariedade e da justiça (en­
tendida apenas num sentido mais estrito). Enquanto membro da comu­
nidade universal dos fiéis, estou solidariamente unido ao outro, como
companheiro, como “um dos nossos”; como indivíduo insubstituível
eu devo ao outro o mesmo respeito, como “uma entre todas” as pessoas,
que merecem um tratamento justo enquanto indivíduos inconfundí­
veis. A “solidariedade” baseada na qualidade de membro lembra o liame
social que une a todos: um por todos. O igualitarismo implacável da
“justiça” exige, pelo contrário, sensibilidade para com as diferenças que
distinguem um indivíduo do outro. Cada um exige do outro o respeito
por sua alteridade5. A tradição judeu-cristã considera a solidariedade
e a justiça como dois aspectos de uma mesma questão: elas permitem
ver a mesma estrutura comunicacional de dois lados diferentes.
(2) Com a passagem para o pluralismo ideológico nas socieda­
des modernas, a religião e o ethos nela enraizado se decompõem en­
quanto fundamento público de validação de uma moral partilhada
por todos. Em todo caso, a validação de regras morais obrigatórias
para todos não pode mais ser explicada com fundamentos e interpre­
tações que pressupõem a existência e o papel de um deus transcen­
dental, criador e salvador. Com isso, suprime-se por um lado a au­
tenticação ontoteológica de leis morais objetivamente racionais e, por
outro lado, a ligação soteriológica de sua justa aplicação com bens
salvacionistas objetivamente almejáveis. Aliás, a desvalorização de
conceitos metafísicos básicos (e da correspondente categoria de ex­
plicações) também está relacionada com um deslocamento da auto­
ridade epistêmica, que passa das doutrinas religiosas às modernas
ciências empíricas. Com os conceitos essenciais da metafísica dissol­
ve-se a correlação interna das proposições assertivas com as correspon­
dentes proposições expressivas, avaliatórias e normativas. Aquilo que
é “objetivamente razoável” só pode ser fundam entado na medida em
que o justo e o bom estão fundamentados no ente impregnado da
norma. Aquilo que é “objetivamente almejável” só pode ser funda­

5. Q uanto à “justiça” e à “solidariedade”, cf. J. Habermas, Erlàuterungen zur Dis-


kursethik, Frankfurt am Main 1991, 15ss. e 69ss.; L. W ingert (1995) propõe outra
versão.

U ma visão genealógica d o teor cognitivo da moral 19


mentado na medida em que a teleologia da história da salvação ga­
rante a realização do estado de perfeita justiça que carrega em si, ao
mesmo tempo, um bem concreto.
Sob essas condições, a filosofia moral depende de um “nível de
fundamentação pós-metafísico”. Isso quer dizer, em primeira instân­
cia, que lhe são negados, do lado do método, o ponto de vista divino,
do lado do conteúdo, o recurso à ordem da criação e à história da
salvação, e do lado da estratégia teórica, a remissão aos conceitos essen­
ciais que perpassam a diferenciação lógica entre diversos tipos elocucio-
nais de proposições6. A filosofia moral deve justificar o sentido cogni­
tivo da validação dos julgamentos e posicionamentos morais sem re­
correr a apetrechos como esse.
Contudo, há quatro reações diante dessa situação inicial que me
parecem tão implausíveis, que não entrarei em detalhes a respeito:
— O realismo moral quer restaurar a justificação ontológica de
normas e valores por meios metafísicos. Ele defende um acesso
cognitivo, no mundo, a algo que possui a peculiar energia de ori­
entar nossos desejos e de obrigar a nossa vontade. Como essa
fonte do normativo não mais pode ser explicada a partir da cons­
tituição do mundo como um todo, o problema desloca-se para o
campo da epistemologia: para os juízos de valor assimilados a
asserções sobre os fatos deve ser postulado um fundamento da
experiência análogo à percepção, uma captação intuitiva ou uma
visão ideal de valores7.

6. J. Habermas, Nachmetaphysisches Denken, Frankfurt am Main 1988 [ed. br.:


Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990).
7. Q uanto à crítica, cf. J. L. Mackie, Ethics, New York 1977, 38ss. Hoje em dia, a
base argumentativa modificou-se em favor do realismo. A versão mais requintada de
um a ética dos valores introduzida pela crítica do conhecimento, mas fundam enta­
da num a filosofia natural, nas pegadas de Platão e Aristóteles, é desenvolvida por J.
McDowell, M ind and World, Cambridge, Mass. 1994, 82: “The ethical is a domain of
rational requirements, which are there in any case, wether or not we are responsive to
them. We are alerted to these demands by acquiring appropriate conceptual capacities.
W hen a decent upbringing initiates us into the relevant way of thinking, our eyes are
opened to this tract of the sapace of reasons” [“O ético é um campo de requerimentos
racionais, que estão lá em qualquer caso, seja que nós respondamos a eles ou não.
Somos alertados para tais demandas adquirindo capacidades conceituais apropriadas.
Quando um a educação decente nos inicia no modo relevante de pensar, nossos olhos
são abertos para esse trato do espaço das razões” ]. Esse passo em direção ao idealismo
objetivo, McDowell o dá com a assunção de um processo de educação organicamente

20 A INCLUSÃO DO OUTRO
— O utilitarismo, embora ofereça um princípio para fundamen­
tar os julgamentos morais, não permite uma reconstrução apro­
priada do sentido da normatividade por causa de sua orientação
pelo benefício total esperado de determinado modo de agir. O
utilitarismo falha sobretudo ao desconhecer o sentido individu­
alista de uma moral do respeito igual devido a todos.
— O ceticismo fundamentado de forma metaética leva, como já
foi dito, a descrições revisionistas do jogo de linguagem moral
que perdem o contato com o sentido comum dos participantes.
Elas não podem explicar o que querem explicar: as práticas m o­
rais do cotidiano, que desmoronariam, se os participantes negas­
sem todo conteúdo cognitivo às suas disputas morais8.
— O funcionalismo moral não é tradicionalista no sentido em
que retorna a padrões de fundamentação pré-modernos. Ele in­
voca a autoridade das tradições religiosas abaladas, mas o faz por

fundamentado, a cuja luz a razão prática aparece como um a disposição natural, que
pode reivindicar objetivamente a sua validade: “O ur Bildung actualizes some of the
potentialities we are bom with; we do not have to suppose it introduces a non-animal
ingredient into our constitution. And although the structure of the space o f reasons
cannot be reconstructed out o f facts about our involvement in the ‘realm of law’, it can
be the framework within which meaning comes into view only because our eyes can be
opened to it by Bildung, which is an element in the normal coming to maturity of the
kind of animais we are. Meaning is not a mysterious gift from outside nature” [“Nossa
Bildung [educação, formação] atualiza algumas das potencialidades com as quais nas­
cemos; não temos que supor que ela introduza um ingrediente não animal em nossa
constituição. E embora a estrutura do espaço das razões não possa ser reconstruída a
partir dos fatos relativos a nosso envolvimento no ‘campo da lei’, pode ser a moldura
dentro da qual o significado salta à vista somente porque os nosso olhos podem ser
abertos a ela pela Bildung, a qual é um elemento no caminho normal para a idade
m adura no tipo de animal que nós somos. O significado não é um dom misterioso de
fora da natureza.” (88) McDowell não nega, de forma alguma, a pretensão metafísica
dessa concepção, que não posso discutir aqui em detalhe: “The position is a naturalism
of second nature, and 1 suggested that we can equally see it as a naturalized platonism.
The idea is that the dictates of reason are there anyway, wether or not one’s eyes are
opened to them; that is what happens in a proper upbringing” [“A posição é um n atu­
ralismo de segunda natureza, e eu sugeri que tam bém podemos vé-la como um plato-
nismo naturalizado. A idéia é que os ditames da razão estão lá de qualquer modo,
estejam nossos olhos abertos para eles ou não. Isso é o que acontece num processo
apropriado de educação”] (91).
8. Cf. H. Lenk, “Kann die sprachanalytische Moralphilosophie neutral sein?”
[Pode a filosofia moral baseada na análise lingüística ser neutra?] in: M. Riedel (ed.),
Rehabilitierung derpraktischen Philosophie, vol. II, Freiburg 1974,405-422.

U ma visão genealógica d o teor cognitivo da moral 21


causa de suas conseqüências favoráveis, estabilizadoras da cons­
ciência moral. Tal justificação funcional, realizada com base em
uma perspectiva de observação, não pode substituir a autoridade
daqueles motivos que convenceram os fiéis; e, mais que isso, ela
também destrói, contra a sua vontade, o conteúdo cognitivo da
moral baseada na religião, na medida em que trata da autoridade
epistêmica da fé apenas como um fato social9.

As doutrinas religiosas da criação e da história da salvação haviam


fornecido razões epistêmicas para que os mandamentos divinos não
fossem vistos como advindos de uma autoridade cega, mas sim como
razoáveis ou “verdadeiros”. Ora, quando a razão se retira da objeti­
vidade da natureza ou da história da salvação e se transfere para o espí­
rito de sujeitos atuantes e julgadores, tais razões “objetivamente razoá­
veis” para os julgamentos e os atos morais têm de ser substituídas por
outras, “subjetivamente razoáveis”10. Depois de o fundamento religioso
da própria validação ter perdido o valor, o conteúdo cognitivo do jogo
moral de linguagem só pode ser reconstruído referindo-se à vontade e
à razão de seus participantes. “Vontade” e “razão” são, pois, os conceitos
básicos dos enfoques da teoria da moral que assumem essa tarefa. O
empirismo concebe a razão prática como a capacidade de determinar
o arbítrio de acordo com as máximas da inteligência, enquanto o aris-
totelismo e o kantismo não contam apenas com motivos racionais, mas
com uma autovinculação da vontade motivada pelo discernimento.
O empirismo entende a razão prática como sendo a razão instru­
mental. Para alguém que age, é razoável agir de certa forma e não de
outra, se o resultado (esperado) de seu ato é de seu interesse, o satis­
faz ou lhe é agradável. Numa determinada situação, tais razões valem
para determ inado ator, que tem determ inadas preferências e quer
atingir determinadas metas. Chamamos essas razões de “pragmáti­
cas” ou preferenciais, porque elas motivam para a ação, e não porque

9. Cf. E. Tugendhat, Vorlesungen über Ethik, Frankfurt am Main 1993,199ss. [ed.


br.: Lições sobre ética, Petrópolis, Vozes, 1997],
10. Para a comparação entre razão objetiva e razão subjetiva, cf. M. Horkheimer,
Zur Kritik der instrumentellen Vernunft, Frankfurt am Main 1967; H. Schnãdelbach,
“Vernunff”. In: E. Martens, H. Schnãdelbach (ed.), Philosophie, Hamburg 1985,77-115.

22 A INCLUSÃO DO OUTRO
suportem julgamentos ou opiniões, tal como o fazem as razões epis-
têmicas. Elas constituem motivos racionais para os atos, não para as
convicções. Claro que elas “afetam” a vontade apenas na medida em
que o sujeito atuante se apropria de determinada regra de ação. É
fundamentalmente nisso que reside a diferença entre os atos premedi­
tados e os atos motivados espontaneamente. Também um “propósito”
é uma disposição; mas essa, à diferença da “tendência”, só se constitui
mediante a liberdade do arbítrio, a saber, na medida em que um ator
adota uma regra de ação. O ator age racionalmente quando o faz a par­
tir de razões, e quando sabe por que está seguindo uma máxima. O em­
pirismo só leva em consideração razões pragmáticas, ou seja, o caso
em que um ator deixa vincular seu arbítrio, pela razão instrumental,
às “regras de destreza” ou aos “conselhos da prudência” (como diz Kant).
Assim, ele obedece ao princípio da racionalidade dos fins: “Quem quer
um fim, também quer (na medida em que a razão tem uma influência
decisiva sobre seus atos) o meio imprescindível para tanto, que está
em seu poder” (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, BA 45).
Sobre essa base, os dois enfoques clássicos do empirismo recons-
troem o cerne racional da moral. A filosofia moral escocesa parte de
sentimentos morais e entende por moral aquilo que funda a coerência
solidária de uma comunidade (a). O contratualismo refere-se imedia­
tamente aos interesses e entende por moral aquilo que garante a jus­
tiça de um trânsito social normativamente regulado (b). As duas teo­
rias defrontam-se, no fim, com a mesma dificuldade: elas não podem
explicar apenas com motivos racionais a obrigatoriedade dos deveres
morais, que remete para além da força obrigatória da inteligência.
(a) Posicionamentos morais exprimem sentimentos de aprova­
ção ou reprovação. Hume os entende como os sentimentos típicos de
um terceiro que julga as pessoas agentes a partir de uma distância be­
nevolente. Uma congruência no julgamento moral de um caráter sig­
nifica portanto uma convergência de sentimentos. Mesmo que a apro­
vação e a reprovação exprimam simpatia e rejeição, sendo portanto de
natureza emocional, é racional para um observador reagir desse modo.
Porque nós consideramos que um a pessoa é virtuosa se demonstrar
ser útil e agradável (useful and agreeable) para nós e para nossos ami­
gos. Essa demonstração de simpatia, por sua vez, enche a pessoa vir­
tuosa de orgulho e satisfação, enquanto a repreensão mortifica o recrimi­
nado e, portanto, desperta nele desprazer. Por isso é que também há

U ma visão genealógica do teor cognitivo da moral 23


motivos pragmáticos para o comportamento altruísta. A benevolência
concedida por outrem produz satisfação na pessoa que é útil e agradá­
vel para os outros. Sobre a base dessas disposições dos sentimentos pode
configurar-se a força de integração social da confiança mútua.
É claro que esses motivos pragmáticos para posicionamentos e
atos morais só fazem sentido enquanto pensarmos em relacionamen­
tos interpessoais em comunidades pequenas e solidárias, como as fa­
mílias ou as vizinhanças. Sociedades complexas não podem manter
sua coerência apenas sobre a base de sentimentos tais como a simpatia
e a confiança, mais ajustados aos espaços reduzidos. O comportamen­
to moral diante dos estranhos exige virtudes “artificiais”, sobretudo a
disposição para a justiça. Em vista das cadeias abstratas de ações, os
participantes de grupos primários de referência perdem o controle sobre
a reciprocidade entre prestações e recompensas — e, com isso, os moti­
vos pragmáticos para a benevolência. Os sentimentos de obrigação que
salvam as distâncias entre estranhos não são “racionais para mim” do
mesmo jeito como o é a lealdade para com meus aparentados, em cuja
condescendência eu posso, por minha vez, confiar. Na medida em que
a solidariedade é o avesso da justiça, não há nada que deponha contra a
tentativa de explicar o surgimento dos deveres morais a partir da trans­
ferência de lealdades de um grupo primário para grupos cada vez maio­
res (ou da transformação de confiança pessoal em “confiança sistemá­
tica”) 11. Mas um a teoria normativa não prova sua validade com ques­
tões de psicologia moral; antes, ela tem de explicar a prevalência nor­
mativa dos deveres. Em casos de conflitos entre, por um lado, um com­
promisso benevolente dos sentimentos e, por outro, um mandamento
abstrato de justiça, a teoria normativa deve esclarecer por que, para os
membros de um grupo, deve ser racional preterir sua lealdade para 1

11. A. C. Baier, Moral Prejudices, Cambridge, Mass. 1994,184ss. Em vez da sim­


patia, Baier recorre ao fenôm eno da confiança infantil: “T ru st... is letting other
persons... take care of something the truster cares about, where such ‘caring for’involves
some exercise of discretionary powers” [“Confiança... é deixar o u tro s... tom ar conta
de algo que aquele que confia tem em alta conta, ‘tom ar conta’ implicando algum exer­
cício de poder discricionário”](105).lssotem avantagem dequea consideração moral,
vista com fidelidade fenomenológica, pode ser descrita como um a compensação rica
em facetas entre independência e vulnerabilidade; ao mesmo tempo, porém, tem a des­
vantagem de que, ao transferir o modelo desenvolvido a partir das relações assimétricas
entre pais e filhos para as relações simétricas entre adultos, surge o problema da con­
fiabilidade e do abuso de confiança (cf. capítulos 6 ,7 e 8).

24 A INCLUSÃO DO OUTRO
com as pessoas que conhece face a face em favor de uma solidariedade
para com estranhos. Contudo, quando as dimensões de uma comuni­
dade de seres morais que merecem igual respeito ultrapassam o limite
do compreensível, os sentimentos constituem uma base evidentemen­
te estreita demais para a solidariedade entre seus membros12.
(b) O contratualismo deixa de lado logo de início o aspecto da
solidariedade, porque refere a questão da fundamentação normativa
de um sistema de justiça imediatamente aos interesses do indivíduo
— e com isso desloca a moral dos deveres para os direitos. A figura
mental jurídica do direito subjetivo a campos de ação garantidos pela
lei para a persecução dos interesses individuais vai ao encontro de uma
estratégia de fundamentação que opera com motivos pragmáticos e
que se orienta pela pergunta sobre ser ou não racional que o indiví­
duo subordine sua vontade a um sistema de regras. Para além disso, a
figura generalizada do contrato, que provém do direito privado e fun­
damenta tais direitos simetricamente, é apropriada para a construção
de uma ordem baseada no livre acordo. Tal ordem é justa, ou é boa no
sentido moral, quando satisfaz uniformemente os interesses de seus
participantes. O contrato social surge da idéia de que qualquer aspi­
rante precisa ter um motivo racional para se tornar participante de
livre e espontânea vontade e para submeter-se às normas e procedi­
mentos correspondentes. O conteúdo cognitivo daquilo que faz com
que uma ordem seja moral ou justa repousa, portanto, na aquiescência
agregada de todos e de cada um dos participantes; ele se explica mais
acuradamente a partir da racionalidade da avaliação dos bens que
cada um deles efetua a partir da sua própria perspectiva de interesses.
Esse enfoque se defronta com duas objeções. Por um lado, a as­
similação das questões morais às questões da justiça política de uma
associação de pessoas que integram o mesmo sistema jurídico13 tem a
desvantagem de que com base nela não é possível fundamentar um

1 2 .0 problema da relação de sentimentos para com estranhos também não pode


ser solucionado pela transformação de simpatia ou confiança em compaixão. Embora
nossa capacidade de acompanhar no sentimento as criaturas capazes de sofrimento vá
bem além do que os sentimentos positivos diante de pessoas úteis, agradáveis e dignas
de confiança, a compaixão não é um a base suficiente para fundamentar um respeito
igual perante outros, também e justamente em sua alteridade, que não podemos acom­
panhar no sentimento.
13. Cf. Mackie (1977); idem, “Can there be a right-based Moral Theory?” in:
Waldron (ed.), Theories o f Right, Oxford 1984,168-181.

U ma visão genealógica do teor cognitivo da moral 25


respeito equânime para com todos, ou seja, não é possível fundamentar
uma moral universalista. Somente àqueles que têm interesse numa in­
teração regrada apresenta-se como racional a assunção de obrigações
mútuas. Assim, o conjunto dos detentores de direitos só pode abranger
pessoas das quais, pelo fato de quererem ou deverem cooperar, é pos­
sível esperar uma contrapartida. Por outro lado, o hobbesianismo di-
gladia-se em vão com o conhecido problema dos oportunistas, que
admitem a praxe comum, mas se reservam o direito de, na primeira
oportunidade em que isso lhes trouxer maiores benefícios, divergir das
normas gerais acordadas. A personagem do free riáer demonstra que
um acordo entre interesses não pode per se fundamentar obrigações.
Esse problema levou a uma interessante combinação entras as
duas teorias empíricas. Uma objeção interna diante de normas for­
malmente reconhecidas torna-se impossível a partir do instante em
que as infrações das normas não mais são objeto de sanções impostas
de fora, mas apenas de sanções interiorizadas, quer dizer, sentimen­
tos de vergonha ou de culpa14. Essa tentativa de explicação fracassa, po­
rém, prima facie, devido à dificuldade de explicar racionalmente os
sentimentos de autopunição. Não pode haver um motivo racional para
“querer ter” sanções internas15. Mesmo a partir de motivos concei­
tuais, não pode ser “racional para m im” levar a sério, sem questioná-
lo, um peso na consciência e torná-lo simultaneamente objeto de uma
reflexão prática, ou seja, questioná-lo. Na medida em que agimos
moralmente, o fazemos porque achamos que isso é certo ou bom, e
não, por exemplo, porque queremos evitar sanções internas. “Interio­
rizadas” são exatamente as sanções de que nós nos apropriamos. Só
que a apropriação em si não pode ser explicada mediante uma raciona­
lidade dos fins, pelo menos não a partir da perspectiva do envolvido.
Para ele, o que pode ser funcional para regrar a comunidade como um
todo não é, por si só, racional16.
Da mesma forma em que não há um caminho que leve direta­
mente dos sentimentos morais de simpatia ou de rejeição para a fun­
damentação das obrigações segundo uma racionalidade dos fins, tam ­

14. Cf. E. Tugendhat, “Zum Begriff und zur Begründung der Moral”. In: idem,
Philosophische Aufsatze, Frankfurt am Main 1992,315-333.
15. E. Tugendhat (1993), 75.
16. Cf. J. Elster, The Cement o f Society, Cambridge 1989, cap. 3.

26 A INCLUSÃO DO OUTRO
bém não há um caminho que leve diretamente de volta aos sentimen­
tos de reprovação internalizada a partir da fundamentação contratua-
lista de uma ordem normativa. Sentimentos morais exprimem posicio­
namentos, os quais implicam juízos morais. E, no caso de um conflito,
nós não discutimos a respeito da validade dos juízos morais apenas
com motivos pragmáticos ou preferenciais. O empirismo clássico não
dá conta desse fenômeno, porque exclui motivos epistêmicos. Em úl­
tima instância, ele não pode explicar a força vinculatória das normas
morais a partir das preferências.

Diante desse constrangimento, há duas tentativas mais recentes


de reação; ambas insistem nos pressupostos empíricos, mas querem,
assim mesmo, dar conta da fenomenologia das normas vinculatórias.
Allan Gibbard segue mais a linha expressivista da explicação de uma
convivência solidária; Ernst Tugendhat, mais a linha contratualista da
reconstrução de uma convivência justa. Mas ambos partem da mesma
intuição. Toda moral, do ponto de vista funcional, resolve problemas
da coordenação dos atos entre seres que dependem da interação social.
A consciência moral é expressão das legítimas reivindicações que os
membros cooperativos de um grupo social podem fazer reciprocamente.
Sentimentos morais regulam a observância das normas subjacentes.
Vergonha e culpa sinalizam a um a pessoa séria que ela, como diz
Tugendhat, fracassou enquanto “membro cooperativo” ou como “bom
parceiro social”17. A respeito desses sentimentos, Gibbard diz: “ [they
are] tied to poor cooperative will — to a special way a social being can
fail to be a good candidate for inclusion in cooperative schemes”18.
Ambos os autores querem comprovar a racionalidade do surgimento
ou da escolha da moral em geral, mas também a racionalidade de uma
moral racional universalista. Enquanto Tugendhat se prende à pers­
pectiva subjetiva dos participantes, Gibbard segue o caminho objeti-
vante de uma explicação funcional.

17. Tugendhat (1993), 29 e 91.


18. “[(Eles estão) amarrados a um a falta de vontade cooperativa — a um modo
especial em que um ser social pode fracassar em ser um bom candidato à inclusão
nos esquemas cooperativos”]. A. Gibbard, Wise Choices, A pt Feelings, Harvard U. O.,
1992,196.

U ma visão genealógica d o teor cognitivo da moral 27


Diferentemente de Kant, que entende as normas apenas como
máximas para a ação, Gibbard emprega a norm a para todas as espé­
cies de padrões que dizem por que é racional para nós ter uma opi­
nião, externar um sentimento ou agir de determinada maneira. Ter
determinadas opiniões pode ser tão racional para m im quanto exter­
nar determinados sentimentos ou executar determinadas intenções
de ação. O fato de algo ser “racional para mim ” significa que eu me
apropriei de normas, à luz das quais é “sensato” ou “apropriado”, “plau­
sível” ou simplesmente “melhor”, acreditar em algo, sentir alguma coisa
ou fazer algo. Logo, Gibbard denomina morais as normas que fixam,
para uma comunidade, quais as classes de atos que merecem reprova­
ção espontânea. Elas determinam em que casos é racional para os
membros sentir vergonha ou culpa ou indignar-se com o comporta­
mento de outrem. O uso inclusivo do conceito de norma exclui a possi­
bilidade de Gibbard reconduzir, como Kant, a racionalidade do agir
(segundo o já mencionado princípio da racionalidade segundo os fins)
a motivos que fazem o ator vincular sua vontade a esta ou àquela má­
xima. Mas se todos os motivos racionais remontam a padrões subja­
centes preexistentes, não se pode perguntar, por sua vez, por que foi
racional internalizar tais padrões, afinal. O fato de alguém considerar
algo como racional apenas exprime que os padrões que autorizam tal
juízo são seus padrões. Por isso Gibbard entende a manifestação de
juízos de racionalidade, sejam eles de índole moral ou não moral, como
atos de fala expressiva. Não podem ser verdadeiros ou falsos, mas ape­
nas verídicos ou inverídicos. Também a obrigatoriedade relativa ao
ator das normas morais é autenticada apenas por um estado moral
externado com sinceridade19.
Após essa explicação “expressivista” da normatividade, Gibbard
dá dois passos. Primeiro, ele fornece, a partir da perspectiva de um
observador, uma explicação baseada na teoria da evolução a respeito
das normas em geral e, depois, ele tenta recuperar o valor “biológico”
da moral a partir da perspectiva dos participantes, ou seja, ele tenta
traduzir da linguagem teórica de uma “biologia da coordenação da
ação” para a linguagem das reflexões práticas.
A explicação neodarwinista assim proposta diz que os sentimen­
tos morais, tais como a vergonha e a culpa, desenvolveram-se como

19. Gibbard (1992), 84.

28 A INCLUSÃO DO OUTRO
elementos reguladores com funções de coordenação ao longo da evo­
lução do gênero humano. A normatividade das regras que fazem pa­
recer racional aos membros dos grupos cooperativos ter tais senti­
mentos, ou seja, reprovar comportamentos que se desviem da norma,
assim como oferecer ou esperar desculpas condizentes como repara­
ção por um fracasso na coordenação dos atos, não possui uma racio­
nalidade que possa ser reconhecida pelos próprios participantes. Con­
tudo, para um observador, a autoridade que se manifesta nos juízos
de racionalidade dos participantes explica-se a partir do “valor re­
produtivo” das normas internalizadas e das correspondentes atitudes
dos sentimentos. O fato de elas serem vantajosas do ponto de vista
da evolução deve ficar expresso por seu caráter subjetivamente con­
vincente. A tarefa filosófica propriamente dita consiste, então, em
estabelecer um a conexão plausível entre aquilo que é funcional para
o observador e aquilo que é considerado racional pelos participantes.
Esse problema torna-se palpável no mais tardar quando os autores
não mais podem confiar apenas nas normas internalizadas, mas pas­
sam a discutir explicitamente quais são as normas que devem admitir
como válidas.
A língua funciona, aliás, como o mais importante meio de coor­
denação das ações. Juízos e posicionamentos morais que se apoiam
em normas internalizadas se exprimem num a linguagem carregada
de emoções. Contudo, quando o consenso normativo de fundo des­
m orona e novas normas precisam ser elaboradas, faz-se mister outra
forma de comunicação. Nessas circunstâncias, os participantes preci­
sam confiar na força orientadora dos “discursos normativos”: “I shall
call this influence normative governance. It is in this governance of
action, belief and emotion that we might find a place for phenomena
that constitute acceptance of norms, as opposed to merely internali-
zing them. W hen we work out at a distance, in community, what to do
or think or feel in a situation we are discussing, we come to accept
norms for the situation”20.

20. (“Chamarei esta influência de governança normativa. É nesta governança da


ação, da crença e da emoção que podemos encontrar um lugar para os fenômenos que
constituem a aceitação de normas, em contraposição com a sua mera internalização.
Q uando elaboramos a distância, num a comunidade, o que fazer ou sentir num a si­
tuação que estamos discutindo, chegamos a aceitar normas para essa situação.” ] Gibbard
(1992), 72s.

U ma visão genealógica do teor cognitivo da moral 29


Certamente não fica de todo claro o que pode servir de apoio à
“instrução normativa” que se espera de tais discursos. Não podem ser
bons motivos, pois esses derivam sua força racionalmente motivado-
ra de padrões interiorizados, a respeito dos quais se pressupõe que
perderam sua autoridade — caso contrário não teria surgido a neces­
sidade de um entendimento discursivo. Aquilo que os participantes
têm de tomar como objeto de suas discussões não pode servir simul­
taneamente como escala de medida para a mesma discussão. Gibbard
não pode compreender o entendimento discursivo sobre normas
morais segundo o padrão da busca cooperativa da verdade, mas como
um processo de m útua influenciação retórica.
Um proponente que procura angariar consentimento para uma
norm a que, de seu ponto de vista, é digna de reconhecimento, nada
pode fazer além de exprimir com sinceridade o estado subjetivo que
o leva, ele mesmo, a sentira norm a como vinculatória. Se ele conse­
gue fazer isso com autenticidade, pode “contagiar” seus interlocu­
tores, ou seja, induzir neles estados de ânimo semelhantes. Dessa
forma, nos discursos normativos o convencimento m útuo é substi­
tuído por algo assim como uma harmonização recíproca. É interes­
sante notar que, para essa espécie de influenciação retórica, as con­
dições de comunicação públicas, igualitárias e informais de um diá­
logo socrático deveríam ser as mais favoráveis. As “restrições con-
versacionais” às quais tal diálogo está submetido são (com exceção
da necessária coerência das contribuições) de natureza pragm áti­
ca21. Elas deveríam impedir a desqualificação, ou seja, a exclusão imo-
tivada do envolvido, assim como não deveríam privilegiar determ i­
nados oradores ou temas, ou seja, o tratam ento desigual. Deveríam
tam bém evitar a manipulação, o influenciamento por meios não-
retóricos. Essas condições de comunicação são praticamente idênti­
cas aos pressupostos pragmáticos de um a busca cooperativa da ver­

21. Gibbard (1992), 193 “A speaker treats what he is saying as an objective matter
of rationality if he can demand its acceptance by everybody. More precisely, the test is
this: could he coherently make his demands, revealing their grounds, and still not
browbeat his audience? What makes for browbeating in this test is a question of conver-
sational inhibitions and embarassments.” [Um falante trata aquilo que diz como uma
questão de racionalidade objetiva se ele puder pedir a sua aceitação por parte de todos.
Mais precisamente, o teste é este: poderia ele fazer coerentemente os seus pedidos,
revelando os seus motivos, e ainda assim não intimidar o seu público? O que leva a
intimidar neste teste é uma questão de embaraços e inibições conversacionais. ]

30 A INCLUSÃO DO OUTRO
dade22. Portanto, não causa surpresa o fato de que as normas que
ganham aceitação sob essas condições resultam, no fim, num a moral
da responsabilidade igual para todos. Como o processo discursivo
não foi m oldado no sentido da mobilização dos motivos melhores,
mas pela capacidade de contágio das expressões mais impressio­
nantes, não se pode falar aqui em “fundamentação”.
Por isso, Gibbard precisa explicar por que, sob condições de co­
municação pragm aticam ente excelentes, elas deveríam encontrar
anuência justamente nas normas que demonstram ser as melhores do
ponto de vista funcional de seu “valor de sobrevivência”, objetiva­
mente elevado e específico: “In normative discussion we are influenced
by each other, but not only by each other. Mutual influence nudges
us towards consensus, if all goes well, but not toward any consensus
whatsoever. Evolutionary considerations suggest this: consensus may
promote biological fitness, but only the consensus of the right kind. The
consensus must be mutually fitness-enhancing, and so to move toward
it we must be responsive to things that promote our biological fit­
ness”23. Gibbard percebe o problema que reside no fato de os resulta­
dos obtidos a partir da perspectiva de pesquisa objetiva terem de ser
juntados aos resultados de que os participantes da discussão se con­
vencem, por considerá-los sensatos a partir de sua própria perspec­
tiva. Qualquer procura por uma explicação será, contudo, vã. Não se
fica sabendo por que as condições improváveis de comunicação dos
discursos normativos deveríam ser “seletivas” no mesmo sentido e por
que deveríam levar ao mesmo resultado de um incremento da pro­
babilidade de sobrevivência coletiva, esperável dos mecanismos da
evolução natural24.

22. Gibbard (1992), 195, nota 2, tam bém remete à teoria do discurso.
23. [“Na discussão normativa somos influenciados um pelo outro, mas não ape­
nas um pelo outro. A influência m útua persuade-nos ao consenso, mas não em direção
a qualquer consenso. Considerações evolucionistas sugerem-nos o seguinte: o consen­
so pode promover a aptidão física, mas apenas o consenso da espécie certa. O consenso
tem que ser mutuamente prom otor da aptidão e, portanto, para movermo-nos em sua
direção temos que ter disposição para aquilo que promove a nossa aptidão física.”]
Gibbard (1992), 223.
24. Isso também não pode ser garantido pelo meio de os participantes do dis­
curso se apropriarem da descrição biológica, pois tal autodescrição objetivante ou des­
truiría a autoconsciência prática dos sujeitos capazes, ou, no caso da mudança do ob­
servador, mudaria essencialmente o seu sentido da perspectiva dos participantes.

U ma visão genealógica d o teor cognitivo da moral 31


Ernst Tugendhat evita o desvio problemático que leva por uma
explicação funcionalista da moral. Num primeiro momento, ele des­
creve como funcionam os sistemas de regras morais em geral, e quais
motivos podemos ter para ser morais em geral (a), para depois per­
guntar que espécie de moral deveriamos racionalmente escolher, sob
condições pós-metafísicas (b).
(a) Diferentemente do contratualismo, Tugendhat começa com
um conceito pleno de comunidade moral. Disso faz parte a autocons-
ciência daqueles que se sentem vinculados a regras morais, os que “têm
uma consciência”, manifestam sentimentos morais, discutem funda-
mentadamente juízos morais etc. Os participantes acreditam “saber”
o que em cada caso, no sentido categórico, é “bom ” e o que é “mau”.
Liquidado esse assunto, Tugendhat examina se é racional para um can­
didato qualquer ingressar num a praxe moral assim descrita in toto, ou
seja, tornar-se um membro cooperativo de alguma comunidade m o­
ral. “Querer ou não querer pertencer a uma comunidade m oral... é,
em última análise, um ato de nossa autonomia e, para isso, só pode
haver bons motivos, não razões”25. Tugendhat entende por “autonomia”
apenas a capacidade de se agir orientado por regras, a partir de m oti­
vos racionais. Os motivos práticos que ele depois enumera vão muito
além das alegações da prudência, isentas de valor, pois Tugendhat não
indica, de jeito nenhum, interesses dados antes da moral, mas orienta­
ções de valor que só poderíam se configurar no contexto das expe­
riências de um a comunidade constituída moralmente. Assim, por
exemplo, é racional para mim ingressar num a comunidade moral por­
que prefiro, diante do estado de objeto de uma instrumentalização
mútua, ser sujeito e destinatário de direitos e deveres; ou porque rela­
ções equilibradas de amizade são, para mim, melhores que a solidão
estrutural de um ator que age estrategicamente; ou porque é apenas
como membro de uma comunidade moral que experimento a satis­
fação de me sentir respeitado por pessoas que são, elas próprias, moral­
mente respeitáveis etc.
As preferências que Tugendhat enumera em favor do ingresso
numa comunidade moral já estão impregnadas pelos valores de tal co­

25. Tugendhat (1993), 29.

32 A INCLUSÃO DO OUTRO
munidade; elas dependem de orientações de valor precedentes, inter-
subjetivamente compartilhadas. Em todo caso, esses motivos não expli­
cam por que poderia ser racional, para os atores que se encontram num
estado pré-moral e que só conhecem esse estado, passar para um estado
moral. Quem formula de antemão as razões de sua decisão em favor de
uma vida moral, as quais só poderíam surgir da reflexão sobre as vanta­
gens já experimentadas de um contexto interativo moralmente regra­
do, deixou de lado a visão egocêntrica de uma escolha racional e, em
seu lugar, orienta-se por concepções do bem viver. Ele submete sua
reflexão prática à questão ética sobre qual o tipo de vida que ele deveria
levar, sobre quem ele é e quem quer ser, o que é bom para ele, para o
todo, e a longo prazo etc. Razões que recaem sob esse ponto de vista só
ganham força motivadora no sentido em que tangem a identidade e a
autoconsciência de um ator já formado por uma comunidade moral.
É assim que também M artin Seel entende (e aceita) esse argu­
mento. Embora a felicidade de uma vida bem-sucedida não resida numa
vida moral, há do ponto de vista de um sujeito que se preocupa com
seu bem viver razões racionais para se envolver com circunstâncias
morais (sejam quais forem). Já a partir da perspectiva ética é possível
reconhecer que não pode haver um bem viver fora de uma comunida­
de moral. É claro que isso quer dizer apenas que “há interfaces neces­
sárias entre um bem viver e uma vida moral, mas não quer dizer, pelo
contrário, que o bem viver seja possível somente dentro dos limites de
um bem viver moral”26. Tugendhat, porém, interessa-se menos pelo
relacionamento entre o bem viver e a moral, e mais pela fundamenta­
ção ética de ser moral. E essa só pode levar a um paradoxo, caso se
insista na diferença entre o que é bom para cada um e a consideração
moral pelos interesses dos outros — como faz Tugendhat, com razão.
Na medida em que um ator se deixa convencer, por motivos éticos, de
que deveria preferir as circunstâncias de vida morais às pré-morais, ele
relativiza o sentido vinculatório da consideração moral pelos outros,
cuja validade categórica ele deveria admitir sob essas circunstâncias.
Seel registra a circunstância de que “a consideração m oral... (é
transcendente) em face das razões preferenciais que temos para ao me­
nos observar o respeito moral”27. Mas ele não tira disso conclusões cor-

26. M. Seel, Versuch über die Form des Glücks, Frankfurt am Main 1995,206.
27. Seel (1995), 203s.

U ma visào genealógica do teor cognitivo da moral 33


retas28. Pois uma fundamentação ética do ser moral não significa que
alguém se deixe motivar por razões preferenciais para se “confrontar
com razões de uma espécie totalmente diferente”. Antes, as únicas ra­
zões que se devem contar dentro do jogo moral de linguagem, num
relacionamento com o interesse auto-referido no jogo de linguagem
como tal, perdem seu sentido ilocutório, que é o de serem razões para
reivindicações morais, ou seja, reivindicações incondicionais. Se o ator
que toma consciência das vantagens de um modo de vida moral for o
mesmo que, devido a tal preferência por esse modo de vida, admitir
tais circunstâncias, sua fundamentação ética, que condiciona o jogo de
linguagem moral como um todo, modifica simultaneamente o caráter
dos traços nele possíveis. Porque um agir moral “por respeito à lei” é
incompatível com a objeção ética que exige o exame permanente da
práxis, se ela se justifica ou não, como um todo, a partir da perspectiva
do projeto de vida de cada um. Por motivos conceptuais, o sentido ca­
tegórico das obrigações morais só pode permanecer intacto na mesma
medida em que é vedado ao destinatário retroceder, mesmo virtual­
mente, aquele passo para trás da comunidade moral que é necessário
para, a partir da distância e da perspectiva da primeira pessoa, avaliar
as vantagens e desvantagens de ser membro dessa comunidade. Do
mesmo modo, também não há um caminho que leve inversamente da
reflexão ética para a fundamentação da moral.
(b) Mesmo se o sonho do empirismo se tornasse realidade e se a
reflexão sobre o próprio interesse pudesse desenvolver uma dinâmica
reconstituível que — no sentido da deferência moral incondicional —
levasse “para além” da persecução dos próprios interesses, ainda não
estaria resolvido o problema propriamente dito. Na melhor das hipó­
teses, as razões éticas mencionadas explicam por que temos de entrar
em algum jogo de linguagem moral, mas não explicam em qual deles.
Tugendhat confere a esse problema a forma de um questionamento
genealógico. Após a perda da base tradicional da validação de sua m o­
ral em comum, os participantes têm de refletir juntos a respeito de exa­

28. Seel (1995), 203: “Embora à pergunta ‘ser moral para quê?’ possa ser dada
um a resposta bastante — ou apenas — preferencialmente fundamentada: porque ape­
nas o ser moral torna o m undo mais amistoso e abre a convivência solidária com os
outros; mas com este passo fundamentado preferencialmente nós aceitamos padrões
de com portam ento que de nenhum a forma são deduzíveis de orientações preferen­
cialmente fundamentadas.”(203)

34 A INCLUSÃO DO OUTRO
tamente quais normas morais eles deveríam se pôr de acordo. Nessa
questão ninguém pode reivindicar mais autoridade do que qualquer
outro; todos os pontos de vista para um acesso privilegiado à verdade
moral estão invalidados. O contrato social não tinha conseguido dar
uma resposta satisfatória ao desafio dessa situação, porque a partir de
um acordo orientado pelos interesses entre parceiros contratuais só pode
surgir, no melhor dos casos, um controle de comportamento social
imposto de fora para dentro, mas não uma concepção vinculatória a
respeito de um bem comum, nem muito menos a concepção de um
bem concebido universalisticamente. Tugendhat descreve a situação de
partida de modo semelhante à minha proposta. Os membros de uma
comunidade moral não demandam um controle de comportamento
social vantajoso para todos que possa ocupar o lugar da moral; eles não
querem substituir o jogo moral de linguagem como tal, mas apenas a
base religiosa de sua validação.
Esse questionamento leva à reflexão sobre as bases para o acordo
que, depois da religião e da metafísica, restaram como único recurso
possível para a fundamentação de uma moral da consideração igual
para todos: “Se o que é bom deixa de ser prescrito de forma transcen­
dente, o respeito pelos membros da comunidade, que passa a ser ilimi­
tado, ou seja, o respeito por todos os outros — por sua vontade e seus
interesses — é que, segundo parece, passa a fornecer os princípios da
bondade”. Ou para dizê-lo de modo mais marcante: a intersubjetividade
assim entendida passa a ocupar o lugar da prescrição transcendente (...).
Como são as obrigações mútuas (...) o que perfaz a forma de qualquer
moral, pode-se dizer também: na medida em que o conteúdo, ao qual
se referem as reivindicações, nada mais é do que o respeito por aquilo
que todos querem, agora o conteúdo corresponde à forma29.
Dessa forma Tugendhat chega ao princípio kantiano da generali­
zação a partir das condições simétricas da situação de partida, na qual
se confrontam as partes, destituídas de todos os seus privilégios e que,
nessa medida, estão em igualdade de condições para entrar num acor­
do sobre as normas fundamentais, que podem ser aceitas racional­
mente por todos os participantes30. É claro que ele não dá satisfações a

29. Tugendhat (1993), 87s.


30. Com maior clareza ainda em: E. Tugendhat, Gibt es eine moderne Moral?
(Ms. 1995).

U ma visão genealógica do teor cognitivo da moral 35


respeito de a “aceitabilidade racional” ganhar com isso outro sentido
do que aquele de que algo é “racional para mim ”. Se para as circuns­
tâncias da aceitação moral não houver nenhum a autoridade mais ele­
vada do que a boa vontade e a compreensão daqueles que estão se
entendendo a respeito das regras de sua convivência, então a escala de
medida para o julgamento dessas regras deve ser tirada da própria
situação dentro da qual os participantes gostariam de se convencer
mutuamente a respeito de suas opiniões e propostas. Na medida em
que eles aceitam entrar numa práxis de entendimento cooperativo,
também aceitam tacitamente a condição da consideração simétrica
ou uniforme dos interesses de todos. E como essa práxis só pode ser
bem-sucedida se todos e cada um estiverem dispostos a convencer os
outros e a se deixarem convencer por outros, todo participante sério
precisa examinar o que é racional para ele naquelas condições de consi­
deração simétrica e uniforme dos interesses. Mediante o recurso me­
tódico à possível intersubjetividade do entendimento m útuo (o qual,
segundo Rawls, por exemplo, a estrutura da situação primitiva é cons­
trangida a dar) os fundamentos pragmáticos ganham um sentido epis-
têmico. Com isso transcendem-se as cancelas da razão instrumental.
Um princípio de generalização, que não pode ser fundamentado a
partir da perspectiva dos interesses próprios (ou da própria concep­
ção do bem) serve como base para a validade da moral racional. Nós
só podemos nos assegurar desse princípio através de uma reflexão so­
bre as condições inevitáveis para uma formação imparcial de opinião.
Embora Gibbard analise tais condições como pressupostos prag­
máticos para os discursos normativos, ele os observa sob o ponto de
vista funcionalista da sua contribuição para um a coordenação social
dos atos. Em contraposição, Tugendhat insiste em que a anuência às
regras morais deve surgir da perspectiva dos próprios participantes;
contudo ele também nega o sentido epistêmico que essa anuência ga­
nha nas condições de discurso.

O não-cognitivismo atenuado parte do princípio de que os ato­


res só podem deixar que a razão prática afete seu arbítrio de um único
modo, a saber, por meio de reflexões que obedecem ao princípio da
racionalidade dos fins. Mas se, pelo contrário, a razão prática não mais

36 A INCLUSÃO DO OUTRO
se dissolve na razão instrumental, m uda a constelação de razão e von­
tade — e com isso o conceito da liberdade subjetiva. Então, a liberdade
não mais se esgota na capacidade de vincular o arbítrio às máximas da
inteligência, mas se manifesta na autovinculação da vontade pelo dis­
cernimento. “Discernimento” significa aqui que uma decisão pode ser
justificada com a ajuda de razões epistêmicas. Em geral, razões epistê-
micas sustentam a verdade de declarações assertivas; em situações prá­
ticas, a expressão “epistêmico” carece de um a explicação. Razões prag­
máticas referem-se às preferências e metas de uma pessoa. Em última
análise, quem decide a respeito desses “dados” é a autoridade epis-
têmica do próprio ator, que tem de saber quais são suas preferências e
metas. Uma reflexão prática só pode conduzir ao “discernimento” se
se estender para além do m undo do ator, de acesso subjetivamente
privilegiado, para um m undo intersubjetivamente compartilhado.
Assim a reflexão sobre experiências, práticas e formas de vida comuns
torna consciente um saber ético, do qual não dispomos graças apenas
à autoridade epistêmica da primeira pessoa.
A conscientização de algo implicitamente sabido não significa o
mesmo que a cognição de objetos ou fatos31. “Cognições” são contra-
intuitivas, enquanto os “discernimentos” obtidos pela reflexão explici­
tam um saber pré-teórico, organizam-no em contextos, examinam a
sua coerência e, através disso, também fazem a sua sondagem crítica32.
Os “discernimentos” éticos devem-se à explicação daquele saber que
os indivíduos comunicativamente socializados adquiriram na medida
em que cresceram para dentro de sua cultura. No vocabulário avalia­
dor e nas regras de aplicação das sentenças normativas sedimentam-
se as partes constitutivas mais gerais do saber prático de uma cultura.
À luz de seus jogos de linguagem impregnados de elementos de ava­
liação, os atores desenvolvem não apenas representações de si próprios
e da vida que gostariam de levar em geral; eles também descobrem em
cada situação traços de atração e de rejeição, os quais não podem en­
tender sem “ver” como devem reagir a eles33. Como sabemos intuitiva­

31. B. Williams, Ethics and the Limits o f Philosophy, London, 1985, cap. 8.
32. John Rawls fala neste contexto em ‘reflective equilibrium ’ [equilíbrio re­
flexivo].
33. McDowell insurge-se contra um a interpretação objetivista destas ‘salient
features’ [características salientes] de um a situação: “The relevant notion o f salience
cannot be understood except in terms of seeing something as a reason for acting which

U ma visão genealógica d o teor cognitivo da moral 37


mente o que é atraente ou repulsivo, certo ou errado, o que é relevante,
afinal, pode-se separar aqui o momento do “discernimento” do m oti­
vo racional para a ação. Trata-se de um saber utilitário intersubjetiva-
mente compartilhado, que se tornou corriqueiro no m undo vivido e
comprovou sua “praticidade”. Enquanto propriedade comum de uma
forma de vida cultural, ele goza de “objetividade”, graças à sua difusão
e aceitação social. Por isso, a reflexão prática que se apropria critica­
mente desse saber intuitivo precisa de uma perspectiva social.
Nós julgamos as orientações de valor, bem como a autocompreen-
são das pessoas ou grupos baseada em valores, a partir de pontos de
vista éticos, e julgamos os deveres, as normas e os mandamentos a par­
tir de pontos de vista morais. Vejamos primeiro as questões éticas, que
se colocam a partir da perspectiva da primeira pessoa. Do ponto de
vista da primeira pessoa do plural elas visam ao ethos comum: trata-se
de ver como nós, enquanto membros de uma comunidade moral, nos
entendemos a nós mesmos, quais serão os critérios segundo os quais
deveremos orientar nossas vidas, o que é o melhor para nós, a longo
prazo e na visão do todo. A partir da perspectiva da primeira pessoa
do singular, surgem questões semelhantes: quem sou eu e quem eu
gostaria de ser, como deveria levar minha vida. Tais reflexões existen­
ciais também se diferenciam das ponderações da prudência não ape­
nas pela generalização temporal e objetiva do questionamento: o que
é o melhor a longo prazo e visto como um todo. Aqui, a perspectiva da
primeira pessoa não significa a limitação egocêntrica às minhas pre­
ferências, mas garante a referência a um a história de vida que está sem­
pre engastada em tradições e formas de vida intersubjetivamente com­
partilhadas34. A atratividade dos valores, à cuja luz entendo a mim mes­
mo e a m inha vida, não se deixa esclarecer nos limites do m undo das
experiências subjetivas ao qual tenho acesso privilegiado. Pois minhas

silences all others”. [A relevante noção da saliência não pode ser entendida a não ser
em termos de ver algo como uma razão para agir, a qual silencia todas as outras. ]
McDowell, “Virtue and Reason”, Monist, 62, 1979, 345. Ele explica “discernimentos”
éticos a partir da interação entre, por um lado, a orientação da vida e a autoconsciência
de um a pessoa, e pelo outro, a sua compreensão de cada situação, impregnada de valo­
res. Essas análises ainda podem ser entendidas — para aquém do realismo — no sen­
tido de uma ética neo-aristotélica instruída por Wittgenstein.
34. Cf. J. McDowell, “Are Moral Requirements Hypothetical Imperatives?”, Pro-
ceedings o f the Aristotelían Society, supl. 52, 1978,13-29.

38 A INCLUSÃO DO OUTRO
preferências e metas não são mais algo dado, mas são elas mesmas
passíveis de discussão33. Dependendo de minha autoconsciência e por
meio da reflexão sobre aquilo que para nós, dentro do horizonte de nos­
so m undo compartilhado, tem um valor intrínseco, elas podem m u­
dar de um modo fundamentado.
Sob o ponto de vista ético nós esclarecemos, portanto, questões
clínicas de uma vida que está sendo bem-sucedida, ou melhor, que
não está indo pelo caminho errado, as quais se colocam no contexto
de determinada forma de vida ou de uma história de vida individual.
A reflexão prática é executada na forma de um auto-entendimento
hermenêutico. Ela articula valorações fortes, pelas quais orienta-se
minha autoconsciência. A crítica das auto-ilusões e dos sintomas de
uma forma de vida forçada ou alienada mede-se na idéia de uma vida
vivida de modo consciente e coerente. Aqui, a autenticidade de um
projeto de vida, analogamente à pretensão de veracidade de atos ex­
pressivos de linguagem, pode ser compreendida como uma pretensão
de validade de grau mais elevado3536.
O modo como sentimos nossa vida está mais ou menos determi­
nado pelo modo como nós mesmos nos entendemos. Por isso os dis­
cernimentos éticos sobre a interpretação dessa autocompreensão in­
tervém na orientação de nossa vida. Como discernimentos que vincu­
lam a vontade, eles provocam uma condução consciente da vida. Nisso
se manifesta a vontade livre no sentido ético. Do ponto de vista ético,
a liberdade de vincular meu arbítrio a máximas da prudência se trans­
forma na liberdade de decidir-me por uma vida autêntica37.
É claro que os limites dessa forma de ver ética aparecem logo que
entram em jogo questões a respeito da justiça, pois a partir dessa pers­
pectiva a justiça é rebaixada a um valor junto a outros valores. Obriga­
ções morais são mais importantes para uma pessoa do que para outra,
têm maior significado num contexto do que noutro. É certo que, tam ­
bém do ponto de vista ético, pode-se levar em conta a diferença semân­
tica entre vinculação ao valor e obrigação moral, dando certa prioridade

35. Cf. Charles Taylor, As fontes do self, São Paulo, Edições Loyola, 1997, parte I.
36. Também as teorias, por exemplo, colocam um a pretensão de validade “mais
elevada” ou mais complexa; elas não podem ser “verdadeiras” ou “falsas” no mesmo
sentido que cada uma das proposições delas deduzidas.
37. A exacerbação existencialista desta decisão para um a escolha radical confun­
de essa liberdade com um processo epistemicamente dirigido.

U ma visão genealógica do teor cognitivo da moral 39


a questões da justiça diante de questões do bem viver: “Ethical life itself
is important, but it can see that things other than itself are im portant...
There is one kind of ethical consideration that directly connects im-
portance and deliberative priority, and this is obligation”38. Mas en­
quanto as obrigações forem observadas exclusivamente do ponto de vis­
ta ético, não é possível fundamentar uma primazia absoluta do justo
diante do bom, que exprimiría o sentido categórico de validade dos de­
veres morais: “These kinds of obligation very often command the highest
deliberative priority... However, we can also see how they need not
always command the highest priority, even in ethically well disposed
agents”39. Enquanto a justiça for considerada parte integrante de cada
uma das concepções determinadas do bem, não haverá motivo para a
reivindicação de que em casos de colisão os deveres só possam ser so­
brepujados por deveres, os direitos só por direitos (como diz Dworkin).
Sem a primazia do que é justo em relação ao que é bom, também
não pode haver nenhum conceito eticamente neutro de justiça. Em so­
ciedades ideologicamente pluralistas, isso teria conseqüências desas­
trosas para a regulação de uma coexistência pautada na igualdade de
direitos. Em tal caso, a igualdade de direitos dos indivíduos e dos gru­
pos com identidades próprias somente poderia ser garantida segundo
escalas de medida que, por sua vez, são partes integrantes de uma con­
cepção do bem aceita por todos uniformemente. O mesmo vale, mutatis
mutandis, para uma regulação justa do trânsito internacional entre Es­
tados, do trânsito cosmopolita entre cidadãos do m undo e das rela­
ções globais entre as culturas. O que essa idéia tem de inverossímil mos­
tra por que os enfoques neo-aristotélicos não podem cumprir com o
conteúdo universalista de uma moral da atenção indistinta e da res­
ponsabilidade solidária por cada indivíduo. Todo projeto global de um
bem coletivo, vinculatório para todos, sobre cuja base poderia ser fun­
dada a solidariedade de todos os homens (inclusive as gerações vin­
douras) , defronta-se com um dilema. Uma concepção acabada do ponto

38. [“A vida ética em si é importante, mas ela pode ver que outras coisas além dela
mesma são im portantes... Há uma espécie de consideração ética que conecta direta­
mente importância e prioridade deliberativa, e ela é a obrigação.”) Williams (1985), 184s.
39. [“Estas espécies de obrigações muitas vezes com andam a mais elevada prio­
ridade deliberativa... Contudo, tam bém podemos ver como elas nem sempre preci­
sam com andar a mais elevada prioridade, mesmo em agentes eticamente bem dispos­
tos.”] Williams (1985), 187.

40 A INCLUSÃO DO OUTRO
de vista do conteúdo, suficientemente informativa, deve (sobretudo
com vistas à felicidade das gerações futuras) levar a um paternalismo
insuportável; uma concepção isenta de substância, distanciada de to­
dos os contextos locais, deve destruir o conceito do bem40.
Se pretendemos levar em consideração a presumida imparcia­
lidade dos julgamentos morais e a pretensão categórica de validade
das normas vinculatórias, temos de desatrelar a perspectiva horizontal
(dentro da qual são regradas as relações interpessoais) da perspectiva
vertical (a dos projetos individuais de vida), e tornar independente a
resposta a perguntas genuinamente morais. A pergunta abstrata so­
bre o que é do interesse uniforme de todos ultrapassa a pergunta ética
contextualizada a respeito do que é o melhor para nós. A intuição de
que as questões da justiça surgem de uma ampliação idealizadora do
questionamento ético continua, porém, fazendo sentido.
Se interpretarmos a justiça como aquilo que é igualmente bom
para todos, o “bem” contido na moral constitui uma ponte entre a
justiça e a solidariedade. Pois também a justiça entendida universalis-
ticamente exige que uma pessoa responda pela outra — e que, aliás,
cada um também responda pelo estranho, que formou a sua identida­
de em circunstâncias de vida totalmente diferentes e entende-se a si
mesmo à luz de tradições que não são as próprias. O bem na justiça
lembra que a consciência moral depende de determinada autocom-

40. M artin Seel (1995) esforça-se em encontrar tal conceito formal do bem. Mas
a idéia de uma determinação formal do bem, diferente da moral no sentido kantiano,
é um espeto de pau. A tentativa de Seel de explicar a constituição e as condições de
um a vida bem-sucedida não pode abrir mão da designação de bens fundamentais (se­
gurança, saúde, liberdade de ir e vir), de conteúdos (trabalho, interação, jogo e con­
templação) e de metas da condução da vida (autodeterminação com abertura para o
m undo). Essas são pressuposições e valorações antropológicas falíveis, que não apenas
são controvertidas de um a cultura para outra, mas que aqui, no diálogo intercultural,
permanecem controvertidas por bons motivos. Também uma compreensão não-criterial
de tal projeto das possibilidades humanas tem conseqüências paternalistas, mesmo
quando apenas pretende encam inhar conselhos bem-intencionados: “Mas se alguém
não quiser este bem? Teremos de dizer-lhe que está renunciando ao melhor”.(189) O
conteúdo manifesto de um a antropologia do bem, que for além do esclarecimento da
argumentação lógica das condições dos discursos hermenêuticos de auto-interpreta-
ção, fica preso de modo peculiar ao contexto de seu surgimento — como o demonstra
o exemplo de Heidegger, cuja ontologia existencial delata para qualquer leitor atento, a
partir da perspectiva de uma ou duas gerações, não apenas o jargão mas tam bém as
vantagens políticas de seu tem po (cf. R. Wolin, The Politics o f Being, New York, 1990).

U ma visão genealógica do teor cognitivo da moral 41


preensão das pessoas morais, que se sabem pertencentes à comunida­
de moral. A essa comunidade pertencem todos os que foram sociali­
zados numa forma de vida comunicativa qualquer. Indivíduos socia­
lizados, pelo fato de somente poderem estabilizar sua identidade em
condições de reconhecimento mútuo, são especialmente vulneráveis
em sua identidade e, por isso, dependentes de uma proteção especí­
fica. Eles têm de poder apelar para uma instância além da própria co­
munidade — G. H. Mead fala numa “ever wider community” [comu­
nidade sempre maior]. Expresso de modo aristotélico, em toda comuni­
dade concreta está esboçada a comunidade moral, por assim dizer como
seu “melhor eu”. Enquanto integrantes dessa comunidade, os indiví­
duos esperam uns dos outros uma igualdade de tratamento, que parte
do princípio de que cada pessoa considere cada um a das outras como
“um dos nossos”. A partir dessa perspectiva, justiça significa simulta­
neamente solidariedade.
Neste ponto, é necessário evitar um mal-entendido, a saber, o de
que a relação entre justo e bom é igual à que existe entre forma e con­
teúdo: “O conceito formal do bem nomeia o cerne material de uma
moral universalista — aquilo de que trata a consideração moral”41. Essa
concepção revela o olhar seletivo de um liberalismo que deixa que o
papel da moral se reduza à proteção do bem individual — como se se
tratasse da essência dos direitos negativos de liberdade — e erige por­
tanto a moral sobre a infra-estrutura da ética42. Então, esta procura
por aquilo de que se trata na moral — ou seja o conhecimento dos “ma­
les e bens” que “estão em jogo” nos conflitos morais, de modo igual
para todos — deveria preceder à moral como magnitude fixa. Antes
de qualquer reflexão moral, os participantes deveríam saber o que é
uniformemente bom para todos — ou, pelo menos, eles deveríam pe­
dir emprestado aos filósofos um conceito do bem formal. Contudo,
não existe quem possa determinar simplesmente, a partir da perspec­
tiva do observador, o que uma pessoa qualquer deve considerar como
bom. Na referência a uma pessoa “qualquer” está embutida uma abs­
tração que também vai além das possibilidades do filósofo43. É certo

41. Seel (1995), 223.


42. Q uem apresenta um a arquitetura teórica semelhante é R. Dworkin, Founda-
tions o f Liberal Equality, The Tanner Lectures on H um an Values, XI, Salt Lake City, 1990.
43. Cf. nota 40.

42 A INCLUSÃO DO OUTRO
que a moral pode ser entendida como um dispositivo de proteção con­
tra a vulnerabilidade específica das pessoas. Mas o saber a respeito da
suscetibilidade constitutiva de um ser que só pode formar sua identi­
dade na externação em meio a relações interpessoais e estabilizá-la em
relações de reconhecimento intersubjetivo emana da familiaridade
intuitiva com as estruturas gerais de nossa própria forma de vida co­
municativa. É um saber geral profundamente enraizado, que se apre­
senta enquanto tal apenas em casos de desvios clínicos — a partir de
experiências de como e quando a identidade de um indivíduo socia­
lizado corre perigo. O recurso a um saber dessa espécie, determinado
por tais experiências negativas, não traz o peso da pretensão de indi­
car positivamente o que significa uma vida boa. Só os próprios envol­
vidos, a partir da perspectiva dos que participam de consultas prá­
ticas, podem ter clareza a respeito do que em cada caso é uniforme­
mente bom para todos. O bem relevante do ponto de vista moral apre-
senta-se caso a caso a partir da perspectiva ampliada do nós de uma
comunidade que não exclui ninguém. Aquilo que de bom é subsumi-
do no justo é a forma de um ethos intersubjetivo compartilhado en­
quanto tal e é, com isso, a estrutura da pertença a uma comunidade,
que, aliás, livrou-se das amarras de uma comunidade exclusiva.
Essa correlação entre solidariedade e justiça inspirou Kant a ex­
plicar o ponto de vista segundo o qual as questões a respeito da justiça
podem ser julgadas de modo imparcial, a partir do modelo da autole-
gislação de Rousseau: “De acordo com ela todo ser racional deve agir
como se, através de suas máximas, fosse um membro legislador no
reino geral dos fins”44. Kant fala de um “reino dos fins” porque cada
um de seus membros não se contempla a si mesmo e a todos os outros
como um mero meio, mas sempre também como um “fim em si mes­
mo”. Enquanto legislador, ninguém é súdito da vontade de um estra­
nho; mas ao mesmo tempo cada membro está submetido às leis que a
si próprio outorga, assim como todos os outros. Na medida em que
Kant substitui a figura de direito privado do contrato pela figura de
direito público da legislação republicana, ele pode juntar num só os
dois papéis da moral, separados do ponto de vista do direito: o papel
do cidadão que participa da legislação e o do indivíduo privado, sub­

44. Kant, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Werke, (Weischedel), Vol. IV,
72 [ed. br.: Fundamentação da metafísica dos costumes, Lisboa, Edições 70,1995],

U ma visão genealógica d o teor cognitivo da moral 43


metido às leis. A pessoa moralmente livre tem de poder compreen-
der-se, simultaneamente, como autora dos mandamentos éticos aos
quais está submetida enquanto destinatário. Por outro lado, isso é
possível apenas se essa mesma pessoa exerce a competência legislativa
da qual meramente “participa” não de forma arbitrária (no sentido de
uma visão positivista do direito), mas em consonância com a consti­
tuição de uma comunidade, cujos cidadãos se governam a si mesmos.
E lá só podem reger tais leis que poderiam ter sido decididas por “cada
um para todos e por todos para cada um ”.

Uma lei é válida no sentido moral quando pode ser aceita por
todos, a partir da perspectiva de cada um. Como apenas as leis “gerais”
cumprem com a condição de regrar uma matéria no interesse unifor­
me de todos, é nesse momento de capacidade de generalização dos
interesses respeitados pela lei que a razão prática se faz valer. Logo,
agindo como um legislador democrático, passa a assumir o ponto de
vista moral a pessoa que consulta a si mesma para saber se a praxe que
resultaria do respeito generalizado de uma norm a cogitada hipoteti­
camente poderia ser aceita por todos os potencialmente envolvidos
enquanto legisladores potenciais. No papel de co-legislador, cada pes­
soa participa de uma empreitada cooperativa e aceita, com isso, uma
perspectiva intersubjetivamente ampliada, a partir da qual se pode
examinar se um a norma que é objeto de discussão pode ser conside­
rada generalizável segundo o ponto de vista de todos os participantes.
Quando se dá essa cogitação, são considerados também motivos prag­
máticos e éticos, que não perdem sua relação interna com a situação
de interesses e com a autoconsciência de cada pessoa individual. Con­
tudo, esses motivos relativos aos atores não contam mais como m oti­
vos e orientações de valor de pessoas individuais, mas como contri­
buições epistêmicas para um discurso de exame das normas, realiza­
do com o intuito do m útuo entendimento. Como uma praxe legislati­
va só pode ser exercida em comum, não é mais suficiente a regra de
ouro do uso monológico e egocêntrico desses testes de generalização.
As razões morais têm um modo de vincular o arbítrio diferente
das razões pragmáticas ou éticas. No momento em que a autovincula-
ção da vontade assume a forma da autolegislação, vontade e razão se

44 A INCLUSÃO DO OUTRO
interpenetram integralmente. Por isso, Kant só reconhece como “livre”
a vontade autônoma, determinada pela razão. Só age livremente aquele
que permite que sua vontade seja determinada por sua compreensão
daquilo que todos poderíam desejar. “Só um ser racional tem a capa­
cidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princí­
pios, ou uma vontade. Como para a dedução das ações a partir das leis
é necessária a razão, a vontade não é outra coisa do que razão prática”45.
Certamente todo ato de autovinculação da vontade exige da razão prá­
tica razões para que ocorra; mas, enquanto ainda entrarem em jogo
determinações subjetivamente casuais e a vontade não tiver apagado
todos os momentos da coação, a vontade não será realmente livre.
A normatividade que nasce per se da capacidade de autovincu­
lação da vontade ainda não tem um sentido moral. Quando um agen­
te se apropria de regras técnicas da habilidade ou de conselhos prag­
máticos da prudência, leva sua arbitrariedade a submeter-se à razão
prática; as razões para isso, no entanto, têm força determinante ape­
nas com vista a preferências e fins. Ainda que de forma diversa, isso
vale tam bém para razões éticas. Embora a autenticidade das vincula-
ções a valores ultrapasse o horizonte da racionalidade finalista mera­
mente subjetiva, as valorações severas só ganham força objetiva e ca­
paz de determ inar a vontade com vista a experiências práticas e for­
mas de vida casuais, ainda que partilhadas intersubjetivamente. Nos
dois casos, os imperativos e recomendações correspondentes só po­
dem reclamar para si uma validade condicionada: só valem sob o pres­
suposto de situações de interesse subjetivamente dadas, ou sob o
pressuposto de tradições intersubjetivamente partilhadas.
Para alcançar uma validação incondicionada ou categórica, obri­
gações morais precisam derivar-se de leis que emancipem a vontade
das determinações casuais (caso a vontade esteja comprometida com
essas determinações) e que, por si mesmas, se mesclem à razão prática.
Pois à luz de normas como essas, fundamentadas sob o ponto de vis­
ta moral, também os fins, preferências e orientações de valor casuais
que exercem coações externas sobre a vontade podem ser subme­
tidas a um julgamento crítico. Razões podem levar até mesmo a von­
tade heteronômica a submeter-se a máximas; mas a autovinculação
continua presa a situações de interesse dadas por razões pragmáticas

45. Kant, Werke, vol. IV, 41.

U ma visão genealógica do teor cognitivo da moral 45


e éticas, e a orientações de valor atreladas a contextos determinados.
Só mesmo quando essas tiverem sido testadas sob o ponto de vista m o­
ral em sua compatibilidade com os interesses e orientações de valor
de todos os demais, é que a vontade se terá libertado das determinações
heteronômicas46.
A confrontação abstrata de autonomia e heteronomia certamen­
te restringe o olhar que se lança sobre o sujeito individual. Kant, em
razão de suas suposições transcendentais subjacentes, atribui a livre
vontade a um Eu inteligível localizado no reino dos fins. Por isso, ao
tomar a autolegislação, que em sentido político original é um empre­
endimento cooperativo do qual o indivíduo apenas participa47, Kant
volta a situá-la na competência exclusiva do indivíduo. Não é por aca­
so que o imperativo categórico dirige-se a um a segunda pessoa do
singular, dando a impressão de que cada um por si, in foro interno,
pode submeter as normas a prova, segundo convém. Mas, de fato, a
aplicação reflexiva do teste de generalização exige uma situação de reu­
nião em conselho, em que cada um se vê coagido a acatar a perspecti­
va de todos os demais, para comprovar se a norma, do ponto de vista
de cada um, poderia ser almejada por todos. Essa é a situação de um
discurso racional que visa ao entendimento m útuo e do qual partici­
pam todos os envolvidos. Um sujeito que julgue algo solitariamente,
mesmo ele confere um peso maior a essa idéia do entendimento m ú­
tuo discursivo do que um teste de generalização a ser aplicado.
É mais provável que Kant tenha errado no encurtamento indivi­
dualista de um conceito de autonomia de cunho intersubjetivo do que
em um a distinção insuficiente entre os questionamentos ético e prag­
mático48. Quem leva a sério as questões do auto-entendimento ético
choca-se com a autocompreensão e a compreensão de m undo histo­
ricamente variáveis, próprias a indivíduos e grupos. Kant, que como
filho do século XVIII ainda refletia a-historicamente, salta por sobre
essa camada de tradições em que se formam identidades. Tacitamen-
te, ele parte da idéia de que, na formação de juízos morais, qualquer
um, em virtude da própria fantasia, é capaz de se pôr suficientemente
na situação de qualquer outro. Contudo, quando os envolvidos não

46. Isso é desconsiderado por Chr. M. Korsgaard, The Sources ofNormativity. The
Tanner Lectures on Humati Values, n. XV (1994), pp. 88ss.
47. Cf. Kant, vol. IV, p. 69.
48. O mesmo se pode dizer de Tugendhat, cf. IV, 2, acima.

46 A INCLUSÃO DO OUTRO
podem mais contar com um acordo prévio sobre condições de vida e
situações de interesse mais ou menos homogêneas, o ponto de vista
moral só pode se realizar sob condições de comunicação que garan­
tam que cada um, também da perspectiva de sua própria autocom-
preensão e compreensão de mundo, possa testar a aceitabilidade de
um a norm a elevada a práxis comum. O imperativo categórico con­
tém assim uma forma de leitura concernente à teoria do discurso. Em
seu lugar, surge o princípio discursivo “D”, segundo o qual só podem
requerer validação normas que possam contar com a concordância
de todos os envolvidos como partícipes de um discurso prático49.
Partimos da questão genealógica sobre ainda ser possível justifi­
car ou não o teor cognitivo de uma moral do respeito indistinto e da
responsabilidade solidária por toda e qualquer pessoa após a perda
de valor do fundamento religioso de sua validação. Por fim, sob a
mesma perspectiva, gostaria de submeter a prova o resultado que al­
cançamos pela interpretação intersubjetiva do imperativo categórico.
Para tanto é preciso separarmos dois problemas. De um a parte, é pre­
ciso esclarecer quais são, afinal, os elementos das instituições origi­
nais que a ética discursiva põe a salvo no universo desenganado das
tentativas de fundamentação pós-metafísicas, e em que sentido ainda
se pode falar de uma validação cognitiva de juízos e posicionamentos
morais (VII). De outra parte, é precípuo perguntar se um a moral que
parte da reconstrução racional de instituições tradicionais, inicial­
mente religiosas, não permanece conteudisticamente presa a seu con­
texto original, não obstante seu caráter estimativo, ou seja, estar em
perm anente processo de avaliação (VIII).

Ao perderem a autoridade epistêmica da posição divina, os m an­


damentos morais perdem tam bém sua justificação tanto soterioló-
gica quanto ontoteológica. A ética discursiva também tem um preço
a pagar por isso; ela não pode nem conservar o teor moral íntegro das
instituições religiosas (1), nem preservar o sentido realista de valida­
ção próprio às normas morais (2).

49. Cf. J. Habermas, “Diskursethik”. In: Moralbewufitsein und kommunikatives


Handeln, Frankfurt am Main, 1983, p. 103 [ed. br.: Consciência moral e agir comunica­
tivo, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989].

U ma visão genealógica d o teor cognitivo da moral 47


(1) Se a práxis moral, por meio da pessoa do Deus salvador — e
de sua função no plano salvífico — , deixa de estar entretecida com a
expectativa de salvação pessoal e com uma mudança de vida marcada
de maneira exemplar, decorrem daí duas conseqüências lastimáveis.
De um lado, o saber moral desprende-se dos motivos subjetivos da
ação; de outro lado, o conceito de moralmente correto torna-se diver­
so da concepção de um bem-viver desejado por Deus.
A ética discursiva ordena diversas formas de argumentação a
questões éticas e morais, a saber, discursos de auto-entendimento de
um lado, discursos de fundamentação normativa (ou de aplicação),
de outro. Com isso, no entanto, ela não reduz a moral a tratamento
indistinto, mas procura fazer jus a dois aspectos: à justiça e à solidarie­
dade. Um comum acordo almejado por via discursiva depende simul­
taneamente do “sim” ou do “não” insubstituível de cada um dos indi­
víduos, bem como da superação da perspectiva egocêntrica, indisso­
ciável de todos os envolvidos em uma práxis argumentativa pautada
pelo convencimento recíproco. Quando o discurso, em virtude de suas
qualidades pragmáticas, possibilita uma formação de vontade discer-
nente e garantidora tanto do “sim” quanto do “não”, então os posicio­
namentos racionalmente motivados, afirmativos ou negativos, podem
dar espaço aos interesses de cada indivíduo, sem que se rompa o teci­
do social que já de antemão une os participantes voltados ao acordo
m útuo em sua atitude transubjetiva.
Por certo, o desacoplamento da moral em relação às questões da
vida bem-sucedida tem também seu lado motivacional. Como não
há nenhum substituto profano para a expectativa de salvação, perde-
se o motivo mais forte para o seguimento de m andam entos morais.
Ao ver nos discursos racionais a encarnação do ponto de vista moral,
a ética discursiva reforça ainda mais a separação intelectualista entre
o juízo moral e a ação. O discernimento a que se chega discursiva-
mente não assegura nenhum a transferência para a ação. Com certeza
os juízos morais nos dizem o que devemos fazer; e boas razões afe­
tam nossa vontade. Isso se revela na má consciência que nos “aflige”
quando agimos contra nosso discernimento. Mas o problema da fra­
queza da vontade também revela que o discernimento moral se deve
à pouca força das razões epistêmicas, sem constituir ele mesmo um
motivo racional. Quando sabemos o que é moralmente correto fazer,
até sabemos que não há qualquer boa razão — epistêmica — para

48 A INCLUSÃO DO OUTRO
agir de outra maneira. Isso não impede, porém, que outros motivos
acabem sendo mais fortes50.
Com a perda da base validativa sotereológica, altera-se em espe­
cial o sentido da obrigatoriedade normativa. A própria diferenciação
entre dever e vinculação de valor, entre o que é moralmente certo e
eticamente almejável, aguça a validação do dever tornando-a em nor-
matividade, a que corresponde tão-somente a formação imparcial de
juízos. Outra conotação deve-se à mudança da perspectiva, de Deus
para o homem. “Validade” significa agora que normas morais conta­
rão com a concordância de todos os envolvidos, quando esses, em dis­
cursos práticos, testarem em conjunto se a respectiva práxis vem ao
encontro do interesse de todos em igual medida. Nessa concordância
expressam-se duas coisas: a razão falível dos sujeitos em conselho, que
se convencem mutuamente de que uma norma introduzida hipote­
ticamente merece reconhecimento, e a liberdade dos sujeitos legislado­
res, que se entendem ao mesmo tempo como autores das normas a que
se submetem como destinatários. No sentido validativo das normas m o­
rais, ficam vestígios tanto da falibilidade do espírito humano que des­
cobre, quanto da construtividade do espírito humano que projeta.
(2) O problema sobre em que sentido juízos e posicionamentos
morais podem requerer validade revela-se ainda sob outro aspecto
quando trazemos à memória as asserções essenciais com que os m an­
damentos foram justificados onto-teologicamente, no passado, como
partes de um mundo racionalmente estabelecido. Enquanto foi possí­
vel manifestar o teor cognitivo da moral por meio de asserções descri­
tivas, os juízos morais foram falsos ou verdadeiros. Porém, desde que o
realismo moral não se deixa mais defender pela evocação da metafísica
da criação e do direito natural (ou de sucedâneos para eles), a valida­
ção da obrigatoriedade de asserções morais não pode mais ser assimi­
lada pela validação da verdade de asserções descritivas. Alguns dizem
como são as coisas no mundo, outros dizem o que devemos fazer.
Se supomos que sentenças só podem ser válidas no sentido de se­
rem “verdadeiras” ou “falsas”, e que se deve entender a “verdade” no sen­
tido de uma correspondência entre sentenças e objetos ou fatos, tor­

50. Daí resulta a necessidade de que se complemente a moral, apenas fracamente


motivada, com um Direito coercitivo e positivo; cf. J. Habermas, Faktizitat und Geltung,
Frankfurt am Main, 1992, pp. 135ss.

U ma visão genealógica d o teor cognitivo da moral 49


na-se problemática toda reivindicação de validação feita em favor de
uma asserção não-descritiva. De fato, o ceticismo moral apóia-se prin­
cipalmente na tese de que asserções normativas não podem ser verda­
deiras ou falsas, e de que também não podem, portanto, ser funda­
mentadas, dada a inexistência de algo como objetos ou fatos morais.
Na verdade, somam-se aí uma compreensão de mundo tradicional, como
totalidade de objetos e fatos, uma compreensão de verdade baseada na
teoria das correspondências e uma compreensão de fundamentação de
cunho semântico. Comentarei essas premissas duvidosas de forma
breve e em ordem inversa51.
De acordo com a concepção semântica, um a sentença tem fun­
damento quando se pode deduzi-la de sentenças de base, segundo
regras essenciais válidas; para tanto, distingue-se um a classe de sen­
tenças de base, segundo determinados critérios (lógicos, gnosiológi-
cos ou psicológicos). Mas a assunção fundamentalista de uma base
como essa, acessível de forma imediata à percepção ou ao espírito,
não resistiu à inspeção lingüístico-crítica a que se submeteu a cons­
tituição holística da linguagem e da interpretação; toda e qualquer
fundamentação precisa ao menos partir de um contexto ou de uma
compreensão da circunstância pré-entendidos52. Por isso recomen-
da-se conceber a fundamentação de forma pragmática, como uma
práxis de justificação pública em que, para solver reivindicações de
validação, apresentam-se razões. Com isso, é preciso pôr em discus­
são os próprios critérios de racionalidade que distinguem “razões”
de “boas razões”. É por isso, afinal, que recai sobre as próprias quali­
dades rotineiras do processo argumentativo o ônus de elucidar por
que os resultados alcançados conforme os procedimentos de rotina
têm a seu favor a suposição de validade. A constituição comunicativa
de discursos racionais, por exemplo, pode cuidar de que se garanta
espaço a todas as contribuições relevantes e de que apenas a compul­
são não coerciva do melhor argumento determine o “sim” ou o “não”
dos participantes53.

51. Para o que segue cf. J. Heath, Morality and Social Action, tese de doutoramento
na Northwestern University, 1995, pp. 86-102.
52. Cf. D. Davidson, Wahrheit und Interpretation, Frankfurt am Main, 1986.
53. Cf. J. Haberm as, “Exkurs zur A rgum entationstheorie”. In: Theorie des
kommunikativen Handelns, Frankfurt am Main, 1981, vol. 1, pp. 44-71; e, do mesmo
autor, 1992, pp. 276ss.

50 A INCLUSÃO DO OUTRO
O plano pragmático para a fundamentação abre caminho para
um conceito epistêmico de verdade que tem por tarefa oferecer uma
saída à teoria das correspondências. Com o predicado de verdade re-
ferimo-nos ao jogo de linguagem da justificação, ou seja, da solvência
pública das reivindicações de validação. Por outro lado, não se deve
igualar “verdade” com fundamentabilidade — warranted assertibility.
A utilização “cautelar” do predicado — ‘p’ pode estar muito bem fun­
damentado e mesmo assim não ser verdadeiro — alerta-nos para a
diferença semântica entre “verdade” como qualidade inalienável das
asserções e “aceitabilidade racional” como qualidade das declarações,
mas condicionada pelo contexto54. Essa diferença pode ser entendida
no horizonte das justificações possíveis como a distinção entre “justi­
ficado em nosso contexto” e “justificado em qualquer contexto”. De
nossa parte, podemos fazer jus a essa diferença por meio de uma idea­
lização atenuada de nossos processos argumentativos — se concebi­
dos como passíveis de prosseguimento. À medida que afirmamos ‘p’
e que reivindicamos verdade para ‘p’, assumimos — embora conscien­
tes da falibilidade — a obrigação de defender ‘p’ contra todas as obje-
ções possíveis55.
Nesse contexto, interessa-me muito menos a complexa relação
entre verdade e justificação do que compreender o conceito de ver­
dade — já depurado pelas conotações de correspondência — como um
caso especial de validade, enquanto se introduz esse conceito geral de
validade referenciado à solvência discursiva de reivindicações de vali­
dação. Com isso, abre-se um espaço conceituai em que se pode abrigar
o conceito de validade normativa, e mais especialmente de validade
moral. A correção de normas morais (ou de asserções normativas ge­
rais) e de m andam entos singulares pode ser entendida por analogia
à verdade de sentenças assertivas. O que vincula os dois conceitos de
validação é o procedimento da solvência discursiva das reivindica­

54. R. Rorty, “Pragmatism, Davidson and Truth”. In: E. LePre (org.). Truth and
Interpretation, Londres, 1986, pp. 264ss.
55. O conceito da “solvibilidade discursiva”, reativo, referente não a estados
ideais, mas ao enfraquecim ento de restrições potenciais, aproxima-se do conceito de
“superassertibility”: C. Wright, Truth and Objectivity, Cambridge, 1992, pp. 33ss. So­
bre a crítica a meu conceito anterior de verdade, ainda orientado por Peirce, v. A.
Wellmer, Ethik und Dialog, Frankfurt am Main, 1986, pp. 102 ss; cf. ainda Wingert,
1993, pp. 264ss.

U ma visào genealógica d o teor cognitivo da moral 51


ções de validação correspondentes. O que os separa é a referência ao
m undo social ou ao m undo objetivo, respectivamente.
O m undo social que (como totalidade legitimamente regulada
das relações interpessoais) só é acessível com base na perspectiva do
participante se constitui historicamente de forma instrínseca e, por­
tanto (se assim o quisermos), de form a ontologicamente diversa do
m undo objetivamente descritível d a perspectiva do observador56. O
m undo social está entrelaçado com as intenções e opiniões, com a prá-
xis e a linguagem de seus integrantes. Isso vale de modo semelhante
para as descrições do m undo objetivo, mas não para ele mesmo. Por
isso, o significado da solvência discursiva de reivindicações de verda­
de difere do significado das reivindicações morais de validação: em
um dos casos, o comum acordo discursivamente alcançado declara
terem sido cumpridas as condições de verdade de uma sentença asser­
tiva, interpretadas como condições de afirmabilidade; no outro caso,
o comum acordo discursivamente alcançado fundamenta a reconhe-
cibilidade de um a norma e colabora assim, ele mesmo, para o cum ­
primento de suas condições de validade. Se a aceitabilidade racional
apenas indica a verdade de sentenças assertivas, ela presta uma contri­
buição constitutiva para a validação de normas morais. No discerni­
mento moral, construção e descoberta se entrelaçam de forma diversa
da que ocorre no conhecimento teórico.
É o ponto de vista moral que escapa a nosso desígnio e se impinge
a nós, e não um a ordem moral suposta, cuja existência como que in­
dependería de nossas descrições. Não foi o m undo social em si que
nos escapou, mas as estruturas e procedimentos de um processo argu-
mentativo que se presta tanto à criação quanto à descoberta das normas
de um convívio regulado com retidão. O sentido construtivista de uma
formação de juízos morais concebida segundo o modelo da autole-
gislação não se pode perder, mas ele tampouco pode destruir o sen­
tido epistêmico das fundamentações morais57.

56. A partir disso, a propósito, explica-se a carência de complementação dos dis­


cursos morais por discursos de aplicação; cf. K. Günther, Der Sinn fü r Angemessenheit,
Frankfurt am Main, 1998; quanto a isso, v. J. Habermas, 1992, pp. 141s.
57. Cf. J. Rawls, “Kantian Constructivism in Moral Theory”, Journal ofPhiloso-
phy, set. 1980, pp. 519.

52 A INCLUSÃO DO OUTRO
A ética discursiva justifica o teor de uma moral do respeito indis­
tinto e da responsabilidade solidária por cada um. Certamente, ela só
chega a isso pela via da reconstrução racional dos conteúdos de uma
tradição moral abalada em sua base validativa religiosa. Se a maneira
de ler o imperativo categórico assumida pela teoria discursiva perm a­
necesse atrelada a essa tradição da origem, essa genealogia se interpo­
ria ao objetivo de comprovar o teor cognitivo dos juízos morais em
geral. Ainda falta uma fundamentação, a partir da teoria moral, do
próprio ponto de vista moral.
Na verdade, o princípio discursivo responde ao constrangimento
que acomete os membros de comunidades morais aleatórias quando
estes, durante a transição para sociedades modernas, pluraristas em sua
visão de mundo, incorrem no dilema de continuar, como antes, discu­
tindo sobre juízos e posicionamentos morais munidos de razões, a des­
peito de já ter desmoronado seu consenso substancial de fundo no que
concerce às normas morais subjacentes. Tanto em nível global quanto
dentro da própria sociedade a que pertencem, essas pessoas envolvem-
se em conflitos de conduta que elas mesmas, muito embora seu ethosjá
esteja em ruínas, ainda entendem como conflitos morais, e portanto
solúveis a partir de certa fundamentação. O cenário a seguir não retrata
nenhum “estado primordial”, mas sim um percurso estilizado de m a­
neira ideal e tipificada, tal como ele poderia dar-se sob condições reais.
Tomo como ponto de partida que os envolvidos pretendem so­
lucionar seus conflitos sem violência ou acertos ocasionais, mas sim
através de um acordo mútuo. Assim, propõe-se de saída a tentativa de
estabelecer um conselho e desenvolver, sobre uma base profana, uma
autocompreensão ética comum a todos. Sob as condições de vida di­
versificadas das sociedades pluralistas, porém, uma tentativa como essa
está fadada ao fracasso. Os envolvidos aprendem que, ao se certifica­
rem criticamente de suas fortes convicções valorativas, ainda preser­
vadas na prática, são constatadas concepções divergentes sobre o que
seja o bem. Suponhamos que insistam, ainda assim, em sua intenção
de chegar a um acordo mútuo, e que não queiram simplesmente subs­
tituir o convívio moral já ameaçado por um modus vivendi qualquer.
Em face da debilidade de um acordo substancial sobre os conteú­
dos das normas, os envolvidos vêem-se abandonados a uma circuns­

U ma visão genealógica do teor cognitivo da moral 53


tância até certo ponto neutra, na qual cada um deles partilha uma
forma de vida qualquer, que é no entanto comunicativa e está estru­
turada por meio de um acordo m útuo lingüístico. Já que processos
de acordo m útuo e formas de vida como esses têm certos aspectos
estruturais em comum, os envolvidos poderíam perguntar-se se há
aí conteúdos normativos que ofereçam um a base para orientações
em comum. Teorias alinhadas à tradição de Hegel, Hum boldt e G.
H. Mead percorreram vestígios como esses e demonstraram que con­
dutas comunicativas estão entrelaçadas com suposições recíprocas,
que formas de vida comunicativas estão entrelaçadas com relações
recíprocas de reconhecimento, e que elas apresentam, portanto, um
conteúdo norm ativo58. Depreende-se dessas análises que a moral
extrai, da form a e da estrutura perspéctica da socialização intersub-
jetiva intocada, um sentido genuíno e dependente do que é indivi­
dualmente bom 59.
Qualidades de formas de vida comunicativas certamente não
são suficientes para fundam entar o porquê da transgressão de uma
orientação particularista de valores por integrantes de um a com uni­
dade histórica determinada, nem o porquê de eles deverem integrar-
se a relações de reconhecimento totalm ente simétricas e ilimitada­
mente inclusivas no contexto de um universalismo igualitário. Por
outro lado, um a postura universalista preocupada em evitar falsas
abstrações precisa aproveitar discernimentos proporcionados pela
teoria da comunicação. Do fato de que as pessoas só se individuali­
zam pela via da integração a um a sociedade resulta que a deferência
moral vale tanto para o indivíduo irrepresentável quanto para quem
integra a sociedade60; portanto a justiça vincula a solidariedade. O
tratam ento igual vale para desiguais como que conscientes de sua
pertença em comum. O aspecto segundo o qual pessoas são iguais a
todas as demais pessoas não pode ser validado à custa de outro as­
pecto, segundo o qual elas também são como indivíduos absoluta­

58. Cf. A. Honneth. Kampf und Anerkennung, Frankfurt am Main, 1992; R. Forst,
Kontexte der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1994.
59. Cf. L. Wingert, 1984, pp. 295ss. Sobre a estrutura perspectória da ação orien­
tada ao acordo mútuo, v. o artigo que intitula J. Habermas, 1983, pp. 127ss., em espe­
cial pp. 144-152.
60. As implicações desse duplo aspecto foram elaboradas energicamente por
Wingert, 1993.

54 A INCLUSÃO DO OUTRO
mente diferentes de todos os outros61. 0 respeito reciprocamente equâ-
nime por cada um, exigido pelo universalismo sensível a diversifica­
ções, é do tipo de um a inclusão não-niveladora e não-apreensória do
outro em sua alteridade.
Mas como justificar afinal a transição para uma moral pós-tradi-
cional? As obrigações enraizadas na ação comunicativa e tradicio­
nalmente ajustadas a ela não vão por si sós62 para além dos limites da
família, do clã, da cidade ou da nação. É diferente, porém, com a for­
ma reflexiva da ação comunicativa: argumentações apontam per separa
além de todas as formas particulares de vida. Pois, nos pressupostos
programáticos de discursos ou de conselhos racionais, o teor norm a­
tivo de suposições empreendidas na ação comunicativa é generalizado,
abstraído e descingido, ou seja, é estendido a uma comunidade que
insere e que, em princípio, não exclui nenhum sujeito capaz de falar e
agir, desde que esteja em condições de dar contribuições relevantes.
Essa idéia mostra a saída daquela situação em que os envolvidos per­
deram o suporte ontoteológico e precisam criar com base em si mes­
mos as próprias orientações normativas. Tal como mencionado, os
envolvidos só podem recorrer às coisas que têm em comum e das quais
dispõem naquele momento. Depois do último fracasso, essas coisas em
comum ficaram reduzidas à provisão de qualidades formais disponí­
veis na situação de conselho, que podem ser partilhadas performativa-
mente por seus integrantes. Todos, afinal, já estão envolvidos no em ­
preendimento cooperativo de um conselho reunido na prática.
Essa é uma base muito frágil, mas a neutralidade conteudística
de sua subsistência comum pode representar também uma chance em
face do constrangimento ocasionado pelo pluralismo de cosmovisões.
Haveria perspectiva de encontrar um equivalente para a fundamenta­
ção conteudística-tradicional de um comum acordo normativo básico,
caso a própria forma comunicacional em que se cumprem as reflexões
práticas comuns redundasse em um aspecto sobre o qual fosse possí­
vel fundamentar normas morais e que, por ser imparcial, fosse con­
vincente para todos os envolvidos. O “bem transcendente” que falta

61. Por isso, para se cum prir a condição de imparcialidade, não basta que al­
guém isento pondere o bem e o mal em jogo para uma pessoa “qualquer”; posição
diversa é a de Tugendhat, 1993, p. 353.
62. Cf. Seel, 1995, p. 204.

U ma visão genealógica d o teor cognitivo da moral 55


só pode ser compensado de forma “imanente”, com base no caráter
inerente da práxis de reuniões em conselho. Penso que, a partir daqui,
há três passos para se chegar a uma fundamentação do ponto de vista
moral, no âmbito da teoria moral.
(a) Se a práxis de reuniões em conselho é, ela mesma, o único
expediente possível para o ponto de vista do julgamento imparcial de
questões morais, então a referência a conteúdos morais precisa ser
substituída pela referência auto-remissiva à forma dessa práxis. Justa­
mente essa compreensão da situação é que traz ‘D’ ao ponto: só po­
dem aspirar por validade as normas que puderem merecer a concor­
dância de todos os envolvidos em discursos práticos. Diante disso, a
“concordância” ensejada sob as condições discursivas assume o signi­
ficado de um comum acordo motivado por razões epistêmicas; não se
pode entendê-la como um acerto qualquer motivado racionalmente a
partir de uma visão egocêntrica. Por outro lado, o princípio discursi­
vo deixa em aberto o tipo de argumentação, ou seja, o caminho pelo
qual se pode visar a um comum acordo discursivo. Com ‘D’ não se
supõe de saída que uma fundamentação de normas morais seja se­
quer possível fora do contexto de um comum acordo substancial.
(b) O princípio ‘D’, introduzido de forma condicional, indica a
própria condição a ser cumprida por normas válidas, caso elas possam
ser fundamentadas. Por ora, então, cabe esclarecer o conceito de nor­
ma moral. De maneira intuitiva, os envolvidos também sabem como
tomar parte em argumentações. Embora só tenham familiaridade com
a fundamentação de sentenças assertivas e ainda não saibam se as rei­
vindicações de validação moral podem ser julgadas de modo seme­
lhante, estão aptos a imaginar (e de modo a não fazer conjeturas sem
exame prévio) o que podería ser fundamentar normas. No entanto, pa­
ra a operacionalização de ‘D’, falta ainda uma regra para a argumenta­
ção que indique como as normas morais podem ser fundamentadas.
O princípio universalizante ‘U’ certamente está inspirado em ‘D’,
mas por enquanto não passa de uma sugestão obtida por abdução.
Ele afirma:
— que uma norma só é válida quando as conseqüências presu­
míveis e os efeitos secundários para os interesses específicos e para
as orientações valorativas de cada um, decorrentes do cum pri­
mento geral dessa mesma norma, podem ser aceitos sem coação
por todos os atingidos em conjunto.

56 A INCLUSÃO DO OUTRO
Sobre isso, três comentários: os “interesses específicos e orienta­
ções valorativas” põem em questão as razões pragmáticas e éticas dos
participantes em particular. A inclusão desses dados deve prevenir uma
marginalização da autocompreensão e da compreensão de m undo de
participantes em particular e assegurar em geral a sensibilidade her­
menêutica por um espectro suficientemente amplo de contribuições.
Além disso, a assunção recíproca e generalizada de perspectivas alheias
(“cada um” — “por todos em conjunto”) exige não apenas empatia,
mas também uma intervenção interpretativa na autocompreensão e
na compreensão de m undo dos participantes, que precisam se manter
abertos a revisões das descrições de si mesmos e dos outros (e abertos,
portanto, a revisões da linguagem utilizada em tais descrições). O pro­
pósito da “aceitação geral e não coativa”, por fim, fixa o aspecto sob o
qual as razões apresentadas extraem dos motivos para a ação o senti­
do relativo aos atores, e sob o qual assumem um sentido epistêmico
sob o ponto de vista da consideração simétrica.
(c) Os próprios envolvidos talvez se dêem por satisfeitos com essa
regra de argumentação (ou com um a regra semelhante), à medida que
ela se mostre útil e não conduza a resultados contra-intuitivos. É pre­
ciso evidenciar que normas capazes de conquistar concordância geral
— os Direitos Humanos, por exemplo — estão marcadas por uma
práxis fundadora orientada dessa maneira. Mas do ponto de vista do
teórico da moral ainda resta um último passo fundador.
Podemos tomar como ponto de partida que a práxis de justifica­
ção e reunião em conselhos — a que chamamos argumentação — po­
de ser encontrada em todas as culturas e sociedades (se não de forma
institucionalizada, ao menos como um a práxis informal) e que não
há equivalente algum desse tipo de solução de problemas. Em face
da disseminação universal da práxis argumentativa e da falta de al­
ternativas para ela, fica difícil contestar a neutralidade do princípio
discursivo. Mas, considerada a abdução de ‘U’, pode ser que esteja
subjacente aqui, às escondidas, um pré-entendim ento etnocêntrico
(e com ele uma determinada concepção do que é bom ), não parti­
lhado por outras culturas. A suspeita de um comprometimento eu-
rocêntrico que recai sobre um a compreensão de moralidade opera-
cionalizada por ‘U ’ poderia perder força se fosse possível, de modo
aceitável, tornar “imanente” a explicação para o ponto de vista m o­
ral, ou seja, se esse ponto de vista moral pudesse ser explicado a par­

U ma visão genealógica do teor cognitivo da moral 57


tir do saber sobre o que se faz quando se está envolvido em uma
práxis argumentativa63.
Intuitivamente, é fácil perceber tal coisa (ao passo que qualquer
tentativa de fundamentação formal demandaria discussões circuns­
tanciadas sobre o sentido e a exeqüibilidade de “argumentos trans­
cendentais”64). Nesse contexto, vou me dar por satisfeito com o indício
fenomenológico de que a argumentação se dá com a intenção de um
convencimento recíproco quanto à legitimidade das reivindicações
de validação que os proponentes apresentam em favor de suas asser­
ções e que eles estão dispostos a defender diante de seus oponentes.
Com a práxis argumentativa instaura-se uma concorrência coopera­
tiva por argumentos melhores, em que a orientação por um acordo
m útuo vincula os participantes a limine. A suposição de que a con­
corrência pode conduzir a resultados “racionalmente aceitáveis” e
“convincentes” funda-se sobre a força de convencimento dos próprios
argumentos. E também o que conta como argumento bom ou ruim
pode perfeitamente ser posto em discussão. Por isso a aceitabilidade
racional de um a asserção apóia-se afinal sobre razões ligadas a de­
terminadas qualidades do próprio processo argumentativo. Mencio­
narei apenas as quatro mais importantes: (a) ninguém que possa dar
uma contribuição relevante pode ser excluído da participação; (b) a
todos se dará a mesma chance de dar contribuições; (c) os partici­
pantes devem pensar aquilo que dizem; (d) a comunicação deve ser
isenta de coações internas ou externas, de tal forma que os posiciona­
mentos de “sim” e “não” ante reivindicações de validação criticáveis
sejam motivados tão-somente pela força de convencimento das m e­
lhores razões. Se cada um que se envolver em um a argumentação ti­
ver que fazer ao menos essas pressuposições pragmáticas, então nos
discursos práticos, (a) por causa do caráter público e inserção de to­
dos os envolvidos e (b) por causa da igualdade de direitos de com u­
nicação para todos os participantes, só poderão ter espaço as razões
que levem em conta, de forma equânime, os interesses e as orienta­
ções de valor de cada um; e por causa da ausência de (c) engano e (d)

63. Cf. Konrad Ott, “Wie begründet man ein Diskussionsprinzip der Moral?”. In:
Vom Begründen zum Handeln, Tübingen, 1996, pp. 12-50.
64. Cf. M. Niquet, Transzendentale Argumente, Frankfurt am Main, 1991; idem,
Nichthintergehbarkeit und Diskurs, tese de livre-docência (inédita), Frankfurt am
Main, 1995.

58 A INCLUSÃO DO OUTRO
coação, só poderão ser decisivas as razões para o assentimento de uma
norm a discutível. Por fim, sob a premissa de uma orientação segun­
do o acordo mútuo, presumida reciprocamente em todos os envol­
vidos, essa aceitação “não coativa” só pode dar-se “em comum”.
Contra a objeção ao círculo65, deve-se mencionar que o teor dos
pressupostos argumentativos gerais ainda não é “normativo”, em sen­
tido moral. Pois a possibilidade de inserção significa apenas a con­
dição de acesso irrestrito ao discurso, e não a universalidade de uma
norm a de ação vinculativa, qualquer que seja. A distribuição eqüi-
tativa de liberdades comunicativas no discurso e a exigência de sin­
ceridade em favor do discurso significam deveres e direitos argumen­
tativos, e de forma alguma morais. Igualmente, a ausência de coação
refere-se ao próprio processo argumentativo, e não a relações inter­
pessoais externas a essa práxis. As regras constitutivas do jogo argu­
mentativo determ inam o intercâmbio de argumentos e de posicio­
namentos de “sim”/ “não”; elas têm o sentido epistêmico de possibi­
litar a justificação de asserções, e não o sentido prático imediato de
motivar ações.
O cerne da fundamentação do ponto de vista moral consiste, para
a ética discursiva, em que só através de uma regra argumentativa seja
possível transferir o teor normativo desse jogo de linguagem epis­
têmico para a seleção de normas acionais, sugeridas em discursos prá­
ticos — junto com sua reivindicação de validação moral. A obrigato­
riedade moral não pode resultar, por si só, de algo como uma im po­
sição transcendental de pressupostos argumentativos inevitáveis; mais
que isso, ela se liga a objetos peculiares do discurso prático — a nor­
mas nele introduzidas, e às quais rem ontam as razões arregimenta­
das nas reuniões em conselho. Destaco essa circunstância lembrando
que ‘U’ pode se tornar plausível a partir do teor normativo de pressu­
postos argumentativos ligado a um conceito (fraco, e portanto não pre-
julgador) de fundamentação de normas.
A estratégia de fundamentação ora sugerida partilha o ônus dos
esforços para tornar-se plausível com um questionamento genealó­
gico atrás do qual se escondem algumas suposições caras à teoria da

65. Cf. Tugendhat, 1993, pp. 16 lss. A crítica de Tugendhat refere-se a um a versão
de meu argumento presente na segunda edição de Moralbewufítsein und kommunikatives
Handeln [Consciência moral e agir comunicativo, ed. br. cit.] e já revista portanto em
1984 (!); v. tb. J. Habermas, 1991, p. 134, nota 17.

U ma visão genealógica do teor cognitivo da moral 59


modernidade66. Com ‘U ’ (e isso revela também a figura fundadora da
comprovação de autocontradições performativas67 utilizada para
identificar pressuposições argumentativas, que nos eximimos de dis­
cutir neste contexto) asseguramo-nos reflexivamente de uma subs­
tância normativa como que remanescente em sociedades pós-tradi-
cionais, justamente por se apresentar sob a forma de um resíduo de si
mesma poupado da argumentação, e sob a forma da ação orientada
ao acordo mútuo.
Como problema seguinte resulta a questão da aplicação da nor­
ma. Pois o ponto de vista moral só se valida plenamente com o princí­
pio da adequação (desenvolvido por K. Günther68), e apenas em vista
de juízos morais singulares. Na concludência de discursos de funda­
mentação e aplicação conduzidos com êxito revela-se que questões
práticas diferenciam-se sob o ponto de vista moral tomado à risca:
questões morais sobre o convívio correto separam-se de questões prag­
máticas da escolha racional, de um lado, e de questões éticas do bem-
viver ou da vida não-malograda, de outro. Além disso, ficou-me claro,
em uma visão retrospectiva, que ‘U’ operacionaliza um princípio dis­
cursivo mais abrangente, primeiramente com vista a um questiona­
mento em especial, qual seja o de ordem moral69. O princípio discur­
sivo também pode ser operacionalizado em favor de outras questões,
tais como para reuniões em conselho de um legislador político ou para
discursos jurídicos70.

66. É o que acentua W. Rehg, Insightand Solidarity, Berkeley, 1984, pp. 65ss.; v.
tb. S. Benhabib, “Autonomy, Modernity and Comm unity”. In: Situating the Self, Cam-
bridge, 1992, pp. 68-88.
67. Cf. K.-O. Apel, “Die transzendentalpragmatische Begründung der Kommuni-
kationsethik”. In: Diskurs und Verantwortung, Frankfurt am Main, 1988, pp. 306-369.
68. V. nota 56, acima.
69. Cf. Habermas, 1992, pp. 135ss. e o Posfácio à 4. ed., pp. 674ss.
70. Cf. R. Alexy, Theorie derjurístischen Argumentation, Frankfurt am Main, 1991;
idem, Begriff und Geltungdes Rechts. Freiburg, 1992; idem, Recht, Vernunft, Diskurs,
Frankfurt am Main, 1995. Cf. tb. K. Baynes, The Normative Grounds o f Social Criticism,
Albany, 1992; S. Benhabib, “Deliberative Rationality and Models o f Democratic
Legitimacy”, Constellations, n. 1 (1994): 26-52; e sobretudo R. Forst, 1994.

60 A INCLUSÃO DO OUTRO
2
Reconciliação por meio do
uso público da razão*

Uma teoria da justiça de John Rawls marca uma cesura


na história mais recente da filosofia prática. Com essa obra,
Rawls reabilitou as questões morais reprimidas durante m ui­
to tempo e apresentou-as como objeto de pesquisas cien­
tíficas sérias. Kant formulara a questão fundamental da moral
de tal forma que ela podia encontrar uma resposta racional:
em casos de conflito, devemos fazer aquilo que é igualmente
bom para todas as pessoas. Sem recorrer aos pressupostos
fundamentais da filosofia transcendental de Kant, Rawls re­
novou esse princípio, com vistas à justa convivência entre
cidadãos de uma comunidade política. Assumindo uma po­
sição de vanguarda contra o utilitarismo, por um lado, e o
ceticismo, por outro, diante dos valores, ele propôs uma lei­
tura intersubjetivista do conceito kantiano da autonomia:
agimos de forma autônom a quando obedecemos estrita­
mente às leis que todos os envolvidos poderíam aceitar com
boas razões, com base em um uso público de sua razão. Rawls
utiliza este conceito moral da autonomia como chave para a
explicação da autonomia política dos cidadãos de um estado

* Tradução: Paulo Astor Soethe e George Sperber.

61
democrático de direito: “O ur exercise of political power is fully proper
only, when it is exercised in accordance with a constitution the essentials
of which all citizens as free and equal may reasonably be expected to
endorse in the light of principies and ideais acceptable to their common
human reason.”1Essa frase provém do livro com o qual Rawls encerrou,
por enquanto, um processo de ampliação e revisão de sua teoria da
justiça, que demorou vinte anos. Do mesmo modo como antes se diri­
gira contra as posições utilitaristas, ele hoje reage sobretudo contra as
posições contextualistas, que contestam o pressuposto de uma razão
comum a todos os seres humanos.
Como admiro esse projeto, compartilho sua intenção e considero
corretos seus resultados essenciais, o dissentimento de que quero falar
acaba ficando dentro dos estreitos limites de um briga de família. M i­
nhas dúvidas limitam-se a saber se Rawls faz valer suas importantes
intuições normativas, pertinentes na minha opinião, de um modo sem­
pre convincente. Antes de tudo, porém, gostaria de lembrar os contor­
nos do projeto, tal como ele agora se apresenta.
Rawls fundamenta princípios segundo os quais se deve instituir
uma sociedade moderna, se ela tiver de garantir a cooperação justa e
imparcial entre seus cidadãos, como pessoas livres e iguais. Num pri­
meiro passo, ele esclarece o ponto de vista a partir do qual represen­
tantes fictícios poderíam responder a essa questão de modo imparcial.
Ele explica por que as partes, na assim chamada condição primitiva,
por-se-iam de acordo quanto a dois princípios, a saber: primeiro, o
princípio liberal, de acordo com o qual são concedidas a todos os cida­
dãos iguais liberdades subjetivas de ação. Segundo, o princípio subor­
dinado que regula e fixa os mesmos direitos de acesso aos cargos públi­
cos para todos e que diz que as desigualdades sociais só podem ser acei­
tas na medida em que ao menos tragam vantagens aos cidadãos menos
privilegiados. Num segundo passo, Rawls mostra que essa concepção,
sob aquelas condições de um pluralismo que ela mesma promove, pode
esperar ser objeto de aprovação. Do ponto de vista ideológico, o libera­
lismo político é neutro porque é uma construção racional, sem suscitar
ele próprio uma reivindicação de verdade. Num terceiro passo, Rawls
esboça finalmente os direitos fundamentais e os princípios do Estado1

1. J. Rawls, Political Liberalism iv, New York 1993, p. 137 [ed. br.: Liberalismo
político, São Paulo, Ática, 2000].

62 A INCLUSÃO DO OUTRO
de direito que podem ser deduzidos dos dois princípios supremos de
justiça. Na seqüência desses passos, apresentarei alguns reparos, que se
dirigem menos contra o projeto como tal, e mais contra alguns aspec­
tos de sua realização. Temo que Rawls faça concessões a posições filo­
sóficas contrárias, que prejudicam a clareza de sua própria abordagem.
A minha crítica, feita com intenções construtivas, inicia-se de
modo imanente. Em primeiro lugar, tenho dúvidas de se o desigti da
condição primitiva é apropriado em todos os sentidos para explicar e
para assegurar o ponto de vista do julgamento imparcial de princípios
de justiça entendidos de modo deontológico (I). Além disso, tenho a
impressão de que Rawls deveria diferenciar mais nitidamente as ques­
tões de fundamentação das questões de aceitabilidade; ele parece ter
intenção de conquistar a neutralidade ideológica de sua concepção de
justiça ao preço de sua reivindicação cognitiva de validação (II). Essas
duas decisões relativas à estratégia de sua teoria têm como consequência
uma construção do Estado de direito que subordina o princípio de
legitimação democrática a direitos liberais fundamentais. Assim, Rawls
malogra seu objetivo de compatibilizar a liberdade dos modernos e a
liberdade dos antigos (III). Encerro com uma tese a respeito do auto-
entendimento da filosofia política: nas condições do pensamento pós-
metafísico, ela deve ser modesta, mas não da maneira errada.
O papel de adversário que me foi atribuído pela redação do Jour­
nal ofPhilosophy obriga-me a exacerbar objeções e reparos tentativos.
Essa exacerbação pode ser justificada com a intenção amistosa e pro­
vocante de mexer com a “economia doméstica” argumentativa, nada
fácil de manejar, de um a teoria altamente complexa e muito bem
lucubrada, de tal modo que ela possa fazer valer suas potencialidades2.

°
O desigtt da condição primitiva

Para Rawls, a condição primitiva apresenta-se como uma situação


em que pessoas que representam os cidadãos mediante decisões racio­

2. Para a preparação deste texto foram especialmente úteis as seguintes obras: K.


Baynes, TheNormative Grounds o f Social Criticism, Albany 1992; R. Forst, Kontexteder
Gerechtigkeit, Frankfurt am Main 1994.

Reconciliação por m eio do uso püblico da razão 63


nais vêem-se submetidas a limitações que, justamente elas, garantem
um julgamento imparcial de questões ligadas à justiça. O conceito ple­
no de autonomia fica reservado aos cidadãos que já vivem sob as insti­
tuições de uma sociedade bem ordenada. Para a construção da condi­
ção primitiva, Rawls desmembra esse conceito de autonomia política
em dois elementos: nas características moralmente neutras de partes
que buscam suas vantagens racionais e nas limitações situacionais mo­
ralmente prenhes de conteúdo, sob as quais as partes escolhem funda­
mentos para um sistema de cooperação justo e imparcial. Essas limita­
ções normativas só permitem equipar as partes com parcimônia, a sa­
ber, apenas com “a capacidade de serem racionais e de agirem a partir
de (sua) concepção do bom, dada em cada caso”3. Seja que as partes só
apresentem ponderações racionais e objetivas, seja que também incluam
pontos de vista éticos a respeito da condução da vida, elas sempre to­
marão suas decisões a partir do ponto de vista de suas próprias orienta­
ções de valor (ou seja, a partir da perspectiva dos cidadãos por eles re­
presentados) . Elas não precisam nem podem observar as coisas a partir
do ponto de vista moral, que tornaria necessário considerar o que cor­
responde ao interesse homogêneo de todos. Pois essa imparcialidade é
imposta por uma situação que deita um véu de insciência por sobre as
partes reciprocamente desinteressadas umas pelas outras e que são, a
um só tempo, livres e iguais. Como elas não sabem que posições ocupa­
rão no futuro, na sociedade por elas ordenada, seu próprio interesse
leva-as a pensar a respeito do que seja uniformemente bom para todos.
A construção de uma condição primitiva, que configure a mol­
dura racional da liberdade de arbítrio de atores que decidem sensata­
mente, explica-se pela intenção inicial de representar a teoria da justi­
ça como parte da teoria geral das escolhas racionais. Aliás, Rawls par­
tira inicialmente da idéia de que bastaria limitar apropriadamente o
campo operacional de atuação das partes que decidem racionalmen­
te, para poder deduzir fundamentos de justiça, a partir de seu interes­
se esclarecido. Logo, porém, ele teria de reconhecer que a razão de ci­
dadãos autônomos não pode ser deduzida da racionalidade seletiva
de atores que decidem arbitrariamente4. Mesmo depois da revisão do

3. J. Rawls, “Der Vorrang der Grundfreiheiten”. In: idem, Die Idee des politischen
Liberalismus, Frankfurt am Main 1992, 176.
4. Cf. J. Rawls, “Gerechtigkeit ais Fairnefi”. In: idem (1992), 273s., nota 20.

64 A INCLUSÃO DO OUTRO
objetivo de demonstração a que originalmente deveria servir o design
da condição primitiva, ele continuou a insistir claramente em que o
sentido do ponto de vista moral pode ser operacionalizado desse modo.
Isso traz conseqüências desagradáveis, três das quais quero discutir a
seguir: (1) Podem as partes, na condição primitiva, perceber apenas
com base em seu egoísmo racional os interesses prioritários de seus
clientes? (2) É lícito que os direitos fundamentais sejam assimilados
como bens fundamentais? ( 3 ) 0 véu da insciência garante a imparcia­
lidade do juízo?5
(1) Rawls não consegue sustentar de forma conseqüente a deci­
são de fazer com que cidadãos “plenamente” autônomos sejam repre­
sentados por partes às quais falta essa espécie de autonomia. Os cida­
dãos são, por pressuposto, pessoas morais, possuidoras de um senso
de justiça e da capacidade de ter um a concepção própria do bem, as­
sim como de um interesse em que essas predisposições sejam racio­
nalmente aperfeiçoadas. Devido a seu design objetivamente racional,
as partes são desoneradas justamente dessas características racionais
das pessoas morais. Mesmo assim, espera-se que elas entendam e res­
peitem adequadamente esses “interesses da mais elevada ordem” dos
cidadãos, resultantes justamente dessas características. Elas têm de
contar, por exemplo, com que os cidadãos autônomos respeitem os
interesses dos outros à luz de princípios justos e não apenas por inte­
resse próprio; com que se deixem obrigar a um comportamento leal;
com que se deixem convencer, pelo uso público de sua razão, da legiti­
midade das instituições e políticas existentes etc. As partes, portanto,
devem entender, levar a sério e tornar objeto de sua negociação as con­
seqüências de uma autonomia que lhes é vedada em sua extensão in­
tegral, assim como as implicações do uso de uma razão prática a que
elas próprias não podem recorrer. Isso ainda poderia parecer plausível
em face de uma percepção vicária do interesse auto-referido e voltado
ao seguimento das diferentes concepções do que seja bom, individual­
mente desconhecidas. Mas será que o sentido das questões da justiça
pode ficar intocado pelo modo de ver de egoístas racionais? Em todo
caso, as partes, dentro das fronteiras de seu egoísmo racional, são in-

5. A partir de outro ponto de vista, há um a crítica da abordagem pela teoria das


decisões em T. M. Scanlon, “Contractualism and Utilitarianism”. In: A. Sen, B. Williams
(eds.), Utilitarianism and Beyond, Cambridge 1982, 123ss.

Reconciliação por m eio do uso público da razão 65


capazes de realizar reciprocamente a assunção de perspectivas que os
cidadãos por elas representados realizam eles mesmos, caso elas se
orientem justamente por aquilo que é uniformemente bom para todos:
“in their rational deliberations, the parties... recognize no standpoint
externai to their own point of view as rational representatives”6. Mes­
mo que as partes entendam o sentido deontológico dos fundamentos
de justiça pelos quais procuram, e mesmo que devam respeitar ade­
quadamente os interesses de justiça de seus clientes, precisam estar
munidas de competências cognitivas que vão além das capacidades
com as quais têm de ser dar por satisfeitos atores que, embora decidam
racionalmente, são cegos à justiça.
Naturalmente, Rawls pode variar o design da condição primitiva
de modo correspondente. Já em Uma teoria da justiça, ele qualifica a
racionalidade das partes contratantes. Por um lado elas não nutrem
um interesse recíproco. Comportam-se mutuamente como jogadores
que “almejam um a quantidade a mais elevada possível de pontos”7.
Por outro lado, estão munidas de um “sentido de justiça meramente
formal”; pois devem saber umas sobre as outras que, na figura de
futuros cidadãos, deverão se ater aos acordos estabelecidos, um a vez
que passem a viver sob o regime de uma sociedade ordenada8. É pos­
sível entender isso pelo fato de que as partes, na condição primitiva,
tenham em todo caso conhecimento da espécie de reciprocidade obri­
gatória que determinará a vida de seus clientes no futuro, embora
elas próprias devam por ora levar adiante suas negociações sob outras
premissas. Nada fala contra tais estipulações. Pergunto, apenas, se um
design ampliado dessa forma não perde a graça pelo fato de afastar-se
demais do modelo original. Pois tão logo as partes dão um passo para
além das barreiras de seu egoísmo racional e assumem a mais longín­
qua semelhança com pessoas morais, destrói-se a divisão de trabalho
entre racionalidade subjetiva de escolha e barreiras objetivas apropria­
das, pela qual se espera que sujeitos que agem em seu próprio interes­
se cheguem a decisões racionais, ou seja, morais. Essa conseqüência
pode não ser de grande relevância para o procedimento que se segue;

6. J. Rawls (1993), 73.


7. J. Rawls, Theorie der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main 1975, § 25,168 [ed. br.:
Uma teoria da justiça, São Paulo, Martins Fontes, 32000].
8. Idem, ibidem, p. 169.

66 A INCLUSÃO DO OUTRO
contudo, ela desvia a atenção para os constrangimentos conceituais
resultantes da intenção inicial de resolver o problema hobbesiano do
ponto de vista da teoria das decisões. Pois mais uma conseqüência
do design da condição primitiva a partir da teoria das decisões é a in­
trodução de bens fundamentais. E esta definição de rota tem relevância
para a ulterior ampliação da teoria.
(2) Para atores que decidem racionalmente, vinculados à pers­
pectiva da primeira pessoa, o aspecto normativo, seja qual for, só pode
se apresentar como conceitos de interesses ou valores, que são preen­
chidos por bens. Os bens são aquilo que é por nós almejado, aquilo
que é bom para nós. Coerentemente, Rawls introduz “bens fundam en­
tais” como meios generalizados de que as pessoas podem precisar para
realizar os seus planos de vida. Embora as partes saibam que, para os
cidadãos de um a sociedade bem ordenada, alguns desses bens funda­
mentais assumem o caráter de direitos, elas próprias, na situação da
condição primitiva, só podem descrever direitos como uma catego­
ria de bens entre outras. Para elas, a questão que diz respeito aos prin­
cípios de justiça só pode se colocar como um a questão da justa distri­
buição de bens fundamentais. Com isso, Rawls se envolve com um
conceito de justiça baseado na ética dos bens, que se encaixa melhor
nas abordagens aristotélicas ou utilitaristas do que em sua própria teo­
ria dos direitos, que parte do conceito da autonomia. Como Rawls se
prende a um a concepção de justiça segundo a qual a autonomia dos
cidadãos se constitui mediante direitos, o paradigma distributivo lhe
traz dificuldades. Os direitos só podem ser “gozados” na medida em
que deles se faz uso. Eles não podem ser assimilados a bens distribu-
tivos, sem abrir mão de seu sentido deontológico. Uma distribuição
uniforme de direitos só ocorre quando os jurisconsortes se reconhe­
cem mutuamente como livres e iguais. Naturalmente, existem direi­
tos a um a participação justa no todo dos bens e das oportunidades,
mas os direitos em si regulam relações entre atores — e não podem ser
“possuídos” por estes como se fossem coisas9. Se eu não estiver co­
metendo um erro, Rawls vê-se obrigado pelos constrangimentos da
estratégia conceituai do modelo ainda eficiente da escolha racional a
não conceber imediatamente as liberdades fundamentais como di­
reitos fundamentais, mas a reinterpretá-las por ora como bens funda -

9 .1. M. Young, Justice and the Politics o f Difference, Princeton, p. 25.

Reconciliação por m eio do uso público da razão 67


mentais. Mas com isso, ele iguala o sentido deontológico das normas
(que nos obrigam) ao sentido teleológico dos valores (que nós prefe­
rimos) 10. Assim, Rawls apaga diferenças essenciais, as quais quero lem­
brar brevemente, para m ostrar como isso o constrange mais adiante
em seu procedimento.
À luz das normas é possível decidir o que deve ser feito; no hori­
zonte dos valores, qual o comportamento recomendado. Normas reco­
nhecidas obrigam seus destinatários por igual e sem exceção, enquan­
to os valores exprimem até que ponto determinados bens, que em
determinadas coletividades são vistos como almejáveis, merecem pre­
ferência. Enquanto as normas são obedecidas, no sentido de cumprir
com expectativas generalizadas de comportamento, os valores e os bens
só podem ser realizados ou adquiridos mediante um a ação direciona­
da. Além disso, as normas se apresentam como uma reivindicação bi­
nária de validação: só podem ser válidas ou inválidas. Diante de pro­
posições normativas, de modo semelhante ao que ocorre com as propo­
sições assertivas, só podemos assumir um a posição de “sim” ou “não”
— ou nos abster de opinar. Em comparação com isso, os valores fixam
relações de preferência, que dizem que determinados bens são mais
atraentes que outros; por isso podemos concordar mais ou menos com
proposições de avaliação. Além do mais, a validação de dever das nor­
mas tem o sentido absoluto de uma obrigação incondicional e univer­
sal; aquilo que se deve também reclama para si ser bom para todos
(quer dizer, para todos os destinatários). A atratividade dos valores
tem o sentido relativo de uma avaliação de bens, elaborada ou adota­
da nas culturas e nas formas de vida. Decisões graves de valor ou pre­
ferências de uma ordem mais elevada dizem o que, considerado o todo,
é bom para nós (ou para mim). Finalmente, diferentes normas que
pretendem ter validade para o mesmo conjunto de destinatários não
podem se contradizer mutuamente; elas têm de estar numa relação
coerente, ou seja, têm de constituir um sistema. Por sua vez, diferentes
valores concorrem entre si pela primazia; na medida em que encon­
tram reconhecimento intersubjetivo dentro de uma cultura ou de uma
forma de vida, eles constituem configurações flexíveis e tensas. Resu­

10. Este reparo não se baseia (como no caso de O nora 0 ’Neill, Constructions o f
Reason, Cambridge 1989, cap. 12, pp. 206ss.) na tese de um a primazia dos deveres
sobre os direitos.

68 A inclusão do outro
mindo, as normas se diferenciam dos valores, primeiro por meio de
suas relações com diferentes tipos de ação comandada por regras ou
direcionadas para objetivos; segundo, pela codificação binária ou gra­
dual de suas pretensões de validade; terceiro, por sua obrigatoriedade
absoluta (ou relativa); e quarto, por meio dos critérios que deve preen­
cher o conjunto dos sistemas de normas e de valores.
Ora, Rawls quer levar em conta a intuição deontológica que se
exprime nessas diferenciações. Por isso, ao dar primazia ao primeiro
princípio, em detrim ento do segundo, ele precisa corrigir o nivela­
m ento da dimensão deontológica que aceitara primeiro — devido
ao design da condição primitiva. Contudo, a partir da perspectiva da
prim eira pessoa, pela qual nós nos orientamos de acordo com nos­
sos interesses e valores, não é possível fundam entar uma primazia
absoluta das mesmas liberdades subjetivas de ação diante dos bens
fundamentais regulados pelo segundo princípio. Esse ponto foi cla­
ramente salientado por H. L. A. H art11 em sua crítica. É interessante
que Rawls enfrenta essa crítica apenas na medida em que inclui pos­
teriormente entre seus bens fundamentais um a qualificação que lhes
assegura uma relação com as liberdades fundamentais enquanto di­
reitos fundamentais, a saber, ele só confere validade como bens fun­
damentais aos bens sociais que são apropriados para os planos de vida
e para o desenvolvimento da capacidade moral dos cidadãos como pes­
soas livres e iguais1
112. Além do mais, Rawls diferencia entre bens funda­
mentais que são constitutivos no sentido moral para a moldura ins­
titucional da sociedade bem ordenada e os bens fundamentais res­
tantes, na medida em que ele inclui no primeiro princípio a garantia
do “justo valor” da liberdade13.
Contudo, essa determinação adicional estabelece tacitamente uma
diferenciação deontológica entre direitos e bens que contradiz a clas­
sificação de direitos e bens feita de início. Porque o justo valor de liber­
dades iguais mede-se pelo preenchimento de condições efetivas para
um exercício com igualdade de oportunidades dos direitos correspon­
dentes — e desse modo apenas os direitos podem ser qualificados. Não

11. Cf. H. L. A. Hart, “Rawls on Liberty and its Priority”. In: N. Daniels (ed.),
Reading Rawls, New York, 1975,230ss.
12. Cf. W. Hinsch, Introdução a: Rawls (1992), 36ss.
13. J. Rawls, “Vorrang”. In: idem (1992), 178ss. e 196ss.

Reconciliação por m eio do uso público da razAo 69


apenas com referência aos direitos é que podemos diferenciar uma
igualdade de competências de uma igualdade de situações efetivas de
vida. Somente entre o fazer jus a determinados direitos, por um lado, e
as oportunidades dadas para o uso desses direitos, por outro, pode surgir
um desnível problemático a partir do ponto de vista da igualdade, ao
passo que tal desnível não existe entre a efetiva disponibilidade de bens
e o uso efetivo dos bens. Seria ou redundante ou carente de sentido
falar no “justo valor” de bens repartidos com igualdade. A diferencia­
ção entre igualdade de jure e igualdade defacto não encontra, por m o­
tivos gramaticais, como diria Wittgenstein, aplicação aos “bens”. Mas
se, num segundo passo, a concepção dos bens fundamentais precisa
ser corrigida, é o caso de se perguntar se o primeiro passo — o design
de uma condição primitiva que obriga a essa concepção — foi sábio.
(3) As reflexões anteriores mostram que, para as partes da condi­
ção primitiva, a capacidade de tomar decisões racionais não é sufi­
ciente para poder perceber os interesses prioritários de seus clientes e
para entender direitos (no sentido dado por Dworkin) como trunfos,
com valor superior ao das metas fixadas coletivamente. Por que então
as partes são despidas de sua razão prática e envoltas no véu da ins-
ciência? A intuição pela qual Rawls se deixa guiar é nítida: o papel do
imperativo categórico é assumido por um procedimento aplicado in-
tersubjetivamente por vários participantes, encarnado em condições
de admissibilidade, como a da igualdade das partes, e em caracterís­
ticas situacionais, como a do véu da insciência. É claro que eu acho
que o ganho que poderia advir dessa virada intersubjetivista é nova­
mente dissipado pela privação sistemática de informações. A minha
terceira questão revela a perspectiva a partir da qual expus também as
duas questões anteriores. Quero dizer que Rawls poderia evitar as di­
ficuldades ligadas à construção de uma condição primitiva se opera-
cionalizasse o ponto de vista moral de um modo diferente e liberasse
de conotações substanciais o conceito de procedimento da razão prá­
tica, ou seja, se desenvolvesse tal conceito de maneira rigorosamente
estimativa.
Já o imperativo categórico supera o egocentrismo da regra de ouro.
Essa regra de ouro, “o que não queres que te façam, não o faças tam ­
bém a outrem ”, requer um teste de generalização do ponto de vista de
um indivíduo qualquer, enquanto o imperativo categórico pede que
todos os possivelmente envolvidos devam poder querer uma máxima

70 A INCLUSÃO DO OUTRO
justa como lei geral. Mas enquanto aplicamos monologicamente esse
exame mais pretensioso, restam perspectivas individuais isoladas, a
partir das quais cada um de nós imagina privadamente o que todos
poderíam querer. Isso é insatisfatório. O que de meu ponto de vista é
igualmente bom para todos só faria parte efetiva do interesse uniforme
de cada um se, em cada uma das coisas que me parecem evidentes, se
refletisse uma consciência transcendente, isto é, uma compreensão de
m undo universalmente válida. Nas condições do moderno pluralismo
social e ideológico, ninguém mais poderá partir desse pressuposto. Se
quisermos salvar a intuição do princípio kantiano de universalização,
poderemos reagir a esse fato do pluralismo de diferentes maneiras.
Pela limitação da informação, Rawls fixa as partes da condição pri­
mitiva num a perspectiva comum e neutraliza assim de antemão, m e­
diante um artifício, a multiplicidade das perspectivas particulares de
interpretação. A ética do discurso, pelo contrário, vê o ponto de vista
moral como encarnado no procedimento de uma argumentação levada
a efeito intersubjetivamente, que exorta os participantes a erguerem as
barreiras de suas perspectivas de interpretação.
A ética do discurso apóia-se na intuição de que a aplicação do
princípio de universalização bem entendido exige uma “assunção ideal
de papéis”, feita em conjunto. Contudo, ela interpreta essa idéia de­
senvolvida por G. H. Mead com os meios de uma teoria pragmática
da argumentação14.
Sob os pressupostos comunicacionais de um discurso não-coa-
tivo, preocupado em inserir e conduzido entre participantes livres e
iguais, cada um é exortado a assumir a perspectiva— e com isso a auto-
compreensão e compreensão de m undo — de todos os outros; desse
cruzamento de perspectivas constrói-se uma perspectiva em primeira
pessoa do plural (“nossa”) idealmente ampliada, a partir da qual todos
podem testar em conjunto se querem fazer de uma norma discutível a

14. Cf. J. Habermas, Moralbewufitsein und kommunikatives Handeln, Frankfurt


am Main 1983 [ed. br.: Consciência moral e agir comunicativo, Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro, 1989.]; idem, Erlauterungen zur Diskursethik, Frankfurt am Main 1992; quan­
to ao lugar da ética do discurso na discussão americana contemporânea, cf. S. Benhabib,
“In the Shadow of Aristotle and Hegel: Communicative Ethics and Current Controver-
sies in Practical Philosophy”, ThePhilosophicalForumVo 1. XXI, inverno 1989/90,1-31;
e mais “Special Issue: Universalism vs. Comm unitarianism”, Philosophy and Social Cri-
ticism, 14, n. 3/4,1988.

R econciliação por m eio d o uso público da razão 71


base de sua práxis; isso precisa incluir uma crítica recíproca à adequa­
ção das interpretações da situação e das carências. No caminho de
abstrações empreendidas sucessivamente, pode revelar-se então o cerne
de interesses passíveis de generalização15.
A situação muda quando desde o início o véu da insciência res­
tringe o campo de visão das partes em condição primitiva a princí­
pios, em torno dos quais se presume que cidadãos iguais e livres, sem
contar sua autocompreensão ou compreensão de m undo divergentes,
iriam todos unir-se. Com esse passo abstrativo inicial, Rawls assume
um duplo ônus da prova. O véu da insciência precisa estender-se a
todos os pontos de vista e interesses individuais que pudessem com­
prometer um juízo imparcial; ao mesmo tempo, porém, ele pode es-
tender-se apenas a teores normativos como esses, que desde o início,
enquanto candidatos à aceitação comum de si mesmos como algo bom,
por parte de cidadãos livres e iguais, podem abandonar a disputa. Essa
segunda condição coloca a teoria diante de uma exigência que prati­
camente não se pode cumprir; uma reflexão breve demonstra isso. Após
a fundamentação dos princípios de justiça, o véu da insciência descer-
ra-se passo a passo, nos planos do estabelecimento de uma constitui­
ção, da simples legislação e da aplicação jurídica. Como as informa­
ções que se acrescentam a partir daí precisam estar em harmonia com
os princípios já selecionados durante a subtração de informações, não
pode haver maus imprevistos. Se quisermos assegurar tal coisa, no
entanto, precisamos construir minuciosamente, de forma consciente
ou mesmo preventiva, todos os teores normativos que possam repre­
sentar um potencial estimulador para a autocompreensão e compre­
ensão de m undo de cidadãos livres e iguais. Em outras palavras, o ônus
do processamento da informação, da qual o teórico exime as partes
em sua condição primitiva, volta a incidir sobre ele mesmo! A impar­
cialidade do juízo só estaria garantida na condição primitiva, se os
conceitos normativos básicos usados para sua construção — quais se­
jam o cidadão politicamente autônomo, a cooperação justa e honesta
e a sociedade bem ordenada (e trata-se aqui de tais conceitos lidos sob
o prisma de Rawls) — , resistissem a uma revisão em face de experiên­
cias e aprendizados futuros.

15. Cf. W. R. Rehg, Insight and Solidarity. The Discourse Ethik ofjürgen Habermas,
Berkeley, 1994.

72 A INCLUSÃO DO OUTRO
Se é tão pesado o ônus da prova ocasionado pela subtração de
informações que se inflige com o véu da insciência às partes em con­
dição primitiva, então é natural que, para se diminuir esse encargo, se
operacionalize o ponto de vista moral de maneira distinta. Penso aqui
no procedimento aberto de uma práxis argumentativa que acate as
severas pressuposições do “uso público da razão” e que não descarte já
de antemão o pluralismo das convicções e cosmovisões. Esse procedi­
mento pode ser elucidado sem a recorrência aos conceitos substan­
ciais básicos, que Rawls usa para construir a condição primitiva.

O
O fato do pluralismo e a idéia do consenso abrangente

Desde as preleções sobre Dewey, Rawls acentua o caráter político


da justiça e da honestidade. Essa virada foi motivada por uma inquie­
tação quanto ao fato do pluralismo social e sobretudo do pluralismo
de visões de mundo. Com base no exemplo do “veil of ignorance”,
passamos a ter clareza sobre o ônus da prova que a teoria da justiça
assume ao delinear os primeiros itinerários. Para a fundamentação
dos dois princípios superiores, na condição primitiva as negociações
são muito menos decisivas do que as instituições e conceitos funda­
mentais que orientam a construção dessa mesma condição primitiva.
Rawls coloca teores normativos no interior de procedimentos funda­
dores, sobretudo os que ele vincula ao conceito de pessoa moral — o
senso de honestidade e a capacitação a uma concepção própria do que
seja bom. O conceito de pessoa moral, que suporta também o concei­
to da cooperação justa e honesta de cidadãos politicamente autôno­
mos, necessita portanto de um a fundamentação prévia. Além disso, é
preciso demonstrar que essa concepção é neutra, do ponto de vista da
visão de mundo, e permanece incontroversa mesmo depois de se ter
suspendido o véu da insciência. Com isso é possível esclarecer o inte­
resse de Rawls por uma concepção “política” — e não metafísica — de
justiça. Suponho haver por trás dessa terminologia certa falta de cla­
reza quanto ao caráter da necessidade de fundamentação; daí resulta,
por sua vez, uma indecisão na pergunta sobre como se deve entender
a reivindicação de validação da própria teoria. Eu gostaria (1) de inves­
tigar se o consenso abrangente, do qual depende a teoria da justiça,

Reconciliação por meio do uso público da razão 73


desempenha um papel cognitivo ou meramente instrumental — se
ele serve primeiramente à justificação posterior da teoria, ou se, sob a
luz da teoria já justificada, serve ao esclarecimento de uma condição
necessária de estabilidade social. A isso relaciona-se ainda (2) a per­
gunta sobre em que sentido Rawls utiliza o predicado “racional”: como
predicado para a validade de mandamentos morais ou como predi­
cado para a atitude refletida de tolerância esclarecida?
(1) Para dar sustentação a idéias normativamente carregadas,
Rawls remete-se ao método do assim chamado equilíbrio reflexivo. É
pela via de uma construção racional posterior de instituições legiti­
madas, e portanto presentes em uma sociedade democrática, que Rawls
obtém tanto o conceito básico de pessoa moral quanto os demais con­
ceitos básicos de cidadão politicamente autônomo, cooperação justa
e honesta, sociedade ordenada etc. Alcança-se o equilíbrio reflexivo
quando o filósofo se assegura de que os integrantes não podem mais
rechaçar, nem com boas razões, as instituições assim elucidadas e re­
construídas. O procedimento da reconstrução racional cumpre o cri­
tério firmado por Scanlon de “not reasonable to reject”. Certamente
Rawls não quer limitar-se às convicções normativas básicas de uma
determinada cultura política — e tampouco o Rawls de hoje, como
supõe Rorty, tornou-se um contextualista. Como antes, ele certamente
ainda reconstrói um a coluna mestra de noções intuitivas firmada na
cultura política de um a sociedade contemporânea e em suas tradições
democráticas. Se nessa cultura política subsistente — na norte-am eri­
cana, por exemplo— já estão sedimentadas experiências com a institu­
cionalização (aparentemente bem-sucedida) de princípios de justiça,
a apropriação reconstrutiva pode chegar a bem mais que a mera ates-
tação hermenêutica de um contexto tradicional contingente. Assim,
o projeto de justiça elaborado sobre essa base ainda precisa ser testado
sobre se pode ou não contar com aceitação em um a sociedade plura­
lista. Como se comporta esse segundo passo em relação ao primeiro
plano da fundamentação dos dois princípios superiores, tal como o
consideramos até aqui? Trata-se realmente nesse passo seguinte de
uma fundamentação?
Nos últimos capítulos de Uma teoria da justiça, Rawls já havia
investigado se uma sociedade instituída segundo princípios de justiça
poderia estabilizar-se por si mesma, se ela podería, por exemplo, encon­
trar por força própria os motivos funcionalmente necessários, à me­

74 A INCLUSÃO DO OUTRO
dida que socializasse seus cidadãos de forma correta16. Com vistas ao
factum do pluralismo social e de cosmovisões, que só mais tarde pas­
sou a ser levado a sério em suas reflexões, Rawls acredita ser preciso
testar de forma semelhante se a concepção da justiça em geral, intro­
duzida por via teórica, incide “sobre a arte do possível” e se ela, em tal
medida, é “praticável”17. Antes de mais nada, é preciso que o conceito
central de pessoa, sobre o qual a teoria se apóia, seja tão neutro que
possa ser aceito a partir das perspectivas interpretativas de diferentes
visões de mundo. Deve-se demonstrar, portanto, que a justiça enquanto
honestidade pode compor a base de um “consenso abrangente”. Irri­
ta-me aí a suposição de Rawls de que tal prova de aceitabilidade seja
de tipo semelhante ao da prova de consistência que ele mesmo, no
primeiro plano, aplicara em face da possibilidade de auto-estabilização
de um a sociedade bem-ordenada.
Essa paralelização metódica é irritante porque desta vez a prova
não pode ser tirada internamente à teoria. O teste quanto à neutralida­
de de visão de m undo dos conceitos sustentadores básicos segue ou­
tras premissas que não aquelas de uma conferição hipotética da capa­
cidade reprodutiva de uma sociedade já instituída segundo princípios
de justiça. O próprio Rawls fala agora de “dois planos” da formação de
teorias. Os princípios fundamentados no primeiro plano precisam ser
submetidos publicamente à discussão no segundo plano, porque apenas
aí se pode levar em conta o fato do pluralismo e tornar retroativo o
corte abstrativo da condição primitiva. Diante do fórum do uso pú­
blico da razão, a teoria em seu todo precisa ser exposta à crítica dos
cidadãos; trata-se aí não mais de cidadãos fictícios de uma sociedade
justa, sobre os quais se podem emitir enunciados no interior da teoria,
mas sim de cidadãos de carne e osso; a teoria precisa manter em aber­
to o térm ino de um teste como esse. Rawls também tem em vista dis­
cursos reais com final em aberto: “What if it turns out that the principies
of justice as fairness cannot gain the support of reasonable doctrines,
so that the case for stability fails? (...) We should have to see whether
acceptable changes in the principies of justice would achieve stability”18.

16. Cf. J. Rawls, 1975, pp. 539ss.


17. J. Rawls, “Der Bereich des Politischen und der Gedanke eines übergreifenden
Konsenses”. In: J. Rawls, 1992, p. 350.
18. J. Rawls, 1993, pp. 65s.

R econciliação por m eio do uso público da razão 75


É evidente que na melhor das hipóteses o filósofo pode tentar anteci­
par no intelecto o sucedimento de discursos reais, tal como eles prova­
velmente ocorreríam sob as condições de uma sociedade pluralista.
Mas uma antecipação como essa, menos ou mais realista, não se deixa
incorporar à teoria da mesma maneira que a dedução de possibili­
dades de auto-estabilização a partir de premissas subjacentes a uma
sociedade justa. Pois aí os próprios cidadãos discutem as premissas
desenvolvidas pelas partes da condição primitiva.
Esse paralelo extraviador não causaria maiores danos se não dis­
torcesse a imagem do consenso abrangente que os princípios de jus­
tiça devem ser capazes de encontrar. Pelo fato de Rawls colocar em
primeiro plano a pergunta sobre a estabilidade, só se expressa no
“overlapping consensus” a contribuição funcional que a teoria da jus­
tiça pode dar à institucionalização pacífica da cooperação social; e aí
já tem que estar pressuposto o valor intrínseco de um a teoria justifi­
cada. A partir dessa visão funcionalista, a pergunta sobre se é possível
a teoria contar com a concordância pública — ou seja, com a concor­
dância de um fórum do uso público da razão sob as perspectivas de
diversas visões de m undo — perdería um sentido epistêmico e tocante
à própria teoria. O consenso abrangente seria assim apenas um sin­
toma de utilidade e não mais um a confirmação de que a teoria é cor­
reta; ele perdería seu interesse sob o ponto de vista da aceitabilidade
racional e portanto também da validade, e o manteria apenas sob o
ponto de vista da aceitação, ou seja, do asseguramento da estabili­
dade social. Se é correta m inha compreensão de Rawls, no entanto,
ele não pretende distinguir dessa maneira as questões sobre a funda­
mentação e sobre a estabilidade. À medida que chama de “política”
sua concepção de justiça, parece ter muito mais a intenção de afastar
a diferenciação entre aceitabilidade fundamentada e aceitação factual:
“O objetivo da justiça enquanto honestidade como o de um a con­
cepção política não é nem metafísico nem epistemológico. Ela não se
revela como um a concepção de justiça que seja verdadeira, mas que
serve como base de uma convenção informada e solícita”19.
Parece-me que Rawls precisaria diferenciar de forma mais exata
aceitabilidade de aceitação. Uma compreensão meramente instru­

19. J. Rawls, “Gerechtigkeit ais Fairnefi: politisch, nicht metaphysisch”. In: J. Rawls,
1992, pp. 263s.

76 A INCLUSÃO DO OUTRO
mental da teoria já fracassa pelo fato de os cidadãos terem primeiro
de se convencer da concepção de justiça, antes que se possa firmar tal
consenso. Essa última não deve ser erradamente “política”, não deve
simplesmente conduzir a um modus vivendi. A própria teoria precisa
fornecer premissas “que nós e os outros reconhecemos como racio­
nais quando temos o objetivo de alcançar uma convenção praticável
sobre os pontos fundamentais da justiça política”20. Ao excluir uma
interpretação funcionalista da justiça enquanto honestidade, no en­
tanto, Rawls precisa acatar um a relação epistêmica qualquer entre a
validade de sua teoria e a perspectiva de uma comprovação de sua
neutralidade de visão de m undo em discursos públicos. O efeito so­
cial estabilizador de um consenso abrangente explica-se então a par­
tir da atestação cognitiva da suposição de que a concepção de justiça
enquanto honestidade comporte-se de maneira neutra em face de
“doutrinas circunscritivas”. Não penso que Rawls se apóie em premis­
sas que o tenham impedido de chegar a essas conclusões; noto, ape­
nas, que ele hesita em expressá-las, porque associa à designação “po­
lítico” uma restrição segundo a qual a teoria da justiça não poderia
estar munida de um anseio epistêmico, da mesma forma que seu efeito
prático esperado não poderia tornar-se dependente da aceitabilidade
racional de seus enunciados. Surge-nos, portanto, a ocasião para per­
guntar por que Rawls não considera sua teoria como apta à verifica­
ção e em que sentido ele se utiliza aqui do predicado “racional” ao
invés de dizer “verdadeiro”.
(2) Uma teoria da verdade não poder ser verdadeira ou falsa, só
pode assumir, em uma interpretação atenuada, o sentido comprome­
tedor de que enunciados normativos não retratam nenhuma ordem
de fatos morais que dependa de nós. Em um a interpretação bastante
severa, essa tese assume o sentido valorativamente cético de que por
trás do anseio de validação de enunciados normativos esconde-se algo
puramente subjetivo — sentimentos, desejos ou opções expressos, do
ponto de vista gramatical, de um a maneira desencaminhadora. Para
Rawls, no entanto, realismo valorativo e ceticismo valorativo são igual­
mente aceitáveis. Para os enunciados normativos — e para a teoria da
justiça como um todo — , a intenção de Rawls é assegurar certa obriga­
toriedade apoiada em um reconhecimento intersubjetivo fundam en­

20. J. Rawls, “Der Bereich des Politischen”, in ibidem, 1992, p. 301.

Reconciliação por m eio do uso público da razão 77


tado, sem atribuir-lhes no entanto um sentido epistêmico. Por isso ele
introduz o predicado “racional”, como conceito prático oposto a “ver­
dadeiro”. A dificuldade consiste em declarar com precisão em que sen­
tido uma coisa é “conceito oposto” à outra. Para tanto surgem duas
interpretações alternativas. Ou entendemos “racional”, no sentido da
razão prática, como sinônimo de “moralmente verdadeiro”, isto é, como
um conceito validativo análogo à verdade, que se diferencia da verda­
de proposicional, embora se situe em um mesmo plano que ela; uma
linha de argumentação (a) parece levar a isso. O u então entendemos
“racional” como algo próximo a “refletido” no trato com opiniões dis­
cutíveis, cuja verdade fica temporariamente adiada; nesse caso, “racio­
nal” é utilizado como um predicado de nível mais elevado, que se refe­
re antes ao trato com “reasonable disagreements”, ou seja, com a cons­
ciência falibilista e a atitude civil de pessoas em particular, do que à
validação das declarações dessas mesmas pessoas. Parece ser este (b) o
tipo de leitura que Rawls favorece.
(a) De início, Rawls introduz o “racional” como qualidade de
pessoas morais. São racionais as pessoas que têm um senso de justi­
ça, ou seja, que estão prontas a observar condições justas e honestas
de cooperação, e que são capazes para tanto; mas tam bém pessoas
que têm consciência da falibilidade da capacidade cognitiva hum ana
e que — reconhecendo esse “ônus da razão” — estão dispostas a jus­
tificar publicamente sua concepção de justiça política. Diante disso,
as pessoas só agem “racionalmente” à medida que, sob a luz de sua
concepção do que seja bom, estejam preocupadas com obter vanta­
gens de acordo com a prudência21. 0 que significa “ser racional”, por­
tanto, pode ser elucidado com base nas qualidades de um a pessoa
moral. Todavia, o próprio projeto de pessoa já pressupõe o conceito
de razão prática.
Por fim, Rawls esclarece o significado de razão prática com auxí­
lio de duas dimensões; ele se remete, por um lado, à dimensão deon-
tológica da validação vinculatória de normas (deixo isso de lado aqui,

21. “W hat rational agents lack is the particular form o f moral sensibility that
underlies the desire to engage in fair cooperation as such, and so on terms that others
as equals might reasonably be expected to endorse” [O que falta aos agentes racionais
é a forma particular de sensibilidade moral que fundam enta o desejo de se engajar em
uma cooperação justa e honesta como tal, e isso de modo que se possa esperar racio­
nalmente dos outros, como iguais, que eles apoiem tal coisa] J. Rawls, 1993, p. 51.

78 A INCLUSÃO DO OUTRO
por não considerar tal coisa problemática) e, por outro lado, à di­
mensão pragmática da condição pública em que se dá a fundamenta­
ção de normas (o que desperta especial interesse no contexto de nossa
reflexão). A condição pública de seu uso, por assim dizer, está inscrita
na razão. “Pública” é a perspectiva comum a partir da qual os cidadãos
se convencem reciprocamente do que seja justo ou injusto, com a força
do melhor argumento. É tão-somente essa perspectiva do uso pú­
blico da razão, partilhada por todos, que confere objetividade às con­
vicções morais. Rawls denomina “objetivos” os enunciados normativos
válidos; e a objetividade ele fundamenta com base em procedimentos,
ou seja, com referência a um uso público da razão que satisfaz certas
condições contrafactuais; “Political convictions (which are also moral
convictions) are objective — actually found on an order of reasons
— if reasonable and rational persons, who are sufficiently intelligent
and conscientious in exercising their powers of practical reason...
would eventually endorse those convictions... provided that these
persons know the relevant facts and have sufficiently surveyed the
grounds that bear on the matter under conditions favorable to due
reflection”22. Embora Rawls acrescente, a essa altura, que razões só
podem ser especificadas como boas razões por meio de um progra­
ma de justiça já reconhecido, esse programa, por sua vez, tem que
contar com a concordância dos envolvidos sob as mesmas condições
ideais23. Por isso, suponho que precisamos entender Rawls de modo
que, também segundo a concepção dele, o procedimento do uso p ú ­
blico da razão continue sendo para os enunciados normativos a última
instância de comprovação.
À luz dessa reflexão, seria cabível dizer que o predicado “racional”
refere-se ao cumprimento de um anseio de validação atendido por via
discursiva. Por analogia a um programa de verdade não-semântico, p u ­
rificado de noções de correspondência, poderiamos entender “racional”
como um predicado para a validade de enunciados normativos24. Evi­
dentemente, Rawls não pretende chegar a tal conclusão — que a meu
ver é correta; do contrário, ele teria de evitar o irritante uso lingüístico
segundo o qual imagens de m undo não precisam ser “verdadeiras”, mes­

22. J. Rawls, 1993, p. 119.


23. Cf. idem, p. 137.
24. Cf. minhas reflexões in: Habermas, 1991, pp. 125ss.

Reconciliação por m eio do uso público da razão 79


mo que sejam “racionais” — e vice-versa. O problema não consiste em
que Rawls recuse um realismo valorativo platonizante e que prive, por­
tanto, os enunciados normativos de um predicado de verdade entendi­
do semanticamente, mas sim em que ele atribua tal predicado de ver­
dade a imagens de m undo — “comprehensive doctrines”. Com isso ele
se furta à possibilidade de confiar à expressão “racional” as conotações
epistêmicas que ele mesmo precisa preservar como atributo de sua pró­
pria concepção de justiça, caso essa deva poder reivindicar obrigatorie­
dade normativa, seja em que sentido for.
(b) Segundo a opinião de Rawls, doutrinas metafísicas e interpre­
tações religiosas do m undo podem ser verdadeiras ou falsas. Por con­
seguinte, uma concepção política de justiça só poderia ser verdadeira
se fosse não apenas compatível com doutrinas como essas, mas tam ­
bém dedutível de uma doutrina verdadeira. Se é este o caso, isso certa­
mente não pode ser constatado a partir da perspectiva da filosofia polí­
tica, que é neutra no que concerne a uma visão de mundo. Dessa pers­
pectiva, os anseios de verdade de todas as imagens de m undo racionais
contam da mesma forma, sendo que se entendem por “racionais” as
imagens de m undo concorrentes entre si, sob a consciência reflexiva
de que o próprio anseio de verdade só poderá prevalecer a longo prazo
em discursos públicos se apresentar as melhores razões. “Reasonable
comprehensive doctrines” distinguem-se afinal por meio do reconheci­
mento dos “burdens of proof ”, de modo que comunidades de fé con­
correntes possam aceitar — “for the time being” — um “reasonable
disagreement” como fundamento de sua convivência pacífica.
Como a controvérsia sobre verdades metafísicas e religiosas per­
manece aberta sob as condições do pluralismo contínuo, é apenas a
“racionalidade” dessa consciência reflexiva que pode por ora transfe­
rir-se como predicado de validação, passando de imagens de mundo
racionais a um a concepção política de justiça compatível com todas as
doutrinas desse mesmo tipo racional. Embora uma concepção racio­
nal mantenha a referência a um anseio de verdade postergado de acor­
do com a idéia, essa mesma concepção não pode ter a certeza de que
haja uma doutrina entre as doutrinas de que ela mesma possa derivar-
se que seja também a verdadeira. Ela se alimenta tão-somente da “ra­
zão” de uma tolerância como a de Lessing em face de imagens de m un­
do não racionais. O que nos resta então, como filhos deste mundo, é
um ato de fé na razão — o ato de “uma fé racional na exeqüibilidade

80 A INCLUSÃO DO OUTRO
de um estado constitucional justo”25. Esse modo de ver as coisas é muito
simpático; mas como conciliá-lo exatamente com as razões pelas quais
Rawls e eu aceitamos uma primazia do justo sobre o bom?
Questões de justiça são acessíveis a uma decisão fundada— fun­
dada no sentido de uma aceitabilidade racional — , porque elas, a partir
de uma perspectiva descingida de modo ideal, referem-se ao que cor­
responde equanimemente aos interesses de todos. Em face disso, ques­
tões “éticas” em sentido estrito não admitem um julgamento que seja
obrigatório para todas as pessoas morais, e isso porque questões como
tais se referem, sob a perspectiva da primeira pessoa, ao que no todo
e a longo prazo é bom para mim ou para nós enquanto uma determi­
nada coletividade — mesmo que tal coisa não seja igualmente boa
para todos. Imagens de m undo metafísicas e religiosas estão ao menos
impregnadas de respostas a perguntas éticas; pois nelas, de maneira
exemplar, articulam-se identidades e esboços de vida. Portanto, im a­
gens de m undo medem-se antes pela autenticidade dos estilos de vida
que as marcam do que pela verdade dos enunciados que elas contêm.
É justamente por serem “abrangentes” no sentido de que interpretam
o m undo como um todo que não se podem entender as imagens de
m undo como uma quantidade ordenada de enunciados descritivos;
elas não se diluem em sentenças aptas à verificação e tampouco cons­
tituem um sistema simbólico que seja verdadeiro ou falso como tal.
De qualquer maneira, ele se apresenta a nós sob as condições de um
pensamento pós-metafísico, sob as quais se deve fundam entar a jus­
tiça enquanto honestidade.
Mas então não é possível tornar a validade de uma concepção de
justiça dependente da verdade de uma imagem de m undo “racional”,
seja ela qual for. Sob essa premissa é m uito mais sensato analisar os
diferentes anseios de validação que vinculamos a enunciados descri­
tivos, avaliativos e normativos (de diferentes tipos) independente­
mente daquela síndrome característica a reivindicações de validação
disparadas de maneira obscura nas interpretações religiosas e m eta­
físicas do m undo26.

25. J. Rawls, “Der Gedanke eines übergreifenden Konsenses”. In: J. Rawls, 1992,
p. 332.
26. Cf. J. Habermas, “Motive nachmetaphysischen Denkens”. In: J. Habermas,
Nachmetaphysiches Denken, Frankfurt am Main, 1988, pp. 35-60 [ed. br.: Pensamento
pós-metafísico, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990).

Reconciliação por m eio do uso público da razão 81


Por que Rawls, como que em bloco, considera aptas à verificação
as imagens de m undo que estabilizem identidades? Uma possível ra­
zão poderia ser a convicção de que não pode haver uma moral profa­
na pairando livremente, por assim dizer, ou que convicções morais
precisam estar alojadas em doutrinas metafísicas ou religiosas. Em
todo caso isso estaria de acordo com a maneira como Rawls se posi­
ciona diante do problema de um consenso abrangente: o modelo que
tem diante de si é o da institucionalização da liberdade de crença e cons­
ciência que, por via política, pôs fim às guerras civis de caráter confes­
sional, na Era Moderna. Mas será que o combate religioso teria chega­
do ao fim no sentido de um princípio da tolerância, se o direito à li­
berdade de crença e consciência — o cerne dos Direitos Humanos,
segundo Jellinek— não tivesse podido reportar-se, e com boas razões,
a uma validação moral para além da religião e da metafísica?

Autonomia privada e pública

As objeções que fiz no primeiro item à construção da condição


primitiva e, no segundo, à mistura de questões de validação e aceita­
ção apontam na mesma direção. Ao circunscrever por meio da deli­
mitação racional de situações os partidos que tomam decisões racio­
nais, Rawls continua sujeito a suposições básicas fortes e substanciais;
e ao redispor uma teoria da justiça de orientação universalista por meio
de um consenso abrangente, de tal modo que ela se restrinja a ques­
tionamentos sobre a estabilidade política, Rawls diminui a pretensão
epistêmica dessa mesma teoria. As duas coisas acontecem à custa de
um enfoque procedimental assumido de forma conseqüente. Em vez
disso, Rawls poderia ter-se livrado de forma mais elegante do ônus da
prova que assumiu com seu conceito de pessoa moral, severo e pre­
tensamente neutro em relação a visões de mundo: para tanto, precisa­
ria desenvolver os conceitos e suposições básicos substanciais a partir
dos procedimentos ligados ao uso público da razão.
O ponto de vista moral já integra a constituição socioontológica
da práxis argumentativa pública, e mais especificamente nas comple­
xas relações de reconhecimento às quais os envolvidos precisam inte­
grar-se quando se dá a formação discursiva de opinião e vontade acerca

82 A INCLUSÃO DO OUTRO
de questões práticas (no sentido de uma coação trascendental ate­
nuada). Rawls crê que uma teoria da justiça não poderia ser “suficien­
temente estruturada” somente por uma alegação procedimental como
essa. Já que prezo em minha reflexão a divisão de trabalho entre teoria
moral e teoria da ação, não considero esse reparo decisivo; a estrutu­
ração conceituai dos contextos acionais a que se referem as questões
da justiça política não é tarefa de uma teoria normativa. Com o con­
teúdo de conflitos carentes de solução impõe-se a nós toda uma rede
de conceitos básicos da teoria da ação para interações regradas nor­
mativamente — uma rede em que têm lugar conceitos como pessoa e
relação interpessoal, agente e ação, comportamento divergente da nor­
ma ou conforme a ela, imputabilidade e autonomia, e mesmo senti­
mentos morais subjetivamente estruturados. Esses conceitos neces­
sitam de uma análise prévia. E, então, quando damos ao conceito da
razão prática a versão procedimental que o próprio Rawls sugere com
seu conceito de uso público da razão, podemos dizer que válidos são
justamente os princípios que, sob as condições discursivas, poderiam
merecer reconhecimento intersubjetivo isento de coações. Há então
um a questão a mais, que se deve responder, a propósito, de forma
amplamente empírica, sobre quando é que os princípios válidos tam ­
bém asseguram estabilidade política sob as condições do pluralismo
moderno de visões de mundo. A seguir, será meu interesse executar o
enfoque procedimental tão-somente com vistas a uma conclusão que
diz respeito à elucidação do estado democrático de direito.
Os liberais acentuaram as “liberdades dos modernos”, em pri­
meira linha a liberdade de crença e consciência, bem como a defesa da
vida, da liberdade e propriedade pessoal, ou seja, o cerne dos direitos
civis subjetivos; em face disso, o republicanismo defendeu as “liber­
dades dos antigos”, quais sejam os direitos políticos de participação e
comunicação que possibilitam a práxis autodeterminante dos cida­
dãos. Rousseau e Kant tinham a ambição de derivar os dois elementos
de um a mesma raiz, ambos como primordiais: nem se podem sim ­
plesmente abafar os direitos básicos liberais da práxis autodetermina-
dora como sendo restrições externas, nem se pode instrumentalizá-
los em prol dessas mesmas restrições. Também Rawls segue essa intui­
ção; entretanto, da conformação de sua teoria em dois níveis resulta
uma vantagem dos direitos fundamentais liberais que chega de certa
maneira a obscurecer o processo democrático.

Reconciliação por m eio do uso público da razão 83


Rawls parte certamente da idéia da autonom ia política e retrata
esta última no plano da condição primitiva; ela está representada na
combinação entre as partes que decidem por via racional e as condi­
ções delimitativas garantidoras da imparcialidade do juízo. Essa idéia,
porém, só chega de maneira seletiva à validação no plano do proces­
so democrático da formação política da vontade de cidadãos livres e
iguais, embora ela mesma provenha daí. O tipo de autonom ia polí­
tica que cabe a um a vida virtual na condição primitiva, ou seja, no
primeiro estágio da formação teórica, não pode perpetuar-se no co­
ração da sociedade constituída juridicamente. Os cidadãos de Rawls,
afinal, quanto mais se eleva o véu da insciência e quanto mais eles
mesmos assumem uma figura real de carne e osso, tanto mais pro­
fundamente encontram-se enredados na hierarquia de uma ordem já
institucionalizada, passo a passo, sobre suas cabeças. Assim, a teoria
priva os cidadãos de muitos dos discernimentos que eles, a cada gera­
ção, teriam de reconquistar.
A partir da visão da “teoria da justiça” o ato da fundação do estado
democrático de direito não tem que, e nem pode, ser repetido sob as
constituições institucionais de uma sociedade justa já instituída, as­
sim como o processo da concretização dos direitos não tem de, e nem
pode, tornar-se permanente. Os cidadãos, como exigiríam no entan­
to as condições históricas que se alteram, não podem experimentar
esse processo como um processo aberto, interminado. Na vida real
de sua sociedade, eles não podem inflamar o cerne radicalmente de­
mocrático que incandesce na condição primitiva, pois a partir da vi­
são deles todos os discursos essenciais de legitimação já terão ocor­
rido no interior da teoria; e os resultados das discussões teóricas, eles
já os encontram sedimentados na constituição. Pelo fato de os cida­
dãos não poderem entender a constituição como projeto, o uso pú­
blico da razão não tem o sentido de um exercício atual de autonomia
política, mas serve tão-somente à manutenção pacífica da estabilida­
de política. Essa maneira de ler certamente não resgata a intenção de
Rawls27; revela no entanto, se tenho razão, uma de suas conseqüên-

27. Cf. as Tanner Lectures de Rawls, em que se lê no final do parágrafo VII: “O


pensamento encaminha-se para a integração de um procedimento efetivo à estrutura
básica da sociedade capaz de refletir a representação justa e honesta das pessoas, a qual
se conquista por meio da condição primitiva”. Rawls, 1992, p. 203.

84 A INCLUSÃO DO OUTRO
cias indesejadas. Isso se mostra, por exemplo, no limite rígido entre a
identidade política e a identidade não-pública dos cidadãos. De acordo
com Rawls, esse limite é traçado por direitos fundamentais liberais
que delimitam de antemão a autolegislação e, com isso, a esfera do que
é político, ou seja, sobretudo da formação política da vontade.
Rawls usa a expressão “político” em sentido triplo. Até aqui co­
nhecemos o significado teórico específico: um a concepção de justiça é
política e não metafísica quando é neutra em relação a visões de m un­
do. Mais adiante, Rawls usa a expressão “político” como de costume
para a classificação de assuntos de interesse público, de modo que a
filosofia política se restringe aí à justificação do contexto institucional
e da estrutura básica de uma sociedade. Finalmente, os dois significa­
dos estabelecem uma ligação interessante quando se fala de “valores
políticos”. Nesse terceiro significado, “o político” forma uma reserva
tanto para convicções que os cidadãos têm em comum como para os
pontos de vista da delimitação regional de um campo objetivo. Rawls
— nesse ponto quase um neokantiano como Max Weber — trata a
esfera política de valores, que nas sociedades modernas se destaca de
outras esferas culturais, como algo dado. Pois é só com a referência a
valores políticos, sejam quais forem, que ele pode cindir a pessoa m o­
ral em uma identidade pública do cidadão e em uma identidade não-
pública da pessoa em particular, determinada por uma respectiva con­
cepção própria do que seja bom. Essas duas identidades formam assim
os pontos de referência para duas esferas, das quais um a é defendida
pelos direitos políticos de participação e comunicação e a outra, por
direitos liberais à liberdade. E nisso tem primazia a defesa legal básica
da esfera civil, ao passo que “as liberdades políticas” continuam tendo
“consideravelmente um papel instrumental de defesa das demais li­
berdades”28. Com referência à esfera política de valores exclui-se por­
tanto uma esfera de liberdade anterior à política, eximida da interven­
ção por parte da autolegislação democrática.
Contudo, um estabelecimento de limites como esse entre auto­
nomia privada e pública, firmado a priori, contradiz não apenas a ins­
tituição republicana segundo a qual a soberania dos povos e os direi­
tos humanos derivam da mesma raiz. Ela contradiz também a expe­
riência histórica, em especial a circunstância de que os estabelecimen­

28. J. Rawls, “Der Vorrang der Grundfreiheiten”. In: J. Rawls, 1992, p. 169.

R econciliação por m eio do uso público da razão 85


tos de limites entre esfera privada e pública, historicamente variá­
veis, sempre foram problemáticos sob pontos de vista normativos29.
Pode-se ler também, na evolução do estado social, que os limites
entre a autonom ia pública e privada dos cidadãos estão em proces­
so, e que tais estabelecimentos de limites para a formação política da
vontade dos cidadãos ficam disponíveis quando os cidadãos devem
ter a possibilidade de reclamar o “valor justo e honesto” de suas li­
berdades subjetivas em face da justiça e da legislação.
Uma teoria da justiça poderá dar conta dessa circunstância se fi­
zer a delimitação do político sob outro aspecto, mencionado por Rawls
apenas de passagem — o da regulamentação jurídica. É afinal com o
instrum ento do direito positivo e coercivo que se regulamenta de
maneira legítima o convívio político de uma comunidade política30.
A questão fundamental é então: que direitos pessoas livres e iguais
precisam garantir umas às outras quando querem regular seu convívio
com os instrumentos do direito positivo e coercivo?
Segundo a definição kantiana da legalidade, o direito coercivo es­
tende-se apenas às relações exteriores entre pessoas e está endereçado
à liberdade de arbítrio de sujeitos que precisam orientar-se tão-so­
mente pelas respectivas concepções do que seja bom. O direito m o­
derno, por isso, constitui o status da pessoa juridicamente apta através
das liberdades de ação subjetivas que se podem demandar juridica­
mente e que se podem usar conforme as preferências de cada um.
Como, porém, uma ordem legal legítima também precisa poder ser
seguida por razões morais, a legítima situação das pessoas em parti­
cular juridicamente aptas é determinada pelo direito a liberdades de
ação subjetivas iguais31. Como direito positivo ou escrito, esse meio
requisita, por outro lado, o papel de um legislador político, de modo
que a legitimidade da legislação seja elucidada a partir de um processo
democrático que garanta a autonomia política dos cidadãos. Os cida­
dãos são politicamente autônomos tão-somente quando podem com-
preender-se em conjunto como autores das leis às quais se submetem
como destinatários.

29. Cf. S. Benhabib, “Models of Public Space”. In: S. Benhabib, Situating the Self.
Cambridge, 1992, pp. 89-120.
30. Cf. J. Rawls, 1993, p. 215.
31. Esse princípio jurídico de Kant retorna no primeiro princípio de Rawls.

86 A INCLUSÃO DO OUTRO
A relação dialética entre autonomia privada e pública só se torna
clara por meio da possibilidade de institucionalização do status de um
cidadão como esse, democrático e dotado de competências para o es­
tabelecimento do Direito, e isso somente com o auxílio do direito coer­
civo. No entanto, porque esse direito se direciona a pessoas que, sem
direitos civis subjetivos, não podem assumir de forma alguma o status
de pessoas juridicamente aptas, as autonomias privada e pública dos
cidadãos pressupõem-se reciprocamente. Como já mencionamos, os
dois elementos já estão entrelaçados no conceito do direito positivo e
coercivo: não haverá direito algum, se não houver liberdades subje­
tivas de ação que possam ser juridicamente demandadas e que garan­
tam a autonomia privada de pessoas em particular juridicamente aptas;
e tampouco haverá direito legítimo, se não houver o estabelecimento
comum e democrático do Direito por parte de cidadãos legitimados
para participar desse processo como cidadãos livres e iguais. Quando
esclarecemos de tal maneira o projeto do Direito, é fácil notar que a
substância normativa dos direitos à liberdade já está contida no ins­
trum ento que é ao mesmo tempo necessário à institucionalização jurí­
dica do uso público da razão por parte de cidadãos soberanos. O objeto
central da análise a seguir é formado então pelos pressupostos da co­
municação e pelos processos de um a formação discursiva da opinião
e da vontade, em que o uso público da razão se manifesta32.
Em comparação com a teoria da justiça de Rawls, uma teoria da
moral e do direito como essa, voltada aos procedimentos, é ao mesmo
tempo mais modesta e menos modesta. Ela é mais modesta, porque se
restringe aos aspectos procedimentais do uso público da razão e por­
que desenvolve o sistema dos direitos a partir da idéia de sua insti­
tucionalização legal. Ela pode deixar mais perguntas abertas, porque
confia mais no processo de uma formação racional da opinião e da
vontade. Em Rawls, os pesos são divididos de outra forma: enquanto
se reserva à filosofia a precedência para desenvolver a idéia potencial­
mente consensual de uma sociedade justa, os cidadãos utilizam essa
idéia como base a partir da qual julgam as instituições e os políticos
ora subsistentes. Em face disso, sugiro que a filosofia se restrinja ao
esclarecimento do processo democrático e do ponto de vista moral, à

32. Sobre a concatenação interna entre estado de direito e democracia, v. neste


volume, pp. 285-297.

RECONCILIAÇÃO POR MEIO DO USO PÚBLICO DA RAZÃO 87


análise das condições para discursos e negociações racionais. Com
esse papel, a filosofia não procede de maneira construtora, mas sim
reconstrutiva. Respostas substanciais que é preciso encontrar aqui e
agora, ela as deixará por conta do engajamento menos ou mais escla­
recido dos envolvidos, o que não exclui, porém, que também os filó­
sofos — no papel de intelectuais, não de especialistas — participem
da controvérsia pública.
Rawls insiste em uma modéstia de outra natureza. Ele também pre­
tende transferir para as ocupações da filosofia o “method of avoidance”
[método de evitação] que deve conduzir a um consenso abrangente
nas questões da justiça política. A filosofia política deve desonerar-se
tanto quanto possível de questões especializadas controversas, à m e­
dida que ela mesma se especialize. Essa estratégia de evitação pode
conduzir, como vimos nesse exemplo grandioso, a uma teoria espanto­
samente fechada em si mesma. Mas mesmo Rawls não pode desen­
volver sua teoria de maneira tão “desprendida” quanto gostaria. Seu
“construtivismo político”, como vimos, envolve-o nolens volens na con­
trovérsia acerca dos projetos de racionalidade e verdade. Também seu
projeto de pessoa ultrapassa os limites da filosofia política. O deli-
neamento inicial do itinerário da teoria ocasionam também muitas
opções em debates duradouros e ainda em curso, no âmbito de nossa
disciplina. Segundo me parece, é o próprio objeto da discussão que
torna necessária e às vezes frutífera essa prática imodesta de se aven­
turar como diletante por áreas afins.

88 A INCLUSÃO DO OUTRO
3
"Racional" ve rsu s
"verdadeiro" — ou a moral
das imagens de mundo*1

John Rawls reivindica pára sua idéia de “justiça como


honestidade” a condição de uma cohcepção “vaga”: ela se m o­
vería exclusivamente no âmbito do que é político e deixaria a
filosofia “tal como é”. O fim e a exeqüibilidade dessa estra­
tégia de evitação dependem, naturalmente, do que se enten­
de como “político”. Em primeira linha, Rawls usa a expressão
para o campo objetai de uma teoria política que se refere ao
âmbito institucional e à estrutura básica de uma sociedade
(moderna). Ora, sempre se pode discutir sobre a escolha mais
ou menos convencional de conceitos teóricos fundamentais;
mas tão logo uma teoria se mostre útil, essas discussões per­
dem seu sentido. Outro uso menos trivial da expressão —
“político” por oposição a “metafísico” —- por certo ocasiona
controvérsias das quais não é tão fácil se livrar.
Rawls usa “político” por oposição a “metafísico” para
caracterizar concepções de justiça que satisfazem uma exi­
gência básica do liberalismo, qual seja: manter-se neutro em

* Tradução: Paulo Astor Soethe.


1. Agradeço a Rainer Forst, Thomas McCarthy e Lutz Wingert por
suas críticas instrutivas.

89
face de imagens de m undo ou comprehensive áoctrines [doutrinas cir-
cunscritivas] concorrentes. Rawls associa à expressão “político” uma
interpretação muito particular de neutralidade: “It means that we must
distinguish between how a political conception is presented and its
being part, or derivable within, a comprehensive doctrine”2. O tipo
de neutralidade caracterizado pela natureza “política” da “justiça como
honestidade” pode ser elucidado pelo fato de que se pode apresentar
essa concepção como sendo “vaga”. O que se tem em mente com esse
status, Rawls explica-o com uma das assunções mais notáveis de sua
teoria: “I assume all citizens to affirm a comprehensive doctrine to
which the political conception they accept is in some way related. But
a distinguishing feature of a political conception is that it is... ex-
pounded apart from, or without reference to, any such wider back-
ground... The political conception is a m odule... that fíts into and
can be supported by various reasonable comprehensive doctrines that
endure in the society regulated by it” (PL, p. 12)3.
Nessa segunda acepção, a expressão “político” não se refere a uma
matéria determinada, mas sim a um status epistêmico particular ao
qual aspiram as concepções políticas de justiça: elas devem se integrar
como partes coerentes a diversas imagens de mundo. Muito embora
as concepções políticas de justiça possam ser apresentadas indepen­
dentemente de contextos ligados a visões de m undo em particular, e
mesmo “esclarecidas” dessa forma, ou seja: muito embora possam ser
introduzidas de maneira plausível, elas só podem ser fundamentadas
em uma doutrina circunscritiva. Também o liberalismo político se
arroga um status como esse. E como ele precisa ser explicado no âm ­
bito dessa teoria, a expressão “vago” tem aqui uma dupla referência.
De um lado, designa uma condição necessária de todas as concepções

2. [“Isso quer dizer que precisamos distinguir entre, de um lado, a maneira pela
qual um a concepção política é apresentada e, de outro, sua parte existente, ou, o que
se pode derivar nesse âmbito, um a doutrina circunscritiva”] Cf. J. Rawls. Political
Liberalism. New York, 1993, p. 12 (doravante cit. como PL) [ed. br.: Rawls, Liberalismo
político, São Paulo, Ática, 2000].
3. [“Aceito que todos os cidadãos afirmem uma doutrina compreensiva, com a
qual a concepção política que eles aceitam está de certo m odo relacionada. Mas uma
característica distintiva da concepção política é que ela é ... interpretada separada de,
ou sem referência a, qualquer circunstância mais am pla... A concepção política é um
m ódulo... que cabe em e pode ser apoiada por várias doutrinas racionais compreensi­
vas que persistem na sociedade que por ela se regula”].

90 A INCLUSÃO DO OUTRO
de justiça que se possam cogitar como candidatas à inclusão em um
“consenso abrangente”. De outro lado, o predicado “vago” deve apli-
car-se à própria teoria que o explica: “justiça como honestidade” é uma
das candidatas mais promissoras. Esse uso auto-referencial de “vago”
pode ser entendido como anseio político. Rawls espera que, sob as
condições de um “equilíbrio reflexivo ilimitado”4, a própria teoria ofe­
reça um fundamento sobre o qual os cidadãos da sociedade norte-ame­
ricana (e mesmo de toda e qualquer sociedade “moderna”) possam al­
mejar um consenso político fundamental.
Menos plausível é que Rawls ainda onere o uso auto-reflexivo da
expressão “vago” com outro anseio, teórico. Ele parece supor que uma
teoria vaga no campo do que é político assuma uma mesma posição
no campo da filosofia e contorne assim todas as questões controver­
sas da metafísica — “leaving philosophy as it is” [deixando a filosofia
como ela é]. Não é de se esperar que Rawls possa elucidar o status epis-
têmico de um a concepção vaga de justiça sem que precise tomar po­
sição em relação a questões filosóficas, que talvez nem se incluam na
categoria do que é “metafísico”, mas que certamente ultrapassam a
esfera do “político”.
A expressão “metafísico”, na verdade, ganha um sentido próprio a
partir da oposição a “político”. Sociedades modernas, por causa de seu
pluralismo religioso e cultural, dependem de um consenso abrangente
sobre questões relacionadas à justiça política, e neutro em relação a
visões de m undo em particular. Sem dúvida, mesmo uma teoria que
pretenda apenas apoiar tal consenso tem de ser “política e não meta­
física”, nesse sentido. Disso ainda não resulta, de modo algum, que a
própria teoria política possa mover-se “por completo no campo do que
é político” (R, p. 133) e manter-se isenta das controvérsias filosóficas
remanescentes. Discussões filosóficas podem ultrapassar a esfera do po­
lítico em muitas direções. A filosofia, afinal, é um empreendimento
institucionalizado que se dá sob a forma de uma busca cooperativa
da verdade, e não cultiva necessariamente uma relação interna ao que
é metafísico” (no sentido do Liberalismo político). Se a explicação do
status epistêmico de uma concepção “vaga” nos enreda em discussões
não-políticas sobre a razão e a verdade, isso não significa eo ipso o envol­

4. J. Rawls, “Reply to Habermas”, The Journal o f Philosophy, XCII, 1995, 141,


n. esp. 16 (doravante cit. como R).

Racional ” v e r s u s “verdadeiro ” 91
vimento em questões e controvérsias metafísicas. De maneira indireta,
como que performativa, a investigação a seguir deve aclarar esse pon­
to. Ela procurará, de modo explícito, clarear o status epistêmico de uma
concepção vaga de justiça em sentido — capciosamente — político.
Eu gostaria de checar como funciona a divisão de trabalho entre
o político e o metafísico, que se espelha em uma especial dependência
do “racional” em relação ao “verdadeiro”. Não é nada evidente que ra­
zões publicamente defensáveis e independentes de seus agentes pos­
sam ter peso decisivo apenas em favor da “racionalidade” de uma con­
cepção política, ao passo que razões não-públicas e dependentes dos
agentes devam bastar para a reivindicação autóctone e consolidada de
uma “verdade” moral. A resposta generosa e detalhada de Rawls a m i­
nhas observações tentativas5 deixa claros — entre outras coisas — os
tipos de justificação que conduzem a um “overlapping consensus”. Sob
a luz desses esclarecimentos, gostaria de desenvolver a seguinte tese:
enquanto os cidadãos racionais não estiverem em condições de adotar
um “ponto de vista moral” que se mostre independente das perspectivas
das diferentes imagens de m undo assumidas por cada um deles em
particular e que as preceda, não podemos esperar deles um “consenso
abrangente”. O conceito “racional” — reasonable — ou inflaciona-se
ao ponto de se tornar atenuado demais para assinalar a validade de
uma concepção de justiça subjetivamente reconhecida; ou é definido
de forma suficientemente severa, mas de modo que o que seja prati­
camente “racional” coincide com o moralmente correto. Eu gostaria
de demonstrar que — e por que — Rawls não consegue evitar enfim o
total esvaziamento das exigências da razão prática — exigências essas
que são na verdade arrancadas das imagens de m undo racionais e não
se limitam a refletir sobreposições bem-sucedidas dessas mesmas ima­
gens de m undo6.
Antes que eu comece medias in res, permitam-me caracterizar o
desafio da situação moderna da consciência à qual as teorias da justiça
têm de reagir, de um maneira ou de outra (1). Logo a seguir, esboça­
rei com a brevidade possível o passo filosófico que leva de Hobbes a
Kant (2), pois essa posição constitui o pano de fundo para a peculiar
alternativa de Rawls (3). Na parte central, analisarei (4) a divisão dos

5. Cf. J. Rawls, The Journal ofPhilosophy, XCII, 1995, pp. 109-131.


6. Com isso, torno mais concretas objeções já apresentadas no artigo anterior,
cf. pp. 78ss.

92 A INCLUSÃO DO OUTRO
ônus de prova entre as concepções “racionais” de justiça e as “verdadei­
ras” morais das imagens de mundo, para então (5) discutir as dificul­
dades daí decorrentes para a construção da justificativa de um consen­
so abrangente. Finalmente, (6) menciono argumentos em favor de uma
concepção procedimental e próxima a Kant, qual seja a concepção de
“uso público da razão”. Quando se entende a justiça política dessa m a­
neira, (7) a autolegislação democrática assume o lugar ocupado no li­
beralismo político pelas liberdades negativas. Assim, os realces deslo­
cam-se e posicionam-se em favor de um republicanismo kantiano.

O
A moderna situação de partida

O liberalismo político representa uma resposta ao desafio do plu­


ralismo. Sua preocupação central volta-se a um consenso fundamental
que assegure liberdades iguais a todos os cidadãos, independentemente
de sua origem cultural, convicção religiosa e maneira individual de con­
duzir a própria vida. O consenso que se almeja em torno de questões da
justiça política não pode mais apoiar-se sobre um ethos que perpassa a
sociedade como um todo e ao qual as pessoas se habituaram pela tradi­
ção. Contudo, os membros das sociedades modernas ainda partilham a
expectativa de que possam cooperar uns com os outros de forma pací­
fica, justa e honesta. Apesar da falta de um consenso substancial sobre
os valores, calcado em uma imagem de m undo aceita pela sociedade
como um todo, essas pessoas apelam ontem como hoje a convicções e
normas morais, que cada um arroga devam ser partilhadas por todos.
Mesmo que um mero modus vivendi fosse o bastante, as pessoas discu­
tem sobre questões morais munidas de razões que consideram decisi­
vas. Desenvolvem discursos morais no dia-a-dia assim como na polí­
tica, e tanto mais em controvérsias da política constitucional. Esses dis­
cursos continuam sendo conduzidos, embora sequer esteja claro se os
conflitos morais ainda podem ser resolvidos com o auxílio de argu­
mentos. Tacitamente, os cidadãos supõem reciprocamente uns nos ou­
tros a presença de uma consciência moral ou de um senso de justiça
que opera para além dos limites relacionados às visões de m undo em
particular, enquanto aprendem, ao mesmo tempo, a tolerar diferenças
de visão de mundo como fonte de diversidades racionais de opinião.

‘Racional ” versus “verdadeiro ” 93


Rawls reage a essa situação moderna da consciência com a pro­
posta de uma concepção de justiça suficientemente neutra, em torno
da qual se possa cristalizar um acordo político básico, firmado entre
cidadãos com diferentes concepções religiosas ou metafísicas. Filóso­
fos morais e teóricos da política entenderam como sua tarefa em co­
m um a elaboração de um equivalente racional para as justificações
tradicionais atribuídas a normas e princípios. Em sociedades tradi­
cionais, a moral era parte integrante de imagens de m undo ontológicas
ou ligadas à história da salvação que podiam contar com grande acei­
tação pública. Normas e princípios morais equivaliam a elementos de
uma “ordem das coisas” racional e impregnada de noções de valor, ou
então elementos de um caminho exemplar de salvação. Em nosso con­
texto é especialmente interessante que essas explicações “realistas” te­
nham podido aparecer sob o modo assertivo de sentenças aptas à ve­
rificação. Porém, depois da invalidação pública das explicações reli­
giosas e metafísicas, e com o crescimento da autoridade epistêmica
das ciências empíricas, distinguiu-se mais fortemente entre os enun­
ciados normativos e os enunciados descritivos, de um lado, e entre os
enunciados normativos e os juízos de valor e enunciados vivenciais,
de outro. Seja qual for o posicionamento assumido diante da discus­
são sobre ser e dever, o fato é que, com a transição para a modernidade,
a razão “objetiva” incorporada na natureza e na história da salvação
foi deposta pela razão “subjetiva” do espírito humano. Com isso, im ­
pôs-se a questão sobre o teor cognitivo de sentenças normativas em
geral e sobre a respectiva possibilidade de fundamentá-las.
Essa questão representa um desafio sobretudo para aqueles (como
Rawls e eu) que refutam tanto o realismo moral quanto o ceticismo
moderno em relação aos valores. A suposição recíproca de uma capa­
cidade de julgamento moral que observamos na práxis cotidiana exige
uma explicação que não contesta o caráter racional de argumentações
morais. A circunstância de que disputas morais continuem em curso
revela algo sobre a infra-estrutura da vida social, que está perpassada de
reivindicações triviais de validação. A integração social depende ampla­
mente de um agir que se oriente pelo acordo mútuo e que esteja emba-
sado sobre o reconhecimento de reivindicações de validação falíveis7.

7. Cf. J. Habermas, Theorie des kommunikativen Handels, 2 vols., Frankfurt am Main,


1981. V. tb. minhas “Sprechakttheoretischen Erlãuterungen zum Begriff der komm u­
nikativen Rationalitat”, Zeitschrift fürphilosophische Forschung, n. 50 (1996): 65-91.

94 A INCLUSÃO DO OUTRO
Diante desse contexto, nem a premissa com a qual Hobbes pre­
tendeu tirar a filosofia prática de seu beco sem saída torna-se mais plau­
sível. Hobbes pretendeu reduzir a razão prática a uma razão instru­
mental. Na tradição da teoria hobbesiana do contrato, há até hoje en­
foques inteligentes que logram, de forma harmônica, entender razões
morais no sentido de motivos racionais e atribuir juízos morais à esco­
lha racional. O contrato social é sugerido como um procedimento para
o qual é suficiente haver o interesse próprio e esclarecido dos partici­
pantes. Aos contratantes basta refletir se é racional ou propositado, à
luz de seus desejos e preferências, adotar uma regra comportamental
ou um sistema de regras desse tipo. Contudo, como demonstra o pro­
blema dos que deixam para tomar decisões oportunistas de última hora
quando tudo já está praticamente resolvido, essa estratégia ignora o
sentido especificamente obrigatório de normas vinculativas e de enun­
ciados morais válidos. De passagem, limito-me ao argumento que T.
M. Scanlon usou contra o utilitarismo: “The right-making force of a
persons desire is specified by what might be called a conception of
moral argumentation; it is not given, as the notion of individual well-
being may be, simply by the idea of what is rational for an individual to
desire”8. Contudo, se não se pode elucidar o teor cognitivo de enuncia­
dos normativos segundo os conceitos da racionalidade instrumental,
qual é o tipo de razão prática a que devemos recorrer?

O
De Hobbes a Kant

Aqui se apresenta a alternativa que desencadeou decisivamente


o desenvolvimento da teoria de Rawls: ou podemos avançar de H ob­
bes a Kant e desenvolver um conceito de razão prática que em certa
medida assegure aos enunciados morais um teor cognitivo, ou re­
corremos de novo às tradições “fortes” e às doutrinas “circunscri-

8. [A força jurígena do desejo de um a pessoa é especificada pelo que se pode


chamar de um a concepção de argumentação moral; ao contrário do que pode ocorrer
com a noção de bem-estar individual, essa concepção não é dada simplesmente pela
idéia do que seja racional um indivíduo desejar.] Cf. T. M. Scanlon, “Contractualism
and Utilitarianism”. In: A. K. Sen et B. Williams (orgs.). Utilitarianism and Beyond.
Cambridge Univ. Pr., 1982, p. 199.

Racional ” v e r s u s “verdadeiro ” 95
tivas” que garantem a verdade das concepções morais que nelas re­
pousam. Nas duas direções acabamos deparando impedimentos. Na
primeira direção, precisamos diferenciar claramente a razão prática
da teórica, mas de tal forma que ela não ponha a perder seu teor cog­
nitivo. Nesse caso, estamos envolvidos com um pluralismo perm a­
nente de visões consideradas verdadeiras no círculo de seus defen­
sores, muito embora todos saibam que apenas um a delas pode ser
realmente verdadeira.
Na tradição kantiana, a razão prática determina a perspectiva de
um julgamento imparcial de normas e princípios. Esse “ponto de vista
moral” é operacionalizado com a ajuda de diferentes preceitos e pro­
cedimentos — seja o imperativo categórico, seja um a troca ideal de
papéis, tal como em Mead, seja uma regra argumentativa, como em
Scanlon, seja a construção de uma condição primitiva que impõe res­
trições adequadas à escolha racional das partes, tal como sugere Rawls.
Esses diferentes delineamentos têm a finalidade última de possibilitar
uma convenção ou um acordo tal, que os resultados de nossa intuição
satisfaçam a deferência eqüânime e a responsabilidade solidária de­
vidas a cada um. Como os princípios e normas selecionados dessa
maneira exigem para si um reconhecimento geral, essa união erigida
por via correta precisa qualificar-se em sentido epistêmico. As razões
postas na balança precisam ter peso epistêmico e não podem expres­
sar tão-somente o que certas pessoas consideram racional fazer, se­
gundo suas respectivas preferências dadas.
Uma possibilidade de apreender o papel epistêmico de reuniões
práticas em conselho é a descrição exata, sob o ponto de vista moral,
da maneira pela qual os interesses pessoais que entram nessas reu­
niões como motivos racionais vão alterando seu próprio papel e sig­
nificado ao longo da argumentação. Pois em discursos práticos o que
“conta” para o resultado são apenas os interesses apresentados como
valores intersubjetivamente reconhecidos e que se candidatam a ser
aceitos no teor semântico das normas válidas. Somente as orienta­
ções de valor generalizáveis ultrapassam esse limiar, ou seja, somente
as orientações de valor que podem ser aceitas com boas razões por
todos os participantes (e envolvidos) para servirem à normatização
de uma matéria carente de regulamentação — e que com isso ganham
força normativamente vinculativa. Um “interesse” pode ser descrito
como “orientação de valor” quando é partilhado por outros integran­

96 A INCLUSÃO DO OUTRO
tes em situações parecidas. Portanto, caso se deva considerar um in­
teresse sob o ponto de vista moral, é preciso que ele se desprenda da
vinculação à perspectiva de um a primeira pessoa. Tão logo ele seja
traduzido para um vocabulário avaliativo subjetivamente partilhado,
aponta para além de desejos ou preferências e então, como candidato
a um a generalização valorativa no âmbito de fundamentações m o­
rais, pode assumir o papel epistêmico de um argumento. O que in­
gressa no discurso como desejo ou preferência só passa no teste de
generalização mediante a descrição de um valor que seja considerado
por todos os participantes em geral como aceitável para a regulamen­
tação da respectiva matéria.
Suponhamos que a reunião prática em conselho possa ser con­
cebida como uma forma de argumentação que se diferencie tanto da
escolha racional quanto do discurso factual. Aí então uma teoria da ar­
gumentação orientada de maneira pragmática se apresentaria como
caminho para se elaborar a concepção de uma razão prática distinta
tanto da razão instrumental quanto da teórica. Seria possível garantir
um sentido cognitivo a sentenças obrigacionais sem assimilá-las a sen­
tenças assertivas ou atribuí-las à racionalidade instrumental. Ainda
persiste, no entanto, a analogia entre verdade e correção normativa, o
que imporia novas questões. Não poderiamos eximir-nos das já co­
nhecidas controvérsias sobre conceitos semânticos e pragmáticos de
fundamentação e de verdade, nem tam pouco da discussão sobre a
relação entre significação e validação, sobre a construção e o papel de
argumentos, sobre lógica, procedimento e forma comunicativa da ar­
gumentação, e assim por diante. Precisaríamos ocupar-nos da rela­
ção do universo social com os universos objetivo e subjetivo, e não
poderiamos escapar do debate perm anente acerca da racionalidade.
Por isso é muito compreensível a tentativa de Rawls de evitar discus­
sões desse tipo — e mesmo que não se classifiquem essas controvér­
sias como sendo “metafísicas”.
Por outro lado, se a estratégia de desoneração de uma separação
clara entre o político e o metafísico pode ou não ter êxito, essa é outra
questão. Inicialmente, Rawls procurou seguir a estratégia kantiana de
avanço; em Uma teoria da justiça ele se havia imposto a tarefa de aclarar
o “ponto de vista moral” com o auxílio da condição primitiva. De qual­
quer modo, a construção da “justiça como honestidade” nutriu-se de
um a razão prática que se corporifica nas duas “capacidades elevadas”

Racional ” versus “verdadeiro ” 97


de uma pessoa moral. Nas conferências sobre Dewey, Rawls conti­
nuou elaborando esse “construtivismo kantiano”9. Essa tendência
também se manifesta no terceiro capítulo de O liberalismo político.
Mas no âmbito desse enfoque modificado a razão perde sua posição
forte. A razão prática é como que moralmente destituída de seu cerne
e deflacionada à condição de uma racionalidade que incorre na de­
pendência em relação a verdades morais fundadas em outras bases. A
validação moral da concepção de justiça já não se fundamenta mais a
partir de um a razão prática vinculativa em geral, mas sim a partir de
uma feliz convergência de imagens de m undo racionais que se super­
põem de forma suficiente em seus constituintes morais. Na verdade,
os restos da concepção original emendam-se, e não sem dificuldades,
na teoria atual.
Em O liberalismo político, duas tendências fundadoras divergen­
tes se encontram. A idéia do consenso abrangente tem por conseqüên-
cia o claro enfraquecimento do anseio de racionalidade da concepção
kantiana de justiça. Primeiramente, pretendo apresentar a nova divi­
são do ônus da prova, agora entre a razão da justiça política e a ver­
dade das imagens de mundo, para então abordar as inconsistências
que indicam que Rawls realmente hesita em submeter a razão prática
à moral das imagens de mundo, até o ponto em que a alternativa às
abordagens kantianas (agora em voga) realmente exigiríam.

A alternativa ao procedimentalismo kantiano

Chega-se a um consenso abrangente “when all reasonable mem-


bers of political society carry out a justification of the shared political
conception by embedding it in their several reasonable comprehensive
views” [quando todos os membros racionais da sociedade política
tornam efetiva a justificação de uma concepção política partilhada,
ao integrar essa mesma justificação a suas diversas visões racionais
circunscritivas] (R, p. 143). Rawls sugere uma divisão de trabalho en­

9. J. Rawls, “Kantian Constructivism”, The Journal ofPhilosophy, LXXVII (1980):


pp. 515-573; esse enfoque perd u ra e é assum ido p or R. Milo, “C o n tractarian
Constructivism”, The Journal ofPhilosophy, XCII (1995): pp. 181-204.

98 A INCLUSÃO DO OUTRO
tre o político e o metafísico, o que resulta na separação entre o con­
teúdo — sobre o qual todos os cidadãos podem estar de acordo — e as
respectivas razões — a partir das quais o indivíduo pode aceitar esse
conteúdo como sendo verdadeiro. Essa construção parte tão-somente
de duas perspectivas: cada cidadão vincula a perspectiva de partici­
pante à de observador. Observadores podem descrever processos na
esfera política, tais como, por exemplo, o fato do surgimento de con­
sensos abrangentes. Podem saber que esse consenso se ajusta em de­
corrência da sobreposição bem-sucedida das diversas partes de dife­
rentes imagens religiosas e metafísicas de mundo, e que ele contribui,
desse modo, para que haja estabilidade na coletividade. Porém, nesse
ajuste dos observadores, o qual tem por fim a objetivação, os cida­
dãos não podem imergir reciprocamente nas demais imagens de
mundo, nem reconstituir os respectivos teores de verdade a partir de
cada uma das demais perspectivas internas. Banidos às fronteiras dos
discursos que se limitam a constatar fatos, veda-se aos cidadãos um
posicionamento em face do que os participantes crentes ou convic­
tos consideram verdadeiro, correto e valoroso, a partir de suas pers­
pectivas de primeira pessoa. Tão logo os cidadãos tenham a intenção
de se expressar sobre as verdades morais ou, em geral, sobre as “con­
cepções do que tem valor na vida hum ana” (PL, p. 175), eles se vêem
obrigados a reassumir a perspectiva de participante inscrita em sua
própria imagem de mundo. Pois os enunciados morais ou os juízos
de valor só podem ser fundamentados a partir do contexto de inter­
pretações de m undo mais próximo. Razões morais para um a con­
cepção de justiça que se tenha presuntivamente em comum são, por
definição, razões não-públicas.
Só a partir da perspectiva de seu próprio sistema interpretativo
é que os cidadãos podem se convencer da verdade de uma concepção
de justiça — adequada para todos. É ao obter um a aprovação funda­
mentada de maneira não-pública por todos os envolvidos que tal con­
cepção comprova sua adequação como base comum para um a justi­
ficação pública de princípios constitucionais. Portanto, a validação
pública do conteúdo desse “consenso abrangente” acatado por to ­
dos, ou seja, sua “racionalidade”, decorre tão-somente da feliz cir­
cunstância de que no resultado final converjam as razões não-pú­
blicas motivadas pelas mais diversas vias. Das premissas de diferen­
tes visões resulta, nas conseqüências, um a concordância. Com isso, é

'Racional ” v e r s u s “verdadeiro ” 99
decisivo para a adoção da teoria no todo que os participantes pos­
sam observar essa convergência como mero fato social: “The express
contents of these doctrines have no normative role in public justifi-
cation” [Os conteúdos expressos dessas doutrinas não desempenham
papel normativo no processo de justificação pública] (R, p. 144). Pois
nesse estágio Rawls não concede a seus cidadãos um a terceira pers­
pectiva, um a perspectiva que venha acrescer-se à dos observadores e
participantes. Antes que se chegue a um consenso abrangente, não
há qualquer perspectiva pública, intersubjetivamente partilhada, que
possa tornar possível aos cidadãos alcançar um a formação de juízo
“de casa”, por assim dizer. Podemos dizer que falta o “ponto de vista
moral” sob o qual os cidadãos, em um conselho público e comunal,
possam desenvolver e justificar uma concepção política. O que Rawls
denomina “uso público da razão” pressupõe, como base comum, um
consenso político fundamental já alcançado. Essa base só é ocupada
pelos cidadãos post festum, ou seja, na seqüência da “sobreposição”
de suas diferentes convicções de fundo que se vão ajustando: “Only
when there is a reasonable overlapping consensus can political
societys political conception of justice be publicy... justified” [So­
mente quando há um consenso racional decorrente da sobreposição
é que se pode justificar publicamente a concepção política de justiça
de uma sociedade política] (R, p. 144).
Decisiva para a relação complementar entre o político e o m e­
tafísico é uma descrição da situação de partida tal como representada
a partir da visão de “crentes”, ou seja, da visão que representa a parte
“metafísica”. Na divisão de trabalho entre o político e o metafísico re-
flete-se a relação complementar entre o agnosticismo público e a con­
fissão privada, entre o daltonismo confessional de um poder estatal
neutro e a força iluminadora de visões de m undo que pelejam pela
“verdade” no sentido enfático. As verdades morais que como antes
continuam abrigadas em imagens de m undo religiosas e metafísicas
partilham dessa forte reivindicação de verdade, mesmo que o fato do
pluralismo também lembre que as doutrinas circunscritivas não estão
mais aptas à justificação pública.
A engenhosa distribuição dos ônus de prova liberta a filosofia
política de sua inquietante tarefa de criar um sucedâneo para a funda­
mentação moral das verdades morais. O metafísico, embora tenha sido
riscado da agenda pública, continua sendo o fundamento último para

100 A INCLUSÃO DO OUTRO


a validação do que seja moralmente correto e eticamente bom. De
outra parte, o político ficou privado de uma fonte própria de valida­
ção. A idéia inovadora do “consenso abrangente” garante à justiça po­
lítica uma vinculação interna com os constituintes morais das ima­
gens de mundo, evidentemente sob a condição de que essa vinculação
só seja discernente para a moral das imagens de mundo, ou seja, desde
que elas permaneçam publicamente inacessíveis: “It is up to each com-
prehensive doctrine to say how its idea of the reasonable connects with
its concept of truth” [Cabe a cada doutrina circunscritiva dizer de que
maneira sua idéia do que seja racional vincula-se a seu conceito de
verdade] (PL, p. 94). O consenso abrangente apóia-se sobre os dife­
rentes constituintes morais do que um cidadão considera verdadeiro
no todo. Do ponto de vista do observador, ninguém está apto a saber
qual das imagens de m undo concorrentes é realmente verdadeira, caso
alguma delas o seja. Entretanto, é certo que a verdade dessa imagem
de m undo garantiría “that all the reasonable doctrines yield the right
conception of justice, even though they do not for the right reasons as
specified by the one true doctrine” [que todas as doutrinas racionais
resultassem na concepção correta de justiça, mesmo que elas não o
fizessem por causa das razões corretas, tal como especificadas pela única
doutrina verdadeira] (PL, p. 128).
Rawls concentra-se, como Hobbes, sobre as questões da justiça
política; ele retira da tradição hobbesiana a noção de que a almejada
união pública precisa nutrir-se das razões privadas, que são não-pú-
blicas. Mas nele, diferentemente de Hobbes, a aceitabilidade racio­
nal de uma sugestão que se revela como aceitável apóia-se sobre a
substância moral de diferentes imagens de m undo, que sob esse as­
pecto são convergentes — e não sobre as preferências de pessoas di­
versas, que se complementam m utuamente. Com a tradição kantia-
na Rawls partilha a fundamentação moral da justiça política. As ra­
zões moralmente convincentes dão suporte a um consenso — que
ultrapassa um mero modus vivendi. Mas essas razões não podem ser
publicamente testadas em comum, por todos, já que o uso público
da razão depende de um a base que precisa ser produzida à luz de
razões não-públicas. O consenso abrangente, tal como um acerto
[Kompromiss], repousa sobre as respectivas e diversas razões das partes
envolvidas; diferentemente do que se dá em um acerto, porém, essas
razões são de natureza moral.

‘Racional ” v e r s u s “verdadeiro ” 101


Uma “terceira” perspectiva para o racional

A noção do overlapping consensus torna necessária uma explica­


ção da expressão reasonable. Embora a aceitação de um a concepção
vaga de justiça nutra-se de verdades metafísicas complementares, é
imperioso, por isso mesmo, que algo próximo a uma “racionalidade”
venha aliar-se a essa concepção política e acrescentarás verdades idios­
sincráticas e não-transparentes umas para as outras o aspecto do reco­
nhecimento público. Sob aspectos validativos subsiste um a incômoda
assimetria entre a concepção pública de justiça (que ocasiona um anseio
de “racionalidade” atenuado) e as doutrinas não-públicas (com um
forte anseio de “verdade”). É contra-intuitivo que uma concepção pú­
blica de justiça deva extrair sua autoridade moral de razões não-públi-
cas. Tudo o que é válido também tem de poder ser publicamente jus­
tificado. Enunciados válidos merecem reconhecimento geral a partir
de razões comuns. Nesse sentido, a expressão “agreement” é ambígua.
Ao passo que as partes que negociam um acerto podem ser favorá­
veis ao resultado por razões diversas, os participantes de uma argu­
mentação têm de chegar a uma concordância racionalmente motiva­
da, se é que poderão fazê-lo, a partir de razões em comum. Uma práxis
justificadora como essa está assentada sobre um consenso alcançado
de maneira pública e comunal.
Mesmo aquém da esfera política as argumentações exigem, em
certa medida, um uso público da razão. Em discursos racionais, ape­
nas se eleva a assunto formal o que no dia-a-dia se presta como um
recurso para a força vinculativa dos atos de fala — ou seja, reivindi­
cações de validação que clamam por reconhecimento intersubjetivo
e que, caso sejam problematizadas, fazem antever um a justificação
pública. Da mesma forma ocorre com reivindicações de validação nor­
mativas. O hábito de discutir sobre questões morais com base em ra­
zões entraria em colapso caso os participantes tivessem de tom ar
como ponto de partida a noção de que juízos morais dependem es­
sencialmente de convicções pessoais de fé, e caso não pudessem mais
contar com a aceitação dos que não partilhassem essa mesma fé10. Isso

10. Cf. L. W ingert, Gemeinsinn und Moral, Frankfurt am Main, 1993, parte II,
pp. 166ss.

102 A INCLUSÃO DO OUTRO


certamente não pode ser transferido de maneira imediata para o âm ­
bito da política; pois as controvérsias políticas são de natureza mista.
Mas quanto mais elas se ocupam de princípios constitucionais e com
as concepções de justiça subjacentes, tanto mais se assemelham aos
discursos morais. No mais, questões fundamentais da política estão
relacionadas a questões da implementação jurídica. E são apenas as
regulamentações coercivas que tornam necessário um consenso polí­
tico básico por parte dos cidadãos.
Não é a própria exigência que se faz discutível, mas sim como ela
deve ser cumprida. Questiona-se se os cidadãos em geral podem dis­
cernir alguma coisa como sendo “racional”, se não lhes é permitido
assumir uma terceira posição — ao lado das posições de observador e
participante. Pode surgir da pluralidade de razões vinculadas a cosmo-
visões em particular, cujo caráter público é reconhecido reciprocamente,
um consenso que sirva de base a um uso público da razão por parte
dos cidadãos de uma coletividade política? Eu gostaria sobretudo de
saber se Rawls pode explicar a formação de tal consenso abrangente
sem recorrer tacitamente a uma “terceira” perspectiva como essa, a partir
da qual “nós”, os cidadãos reunidos em conselho público e comunal,
determinamos equanimemente o que é do interesse de cada um.
A perspectiva do membro de uma comunidade de fé difere da
perspectiva do participante em discursos públicos. A força decisória
existencial de um indivíduo único e irrepresentável, interessado em obter
clareza quanto à condução de sua própria vida a partir da perspectiva
da primeira pessoa do singular, é algo diferente da consciência falibilis-
ta do cidadão que participa da formação de opinião e de vontade por
via política. Mas Rawls, conforme se demonstrou, não imagina o pro­
cesso do acordo sobre uma concepção comum de justiça como algo do
tipo em que os cidadãos assumam uma mesma perspectiva. Porque
falta essa perspectiva, a concepção que se revelar “racional” terá de se
ajustar ao contexto das imagens de m undo consideradas “verdadeiras”.
Mas o sentido universalista de “racional” não acaba sendo afetado pela
circunstância de que a verdade não-pública das doutrinas metafísicas
ou religiosas goza de primazia em relação a uma concepção política?
Rawls introduz o predicado “racional” da seguinte maneira. Cida­
dãos que estão em condições e dispostos a viver em uma sociedade
“bem ordenada” são denominados “racionais”; como pessoas racio­
nais, eles têm também concepções racionais do m undo como um todo.

“R acional ” v e r s u s “verdadeiro ” 103


Quando o consenso esperado resulta de doutrinas racionais, então
também seu conteúdo é considerado racional. Portanto, “racional”
refere-se primeiramente ao posicionamento de pessoas que (a) estão
prontas a firmar acordos sobre condições justas e honestas para a coo­
peração social entre cidadãos livres e iguais, bem como ater-se a essas
condições, e (b) pessoas que estão aptas a reconhecer ônus de provas e
obrigações argumentativas — “burdens of argument” — e assumir as
conseqüências daí decorrentes. O predicado, em um passo seguinte, é
transferido dos posicionamentos para as convicções das pessoas ra­
cionais. Imagens de m undo racionais reforçam em seus partidários
uma atitude tolerante, porque são reflexivas de uma certa maneira e se
submetem a determinadas restrições com vistas a conseqüências prá­
ticas. Uma consciência “reflexiva” resulta da subsistência de uma dis-
sensão racionalmente presumível entre diferentes doutrinas que con­
correm entre si. E forças de fé subjetivadas a esse ponto só podem
concorrer em condições de igualdade e sob um pluralismo de visões
de m undo se seus defensores prescindem do recurso ao poder político
quando se trata de impor verdades da fé.
No contexto de nossa discussão, tem especial importância o fato
de que um a “racionalidade” assim especificada não requer dos cida­
dãos e imagens de m undo uma perspectiva a partir da qual as ques­
tões básicas da justiça política possam ser discutidas de maneira pú­
blica e comunal. Posicionamentos “racionais” não implicam o ponto
de vista moral, nem imagens de mundo “racionais” vêm torná-lo pos­
sível. Uma perspectiva como essa só se abre quando um consenso
abrangente tiver sido firmado em torno de uma concepção de justiça.
Entretanto, Rawls não parece eximir-se de recorrer ao menos de m a­
neira não-oficial a essa “terceira” perspectiva “naquele caso fundador
da justificação pública” (R, p. 144). Tem-se a impressão de que ele per­
manece dividido entre sua estratégia original, perseguida de Uma teoria
da justiça e ainda mais fortemente associada a Kant, e a alternativa
posterior, que se propôs fazer jus ao fato do pluralismo. Também aqui
o filósofo continua assumindo uma perspectiva do julgamento impar­
cial; mas essa postura — digamos — profissional não encontra corres­
pondente algum em um ponto de vista moral que o próprio cidadão,
“de casa”, pudesse partilhar.
Nesse ínterim, Rawls chegou a manifestar-se de maneira mais
detalhada quanto ao problema da justificação do consenso abrangente

104 A INCLUSÃO DO OUTRO


(R, p. 142 ss.). Ao analisarmos com precisão os “três tipos” de justifi­
cação que ele explica nesse texto, deparamos com a interessante ques­
tão sobre de que modo identificar como tais as imagens de m undo
“racionais”, se não se dispõe dos parâmetros de uma razão prática inde­
pendente de imagens de mundo. Para a seleção de imagens de m undo
racionais são necessárias decisões normativas até certo ponto “enxutas”,
as quais seria preciso poder fundamentar independentemente de su­
posições metafísicas de fundo mais “densas”.

O
O último estágio da justificação11

Rawls denomina o lugar em que deve ocorrer a justificação de


um a concepção política de justiça “the place among citizens in civil
society — the viewpoint of you and me” [o lugar entre cidadãos em
um a sociedade civil — o ponto de vista seu e m eu]. Aqui, cada cida­
dão parte do contexto de sua própria imagem de m undo e do conceito
de justiça aí inserido. Pois para considerações normativas é prim eira­
mente a perspectiva dos participantes que está à disposição. Em tal
medida, não há tampouco no ponto de partida um a distinção rele­
vante entre a posição de um cidadão qualquer e a do filósofo. Seja
filósofo ou não, um a pessoa racional seguirá seu senso de justiça para
desenvolver uma concepção vaga de justiça que, como a própria pes­
soa espera, pode ser aceita por todas as pessoas racionais, no papel de
cidadãos pretensamente livres e iguais. O primeiro passo construtivo
exige, então, a abstração de doutrinas circunscritivas. Além disso, com
a finalidade de uma “pro tanto justification” como essa, os cidadãos
provavelmente considerarão doutrinas filosóficas diversas e bem con­
cebidas. Essas teorias disponibilizam um fio condutor para o passo
abstrativo necessário. Por exemplo, a “condição primitiva” oferece-se1

11. Seguirei os “três tipos” de justificação na sequência indicada por Rawls. Essa
seqüência lógica não é entendida como um a ordem cronológica de estágios, mas assi­
nala o caminho em que cada contem porâneo pode radicalizar seu posicionamento em
relação a questões atuais de justiça política. Tão logo sua crítica questione o consenso
político fundamental vigente, a partir da visão de um a concepção de justiça concor­
rente, já caberá a esse mesmo contem porâneo defender sua alternativa a caminho de
um a gênese lógica como essa.

‘Racional ” versus “verdadeiro ” 105


como esquema para um teste de generalização desse tipo. Princípios
que sejam aprovados no teste parecem ser aceitáveis para cada um
dos envolvidos.
No entanto, ninguém poderá abdicar por completo de seu pró­
prio pré-entendimento, ao fazer uso desse procedimento. “Você e eu”
não podemos manusear o teste de generalização sem dispor de alguns
pressupostos. É preciso que procedamos a ele a partir da perspectiva
que se constitui por meio da imagem de m undo própria a cada um.
Com isso, sobretudo as suposições de fundo convergem por sobre a
esfera do que é político e por sobre tudo o que se deve contar como
assunto político. No passo seguinte, portanto, quando cada cidadão
insere na própria imagem de m undo o conceito que lhe parece pro­
missor, já não deveria haver praticamente nenhuma surpresa. O teste
de generalização certamente exige de todos os cidadãos racionais que
eles ignorem o que há de específico em cada um a das diferentes ima­
gens de mundo; mas também essa operação de generalização precisa
ser conduzida no contexto de uma cosmovisão própria. Pois ninguém
pode abrir mão de sua perspectiva de participante sem perder de vista
a dimensão normativa como tal — a partir da posição do observador.
Por essa razão, o teste de generalização funciona, em primeiro
turno, de uma forma não muito diferente de como funciona a regra
de ouro: ele filtra e elimina todos os elementos que segundo minha
visão são inadequados para ser aceitos por todas as pessoas racionais.
São aprovados no teste justamente os princípios e práticas, bem como
regulamentações e instituições, que, depois de lograrem se impor em
geral, contemplam o interesse de cada um segundo meu entendimento
do que é político. Nesse sentido, o manuseio dos testes é condicionado
pelo pré-entendimento orientado por visões de m undo em particular;
do contrário, o terceiro passo justificativo — que se concretiza analo­
gamente à passagem da regra de ouro para o imperativo categórico
— seria supérfluo12. Rawls considera esse passo necessário porque
“você e eu” não podemos saber se fomos bem-sucedidos na abstração
de todo e qualquer contexto vinculado a visões de m undo em parti­
cular, tal como pretendíamos quando submetemos nossas convicções

12. Cf. J. H abermas,“Vom pragmatischen, ethischen und moralischen Gebrauch


der praktischen Vernunft”. Jn: J. Habermas, Erlauterungen zur Diskursethik, Frankfurt
am Main, 1991, pp. 106s.

106 A INCLUSÃO DO OUTRO


normativas às restrições impostas pela condição primitiva, cada qual
a partir de seu melhor entendimento sobre o que fosse a esfera polí­
tica. Apenas no último estágio, que Rawls descreve como “the stage of
wide and reflective equilibrium” [o estágio de um equilíbrio amplo e
refletivo] (Reply 14, Fn. 16), tomamos conhecimento dos demais cida­
dãos: “Reasonable citizens take one another into account as having
reasonable comprehensive doctrines that endorse that political concep-
tion” [Cidadãos racionais levam um ao outro em consideração en­
quanto indivíduos que têm doutrinas circunscritivas racionais que
endossam essa concepção política] (R, p. 143).
Esse passo que finalmente deve levar ao consenso abrangente pode
ser entendido como radicalização de um teste de generalização até en­
tão incompleto e conduzido de forma egocêntrica. Somente a apli­
cação recursiva desse procedimento faz chegar ao resultado esperado:
todos os cidadãos, não apenas você e eu — e cada qual de sua perspec­
tiva e segundo sua visão do político — vêem-se obrigados a testar se
há um a sugestão capaz de receber aprovação geral. Rawls fala de um
“mutual accounting” [ponderação em conjunto]; mas o que se tem
em mente é uma observação m útua com a qual se constata se vai ou
não se chegar a um acordo. O consenso é um acontecimento que se
dá: “Public justification happens (my emphasis) when all the reasonable
members of political society carry out a justification of the shared
political conception by embedding it in their several reasonable com ­
prehensive views” [A justificação pública acontece (grifo meu) quan­
do todos os membros racionais da sociedade política tornam efetiva a
justificação de uma concepção política partilhada, ao integrar essa
mesma justificação a suas diversas visões racionais circunscritivas] (R,
p. 143). Nesse contexto, as expressões “public” e “shared” podem con­
duzir a enganos. O consenso abrangente resulta de um controle exer­
cido por todos ao mesmo tempo, mas cada um por si: trata-se do con­
trole quanto à adequação da concepção sugerida a cada imagem de
m undo em particular. Se isso der certo, cada um tem de aceitar a mes­
ma concepção — certamente a partir de suas próprias razões, que são
não-públicas — e ao mesmo tempo assegurar-se dos posicionamen­
tos afirmativos de todos os outros: “The express contents of those doc­
trines have no role in public justification; citizens do not look into the
content of others doctrines... Rather, they take into account and give
some weight only to the fact — the existence — of the reasonable

Racional ” v e r s u s “verdadeiro ” 107


overlapping consensus itself” (p. 144)I3. 0 consenso abrangente, por­
tanto, repousa sobre o que Rainer Forst denominou “um uso privado
da razão com intenção político-pública”14. Mais uma vez: nesse deli-
neamento dos “três tipos” de justificação falta a perspectiva do julga­
mento imparcial, bem como um uso público da razão (em sentido es­
trito), que deveria não só ter sido possibilitado pelo consenso abran­
gente, mas praticado em comum desde o início. Contudo, se os cida­
dãos “racionais” — no sentido indicado — só podem se convencer da
validação de um conceito de justiça no contexto de suas respectivas
imagens de mundo, não parece muito provável que cheguem algum
dia a firmar um consenso abrangente15. As expectativas dependem es­
sencialmente de quais revisões será permitido fazer no último estágio
de uma justificação descentralizada. A concepção justificada “pro tan­
to”, que “você e eu” consideramos válidas, de sua ou de m inha pers­
pectiva, “depois de levar em conta todos os valores”, bem pode fra­
cassar mediante um veto dos demais. Antes que nossa concepção possa
ser esclarecedora para todos os demais ela precisa ser revisada. A dis-
sensão desencadeada por esse tipo de adequações diz respeito em pri­
meira linha às diferenças que nem você nem eu antecipamos, em
primeiro turno, em nosso entendimento sobre o que é político. Se­
gundo Rawls, distingo três tipos de diferenças de opinião: um a delas
(a) concerne à definição do campo dos assuntos políticos; a outra (b),
à classificação em série e ponderação racional dos valores políticos; e a
última e mais importante (c), à primazia de valores políticos sobre
valores não-políticos.
Sobre (a) e (b). Diferentes interpretações, por exemplo a do prin­
cípio da separação entre Igreja e Estado, respeitam à expansão e di­
mensão do campo político; pois elas levam a diversas recomenda­
ções normativas, direcionadas, nesse caso, ao status e ao papel de
comunidades e organizações religiosas. Outras controvérsias refe-
rem-se à classificação em série de valores políticos, por exemplo ao
valor intrínseco ou m eramente instrum ental da participação dos ci­

13. [“O conteúdo expresso dessas doutrinas não tem função na justificação p ú ­
blica; cidadãos não levam em conta o conteúdo de outras d outrinas... Antes levam em
conta e concedem alguma importância apenas ao fato — a existência — do próprio con­
senso racional coincidente”.]
14. R. Forst, Kontexte der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1994, p. 159.
15. Cf. Forst, 1994, pp. 152-161 e 72ss.

108 A INCLUSÃO DO OUTRO


dadãos em casos nos quais se tem de ponderar sobre os direitos à
participação política por oposição a liberdades negativas. Esses casos
conflitivos são norm alm ente levados a juízo, em última instância ao
Supremo Tribunal Federal, ou seja, eles são resolvidos com base num a
concepção de justiça já aceita. Tal é também o entendimento de Rawls.
No entanto, em casos isolados os conflitos podem chegar a tal gravi­
dade que as diferenças de opinião põem em questão o próprio con­
senso abrangente. Esses conflitos subvertem o próprio consenso abran­
gente. Nós, porém, queremos supor que a maioria desses pontos con­
flitivos pode ser resolvida por via consensual ou, conforme o caso,
por meio de revisões do entendimento constitucional vigente. Adap­
tações bem-sucedidas desse tipo viriam confirmar que os cidadãos
nesse último estágio da justificação bem podem aprender uns com os
outros, mesmo que de forma apenas indireta. O veto dos outros pode
provocar em nós, em você e em mim, o discernimento de que nossas
concepções de justiça apresentadas inicialmente ainda não estavam
suficientemente descentradas.
Sobre (c). Um outro tipo de conflitos estende-se à definição do
que se deve poder esperar das imagens de m undo “racionais”. Aí está
em questão o conceito de “racional”. Um exemplo disso, segundo de­
terminada descrição, é o conflito acerca do aborto. Os católicos, que
insistem em uma proibição genérica, afirmam ser mais importante
para eles sua convicção religiosa do valor da inviolabilidade da vida
do que qualquer outro valor político em nome do qual os cidadãos
esperem contar com sua anuência a uma regulamentação por assim
dizer moderadamente liberal. Rawls discute esse caso de passagem,
mas transfere o conflito de um plano da primazia dos valores políticos
ao plano da ponderação racional entre valores políticos (PL, p. 243 s.).
Portanto ele pressupõe que o princípio do uso público da razão pelos
cidadãos demanda uma tradução de suas concepções ético-existen-
ciais para a linguagem da justiça política. Mas, segundo as premissas
do próprio Rawls, a “razão pública” só pode impor tais restrições aos
cidadãos quando já se tiver alcançado um consenso político básico.
Durante a formação de um consenso abrangente não há nenhum cor­
respondente à autoridade neutra de um Supremo Tribunal Federal
(que afinal só entende a linguagem do Direito). Nesse estágio, ainda
existe a possibilidade de apelar à primazia do justo sobre o bom, já que
essa prioridade, por sua vez, pressupõe a primazia de valores políticos

‘R acional ” versus “verdadeiro ” 109


sobre valores não-políticos16. Rawls admite que um consenso abran­
gente só pode firmar-se entre cidadãos que tenham como ponto de
partida a supremacia de valores políticos sobre todos os demais valo­
res, em casos de conflito (PL, p. 139). Mesmo assim, isso não resulta
da “racionalidade” das pessoas nem de suas convicções. Rawls conten-
ta-se com a asseveração de que valores políticos sejam “valores muito
fortes” (PL, p. 155). Em outros trechos, ele se limita à “esperança” de
que essa supremacia dos partidários de imagens de m undo racionais
finalmente logre alcançar reconhecimento17.
Depreende-se dessas formulações comedidas que os graves con­
flitos do terceiro tipo só podem contar com uma solução se a tolerân­
cia dos cidadãos racionais e a racionalidade de suas imagens de m un­
do implicarem uma percepção concordante do universo político e uma
supremacia dos valores políticos. Mas tal exigência da razão faz trans­
parecer não apenas qualidades que as imagens de m undo já revelam,
de uma forma ou de outra; a expectativa de racionalidade também
precisa ser suscitada nas imagens de m undo concorrentes. Na supre­
macia dos valores políticos expressa-se uma exigência imposta pela
razão prática— a exigência de uma imparcialidade que aliás se articula
no ponto de vista moral. Este, porém, não se encontra no conceito de
racional introduzido por Rawls. No posicionamento de pessoas “ra­
cionais” dispostas a tratar as demais de maneira justa e honesta, mes­
mo que estas últimas não partilhem com elas suas visões religiosas e
metafísicas, não está implícito um ponto de vista moral comum a to­
dos, nem tampouco na reflexividade ou na renúncia à violência pre­

16. “The particular meaning of the priority o f rights is that comprehensive con-
ceptions of the good are admissible... only if their pursuit conforms to the political
conception ofjustice” [“O significado próprio de prioridades de direitos é que as concep­
ções compreensivas do bem são admissíveis... apenas se a busca desse bem é conforme
à concepção política de justiça”] (PL, p. 176, Fn. 2).
17. “In this case (i. e. w henan overlappingconsensus is achieved) citizens embed
their shared political conception in their reasonable comprehensive doctrines. Then
we hope that citizens will judge (by their comprehensive view) that political values are
normally (though not always) prior to, or outweigh, whatever non-political values
may conflict with them ” [“Nesse caso (i. é, quando um consenso abrangente é alcan­
çado), os cidadãos fixam sua concepção política comum em suas doutrinas racionais
compreensivas. Esperamos que então esses cidadãos julguem (com sua visão com ­
preensiva) que os valores políticos são normalmente (em bora não sempre) prioritá­
rios, ou mais valiosos, que quaisquer valores não-políticos que possam entrar em
conflito com eles”] (R .,p. 147).

110 A INCLUSÃO DO OUTRO


sentes nas imagens de m undo “racionais”. Uma exigência da razão prá­
tica, à qual as imagens de m undo tenham de se curvar no caso de um
consenso abrangente dever se tornar possível, só pode justificar-se,
evidentemente, em virtude de uma autoridade epistêmica que inde­
penda das próprias imagens de m undo18.
Com uma razão prática que se emancipasse da dependência da
moral das imagens de mundo, no entanto, a relação interna entre o
verdadeiro e o racional passaria evidentemente a estar acessível. Essa
vinculação tem de permanecer opaca somente enquanto a fundamen­
tação de uma concepção política só puder ser discernida a partir do
contexto da respectiva imagem de mundo. Contudo, a direção desse
ponto de vista inverte-se caso a precedência dos valores políticos tenha
de se legitimar a partir de um a razão prática que defina, ela mesma,
quais são as imagens de m undo que se podem considerar racionais.

Filósofos e cidadãos

Continua sem solução a tensão entre a “racionalidade” de uma


concepção política aceitável para todos os cidadãos que disponham de
uma imagem de mundo racional e a “verdade” que o indivíduo confe­
re a essa concepção a partir de sua cosmovisão. Por um lado, a validade
da concepção política nutre-se dos recursos validativos presentes nas
diferentes imagens de mundo, desde que elas sejam racionais. Por ou­
tro lado, as imagens de m undo racionais têm de se qualificar conforme
parâmetros que lhes são prescritos pela razão prática. O que as assi­
nala como racionais encontra sua medida em padrões que não podem
ser extraídos da imagem de m undo correspondente. Será que Rawls
pode fundamentar essas restrições a partir da razão prática sem retro­
ceder à posição kantiana de Uma teoria da justiça, ou ele precisa aban­
donar o âmago liberal de uma divisão do trabalho entre o político e o
metafísico? Por certo, em O liberalismo político, Rawls também leva em
conta as restrições da “razão pública”— “the general ones of theoretical
and practical reason”. Mas essas restrições só entram em ação após a
“justiça como honestidade” ser aceita pelos cidadãos; pois só então

18. Devo esse argumento a R. Forst, 1994, v. Fn. 8.

'Racional ” v e r s u s “verdadeiro ” 111


elas podem determinar a prioridade do justo sobre o bom (PL. p. 210)
e o modo como funciona o uso público da razão (PL, p. 216 ss.).
Quando, porém, a racionalidade das imagens de m undo se m a­
nifesta em restrições que elas não podem criar a partir de si mesmas, o
que deve valer como racional vê-se obrigado a recorrer a uma instân­
cia de imparcialidade já em vigor antes do estabelecimento de um con­
senso político fundamental. A “teoria da justiça” reivindicara validade
em nome da razão prática; ela independia de afirmação por parte das
imagens de m undo racionais. Ao longo do tempo, Rawls alcançou a
consciência de que essa teoria, muito mais em sua adoção do que em
seu conteúdo, não é suficiente para dar conta “do fato do pluralismo”
(Reply, p. 144, Fn. 21). Por essa razão ele apresenta o conteúdo essen­
cial da teoria original como um primeiro passo construtivo, carente
de complementações. O passo seguinte deve conduzir a teoria de uma
fase de preparação para imergi-la na opinião pública do m undo polí­
tico e fazer desembocar a investigação política no consenso político
fundamental dos cidadãos. A divisão dos ônus de prova entre essas
duas partes reflete-se na relação do racional com o verdadeiro. Não o
filósofo, mas os cidadãos devem ter a última palavra. Embora Rawls
não transfira completamente o ônus da fundamentação para as ima­
gens de m undo racionais, garante-se a elas a decisão final. Pois a teoria
entraria em choque com seu próprio espírito liberal se prejudicasse a
formação política da vontade dos cidadãos e antecipasse os resultados
desse processo; “Students of philosophy take part in formulating these
ideas but always as citizens among others” [Estudiosos de filosofia to ­
mam parte na formulação dessas idéias, mas sempre enquanto cida­
dãos entre os demais] (R, p. 174).
Por certo, o perigo de um paternalismo filosófico representa certa
ameaça apenas por parte de uma teoria que preceitua para os cida­
dãos o delineamento completo de uma sociedade bem ordenada.
Rawls não leva em conta a alternativa de que um procedimentalis-
m o19 conduzido de modo consciente possa dim inuir o caráter dra­
mático de uma tutela filosófica sobre os cidadãos. Uma teoria que se

19. Estou de acordo com as manifestações de Rawls sobre justiça procedimental


versus jusúçá substancial (R, pp. 170-180); contudo, essas reflexões não atingem o sen­
tido em que utilizo as expressões “procedimento” e “razão procedimental”, quando
afirmo que uma práxis argumentativa estabelecida de maneira determinada funda­
menta a hipótese da aceitabilidade racional de resultados.

112 A INCLUSÃO DO OUTRO


limite a aclarar as implicações da institucionalização jurídica dos pro­
cedimentos de autolegislação democrática não prejulga os resultados
que cabe tão-somente aos próprios cidadãos alcançar, no âmbito ins­
titucional moldado por esses procedimentos. Uma razão prática que
se corporifica em processos e não em conteúdos não assumirá ela
mesma nenhum papel paternalista se lhe for conferida uma autori­
dade pós-metafísica, independente de imagens de m undo em parti­
cular. Para esse enfoque a que sou favorável, há pelo menos alguns
pontos de apoio em Rawls.
De início, cabe resumir a reflexão tal como ela se deu até o pre­
sente momento. Concepções políticas racionais que validam a prece­
dência de valores políticos e que de tal forma também determinam
que imagens de mundo religiosas e metafísicas podem ser consideradas
racionais devem não apenas ser elaboradas sob um ponto de vista im ­
parcial, mas também precisam ser aceitas sob um ponto de vista como
esse. Tal ponto de vista transcende as perspectivas de participantes as­
sumidas por cidadãos enredados no contexto de suas próprias visões
de mundo. Por isso os cidadãos só podem continuar tendo a última
palavra se participarem da “formulação dessas idéias” a partir de uma
perspectiva mais ampla e subjetivamente partilhada, ou seja, se partici­
parem dela sob o ponto de vista moral. O teste recursivo de generaliza­
ção, que Rawls reserva ao terceiro estágio da justificação, iria tornar-se
então parte integrante de um a discussão pública sobre sugestões para
um a concepção de justiça capaz de estabelecer consenso. Se o resul­
tado for racionalmente aceitável — seja ele a “justiça como honesti­
dade” ou uma outra concepção qualquer — , não terá sido constatado
pela observação m útua de um consenso infundido; dessa maneira, ca­
bería mais força autorizadora às condições discursivas, às qualidades
formais de processos que coagem os participantes a assumir o ponto
de vista da formação imparcial de juízos.
Uma reflexão muito semelhante encontra-se em O liberalismo polí­
tico, mas em outro lugar sistemático — qual seja; o lugar em que o
filósofo graças a sua competência profissional desenvolve uma concep­
ção vaga de justiça e sua respectiva justificação “pro tanto”, para então
testar se seus módulos teóricos servem às intuições normativas de fundo
difundidas nas tradições políticas de uma sociedade democrática (apre­
sentada como um “sistema social completo e fechado”). Testam-se con­
ceitos fundamentais como os de pessoa moral, cidadão enquanto m em ­

Racional ” v e r s u s “verdadeiro ” 113


bro da associação de livres e iguais, sociedade como sistema de coope­
ração justa e honesta etc. As duas operações, tanto (a) a construção de
uma concepção de justiça, quanto (b) a asseguração reflexiva de seus
fundamentos conceituais, têm implicações que elucidam de maneira
interessante a relação do filósofo com os cidadãos.
(a) Um filósofo que como Rawls segue os princípios do “constru-
tivismo político” compromete-se a ser objetivo, ou seja, ele observa os
“essentials of the objective point of view” [elementos essenciais do ponto
de vista objetivo] e obedece aos “requirements of objectivity” [às exi­
gências da objetividade] (PL III, §§ 5-7). Essas são as determinações
procedimentais da razão prática: “It is by the reasonable that we enter
the public world of others and stand ready to propose, or accept, as the
case may be, reasonable principies to specify fair terms of cooperation.
These principies issues form a procedure of construction that express
the principies of practical reason...” [Faz parte do racional que ingres­
semos no m undo público dos demais e que estejamos prontos a pro­
por, ou aceitar, conforme o caso, princípios racionais para detalhar ter­
mos de cooperação justos e honestos. Esses princípios firmados con­
formam um procedimento de construção que expressa os princípios
da razão prática...] (PL, p. 114). O filósofo, portanto, obedece a pa­
drões de racionalidade que, embora independentes de imagens de
mundo, contêm um teor moral-prático. Se esses padrões ao mesmo
tempo impõem limites às imagens de m undo de cidadãos racionais,
isso depende do papel que o filósofo deve desempenhar. Ocasional­
mente isso pode soar como se o filósofo, com sua proposta elaborada
de forma competente, devesse exercer uma influência estruturaáora
sobre os cidadãos. Rawls, de qualquer maneira, manifesta sua esperan­
ça “that in fact (the philosophical offer) will have the capacity to shape
(my emphasis) those doctrines toward itself” (R, p. 145)20.
(b) O método do equilíbrio reflexivo certamente imputa ao filó­
sofo um papel mais modesto; ele o remete ao saber básico intersubje-
tivamente partilhado de uma cultura liberal. Certamente, esse saber
só terá eficácia para a instância de controle na escolha dos conceitos
teóricos básicos, se nele já estiver assentada a perspectiva de um julga­
mento imparcial nas questões de justiça política. Do contrário, o filó­

20. [“... de que de fato (a oferta filosófica) será capaz de formatar (grifo meu)
essas doutrinas em relação a si mesma”].

114 A INCLUSÃO DO OUTRO


sofo nada podería aprender dos cidadãos e de suas convicções polí­
ticas. Para que o método do equilíbrio reflexivo possa ter êxito, a filo­
sofia tem, por assim dizer, de encontrar sua própria perspectiva já de
antemão na sociedade dos cidadãos. Não se pode entender tal coisa
como se a filosofia pudesse abandonar-se a um consenso fundam en­
tal que — como pressuposto — já existisse em sociedades liberais, e
que oferecesse assim uma base para o uso público da razão (institu­
cionalizado, p. ex., nos tribunais constitucionais). Nem toda cultura
que se autodenomina liberal de fato o é. Uma filosofia que se limitasse
a esclarecer por via hermenêutica o que de qualquer maneira já existe
teria posto a perder sua força crítica21. A filosofia não pode somente
aliar-se a convicções factualmente infundidas; ela também tem de po­
der julgá-las segundo os parâmetros de uma concepção racional de
justiça. Por outro lado, não pode construir tal concepção de próprio
punho e impingi-la como norm a a uma sociedade destituída de auto­
nomia. Precisa evitar tanto a duplicação acrítica da realidade, quanto
o deslize para um papel paternalista. Ela não pode nem simplesmente
aceitar as tradições já consolidadas, nem traçar conteudisticamente um
delineamento para a sociedade bem ordenada.
Um caminho para se deixar esse beco sem saída é apontado pelo
próprio método do “equilíbrio reflexivo”, quando bem entendido; pois
esse método cria compromissos com um a apropriação crítica das tra­
dições. Isso dá certo com tradições que se permitem entender como
expressão de processos de aprendizagem. Para identificar processos
de aprendizagem como tais precisa-se de um ponto de vista prede-
cessor e orientado ao julgamento crítico. A filosofia dispõe dele em
seu próprio anseio por objetividade e imparcialidade. Mas em seu
próprio recurso a determinações procedimentais da razão prática,
pode se sentir atestada por uma perspectiva que ela mesma já encontra
na sociedade: ou seja, pelo ponto de vista moral sob o qual as socie­
dades modernas são criticadas por seus próprios movimentos sociais.
A filosofia só pode se com portar de maneira afirmativa em face do
potencial negador que se corporifica nas tendências sociais a um a
autocrítica sem condescendência.

21. Tal se apresenta a interpretação contextualista da teoria rawlsiana em R. Rorty,


“Der Vorrang der Demokratie vor der Philosophie”. In: R. Rorty, Solidaritat oder Objek-
tivitaU Stuttgart, 1988, pp. 82-125; aqui pp. 95ss.

‘R acional ” v e r s u s “ verdadeiro ” 115


O âmago do liberalismo

Assim, quando entendemos a justiça de maneira procedimental,


as relações entre o político e o moral, e também entre o moral e o
ético, passam a ser vistas sob nova luz. Uma justiça política que anda
pelas próprias pernas não precisa mais da cobertura de imagens de
m undo religiosas ou metafísicas. Enunciados morais não podem sa­
tisfazer menos as condições do pensamento pós-metafísico do que
enunciados descritivos, mas apenas o fazem de uma maneira diferen­
te. Graças a um ponto de vista moral que também se articula no que
Rawls denomina “the procedural requirements for a public use of
reason” [as exigências procedimentais para um uso público da razão]
e “standards of reasonableness” [padrões de racionalidade], os juízos
morais ganham independência em relação a contextos determinados
por visões de m undo em particular. A correção de enunciados morais
é explicada, tal como a verdade de enunciados assertivos, em concei­
tos da solução discursiva de reivindicações de validação. (Naturalmente,
nenhum dos dois é capaz de esgotar o sentido de verdades metafí­
sicas.) Já que os juízos morais só se referem a questões da justiça em
geral, questões de justiça política precisam ser especificadas com auxí­
lio da remissão ao instrumental do Direito. Aqui, isso não continuará
despertando nosso interesse.
Quando porém reflexões morais e políticas retiram sua validação
de uma fonte independente, altera-se o papel cognitivo de suas ima­
gens de mundo. Aí elas passam a ter um teor essencialmente ético e
constroem o contexto para o que Rawls denomina o “valor substancial
de concepções circunscritivas do bem”. As “visões da vida bem-sucedi­
da” são o cerne de um auto-entendimento pessoal ou coletivo. Ques­
tões éticas são questões sobre a identidade. Elas têm significado exis­
tencial e são bem acessíveis, dentro de certos limites, a um esclareci­
mento racional. Discursos éticos obedecem a parâmetros de uma refle­
xão hermenêutica sobre o que, visto no todo, “é bom” para mim ou para
nós. Recomendações éticas ligam-se a um tipo de reivindicação de vali­
dação que se distingue tanto da verdade quanto da correção moral.
Elas se medem pela autenticidade de uma autocompreensão de indiví­
duos e coletividades que se formou no contexto respectivo, seja de uma
vida pessoal, seja de uma ocorrência intersubjetivamente partilhada da

116 A INCLUSÃO DO OUTRO


tradição. Por isso, sob uma forma específica, as razões éticas são de­
pendentes de contextos — são “não-públicas” no sentido de Rawls. Por
certo, assumimos com cada enunciado os habituais ônus de prova e
obrigações argumentativas — burdens o f judgement. Mas valorações
fortes não estão submetidas apenas às ressalvas genericamente fali-
bilistas. De discussões sobre a valoração de estilos e formas de vida dis-
crepantes não podemos racionalmente esperar outra coisa senão uma
dissensão capaz de suscitar discernimento para os diversos envolvidos22.
Em face disso, quando se trata de questões de justiça política e de m o­
ral, então esperamos em princípio respostas vinculativas em geral.
Concepções kantianas reivindicam neutralidade em face das ima­
gens de mundo, um status “vago” no sentido da neutralidade ética,
mas não no da neutralidade filosófica. A discussão dos fundamentos
epistemológicos de O liberalismo político deveria demonstrar que tam ­
pouco Rawls pode evitar controvérsias filosóficas. A relação problemá­
tica entre o racional e o verdadeiro carece de uma elucidação que põe
em questão a estratégia de evitação utilizada por Rawls. O conceito de
razão prática evidentemente não pode ser destituído de um cerne m o­
ral, nem tampouco a moral pode ser empurrada para dentro da caixa
preta das imagens de mundo. Não vejo qualquer alternativa plausível
à estratégia kantiana de avanço. Parece não haver caminho algum que
permita passar ao largo da necessidade de elucidar o ponto de vista
moral com auxílio de um procedimento independente do contexto (se­
gundo cada reivindicação). Tal procedimento não está de forma alguma
livre de implicações normativas, como Rawls tem razão em acentuar
(Reply, p. 170 ss.), justamente porque está irmanado a um conceito de
autonom ia que integra “razão” e “vontade livre”; em tal medida é que

22. Estou seguramente de acordo com Charles Larmore (“The Foundations of


M odem Democracy”. In: European Journal ofPhilosophy, n. 3,1995, p. 63) quando ele
afirma: “The fact that our vision of the good life is the object of reasonable disagreement
does not entail we should withdraw our allegiance to it or regard it henceforth as a
mere article of faith... We should remember only that such reasons are not likely to be
acceptable to other people who are equally reasonable, but have a different history of
experience and reflection” [“O fato de nossa visão da vida boa ser objeto de desacordo
racional não implica que devemos desistir de nossa opção por ela ou considerá-la mero
artigo de fé... Devemos lembrar apenas que tais razões não parecem ser aceitáveis a
outras pessoas igualmente razoáveis, mas com um a história de experiência e reflexão
diversa” ]. Lamore entendeu mal m inha concepção do uso ético da razão prática; cf.
Habermas, 1991,pp. 100-118.

‘Racional ” versus “verdadeiro ” 117


ele não pode ser normativamente neutro. Autônoma é a vontade guiada
pela razão prática. De modo geral, a liberdade consiste na capacidade
de vincular o arbítrio a máximas; mas autonomia é a autovinculação
do arbítrio por meio de máximas que tornamos nossas com base no dis­
cernimento. Como está mediada pela razão, a autonomia não é um
valor como qualquer outro. Isso explica por que esse teor normativo
não prejudica a neutralidade de um procedimento. Um procedimento
que dá possibilidade de ação ao ponto de vista moral da formação
imparcial de juízos é neutro em face de constelações valorativas quais­
quer, mas não diante da própria razão prática.
Com a construção de um consenso abrangente Rawls desloca o
acento do conceito kantiano de autonomia para algo como uma auto­
determinação ético - existencial; é livre quem assume a autoria de sua
própria vida. Esse itinerário tem também um mérito especial. Pois a
divisão de trabalho entre o político e o metafísico direciona a atenção
para a dimensão ética que Kant negligenciou. Rawls preserva um dis­
cernimento que Hegel outrora fez prevalecer contra Kant23; m anda­
mentos morais não podem ser impingidos à história de vida de uma
pessoa nem mesmo quando apelam a uma razão comum a todos nós
ou a um sentido universal para a justiça. Mandamentos morais têm
que manter uma concatenação interna com as projeções e modos de
vida da pessoa atingida, uma concatenação que ela mesma seja capaz
de reconstituir.
O peso diferenciado atribuído à liberdade moral e à autodeter­
minação ético-existencial oferece-se a oportunidade para uma obser­
vação de princípios. A maneira como as teorias da justiça política se
distinguem em sua adoção, senão em sua própria substância, trai dife­
renças em intuições subjacentes.
O liberalismo político ou do estado de direito parte da intuição de
que o indivíduo e a condução individual de sua própria vida precisam
ser defendidos das intervenções feitas pelo poder estatal: “Political
liberalism allows... that our political institutions contain sufficient space
for worthy ways of life ant that in this sense our political society is just
and good” [Trad. do inglês] (PL, p. 210). Com isso, a diferenciação entre
esfera privada e pública ganha um significado precípuo. Ela determina
o itinerário para a interpretação decisiva da liberdade: a liberdade de

23. Cf. L. Wingert, 1993, pp. 252ss.

118 A INCLUSÃO DO OUTRO


arbítrio das pessoas jurídicas privadas garantida por via legal circuns­
creve o espaço de preservação para uma condução consciente da vida,
orientada por cada uma das concepções próprias do que seja o bem.
Direitos são liberties, algo como capas protetoras para a autonomia pri­
vada. A preocupação central está voltada a garantir a cada um a mesma
liberdade para levar uma vida autêntica, autodeterminada. A partir dessa
visão, cabe à autonomia pública dos cidadãos do estado que participam
da práxis autolegislativa da coletividade possibilitar a autodetermi­
nação pessoal das pessoas em particular. Embora a autonomia pública
possa ter para algumas pessoas um valor intrínseco, em primeira linha
ela parece ser um meio para a possibilitação da autonomia privada.
O republicanismo kantiano, segundo o entendo, parte de uma
outra intuição. Ninguém pode ser livre à custa da liberdade de um ou­
tro. Pelo fato de as pessoas só se poderem individuar pela via da socia­
lização, a liberdade de um indivíduo une-se à de todos os outros, e não
apenas de maneira negativa, por meio de limitações mútuas. Delimita­
ções corretas, mais que isso, são o resultado de uma autolegislação exer­
cida em conjunto. Em uma associação de livres e iguais, todos preci­
sam entender-se, em conjunto, como autores das leis às quais se sen­
tem individualmente vinculados como seus destinatários. Por isso o
uso público da razão legalmente institucionalizado no processo dem o­
crático representa aqui a chave para a garantia de liberdades iguais.
Tão logo os princípios morais se vêem obrigados a assumir uma
forma no ambiente do direito coercivo e positivo, a liberdade da pes­
soa moral divide-se em uma autonomia pública do colegislador e uma
autonomia privada do destinatário da lei, e de tal maneira que as duas
se pressupõem mutuamente. Essa relação complementar entre o públi­
co e o privado não reflete dado algum. Mais que isso, ela é criada
conceitualmente pela estrutura do ambiente jurídico. Por isso é tarefa
do processo democrático definir sempre de novo e desde o início os
limites precários entre o público e o privado, de modo a que se garan­
tam liberdades iguais a todos os cidadãos, sob as formas tanto da auto­
nomia privada quanto da autonomia pública24.

24. Sobre a concatenação interna entre estado de direito e democracia, v. neste


vol. pp. 285-297.

“Racional ” v e r s u s “verdadeiro ” 119


0 Estado nacional europeu
— sobre o passado e o
futuro da soberania e da
nacionalidade"

Como revela a designação “Nações Unidas”, hoje a so­


ciedade mundial é constituída por Estados nacionais. O tipo
histórico decorrente’da Revolução Francesa e da Revolução
Norte-americana impôs-se em todo o mundo. E essa circuns­
tância não é nada trivial.
As Nações-estado clássicas no Norte e Oeste európeus
surgiram no interior de Estados territoriais já existentes. Eles
eram parte do sistema estatal europeu que já tomara forma
na Paz Westfaliana de 1648. Em contrapartida, as Nações “tar­
dias”, a Itália e a Alemanha em primeiro lugar, assumiram
outro desenvolvimento, típico também para as formações
nacionais da Europa Central e Oriental. Aqui, a formação do
Estado seguiu os vestígios de uma consciência nacional pre­
cipitada e disseminada com recursos de propaganda. A di­
ferença dessas duas trilhas (“from State to nation” versus “ffom
nation to State”) reflete-se na origem dos atores que consti­
tuíam a vanguarda na formação do Estado ou da Nação, caso
a caso. De um lado estavam juristas, diplomatas e militares
que pertenciam ao Estado-Maior em torno do rei e que cria-*

* Tradução: Paulo Astor Soethe.

121
ram uma “entidade estatal” racional; de outro, havia escritores e histo­
riadores, sobretudo eruditos e intelectuais, que, com a propagação da
unidade mais ou menos imaginária de uma “nação cultural”, estiveram
ocupados em preparar a unificação estatal imposta (apenas em um se­
gundo momento) por via diplomático-militar (por Cavour ou Bismarck,
por exemplo). Uma terceira geração de Estados nacionais muito diver­
sos surgiu após a Segunda Guerra Mundial, como decorrência do pro­
cesso de descolonização, sobretudo na África e na Ásia. Não raro, esses
Estados fundados nos limites do domínio colonial precedente já re­
clamavam soberania antes mesmo que as formas de organização esta­
tais importadas pudessem lançar raízes sobre o substrato de uma na­
ção — que ultrapassava os limites tribais. Nesses casos, Estados artificiais
tiveram de ser “preenchidos” com nações que iam crescendo posterior­
mente. Por fim, a tendência à formação de Estados nacionais indepen­
dentes continuou na Europa Oriental e Meridional, após o colapso da
União Soviética, na trilha de secessões mais ou menos violentas; na si­
tuação social e econômica precária desses países, os velhos apelos etno-
nacionais foram suficientes para mobilizar populações vacilantes de
modo que assumissem a luta pela independência.
Hoje, portanto, o Estado nacional impôs-se definitivamente so­
bre as formações políticas mais antigas1. Certamente as cidades-esta-
do clássicas haviam tido sucessores na Europa moderna, por ora em
cidades da Itália Setentrional e — na região da antiga Lotaríngia —
nos cinturões urbanos de que surgiram a Suíça e os Países Baixos. Tam­
bém reapareceram as estruturas dos Impérios da Antigüidade, inicial­
mente sob a forma do Sacro Império Romano-Germânico, e mais tar­
de nos Estados pluriétnicos dos Impérios russo, otomano e austro-
húngaro. Mas nesse ínterim o Estado nacional recalcou essas heranças
pré-modernas. No momento, observamos a profunda transformação
da China, o último dos antigos impérios.
Na concepção de Hegel, toda formação histórica, a partir do m o­
mento de sua maturidade, está condenada à decadência. Não é preciso
adotar sua filosofia da história para reconhecer que essa marcha vito­
riosa do Estado nacional tem também sua face irônica. A seu tempo, o
Estado nacional foi um a resposta convincente ao desafio histórico de1

1. Cf. M. R. Lepsius, “Der europãische Nationalstaaf In: M. R. Lepsius, Interessen,


Ideen und Institutionen, Opladen, 1990, pp. 256-269.

122 A INCLUSÃO DO OUTRO


encontrar um equivalente funcional às formas de integração social tidas
na época como em processo de dissolução. Hoje estamos novamente
diante de um desafio análogo. A globalização do trânsito e da com u­
nicação, da produção econômica e de seu financiamento, da trans­
ferência de tecnologia e poderio bélico, em especial dos riscos mili­
tares e ecológicos, tudo isso nos coloca em face de problemas que não
se podem mais resolver no âmbito dos Estados nacionais, nem pela
via habitual do acordo entre Estados soberanos. Salvo melhor juízo,
tudo indica que continuará avançando o esvaziamento da soberania
de Estados nacionais, o que fará necessária uma reestruturação e am ­
pliação das capacidades de ação política em um plano supranacional
que, conforme já vínhamos observando, ainda está em fase incipiente.
Na Europa, na América do Norte e na Ásia, estão se constituindo formas
de organização supra-estatal para “regimes” continentais, que poderíam
até mesmo ceder a infra-estrutura necessária às Nações Unidas, ainda
hoje muito ineficientes.
Contudo, esse passo abstrativo ainda incompleto dá apenas con­
tinuidade a um processo para o qual a atuação integradora do Estado
nacional constitui um primeiro grande exemplo. Por isso defendo a
opinião de que podemos nos orientar nesse caminho incerto rum o às
sociedades pós-nacionais justamente segundo o modelo da forma his­
tórica que estamos prestes a superar. Em primeiro lugar, gostaria de
lembrar as conquistas do Estado nacional, ao aclarar (I) os conceitos de
“Estado” e “Nação” e ao elucidar (II) os dois problemas que se solucio­
naram nas formas do Estado nacional. Em seguida, trato do potencial
de conflito instalado nessa forma estatal, qual seja (III) a tensão entre
republicanismo e nacionalismo. Por fim, pretendo abordar dois desa­
fios atuais que ultrapassam a capacidade de ação dos Estados nacio­
nais: (IV) a diferenciação multicultural da sociedade e os processos de
globalização que corroem (V) a soberania interna dos Estados nacio­
nais hoje vigentes, bem como (VI) sua soberania externa.

O
“Estado” e “Nação”

Segundo a compreensão m oderna, “Estado” é um conceito de­


finido juridicamente: do ponto de vista objetivo, refere-se a um poder

O Estado nacional europeu 123


estatal soberano, tanto interna quanto externamente; quanto ao es­
paço, refere-se a um a área claramente delimitada, o território do Es­
tado; e socialmente refere-se ao conjunto de seus integrantes, o povo
do Estado. O dom ínio estatal constitui-se nas formas do direito po­
sitivo, e o povo de um Estado é portador da ordem jurídica limitada
à região de validade do terrirório desse mesmo Estado. No uso polí­
tico da linguagem, os conceitos “nação” e “povo” têm a mesma ex­
tensão. Para além da fixação jurídica, no entanto, “nação” também
tem o significado de um a comunidade política marcada por uma
ascendência comum, ao menos por uma língua, cultura e história
em comum. Um povo transforma-se em “nação” nesse sentido his­
tórico apenas sob a forma concreta de um a forma de vida em espe­
cial. Os dois componentes, que estão enleados em conceitos como
“Estado nacional” ou “nação de cidadãos de um mesmo Estado”, re­
metem-se a dois processos que de modo algum decorreram para­
lelamente na história — à formação de Estados (1), por um lado, e
de nações (2), por outro.
(1) Em grande parte, o êxito histórico do Estado nacional pode
ser esclarecido em decorrência dos méritos do aparato estatal m o­
derno como tal. É evidente que o Estado territorial com m onopólio
de poder e adm inistração diferenciada, autônom a e financiada por
impostos pôde cum prir m elhor os imperativos funcionais da m o­
dernização social, cultural e sobretudo econômica do que as for­
mações políticas de origem mais remota. Em nosso contexto, basta
lembrar as caracterizações de tipos ideais elaboradas por Marx e
Max Weber.
(a) O poder executivo do Estado apartado do rei e burocratica-
m ente configurado constituía-se de um a organização de postos
especializados segundo áreas do conhecimento, ocupados por fun­
cionários públicos juridicamente treinados e pôde apoiar-se sobre o
poder enquartelado do exército, polícia e poder carcerário existen­
tes. Para m onopolizar esses recursos do uso legítimo do poder, foi
preciso im por a “paz nacional”. Só é soberano o Estado que pode
m anter a calma e a ordem no interior e defender efetivamente suas
fronteiras externas. Internamente, ele tem de poder se im por contra
outros poderes concorrentes e firmar-se internacionalmente como
concorrente em igualdade de direitos. O status de um sujeito no di­
reito internacional baseia-se no reconhecimento internacional como

124 A INCLUSÃO DO OUTRO


m embro “igual” e “independente” no sistema de Estados; e para isso
ele precisa de um a posição de poder suficientemente forte. Sobera­
nia interna pressupõe a capacidade de imposição da ordem jurídica
estatal; soberania externa, a capacidade de auto-afirmação em meio
à concorrência “anárquica” pelo poder entre os Estados.
(b) Ainda mais im portante para o processo de modernização é
a separação do Estado da “sociedade civil”, ou seja, a especificação
funcional do aparato estatal. O Estado m oderno é a um só tempo
Estado diretivo e fiscal, o que significa que ele se restringe essencial­
mente a tarefas administrativas. Ele abandona as tarefas produtivas
que até então vinham sendo cumpridas no âmbito do domínio polí­
tico a um a economia de mercado distinta do Estado. Nesse sentido
ele se ocupa das “condições gerais de produção”, ou seja, do arcabouço
jurídico e da infra-estrutura necessários ao trânsito capitalista de
mercadorias e à organização do trabalho social correspondente. A
demanda financeira do Estado é suprida por um a captação de im ­
postos gerida de forma privada. As vantagens dessa especialização
funcional é paga pelo sistema administrativo com sua dependência
da capacidade produtiva de uma economia orientada pelos m erca­
dos. Pois embora os mercados possam ser instituídos e supervisio­
nados politicamente, eles seguem uma lógica própria que escapa ao
controle estatal.
A diferenciação entre o Estado e a economia reflete-se na dife­
renciação entre o direito público e privado. À medida que o Estado
m oderno se serve do direito positivo como de um meio de organiza­
ção de sua dominação, vincula-se a um instrumento que — com os
conceitos da lei, do direito subjetivo (que se deduz a partir daí) e da
pessoa jurídica (como detentora de direitos) — confere validação a
um princípio novo, explicitado por Hobbes: em um a ordem do direi­
to positivo eximida da moral (apenas sob um certo sentido, é claro)
permite-se aos cidadãos tudo aquilo que não é proibido. A despeito
do fato de o próprio poder estatal já estar domesticado em sua con­
dição de Estado de direito, e de a coroa já estar “sob a lei”, o Estado
não pode se servir do instrumento do direito sem organizar os trâ­
mites na esfera da sociedade civil (distinta dele mesmo), e isso de tal
forma que as pessoas em particular possam chegar ao gozo de liber­
dades subjetivas — distribuídas de forma desigual, em um primeiro
momento. Com a separação entre os direitos privado e público, o cida­

O Estado nacional europeu 125


dão individual no papel do “súdito” — tal como ainda se expressou
Kant — é quem ganha um a área crucial de autonom ia privada2.
(2) Hoje vivemos todos em sociedades nacionais que devem sua
unidade a uma organização desse tipo. Tais Estados já existiam muito
antes de haver “nações” em sentido moderno. Somente a partir das
revoluções do final do século XVIII é que Estado e nação se fundiram
para se tornar Estado nacional. Antes de me dedicar ao que há de espe­
cífico nessa vinculação, gostaria de lembrar, sob a forma de um pe­
queno excurso sobre a história dos conceitos, o surgimento da forma­
ção consciencial moderna que permite interpretar povo como “nação”,
em um sentido diverso do exclusivamente jurídico.
Segundo o uso lingüístico clássico dos romanos, “natio”, assim
como “gens”, é um conceito que surge por oposição a “civitas”. Nações
são em primeiro lugar comunidades de ascendência comum, que se
integram geograficamente por vizinhança e assentamento, cultural­
mente por uma língua, hábitos e tradição em comum, mas que ainda
não se encontram reunidas no âmbito de uma forma de organização
estatal ou política. Essa raiz mantém-se vigente por toda a parte, du­
rante a Idade Média e o início da Era Moderna, quando “natio” e “lín­
gua” se equivalem. Assim, por exemplo, os estudantes em universidades
medievais eram subdivididos em “nationes”, de acordo com sua ori­
gem enquanto conterrâneos. Com o crescimento da mobilidade geo­
gráfica, o conceito serviu em geral para as diferenciações internas de
ordens de cavalaria, universidades, mosteiros, concílios, ligas comer­
ciais etc. Portanto, a origem nacional, que era atribuída por outros, es­
teve associada desde o início com a delimitação negativa entre o pró­
prio e o estrangeiro3.
É em outro contexto que a expressão “nação” vem assumir um
significado contrário e de caráter apolítico. Da associação de feuda-
tários do Império Alemão haviam se desenvolvido estados de classe;
eles se baseavam em contratos em que o rei ou imperador, que depen­

2. Em seu artigo “Über den Gemeinspruch”, Kant distingue claramente “a igual­


dade (do indivíduo) a cada outro enquanto súdito” da “liberdade do ser hum ano” e da
“autonomia do cidadão”, Werke (Weischedel), vol. VI, p. 145.
3. “O modelo de nações ingressou na história européia sob a natureza de con­
ceitos opostos assimétricos”. H. Münkler, “Die Nation ais Modell politischer O rdnung”,
Staatswissenschaft und Staatspraxis, ano 5, cad. 3 (1994): p. 381.

126 A INCLUSÃO DO OUTRO


dia de impostos e proteção militar, concedia privilégios à nobreza, à
Igreja e às cidades, ou seja, lhes concedia uma participação limitada
no exercício do domínio político. E essas classes dominantes, reuni­
das em “parlamentos” ou “câmaras”, representavam o “país” ou mes­
mo a “nação” diante da corte. Como “nação”, a aristocracia assumia
uma existência política que ainda era negada ao povo enquanto con­
junto de súditos. Isso explica o sentido revolucionário de formulações
como “King in Parliament” e tanto mais a identificação do “terceiro
estado” com a “nação”.
A transformação da “nação aristocrática” em “nação popular”,
que avança a partir de fins do século XVIII, pressupõe uma m udan­
ça de consciência, inspirada por intelectuais, que se impõe inicial­
mente na burguesia citadina, sobretudo academicamente letrada,
antes de alcançar eco em camadas mais amplas da população e oca­
sionar progressivamente uma mobilização das massas. A consciên­
cia nacional popular cristaliza-se em “comunidades imaginárias”
(Anderson) engendradas nas diferentes histórias nacionais, as quais
se tornaram o cerne da consolidação de uma nova auto-identifica­
ção coletiva: “Assim surgiram as nações nas últimas décadas do sé­
culo XVIII e ao longo do século XIX (...): gestadas por um grupo
bem delimitado de eruditos, jornalistas e poetas — nações popula­
res na idéia, mas ainda longe de sê-lo na realidade”4. Na mesma m e­
dida em que essa idéia se difundiu, tam bém ficou claro, no entanto,
que o conceito político de nação popular, modificado a partir do
conceito de nação aristocrática, havia emprestado do conceito de “na­
ção” como designação de ascendência e procedência (mais antigo e
anterior à política) também a força que o movia à formação de este­
reótipos. A auto-estilização positiva da própria nação transform a-
va-se agora no eficiente mecanismo de defesa contra tudo que fosse
estrangeiro, mecanismo de desapreço de outras nações e de exclusão
de minorias nacionais, étnicas e religiosas — em especial dos judeus.
Na Europa, o nacionalismo vinculou-se de forma muito conseqüente
ao anti-semitismo.

4. H. Schulze, Staat und Natioti in der Europàischen Geschichte, München, 1994,


p. 189.

O Estado nacional europeu 127


o
A nova forma de integração social

Ao interpretar processos ramificados e de longa duração a partir


de seus resultados, vê-se que, na transformação do Estado moderno
da fase inicial em uma república democrática, a “invenção da nação”
(H. Schulze) desempenhou o papel de um catalisador. A autocompre-
ensão nacional constituiu o contexto cultural em que os súditos pude­
ram tornar-se cidadãos politicamente ativos. Apenas o fato de per­
tencerem à “nação” pôde criar entre pessoas até então estranhas entre
si uma coesão solidária. O mérito do Estado nacional consistiu, por­
tanto, em ter resolvido dois problemas: com base em um novo modo
de legitimação, ele tornou possível uma nova forma de integração social
mais abstrata.
Em poucas palavras, o problema da legitimação resultou de que
se desenvolveu, na seqüência da cisão entre as confissões, um pluralis­
mo de visões de m undo que pouco a pouco privou a autoridade polí­
tica de sua base religiosa, a “graça divina”. O Estado secularizado pre­
cisava legitimar-se a partir de outras fontes. O outro problema da inte­
gração social, igualmente simplificado, passou a estar relacionado à
urbanização e modernização econômica, com a expansão e acelera-
mento da circulação de produtos, pessoas e informações. A população
foi arrancada dos liames sociais organizados em estamentos, existentes
no início da Era Moderna, e viu-se assim, ao mesmo tempo, posta em
movimento e individualizada. Aos dois desafios o Estado nacional res­
ponde com a mobilização política de seus cidadãos. Pois a consciência
nacional emergente tornou possível vincular uma forma abstrata de
integração social a estruturas políticas decisórias modificadas. Uma
participação democrática que se impõe passo a passo cria com o status
da cidadania uma nova dimensão da solidariedade mediada juridica­
mente; ao mesmo tempo, ela revela para o Estado uma fonte seculari-
zada de legitimação. Por certo, o Estado moderno já vinha regulando
desde o início seus limites sociais sobre os direitos de nacionalidade,
isto é, os direitos de integrar o Estado. Mas integrar o Estado, no início,
não significava mais do que a submissão ao poder estatal. É só com a
transição ao Estado democrático de direito que deixa de prevalecer esse
caráter de concessão que se faz ao indivíduo, de que ele possa integrar

128 A INCLUSÃO DO OUTRO


uma organização, para então prevalecer a condição de membro inte­
grante do Estado conquistada agora (ao menos pela anuência implí­
cita) por cidadãos participantes do exercício da autoridade política.
Nessa expansão do significado que o conjunto de membros experi­
menta a partir da mudança do status dos que integram o Estado, e que
passam então a ser seus cidadãos, com certeza precisamos distinguir o
aspecto político-jurídico do aspecto verdadeiramente cultural.
Conforme se mencionou, o Estado moderno tem duas marcas
constitutivas: a soberania do poder estatal, corporificada no príncipe,
e a diferenciação do Estado em relação à sociedade, ainda que, de m a­
neira paternalista, se tenha reservado às pessoas em particular um teor
essencial de liberdade subjetiva. Com a mudança da soberania basea­
da no príncipe para a de cunho popular, esses direitos dos súditos trans­
formam-se em direitos do homem e do cidadão, ou seja, em direitos
liberais e políticos de cidadania. Do ponto de vista de uma tipologia
ideal, tais direitos garantem não só a autonomia privada, mas também
a autonomia política, que em princípio é atribuída com igualdade a
cada um. O Estado constitucional democrático, de acordo com a idéia
que o sustenta, é uma ordem desejada pelo próprio povo e legitimada
pelo livre estabelecimento da vontade desse mesmo povo. Segundo
Rousseau e Kant, os destinatários do direito também devem enten­
der-se como seus próprios autores.
Caso o povo, porém, que se autocompreendia autoritativamente,
não tivesse se tornado uma nação de cidadãos autoconscientes, haveria
faltado força propulsora a uma reformulação jurídico-política como
essa, e também força vital, à república formalmente instituída. Para a
mobilização política que ocorreu foi necessária uma idéia cuja força
fosse capaz de integrar as consciências morais, com um apelo ainda
mais forte aos corações e ânimos do que aquele exercido pela soberania
popular e os direitos humanos. Essa lacuna é preenchida pela idéia de
nação. É ela que torna consciente aos habitantes de um mesmo território
a nova forma de pertença a um todo, política e juridicamente mediada.
Apenas a consciência nacional que se cristaliza em torno da percepção
de uma ascendência, língua e história em comum, apenas a consciên­
cia de se pertencer a “um mesmo” povo torna os súditos cidadãos de
uma unidade política partilhada — torna-os, portanto, membros que
se podem sentir responsáveis uns pelos outros. A nação ou o espírito do
povo — a primeira forma moderna de identidade coletiva — provê a

O Estado nacional europeu 129


forma estatal juridicamente constituída de um substrato cultural. Essa
fusão totalmente artificial de antigas lealdades em uma nova consciên­
cia nacional, até mesmo segundo necessidades burocráticas, foi des­
crita pelos historiadores como um processo de longo prazo.
Esse processo conduz a uma codificação dupla da cidadania, de
tal modo que o status definido pelos direitos dos cidadãos assume ao
mesmo tempo o significado de pertença a um povo culturalmente
definido. Sem essa interpretação cultural dos direitos de cidadania, o
Estado nacional quase não teria encontrado forças durante seu sur­
gimento para constituir um novo plano de integração social, mais abs­
trato, pela via do estabelecimento da cidadania democrática. O exem­
plo oposto, oferecido pelos Estados Unidos, porém, demonstra que o
Estado nacional pode assumir e manter uma forma republicana, mes­
mo sem ter por base uma população culturalmente homogeneizada.
Em lugar do nacionalismo, no entanto, apresenta-se aqui uma reli­
gião civil enraizada na cultura da maioria.
Até agora, falou-se aqui das conquistas do Estado nacional. Mas a
ligação entre republicanismo e nacionalismo tam bém gera perigo­
sas ambivalências. Com o surgimento do Estado nacional, também
se modifica, como vimos, o sentido da soberania estatal. Isso não diz
respeito tão-somente à reversão da soberania do Estado principesco
em Estado popular; também a percepção da soberania externa sofre
modificações. A idéia de nação enreda-se à vontade maquiavélica de
auto-afirmação, pela qual o Estado soberano se havia deixado con­
duzir desde o início, na arena dos “poderes”. A auto-afirmação exis­
tencial da nação nasce da auto-afirmação estratégica do Estado m o­
derno contra seus inimigos externos. Com isso entra em jogo um ter­
ceiro conceito de “liberdade”. Um conceito coletivo de liberdade nacio­
nal concorre com os dois conceitos individualistas de liberdade, quais
sejam a liberdade privada do cidadão na sociedade e a autonom ia
política do cidadão no Estado. Mais im portante ainda é como se pen­
sou essa liberdade da nação — em analogia com a liberdade das pes­
soas em particular, que se afastam umas das outras e concorrem entre
si, ou então segundo o modelo da autodeterminação cooperativa dos
cidadãos autônom os do Estado.
É quando se concebe a nação como uma grandeza juridicamente
construída, ou seja, como uma nação de cidadãos vinculados a um
Estado, que o modelo da autonomia pública assume a liderança. Tais

130 A INCLUSÃO DO OUTRO


cidadãos podem ser até mesmo patriotas que compreendem e defen­
dem a própria constituição como uma conquista no contexto da his­
tória de seu país. Mas eles concebem a liberdade da nação — em sentido
propriamente kantiano — de maneira cosmopolita, ou seja, como uma
autorização e um compromisso em prol de um acordo cooperativo ou
de um ajuste de interesses com outras nações, no âmbito de uma aliança
entre os povos que assegure a paz. Por outro lado, o entendimento na­
turalista de nação como uma grandeza anterior à política sugere outra
interpretação. Segundo ela, a liberdade da nação consiste essencialmente
na capacidade de afirmar sua própria independência, até mesmo pela
força militar, em casos extremos. Tal como as pessoas em particular
nas relações de mercado, também os povos perseguem cada qual seus
interesses próprios na selva da política de dominação no cenário eco­
nômico internacional. A imagem tradicional da soberania externa é
ornada com as cores nacionais e desperta assim novas energias.

0
A tensão entre nacionalismo e republicanismo

Diferentemente das liberdades republicanas dos indivíduos, a in­


dependência das respectivas nações, que precisa ser defendida até mes­
mo com o “sangue de seus filhos”, em casos extremos, caracteriza o
local em que o Estado secularizado preserva um resíduo não secula-
rizado de transcendência. O Estado nacional que guerreia impõe a seus
cidadãos a obrigação de pôr em risco a própria vida em prol da cole­
tividade. Desde a Revolução Francesa, a obrigatoriedade do serviço
militar revela-se como o outro lado da moeda dos direitos do cidadão;
na prontidão a combater e morrer pela pátria devem afirmar-se em
igual medida a consciência nacional e a atitude moral republicana.
Assim, as inscrições da história nacional da França refletem um duplo
rastro de lembranças: os marcos em pedra da luta pela liberdade repu­
blicana vinculam-se à simbologia de morte presente na memoração
dos mortos em combate.
A nação tem duas faces. Ao passo que a nação dos cidadãos li­
gados ao Estado, fruto da vontade, é fonte de legitimação democrática,
a nação de compatriotas, gerada de maneira espontânea, provê a in­
tegração social. Os cidadãos, por força própria, constituem a associa­

O Estado nacional europeu 131


ção política entre os livres e iguais; os compatriotas encontram-se
em uma comunidade cunhada por uma língua e história em comum.
Permitiu-se que a tensão entre o universalismo de uma comunidade
jurídica igualitária e o particularismo de uma comunidade histórica
que partilha um mesmo destino ingressasse na conceitualidade do
Estado nacional.
Essa ambivalência só não oferece perigo, enquanto um entendi­
mento cosmopolita da nação de cidadãos vinculados ao Estado puder
prevalecer sobre a interpretação etnocêntrica de um a nação que se
encontra em um estado de guerra latente e duradouro. Apenas um
conceito não-naturalista de nação amolda-se sem dificuldades a uma
autocompreensão universalista do Estado de direito democrático. Aí
sim a idéia republicana pode assumir a liderança e penetrar, de sua
parte, as formas de vida socialmente integrativas, bem como estrutu­
rá-las de acordo com modelos universalistas. O Estado nacional deve
seu êxito histórico à circunstância de ter substituído as débeis alianças
corporativas da sociedade pré-moderna pela coesão solidária dos cida­
dãos. Mas essa conquista republicana passa a correr perigo se, ao in­
vés, a força integrativa da nação de cidadãos for atribuída a um dado
que se pretenda anterior à política, ou seja, a existência de um povo
constituído por via natural e, portanto, a algo independente da for­
mação política da opinião e da vontade dos próprios cidadãos. Para a
incidência em um nacionalismo, naturalmente se podem elencar mui­
tas razões. Mencionarei duas: uma delas é de natureza conceituai, a
outra de natureza empírica.
Na construção jurídica do Estado constitucional persiste um a la­
cuna que convida a que se a preencha com um conceito naturalista de
povo. Pois em conceitos normativos como tais não se pode explicar
de que maneira compor o elemento básico partilhado pelas pessoas que
se unem para regulamentar seu próprio convívio de forma legítima e
com recursos do direito positivo. Do ponto de vista normativo, são con­
tingentes os limites sociais de uma associação entre jurisconsortes livres
e iguais. Como o voluntarismo da decisão em favor de uma práxis cons­
tituinte não passa de ficção racional-jurídica, resta-nos no mundo que
conhecemos abandonar ao acaso histórico e à faticidade dos aconte­
cimentos — normalmente ao expediente natural de conflitos violentos,
guerras e guerras civis — a determinação de quem fica com o poder de
definir os limites de uma comunidade política. É um erro teórico — que

132 A INCLUSÃO DO OUTRO


remonta ao século XIX e que traz muitas conseqüências — supor que
se possa responder também a essa questão de maneira normativa, ou
seja, através de um “direito à autodeterminação nacional”5.
O nacionalismo resolve à sua maneira o problema das fronteiras.
Se a própria consciência nacional é um artefato, ela esboça a grandeza
imaginária da nação como algo que cresceu de forma natural e que
obviamente se entende por oposição à ordem artificial do direito po­
sitivo e da construção do Estado constitucional. O regresso à nação
“orgânica”, portanto, pode afastar das fronteiras — historicamente
casuais, em maior ou menor grau — o que elas têm de apenas contin­
gente, pode provê-las da aura de uma substancialidade reproduzida e
legitimá-las através da “origem”.
A outra razão é mais trivial. A artificialidade dos mitos nacionais,
tanto o trato científico quanto a mediatização propagandística que re­
cebem, torna o nacionalismo, já em sua origem, vulnerável ao abuso de
elites políticas. O fato de que os conflitos internos sejam neutralizados
por êxitos na política externa baseia-se em um mecanismo sociopsico-
lógico do qual os governos sempre fizeram uso. Mas para um Estado
nacional que anseia de maneira belicista por reconhecimento interna­
cional, já ficam delineadas de antemão as trilhas pelas quais se podem
direcionar os conflitos que surgem da cisão de classes durante o pro­
cesso de acelerada industrialização capitalista: a liberdade coletiva da
nação pôde ser interpretada no sentido de um desdobramento impe­
rial do poder. A história do imperialismo europeu entre 1871 e 1914,
tal como o nacionalismo integral do século XX (isso sem falar no racis­
mo dos nazistas), ilustra o triste fato de que a idéia de nação serviu
muito menos para fortalecer as populações em sua lealdade ao Estado
constitucional do que para mobilizar as massas em favor de objetivos
que dificilmente se podem harmonizar com princípios republicanos6.
A lição que podemos tirar dessa história é evidente. O Estado
nacional precisa livrar-se do potencial ambivalente que em outros tem­

5. O jurista liberal Johann Caspar Bluntschli, especialista em direito do Estado,


já se manifestava da seguinte forma: “Cada nação está vocacionada, e tem portanto o
direito, a constituir um Estado... Assim como a hum anidade está dividida em um a
série de nações, da mesma forma é imperioso(!) que o m undo seja repartido em um
igual número de Estados. Cada nação, um Estado. Cada Estado, um ente nacional”
(cit. cf. H. Schulze, 1994, p. 225).
6. Cf. H. Schulze, 1994, pp. 243ss.

O Estado nacional europeu 133


pos teve para ele um efeito propulsor. Hoje, quando a capacidade de
ação do Estado nacional chega a seus limites, seu exemplo também se
revela, por outro lado, muito instrutivo. A seu tempo, o estado nacio­
nal proporcionou um contexto de comunicação política em que foi
possível aparar os impulsos abstrativos da modernização social, to­
mar uma população privada do contexto de vida que ela havia herda­
do da tradição e reacomodá-la no encadeamento de um m undo vital
ampliado e racionalizado, também pela via da consciência nacional.
Foi-lhe possível cumprir essa função integrativa assim que o status
jurídico do cidadão vinculou-se ao fato de se pertencer culturalmente
à nação. Já que o Estado nacional se vê desafiado internamente, pela
força explosiva do multiculturalismo, e externamente, pela pressão
problematizadora da globalização, cabe perguntar se há hoje um equi­
valente para o elemento de junção entre a nação de cidadãos e a nação
que se constitui a partir da idéia de povo.

A unidade da cultura política


na multiplicidade das subculturas

Originalmente, a sugestiva unidade de um povo mais ou menos


homogêneo foi capaz de proporcionar a acomodação cultural da ci­
dadania juridicamente definida. Nesse contexto, a cidadania demo­
crática pôde constituir o ponto de entrecruzamento das responsabili­
dades recíprocas. Em nossas sociedades pluralistas, porém, convive­
mos hoje com evidências cotidianas que se distanciam cada vez mais
do caso modelar do Estado nacional com uma população cultural­
mente homogênea. Cresce a multiplicidade de formas culturais de vida,
grupos étnicos, confissões religiosas e diferentes imagens de mundo.
Não há qualquer alternativa a isso, a não ser que se pague o preço
normativamente insuportável de purificações étnicas. Por isso, o re­
publicanismo tem de aprender a andar com as próprias pernas. Nele,
é essencial que o processo democrático também se preste como fiança
da integração social de um a sociedade que se mostra cada vez mais
diferenciada e autonomizada. Em uma sociedade que é pluralista no
que diz respeito à cultura e às visões de mundo, esse papel de fiador
não pode ser transferido dos planos da formação política da vontade e

134 A INCLUSÃO DO OUTRO


da comunicação pública ao substrato aparentemente natural de um
povo pretensamente homogêneo. Por trás de uma fachada como essa,
iria esconder-se apenas a cultura hegemônica de uma parcela domi-
nadora da sociedade. Por razões históricas, subsiste em muitos países
uma fusão da cultura de maioria com determinada cultura política
geral que arroga a si mesma ser reconhecida por todos os cidadãos,
independentemente da origem cultural de cada um. Essa fusão tem de
ser dissolvida, caso devam poder coexistir com os mesmos direitos,
no interior de uma mesma coletividade, formas diversas de vida cultu­
ral, étnica e religiosa, e não apenas lado a lado, mas também umas
com as outras. O plano da cultura política partilhada precisa desaco-
plar-se do plano das subculturas e de suas identidades, cunhadas de
uma maneira anterior à política. O anseio por uma coexistência sob
direitos iguais certamente sofre uma restrição segundo a qual as con­
fissões e práticas a que se dispensa proteção não podem contradizer
os princípios constitucionais vigentes (tal como entendidos na res­
pectiva cultura política).
A cultura política de um país cristaliza-se em torno da constitui­
ção em vigor. Toda cultura nacional, sob a luz da própria história,
amolda em cada caso um tipo de leitura diferente para os mesmos
princípios — tais como soberania do povo e direitos humanos — , os
quais também se corporificam em outras constituições republicanas.
Sobre a base dessa interpretação, um “patriotismo constitucional” pode
ocupar o lugar do nacionalismo original. Tal patriotismo constitu­
cional é visto por alguns observadores como liga demasiado fraca quan­
do se trata de dar consistência a sociedades complexas. Portanto, tor­
na-se tanto mais urgente a pergunta quanto às condições sob as quais
as provisões de uma cultura política liberal bastariam para preservar a
consistência íntegra de uma nação de cidadãos, independente de asso­
ciações com a noção racial de povo.
Hoje isso se tornou um problema até mesmo para países de imi­
gração, como os Estados Unidos. A cultura política norte-americana,
mais do que outros países, garante espaço para a coexistência pacífica
de cidadãos provindos de ambientes culturais os mais diversos; lá, cada
pessoa pode viver com duas identidades concomitantes, ser ao mes­
mo tempo integrante e estrangeiro no próprio país. Porém, o funda-
mentalismo e mesmo o terrorismo crescentes (como em Oklahoma,
há poucos anos) é um sinal de que até mesmo aí pode romper-se a

O Estado nacional europeu 135


rede de segurança proporcionada pela religião civil, que há mais de
duzentos anos vem interpretando uma história constitucional admi­
ravelmente contínua. Presumo que as sociedades multiculturais só
poderão manter-se coesas por meio de uma cultura política como essa,
que já deu mostras de sua eficiência, se a democracia for compensada
não apenas sob a forma de direitos liberais à liberdade e direitos polí­
ticos à participação, mas também mediante o gozo profano de direi­
tos sociais e culturais ao compartilhamento. Os cidadãos precisam
poder experienciar o valor de uso de seus direitos também sob a forma
da segurança social e do reconhecimento recíproco de formas de vida
culturais diversas. A cidadania democrática e ligada ao Estado só exer­
cerá força integrativa — ou seja, só promoverá solidariedade entre
estranhos — quando der mostras de sua eficiência enquanto meca­
nismo pelo qual os pressupostos constitutivos das formas de vida de­
sejadas possam de fato tornar-se realidade.
Essa perspectiva, em todo caso, é sugerida pelo Estado de bem-
estar social que se desenvolveu na Europa sob as circunstâncias m ui­
to favoráveis do período que sucedeu o pós-guerra, mas que tam ­
pouco subsistiram por m uito tempo. Nesse momento, após a cesura
imposta pela Segunda Guerra Mundial, haviam se esgotado as fontes
de energia de um nacionalismo exacerbado. Sob a égide do equilíbrio
nuclear entre as superpotências, ficou interditado aos poderes euro­
peus — e não apenas à Alemanha dividida — o exercício de um a polí­
tica externa autônoma. Questões polêmicas sobre fronteiras não es­
tavam na ordem do dia. Conflitos sociais não podiam estender-se ao
exterior; tinham de ser contornados sob o primado da política inter­
na. Sob essas condições, o entendimento universalista do Estado de
direito democrático pôde desvencilhar-se amplamente dos impera­
tivos de um a política de dominação orientada por interesses nacio­
nais e motivada por razões geopolíticas. Apesar do clima de guerra
civil universal e das figurações anticomunistas do inimigo, tornou-se
mais brando, também na consciência da opinião pública, o tradicio­
nal imbricamento entre republicanismo e os objetivos de uma auto-
afirmação nacional.
A tendência a um a autocompreensão até certo ponto “pós-na-
cional” da coletividade política pôde firmar-se mais fortemente na
Alemanha Ocidental do que nos demais Estados europeus, já que
sua situação peculiar privava-a claramente dos direitos de soberania

136 A INCLUSÃO DO OUTRO


mais essenciais. Na maioria dos países da Europa Ocidental e Seten­
trional, no entanto, a pacificação socioestatal do antagonismo de clas­
ses criou uma situação nova. Ao longo do tempo, criaram-se e am-
pliaram-se sistemas de seguridade social, consolidaram-se reformas
em áreas como educação, família, direito penal e poder carcerário,
defesa de dados pessoais etc., e ao menos se começaram a implem en­
tar políticas feministas de igualização. No interior de uma geração o
status dos cidadãos, mesmo que de maneira incompleta, melhorou
m uito em sua substância jurídica. Isso sensibilizou os próprios cida­
dãos (e eis o que me importa) para a precedência do tema da trans­
formação dos direitos fundamentais em realidade, ou seja, sensibi-
lizou-os para essa precedência cuja tarefa é resguardar a nação real de
cidadãos ante a nação imaginada, supostam ente constituída dos
membros de um mesmo povo.
O sistema dos direitos foi concebido sob condições econômicas
muito favoráveis, em um período de crescimento econômico compa­
rativamente longo. Assim, cada um pôde conhecer e honrar o status
de cidadão enquanto algo que o vincula aos demais membros da cole­
tividade política e que o torna ao mesmo tempo dependente desses
outros membros e co-responsável por eles. Todos puderam ver que a
autonomia privada e a pública se pressupõem m utuamente no movi­
m ento contínuo de reprodução e melhoria das condições favoráveis
às maneiras prediletas de viver. Todos perceberam ao menos intuiti­
vamente que só pode delimitar honestamente as fronteiras entre os
espaços privados de ação quem fizer uso adequado de suas competên­
cias como cidadão; e perceberam ainda que eles mesmos só estão ap­
tos a essa participação política com base em uma esfera privada intacta.
A constituição revelou-se como moldura institucional eficiente para
uma dialética entre a igualdade jurídica e factual, que ao mesmo tem ­
po fortalece a autonomia privada dos cidadãos, bem como sua auto­
nomia cidadã no âmbito do Estado7.
Mas essa dialética, independentemente de causas locais, encon-
tra-se agora desativada. Se queremos explicar tal fato, precisamos voltar
o olhar às tendências que hoje ganham especial atenção sob a palavra-
chave “globalização”.

7. Cf. J. Habermas, Faktizitàt und Geltung, Frankfurt am Main, 1992, pp. 493ss.

O Estado nacional europeu 137


o
Limites do Estado nacional:
restrições da soberania interna

No passado, o Estado nacional guardou de forma quase neurótica


suas fronteiras territoriais e sociais. Hoje em dia, processos suprana­
cionais irrefreáveis malogram esses controles em diversos pontos. A.
Giddens definiu globalização como o adensamento, em todo o m un­
do, de relações que têm por conseqüência efeitos recíprocos desenca­
deados por acontecimentos tanto locais quanto muito distantes8. As
comunicações de alcance mundial seguem por meio das línguas natu­
rais (na maioria das vezes, por meios eletrônicos) ou códigos especiais
(sobretudo o dinheiro e o direito), fá que “comunicação” assume aqui
um significado duplo, resultam desses processos tendências diver­
gentes. De um lado, eles incrementam a expansão da consciência dos
agentes, de outro lado, a ramificação, o alcance e as ligações de siste­
mas, redes (tais como mercados, por exemplo) ou organizações. Em­
bora o crescimento de sistemas e redes multiplique os contatos e infor­
mações possíveis, ele não tem como conseqüência per se a ampliação
de um m undo intersubjetivamente partilhado, nem tampouco a união
discursiva de pontos de vista relevantes, temas e contribuições, dos quais
surgem grupos de opinião pública de caráter político. A consciência de
sujeitos que planejam, comunicam-se e agem uns com os outros parece
ser ao mesmo tempo ampliada e fragmentada. Os grupos de opinião
pública criados na Internet continuam segmentados, separados uns
dos outros como comunidades aldeãs globais. De início não fica claro
se uma consciência pública em expansão, mas que permance centrada
em seu universo vital, ainda pode abranger as concatenações sistemi-
camente diferenciadas e autonomizadas, ou se os acontecimentos
sistêmicos tornados autônomos já deixaram mesmo para trás todas as
concatenações proporcionadas pela comunicação política.
O Estado nacional foi no passado o âmbito em que se articulou, e
de certa maneira também institucionalizou, a idéia republicana da ação

8. A. Giddens, The Consequences of Modernity, Cambridge, 1990, p. 60 [ed. br.:


As consequências da modernidade, São Paulo, Unesp, 1991]; idem, Beyond Left and
Right, Cambridge, 1994, pp. 78ss. [ed. br.: Para além da esquerda e da direita, São Paulo,
Unesp, 1996].

138 A INCLUSÃO DO OUTRO


consciente e efetiva da sociedade sobre si mesma. Eram típicas para ele,
como já se mencionou, tanto uma relação complementar entre Estado
e economia, quanto uma relação complementar entre política de as­
suntos interiores e concorrência de poderes interestatais. Esse esquema,
por certo, só se aplica a contextos em que a política nacional ainda é
capaz de exercer influência sobre uma respectiva “economia popular”.
Assim, por exemplo, o crescimento na era da política econômica
keynesiana dependia de fatores que não beneficiavam apenas a valori­
zação do capital, mas também a população como um todo — ou seja,
ele dependia também: da abertura do consumo de massa (sob a pressão
de sindicatos livres); da intensificação de forças produtivas e ao mesmo
tempo redutoras do tempo de trabalho (sobre os fundamentos de uma
pesquisa básica independente); da qualificação das forças de trabalho
no âmbito de um sistema educacional em expansão (que melhorava o
nível educacional da população); e assim por diante. No âmbito das eco­
nomias nacionais, em todo caso, foram cultivados economicamente os
espaços de distribuição que se podiam utilizar tanto em termos de ne­
gociações salariais, quanto — por parte do Estado — em termos do
desenvolvimento de políticas sociais, e isso com a finalidade de satis­
fazer as aspirações de uma população exigente e inteligente.
Embora o capitalismo tenha se desenvolvido desde o início em di­
mensões mundiais9, essa dinâmica econômica desencadeada em com­
binação com o sistema estatal moderno colaborou antes de mais nada
com a consolidação do Estado nacional. Mas já faz tempo que esses
dois processos deixaram de se fortalecer reciprocamente. É certo que
“a limitação territorial do capital jamais correspondeu à sua m obi­
lidade estrutural. Ela se deveu às condições históricas da sociedade
burguesa na Europa”10. No entanto, essas condições alteraram-se radi­
calmente com a desnacionalização da produção econômica. Nos úl­
timos tempos, todos os países industrializados são afetados pela cir­
cunstância de que as estratégias de investimento de um número cada
vez maior de empresas orientam-se pelos mercados financeiros e de
trabalho, organizados hoje em rede mundial.
Os “debates sobre a situação atual” que conduzimos hoje tornam
evidente a cisão sempre maior entre os limitados espaços de ação cir­

9. Cf. I. Wallerstein, The M odem World System, New York, 1974.


10. R. Knieper, Nationale Souveranitãt, Frankfurt am Main, 1991, p. 85.

O Estado nacional europeu 139


cunscritos aos Estados nacionais, de um lado, e os imperativos econô­
micos globais, ou seja, os imperativos econômicos que praticamente
não se podem mais influenciar por meios políticos, de outro. As variá­
veis mais importantes são, por um lado, o desenvolvimento e difusão
acelerados de tecnologias novas e fomentadoras da produção e, por
outro, o enorme crescimento das reservas de m ão-de-obra proporcio­
nalmente baratas. Os dramáticos problemas de emprego no antes cha­
mado Primeiro Mundo resultam não das relações clássicas do comér­
cio internacional, mas sim de relações produtivas globalmente ligadas
em rede. Estados soberanos só podem tirar proveito de seus respec­
tivos economistas à medida que ainda existirem as economias nacio­
nais, feitas sob medida para políticas intervencionistas.
Com o mais recente impulso em direção à desnacionalização da
economia, porém, a política nacional perde progressivamente o do­
mínio sobre as condições de produção sob as quais surgem os lucros e
receitas tributáveis. Os governos têm cada vez menos influência sobre
as empresas, as quais tomam suas decisões de investimento em um
horizonte de orientação globalmente ampliado. Eles se vêem ante o
dilema de ter que evitar duas reações igualmente irracionais. Pois as­
sim como são ineficazes as tentativas de um enclaustramento prote­
cionista e da formação de cartéis de repúdio, também é igualmente
perigosa, em face das conseqüências sociais vindouras, uma adequa­
ção de custos alcançada através da desregulamentação sociopolítica.
Abdicar da política e aceitar com isso uma taxa de desemprego
alta e duradoura, bem como o desmonte do Estado social em prol do
objetivo da capacidade de concorrer no mercado internacional, traz
consigo conseqüências sociais que já se delineiam, por exemplo, nos
países da OECD (Organization for Economic Cooperation and Deve-
lopment). As fontes da solidariedade social secam, de tal modo que as
condições de vida existentes até então no Terceiro M undo expandem-
se nos grandes centros do Primeiro. Essas tendências intensificam-se
no fenômeno de uma nova “subclasse”. Com esse singular que pode
induzir a erros, os sociólogos sintetizam um conjunto de grupos m ar­
ginalizados, que amplas parcelas da sociedade tratam de segmentar e
isolar. A essa underclass pertencem os grupos pauperizados que se vêem
abandonados a si mesmos, embora não tenham mais condições de
alterar, com as próprias forças, sua situação social. Eles não dispõem
de nenhum potencial de ameaça, da mesma forma que se dá com as

140 A INCLUSÃO DO OUTRO


regiões miseráveis em face das regiões desenvolvidas de nosso mundo.
No entanto, esse tipo de segmentação não significa que sociedades
dessolidarizadas possam simplesmente afastar de si partes da popula­
ção sem que isso tenha conseqüências políticas. Em uma visão de longo
alcance, há pelo menos três conseqüências inevitáveis. Uma subclasse
gera tensões sociais cuja descarga se dá em revoltas despropositadas e
autodestrutivas, que só podem ser controladas com recursos repressi­
vos. A construção de penitenciárias, a organização da segurança in­
terna em geral revelam-se uma indústria em crescimento. Além disso,
a desolação social e a miserabilização física não se deixam delimitar
localmente. O veneno do gueto também age sobre a infra-estrutura
dos centros urbanos, atinge regiões inteiras e se fixa nos poros de toda
a sociedade. Por fim, isso tem como conseqüência uma erosão moral
da sociedade, que necessariamente danifica toda e qualquer coletivi­
dade republicana em seu âmago universalista. Pois decisões de m aio­
ria estabelecidas de maneira formalmente correta e que apenas refle­
tem os temores pela manutenção do status e reflexos de auto-afirma­
ção por parte de uma classe média ameaçada pela descensão social
corroem a legitimidade dos procedimentos e instituições. Por essa via,
desvirtua-se a verdadeira conquista do Estado nacional, que tratou de
integrar sua população por meio da participação democrática.
Esse cenário pessimista não é irrealista, mas certamente ilustra
apenas uma entre muitas perspectivas para o futuro. A história des­
conhece quaisquer leis em sentido estrito; e as pessoas, mesmo as so­
ciedades, são capazes de aprender. Uma alternativa a se renunciar à
política consistiria em que ela voltasse a crescer no sentido de acom­
panhar os mercados —- com a formação de agentes capazes de atuar
em nível supranacional. Um exemplo disso é a Europa a caminho da
União Européia. Infelizmente, esse exemplo não é instrutivo em ape­
nas uma direção. Hoje os Estados europeus detêm-se ante o limiar de
uma união monetária em favor da qual os governos nacionais terão
de abandonar sua soberania financeira. Uma desnacionalização do
dinheiro e da política monetária tornaria necessária uma política so­
cial, econômica e financeira comum. Desde o Tratado de Maastricht,
cresce nos Estados-membros a resistência à expansão vertical de uma
União Européia que dessa forma assumiría ela mesma os traços es­
senciais de um Estado e mediaria as relações entre seus membros,
todos eles Estados nacionais. Sob a consciência das conquistas histó­

0 Estado nacional europeu 141


ricas, o Estado nacional assume um a postura rígida ao levar em conta
sua identidade, já que se vê atropelado e enfraquecido pelos proces­
sos de globalização. Hoje como ontem, a política de cunho estatal-
nacional ainda se limita a adequar a sociedade, da forma o mais in­
dulgente possível, aos imperativos sistêmicos e efeitos secundários de
uma dinâmica econômica global que se m ostra amplamente des­
vinculada das condições políticas circunstantes. Em vez disso, ela te-
ria de empreender a tentativa de superar-se a si mesma e formar pes­
soas capazes de agir politicamente em um plano supranacional. Se
nesse processo ainda fosse preciso fazer valer a herança normativa do
Estado de direito contra a dinâmica de uma valorização do capital
que momentaneamente se encontra isenta de quaisquer liames, isso
teria que se dar sob formas associadas a processos de formação de­
mocrática de vontade política.

“Superação” do Estado nacional:


supressão ou suprassunção?

O discurso sobre a superação do Estado nacional é ambíguo. De


acordo com uma maneira por assim dizer pós-moderna de entender a
questão, o fim do Estado nacional leva-nos também à separação do
projeto de autonomia para o Estado de cidadãos que, segundo essa vi­
são, estourou seu crédito sem esperanças de recuperação. Para a outra
maneira de entender a questão, não derrotista, ainda há chance para o
projeto de uma sociedade apta a aprender e capaz de agir sobre si mes­
ma por meio da vontade e da consciência política, mesmo para além de
um mundo constituído por Estados nacionais. A controvérsia desen­
volve-se em torno da autocompreensão normativa do Estado demo­
crático de direito. Será que ainda agora, na era da globalização, pode­
mos nos reconhecer aí, ou só nos cabe libertar-nos desse legado da velha
Europa, honorável, mas que hoje perdeu por completo sua função?
Se não é apenas o Estado nacional que chega a seu fim, mas com
ele também toda forma da socialidade política, então os cidadãos se­
rão encaminhados a um m undo de relações enredadas de forma anô­
nima, no qual lhes caberá decidir entre opções criadas sistemicamente,
segundo as respectivas preferências. Nesse m undo pós-político, a em­

142 A INCLUSÃO DO OUTRO


presa transnacional se transformará em modelo comportamental. A
autonomização do sistema econômico global em face das tentativas
inócuas de influência política empreendidas por via normativa mani-
festa-se do ponto de vista da teoria dos sistemas como caso particular
de um desenvolvimento mais abrangente. O ponto de fuga nesse hori­
zonte é a sociedade global plenamente descentrada, que se decompõe
em um a quantidade desordenada de sistemas funcionais que se repro­
duzem e se orientam a si mesmos. Assim como as pessoas em estado
natural no pensamento de Hobbes, esses sistemas constituem uns para
os outros não mais que um entorno. Eles já não têm nenhuma língua
em comum. Sem um universo de significados intersubjetivamente
partilhado, esses sistemas apenas deparam uns com os outros com base
em observações mútuas e comportam-se uns diante dos outros se­
gundo imperativos de autoconservação.
J. M. Guéhenno descreve esse mundo anônimo da perspectiva dos
cidadãos em particular, que se desligam da associação (já liquidada)
entre sociedades estatais solidárias e que precisam situar-se então nesse
contexto indiscernível de desordem, em que os sistemas de auto-afir­
mação operam sem quaisquer normas. Essas “novas” pessoas desfa-
zem-se da autocompreensão ilusória da modernidade. Mais do que
evidente revela-se o cerne neoliberal dessa visão helenista. A autono­
mia dos cidadãos é prontamente diminuída na proporção do compo­
nente moral da autodeterminação ligada à cidadania reconhecida pelo
Estado e realocada para o fundamento de uma autonomia privada: “As­
sim como o cidadão romano na época de Caracalla, o cidadão da era da
integração em rede define-se cada vez menos por seu compartilhamento
do exercício de soberania e cada vez mais pelo fato de poder desenvol­
ver uma atividade em um âmbito no qual todos os procedimentos obe­
deçam a regras claras e previsíveis... Deixará de ter importância se uma
norma foi estabelecida por uma empresa privada ou por um funcioná­
rio da administração pública. A norma não será mais expressão da so­
berania, mas tão-somente um fator de redução da incerteza, um meio
para a diminuição de custos operacionais, à medida que se aprimorar a
transparência”11. Em uma alusão renitente à polêmica de Hegel contra
o “Estado de exceção e o Estado do entendimento”, o Estado democrá­
tico é substituído por um “Estado do direito privado sem qualquer re-1

11. J. M. Guéhenno, Das Ende der Demokratie, München-Zürich, 1994, pp. 86s.

O Estado nacional europeu 143


missão filosófica ao direito natural, reduzido a um código de regras e
legitimado apenas pela comprovação diária de sua capacidade funcio­
nal”12. Em lugar de normas que são efetivas eque também obedecem a
pontos de vista como soberania popular e direitos humanos, surge agora
— sob a forma de uma “lógica da integração em rede” — a mão invi­
sível de processos regulados de maneira pretensamente espontânea. Mas
esses mecanismos insensíveis a custos externos deixam justamente de
suscitar confiança. Isso se aplica em todo caso a dois dos exemplos mais
conhecidos de auto-regulamentação global.
O “equilíbrio das potências”, que durante três séculos serviu de
base ao sistema internacional, entrou em colapso o mais tardar com o
evento da Segunda Guerra Mundial. Sem tribunais internacionais ou
poderes de sanção supraestatais, não se podia proceder judicialmente
em relação ao direito das gentes qual um direito interno ao Estado,
nem se podia fazer valer esse direito. De qualquer modo, a moral con­
vencional e a “moralidade” das relações dinásticas zelaram por uma
certa diligência normativa nas guerras. No século XX, a guerra total fez
explodir também essa guarnição normativa já bastante fraca. O estágio
avançado da tecnologia de armamentos, a dinâmica de ampliação do
aparato bélico e a proliferação das armas de destruição em massa13aca­
baram por tornar evidentes os riscos dessa anarquia dos poderes que
não estava mais orientada por qualquer mão invisível. A fundação da
Aliança dos Povos de Genebra foi a primeira tentativa de ao menos
domesticar o gerenciamento incalculável do poder no interior de um
sistema coletivo de segurança. Com a fundação das Nações Unidas
empreendeu-se um segundo assalto no sentido de estabelecer forças
supranacionais capazes de agir em prol de um a ordem global pací­
fica, que ainda continuava incipiente. Com o fim do equilíbrio bipolar
do terror, e apesar de todos os retrocessos, parece abrir-se a perspec­
tiva de uma “política interna internacional” (C. F. von Weizsâcker) no
campo da política internacional de segurança e direitos humanos. O
fracasso do equilíbrio anárquico entre as potências ao menos deixou
claro ser desejável uma regulamentação política nesse campo.

12. J. M. Guéhenno, 1994, p. 140.


13. Presumivelmente, há hoje dez países que dispõem de armas nucleares, mais
de vinte dispõem de arm as químicas e já se supõe a existência de armas bacterioló­
gicas no Oriente Médio e Próximo; cf. E. O. Czempiel, Weltpolitik im Umbruch, Mün-
chen, 1993, p. 93.

144 A INCLUSÃO DO OUTRO


Algo semelhante se dá com o outro exemplo de integração es­
pontânea em rede. Caso se deva suplantar a interdependência assimé­
trica entre o m undo da OECD e os países marginalizados que ainda
precisam desenvolver economias auto-sustentáveis, o mercado global
não pode ficar sob o domínio exclusivo do Banco Mundial e do Fun­
do Monetário Internacional. A conta apresentada em Copenhague pela
Cúpula Social Mundial é aterradora. Faltam agentes capazes de atuar
com força suficiente no plano internacional para atingir consensos
em torno dos arranjos, procedimentos e condições políticas circuns­
tanciais prementes. Não são apenas as disparidades entre o Norte e o
Sul que exigem uma cooperação como essa, senão também a deca­
dência do padrão social nas sociedades abastadas do Atlântico Norte.
Neles, a política social limitada pelas estruturas do Estado nacional
revela-se ineficiente no combate às conseqüências dos baixos custos
da m ão-de-obra em mercados de trabalho globalizados e em rápida
expansão. Em especial, a falta de forças de ação supranacionais capa­
zes se faz notar quando se trata de problemas ecológicos como os que
foram negociados em sua abrangência global na reunião de cúpula do
Rio de Janeiro. Uma ordem mundial e um a ordem econômica global
mais pacífica e mais justa não podem ser concebidas sem instituições
internacionais capazes de agir, nem sem processos de conciliação en­
tre os regimes continentais ora emergentes, nem tampouco sem polí­
ticas que provavelmente só poderão se impor sob a pressão de uma
sociedade civil capaz de transitar em esfera global.
Isso já sugere a outra maneira de ler a questão, segundo a qual o
Estado nacional teria sido antes “suprassumido”, e não extinguido. A
essa noção luminosa das figuras capazes de agir em um plano supra­
nacional e capazes de dar condições às Nações Unidas e a suas organi­
zações regionais para que iniciem uma nova ordem mundial e uma
nova ordem econômica global, segue no entanto uma pergunta assom­
brosa e inquietante: resta saber se uma formação democrática de opi­
nião e vontade realmente poderá alcançar a força vinculativa neces­
sária, mais além da fase de integração ligada ao Estado nacional.

O Estado nacional europeu 145


5
Inserção — inclusão
ou confinamento?
DA RELAÇÃO ENTRE NAÇÃO, ESTADO DE
DIREITO E DEMOCRACIA
Para Hans-Ulrich Wehler, no seu 65° aniversário*

Tal como o período da descolonização após a Segunda


Guerra Mundial, também a desagregação do império sovié­
tico caracterizou-se por uma rápida seqüência de formações
dissolutivas de Estados. A paz assinada em Dayton e Paris
constitui a conclusão provisória de secessões bem-sucedi­
das, que levaram à fundação de novos Estados nacionais —•
ou ao restabelecimento de Estados nacionais liquidados, le­
vados a uma situação de dependência ou divididos. Pelo que
parece, esses são apenas os sintomas mais nítidos da força
vital de um fenômeno mais ou menos esquecido, não ape­
nas pelas ciências sociais: “Quando da desagregação de es­
paços de domínio imperial, forma-se de novo o m undo de
Estados a partir de linhas de fronteiras marcadas pelas ori­
gens, cujo curso é explicado recorrendo-se à historiografia
nacional”1. Hoje em dia, o futuro político parece pertencer
novamente às “potências originais”, entre as quais Hermann
Lübbe conta “a religião, a confissão constituída de modo ecle-
sial, por um lado, e a nação, pelo outro”. Outros autores falam *1

* Tradução: George Sperber.


1. H. Lübbe, Abschied vom Superstaat, Berlin 1994,33s.

147
de “etnonacionalismo”, para salientar a indisponível relação com as
origens, seja no sentido físico de uma ascendência comum, seja no
sentido mais amplo de uma herança cultural comum.
As terminologias estão longe de ser inocentes. Elas sugerem de­
terminado modo de ver. A recente criação do termo “etnonaciona­
lismo” passa por cima da diferença fixada na terminologia tradicio­
nal entre “ethnos” e “demos”2. A expressão salienta a proximidade
entre, por um lado, as etnias, ou seja, as comunidades de ascendên­
cia, pré-políticas, organizadas segundo relações de parentesco, e, por
outro lado, as nações organizadas como Estados e que pelo menos
aspiram à independência política. Com isso, contradiz-se implici­
tamente a pressuposição de que as comunidades étnicas são “mais
naturais” e “mais antigas”, do ponto de vista da evolução, do que as na­
ções3. A “consciência do nós”, fundada num imaginário parentesco
de sangue ou identidade cultural, de pessoas que compartilham a cren­
ça num a origem comum e se identificam mutuamente como “m em ­
bros” de uma mesma comunidade, diferenciando-se assim dos que
os rodeiam, deveria constituir o cerne comum das comunidades étni­
cas ou nacionais. Em vista desses aspectos comuns, as nações dife-
renciar-se-iam essencialmente de outras comunidades étnicas pela
sua complexidade e tamanho: “It is the largest group that can command
a persons loyalty because of felt kinship ties; it is, ffom this perspective,
the fully extended family”4.
Esse conceito etnológico de nação entra em concorrência com o
conceito empregado historicamente, porque apaga as referências es­
pecíficas à ordem do Estado democrático de direito, à historiografia
política e à dinâmica da comunicação de massas, às quais a consciência
nacional surgida na Europa do século XIX deve seu caráter reflexivo e

2. Cf. M. R. Lepsius, “‘Ethnos’ und ‘Demos’". In: idem:, Interessem Ideen und Insti-
tutionen, Opladen 1990, 247-256; idem, Demokratie in Deutschland, Gõttingen 1993.
3. Cf. C. Leggewie, “Ethnizitat, Nationalismus und multikulturelle Gesellschaft”.
In: H. Berding (ed.), Nationales Bewufitsein und kollektive Identitãt, Frankfurt am Main
1995,54.
4. [É o maior grupo que pode comandar a lealdade de um a pessoa devido ao
sentimento de liames de parentesco; é, a partir desta perspectiva, a família extensa ple­
na.] W. Connor, Ethnonacionalism, Princeton U. P., 1994,202: Ouranswer to that often
asked question, “W hat is a nation”, is that it is a group ofpeople whofeel they are ancestrally
related [“Nossa resposta à pergunta frequentemente formulada, “o que é um a nação?”,
é que ela é um grupo de pessoas que sentem que são ancestralmente relacionadas.]

148 A INCLUSÃO DO OUTRO


peculiarmente artificial5. Quando o “nacional” surge, a partir do ponto
de vista de um construtivismo generalizado, de modo semelhante ao
que já se deu com o étnico, como “comunidade crida” ou “imaginada”
(M. Weber), é possível conferir à “invenção da nação-povo” (H. Schulze)
um viés surpreendentemente afirmativo. Enquanto cunho especial
de uma forma universal de comunitarização, a imaginária primordia-
lidade natural do nacional quase ganha novamente, até mesmo para o
cientista, que parte de seu caráter de construção, algo de natural. Pois
tão logo vemos no nacional apenas uma variante de um universal so­
cial, o retorno do nacional não requer maiores explicações. Quando a
presunção de normalidade reverte em favor do etnonacionalismo, nem
mesmo faz sentido descrever os conflitos que hoje voltam a chamar a
atenção enquanto fenômenos regressivos de alienação, ou tentar tor­
ná-los compreensíveis, por exemplo, como compensações pela perda
de um status internacional de potência ou como elaboração de uma
relativa privação econômica.
Ora, as sociedades modernas, funcionalmente coesas pelo m er­
cado e pelo poder administrativo, certamente continuam a se delimi­
tar umas das outras como “nações”. Mas isso ainda nada diz a respeito
da espécie do auto-entendimento nacional. Permanece a questão em ­
pírica a respeito de quando e em que medida as populações moder­
nas se entendem a si mesmas como um a nação de membros de um
povo ou de concidadãos. Essa dupla codificação toca a dimensão de
fechamento e inserção. A consciência nacional oscila estranhamente
entre a inserção ampliada e o fechamento renovado.
Enquanto m oderna formação da consciência, a identidade na­
cional caracteriza-se, por um lado, pela tendência para a superação
de vinculações regionais, particularistas. Na Europa do século XIX, a
nação funda um novo relacionamento solidário entre pessoas que,
até então, eram estranhas umas para as outras. A transformação uni-
versalista das lealdades tradicionais para com a aldeia e a família, a
região e a dinastia, é um processo difícil e, sobretudo, longo, que mes­
mo nos clássicos estados-nação do Ocidente não deve ter abrangido
e permeado toda a população antes do início do século XX6. Por outro
lado, não foi por acaso que essa forma mais abstrata de integração se

5. Cf. H. Schulze, Staat undNation in der Europàischen Geschichte, München, 1994.


6. Cf. p. ex. P. Sahlins, Boundaries, University of Califórnia Press, Berkeley 1989.

I nserção — inclusão o u confinam ento ? 149


manifestou na disposição para a luta e o sacrifício dos recrutas que
foram mobilizados contra os “inimigos da pátria”. Em casos de emer­
gência, a solidariedade dos concidadãos deveria afirmar-se como a
solidariedade daqueles que arriscam sua vida pelo povo e pela pá­
tria. No conceito de povo inspirado pelo romantismo, que afirma
sua existência e sua particularidade na luta contra outras nações, a
primordialidade natural da imaginária comunidade de língua e ascen­
dência funde-se com a idéia da comunidade de destino, construída
mediante a narrativa dos acontecimentos. Mas essa identidade na­
cional enraizada num passado fictício carrega simultaneamente o
projeto orientado para o futuro da realização dos direitos republica­
nos de liberdade.
Essa característica bifronte da nação, que se abre para dentro e se
fecha para fora, já fica nítida no significado ambivalente do conceito
de liberdade. A liberdade particularista de um coletivo que afirma sua
independência nacional diante do exterior, apresenta-se apenas como
um invólucro protetor para as liberdades individuais dos cidadãos,
realizadas no interior — a autonomia privada dos membros da so­
ciedade, na mesma medida da autonomia política dos cidadãos. Nessa
síndrome dilui-se o antagonismo conceituai entre uma concernência
sem alternativa, porque adscritícia, a um povo, que se constitui numa
característica imperdível, e a qualidade de membro, livremente assu­
mida e garantida por direitos subjetivos, numa comunidade política
voluntária, que oferece a seus cidadãos a opção da egressão. Esse có­
digo duplo suscita até hoje interpretações concorrentes e diagnósticos
políticos antagônicos.
A idéia da nação de um povo conduz à hipótese de que o demos
dos concidadãos tem de se enraizar no ethnos dos membros de um
povo, para poder estabilizar-se como uma associação política de juris-
consortes* livres e iguais. Segundo se diz, a força vinculativa da co-
munitarização republicana é insuficiente para isso. A lealdade do cida­
dão precisa de um a ancoragem na consciência da solidariedade do
povo, marcada por uma primordialidade natural e pelo destino his­
tórico. A “pálida” idéia, nascida em seminários acadêmicos, de um

* N.T.: Permito-me, apoiado na existência da palavra “litisconsorte”, sugerir este


neologismo para traduzir a palavra alemã Rechtsgenosse, que poderia tam bém ser tra­
duzida como “membro de um a comunidade jurídica”.

1 50 A INCLUSÃO DO OUTRO
“patriotismo constitucional” não pode suplantar uma “sã consciência
nacional”: “Esse conceito (do patriotism o constitucional) paira... no
ar... O recurso à nação,... à consciência de um ‘nós’ nela contida,
capaz de criar liames emocionais, não pode ser, portanto, elidido”7. É
certo que, a partir de outra perspectiva, a simbiose entre naciona­
lismo e republicanismo se apresenta mais como um a constelação pas­
sageira. Foi apenas uma consciência nacional propagada por intelec­
tuais e sábios, que se espraiou lentamente a partir da burguesia urba­
na culta e se cristalizou em redor da ficção de uma ascendência co­
mum, da construção de uma história compartida e de uma língua
escrita, gramaticalmente simplificada, aquilo que certamente trans­
formou os súditos em cidadãos politicamente conscientes, que se iden­
tificam com a constituição da república e com seus fins declarados.
Contudo, o nacionalismo não é, não obstante esse papel catalisador,
uma condição prévia necessária para um processo democrático. A
progressiva inclusão da população no status de cidadãos não apenas
abre para o estado uma fonte secular de legitimação, mas também
produz o novo patam ar para uma integração social abstrata, juridi­
camente mediada.
Ambas essas interpretações partem da idéia de que o Estado na­
cional reagiu ao problema da desintegração de uma população que
foi arrancada dos liames sociais estamentais da sociedade dos pri-
mórdios da Idade Moderna. Mas um dos lados localiza a solução do
problema no nível da cultura, e o outro, no nível das instituições e dos
procedimentos democráticos. Ernst Wolfgang Bõckenfõrde salienta
a identidade coletiva: “No sentido contrário, é necessária... uma re­
lativa homogeneização num a cultura com um ..., para que a socieda­
de, tendencialmente atomizada, possa ser novamente coesa e — sem
levar em consideração sua diferenciada multiplicidade — associada
num a unidade capaz de agir. Essa função é assumida, ao lado e de­
pois da religião, pela nação e pela consciência natural a ela perten­
cente. .. Assim, não se pode ultrapassar a meta e substituir a identi­
dade nacional, nem mesmo em favor da idéia da universalidade dos
direitos hum anos”8. O lado contrário está convencido de que o pró­
prio processo democrático pode assumir o papel de fiador em caso

7. E. W. Bõckenfõrde, “Die Nation”, Frankfurter AllgemeineZeitung, 30.09.1995.


8. Bõckenfõrde, op. cit.

Inserção — inclusão o u confinam ento ? 151


de falta da integração social, numa sociedade que cada vez mais se
diferencia internamente9. Assim é que, nas sociedades pluralistas, esse
ônus não pode ser desviado do nível da formação de vontade política
e da comunicação pública e aberta para o substrato cultural, aparen­
temente de origem natural, de um povo supostamente homogêneo.
Sob essa premissa, Hans-Ulrich Wehler chega a emitir a opinião de
que “as uniões federativas de Estados, juntamente com um sentimento
de lealdade baseado primordialmente nas prestações do Estado cons­
titucional e social, encarnam uma utopia incomparavelmente mais
atraente do que o retorno para a presumida normalidade do Estado
nacional... alemão”101.
Falta-me competência para levar adiante esta disputa com argu­
mentos históricos. Em lugar disso, interessam-me as construções, em
termos de direito constitucional, das relações entre nação, Estado de
direito e democracia, com as quais é disputada esta questão em nível
normativo. Juristas e politólogos interferem nos processos de auto-
comunicação dos cidadãos com meios outros, porém não menos efi­
cientes, do que os historiadores; eles podem até mesmo exercer in­
fluência sobre a práxis decisória do Supremo Tribunal Federal. De acor­
do com o conceito clássico de fins do século XVIII, ‘nação’ significa o
povo de um Estado, que se constitui como tal, na medida em que ele
se confere uma constituição democrática. Esse conceito está em con­
corrência com a visão, surgida no século XIX, segundo a qual a sobe­
rania popular pressupõe um povo que, em contraste com a ordem
artificial do direito positivo, projeta-se para o passado como algo orga­
nicamente crescido: “O ‘povo’, ... que é considerado o sujeito do poder
constituinte nas democracias, não obtém a sua identidade apenas a
partir da constituição que ele se confere. Essa identidade é muito mais
um fato pré-constitucional, histórico. Certamente contingente, mas nem
por isso aleatório, m uito mais, indisponível para aqueles, que acham
que pertencem a um povo”11.
Na história dos efeitos dessa tese, Carl Schmitt teve um papel rele­
vante. Inicialmente, compararei a construção de Schmitt referente à rela­

9. Cf. J. Habermas, Die Normalitàt einer Berliner Republik, Frankfurt am Main,


1995,181.
10. H. U. Wehler, “Nationalismus und Nation in der deutschen Geschichte”, in
Berding (1995), 174s.
11. H. Lübbe (1994), 38s.

152 A INCLUSÃO DO OUTRO


ção entre nação, Estado de direito e democracia com a respectiva visão
clássica (I). Disso resultam diversas conseqüências para alguns proble­
mas atuais e relacionados entre si: para o direito à autodeterminação
nacional (II) e para a igualdade de direitos nas sociedades multicul­
turais (III), assim como para o direito às intervenções humanitárias (IV)
e para a transferência de direitos de soberania a instituições suprana­
cionais (V). Seguindo o fio condutor desses problemas, gostaria de dis­
cutir a inconveniência da visão etnonacionalista da soberania popular.

O
Construções da soberania popular
no direito constitucional

(1) Em sua interpretação da Constituição de Weimar, Carl Schmitt


confere a um etnonacionalismo concebido de modo construtivista a
hierarquia de um direito constitucional. A república de Weimar fazia
parte da tradição de um Estado de direito — já desenvolvido durante
a monarquia constitucional — que deveria proteger os cidadãos dos
abusos do poder do Estado; contudo, ela integrava, pela primeira vez
em solo alemão, o Estado de direito com a forma do Estado e com o
conteúdo político da democracia. Essa situação inicial, específica do
desenvolvimento jurídico alemão, reflete-se na estrutura da “doutrina
constitucional” de Schmitt. Nela, Schmitt estabelece uma nítida di­
visão entre a parte “de Estado de direito” e a parte “política” da cons­
tituição, utilizando depois a “nação” como dobradiça, que articula os
princípios tradicionais do Estado burguês de direito com o princípio
democrático da autodeterminação do povo. Ele declara a homoge­
neidade nacional como sendo condição necessária para o exercício
democrático do poder: “Um Estado democrático, que encontra os pres­
supostos de sua democracia na homogeneidade nacional de seus ci­
dadãos, corresponde ao assim chamado princípio de nacionalidade,
segundo o qual uma nação constitui um Estado, e um Estado cons­
titui uma nação”12.
Com isso, Schmitt acom panha um a idéia de Johann Caspar
Bluntschli; sente-se também em consonância com os princípios —

12. C. Schmitt, Verfassungslehre, Berlin 1983,231.

Inserção — inclusão o u confinam ento ? 153


compartidos igualmente por Wilson e por Lenin — , segundo os quais
os tratados assinados no subúrbio de Paris tinham fixado a ordem
européia do pós-guerra. Mais importante do que essas concordâncias
históricas é a precisão conceituai. Schmitt imagina a participação po­
lítica uniforme dos cidadãos na formação da vontade política como
um acordo voluntário das manifestações de vontade dos participantes
uníssonos de um povo mais ou menos homogêneo13. A democracia
só pode existir na figura da democracia nacional, porque o sujeito do
autogoverno do povo é concebido como um macrossujeito capaz de
agir, e porque a nação de um povo parece ser a grandeza adequada
para ocupar esse espaço conceituai. Ela é vista como um substrato su­
postamente natural da organização do Estado. Essa interpretação
coletivista do modelo rousseauniano da autolegislação condiciona todo
e qualquer raciocínio posterior.
É certo que a democracia só pode ser exercida como uma práxis
comunitária. Mas Schmitt não constrói essa comunidade como a in-
tersubjetividade de grau superior de um acordo m útuo entre cida­
dãos, que se reconhecem reciprocamente como livres e iguais. Ele a
coisifica enquanto homogeneidade dos membros de um povo. A ori­
gem da norm a da igualdade de tratamento é procurada no fato da
igualdade da origem nacional: “A igualdade democrática é uma igual­
dade substancial. Porque todos os cidadãos participam dessa subs­
tância, eles podem ser tratados como iguais, podem ter o mesmo direito
de votar e de ser votados etc.”14. A partir dessa substancialização do
povo de um Estado, resulta como mais uma sinalização de direção
conceituai uma concepção existencialista do processo democrático de
decisão. Schmitt concebe a formação da vontade política como a auto-
afirmação coletiva de um povo: “O que o povo quer é bom, justamen­
te porque o povo (o) quer”15. A separação entre democracia e Estado
de direito mostra aqui o seu sentido oculto: como a vontade política
orientadora não tem um conteúdo normativo racional, como ela se
esgota, antes, no conteúdo expressivo de um espírito popular natura­
lizado, ela também não precisa surgir de uma discussão pública.

13. Cf. I. Maus, “Rechtsgleichheit und gesellschaftliche Differenzierung bei Carl


Schmitt”. In: idem, Rechtstheorie und Politische Theorie im Industriekapitalismus,
München, 1986,111-140.
14. C. Schmitt (1983), 228.
15. C. Schmitt (1983), 229.

154 A INCLUSÃO DO OUTRO


ff

Aquém da razão e da desrazão, a autenticidade da vontade popu­


lar atesta-se unicamente na execução plebiscitária da manifestação de
vontade de uma multidão de populares, reunida num dado m om en­
to. Antes mesmo de o autogoverno de um povo se solidificar nas com­
petências dos órgãos de um Estado, ele se manifesta em posiciona­
mentos espontâneos pelo sim ou pelo não, diante de alternativas dadas:
“Só o povo realmente reunido é povo... e pode fazer aquilo que faz
parte específica da atividade desse povo; pode aclamar, isto é, expri­
mir a sua concordância ou discordância pelo simples brado”16. A re­
gra da maioria apenas operacionaliza a consonância das manifestações
individuais de vontade — “todos querem o mesmo”. Essa convergên­
cia traz à consciência o a priori substancial de uma forma coletiva de
vida nacional. O acordo prévio apriorístico é garantido pela homoge­
neidade substancial dos membros de um povo, que se diferenciam
como uma nação especial das outras nações: “O conceito democrático
da igualdade é um conceito político e faz referência à possibilidade da
diferenciação. A democracia política, portanto, não pode fundam en­
tar-se na falta de diferenças entre todos os seres humanos, mas apenas
na concernência a um determinado povo... A igualdade, que faz parte
da essência da democracia, dirige-se portanto apenas para dentro, não
para fora”17.
Desse modo, Schmitt faz o “povo” assumir uma posição polêmica
diante de uma “humanidade”, entendida como um conceito “hum a­
nista”, com o qual se associa o conceito moral do respeito igual para
todos: “O conceito central da democracia é o povo, não a humanidade.
Se a democracia quiser ser uma forma política, só existe uma democra­
cia popular, e não uma democracia humanitária”18. Na medida em que
“a idéia da igualdade dos seres humanos” — no sentido do respeito
uniforme pelos interesses de cada um — tem alguma relevância para a
constituição, ela se expressa no princípio jurídico, no direito aos mesmos
direitos subjetivos, assim como na organização constitucional do poder
do Estado. O sentido de inserção dos direitos humanos esgota-se no
gozo privado das mesmas liberdades liberais, enquanto o exercício cida­
dão das liberdades políticas deve obedecer a uma lógica totalmente

16. C. Schmitt (1983), 243.


17. C. Schmitt (1983), 227.
18. C. Schmitt (1983), 234.

I nserção — inclusão o u confinam ento ? 155


diversa. O sentido da autodeterminação democrática baseada na ho­
mogeneidade é a independência nacional — a auto-afirmação, auto-
confirmação e auto-realização de uma nação em sua peculiaridade.
Essa ‘nação’ medeia entre o Estado de direito e a democracia, porque
do exercício democrático do poder só podem participar os cidadãos
que surgiram da transformação dos particulares em membros de uma
nação politicamente consciente.
(2) Com esse desacoplamento dos direitos fundamentais, que
regulam o trato privado dentro da sociedade burguesa, de uma “demo­
cracia popular” substancial19, Schmitt coloca-se em crassa contradi­
ção com o republicanismo inspirado no direito racional. Nessa tra­
dição, “povo” e “nação” são conceitos que podem ser trocados entre si,
concernentes a um a cidadania que tem igualdade de origem com sua
comunidade democrática. O povo de um Estado não vale como um
dado pré-político, mas como produto do contrato social. Na medida
em que os participantes decidem em comum fazer uso de seu direito
primitivo de “viver sob leis públicas reguladoras da liberdade”, eles
constituem uma associação de jurisconsortes livres e iguais. A decisão
de viver em liberdade política tem o mesmo significado que a incitava
em favor de um a práxis constituinte. Graças a isso, e diferentemente
do que ocorre com Carl Schmitt, soberania popular e direitos hum a­
nos, democracia e Estado de direito estão conceptualmente interli­
gados. Pois a decisão inicial em favor de uma legislação democrática
só pode ser executada pela via da realização daqueles direitos que os
participantes devem reconhecer reciprocamente, se quiserem regular
legitimamente a sua convivência com os meios do direito positivo.
Isso exige, por sua vez, um processo de legiferação que garanta legiti­
midade e que estabeleça a longo prazo a configuração do sistema das
leis20. Nesse caso, segundo a fórmula rousseauniana, todos devem de­
cidir o mesmo para todos. Portanto, os direitos fundamentais surgem
da idéia da institucionalização jurídica de tal processo de autolegisla-
ção democrática.
A idéia de uma soberania popular de tal modo procedimentalizada
e orientada para o futuro faz com que perca sentido a reivindicação de

19. B. O. Bryde, “Die bundesrepublikanische Volksdemokratie ais Irrweg der


Demokratietheorie”, Staatswissenschaften und Staatspraxis, 5,1994,305-329.
20. Cf. J. Habermas, Faktizitat und Geltung, Frankfurt am Main, 1992, cap. 3.

1 56 A INCLUSÃO DO OUTRO
retornar a formação da vontade política ao a priori substantivo de um
consenso passado obtido entre membros de um povo homogeneizado
num momento pré-político: “O direito positivo não é legítimo pelo
fato de corresponder a princípios substantivos de justiça, mas por ter
sido criado em processos que, por sua própria estrutura, são justos,
quer dizer, democráticos. O fato de, durante o processo legislativo,
todos decidirem a mesma coisa a respeito de todos, é um pressuposto
normativo pretensioso, que não mais se define pela substância, mas
pela autolegislação dos destinatários do direito, pela igualdade de po­
sições nos processos e pela generalidade das regras jurídicas, e deve
impedir o arbítrio e minimizar a dominação”21. Não é necessário um
consenso básico anterior, garantido pela homogeneidade cultural,
porque uma formação democraticamente estruturada de opinião e de
vontade possibilita um acordo normativo racional também entre es­
tranhos. Pelo fato de o processo democrático, graças às suas caracte­
rísticas procedimentais, garantir legitimidade, ele pode, quando ne­
cessário, preencher as lacunas da integração social. Porque, na medida
em que garante uniformemente o valor de uso das liberdades subjeti­
vas, ele cuida de que a rede da solidariedade cidadã não se rompa.
A crítica dessa interpretação clássica dirige-se sobretudo contra
sua leitura “liberalista”. Carl Schmitt questiona a força de integração
social do Estado de direito centrado no processo democrático a partir
dos dois aspectos que já tinham sido determinantes para a crítica feita
por Hegel do “Estado da necessidade e da razão”, característico do m o­
derno direito natural, e que hoje são retomados pelos “comunitaristas”
na sua discussão com os “liberais”22. Os alvos são a concepção atomística
do indivíduo como um “eu desvinculado” e o conceito instrumentalista
da formação da vontade política como uma agregação de interesses
sociais. Os contraentes do contrato social são apresentados como egoís­
tas isolados, racionalmente esclarecidos, que não estão cunhados por
tradições comuns, ou seja, não compartilham orientações culturais de
valor e não agem orientados para o acordo mútuo. Segundo essa des­
crição, a formação de vontade política ocorre exclusivamente pelo modo
de negociações a respeito de um modus vivendi, sem que seja possível

21.1. Maus, “‘Volk’ und ‘Nation’ im Denken der Aufklârung”, Blàtter fü r deutsche
und internationale Politik, 5, 1994,604.
22. Cf. R. Forst, Kontexte der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main 1994, Gap. I e III.

Inserção — inclusão o u confinam ento ? 157


um entendimento a partir de pontos de vista éticos ou morais. É de
fato difícil imaginar como pessoas dessa espécie poderíam chegar por
essa via a uma ordem jurídica intersubjetivamente reconhecida, da qual
se esperaria que forjasse uma nação de cidadãos a partir de um grupo
de estranhos, ou seja, que estabelecesse uma solidariedade cidadã entre
estranhos. Diante de um pano de fundo como esse, pintado com cores
da gama preferida por Hobbes, recomenda-se então a origem étnica
ou cultural comum de um povo mais ou menos homogêneo, como
origem e fiador daquela espécie de vínculos normativos, diante dos
quais o individualismo possessivo é cego.
Contudo, a crítica justificada dessa variante do direito natural
não acerta o alvo de uma concepção intersubjetivista da soberania po­
pular procedimentalizada, com a qual, aliás, o republicanismo tem
maior afinidade. Segundo essa leitura, o modelo de contrato do direi­
to privado entre participantes do mercado é substituído pela práxis da
consulta entre participantes do processo de comunicação, que gosta­
riam de chegar a decisões motivadas pelo bom senso. A formação da
opinião e da vontade políticas não se realiza apenas na forma dos com­
promissos, mas também segundo o modelo dos discursos públicos,
que visam a aceitabilidade racional das regras, à luz de interesses ge­
neralizados, de orientações de valor compartidas e de princípios fun­
damentados. Desse modo, esse conceito não-instrumental de política
apóia-se no conceito da pessoa que age comunicativamente. Também
as pessoas jurídicas não devem ser concebidas como proprietárias de
si mesmas. Faz parte do caráter social das pessoas físicas o fato de elas
se desenvolverem em meio a formas de vida compartidas intersubjeti­
vamente, para se tornarem indivíduos e estabilizarem sua identidade
em condições de reconhecimento recíproco. Por isso, também a partir
de um ponto de vista jurídico, a pessoa individual só pode ser protegi­
da juntamente com o contexto dos seus processos de formação, ou
seja, com um acesso seguro a relações impessoais de sustentação, às
redes sociais e às formas da vida cultural. Um processo legislativo e de
tomada de decisões políticas, instruído de modo discursivo e sem per­
der de vista o que acabou de ser dito, tem de respeitar tanto as prefe­
rências existentes quanto os valores e as normas. Desse modo, esse
processo se qualifica muito bem para a tarefa de assumir o papel de
fiador político em caso de inadimplência das funções de integração,
ocorrida num outro ponto.

1 58 A INCLUSÃO DO OUTRO
Dos pontos de vista de Kant e de um Rousseau bem entendido23,
a autodeterminação democrática não possui o sentido coletivista e
ao mesmo tempo excludente da afirmação da independência nacio­
nal e da concretização da singularidade nacional. Mais do que isso,
tem o sentido de inserção de um a autolegislação que inclui unifor­
memente todos os cidadãos. Inserção significa que tal ordem polí­
tica se m antém aberta para equiparar os discriminados e para incluir
os marginalizados, sem confiná-los na uniformidade da comunidade
homogênea de um povo. Para isso é significativo o princípio da volun-
tariedade; a nacionalidade do cidadão fundamenta-se em seu con­
sentimento, pelo menos implícito. A visão substancialista da sobe­
rania popular refere “liberdade” essencialmente à independência ex­
terna na existência de um povo; a visão procedimentalista, por sua
vez, refere-a à autonom ia privada e pública, uniformemente garanti­
da internamente a um a associação de jurisconsortes livres e iguais. A
partir dos desafios com que hoje nos vemos confrontados, gostaria
de m ostrar que essa leitura do republicanismo, feita segundo os prin­
cípios da teoria da comunicação, é mais apropriada do que um a vi­
são etnonacionalista, ou mesmo comunitarista dos conceitos de na­
ção, Estado de direito e democracia.

O
Sentido e falta de sentido da autodeterminação nacional

O princípio de nacionalidade significa um direito a autodetermi­


nação nacional. De acordo com ele, toda nação que quer se governar a
si própria tem direito a uma existência enquanto Estado independente.
A visão etnonacionalista da soberania popular parece oferecer solução
para um problema, ao qual a republicanismo ficou devendo resposta.
Como pode ser definida a totalidade fundamental daqueles aos quais
se devem legitimamente referir os direitos fundamentais?
Kant reconhece que todo ser hum ano tem, enquanto tal, o di­
reito a ter direitos e a regular comunitariamente a convivência com
os outros, de tal modo que todos possam usufruir das mesmas liber­
dades, segundo leis públicas e obrigatórias. Mas com isso ainda não

23. Cf. I. Maus, Zur Aufklarung der Demokratietheorie, Frankfurt am Main 1992.

Inserção — inclusão o u confinam ento ? 159


está definido quem de fato pode fazer uso desse direito, com quem,
onde e quando, nem quem pode associar-se num a com unidade
autodeterminada, sobre o fundamento de um contrato social. A ques­
tão da composição legítima da comunidade básica dos cidadãos fica
aberta enquanto a autodeterminação democrática se referir apenas à
espécie de organização da convivência de jurisconsortes associados.
E certo que a autolegislação de uma nação democraticamente cons­
tituída provém das decisões de uma geração de fundadores, no sentido
de se conferir a si mesmos uma constituição. Contudo, através desse
ato, os participantes só se qualificam retrospectivamente como povo
de um Estado. É pela vontade coletiva de criar uma existência enquan­
to Estado e, como conseqüência dessa decisão, através da própria
práxis constituinte, que os participantes se constituem num a nação
de cidadãos.
Essa visão não é problemática enquanto as questões de frontei­
ras realmente não forem objeto de disputa — como por exemplo na
Revolução Francesa, ou na Americana, quando os cidadãos tiveram
de lutar para conquistar as liberdades republicanas, seja contra o
próprio governo, quer dizer dentro das fronteiras de um Estado exis­
tente, seja contra um senhor colonial que tinha demarcado ele pró­
prio as fronteiras da desigualdade. Contudo, a resposta circular, de
que os próprios cidadãos se constituem enquanto povo e, com isso,
demarcam o seu território geográfica e socialmente, é insuficiente
em outros casos de conflito: “To say that all people... are entitled to
the democratic process begs a prior question. When does a collection
of persons constitute an entity— ‘a people’— entitled to govern itself
democratically?”24. No m undo, tal qual o conhecemos, é o acaso his­
tórico, norm alm ente o simples resultado de conflitos armados, guer­
ras e guerras civis, quem decide a quem caberá, em cada caso, o exer­
cício do poder e definirá as fronteiras controvertidas de um Estado.
Enquanto o republicanismo reforça a nossa consciência da contin­
gência dessas fronteiras, o recurso à idéia de um a nação de origem
primordial, capaz de vencer essa contingência, pode ornar as fron­
teiras com uma aura de substancialidade simulada, legitimando-as

24. [Dizer que todos os povos... têm direito a um processo democrático pressu­
põe um a pergunta anterior. Q uando uma coleção de pessoas constitui um a entidade re
‘um povo’ae com direito a se autogovernar democraticamente?] R. A. Dahl, Democracy
and Its Critics, Yale U. P., New Haven e Londres, 1989,193.

160 A INCLUSÃO DO OUTRO


através de relações artificiais de origem. O nacionalismo preenche a
lacuna normativa com um apelo a um assim chamado “direito” à
autodeterm inação nacional.
Divergindo da teoria racional do direito, que reconhece que as
condições jurídicas surgem das relações individuais do reconhecimen­
to intersubjetivo, Carl Schmitt parece poder fundamentar tal direito
coletivo. Pois, quando a autodeterminação democrática é introduzi­
da com o sentido da auto-afirmação e da auto-realização coletivas,
ninguém pode realizar seu direito fundamental a uma série de di­
reitos fundamentais iguais fora do contexto de um povo constituído
em nação, que goza de independência enquanto Estado. A partir des­
se ponto de vista, o direito coletivo de todos os povos a uma existên­
cia própria na forma de Estado é condição necessária para a garantia
eficiente de direitos individuais iguais para todos. Essa fundam enta­
ção do princípio da nacionalidade, em termos da teoria da democra­
cia, permite conferir retroativamente força normativa ao sucesso fac­
tual de movimentos de independência nacional. Porque determinado
povo se qualifica para o direito à soberania nacional pelo fato de ele
próprio se definir como povo homogêneo e de ter, simultaneamente,
o poder para controlar as fronteiras que são deduzidas de tais carac­
terísticas adscritícias.
Por outro lado, a hipótese de um povo homogêneo contradiz o
princípio da voluntariedade e conduz às conseqüências normativas
indesejáveis que Schmitt nem mesmo procura ocultar: “Um Estado
nacionalmente homogêneo apresenta-se então como algo normal; um
Estado, ao qual falta essa homogeneidade, tem algo de anormal, algo
que se constitui em ameaça para a paz”25. A pressuposição de um a
identidade coletiva indisponível acaba forçando a políticas repres­
sivas, seja de assimilação coercitiva de elementos estranhos, seja de
preservação da pureza do povo, mediante apartheid ou limpeza étni­
ca, pois “um Estado democrático perde(ria) sua própria substância
por um reconhecimento conseqüente da igualdade geral entre os se­
res humanos no âmbito da vida pública e do direito geral”26. Além das
medidas preventivas para o controle da admissão de estrangeiros, C.
Schmitt fala ainda na “submissão e evacuação da população heterogê-

25. C. Schmitt (1983), 231.


26. C. Schmitt (1983), 233.

I nserção — inclusão ou confinam ento ? 161


nea”, assim como em sua segregação geográfica, ou seja, na instalação
de protetorados, colônias, reservas, homelanás etc.
A concepção republicana naturalmente não exclui que comuni­
dades étnicas possam conferir-se uma constituição democrática e pos­
sam se estabelecer como Estados soberanos, na medida em que essa
independência se legitime a partir do direito individual de cada cida­
dão a viver em liberdade, de acordo com as leis. Porém, via de regra, os
Estados nacionais não se desenvolvem de modo pacífico, a partir de
etnias individuais, que vivem de forma isolada. Com muito maior fre-
qüência eles se expandem para regiões, tribos, subculturas e comuni­
dades lingüísticas e religiosas vizinhas. Os novos Estados nacionais
surgem geralmente à custa de ‘povos inferiores’assimilados, oprimidos
ou marginalizados. A formação de Estados nacionais sob o signo do
etnonacionalismo foi quase sempre acompanhada de sangrentos ri­
tuais de limpeza e sempre submeteu novas minorias a novas repres­
sões. Na Europa dos fins do século XIX e do século XX, ela deixou as
marcas cruéis da emigração e expulsão, da evacuação pela força, da
privação de direitos e do extermínio físico — até o genocídio. Com
bastante ffeqüência, após terem conseguido sua emancipação, os per­
seguidos transform am -se em perseguidores. Na prática do direito
internacional relativa ao reconhecimento, o surgimento do princípio
das nacionalidades correspondeu à mudança para o princípio da efe­
tividade, segundo o qual qualquer novo governo — independente­
mente de sua legitimidade — podia contar com o reconhecimento, na
medida em que sua soberania estivesse suficientemente estabilizada,
para fora e para dentro de seu território.
Tal como ocorre nos casos gritantes de dom ínio estrangeiro e
de colonialismo, a injustiça contra a qual se dirige um a resistência
legítima não surge da infração de um direito supostam ente coletivo
à autodeterm inação nacional, mas da infração de direitos funda­
mentais individuais. A reivindicação da autodeterm inação só pode
ter como conteúdo imediato a concretização de direitos de cidada­
nia iguais para todos. Dar um fim à discriminação das m inorias não
precisa absolutamente pôr sempre em questão os limites de determ i­
nado regime ilegítimo. Uma reivindicação de secessão só se justi­
fica se o poder central do Estado nega seus direitos a um a parte de
sua população, concentrada num território; nessas circunstâncias a
reivindicação da inclusão pode ser imposta pela via da independên­

162 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
cia nacional. Foi a partir desse ponto de vista que a independência
dos Estados Unidos foi reconhecida pela Espanha e pela França já
em 1778. A partir da secessão das colônias espanholas nas Américas
do Sul e Central, contrariamente à prática usual até então27, prevale­
ceu a visão de que o reconhecimento internacional de uma secessão
da m etrópole tam bém seria permissível sem a anuência do sobera­
no anterior28.
Na medida em que os movimentos de independência nacional
apelam para a autodeterminação, no sentido republicano do termo,
um a secessão (ou a anexação de uma parte separada a um outro Esta­
do) não é justificável sem atentar para a legitimidade do status quo.
Porque, enquanto todos os habitantes gozarem dos mesmos direitos e
ninguém for discriminado, não existe nenhum motivo normativamen­
te convincente para a separação da comunidade existente. Porque, sob
tais circunstâncias, não se pode falar em repressão nem em “domínio
estrangeiro”, que dariam direito de secessão a uma minoria. A isso cor­
responde também a resolução pertinente da Assembléia Geral das
Nações Unidas que, de acordo com a Carta das Nações Unidas, conce­
de a todos os povos um direito à autodeterminação, sem contudo fi­
xar o conceito de “povo” no sentido étnico do term o29. Aliás, nega-se
expressamente a existência de um direito à secessão, isto é, “um direito
à separação daqueles Estados que se comportam de acordo com os
princípios da igualdade de direitos e do direito à autodeterminação
dos povos e, portanto, possuem um governo que representa a todo o
povo, sem discriminação de raça, crença ou sexo”30.

27. Só em 1581, quando a independência dos Países Baixos, declarada unilate­


ralmente, foi reconhecida pela Espanha através do Tratado de Paz da Vestfália, esse
tipo de questão ficou completamente esclarecida para as potências européias.
28. Cf. J. A. Frowein, “Die Entwicklung der Anerkennung von Staaten und Re-
gierungen im Võlkerrecht”, Der Staat, Ano 11, 1972,145-159.
29.0 Art. I o do Pacto sobre os Direitos Humanos, de 16 de dezembro de 1966,
surgido na fase da descolonização pacífica, posterior à Segunda Guerra Mundial, diz:
“AIl peoples have the right to self-determination. By virtue o f that right they freely deter­
mine theirpolitical status and freely pursue their economic, social and cultural development”.
(“Todos os povos têm o direito à autodeterminação. Em virtude de tal direito, eles
determinam livremente o seu status político e procuram livremente o seu desenvolvi­
m ento econômico, social e cultural” ].
30. A. Verdross, B. Sima, Universelles Võlkerrecht, Berlin 31984,318 (§511).

I nserção — inclusão o u confinam ento ? 163


Inclusão com sensibilidade para as diferenças

A leitura liberalista da autodeterminação democrática mascara,


contudo, o problema das minorias “inatas”, que é percebido com
maior clareza a partir do ponto de vista comunitarista31, assim como
do ponto de vista intersubjetivista da teoria do discurso32. O proble­
ma também surge em sociedades democráticas, quando uma cultura
majoritária, no exercício do poder político, impinge às minorias a
sua forma de vida, negando assim aos cidadãos de origem cultural
diversa uma efetiva igualdade de direitos. Isso tange questões políti­
cas, que tocam o auto-entendimento ético e a identidade dos cida­
dãos. Nessas matérias, as minorias não devem ser submetidas sem
mais nem menos às regras da maioria. O princípio majoritário chega
aqui a seu limite, porque a composição contingente do conjunto dos
cidadãos condiciona os resultados de um processo aparentemente
neutro. “The majority principie itself depends on prior assumptions
about the unit: that the unit within which it is to operate is itself
legitimate and that the matters on which it is employed properly fali
within its jurisdiction. In other words, whether the scope and domain
of m ajority rule are appropriate in a particular unit depends on
assumptions that the majority principie itself can do nothing to justify.
The justification for the unit lies beyond the reach of the majority
principie and, for that matter, mostly beyond the reach of democratic
theory itself”33.
O problema das minorias “inatas” explica-se pelo fato de que os
cidadãos, mesmo quando observados como personalidades jurídicas,
não são indivíduos abstratos, amputados de suas relações de origem.

31. Cf. Ch. Taylor, Multikulturalismus und die Politik der Anerkennung, Frank­
furt am Main 1993.
32. Cf. J. Habermas, “Kampf um Anerkennung im demokratischen Rechtsstaat”,
vide adiante.
33. [“O princípio da maioria em si depende de pressupostos prévios a respeito
da unidade: depende de que a unidade dentro da qual ele deve operar seja em si legíti­
ma e de que os assuntos aos quais é aplicado recaiam apropriadamente em sua jurisdi­
ção. Com outras palavras, o fato de o escopo e o domínio da regra majoritária serem
apropriados para um a unidade específica depende de pressupostos para cuja justifica­
tiva o princípio da maioria em si nada pode contribuir e que, por isso mesmo, ficam
além do alcance da própria teoria democrática”] Dahl (1989), 104.

164 A IN C L U S Ã O DO OUTRO
Na medida em que o direito intervém em questões ético-políticas, ele
toca a integridade das formas de vida dentro das quais está enfronhada
a configuração pessoal de cada vida. Com isso entram em jogo — ao
lado de considerações morais, de reflexões pragmáticas e de interesses
negociáveis — valorizaçõesfortes, que dependem de tradições intersub-
jetivamente compartidas, mas culturalmente específicas. As ordens de
direito também são, em seu todo, “eticamente impregnadas”, porque
interpretam o conteúdo universalista dos mesmos princípios consti­
tuintes de modo diferente em cada caso, a saber, no contexto das ex­
periências de uma história nacional e à luz de uma tradição, um a cul­
tura e uma forma de vida historicamente predominantes. Na regula­
ção de matérias culturalmente delicadas, como por exemplo a lingua­
gem oficial, os currículos da educação pública, o status das igrejas e
das comunidades religiosas, as normas do direito penal (por exemplo
quanto ao aborto), mas também em assuntos menos chamativos, como
por exemplo a posição da família e dos consórcios semelhantes ao
matrimônio, a aceitação de normas de segurança ou a delimitação das
esferas pública e privada — em tudo isso reflete-se amiúde apenas o
auto-entendimento ético-político de um a cultura majoritária, dom i­
nante por motivos históricos. Por causa de tais regras, implicitamente
repressivas, mesmo dentro de uma comunidade republicana que ga­
ranta formalmente a igualdade de direitos para todos, pode eclodir
um conflito cultural movido pelas minorias desprezadas contra a cul­
tura da maioria. Exemplos recentes desse fenômeno são dados pela m i­
noria de fala francesa no Canadá, pelos valões na Bélgica, pelos bascos
e catalães na Espanha etc.
Uma nação de cidadãos é composta de pessoas que, devido a seus
processos sociais, encarnam simultaneamente as formas de vida den­
tro das quais se desenvolveu sua identidade — e isso ocorre mesmo
quando, como adultos, eles se libertaram das tradições da sua origem.
Naquilo que é relevante para seu caráter, as pessoas são como entron­
camentos num a rede adscritícia de culturas e tradições. A composição
contingente do povo de um Estado, a unidade política, na term inolo­
gia de Dahl, determina também implicitamente o horizonte das orien­
tações de valor, dentro do qual ocorrem os conflitos culturais e os dis­
cursos do auto-entendimento ético-político. Junto com a composição
social da cidadania também muda esse horizonte de valores. Por exem­
plo: as questões políticas que dependem de um horizonte cultural espe­

INSERÇÃO — INCLUSÃO OU CONFINAMENTO? 165


cífico não são necessariamente discutidas de modo diferente após uma
secessão, mas são votadas com resultados diferentes. Nem sempre há
novos argumentos, mas sim, novas maiorias.
É claro que uma minoria discriminada só pode obter a igualdade
de direitos por meio da secessão sob a improvável condição de sua
concentração espacial. Caso contrário, os velhos problemas ressurgi­
rão com outros sinais. Em geral, a discriminação não pode ser abolida
pela independência nacional, mas apenas por meio de uma inclusão
que tenha suficiente sensibilidade para a origem cultural das diferen­
ças individuais e culturais específicas. O problema das minorias “ina­
tas”, que pode surgir em todas as sociedades pluralistas, agudiza-se nas
sociedades multiculturais. Mas quando estas estão organizadas como
Estados democráticos de direito, apresentam-se, todavia, diversos ca­
minhos para se chegar a uma inclusão “com sensibilidade para as dife­
renças”: a divisão federativa dos poderes, uma delegação ou descen­
tralização funcional e específica das competências do Estado, mas aci­
ma de tudo, a concessão de autonomia cultural, os direitos grupais
específicos, as políticas de equiparação e outros arranjos que levem a
uma efetiva proteção das minorias. Através disso, dentro de determi­
nados territórios e em determinados campos políticos, mudam as to-
talidades fundamentais dos cidadãos que participam do processo de­
mocrático, sem tocar nos seus princípios.
A coexistência com igualdade de direitos de diferentes comuni­
dades étnicas, grupos lingüísticos, confissões religiosas e formas de vida,
não pode ser obtida ao preço da fragmentação da sociedade. O pro­
cesso doloroso do desacoplamento não deve dilacerar a sociedade numa
miríade de subculturas que se enclausuram mutuamente34. Por um
lado, a cultura majoritária deve se soltar de sua fusão com a cultura
política geral, uniformemente compartida por todos os cidadãos; caso
contrário, ela ditará a priori os parâmetros dos discursos de auto-en-
tendimento. Como parte, não mais poderá constituir-se em fachada
do todo, se não quiser prejudicar o processo democrático em determi­
nadas questões existenciais, relevantes para as minorias. Por outro lado,
as forças de coesão da cultura política comum — a qual se torna tanto
mais abstrata quanto mais forem as subculturas para as quais ela é o

34. Cf. H. J. Puhle, “Vom Bürgerrecht zum Gruppenrecht? Multikulturelle Politik


in den USA”. In: K. J. Baade (ed.), Menschen über Grenzen, Herne 1995,134-149.

166 A INCLUSÃO DO OUTRO


denominador comum — devem continuar a ser suficientemente fortes
para que a nação dos cidadãos não se despedace: “Multiculturalism,
while endorsing the perpetuation of several cultural groups in a single
political society, also requires the existence of a common culture...
Members of all groups... will have to acquire a common political
language and conventions of conduct to be able to participate effecti-
vely in the competition for resources and the protection of a group as
well as individual interests in a shared political arena”35.

Democracia e soberania do Estado:


o caso das intervenções humanitárias

As visões substancialista e procedimentalista da democracia con­


duzem a conceitos diferentes não apenas no que se refere à autodeter­
minação nacional e ao multiculturalismo. Diversas conseqüências
ocorrem também no que se refere a conceptualização da soberania do
Estado. O Estado, tal como se desenvolveu durante a Idade Moderna
na Europa, apóia-se desde seus primórdios no poder aquartelado do
exército, da polícia e da execução penal, e monopoliza os meios do uso
legítimo da violência. A soberania interna significa a imposição efi­
ciente da ordem jurídica do Estado; a soberania externa significa a
capacidade de se afirmar na concorrência com as grandes potências
(tal como elas surgiram, depois da paz da Vestfália, no sistema dos Es­
tados europeus). A partir desse ponto de vista, a democratização, sur­
gida passo a passo com a formação dos Estados nacionais, apresenta-se
como a passagem do poder soberano dos príncipes para o povo. C on­
tudo, tendo em vista a alternativa que interessa no contexto de que
estamos tratando, essa fórmula é muito pouco nítida.

35. [“O multiculturalismo, ao mesmo tem po que apóia a perpetuação de vários


grupos culturais dentro de uma mesma sociedade política, tam bém requer a existên­
cia de um a cultura com um ... Membros de todos os grupos culturais... terão de ad­
quirir um a linguagem política e convenções de com portam ento comuns para serem
capazes de participar eficientemente na competição por recursos e na proteção dos
interesses do grupo, assim como dos interesses individuais em meio a um a arena polí­
tica compartida”] J. Raz, “Multiculturalism: A Liberal Perspective”, Dissent, inverno
1994, pp. 67-79, aqui 77.

Inserção — inclusão o u confinam ento ? 167


Se autodeterminação democrática quer dizer participação ho­
mogênea de cidadãos livres e iguais no processo da tomada de deci­
sões e da legiferação, o que m uda com a democracia, em primeira
linha, são a espécie e o exercício da soberania interna. O Estado demo­
crático de direito revoluciona o fundamento da legitimação do poder.
Mas se, pelo contrário, autodeterminação democrática quer dizer a
auto-afirmação e a auto-realização coletivas de membros homogê­
neos ou participantes de um a mesma comunidade, é o aspecto da
soberania exterior que vem ocupar o primeiro plano. Porque através
disso, a manutenção do poder do Estado dentro do sistema das po­
tências ganha mais um significado, a saber, o de que uma nação, com
a sua existência, garante simultaneamente a sua peculiaridade diante
das demais nações. A combinação da democracia com a soberania do
Estado estabelece, no primeiro caso, condições ambiciosas para a le­
gitimidade da ordem interna, enquanto deixa aberta a questão da
soberania externa. No outro caso, ela interpreta a posição do Estado
nacional na arena internacional, enquanto não necessita, para o exer­
cício do poder em seu interior, de nenhum outro critério de legitima­
ção além da paz e da ordem.
A partir do conceito de soberania do direito público interna­
cional clássico resulta a proibição fundamental de intromissão nos
assuntos internos de um estado reconhecido internacionalmente.
Embora essa proibição seja reforçada na Carta das Nações Unidas,
desde seu surgimento ela entra em concorrência com o desenvolvi­
mento da proteção internacional dos direitos hum anos. O princípio
da não-intromissão foi minado durante as últimas décadas, mormente
pela política dos direitos hum anos36. Não causa surpresa o fato de C.
Schmitt ter-se insurgido veementemente contra essa evolução. Sua
rejeição das intervenções baseadas nos direitos hum anos explica-se
já a partir de sua visão belicista das relações internacionais e da polí­
tica como um todo37. Ele não teve de esperar pela criminalização dos
crimes contra a hum anidade para exprimir seu desdenhoso protesto;
já a discriminação contra a guerra de agressão38 lhe parece inconci­

36. Cf. R. Wolfrum, “Die Entwicklung des internationalen Menschenrechts-


schutzes”, Europa-Archiv 23,1993,681-690.
37. Cf. C. Schmitt, Der Begriff des Politischen (1932), Berlin, 1979.
38. Cf. C. Schmitt, Die Wendung zum diskriminierenden Kriegsbegnff (1938),
Berlin, 1988.

168 A INCLUSÃO DO OUTRO


liável com o status e o campo de ação aberto às nações, que só pode­
ríam afirmar sua existência e suas características peculiares no exer­
cício do papel antagônico de sujeitos soberanos do direito internacio­
nal público.
Michael Walzer, que está muito longe de ser um etnonacionalista
militante, seguidor do credo de Schmitt, defende posição parecida.
Sem querer sugerir falsos paralelos, gostaria de mencionar suas reser­
vas, motivadas por causas de cunho comunitarista, diante das inter­
venções humanitárias39, porque elas iluminam a correlação interna
entre o conceito de democracia e o tratam ento dos direitos de sobe­
rania. Em seu tratado sobre a “guerra justa”40, ele parte do princípio
da autodeterminação nacional, que cabe a toda comunidade com
identidade coletiva própria, quando esta, cônscia de sua herança cul­
tural, tem a vontade e a força para conquistar uma forma de existên­
cia como Estado e para afirmar sua independência política. Um povo
goza do direito à autodeterminação nacional, quando assume esse
direito com sucesso.
Walzer certamente não entende a comunidade politicamente ca­
paz como uma comunidade de descendentes étnicos, mas como uma
comunidade de herdeiros culturais. Mas tal como no caso da com u­
nidade genealógica, também a nação fruto de uma história cultural
deve ser vista como um a realidade pré-política, que tem o direito de
preservar a sua identidade na forma de um Estado soberano: “The
idea of communal integrity derives its moral and political force from
the rights of contemporary men and women to live as members of a
historie community and to express their inherited culture through
political forms worked out among themselves”41. A partir desse di­
reito à autodeterminação, Walzer também deduz exceções ao princí­
pio da não-intromissão. Ele considera as intervenções permissíveis

39. Q uanto à discussão desse aspecto na obra de Walzer, cf. B. Jahn,“Humanitãre


Intervention und das Selbstbestimmungsrecht der Võlker”, Politische Vierteljahresschrift,
34,1993, 567-587.
40. M. Walzer, Justand Unjust Wars. A Moral Argumentwith Historical Illustrations
(1977). N.Y. 1992.
41. [“A idéia de um a integridade comunitária deriva sua força moral e política
dos direitos dos homens e das mulheres contemporâneos a viver como membros de
um a comunidade histórica e de exprimir a cultura por eles herdadas, mediante formas
políticas elaboradas por eles mesmos”] M. Walzer, “The Moral Standing o f States”,
Philosophy and Public Affairs, 9,1980,209-229, aqui 211.

Inserção — inclusão ou confinam ento ? 169


nos seguintes casos: a) para apoiar um movimento de libertação na­
cional que manifeste a identidade de uma comunidade independente
no ato da resistência, e b) para a defesa da integridade de um a com u­
nidade que está sendo atacada, se tal comunidade só puder ser pre­
servada mediante um a intervenção contrária. Mesmo a terceira exce­
ção Walzer não a justifica per se com atos de violação de direitos h u ­
manos, mas dizendo que, c) em casos de escravização, massacres ou
genocídio, um governo criminoso impede seus próprios cidadãos de
exprimir suas formas peculiares de vida e, com isso, de preservar sua
identidade coletiva.
Também a interpretação comunitarista da soberania popular
salienta o aspecto da soberania externa de tal modo que a questão da
legitimidade da ordem interna passa a segundo plano. O cerne da re­
flexão de Walzer é o seguinte: um a intervenção hum anitária contra a
violação dos direitos hum anos por parte de um regime ditatorial só
é justificável se os cidadãos atingidos se insurgirem eles próprios con­
tra a repressão política e comprovarem, mediante um ato nítido de
rebelião, que o governo vai contra as verdadeiras aspirações do povo
e ameaça a integridade da comunidade. De acordo com isso, a legi­
timidade de determinada ordem mede-se, em prim eiro lugar, pela
harm onia existente entre as lideranças políticas e a forma cultural
de vida que é constitutiva da identidade de um povo: “A State is legi-
timate or not, depending upon the ‘fif of government and commu-
nity, that is, the degree to which the government actually represents
the political life of its people. When its doesn’t do that, the people
have a right to rebel. But if they are free to rebel then they are also
free not to rebel... because they still believe the government to be
tolerable, or they are accustomed to it, or they are personally loyal to
its leaders... Anyone can make such arguments, but only subjects or
citizens can act on them ”42.

42. [“Um estado é legítimo ou não, dependendo do ‘ajuste’ entre o governo e a


comunidade, isto é, do grau em que o governo representa efetivamente a vida política
de seu povo. Quando não o faz, o povo tem o direito a se rebelar. Mas se ele tem a
liberdade para se rebelar, tam bém tem a liberdade para não se rebelar... porque ainda
acredita que o governo seja tolerável, ou porque está acostumado a ele, ou porque tem
um a lealdade pessoal para com os seus líderes... Qualquer pessoa pode fazer essa es­
pécie de raciocínio, mas apenas os súditos ou os cidadãos podem agir de acordo com
ele”] M. Walzer (1980), 214.

170 A INCLUSÃO DO OUTRO


Os críticos de Walzer partem de outra concepção da autodeter­
minação democrática; negam-se a reduzir eventualmente o aspecto
da soberania interna à efetiva manutenção da calma e da ordem. De
acordo com essa leitura, o pivô do julgamento da legitimidade da
ordem interna não é a herança cultural comum, mas a realização dos
direitos de cidadania: “The mere fact that the multitude shares some
form of common life — comm on traditions, customs, interests, his-
tory, institutions and boundaries — is not sufficient to generate a
genuine, independent, legitimate political community” . Os críticos
refutam o princípio da não-intromissão e preferem, na medida do pos­
sível, uma ampliação da proteção internacional dos direitos hum a­
nos. Aqui, o fato de um Estado ser ilegítimo quando avaliado pelos
parâmetros do Estado democrático de direito, naturalmente não é
uma condição suficiente para um a intervenção em seus assuntos in­
ternos. Caso contrário, a composição da Assembléia Geral das Na­
ções Unidas teria de ser muito diferente. Com toda razão, Walzer cha­
ma a atenção para o fato de que, do ponto de vista moral, toda deci­
são no sentido de agir em lugar dos cidadãos de um outro país é pre­
cária. Por isso, as propostas de uma casuística da intervenção4344 respei­
tam os limites e os drásticos perigos com que se defronta uma política
de direitos hum anos45. Contudo, as estratégias e decisões da organi­
zação mundial, sobretudo as intervenções das potências que desde
1989 executam um mandato das Nações Unidas, indicam a direção
em que o direito internacional público está se transformando paulati-
namente num direito cosmopolita46.
A política e o desenvolvimento jurídico reagem dessa forma a uma
situação objetivamente mudada. A mera categoria e dimensão daquela
espécie de criminalidade governamental que se espraiou à sombra da
Segunda Guerra Mundial, ultrapassando todos os limites tecnológicos

43. (“O mero fato de a multidão compartir alguma forma de vida em comum ae
tradições, costumes, interesses, história, instituições e fronteiras comuns ae não é su­
ficiente para gerar um a comunidade política genuína, independente, legítima”.] G.
Doppelt, “Walzers Theory of Morality in International Relations”, Philosophy and Pu­
blic Affairs, 8, 1978, 3-2, aqui 19.
44. Cf. D. Senghaas, Wohin driftet die Welt?, Frankfurt am Main 1994,185.
45. Cf. K. O. Nass,“Grenzen und Gefahren humanitãrer Interventionen”, Europa-
Archiv, 10,1993,279-288.
46. Cf. Ch. Greenwood, “Gibt es ein Recht auf humanitãre Intervention?” Europa-
Archiv, 23, 1993,93-106.

Inserção — inclusão ou confinam ento ? 171


e desrespeitando todos os escrúpulos ideológicos até então conheci­
dos, faz com que a tradicional presunção de inocência dos sujeitos so­
beranos do direito internacional pareça o mais puro escárnio. Uma
política previdente de garantia da paz exige o respeito das complexas
causas sociais e políticas das guerras. O que está na ordem do dia são
estratégias que, evitando, na medida do possível, o uso da violência,
influenciem a situação interna de Estados formalmente soberanos com
o objetivo de incentivar uma economia auto-sustentada e condições
sociais suportáveis, uma participação democrática uniforme, a vigên­
cia do Estado de direito e uma cultura da tolerância. Contudo, tais in­
tervenções em favor de uma democratização da ordem interna são
inconciliáveis com uma concepção da autodeterminação democrática
que fundamenta um direito à independência nacional para favorecer
o autodesenvolvimento coletivo de uma forma cultural de vida.

O
Somente uma Europa das Pátrias?

Diante das coações e dos imperativos subversivos do mercado


global e tendo em vista o adensamento mundial das comunicações e
do transporte, a soberania externa dos Estados, seja qual for sua fun­
damentação, tornou-se hoje em dia, aliás, um anacronismo. Além dis­
so, tendo em vista as crescentes ameaças globais que há tempo uniram
as nações do m undo num a involuntária comunidade de risco, resulta
a necessidade prática de criar instituições políticas eficientes em nível
supranacional. Por enquanto, faltam os atores coletivos capazes de fa­
zer uma política interna mundial, com a força necessária para chegar
a um acordo quanto às necessárias condições de contorno, arranjos e
processos. Mas, devido a essas pressões, existem entrementes associa­
ções mais amplas de Estados nacionais. Como bem o demonstra o
exemplo da União Européia, junto com elas surgem perigosas lacunas
de legitimação. Com novas organizações, mais afastadas ainda das
bases, como a burocracia de Bruxelas, cresce o desnível entre, por um
lado, as administrações e as redes sistêmicas autoprogramadas e, pelo
outro, os processos democráticos. Só que basta observar as desvalidas
reações defensivas a esses desafios para mostrar a inadequação de uma
concepção substancialista da soberania popular.

1 72 A INCLUSÃO DO OUTRO
A sentença do Tribunal Federal Constitucional da Alemanha a
respeito dos tratados de Maastricht, embora confirme o resultado da
prevista ampliação de tarefas da União Européia, parte em sua funda­
mentação da noção de que o princípio democrático seria “esvaziado”
de um modo insuportável, se o exercício das competências do Estado
não pudesse ser vinculado a um povo “relativamente homogêneo”. O
Tribunal, que fez referência a Hermann Heller (e não a Carl Schmitt)
quer impedir, ao que tudo indica, o uso de um conceito etnonaciona-
lista de povo. Mesmo assim ele defende a opinião de que um poder do
Estado, democraticamente legitimado, tem que emanar de um povo
que, quando da formação da vontade política, articule a sua “identi­
dade nacional”, entendida como pré-política e extrajurídica. Aliás, para
que um processo democrático possa até mesmo começar a se desen­
volver, o povo de um Estado deveria ter a possibilidade de “dar expres­
são jurídica àquilo que o une, espiritual, social e politicamente, de um
modo relativamente homogêneo”47.
Como conseqüência dessa hipótese fundamental, o Tribunal ex­
plicita por que o Acordo de Maastricht não cria um Estado federati­
vo europeu, dentro do qual a República Federal da Alemanha seria
absorvida, o qual lhe tiraria a posição de um sujeito do direito inter­
nacional público (com direito às suas próprias políticas de justiça,
do interior e do exterior, e à manutenção de suas próprias forças ar­
madas)48. Essencialmente, a argumentação da Segunda Câmara visa
a prova de que o Acordo da União não fundam enta um a competên­
cia de competências de um sujeito independente de direito supra­
nacional (em analogia, por exemplo, com os Estados Unidos da Amé­
rica). A “união de Estados”49 deverá ser resultado exclusivamente das
“autorizações dadas por Estados que continuam sendo soberanos”:
“O Acordo da União leva em consideração a independência e a sobe­

47. Sentença da 2a Câmara do Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, de


12 de outubro de 1993 - 2 BvR, 2134/92, Vol. 2, 2159/92, Europáische Grundrechte
Zeitschrift 1993,429-447, aqui 438.
48. Cf. D. Murswiek, “Maastricht und der PouvoirConstituant”, DerStaat, 1993,
161-190.
49. A respeito desse conceito, que é na realidade um understatement, cf. H. P.
Ipsen: “Zehn Glossen zum Maastricht-Urteil”, Europarecht, 29,1994,20: “Com a intro­
dução do conceito ‘união de estados’, (a sentença) emprega uma terminologia não apro­
priada, porque já ‘ocupada’ pela economia. Ela ignora desnecessariamente a lingua­
gem comunitária e outros estados-membros”.

Inserção — inclusão o u confinam ento ? 173


rania dos Estados-membros, na medida em que obriga a União a res­
peitar as identidades nacionais dos Estados-membros”50. Formula­
ções desse tipo revelam as barreiras conceituais erguidas pelo concei­
to substancialista da soberania popular contra a transferência de di­
reitos de soberania a unidades supranacionais. Elas obrigam, aliás, a
deduções surpreendentes, que não estão de acordo com decisões an­
teriores do Tribunal quanto à prioridade do direito com unitário51.
Provavelmente não incorreremos em erro se reconhecermos no
teor da fundamentação da sentença certa correspondência com a con­
clusão tirada por Herm ann Lübbe em sua filípica contra os “Estados
Unidos da Europa”, os quais, como diz com arrogância o subtítulo,
“nunca hão de existir”: “A legitimidade da futura União Européia...
estriba-se nos interesses de igual sentido dos seus países-membros,
mas não na vontade autodeterminada de um povo europeu. Não exis­
te politicamente um povo europeu, e mesmo que não haja motivos
para dizer que uma experiência de concernência comum, análoga a
um povo, seria impensável, no momento não podem ser entrevistas
quaisquer circunstâncias, nas quais poder-se-ia form ar um a vonta­
de popular européia, capaz de dar fundamento esse tipo de legitimi­
dade”52. Em contraposição a isso, é possível chamar a atenção para a
experiência histórica decisiva que realmente une os povos europeus.
Pois os europeus aprenderam, de fato, nas catástrofes de duas guer­
ras mundiais, que precisam superar tipos de mentalidade nos quais
se enraizam os mecanismos nacionalistas de exclusão. Por que não
poderia nascer, a partir disso, a consciência de um a pertença polí-
tico-cultural — sobretudo diante do amplo pano de fundo de tradi­
ções divididas, que atingiram um a importância histórica universal,
assim como sobre a base de um entrelaçamento de interesses e de
um adensamento da comunicação, tais como ocorreram nas déca­
das de um a União Européia economicam ente bem-sucedida? O
euroceticismo de Lübbe nutre-se evidentemente da exigência cons­
truída de uma concernência “análoga a um povo”. Mas o “povo hom o­
gêneo”, que novamente se constitui em barreira para o pensamento,
é uma analogia errônea.

50. Europàische Grundrechte Zeitschrift 1993,439.


51. Cf. J. A. Frowein, “Das Maastricht-Urteil und die Grenzen der Verfassungs-
gerichtsbarkeit”, Zeitschrift für auslandisches õffentliches Recht und Vólkerrecht, 1994,1-16.
52. H. Lübbe (1994), 100.

1 74 A INCLUSÃO DO OUTRO
A história, rica em conflitos, da formação de Estados durante a
fase pós-colonial, na Ásia e, sobretudo, na África, não é um exemplo
negativo convincente. Quando as antigas colônias, pela desistência de
suas metrópoles, foram “dispensadas” para a independência, o proble­
ma consistiu em que esses territórios, na realidade surgidos artificial­
mente, ganharam uma soberania externa sem contar de imediato com
um efetivo poder de Estado. Em muitos casos, os novos governos, após
a retirada das administrações coloniais, só puderam afirmar sua sobe­
rania interna com muitas dificuldades. Essa condição não pôde ser cum­
prida nem mesmo recorrendo à “autoridade do Estado”, entenda-se, à
repressão: “The problem was everywhere to ‘fill in ready made States
with national content. This poses the interesting question, why post-
colonial States had to be nations... Nation-building as development
means the extension of an active sense of membership to the entire
populace, the secure acceptance of state-authority, the redistribution
of resources to further the equality of members, and the extension of
effective State operation to the periphery”53. Os duradouros conflitos
tribais em Estados pós-coloniais tornados formalmente independen­
tes lembram que as nações só surgem após terem percorrido o árduo
caminho que leva das comunidades etnicamente fundamentadas, cons­
tituídas de indivíduos que se conhecem entre si e que reconhecem seus
traços comuns para uma solidariedade juridicamente mediada entre
cidadãos que são estranhos entre si. No Ocidente, essa formação dos
Estados nacionais não se deu por meio da fusão de tribos e regiões,
mas pelo entrelaçamento, que demorou mais de um século.
Justamente graças ao exemplo desse processo de integração é
possível aprender em que consistiram realmente as condições fun­
cionais indispensáveis para um a formação democrática da vontade:
nos circuitos públicos de comunicação de opiniões políticas, que se
desenvolveram sobre a base do sistema de associações civis e através

53. [“Em toda parte o problema era ‘preencher’ Estados ‘pré-fabricados’com con­
teúdos nacionais. Isso coloca a interessante questão de por que os Estados pós-colo-
niais têm que ser nações... A construção de um a nação, enquanto desenvolvimento,
significa a extensão de sentimento ativo de pertença a toda a população, a aceitação
segura da autoridade do Estado, a redistribuição de recursos para fom entar a igualda­
de dos membros, assim como a extensão de um a operacionalidade efetiva do Estado
à periferia”] Ch. Joppke, Nation-Buildingafter World War Two, (European Institute),
Florença 1995, p. 10.

I nserção — inclusão ou confinam ento ? 175


dos meios de comunicação de massa. Dessa forma, os mesmos temas
puderam ganhar a mesma relevância, ao mesmo tempo, para um gran­
de público, que permaneceu anônimo, atravessando grandes distân­
cias, estimulando-o a trazer contribuições espontâneas. A partir dis­
so surgem as opiniões públicas, que enfeixam temas e posicionamen­
tos até transformá-los em fatores políticos de influência. A analogia
correta é fácil de achar: o próximo impulso no sentido da integração
num a sociabilização pós-nacional não depende do substrato de al­
gum “povo europeu”, mas das redes de comunicação de um a opinião
pública política de alcance europeu, enfronhada num a cultura políti­
ca comum, sustentada por um a sociedade civil com associações de
interesses, organizações não-governamentais, iniciativas e movimen­
tos cívicos, e que seja assumida pelas arenas nas quais os partidos
políticos possam se referir imediatamente às decisões das institui­
ções européias, para além das alianças de bancadas, até chegarem a
ser um sistema partidário europeu54.

54.0 Tribunal Federal Constitucional alemão, num determinado trecho da fun­


damentação de sua sentença sobre Maastricht, até mesmo insinua esta interpretação:
“A dem ocracia... depende da existência de determinados pressupostos pré-jurídicos,
tais como uma permanente e livre discussão entre as forças sociais, os interesses e as
idéias que se defrontam umas com as outras, através da qual tam bém seja possível
esclarecer e modificar metas políticas e a partir da qual uma opinião pública pré-for-
mula a vontade política... Partidos, associações, imprensa e radiodifusão são tanto
meio como fator deste processo de intermediação, a partir do qual poderá configurar-
se uma opinião pública na Europa.” Europàische Grundrechte Zeitschrift 1993,437s. A
observação seguinte, a respeito da necessidade de uma língua comum, parece ter a
finalidade de construir um a ponte entre este conceito de democracia, baseado na teo­
ria da comunicação, e a homogeneidade do povo de um estado, geralmente considera­
da como necessária.

1 76 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
6
A Europa necessita de
uma Constituição?
UM COMENTÁRIO SOBRE DIETER GRIMM '

Em partes essenciais, estou de acordo com o diagnóstico


apresentado por D. Grimm; a análise de sua fundamentação,
porém, leva-me a outro raciocínio político.
O diagnóstico: sob pontos de vista relativos à política
constitucional, a situação atual da União Européia está m ar­
cada por uma contradição. Por um lado, a UE é um a organi­
zação supranacional sem constituição própria, fundada so­
bre contratos do direito público internacional. Em tal medida
ela não é um Estado (no sentido do Estado constitucional
moderno, amparado sobre o monopólio do poder e sobera­
no tanto interna quanto externamente). Por outro lado, os ór­
gãos da comunidade criam um direito europeu que vincula
os Estados-membros. E em tal medida a UE exerce direito
de soberania, que até então estava reservado ao Estado em
sentido estrito.
Daí se origina o déficit democrático contra o qual se
protesta com certa ffeqüência. As decisões da Comissão e do *

* Tradução: Paulo Astor Soethe.


1. Cf. a contribuição homônima de D. Grimm no European Law Jour­
nal, n. l,nov. 1995.

177
Conselho de Ministros, bem como as decisões do Tribunal Europeu,
intervém cada vez mais profundamente nas relações dos Estados-mem-
bros. No âmbito dos direitos de soberania que foram transferidos à
União, o Poder Executivo Europeu pode impor suas decisões à revelia
do descontentamento de governos nacionais. Ao mesmo tempo, en­
quanto o Parlamento Europeu dispuser apenas de competências bran­
das, falta a essas decisões uma legitimação democrática imediata. Os
órgãos executivos da Comunidade derivam sua legitimação da legiti­
mação dos governos dos Estados-membros. Eles não são órgãos de
um Estado que tivesse sido constituído por um ato da vontade dos
cidadãos europeus unidos. Com o passaporte europeu não se vincu­
lam até o momento quaisquer direitos que fundamentem uma cida­
dania democrática de base estatal.
A consequência política: em face dos federalistas, que exigem uma
configuração democrática da UE, Grimm adverte contra um desgaste
ainda maior das competências dos Estados nacionais no âmbito do
direito europeu. Segundo ele, o déficit democrático não seria solucio­
nado pela “redução estatizante” dos problemas, mas sim aprofundado.
Novas instituições políticas — um Parlamento Europeu m unido das
competências usuais, uma Comissão alçada a governo, uma Segunda
Câmara que substituísse o Conselho de Ministros e um Tribunal Eu­
ropeu com competências ainda maiores — não constituem per se so­
lução alguma. Enquanto não se lhes infundir vida, elas antes corrobo­
ram a tendência de crescimento da autonomia de uma política buro­
crática, já perceptível no âmbito nacional. Até hoje, porém, faltam os
pressupostos reais de uma formação da vontade dos cidadãos integrada
em âmbito europeu. O euroceticismo quanto ao direito constitucional
leva portanto a um argumento empiricamente fundamentado: enquan­
to não houver um povo europeu suficientemente “homogêneo” para
formar uma vontade política, não deve tampouco haver uma Cons­
tituição européia.
Para discussão: minhas ponderações voltam-se (a) contra a des­
crição incompleta das alternativas e (b) contra a fundamentação nor­
mativa (não totalmente isenta de ambigüidades) das exigências fun­
cionais para uma formação democrática da vontade.
Sobre (a): D. Grimm evidencia as conseqüências indesejadas que
a transformação da União Européia em um Estado confederado de
constituição democrática poderia ocasionar, caso as novas instituições

1 78 A INCLUSÃO DO OUTRO
não pudessem lançar raízes em solo fértil. Enquanto faltarem uma
sociedade civil integrada em âmbito europeu, uma opinião pública de
dimensões européias sobre assuntos de ordem política e uma cultura
política em comum, os processos decisórios supranacionais necessa­
riamente continuarão se autonomizando em face dos processos de
formação de opinião e de vontade, que são hoje como ontem organi­
zados em âmbito nacional. Considero plausível esse prognóstico em
relação aos perigos. Mas qual é a alternativa?
A opção de Grimm parece sugerir que o status quo do direito
público pode ao menos congelar o déficit democrático hoje existen­
te. Com total independência em relação a inovações do direito cons­
titucional, porém, esse déficit continua aumentando dia após dia, e
isso porque a dinâmica econômica e social, no âmbito institucional
ora dado, continua impulsionando o desgaste das competências dos
Estados nacionais por parte do direito europeu. O próprio Grimm
afirma: “O princípio democrático recebe validação nos Estados-mem-
bros, no entanto tiram-se deles os poderes decisórios; e esses mes­
mos poderes aumentam na Comunidade Européia, embora nela o
princípio democrático só esteja constituído de maneira débil”. Mas
se de qualquer maneira continua aumentando a disparidade entre os
crescentes poderes decisórios das autoridades européias e a legiti­
mação precária das regulamentações européias, que continuam a
adensar-se, a decisão inflexível pelo modo de legitimação exclusiva­
mente ligado aos Estados nacionais não significa simplesmente a es­
colha de um mal menor. Os federalistas assumem como um desafio o
risco (previsto, e muitas vezes evitável) de uma autonomização de orga­
nizações supranacionais. Os eurocéticos, por sua vez, conformam-se
desde o início com a erosão da substância democrática (inevitável,
segundo eles), para não terem que abandonar a morada aparente­
mente segura proporcionada pelo Estado nacional.
Só que nessa morada há cada vez menos aconchego. Os debates
sobre a situação atual, tal como os conduzimos hoje, revelam outra
disparidade ainda maior: a que se delineia entre os espaços de ação
limitados pela via dos Estados nacionais e os imperativos das condi­
ções de produção integradas em âmbito global. Os Estados moder­
nos, que vivem de tributos, só poderão ter ganhos com suas respecti­
vas economias enquanto abrigarem “economias nacionais” sobre as
quais ainda possam exercer influência por meios políticos. Com a

A Europa necessita de uma C o nstituição ? 179


desnacionalização da economia, em especial dos mercados financei­
ros e da própria produção industrial, e sobretudo em face dos merca­
dos de trabalho globalizados e em expansão, os governos nacionais
vêem-se compelidos agora a assumir cada vez mais o ônus de taxas
crescentes de desemprego duradouro e a marginalização de uma m ino­
ria sempre mais numerosa, a fim de atingir capacidade competitiva
no cenário internacional. Caso o Estado social deva ser mantido ao
menos em sua substância, e caso se deva evitar a segmentação de uma
subclasse, então é preciso constituir instâncias capazes de agir em um
plano supranacional. Apenas os regimes de abrangência regional, tais
como a União Européia, ainda poderíam influir sobre o sistema glo­
bal, segundo uma política interna coordenada em âmbito global.
Na descrição de Grimm, a União Européia surge como uma ins­
tituição que deve ser suportada e com cujas abstrações nós temos de
conviver. Ele não manifesta as razões pelas quais nós deveriamos
desejá-la politicamente. A m eu ver, o maior perigo parece advir de
uma autonomização das redes e mercados globalizados que também
colabora com a fragmentação da consciência pública. Se com essas
redes sistêmicas de integração não surgirem instituições capazes de
agir politicamente, acabará por se renovar a partir do âmago de uma
modernidade econômica altamente móvel o fatalismo dos Antigos
Impérios, paralisante de um ponto de vista sociopolítico. A miséria
pós-industrial das populações “supérfluas” produzidas pelas socie­
dades de consumo — o Terceiro M undo dentro do Primeiro — e a
erosão moral da coletividade que daí decorre seriam elementos deter­
minantes para o cenário futuro. Esse presente vindouro iria conce­
ber-se retrospectivamente como o futuro de uma ilusão passada —
a ilusão democrática, como se as sociedades ainda pudessem exercer
influência sobre seu próprio destino através da vontade e consciên­
cia políticas.
Sobre (b): Isso posto, não se teria tocado ainda no problema das
conseqüências de um a autonomização de aparatos supranacionais,
apontados por Grimm com toda razão. Evidentemente, a avaliação
das chances de uma democracia que se estenda a toda a Europa de­
pende de argumentos empíricos. Mas em nosso contexto trata-se em
primeira linha da determinação das exigências funcionais; e para isso
assume grande importância a perspectiva normativa a partir da qual
se podem fundamentar essas exigências.

180 A INCLUSÃO DO OUTRO


Grimm repudia uma Constituição européia “por não haver até
hoje um povo europeu”. A isso parece estar subjacente a premissa
que definiu o tom do julgamento do Tribunal Constitucional Fede­
ral alemão em Maastricht: ou seja, a noção de que a base democrá­
tica para a legitimação do Estado exige certa homogeneidade do povo
que o compõe. Ao mesmo tempo, no entanto, Grimm distancia-se
igualmente da forma de entendimento de uma homogeneidade do
“povo” tal como defendida por Carl Schmitt; “Aqui, os pressupostos
da democracia não se desenvolvem a partir do povo, mas da socieda­
de que se quer constituir enquanto unidade política. Afinal, a socie­
dade carece de uma identidade coletiva, caso pretenda resolver seus
conflitos de forma pacífica, ater-se às regras de maioria e praticar a
solidariedade”. Essa formulação no entanto deixa aberto como se deve
entender a identidade coletiva que se exige. Vejo o cerne do republi­
canismo no fato de que as formas e procedimentos do Estado consti­
tucional, associados ao modo de legitimação democrático, geram um
novo plano de coesão social. A cidadania democrática — no sentido
de citizenship — gera um a solidariedade entre estranhos, relati­
vamente abstrata, ou em todo caso juridicamente mediada; e essa
forma de integração social, que desponta inicialmente com o Estado
nacional, realiza-se sob a forma de um contexto comunicacional que
se estende até a socialização política. Esse contexto certamente de­
pende do cumprimento de exigências funcionais importantes e que
não podem ser simplesmente criadas por meios administrativos. A
isso também pertencem condições sob as quais se pode constituir e
reproduzir comunicativamente um a autocompreensão ético-política
dos cidadãos — mas de modo algum uma identidade coletiva inde­
pendente do processo democrático, e portanto dada de antemão. O que
une um a nação constituída de cidadãos — diferentemente da nação
constituída por um mesmo povo — não é um substrato preexistente,
mas sim um contexto intersubjetivamente partilhado de entendimen­
tos possíveis.
Por isso é importante nesse contexto especificar o uso da expres­
são “povo”, no sentido juridicamente neutro de “povo de um Estado”,
ou saber se ela está associada com noções identitárias de outra natu­
reza. Segundo a opinião de Grimm, a identidade da nação de cidadãos
“também pode ter outros fundamentos” que não os de uma “ascen­
dência étnica”. Em face disso, penso que se o processo democrático

A Europa necessita de uma C onstituição ? 181


deve assumir a qualquer tempo garantias em favor da integração so­
cial de uma sociedade diferenciada e autonomizada — e que hoje se
diferencia e autonomiza cada vez mais — , então essa identidade de
fato precisa ter outra base. Não se pode permitir que o “lastro afiança-
dor” seja transferido de âmbitos da formação política da vontade para
substratos pré-políticos previamente dados, porque o Estado cons­
titucional garante que ele mesmo — nas formas juridicamente abstra­
tas do compartilhamento político e do status dos cidadãos ampliado
de forma substancial por via democrática — assegure obrigatoriamente
a integração social. As sociedades pluralistas do ponto de vista cultu­
ral e em relação a diferentes visões de m undo tratam de tornar cons­
ciente esse clímax normativo. A autocompreensão multicultural da
Nação de cidadãos, desenvolvida em países de imigração clássica, como
os Estados Unidos, tem muito mais a ensinar nesse sentido do que o
modelo francês da assimilação de culturas. Se formas de vida cultu­
rais, religiosas e étnicas diferentes devem coexistir e interagir em igual­
dade de direitos no interior de uma mesma coletividade democrática,
então a cultura de maioria decorrente dessa fusão — historicamente
explicável — tem de se fundir também à cultura política partilhada
por todos os cidadãos.
A coesão política entre cidadãos que, enquanto estranhos entre
si, devem como que se responsabilizar uns pelos outros, tem o caráter
de algo produzido; e por certo ela se apresenta como coesão comuni-
cacional plena de pressupostos. Quanto a isso não há dissensão alguma.
O cerne é constituído por uma opinião pública de cunho político que
possibilita aos cidadãos posicionar-se ao mesmo tempo em relação
aos mesmos temas de mesma relevância. Essa opinião pública — não-
deformada, e que não sofre ocupação nem de dentro nem de fora —
precisa estar inserida no contexto de uma cultura política liberal; e
também precisa ser sustentada pela livre condição associativa de uma
sociedade civil em direção à qual possam afluir experiências social­
mente relevantes, advindas de campos vitais privados que continuem
intactos, a fim de que se possa elaborá-las nessa mesma sociedade civil
e transformá-las em temas passíveis de recepção pela opinião pública.
Os partidos políticos — não-estatizados — precisam permanecer tão
enraizados nesse complexo, a ponto de se mostrarem capazes de inter­
mediar, por um lado, os campos da comunicação informal pública e,
por outro, os processos institucionalizados de deliberação e decisão.

182 A IN C L U S Ã O DO OUTRO
Por isso, do ponto de vista normativo, não poderá haver um Estado
federativo europeu merecedor do nome de uma Europa democrática,
se não se afigurar, no horizonte de uma cultura política, uma opinião
pública integrada em âmbito europeu, uma sociedade civil com asso­
ciações representativas de interesses, organizações não-estatais, movi­
mentos de cidadania etc., um sistema político-partidário concebido
em face das arenas européias — em suma: um contexto comunica-
cional que avance para além das fronteiras de opiniões públicas de
inserção meramente nacional, até o momento.
As grandes exigências funcionais impostas à formação democrá­
tica da vontade praticamente não podem ser cumpridas de maneira
satisfatória no âmbito dos Estados nacionais; e isso vale tanto mais
para a Europa. O que me importa, no entanto, é a perspectiva a partir
da qual se possam fundamentar essas condições funcionais; pois a vi­
são normativa prejulga de certa maneira a avaliação política empírica
da importância das dificuldades existentes. Caso se considere necessá­
ria uma identidade coletiva como substrato cultural que se articule
tão-somente no cumprimento das exigências funcionais já menciona­
das, essas dificuldades, “for the time being”, terão mesmo de parecer
intransponíveis. Mas uma compreensão de democracia a partir da teo­
ria da comunicação, que também parece ser a preferência de Grimm,
não pode se apoiar durante muito tempo sobre o conceito concretista
de “povo”: pois ele trata apenas de simular homogeneidade onde nada
há senão coisas heterogêneas.
Dessa perspectiva, a autocompreensão ético-política do cidadão
de uma coletividade democrática não surge como elemento históri-
co-cultural primário que possibilita a formação democrática da von­
tade, mas como grandeza de fluxo em um processo circular que só se
põe em movimento por meio da institucionalização jurídica de uma
comunicação entre cidadãos de um mesmo Estado. Foi exatamente
assim que se formaram as identidades nacionais na Europa moderna.
E por isso seria de esperar que as instituições políticas que viessem a
ser criadas por uma Constituição Européia tivessem um efeito indutivo.
No entanto — enquanto houver vontade política para isso — nada
depõe afortiori contra a possibilidade de se criar o contexto comunica-
cional politicamente necessário em uma Europa que cresce unida (eco­
nômica, social e administrativamente) e na qual se dispõe de uma base
cultural comum e uma experiência histórica conjunta de bem-suce­

A Europa necessita de uma C o nstituição ? 183


dida superação do nacionalismo. Na verdade, para que esse contexto
de comunicação se estabeleça parece faltar apenas um desencadeamento
por via jurídica constitucional. Também a exigência de um a língua
comum — inglês como second first language [segunda primeira lín­
gua] — poderia deixar de representar um empecilho intransponível,
haja vista a situação atual da educação escolar formal nos países euro­
peus. Identidade européia não pode significar nada senão unidade na
pluralidade nacional; para isso, a propósito, após o aniquilamento da
Prússia e o equilíbrio entre as diversas confissões religiosas, o federa­
lismo alemão não oferece um mau modelo.

184 A INCLUSÃO DO OUTRO


7
A idéia kantiana de paz
perpétua — à distância
histórica de 200 anos*

A “paz perpétua”, que o abade St. Pierre já invocara, é


para Kant um ideal que deve conferir atratividade e força
elucidativa à idéia d^ condição cosmopolita. Com isso, Kant
acrescenta uma terceira dimensão à teoria do direito: ao di­
reito público e ao direito internacional vem somar-se o direi­
to cosmopolita. Essã inovação traz muitos desdobram en­
tos. A ordem republicana de um Estado constitucional ba­
seado sobre direitos humanos não exige apenas uma imersão
atenuada em relações internacionais dominadas pela guer­
ra, no âmbito do direito internacional. Mais que isso, a condi­
ção jurídica no interior de um mesmo Estado deve antever
como térm ino para si mesma um a condição jurídica global
que una os povos e elimine as guerras: “A idéia de uma consti­
tuição em consonância com o direito natural do ser humano,
isto é, que os obedientes à lei, unidos, também devam ser ao
mesmo tempo legisladores, subjaz a todas as formas de Es­
tado; e a essência comum — que, de acordo com essa idéia,
cabe chamar de ideal platônico — não é apenas quimera,
mas sim a norma eterna para toda a constituição burguesa

* Tradução: Paulo Astor Soethe.

185
em geral, e afasta toda guerra” (Streit der Fakultãten, WerkeVl, 3641).
Surpreendente aí é a conseqüência: “... e afasta toda guerra”. Isso
aponta para que as normas do direito das gentes, que regulam a guer­
ra e a paz, só devam estar vigentes de maneira peremptória, isto é, só
devam vigorar até o m om ento em que o pacifismo jurídico, ao qual
Kant apontou em seu texto “Sobre a paz perpétua”, tenha levado ao
estabelecimento de um a categoria cosmopolita e, portanto, à supres­
são da guerra.
Naturalmente, Kant desenvolve essa idéia segundo os conceitos
do direito racional e no horizonte de experiência de sua época. As
duas coisas afastam-nos de Kant. Com o imerecido “saber melhor”
alardeado pelas gerações mais jovens, reconhecemos hoje que a cons­
trução sugerida por Kant enfrenta dificuldades conceituais e já não se
mostra mais adequada a nossas experiências históricas. Por isso, tra­
tarei primeiro de rememorar as premissas assumidas por Kant como
ponto de partida. Elas dizem respeito a todos os três passos de seu
raciocínio: tanto à definição do fim imediato, a paz perpétua, à defi­
nição do verdadeiro objetivo, a forma jurídica de um a aliança entre
os povos, e à solução histórico-filosófica do problema aí proposto, a
concretização da idéia da condição cosmopolita (I). A isso sucede a
pergunta sobre como se apresenta a idéia kantiana à luz da história
dos últimos duzentos anos (II) e de que maneira essa idéia precisa
ser reformulada em vista da situação mundial em nossos dias (III). A
alternativa esboçada por juristas, politólogos e filósofos à reincidên­
cia em uma condição natural suscitou restrições ao universalismo do
direito cosmopolita e à política de direitos humanos, que podem ser
atenuadas por meio de um a diferenciação adequada entre direito e
moral em relação ao conceito de direitos humanos (IV). Essa diferen­
ciação também apresenta a chave para uma metacrítica dos argumentos
de Carl Schmitt contra os fundamentos humanistas do pacifismo ju­
rídico, argumentos a propósito bem-sucedidos sob o ponto de vista
da história de sua recepção (V).1

1. Na seqüência, farei as citações de acordo com a Studienausgabe das obras de


Kant da Wissenschaftlichen Buchgesellschaft de Darmstadt, publicada pela Insel-Verlag,
Frankfurt am Main, 1964. As indicações sem menção do título referem-se ao tratado
“Sobre a paz perpétua”, Werke VI, 195-251.

186 A INCLUSÃO DO OUTRO


o
Kant determina por via negativa o objetivo dessa almejada “con­
dição jurídica” entre os povos como supressão da guerra: “Não deve
haver guerra”, deve-se dar fim ao “funesto guerrear” [“Encerramento”
da Doutrina do Direito, Werke IV, 478). O anseio por uma paz desse
tipo é fundamentado por Kant com a referência aos males ocasiona­
dos pelo tipo de guerra que os príncipes da Europa vinham travando
na época, com o auxílio de exércitos mercenários. Entre esses males
ele não menciona em primeiro lugar as vítimas fatais, mas sim os “hor­
rores da violência” e as “devastações”, sobretudo as pilhagens e em ­
pobrecimento do país por causa do ônus da guerra e, como possíveis
conseqüências suas, a subjugação, a perda da liberdade e o domínio
estrangeiro. A isso vem somar-se a brutalização dos costumes, quando
os súditos são instigados pelo governo a ações injurídicas, à espiona­
gem e à difusão de notícias falsas ou à perfídia — tal como nos papéis
de atirador de elite ou assassino profissional, por exemplo. Aqui se
revela o panorama da guerra restrita que, no âmbito do assim chamado
direito das gentes, fora institucionalizado no sistema das potências in­
ternacionais, como instrumento legítimo para a solução de conflitos.
O encerramento de uma guerra como essa define a situação de paz. E
assim como determinado tratado de paz põe fim aos males de uma
guerra em particular, dessa mesma forma uma aliança pela paz deve
“encerrar todas as guerras para todo o sempre” e suprimir como tais
todos os males ocasionados pela guerra. É esse o significado da “paz
perpétua”. A paz, dessa maneira, é circunscrita da mesma maneira que
a própria guerra.
Kant pensava aí em conflitos espacialmente delimitados entre
Estados e alianças em particular, e não em guerras mundiais. Pensava
em guerras travadas entre gabinetes e Estados, e não em guerras na­
cionais ou civis. Pensava em guerras tecnicamente delimitadas, que
permitem a distinção entre tropas de combate e população civil, mas
não em guerrilha e terrorismo. Pensava em guerras com objetivos po­
liticamente delimitados, e não em guerras de aniquilamento ou ba­
nimento, ideologicamente motivadas2. É sob a premissa da guerra de­

2. F.mborta Kant mencione em sua doutrina do direito o “inimigo injusto”, “cuja


vontade expressa trai uma máxima segundo a qual não seria possível haver paz alguma

A ID É I A K A N T IA N A D E P A Z P E R P É T U A 187
limitada que a normatização do direito internacional se estende à con­
dução da própria guerra e ao regramento da paz. O direito “à guerra”,
o assim chamado ius ad bellum, anteposto ao direito “na guerra” e ao
direito “no pós-guerra”, não é rigorosamente direito algum, porque só
expressa o livre-arbítrio concedido aos sujeitos do direito internacional
em condição natural, ou seja, na condição extralegal da relação consi­
go mesmos (Werke VI, 212). As únicas leis penais que intervém nessa
situação extralegal — ainda que sejam cumpridas apenas por tribu­
nais do próprio Estado beligerante — referem-se ao comportamento
na guerra. Crimes de guerra são crimes cometidos na guerra. Apenas
o alargamento do conceito de guerra, ocorrido nesse meio tempo, e a
respectiva ampliação do conceito de paz irão despertar a noção de que
a própria guerra — sob a forma da guerra de ataque — é ela mesma
um crime, merecedor de censura e reprovação. Para Kant ainda não
há o crime da guerra.
A paz perpétua é um elemento característico importante, mas
não passa de um sintoma da condição cosmopolita. O problema con­
ceituai que Kant precisa resolver é a conceitualização jurídica de uma
condição como essa. Ele precisa indicar a diferença entre direito cos­
mopolita e o direito internacional clássico, manifestar o elemento es­
pecífico desse ius cosmopoliticum.
Ao passo que o direito das gentes, como qualquer direito em
condição natural, tem vigência apenas peremptória, o direito cosmo­
polita acabaria definitivamente com a condição natural, assim como
faz o direito sancionado na forma estatal. É por isso que Kant, para
ilustrar a transição a uma condição cosmopolita, recorre sempre à
analogia com o primeiro abandono de uma condição natural, que,
com a constituição de determinado Estado com base no contrato so­
cial, possibilita aos cidadãos do país uma vida de liberdade assegurada
por via legal. Assim como term inou a condição natural entre indiví­

entre os povos se ela se tornasse regra geral” (§ 60, Werke VI, 473), os exemplos que ele
apresenta — a ruptura de contratos do direito internacional ou a divisão de um país
vencido (como a Polônia, em seu tempo) — deixam claro o status acidental dessa
figura de pensamento. Uma “guerra punitiva” contra inimigos injustos continua sendo
uma noção sem maiores consequências enquanto continuarmos contando com Esta­
dos soberanos. Pois não é possível para os Estados soberanos reconhecer um a instância
judicial que julgue de maneira imparcial as violações a regras nas relações interestatais,
sem que eles restrinjam sua própria soberania. Somente a vitória e a derrota são deci­
sivos sobre “de que lado está o direito” ( Werke VI, 200).

188 A INCLUSÃO DO OUTRO


duos abandonados a si mesmos, também deve findar a condição na­
tural entre Estados belicistas. Em um tratado publicado dois anos
antes da concepção de Sobre a paz perpétua, Kant vê entre esses dois
processos um paralelo bastante rigoroso. Ele também menciona aqui
a destruição do bem-estar e a perda da liberdade como o mal maior,
e então prossegue: “Diante disso não há outro meio possível senão
um direito das gentes baseado em leis públicas, dotadas de poder, e às
quais cada Estado tenha de se submeter (segundo a analogia de um
direito burguês ou do direito estatal de pessoas particulares); — pois
um a paz geral e duradoura, por meio de um assim chamado equilí­
brio das potências na Europa, é quimera e nada mais” (“Über den Ge-
meinspruch”, Werke VI, 172). Ainda se fala aqui em um “Estado das
nações” em geral, a cujo poder cada Estado em particular deve se ade­
quar, de maneira voluntária. Decorridos apenas dois anos, contudo,
Kant irá distinguir cuidadosamente entre “liga das nações” e “Estado
das nações”.
Pois essa condição doravante denominada “cosmopolita” deve se
distinguir da condição jurídica atinente ao interior de cada Estado:
nela os Estados não se submetem a um poder superior, tal como fa­
zem os cidadãos em particular em relação às leis coativas, mas cada
qual mantém sua independência. A federação de Estados livres, como
prevista, renuncia de um a vez por todas ao instrumento da guerra
para a relação dos Estados entre si, e deve manter intacta a soberania
de seus membros. Os Estados em associação duradoura preservam
sua dupla competência e não se diluem em uma república investida
de qualidades estatais. Em lugar da “idéia positiva de uma república
m undial” surge a “sub-rogação negativa de uma aliança que refuta a
guerra” (Werke VI, 213). Essa aliança deve surgir dos atos soberanos
de vontade expressos em contratos do direito internacional, conce­
bidos agora não mais nos moldes do contrato social. Pois os contra­
tos já não fundamentam quaisquer postulações legais a que os m em ­
bros possam recorrer, mas apenas unem estes últimos em torno de uma
aliança perdurável — em torno de “uma associação duradouramente
livre”. O que leva esse ato de unificação em torno de uma liga das na­
ções a superar a débil força vinculativa do direito internacional nada
mais é senão sua marca de “permanência”. Kant mesmo compara a
liga das nações a um “congresso estatal permanente” (“Doutrina do
direito”, § 61).

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 189


É evidente a contradição desse construto. Pois em outra parte
Kant entende por congresso “tão-somente um agrupamento arbitrá­
rio de diversos Estados, dissolúvel a qualquer tempo, e não uma união
(como a dos Estados americanos) que se funda sobre uma constitui­
ção estatal” (“Doutrina do direito”, WerkelV, 475). Kant não explicou,
porém, nem como garantir a permanência dessa união, da qual de­
pende “a natureza civil” da harmonização de conflitos internacionais,
nem como fazê-lo sem a obrigação jurídica de uma instituição análo­
ga à constituição. Por um lado, ele quer preservar a soberania dos
membros, com a ressalva sobre a dissolubilidade do contrato; é o que
sugere a comparação com congressos e associações voluntárias. Por
outro lado, a federação, que fomenta a paz de forma duradoura, deve
distinguir-se de alianças passageiras, e isso através de um sentimento
por parte dos membros, que os mova a se considerar obrigados a sub­
meter a própria razão de Estado ao fim comum declarado em conjun­
to, qual seja “não resolver seus conflitos (...) por meio da guerra, mas
(...) como que mediante um processo”. Sem esse m omento da obri­
gação o congresso de Estados pela paz não pode tornar-se “perma­
nente”, a associação voluntária não se pode firmar como “duradoura”;
ela permanece atrelada, isso sim, a constelações de interesse instáveis
e acaba por decair — como veio a ocorrer mais tarde com a Liga das
Nações de Genebra. Kant de fato não pode ter em mente uma obriga­
ção jurídica, mesmo porque sua liga das nações não é concebida como
uma organização com unidades coordenadas, que conquista uma qua­
lidade estatal e com isso uma autoridade coercitiva. Portanto, ele pre­
cisa fiar-se exclusivamente em uma união moral dos governos entre si.
Por outro lado, isso é quase inconciliável com as realistas e austeras
descrições da política contemporânea feitas por Kant.
O próprio filósofo vê inteiramente o problema, só que ao mes­
mo tempo o encobre, usando para isso um mero apelo à razão: “Quan­
do (um) Estado diz: ‘Não deve haver guerra entre mim e outros Es­
tados, mesmo sem que eu reconheça qualquer outro poder legislativo
acima de mim que assegure meu direito, ou eu o direito dele’, então
não se pode compreender de modo algum em que elemento eu pre­
tendo fundar a confiança em relação a meu direito, a menos que caiba
à razão unir ao conceito do direito das gentes justamente a sub-rogação
da aliança social burguesa, ou seja, o federalismo livre” ( Werke VI,
212). Essa asseveração, no entanto, deixa suspensa a pergunta deci­

190 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
siva sobre como assegurar a permanência da autovinculação de Esta­
dos que continuam sendo soberanos. Isso ainda não diz respeito —
nota bene — à questão empírica da aproximação a uma idéia, mas
sim à versão conceituai dessa mesma idéia. Se a aliança entre os povos
não deve constituir um evento moral, mas sim jurídico, então não lhe
devem faltar as qualidades de um a boa “constituição de Estado”, tal
como Kant as esclarecerá poucas páginas adiante — isto é, as quali­
dades de uma constituição que não se abandona à “boa formação
m oral” de seus membros, mas que na melhor das hipóteses pode esti­
mular essa mesma formação.
Sob o ângulo da história, foi certamente muito realista a reserva
manifestada por Kant em face do projeto de uma comunidade consti­
tucional dos povos. O Estado democrático de direito recém-nascido
das Revoluções Americana e Francesa ainda era a exceção, não a regra.
O sistema das potências funcionava sob o pressuposto de que somen­
te Estados soberanos podiam ser sujeitos do direito internacional. A
soberania externa significa a capacidade do Estado de afirmar sua in­
dependência na arena internacional, ou seja, manter a integridade de
suas fronteiras, se necessário com a força militar; e soberania interna
significa a capacidade, baseada no monopólio da força, de preservar a
tranqüilidade e a ordem no próprio país, com recursos do poder ad­
ministrativo e do direito positivo. A razão de Estado define-se por prin­
cípios de uma política de poder prudente, que inclui guerras delimi­
tadas, e segundo os quais a política interna permanece sob o primado
da política externa. A clara separação entre política externa e interna
baseia-se em um conceito de poder estrito e discernidor, que se mede
em última instância pelo modo como o detentor do poder faz uso da
força policial e militar disponível nos quartéis.
Enquanto esse universo estatal clássico-moderno determina o
horizonte intransponível, toda perspectiva de uma constituição cos­
mopolita e que não respeite a soberania dos Estados surge necessaria­
mente como irreal. Isso explica também por que a possibilidade de
uma união dos povos sob a hegemonia de um Estado poderoso, que
Kant vislumbra na imagem de uma “monarquia universal” (Werke VI,
247), na verdade não representa qualquer alternativa: sob as premissas
já mencionadas, tal condução do poder teria que ter por conseqüência
o “mais terrível despotismo” (WerkeV 1 ,169). Como Kant não chega a
transpor esse horizonte de experiências, acaba sendo igualmente difí­

A I D É I A K A N T IA N A D E P A Z P E R P É T U A 191
cil crer em uma motivação moral para a criação e manutenção de uma
federação de Estados livres e comprometidos em uma política conjun­
ta de poder. Para a solução desse problema, Kant esboça uma filosofia
da história com intenções cosmopolitas, cuja tarefa é tornar plausível,
a partir de uma “intenção da natureza” ainda oculta, a “consonância
entre política e moral”, tão improvável em um primeiro momento.

O
Kant menciona essencialmente três tendências naturais que vêm ao
encontro da razão, e às quais cabe a tarefa de explicar por que uma
aliança entre os povos poderia corresponder ao interesse próprio e
esclarecido dos Estados. São elas: a natureza pacífica das repúblicas
(1), a força geradora de comunidades, própria do comércio interna­
cional (2) e a função de cunho político da opinião pública (3). Um
olhar histórico sobre esses argumentos é elucidativo em um duplo
sentido. De um lado, eles foram falsificados em seu manifesto teor
significativo pelos desenvolvimentos dos séculos XIX e XX. De outro
lado, direcionam a atenção para desenvolvimentos históricos que apre­
sentam um a dialética peculiar. Na verdade, esses desenvolvimentos
revelam em primeiro lugar que as premissas subjacentes à teoria de
Kant, firmadas sob as condições percebidas em fins do século XVIII,
já não estão mais corretas; por outro lado, no entanto, eles também
depõem em favor de que um a concepção do direito cosmopolita, refor­
mulada de acordo com os novos tempos — em conformidade com a
maneira como interpretamos as condições já bastante diversas deste
final do século XX — , bem poderia aplicar-se a uma constelação de
forças predisposta a aceitá-los.
( 1 ) 0 primeiro argumento afirma que as relações internacionais
perdem seu caráter belicista à mesma medida que se impõe nos Esta­
dos a forma de governo republicano; pois as populações de Estados
constitucionais democráticos, movidas por interesses próprios, com­
pelem seus governos a desenvolver políticas de paz: “Quando se con­
vida os cidadãos do Estado a manifestar-se sobre a necessidade de ha­
ver guerra, nada mais natural que eles, ao se verem obrigados a decidir
sobre os encargos que a guerra acarretará sobre si mesmos, tenham
sérias dúvidas quanto a dar início a um jogo tão nocivo.” Essa suposi­
ção otimista foi refutada pela força mobilizadora de uma idéia que

192 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
Kant, em 1795, ainda não podia conhecer em sua ambivalência: penso
aqui na idéia de nação. O nacionalismo foi certamente um veículo da
transformação de súditos em cidadãos ativos que se identificam com
o Estado a que pertencem. Isso porém não tornou o Estado nacional
mais pacífico do que seu antecessor, o Estado dinástico absolutista3.
Pois sob a perspectiva dos movimentos nacionais, a auto-afirmação
clássica do Estado soberano ganha as conotações de liberdade e inde­
pendência nacional. E por isso a consciência moral republicana dos
cidadãos deveria comprovar-se em sua prontidão a lutar e morrer pelo
povo e pela pátria. Com razão, Kant viu nos exércitos mercenários de
seu tempo instrumentos para o “uso de pessoas como meras m áqui­
nas na mão de um outro”, e exigiu a instauração de exércitos; ele não
pôde prever que a mobilização maciça de jovens em serviço militar
obrigatório, inflamados pelo sentimento nacionalista, ainda iria oca­
sionar uma era de guerras de libertação catastróficas e descontroladas,
do ponto de vista ideológico.
Por outro lado, não está totalmente errada a noção de que uma
condição democrática no interior do Estado sugere para ele um com­
portam ento externo pacifista. Na verdade, exigências histórico-esta-
tísticas demonstram que Estados de constituição democrática não tra­
vam menos guerras do que regimes autoritários (de um tipo ou de
outro); demonstram, porém, que esses Estados se comportam de m a­
neira menos belicista nas relações entre si. Esse resultado permite fa­
zer uma leitura interessante4. À medida que as orientações universalistas
valorativas de uma população acostumada a instituições liberais im ­
pregnam também a política externa, as guerras travadas pela coletivi­
dade republicana, mesmo que ela no todo não se comporte de manei­
ra pacífica, assumem um caráter diverso. Com os motivos dos cida­
dãos, altera-se também a política externa do Estado que integram. O
uso de força militar não é determinado exclusivamente por um a razão
de Estado essencialmente particularista, mas também pelo desejo de
fomentar a expansão internacional de formas de Estado e de governo
não-autoritárias. Quando, porém, as preferências valorativas se expan­
dem para além da percepção de interesses nacionais e em favor da

3. Cf. H. Schulze, StaatundNation in derEuropaischen Ceschiclue, München, 1994.


4. Cf. D. Archibugi; D. Held (orgs.), Cosmopolitan Democracy, Cambridge, 1995.
Introdução, pp. lOss.

A ID É I A K A N T IA N A D E P A Z P E R P É T U A 193
afirmação da democracia e dos direitos humanos, então se alteram
também as condições sob as quais funciona o sistema de potências.
(2) A história, que nesse meio tempo já podemos observar em seu
conjunto, agiu de maneira analogamente dialética em relação ao se­
gundo argumento. De modo imediato, Kant errou, mas de maneira in­
direta também teve razão. Pois Kant viu na crescente interdependência
das sociedades (“Doutrina do direito”, § 62) — incrementada pela cir­
culação de informações, pessoas e produtos, e em especial na expansão
do comércio — uma tendência que favorece a união pacífica dos po­
vos. As relações comerciais em expansão no início da Era Moderna in-
tensificam-se e acabam por constituir um mercado mundial que, se­
gundo a opinião de Kant, deveria fundamentar “através do proveito
próprio mútuo” um interesse pelo asseguramento de relações pacíficas:
“Com a guerra não pode subsistir o espírito comercial, que se apodera
cedo ou tarde de cada um dos povos. Pois já que entre todos os poderes
a que se subordina o poder estatal o poder financeiro seja talvez o mais
confiável, os Estados vêem-se compelidos a fomentar a paz valorosa”
( Werke VI, 226). Certamente Kant ainda não havia aprendido — tal
como Hegel irá fazê-lo logo a seguir, com a leitura dos economistas in­
gleses5 — que o desenvolvimento capitalista iria resultar em um con­
flito entre classes sociais que ameaça duplamente a paz e a presumível
disposição para a paz, demonstrada justamente pelas sociedades politi­
camente liberais. Kant não pôde antever tampouco que as tensões so­
ciais, fortalecidas em um primeiro momento no decorrer de uma in­
dustrialização capitalista acelerada, iriam onerar a política interna com
lutas de classe e direcionar a política externa às vias de um imperialis­
mo belicoso. Ao longo do século XIX e da primeira metade do século
XX, os governos europeus serviram-se reiteradamente da força propul­
sora proporcionada pelo nacionalismo, a fim de desviar os conflitos
sociais para fora e neutralizá-los por meio de êxitos na política externa.
Só após a catástrofe da Segunda Guerra Mundial, quando se esgotam as
fontes de energia do nacionalismo integral, uma pacificação bem-suce­
dida do antagonismo de classes, promovida pelo Estado social, modi­
fica a situação interna das sociedades desenvolvidas, a ponto de o entre­
laçamento econômico mútuo entre as economias nacionais — ao me­
nos no universo da OECD — poder levar a uma espécie de “economi-

5. Cf. G. Lukács, Der junge Hegel, Zürich, 1948.

194 A INCLUSÃO DO OUTRO


zação da política internacional”6, em face da qual Kant alimentara a
forte expectativa de um efeito pacificador. Hoje em dia, meios de comu­
nicação, redes e sistemas ramificados em geral compelem a um adensa­
mento das relações sociais e simbólicas em nível global, que têm por
conseqüência efeitos recíprocos desencadeados por acontecimentos
tanto locais quanto muito distantes7. Esses processos de globalização
deixam cada vez mais vulneráveis as sociedade complexas, com sua infra-
estrutura tecnicamente debilitada. Ao passo que conflitos militares entre
as grandes potências nucleares tornam-se cada vez mais improváveis,
pelos riscos imensos que isso implicaria, cresce abertamente o número
de conflitos locais, com um número de vítimas grande e assustador.
Por outro lado, a globalização questiona pressupostos essenciais do
direito público internacional em sua forma clássica — a soberania dos
Estados e as separações agudas entre política interna e externa.
Agentes não-estatais como empresas transnacionais e bancos pri­
vados com influência internacional esvaziam a soberania dos Estados
nacionais que eles mesmos acatam de um ponto de vista formal. Hoje
em dia, cada um a das trinta maiores empresas do m undo em opera­
ção movimenta uma receita maior que o produto nacional bruto de
noventa dos países representados na ONU, considerados individual­
mente. Mas mesmo os governos dos países economicamente mais for­
tes percebem hoje o abismo que se estabelece entre seu espaço de ação
nacionalmente delimitado e os imperativos que não são sequer do co­
mércio internacional, mas sim das condições de produção integradas
em um a rede global. Estados soberanos só podem ter ganhos com suas
próprias economias enquanto se tratar aí de “economias nacionais”
sobre as quais eles possam exercer influência por meios políticos. Com
a desnacionalização da economia, porém, em especial com a integração
em rede dos mercados financeiros e da produção industrial em nível
global, a política nacional perde o domínio sobre as condições gerais
de produção8 — e com isso o leme com que se mantém em curso o
nível social já alcançado.

6. D. Senghaas, “Internationale Politik im Lichte ihrer strukturellen Dilemmata”.


In: Wohin driftet die Welt?, Frankfurt am M ain, 1994. pp. 12 lss. Na citação acima, p. 132.
7. Eis como A. Giddens define “globalização”, in: The Consequences o f Modernity,
Cambridge, 1994, p. 64[ ed. br.: G id d en s , A., A s consequências da modernidade, São Paulo,
Unesp, 1991 ].
8. Cf. R. Knieper, Nationale Souverànitàt, Frankfurt am Main, 1991.

A I D É I A K A N T IA N A D E P A Z P E R P É T U A 195
Ao mesmo tempo torna-se indiferenciado para os Estados sobera­
nos o limite constitutivo entre política interna e externa. A imagem da
política clássica de poder não se altera apenas mediante pontos de vista
normativos complementares à política de democratização e direitos hu­
manos, mas também por meio de uma difusão muito peculiar do poder.
Sob a crescente compulsão a que se estabeleçam formas de cooperação,
ganha significado sempre maior a influência mais ou menos direta sobre
a estruturação das situações de que se pode tirar proveito, a influência
sobre o estabelecimento de contatos ou a interrupção de vias de comuni­
cação, e sobre a definição de pautas e problemas. Freqüentemente, a
influência que se exerce sobre as condições circunstantes sob as quais
outros agentes tomam suas próprias decisões acaba sendo mais impor­
tante que a imposição direta dos próprios objetivos, o exercício de po­
der executivo ou a ameaça por meio da violência9. 0 “soft power” recalca
o “hard power”, e priva os sujeitos — a partir dos quais Kant concebera
a associação de Estados livres — da base de sua independência.
(3) Por sua vez, a situação é semelhante no que diz respeito ao
terceiro argumento, proposto por Kant para minimizar a suspeita de
que a projetada aliança entre os povos não passasse de um a “idéia fer­
vorosa”. Em uma coletividade republicana, os princípios da constitui­
ção afiguram parâmetros segundo os quais é preciso poder avaliar a
política publicamente. Governos como esses não se podem permitir
“fundar publicamente a política apenas com base em torneios da pru­
dência” ( WerkeVl, 238) — mesmo que eles se vejam obrigados a cum­
prir sua função apenas da boca para fora. Em tal medida, a opinião
pública cidadã e de cunho político tem uma função controladora: por
meio da crítica aberta, ela pode impedir a concretização de intenções
“avessas à luz do dia”, inconciliáveis com máximas publicamente defen­
sáveis. Além disso, segundo a opinião de Kant, a opinião pública deve
ganhar uma função programática à medida que os filósofos, na função
de “professores públicos do direito” ou intelectuais, “falem aberta e pu­
blicamente sobre as máximas da condução da guerra e promoção da
paz”, e à medida que possam convencer o público de cidadãos da cor­
reção de seus princípios. Foi provavelmente o exemplo de Frederico II
e Voltaire que Kant teve em vista ao escrever a comovente sentença a
seguir: “Não é de esperar que reis filosofem ou filósofos reinem; nem

9. Cf. J. S. Nye, “Soft Power”, Foreign Policy, n. 80, pp. 153-171,1990.

196 A INCLUSÃO DO OUTRO


se deve querer tal coisa, porque a posse do poder inevitavelmente corrói
o livre juízo da razão. Mas que os soberanos e os povos soberanos que
dominam a si mesmos segundo as leis da igualdade não eliminem nem
calem a classe dos filósofos, e deixem-na, sim, falar publicamente —
ora, isso é insuspeito e indispensável para o esclarecimento dos ofícios
de ambos” ( WerkeVl, 228).
Como demonstra pouco tempo depois na peleja sobre o ateísmo,
em torno de Fichte, Kant tinha boas razões para temer a censura.
Também queremos ser complacentes com a confiança que o filósofo
depositava na força de convencimento da filosofia, e com sua elo-
qüência; o ceticismo histórico em face da razão surge no século XIX,
e foi apenas em nosso século que intelectuais cometeram a grande
traição. O que mais importa aqui é que Kant naturalm ente ainda
contava com a transparência de uma opinião pública visível em seu
todo, marcada pela literatura, acessível a argumentos e sustentada
por membros de uma camada de cidadãos cultos relativamente pe­
quena. Ele não pôde prever a transformação estrutural dessa opi­
nião pública burguesa em uma outra, dominada pelos meios eletrôni­
cos de comunicação, semanticamente degenerada e tomada por im a­
gens e realidades virtuais. Ele não pôde intuir que esse universo de
um Esclarecimento “loquaz” pudesse ser refuncionalizado tanto no
sentido de um doutrinamento sem linguagem quanto de um embuste
com a linguagem.
Provavelmente, esse véu da insciência explica o ânimo em face
da antecipação de um a opinião pública mundial — antecipação de
bem largo alcance, mas que hoje em dia se revela clarividente. Pois ela
só agora se configura, ou seja, após o evento da comunicação global:
“Já que a comunidade dos povos da Terra (!), causa de tanto alarme
no passado, logrou chegar tão longe, a ponto de se poder sentir a vio­
lação do direito ocorrida em um local do planeta em todos os demais
locais, também assim a idéia de um direito cosmopolita não é um tipo
de imaginação fantasmática e exagerada do direito, mas sim um com­
plemento necessário ao direito público e internacional em favor dos
direitos humanos e portanto da paz perpétua; e se podemos nos sen­
tir lisonjeados por nos aproximar continuam ente dessa paz perpé­
tua, isso só pode acontecer sob essa condição [qual seja, a de que haja
um a opinião pública mundial em funcionamento, J. Haberm as]”.
(W erkeVl, 216 s.).

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 197


Os primeiros acontecimentos que de fato chamaram a atenção
de uma opinião pública mundial e que polarizaram as opiniões em
proporções globais foram provavelmente a Guerra do Vietnã e a Guer­
ra do Golfo. Só mais recentemente, e em uma seqüência muito rápi­
da, a ONU organizou uma série de conferências sobre questões de
abrangência planetária envolvendo a ecologia (no Rio de Janeiro), os
problemas do crescimento populacional (na cidade do Cairo), da po­
breza (em Copenhague) e do clima (em Berlim). Podemos entender
essas “cúpulas mundiais”, e tantas outras, ao menos como tentativas
de exercer uma pressão política sobre os governos, seja pela simples
tematização de problemas de importância vital mediante uma opi­
nião pública de âmbito mundial, seja por um apelo direto à opinião
internacional. Por certo não se pode ignorar que essa atenção susci­
tada temporariamente e ligada a temas muito específicos é canaliza­
da, hoje como ontem, por meio de estruturas das opiniões públicas
nacionais, que se esforçam por partilhar certo entrosamento. É ne­
cessária uma estrutura de sustentação, para que se estabeleça a comu­
nicação perm anente entre parceiros distantes no espaço, que in-
tercambiem ao mesmo tempo contribuições de mesma relevância so­
bre os mesmos temas. Nesse sentido ainda não há uma opinião públi­
ca global, nem tampouco um a opinião pública de alcance europeu,
tão urgentemente necessária. Mas o papel central que vêm desempe­
nhando organizações de um novo tipo, ou seja, as organizações não-
governamentais como Green Peace ou Anistia Internacional — e isso
não só em conferências como as mencionadas antes, mas em geral,
no que diz respeito à criação e mobilização de um a opinião pública
supranacional —-, é sinal claro de que certos agentes ganham influên­
cia crescente na imprensa, como forças que fazem frente aos Estados,
surgidas a partir de algo semelhante a uma sociedade civil internacio­
nal, integrada em rede101.
O papel da divulgação na imprensa e da opinião pública, que
Kant destacou com razão, faz voltar os olhos à coesão entre a consti­
tuição jurídica e a cultura política de um a coletividade11. Pois uma

10. Sobre a “despedida do m undo dos Estados”, v. E. O. Czempiel, Weltpolitik im


Umbruch, München, 1993, pp. 105ss.
11. Cf. as contribuições de Albrecht Wellmer e Axel H onneth in: M. Brumlik;
H. Brunkhorst (orgs.), Gemeinschaft und Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1993, pp.
173ss. e 260ss.

198 A INCLUSÃO DO OUTRO


cultura política liberal constitui o território em que as instituições
da liberdade podem lançar raízes, mas é ao mesmo tempo o meio
sobre o qual se concretizam avanços no processo de civilização polí­
tica de uma população12. Por certo, Kant fala do “crescimento da cul­
tura” que levaria a “um maior ajuste em torno de princípios” ( Werke
VI, 226); ele também espera que o uso público das liberdades com u­
nicativas se transforme em processos de esclarecimento que, pela via
da socialização política, afetem o posicionamento e a forma de pen­
sar de um a população. Nesse contexto ele fala da “participação afe­
tiva no Bem, da qual nenhum cidadão esclarecido que o concebe por
completo pode se eximir de ter” (“Idee zu einer Allgemeinen Ges-
chichte”, Werke VI, 46 s.). Essas observações, porém, não ganham
significado sistemático algum, porque a formação conceituai dico­
tômica da filosofia transcendental separa o que é interior do que é
exterior, a moralidade da legalidade. Kant ignora em especial a coe­
são — criada por uma cultura política liberal — entre a contemplação
prudente de interesses, o discernimento moral e o costume, entre a
tradição e a crítica. As práticas de tal cultura intermedeiam a moral,
o direito e a política, e configuram ao mesmo tempo o contexto ade­
quado a um a opinião pública que exige processos políticos de apren­
dizado13. É por isso que Kant não precisaria ter recorrido a um a in ­
tenção natural metafísica, caso quisesse explicar de que maneira “uma
convergência patológico-forçosa em direção a um a sociedade pode
tornar-se, afinal, em um todo m oral” (“Idee zu einer Allgemeinen
Geschichte”, Werke VI, 38).
Essas considerações críticas demonstram que a idéia kantiana da
condição cosmopolita tem de ser reformulada, caso não queira per­
der o contato com um a situação mundial que se modificou por com ­
pleto. Haverá facilidade em se fazer a revisão cabível no âmbito con­
ceituai básico, pelo fato de a própria idéia não haver estacionado, por
assim dizer. Afinal, ela passou a ser assumida e implementada pela
política, desde a iniciativa do presidente Wilson e a fundação da Liga
das Nações em Genebra. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial,

12. Cf. o texto que intitula: J. Habermas, Die Normalitàt einer Berliner Republik,
Frankfurt am Main, 1995, pp. 167ss.
13. Sobre o “povo como soberano em aprendizado”, cf. H. Brunkhorst, Demokratie
und Differenz, Frankfurt am Main, 199ss.

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 199


a idéia da paz perpétua ganhou uma forma palpável nas instituições,
declarações e políticas das Nações Unidas (bem como em outras or­
ganizações supranacionais). A força desafiadora das incomparáveis
catástrofes do século XX colidiu com a idéia, empurrando-a. Em face
desse contexto sombrio, o espírito do mundo, como se expressou He-
gel, esquivou-se com um salto.
A Primeira Guerra Mundial pôs as sociedades européias em con­
fronto com os assombros e horrores de um conflito desenfreado quan­
to ao uso de recursos técnicos e propagação espacial; a Segunda Guerra
Mundial confrontou-a com os crimes em massa de um conflito ideolo­
gicamente descomedido. Sob o véu da guerra total tram ada por Hitler
cumpriu-se uma ruptura civilizacional, que desencadeou um a como­
ção em nível mundial e propiciou a transição do direito internacio­
nal ao direito cosmopolita. De uma parte, a proscrição da guerra, já
declarada no Pacto de Kellogg, de 1928, foi transformada pelos tribu­
nais militares de Nürenberg e Tóquio em instrução judiciária penal.
Esta última não se limita aos delitos cometidos na guerra, mas incri­
mina a própria guerra como delito. Daí para diante é possível perse­
guir “o delito da guerra”. De outra parte, as leis penais foram esten­
didas a “crimes contra a humanidade” — a ações legalmente determi­
nadas por órgãos do Estado e cumpridas com o auxílio de inúmeros
membros de organizações, altos funcionários, servidores públicos,
pessoas particulares ou ligadas a negócios. Com essas duas inovações,
pela primeira vez os sujeitos estatais do direito internacional viram-se
desprovidos da hipótese genérica de inocência associada a uma su­
posta condição natural.

A revisão conceituai básica diz respeito à soberania externa dos


Estados e ao caráter modificado das relações interestatais (1), à sobe­
rania interna dos Estados e às restrições normativas da política clássi­
ca de poder (2), e ainda à estratificação da sociedade mundial e a uma
globalização dos riscos, algo necessário a partir de uma conceitualização
modificada do que entendemos por “paz” (3).
(1) Como já se demonstrou, não é consistente o conceito kantia-
no de uma aliança dos povos firmada de forma duradoura e capaz de
respeitar, ao mesmo tempo, a soberania dos Estados. O direito cos­

200 A INCLUSÃO DO OUTRO


mopolita tem de ser institucionalizado de tal modo que vincule os
governos em particular. A comunidade de povos tem ao menos de
poder garantir um comportamento juridicamente adequado por par­
te de seus membros, sob pena de sanções. Só assim o sistema de Esta­
dos soberanos em constante atitude de auto-afirmação, instável e ba­
seado em ameaças mútuas poderá transformar-se em uma federação
com instituições em comum, que assumam funções estatais, ou seja,
que regulem a relação de seus membros entre si e controlem a obser­
vância dessas regras. O estatuto diferenciado das relações internacio­
nais reguladas por contrato, que por si mesmas constituem m undos
à parte, terá de ser modificado pelo estabelecimento de uma relação
interna de base regimental ou constitucional. Esse sentido está con­
templado na Carta das Nações Unidas, que proíbe guerras de agressão
(com a interdição do uso da violência no artigo 2,4) e que autoriza o
Conselho de Segurança a tomar medidas adequadas, inclusive ações
militares, nos casos graves em que “haja uma ameaça ou violação da
paz, ou quando estiverem ocorrendo ações de ataque” (capítulo VII).
Por outro lado, é expressamente vedado às Nações Unidas intervir em
assuntos internos de um Estado (cf. o artigo 2, 7). Cada Estado m an­
tém o direito à autodefesa militar. Em dezembro de 1991, a Assem­
bléia Geral corroborou esse princípio (em sua Resolução 46/182): “A
soberania, integridade territorial e unidade nacional de um Estado, em
consonância com a Carta das Nações Unidas, têm de ser inteiramente
respeitadas”14.
Com essas regulamentações ambíguas, que a um só tempo lim i­
tam e garantem a soberania própria a um Estado em particular, a

14. Com a surpreendente construção de “direitos fundamentais do Estado”, J.


Isensee defende um a proibição qualificada de intervenções “contrárias às crescentes
tendências de degradação” (cf. “Weltpolizei für Menschenrechte”, Juristische Zeitung,
ano 50, fase. 9, pp. 421-430, 1995): “O que vale para os direitos fundamentais dos
indivíduos, mutatis mutandis, vale tam bém para os ‘direitos fundam entais’ dos Esta­
dos, sobretudo no que diz respeito a sua igualdade soberana, sua autodeterm inação
de soberania pessoal e territorial” (p. 424; e, nesse mesmo sentido, p. 429). A consti­
tuição de um a analogia entre a soberania dos Estados reconhecida pelo direito inter­
nacional e a liberdade garantida segundo os direitos fundamentais de pessoas natu­
rais do direito não apenas ignora o status fundamental dos direitos subjetivos indivi­
duais e o talhe individualista das ordens jurídicas modernas, mas tam bém o sentido
especificamente jurídico dos direitos hum anos como direitos subjetivos dos cidadãos
de um a ordem cosmopolita.

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 201


Carta presta contas a uma situação transitória. As Nações Unidas ainda
não dispõem de forças próprias de combate, tam pouco de forças que
elas pudessem empregar sob comando próprio, nem m uito menos
de um monopólio do poder. Elas dependem, para fazer valer suas
decisões, da cooperação voluntária dos membros capazes de tomar
parte nas ações. Essa base de poder bastante precária precisou ser com­
pensada com o estabelecimento de um Conselho de Segurança ao
qual foram integrados como membros permanentes da Organização
Mundial as grandes potências com direito a veto. Isso certamente re­
sultou em que as superpotências, ao longo de décadas, bloquearam-se
mutuamente. E na medida em que o Conselho de Segurança toma
certas iniciativas, faz um uso altamente seletivo de seu espaço de atua­
ção ponderativo, com cuidado para não ferir o princípio do tratam en­
to igualitário15. Esse problema voltou a ser atual com o episódio da
Guerra do Golfo16. 0 Tribunal Internacional em Haia tem apenas um
significado simbólico, ainda que não totalmente desimportante; ele
só entra em ação mediante requerimento e não é, com seus veredictos,
capaz de obrigar os governos (o que voltou a se evidenciar no caso
Nicarágua versus EUA).
A segurança internacional, ao menos nas relações entre as potên­
cias nucleares, não se garante hoje pelas delimitações normativas da
ONU, mas sim por acordos em torno do controle de armamentos, e
sobretudo pelo estabelecimento de “parcerias de segurança”. Esses con­
tratos bilaterais determinam inspeções e impõem ações coordenadas
a grupos de poder concorrentes, de modo que se manifesta, para além
da transparência dos planejamentos e da previsibilidade dos motivos,
uma confiabilidade não-normativa em relação às expectativas, funda­
mentada de maneira puram ente racional-finalista.
(2) Por considerar intransponíveis as barreiras da soberania esta­
tal foi que Kant concebeu a união cosmopolita como um a federação
de Estados, e não de cidadãos. Isso foi tão pouco conseqüente de sua
parte quanto remeter toda condição jurídica ao direito original cabí­
vel a toda pessoa “enquanto ser hum ano”, e não somente a condição
que afete questões internas do Estado. Para Kant, todo indivíduo tem

15. Cf. os exemplos dados por Chr. Greenwood,“Gibt es ein Recht auf humanitare
Intervention?”, Europa-Archiv, n. 4, pp. 93-106,1993. Na citação acima, p. 94.
16. Cf. J. Habermas, Vergangenheit ais Zukunft, München, 1993. pp. 10-44.

202 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
direito às mesmas liberdades segundo leis gerais (“sobre as quais to­
dos decidem, levando em conta todos os demais, da mesma forma que
cada um o faz, levando em conta a si mesmo”). Essa fundamentação
do direito em geral com base nos direitos humanos assinala os indi­
víduos como portadores de direitos e confere a todas as ordenações
jurídicas modernas um talhe imprescindivelmente individualista17. Se
Kant, no entanto, considera essa garantia de liberdade — “o que o ser
hum ano deve fazer segundo as leis da liberdade” — como o que há de
“mais essencial na intenção de se alcançar a paz perpétua”, “e isso se­
gundo todas as três dimensões do direito público: o direito do Estado,
das gentes e o direito cosmopolita” {WerkeVI, 223), então ele de fato
não pode fazer que a autonomia dos cidadãos seja mediatizada pela
soberania dos respectivos Estados.
Antes de mais nada, o cerne do direito cosmopolita consiste em
que ele se lance por sobre as cabeças dos sujeitos jurídicos coletivos do
direito internacional, que se infunda no posicionamento dos sujeitos
jurídicos individuais e que fundamente para esses últimos uma condi­
ção não-mediatizada de membros de uma associação de cidadãos do
m undo livres e iguais. Carl Schmitt compreendeu esse ponto central e
percebeu que segundo essa concepção “todo indivíduo é ao mesmo
tempo cidadão do m undo (no sentido jurídico pleno da palavra) e
cidadão de um Estado em particular”18. Já que a dupla competência
recai sobre “a federação mundial dos Estados”, e os indivíduos assu­
mem nessa comunidade internacional um a posição juridicamente
imediata, o Estado em particular transforma-se assim “em mera com­
petência de determinadas pessoas, que entram em cena com um duplo
papel de função nacional e internacional”19. A competência mais im ­
portante de um direito que se infunde por meio da soberania dos Es­
tados é a responsabilização de pessoas em particular por crimes come­
tidos em serviços prestados sob ordens do Estado ou na guerra.
Também quanto a isso o desenvolvimento até os dias de hoje foi
para além de Kant. Em seqüência à Carta do Atlântico de agosto de
1941, a Carta das Nações Unidas de junho de 1945 obriga os Estados

17. Cf. pp. 229ss., infra.


18. Em um comentário à obra de Georges Scelle, Précis de droit des gens, Paris,
vol. 1,1932; vol. 2,1934: C. Schmitt, Die W endungzum diskriminierenden Kriegsbegriff
(1938), Berlin, 1988, p. 16.
19. Cf. Schmitt, 1988, p. 19.

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 203


membros em geral à observância e cumprimento dos direitos hum a­
nos. Eles receberam um detalhamento modelar por parte da Assem­
bléia Geral com sua “Declaração Universal dos Direitos Humanos”,
em dezembro de 1948, que continua a desenvolvê-los até hoje, em di­
versas Resoluções20. As Nações Unidas não abandonam a defesa dos
direitos humanos somente a seu cumprimento nacional; dispõem tam­
bém de um instrumental próprio para a constatação de eventuais vio­
lações dos direitos humanos. Para os direitos fundamentais de teor
social, econômico e cultural, limitados apenas pela “medida do possí­
vel”, a Comissão de Direitos Humanos instituiu órgãos fiscalizadores
e relatórios de rotina; além disso, para os direitos políticos e de cida­
dania instituiu ainda procedimentos vindicativos.
Teoricamente (ainda que na verdade ela não seja reconhecida por
todos os Estados subscritores) confere-se maior significado à vindi-
cação individual do que à vindicação apresentada por um Estado em
particular. A vindicação individual, a propósito, confere meios jurídi­
cos ao cidadão em particular contra o governo de seu próprio país.
Até o momento, porém, inexiste um tribunal para ações penais que
julgue e decida sobre casos comprovados de violações dos direitos
humanos. Na Conferência dos Direitos Humanos de Viena ainda não
havia sido possível fazer valer a sugestão de investidura de um alto
comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Tribunais
instituídos ad hoc para o julgamento de crimes de guerra segundo o
modelo das Cortes Militares Internacionais em Nürenberg e Tóquio
constituem até hoje a exceção21. Contudo, a Assembléia Geral das Na­
ções Unidas reconheceu os princípios mestres subjacentes aos vere­
dictos pronunciados naquelas ocasiões como “princípios do direito in­
ternacional”. Em tal medida, não é verdadeira a afirmação de que esses
processos contra líderes militares, diplomatas, servidores ministeriais,
médicos, banqueiros e grandes industriais do regime nacional-socia-

20. Sobre a Conferência dos Direitos Humanos de Viena, v. R. Wolfrum, “Die


Entwicklung des internationalen Menschenrechtsschutzes”, Europa-Archiv, n. 23, pp.
681-690, 1993; sobre o status dos polêmicos direitos à solidariedade, cf. W. Huber,
“Menschenrechte/Menschenwürde”, Theologische Realenzyklopüdie, v. XXII, Berlin; New
York, 1992. pp. 577-602; e ainda: E. Riedel, “Menschenrechte der dritten Dimension”,
Europãische Grundrechte Zeitschrift (EuGRZ), pp. 9-21,1989.
21. Em 1993, o Conselho de Segurança constituiu um tribunal como esse para
proceder à perseguição de crimes de guerra e contra a humanidade na antiga Iugoslávia.

204 A INCLUSÃO DO OUTRO


lista tenham consistido em procedimentos judiciais “únicos”, sem for­
ça de precedência juridicamente constitutiva22.
O ponto vulnerável da defesa global dos direitos humanos, de
sua parte, é a falta de um poder executivo que possa proporcionar à
Declaração Universal dos Direitos Humanos sua efetiva observância,
inclusive mediante intervenções no poder soberano de Estados na­
cionais, se necessário for. Como em muitos casos os direitos hum a­
nos teriam de se impor à revelia dos governos nacionais, é preciso
rever a proibição de intervenções prevista pelo direito internacional.
Se não inexistir um poder estatal, como no caso da Somália, a Orga­
nização Mundial só intervém com a anuência dos governos envolvi­
dos (foi o que ocorreu na Libéria e na Croácia/Bósnia23). No entanto,
com a Resolução 688, de abril de 1991, durante a Guerra do Golfo,
ela de fato trilhou um novo caminho, ainda que não no sentido da
fundamentação jurídica. Naquela ocasião, as Nações Unidas remete­
ram-se ao direito de intervenção que lhes cabe em casos de “ameaça à
segurança internacional”, de acordo com o capítulo VII da Carta; em
tal medida, do ponto de vista jurídico, nessa ocasião elas tampouco
intervieram nos “assuntos interiores” de um Estado soberano. Para
os Aliados, entretanto, esteve muito claro que eles estavam fazendo
justamente isso, no momento em que determinaram zonas de proi­
bição de vôo sobre o espaço aéreo iraquiano e também quando em ­
pregaram tropas de solo no Iraque Setentrional para criar “portos de
fuga” (dos quais a Turquia vinha abusando nesse ínterim), destinados
a fugitivos curdos, ou seja, para defender os membros de um a m ino­
ria nacional contra o próprio Estado24. O ministro de relações exte­
riores britânico falou, na ocasião, de um a “expansão das fronteiras
para o comércio internacional”25.
(3) A revisão de conceitos básicos que se faz necessária em vista
do caráter modificado das relações interestatais e da restrição norm a­

22. É o que afirma H. Quaritsch em seu Posfácio a Carl Schmitt, Das international-
rechtliche Verbrechen des Angriffskrieges (1945), Berlin, 1994. pp. 125-247. No contexto
acima, pp. 236ss.
23. Cf. as análises e conclusões de Chr. Grenwood, op. cit., 1993.
24. Greenwood (1993) chega à seguinte conclusão: “Atualmente, já parece estar
mais consolidada a idéia de que as Nações Unidas poderíam lançar mão de suas atri­
buições para intervir em um Estado por razões humanitárias” (p. 104).
25. Cit. cf. Greenwood, 1993, p. 96.

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 205


tiva do espaço de ação de Estados soberanos traz conseqüências às
concepções de aliança entre os povos e de condição cosmopolita. Em
parte, as severas normas ora vigentes prestam contas a isso; mas hoje
como ontem persiste uma grande discrepância entre a letra e o cum ­
primento das normas. A situação mundial da atualidade pode ser en­
tendida, na melhor das hipóteses, como transição do direito interna­
cional ao direito cosmopolita. Muitas coisas parecem indicar, mais que
isso, uma reincidência no nacionalismo. Nessa linha, o julgamento
depende da maneira como avaliamos a dinâmica das tendências “con­
vergentes”. Estávamos acompanhando a dialética dos desdobramen­
tos cujo início Kant havia tido em vista, em sua época, ao falar de uma
condição pacífica das repúblicas, da força agregadora dos mercados
globais e da pressão normativa da opinião pública liberal. Hoje, essas
tendências dizem respeito a um a constelação imprevista.
Kant imaginara a ampliação da associação de Estados livres de tal
maneira que um núm ero sempre maior de Estados viesse a cristali-
zar-se em torno do núcleo de uma vanguarda de repúblicas pacíficas:
“Pois quando a felicidade concede às coisas ser de tal modo: que um
povo poderoso e esclarecido possa formar uma república, então essa
fornece a outros Estados um centro de unificação federativa, para jun­
tar-se a eles, e depois sempre expandir-se, mais e mais, através de su­
cessivas unificações desse tipo” (W erkeVI, 211 s.). Na realidade, po­
rém, a Organização Mundial abriga hoje praticamente todos os Esta­
dos sob um mesmo teto, e independentemente de serem republicanos
e de respeitarem ou não os direitos humanos. A união política do
m undo encontra expressão na Assembléia Geral das Nações Unidas,
na qual todos os governos estão representados com igualdade de direi­
tos. Com isso a Organização Mundial abstrai não somente das dife­
renças de legitimidade de seus membros no interior da comunidade
de Estados, mas também de suas diferenças de status no interior de uma
sociedade mundial específica. E falo de uma “sociedade m undial”, por­
que os sistemas comunicacionais e os mercados criaram um contexto
global; mas é preciso falar de uma sociedade mundial “estratificada”,
porque o mecanismo do mercado mundial acopla um a produtividade
progressiva à miserabilização crescente, isto é, processos de desenvol­
vimento a processos de subdesenvolvimento. A globalização divide o
m undo e ao mesmo tempo o desafia, enquanto comunidade de risco,
ao agir cooperativo.

206 A INCLUSÃO DO OUTRO


Da perspectiva das ciências políticas, o mundo fragmentou-se des­
de 1917 em três mundos. Certamente, os símbolos do Primeiro, Se­
gundo e Terceiro Mundos assumiram um significado diferente a partir
de 198926. 0 Terceiro Mundo é constituído hoje de territórios nos quais
a infra-estrutura e o monopólio do poder têm uma formação tão de­
bilitada (Somália) ou tão fragmentada (Iugoslávia), nos quais as ten­
sões sociais são tão intensas, e os limiares de tolerância da cultura po­
lítica, tão baixos, que os poderes indiretos de natureza mafiosa ou fun-
damentalista abalam a ordem interna. Essas sociedades estão amea­
çadas por processos de decadência étnicos, nacionais ou religiosos. De
fato, as guerras que ocorreram nas últimas décadas, muitas vezes sem a
devida atenção da opinião pública mundial, foram em sua imensa maio­
ria guerras civis desse tipo. Em contraposição, o Segundo Mundo foi
marcado pela herança de políticas de poder que assumiu dos Estados
nacionais europeus resultantes da descolonização. Em assuntos inte­
riores, esses Estados compensam situações de instabilidade com cons­
tituições autoritárias e se enrijecem em suas relações externas (como
acontece na região do Golfo, por exemplo), insistindo em sua própria
soberania e na não-intervenção. Investem no poder militar e obedecem
exclusivamente à lógica do equilíbrio de forças. Apenas os Estados do
Primeiro Mundo logram até certo ponto harmonizar seus interesses
internacionais com os pontos de vista normativos que determinam o
nível de exigência quase cosmopolita das Nações Unidas.
Como indicadores da pertinência a esse Primeiro Mundo, R.
Cooper menciona: uma crescente irrelevância das questões ligadas a
fronteiras e a tolerância em face de um pluralismo legalmente libera­
do, em assuntos interiores; uma influenciação recíproca, nas relações
interestatais, sobre assuntos tradicionalmente internos e, em geral, uma
fusão crescente das políticas interna e externa; a sensibilidade em face
da pressão da opinião pública liberal; a refutação do poder militar
como meio para a solução de conflitos e a fixação jurídica das relações
internacionais; e, por fim, o favorecimento de parcerias que funda­
mentem a segurança sobre a transparência e a confiabilidade das ex­
pectativas. É esse Primeiro M undo que define algo como o meridiano
de um tempo presente, com base no qual se mede a simultaneidade

26. Cf. R. Cooper, “Gibt es eine neue W elt-Ordnung?”, Europa-Archiv, n. 18,


pp. 509-516, 1993.

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 207


do que é econômica e culturalmente não-simultâneo. Kant, que como
filho do século XVIII ainda pensava a-historicamente, havia ignorado
tudo isso, e deixado de perceber a abstração real que a organização da
comunidade dos povos cumpre, e à qual ela também deve prestar con­
tas em suas políticas.
A política das Nações Unidas só é capaz de considerar essa “abs­
tração real” à medida que se empenha em favor da superação das ten­
sões sociais e dos desequilíbrios econômicos. Isso, por sua vez, só pode
ter êxito quando se criar, apesar da estratificação da sociedade mundial,
um consenso em pelo menos três direções: uma consciência histórica
partilhada por todos os membros em relação à não-simultaneidade
das sociedades, que no entanto dependem, todas ao mesmo tempo, da
coexistência pacífica; um a concordância normativa sobre direitos hu­
manos, cuja interpretação ainda causa polêmica entre europeus, de
um lado, asiáticos e africanos, de outro27; e um entendimento comum
sobre a concepção da condição pacífica almejada. Kant havia podido
contentar-se com um conceito negativo de paz. Isso hoje é insuficiente,
e não só por causa do descomedimento na condução da guerra, mas
sobretudo por causa da circunstância de que o surgimento de guerras
tem causas sociais.
De acordo com um a sugestão de Dieter e Eva Seghaas28, a com­
plexidade das causas da guerra exige uma concepção que entenda a
paz como um processo que decorre sem violência, mas que não almeja
simplesmente a preservação do poder, e sim o cumprimento de pres­
supostos reais para o convívio livre de tensões entre grupos e povos.
As regulamentações implementadas não podem ferir a existência e a
honra dos envolvidos, nem podem restringir demais os interesses vi­
tais e as noções de justiça, ao ponto de que as partes conflitantes voltem
a recorrer à guerra, caso se esgotem as possibilidades de ação. As po­
líticas que se orientam segundo um conceito de paz como esse recor­
rerão a todos os meios aquém do uso do poder militar, inclusive à
intervenção humanitária, para exercer influência sobre a situação in­
terna de Estados formalmente soberanos, com o objetivo de fomentar

27. Uma sugestão razoável para se estabelecer um âmbito de discussão é apre­


sentada por T. Lindholm, “The Cross-Cultural Legitimacy of Human Rights”, Norwegian
Instituí o f Human Right, Oslo, n. 3,1990.
28. Cf. D. e E. Senghaas, “Si vis pacem, para pacem”, Leviathan, pp. 230-247,1992.

208 A INCLUSÃO DO OUTRO


neles uma autonomia auto-sustentável com relações sociais admis­
síveis, a participação democrática, a tolerância cultural e a condição
efetiva de um Estado de direito. Essas estratégias não-violentas em fa­
vor de processos de democratização29 contam com que as integrações
globais em rede, nesse entremeio, tenham tornado todos os Estados
em dependentes de seu m undo circunstante, e também sensíveis ao
poder “brando” de influências indiretas— inclusive a sanções econômi­
cas impostas de maneira explícita.
Com a complexidade dos objetivos e o alto custo das estratégias,
é claro que também crescem as dificuldades de implementação; isso
faz com que as potências em posição de liderança fiquem reticentes
quanto a tomar iniciativas e arcar com os custos. É preciso ao menos
mencionar quatro variáveis importantes para esse contexto: a compo­
sição do Conselho de Segurança que precisa se unir em torno de um
objetivo único; a cultura política dos Estados, cujos governos só se dei­
xam mobilizar em prol de políticas “abnegadas” a curto prazo, quando
têm de reagir à pressão normativa da opinião pública; a formação de
regimes regionais que propiciem só então alicerces efetivos à Orga­
nização Mundial; e, por fim, a incitação branda a um comércio coorde­
nado em nível global, cujo ponto de partida é a percepção dos perigos
globais. São evidentes os perigos resultantes de desequilíbrios ecoló­
gicos, de assimetrias do bem-estar e do poder econômico, das tecno­
logias pesadas, do comércio de armas, do terrorismo, da criminalidade
ligada às drogas etc. Quem não é levado forçosamente a desesperar da
capacidade de aprendizagem do sistema internacional tem de deposi­
tar as próprias esperanças no fato de que a longo prazo a globalização
desses perigos, de modo objetivo, acabou por integrar o m undo em
uma comunidade de risco involuntária.

A reformulação da idéia kantiana de uma pacificação cosmopo­


lita da condição natural entre os Estados, quando adequada aos tempos
de hoje, inspira por um lado esforços enérgicos em favor da reforma

29. E. O. Czempiel investiga essas estratégias com base em diversos exemplos, tal
como em: G. Schwarz, “Internationale Politik und der Wandel von Regimen”, Sonderheft
der Zeitschrift fü r Politik, Zürich, pp. 55-75, 1989.

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 209


das Nações Unidas e de modo geral a ampliação das forças capazes de
atuar em nível supranacional, em diferentes regiões do planeta. Tra­
ta-se aí de uma melhora da circunstância institucional de uma política
de direitos humanos que ganhou impulso desde a presidência de Jimmy
Carter, mas que também sofreu retrocessos sensíveis (1). Essa política,
por outro lado, fez entrar em cena uma forte oposição, que vê na tenta­
tiva de imposição internacional dos direitos humanos o funcionamento
de uma moralização autodestrutiva da política. Os argumentos contrá­
rios, por sua vez, apóiam-se sobre um conceito vago de direitos hum a­
nos, que não diferencia satisfatoriamente entre direito e moral (2).
(1) A “retórica do universalismo” à qual se dirige essa crítica en­
contra sua expressão mais objetiva em sugestões de parâmetros segun­
do os quais se deveríam ampliar as Nações Unidas, de modo a torná-la
uma “democracia cosmopolita”. As sugestões de reforma concentram-
se em três pontos: na instalação de um parlamento mundial, na am­
pliação da estrutura jurídica mundial e na reorganização do Conselho
de Segurança30.
As Nações Unidas ainda mantêm traços de um “congresso per­
manente de Estados”. Se elas pretendem perder esse caráter de assem­
bléia das delegações dos governos, então a Assembléia Geral precisa
tornar-se uma espécie de Senado Federal e partilhar suas competências
com uma Segunda Câmara. Nesse parlamento os povos estariam re­
presentados como a totalidade dos cidadãos do mundo, mas não por
seus governos, e sim por representantes eleitos. Países que se neguem
a permitir a eleição de deputados segundo procedimentos democráti­
cos (e levando em consideração suas minorias étnicas) poderíam ser
representados provisoriamente por organizações não-estatais desig­
nadas pelo próprio Parlamento Mundial como representantes das
populações oprimidas.
O Tribunal Internacional em Haia não dispõe de competência
para propor acusação; ele não pode emitir veredictos obrigatórios e
tem de se restringir às funções de um tribunal de arbitragem. Sua
jurisdição, além disso, está restrita às relações entre os Estados; ela
não se estende a conflitos entre pessoas em particular ou entre cida­
dãos em particular e seus governos. Em todos os sentidos, seria pre­

30. Sigo aqui D. Archibugi, “From the United Nations to Cosmopolitan Demo-
cracy”. In: Archibugi; Held, op. cit., 1995, pp. 121-162.

210 A INCLUSÃO DO OUTRO


ciso aumentar as competências do Tribunal, segundo a linha de su­
gestões já elaborada por Hans Kelsen meio século atrás31. A jurisdição
penal, que até hoje só se instalou ad hoc para processos específicos de
crimes de guerra, teria que institucionalizar-se de forma permanente.
O Conselho de Segurança foi concebido como poder compensa­
tório da Assembléia Geral, composta de forma igualitária; ele deve
retratar as relações efetivas de poder no cenário internacional. Esse
princípio racional, depois de cinco décadas, exige adaptações à nova
situação mundial. E essas adaptações não deveríam esgotar-se em
uma atualização da representação de Estados nacionais influentes (por
exemplo, pela aceitação da Alemanha e do Japão como membros per­
manentes). Em vez disso, propõe-se que ao lado das potências m un­
diais (como os EUA) também se conceda um voto privilegiado a regi­
mes regionais (como a União Européia). No mais, deve-se suprim ir a
obrigatoriedade de voto unânime entre os membros permanentes e
substituí-la por regulamentações de maioria, apropriadas às diversas
situações. O Conselho de Segurança podería ser totalmente reformado
segundo o modelo do Conselho de Ministros em Bruxelas, para tor-
nar-se um poder executivo capaz de agir. Os Estados, além disso, só
adequarão suas políticas externas tradicionais ao imperativo de uma
política interna mundial quando a Organização Mundial puder em ­
pregar forças de conflito sob seu próprio comando e desempenhar
funções policiais.
Essas considerações são convencionais, à medida que se orien­
tam por elementos organizativos das constituições nacionais. Por cer­
to, a implementação de um direito cosmopolita conceitualmente cla­
ro exige um pouco mais de criatividade institucional. O universalis­
mo moral que orientou Kant em suas aspirações continua sendo de
alguma maneira a intuição que constitui os parâmetros nessa ques­
tão. No entanto, um argumento tem-se voltado contra essa auto-
compreensão moral-pragmática da m odernidade32 e obtido êxito em
sua recepção na Alemanha desde a crítica de Hegel à moral kantiana
da humanidade, com marcas profundas, visíveis até hoje. Sua form u­

31. Cf. H. Kelsen, Peace through Law, Chapei Hill, 1944.


32. Cf. J. Habermas, Der Philosophische Diskurs derModerne, Frankfurt am Main,
1985. pp. 309ss. [ed. br.: O discurso filosófico da modernidade, São Paulo, Martins Fon­
tes, 2000],

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 211


lação mais aguda deve-se a Carl Schmitt, com base em um a funda­
mentação em parte perspicaz, em parte confusa.
Schmitt confere à frase “quem fala em humanidade tem a inten­
ção de enganar” a impactante formulação: “Humanidade, bestialida-
de”. Segundo essa concepção, o “logro do humanismo” tem suas raízes
na hipocrisia de uma pacifismo jurídico que pretende fazer “guerras
justas” sob o signo da paz e do direito cosmopolita: “Se o Estado com­
bate seu inimigo em nome da humanidade, não se trata aí de uma
guerra da humanidade, mas sim de uma guerra em que determinado
Estado, diante de seu opositor bélico, tenta ocupar um conceito uni­
versal, de forma semelhante a quando se tenta abusar de conceitos
como paz, justiça, progresso e civilização, a fim de requisitá-los para si
e subtraí-los ao inimigo. ‘Humanidade’ é um instrumento ideológico
particularmente útil.
Esse argumento de 1932, ainda voltado contra os Estados Unidos
e as potências vencedoras em Versailles, será depois estendido por
Schmitt a determinadas ações da Aliança dos Povos de Genebra e das
Nações Unidas. Em sua opinião, a política de uma organização m un­
dial que se inspira na idéia kantiana de paz perpétua e que visa à cons­
trução de uma condição cosmopolita obedece à mesma lógica: o pan-
intervencionismo leva obrigatoriamente a um a pancriminalização3334
e, com isso, à perversão dos objetivos aos quais ela se propõe servir.
(2) Antes de abordar o contexto específico dessas considerações,
gostaria de tratar do argumento em geral e chegar, passo a passo, ao
cerne do problema. As duas asserções decisivas afirmam o seguinte:
primeiro, a política dos direitos humanos ocasiona guerras que —
disfarçadas de ações policiais — assumem qualidade moral; segundo,
a moralização classifica opositores como inimigos, de m odo que essa
criminalização dá rédeas largas à desumanidade: “Conhecemos a lei
secreta desse vocabulário e sabemos que hoje se pode fazer a guerra

33. C. Schmitt, Der Begriff des Politischen (1932), Berlin, 1963. p. 55. O mesmo
argumento é apresentado por ]. lsensee (1995): “Desde que há intervenções, elas servi­
ram às ideologias, aos princípios confessionais nos séculos XVI e XVII, aos princípios
monarquistas, jacobinistas, humanitários, à revolução socialista mundial. Agora che­
gou a vez dos direitos hum anos e da democracia. Na longa história da intervenção, a
ideologia serviu para dourar os interesses de expansão de poder dos que intervinham
e para ungir a efetividade da medida com uma aura de legitimação” (p. 429).
34. Cf. C. Schmitt, Glossarium (1947-1951), Berlin, 1991. p. 76.

212 A INCLUSÃO DO OUTRO


mais terrível e cometer as desumanidades mais atrozes em nome da
humanidade”35. Os dois enunciados parciais são fundamentados com
o auxílio de duas premissas: (a) a política dos direitos humanos serve
à imposição de normas que são parte de uma moral universalista; (b)
como juízos morais obedecem ao código de “bem” e “mal”, a valoração
moral negativa (de um oponente político ou) de um opositor bélico
destrói a limitação juridicamente institucionalizada (da confronta­
ção política ou) do combate militar. Enquanto a primeira premissa é
falsa, a segunda premissa, no contexto de uma política dos direitos
humanos, sugere um pressuposto falso.
Sobre (a): direitos humanos em sentido moderno remontam à
Virgínia Bill of Rights e à Declaração de Independência norte-am eri­
cana de 1776, bem como à Déclaration des droits de l’homme et du
citoyen, de 1789. Essas declarações são inspiradas pela filosofia polí­
tica do direito racional, em especial por Locke e Rousseau. Não é por
acaso, no entanto, que os direitos humanos só assumam uma figura­
ção concreta no contexto das primeiras constituições — justamente
como direitos fundamentais garantidos no âmbito de uma ordem ju ­
rídica nacional. Contudo, ao que parece eles têm um caráter duplo:
como normas constitucionais eles gozam de uma validação positiva,
mas como direitos cabíveis a cada ser hum ano enquanto pessoa tam ­
bém se confere a eles uma validação sobrepositiva.
Para a discussão filosófica36, essa ambigüidade foi muito insti-
gante. Segundo uma das concepções, o status dos direitos humanos
deve situar-se entre o direito positivo e o direito moral; segundo a outra,
os direitos devem poder aparecer tanto sob a forma de direitos morais
quanto de direitos jurídicos, caso haja coincidência dos conteúdos —
“como direito válido, de modo preestatal, mas nem por isso como di­
reito já vigente”. Os direitos humanos “não são, na verdade, assegura­
dos ou negados; em relação a eles ou se exercem garantias ou se pra­
ticam violações”37. Essas formulações de ocasião sugerem que o legis­
lador constitucional traduza para as palavras do direito positivo normas
morais já dadas. Com esse regresso à distinção clássica entre direito

35. C. Schmitt, 1963, p. 94.


36. Cf. St. Shue, S. Hurley (orgs.), On H uman Rights. New York, 1993.
37.0 . Hõffe, “Die Menschenrechte ais Legitimation und kritischer MaSstab der
Demokratie”. In: J. Schwardtlãnder (org.), Menschenrechte und Demokratie, StraBburg,
1981. p. 250. Cf., do mesmo autor, Politische Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1987.

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 213


natural e direito positivo, não me parece que se tenha trilhado corre­
tamente o itinerário da questão. O conceito de direitos humanos é de
origem moral, mas também uma manifestação específica do conceito
moderno de direitos subjetivos, ou seja, uma manifestação da concei-
tualidade jurídica. Os direitos humanos são já a partir de sua origem
de natureza jurídica. O que lhes confere a aparência de direitos morais
não é seu conteúdo, nem menos ainda sua estrutura, mas um sentido
validativo que aponta para além das ordens jurídicas características
dos Estados nacionais.
Os textos constitucionais históricos reportam-se ao direitos “ina­
tos” e têm em geral a forma comemorativa de uma “declaração”: as
duas coisas têm por tarefa prevenir um mal-entendido positivista, como
diriamos hoje, e expressar que os direitos humanos não “estão à dis­
posição”38 do respectivo legislador. Mas essa restrição retórica não pode
preservar os direitos fundamentais do destino que cabe a todo direito
positivo; também os direitos fundamentais podem ser alterados ou
suspensos, por exemplo no caso de uma mudança de regime. Como
partes de uma ordem jurídica democrática, e tal como as demais nor­
mas legais, eles gozam de “validade” em um duplo sentido: eles não
valem apenas de maneira factual, ou seja, não são apenas impostos em
virtude da força sancionadora do Estado, mas também reivindicam
legitimidade para si, ou seja, devem ser passíveis de uma fundamenta­
ção racional. Sob esse aspecto da fundamentação, os direitos funda­
mentais dispõem mesmo de um status notável.
Como normas constitucionais, eles com certeza desfrutam de
uma precedência que se manifesta entre outras coisas no fato de se­
rem, como tais, constitutivos da ordem jurídica, e de estabelecerem
assim o âmbito em que se deve mover a legislação normal. Entretan­
to, os direitos fundamentais se destacam no conjunto das normas cons­
titucionais. Por um lado, os direitos fundamentais liberais e sociais
têm a forma de normas genéricas endereçadas aos cidadãos em sua
qualidade de “seres hum anos” (e não de integrantes do Estado). Mes­
mo que os direitos hum anos sejam cumpridos tão-somente no âmbi­
to de uma ordem jurídica nacional, nesse campo validativo eles ga­
rantem direitos para todas as pessoas, e não só para os integrantes do

38. S. Konig, Z ut Begründung der Menschenrechte. In: Hobbes - Locke - Kant,


Freiburg, 1994, pp. 26ss.

214 A INCLUSÃO DO OUTRO


Estado. Quanto mais se explora o teor da Constituição alemã, tanto
mais se aproxima o status jurídico de quem vive na Alemanha sem ser
cidadão do Estado alemão ao de quem é cidadão alemão39. É essa va­
lidação universal, voltada a seres hum anos como tais, que os direitos
fundamentais têm em comum com as normas morais. De certa m a­
neira, o que se revelou com a recente controvérsia sobre o direito de
voto aos estrangeiros, na Alemanha, também se aplica aos direitos
políticos fundamentais. E isso remete a um segundo aspecto, ainda
mais importante. Direitos fundamentais estão investidos de tal an­
seio de validação universal porque só podem, exclusivamente, ser fun­
damentados sob um ponto de vista moral. É certo que as outras nor­
mas jurídicas também são fundamentadas com o auxílio de argumen­
tos morais, mas em geral a fundamentação se dá igualmente com pon­
tos de vista ético-políticos e pragmáticos que se referem à forma de
vida concreta de uma comunidade jurídica histórica, ou então ao es­
tabelecimento concreto de objetivos ligados a determinadas políticas.
Os direitos fundamentais, ao contrário, regulam matérias de tal gene­
ralidade que bastam os argumentos morais para sua fundamentação.
Eis aí argumentos que fundamentam a razão pela qual o assegura-
mento de regras como essas desperta em igual medida o interesse de
todas as pessoas na sua qualidade de pessoas em geral, ou ainda, por
que elas são igualmente boas para todo mundo.
O modus da fundamentação, no entanto, em nada prejudica a qua­
lidade jurídica dos direitos fundamentais, nem faz deles normas m o­
rais. Normas jurídicas — no sentido moderno do direito positivo —
conservam sua conformidade jurídica, não obstante a natureza das ra­
zões que ajudem a fundamentar sua pretensão de legitimidade. Pois as
normas jurídicas devem esse caráter à estrutura delas mesmas, e não a
seu conteúdo. E os direitos fundamentais, segundo sua estrutura, são
direitos subjetivos que se podem vindicar em juízo e que têm o sentido,
entre outros, de desvincular pessoas do direito dos mandamentos m o­
rais — e isso de maneira claramente delimitada — , à medida que reser­
vam aos agentes espaços legais em que estes possam agir segundo orien­
tação de suas próprias preferências. Se direitos morais podem ser funda­

39. De todo modo, o teor humanitário-jurídico dos direitos políticos de parti­


cipação afirma que cada um tem o direito de pertencer, como cidadão, a uma coletivi­
dade política.

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 21 5


mentados a partir de deveres que vinculem o arbítrio de pessoas autô­
nomas, os deveres jurídicos resultam apenas como conseqüência de
autorizações a um agir arbitrário, ou seja, da restrição legal dessas liber­
dades subjetivas40.
Esse privilégio conceituai básico de que dispõem os direitos em
face dos deveres resulta da estrutura do direito coercitivo moderno,
que Hobbes foi o primeiro a validar. Hobbes, em face do direito pré-
moderno e ainda delineado a partir do ponto de vista religioso ou
metafísico, introduziu aí um a mudança de perspectiva41. Diferente­
mente da moral deontológica, que fundamenta deveres, o direito pres-
ta-se a defender o livre arbítrio dos indivíduos, segundo o princípio
de que tudo o que não é explicitamente proibido por leis gerais de
restrição da liberdade é permitido. Entretanto, se os direitos subjeti­
vos decorrentes dessas leis devem ser legítimos, a generalidade delas
tem de satisfazer o ponto de vista moral da justiça. O conceito de di­
reito subjetivo, que defende uma esfera do livre arbítrio, tem uma for­
ça constitutiva para as ordens jurídicas modernas como um todo. E
por isso que Kant concebe o direito “como quintessência das condi­
ções sob as quais o livre arbítrio de uma pessoa pode subsistir com o
livre arbítrio de outra, de acordo com uma lei geral da liberdade” (“Dou­
trina do direito”, Werke IV, 337). Todos os direitos humanos especiais
têm sua razão, segundo Kant, no direito original único a liberdades
subjetivas iguais: “A liberdade (a independência em relação a um arbí­
trio coativo alheio), enquanto puder subsistir em conjunto com a liber­
dade de cada um dos outros indivíduos, é esse direito único, original,
cabível a cada ser hum ano em virtude de sua hum anidade” (“Dou­
trina do direito”, Werke IV, 345).
Em Kant, e de maneira muito conseqüente, os direitos humanos
encontram seu lugar na doutrina do direito, e apenas aí. Assim como

40. Cf. a análise da estrutura dos direitos humanos em: H. A. Bedau, “Internatio­
nal Human Rights”. In: T. Regan; D. van de Weer (orgs.), And Justice for All, Totowa,
1983, p. 297, onde o autor se reporta a Henry Shue: “The emphasis on duties is meant
to avoid leaving the defense o f hum an rights in a vacuum, bereft o f any moral signi-
ficance for the specific conduct o f others. But the duties are not intended to explain
and generate the duties” [“A ênfase nos deveres é para evitar que a defesa dos direitos
humanos caia num vácuo, destituída de todo significado moral para a conduta especí­
fica dos demais. Mas deveres não foram feitos para explicar ou gerar direitos; ao con­
trário, os direitos é que costumam explicar e gerar deveres”].
41. Cf. S. Kõnig, 1994, pp. 84ss.

216 A INCLUSÃO DO OUTRO


outros direitos subjetivos, eles, e sobretudo eles, têm um teor moral.
Mas a despeito desse teor, os direitos humanos, segundo sua estru­
tura, pertencem a uma ordem do direito positivo e coercitivo que
fundamenta reivindicações jurídicas subjetivas que se podem recla­
mar em juízo. Em tal medida, é inerente ao sentido dos direitos hu­
manos o fato de exigirem para si o status de direitos fundamentais
cuja observância se deve assegurar no âmbito de uma ordem jurídica
subsistente, seja ela nacional, internacional ou global. Mas se esses
direitos são confundidos até hoje com direitos morais, isso ocorre por­
que, não obstante sua pretensão de validade universal, foi só nas or­
dens jurídicas nacionais de Estados democráticos que eles puderam
assumir uma forma positiva inequívoca. Para além disso, eles só con­
tam com uma validação atenuada por parte do direito internacional e
ainda esperam pela institucionalização no âmbito da ordem cosmopo­
lita concebida apenas como algo que está por surgir.
Sobre (b): Se porém for falsa a primeira premissa, segundo a qual
os direitos humanos são direitos morais desde sua origem, fica sem
base o primeiro dos dois enunciados parciais — qual seja o enunciado
de que a imposição global dos direitos humanos seguiria uma lógica
moral e portanto conduziría a intervenções apenas disfarçadas em ações
policiais. E ao mesmo tempo abala-se o segundo enunciado, de que
um a política de direitos humanos intervencionista teria de degenerar
em uma “luta contra o mal”. Esse enunciado, de qualquer modo, suge­
re o falso pressuposto de que o direito internacional clássico, restrito a
guerras comedidas, seria suficiente para dar aos conflitos militares um
rum o “civilizado”. Mesmo que esse pressuposto fosse correto, seriam
muito mais as ações policiais de uma organização mundial — apta
para agir e democraticamente legitimada — que viriam a merecer o
nome de uma solução “civil” de conflitos internacionais, e não guerras
empreendidas dessa maneira, por mais comedidas que fossem. Pois o
estabelecimento de uma situação cosmopolita significa que as viola­
ções aos direitos humanos não são julgadas e punidas imediatamente
sob pontos de vista morais, mas sim perseguidas como ações criminosas
no âmbito de uma ordem jurídica estatal — e segundo procedimentos
jurídicos institucionalizados. É justamente a formalização jurídica da
condição natural entre os Estados que oferece defesa em face de uma
diferenciação e autonomização moral do direito e é ela que garante
aos réus, mesmo nos casos hoje relevantes de crimes de guerra e de

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 21 7


crimes contra a humanidade, total direito de defesa, ou seja, defesa
contra uma discriminação moral que se imponha sem mediações42.

O
Gostaria de desenvolver esse argumento de maneira metacrítica,
em controvérsia com as restrições de Carl Schmitt. Primeiramente,
preciso dedicar-me ao contexto dessas restrições, porque Schmitt as­
socia diversos planos da argumentação de uma maneira nem sempre
clara. A crítica a um direito cosmopolita que perpasse a soberania dos
Estados em particular ocupa Schmitt sobretudo em vista do conceito
discriminativo de guerra. Com isso, sua crítica parece assumir um foco
claro e juridicamente delimitado. Ela se volta reiteradamente contra a
penalização da guerra de ataque, firmada na Carta das Nações Unidas,
e contra a responsabilização de pessoas em particular por um tipo de
crime de guerra ainda desconhecido para o direito internacional clás­
sico, válido até a Primeira Guerra Mundial. No entanto, essa discussão
jurídica, inofensiva em si mesma, recebe de Schmitt uma carga de con­
siderações políticas e fundamentações metafísicas. Por isso, precisa­
mos em primeiro lugar desnudar a teoria de fundo subjacente a essa
discussão (1) e avançar até o cerne moral-crítico do argumento (2).
(1) À primeira vista, a argumentação jurídica almeja civilizar a
guerra pela via do direito internacional (a); ela se vincula a uma argu­
mentação política que parece preocupar-se apenas com a preservação
de uma ordem internacional já assegurada (b).
(a) Se Schmitt refuta a distinção entre guerra de ataque e guerra
de defesa, ele não o faz pela razão pragmática de que é difícil ope-
racionalizar tal distinção. Mais que isso, a razão jurídica reside em que
apenas um conceito de guerra moralmente neutro, que exclua a respon­
sabilidade pessoal por uma guerra penalizada, pode conciliar-se com
a soberania de sujeitos do direito internacional; pois o ius ad bellum,
isto é, o direito de começar uma guerra seja por que razão for, é cons­
titutivo da soberania de um Estado. Como bem demonstra seu escrito
decisivo sobre o assunto43, nesse plano da argumentação ainda não

42. Quanto à diferenciação entre ética, direito e moral, v. R. Forst, Kontexte der
Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1994. pp. 131-142.
43. Cf. C. Schmitt, 1994.

218 A INCLUSÃO DO OUTRO


importam a Schmitt as conseqüências desastrosas do universalismo
moral, mas sim a limitação da atividade bélica. Só mesmo à práxis da
não-discriminação da guerra cabe limitar as ações bélicas e prestar
defesa em face dos males de uma guerra total (a qual já havia sido
analisada por Carl Schmitt antes da Segunda Guerra Mundial, com
desejável clareza44).
Em tal medida, Schmitt apresenta a exigência de um retorno ao
status quo ante da guerra delimitada, pura e simplesmente como a al­
ternativa mais realista a uma pacificação cosmopolita da condição
natural existente entre os Estados; eliminar guerra, se comparado com
civilizar a guerra, é um objetivo muito amplo e, segundo parece, utó­
pico. Certamente há boas razões empíricas com as quais se pode pôr
em dúvida o “realismo” dessa sugestão. A mera remissão a um direito
internacional, nascido das guerras confessionais, e entendido como uma
das grandes conquistas do racionalismo ocidental, ainda não aponta
para nenhum caminho viável rum o à reconstrução do m undo clás-
sico-moderno do equilíbrio entre as potências. Pois em sua forma
clássica, é evidente que o direito internacional fracassou ante os fatos
das guerras totais deflagradas no século XX. Por trás dos descomedi­
mentos territoriais, técnicos e ideológicos da guerra, há forças propul­
soras muito vigorosas. As sanções e intervenções de uma comunidade
de povos organizada ainda podem domesticar essas forças melhor do
que um apelo (juridicamente inócuo) ao discernimento de governos
soberanos; pois com um regresso à ordem jurídica internacional clás­
sica, a liberdade plena de ação voltaria justamente às mãos dos agen­
tes jurídicos coletivos que precisariam alterar seu comportam ento
incivilizado. Essa fragilidade do argumento é um primeiro indício de
que a argumentação jurídica constitui apenas um a fachada por trás
da qual se ocultam restrições de um outro tipo.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a fim de salvaguardar a con­
sistência de uma argumentação que procedesse de maneira puram en­
te jurídica, Carl Schmitt lançou mão de isolar sob uma categoria pró­
pria os crimes de massa cometidos durante o nazismo; com isso, pre­
tendeu assegurar para a guerra ao menos uma aparência de neutra­
lidade moral. Em 1945, no parecer que emite para o réu Friedrich Flick,
julgado em Nürenberg, Carl Schmitt distingue de maneira muito cons­

44. Cf. C. Schmitt, 1963 e 1988.

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 219


ciente entre crimes de guerra e aquelas “atrocities” que, enquanto “de­
clarações características de certa mentalidade desumana”, superam a
capacidade de sofreamento do ser humano: “O comando de um supe­
rior não pode justificar ou desculpar atrocidades como essas”45. 0 sen­
tido meramente tático-processual dessa distinção, que Schmitt privi­
legia aqui como advogado, reaparece em textos de diários pessoais
redigidos poucos anos depois, com uma clareza brutal. Nesse “glos­
sário” evidencia-se que Schmitt pretendia ver descriminalizados não
apenas a guerra de agressão, mas também a ruptura civilizacional cons­
tituída pelo extermínio de judeus. Ele pergunta: “O que é um ‘crime
contra a humanidade’? Existem crimes contra o amor?” E duvida de que
se trate sequer nesse caso de uma situação jurídica, já que os “objetos
de defesa e ataque” desses crimes não podem ser circunscritos de for­
ma suficientemente precisa: “Genocídios, assassinatos de povos, um
conceito tocante; vivi um exemplo na própria carne: aniquilação do
funcionalismo público prussiano-germânico no ano de 1945”. Essa em­
baraçosa compreensão de genocídio leva Schmitt à seguinte conclu­
são: “‘Crime contra a humanidade’ é apenas a mais geral de todas as
cláusulas gerais destinadas à destruição do inimigo”. E em outro trecho
lê-se: “Há crimes contra e crimes a favor da humanidade. Os crimes
contra a humanidade são cometidos pelos alemães. Os crimes a favor
da humanidade têm por objeto os alemães”46.
Aqui se impõe evidentemente outro argumento. A imposição do
direito cosmopolita que tem por conseqüência um conceito de guerra
discriminativo deixa de ser concebida como reação incorreta ao desen­
volvimento que leva à guerra total, e passa a ser concebida como causa
desse desenvolvimento. A guerra total é a forma de expressão contem­
porânea da “guerra justa” na qual uma política de direitos humanos
intervencionista fatalmente terá que desembocar: “É decisivo, sobre­
tudo, que a justiça da guerra pertença a sua totalidade”47. Com isso, o
universalismo moral assume o papel do explanandum, e a argumenta­
ção desloca-se do plano jurídico para o plano moral-crítico. De início,
Schmitt parece ter recomendado o regresso ao direito internacional clás­
sico com o intuito de evitar a guerra total. Mas já não se sabe ao certo se

45. C. Schmitt, 1994, p. 19.


46. C. Schmitt, Glossarium (1947-1951), Berlin, 1992. pp. 113,264,146,282.
47. C. Schmitt, 1988, p. 1.

220 A INCLUSÃO DO OUTRO


ele via o descomedimento total da guerra como o mal maior, ou seja, o
caráter desumano da condução da guerra, ou se ele, muito mais que
isso, temia em primeira linha a desvalorização da guerra como tal. Em
todo caso, em um corolário escrito em 1938 sob o título O conceito de
político, Schmitt descreve a extensão totalitária da condução da guerra
a campos não-militares, de tal maneira que atribui à guerra total jus­
tamente o mérito de uma purificação dos povos: “O passo que conduz
para além do puramente militar traz não apenas uma extensão quanti­
tativa, mas também uma intensificação qualitativa. Com isso, [a guerra
total] não significa uma atenuação, mas sim uma intensificação da
inimicícia. Com a mera possibilidade de tal aumento da intensidade,
amigo’ e ‘inimigo’ tornam-se de novo conceitos políticos e libertam-se
da esfera de modos de dizer particulares e psicológicos, mesmo onde
seu caráter político esteja plenamente empalidecido”48.
(b) Contudo, se não é tanto a domesticação da guerra desenca-
minhada de modo totalitário que importa a esse opositor convicto do
pacificismo, podería tratar-se então de outra coisa: da manutenção de
uma ordem internacional em que guerras acontecem, e em que os con­
flitos podem ser resolvidos dessa maneira. A práxis da não-discrimi-
nação da guerra mantém intato um mecanismo de auto-afirmação
nacional ilimitado e ordenador. O mal evitável, então, não é a guerra
total, mas a decomposição de uma esfera do político fundada sobre a
divisão clássica entre política interna e externa. É isso que Schmitt fun­
damenta por meio de sua teoria do político. Segundo ela, a política
interna juridicamente pacificada precisa ser complementada por uma
política externa beligerante e licenciada no âmbito do direito interna­
cional, já que o Estado monopolizador do poder só pode manter o
direito e a ordem, opondo-se à força virulenta dos inimigos subversi­
vos de dentro do Estado, enquanto preservar e regenerar sua substân­
cia política no combate a inimigos externos. Essa substância deve re­
novar-se tão-somente no médium da prontidão nacional para m atar
e morrer, porque o que é político, segundo sua essência, refere-se à
“real possibilidade do assassínio físico”. “Política” é a capacidade e von­
tade de um povo de reconhecer o inimigo e de se afirmar contra “a
negação da própria existência” pela “diversidade do estrangeiro”49.

48. C. Schmitt, 1963, p. 110.


49. C. Schmitt, 1963, p. 27.

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 221


Nesse contexto, é pelo status de que gozam que tais considera­
ções torpes sobre a “essência do político” acabam sendo de nosso inte­
resse. Pois a carga vitalista do conceito de político é o pano de fundo
para a afirmação de que a força criativa do político precisa transfor­
mar-se em uma força destrutiva, tão logo ela se veja encerrada, entre
os lobos, na arena internacional “do poder conquistador”. A imposi­
ção global de direitos humanos e democracia, que tem por tarefa fo­
mentar a paz mundial, teria o efeito desintencional de extrapolar os
limites da guerra “comedida” e feita segundo o direito internacional.
Sem um ponto de escoamento que lhe desse livre vazão, a guerra teria
de inundar os campos vitais civis das sociedades modernas, já autô­
nomos, ou seja, acabaria por aniquilar a complexidade de sociedades
já diferenciadas e autonomizadas. Essa prevenção quanto às conse-
qüências catastróficas de um aniquilamento da guerra por meio de
um pacifismo jurídico explica-se por uma metafísica que pode se re­
portar — como característica de época, na melhor das hipóteses — à
estética da “tempestade de aço”, um pouco desgastada desde então.
(2) Certamente é possível extrair e especificar um ponto de vista
a partir dessa filosofia belicista da vida. Na concepção de Schmitt, é o
universalismo da moral da humanidade — conceitualizada por Kant
— que está por trás dessa “guerra contra a guerra”, que se fundamenta
ideologicamente e que confere ao combate militar entre “unidades
nacionais organizadas”, limitado temporal, social e objetivamente, o
status endêmico de uma guerra civil paramilitar e descomedida.
Tudo indica que Carl Schmitt, em face de intervenções feitas pelas
Nações Unidas para estabelecer ou manter a paz, não reagiria diferen­
temente do que fez Hans Magnus Enzensberger: “A retórica do univer­
salismo é específica do Ocidente. Os postulados aí estabelecidos devem
valer para todos sem exceção e sem diferença. O universalismo não
distingue proximidade e distância; é incondicionado e abstrato... Mas
como todas as nossas possibilidades de ação são finitas, aumenta sem­
pre mais o abismo entre anseio e realidade. Logo se ultrapassa o limite
e se chega à hipocrisia objetiva; aí então o universalismo se revela uma
armadilha moral”50. Portanto, são as falsas abstrações da moral da

50. Cf. H. M. Enzensberger, Aussichten a u f den Bürgerkrieg, Frankfurt am Main,


1993. p. 73s. (ed. bras.: Visões da guerra civil. In: Guerra civil. São Paulo, Cia. das Letras,
1995); v. ainda A. H onneth,“Universalismus ais moralische Falle?”, Merkur, n. 546, v. 47,

222 A INCLUSÃO DO OUTRO


humanidade que nos fazem mergulhar em auto-ilusão e nos desviam
para uma auto-exigência demasiada e hipocrítica. Enzensberger, tal
como Arnold Gehlen51, determina antropologicamente os limites so­
bre os quais se eleva uma moral desse tipo; e o faz em conceitos de
proximidade e distância espacial: um ente cunhado em madeira tão
torta só pode funcionar de forma moral em um campo próximo de si e
preenchível de maneira plástica.
Carl Schmitt, ao falar de hipocrisia, tem antes em mente a crítica
de Hegel a Kant. Ele orna sua condenável formulação “Humanidade,
bestialidade” com um comentário ambíguo, que em um primeiro m o­
mento parece poder vir de Horkheimer: “Dizemos ‘o cemitério m uni­
cipal central’ e calamos, com muito tato, sobre o abatedouro. Mas o
abate é algo óbvio, e seria desumano, bestial mesmo, pronunciar a pa­
lavra abate”52. O aforismo é ambíguo à medida que parece se voltar
inicialmente, por um viés crítico-ideológico, contra o efeito abstrativo
falso (porque transfigurador) de conceitos gerais platônicos com os
quais freqüentemente velamos o lado inverso de uma civilização de
vencedores, ou seja, o sofrimento das vítimas marginalizadas dessa
mesma civilização. Esse tipo de leitura, no entanto, exigiría justamen­
te o tipo de atenção igualitária e de compaixão universal que o univer­
salismo moral, ora combatido, trata de validar. O que o anti-huma-
nismo de Schmitt pretende validar (em conjunto com o Hegel de
Mussolini e de Lênin53) não é o gado de abate, mas o combate — a
mesa de abate dos povos, segundo Hegel, a “honra da guerra”, já que
mais adiante se afirma: “A humanidade não pode travar guerra al­

pp. 867-883, 1994. Enzensberger apóia-se sobre um a descrição altamente seletiva da


situação internacional, na qual deixa de mencionar a surpreendente expansão das for­
mas democráticas do Estado na América Latina, África e Europa Oriental nos últimos
vinte anos (cf. E. O. Czempiel, Weltpolitik im Umbruch, München, 1993. pp. 103ss.).
Além disso, ele põe às avessas a complexa relação entre a assimilação fundamentalista
de potenciais de conflito no interior do Estado, de um lado, as espoliações sociais e as
tradições liberais inexistentes, de outro, transformando-as, de maneira precipitada,
em constantes antropológicas. O conceito ampliado de paz, justamente ele, propõe
estratégias profiláticas e não-violentas, além de tornar conscientes restrições pragm á­
ticas das quais necessariamente decorrem intervenções humanitárias — como m os­
tram o exemplo da Somália e a situação totalmente diversa na antiga Iugoslávia. Sobre
o casuísmo de diversos tipos de intervenção, v. D. Senghaas, 1994, pp. 185ss.
51. A. Gehlen, Moral und Hypermoral Frankfurt am Main, 1969.
52. C. Schmitt, Glossarium (1947-1951), Berlin, 1991, p. 259.
53. Cf. C. Schmitt, 1991, p. 229.

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 223


gum a... O conceito de humanidade exclui o conceito de inimigo”54.
Para Carl Schmitt, portanto, é essa a ordem natural do que é político,
ou seja, a distinção supostamente inevitável entre amigo e inimigo, da
qual a moral da humanidade abstrai, de maneira errônea. Como ela
subsume relações “políticas” sob conceitos de “bem” e “mal”, ela faz do
oponente bélico “o monstro desumano que se deve não apenas recha­
çar, mas destruir em definitivo”55. E já que o conceito discriminativo
de guerra remonta ao universalismo dos direitos humanos, ele acaba
equivalendo à infectação do direito internacional pela moral, que ex­
plica a desumanidade cometida “em nome da humanidade” pelas guer­
ras e guerras civis modernas.
Mesmo sem levar em conta o contexto em que Carl Schmitt se
insere, a história da recepção desse argumento moral-crítico ficou
inapelavelmente condenada. Pois nele imbricam-se, de um lado, um
discernimento correto e, de outro, um erro fatal, alimentado pelo con­
ceito de amigo-inimigo concernente ao que é político. O verdadeiro
cerne da questão consiste em que uma moralização imediata do direi­
to e da política realmente faz romper as zonas de defesa que, por ra­
zões boas e mesmo morais, pretendemos ver garantidas para as pes­
soas do direito. É errônea, no entanto, a suposição de que só se pode-
ria evitar essa moralização caso se mantivesse a política internacional
isenta ou purificada do direito, ou o direito isento e purificado da moral.
Sob as premissas do Estado de direito e da democracia, as duas coisas
são falsas: a idéia do Estado de direito exige que, por meio do direito
legítimo, a substância coercitiva do Estado seja canalizada tanto para
fora quanto para dentro; e a legitimação democrática do direito deve
garantir que o direito esteja em sintonia com as proposições morais
fundamentais já reconhecidas. O direito cosmopolita é um a conse-
qüência da idéia do Estado de direito. Só com ele é que se constrói
uma simetria entre a ordenação jurídica do trânsito social e político,
para além e para aquém das fronteiras do Estado.
Carl Schmitt é elucidativamente incongruente quando insiste em
sustentar a assimetria entre um a condição jurídica pacifista nos assun­
tos interiores e um belicismo nos assuntos exteriores. Como ele tam ­
bém imagina a paz jurídica estatal interior como um a confrontação

54. C. Schmitt, 1963, pp. 54s.


55. C. Schmitt, 1963, p. 37.

224 A INCLUSÃO DO OUTRO


latente entre os órgãos estatais e os inimigos do Estado mantidos em
cheque por meios repressivos, reserva aos detentores do poder estatal
o direito de declarar representantes da oposição política como inimi­
gos da ordem interna do Estado — uma prática que, a propósito, dei­
xou marcas na República Federal da Alemanha56. De maneira diversa
do que se dá no Estado constitucional democrático, em que tribunais
independentes e cidadãos em sua totalidade (mobilizados até mesmo
através da desobediência civil, em casos extremos) decidem sobre ques­
tões delicadas envolvendo o comportamento anticonstitucional, Carl
Schmitt deixa nas mãos dos respectivos detentores do poder a decisão
sobre considerar criminosos os próprios oponentes políticos, como se
fossem seus oponentes em uma guerra civil. Pelo fato de os controles
jurídico-estatais se tornarem menos austeros nessa zona limítrofe das
relações intra-estatais, verifica-se aí justamente o efeito que Carl Schmitt
temia como conseqüência de uma pacificação das relações interestatais:
a intromissão de categorias morais em uma ação política juridicamente
assegurada, e a estilização dos inimigos como agentes do mal. Diante
disso, torna-se incoerente a exigência de que se preserve o trânsito in­
ternacional de regulamentos análogos ao direito estatal.
De fato, uma moralização não-mediatizada da política teria efei­
tos tão perniciosos no cenário internacional quanto na confrontação
do governo com seus inimigos internos. Se Carl Schmitt admite a
moralização neste último caso, isso se dá porque, ironicamente, ele
situa mal os danos aí envolvidos. Na verdade, porém, os danos decor­
rem exclusivamente, em ambos os casos, de uma codificação dupla­
mente errada da ação política ou estatal: ou seja, primeiro se moraliza
a ação (ela é julgada segundo critérios de “bem” e “mal”) e depois
criminalizada (ela é sentenciada segundo critérios de “legalidade” e
“ilegalidade”), sem que se tenham cumprido — e eis aí o ponto deci­
sivo que Schmitt elide — nem os pressupostos jurídicos de um a ins­
tância judicial que sentencie com imparcialidade, nem o estabeleci­
mento de um poder carcerário neutro. A política de direitos humanos
de uma organização mundial pode incidir em um fundamentalismo
dos direitos humanos; isso só ocorre, porém, quando ela— sob o m an­
to de uma pseudolegitimação jurídica — confere legitimação moral a

56. Cf. J. Habermas, Kleine Politische Schriften I-IV. Frankfurt am Main, 1981,
pp. 328-339.

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 225


intervenções que não passem do mero combate de um partido por
outro. Nesses casos, a organização mundial (ou a aliança que age em
seu nome) comete um “engodo”, porque faz passar por medida poli­
cial neutra e justificada por leis e sentenças penais cabíveis o que na
verdade é apenas um confronto militar entre partes beligerantes. “Se
constituem a origem única de sanções exigidas e não visam à imple­
mentação de procedimentos jurídicos em favor da imposição e apli­
cação (ou mesmo positivação) dos direitos humanos, mas apenas in­
terferem de maneira imediata sobre o esquema interpretativo com
que se determinam violações a esses mesmos direitos, é aí que os ape­
los moralmente justificados revelam-se na iminência de assumir tra­
ços fundamentalistas”57.
Além disso, Carl Schmitt pretende sustentar a asserção de que a
ordenação jurídica da política de expansão e exercício de poder para
além das fronteiras estatais, ou seja, a imposição internacional de di­
reitos humanos em um cenário dominado até hoje pela força militar,
resulta sempre e necessariamente em tal fundamentalismo dos direitos
humanos. Essa afirmação é falsa porque subjaz a ela a falsa premissa
de que os direitos humanos sejam de natureza moral, isto é, de que a
imposição dos direitos humanos significaria um a moralização. A face
problemática de uma ordenação moral das relações internacionais, já
mencionada, não consiste em que uma ação concebida até hoje como
“política” deva ajustar-se de agora em diante a categorias jurídicas. Pois,
diferentemente do que faz a moral, o código jurídico não exige de modo
algum uma valoração moral imediata segundo critérios de “bom” ou
“mau”. Klaus Günther esclarece o ponto central: “Excluir uma inter­
pretação política (no sentido de Carl Schmitt) do comportamento que
contraria os direitos humanos não pode implicar que uma intepretação
imediatamente moral venha ocupar o lugar deixado por ela”58. Não se
podem confundir direitos humanos com direitos morais.
Contudo, a diferença entre direito e moral, à qual Günther de­
dica especial atenção, não significa de modo algum que o direito posi­
tivo não tenha um teor moral. No procedimento democrático da le­

57. Klaus Günther, “Kampf gegen das Bõse? Wider die ethische Aufrüstung der
Kriminalpolitik”, Kritische Justiz, n. 27, pp. 135-157,1994 (acréscimos entre parênteses
são meus).
58. K. Günther, 1994, p. 144 (acréscimo meu, entre parênteses).

226 A INCLUSÃO DO OUTRO


gislação política, os argumentos morais também desempenham pa­
pel na fundamentação do estabelecimento de normas e, com isso, no
próprio direito. Como já dissera Kant, o direito e a moral distinguem-
se por qualidades formais de legalidade. Com isso, uma parte do com­
portam ento passível de julgamento moral (sentimentos morais e m o­
tivos, por exemplo) ficam eximidos de uma regulamentação jurídica.
O código jurídico de julgamentos e sanções das instâncias responsá­
veis pela defesa dos atingidos, porém, vincula-se sobretudo a condi­
ções muito claras de procedimento jurídico estatal, intersubjetiva-
mente testáveis. Ao passo que a pessoa moral fica como que exposta à
instância interna do julgamento da consciência, a pessoa do direito
permanece envolvida no manto dos direitos à liberdade— moralmente
bem fundamentados. A resposta correta ao perigo de uma moralização
não mediatizada da política de expansão e exercício do poder, por­
tanto, não é isentar a política de uma dimensão moral, mas sim trans­
formar a moral, por via democrática, em um sistema positivado de
direitos, dotado de procedimentos jurídicos para sua aplicação e im ­
posição”59. Não se pode evitar o fundamentalismo dos direitos hum a­
nos por meio da renúncia a uma política de direitos humanos, mas
apenas por meio da transformação cosmopolita da condição natural
entre os Estados em um a condição jurídica entre eles.

59. K. Günther, 1994. p. 144.

A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 227


Tf

A luta por reconhecimento


no Estado democrático
de direito

As constituições modernas devem-se a uma idéia advinda


do direito racional, segundo a qual os cidadãos, por decisão
própria, se ligam a uma comunidade de jurisconsortes livres e
iguais. A constituição faz valer exatamente os direitos que os
cidadãos precisam reconhecer mutuamente, caso queiram re­
gular de maneira legítima seu convívio com os meios do di­
reito positivo. Aí já estão pressupostos os conceitos do direito
subjetivo e da pessoa do direito enquanto indivíduo portador
de direitos. Embora o direito moderno fundamente relações
de reconhecimento intersubjetivo sancionadas por via esta­
tal, os direitos que daí decorrem asseguram a integridade dos
respectivos sujeitos em particular, potencialmente violável.
Em última instância, trata-se da defesa dessas pessoas indi­
viduais do direito, mesmo quando a integridade do indiví­
duo — seja no direito, seja na moral — dependa da estrutura
intacta das relações de reconhecimento mútuo. Será que um a
teoria dos direitos de orientação tão individualista pode dar
conta de lutas por reconhecimento nas quais parece tratar-se
sobretudo da articulação e afirmação de identidades coletivas?*

* Tradução: Paulo Astor Soethe.

229
Uma constituição pode ser entendida como projeto histórico que
os cidadãos procuram cumprir a cada geração. No Estado democrá­
tico de direito, o exercício do poder político está duplamente codifi­
cado: é preciso que se possam entender tanto o processamento insti­
tucionalizado dos problemas que se apresentam quanto a mediação
dos respectivos interesses, regrada segundo procedimentos claros,
como efetivação de um sistema de direitos1. Mas nas arenas políticas,
quem se defronta são agentes coletivos, que discutem sobre objetivos
coletivos e acerca da distribuição dos bens coletivos. Apenas diante de
um tribunal e no âmbito de um discurso jurídico é que se trata ime­
diatamente de direitos individuais cobráveis através de ação judicial.
Quanto ao direito vigente, também ele precisa ser interpretado de
maneira diversa em face de novas necessidades e situações de inte­
resse. Essa disputa acerca da interpretação e imposição de reivindica­
ções historicamente irresolvidas é uma luta por direitos legítimos, nos
quais estão implicados agentes coletivos que se defendem contra a
desconsideração de sua dignidade. Nessa “luta por reconhecimento”,
segundo demonstrou A. Honneth, articulam-se experiências coletivas
de integridade ferida12. Esses fenômenos são conciliáveis com uma teoria
dos direitos de orientação individualista?
As conquistas políticas do liberalismo e da social-democracia,
decorrentes do movimento emancipatório burguês e do movimento
de trabalhadores europeu, sugerem um a resposta afirmativa a essa
pergunta. Ambos tiveram por objetivo suplantar a privação de direi­
tos de grupos desprivilegiados e, com isso, a fragmentação da socie­
dade em classes sociais; contudo, a luta social contra a opressão de
grupos que se viram privados de chances iguais de vida no meio social
concretizou-se sob a forma da luta pela universalização socioestatal
dos direitos do cidadão, empreendida tão logo o reformismo socioli-
beral viu-se capaz de agir. Na verdade, após a bancarrota do socia­
lismo de Estado restou apenas essa perspectiva: por meio da prom o­
ção do status do trabalho assalariado dependente, alcançado com o
acréscimo de direitos de compartilhamento e participação política,
cabe à massa da população a chance de viver com expectativas bem
fundadas de contar com segurança, justiça social e bem-estar. As in­

1. Cf. J. Habermas, Faktizitàt und Geltung, Frankfurt am Main, 1992. cap. III.
2. A. Honneth, K am pfum Atterkennung, Frankfurt am Main, 1992.

230 A INCLUSÃO DO OUTRO


justas condições sociais de vida da sociedade capitalista devem ser
compensadas com a distribuição mais justa dos bens coletivos. Esse
fim é plenamente conciliável com a teoria do direito, porque os “bens
fundamentais” (no sentido proposto por Rawls) ou são distribuídos
individualmente (tal como acontece com dinheiro, tempo livre ou
prestações de serviços), ou são utilizados individualmente (tal como
se dá com as infra-estruturas do sistema viário, de saúde e educação),
e portanto se pode preservá-los sob a forma de reivindicações indi­
viduais de benefícios.
Em um primeiro momento, no entanto, as coisas parecem ser di­
ferentes quando se trata de reivindicar reconhecimento para identida­
des coletivas ou igualdade de direitos para formas de vida culturais. Fe­
ministas, minorias em sociedades multiculturais, povos que anseiam
por independência nacional ou regiões colonizadas no passado e que
hoje reclamam igualdade no cenário internacional, todos esses agentes
sociais lutam hoje em favor de reivindicações como as que acabei de
mencionar. O reconhecimento de formas de vida e tradições culturais
marginalizadas — ora no contexto de uma cultura majoritária, ora na
sociedade mundial dominada por forças eurocêntricas ou do Atlântico
Norte — não exige garantias de status ou de sobrevivência? Não exige
ao menos uma espécie de direitos coletivos que faz ir pelos ares a auto-
compreensão do Estado democrático de direito que herdamos, molda­
da segundo direitos subjetivos, e portanto de caráter “liberal”?
Diante dessa pergunta, Charles Taylor dá um resposta diversa,
que permite à discussão dar um grande passo adiante3. Como demons­
tram os comentários publicados no mesmo volume, suas idéias origi­
nais certamente suscitam crítica. No ponto decisivo, Taylor continua
sendo ambíguo. Ele diferencia duas formas de compreensão do Estado
democrático de direito, que denomina liberalismo 1 e liberalismo 2. A
denominação sugere que a segunda forma de compreensão (favoreci­
da por Taylor) vem simplesmente corrigir um entendimento indevi­
do das proposições de base do liberalismo. Contudo, ao se observar
atentamente a leitura feita por Taylor, percebe-se que ela ataca esses
próprios princípios e que põe em questão o cerne individualista da
compreensão moderna de liberdade.

3. Cf. Ch. Taylor et alii, Multikulturalismus unddie Politik der Anerkennung, Frank­
furt am Main, 1993, pp. 13ss.

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 231


A “política do reconhecimento” tayloriana

É consensual a declaração de Amy Gutmann: “O reconhecimen­


to público pleno conta com duas formas de respeito: 1) o respeito pela
identidade inconfundível de cada indivíduo, independentemente de
sexo, raça ou procedência étnica; e 2) o respeito pelas formas de ação,
práticas e visões peculiares de m undo que gozam de prestígio junto aos
integrantes de grupos desprivilegiados, ou que estão intimamente li­
gados a essas pessoas, sendo que em um país como os Estados Unidos
tanto mulheres pertencem a tais grupos desprivilegiados, quanto ame­
ricanos de origem asiática, afro-americanos, americanos de origem
indígena e um grande número de outros grupos”4. Evidentemente, o
mesmo vale para trabalhadores estrangeiros e outros estrangeiros em
geral residentes na República Federal da Alemanha, vale para croatas
na Sérvia, russos na Ucrânia, curdos na Turquia, vale para deficientes,
homossexuais etc. Essa exigência não visa em primeira linha ao igua-
lamento das condições sociais de vida, mas sim à defesa da integridade
de formas de vida e tradições com os quais os membros de grupos
discriminados possam indentificar-se. Normalmente ocorre que o não-
reconhecimento cultural coincide com condições rudes de demérito
social, de modo que as duas coisas se fortalecem de maneira cumula­
tiva. Polêmico é definir se a exigência 2 resulta da exigência 1 — ou
seja, se ela resulta do princípio de que deve haver igual respeito por
cada indivíduo em particular — ou se essas duas exigências têm mes­
mo de colidir, ao menos em alguns casos.
Taylor parte de que o asseguramento de identidades coletivas passa
a concorrer com o direito a liberdades subjetivas iguais — com o di­
reito hum ano único e original, portanto, segundo Kant — , de modo
que no caso de um a colisão entre ambos é preciso decidir sobre a pre­
cedência de um ou de outro. A reflexão a seguir depõe em favor disso:
já que a exigência 2 exige a consideração de particularidades das quais
a exigência 1 parece abstrair, o princípio de tratamento eqüitativo deve
alcançar validação nas políticas correntes — em uma política de respei­
to por todas as diferenças, por um lado, e em uma política de univer­

4. Idem, ibidem, p. 125.

232 A INCLUSÃO DO OUTRO


salização de direitos subjetivos, por outro. Uma política deve com ­
pensar as desvantagens do universalismo uniformizante que a outra
ocasiona. Taylor esmiúça essa oposição — construída sem razão plena,
como procurei demonstrar — segundo os conceitos de bom e justo,
advindos da teoria moral. Liberais da grandeza de Rawls ou Dworkin
propugnam por uma ordem jurídica eticamente neutra que deve as­
segurar chances iguais a todos, de modo que cada um possa orientar-
se por uma concepção própria do que seja bom. Em face disso, comu-
nitaristas como Taylor e Walzer contestam que haja neutralidade ética
no direito e permitem-se, portanto, esperar também do Estado de di­
reito a fomentação ativa de determinadas concepções do bem viver,
caso isso se faça necessário.
Taylor refere-se ao exemplo canadense da minoria francófona que
constitui maioria na província do Québec. Essa população reclama pa­
ra o Québec o direito de formar no conjunto do Estado uma “socieda­
de de natureza própria”. Pretende assegurar a integridade de sua for­
ma de vida por oposição à cultura majoritária anglo-saxã, entre ou­
tras coisas mediante regulamentos que proíbem à população francó­
fona e a imigrantes matricular os filhos em escolas inglesas, que pre-
ceituam o francês como língua de comunicação para empresas com
mais de 50 empregados e que prescrevem o francês como língua ofi­
cial. Uma teoria dos direitos do primeiro tipo fecha-se a objetivos co­
letivos dessa natureza: “Uma sociedade com fins coletivos, como é o
caso do Québec, contraria esse modelo. (...) De acordo com esse mode­
lo, uma distinção importante estaria sendo perigosamente ignorada,
caso a possibilidade de fazer propaganda em qualquer língua, por exem­
plo, passasse a ser considerada um direito fundamental. Trata-se m ui­
to mais de distinguir entre as liberdades elementares — que jamais se
podem restringir e que precisam portanto de alicerces sólidos — e os
direitos de precedência e privilégios, também importantes, mas que
— por razões políticas, embora só quando muito consistentes — po­
dem sofrer refutações ou limitações”5. Taylor sugere um modelo al­
ternativo que sob determinadas condições admite haver garantias de
status restritivas aos direitos fundamentais, quando isso se dá em favor
da sobrevivência de formas de vida culturais, e que permite haver polí­
ticas “ativamente empenhadas em gerar integrantes desses grupos,

5. Idem, ibidem, pp. 51-53.

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 233


desde que dedicadas, por exemplo, a que gerações futuras também se
identifiquem como sendo francófonas. Não se pode afirmar que uma
política como essa esteja preocupada apenas com criar determinada
possibilidade para uma população já existente”6.
Em primeiro lugar, é preciso observar que Taylor torna plausível
sua tese da inconciliabilidade ao apresentar sua teoria dos direitos sob
um enfoque seletivo de leitura ligado ao liberalismo 1. Além disso, ele
interpreta seu exemplo canadense de maneira pouco rigorosa; e é pouco
rigorosa, também, a referência jurídica da questão. Antes de me dedi­
car a esses dois problemas, gostaria de demonstrar que uma teoria dos
direitos, se entendida de forma correta, jamais fecha os olhos para
as diferenças culturais.
Com liberalismo 1, Taylor designa uma teoria segundo a qual se
garantem liberdades de ação subjetivas iguais para todos os juriscon-
sortes, sob a forma de direitos fundamentais; em casos controversos
os tribunais decidem que direitos cabem a quem; assim, o princípio
do direito igual para todos encontra validação tão-somente sob a for­
ma de uma autonomia juridicamente apoiada, à disposição do uso
de qualquer um que pretenda realizar seu projeto de vida pessoal.
Essa interpretação do sistema dos direitos continua sendo paternalis­
ta, porque corta pela metade o conceito de autonomia. Ela não leva
em consideração que os destinatários do direito só podem ganhar
autonomia (em sentido kantiano) à medida que eles mesmos pos­
sam compreender-se como autores das leis às quais eles mesmos estão
submetidos enquanto sujeitos privados do direito. O liberalismo 1
ignora a eqüiprocedência das autonomias privada e pública. Não se
trata aí apenas de uma complementação que permaneça externa à
autonomia privada, mas sim de uma concatenação interna, ou seja,
conceitualmente necessária. Pois os sujeitos privados do direito não
poderão sequer desfrutar das mesmas liberdades subjetivas enquan­
to não chegarem no exercício conjunto de sua autonom ia como cida­
dãos do Estado, a ter clareza quanto aos interesses e parâmetros auto­
rizados, e enquanto não chegarem a um acordo acerca das visões rele­
vantes segundo as quais se deve tratar como igual o que for igual e
desigual o que for desigual.

6. Idem, ibidem, p. 52.

234 A INCLUSÃO DO OUTRO


Quando tom arm os a sério essa concatenação interna entre o
Estado de direito e a democracia, porém, ficará claro que o sistema
dos direitos não fecha os olhos nem para as condições de vida sociais
desiguais, nem muito menos para as diferenças culturais. A “acroma-
topia” do enfoque seletivo de leitura desaparece desde que atribuamos
aos portadores dos direitos subjetivos uma identidade concebida de
maneira intersubjetiva. Pessoas, inclusive pessoas do direito, só são
individualizadas por meio da coletivização em sociedade7. Sob essa
premissa, uma teoria dos direitos entendida de maneira correta vem
exigir exatamente a política de reconhecimento que preserva a inte­
gridade do indivíduo, inclusive nos contextos vitais que conformam
sua identidade. Para isso não é preciso um modelo oposto que corrija
o viés individualista do sistema de direitos sob outros pontos de vista
normativos; é preciso apenas que ocorra a realização coerente desse
viés. E sem os movimentos sociais e sem lutas políticas, vale dizer, tal
realização teria poucas chances de acontecer.
Gostaria de ilustrar isso com base na história do feminismo, que,
sob forte oposição, precisou empreender vários assaltos até fazer valer
seus objetivos legais e políticos. Assim como o desenvolvimento do di­
reito nas sociedades ocidentais em geral, as políticas feministas pela
igualdade de direitos também têm seguido um modelo, nestes últimos
cem anos, que se pode descrever como o de uma dialética entre as igual­
dades jurídica e factual. Competências jurídicas iguais criam espaço
para liberdades de ação que se podem utilizar diferenciadamente e que
portanto não fomentam a igualdade factual das situações de vida ou
das posições de poder. É bem verdade que se devem cumprir certos
pressupostos factuais para que competências jurídicas sob condições
de igualdade sejam distribuídas com eqüidade, caso se deseje evitar
que o sentido normativo da igualdade de direitos se inverta por com­
pleto. No entanto, uma equiparação de situações de vida e posições de
poder factuais pretendida sob um ponto de vista como esse não pode
resultar em intervenções padrotiizadoras, a ponto de os pretensos be­
neficiários verem-se limitados em sua liberdade de conformar auto-
nomamente a própria vida. Enquanto se restringir o olhar sobre o asse-

7. Cf. J. Habermas, “Individuierung durch Vergesellschaftung”. In: Nachmeta-


physisches Denken. Frankfurt am Main, 1988, pp. 187-241 [ed. br.: Pensamento pós-
metafísico, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990).

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 235


guramento da autonomia privada, e enquanto isso obscurecer a con-
catenação interna entre os direitos subjetivos das pessoas em particular
e a autonomia pública dos cidadãos do Estado envolvidos no estabe­
lecimento dos direitos, então a política concernente ao direito oscilará,
desamparada, entre os pólos de dois paradigmas jurídicos: um liberal,
em sentido lockiano, e outro socioestatal, igualmente míope. O mes­
mo ocorre com a igualdade de tratamento entre homens e mulheres8.
Inicialmente, a política liberal tencionou desacoplar conquista de
status e identidade de gênero, bem como garantir às mulheres uma
igualdade de chances na concorrência por postos de trabalho, prestí­
gio social, nível de educação formal, poder político etc. A igualdade
formal parcialmente alcançada, no entanto, só fez evidenciar a desi­
gualdade de tratamento factual a que as mulheres estavam submeti­
das. A política socioestatal, sobretudo no âmbito do direito social, tra­
balhista e de família, reagiu a isso com regulamentações especiais, rela­
tivas a gravidez ou maternidade, ou então a encargos sociais em casos
de divórcio. Nesse ínterim, não apenas as exigências liberais irresolvidas,
mas também as conseqüências ambivalentes de programas socioestatais
implementados com êxito tornaram-se objeto da crítica feminista —
por exemplo, os riscos decorrentes do trabalho, que cresceram por causa
das compensações sociais acima mencionadas, a presença excessiva de
mulheres nas camadas de remuneração mais baixas, o problemático
“bem-estar da criança”, a crescente “feminização” da pobreza de modo
gera] etc. De um ponto de vista jurídico, uma razão estrutural para essa
discriminação criada por via reflexiva consiste nas classificações sobre-
generalizantes que se aplicam a situações lesantes e pessoas lesadas.
Pois as classificações “erradas” levam a intervenções no modo de vida
em questão, que o “normalizam” e que permitem converter as almeja­
das compensações de perdas em novas discriminações, ou seja, per­
mitem converter garantia de liberdade em privação de liberdade. Em
áreas do direito feminista, o paternalismo socioestatal assume um sen­
tido literal, já que o poder legislativo e a jurisdição se orientam confor­
me modelos tradicionais de interpretação, o que só corrobora estereó­
tipos sobre a identidade de gênero ora vigentes.
A classificação dos papéis sexuais e das diferenças dependentes
do gênero diz respeito a camadas elementares da autocompreensão

8. Cf. D. L. Rhode, Justice and Gender, Cambridge, Mass., 1989. Parte Um.

236 A INCLUSÃO DO OUTRO


cultural da sociedade. Só agora o feminismo radical toma consciên­
cia do caráter dessa autocompreensão, que se revela falível, profun­
damente questionável e carente de revisão. Ele insiste, e com razão,
em que se devem esclarecer junto à opinião pública de caráter políti­
co, ou seja, em um debate público acerca da interpretação adequada
das carências, os enfoques sob os quais as diferenças entre experiên­
cias e situações de vida de determinados grupos de homens e m ulhe­
res se tornam significativos para um uso das liberdades de ação em
igualdade de chances9. Por isso é possível, com base no exemplo des­
sa luta pela igualdade das mulheres, demonstrar de forma especial­
mente clara a imprescindível transformação da compreensão para­
digmática do direito. Em lugar de um a disputa sobre a melhor forma
de assegurar a autonomia das pessoas do direito — ora por meio das
liberdades subjetivas em prol da concorrência das pessoas em parti­
cular, ora mediante reivindicações de benefícios garantidas para clien­
tes de burocracias de Estados de bem-estar social — , o que se apre­
senta é uma concepção procedimental do direito, segundo a qual o pro­
cesso democrático pode assegurar a um só tempo a autonomia privada
e a pública: os direitos subjetivos, cuja função é garantir às mulheres
uma organização particular e autônom a da própria vida, não podem
ser formulados de maneira adequada sem que antes os próprios atin­
gidos possam articular e fundamentar, em discussões públicas, os as­
pectos relevantes para o tratam ento igualitário ou desigual de casos
típicos. É apenas pari passu com a ativação de sua autonom ia en­
quanto cidadãos do Estado que se pode assegurar, a cidadãos de di­
reitos iguais, sua autonom ia privada.
Uma leitura “liberal” do sistema de direitos que ignore essa rela­
ção não tem saída senão entender erroneamente o universalismo dos
direitos fundamentais enquanto nivelamento abstrato de diferenças, e
de diferenças tanto culturais quanto sociais. Caso se queira tornar o
sistema de direitos efetivo por via democrática, é preciso que se consi­
derem as diferenças com uma sensibilidade sempre maior para o con­
texto. Ontem como hoje, a universalização dos direitos é o motor de
uma diferenciação progressiva do sistema de direitos, sistema que logra
manter segura a integridade dos sujeitos jurídicos, mas não sem um

9. Cf. N. Fraser, “Struggle over needs”. In: Unruly Practices, Oxford, 1989.
pp. 144-160.

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 237


tratamento rigidamente igualitário (e monitorado pelos próprios cida­
dãos) dos contextos de vida de cada um, os quais originam sua própria
identidade individual. Caso se corrija a forma seletiva com que teoria
dos direitos faz sua leitura da realidade, e caso se propicie com isso tal
compreensão democrática da efetivação dos direitos fundamentais,
então nem se precisará contrapor ao “liberalismo 1 reduzido” um m o­
delo que introduza direitos coletivos estranhos ao próprio sistema.

O
Lutas por reconhecimento —
os fenômenos e os planos de sua análise

Feminismo, multiculturalismo, nacionalismo e a luta contra a


herança eurocêntrica do colonialismo, todos esses são fenômenos apa­
rentados entre si, mas que não cabe confundir. Seu parentesco consis­
te em que as mulheres, as minorias étnicas e culturais, as nações e
culturas, todas se defendem da opressão, marginalização e desprezo,
lutando, assim, pelo reconhecimento de identidades coletivas, seja no
contexto de uma cultura majoritária, seja em meio à comunidade dos
povos. São todos eles movimentos de emancipação cujos objetivos
políticos coletivos se definem culturalmente, em primeira linha, ainda
que as dependências políticas e desigualdades sociais e econômicas
também estejam sempre em jogo.
(a) Embora o feminismo não seja a causa de um a minoria, ele se
volta contra uma cultura dominante que interpreta a relação dos gê­
neros de uma maneira assimétrica e desfavorável à igualdade de direi­
tos. A diferenciação de situações de vida e experiências peculiares ao
gênero não recebe consideração adequada, nem jurídica nem infor­
malmente; tanto a autocompreensão cultural das mulheres quanto a
contribuição que elas deram à cultura comum estão igualmente dis­
tantes de contar com o devido reconhecimento; e com as definições
vigentes, as carências femininas mal podem ser articuladas de forma
satisfatória. Assim, a luta política por reconhecimento tem início como
luta pela interpretação de interesses e realizações peculiares aos dife­
rentes gêneros; à medida que logra êxito, essa luta modifica a identi­
dade coletiva das mulheres, e com ela a relação entre os gêneros, afe­
tando assim, de forma imediata, a autocompreensão dos homens. A

238 A INCLUSÃO DO OUTRO


escala de valores da sociedade como um todo entra em discussão; as
conseqüências dessa problematização chegam até as áreas centrais
da vida privada e atingem tam bém os limites estabelecidos entre as
esferas pública e privada10.
(b) A situação é diferente quando se trata da luta de minorias
étnicas e culturais pelo reconhecimento de sua identidade coletiva.
Como esses movimentos de emancipação também visam à superação
de uma cisão ilegítima da sociedade, a autocompreensão da cultura
majoritária pode não sair ilesa. De sua perspectiva, no entanto, a inter­
pretação modificada das realizações e interesses dos outros não precisa
modificar tanto seu papel como a reinterpretação da relação entre os
gêneros modificou o papel do homem.
Movimentos de emancipação em sociedades multiculturais não
constituem um fenômeno unitário. Eles apresentam desafios diferen­
tes, de acordo com a situação; as minorias endógenas podem tornar-
se conscientes de sua identidade ou podem surgir novas minorias por
causa da imigração; pode ser que a tarefa caiba a Estados que se auto-
compreendem como Estados de imigração, em face de sua história e
cultura política, ou então ela pode caber a Estados cuja autocompreen­
são nacional tenha primeiro que se adaptar à integração de culturas
estrangeiras. Quanto mais profundas forem as diferenças religiosas,
raciais ou étnicas, ou quanto maiores forem os assincronismos his-
tórico-culturais a serem superados, tanto maior será o desafio; e tanto
mais ele será doloroso, quanto mais as tendências de auto-afirmação
assumirem um caráter fundamentalista-delimitador, ora porque a
minoria em luta por reconhecimento se desencaminha para regres­
sões, por causa de experiências anteriores de impotência, ora porque
ela precise primeiro despertar a consciência em prol da articulação
de uma nova identidade nacional, gerada por uma construção atra­
vés da mobilização de massa.
(c) Cabe distinguir aí outro tipo de nacionalismo: o das popu­
lações que, por compartilharem um destino histórico comum, enten­
dem-se como grupos étnico e lingüisticamente homogêneos e dese­
jam m anter sua identidade não apenas enquanto comunidades de
ascendência comum, mas sim sob a forma de um povo organizado
como Estado e politicamente capaz de agir. O modelo de movimentos

10. Cf. S. Benhabib, Situating the Self. Oxford, 1992. Parte II.

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 239


nacionais quase sempre foi o Estado nacional constituído por via re­
publicana, tal como surgiu da Revolução Francesa. A Itália e a Ale­
manha, em comparação com os Estados nacionais da primeira gera­
ção, foram chamadas “nações tardias”. Outro contexto foi dado pelo
período de descolonização após a Segunda Guerra Mundial. Outra
constelação, por sua vez, é dada pela decadência de impérios como o
Reino Otomano, a Áustria-Hungria ou a União Soviética. Disso se
distingue a situação de minorias nacionais que nasceram em virtude
da formação de Estados nacionais, como é o caso de bascos, curdos e
irlandeses do norte. Um caso especial é a fundação do Estado de Israel,
decorrente de um movimento nacional-religioso e dos horrores de
Auschwitz, na região da Palestina, inicialmente de mandato inglês e
reivindicada por árabes.
(d) Eurocentrismo e predomínio da cultura ocidental, afinal, são
termos essenciais para um a luta por reconhecimento em nível inter­
nacional. Mais recentemente, a Guerra do Golfo tornou consciente
essa dimensão: à sombra de uma história colonial ainda presente, a
intervenção dos Aliados foi vista por massas religiosamente mobili­
zadas e também por intelectuais secularizados como abuso da identi­
dade e autonomia do m undo arábico-islâmico. Os rastros de reconhe­
cimento fracassado marcam até hoje as relações históricas entre Oci­
dente e Oriente, e tanto mais o relacionamento do Primeiro Mundo
com o Terceiro, como antes era chamado.
Mesmo essa classificação ligeira dos fenômenos permite reconhe­
cer que se trata, na controvérsia constitucional do governo canadense
com o Québec, de um caso intermediário entre (b) e (c). Sob o limiar
separatista da fundação de um Estado próprio, a minoria francófona
luta claramente por direitos que sem dúvida lhe caberiam caso ela se
declarasse uma nação estatal independente — assim como fizeram
recentemente a Croácia, a Eslovênia ou a Eslováquia, os Estados dos
Bálcãs ou a Geórgia. Ela, no entanto, almeja um “Estado dentro do
Estado”, condição para a qual se oferecem construções federalistas den­
tro de um espectro amplo, que vai de regulamentações federativas até
uma tênue aliança entre Estados. No Canadá, a descentralização de
forças de soberania estatal alia-se à questão da autonomia cultural para
uma minoria que pretende, na própria casa, tornar-se maioria relati­
va. Nessa mudança de coloração da cultura majoritária, por sua vez,
surgiríam outras novas minorias.

240 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
Ao lado dos fenômenos descritos de (a) a (d), ainda é preciso
diferençar e autonomizar diversos planos de sua análise. As conside­
rações de Taylor concernem ao menos a três discursos inflamados por
esses fenômenos.
(e) No debate sobre political correctness, esses fenômenos ocasio­
nam em primeiro lugar um auto-entendimento entre os intelectuais
norte-americanos sobre o status da modernidade11. Nenhuma das duas
partes em conflito gostaria por si mesma de levar adiante a m oderni­
dade enquanto projeto inabdicável1112. O que para os “radicais” signifi­
ca um passo encorajador rumo à pós-modernidade e à remoção de
figuras de pensamento totalizadoras configura para os “tradicionalis­
tas” um sinal de uma crise que só pode ser superada por um persistente
regresso às tradições clássicas do Ocidente. Podemos deixar esse de­
bate de lado, já que ele contribui com muito pouco para a análise das
lutas por reconhecimento no Estado democrático de direito e pratica­
mente com nada para a solução política dessas lutas13.
(f) Num outro plano situam-se os discursos filosóficos em sen­
tido estrito, que partem dos fenômenos acima mencionados para des­
crever problemas de ordem geral. Os fenômenos prestam-se bem à
ilustração de dificuldades do acordo m útuo intercultural; eles esclare­
cem a relação entre moral e eticidade ou uma vinculação interna entre
significação e validação, e realimentam a velha questão sobre poder­
mos transcender o contexto de nossa respectiva língua e cultura ou,
ao contrário, todos os padrões de racionalidade estarem atrelados a

11. Cf. P. Berman (org.), DebatingP. C., New York, 1992; cf. aí tam bém J. Searle,
“Storm over the University”, pp. 85-123.
12. Cf. J. Habermas, O discurso filosófico da modernidade, São Paulo, Martins
Fontes, 2000.
13. A. G utm ann manifesta-se sobre o método de desmascaramento como a se­
guir: “Em geral, conduz-se essa argumentação abreviada em favor de grupos sub-re-
presentados na universidade e depreciados na sociedade; é difícil divisar, no entanto,
de que maneira ele pode ser de alguma serventia para quem quer que seja. Tanto do
ponto de vista lógico quanto do ponto de vista prático, ele mina seu próprio funda­
mento. De acordo com sua lógica interna, a tese desconstrutivista de que parâmetros
intelectuais nada mais são senão mascaramentos de anseios por poder conduz a que
tam bém nela se espelhe um anseio de poder, qual seja o dos próprios desconstrutivistas.
Mas se as pessoas de fato só têm em mente o poder político, por que é que elas se
dedicam a questões intelectuais que certamente não são o caminho mais rápido e mais
seguro para alcançá-lo, e nem mesmo o caminho mais cômodo?” Ch. Taylor et alii,
Multikulturalismus und die Politik der Anerkennung, Frankfurt am Main, 1993. p. 139.

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 241


determinadas imagens de m undo e determinadas tradições. As esma­
gadoras evidências da fragmentação de sociedades multiculturais e da
confusão lingüística babilônica em meio a uma sociedade mundial
mais que complexa parecem compelir-nos a concepções holísticas de
linguagem e a concepções contextualísticas de imagens de m undo que
soam céticas em face de tantas reivindicações universalistas, sejam elas
de natureza cognitiva ou normativa. O debate sobre a realidade, rami­
ficado e aberto até há pouco tempo, por certo também tem conse-
qüências para os conceitos de bom e justo com os quais operamos ao
investigar as condições de uma “política do reconhecimento”. Mas a
sugestão de Taylor, em si mesma, remete-se a outra coisa; ela está
embasada no plano de referências do direito e da política.
(g) Com isso, a questão sobre o “direito” ou os “direitos” de m ino­
rias ofendidas e maltratadas ganha um sentido jurídico. Decisões polí­
ticas servem-se da forma de regulamentação do direito positivo para
tornarem-se efetivos em sociedades complexas. Ante o médium do di­
reito, porém, deparamos uma estrutura artificial com a qual se relacio­
nam certas decisões normativas prévias. O direito moderno é formal
porque se embasa na premissa de que tudo o que não seja explicita­
mente proibido é permitido. Ele é individualista porque faz da pessoa
em particular o portador de direitos subjetivos. É um direito coercivo
porque sanciona de maneira estatal e estende-se apenas ao comporta­
mento legal ou conforme a normas — ele pode, por exemplo, tornar
livres as religiões, mas não pode prescrever nenhuma consciência moral.
É um direito positivo porque retrograda às decisões — modificáveis —
de um legislador político, e é, finalmente, um direito escrito por via pro­
cedimental, já que legitimado mediante um procedimento democrático.
É bem verdade que o direito positivo só exige comportamentos legais;
no entanto, ele precisa ser legítimo: embora dê margem aos motivos da
obediência jurídica, deve ser constituído de maneira que também possa
ser cumprido a qualquer momento por seus destinatários, pelo simples
respeito à lei. Uma ordem jurídica é legítima quando assegura por igual
a autonomia de todos os cidadãos. E os cidadãos só são autônomos
quando os destinatários do direito podem ao mesmo tempo entender-
se a si mesmos como autores do direito. E tais autores só são livres en­
quanto participantes de processos legislativos regrados de tal maneira e
cumpridos sob tais formas de comunicação que todos possam supor
que regras firmadas desse modo mereçam concordância geral e moti­

242 A INCLUSÃO DO OUTRO


vada pela razão. Do ponto de vista normativo, não há Estado de direito
sem democracia. Por outro lado, como o próprio processo democrático
precisa ser institucionalizado juridicamente, o princípio da soberania
dos povos exige, ao inverso, o respeito a direitos fundamentais sem os
quais simplesmente não pode haver um direito legítimo: em primeira
linha o direito a liberdades de ação subjetivas iguais, que por sua vez
pressupõe uma defesa jurídica individual e abrangente.
Tão logo tratamos de um problema como problema jurídico, tra­
zemos imediatamente à baila um conceito de direito moderno que nos
obriga — ao menos por razões conceituais — a operar com a arquite­
tônica do Estado de direito, ela mesma muito rica em pressupostos.
Isso também traz consequências para o tratamento do problema da
igualação jurídica e do igual reconhecimento de grupos culturalmente
definidos, ou seja, de coletividades que se distinguem de outras — seja
pela tradição, forma de vida, proveniência étnica etc. — e cujos inte­
grantes realmente querem distinguir-se das demais coletividades, em
virtude da manutenção e desenvolvimento de sua própria identidade.

A impregnação ética do Estado de direito

Sob uma visão da teoria do direito, o multiculturalismo suscita em


primeira linha a questão sobre a neutralidade ética da ordem jurídica e
da política. Denomino éticas, nesse contexto, todas as questões que se
referem a concepções do bem viver ou da vida não-malograda. Ques­
tões éticas não se deixam julgar sob o ponto de vista “moral” que se
pergunta se algo é “igualmente bom para todos”; sobre o fundamento
de valorações intensas, pode-se avaliar bem melhor o julgamento im ­
parcial dessas questões com base na autocompreensão e no projeto de
vida perspectivo de grupos em particular, ou seja, com base no que seja
“bom para nós”, mas a partir da visão do todo manifestada por esses
grupos. Gramaticalmente, o que está inscrito nas questões éticas é a refe­
rência à primeira pessoa, e com isso a remissão à identidade (de um
indivíduo ou) de um grupo. Com base no exemplo da disputa consti­
tucional canadense, pretendo abordar a exigência liberal da neutralida­
de ética do direito, inicialmente em vista da autocompreensão ético-
política de uma nação composta por cidadãos que integram um Estado.

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 243


A neutralidade do direito — e do procedimento democrático de
privação do direito — é ocasionalmente entendida como se questões
políticas de natureza ética tivessem de ser afastadas da agenda polí­
tica por meio de “gag rules” [ordens de silêncio] e suprimidas das dis­
cussões por serem inacessíveis a uma regulamentação jurídica impar­
cial. Com isso, não se deve permitir ao Estado (no sentido do liberalis­
mo 1) que ele persiga quaisquer outros fins coletivos a não ser garan­
tir a liberdade individual ou o bem-estar e segurança pessoal de seus
cidadãos. Ao contrário, o modelo alternativo (no sentido do liberalis­
mo 2) espera do Estado que ele em geral garanta, sim, esses direitos
fundamentais, mas que além disso também se empenhe em favor da
sobrevivência e fomento de uma “determinada nação, cultura ou reli­
gião, ou então de um número limitado de nações, culturas e religiões”.
Também na opinião de Michael Walzer trata-se aí de um modelo fun­
damental que permite aos cidadãos se decidirem, sob certas circuns­
tâncias, pela precedência dos direitos individuais. Com isso, Walzer
partilha as premissas de que é perfeitamente possível haver colisões
entre duas orientações normativas básicas e de que, nesses casos, ape­
nas o liberalismo 2 permite chegar a uma decisão favorável à relativa
precedência de fins e identidades coletivos e à devida consideração
por eles. Assim, a teoria dos direitos afirma de fato uma precedência
absoluta dos direitos em relação aos bens comuns, de modo que, como
mostra Dworkin, argumentos sobre a demarcação de objetivos só po­
dem “bater” reinvindicações subjetivas de direitos se estas últimas pu­
derem ser fundamentadas à luz de direitos precedentes14. Isso, porém,
ainda não basta para dar sustentação à concepção comunitarista par­
tilhada por Taylor e Walzer, segundo a qual o sistema dos direitos igno­
raria reivindicações de defesa em prol de formas culturais de vida e
identidades coletivas, agiría com indiferença em face delas, e carecería,
portanto, de correção.
Com base no exemplo das políticas feministas de igualdade de
direitos, demonstramos o que geralmente acaba valendo: que a confi­
guração democrática do sistema de direitos acata não apenas demar­
cações políticas de objetivos em geral, mas também fins coletivos que
se articulam em lutas por reconhecimento. Pois diferentemente do

14. Cf. R. Dworkin, Bürgerrechte ernstgenommen, Frankfurt am Main, 1984.


pp. 158ss.

244 A INCLUSÃO DO OUTRO


que se dá com normas morais, que regulamentam de forma geral as
interações possíveis entre sujeitos capazes de agir e falar, as normas
jurídicas referem-se a contexto interacionais de uma sociedade con­
creta. Normas jurídicas remontam a decisões de um legislador local;
estendem-se a uma coletividade socialmente delimitada de integran­
tes do Estado, no interior de um território estatal geograficamente de­
terminado; e levam decisões políticas — efetivas para a própria socie­
dade estatal organizada que as toma — a integrar-se em programas
coletivamente vinculativos, no âmbito dessa área de validação clara­
mente circunscrita. Por certo, a consideração de fins coletivos não pode
dissolver a estrutura do direito, não pode destruir aforma jurídica como
tal, e com isso suprassumir a diferenciação entre direito e política. Mas
faz parte da natureza concreta de matérias carentes de regulamenta­
ção que a normatização das vias de relacionamento no médium do
direito — diversamente do que ocorre na m oral— venha abrir-se para
as demarcações de objetivos pela vontade política de uma sociedade.
Por isso, toda ordem jurídica é também expressão de uma forma de
vida em particular, e não apenas o espelhamento do teor universal dos
direitos fundamentais. Por certo, é preciso poder entender as decisões
do legislador político como efetivação do sistema de direitos, e suas
políticas como configuração desse mesmo sistema; mas quanto mais
concreto for o talhe da matéria, tanto mais também se expressará, na
aceitabilidade de um a regulamentação jurídica correspondente, a
autocompreensão de uma coletividade e de sua forma de vida (bem
como a compensação entre interesses divergentes de grupos diversos,
e a opção bem informada entre fins e meios alternativos). Isso se revela
no espectro amplo das razões que desempenham um papel na forma­
ção racional da opinião e da vontade do legislador político: ao lado de
ponderações morais, considerações pragmáticas e dos resultados de
negociações justas e honestas, também as razões éticas desempenham
um papel nos aconselhamentos e justificações de decisões políticas.
À medida que a formação política da opinião e da vontade dos
cidadãos orienta-se pela idéia da efetivação de direitos, ela certamen­
te não pode ser equiparada a um auto-entendimento ético-político,
como bem sugerem os comunitaristas15; mas o processo da efetivação
de direitos está justamente envolvido em contextos que exigem dis­

15. Cf. R. Beiner, Political Judgement, Chicago, 1983. p. 138.

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 245


cursos de auto-entendimento como importante elemento da política
— discussões sobre uma concepção comum do que seja bom e sobre
qual a forma de vida desejada e reconhecida como autêntica. Eis aí
controvérsias nas quais os participantes ganham, por exemplo, um
maior nível de consciência sobre de que forma pretendem compreen-
der-se como cidadãos de determinada república, habitantes de deter­
minada região, herdeiros de determinada cultura, sobre que tradições
pretendem perpetuar ou interromper, sobre a maneira como preten­
dem lidar com seu destino histórico, com a natureza, uns com os ou­
tros etc. E é natural que a escolha da língua oficial ou a decisão sobre
o currículo das escolas públicas também seja concernente à autocom-
preensão ética de uma nação. Já que questões ético-políticas são um
componente inevitável da política, e já que as respectivas regulamen­
tações dão expressão à identidade coletiva da nação de cidadãos do
estado, é muito plausível que a partir delas se desencadeiem batalhas
culturais nas quais minorias desprezadas passem a defender-se con­
tra a cultura majoritária e insensível. O elemento propulsor dessas
batalhas não é a neutralidade ética da ordem jurídica estatal, mas sim
a inevitável impregnação ética de cada comunidade jurídica e de cada
processo democrático de efetivação dos direitos fundamentais. Disso
dão testemunho, por exemplo, as garantias institucionais de que usu­
fruem as igrejas cristãs em Estados como a República Federal da Ale­
manha — apesar da liberdade religiosa — , ou então a recentemente
discutida garantia de status diferenciado que a Constituição alemã
concede à família, diversamente do que ocorre com outras parcerias
similares ao casamento.
Nesse contexto, é de nosso interesse que decisões ético-políticas
como essas, consideradas tanto de um ponto de vista empírico quanto
normativo, dependam de uma composição contingente da nação vin­
culada a um Estado. A exclusão social da população de um Estado re­
sulta de circunstâncias históricas que são externas ao sistema dos di­
reitos e aos princípios do Estado de direito. É ela que decide sobre o
conjunto básico de pessoas que convivem em um único território e
que estão vinculadas por meio de uma única Constituição, ou seja,
vinculadas por uma decisão de patriarcas fundadores, no sentido de
regulamentar legitimamente seu próprio convívio através dos meios
do direito positivo; na condição de gerações subseqüentes, essas pes­
soas concordaram implicitamente (ou até mesmo explicitamente, no

246 A IN C L U S Ã O DO OUTRO
caso dos cidadãos imigrados) com dar continuidade a um projeto cons­
titucional já preexistente. As pessoas a partir das quais em determina­
do m omento se forma uma nação vinculada a um Estado, no entanto,
também corporificam a um só tempo as formas culturais de vida em
que se formou sua própria identidade cultural — mesmo que nesse
meio tempo elas já tenham se afastado das tradições de sua origem. As
pessoas, ou melhor, as estruturas de personalidade formam como que
junções dos fios de uma rede ágrafa de culturas e tradições, de conca-
tenações vitais e experienciais intersubjetivamente partilhadas. E esse
contexto é também o horizonte dentro do qual os cidadãos do Estado,
queiram eles ou não, desenvolvem seus discursos de auto-entendimento
ético-político. Quando se altera o conjunto básico de cidadãos, tam ­
bém se altera esse horizonte, de tal modo que se desenvolvem outros
discursos sobre as mesmas questões e se almejam outros fins. As m i­
norias, ao menos intuitivamente, têm consciência dessa circunstância;
ela constitui um importante motivo para a reivindicação de um Esta­
do próprio, ou mesmo para a exigência do reconhecimento enquanto
“distinctive society”, tal como revelou o projeto constitucional de Meech
Lake, que a propósito não teve êxito. Caso a minoria ffancófona se
constituísse enquanto comunidade jurídica própria, em importantes
questões ético-políticas ela iria, pela mesma via democrática, formar
outras maiorias e chegar a regulamentações diferentes daquelas a que
os canadenses chegaram até hoje, em seu conjunto.
Como mostra a história da formação das nações16, com novas fron­
teiras para o Estado certamente também surgem outras minorias na­
cionais; e o problema não desaparece, a não ser à custa de “purificação
étnica” — o que é injustificável do ponto de vista político-moral. Com
base no exemplo dos curdos, que vivem dispersos em cinco Estados
diferentes, ou da Bósnia-Herzegovina, em que os grupos étnicos lu­
tam impiedosamente entre si, pode-se demonstrar claramente a con­
dição cindida do “direito” quando voltado à autodeterminação nacio­
nal. Por um lado, com o passo que se dá rumo à autonomia enquanto
Estado próprio, a coletividade que se entende como comunidade do­
tada de identidade própria conquista um novo patamar de reconheci­
mento, o qual lhe é negado em um estágio anterior à consolidação polí­
tica, seja na condição de comunidade lingüística e de ascendência co­

16. Cf. P. Alter, Nationalismus, Frankfurt am Main, 1985.

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 247


mum, seja na condição de “nação cultural” dispersa ou reunida em
comunidade. A necessidade de reconhecimento como nação dotada
de Estado intensifica-se sobretudo em tempos de crise, quando a popu­
lação — tal como ocorreu após a dissolução do império soviético — se
apega a características ágrafas de uma identidade coletiva, a qual se re­
nova de maneira regressiva. Esse amparo promete compensar, ainda
que de maneira controversa, os medos do futuro e as inseguranças so­
ciais para os quais há razões de sobra. Por outro lado, a independência
nacional ffeqüentemente só pode ser alcançada por meio de guerras
civis, novas repressões, ou então através de conseqüências problemá­
ticas que perpetuam os conflitos e contrariam o que se prenunciava.
A situação no Canadá é muito diversa. Naquele país procura-se
de modo razoável uma solução federalista capaz de manter intacto o
Estado como um todo, mas que também seja capaz de assegurar a au­
tonomia cultural de um a de suas partes, através da descentralização
das competências estatais17. Com isso, em certos campos políticos
modificam-se os conjuntos básicos de cidadãos envolvidos no proces­
so democrático, mas permanecem inalterados os princípios desse
mesmo processo. Pois a teoria dos direitos não proíbe de maneira al­
guma que os cidadãos do Estado democrático de direito, no âmbito de
sua ordem estatal conjunta, validem uma concepção do que seja bom,
advenha ela da própria origem cultural, ou de um consenso alcançado
em discursos de natureza política; entretanto, essa mesma teoria proíbe
sim, no interior do Estado, que se privilegie uma forma de vida em
detrimento de outra. Em construções estatais federais isso vale tanto
para o plano federal como para o plano estadual. Se não estou enga­
nado, no Canadá a disputa não ocorre em torno desse princípio da
igualdade de direitos, mas sim em torno do tipo e da amplitude das
competências estatais que se devam transferir à província do Québec.

Coexistência eqüitativa versus preservação da espécie

O caminho da federalização obviamente só se oferece como solu­


ção quando os integrantes de diferentes grupos étnicos e universos cul­

17. Redigi esse texto no início de 1993.

248 A IN C L U S Ã O DO OUTRO
turais de vida estão mais ou menos de acordo com a separação territorial
entre eles. Em muitas sociedades multiculturais, como os Estados Uni­
dos, não é esse o caso; e será menos ainda para países em que a compo­
sição étnica da população vem se modificando (como na Alemanha)
sob a pressão de fluxos imigratórios em nível mundial. Também um
Québec que se tornasse culturalmente autônomo acabaria por encon­
trar-se na mesma situação e simplesmente trocaria uma cultura majo­
ritária inglesa por outra, francesa. Suponhamos que em sociedades mul­
ticulturais como essas, no contexto de uma cultura liberal e com base
em associações voluntárias, subsista uma opinião pública eficiente, que
funcione com estruturas de comunicação não simplesmente herdadas,
mas que possibilitem e fomentem discursos de auto-entendimento.
Nesse caso, o processo democrático de efetivação de direitos subjetivos
iguais também pode estender-se ao asseguramento da coexistência
eqüitativa de diferentes grupos étnicos e de suas formas culturais de
vida. Para isso não é preciso haver qualquer fundamentação especial,
nem tampouco uma proposição básica concorrente. Pois se é possível
garantir a integridade da pessoa do direito em particular, de um ponto
de vista normativo, isso não pode ocorrer sem a defesa dos contextos
vitais e experienciais partilhados intersubjetivamente, nos quais a pes­
soa foi socializada e nos quais se formou sua identidade. A identidade
do indivíduo está entretecida com identidades coletivas e só pode esta-
bilizar-se em uma rede cultural que está tão longe de poder ser adqui­
rida como propriedade privada quanto a própria língua materna. Por
isso, embora o indivíduo continue sendo o portador dos respectivos
“direitos de pertencer culturalmente”, no sentido de W. Kymlicka18, ainda
resultam disso, em virtude da dialética das igualdades jurídica e factual,
amplas garantias de status e direitos à autonomia administrativa, bene­
fícios de infra-estrutura, subvenções etc. Culturas autóctones que es­
tejam ameaçadas podem fazer valer em defesa própria certas razões m o­
rais peculiares, advindas da história de um país dominado nesse meio
tempo pela cultura majoritária. Argumentos semelhantes em favor de
uma “discriminação ao inverso” podem ser usados por culturas longa­
mente oprimidas e renegadas, como as de antigos escravos.
Obrigações como essas, e outras semelhantes, resultam de rei­
vindicações jurídicas; elas não resultam em hipótese alguma de uma

18. W. Kymlicka, Liberalism, C om m unityand Culture, Oxford, 1989.

A LUTA P O R R E C O N H E C I M E N T O N O E S T A D O D E M O C R Á T I C O D E D I R E IT O 249
apreciação valorativa geral da respectiva cultura. A política do reco­
nhecimento de Taylor estaria assentada sobre um alicerce muito fraco,
caso dependesse de uma “suposição de valor idêntido” em relação às
culturas e à sua respectiva colaboração com a civilização mundial. O
direito à igualdade de respeito que cada um pode reivindicar também
nos contextos vitais formadores da própria identidade nada tem a ver
com a suposta excelência de sua cultura de origem, ou seja, com um
desempenho que ocasione um agrado generalizado. É o que acentua
Susan Wolf ao afirmar: “ao menos um grande dano perpetuado pelo
não-reconhecimento tem pouco a ver com a questão sobre a impor­
tância geral que possam ter para a humanidade os seres humanos e a
cultura aos quais se nega o reconhecimento. E a necessidade de repa­
rar esse dano não se deve à suposição -— ou à aceitação da suposi­
ção— de que uma determinada cultura tem um valor especial para as
pessoas que não pertencem a ela”19.
Em tal medida, a coexistência eqüitativa de diferentes grupos ét­
nicos e de suas formas de vida culturais não pode ser assegurada por
um tipo de direitos coletivos que necessariamente estaria além dos
limites de uma teoria do direito talhada para atender a pessoas indivi­
duais. Mesmo que se acatassem tais direitos coletivos no Estado de­
mocrático de direito, eles seriam não apenas desnecessários, mas tam ­
bém questionáveis do ponto de vista normativo. Pois a defesa de for­
mas de vida e tradições geradoras de identidade deve servir, em últi­
ma instância, ao reconhecimento de seus membros; ela não tem de
forma alguma o sentido de uma preservação administrativa das es­
pécies. O ponto de vista ecológico da conservação das espécies não
pode ser transportado às culturas. Normalmente, as tradições cultu­
rais e as formas de vida que aí se articulam reproduzem-se ao conven­
cer do valor de si mesmas os que as assumem e as internalizam em
suas estruturas de personalidade; ou seja, elas se reproduzem ao m oti­
var os indivíduos a uma apropriação e continuação produtivas de si
mesmas. O caminho do direito estatal nada pode senão possibilitar
essa conquista hermenêutica da reprodução cultural de universos vi­
tais. Pois uma garantia de sobrevivência iria justamente privar os inte­
grantes da liberdade de dizer sim ou não, hoje tão necessária à apro­
priação e manutenção de uma herança cultural. Sob as condições de

19. Ch. Taylor et alii., 1993, p. 84.

250 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
uma cultura que se tornou reflexiva, só conseguem se manter as tradi­
ções e formas de vida que vinculem seus integrantes, e isso por mais
que fiquem expostas à provação crítica por parte deles, e por mais que
dêem às novas gerações a opção de aprender com as outras tradições,
ou mesmo converter-se a elas e migrar, portanto, para outras para­
gens. Isso vale até mesmo para seitas relativamente fechadas como os
amish na Pensilvânia20. Mesmo que considerássemos sensato o obje­
tivo de colocar as culturas sob um regime de preservação das espécies,
as condições hermenêuticas para um a reprodução promissora seriam
inconciliáveis com esse objetivo — “to maintain and cherish distinct-
ness, not just now but fore ver".
Para isso não basta evocar as muitas subculturas e universos vi­
tais que floresceram na sociedade burguesa precoce da Era Moderna
européia, estratificada em associações de ofício, ou então as formas de
vida dos assalariados que se seguiram a eles, ora pagos por dia de tra­
balho, ora integrantes das massas urbanas proletárias e desenraizadas
que caracterizaram a primeira fase da industrialização. Todos eles cer­
tamente foram abarcados e esmagados com violência pelo processo
de modernização; mas não foram todos, em absoluto, que encontra­
ram um mestre protetor ou se viram defendidos convictamente por
seus aliados contra as alternativas desse novo tempo. Formas de vida
que, do ponto de vista cultural, foram suficientemente fortes e atrati­
vas para estimular a vontade a se auto-afirmar (foi o que se deu prova­
velmente com a cultura urbana e burguesa do século XIX) só logra­
ram manter-se vivas, em alguns de seus traços, graças a uma força de
autotransformação. Mesmo uma cultura majoritária que não se vê
ameaçada só conserva sua vitalidade através de um revisionismo ir­
restrito, do esboço de alternativas ao que existe até hoje ou da integra­
ção de impulsos alheios — até o ponto de romper com algumas de
suas próprias tradições. Isso vale em especial para as culturas de imigra­
ção, as quais, pela pressão assimiladora das novas circunstâncias, vêem-
se desafiadas a um isolamento étnico relutante e à revivificação de ele­
mentos tradicionais, mas estabelecem logo a seguir uma forma de vida
igualmente distanciada da assimilação e da origem tradicional21.

20. Cf. a decisão da Suprema Corte no caso Wisconsin versus Yoder, 406 U. S. 205
(1972).
21. Cf. D. Cohn-Bendit, Th. Schmid, Heimat Babylon, Hamburgo, 1992, pp. 316ss.

A L U T A P O R R E C O N H E C I M E N T O N O E S T A D O D E M O C R Á T I C O D E D I R E IT O 251
Em sociedades multiculturais, a coexistência eqüitativa das for­
mas de vida significa para cada cidadão uma chance segura de crescer
sem perturbações em seu universo cultural de origem, e de também
poder criar seus filhos nesse mesmo universo; ou seja, significa a
chance de poder confrontar-se com sua cultura de origem — como
com qualquer outra — , dar-lhe continuidade ou transformá-la, ou ainda
a chance de distanciar-se com indiferença de seus imperativos, ou
mesmo romper com ela, em uma atitude autocrítica, para viver a par­
tir daí com a marca deixada por uma ruptura consciente com a tra­
dição ou então com uma identidade cindida. A m udança acelerada
das sociedades m odernas manda pelos ares todas as formas estacio­
nárias de vida. As culturas só sobrevivem se tiram da crítica e da cisão
a força para uma autotransformação. Garantias jurídicas só podem
se apoiar sobre o fato de que cada indivíduo, em seu meio cultural,
detém a possibilidade de regenerar essa força. E essa força, por sua
vez, não nasce apenas do isolamento em face do estrangeiro e de pes­
soas estrangeiras, mas nasce também — e pelo menos em igual me­
dida — do intercâmbio com eles.
Na modernidade, formas rígidas de vida tornam -se vítimas da
entropia. Movimentos fundamentalistas podem ser entendidos como
a tentativa irônica de, com meios restaurativos, conferir ultra-estabili-
dade ao próprio m undo vital. A ironia consiste na autocompreensão
errônea por parte de um tradicionalismo que surge na esteira da m o­
dernização social e apenas imita uma substancialidade já decaída.
Como reação a um impulso modernizador triunfante, o fundamenta-
lismo representa um movimento de renovação plenamente moderno.
O nacionalismo também pode tornar-se um fundamentalismo, mas
não pode ser confundido com ele. O nacionalismo da Revolução Fran­
cesa aliou-se às proposições básicas universalistas do Estado de direi­
to; naquele tempo, nacionalismo e republicanismo eram como irmãos
gêmeos. No entanto, as sociedades em processo de mudança radical
não são as únicas a se ver expostas a esse fenômeno; também as conso­
lidadas democracias do Ocidente são cortejadas por movimentos fun­
damentalistas. Todas as religiões mundiais geraram seu próprio funda­
mentalismo, mas nem todas os movimentos organizados em seitas
apresentam traços desse tipo.
O caso Rushdie vem lembrar que o fundamentalismo que conduz
a uma práxis de intolerância é inconciliável com o Estado de direito.

252 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
Essa práxis apóia-se sobre interpretações religiosas ou histórico-filosó-
ficas do m undo que reivindicam exclusividade para uma forma privi­
legiada de vida. Falta a tais concepções a consciência da falibilidade de
sua reivindicação de validação e o respeito em face do “ônus da razão”
(John Rawls). É natural que interpretações globais do mundo e convic­
ções religiosas não se vinculem a um falibilismo dessa natureza, que
hoje acompanha o saber hipotético das ciências empíricas. Mas visões
de m undo fundamentalistas são dogmáticas em um outro sentido: elas
não concedem nenhum espaço à reflexão sobre sua relação com ima­
gens de m undo alheias, nem mesmo com imagens de m undo com as
quais partilham o mesmo universo discursivo, e contra cujas reivin­
dicações de validação podem impor-se sem dificuldade, apenas com
base em fundamentos racionais. Visões de m undo fundamentalistas
não dão nenhuma chance a “reasonable disagreement”22.
Em face disso, as forças subjetivadas de fé do m undo moderno
são marcadas por um posicionamento reflexivo que não permite ha­
ver um único moáus vivendi— juridicamente imponível sob condições
da liberdade religiosa. As imagens de m undo não-fundamentalistas,
que Rawls caracteriza23 como “not unreasonable comprehensive doc-
trines”, permitem muito mais — no espírito da tolerância propugnada
por Lessing -— uma disputa civilizada entre diversas convicções, na
qual um partido pode reconhecer os demais como parceiros na busca
de verdades autênticas, sem com isso renunciar à própria reivindi­
cação de validação. Em sociedades multiculturais, a constituição jurí-
dico-estatal só pode tolerar formas de vida que se articulem no médium
de tradições não-fundamentalistas, já que a coexistência eqüitativa
dessas formas de vida exige o reconhecimento recíproco das diversas
condições culturais de concernência ao grupo: também é preciso reco­
nhecer cada pessoa como membro de uma comunidade integrada em
torno de outra concepção diversa do que seja o bem, segundo cada
caso em particular. A integração ética de grupos e subculturas com
cada uma das identidades coletivas próprias precisa ser desacoplada
do plano de uma integração política abstrata, que apreende os cida­
dãos do Estado de maneira eqüitativa.

22. J. Habermas, Erlauterungen zur Diskursethik, Frankfurt am Main, 1992. pp.


204-208.
23. J. Rawls, “Der Gedanke eines übergreifenden Konsenses”. In: Die Idee des
Politischen Liberalismus, Frankfurt am Main, 1992. pp. 293-332.

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 253


A integração dos cidadãos do Estado assegura lealdade em face
de uma cultura política comum. Essa cultura política está enraizada
em uma interpretação dos princípios constitucionais assumidos e cum­
pridos por cada nação estatal (a partir do contexto histórico de expe­
riências próprio a essa mesma cultura), o que indica que tais princí­
pios não podem ser eticamente neutros. Antes talvez se devesse falar
de um horizonte interpretativo comum, no interior do qual se discute
publicamente, e por ensejos imediatos, a autocompreensão dos cidadãos
de uma república. A controvérsia dos historiadores que teve lugar na
Alemanha em 1986/1987 é um bom exemplo disso24. Mas sempre se
discute sobre a melhor interpretação dos mesmos direitos e princípios
fundamentais. Eles constituem o sólido ponto de referência para cada
patriotismo constitucional que situe o sistema dos direitos no contex­
to histórico de uma comunidade jurídica. É com motivos e atitudes de
consciência dos cidadãos que tais direitos e princípios precisam con­
solidar uma ligação duradoura; pois sem uma ancoragem motivacio-
nal como essa, eles não poderíam tornar-se a força propulsora de uma
associação entre pessoas livres e iguais. Isso explica por que também
está eticamente impregnada a cultura política em comum, na qual os
cidadãos do Estado se reconhecem como membros de sua república.
Ao mesmo tempo, o teor ético do patriotismo constitucional não
pode restringir a neutralidade da ordem jurídica em face das comuni­
dades eticamente integradas em nível subpolítico; mais que isso, ele
tem de aguçar a sensibilidade para a pluralidade diferencial e a integri­
dade das diversas formas de vida coexistentes de uma sociedade multi­
cultural. É decisiva a manutenção da diferença entre os dois planos de
integração. No momento em que esses dois planos coincidem, a cultura
majoritária usurpa privilégios estatais à custa da eqüidade em relação a
outras formas de vida culturais, e ofende seu anseio por reconheci­
mento recíproco. A neutralidade do direito em face das diferenciações
éticas no interior do Estado pode ser explicada pelo fato de que, cm
sociedades complexas, não se pode mais manter coesa a totalidade dos
cidadãos através de um consenso substancial acerca dos valores, mas
tão-somente através de um consenso quanto ao procedimento relativo
a ações jurígenas legítimas e ao exercício de poder. Os cidadãos poli­
ticamente integrados partilham a convicção motivada por via racional

24. Cf. J. Habermas, Eine A rt Schadensabwicklutig, Frankfurt am Main, 1987.

254 A IN C L U S Ã O DO OUTRO
de que o desencadeamento de liberdades comunicativas em meio à opi­
nião pública de caráter político, o procedimento democrático da solu­
ção de conflitos e a canalização jurídico-estatal da dominação funda­
mentam uma perspectiva de banimento do poder ilegítimo e de utili­
zação do poder administrativo em favor do interesse eqüitativo de to­
dos. O universalismo dos princípios jurídicos reflete-se, com certeza,
em um consenso procedimental que certamente precisa estar circuns­
crito por um patriotismo constitucional— por assim dizer — , no con­
texto de uma respectiva cultura política historicamente determinada.

O
Imigração, cidadania e identidade nacional

Os juristas têm a vantagem de discutir questões normativas com


vistas a casos sobre os quais ainda se vai deliberar; eles pensam orien­
tados pela aplicação prática. Os filósofos eximem-se dessa pressão
decisionista; como contemporâneos de noções clássicas que subsis­
tem há mais de dois mil anos, não têm qualquer constangimento por
entender-se como participantes do diálogo perpétuo. Tanto mais fas­
cinante, nesse sentido, o fato de alguém como Charles Taylor empre­
ender a tentativa de apreender sua própria época sob a forma de pen­
samentos, além de desenvolver discernimentos filosóficos e procurar
torná-los férteis para a questões políticas mais prementes na ordem
do dia. Seu ensaio, da mesma forma, é um exemplo tão raro quanto
brilhante nesse sentido, embora não trilhe (ou melhor: porque não
trilha) o caminho tão em voga de uma “ética aplicada”.
Na República Federal da Alemanha — bem como na União Euro­
péia em geral — há outro tema na ordem do dia, desde as reviravoltas
na Europa Central e Oriental: a imigração. Um colega holandês, de­
pois de proceder a uma apresentação abrangente do problema, chegou
à seguinte prognose: “Western European countries ... will do their
utmost to prevent immigration from third countries. To this end they
will grant work perm its to persons who have skills of immediate
relevance to the society in fairly exceptional cases only (soccer players,
software specialists from the US, scholars from índia etc.). They will
combine a very restrictive entry policy with policies aimed at dealing
more quickly and effectively with requests for asylum, and with a

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 255


practice of deporting without delay those whose request has been
denied... The conclusion is, that they will individually and jointly use
all means at their disposal to stem the tide”25. Essa descrição corres­
ponde exatamente ao resultado das negociações sobre a questão do
asilo político, ocorridas entre situação e oposição, em 1993, na Alema­
nha. E não há dúvida de que essa política encontra respaldo junto à
grande maioria da população. Nos dias de hoje, a hostilidade contra
estrangeiros é amplamente difundida nos demais países da Unidade
Européia. Ela tem características fortemente diversas nos vários países
em particular; mas o posicionamento dos alemães não se distingue
muito do que assumem os franceses e ingleses26. 0 exemplo de Taylor
pode encorajar-nos a procurar uma resposta para essa questão, (tam­
bém) do ponto de vista filosófico: justifica-se essa política de isola­
mento contra imigrantes? Gostaria inicialmente de discutir a pergunta
in abstracto, para então dedicar-me à questão do debate alemão sobre
asilo político nos anos de 1992/1993, esclarecer o cenário histórico em
que se deu e depois caracterizar a alternativa que se deveria explicar
em um debate sobre a autocompreensão ético-política da República
Federal da Alemanha ampliada, o qual não se deu até hoje, ao menos
não abertamente e em público.
Embora determinadas características formais distingam o direi­
to moderno da moral racional pós-tradicional, o sistema de direitos e
os princípios do Estado de direito, em razão de seu teor universalista,
estão em consonância com essa moral. Ao mesmo tempo, como já
vimos, ordens jurídicas são “eticamente impregnadas” na mesma me­
dida em que nelas se refletem a vontade política e a forma de vida de
uma comunidade jurídica concreta. Um bom exemplo disso são os
Estados Unidos, cuja cultura política está marcada por uma tradição
constitucional bicentenária. Mas enquanto o legislador político orien-
tar-se segundo proposições básicas do direito estatal e, dessa maneira,
segundo a idéia da efetivação de direitos fundamentais, o ethos juri­
dicamente ordenado de uma nação que se organize sob a forma de
Estado não poderá entrar em contradição com os direitos dos cida­

25. D. J. van de Kaa, “European Migration at the End o f History”, European Re-
view, vol. 1, jan. 1993, p. 94.
26. Cf. E. Wiegand, “Auslànderfeindlichkeit in der Festung Europa. Einstellungen
zu Fremden im europãischen Vergleich”. In: Informationsdienst Soziale Indikatoren
(ZUMA), n. 9, jan. 1993, p. 1-4.

256 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
dãos. Por isso, o teor ético de um a integração política que unifique
todos os cidadãos precisa ser “neutro” em face das diferenças que haja
no interior do Estado entre comunidades ético-culturais que se inte­
gram cada qual em torno de um a respectiva concepção própria do
que seja o bem. Não obstante o desacoplamento desses dois planos de
integração, uma nação de cidadãos reunidos em um mesmo Estado só
poderá manter vivas as instituições da liberdade quando desenvolver
um a determinada medida de lealdade em face do próprio Estado, leal­
dade que não seja necessário im por juridicamente.
É essa autocompreensão ético-política da nação que se vê afetada
pela imigração; pois a afluência de imigrantes altera a composição
da população também sob um ponto de vista ético-cultural. Isso ex­
plica a questão quanto aos limites do anseio por imigração: ele não
esbarra justamente no direito de um a coletividade política a manter
intata sua forma de vida político-cultural? E o direito à autodetermina­
ção — sob a premissa de que a ordem geral do Estado, conformada de
m aneira autônom a, está eticamente impregnada — não inclui o di­
reito à auto-afirmação da identidade de um a nação? E isso também
diante de imigrantes, que poderíam alterar a índole amadurecida ao
longo da história de uma forma de vida político-cultural?
Da perspectiva da sociedade que acolhe os imigrantes, o proble­
ma da imigração suscita a pergunta acerca das condições legítimas de
entrada. Negligenciando os graus intermediários do ingresso, pode­
mos centrar a pergunta sobre um de seus aspectos extremos: o ato de
naturalização. É com ele que o Estado controla a ampliação da coleti­
vidade, definida justamente através dos direitos à cidadania. Sob que
condições cabe ao Estado negar a cidadania aos que tornam válida
um a pretensão de naturalização? Sem levar em conta as medidas de
precaução usuais (contra a criminalidade, por exemplo), em nosso
contexto é especialmente relevante a pergunta sobre em que medida
um Estado de direito democrático, em defesa da integridade da forma
de vida de seus cidadãos, pode exigir do imigrante que ele se assimile.
No plano abstrativo das considerações filosóficas podemos distinguir
dois níveis de assimilação:
(a) o da concordância com os princípios da constituição no inte­
rior do espaço de atuação interpretativo que se determina em dado
momento por meio da autocompreensão ético-política dos cidadãos
e pela cultura política do país; e isso significa, portanto, o assimilar-se

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 257


a determinada m aneira pela qual se institucionaliza a autonomia dos
cidadãos na sociedade que acolhe, bem como à maneira como se pra­
tica nessa mesma sociedade o “uso público da razão” (Rawls);
(b) o nível seguinte de uma disposição à aculturação, ou seja, não
apenas a adequar-se externamente, mas a compenetrar-se amplamente
do modo de viver, das práticas e costumes da cultura local; isso signi­
fica uma assimilação que tem efeitos sobre o plano da integração éti­
co -c ultural e que, com isso, toca a identidade coletiva da cultura de
origem dos imigrantes muito mais profundamente do que a socializa­
ção política exigida em (a).
Os resultados da política de imigração praticada até bem recen­
temente nos Estados Unidos permitem uma interpretação liberal que
elucida a expectativa de assimilação limitada à socialização política27.
Um exemplo da segunda alternativa é a fase da política prussiana em
relação à Polônia, sob Bismarck, que mesmo oscilante esteve orienta­
da para a germanização daquele país28.
O Estado de direito democrático que leva a sério o desacoplamen-
to dos dois planos de integração só pode exigir dos imigrantes a socia­
lização política no sentido expresso em (a) — e, de maneira pragmá­
tica, esperar o mesmo da segunda geração. Dessa maneira, ele pode
garantir a identidade da república, a qual deve permanecer igualmente
intocada pela imigração, haja vista estar firmada sobre os princípios
constitucionais ancorados na cultura política, e não nas orientações éti­
cas de base próprias a um a forma cultural predom inante no país. De
acordo com isso, só é preciso esperar dos imigrantes que eles se dis­
ponham a arraigar-se na cultura política de sua nova pátria, sem que
por isso tenham de renunciar à forma de vida cultural de sua origem.
O direito à autodeterminação democrática certamente contém em si
o direito dos cidadãos a insistir no cãráter inclusivo de sua própria
cultura de origem; isso protege a sociedade contra o perigo da seg­
mentação — contra a exclusão de subculturas estrangeiras ou a dis­
solução separatista em diversas subculturas sem quaisquer vínculos.
A integração política, como vimos, de fato não se estende a culturas

27. Cf. M. Walzer, “W hat does it mean to be an American”, Social Research, vol.
57, outono de 1999, p. 591-614, em que se constata que a concepção comunitarista não
faz jus à complexa composição de um a sociedade multicultural (p. 613).
28. Cf. R. Brubaker, Citizenship and Nationhood in France and Germany, Cam-
bridge, Mass., 1992, pp. 128ss.

258 A IN C L U S Ã O DO OUTRO
imigratórias fundamentalistas. Mas ela não justifica a assimilação
coagida, em prol da auto-afirmação de uma forma de vida cultural
predom inante no país29.
Dessa alternativa estatal-jurídica decorre que a identidade cole­
tiva, firmada de maneira legítima na seqüência das ondas imigratórias,
a longo prazo jamais fica imune a mudanças. Pelo fato de não se p o ­
der coagir os imigrantes a abandonar suas próprias tradições, tam ­
bém se amplia, de acordo com a nova forma de vida que se estabe­
lece, o horizonte no qual os cidadãos interpretam os princípios cons­
titucionais que têm em comum. Sucede a isso uma interferência do
mecanismo segundo o qual se altera o contexto a que se refere a auto-
compreensão ético-política da nação como um todo, tão logo se m o­
difique a composição cultural do conjunto de cidadãos ativos: “People
live in communities with bonds and bounds, but these may be of
different kinds. In a liberal society, the bonds and bounds should be
compatible with liberal principies. Open immigration would change
the character of the community, but it would not leave the community
without any character30”.
Por ora, é o que basta dizer sobre as condições que um Estado
democrático de direito pode im por para a aceitação de imigrantes.
Quem, no entanto, realmente tem direito à imigração?
Há boas razões morais para um a reivindicação de direito indivi­
dual a asilo político (no sentido do art. 16 da Lei Fundamental, que
deve ser interpretado com remissão à defesa da dignidade hum ana
garantida no art. Io e ao direito à garantia de defesa legal, firmada
no art. 19). Sobre isso não é necessário manifestar-me. Im portante,
sim, é a definição de refugiado. Segundo a Convenção sobre Refu­
giados, de Genebra, tem direito a asilo todo aquele que foge de paí­
ses “em que sua vida ou sua liberdade pudesse estar ameaçada por
causa de sua raça, religião, nacionalidade, por pertencer a determ i­
nado grupo social ou por causa de sua convicção política”. À luz das
experiências mais recentes, porém, essa definição precisa ser ampliada
de m odo a incluir a defesa de mulheres contra estupros em massa.
Além disso, não apresenta problemas a reivindicação por parte de

29. Cf. Cohn-Bendit; Schmid, op. cit., cap. 8.


30. J. H. Carens, “Aliens and Citizens”, Review ofPolitics, v. 49,1987, p. 271; quan­
to a isso, cf. J. Habermas, “Staatsbürgerschaft und nationale Identitát”. In; Faktizitàt
und Geltung, ed. cit., pp. 632-660.

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 259


refugiados de regiões em guerra civil, no sentido de obter garantia
de asilo temporário. Mas desde a descoberta da América, e tanto mais
desde o crescimento explosivo da imigração em todo o mundo, no
século XIX, a grande massa de pessoas dispostas a imigrar tem se cons­
tituído de trabalhadores imigrantes e de fugitivos da pobreza, que ten­
cionam escapar de uma existência miserável em sua terra natal. Hoje
se dá o mesmo. É contra essa imigração das regiões de pobreza do
Leste e do Sul que o chauvinismo europeu de bem-estar social trata de
se precaver.
Sob o ponto de vista moral, não podemos abordar esse problema
a partir da perspectiva dos habitantes de sociedades abastadas e pací­
ficas; também é preciso assumir a perspectiva dos que, em continen­
tes estrangeiros, buscam sua salvação, isto é, uma existência com dig­
nidade humana — e não proteção contra perseguição política. Sobre­
tudo na situação de hoje, quando o anseio por imigração supera enor­
memente a disposição ao acolhimento, coloca-se a pergunta se, para
além da postulação moral de integração, subsiste também um direito
legítimo à integração.
Em favor da postulação moral, é possível apresentar boas razões.
Normalmente, as pessoas não abandonam a terra natal a não ser em
meio a grandes dificuldades; para documentar sua necessidade de au­
xílio via de regra basta o próprio fato de terem fugido. Uma obrigação
moral de proporcionar auxílio resulta especialmente das crescentes
interdependências em uma sociedade mundial que cresceu tanto, com
o mercado capitalista mundial e a comunicação eletrônica de massa,
que as Nações Unidas acabaram assumindo algo próximo a uma res­
ponsabilidade política total pelo asseguramento da vida neste planeta,
como bem demonstrou o exemplo da Somália, nestes últimos tem­
pos. Obrigações específicas para o Primeiro Mundo, além disso, resul­
tam da história da colonização e do desenraizamento de culturas re­
gionais com o evento da modernização capitalista. Além disso, pode-
se mencionar que os europeus no período entre 1800 e 1960 partici­
param de forma desproporcional (com cerca de 80%) dos movimen­
tos migratórios intercontinentais. E tiraram proveito disso: em compa­
ração com outros migrantes e em relação aos compatriotas não emi­
grados, melhoraram suas condições de vida. Ao mesmo tempo, esse
êxodo ocorrido durante o século XIX e início do século XX foi tão
decisivo para a melhora da situação econômica nos países de origem

260 A INCLUSÃO DO OUTRO


dos imigrantes, quanto a imigração em direção inversa, que ocorreu
rum o à Europa no tempo da reconstrução, após a Segunda Guerra
Mundial31. A Europa, tanto de um a forma quanto de outra, foi bene­
ficiária desses fluxos migratórios.
Essas e outras razões semelhantes certamente ainda não bastam
para justificar a garantia de um direito individual à imigração que
seja legítimo e que possa ser cobrado por ação judicial; contudo, elas
provavelmente justificam o comprometimento moral com um a polí­
tica liberal de imigração que abra a própria sociedade para im igran­
tes e oriente o fluxo imigratório na medida em que existam capa­
cidades disponíveis. O slogan defensivo “O barco está lotado”, presen­
te na discussão sobre políticas de asilo na Alemanha no início dos
anos 1990, permite entrever a falta de disposição a assumir também a
perspectiva do outro lado— por exemplo da “ boatpeople’que procura­
va fugir do terror na Indochina em canoas que ameaçavam soçobrar.
Certamente ainda não foram atingidos os limites da onerosidade nas
sociedades européias, que encolhem do ponto de vista demográfico e
que hoje como ontem dependem da imigração, por razões econômicas.
Da fundamentação moral de uma política de imigração liberal resulta,

31. Cf. P. C. Emmer, “Intercontinental Migration", in European Review, vol. 1,


jan. 1993, pp. 67-74: “After 1800 the dramatic increase in the economic growth of
Western Europe could only be maintained as an ‘escape hatch’. The escape o f 61 million
Europeans after 1800 allowed the European economies to create such a mix o f the
factors of production as to allow for record economic growth and to avoid a situation
in which economic growth was absorbed by an increase in population. After the Second
World War, Europeans also benefitted from intercontinental migration since the colo­
nial empires forced many colonial subjects to migrate to the metropolis. In this parti­
cular period there was no danger of overpopulation... Many of the colonial migrants
coming to Europe had been well trained and they arrived at exactly the time when
skilled labour was at a premium in rebuilding Europe’s economy” [“A partir de 1800, o
dramático incremento do crescimento econômico da Europa ocidental só poderia ser
m antido como ‘aquecimento evasivo’. A evasão de 61 milhões de europeus depois de
1800 perm itiu às economias européias criar um a mescla dos fatores de produção que
permitisse um recorde de crescimento econômico e evitar a situação que fizesse o cres­
cimento econômico ser absorvido pelo aum ento populacional. Depois da Segunda
Guerra Mundial, os europeus também se beneficiaram da migração intercontinental,
visto que os impérios coloniais forçaram muitos súditos coloniais a migrar para as
metrópoles. Nesse período particular, não havia risco de superpopulação... A maioria
dos migrantes coloniais que foram para a Europa foram bem treinados e chegaram no
exato mom ento em que o trabalho especializado era mais necessário na reconstrução
da economia européia”] (pp. 72s.).

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 261


além disso, a obrigação de não limitar os contingentes de imigração
às carências econômicas do país que acolhe os imigrantes, mas sim
de limitá-los segundo critérios aceitáveis a partir da visão de todos os
envolvidos.

A política para a concessão de asilo


na Alemanha unificada

Tendo essas proposições fundamentais como ponto de partida,


não se pode justificar normativamente o acordo sobre as políticas de
asilo na Alemanha em vigor desde a primavera de 1993, selado entre o
governo cristão-democrata e o Partido Social-Democrata (PSD). Sem
poder dedicar-me aqui aos detalhes, menciono os três principais erros
aí presentes e as premissas que lhes subjazem:
(a) A regulamentação prevista restringe-se ao asilo político, isto
é, a medidas contra o “abuso” do direito a asilo. Com isso ignora-se
que a República Federal da Alemanha precisa de uma política de imi­
gração que também abra outras opções jurídicas para os imigrantes.
A definição errônea do problema da imigração, tal como ocorreu,
acarreta muitas conseqüências. Quem trata separadamente as ques­
tões do asilo político e as da imigração decorrente da pobreza trata
na verdade de declarar implicitamente sua intenção de se desven-
cilhar da obrigação moral da Europa ante os fugitivos das regiões do
m undo acometidas pela miséria. Em vez disso, aceita estrategica­
mente e de maneira tácita o ônus de uma imigração ilegal, que se pos­
sa a todo momento instrumentalizar para fins políticos como um “mau
uso do asilo”.
(b) A emenda parlamentar da Lei Fundamental, por meio de um
artigo 16a, antevista no acordo entre os partidos a que se chegou em
15 de janeiro de 1993, destrói o “teor essencial” do direito individual
legítimo ao asilo político: segundo ela os fugitivos procedentes de um
assim chamado “terceiro Estado seguro” podem ser deportados sem
interposição de recurso. Com isso se desvia o ônus da imigração à
Europa Oriental, aos países vizinhos da Alemanha, como a Polônia,
a República Tcheca, a Eslováquia, a Hungria e a Áustria; a países, por­
tanto, que na atual situação praticamente não estão preparados para

262 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
um tratamento juridicamente irreparável desse problema. Igualmen­
te problemática, além disso, é a restrição da garantia de defesa jurídica
para fugitivos de países que, a partir do ponto de vista da Alemanha,
passam a ser definidos como “isentos de perseguição”32.
(c) Em vez de tornar mais simples o processo de aquisição da
nacionalidade alemã para os estrangeiros já assentados na Alemanha,
especialmente para aqueles “trabalhadores-hóspedes” recrutados em
outros tempos, o acordo sobre o asilo recusa mudanças no direito à
naturalização. Aos estrangeiros já estabelecidos no país recusa-se a
concessão de dupla cidadania, embora houvesse razões muito com ­
preensíveis para que ela lhes coubesse de maneira preferencial; nem
sequer seus filhos nascidos na Alemanha adquirem os direitos de cida­
dania sem restrições. E até os estrangeiros dispostos a renunciar à ci­
dadania de que já dispõem precisam ser residentes na Alemanha há
mais de quinze anos para se naturalizar. Por outro lado, os assim cha­
mados “alemães por nacionalidade”, sobretudo poloneses e russos que
podem comprovar uma ascendência alemã, dispõem de direito cons­
titucionalm ente expresso a se naturalizar. Com base nesse funda­
mento, em 1992 foram acolhidos na Alemanha 220.000 novos cidadãos
de origem alemã provenientes do Leste Europeu, que se somaram a
500.000 outros solicitantes de asilo (entre os quais 130.000 provenientes
das regiões de conflito civil da ex-Iugoslávia).
(d) A política alemã para concessão de asilo baseia-se sobre a pre­
missa sempre reiterada de que a República Federal da Alemanha não é
um país de imigração. Isso contraria não somente o que se vê nas
ruas e metrôs em nossas grandes cidades — Frankfurt, por exemplo,
conta hoje com 26% de estrangeiros em sua população — , mas tam ­
bém os fatos históricos mais remotos. É bem verdade que desde o
início do século XIX emigraram, só para os Estados Unidos, cerca de

32. Em 14 de maio de 1996, com um a fundamentação escandalosa, do ponto de


vista do direito constitucional, o Segundo Senado da Corte Constitucional Federal
declarou conformes à Constituição tanto a “regulamentação de terceiros Estados”, pre­
vista na nova versão do direito fundam ental ao asilo, quanto a regulamentação sobre
a definição de “Estados de origem seguros”. Com isso, um direito fundamental é so­
brepujado por imperativos funcionais que exigem regime de urgência. Heribert Prantl
(no Süddeutschen Zeitungde 15-16 de maio de 1996) afirma o seguinte: “O regime de
urgência é mais im portante para a Corte Constitucional do que o direito ao asilo, mais
im portante que a dignidade humana, mais im portante que o princípio do procedi­
m ento justo e honesto.”

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 263


8 milhões de alemães. Mas ao longo do século passado também ocor­
reram grandes movimentos de imigração. Até a Primeira Guerra M un­
dial haviam ingressado 1.200.000 imigrantes no país, para trabalhar; a
Segunda Guerra Mundial deixou como legado 12.000.000 de“displaced
persons” — sobretudo pessoas sob o regime de trabalhos forçados, que
haviam sido deportadas da Polônia e da União Soviética. Na trilha da
política nacional-socialista para o trabalho estrangeiro, e à revelia das
altas taxas de desemprego no próprio país, teve início em 1955 o re­
crutamento sistemático de trabalhadores do sexo masculino, solteiros
e de baixa remuneração, provenientes de países estrangeiros do Sul e
Sudeste da Europa, o que perdurou até 1973. Hoje, as famílias e des­
cendentes dos “trabalhadores-hóspedes” que não retornaram a seus
países de origem vivem a situação paradoxal de serem imigrantes sem
perspectivas claras de imigração, de serem alemães com passaporte
estrangeiro33. Eles perfazem uma massa de 8,2% de estrangeiros que,
segundo dados de 1990, viviam na Alemanha. E o que torna ainda mais
difícil compreender essa resistência à plena integração dos estrangei­
ros, sem os quais não teria sido possível o crescimento econômico que
houve na Alemanha (comparável apenas ao do Japão), é o fato de que a
antiga República Federal da Alemanha, anterior à unificação, havia
integrado até aquele momento cerca de 15 milhões de fugitivos, emi­
grados e estrangeiros alemães ou descendentes de alemães, isto é, tam ­
bém “cidadãos novos”: “If a foreign population of about 4.8 million is
added, nearly one third of the West-German population has resulted
from immigration movements since World War II”34.
Se à revelia de todas essas evidências é possível sustentar politica­
mente junto à opinião pública a afirmação de que “não somos um país
de imigração”, isso trai uma mentalidade arraigada bem mais fundo
— e também a necessidade de uma dolorosa mudança da autocom-
preensão nacional dos alemães. Não é por acaso que as decisões sobre
naturalização sejam tomadas segundo o princípio da ascendência e
não, como em outros países, segundo o princípio territorial. Para en­
tender as deficiências descritas nos pontos (a) até (d) quanto ao trata­
mento do problema da imigração na Alemanha, é preciso ter como

33. Cf. K. J. Bade, “Immigration and Integration in Germany since 1945”, Euro-
pean Review, v. 1,1993, pp. 75-79.
34. Idem, ibidem, p. 77.

264 A INCLUSÃO DO OUTRO


pano de fundo a autocompreensão dos alemães enquanto nação de
concidadãos centrada na cultura e na língua. No caso da França, é fran­
cês quem nasce na França e tem os direitos de um cidadão francês no
âmbito do Estado; no caso da Alemanha, ainda se faziam distinções
refinadas entre “alemães”, ou seja, cidadãos de ascendência alemã no
âmbito do Estado, “alemães do Império”, ou seja, cidadãos de outra
ascendência, no âmbito do Estado, e “alemães por nacionalidade” —
os descendentes de alemães no exterior.
Ao passo que a consciência nacional da França pôde se desenvol­
ver no âmbito de um Estado territorial, na Alemanha ela se vinculou
primeiramente à idéia de uma “nação cultural”, de inspiração rom ân­
tica e cultivada pela burguesia letrada. Essa idéia representa uma uni­
dade imaginária que se viu obrigada, na época, a buscar sustentação
em traços comuns como a língua, a tradição e a ascendência, a fim de
poder ultrapassar a realidade política vigente, ou seja, a divisão em
dezenas de pequenos Estados. Ainda mais significativo é que a cons­
ciência nacional francesa pôde se desenvolver pari passu com a im po­
sição de direitos democráticos para os cidadãos e em luta contra a so­
berania do próprio rei, ao passo que o nacionalismo alemão surgiu de
maneira independente da luta por direitos democráticos de cidadania
e muito tempo antes da imposição de um Estado nacional alemão “pe­
queno” (ou seja, sem participação austríaca), vinda de cima e motiva­
da pela luta contra Napoleão, ou seja, contra um inimigo externo. Por
ter nascido de uma “luta por libertação” como essa, a consciência na­
cional na Alemanha pôde associar-se ao pathos de um caráter único e
peculiar da cultura e ascendência étnica alemã — um particularismo
que marcou de forma duradoura a autocompreensão desse povo.
Após 1945, depois do choque causado pelo extermínio em massa
do nacional-socialismo e a ruptura com a civilização que isso repre­
sentara, a República Federal da Alemanha havia se distanciado dessa
“consciência peculiar”. A isso se somaram a perda da soberania e a
posição periférica em um m undo bipolarizado. A dissolução da União
Soviética e a reunificação alteraram profundamente essa constelação.
Por isso, as reações ao radicalismo de direita, novamente reaceso, e
nesse contexto também o debate hipócrita sobre a questão do asilo,
acabam por suscitar a seguinte pergunta: a República Federal da Ale­
manha ampliada vai dar prosseguimento ao caminho da civilização
política ou se renova a velha “consciência peculiar” sob uma forma

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 265


nova? Essa questão é precária porque um processo de unificação esta­
tal apropriador e vindo de cima, imposto com diversos instrumentos
administrativos, certamente traçou um itinerário cheio de percalços.
Ainda está por acontecer, até hoje, o aclaramento urgente e necessário
da autocompreensão ético-política dos cidadãos de dois Estados com
destinos históricos tão divergentes. O caminho do ingresso de novos
estados na Federação (subdivisões da antiga República Democrática
da Alemanha, RDA) — duvidoso do ponto de vista político-constitu-
cional — impediu até hoje que se realizasse um debate constitucional;
e o debate ocasional que veio substituí-lo, sobre a sede da capital do
país, Bonn ou Berlim, foi conduzido sem grande clareza de posições.
Nesse ínterim, os cidadãos da ex-RDA, humilhados, em muitos senti­
dos, e privados no campo político de seus porta-vozes e de uma opi­
nião pública própria, têm agora de lutar com outros problemas: em
vez de participações claramente articuladas no debate, o que vem à
tona são ressentimentos cozidos a fogo brando.
Todo recalque produz seus sintomas. Um desafio após o outro
— da Guerra do Golfo até a participação das Forças Militares alemãs
fora da OTAN, passando por Maastricht, a guerra civil na Iugoslávia,
a questão do asilo e o radicalismo de direita — , tudo isso provoca
perplexidade na opinião pública e em um governo inerte. A constela­
ção das potências, hoje modificada, e uma situação diversa na polí­
tica interna certamente exigem respostas novas; a questão, apenas, é
saber sob que tipo de consciência a República Federal da Alemanha
cumprirá essa adaptação necessária diante de um quadro em que se
revelam como modelo de ação as decisões ad hoc e as mudanças sub-
cutâneas de humor.
Historiadores que publicaram livros escritos às pressas, intitu­
lados, por exemplo, Por um retorno à história ou Medo do poder, ofere­
cem-nos uma “despedida da velha República Federal”, à qual já deram
as costas; isso desmascara a visão da história bem-sucedida da demo­
cracia alemã do Pós-guerra como um “caminho peculiar” que se tri­
lhou. Na velha República Federal teria se corporificado a anormali­
dade imposta a uma nação vencida e dividida; agora, após a recon­
quista de sua grandeza e soberania nacionais, ela precisaria ser condu­
zida para longe de seu utopismo já esquecido de poder e reconvocada
ao caminho prefigurado e demarcado por Bismarck, de uma potência
autoconfiante e preponderante no centro da Europa. A comemoração

266 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
em torno da cesura de 1989 esconde atrás de si o anseio por norm ali­
zação (reiteradamente rechaçado) dos que não quiseram admitir a
cesura anterior, de 194 535. Essas pessoas se defendem contra uma al­
ternativa que — embora não leve necessariamente, e por um motivo
qualquer, a outras opções em curto prazo — faz surgir, isso sim, uma
outra perspectiva para a questão. Segundo essa leitura, a orientação
ocidental da antiga República Federal da Alemanha não corresponde
a uma decisão de política externa, prudente e episódica, e de forma
alguma a uma decisão estritamente política, mas sim a uma ruptura
intelectual bastante profunda com as tradições especificamente ale­
mãs que marcaram o Reino guilhermino e que fomentaram a deca­
dência da República de Weimar. Essa orientação do país traçou o iti­
nerário de uma mudança de mentalidade que — após a revolta estu­
dantil de 1968, sob as excelentes condições de uma sociedade de bem-
estar social existentes na época — alcançou agora camadas mais ex­
tensas da população e possibilitou pela primeira vez um enraizamento
da democracia e do Estado de direito em solo alemão. Hoje se trata de
adaptar o papel político da República Federal da Alemanha a novas
realidades, sem interromper sob o peso dos problemas econômicos e
sociais da reunificação o processo de civilização política que vinha
avançando até 1989 e sem sacrificar as conquistas normativas de uma
autocompreensão nacional fundamentada na noção da cidadania no
âmbito de um Estado, e não mais em velhas noções étnicas.

35. Cf. o capítulo que intitula tam bém o volume em J. Habermas, Die Normalitat
einer Berliner Republik, Frankfurt am Main, 1995.

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 267


!

J
9
Três modelos normativos
de democracia"

Com certo exagero no quê diz respeito à tipificação ideal,


irei referir-me na seqüência às compreensões “liberal” e “re­
publicana” de política — expressões que hoje marcam frentes
opostas no debate desencadeado nos Estados Unidos pelos
assim chamados comunitaristas. Referindo-me a F. Michel-
man, descreverei em primeiro lugar os dois modelos de demo­
cracia (polêmicos, quando contrapostos), sob o ponto de vista
dos conceitos de “cidadão do Estado” e “direito”, e segundo a
natureza do processo político de formação da vontade. Na
segunda parte, com base na crítica ao peso ético excessivo
que se impõe ao modelo republicano, desenvolverei então
um a terceira concepção, procedimentalista, que gostaria de
denominar “política deliberativa”.

O
A diferença decisiva reside na compreensão do papel
que cabe ao processo democrático. Na concepção “liberal”,
esse processo cumpre a tarefa de programar o Estado para *

* Tradução: Paulo Astor Soethe.

269
que se volte ao interesse da sociedade: imagina-se o Estado como apa­
rato da administração pública, e a sociedade como sistema de circula­
ção de pessoas em particular e do trabalho social dessas pessoas, es­
truturada segundo leis de mercado. A política, sob essa perspectiva, e
no sentido de formação política da vontade dos cidadãos, tem a fun­
ção de congregar e impor interesses sociais em particular mediante
um aparato estatal já especializado no uso administrativo do poder
político para fins coletivos.
Segundo a concepção “republicana”, a política não se confunde
com essa função mediadora; mais do que isso, ela é constitutiva do
processo de coletivização social como um todo. Concebe-se a polí­
tica como forma de reflexão sobre um contexto de vida ético. Ela cons­
titui o médium em que os integrantes de comunidades solidárias sur­
gidas de forma natural se conscientizam de sua interdependência
m útua e, como cidadãos, dão forma e prosseguimento às relações
preexistentes de reconhecimento mútuo, transformando-as de forma
voluntária e consciente em uma associação de jurisconsortes livres e
iguais. Com isso, a arquitetônica liberal do Estado e da sociedade so­
fre uma mudança importante. Ao lado da instância hierárquica regu­
ladora do poder soberano estatal e da instância reguladora descen­
tralizada do mercado, ou seja, ao lado do poder administrativo e dos
interesses próprios, surge também a solidariedade como terceira fonte
de integração social.
Esse estabelecimento da vontade política horizontal, voltada ao
entendimento m útuo ou ao consenso almejado por via comunicativa,
deve gozar até mesmo de primazia, se considerado do ponto de vista
tanto genético quanto normativo. Para a práxis de autodeterminação
por parte dos cidadãos no âmbito do Estado, aceita-se um a base social
autônoma que independa da administração pública e da mobilidade
socioeconômica privada, e que impeça a comunicação política de ser
tragada pelo Estado e assimilada pela estrutura de mercado. Na con­
cepção republicana, confere-se significado estratégico tanto à opinião
pública de caráter político quanto à sociedade civil, como seu susten-
táculo. Ambos devem conferir força integrativa e autonomia à práxis
de entendimento m útuo entre os cidadãos do Estado1. Ao desacopla-

1. Cf. H. Arendt, Über die Revolution,München, 1965 [ed.br.: Da revolução, São


Paulo, Ática, 1995]; idem, Macht und Gewalt, München, 1970.

270 A IN C L U S Ã O D O OUTRO
mento da comunicação política em relação à sociedade econômica
corresponde uma retroalimentação do poder administrativo a partir
do poder comunicativo decorrente do processo de formação da von­
tade e opinião políticas.
Dos dois enfoques concorrentes resultam diversas conseqüências.
(a) Em primeiro lugar diferenciam-se as concepções de cidadão do
Estado. Segundo a concepção liberal, determina-se o status dos cida­
dãos conforme a medida dos direitos individuais de que eles dispõem
em face do Estado e dos demais cidadãos. Como portadores de direi­
tos subjetivos, os cidadãos poderão contar com a defesa do Estado
desde que defendam os próprios interesses nos limites impostos pelas
leis — e isso se refere igualmente à defesa contra intervenções estatais
que excedam ressalva interventiva prevista em lei. Direitos subjetivos
são direitos negativos que garantem um espaço de ação alternativo
em cujos limites as pessoas do direito se vêem livres de coações exter­
nas. Direitos políticos têm a mesma estrutura: eles oferecem aos cida­
dãos a possibilidade de conferir validação a seus interesses particu­
lares, de maneira que esses possam ser agregados a outros interesses
privados (por meio de votações, formação de corporações parlamen­
tares e composições de governos) e afinal transformados em uma von­
tade política que exerça influência sobre a administração. Dessa m a­
neira, os cidadãos, como membros do Estado, podem controlar se o
poder estatal está sendo exercido em favor do interesse dos cidadãos
na própria sociedade2.

2. Cf. F. I. Michelman, “Political Truth and the Rule of Law”, TelAviv Univ. Stu-
dies in Law, n. 8, 1988, p. 283: “The political society envisioned by bumper-sticker
republicans is the society o f private right bearers, an association whose first principie is
the protection of lives, liberties and estates, o f its individual members. In that society,
the State is justified by the protection it gives to those prepolitical interests; the purpose
of the constitution is to ensure that the State apparatus, the government, provides such
protection for the people at large rather than serves the special interests of the governors
or their patrons; the fiinction of citizenship is to operate the constitution and thereby
motivate the governors to act according to that protective purpose; and the value to
you of your political franchise — your right to vote and speak, to have your views
heard and counted — is the handle it gives you on influencing the system so that it will
adequately heed and protect your particular, pre-political rights and other interests”.
[“A sociedade política que os adesivos republicanos esboçam é a sociedade dos porta­
dores de direitos privados, uma associação cujo primeiro princípio é a proteção das
vidas, liberdades e propriedades de seus membros individuais. Nessa sociedade, o es­
tado é justificado pela proteção que dá aos interesses pré-políticos; o propósito da

T rês modelos normativos de democracia 271


De acordo com a concepção republicana, o status dos cidadãos
não é determinado segundo o modelo das liberdades negativas, que
eles podem reivindicar como pessoas em particular. Os direitos de cida­
dania, direitos de participação e comunicação política são, em pri­
meira linha, direitos positivos. Eles não garantem liberdade em rela­
ção à coação externa, mas sim a participação em uma práxis comum,
por meio de cujo exercício os cidadãos só então se tornam o que tencio­
nam ser — sujeitos politicamente responsáveis de uma comunidade
de pessoas livres e iguais3. Em tal medida, o processo político serve
apenas ao controle da ação estatal por meio de cidadãos que, ao exerce­
rem seus direitos e as liberdades que antecedem a própria política,
tratam de adquirir uma autonomia já preexistente. O processo polí­
tico tampouco desempenha um a função mediadora entre Estado e
sociedade, já que o poder estatal democrático não é em hipótese algu­
ma uma força originária. A força origina-se, isso sim, do poder gerado
comunicativamente em meio à práxis de autodeterminação dos cida­
dãos do Estado e legitima-se pelo fato de defender essa mesma práxis
através da institucionalização da liberdade pública4. A justificação exis­

constituição é assegurar que o aparato estatal, o governo, proveja proteção para o povo,
sem servir a interesses privados dos governantes ou de seus patrões; a função da cida­
dania é praticar a constituição e, portanto, motivar os governantes a agirem segundo
esse objetivo de proteção; e o valor do direito político de cada um — direito a voto e
expressão, direito de ter a própria opinião ouvida e levada em conta — é o suporte que
ele dá ao indivíduo, para que ele influencie o sistema a dar atenção e proteção aos
interesses pré-políticos particulares e a outros interesses”].
3. Sobre a liberdade positiva versus a negativa, cf. Ch. Taylor,“Was ist menschliches
Handeln?” In: Negative Freiheit?, Frankfurt am Main, 1988, pp. 9ss.
4. Cf. F. I. Michelman, 1988, p. 284: “In civic constitutional vision, political society
is primarly the society not of right-bearers but o f citizens, an association whose first
principie is the creation and provision of a public realm within which a people, together,
argue and reason about the right terms of social coexistence, terms that they will set
together and which they understand as their common good... Hence the State is justified
by its purpose of establishing and ordering the public sphere within which persons can
achieve freedom in the sense of self-government by the exercise of reason in public
dialogue”. [“Na visão cívica constitucional, a sociedade política é primariamente a so­
ciedade não dos portadores de direitos, mas dos cidadãos, um a associação cujo princí­
pio primeiro é a criação e provisão de um âmbito público dentro do qual um a popula­
ção, em conjunto, discuta e raciocine sobre os termos do direito à coexistência social,
termos que serão definidos em conjunto e entendidos como bem co m u m ... A partir
disso o estado é justificado por seu propósito de estabelecer e ordenar a esfera pública
dentro da qual as pessoas podem alcançar a liberdade no sentido de autogoverno pelo
exercício da razão no diálogo público”].

272 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
tencial do Estado não reside primeiramente na defesa dos mesmos
direitos subjetivos, mas sim na garantia de um processo inclusivo de
formação da opinião e da vontade, em que cidadãos livres e iguais
chegam ao acordo m útuo quanto a quais devem ser os objetivos e
normas que correspondam ao interesse comum. Com isso, exige-se
do cidadão republicano mais que a orientação segundo seus respecti­
vos interesses próprios.
(b) Na polêmica contra o conceito clássico da pessoa do direito
como portadora de direitos subjetivos revela-se a controvérsia em tor­
no do conceito de direito em si mesmo. Segundo a concepção liberal, o
sentido de um a ordem jurídica consiste em que ela possa constatar
em cada caso individual quais são os direitos cabíveis a que indiví­
duos; em uma concepção republicana esses direitos subjetivos se de­
vem a uma ordem jurídica objetiva, que possibilite e garanta a integri­
dade de um convívio eqüitativo, autônom o e fundamentado sobre o
respeito mútuo. Em um dos casos a ordem jurídica constrói-se a par­
tir de direitos subjetivos, no outro caso concede-se um primado ao
teor jurídico objetivo desses mesmos direitos.
Esses conceitos dicotômicos certamente não atingem o teor in-
tersubjetivo dos direitos, que exigem a consideração recíproca de di­
reitos e deveres, em proporções simétricas de reconhecimento. Na ver­
dade, o projeto republicano vai ao encontro de um conceito de direito
que atribui pesos iguais de um lado à integridade do indivíduo e suas
liberdades subjetivas, e de outro lado à integridade da comunidade
em que os indivíduos podem se reconhecer uns aos outros como seus
membros e enquanto indivíduos. Esse projeto vincula a legitimidade
das leis ao procedimento democrático de sua gênese, e preserva assim
uma coesão interna entre a práxis de autodeterminação do povo e do
dom ínio impessoal das leis: “For republicans rights ultimatly are
nothing but determinations of the prevailing political will, while for
liberais some rights are always grounded in a ‘higher law’ of trans-
political reason or revelation... In a republican view, a com m unitys
objective, the common good substancially consists in the success of its
political endeaver to define, establish, effectuate and sustain the set of
rights (less tendentiously laws) best suited to the conditions and m o­
res of that community, whereas in a contrasting liberal view the higher
law rights provide the transcendental structures and the curbs on power
required so that pluralistic pursuit of diverse and conflicting interests

T rês modelos normativos de democracia 273


may proceed as satisfactorily as possible”5. [“Para os republicanos os
direitos nada são, em última instância, senão determinações da vonta­
de política prevalecente; para os liberais, por sua vez, alguns direitos
estão sempre embasados em um ‘direito supremo’ da razão ou revela­
ção transpolíticas... Em uma visão republicana, um objetivo da comu­
nidade, o bem comum, consiste substancialmente no sucesso de seu
esforço político por definir, estabelecer, tornar efetivo e manter vigente
o conjunto de direitos (ou leis, para ser menos tendencioso) mais ade­
quados às condições e costumes dessa comunidade; por outro lado, em
uma visão liberal contrastante, a lei jurídica maior proporciona as es­
truturas transcendentais e as limitações de poder necessárias para que
o esforço pluralista por cumprir interesses diversos e conflitivos possa
continuar ocorrendo de forma tão satisfatória quanto possível”.]
O direito ao voto, interpretado como liberdade positiva, torna-se
paradigma dos direitos em geral, não apenas pelo fato de ser constitu­
tivo para a autodeterminação política, mas porque nele fica claro como
a inclusão em uma comunidade de cidadãos dotados de direitos iguais
está associada ao direito individual a contribuir individualmente e de
forma autônoma e a assumir posicionamentos próprios: “The claim is,
that we all take an interest in each others enfranchisement because (I)
our choice lies betwenn hanging together and hanging separately; (II)
hanging together depends on reciprocai assurance to all of having one’s
vital interests heeded by the others; and (III) in the deeply pluralized
conditions of contemporary American society, such assurances are
attainable... .only by maintaining at least the semblance of a politics in
which everyone is conceded a voice”6. Essa estrutura que se pode iden­
tificar com base na interpretação dos direitos à comunicação e à parti­
cipação política distribui-se entre todos os direitos ao longo do proces­
so legislativo que os constitui. Também a atribuição de poder no âmbi­
to do direito privado para que se persigam fins privados e livremente
escolhidos obriga concomitantemente a que se respeitem os limites da
ação estratégica acordados segundo o interesse de todos.
(c) As diferentes conceituações do papel do cidadão e do direito
são expressão de um dissenso de raízes mais profundas sobre a natu­

5. F. I. Michelman, “Conceptions of Democracy in American Constitutional


Argument: Voting Rights”, Florida Law Review, n. 41,1989, pp. 446s.
6. F. I. Michelman, ibidem, p. 484.

274 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
reza do processo político. Segundo a concepção liberal, a política é es­
sencialmente uma luta por posições que permitam dispor do poder
administrativo. O processo de formação da vontade e da opinião polí­
tica, tanto em meio à opinião pública como no parlamento, é deter­
minado pela concorrência entre agentes coletivos agindo estrategica­
mente e pela manutenção ou conquista de posições de poder. O êxito
nesse processo é medido segundo a concordância dos cidadãos em
relação a pessoas e programas, o que se quantifica segundo números
de votos. Ao votar, os eleitores expressam suas preferências. As deci­
sões que tomam nas eleições têm a mesma estrutura que os atos eletivos
de participantes do mercado voltados à conquista de êxito. São os elei­
tores que licenciam o acesso a posições de poder pelas quais os parti­
dos políticos lutam, em uma mesma atitude que se orienta pela busca
de sucesso. Um mesmo modelo de ação estratégica corresponde igual­
mente ao inputàos votos e ao output do poder.
Segundo a concepção republicana, a formação de opinião e von­
tade política em meio à opinião pública e no parlamento não obedece
às estruturas de processos de mercado, mas às renitentes estruturas de
uma comunicação pública orientada ao entendimento mútuo. Para a
política no sentido de uma práxis de autodeterminação por parte de
cidadãos do Estado, o paradigma não é o mercado, mas sim a inter-
locução. Segundo essa visão, há um a diferença estrutural entre o po­
der comunicativo, que advém da comunicação política na forma de
opiniões majoritárias estabelecidas por via discursiva, e o poder admi­
nistrativo de que dispõe o aparato estatal. Também os partidos que
lutam pelo acesso a posições de poder no Estado têm de se adequar ao
estilo e à renitência dos discursos políticos: “Deliberation... refers to a
certain attitude toward social cooperation, namely, that of openness
to persuasion by reasons referring to the claims of others as well as
one’s own. The deliberative médium is a good faith exchange of views
— including participants reports of their own understanding of their
respective vital interests — ... in which a vote, if any vote is taken, repre-
sents a pooling of judgements”7. Portanto, o embate de opiniões ocor­
rido na arena política tem força legitimadora não apenas no sentido
de uma autorização para que se ocupem posições de poder; mais que
isso, o discurso político ocorrido continuamente também apresenta

7. F. I. Michelman, Pornography, 1989, p. 293.

T rês modelos normativos de democracia 275


força vinculativa diante desse tipo de exercício de dominação política.
O poder administrativo só pode ser aplicado com base em políticas e
no limite das leis que nascem do processo democrático.

O
Por ora, é o que basta dizer sobre a comparação entre os dois
modelos de democracia que hoje dominam a discussão entre os assim
chamados comunitaristas e os “liberais”, sobretudo nos Estados Uni­
dos. O modelo republicano tem vantagens e desvantagens. Vejo como
vantagem o fato de ele se firmar no sentido radicalmente democrático
de uma auto-organização da sociedade pelos cidadãos em acordo
mútuo por via comunicativa e não remeter os fins coletivos tão-so­
mente a um “deal” [uma negociação] entre interesses particulares opos­
tos. Como desvantagem, entendo o fato de ele ser bastante idealista e
tornar o processo democrático dependente das virtudes de cidadãos
voltados ao bem comum. Pois a política não se constitui apenas — e
nem sequer em primeira linha — de questões relativas ao acordo m ú­
tuo de caráter ético. O erro reside em uma condução estritamente ética
dos discursos políticos.
Por certo, entre os elementos que formam a política são muito
importantes os discursos de auto-entendimento m útuo em que os
envolvidos procuram obter clareza quanto à maneira como eles mes­
mos se entendem enquanto integrantes de uma determinada nação,
membros de certa municipalidade ou Estado, habitantes de uma re­
gião etc., ou ainda quanto às tradições a que dão continuidade, à ma­
neira como se tratam entre si e como tratam minorias ou grupos mar­
ginalizados, quanto ao tipo de sociedade em que querem viver. Mas
sob as condições do pluralismo cultural e social também é freqüente
haver, por detrás de objetivos politicamente relevantes, interesses e
orientações de valor que de forma alguma são constitutivos para a
identidade da coletividade em geral, ou seja, para o todo de uma for­
ma de vida partilhada intersubjetivamente. Esses interesses e orienta­
ções de valor que permanecem em conflito no interior de uma mesma
coletividade sem qualquer perspectiva de consenso precisam ser com­
pensados; para isso não bastam os discursos éticos — mesmo que os
resultados dessa compensação (alcançada com recursos não-discur-
sivos) sofram a restrição de não poder ferir os valores fundamentais

276 A INCLUSÃO D0 OUTRO


de uma cultura partilhados por seus integrantes. A compensação de
interesses realiza-se sob a forma do estabelecimento de um acordo
entre partidos que se apoiam sobre potencialidades de poder e de san­
ções. Negociações desse tipo certamente pressupõem uma disposição
à cooperação, ou seja, a vontade de obter resultados mediante a ob­
servância de regras do jogo que sejam aceitáveis para todos os parti­
dos, mesmo que por razões diversas. Contudo, o estabelecimento do
acordo não ocorre sob as formas de um discurso racional, neutrali-
zador do poder e capaz de excluir toda ação estratégica. Na verdade, a
justiça e honestidade dos acordos se medem pelos pressupostos e pro­
cedimentos que precisam, eles mesmos, de uma justificação racional e
até mesmo normativa sob o ponto de vista da justiça. Diversamente
do que se dá com questões éticas, as questões de justiça não estão rela­
cionadas desde a origem a uma coletividade em particular. O direito
firmado politicamente, caso se pretenda legítimo, precisa ao menos
estar em consonância com princípios morais que reivindiquem vali­
dação geral, para além de uma comunidade jurídica concreta.
O conceito de uma política deliberativa só ganha referência em ­
pírica quando fazemos jus à diversidade das formas comunicativas na
qual se constitui uma vontade comum, não apenas por um auto-enten-
dimento mútuo de caráter ético, mas também pela busca de equilíbrio
entre interesses divergentes e do estabelecimento de acordos, da che­
cagem da coerência jurídica, de uma escolha de instrumentos racional
e voltada a um fim específico e por meio, enfim, de uma fundamenta­
ção moral. Assim, os dois tipos de político que Michelman contrapõe
em um exercício de tipificação ideal podem impregnar-se um do ou­
tro e complementar-se. A política dialógica e a instrumental, quando
as respectivas formas de comunicação estão suficientemente institucio­
nalizadas, podem entrecruzar-se no médium das deliberações. Tudo
depende, portanto, das condições de comunicação e procedimento que
conferem força legitimadora à formação institucionalizada da opinião
e da vontade. O terceiro modelo de democracia que me permito suge­
rir baseia-se nas condições de comunicação sob as quais o processo
político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais, justamente
por cumprir-se, em todo seu alcance, de modo deliberativo.
Quando se faz do conceito procedimental da política delibera­
tiva o cerne normativamente consistente da teoria sobre a democracia,
resultam daí diferenças tanto em relação à concepção republicana do

T rês modelos normativos de democracia 277


Estado como uma comunidade ética, quanto em relação à concep­
ção liberal do Estado como defensor de uma sociedade econômica.
Ao comparar os três modelos, tom o como ponto de partida a dimen­
são da política que nos ocupou até o momento: a formação demo­
crática da opinião e da vontade que resulta em eleições gerais e de­
cisões parlamentares.
Segundo a concepção liberal, esse processo apenas tem resulta­
dos sob a forma de arranjos de interesses. As regras de formação de
acordos desse tipo — às quais cabe assegurar a justiça e honestidade
dos resultados através de direitos iguais e universais ao voto e da com­
posição representativa das corporações parlamentares, suas leis or­
gânicas etc. — são fundamentadas a partir de princípios constitucio­
nais liberais. Segundo a concepção republicana, por outro lado, a for­
mação democrática da vontade cumpre-se sob a forma de um auto-
entendimento ético; nesse caso, a deliberação pode se apoiar quanto
ao conteúdo em um consenso a que os cidadãos chegam por via cul­
tural e que se renova na rememoração ritualizada de um ato republi­
cano de fundação. A teoria do discurso acolhe elementos de ambos
os lados e os integra no conceito de um procedimento ideal para o
aconselhamento e tomada de decisões. Esse procedimento democrático
cria uma coesão interna entre negociações, discursos de auto-entendi-
mento e discursos sobre a justiça, além de fundam entar a suposição de
que sob tais condições se almejam resultados ora racionais, ora justos
e honestos. Com isso, a razão prática desloca-se dos direitos univer­
sais do homem ou da eticidade concreta de uma determinada comuni­
dade e restringe-se a regras discursivas e formas argumentativas que
extraem seu teor normativo da base validativa da ação que se orienta
ao estabelecimento de um acordo mútuo, isto é, da estrutura da comu­
nicação lingüística8.
Com essas descrições estruturais do processo democrático fica
traçado o itinerário para se chegar a uma conceituação normativa de
Estado e de sociedade. O pressuposto para isso é haver simplesmente
uma administração pública do tipo que se desenvolveu no início da
Era M oderna em conjunto com o sistema estatal europeu e que se
desenvolveu sob um entrecruzamento funcional com o sistema eco­

8. Cf. J. Habermas, “Volkssouverãnitãt ais Verfahren”. In: J. Habermas, 1990, pp.


600-631.

278 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
nômico capitalista. Segundo a concepção republicana a formação po­
lítica da opinião e vontade dos cidadãos forma o médium sobre o
qual a sociedade se constitui como um todo firmado politicamente.
A sociedade centra-se no Estado; pois na práxis de autodeterm ina­
ção política dos cidadãos a coletividade torna-se consciente de si
mesma como um todo e age efetivamente sobre si mesma através da
vontade coletiva dos cidadãos. Democracia é sinônimo de auto-orga-
nização política da sociedade. Resulta daí uma compreensão de política
polemicamente direcionada contra o Estado. Dos escritos políticos de
Hannah Arendt é possível depreender a rota de colisão pela qual se di­
reciona a argumentação republicana; apontada contra o privatismo
burguês de uma população despolitizada e contra a busca de legiti­
mação por parte de partidos estatizados, a opinião pública de cunho
político deve revitalizar-se a ponto de um conjunto de cidadãos rege­
nerados, nas diversas formas de um a auto-administração descentra­
lizada, ser capaz de se (re)apossar do poder estatal burocraticamente
autônomo.
Segundo a concepção liberal, não há como eliminar essa sepa­
ração entre o aparato estatal e a sociedade, mas apenas superar a dis­
tância entre ambos pela via do processo democrático. As débeis co­
notações normativas de uma equilibração regrada do poder e dos
interesses certamente carecem de um a complementação estatal e ju­
rídica. A formação democrática da vontade de cidadãos interessados
em si mesmos, entendida de forma minimalista, constitui não mais
que um elemento no interior de um a constituição que tem por tarefa
disciplinar o poder estatal por meio de precauções normativas (como
direitos fundamentais, divisão em poderes e vinculação da adm inis­
tração à lei) e ainda impulsioná-lo à devida consideração dos diver­
sos interesses e orientações de valores na sociedade. Essa compreen­
são de política centrada no Estado pode prescindir da assunção irrea­
lista de um conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir. Ela
não se orienta pelo input de um a formação política e racional da von­
tade, mas sim pelo output de um balanço positivo ao se avaliar as
conquistas da atividade estatal. A rota de colisão dessa argumentação
tem seu alvo no potencial perturbador de um poder estatal que im ­
peça a circulação social autônom a das pessoas em particular. O cen­
tro do modelo liberal não é a autodeterminação democrática de ci­
dadãos deliberantes, mas sim a normatização jurídico-estatal de uma

T rês modelos normativos de democracia 279


sociedade econômica cuja tarefa é garantir um bem comum enten­
dido de forma apolítica, pela satisfação das expectativas de felicidade
de cidadãos produtivamente ativos.
A teoria do discurso, que obriga ao processo democrático com
conotações mais fortemente normativas do que o modelo liberal, mas
menos fortemente normativas do que o modelo republicano, assume
por sua vez elementos de ambas as partes e os combina de uma ma­
neira nova. Em consonância com o republicanismo, ele reserva uma
posição central para o processo político de formação da opinião e da
vontade, sem no entanto entender a constituição jurídico-estatal como
algo secundário; mais que isso, a teoria do discurso concebe os direi­
tos fundamentais e princípios do Estado de direito como um a respos­
ta conseqüente à pergunta sobre como institucionalizar as exigentes
condições de comunicação do procedimento democrático. A teoria
do discurso não torna a efetivação de uma política deliberativa de­
pendente de um conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir,
mas sim da institucionalização dos procedimentos que lhe digam res­
peito. Ela não opera por muito tempo com o conceito de um todo
social centrado no Estado e que se imagina em linhas gerais como um
sujeito acionai orientado por seu objetivo. Tampouco situa o todo em
um sistema de normas constitucionais que inconscientemente regram
o equilíbrio do poder e de interesses diversos de acordo com o mode­
lo de funcionamento do mercado. Ela se despede de todas as figuras
de pensamento que sugiram atribuir a práxis de autodeterminação,
dos cidadãos a um sujeito social totalizante, ou que sugiram referir o
domínio anônimo das leis a sujeitos individuais concorrentes entre si.
Na primeira possibilidade o conjunto de cidadãos é abordado como
um agente coletivo que reflete o todo e age em seu favor; na segunda,
os agentes individuais funcionam como variáveis dependentes em
meio a processos de poder que se cumprem cegamente, já que para
além de atos eletivos individuais não poderia haver quaisquer deci­
sões coletivas cumpridas de forma consciente (a não ser em um senti­
do meramente metafórico).
Em face disso, a teoria do discurso conta com a intersubjetivida-
de mais avançada presente em processos de entendimento m útuo que
se cumprem, por um lado, na forma institucionalizada de aconselha­
mentos em corporações parlamentares, bem como, por outro lado, na
rede de comunicação formada pela opinião pública de cunho político.

280 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
Essas comunicações sem sujeito, internas e externas às corporações
políticas e programadas para tomar decisões, formam arenas nas quais
pode ocorrer a formação mais ou menos racional da opinião e da von­
tade acerca de temas relevantes para o todo social e sobre matérias
carentes de regulamentação. A formação de opinião que se dá de m a­
neira informal desemboca em decisões eletivas institucionalizadas e
em resoluções legislativas pelas quais o poder criado por via comuni­
cativa é transformado em poder administrativamente aplicável. Como
no modelo liberal, respeita-se o limite entre Estado e sociedade; aqui,
porém, a sociedade civil, como fundamento social das opiniões públi­
cas autônomas, distingue-se tanto dos sistemas econômicos de ação
quanto da administração pública. Dessa compreensão democrática,
resulta por via normativa a exigência de um deslocamento dos pesos
que se aplicam a cada um dos elementos na relação entre os três recur­
sos a partir dos quais as sociedades modernas satisfazem sua carência
de integração e direcionamento, a saber: o dinheiro, o poder adminis­
trativo e a solidariedade. As implicações normativas são evidentes: o
poder socialmente integrativo da solidariedade, que não se pode mais
tirar apenas das fontes da ação comunicativa, precisa desdobrar-se so­
bre opiniões públicas autônomas e amplamente espraiadas, e sobre
procedimentos institucionalizados por via jurídico-estatal para a for­
mação democrática da opinião e da vontade; além disso, ele precisa
também ser capaz de afirmar-se e contrapor-se aos dois outros pode­
res, ou seja, ao dinheiro e ao poder administrativo.

Essa concepção tem conseqüências para a compreensão de legi­


timação e soberania popular. Segundo a concepção liberal, a forma­
ção democrática da vontade tem exclusivamente a função de legitimar
o exercício do poder político. Resultados de eleições equivalem a uma
licença para a tomada do poder governamental, ao passo que o gover­
no tem de justificar o uso desse poder perante a opinião pública e o
parlamento. Segundo a concepção republicana, a formação democrá­
tica da vontade tem a função essencialmente mais forte de constituir a
sociedade enquanto uma coletividade política e de manter viva a cada
eleição a lembrança desse ato fundador. O governo não é apenas in­
vestido de poder para o exercício de um mandato sem maiores víncu­

T rês modelos normativos de democracia 281


los, por meio de uma eleição entre grupos de liderança concorrentes;
ao contrário, ele está comprometido também programaticamente com
a execução de determinadas políticas. Sendo mais uma comissão do
que um órgão estatal, ele é parte de uma comunidade política que se
administra a si própria, e não o topo de um poder estatal separado.
Com a teoria do discurso, novamente entra em cena outra noção: pro­
cedimento e pressupostos comunicacionais da formação democrá­
tica da opinião e da vontade funcionam como importantes escoadouros
da racionalização discursiva das decisões de um governo e adminis­
tração vinculados ao direito e à lei. Racionalização significa mais que
mera legitimação, mas menos que a própria ação de constituir o poder.
O poder administrativamente disponível modifica seu estado de mero
agregado desde que seja retroalimentado por uma formação demo­
crática da opinião e da vontade que não apenas exerça posteriormente
o controle do exercício do poder político, mas que também o programe,
de uma maneira ou de outra. A despeito disso, o poder político só
pode “agir”. Ele é um sistema parcial especializado em decisões cole­
tivamente vinculativas, ao passo que as estruturas comunicativas da
opinião pública compõem um a rede amplamente disseminada de
sensores que reagem à pressão das situações problemáticas no todo
social e que simulam opiniões influentes. A opinião pública transfor­
mada em poder comunicativo segundo procedimentos democráticos
não pode “dom inar”, mas apenas direcionar o uso do poder adminis­
trativo para determinados canais.
O conceito de soberania popular deve-se à apropriação republi­
cana e à revalorização da noção de soberania surgida no início da Era
Moderna e inicialmente associada aos déspotas que governavam de
modo absolutista. O Estado, que monopoliza os meios da aplicação
legítima da força, é concebido como um concentrado de poder, capaz
de prevalecer sobre todas os demais poderes do mundo. Rousseau
transpôs essa figura de pensamento (proposta inicialmente por Bodin)
à vontade do povo unificado, mesclada à idéia clássica do autodomí­
nio de indivíduos livres e iguais e suprassumida no conceito moderno
de autonomia. Apesar dessa sublimação normativa, o conceito de so­
berania permaneceu ligado à noção de uma corporificação sua no povo
(presente inclusive de forma física, no início). Segundo a concepção
republicana, o povo (ao menos potencialmente presente) é portador
de uma soberania que por princípio não se pode delegar: não é admis­

282 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
sível que, em sua qualidade de soberano, o povo se deixe representar.
O poder constituinte funda-se na práxis autodeterminativa de seus
cidadãos, não de seus representantes. A isso o liberalismo contrapõe a
concepção mais realista de que no Estado de direito democrático o
poder estatal que nasce do povo só é exercido “em eleições e votações
e por meio de organismos legislativos específicos, organismos do poder
executivo e da jurisdição” (é o que se lê, por exemplo, no art. 20, § 2o
da Constituição da República Federal da Alemanha).
Essas duas concepções certamente oferecem uma alternativa en­
tre aquelas premissas muito questionáveis de um projeto de Estado e
de sociedade que toma como ponto de partida o todo e suas partes —
muito embora o todo seja formado ou por um conjunto soberano de
cidadãos ou por uma constituição. Ao conceito de discurso na dem o­
cracia, por outro lado, corresponde a imagem de uma sociedade des­
centralizada, que na verdade diferencia e autonomiza com a opinião
pública um cenário propício à constatação, identificação e tratam en­
to de problemas pertinentes à sociedade como um todo. Quando se
sacrifica a formação de conceito ligada à filosofia do sujeito, a sobe­
rania não precisa se concentrar no povo de forma concretista, nem
exilar-se na anonimidade de competências atribuídas pelo direito
constitucional. O si-mesmo da comunidade jurídica que se organiza
desaparece em formas de comunicação isentas de sujeitos, as quais
regulam o fluxo da formação discursiva da opinião e da vontade de
modo que seus resultados falíveis guardem para si a suposição de ra­
cionalidade. Com isso, a intuição vinculada à idéia de soberania po­
pular não é desmentida, mas interpretada de maneira intersubjeti-
vista. Uma soberania popular, mesmo que se tenha tornado anôni­
ma, só se abriga no processo democrático e na implementação jurí­
dica de seus pressupostos comunicacionais, bastante exigentes por
sinal, caso tenha por finalidade conferir validação a si mesma enquanto
poder gerado por via comunicativa. Sendo mais exato, essa validação
provém das interações entre a formação da vontade institucionaliza­
da de maneira jurídico-estatal e as opiniões públicas culturalmente
mobilizadas, que de sua parte encontram uma base nas associações
de um a sociedade civil igualmente distante do Estado e da economia.
De fato, a autocompreensão normativa da política deliberativa
exige para a comunidade jurídica um modo de coletivização social; esse
mesmo modo de coletivização social, porém, não se estende ao todo

T rês M O D F .L O S N O R M A T IV O S D E D E M O C R A C I A 283
da sociedade em que se aloja o sistema político constituído de maneira
jurídico-estatal. Também em sua autocompreensão, a política delibe­
rativa continua sendo elemento constitutivo de uma sociedade com­
plexa que no todo se exime de assumir um ponto de vista normativo
como o da teoria do direito. Nesse sentido, a leitura da democracia
feita segundo a teoria do discurso vincula-se a uma abordagem distan­
ciada, própria às ciências sociais, e para a qual o sistema político não é
nem o topo nem o centro da sociedade, nem muito menos o modelo
que determina sua marca estrutural, mas sim um sistema de ação ao
lado de outros. Como a política consiste em uma espécie de lastro
reserva na solução de problemas que ameacem a integração, ela certa­
mente tem de poder se comunicar pelo médium do direito com todos
os demais campos de ação legitimamente ordenados, seja qual for a
maneira como eles se estruturem ou direcionem. Se o sistema polí­
tico, no entanto, depende de outros desempenhos do sistema— como
o desempenho fiscal do sistema econômico, por exemplo — , isso não
se dá em um sentido meramente trivial; ao contrário, a política deli­
berativa, realizada ou em conformidade com os procedimentos con­
vencionais da formação institucionalizada da opinião e da vontade,
ou informalmente, nas redes da opinião pública, m antém uma rela­
ção interna com os contextos de um universo de vida cooperativo e
racionalizado. Justamente os processos comunicativos de cunho polí­
tico que passam pelo filtro deliberativo dependem de recursos do uni­
verso vital — da cultura política libertadora, de uma socialização po­
lítica esclarecida e sobretudo das iniciativas de associações formado­
ras de opinião — , recursos que se formam de maneira espontânea ou
que, em todo caso, só podem ser atingidos com grande dificuldade,
caso o caminho escolhido para se tentar alcançá-los seja o do direcio­
namento político.

284 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
Sobre a coesão interna
entre Estado de direito
e democracia

Embora no meio acadêmico seja freqüente mencionar


direito e política de um só fôlego, ao mesmo tempo acos-
tum am o-nos a abordar o direito, o Estado de direito e a de­
mocracia como objetos pertencentes a disciplinas diversas:
a jurisprudência trata do direito, a ciência política trata da
democracia; uma delas trata do Estado de direito sob pon­
tos de vista normativos, e a outra, sob pontos de vista em ­
píricos. A divisão científica do trabalho não cessa de valer
nem mesmo quando os juristas se ocupam ora do direito e
do Estado de direito, ora da formação da vontade no Estado
constitucional democrático; nem quando os cientistas so­
ciais se ocupam, como sociólogos do direito, do direito e do
Estado de direito, e, como cientistas políticos, do processo
democrático. Estado de direito e democracia apresentam-
se para nós como objetos totalmente diversos. Há boas ra­
zões para isso. Como todo domínio político é exercido sob
a forma do direito, tam bém aí existem ordens jurídicas em,
que o poder político ainda não foi domesticado sob a for­
ma do Estado de direito. E da mesma forma há Estados de*

* Tradução: Paulo Astor Soethe.

285
direito em que o poder governamental ainda não foi democratizado.
Em suma, há ordens jurídicas estatais sem instituições próprias a um
Estado de direito, e há Estados de direito sem constituições democrá­
ticas. Essas razões empíricas para um tratamento acadêmico dos dois
objetos marcado pela divisão do trabalho, porém, não significam de
modo algum que possa haver do ponto de vista normativo um Estado
de direito sem democracia.
A seguir, pretendo abordar a relação interna entre Estado de di­
reito e democracia sob vários aspectos. Essa relação resulta do próprio
conceito moderno de direito (I), bem como da circunstância de que
hoje o direito positivo não pode mais obter sua legitimidade recorren­
do a um direito superior (II). O direito moderno legitima-se a partir
da autonomia garantida de maneira uniforme a todo cidadão, sendo
que a autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente (III).
Essa concatenação conceituai também passa a ter validade na dialética
entre as igualdades jurídica e factual, suscitada pelo paradigma jurí­
dico socioestatal em face da compreensão liberal do direito e que hoje
compele a uma autocompreensão procedimentalista do Estado demo­
crático de direito (IV). Para concluir, explicarei o paradigma jurídico
procedimentalista a partir do exemplo da política feminista pela igual­
dade de direitos (V).

O
Qualidades formais do direito moderno

Desde Locke, Rousseau e Kant, não apenas na filosofia, mas tam ­


bém pouco a pouco na realidade constitucional das sociedades oci­
dentais, firmou-se um conceito de direito do qual se espera que preste
contas tanto à positividade quanto ao caráter do direito coercivo como
assegurador da liberdade. Se as normas sustentadas por meio de amea­
ças de sanções estatais remontam a decisões modificáveis de um legis­
lador político, essa circunstância enreda-se à exigência de legitimação
de que esse tipo de direito escrito seja capaz de assegurar eqüita-
tivamente a autonomia de todas as pessoas do direito; e para que se
atenda essa exigência, o procedimento democrático legislativo deve
ser suficiente. Dessa maneira cria-se uma relação conceituai entre o
caráter coercivo e a modificabilidade do direito positivo, por um lado,

286 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
e um modo de estabelecimento do direito capaz de gerar legitimida­
de, por outro. Por isso, de um ponto de vista normativo subsiste não
apenas uma relação historicamente casual entre a teoria do direito e a
teoria da democracia, mas sim um a relação conceituai ou interna.
À prim eira vista isso parece um truque filosófico. Na realidade,
porém, essa relação interna está profundam ente alicerçada nas pres­
suposições de nossa práxis jurídica cotidiana. Pois no modo de vali­
dação do direito a facticidade da imposição do direito por via estatal
enlaça-se com a força legitimadora de um procedimento instituidor
do direito, o qual, de acordo com sua pretensão, é racional, justa­
m ente por fundam entar a liberdade. Isso se revela na peculiar am ­
bivalência com que o direito vai de encontro a seus destinatários e
deles espera obediência. Pois ele os deixa livres, seja para considerar
as norm as apenas como uma restrição efetiva de seu espaço de ação
e portar-se estrategicamente em face das conseqüências previsíveis
de uma possível violação das regras, seja para querer cumprir as leis em
uma atitude performativa — e isso por respeito a resultados de uma
formação comum da vontade que demandam legitimidade para si.
Kant, com o conceito de legalidade, já destacava a ligação entre esses
dois m omentos sem os quais não se pode exigir qualquer obediência
legal: normas jurídicas têm de ser tais que possam ser consideradas a
um só tempo, e sob cada um dos diferentes aspectos, como leis coerci-
vas e como leis da liberdade. Esse duplo aspecto integra nossa com ­
preensão do direito moderno: consideramos a validade de uma norma
jurídica como um equivalente da explicação para o fato de o Estado
garantir ao mesmo tempo a efetiva imposição jurídica e a institui­
ção legítima do direito — ou seja, garantir de um lado a legalidade
do procedimento no sentido de um a observância média das normas
que em caso de necessidade pode ser até mesmo impingida através
de sanções, e, de outro lado, a legitimidade das regras em si, da qual
se espera que possibilite a todo m om ento um cum prim ento das nor­
mas por respeito à lei.
Com isso, surge de imediato a pergunta sobre como afinal se
deve fundamentar a legitimidade de regras que podem ser alteradas
pelo legislador a qualquer momento. Normas constitucionais tam ­
bém são modificáveis; e até mesmo as normas básicas que a própria
Constituição declara imodificáveis compartem com o direito positi­
vo a sina de poderem deixar de vigorar, por exemplo se ocorrer uma

Sobre a coesão interna entre Estado de direito e democracia 287


mudança de regime. Enquanto se pôde recorrer ao direito natural
fundamentado na religião ou na metafísica, pôde-se também repre­
sar por meio da m oral o turbilhão da temporalidade que atraía o di­
reito positivo para dentro de si. O direito positivo temporalizado —
no sentido de uma hierarquia de leis — deveria permanecer subordi­
nado ao direito m oral eternamente válido e receber dele suas orienta­
ções permanentes. Mas mesmo que não se leve em conta o esfacela­
mento havido nas sociedades pluralistas tanto de imagens de m undo
integrativas desse tipo, quanto de éticas coletivamente vinculativas,
ocorre que o direito m oderno, em razão de seu caráter formal, exi-
me-se em todo caso de qualquer ingerência direta que advenha de
uma consciência moral remanescente e pós-tradicional.

O
Sobre a relação complementar entre
direito positivo e moral autônoma

Direitos subjetivos com os quais se constroem ordens jurídicas


modernas têm o sentido de desobrigar pessoas do direito em relação
a mandam entos morais, e isso de forma m uito bem delineada. Com
a introdução de direitos subjetivos que garantem aos agentes espaço
para agir de acordo com suas próprias preferências, o direito m o­
derno como um todo faz valer o princípio de que se perm ite tudo
que não seja explicitamente proibido. Ao passo que na moral subsis­
te desde sua origem um a simetria entre direitos e deveres, as obriga­
ções jurídicas, enquanto conseqüência de atribuições de direitos, re­
sultam somente da restrição legal de liberdades subjetivas. Essa atri­
buição conceituai básica de privilégio aos direitos em relação aos
deveres explica-se a partir dos conceitos m odernos da pessoa do di­
reito e da comunidade jurídica. O universo moral sem limites no es­
paço social e no tem po histórico estende-se por sobre todas as pes­
soas naturais em sua complexidade biográfica, e a própria moral se
estende até a defesa da integridade de pessoas plenamente indivi-
duadas. Em face disso, uma comunidade jurídica respectivamente
situada no tempo e no espaço protege a integridade de seus inte­
grantes exatamente na mesma medida em que esses últimos assu­
mem o status artificialmente criado de portadores de direitos subjeti-

288 A INCLUSÃO D0 OUTRO


vos. Por isso subsiste entre direito e moral um a relação que é mais de
complementaridade do que de subordinação.
O mesmo vale em uma visão extensional. As matérias juridica­
mente carentes de regulamentação são ao mesmo tempo mais restri­
tas e mais abrangentes do que os assuntos moralmente relevantes: são
mais restritas, porque só o comportam ento exterior da regulamen­
tação jurídica é acessível, ou seja, apenas o seu comportamento coer-
cível; e são mais abrangentes, porque o direito — como meio de organi­
zação do domínio político — não se retére apenas à regulamentação
de conflitos de ação interpessoais, mas também ao cumprimento de
programas políticos e demarcações políticas de objetivos. Eis por que
as regulamentações jurídicas tangenciam não apenas questões morais
em sentido estrito, mas também questões pragmáticas e éticas, bem
como o estabelecimento de acordos entre interesses conflitantes. Di­
versa da reivindicação normativa de validação dos mandamentos m o­
rais, que é claramente delimitada, a reivindicação de legitimidade das
normas jurídicas apóia-se sobre vários tipos de razões. A práxis legis­
lativa justificadora depende de um a rede ramificada de discursos e
negociações — e não apenas de discursos morais.
A noção própria ao direito natural de uma hierarquia de direitos
com padrões distintos de dignidade leva a extravios. Pode-se entender
o direito de um a maneira muito mais adequada do que como um com­
plemento funcional da moral. Pois o direito positivamente válido, le­
gitimamente firmado e cobrável através de ação judicial pode tirar das
pessoas que agem e julgam moralmente o peso das grandes exigências
cognitivas, motivacionais e organizacionais que uma moral ajustada
segundo a consciência subjetiva acaba impondo a elas. O direito pode
compensar as fraquezas de uma moral exigente que, se bem analisa­
das suas conseqüências empíricas, não proporciona senão resultados
cognitivamente indefinidos e motivacionalmente pouco seguros. É
claro que isso não libera o legislador e a justiça da preocupação com
que o direito permaneça em consonância com a moral. Mas regula­
mentações jurídicas são concretas demais para poderem legitimar-se
apenas pelo fato de não contrariarem princípios morais. Mas se o di­
reito positivo não pode obter sua legitimidade de um direito moral
superior, de onde então ele poderá obtê-la?
Assim como a moral, também o direito deve defender eqüita-
tivamente a autonomia de todos os envolvidos e atingidos. Ora, o di-

SOBRE A COESÃO INTERNA ENTRE ESTADO DE DIREITO E DEMOCRACIA 289


reito também deve comprovar sua legitimidade a partir desse mesmo
aspecto do asseguramento da liberdade. Interessante, porém, é que a
positividade do direito obriga a uma decomposição peculiar da auto­
nomia, para a qual não há contrapartida no lado da moral. A autode­
terminação moral em sentido kantiano é um conceito unitário à me­
dida que exige de cada indivíduo in própria persona que siga as nor­
mas que ele próprio estabelece para si, após um juízo imparcial pró­
prio — ou almejado em conjunto com todos as outras pessoas. Com
isso, no entanto, a obrigatoriedade das normas jurídicas remonta não
apenas a processos da formação de opinião e vontade, mas sim a deci­
sões coletivamente vinculativas, por instâncias que estabelecem e apli­
cam o direito. Resulta daí de maneira conceitualmente necessária uma
partilha de papéis entre autores que firmam (e enunciam) o direito,
bem como entre destinatários que estão submetidos ao direito vigente.
A autonomia, que no campo da moral é monolítica, por assim dizer,
surge no campo do direito apenas sob a dupla forma da autonomia
pública e privada.
Ora, esses dois momentos precisam ser mediados de tal maneira
que uma autonomia não prejudique a outra. As liberdades de ação
individuais do sujeito privado e a autonomia pública do cidadão liga­
do ao Estado possibilitam-se reciprocamente. É a serviço dessa con­
vicção que se põe a idéia de que as pessoas do direito só podem ser
autônomas à medida que lhes seja permitido, no exercício de seus di­
reitos civis, compreender-se como autores dos direitos aos quais de­
vem prestar obediência, e justamente deles.

0
Sobre a mediação
entre soberania popular e direitos humanos

Assim, não causa espanto que as teorias do direito racional te­


nham dado uma dupla resposta às questões de legitimação: por um
lado, pela alusão ao princípio da soberania popular, e por outro lado,
pela referência ao domínio das leis garantido pelos direitos humanos.
O princípio da soberania popular expressa-se nos direitos à comu­
nicação e participação que asseguram a autonomia pública dos cida­
dãos do Estado; e o domínio das leis, nos direitos fundamentais clás-

290 A INCLUSÃO DO OUTRO


sicos que garantem a autonomia privada dos membros da sociedade
civil. O direito legitima-se dessa maneira como um meio para o asse-
guramento equânime da autonomia pública e privada. Ainda assim, a
filosofia política não logrou de forma séria dirimir a tensão entre so­
berania popular e direitos humanos, entre a “liberdade dos antigos” e
a “liberdade dos modernos”. A autonomia política dos cidadãos deve
tom ar corpo na auto-organização de uma comunidade que atribui a
si mesma suas leis, por meio da vontade soberana do povo. A autono­
mia privada dos cidadãos, por outro lado, deve afigurar-se nos direi­
tos fundamentais que garantem o domínio anônimo das leis. Quando
é esse o caminho traçado, então um a das idéias só pode ser validada
à custa da outra. E a eqüiprimordialidade de ambas, intuitivamente
elucidativa, não segue adiante.
O republicanismo, que rem onta a Aristóteles e ao humanismo
político da Renascença, sempre deu primazia à autonom ia pública
dos cidadãos do Estado, em comparação com as liberdades das pessoas
em particular que antecedem a política. O liberalismo, que rem onta a
Locke, conjurou o perigo das maiorias tirânicas e postulou uma pri­
mazia dos direitos humanos. Em um dos casos, a legitimidade dos
direitos hum anos se deveria ao resultado de um auto-entendimento
ético e de uma autodeterminação soberana de uma coletividade polí­
tica; no outro caso, os direitos hum anos, já em sua origem, constitui­
ríam barreiras que vedariam à vontade do povo quaisquer ataques a
esferas de liberdade subjetivas e intocáveis. Embora Rousseau e Kant
tenham empreendido esforços com o objetivo de pensar tanto a von­
tade soberana quanto a razão prática sob o conceito da autonom ia da
pessoa do direito, a tal ponto que no pensamento de ambos a sobe­
rania popular e os direitos humanos se interpretam mutuamente, ne­
nhum deles logrou fazer jus à eqüiprimordialidade de ambas as idéias.
Rousseau sugere uma leitura mais republicana, Kant, uma leitura mais
liberal. Eles ignoram a intuição que haviam pretendido trazer para
junto do conceito: a idéia dos direitos humanos, que se enuncia no
direito em relação a liberdades de ação subjetivas e iguais, não pode
nem simplesmente impingir-se ao legislador soberano como uma bar­
reira externa, nem se deixar instrumentalizar como requisito funcional
para os fins desse mesmo legislador.
Para que essa intuição ganhe expressão correta, recomenda-se
considerar o procedimento democrático a partir de pontos de vista

Sobre a coesão interna entre Estado de direito e democracia 291


da teoria do discurso: sob as condições do pluralismo social e de
visões de mundo, é o processo democrático que confere força legi-
tim adora ao processo de criação do direito. Partirei aqui, sem discu­
ti-la em detalhes, da seguinte proposição fundamental: regulamen­
tações que podem requerer legitimidade são justamente as que po­
dem contar com a concordância de possivelmente todos os envolvi­
dos enquanto participantes em discursos racionais. Se são discursos
e negociações — cuja justeza e honestidade encontram fundam ento
em procedimentos discursivamente embasados — o que constitui o
espaço em que se pode form ar um a vontade política racional, então
a suposição de racionalidade que deve embasar o processo dem o­
crático tem necessariamente de se apoiar em um arranjo comunica­
tivo muito engenhoso: tudo depende das condições sob as quais se
podem institucionalizar juridicamente as formas de comunicação
necessárias para a criação legítima do direito. A almejada coesão in­
terna entre direitos hum anos e soberania popular consiste assim em
que a exigência de institucionalização jurídica de um a prática civil
do uso público das liberdades comunicativas seja cum prida justa­
mente por meio dos direitos humanos. Direitos hum anos que possi­
bilitam o exercício da soberania popular não se podem impingir de
fora, como um a restrição.
Essa reflexão evidentemente só elucida os direitos políticos do
cidadão, isto é, os direitos de comunicação e participação que asse­
guram o exercício da autonom ia política, não os direitos humanos
clássicos que garantem a autonom ia privada dos cidadãos. Em pri­
meira linha, pensamos aqui no direito fundamental à maior quanti­
dade possível de liberdades de ação subjetivas iguais, mas também
nos direitos fundamentais que constituem não apenas o status de
quem dispõe de determinada nacionalidade, mas tam bém a ampla
proteção jurídica individual. Esses direitos, aos quais cabe garantir a
cada um o esforço por alcançar os objetivos de sua vida privada em
igualdade de chances, têm um valor intrínseco, ou eles ao menos
não se diluem no valor instrumental de si mesmos em prol da forma­
ção democrática da vontade. Para fazer jus à intuição de eqüiprimor-
dialidade entre os direitos clássicos de liberdade e os direitos polí­
ticos do cidadão será necessário, a seguir, tornar mais precisa nossa
tese de que os direitos hum anos possibilitam a práxis de autodeter­
minação dos cidadãos.

292 A INCLUSÃO DO OUTRO


Sobre a relaçao entre autonomia privada e pública

Os direitos humanos podem até mesmo ser bem fundamentados


de um ponto de vista moral; não pode ocorrer, no entanto, que um
soberano seja investido deles de forma paternalista. A idéia da auto­
nomia jurídica dos cidadãos exige, isso sim, que os destinatários do
direito possam ao mesmo tempo ver-se como seus autores. E se o le­
gislador constitucional democrático simplesmente encontrasse os di­
reitos humanos como fatos morais previamente dados, para então
positivá-los e nada mais, isso estaria em contradição com essa idéia.
Não há como ignorar, por outro lado, que não cabe mais aos cidadãos
a livre escolha do médium em que eles mesmos podem tornar efetiva
sua autonomia, no papel de co-legisladores. No processo legislativo os
cidadãos só podem tomar parte na condição de sujeitos do direito; não
podem mais decidir, para tanto, sobre a linguagem de que se devem
servir. A idéia democrática da autolegislação não tem opção senão
validar-se a si mesma no médium do direito.
Contudo, quando se trata de decidir se cabe ou não institucio­
nalizar sob a forma de direitos políticos do cidadão os pressupostos da
comunicação com base nos quais os cidadãos julgam se é legítimo o
direito que eles mesmos firmam à luz do princípio discursivo, aí então
o código jurídico precisa estar como tal à disposição. Para a instituição
desse código, entretanto, é necessário criar o status das pessoas do di­
reito que pertençam, enquanto portadores de direitos subjetivos, a uma
associação voluntária de jurisconsortes e que efetivamente façam valer
por meios judiciais suas respectivas reivindicações jurídicas. Não há
direito algum sem a autonomia privada de pessoas do direito. Portan­
to, sem os direitos fundamentais que asseguram a autonomia privada
dos cidadãos, não haveria tampouco um médium para a instituciona­
lização jurídica das condições sob as quais eles mesmos podem fazer
uso da autonomia pública ao desempenharem seu papel de cidadãos
do Estado. Dessa maneira, a autonomia privada e a pública pressu­
põem-se mutuamente, sem que os direitos humanos possam reivindi­
car um primado sobre a soberania popular, nem essa sobre aquele.
A intuição expressa-se, por um lado, no fato de que os cidadãos
só podem fazer um uso adequado de sua autonom ia pública quando

Sobre a coesão interna entre Estado de direito e democracia 293


são independentes o bastante, em razão de uma autonom ia privada
que esteja equanim em ente assegurada; mas tam bém no fato de que
só poderão chegar a uma regulamentação capaz de gerar consenso, se
fizerem uso adequado de sua autonom ia política enquanto cidadãos
do Estado.
Essa coesão interna entre Estado de direito e democracia foi su­
ficientemente encoberta pela concorrência dos paradigmas jurídicos
dominantes até hoje. O paradigma jurídico liberal conta com uma
sociedade econômica que se institucionaliza por meio do direito pri­
vado — em especial por via de direitos à propriedade e liberdades de
contratação — e que se coloca à mercê da ação espontânea de meca­
nismos de mercado. Essa “sociedade de direito privado” é feita sob
medida em relação à autonom ia dos sujeitos do direito, que, no papel
de integrantes do mercado, procuram realizar de forma mais ou m e­
nos racional os próprios projetos de vida. Vincula-se a isso a expec­
tativa normativa de que se possa alcançar a justiça social pela garan­
tia de um status jurídico negativo como esse, ou seja, pela delimi­
tação de esferas de liberdade individuais. O modelo do Estado social
desenvolveu-se a partir de um a crítica consistente a essa suposição. A
contestação que se faz é evidente: se a liberdade do “poder ter e poder
adquirir” deve garantir justiça social, então é preciso haver uma igual­
dade do “poder juridicamente”. Com a crescente desigualdade das
posições de poder econômico, patrimônios e condições sociais, po­
rém, desestabilizaram-se sempre mais os pressupostos factuais capa­
zes de proporcionar que o uso das competências jurídicas distribuídas
por igual ocorresse sob um a efetiva igualdade de chances. Se o teor
normativo da igualdade de direitos jamais chegou a se converter no
inverso de si mesmo, não deixou de ser necessário, por um lado, espe­
cificar o conteúdo das norm as vigentes do direito privado, nem, por
outro lado, introduzir direitos fundamentais de cunho social que
embasassem as reivindicações de uma distribuição mais justa da ri­
queza produzida em sociedade e de um a defesa mais efetiva contra os
perigos produzidos socialmente.
Nesse meio tempo, a materialização do direito, por sua vez, tam ­
bém ocasionou as conseqüências secundárias e indesejadas de um pa­
ternalismo socioestatal. Evidentemente, a almejada equiparação de si­
tuações de vida e posições de poder não pode levar a um tipo de in­
tervenções “normalizadoras” que acabem por limitar o espaço de

294 A INCLUSÃO DO OUTRO


atuação de seus prováveis beneficiários, no que se refere à concepção
autônom a dos projetos de vida de cada um deles. Nos desdobram en­
tos posteriores da dialética entre liberdade jurídica e factual, reve-
lou-se que os dois paradigmas do direito estão igualmente com pro­
metidos com a imagem produtivista de uma sociedade econômica
capitalista e industrial, cujo funcionamento deve ser tal que a expec­
tativa de justiça social possa ser satisfeita pelo esforço particular, as­
segurado e autônom o por concretizar as concepções de bem-viver
próprias a cada um. As duas partes só discordam quanto a se poder
garantir a autonom ia privada diretamente mediante direitos de liber­
dade, ou a se dever assegurar o surgimento da autonom ia privada
mediante outorga de reivindicações de benefícios sociais. Em ambos
os casos, todavia, perde-se de vista a coesão interna entre autonom ia
privada e pública.

O
O exemplo das políticas feministas de equiparação

Para encerrar, gostaria de demonstrar, a partir das políticas fe­


ministas de equiparação, que a política do direito oscila desampara­
damente entre os dois paradigmas originais, e que isso perdurará en­
quanto ela continuar limitada ao asseguramento da autonomia priva­
da, e enquanto se continuar ofuscando a coesão interna entre os direi­
tos subjetivos de pessoas em particular e a autonomia pública dos ci­
dadãos do Estado, participantes da criação do direito. Pois os sujeitos
particulares do direito só podem chegar ao gozo de liberdades subjeti­
vas, se eles mesmos, no exercício conjunto de sua autonomia de cida­
dãos ligados ao Estado, tiverem clareza quanto aos interesses e parâ­
metros justos e puserem-se de acordo quanto a aspectos relevantes sob
os quais se deve tratar com igualdade o que é igual, e com desigualda­
de o que é desigual.
Inicialmente, a política liberal teve por objetivo suprimir o aco­
plamento existente entre a conquista de status e a identidade de gêne­
ro, para então garantir à mulher (sem que se exigisse dela quaisquer
méritos prévios) igualdade de chances na concorrência por postos de
trabalho, prestígio social, diplomas, poder político etc. Assim que se
logrou impor ao menos em parte a equiparação formal, apenas se evi-

SOBRE A COESÃO INTERNA ENTRE ESTADO DE DIREITO E DEMOCRACIA 295


denciou de forma tão mais drástica o tratam ento desigual que de fato
se destina às mulheres. Em face disso, a política socioestatal, sobre­
tudo o direito trabalhista, social e da família, reagiu com regulamen­
tações especiais, referentes, por exemplo, à gravidez e maternidade,
ou ainda a ônus sociais em casos de divórcio. Desde então, não ape­
nas as exigências não atendidas tornaram -se objeto da crítica femi­
nista, mas também as conseqüências ambivalentes dos programas
socioestatais implementados com êxito — por exemplo, o maior risco
de desemprego, ocasionado por essas compensações legais, a presen­
ça excessiva de mulheres nas faixas salariais mais baixas, o problemá­
tico “bem-estar da criança”, a crescente feminização da pobreza em
geral etc. Sob um a visão jurídica, há um a razão para essa discrimina­
ção criada reflexivamente nas classificações amplamente generali-
zadoras aplicadas a situações desfavorecedoras e grupos de pessoas
desfavorecidas. Pois essas classificações “errôneas” levam a interven­
ções “normalizadoras” na maneira de conduzir a vida, as quais perm i­
tem que a almejada compensação de danos acabe se convertendo em
nova discriminação, ou seja, garantia de liberdade converte-se em pri­
vação de liberdade. Nos campos jurídicos concernentes ao feminis­
mo o paternalismo socioestatal assume um sentido literal: o legislativo
e a jurisdição orientam-se segundo modelos de interpretação tradi­
cionais e contribuem com o fortalecimento dos estereótipos de iden­
tidade de gênero já vigentes.
A classificação dos papéis sexuais e das diferenças vinculadas aos
sexos concerne a camadas elementares da autocompreensão cultural
de um a sociedade. Só hoje o feminismo radical tom a consciência do
caráter falível, merecedor de revisões e fundamentalmerite contro­
verso dessa autocompreensão. Tem razão sua insistência quanto a que
determinados enfoques da questão devam ser aclarados em meio à
opinião pública de cunho político, mais precisamente em controvér­
sias públicas sobre a interpretação adequada de carências e critérios,
a começar pelos enfoques sob os quais as diferenças entre experiên­
cias e situações de vida (de determinados grupos) de homens e m u­
lheres tornam-se relevantes para que o uso de liberdades de ação sub­
jetivas possa ocorrer em igualdade de chances. Assim, a partir dessa
luta pela igualdade de condições para as mulheres, é possível demons­
trar de maneira particularmente clara a m udança urgente da com­
preensão paradigmática do direito.

296 A INCLUSÃO DO OUTRO


Em lugar da controvérsia sobre ser melhor assegurar a autono­
mia das pessoas do direito por meio de liberdades subjetivas para ha­
ver concorrência entre indivíduos em particular, ou então mediante
reivindicações de benefícios outorgadas a clientes da burocracia de
um Estado de bem-estar social, surge agora um a concepção jurídica
procedimentalista, segundo a qual o processo democrático precisa as­
segurar ao mesmo tempo a autonomia privada e a pública: os direitos
subjetivos, cuja tarefa é garantir às mulheres um delineamento autô­
nom o e privado para suas próprias vidas, não podem ser formulados
de modo adequado sem que os próprios envolvidos articulem e funda­
mentem os aspectos considerados relevantes para o tratamento igual
ou desigual em casos típicos. Só se pode assegurar a autonomia privada
de cidadãos em igualdade de direito quando isso se dá em conjunto
com a intensificação de sua autonomia civil no âmbito do Estado.

Sobre a coesão interna entre Estado de direito e democracia 297


;j

j,

I
Apêndice a
Facticidade e va lida çã o *
RÉPLICA ÀS COMUNICAÇÕES EM UM
SIMPÓSIO DA CARDOZO LAW SCHOOL

Todo autor está em dívida com seus leitores; isso vale


de forma especial para um autor exigente, que apresenta uma
investigação abrangente e complexa e que encontra para ela
a atenção crítica de colegas extraordinários — em uma uni­
versidade norte-americana, e antes mesmo da publicação do
livro em língua alemã. Dos comentários cuidadosos pude
tirar um grande proveito. Essa afirmação poderá ser verifi­
cada com base em minha resposta, com a qual também gos­
taria de expressar meus agradecimentos.
Restrinjo-me aqui a sete complexos temáticos. Em pri­
meiro lugar, gostaria de me posicionar metacriticamente
quanto à alojação do “justo” nas concepções do que seja bom.
R. F. Bernstein e F. I. Michelman guarnecem seu contextua-
lismo moderado com ênfases diversas — um deles a partir
da visão de um pragmatismo de cunho aristotélico, o outro,
a partir da visão de uma teoria republicana do direito (I).
Thomas A. McCarthy intensifica essa controvérsia (de m ui­
to perto, por assim dizer) e direciona-a para a questão sobre
a adequação do modelo discursivo, e da suposição de uma

* Tradução: Paulo Astor Soethe.

299
resposta correta a cada caso, aos conflitos de valores típicos das socie­
dades multiculturais (II). Michel Rosenfeld, com a visão do jurista, dá
continuidade à discussão acerca da primazia do procedimento sobre um
comum acordo substancial de fundo, e sugere por fim uma alternativa
que vem a ser desenvolvida por A. J. Jacobson sob a forma de uma con­
cepção dinâmica do direito (III). Bill Regh, com sua interessante per­
gunta sobre a relação entre discurso e decisão, dá ensejo à passagem para
questões mais essenciais sobre a construção teórica. Michael Power
aborda o papel das idealizações, ao passo que J. Lenoble me defronta
com contestações ligadas à crítica da razão, concernentes à abordagem
de uma teoria da ação comunicativa em seu todo (IV). Assim como
Lenoble, também David Rasmussen, Robert Alexy e Gunther Teubner
dão-me ocasião para abordar uma vez mais a lógica dos discursos de
aplicação prática (V ). Ulrich PreuB e Günther Falkenberg discutem sob
diversos aspectos a relação entre autonomia privada e pública, ao passo
que Dick Howard e Gabriel Motzkin dedicam-se ao teor político de
minha teoria do direito (VI). Por fim, posiciono-me diante de restri­
ções feitas no âmbito da sociologia do direito, por Mark Gould a partir
de uma visão parsoniana de esquerda, e por Niklas Luhmann a partir da
teoria dos sistemas (VII).

O
O bom e o justo

(1) Meu amigo Dick Bernstein é um dos conhecedores mais exa­


tos de meus trabalhos. Com grande sensibilidade hermenêutica, ele
acompanha e interpreta1 minhas publicações — e as situa de forma
elucidativa no contexto da discussão contemporânea12. Há mais de duas
décadas, aproxima-nos uma controvérsia filosófica que deixou mar­
cas em meus textos. Desde nossa primeira conversa no campus de
Haverford, Bernstein pressiona-me com bons argumentos sobre uma
“destranscendentalização” da herança kantiana — sendo que na época

1. Cf. a cuidadosa Introdução a R. J. Bernstein (org.), Habermas and Modernity,


Oxford, 1985. pp. 1-32; cf. tb. R. J. Bernstein, The Restructuring o f Social and Political
Theory, New York-London, 1976. cap. IV.
2. Cf. R. J. Bernstein, Beyond Objectivism and Relativism, Philadelphia, 1983;
idem, The New Constellation, Cambridge, 1991.

300 A INCLUSÃO DO OUTRO


eu nem mesmo conhecia esse termo. No espírito hegeliano do prag­
matismo, ele insiste em tentar solucionar contradições renitentes. Dis­
tinções não têm valor per se, precisam de comprovação baseada nos
problemas que pretendemos resolver com a ajuda delas mesmas. Com
Peirce, ele pergunta: W hat is the difference that makes a difference? [O
que é a diferença que faz diferença?]3 O mesmo se repete agora, com
uma impaciência que cresce a olhos vistos. Ele se volta (a) contra a
pretensão de neutralidade de um procedimentalismo que na verdade
depende de determinado ethos democrático, e (b) contra a distinção
entre questionamentos morais e éticos, que a seu ver é abstrata e vazia
e passa ao largo dos problemas reais.
Sobre (a): Na concepção de Bernstein, determinados procedi­
mentos e pressupostos comunicacionais só devem ser capazes de fun­
damentar a suposição de resultados racionais da formação democrá­
tica da opinião e da vontade (resultados racionais porque bem infor­
mados e imparciais), se o ânimo dos cidadãos aí envolvidos tiver ori­
gem em um “ethos democrático”; eles precisam estar motivados por
virtudes civis, mesmo que essas orientações generalizadas de valor
não decidam previamente sobre normas em particular. Em um a lei­
tura atenuada, essa tese não representa restrição alguma a m inha con­
cepção, segundo a qual o sistema político constituído pelo Estado de
direito não gira em torno de si mesmo, mas permanece dependente
de um a “cultura política libertária” e de uma “população acostumada
à liberdade” (ou seja, permanece dependente de “iniciativas de asso­
ciações formadoras de opinião” e dos respectivos modelos de socia­
lização): “a política deliberativa (m antém )... uma coesão interna com
os contextos de um m undo vital transigentee, de sua parte, racionali­
zado”4. Quando se acresce a isso o que afirmo na Teoria da ação comu­
nicativa sobre a racionalização dos mundos vitais, então se pode en­
tender essa “transigência” no sentido de uma “eticidade pós-conven-
cional”5 ou de um ethos democrático.

3. Ainda que ocasionalmente sua generosidade hermenêutica o leve a apagar


diferenciações que se deveríam levar em conta, cf. R. J. Bernstein, “What is the Difference
that Makes a Difference?” Gadamer, H abermas e Rorty. In: Philosophical Profiles,
Philadelphia, 1986. pp. 21-57.
4. J. Habermas, Faktizitàt und Geltung, Frankfurt am Main, 1992, p. 366.
5. A. Wellmer, “Bedingungen einer demokratischen Kultur”. In: M. Brumlick;
H. Brunkhorst (orgs.), Gemeinschaft und Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1993, pp.
173-196.

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 301
É por razões sistemáticas que entendo haver a exigência de uma
alojação “constitucional-patriótica” do processo democrático, se a po­
demos chamar assim. O que explica tal exigência é a circunstância se­
gundo a qual os direitos políticos fundamentais também assumem a
forma de direitos subjetivos-públicos e podem ser interpretados, por­
tanto, como liberdades subjetivas de ação. Em ordens jurídicas mo­
dernas cabe aos cidadãos do Estado decidir livremente sobre como
fazer uso de seus direitos de comunicação e participação. Pode-se su­
gerir aos cidadãos que se orientem segundo o bem comum, mas não
se pode transformar tal orientação em obrigação jurídica. Não obs­
tante, ela é necessária em certo grau, já que a atividade legislativa de­
mocrática só pode legitimar-se a partir do processo de acordo mútuo
ocorrido entre os cidadãos do Estado quanto às regras do convívio
entre eles. O paradoxo do surgimento da legitimidade a partir da lega­
lidade, portanto, só se dissipa quando a cultura política dos cidadãos
os predispõe a não insistir em assumir uma postura de integrantes do
mercado interessados em si mesmos e voltados ao sucesso, mas sim a
também fazer um uso de suas liberdades que se volta ao acordo m ú­
tuo, no sentido kantiano de um “uso público da razão”.
É esse “também” que distingue a leitura atenuada de um a outra,
rígida — clássico-republicana — , favorecida por Bernstein. Pois se ele
acentua sua tese até torná-la um a contestação, chega a isso justamente
por depositar, em última instância, toda a carga legitimadora do direi­
to positivo sobre a virtude dos cidadãos que se uniram entre si. Em
face disso, a explicação apresentada pela teoria do discurso para o pro­
cesso democrático desonera os cidadãos da imputação rousseauniana
de virtude, com um argumento estruturalista. Ainda é preciso, somente,
cobrar em detalhes a orientação voltada ao bem comum, à medida
que a razão prática se retrai, deslocando-se das cabeças e corações de
agentes coletivos ou individuais para os procedimentos e formas de
comunicação da formação política da opinião e da vontade, e à medi­
da que se transfere do plano individual das motivações e discernimen­
tos éticos, alocando-se no plano social da aquisição e processamento
de informações. A isso corresponde uma certa intelectualização. Pois
os processos decisórios e de aconselhamento precisam ser instaurados
de tal maneira que os discursos e negociações funcionem como filtros
e deixem passar somente os temas e contribuições que devam “con­
tar” para a tomada de decisão. Para combater melhor o falso realismo

302 A INCLUSÃO DO OUTRO


que antecipadamente tacha de “idealista” o sentido da autodetermi­
nação democrática, cabe substituir já no plano das explicações nor­
mativas a imputação de virtude por uma outra, de racionalidade.
Assim, contradigo a tradição republicana apenas à medida que o
ônus de comprovação da eficiência da razão prática se desloca da
mentalidade dos cidadãos para as formas deliberativas da política. No
entanto, esse procedimentalismo não significa, como pensa Bernstein,
uma neutralização normativa da práxis de autodeterm inação dos
cidadãos. Mesmo que com toda certeza os procedimentos e proces­
sos não se sustentem a si mesmos, mas tenham de estar alojados em
um a cultura política favorável à liberdade, a expectativa normativa
de criação legítima do direito vincula-se sim ao arranjo comunica­
tivo, e não à competência dos agentes envolvidos. Mas esse modo de
criação do direito, ao qual cabe assegurar a todos igual autonomia,
mantém para si um forte teor normativo. O procedimento democrático
fundamenta uma suposição de racionalidade, no sentido que acena
com resultados neutros, isto é, imparciais: a racionalidade procedi­
mental deve garantir justiça no sentido da regulamentação imparcial
de questões práticas.
Sobre (b): O utra restrição feita por Bernstein não se refere tan­
to à concepção procedimentalista como tal, mas muito mais à com­
preensão de justiça política ligada a ela. Pois na razão prática corpora-
lizada em procedimentos e processos está inscrita a referência a uma
justiça (entendida tanto em sentido moral quanto jurídico) que apon­
ta para além do ethos concreto de determinada comunidade ou da
interpretação de m undo articulada em determinada tradição ou for­
ma de vida. Para tornar isso claro, distingo entre questões morais da
justiça e questões éticas do auto-entendimento. Em um dos casos abor­
damos um problema sob o ponto de vista que se pergunta sobre qual
a regulamentação mais adequada ao interesse equânime de todos os
atingidos (sobre “o que é bom em igual medida para todos”); no ou­
tro caso, ponderam os as alternativas de ação a partir da perspectiva
de indivíduos ou de coletividades que querem se assegurar de sua
identidade, bem como saber que vida devem levar, à luz do que são e
do que gostariam de ser (ou seja, querem saber “o que é bom para
mim, ou para nós, no todo e a longo prazo”). Aos dois questionamen­
tos equivalem pontos de vista diferentes. Ao passo que na pergunta
sobre o “bem viver” inscreve-se a perspectiva de uma interpretação do

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 303
m undo ou de um si-mesmo a partir de uma primeira pessoa do sin­
gular ou do plural, as questões sobre justiça só podem ser respondidas
sob uma consideração equânime das perspectivas de interpretação de
m undo ou de si mesmo de todos os envolvidos, e de forma imparcial
(o que explica a exigência de Mead quanto a “assumir uma perspec­
tiva de maneira ideal”). Bernstein não contesta a distinção analítica
como tal; mais que isso, afirma que hipostasio essa distinção e que
não faço um uso sensato dela (e que portanto sucumbo ao “myth of
the framework”).
Em primeiro lugar, preciso desfazer um mal-entendido. Ques­
tões do auto-entendimento dependem do contexto, mas em um sen­
tido diferente do que ocorre com as questões morais; e isso porque
cada uma delas se propõe no âmbito do horizonte de uma história de
vida pessoal ou de uma forma de vida intersubjetivamente partilhada,
e porque só se pode respondê-las de forma sensata com referência a
esse contexto presente de antemão. Por outro lado, também nos dis­
cursos éticos é natural que precisemos assumir um posicionamento
reflexivo capaz de resistir à pressão dos interesses e imperativos acionais
imediatos, de interromper na medida do possível o cumprimento in­
gênuo do fluxo da vida e de distanciarmo-nos do próprio contexto de
vida. Só que esse distanciamento de toda a rede de nossos processos de
formação não pode (e nem precisa) ir tão a fundo como o que prati­
camos na reflexão moral; nela, o que fazemos é assumir um posicio­
namento hipotético em face das reivindicações de validação de nor­
mas em particular que se tornaram problemáticas. Justamente o prag­
matismo vem ensinar que não é o fiat de um a dúvida posta no papel
que nos torna capazes de trazer para o lado objetivo nem nossa iden­
tidade nem tampouco nosso universo de vida como um todo.
Polêmica, apenas, é a pergunta sobre se podemos propor e res­
ponder questões morais tão-somente no interior do horizonte de nos­
sas respectivas autocompreensão e compreensão de m undo eticamente
articuladas e portanto particulares, ou se, à medida que consideramos
algo sob um ponto de vista moral, procuramos ampliar esse horizonte
de interpretação, e de forma tão radical que ele se “funde” aos hori­
zontes de outras pessoas, para dizermos como Gadamer. Em vista dessa
questão da precedência do justo sobre o bom, Bernstein não é plena­
mente unívoco: “If I take my own life history as a Jew or an Ameri­
can... I certainly do not restrict myself to questions concerning my

304 A INCLUSÃO DO OUTRO


fellow Jews, Americans etc. I want to understand my responsabilities
and obligations to those who are not members of the identified groups”.
Em primeiro lugar, isso já não corresponde a muito mais que dizer
que nós nos propomos questões sobre a justiça enquanto pessoas com
determinada autocompreensão e compreensão de mundo, e que enten­
demos tais questões a partir desse horizonte. Entretanto, não é nada
trivial perguntar se podemos responder satisfatoriamente à questão, no
interior desse dado horizonte. Isso não se faz necessário e nem m es­
mo possível se o que pretendo é obter clareza sobre minha identidade
como judeu ou protestante, norte-americano ou alemão. Mas em ques­
tões que dizem respeito a nossas obrigações morais como alemães dian­
te de fugitivos bósnios ou de sem-teto na própria Alemanha, bem como
em questões jurídicas, tais como a regulamentação de situações ur­
gentes que começam a surgir (“violência doméstica”, por exemplo),
então sim está em jogo a legitimidade de expectativas e reivindicações
que nos impomos não somente como participantes da situação espe­
cífica, mas também como alheios a ela, para além de grandes distâncias
geográficas ou históricas, culturais ou sociais. Aí não se trata mais do
que é “bom ” para nós como membros de uma coletividade (caracteri­
zada por um ethos próprio), mas sim do que é “correto” para todos,
seja para todos os membros do universo de sujeitos capazes de agir ou
fazer uso da linguagem, seja para todos os cônjuges de uma comuni­
dade jurídica (seja ela local ou até mesmo global, conforme o caso).
Ao julgar essas questões de justiça, procuramos uma solução impar­
cial, em relação à qual todos os participantes (e atingidos) não tives­
sem saída senão manifestar sua concordância, depois de muito ponde­
rar sobre ela, no contexto de um diálogo isento de coerções e mantido
sob condições simétricas de reconhecimento recíproco.
Em face dessa questão, há hoje três posições. Enquanto cada con­
ceito de justiça (a) permanecer indissoluvelmente impregnado de uma
respectiva concepção do bem, então tam bém nós, ao julgarmos ques­
tões de justiça, permaneceremos confinados no horizonte dado de
nossa autocompreensão e compreensão de mundo. Assim, só poderá
haver concordância entre partidos de origem diversa ou segundo o
modelo da assimilação dos parâmetros deles pelos nossos (Rorty), ou
então segundo o modelo da conversão, ou seja, da abnegação de nos­
sos parâmetros em favor dos deles (Maclntyre). Ao contrário, (b) assim
que consideramos uma maioria de imagens de m undo “modernas”,

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 305
capazes de se relacionar de m aneira tolerante por causa do potencial
universalista que apresentam desde sua origem, podemos contar, em
questões da justiça política, com um consenso abrangente (Rawls). Já
que — segundo o modelo da liberdade religiosa — pressupõe-se aqui
certa ampliação de horizontes (das religiões mundiais e visões de
m undo que nesse ínterim terão se tornado reflexivas), resulta disso
uma concordância racionalmente motivada, ainda que isso se dê ape­
nas mediante o fato de que soluções básicas idênticas (reconstruídas
por Rawls em Uma teoria da justiça) sejam aceitas por razões diver­
sas, caso a caso. Finalmente, a teoria do discurso (c) introduz a dis­
tinção entre questões éticas e morais de maneira que a lógica das ques­
tões relativas à justiça passe a exigir a dinâmica de uma ampliação
progressiva do horizonte, e afirma nesse sentido uma precedência do
que é justo em relação ao que é bom. A partir do horizonte de sua
respectiva autocompreensão e compreensão de mundo, as diversas
partes referem-se a um ponto de vista moral pretensamente parti­
lhado, que induz a um a descentralização sempre crescente das diver­
sas perspectivas, sob as condições simétricas do discurso (e do apren­
der-um -com -o-outro). G. H. Mead falou, nesse contexto, do “appeal
to an ever wider com m unity” [“desejo de um a comunidade sempre
mais ampla”].
O fato de a distinção entre questões morais e éticas “fazer dife­
rença” no campo da justiça política, e não estar simplesmente “cor­
rendo em ponto m orto”, fica claro quando se consideram as discus­
sões ocorridas hoje no âmbito do “multiculturalismo”6, bem como os
esforços de paz ante os conflitos étnicos na Europa Oriental e Meridio­
nal — ou ainda o exemplo da Conferência de Direitos Humanos de
Viena, em que representantes asiáticos e africanos discutiram com re­
presentantes das sociedades ocidentais a interpretação dos direitos
fundamentais (ou ao menos tidos como fundamentais).
(2) Não é casual o fato de Frank Michelman estar entre os três ou
quatro autores contemporâneos que citei com mais freqüência: foi de
seus escritos que mais aprendi sobre política deliberativa, e foi através
dessa leitura que me vi encorajado a aplicar a concepção de discurso
ao direito e à criação do direito — à “jurigênese”, como ele mesmo di-

6. Cf. J. Habermas, “Luta por reconhecimento no Estado democrático de direito”,


cf. supra pp. 229-267.

306 A INCLUSÃO DO OUTRO


ria. Nesse sentido, há uma grande concordância entre nossas posições,
e ela se explica a partir de uma dependência (que não é simétrica, em
absoluto). Em uma briga familiar as diferenças freqüentemente são
tão mínimas que só se tornam visíveis quando são exageradas. Em
m inha apresentação, orientada por intenções mais sistemáticas do que
hermenêuticas, é possível que eu tenha culpa de uma dessas exagera-
ções. Pois não sei ao certo se as objeções de Michelman, tal como ocorre
no caso de Bernstein, remetem-se a uma diferença filosófica de opinião,
ou, mais que isso, a uma diferença no ângulo de visão concernente às
respectivas disciplinas. Minhas reservas referem-se tão-somente a um
conceito “dialógico” de política deliberativa que, por meio de uma opo­
sição idealizadora ante à política “instrumental”, exclui a grande massa
das negociações, ou seja, a compensação de interesses com base no
estabelecimento de acordos.
Para Michelman, trata-se da apreensão exata de um conceito de
eticidade pós-convencional, ao qual cabe a tarefa de formar um con­
texto form ador de motivos propício à percepção adequada dos di­
reitos de cidadania. Certamente, um a cultura política “transigente”
nasce do contexto de uma respectiva história nacional; mas o que ela
faz valer para uma cultura política “liberal”, que gera e funda em so­
ciedades pluralistas uma consciência civil partilhada, para além de
todas as diferenças, é a remissão aos princípios da constituição, uni-
versalistas e prenunciadores da igualdade de direitos. Os Estados cons­
titucionais surgem naturalmente em grande quantidade e não se dis­
tinguem entre si apenas no que concerne às suas ordens institucio­
nais, mas sim na letra de seus atestados de fundação: “Constitutional
law is institutional stuff ffom the word go”. Contudo, o que faz que tais
Estados sejam Estados democráticos de direito é a implementação de
direitos fundamentais; e em face disso todos os intérpretes argumen­
tam que esses direitos contêm um teor universalista de significado —
por mais que se vejam polemizados a partir de horizontes de interpre­
tação diversos: “But to say that originary discourse of legislative jus-
tification must always proceed on ground that is already ethical is not
to deny that they must always proceed within a horizon of universalist
morality, sub specie aeternitatis”.
O que Michelman afirma sobre a vinculação do jurista constitu­
cional, e mesmo do juiz, a uma tradição jurídica eticamente impreg­
nada não contradiz tal coisa. Ele exemplifica essa circunstância com o

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 307
exemplo de que os tribunais nos Estados Unidos e no Canadá tratam
de maneira diversa a nova situação de “hate speech”. A partir das duas
interpretações dessa diferença propostas por Michelman para que se
opte por uma delas, eu gostaria de construir ainda uma terceira, que
me parece adequada a um caso como esse: “The same (universal) prin­
cipie of equal liberties for all, resting on somewhat different variants
of discourses of originary constitutional justification, prevails in both
countries, which have somewhat different cultural, and ethical histories.
The doctrinal differences we observe are secondary applicational
variants reflecting (what is probably) a combination of differing legal
traditions and different social facts at the m om ent”.

O
A neutralização de conflitos de valor
e a “acedência de diferenças”

Thomas McCarthy é um caso de sorte para mim: na maioria das


vezes, tenho a impressão de que ele entende meus textos melhor que
eu mesmo. Ainda que exercendo todo tipo de crítica7, ele salvaguarda
o que nesse ínterim passei a conhecer e reconhecer como nossa posi­
ção em comum e defende-a contra objeções (especialmente por parte
de Foucault, Rorty e dos desconstrutivistas8). Ele o faz, a propósito,
com tanta perspicácia que fico inquieto ao ser contestado de forma
enfática por ele, tal como acontece no ensaio9 que ora tenho diante de
mim. É sabido que há duas décadas ele trata de validar restrições her­
menêuticas contra pretensões fortes e sistemáticas de reconstrução
racional (especialmente quando elas estão vinculadas a suposições

7. Th. A. McCarthy chamou-me muito cedo a atenção para problemas de cons­


trução que atingem a estruturação da teoria como um todo. Cf. Th. A. McCarthy, The
Criticai Theory o f Jürgen Habermas, Cambridge, Mass., 1978; cf. tb. o anexo à edição
alemã em livro de bolso: Kritik der Verstãndigungsverhültnisse, Frankfurt am Main, 1989,
pp. 501 -616; cf. ainda, do mesmo autor, “Komplexitãt und Demokratie — die Versu-
chungen der Systemtheorie”. In: A. Honneth; H. Joas (orgs.), Kommunikatives Han-
deln, Frankfurt am Main, 1986, pp. 177-215.
8. Cf. fmalmente: D. Hoy; Th. A. McCarthy, Criticai Theory. Oxford, 1994.
9. Em estágio inicial, sua crítica já estava desenvolvida em: Th. A. McCarthy,
“Praktischer Diskurs über das Verhàltnis von Moral und Politik”. In: Ideale und
Illusionen, Frankfurt am Main, 1993, pp. 303-331.

308 , A INCLUSÃO DO OUTRO


ligadas à teoria evolucionista); portanto, o alvo de suas contestações
(de coloração mais pragmática, hoje em dia) não me impressiona tan ­
to quanto seu clímax antiuniversalista. McCarthy, de modo seme­
lhante a Bernstein, insiste em um cruzamento dialético entre o bom e
o justo: “The justice issue of what is ‘equally good for alP is not, strictly
speaking, superordinate to ‘self-understanding of the kind of society we
want to live in: they are two independent aspects of the same pro-
blem, namely ‘which norms citizens want to adopt to regulate their
life together’”. Tal como em Bernstein e Michelman, reafirma-se que
os pontos de vista analiticamente distinguíveis “não se podem distin­
guir na prática”.
McCarthy parte da importante observação de que nas sociedades
modernas surge um descompasso entre, de um lado, as diferenças ra­
pidamente crescentes que os cidadãos constatam em suas interações
cotidianas e, de outro, as exigências impostas a esses mesmos cidadãos
por um sistema jurídico igualitário, a saber: a exigência de que igno­
rem essas diferenças constatadas de maneira sempre mais penetrante.
O espectro de diferenças que precisam ser trabalhadas pelos indiví­
duos no plano de simples interações cresce na dimensão temporal,
social e objetiva. A intervalos sempre menores, em contatos sempre
mais fugazes, precisamos nos entender com pessoas sempre mais es­
tranhas (marcadas por origens socioculturais muito diversas) sobre
problemas sempre mais numerosos e específicos (o que se agrava ain­
da mais com o inevitável crédito de confiança que se atribui de ante­
mão aos especialistas no assunto em questão)10. A individualização dos
estilos de vida e sobretudo a composição eticamente heterogênea das
sociedades multiculturais só fazem comprovar de maneira tanto mais
drástica essas exigências de abstração, já que os estilos e formas de vida
que colidem entre si são totalidades constitutivas de identidade, as quais
recorrem a estruturas de personalidade em seu todo, e que portanto
desencadeiam conflitos de valor “existenciais”. McCarthy aborda os
conflitos entre orientações decisivas de valores porque, diferentemen­
te de oposições de interesses, tais conflitos não podem ser compensa­
dos por meio de acordos quanto à distribuição de indenizações reco­
nhecidas segundo sua natureza.

10. Cf. Claus Offe, “M odera Barbarity: A Micro State of Nature?” Constellations,
2, 1996, pp. 354-377.

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 309
Por causa de seu caráter coletivo, não é com os recursos do direi­
to privado que se pode assegurar per se a coexistência de formas de
vida em igualdade de direitos; pois direitos subjetivos asseguram li­
berdades que se prestam de modo imediato a proteger o empenho por
se cumprir de maneira autônom a cada um dos planos individuais de
vida. O paradigma liberal ainda contava com certo isolamento dos
indivíduos; quando se tratasse de concretizar cada uma das respectivas
concepções do que fosse bom, caberia a cada indivíduo manter dis­
tância dos outros, de forma que ninguém precisasse enviesar-se pelos
caminhos alheios e portanto “perturbar” os demais. Em sociedades
multiculturais e altamente individualizadas, no entanto, a tendência é
de um encolhimento sempre mais complexo dos “recortes” no espaço
social e no tempo histórico que possam ser ocupados por indivíduos
diversos e por integrantes de subculturas diferentes, e que possam ser
como que “privatizados” por eles. A pessoa do direito abstrata, tal como
concebida pela dogmática clássica do direito, precisa ser substituída
hoje por uma concepção intersubjetiva; a identidade do indivíduo está
enredada com identidades coletivas. Como também as pessoas do di­
reito só se individualizam por meio da coletivização social, não se pode
garantir sua integridade sem a defesa dos contextos de vida e de ex­
periência partilhados subjetivamente, nos quais tenham sido forma­
das suas identidades pessoais e nos quais elas possam estabilizar essas
mesmas identidades, caso a caso11.
Gostaria de (1) abordar duas máximas da neutralização de con­
flitos de valores no âmbito do Estado de direito, (2) tratar de diversos
detalhes que me parecem importantes para o esclarecimento da con­
trovérsia, (3) discutir a alternativa sugerida por McCarthy e (4) propor
uma reflexão indagativa sobre o ponto realmente problemático — qual
seja a premissa da “única resposta correta”.
( 1 ) 0 Estado democrático de direito conta apenas com um re­
pertório limitado de recursos para a regulamentação de conflitos de
valores que resultam das inevitáveis interações entre (integrantes de)
formas de vida coexistentes, muito embora “alheias” umas para as
outras, de um m odo existencialmente dissonante. (Assim como
McCarthy, restringirei minha reflexão a esse tipo de conflito causado
por via “multicultural”.) Em nosso contexto, interessam sobretudo dois

11. Cf. J. Habermas, “Luta por reconhecimento”, supra, pp. 248ss.

310 A INCLUSÃO DO OUTRO


recursos de neutralização normativa das diferenças: (a) a garantia da
coexistência em igualdade de direitos e (b) o asseguramento da legi­
timação mediante procedimentos.
Para (a), torna-se essencial distinguir entre questões de justiça e
questões concernentes ao bem viver. Isso pode ser ilustrado a partir de
situações como a eutanásia e o aborto, por exemplo. Imaginemos que
se tenha chegado à conclusão — em discussões públicas conduzidas
de modo suficientemente discursivo (o que não estou afirmando em
relação aos exemplos mencionados, mas apenas supondo, em prol da
argumentação) — que não se pode chegar a uma versão neutra dessa
situação polêmica, no que diz respeito à visão de mundo, já que as
descrições concorrentes da matéria que se pretende regulamentar estão
entrelaçadas com a autocompreensão de diversas confissões, comuni­
dades interpretativas, subculturas etc., articulada de maneira religiosa
ou com base em determinada visão de mundo. Assim, estaria posto
um conflito de valor que não poderia ser resolvido nem por via dis­
cursiva nem através de acordo. Em uma sociedade pluralista consti­
tuída sob a forma de um Estado de direito, evidentemente não se po­
deria regrar um a situação eticamente controversa como essa, ao menos
não por meio da descrição eticamente m arcada— a partir da visão do
universo dos jurisconsortes — de um a autocompreensão particular
(mesmo que se tratasse da autocompreensão da cultura majoritária).
Mais que isso, é preciso buscar uma regulamentação neutra (tal como
no caso da sentença proferida pela Corte Constitucional Federal alemã,
que determinou a retirada de crucifixos das salas de aula no estado da
Baviera, fortemente marcado pela tradição cristã), ou seja, uma regu­
lamentação capaz de encontrar, no plano mais abstrato da coexistên­
cia de diversas comunidades eticamente integradas, o reconhecimento
racionalmente motivado de todas as partes envolvidas no conflito e
que convivem em igualdade de direitos. Para essa mudança do plano
da abstração é necessária uma mudança de perspectiva. Os envolvidos
precisam deixar de lado a pergunta sobre que regulamentação é “m e­
lhor para nós” a partir da respectiva visão que consideram “nossa”; em
vez disso, precisam checar, sob o ponto de vista moral, que regulamen­
tação “é igualmente boa para todos” em vista da reivindicação prio­
ritária da coexistência sob igualdade de direitos.
Quando se fala da dificuldade que McCarthy vincula a essa abs­
tração, trata-se aí, na verdade, de um a restrição. A mudança de pers­

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 311
pectiva deve possibilitar uma regulamentação moralmente aceitável,
ou seja, aceitável pelas mesmas razões e que não apresenta solução
para o conflito de valor. Ora, tal regulamentação ainda não correspon­
de à distribuição simétrica dos encargos decorrentes que terão de ser
assumidos a partir de uma opção estratégica. Em vista do objetivo de
uma coexistência sob igualdade de direitos, ela é “igualmente boa para
todos”, mas nem sempre em vista de toda e qualquer conseqüência.
Não se pode excluir uma distribuição desigual dos “rigores” que uma
solução justa acarrete para a autocompreensão ética de um a ou outra
das partes envolvidas; mais que isso, é antes mesmo provável que tal
coisa aconteça. Pois em geral a abstração trabalha em favor de uma
regulamentação relativamente “liberal” (que a mim pessoalmente, por
exemplo, pareceria bastante insuportável no caso da eutanásia). Por
outro lado, a expectativa normativa associada a isso, de que em todo
caso se tolere um comportamento eticamente condenável de integran­
tes de um outro grupo (a partir de “nossa” visão), implica ao menos
em parte uma ofensa a nossa integridade; a “nós” continua se permi­
tindo recriminar eticamente a práxis de outras pessoas, mesmo que a
ela se tenha garantido o aval jurídico. O que se exige juridicamente de
nós é a tolerância em face de práticas que consideramos eticamente
extraviadas a partir de “nossa” perspectiva.
Eis o preço a pagar pela convivência nos limites de uma comu­
nidade jurídica igualitária, na qual diversos grupos de origem cultu­
ral e étnica distintas precisam relacionar-se uns com os outros. É ne­
cessário haver tolerância, caso se pretenda que permaneça intacto o
fundamento do respeito recíproco das pessoas do direito um a pelas
outras. O preço por “suportar” diferenças éticas desse tipo também é
juridicamente exigível, desde que se assegure o direito a um a coexis­
tência de diferentes formas de vida. Pois um direito como esse, “abs­
trato” de um a perspectiva ética, constitui o ponto de referência para
uma regulamentação que, por se poder aceitá-la pelas mesmas ra­
zões em face do objetivo comum a todos, prescinde da única alterna­
tiva existente, qual seja; o acordo a que se chega nos conflitos de va­
lor que não admitem acordo, e que é essencialmente mais doloroso,
por ameaçar integridades.
Sobre b): Por certo isso só vale sob o pressuposto de que se trate
efetivamente de uma circunstância ética que como tal e de maneira
imediata não seja acessível a uma solução moral passível de consenso.

312 A INCLUSÃO DO OUTRO


Supõe-se que se deva ter chegado a essa constatação por debates con­
duzidos de maneria suficientemente discursiva. Esse embate preli­
minar assumirá um caráter renitente sobretudo se a mudança em dire­
ção de um plano de abstração mais elevado propiciar soluções que
tenham por conseqüência exigências de tolerância diferentes umas das
outras. Mesmo quando se pode alcançar um consenso com base em
um ponto de referência mais abstrato — o da coexistência de com u­
nidades que vivem em igualdade de direitos e intactas em suas respec­
tivas identidades — , tal como supomos aqui, mesmo assim não se
terá chegado a uma conquista muito maior do que uma base sobre a
qual se possa resolver o conflito afundo. Também no plano das con­
trovérsias morais, é só muito raramente que de fato se pode chegar a
um comum acordo. Segundo ensina a experiência, é bastante ffeqüente
que até mesmo questões de justiça claramente definidas mantenham
seu caráter controverso, sobretudo em uma sociedade constituída de
maneira heterogênea. Na fenomenologia de controvérsias duradouras,
nada muda nem mesmo quando os envolvidos, em conjunto, tomam
como ponto de partida (ou apenas supõem, de comum acordo) a exis­
tência de uma única resposta correta para questões morais, desde que
formuladas de maneira suficientemente precisa. Por isso McCarthy
insiste em perguntar se a premissa de um a única resposta correta não
acaba sendo um engano (ainda que talvez essa premissa, da perspec­
tiva dos participantes, continue sendo elucidativa). Da perspectiva do
observador, no entanto, constatamos que não se pode chegar (ou só
muito raramente) a uma unidade quanto a questões políticas polêmi­
cas, no que se refere a seu caráter normativo. Por que razão, em face de
um dissenso contínuo, os participantes do processo democrático ainda
deveríam orientar-se por um objetivo tão questionável quanto o de
um comum acordo a princípio possível ?
Uma resposta a essa questão central pode dar-se em dois pas­
sos diferentes. Pois é preciso explicar duas coisas; por que é neces­
sária a premissa da resposta correta única? E como, em último caso,
ela pode ser conciliada com a evidência do dissenso perm anente,
que prepondera?
A melhor forma de responder à primeira pergunta é fazê-la a
contrario. Se tomamos o Estado constitucional por uma ordem legí­
tima, que por sua vez torna possível haver uma legislação legítima
(bem como processos de criação do direito legítimos em geral), e se

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 313
entendemos “legitimidade” em um sentido não-em pirista12, então
supomos a possibilidade de um acordo m útuo não-violento quanto
a questões políticas. Pois nesse sentido amplo só se pode ver o “acor­
do m útuo” como alternativa à imposição de um interesse mais forte
(imposição sustentada sobre uma simples prática costumeira, uma
coerção, um a influência, engodo ou sedução premeditados), caso os
envolvidos — de maneira mediata ou imediata — aceitem por von­
tade própria os resultados de um debate político (ou então possam
aceitá-los sob condições adequadas). Esse sentido amplo de acordo
m útuo contempla convenções que se firmam ora pela livre expres­
são da vontade dos parceiros de negociação ou contrato (expressão
que também pode ser voluntariamente pressuposta), ora segundo re­
gras livremente aceitas para se chegar a acertos (regras reconhecidas
como legítimas ou então como justas e honestas); e ele contempla
também formações de consenso e resoluções fundamentadas que se
apoiem sobre o reconhecimento racionalmente motivado de fatos,
normas, valores e respectivas pretensões de validação, bem como de
procedimentos de formação discursiva da opinião e da vontade (in­
clusive decisões sustentadas em argumentação). O que qualifica tal
acordo m útuo como alternativa ao “uso da força” é o fato de os parti­
cipantes, em última instância, abandonarem-se à força geradora de
laços comunitários, a qual emana do discernimento atestado por via
comunicativa e da liberdade de expressão da vontade assegurada ins­
titucionalmente (ou então de uma combinação entre “razão” e “von­
tade livre”, regulada por procedimentos). Não seria possível que os
participantes se abandonassem a essa base comum, não fosse o fato
de todos os cidadãos, pelas mesmas boas razões, poderem tomar como
ponto de partida tanto a constituição, que instaura um a rede de pro­
cessos legitimadores para se chegar ao acordo mútuo, quanto a supo­
sição de racionalidade, que se vincula, ela mesma, a esses processos e
instituições.
Isso tudo também permite fazer uma leitura republicana da pre­
missa de “uma única resposta correta”. As boas razões pelas quais os
cidadãos confiam na legitimidade da constituição e na força legitima-
dora do processo democrático poderiam estar amparados por um ethos
político internalizado de maneira imediata, e com isso essas mesmas

12. Habermas, 1992, pp. 351-358.

314 A INCLUSÃO DO OUTRO


razões poderíam perder sua força de convencimento quando se tra­
tasse de exercê-la para além da própria comunidade política. Essa lei­
tura, no entanto, não permite a McCarthy trilhar caminho algum, já
que ele exclui das sociedades multiculturais um consenso de valores
“nato”; mais que isso, também espera por conflitos endêmicos de va­
lores, de modo que no fim das contas tem de se ver a controvérsia
acerca da autocompreensão ético-política de uma nação em seu todo
como insolúvel, por uma questão de princípio. Minha argumentação,
em face de McCarthy, afirma de início tantas coisas, que sob suas pró­
prias premissas ele acaba não podendo explicar de que maneira é pos­
sível haver legitimidade democrática, afinal.
Quando questões de justiça não podem transcender a autocom ­
preensão ética de formas de vida concorrentes, nem tampouco agir
sobre os conflitos de valor existencialmente relevantes em meio a to­
das as questões políticas controversas, então se chega, afinal de contas,
a uma compreensão de política semelhante à de Carl Schmitt. Q uan­
do conflitos políticos, por serem essencialmente de natureza ética, não
permitem como tais que se espere uma mediação racionalmente m oti­
vada, então os cidadãos têm de tomar como ponto de partida que a
política, em seu todo, e deforma irremediável, é uma esfera do dissenso,
pelo qual se deve esperar de maneira racional. Pois qualquer solução
acabaria significando que os cidadãos também podem assumir outra
perspectiva (a perspectiva da justiça, por exemplo), a partir da qual
pudessem ultrapassar a perspectiva de envolvidos, de partícipes ime­
diatos dos conflitos de valores. Enquanto não se admitir tal coisa, não
se pode chegar a uma resposta sobre como caberia solucionar as con­
trovérsias políticas dominadas por identidades hostis e perpassadas
de conflitos de valor irresolúveis por via racional, senão pela imposi­
ção ou, na melhor das hipóteses, por procedimentos conciliativos im ­
postos (e internalizados, ao longo do tempo). Isso exige um a descri­
ção empirista dos processos de legitimação, com os quais, porém,
McCarthy não se dá por satisfeito.
Se nós, como participantes de discursos políticos, não pudésse­
mos convencer outras pessoas, nem aprender com elas, a política deli­
berativa perdería seu sentido — e o Estado democrático de direito, o
fundamento de sua legitimação. Se os envolvidos — certamente dota­
dos da consciência falibilista de poder errar a todo momento — tam ­
pouco tomassem como ponto de partida que os problemas políticos e

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 315
jurídicos controversos podem ter para si uma solução “correta”, então
a disputa política abrandaria seu caráter deliberativo e degeneraria a
ponto de se tornar uma luta exclusivamente estratégica pelo poder.
Sem estar orientados para o objetivo de uma solução de problemas
passível de comprovação baseada em fundamentos, os participantes
não saberíam de modo algum o que procurar. Por outro lado, como
envolvidos não podemos ignorar ingenuamente as evidências empíri­
cas. McCarthy tem razão ao insistir no seguinte: o que sabemos sobre
o dissenso contínuo a partir de uma perspectiva de observadores pre­
cisa vir a integrar-se ao que apenas supomos, na condição de pessoas
voltadas ao acordo m útuo e envolvidas em aconselhamentos e discus­
sões políticas. Ao menos, uma coisa não pode contradizer a outra. Em
coisas práticas, apesar do dissenso permanente, é preciso que se deci­
da; mas as decisões devem ser tomadas de tal modo que elas possam
valer como sendo legítimas.
Essa exigência, que pode parecer paradoxal em um primeiro
momento, satisfaz a “legitimação por meio de procedimentos”, que se
começa a discutir. Até aqui, estivemos atentos a que uma formação
discursiva da opinião e da vontade precisa conferir legitimidade ao
direito escrito. Igualmente interessante, no entanto, é o avesso da ques­
tão: o fato de que o próprio processo de legitimação carece de insti­
tucionalização jurídica. Pois eis aí o que mune os discursos (e negocia­
ções) políticos das qualidades formais do direito. Afinal, é qualidade
específica do direito poder coagir de maneira legítima. Graças a essa
peculiaridade, e pelas vias de sua institucionalização jurídica, é que se
podem introduzir coerções decisórias nos processos de aconselha­
mento democrático (as quais se demonstram necessárias a partir da
perspectiva do observador), sem que com isso se imponham danos à
força legitimadora que, segundo a perspectiva de seus participantes,
inere aos discursos. Tentei demonstrar, em outra ocasião, de que ma­
neira os processos de aconselhamento e decisão podem ser juridica­
mente institucionalizados (e alojados em comunicações públicas in­
formais), de modo a fundamentar uma pretensão de racionalidade
dos resultados almejados, em conformidade com determinados pro­
cedimentos. Em um sentido bastante complexo, fala-se aqui do “proce­
der” do “processo democrático”. Este último, com aconselhamentos (e
negociações) juridicamente institucionalizados, direciona o desenrolar
de uma formação de opinião de caráter mais espontâneo (possibili­

316 A INCLUSÃO DO OUTRO


tada por vias jurídicas) em meio ao conjunto dos membros da socie­
dade, e combina, por sua vez, os resultados daí decorrentes a procedi­
mentos decisórios juridicamente obrigatórios.
Entre os procedimentos decisórios, a regra de maioria (qualifica­
da, de acordo com certas exigências) é particularmente importante,
porque a “racionalidade procedimental” que se atribui a ela (associada
ao caráter discursivo dos aconselhamentos precedentes) confere força
legitimadora às decisões de maioria. Decisões democráticas de m aio­
ria tratam de criar cesuras em um processo argumentativo (tempo­
rariamente) interrompido sob risco de se tomar uma decisão e cujos
resultados podem ser aceitos como base para uma práxis obrigatória,
também pela minoria derrotada nas votações. Pois a aceitação factual
não significa que a minoria tivesse de aceitar o conteúdo dos resulta­
dos como sendo racional, ou seja, que ela tivesse de modificar suas con­
vicções. O que ela pode fazer, no entanto, é aceitar por certo tempo a
opinião da maioria como orientação obrigatória para sua ação, desde
que o processo democrático lhe reserve a possibilidade de dar conti­
nuidade à discussão interrompida, ou então retomá-la, bem como a
possibilidade de mudar a situação da maioria em virtude de argumen­
tos (supostamente) melhores. A regra da maioria deve sua força legi­
timadora a uma racionalidade procedimental “incompleta” mas “pura”,
no sentido de Rawls13. Ela é incompleta porque o processo democrá­
tico está instituído de tal maneira que dá direito a supor resultados
racionais, sem poder garantir a correção dos resultados (o que ocorre,
por exemplo, em um procedimento perfeito ligado a um caso em par­
ticular). Por outro lado, trata-se de um caso de justiça procedimental
pura, porque no processo democrático não se pode dispor de quais­
quer critérios de correção independentes do procedimento e porque a
correção das decisões depende tão-somente do cumprimento factual
do procedimento. (Isso não chega a interferir na distinção subseqüente
entre a justificação “direta” ou conteudística do procedimento em si
mesmo, de um lado, e a justificação “indireta” das decisões individuais
por meio da correta utilização dos procedimentos, de outro.)
(2) Parte da controvérsia com McCarthy, se não estou enganado,
baseia-se em mal-entendidos. Eles dizem respeito sobretudo a três ques­

13. Cf. J. Rawls, Fine Theorie der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1975. pp.
106ss. [ed. br.: Uma teoria da justiça, São Paulo, Martins Fontes, 32000].

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 317
tões em particular: (a) a distinção entre um plano omniestatal e um
plano intra-estatal da integração ética; (b) o conceito da identidade
coletiva, que deve ser entendido como processual; e (c) a impregna­
ção ética da ordem jurídica estatal.
Sobre (a): Nos limites de um Estado nacional, temos de dis­
tinguir (pelo menos dois) planos juridicamente relevantes da inte­
gração ética. Os conflitos de valor que abordamos até o m omento
surgem da coexistência de diversas comunidades confessionais e in-
terpretativas, subculturas e formas de vida no interior de uma nação
de cidadãos ligados a um Estado (as quais, segundo queremos supor,
não estão separadas territorialm ente). Com freqüência, esses confli­
tos intra-estatais são suscitados pelo fato de que o ethosde uma cultu­
ra majoritária, preponderante por razões históricas, dom ina as re­
lações jurídicas e impede, com isso, um tratam ento igualitário (dos
membros) das coletividades que se encontram integradas eticamente
a esse plano subpolítico — o que se dá de maneira dissonante para
as diferentes coletividades entre si. Em seu papel de cidadãos de uma
mesma nação organizada como Estado, porém, os integrantes de
diversas subculturas, em casos de conflito, vêem-se obrigados a pres­
tar contas à norm a prioritária da coexistência em igualdade de di­
reitos, m antida por meio de regulamentações abstratas. Como se de­
monstrou, no entanto, para se conquistar regulamentações desse tipo,
que asseguram a integridade defensável de cada um em suas corpora­
ções culturais peculiares e formadoras da identidade, é preciso pagar o
preço sociopsicológico bastante amargo das exigências de tolerância.
Em face de tais considerações, é preciso ter em conta que o plano da
integração ético-política da coletividade estatal em si mesma distin-
gue-se disso tudo.
Nesse último plano está o que se chamou nos Estados Unidos de
“civil religion” — um “patriotismo constitucional” que vincula todos
os cidadãos do Estado, não importando suas diferentes marcas cultu­
rais ou origens étnicas. Trata-se aí de uma grandeza metajurídica; pois
esse patriotismo constitucional baseia-se na interpretação das reco­
nhecidas proposições fundamentais da constituição, que são univer-
salistas, segundo seu teor, e provêm do contexto da respectiva história
e tradição nacional. Pois dos cidadãos só se pode esperar uma lealdade
constitucional não coagida juridicamente e assentada em motivos e
estados de consciência moral, se esses mesmos cidadãos forem capa­

318 A INCLUSÃO DO OUTRO


zes de conceber, a partir dos próprios contextos históricos, o Estado
democrático de direito como uma conquista sua. Tal patriotismo cons­
titucional só está livre de laivos ideológicos quando os dois planos da
integração ética — a omniestatal e a intra-estatal — puderem ser m an­
tidas separadas. Normalmente é preciso lutar em favor desse desaco-
plamento e opor-se com isso à cultura majoritária. Só então surge um
fundamento motivacional propício às exigências de tolerância resul­
tantes das diferenças sustentadas por via jurídica entre as comunida­
des eticamente integradas no interior de uma mesma nação14.
Sobre (b): McCarthy lembra a dessemelhança estrutural entre a
autocompreensão intersubjetivamente partilhada por um a com u­
nidade e a identidade entre as pessoas em particular. Eu mesmo sem­
pre adverti15 quanto ao risco de conceber a identidade coletiva de
uma comunidade de cidadãos segundo o modelo da identidade subje­
tiva. Mais que isso, as duas comportam-se de maneira complementar
uma em relação à outra. E um sujeito amplo (“a unified we”) com cer­
teza não surge assim da integração ética dos cidadãos de uma coletivi­
dade política. Mas os integrantes de um Estado também não são ape­
nas membros de uma organização; mais que isso, eles partilham uma
forma de vida política que se articula em uma respectiva autocom ­
preensão. Integrantes de uma coletividade sabem intuitivamente ante
que perspectivas e em que situações eles dizem “nós” — e sabem tam ­
bém quando esperar dos outros esse mesmo “dizer nós”. No entanto,
em uma sociedade pós-tradicional, pluralista no que diz respeito a
diversas visões de m undo e (tanto mais nesse caso) multicultural, a
questão sobre como “nós” queremos compreender-nos enquanto ci­
dadãos de um a determinada república mostra-se polêmica, além de
ser proposta de maneira explícita e a partir de ensejos diversos. E os
discursos de auto-entendimento continuam em curso, mesmo em
contextos cambiantes.

14. Mutatis mutandisisso tam bém se aplica à neutralidade de uma autocom pre­
ensão civil que se exige de todos em face de outras diferenças (de gênero, de classe
social, de idade etc.). As diferenças de situação de vida, sobretudo as que se fundam en­
tam em questões sexuais ou socioeconômicas, vinculam-se cumulativamente com as
distinções culturais e étnicas.
15. Isso já estava presente em meu discurso sobre Hegel, de 1974, por ocasião da
pergunta: “Kónnen komplexe Gesellschaften eine vernünftige Identitât ausbilden?” [As
sociedades complexas podem estabelecer uma identidade racional?], in: J. Habermas,
Zur Rekonstruktion des Historischen Materialismus, Frankfurt am Main, 1976, pp. 92-126.

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 319
Nossa identidade não é apenas algo que assumimos, mas tam ­
bém um projeto de nós mesmos. Não podemos escolher nossas pró­
prias tradições: alguns têm os patriarcas fundadores e uma tradição
constitucional bicentenária nas costas, por mais que essa tradição possa
merecer críticas; outros, a Revolução Francesa; e outros, alemães como
eu, a assim chamada “Guerra de Libertação” contra Napoleão, a malo­
grada Revolução de 1848, o Império guilhermino, a República de
Weimar, que fracassou, o nacional-socialismo e os crimes em massa
cometidos nessa época, a guinada de 1989, e assim por diante. Mas
depende de nós escolher as tradições a que queremos dar continuida­
de ou não16. A isso corresponde um conceito processual de identidade
coletiva. A identidade de um a nação de cidadãos ligados a um Estado
não é nada estática; de qualquer maneira, ela se projeta hoje em dia nos
parâmetros delimitados pelo respectivo espectro da disputa pública
em torno da melhor interpretação da constituição, e em torno de uma
autocompreensão autêntica das tradições constitutivas da coletivi­
dade política. Enquanto princípios constitucionais vigentes continua­
rem formando o foco comum desses discursos de auto-entendimento
talhados segundo as formas de vida da nação como um todo, as inter­
pretações concorrentes também continuarão se sobrepondo de m a­
neira suficiente para assegurar— “for the time being”— uma concor­
dância capaz de sustentar a integração ético-política dos cidadãos, mes­
mo que de maneira difusa. Em todo caso, as discussões sobre temas
específicos que concernem à forma de vida histórica comum a uma
nação em seu todo vêm se cumprindo mesmo em face desse cenário
algo oscilante. Uma questão político-ética de tipo mais trivial, por
exemplo, diz respeito à prontidão de uma população a correr riscos
maiores ou menores quando se trata de ponderar o grau de segurança
referente à tecnologia pesada, em comparação aos encargos econômi­
cos daí decorrentes.
Sobre (c): Entretanto McCarthy tem razão ao mostrar-se cético
diante de minha tentativa (corrigida no Posfácio da 4a edição do livro)
de ordenar aspectos pragmáticos, éticos e morais a determinadas clas­
ses de matérias legislativas. Via de regra, as questões políticas são tão
complexas que têm de ser discutidas sob todos esses aspectos ao mesmo

16. Cf. J. Habermas, “Grenzen des Neohistorismus”. In: Die nachholende Revolu-
tion, Frankfurt am Main, 1990, pp. 149-156.

320 A INCLUSÃO DO OUTRO


tempo — os quais se podem separar tão bem de um ponto de vista
analítico17. McCarthy no entanto tira conseqüências erradas quando
reflete sobre a circunstância de toda ordem jurídica nacional, localiza­
da no tempo e no espaço, que se vê “impregnada” pela autocompreen-
são ética de uma forma de vida política. Pois a impregnação ética do
direito não aniquila de modo algum os teores universalistas do direito.
Se diferentes constituições nacionais representam tantas diferen­
tes leituras dos mesmos direitos fundamentais — os quais são passíveis
de reconstrução teórica — , e se diferentes ordens jurídicas positivas
implementam os mesmos direitos fundamentais em formas de vida tão
numerosas, então a identidade do sentido desses direitos — e a univer­
salidade de seu teor — não precisa se diluir no espectro dessas diversas
interpretações. Embora o direito positivo vigente sempre tenha um
campo de aplicação estatal limitado (e mesmo um direito internacional
que se imponha mundialmente continua sendo provinciano ante o
universo), essas ordens jurídicas, mesmo assim, não poderíam reivin­
dicar legitimidade alguma, se, de uma maneira racionalmente acei­
tável, não estivessem em consonância com princípios morais. A preten­
são de universalidade do sistema jurídico que está vinculada aos di­
reitos humanos ganha em atualidade especialmente nos casos em que
as crescentes interdependências do M undo Único trazem à ordem do
dia a disputa em torno da seletividade das diferentes leituras culturais.
Essa querela interpretativa só faz sentido sob a premissa de que cabe
encontrar uma leitura correta, capaz de esgotar de forma satisfatória o
teor universalista desses direitos no contexto contemporâneo.
Tampouco no âmbito de uma ordem jurídica nacional, uma dis­
tinção entre aspectos da justiça e do auto-entendimento não opera no
sentido de um cruzamento dialético que nos deixa para trás, com uma
disputa insolúvel entre concepções de justiça que dependem do res­
pectivo contexto. O teor universalista dos direitos fundamentais não
está restrito pela impregnação ética da ordem jurídica estatal; o que
ocorre, sim, é que ele perpassa os contextos de coloração nacional. Eis
a única razão para que a neutralização jurídica dos conflitos de valor,
que ademais deixaria a coletividade política em frangalhos, exija que
se privilegie o aspecto da justiça. Do ponto de vista normativo, as ques-

17. Cf. J. Habermas, Posfácio. In: Faktizitat und Geltung, Frankfurt am Main,
1994, p. 667, nota 3.

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 321
tões de justiça também têm primazia por uma outra razão: há con­
cepções do que seja bom que sancionam relações internas autoritá­
rias. Na Alemanha, por exemplo, é preciso não somente firmar os di­
reitos de jovens turcas por oposição à vontade de seus pais, os quais
evocam prerrogativas de sua cultura de origem para tentar impor-lhes
padrões de comportamento, mas também direitos individuais em ge­
ral, por oposição a pretensões coletivas nascidas de um a autocom-
preensão nacional. Não creio, por exemplo, que nos dias de hoje os
Estados ainda possam manter a obrigatoriedade universal do serviço
militar, ou seja, que possam exigir de determinados grupos (do sexo
masculino) em um a faixa etária específica que ponham suas vidas à
disposição, em prol da pátria. Concordo com a seguinte afirmação de
McCarthy: “Legitimate law is at once a realization of universal rights
and an expression of particular self-understandings and forms of life.
A concrete law must be both at once.” Mas a frase que segue, “Hence
its acceptability or legitimacy can be thematized under both aspects:
the right and the good”, só está correta mediante a seguinte restrição:
no caso de conflito, argumentos de justiça são trunfos dworkianos, os
quais tratam de extirpar e afastar as ponderações feitas a partir de uma
perspectiva interna de um a forma de vida que coexista em igualdade
de condições com outras subculturas.
(3) Na questão central sobre a possibilidade de fundam entar a
precedência do que é justo em relação ao que é bom, McCarthy não é
totalmente unívoco. A partir da visão ético-existencial de um projeto
de vida pessoal, “justiça” está entre os valores que podem ser ponde­
rados em relação a valores diversos, até mesmo precedentes, inclusive
quando já se tem claro que a práxis que se privilegia deve satisfazer os
parâmetros da justiça. Contudo, as questões de justiça no sistema de
referências do convívio de um a sociedade multicultural no âmbito
de um Estado de direito afirmam uma precedência incondicionada.
Por um lado, McCarthy admite tal coisa; insiste, por outro lado, em
que também aqui não se podem separar “em última instância” as ques­
tões de justiça das questões ético-políticas. Ele repete sua asserção ante­
rior: “We cannot agree on what is just without achieving some measure
of agreement on what is good18”. Isso é correto, mas não deixa de ser
trivial enquanto “a certa medida de concordância” referir-se apenas à

18. McCarthy, Ideais and Illusions, Cambridge (Mass.), 1991, p. 192.

322 A INCLUSÃO DO OUTRO


exigência funcional de uma sobreposição suficiente das formas de vida
subculturais. Toda formação estatal, caso não deva esfacelar-se em seus
vários segmentos, justamente depende também da força integrativa
de um a cultura política em comum. Essa é uma asserção sociológica.
Enquanto asserção filosófica, a frase permite duas interpretações. Ou
todas as noções de justiça — no sentido de Taylor e Maclntyre19— são
dependentes, por razões conceituais, do contexto das concepções es­
peciais do que seja bom (não poderei me dedicar mais detalhadamen­
te a essa interpretação20); e com isso só se poderá chegar a um único
fundamento ético em comum sobre o conceito de justiça. O u então se
afirma que todas as elucidações de um conceito universalista de justi­
ça tido em comum têm inevitavelmente que tomar como ponto de
partida o horizonte de uma concepção própria do que seja bom, caso
a caso; mas então a crítica m útua às diferentes leituras de “justiça”
pode continuar se apoiando na premissa de que o conceito geral de
justiça, intuitivamente oscilante, pode se desenvolver em seu teor uni­
versalista a partir da disputa discursiva e por princípio de maneira de­
pendente em relação ao contexto.
McCarthy, em todo caso, considera insuficiente a explicação dada
pela teoria do discurso para as práticas concernentes ao Estado de di­
reito e alude à alternativa de um convívio sem violência baseado no
reconhecimento de “reasonable agreements”: “Members may be said
‘rationally’ to accept outcomes with which they substantively disagree
only in an attenuated, indirect sense: they abide by the rules they accept
as fair even when things d o n t go their way”. Essa alternativa, porém,
parece levar ao tipo de legitimidade procedimental sugerida; tal legiti­
midade deve garantir uma neutralização dos dissensos racionalmente
esperáveis, os quais, em sociedades pluralistas, são inevitáveis entre os
padrões valorativos de diferentes comunidades, integradas cada qual
em torno de concepções próprias do que seja bom. Apenas a frase sub-
seqüente permite reconhecer a diferença em relação à explicação dada
pela ética do discurso: “Rational acceptance does not here have the
cognitive sense of succumbing to the force of the better argument.” Em
lugar da expectativa de um acordo m útuo que por princípio é possí­

19. Cf. m inha crítica in: J. Habermas, Erlãuterungen zur Diskursethik, Frankfurt
am Main, 1991, pp. 176-184 e 209-218.
20. Cf., porém, L. Wingert, Gemeinsinn und Moral, Frankfurt am Main, 1993.

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 323
vel, devem surgir a tolerância, o respeito mútuo, o amparo etc. Segun­
do suponho, o fato de McCarthy não tornar ainda mais precisa essa
alternativa tem sua explicação em uma certa falta de clareza quanto às
condições cognitivas a serem preenchidas para que se possa exigir to­
lerância de maneira racional.
Pois só podemos chegar a um consenso sobre a tolerância mútua
de formas de vida e visões de m undo que signifiquem umas para as
outras um desafio existencial, quando temos uma base constituída de
convicções em comum em favor desse “agree to disagree”. Ora, segun­
do as suposições de McCarthy faltam nas questões de justiça convicções
éticas em comum e até mesmo uma base em comum. Quando, porém,
não consideramos possível a conquista racional de um consenso, nem
mesmo nesse plano mais abstrato, então só resta o recurso às práticas
costumeiras, à imposição forçada de interesses e à adequação involun­
tária (compliance). Isso pode bastar para o equilíbrio precário de uma
trégua, para um modus vivendi provisório, mas não para um recurso à
tolerância, fundamentado por via normativa. De fato, sociedades com­
plexas dependem cada vez mais da tolerância almejada por McCarthy,
a qual não se pode im por juridicamente; ou seja, dependem sempre
mais da prontidão a suportar diferenças existencialmente significati­
vas e da prontidão a cooperar com integrantes de formas de vida disso­
nantes; ao mesmo tempo, no entanto, essa exigência é tomada cada
vez mais, de um ponto de vista subjetivo, como uma exigência imper­
tinente. A tolerância, a partir da visão do observador sociológico, passa
a ser vista como recurso sempre mais escasso. Por isso, a exigência de
tolerância carece de justificação normativa— e isso em proporção cres­
cente. Essa justificação, por sua vez, precisa atender à reivindicação
de que a coexistência das formas de vida protegidas em sua integri­
dade sejam também regulamentadas de maneira justa e honesta, ou
seja, de acordo com regras que possam ser aceitas por todas as partes,
de maneira racional.
(4) O processo democrático só promete uma racionalidade pro­
cedimental “imperfeita” mas “pura”, sob a premissa de que em princí­
pio os participantes considerem possível haver justamente uma res­
posta correta também para as questões de justiça. Em tal medida sub­
siste uma analogia em relação à disputa sobre questões factuais, a qual
não levaríamos adiante com recursos argumentativos, caso não to­
mássemos como ponto de partida que, em princípio, podemos nos

324 A INCLUSÃO DO OUTRO


convencer da verdade ou falsidade de um enunciado. O fato de “nos
considerarmos capazes da verdade”, em um a atitude performativa,
naturalmente não significa que precisaríamos despertar fortes expec­
tativas de atingir o consenso — ou que deixaríamos de poder nos en­
ganar a qualquer momento. No sistema da ciência, a contradição e o
dissenso estão afinal institucionalizados a serviço da busca cooperati­
va da verdade. Por outro lado, também não se pode extrapolar a ana­
logia. Quando não levamos em conta as diferenças entre reivindica­
ções de validação assertóricas e normativas, então incorremos em in­
terpretações intelectualistas equivocadas acerca do que a razão prática
é capaz de fazer. McCarthy tem razão ao perguntar: “Is the search for
truth about ‘the’objective world an appropriate analogue of the search
for justice in ‘our’ social world?” A pergunta é inquietante em face da
premissa de “uma única resposta correta”.
Depois de manter discussões com Friedrich Kambartel sobre o
intuicionismo na matemática, gostaria de atenuar minha tese quanto a
isso, que defendi até aqui de maneira severa. O princípio de bivalência
aplica-se bem a enunciados empiricamente substanciosos sobre algo
que está no mundo objetivo. Ao considerar o universo dos objetos sim­
bólicos criados por nós, porém, como suponho agora, temos de contar
com uma classe de enunciados que hic et nunc não são nem falsos nem
verdadeiros e sobre os quais só podemos decidir quando logramos cons­
truir um procedimento justificativo (tal como na matemática se constrói
um procedimento comprobatório). Considerando-se a constituição
ontológica do mundo social, que (como disse Marx, ao retomar Vico)
nós mesmos ocasionamos, ainda que não de modo voluntário e cons­
ciente, é mesmo plausível que a relação entre construção e descoberta
(assumida para o conhecimento do m undo objetivo) seja posta a cargo
da fantasia abdutiva. Em face de problemas difíceis temos de deixar
que as construções certas nos “ocorram”.
É natural que eu não queira equiparar o direito e a moral com o
campo objetai das relações e objetos produzidos matematicamente.
Com referência a seu sentido de validação, os dois tipos de enunciado
estão até mesmo muito distantes um do outro. Algo semelhante a uma
“verdade analítica” (caso devesse haver algo assim, à revelia de Quine)
não se presta à elucidação de “correção moral” ou “legitimidade”. Além
disso, direito e moral referem-se à regulamentação de relações inter­
pessoais entre agentes por assim dizer enraizados no m undo objetivo

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç à o 325
e que têm aí, até certo ponto, um fundamentum in re. Por outro lado,
as ordens modernas do direito “escrito” são, de maneira semelhante,
criadas e construídas artificialmente, tal como o intuicionismo supõe
em relação aos objetos da geometria e da aritmética. Portanto, tam ­
bém não é totalmente despropositado contar nesse universo com per­
guntas para as quais não haja uma resposta claramente única, enquanto
a “construção” não “lograr êxito” para os envolvidos. Em face da regu­
lamentação normativa de interações, talvez não devéssemos contar a
priori com a validação do princípio da bivalência. Pode ser que no
caso em particular não falte acuidade argumentativa, mas talvez cria­
tividade. Mesmo assim, nesse campo pantanoso, em que é preciso to­
mar decisões em prazos determinados, não podemos esperar indefi­
nidamente por idéias construtivas que nos ocorram de repente. Se es­
tiver correta nossa suposição, diante de tais situações normativamente
insolúveis apenas operaríamos com a premissa (genericamente vá­
lida) da “resposta correta única”, assim como se fosse uma aposta a des­
coberto em favor do futuro. Porém, jamais poderemos abandonar essa
premissa, caso não queiramos que o processo democrático, ao perder
sua racionalidade procedimental inerente, perca também sua força
legitimadora. Sob as condições de um pensamento pós-metafísico,
porém, não vejo qualquer alternativa a isso.

0
Forma e conteúdo: o cerne “dogmático”
do procedimentalismo

(I) Michel Rosenfeld pretendeu demonstrar que o paradigma pro-


cedimentalista desenvolvido por mim não é “procedimentalista” em
sentido “genuíno”, mas apenas em sentido “derivado”. Para ser mais
exato: “Derivative Proceduralism is not genuine proceduralism but
rather substantive theory in procedural garb”. Em face de tal teoria,
que não admite suas próprias pressuposições substanciais, Rosenfeld
defende um pluralismo que seja “abrangente”, por ser substancial em
seu teor, e que difira do tipo liberal de pluralismo, por não se remeter
à neutralidade de um método para eliminar conflitos. Gostaria de de­
volver a reprimenda a Michel Rosenfeld: Comprehensive pluralism is
not substantive theory but rather proceduralism in substantivist garb.

326 A INCLUSÃO DO OUTRO


Para constatar em que ponto a controvérsia vai além do jogo de pa­
lavras, gostaria em primeiro lugar de comentar (a) o conceito de “pro­
cedimento” e (b) dedicar-me à problemática da igualdade de conteú­
do jurídico.
(a) Rosenfeld menciona a teoria hobbesiana do contrato social
como exemplo de um procedimentalismo genuíno, porque ela justi­
fica as regras do convívio social por meio de uma convenção entre to­
dos os envolvidos, firmada em conformidade com procedimentos. A
ela contrapõe a teoria de Locke, como exemplo de um procedimenta­
lismo “derivado”, porque aí o direito natural à propriedade seria um
preceito substancial para o contrato social. Em oposição a Elobbes,
Rosenfeld defende a esclarecedora tese de que não seria possível haver
legitimação de uma ordem jurídica apenas com base em uma justiça
procedimental: “Proceduralism may (only) be acceptable in the context
of contestable substantive norms.” A tese é correta para um conceito
estrito de procedimento. De fato, o que subjaz ao fechamento do con­
trato social hobbesiano (segundo o modelo do contrato burguês de
direito privado) é tão-somente a declaração formal da vontade dos en­
volvidos. Essa figura jurídica deveria garantir a justeza procedimental
tanto “perfeita” quanto “pura”.
Rosenfeld, no entanto, ainda pretende aplicar sua tese a outros
procedimentos jurídicos; por exemplo, aos procedimentos processuais
judiciais ou conformes à juridicidade que assegurem uma justeza pro­
cedimental pura e independente de preceitos substanciais, ainda que
imperfeita. Como exemplo, ele tom a a audiência de um cliente diante
de um tribunal social ou de um comitê de administração que decidem
sobre reivindicações sociais de rendimento. Em tais casos, embora o
curso regular do procedimento assegure o respeito pela dignidade
humana do cliente, preceitua-se ao próprio procedimento uma nor­
ma social conteudística que se considera justa ou injusta independen­
temente do procedimento. Quando se avança com esse mesmo exem­
plo, no entanto, acaba-se por deparar com o procedimento democrá­
tico do legislador político, que precisará ter decidido anteriormente
sobre essa norma. E aí se chega à questão polêmica: de onde afinal é
que as normas jurídicas obtêm sua legitimidade, quer regulem com­
portamentos, quer criem competências, quer fixem procedimentos (da
legislação, da justiça, da administração — e da vinculação dos pode­
res um ao outro)? Elas a obtêm a partir de razões substanciais ou de

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 327
procedimentos? A resposta quanto ao papel que a distinção forma/
conteúdo reserva para si no paradigma jurídico procedimentalista de­
pende da compreensão desse processo que gera legitimidade.
No início de m inha reconstrução do sentido de uma ordem ju ­
rídica legítima situa-se a decisão de um grupo (aleatório) de pessoas
que a partir de então querem regular seu convívio com recursos do
direito positivo, e que dão início, portanto, a uma práxis em comum,
com a qual possam levar a cabo essa intenção. O sentido performativo
dessa práxis geradora de constituições consiste assim em revelar e de­
cidir em comum quais são os direitos que (sob a premissa já mencio­
nada) cabe aos envolvidos reconhecer de maneira recíproca. Portanto,
preceituam-se duas coisas à práxis geradora de constituições: o direito
positivo como médium de regulamentações vinculativas, bem como o
princípio discursivo como instrução para os aconselhamentos ou de­
cisões racionais. Uma combinação e imbricamento desses dois elemen­
tos formais tem de bastar para a instauração de processos de criação e
aplicação do direito legítimo. Pois sob as condições do pensamento
pós-metafísico não se pode contar com um consenso que continue a
avançar e seja conteudístico, nesse sentido. A restrição a pressupostos
formais, nesse sentido, é como que talhada para as condições especifi­
camente modernas de um pluralismo de visões de mundo, formas
culturais de vida, posições de interesse etc. Naturalmente, ela não sig­
nifica que uma práxis geradora de constituições desse tipo esteja isenta
de quaisquer teores normativos. Ao contrário, no sentido performativo
dessa práxis, que simplesmente se desdobra no sistema dos direitos e
nos princípios do Estado de direito, já se encontra, como cerne dog­
mático, a idéia (rousseauniana e kantiana) da autolegislação de juris-
consortes livres e iguais, associados voluntariamente. Essa idéia não é
apenas formal; na verdade, como ela pode ser totalmente desenvol­
vida sob as formas de um a práxis geradora de constituições que em
seus detalhes não está conteudisticamente determinada (e em formas
de uma práxis da configuração de um sistema de direitos insaciáveis,
determinada tão-somente por normas constitucionais), subsiste a su­
posição bem fundam entada de que ela é neutra no que concerne a
visões de mundo, desde que as auto-interpretações e as interpretações
de m undo sejam não-fiindamentalistas, isto é (no sentido das “not
unreasonable comprehensive doctrines” de Rawls), desde que elas se­
jam compatíveis com as condições do pensamento pós-metafísico.

328 A INCLUSÃO DO OUTRO


Essa distinção forma/conteúdo refere-se inicialmente apenas à
provável neutralidade de princípios jurídicos em face de conteúdos
concernentes a visões de m undo específicas. Sua natureza formal reve­
la-se em tal medida no modus procedimental próprio à legitimação da
criação e imposição do direito, sobretudo na formação da vontade e
da opinião política (centrada no processo legislativo) e na jurisdição.
As duas coisas são processos regulados por “procedimentos” em sentido
amplo. Esse conceito complexo de procedimento, como foi dito, é nor­
mativo e não é neutro; e também é “formal”, ou neutro no que concer­
ne ao conteúdo, somente quando tomado em um sentido que carece
de maiores explicações. (Nas explicações gerais a seguir não poderei
entrar em detalhes quanto às importantes diferenças entre os proce­
dimentos legislativos, judiciais e administrativos.)
Nesses casos trata-se de procedimentos sociais decisórios21, que
vinculam a tomada de decisão ao resultado de aconselhamentos, à
medida que acoplam discursos a procedimentos deliberativos. Os pro­
cessos de formação da opinião e da vontade estão institucionalizados
em seu todo, bem como em sua estrutura e decurso. Nesse complexo
entrecruzam-se três tipos de procedimento. O cerne é constituído
por discursos nos quais os argumentos são intercambiados a fim de
responder a questões empíricas e práticas, ou seja, a fim de resolver
problemas. Esses processos argumentativos obedecem a procedimen­
tos puram ente cognitivos. Os convencimentos almejados de maneira
argumentativa formam assim o fundam ento de decisões que por sua
vez estão reguladas por procedimentos deliberativos (via de regra a
resolução de maioria). E os dois processos, aconselhamento e delibe­
ração, são finalmente institucionalizados por procedimentos do di­
reito. Os procedimentos jurídicos regulam, entre outras coisas, a com ­
posição de corporações (via de regra através de eleição ou delega­
ção), a distribuição de papéis entre os participantes (p. ex. em proce­
dimentos judiciais), a especificação dos conteúdos (temas e contri­
buições admissíveis), os passos da análise (p. ex. de questões de fato e
de direito), os fundamentos da informação (trabalhos periciais, m é­
todos de investigação etc.), bem como a pontuação dos transcursos
de tempo (leituras reiteradas, prazos de decisão etc.). Em suma, os

21. Sobre o que segue, cf. B. Peters, Rationalitãt, Recht und Gesellschaft, Frank­
furt am Main, 1991,Cap. VII.

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 329
procedimentos do direito devem cuidar de que ocorra a instituição
vinculativa de processos de aconselhamento discursivos e de proces­
sos decisórios justos e honestos.
Discursos que, de acordo com as respectivas proposições de ques­
tões, obedecem a uma lógica própria (e estão aliados no meio parla­
mentar a procedimentos justos e honestos para firmar acertos, isto é,
procedimentos discursivamente fundados) formam o centro nervoso
desses processos multiplamente entrecruzados, a ponto de caber a eles
o encargo da legitimação. Processos argumentativos, porém, como já se
mencionou, são suficientes apenas para condições de uma racionalida­
de procedimental imperfeita, e isso na medida em que eles se cumpram
sob formas de comunicação e segundo regras que incrementem uma
“busca cooperativa da verdade”. A institucionalização (de uma rede) de
discursos (e negociações) tem de se orientar em primeira linha de acor­
do com o objetivo de cumprir da maneira mais ampla possível os pres­
supostos pragmáticos comuns de argumentos em geral (acesso univer­
sal, participação sob igualdade de direitos e igualdade de chances para
todas as contribuições, orientação dos participantes em direção ao en­
tendimento mútuo e incoerção estrutural). A instituição dos discursos,
portanto, deve assegurar tanto quanto possível, sob as restrições tempo­
rais, sociais e objetivas dos respectivos processos decisórios, o livre trân­
sito de sugestões, temas e contribuições, informações e razões, de ma­
neira que possa entrar em ação a força racionalmente motivadora do
melhor argumento (da contribuição convincente ao tema relevante).
Aqui parece ter origem o velamento da substância por meio da
forma, do qual Rosenfeld se queixa. Pois pode-se duvidar, como fez
Bernhard Peters22, de que seja possível descrever a práxis argumenta-
tiva como um procedimento imperfeito mas “puro”, que fundamente
a suposição de resultados racionais. Pois não são afinal as razões subs­
tanciais que decidem sobre o resultado correto, em vez do “procedi­
mento” de um intercâmbio de argumentos regido por regras? Não há,
para o julgamento de um resultado alcançado em conformidade com
o procedimento, razões que independem do próprio procedimento,
de modo que sequer se poderia fàlar em uma legitimação procedi­
mental? A resposta a isso depende do sentido em que consideramos as
questões práticas como “capazes de conter verdade”.

22. Peters, 1991, pp. 253ss. e 258ss.

330 A INCLUSÃO DO OUTRO


A partir da visão de posições não-cognitivistas, em todo caso,
espera-se da argumentação em direito e moral que ela sugira discerni­
m ento onde não pode haver discernimento, mas apenas preferências
e posicionamentos, emoções e decisões. Igualmente insatisfatório é
um realismo moral que conta com fatos valorativos reconhecíveis ou
com direitos naturais, com um a ordem normativa que subsista inde­
pendentemente de nossas construções. A teoria da correspondência
da verdade já de saída é implausível para enunciados descritivos; para
a correção de enunciados normativos não podemos supor de modo
algum uma correspondência com algo dado. Contudo, se não pode­
mos questionar neles uma pretensão cognitiva, resta conceber “corre­
ção” como aceitabilidade racional sob certas condições idealizadas.
Consideramos válidos os enunciados normativos para os quais rei­
vindicamos a possibilidade de que sejam fundamentados por via ar-
gumentativa. Essa formulação, entretanto, ainda é ambígua porque
esse “fundamentar” apóia-se tanto na práxis de fundamentação quan­
to no respectivo fundamento. Que “procedimentalismo” seria esse, caso
se pudesse criticar, à luz de razões substancias em particular, o resultado
de uma práxis fundamentadora cumprida de maneira correta? Eis aí a
pergunta de Bernhard Peters.
Em face da falibilidade fundamental de nosso saber não basta
nenhum desses dois elementos, nem forma, nem substância, tom a­
dos por si mesmos. Por um lado, um a estrutura da práxis fundam en­
tadora, aceita em um contexto restritivo e ainda tão propícia, só pode
tornar provável na melhor das hipóteses que o intercâmbio de argu­
mentos se cumpra com base em todas as informações e razões rele­
vantes e disponíveis em dado momento, bem como no âmbito do
respectivo vocabulário (ou sistema descritivo) mais fértil possível. Por
outro lado, não há quaisquer evidências ou critérios de valoração que
precedam a argumentação, isto é, que não possam ser eles mesmos
problematizados e que não precisem, por sua vez, ser validados por
um a concordância que se almeja discursivamente e que está racional­
mente motivada, sob condições discursivas. Por não haver, em ques­
tões práticas, evidências “últimas” nem argumentos “acaçapantes”,
temos de recorrer a processos argumentativos, como procedimentos,
a fim de explicar por que nos atrevemos a assumir e resolver reivindica­
ções de validação “que transcendam”, isto é, que apontem para além
do respectivo contexto em particular.

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 331
Procedimentos e razões, forma e conteúdo estão de tal modo
imbricados, que nos convencemos de poder defender com boas ra­
zões os enunciados que consideramos válidos, e de poder defendê-los
à revelia de todas e quaisquer objeções — sejam elas levantadas quando
e por quem for. Nesse recurso prévio ao enfraquecimento de possivel­
mente “todas”as objeções, como eu gostaria de dizer referindo-me a A.
Wellmer e L. Wingert, reside uma idealização que permite diferenciar
entre “validade” e “aceitabilidade racional” do enunciado, sem subtra­
ir à validade a referência epistêmica de um “valer para nós”. Isso ex­
plica a ambivalência peculiar sobre a qual Peters apóia sua dúvida.
Estão aí, por um lado, as razões substanciais que nos convencem da
correção de um resultado; mas sua solidez só se pode comprovar, por
outro lado, em processos de argumentação efetivamente conduzidos,
ou seja, na defesa contra cada objeção factualmente posta.
Isso vale em geral para o discurso como procedimento. Os acon­
selhamentos ocorridos no Estado democrático de direito, institucio­
nalizados e atrelados a prazos de decisão e procedimentos de vota­
ção, de qualquer m odo não garantem resultados válidos, mas ape­
nas fundam entam a suposição de sua racionalidade; com isso, eles
asseguram para os cidadãos a “aceitabilidade racional” das decisões
tomadas em conform idade com os procedimentos. Em face de um
procedimento como esse, legitimamente reconhecido, ainda se pode
fazer valer a diferença entre um resultado “válido” e um resultado
“racionalmente aceitável” (no âmbito institucional dado) — seja por
meio da restrição opinativa por parte de um a m inoria que simples­
mente se agrega procedimentalm ente a resoluções irreprocháveis,
seja por meio do protesto simbólico de quem pratica desobediência
civil e então, depois de esgotadas todas as possibilidades formais de
revisão, apela à m aioria por meio da violação de um a regra, na ten­
tativa de que se retome o procedimento em um assunto de signifi­
cação fundamental.
(b) Mesmo que aceite um procedimentalismo nesse sentido,
Rosenfeld não tem de se dar por vencido. Pois para questões de justiça
ele rejeita reivindicações de validação que transcendam o contexto es­
pecífico: “Justice beyond law (that is beyond a particular legar order,
J. Habermas) cannot achieve complete impartiality... to the extentthat
it m ust... rely on a vision of the good that has intracommunal roots,
thus favoring the members of the relevant intracommunal group over

332 A INCLUSÃO DO OUTRO


the remaining legal subjects”. Segundo essa visão, ordens jurídicas
modernas, até mesmo por razões conceituais, não devem nem mesmo
poder cum prir sua promessa de assegurar a autonom ia privada e
pública a cada um. A dialética entre liberdade jurídica e factual, se­
gundo o pensamento de Rosenfeld, teria necessariamente de conduzir
a soluções unilaterais, que, de acordo com o contexto, produzem
igualdade demais, à custa de diferenças que são reprimidas, ou então
igualdade de menos, à custa de diferenças que são exploradas. Fa­
zendo uso de um a geringonça pós-estruturalista, Rosenfeld afirma
que o próprio princípio do tratam ento sob condições de igualdade
não perm itiría corretivo algum, nem contra aquele tipo de nivela­
mento de diferenças, nem contra este tipo de desigualdade ilegítima.
Segundo sua visão, a idéia dos direitos iguais para todos deve mesmo
enredar-se em um vaivém sem saída, oscilando entre a diferença re­
prim ida e o tratam ento igual dissimulado. Não considero elucidativo
nem o argumento conceituai, nem o exemplo com que se tenta com ­
prová-lo historicamente.
Rosenfeld pensa que os direitos liberais de igualdade, que se im ­
puseram no passado contra as desigualdades corporativas sob o slogan
“All men are created equal”, também podem servir como parâmetro
para a cobrança de direitos sociais por meio de ação judicial; contudo,
quando se tem um contexto modificado, como o da descolonização
(ou da luta de minorias étnicas contra uma cultura majoritária), aí
então se revela que o mesmo princípio do tratamento igual, que em
outro tem po serviu à emancipação, agora justifica a coação à assimi­
lação e com isso à repressão de diferenças legítimas: “The master
treats the slave as inferior because he is different, whereas the colonizer
offers the colonized equal treatment provided that the latter give up
his own language, culture and religion... Accordingly, in a master-
slave setting, equality as identity is a weapon of liberation whereas in a
colonizer-colonized setting, it is a weapon of domination”. Com esse
exemplo, Rosenfeld pretende demonstrar que princípios de justiça com
formulações idênticas modificam seu sentido no âmbito de diferen­
tes concepções do bem, e em tal medida não se sustentam por si mes­
mos. O exemplo demonstra, porém, que o que subjaz à crítica contra
a falta de tratam ento jurídico igual sob as relações de dominação feu­
dal e à crítica contra a equiparação social insuficiente sob as condi­
ções de um capitalismo liberal é, na verdade, exatamente o mesmo ponto

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 333
de vista normativo que subjaz à crítica contra a falta de respeito por
diferenças culturais sob uma coação imperialista à assimilação.
Em todos esses casos, trata-se da postulação de que se trate o
que é igual de maneira igual, e o que é desigual de maneira desigual.
Os direitos iguais que se cobram referem-se, no primeiro caso, a com­
petências; no segundo caso, a benefícios sociais cuja tarefa é possibi­
litar, sob igualdade de chances, o uso de competências já asseguradas;
e no terceiro caso trata-se das duas coisas — mas não com referência
precípua a uma compensação de interesses ou de poder que não possa
mais ser alcançada com o auxílio (de classes reconhecidas) de indeni­
zações sociais (tais como dinheiro, tempo livre, formação escolar etc.),
e sim com referência à independência nacional ou autonom ia cul­
tural, ou, no caso do multiculturalismo, com referência à coexistên­
cia de diversos grupos culturais, étnicos ou religiosos sob igualdade
de direitos. Trata-se o tempo todo de uma reivindicação de garantia
da integridade das pessoas do direito, às quais se garantem liberdades
iguais no sentido de um a igualdade de conteúdo jurídico entendido
de maneira não-seletiva. Pois essas liberdades devem ser asseguradas
para os cidadãos de maneira não apenas formal, mas efetiva; ou seja:
sob as condições sociais e culturais do surgimento de sua autonomia
privada e pública.
Com postulados feministas de equiparação não é diferente, em
princípio. Rosenfeld esboça (para fins do argumento) duas formas
de vida concorrentes, especificamente vinculadas ao gênero, e cujos
registros de valor colidem um com o outro de modo inconciliável —
de um lado, com realce da intimidade, vínculo, amparo e sacrifício, de
outro lado, com realce da distância, concorrência, orientação segun­
do os desempenhos apresentados etc. Ora, tão logo se tratasse da re­
gulamentação de situações de interesse e conflitos de valor indivi­
duais, essa oposição monolítica e estilizada de duas “visões” do bem
viver iria dissolver-se, de um modo ou de outro, em diversas concor­
rências entre grupos de homens e mulheres, estabelecidas sob outras
disposições; além disso seria preciso considerar, em diferentes áreas
da vida, os demais imperativos funcionais. Da perspectiva do para­
digma jurídico procedimentalista, tais conflitos podem ser bem re­
solvidos, mas apenas se o poder de definição para experiências e si­
tuações especificamente ligadas a cada gênero não forem deixadas
por mais tempo a cargo de especialistas ou mandatários. Os próprios

334 A in c l u s ã o do outro
envolvidos precisam lutar em fóruns públicos pelo reconhecimento
das interpretações reprimidas ou marginalizadas sobre suas carências,
a fim de que novas situações factuais sejam reconhecidas como rele­
vantes ou carentes de regulamentação e de que se negociem critérios
sob os quais se possa tratar com igualdade o que é igual e com desi­
gualdade o que é desigual. Sem o princípio do tratam ento em condi­
ções de igualdade, porém, transform ado a fortiori em fundamento,
não haveria base de sustentação para qualquer crítica ou reinvin-
dicação de revisão dos critérios antigos.
Por fim Rosenfeld dedica-se novamente a precisar o “desafio fe­
minista”: cabe agora pôr em questão o médium do direito e a estrutura
dos próprios direitos, com a postulação de que “se deve substituir a
hierarquia dos direitos por uma rede de relações interpessoais”. Enquan­
to subjazer a essa postulação apenas a crítica a uma leitura possessivo-
individualista de “direitos” longamente em voga, o que ela faz— e com
boas razões — é conferir validação a um conceito intersubjetivista de
direito (em consonância, a propósito, com Martha Minow ou Frank
Michelman). Direitos, desde sua origem, são relacionais, porque fun­
dam ou consolidam as relações de reconhecimento simétrico. Também
os direitos privados, que a situação um contra os outros pode tornar
válidos em situações de conflito, têm origem em uma ordem jurídica
que exige de todos o reconhecimento recíproco de cada um enquanto pes­
soa do direito livre e igual, e isso de modo a garantir o mesmo respeito
a cada um; em tal medida, essa ordem jurídica só pode ser legítima se
tiver sua origem em uma práxis comum de autodeterminação civil.
Se, no entanto, a crítica se volta contra o conceito dos direitos
como tal, a discussão se transfere para um outro plano. A contraparte
vê-se obrigada a sugerir ou um a alternativa ao direito, é o que faz
Marx, ou então conceitos alternativos de direito. Não tenho qualquer
dificuldade com questionamentos desse tipo, já que eu mesmo não
sugiro qualquer fundamentação normativa para a condição jurídica
como tal. Só se pode iniciar uma discussão sensata quando as alter­
nativas estão colocadas de maneira suficientemente precisa. Conten-
to-m e com uma explicação funcional quanto a por que devermos pri­
vilegiar ordens do direito positivo (ou, na linguagem do direito racio­
nal clássico: por que devermos assumir a “condição de sociedade”).
A princípio, não vejo um equivalente funcional para esse tipo de esta­
bilização de expectativas de com portam ento (mediante direitos sub­

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 335
jetivos distribuídos por igual). A esperança romântica — em um sen­
tido não-pejorativo — do jovem Marx em relação a um a “m orte pau­
latina” do direito praticamente não se cumprirá em sociedades com ­
plexas como as nossas.
A alternativa que o próprio Rosenfeld sugere na conclusão de seu
trabalho, ao assumir a noção de um “universalismo reiterativo”, ainda
se move no âmbito conceituai básico de uma teoria dos direitos. Da
alusão vaga a uma “concepção dinâmica dos direitos” não se pode ex­
trair muito mais que o anseio de uma concepção alternativa de direito.
(2) Essa alternativa torna-se ainda mais clara em Arthur J. Jacob-
son23. Primeiramente, ele contrapõe à teoria dos direitos uma teoria
dos deveres. A isso, se bem entendo, subjaz um a teologia política que
— tal como a de Leo Strauss ou a de Carl Schmitt, ainda que com
conseqüências muito distintas — lamenta o direito m oderno como
expressão da decadência de um a autoridade divina vinculadora. De
fato, é somente com Hobbes, em conjunto com um conceito positi­
vista do direito, que se valida pela primeira vez o princípio moderno
de que tudo que não seja probido é permitido. Com isso, dilui-se a
precedência moral dos deveres em relação aos direitos, estes últimos
resultantes das obrigações de outras pessoas, em prol de uma priori­
dade de direitos que garantem espaço a liberdades subjetivas — ou a
esferas privadas da liberdade de ação. Em ordens jurídicas modernas
os deveres resultam tão-somente da limitação recíproca de tais liber­
dades, sob leis gerais. A isso Jacobson contrapõe um direito divino
concebido de maneira aristotélica (ou tomista?), que só conhece de­
veres; tal direito obriga seus destinatários, no comportam ento deles, a
imitar a pessoa de um “comandante ideal” ou perfeito (“ideal legal
commander”). Ele entende o “common law”, por fim, como uma me­
diação dialética entre aqueles dois tipos de ordem jurídica: “Common
law breaks the correlation of rights with duties in both directions in
order to produce a succession of correlations, according to the principie
that law is just the application o f law in single cases. Here dynamism
flows ffom the incessant activities of legal persons to assemble, then
disassemble, then reassemble correlations”.

23. Por conta dos muitos mal-entendidos, seria muito desgastante abordar aqui
a crítica a minha recepção do direito: se sou um “positivista”, Jacobson é um “adepto
do direito natural”.

336 A INCLUSÃO DO OUTRO


Ao passo que o direito moderno deve saciar a carência de reconhe­
cimento — entendida claramente como narcisista — e o direito divi­
no deve saciar o empenho da pessoa por aperfeiçoamento, e dado, no
entanto, que ambos em sua aplicação atual não têm êxito nesse objeti­
vo, o “common law” fracassa, por assim dizer, em alto nível. Eis aí o
início de um motivo central dos Criticai Law Studies. A clarividência
quanto ao fracasso essencial de toda justiça divina na terra exige dos
destinatários que aceitem a indeterminação do direito em um sentido
radical. Juizes e clientes são permanentemente tentados a firmar o di­
reito, à medida que tratam decisões individuais como precedentes.
Contudo — é assim que entendo Jacobson — no espírito do “common
law” só podemos fazer jus à individualidade de cada novo caso quan­
do suportamos o fato de que a identidade falsamente suposta do direi­
to dilui-se no fluxo de decisões que não há como antecipar: “Law is
just the application of law to single cases”. Surge assim a imagem de
uma lei inapreensível que impera na atribulação das respectivas deci­
sões: “The legal manifold in Com m on Law is constantly in m o tio n ...
(It) lacks a stable ground, because it both unfolds and enfolds it’s
ordering principie in each application”. Essa construção criptoteoló-
gica, se bem entendo, corresponde à tentativa de renovar com recur­
sos do desconstrutivismo a noção da Escola Histórica Alemã de um
direito “vivo” que nasce do “espírito do povo” .
Devo confessar que esse conceito alternativo de direito, mesmo
que se pudesse apreendê-lo de forma mais exata, parece-me implausível
tanto por razões normativas quanto por razões funcionais e históri­
cas. Normativamente, porque na prática isso ocasiona a retração da
legitimação do direito por um legislador democrático, em beneficio
da jurisdição de um sistema judiciário que surge como legislador pa­
ralelo. Além disso, vai se duvidar da possibilidade de uso de um direi­
to que, imerso na aura de uma “indeterminação” santificada (em vez
de ser percebida como deficiência), já renuncia em princípio à antecipa-
bilidade de decisões caso a caso — e, desse modo, à sua função de es­
tabilizar expectativas de comportamento. Por fim, e isso justamente
no direito privado, observamos uma impressionante convergência dos
desenvolvimentos jurídicos em todas as sociedades ocidentais, de tal
modo que hoje o Common Law, de um ponto de vista comparativo,
pode cada vez menos reivindicar para si uma posição peculiar em face
das codificações européias continentais.

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 337
Problemas da construção teórica

(1) Devo a Bill Rehg uma das análises mais perspicazes e um dos
aperfeiçoamentos mais produtivos da ética do discurso. Como já re­
vela o título de seu livro Insight and Solidarity, Rehg está insatisfeito
com um certo intelectualismo desse enfoque; ele está convencido de
que a práxis argumentativa em seu conjunto só leva a discernimentos
quando os participantes podem amparar-se em relações solidárias
exercitadas de antemão. Por um lado, eles só estarão suficientemente
motivados a se deixar envolver em um entendimento m útuo discursi­
vo e sinuoso se, de comum acordo, considerarem a “cooperação racio­
nal” como um “bem” que se deve priorizar em relação a outras formas
de interação; o que está subjacente à decisão entre a alternativa da con­
cordância racional e um a confrontação violenta (mesmo que subli­
mada, de uma ou de outra forma) é, na verdade, uma preferência que
se embasa de maneira muito mais confiável em orientações de valor
comuns, ao menos em comparação com o embasamento fundado em
quaisquer interesses particulares. Por outro lado, segundo o pensa­
mento de Rehg, o enfoque da ética do discurso só poderá se livrar dos
últimos restos da filosofia subjetiva quando o cumprimento inevita­
velmente incompleto dos pressupostos pragmáticos da argumentação
que ultrapassam contextos temporais e espaciais for compensado pela
“confiança” dos participantes na regulação de um processo de comu­
nicação supra-subjetivo, que avança independentemente desses mes­
mos participantes e se amplia para além do grupo em sua composição
atual: “If rational consensus is cooperative even to the degree of
requiring a decentered ‘cooperative insight’, then it would seem that
something like trust must inhabit the heart of rational conviction”24.
Rehg postula que se deposite uma confiança antecipada em procedi­
mentos que escolhemos quando, sem atitudes derrotistas, pretendemos
conciliar pressupostos comunicacionais muito exigentes, surgidos sob
a pressão de decisões iminentes, com restrições empíricas de discursos
localizados que se devem cumprir aqui e agora. Ele pensa que a lealdade
diante de procedimentos que abreviam ou tornam coeso o processo

24. W. Rehg, Insight and Solidarity. Berkeley, 1994. p. 237.

338 : A INCLUSÃO DO OUTRO


argumentativo deveria basear-se sobre uma confiança peirceana na
prontidão cooperativa e integridade da comunidade mais abrangente
(the wider community).
Rehg, ao retomar agora o tema da carência de complementação
do momento de discernimento por meio de um momento de con­
fiança preexistente e de vinculação ética, volta o olhar à relação entre
discurso e decisão que se estabelece na formação democrática da opi­
nião e da vontade. Com a institucionalização jurídica dos aconselha­
mentos, aguça-se o problema quanto a como justificar as restrições às
quais os discursos ficam submetidos com o evento da própria institu­
cionalização. Em seu papel negativo de limitações, os procedimentos
jurídicos apenas desvelam os inevitáveis desvios em relação a um ideal
que se supunha. Rehg então presume que o direito, como o médium
pelo qual se implementam os procedimentos decisórios limitadores
do discurso, dá uma contribuição própria, e independente do discur­
so, à legitimação do processo como um todo.
De fato, com o cumprimento da “função própria” que lhe cabe,
ou seja, estabilizar as expectativas de comportamento e garantir com
isso um a “segurança jurídica”, como costumamos dizer, o direito dis­
põe de uma força de legitimação inerente à forma jurídica. O “m íni­
mo de ética” que se aloja na legalidade como tal deve-se, além disso, à
estrutura de direitos subjetivos cobráveis por via judicial, os quais ga­
rantem para a liberdade de ação espaços que, por vias moralmente
inatacáveis, ficam isentos de qualquer moralização. Esses momentos,
no entanto, são apenas tangenciados por Rehg; interessa-lhe sobretu­
do a seguinte pergunta: cabe atribuir a força legitimadora do processo
democrático somente ao caráter discursivo dos aconselhamentos, ou
também à forma jurídica delineadora, que integra o discurso a proces­
sos decisórios? Ao se falar sobre a justificação procedimental “do” di­
reito, o direito surge aqui apenas no genitivus objectivus ou também no
genitivus subjectivus? A contribuição dada pelo médium “direito” en­
quanto tal à força legitimadora do processo democrático consiste em
que ele acopla a processos decisórios — por meio de procedimentos
(procedimentos jurídicos, em sentido estrito) — a “busca cooperativa
da verdade”, atribuindo a ela nova função, qual seja atuar na prepara­
ção discursiva de decisões. É sobre essa circunstância que Rehg apóia
sua tese: os procedimentos que de início apenas criam um vínculo in­
terno entre discurso e decisão não obtêm sua força legitimadora a partir

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 339
da fonte cognitiva de discursos em que se justificam os procedimen­
tos, mas sim a partir de uma fonte volitiva precedente a todos os dis­
cursos, qual seja a da inclusão de todos os atingidos no procedimento.
Isso não chega a me convencer totalmente. Com certeza, a parti­
cipação inclusiva em procedimentos cumpre duas funções diferentes:
por um lado, a participação abrangente no discurso deve assegurar
um espectro o mais amplo possível de contribuições; por outro lado,
uma participação justa e honesta no processo decisório deve assegu­
rar que se transfiram às decisões, da forma mais confiável possível, os
resultados obtidos em aconselhamentos. Dessa maneira, no processo
democrático os “votos” significam duas coisas: juízos e decisões. Mas
disso não resulta que a participação inclusiva no processo decisório
seja regulamentado sob um ponto de vista da justeza e honestidade
que não se deva ao julgamento imparcial, mas genuinamente ao cará­
ter vinculativo de tais procedimentos. Rehg afirma justamente isso:
“An adequate elaboration of equal opportunity in decision-making
should refer, not just to influence on outcome, but also to an idea of
solidaristic inclusion built on equal respect of each citizen... Habermas
risks neglecting the intrinsic procedural fairness in law and its potential
contribution to solidarity and compliance”.
Essa qualidade intrínseca de justiça dos procedimentos deci-
sórios é explicada por Rehg a partir do procedimento de sorteio, que
em muitos casos é visto como justo e honesto, embora não esteja li­
gado a justificações objetivas e possua, portanto, um caráter pura­
mente decisionista. Mas e não se tem de justificar a justeza e honesti­
dade do procedimento com referência à situação de uso? É só em con­
textos determinados que um procedimento casual se qualifica como
um procedimento justo e honesto: por exemplo no caso de jogos de
azar que asseguram aos participantes chances iguais de vitória, ou
então no caso hobbesiano da anarquia insuportável, onde qualquer
decisão é melhor que nenhuma, ou ainda em casos da distribuição
justa de bens de estoque remanescente que, sendo indivisíveis, só
podem ser consumidos individualmente etc. De fato há razões muito
boas para que decisões políticas sejam tomadas democraticamente e
não apenas sorteadas.
Rehg tem em vista um fenômeno importante. O direito, em com­
paração com a moral, tem um caráter artificial, de modo que nós mais
construímos uma ordem jurídica do que a descobrimos. Mesmo que

340 A INCLUSÃO DO OUTRO


o direito deva estar em consonância com a moral, ele se estende a cer­
tas matérias que precisam ser regulamentadas tanto sob pontos de vista
éticos e pragmáticos, isto é, no horizonte de fins dados e de uma for­
ma de vida internalizada e aceita, quanto com base em acordos, isto é,
com base na compensação entre posições de interesse dadas. Com isso,
acabam ingressando no direito determinados fins e orientações de
valor, carências e preferências, aos quais a moral se mantém fechada.
O direito tem de se tornar “positivo” porque nele se espelha o substrato
volitivo factual de uma sociedade; ele carece de uma “ação criativa”,
porque momentos de acordo m útuo se entrecruzam com outros, da
demarcação de objetivos e de convenções. Diferentemente da moral,
portanto, o surgimento do direito pode ser entendido de maneira con-
tratualista — o que não está correto, mas tampouco totalmente errado.
O peso assumido por formas de vida e interesses existentes já eviden­
cia, por si só, a importância que adquire o momento volitivo de deci­
são no processo da ação jurígena, se comparado ao momento cogniti­
vo da formação de juízo e de opinião; e essa importância só tende a
aumentar com a necessidade prática de uma institucionalização vin-
culativa dos processos consultivos. Pelas duas razões, a legitimidade
da ação jurígena exige uma regulamentação justa e honesta das reso­
luções — e não somente a instauração de discursos que fundamentem
a suposição de correção dos juízos. Contudo, as regulamentações que
se estabeleçam para tanto carecem, também elas, de justificação em
toda sua extensão, desde a constituição até as ordenações sociais. É
pelo fato de que isso acontece em discursos de fundamentação que
não consigo ver na “justeza e honestidade” das regras de decisão ne­
nhum a qualidade que independa do discurso, que seja intrínseca e
inerente a procedimentos jurídicos em geral e como tais.
A participação em procedimentos decisórios, que é eqüitativa
em princípio, fica prejulgada de certa maneira pela circunstância de
o Estado democrático de direito ser um a construção surgida da prá-
xis geradora de constituições. Diferentemente de uma moral válida
para todos os sujeitos capazes de agir e comunicar-se lingüistica-
mente, cada projeto constitucional repousa sobre a resolução de um
grupo de pessoas que é histórico (e, do ponto de vista normativo, cons­
tituído casualmente). Não se pode decidir pela moral (ao menos não
por uma postura de vida mais ou menos moral). Mas pelo direito, por
causa de seu caráter artificial, é preciso necessariamente resolver-se.

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 341
Essa resolução na origem já implica o reconhecimento recíproco de
pessoas livres e iguais, e com isso a obrigação assumida em prol da in­
clusão, que Rehg, por meio do conceito de solidariedade, pretende
introduzir enquanto fonte de legitimidade que independe do discurso.
Faz parte do sentido performativo de uma práxis geradora de cons­
tituições o fato de que um grupo situado no tempo e no espaço esteja
resolvido a constituir-se como associação voluntária de jurisconsortes.
Como essa resolução tem por conteúdo regulamentar de maneira legí­
tima o convívio através de recursos do direito positivo (do direito ca­
rente de fundamentação, portanto), os momentos que Rehg dissocia
— discurso e decisão — estão unidos desde o início.
(2) Michael Power tam bém entende o autor m elhor do que este
a si mesmo; de qualquer modo, ele constrói ligações sistemáticas entre
“conhecimento e interesse”, de um lado, e “facticidade e validação”,
de outro, das quais eu não tinha consciência. Nesses paralelos sur­
preendentes talvez ele apenas subestime a m udança de perspectiva
ligada ao fato de eu ter migrado de um questionamento epistemoló-
gico para a pergunta lingüístico-pragmática acerca das condições ne­
cessárias do acordo m útuo possível. Com isso, a tentativa de uma
reconstrução do saber utilitário de sujeitos que falam e agem de m a­
neira competente certamente passou para o prim eiro plano, em re­
lação à auto-reflexão de processos de formação. E quero duvidar de
que isso leve a um enfraquecimento da energia crítica, e menos ainda
ao “fim da Teoria Crítica”25. Muito embora eu mesmo fosse identifi­
car de maneira diversa as linhas de uma transformação lingüística
da arquitetônica teórica kantiana, e sobretudo interpretar diferente­
mente a dissolução lingüístico-pragmática de seu conceito de razão
como faculdade de idéias formadoras de mundo, é preciso dizer que
Power analisa de maneira elucidativa o papel de idealizações e o sen­
tido hermenêutico profundo de argumentos atenuadamente trans­
cendentais. Power, porém , com sua análise do conceito de “pressu­
postos contrafactuais”, e em geral do “vocabulário do como se \ toca
um ponto nevrálgico de todo meu empreendim ento teórico. Aqui
ainda há m uito que fazer.

25. De uma “conversão”, por exemplo, fala Ottfried Hõfife, “Abenddâmmerung


oder Morgendámmerung? Zu Jürgen Habermas’ Diskurstheorie des demokratischen
Rechtsstaats”, Rechtshistorisches Journal, n. 12, 1994, pp. 57-88.

342 A INCLUSÃO DO OUTRO


Uma restrição mais forte tenho a fazer contra o destaque confe­
rido por Power à “situação ideal de fala”. E isso não apenas porque já
vamos tendo pressupostos contrafactuais no trato comunicativo co­
tidiano à medida que os envolvidos supõem significados idênticos
para as expressões lingüísticas utilizadas, fazem reivindicações de va­
lidação transcendentes, atribuem reciprocamente imputabilidades uns
aos outros etc. Percebo como mais perturbador o fato de que a ex­
pressão da situação ideal de fala (expressão que introduzí certa vez,
há décadas, como abreviatura do conjunto de pressupostos argumen-
tativos gerais) sugira agora um estado final almejável — no sentido
de uma idéia reguladora. Contudo, esse estado entrópico de uma con­
cordância definitiva, que tornaria supérflua qualquer outra comuni­
cação, não pode apresentar-se como um fim sensato, porque nele te-
riam de se evidenciar todos os paradoxos (de uma linguagem última,
de uma interpretação definitiva, de um saber irrevidável etc.). Em vez
disso, segundo aprendi com a crítica de Albrecht Wellmer26, em rela­
ção à solução discursiva de um a reivindicação de validação (ou seja,
em relação à solução da reivindicação de que se cumpram as condi­
ções de validade de um enunciado) é preciso concebê-la como pro­
cesso metacrítico do enfraquecimento contínuo de restrições. Com isso
pretendo explicar, com a teoria do discurso, o que Hilary Putnam, a
partir de um ponto de vista centrado sobre as relações epistemoló-
gicas, chama de “aceitabilidade racional sob condições ideais”, ou o
que Crispin Wright, seguindo as reflexões de Michael Dummett, deno­
mina “superafirmabilidade” (superassertibility)27. Essas análises si­
tuam-se no contexto de uma discussão sobre teorias de verdade, tão
acalorada como em outros tempos.
Esse traço de uma idealização de condições de afirmabilidade res­
ponde à necessidade de distinguir “verdade” ou “validade” em geral,
por um lado, de aceitabilidade racional, por outro; depois que se dis­
pensou a noção de correspondência, tal necessidade resulta da triva-
lência da “validação de algo para nós”, tomada de maneira epistêmica.
Com certeza não estou estipulando apenas um conceito de discurso
normativamente substancioso; mais que isso, afirmo poder compro­

26. Mais recentemente: A. Wellmer, “W ahrheit, Kontingenz, M oderne”. In:


Endspiele. pp. 157-177.
27. C. Wright, Truth and Objectivity, Cambridge (Mass.), 1992, Cap. 2.

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 343
var pela via de uma análise de pressuposições que cada um que parti­
cipa com seriedade de um a argumentação inevitavelmente se envolve
em pressupostos comunicacionais de teor contrafactual. Para tanto,
deixo-me guiar pela seguinte intuição: em toda argumentação os en­
volvidos supõem condições de comunicação que (a) previnem uma
ruptura racionalmente imotivada da controvérsia; (b) asseguram tan­
to a liberdade da escolha de temas como a consideração de todas as
informações e razões disponíveis, seja pelo acesso irrestrito à deli­
beração, sob igualdade de direitos, seja pela participação simétrica
nessa mesma deliberação, sob igualdade de chances; e (c) excluem toda
coerção que atue a partir de fora sobre o processo de acordo mútuo,
ou que surja a partir dele mesmo, salvo a coerção do “argumento m e­
lhor”, e neutralizam com isso todos os motivos, salvo o da busca coo­
perativa da verdade. Se os participantes não supusessem tal coisa, não
poderíam tomar como ponto de partida o fato de poderem se conven­
cer, uns aos outros, do que quer que fosse. Os pressupostos de argu­
mentação mencionados não seriam “condenáveis” nesse sentido, não
mais que cada um que se visse obrigado a incorrer em autocontradição
performativa ao negar, no cumprimento de uma argumentação, o teor
proposicional dessa mesma argumentação que houvesse sido expli­
citado28. Essas idealizações não significam nenhum recurso prévio a
um estado final ideal, mas apenas iluminam a diferença entre a acei­
tação racional de uma reivindicação de validação em um dado con­
texto e a validade de um enunciado que tivesse que se comprovar em
todos os contextos possíveis.
Power percebe m uito bem que essas idealizações, nascidas elas
mesmas da facticidade social da práxis cotidiana, não logram salvar
nenhum universalismo abstrato, mas devem apenas fundam entar
um a “transcendência de dentro” a partir dos respectivos contextos
concernentes ao m undo da vida: “We can only ‘make sense’ of certain
practices on the basis of assuming an operative role for deeply em-
bedded fictional norms. These fictions are foundations from within,
without any heavy-weight metaphysical support”. Isso vale não ape­
nas para a práxis argumentativa, ainda que para ela sirva de um a

28. Cf. K.-O. Apel, “Falibilismus, Konsenstheorie der W ahrheit und Letzt-
begründung”. In: Forum für Philosophie (org.), Philosophie und Begründung, Frank­
furt am Main, 1987, pp. 116-211.

344 A INCLUSÃO DO OUTRO


maneira excelente. Depois de um a destranscendentalização da razão
kantiana, a tensão entre o inteligível e o empírico recolheu-se, ela
mesma, aos fatos sociais.
(3) Também a contribuição de Jacques Lenoble, retoricamente
muito profícua em seu resgate da discussão pregressa, teve como alvo
os fundamentos da teoria discursiva do direito. Essa contribuição é
complexa demais para que eu possa dedicar-me detalhadamente às
restrições que ela propõe. No conjunto, tenho a impressão de que Le­
noble quis trazer as concepções de linguagem formal-pragmática e
desconstrutivista a um denominador comum, e com isso conciliar
coisas inconciliáveis. Por um lado, ele quer se manter apegado à pro­
posição fundamental da teoria formal-pragmática do significado, se­
gundo a qual entendemos uma expressão lingüística se sabemos como
devemos usá-la para, com seu auxílio, chegar a um acordo m útuo com
alguém sobre alguma coisa no mundo; por outro lado, apesar dessa
concatenação interna entre significado e validação, ele insiste em uma
impossibilidade de decisão, por princípio, quanto ao êxito ilocucionário
de toda tentativa de acordo mútuo: aos participantes da comunicação
não cabe poder constatar se um aceita ou não como válida a oferta de
ato da fala do outro. Em primeiro lugar, (a) tratarei de refutar essa tese,
central para tudo que se diz a seguir, para então (b) defender a distin­
ção entre uma postura orientada pelo acordo m útuo e outra, orienta­
da pelo êxito, bem como a distinção entre fins ilocucionários e perlo-
cucionários. Concluirei (c) com um a observação sobre a ontologia
probabilística de Lenoble29.
(a) É sensato distinguir entre os seguintes casos: A propõe uma
afirmação ‘p’, com a qual ele pretende fundam entar o enunciado ‘p’,
que é ou verdadeiro ou falso; ou A manifesta a suposição ‘que p’, e
portanto tem razões para ‘p’, sem no entanto já assumir a pretensão
de poder defender ‘p’ contra quem quer que seja; ou A manifesta ‘p’
em um atitude hipotética, e portanto deixa momentaneamente aber­
ta a questão da verdade ou falsidade de seu enunciado; ou A manifesta
‘p’como um enunciado distinguível (matemático) em sentido estrito,
sendo que ele (em casos raros) pode provar sua impossibilidade de

29. Sobre o que segue, cf. J. Habermas, “Sprechakt-theoretische Erlãuterungen


zum Begriff der kommunikativen Rationalitàt”, Zeitschriftfürphilosophische Forschung,
n. 50, 1996, pp. 65-91.

A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 345
decisão. O primeiro caso é evidentemente a base da qual se alimen­
tam parasitariamente todos os demais casos; pois mesmo a impos­
sibilidade de decisão tem de se posicionar em face da alternativa ver-
dadeiro/falso. A afirmação de um enunciado que pode ser verdadeiro
ou falso, correto ou incorreto é sem dúvida a regra na práxis com uni­
cativa diária.
Como unidade elementar de tal enunciação pode-se tomar e ana­
lisar a oferta de ato de fala de um falante A, em conjunto com a postu­
ra de sim/não de um ouvinte B. Essa análise se fará da perspectiva de
uma segunda pessoa; os dois objetivos do falante, quais sejam expres­
sar-se de maneira compreensível e chegar a um acordo m útuo com
alguém sobre alguma coisa, são definidos a partir da visão de um ou­
vinte ao qual cabe entender e aceitar como válido o que se diz, em bo­
ra ele possa a todo m omento dizer “não”. O ponto de referência do
compreender são as condições para um acordo mútuo possível. Mas es­
sas condições só se cumprem se o ouvinte aceita a reivindicação de
validação apresentada pelo falante em favor de seu enunciado. A base
do acordo mútuo, portanto, é o reconhecimento intersubjetivo de uma
reivindicação de validação que pode ser criticada por parte do ouvinte,
e a cuja solução discursiva — obrigatória, conforme o caso — o fa­
lante dá garantia — merecedora de credibilidade em maior ou menor
grau, à primeira vista. Naturalmente, essa garantia pode se revelar
insuficiente; mas em face de um amplo consenso de fundo acerca de
certezas concernentes ao m undo da vida, não é raro que mesmo ga­
rantias frágeis sirvam como base para uma aceitação capaz de criar
obrigações relevantes para as conseqüências da ação. O que parece
ser racionalmente aceitável para o ouvinte ainda não precisa ser válido
de imediato; o agir comunicativo do dia-a-dia passa pela aceitação de
reivindicações de validação que parecem ser suficientemente racionais
aos destinatários em um dado contexto, mas não pela validade de
atos de fala que, mediante um a análise mais cuidadosa, comprovam
ser racionalmente aceitáveis.
Lenoble contesta o enfoque dessa análise (que está apenas suge­
rida aqui) e o faz com a afirmação de que o falante jamais poderia
decidir se sua oferta de ato de fala é aceita com seriedade ou não: em
princípio, não seria possível decidir sobre o êxito ilocucionário. Por
exemplo, um falante não poderia saber se um ouvinte que concorda
com uma afirmação ou cumpre uma ordem de fato crê no enunciado

346 A INCLUSÃO DO OUTRO


afirmado ou se duvida dele, nem poderia saber se ele pratica a ação
ordenada em cumprimento à ordem ou por razões totalmente diver­
sas. Com isso, Lenoble parte claramente de uma compreensão da co­
municação lingüística vinculada a uma filosofia do sujeito, segundo a
qual a comunicação não se dá no médium das expressões simbólicas
publicamente acessíveis, mas sim entre espíritos mutuamente intrans-
parentes. Lenoble parece não perceber que a restrição intencionalista
torna-se insensata depois de um a reviravolta lingüística cumprida de
maneira conseqüente. Com o posicionamento afirmativo em relação
a uma asserção ou uma ordem, o ouvinte cria um fato social, que se
pode testar publicamente e que independe do que ele pense em parti­
cular; com o seguimento da interação ficará igualmente evidente, por
via pública, se o destinatário viola ou não as obrigações que ele assu­
m iu (ou seja, respeitar a circunstância, aceita como verdadeira, de que
se deve cumprir a ação ordenada, seja por que motivos for). Algo se­
melhante se dá com o exemplo seguinte de uma promessa que o falan­
te cumpre por outras razões que não as que ele declarou. O ato de
prometer cria uma relação social nova, qual seja a obrigatoriedade em
face de uma pessoa; e se essa promessa foi concebida com sinceridade,
isso só se mostrará no seguimento da interação por meio da tentativa
séria de cumpri-la. A seriedade da intenção do falante pertence aos
pressupostos do uso da linguagem orientada pelo acordo mútuo, mas
tal como pode ocorrer com todas as pressuposições também esta pode
se revelar falsa. Em ações de fala constatativas e regulativas ela perm a­
nece implícita, e só assume destaque temático em ações de fala expres­
sivas, por exemplo em confissões (com as quais um falante torna ex­
pressa uma vivência cujo acesso se lhe dá de maneira privilegiada). A
reivindicação de veracidade que se põe desse modo também só pode
ser testada indiretamente “com o seguimento da interação”, ou seja,
em sua continuidade que se revele consistente, mas não de maneira
imediata, em um discurso.
Derrida, em sua controvérsia com Searle, arrolou outros exem­
plos, e mais plausíveis, à primeira vista, para comprovar a impossi­
bilidade de decisão dos êxitos comunicativos. Tais exemplos são tira­
dos do campo da dicção ficcional, bem como do uso metafórico ou
irônico da linguagem: o ator que ao gritar “fogo!” pretende prevenir o
público quando de fato há um incêndio no teatro não será tomado a
sério sob certas circunstâncias, nem mesmo quando acrescentar, de

A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 347
cima do palco: “Estou falando sério”30. Com esses exemplos especiais
pode-se ilustrar a situação geral de que não basta para o êxito comu­
nicativo de um falante que o ouvinte entenda o significado literal do
que se diz. O entrecruzamento entre saber lingüístico e saber sobre o
m undo também se estende ao fato de que falantes competentes só
entendem corretamente uma declaração quando sabem como enun­
ciar uma sentença — compreensível em sentido literal — de maneira
adequada à situação; pois é somente com base em tal entendimento
dos sinais de fundo das situações típicas de aplicação que o ouvinte
poderá inferir em casos atípicos qual a intenção do falante e qual o
significado “adaptado” ou irônico da declaração, conforme o caso.
Com essa estratégia de análise não quero de maneira alguma ne­
gar o que há de ocasional, fugaz e difuso nas comunicações do dia-a-
dia, nas quais só se podem realizar de maneria transitória as possibili­
dades de acordo m útuo— por meio da dissonância polifônica de decla­
rações imprecisas, fragmentárias, polissêmicas carentes de interpreta­
ção e mal-entendidas. Mas o ponto de partida da análise é constituído
pelo factum de que sobre esse médium opaco os inúmeros planos contin­
gentes de ação acabam por enredar-se em um tecido de interações mais
ou menos isentas de conflitos. Toda análise de enfoque transcendental
pretende ilustrar as condições de possibilidade de um factum que ela
mesma pressupõe. Kant partiu do factum da física newtoniana e pro­
pôs-se a pergunta sobre como a experiência objetiva é possível, afinal.
A pragmática formal substituiu essa pergunta epistemológica básica pela
pergunta concernente à filosofia da linguagem: como é possível algo
como o entendimento mútuo intersubjetivo? Com isso, ela parte do
factum ligado ao m undo da vida, e não menos surpreendente, de uma
integração social que se concretiza de maneira não-violenta e por meio
de processos de acordo mútuo (na maioria das vezes implícitos). Por­
tanto, o fato de que o acordo mútuo seja bem-sucedido é pressuposto
em uma análise cuja tarefa é explicar como esse mesmo acordo mútuo é
possível. Contrariamente à dúvida de Lenoble, penso poder apegar-me
tanto mais a esse pressuposto quanto mais se pode medir inequivoca­

30. Albrecht Wellmer, em conjunto com Davidson, trata do exemplo sob o pon­
to de vista que interessa aqui: “Autonomie der Bedeutung und Principie of Charity aus
sprachpragmatischer Sicht” (1994). Desse manuscrito inédito também aproveito a dis­
tinção entre o conhecimento do significado literal de um a sentença e o saber acerca da
adequação situacional de sua aplicação.

348 A INCLUSÃO DO OUTRO


mente para os envolvidos o êxito de tentativas de acordo mútuo segundo
o “sim” ou o “não” manifestado em público pelos que são interpelados.
(b) Partindo da presumida impossibilidade de decisão sobre os
êxitos comunicativos, Lenoble chega a conclusões sobre a impossibili­
dade de distinção entre o uso da linguagem orientado para o acordo
m útuo e o uso da linguagem orientado pelo êxito, por um lado, e en­
tre objetivos ilocucionários e objetivos perlocucionários, por outro
lado. Determinante para essas distinções é o papel da segunda pessoa,
que não pode ser ignorada se a compreensão de uma expressão lin-
güística não for assimilada à formação de hipóteses de um observador
(como acontece em Quine e Davidson) ou se a comunicação em uma
língua natural não for atribuída à influenciação direta de agentes que
se observam um ao outro (como em Grice ou Luhmann) e que tencio­
nam, em relação às suas próprias intenções, “dar a conhecê-las” aos
outros. A atitude em face de um a segunda pessoa com a qual eu gosta­
ria de chegar a um acordo m útuo sobre alguma coisa em uma língua
que ambos dominamos é intuitivamente fácil de distinguir quando
comparada à atitude de uma primeira pessoa em face de uma terceira
pessoa (observada) à qual quero dar a entender uma opinião ou in­
tenção próprias, à medida que lhe ofereço a melhor ocasião para tirar
as conclusões certas com base no comportamento que manifesto de
maneira prudentemente calculada.
Como ilustração disso servem as situações de uma m udança
involuntária de atitude — como ocorre quando o médico em uma
clínica psiquiátrica percebe durante uma conversa que eu não o pro­
curo, digamos assim, como colega, mas sim como paciente — e ele
então passa a voltar seu olhar para mim de um modo inquiridor, a
fim de decodificar o que digo como sintoma de um não-dito. A “alie­
nação” específica que se instaura em tais situações explica-se pela
mudança involuntária de posição do destinatário que, sob o olhar obje-
tivador de quem observa, se sente transferido do papel de segunda
pessoa para o papel de um oponente que está sendo observado. De
alguém com quem se estava falando ele se transform a em alguém de
quem se pode falar. Foucault investigou de modo marcante a m anei­
ra como esse olhar clínico se cristaliza até se transform ar no cerne
do sistema manicomial; Goffman desenvolveu a fenomenologia desse
olhar com base em cenas inofensivas do dia-a-dia. Essas experiên­
cias têm sua base inocente em um a linguagem coloquial em que está

A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 349
inscrito o sistema dos pronomes pessoais, e portanto os pronomes
não apenas de prim eira e terceira, mas também de segunda pessoa.
Um falante só consegue alcançar seu objetivo ao assumir uma
atitude diante de segundas pessoas, justamente porque a medida para
o êxito ilocucionário é dada pela aprovação concedida a uma reivin­
dicação de validação que possa ser contestada pelo destinatário. Pois a
aprovação ou a contradição em relação a um enunciado manifesto só
são possíveis (com base em uma compreensão comum do que foi dito)
a partir da perspectiva de uma pessoa envolvida. Isso se evidencia no
status do comum acordo ou do dissenso, onde aprovação ou contra­
dição têm seu ponto de chegada: é o caráter intersubjetivo de ambas
que as leva a se distinguir da concordância ou discordância interpes­
soal de opiniões (que se podem constatar a partir da perspectiva do
observador). Uma opinião objetivamente em concordância com outras
opiniões, cada um pode ter a sua só para si; mas a um consenso só se
chega junto com outras pessoas, sendo que essa condição comum pró­
pria ao empreendimento funda-se sobre o fato de que falantes e ouvin­
tes tomam parte do mesmo sistema de perspectivas do tipo “eu-você”
entrecruzadas e reciprocamente intercambiáveis.
Ao contrário, denominamos perlocucionários os efeitos exerci­
dos sobre o destinatário através de ações de fala, quer estejam ligados
internamente ao significado do que se diz (tal como no cumprimento
de uma ordem), quer dependam de contextos casuais (como no es­
panto causado por uma notícia) ou decorram de enganos (como no
caso da manipulação). Efeitos perlocucionários são ocasionados pela
ação efetiva intencional ou desintencional sobre um destinatário, sem
ação cooperativa da parte dele. os efeitos acontecem com ele. O falante
que busca atingir objetivos perlocucionários, orienta-se de acordo com
as consequências de sua enunciação, as quais ele não pode prognos­
ticar de maneira correta quando calcula os efeitos de sua própria inter­
venção junto ao m undo a partir da perspectiva do observador. Por
dependerem da tomada de posição de uma segunda pessoa que o faça
por estar racionalmente motivada, não se podem calcular os êxitos
ilocucionários dessa maneira. Atos de fala especificamente ligados à
desavença, como ameaças, ofensas, maldições etc. podem ser enten­
didos como “perlocuções”, isto é, como enunciações cujo significado
estandardizado não se firma pelo próprio ato ilocucionário utiliza­
do como veículo, mas sim por meio do efeito perlocucionário que se

350 A INCLUSÃO DO OUTRO


pretende alcançar com eles. Para a obtenção desses efeitos, em geral
não é necessário contar com a linguagem em um sentido essencial:
com freqüência, ações não-verbais são equivalentes funcionais de um
uso da linguagem que é per se orientado não pelo acordo mútuo, mas
pelas conseqüências de si mesmo.
Assim, práticas essencialmente dependentes da linguagem— pelo
fato de a coordenação da ação dar-se peloo acordo mútuo de partici­
pantes orientados de modo performativo — podem ser diferenciadas
de interações estratégicas; estas últimas cumprem-se segundo o modelo
das influências recíprocas de agentes que estejam orientados apenas de
acordo com as conseqüências das decisões tomadas segundo suas pró­
prias preferências, e que, a partir do posicionamento de um observador
preocupado em objetivar, não podem recorrer à força imaginativa de
atos ilocucionários, que é racionalmente motivadora. Com base em sen­
timentos morais, pode-se testar com facilidade se essa distinção entre
um agir orientado pelo acordo mútuo e um agir orientado pelo êxito é
ou não um artefato teórico. Diante da violação de uma norma por par­
te de um outro, só podemos nos sentir lesados, ficar irados com isso, ou
então podemos ficar nós mesmos com a consciência pesada, quando
supomos um consenso normativo e partimos de que nos comporta­
mos de maneira “correta” uns em relação aos outros, assumindo o po­
sicionamento performativo de agentes atuantes que almejam o acordo
mútuo, ou seja, de forma que o comportamento necessariamente tam ­
bém se justifique à luz desse consenso. Sabemos muito bem quando é
que respeitamos uma norma porque a reconhecemos como válida ou
vinculativa, e quando é que apenas agimos em consonância com ela
porque pretendemos evitar as conseqüências de um comportamento
desencaminhado. Em um dos casos agimos por razões independentes
do agente e sobre as quais chegamos (implicitamente) a um acordo
m útuo com outras pessoas (ou sobre os quais cremos poder chegar a
um acordo); no outro caso, agimos por razões relativas ao agente e
que só contam quando tomadas em relação aos objetivos e preferências
próprios. Os conceitos (não apenas kantianos) de direito e de valida­
ção do direito baseiam-se sobre tais diferenciações. Por isso não vejo de
que maneira Lenoble possa analisar o comportamento legal e as ordens
legítimas sem fazer uso de distinções como essa ou equivalentes.
(c) Lenoble gostaria de desconstruir as distinções conceituais
básicas cuja plausibilidade intuitiva procurei trazer à memória por­

A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 351
que supõe que essa concepção ainda esteja presa à imagem de m undo
do determinismo clássico. Ele mesmo, de maneira semelhante a Jacob-
son, parece estar impressionado com especulações cosmológicas que
se deixam inspirar — a uma distância própria — pela pesquisa sobre
o caos. Em todo caso, Lenoble situa a possibilidade precípua de dis­
tinção de êxitos comunicativos e a dinâmica do acaso do evento lin-
güístico no âmbito de uma ontologia probabilística. O acontecimento
do mundo, apreensível assim apenas de maneira estatística, deve cor­
responder mais ao modelo laplaceano do jogador de dados do que ao
crítico kantiano, que pondera razões entre si, em vez de simplesmente
contar os pontos resultantes de um lance de dados. A suspeita é evi­
dente: a razão comunicativa postula ordem demais em meio à verti­
gem de significantes. Sobre isso, uma breve reflexão.
Da mesma forma que se pode conceber a reviravolta mentalista
na filosofia m oderna como resposta a uma nova experiência contin­
gente, isto é, à experiência de um a natureza que se tornara contingente
a olhos vistos, também a reviravolta lingüística procura dar conta da
irrupção de um novo tipo de contingências históricas que somente
adquirem relevância filosófica após o surgimento da consciência histó­
rica, no século XVIII. Doravante, a consciência destranscendentaliza-
da do sujeito cognoscente tem que ser situada nas formas de vida his­
tóricas e corporificada na linguagem e na práxis. Com isso, a esponta­
neidade da consciência que concerne a imagens de m undo migra para
a função da linguagem cuja tarefa é proporcionar a abertura de mundo.
A questão em torno da qual gira o debate da racionalidade resume-se
basicamente ao seguinte: os sujeitos que agem comunicativamente são
capturados pelo sobe-e-desce das interpretações de mundo, discursos
e jogos de linguagem de cada época? Isto é, eles ficam conforme a von­
tade do destino entregues ao pré-entendimento ontológico que torna
possíveis os processos de aprendizado no interior do mundo? Ou os
resultados desses processos de aprendizado também podem rever o
próprio saber lingüístico que interpreta o mundo, retrospectivamen­
te? Se queremos fazer jus ao factum transcendental da aprendizagem,
então é provável que tenhamos que contar com a segunda alternativa
— e com uma razão comunicativa que deixa de prejulgar quaisquer
conteúdos. Essa razão que passa a ser apenas procedimental opera com
reivindicações de validação que transcendem o contexto específico e
com suposições de m undo pragmáticas. Mas a suposição de um m undo

352 A INCLUSÃO DO OUTRO


objetivo único tem apenas o significado formal de um sistema de re­
ferências ontologicamente neutro. Ela deixa de afirmar que nós pode­
mos fazer referência às mesmas entidades — novamente reconhecíveis
— quando procedemos a descrições que se alteram31.

O
Sobre a lógica dos discursos jurídicos

Lenoble compartilha um a crítica ao conceito da razão comuni­


cativa e a suposições básicas da teoria da ação comunicativa porque
entende que a “indeterminação” do direito e da práxis decisória jurí­
dica são apenas um reflexo da “impossibilidade de decisão” que deve
inerir à comunicação lingüística como tal. Não está claro para mim de
que maneira o direito deveria continuar cumprindo sua função de es­
tabilizar as expectativas de comportamento, se tanto os clientes quan­
to os especialistas devessem duvidar de que o direito vigente determi­
nasse de maneira suficiente e ex ante quais são os procedimentos e
pontos de vista normativos segundo os quais se deveríam intepretar e
decidir os casos futuros. A segurança jurídica, que certamente não se
deve absolutizar, mas que representa um a contribuição imanente ao
direito em favor da legitimidade da ordem jurídica, exige uma certa
medida de previsibilidade. Temas que Lenoble aborda nesse contexto
voltam a aparecer em outros autores. David Rasmussen defende a her­
menêutica jurídica (1), Robert Alexy defende sua versão da teoria do
discurso (2) e Gunther Teubner, uma nova formulação do antigo pro­
blema da colisão (3).
(1) David Rasmussen trata m inha análise da jurisdição e da apro­
priação da hermenêutica jurídica por parte da teoria do discurso, as­
sumindo o ponto de vista de um filósofo que acompanhou a discus­
são alemã de Husserl e Heidegger, passando por Gadamer até chegar
a Apel. Ele conduz suas observações metacríticas à seguinte tese:
“‘Habermas’ argument claims too much for a theory of rationality. At
the same time, while buying in to a form of philosophy of language,
it claims to little for language”. Pois sobre o pano de fundo do debate
entre hermenêutica e fenomenologia transcendental, a investigação

31. Cf. C. Lafont, Sprache und Welterschliefiung, Frankfurt am Main, 1994.

A pêndice a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 353
formal-pragmática dos pressupostos gerais da comunicação parecem
constituir para Rasmussen — apesar da virada lingüística — o re­
gresso a um ponto anterior ao início da destranscendentalização da
consciência pura. Ele situa o erro na suposição de que ainda se pode­
ría preservar o estilo transcendental da argumentação, mesmo depois
da reviravolta lingüística — em vez de se abandonar totalmente a he­
rança transcendental de uma tensão entre facticidade e validação e
renunciar, com a hermenêutica, a todas as idealizações.
Espanta-me que Rasmussen negue taxativamente a pergunta for­
mulada de maneira retórica: “Does interpretation require idealiza-
tion?” Pois Gadamer e Davidson demonstraram, cada um à sua m a­
neira, que a interpretação de expressões lingüísticas (e de composições
simbolicamente pré-estruturadas em geral) exige muito provavelmen­
te um princípio de clemência. Temos de supor nos agentes im putabi­
lidade, e em suas enunciações, racionalidade — é exatamente isso
que exige a teoria do agir comunicativo32. Essas idealizações são esti­
madas apenas com fins metodológicos; porém elas têm um fundamen-
tum in re, ou seja, nas suposições de racionalidade da própria práxis
de uma busca do acordo mútuo.
Eu mesmo sempre enfatizei que não se pode estabelecer de ma­
neira falaciosa uma relação entre a práxis discursiva e o procedimento
de formação democrática da opinião e da vontade. Além do mais, uma
compreensão da jurisdição a partir da teoria do discurso não leva de
modo algum à exigência de uma “democratização” dos tribunais. O
que resulta do alojamento (apenas postulado) da justiça em uma comu­
nidade de intérpretes constitucionais que seja aberta e crítica em face
da justiça são muito mais as exigências jurídico-políticas, e apenas no
que concerne ao solapamento da divisão funcional em poderes, que já
se mencionou acima: quanto mais a justiça recicla o direito, tanto mais
energicamente é preciso conclamá-la a justificar-se, não apenas diante
de uma opinião pública formada por especialistas, mas sim para fora,
perante o fórum dos cidadãos.
(2) A tese de doutorado de Alexy33, por sua vez, encorajou-me a
também estender ao direito e ao Estado constitucional a teoria do dis­

32. Cf. Habermas, 1981, vol. l.p p . 152-195.


33. Cf. R. Alexy, Theorie der juristischen Argumentation, 2. ed. (com um posfácio
interessante), Frankfurt am Main, 1991.

354 A INCLUSÃO DO OUTRO


curso que desenvolví para a moral. Sua “teoria dos direitos fundamen­
tais”, além disso, ajudou-me na compreensão da dialética entre igual­
dade jurídica e factual34. De outra parte, ele sugere aí uma interpre­
tação de normas jurídicas que foi criticada por Klaus Günther e por
mim 35. Segundo essa interpretação, a compreensão deontológica de
norm as deve perm itir que se chegue a um a compreensão equivalen­
te de conteúdos de valor correspondentes. Alexy vê muito bem a dife­
rença entre os dois modos de observação: “O que prima fade parece
ser o melhor no modelo de valores é o que se deve cumprir prima facie
no modelo de princípios; e o que é definitivamente o melhor no m o­
delo de valores é o que se deve cumprir em definitivo no modelo de
princípios. Portanto, princípios e valores diferem apenas devido a seu
caráter deontológico, por um lado, e a seu caráter axiológico, por ou­
tro”36. Mas a disputa gira em torno do “apenas”: “No direito, trata-se
apenas do que se deve cumprir. Isso depõe a favor do modelo de prin­
cípios. Por outro lado, na argumentação jurídica não se tem qualquer
dificuldade quando se toma o modelo de valores como ponto de par­
tida, ao invés do modelo de princípios”37. Alexy desenvolvera essa tese
sob a forma de um modelo de otimização ou ponderação (que incluía
análises de custo-benefício).
Ele desenvolve essa posição com mais um argumento. A dife­
renciação rígida entre pontos de vista deontológicos e axiológicos não
serviría para as normas jurídicas, as quais, por regulamentarem m a­
térias relativamente concretas, têm de ser justificadas tanto em face
dos objetivos políticos e valores éticos quanto sob os pontos de vista
morais. Alexy antecipa m inha resposta de que na fundamentação de
norm as jurídicas sempre se trata (em sentido dworkiniano) apenas
de um a precedência relativa dos argumentos de princípio em relação
aos argumentos de demarcação de objetivos; senão a forma jurídica
(e a validação das normas jurídicas enquanto deveres) necessariamente
sofreria danos, já que desde sua origem o direito partilha com a moral
a tarefa de resolver conflitos interpessoais, mas sem servir em pri­

34. Cf. R. Alexy, Baden-Baden, 1985; nesse meio tem po foi publicado: R. Alexy,
Begriff und Geltungdes Rechts, Freiburg/München, 1992.
35. Cf. K. Günther, Der Sinn ftir Angemessenheit, Frankfurt am Main, 1988, pp.
268-276; Habermas, 1992, pp. 309ss.
36. Alexy, 1985, p. 133.
37. Idem, ibidem.

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 355
meira linha à efetivação de fins coletivos — tal como acontece com as
políticas38. Alexy não se dá por satisfeito com essa réplica. Pois ao
tratar do caráter deontológico (e portanto incondicionado) da vali­
dação do dever — caráter que eu gostaria de ver preservado nas nor­
mas jurídicas — , ele o entende no sentido de uma validação univer­
sal, que inclua todos os sujeitos capazes de agir e de utilizar a lingua­
gem; com isso, ele torna as coisas fáceis para si: normas jurídicas ape­
nas vinculam uma comunidade histórica de pessoas, limitada no tem ­
po e no espaço, e portanto não podem ser “deontológicas” naquele
sentido estrito.
Quanto a isso deve-se dizer que a expressão “deontológico” re­
fere-se em primeiro lugar apenas a um caráter obrigatório codifica­
do de maneira binária. Normas são ou válidas ou inválidas, enquan­
to valores concorrem pela primazia em relação a outros valores e
precisam ser situados caso a caso em uma ordem transitiva. O código
de uma diferenciação análoga à verdade entre m andam entos “cer­
tos” e “errados” e a respectiva incondicionalidade de sua reivindica­
ção normativa de validação permanecem intocados pela restrição do
campo de validação a um a comunidade jurídica particular. No inte­
rior de um campo de validação como esse, o direito se apresenta dian­
te de seus destinatários, assim como antes, munido de um a reivindi­
cação de validação que exclui uma pesagem dos direitos segundo o
modelo da ponderação de “bens jurídicos” precedentes ou menos
importantes. A m aneira de avaliar nossos valores e a maneira de de­
cidir o que “é bom para nós” e o que “há de m elhor” caso a caso, tudo
isso se altera de um dia para o outro. Tão logo passássemos a consi­
derar o princípio da igualdade jurídica meramente como um bem
entre outros, os direitos individuais poderíam ser sacrificados caso a
caso em favor de fins coletivos; no caso de uma colisão, deixaria de
ocorrer o “recuo” de um direito em relação a outros, sem que ele
tivesse que perder com isso sua validade.
É evidente que se trata aqui de algo mais que um mero embate
por palavras; mostra-o a maneira como entendemos o princípio da
proporcionalidade, que orienta a jurisdição nos casos de colisão. Dado
que os direitos desempenham no discurso jurídico o papel de razões
ponderáveis entre si, Alexy vê nisso a confirmação de sua concepção,

38. Cf. Habermas, 1992, pp. 516ss.

356 A INCLUSÃO DO OUTRO


segundo a qual se podem tratar os princípios como valores. Afinal, real­
mente pode haver boas razões para um enunciado em maior ou m e­
nor número, ao passo que a proposição em si mesma ou é verdadeira
ou é falsa. Supomos a “verdade” como qualidade “imperdível” dos
enunciados, mesmo que possamos avaliá-los com base em razões que
conforme o caso justificam que os consideremos verdadeiros. A dife­
rença entre o modelo de princípios e o de valores evidencia-se no fato
de que é apenas em um caso único que se mantém o ponto de referên­
cia de uma reivindicação à validade “incondicionada” ou codificada
de forma binária: as proposições normativas gerais empregadas (entre
outras) pelo tribunal para a justificação de uma sentença (singular)
valem aqui como razões cuja tarefa é autorizar-nos a considerar corre­
ta a decisão que se dê ao caso. Se por outro lado, as normas justificadoras
forem entendidas como valores que se trazem aã hoc para dentro de
uma ordem transitiva por uma eventualidade qualquer, então a sen­
tença resulta de uma ponderação de bens. Logo, a sentença é ela mes­
ma uma sentença de valor e reflete de maneira mais ou menos ade­
quada uma forma de vida que se articula no âmbito de uma ordem
concreta de valores; por outro lado, no entanto, ela deixa de estar refe­
rida à alternativa entre a verdade e a falsidade da decisão tomada. Com
tal assimilação de mandamentos que se aproximam a sentenças de valor,
surge a legitimação para um espaço de mensuração subjetiva. Mas
enunciados normativos e enunciados avaliativos comportam-se de
maneira gramaticalmente distinta. A discreta assimilação de enuncia­
dos de um tipo por enunciados do outro tipo priva o direito de sua
reivindicação de validação de dever claramente talhada, e que caberia
resolver discursivamente. Com essa reivindicação, desaparece também
a tranqüilizadora coação à justificação: o direito positivo devia ficar
submetido a ela pela simples razão de estar protegido por sanções e
por lhe ser permitido interferir sensivelmente nos direitos à liberdade
de pessoas que viessem a se comportar de maneira transgressiva.
Algo semelhante vale para a assimilação de discursos de aplicação
e de fundamentação39. Alexy vê bem as diferenças na lógica do ques­

39. Não posso dedicar-me aqui à respectiva discussão entre Alexy e Günther:
K. Günther, “Criticai Remarks on Robert Alexy’s ‘Special case Thesis”’, Ratio Júris,
vol. 6,1993, pp. 143-156; R. Alexy. “Justification and Application o f Norms”, loc. cit.,
pp. 157-170.

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 357
tionamento, que em um dos casos visa à justificação de proposições
normativas gerais à luz das conseqüências para casos exemplares pre­
visíveis, e que no outro caso visa à justificação de sentenças singulares
à luz de normas que se pressupõe serem válidas. Mas ele não logra
esclarecer determinados fenômenos, tais como as diferenças do arran­
jo comunicativo entre legislação e jurisdição, por exemplo. Pois essas
diferenças, de maneira lógico-argumentativa, resultam dos princípios
de generalização e de adequação, que são diretivos em discursos de fun­
damentação e aplicação. Nos discursos de fundamentação, por exem­
plo, em que não pode haver pessoas sem envolvimento, deixaria de
existir o papel de um terceiro imparcial, que a propósito determina a
estrutura do discurso judicial. Quando incluímos a distinção entre dois
tipos de discurso, desaparece o fundamento racional em favor de uma
divisão funcional de poderes, que se justifica a partir das diversas pos­
sibilidades de recurso a tipos determinados de razões. As razões com
as quais o legislador político tiver fundamentado as normas já decidi­
das (ou as quais ele poderia ter mobilizado racionalmente para tal fim)
simplesmente não estarão à disposição da justiça e da administração
quando se for aplicar ou implementar essas mesmas normas. Isso as­
sume um sentido crítico sempre que a justiça e a administração têm de
tomar decisões que contribuam para a formação continuada do di­
reito, ou sempre que têm que assumir tarefas legislativas veladas —
tendo de se expor, dessa maneira, a outras coerções legislativas que não
as previstas na divisão tradicional de poderes. (Daí decorre, por exem­
plo, do ponto de vista jurídico-político, a exigência de que haja fóruns
que se posicionem criticamente em face da justiça, bem como formas
de participação administrativa, funções de ombudsman etc.)
(3) A crítica de Gunther Teubner visa ao que é essencial. Primeiro,
ele saúda a diferenciação dos aconselhamentos em discursos e negocia­
ções (bem como a diferenciação dos discursos segundo diversas formas
da argumentação — pragmática, ética, moral e jurídica). Quando, po­
rém, em face do pluralismo de discursos, não se leva em consideração o
fechamento semântico de cada um deles e a indiferença de uns em rela­
ção aos outros (como se dá com Lyotard, por exemplo), surge logo na
seqüência o problema que interessa a Teubner. Pois no caso da colisão é
preciso preocupar-se com a conciliabilidade dos diferentes discursos:
“After the move to pluridiscursivity, the success of Habermas’ theory
depends on a plausible solution to the collision of discourses”. Precisa­

358 A INCLUSÃO DO OUTRO


mos de procedimentos — Teubner fala de “rational metaprocedures
for interdiscursivity” — de acordo com os quais possamos decidir que
matérias entre que aspectos devem ser regulamentadas em primeiro
lugar, ou então qual dos diferentes aspectos deve ter precedência entre
os que tratam de uma e mesma matéria. Teubner coloca-me diante da
alternativa de escolher entre a heterarquia de discursos em igualdade
de direitos e a hierarquização sob a liderança de um superdiscurso; e ele
imagina que eu atribua à teoria do discurso o papel de um superdiscurso
como esse. Mas as coisas não são bem assim.
É certo que a elucidação de questionamentos pragmáticos, éticos e
morais, bem como a análise das regras argumentativas e dos tipos dis­
cursivos correspondentes são tarefas filosóficas, em primeira linha; mas
a filosofia desenvolve um discurso entre muitos outros e explica até
mesmo por que não pode haver metadiscursos. Sob uma ótica socioló­
gica, é por isso que os filósofos dispõem tanto quanto outros cientis­
tas de tão pouco privilégio em assuntos públicos. Em todo caso, eles
podem se deixar questionar como especialistas sobre as respectivas
matérias, ou então intrometer-se enquanto intelectuais, mesmo sem
ser chamados; mas não podem pretender para si mesmos, de modo
algum, o papel institucional de um árbitro.
Minhas reflexões ligadas à teoria do discurso encaminham-se para
a auto-seletividade dos questionamentos', a lógica dos respectivos dis­
cursos também delineia transições racionais de um discurso para ou­
tro. A reflexão a seguir serve apenas como uma ilustração disso. À m e­
dida que na articulação e ponderação de políticas seja relevante a esco­
lha de recursos e estratégias racional-finalistas (com base em informa­
ções empíricas) é preciso já terem sido dadas preferências suficiente­
mente claras e capazes de proporcionar o consenso. Se as próprias pre­
ferências são controvertidas, porque nelas se chocam interesses opos­
tos, então é preciso encontrar os ajustes adequados ao procedimento (e
é nos discursos morais que cabe decidir sobre a justeza e honestidade
dos procedimentos). No entanto, se, em vez de haver pouca clareza em
relação às preferências, realmente ocorrer que elas sejam controversas,
então cabe aos envolvidos, em discursos éticos, chegar a acordos m ú­
tuos sobre sua forma de vida e identidade coletiva, a fim de que eles
garantam para si mesmos orientações comuns de valor. Se em vez de
conflitos de interesse carentes de ajustes houver conflitos <Je valor inso­
lúveis, aí as partes precisam abandonar o plano em que se encontram

Apêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 359
para alcançar posições únicas, sob um ponto de vista moral acerca das
regras de convívio; e embora esse ponto de vista moral seja mais abstra­
to, ele terá sido suposto em comum e atenderá eqüitativamente os inte­
resses de todos. Este é apenas um modelo de relações interdiscursivas, e
a seu lado há muitos outros modelos possíveis. O que importa aqui,
apenas, é que as transições não se fixem em um superdiscurso; elas
decorrem muito mais da lógica do questionamento de um discurso
em particular, e têm como resultado que se privilegie o que seja bom em
face do que seja propositado, e o que seja justo em face do que seja bom.
No caso de uma colisão, as razões morais “fisgam” as razões éticas, e as
razões éticas, as pragmáticas; e isso porque o respectivo questionamen­
to, tão logo se torne problemático em seus próprios pressupostos, trata
ele mesmo de indicar a direção em que lhe cabe transgredir de maneira
racional. O fato de que os ajustes precisem estar em consonância com
os valores éticos básicos devidamente reconhecidos, e de que estes, por
sua vez, precisem estar em consonância com princípios morais válidos,
é resultado da lógica dos questionam entos e das concatenações
interdiscursivas que eles mesmos regulam.
Com certeza, essa “auto-seletividade” da proposição de questões
só pode funcionar enquanto a seleção dos questionamentos e a escolha
de aspectos sob os quais se deve tratar uma matéria controversa não
forem, elas mesmas, controversas. Uma “colisão discursiva” ocorre, po­
rém, quando os envolvidos não logram decidir em conjunto, por exem­
plo, se o caso em questão é um conflito de interesses passível de solu­
ção por um acerto, ou se é um conflito de valores, para o qual não se
pode ter uma solução como essa; ou então se a questão no caso espe­
cífico é de ordem moral ou de ordem ética; ou ainda se a matéria de
que se trata carece de uma regulamentação política ou se ela é juridi­
camente regulamentável etc. Já que não há metadiscursos para pro­
blemas de segunda ordem como esses, também aqui tem-se de recor­
rer a procedimentos juridicamente institucionalizados; pois esses só
correspondem a um a pré-seleção à medida que tudo que se vai nego­
ciar tenha áe ser negociado na linguagem do direito e de acordo com
pontos de vista jurídicos (desde que uma das partes envolvidas o queira).
Os procedimentos jurídicos devem sua competência reguladora, no
caso das colisões discursivas, ao fato de o código do direito ser inespe-
cífico demais para ter sensibilidade em face da “lógica dos questiona­
mentos”. Não há procedimento jurídico que classifique as matérias se­

360 A INCLUSÃO DO OUTRO


gundo o tipo de questionamento. E embora isso seja útil do ponto de
vista procedimental, já que assim as decisões se estabelecem em qual­
quer caso, mesmo que na ocorrência de colisões discursivas, a situação
toda acaba sendo insatisfatória do ponto de vista substancial, já que
dessa maneira não se pode excluir que se chegue a ajustes sobre valores
conflitantes, nem que se decidam questões éticas sob o ponto de vista
moral, nem que assuntos privados se politizem ou que se tomem os
campos da ação e se ordenem juridicamente etc. Por outro lado, só é
possível deparar com esses “erros de classificação” pela circunstância
segundo a qual os procedimentos jurídicos tanto possibilitam quanto
mantêm intactas as argumentações, ou seja, desencadeiam discursos
sem intervir na lógica interna deles. É na medida em que isso dá certo
que a auto-seletividade dos questionamentos passa a funcionar40.
Isso não significa de modo algum, no entanto, que o discurso ju­
rídico deva ser utilizado como superdiscurso. Quem propõe tal coisa é
Teubner; e para tanto ele se apóia em duas suposições problemáticas:
(a) os diversos discursos de que o discurso jurídico se apropria caso a
caso são incomensuráveis entre si, e (b) o papel específico do discurso
jurídico consiste em trazer os demais discursos a um denominador
comum, para dessa maneira torná-los compatíveis uns com os outros.
Sobre (a): Teubner, para explicar o que entende por incomensu-
rabilidade (em um sentido ainda juridicamente inespecífico), toma
como exemplo o direito privado internacional. Isso já teria de dar
conta, desde o início, do problema da criação de regras para as coli­
sões que surgissem nos casos individuais entre as ordens jurídicas que
diferissem nacionalmente. Segundo essas “regras de colisão” decide-
se caso a caso se cabe usar o direito privado próprio ou estrangeiro;
mas essas metarregras, por sua vez, são formadas a partir da perspec­
tiva do respectivo direito próprio. Por isso, quando se dá a aplicação
das diferenças entre o direito privado próprio ou estrangeiro, diferen­
ças que são respectivamente constatadas a partir da perspectiva pró­
pria, ocorre que o problema de partida apenas se reproduz em um
nível de reflexão mais elevado: “In vain do discourse collisions search
for one central meta-discourse. There is only a plurality of decentralized

40. Cf. J. Habermas,“Vom pragmatischen, ethischen und moralischen Gebrauch


der praktischen Vernunft”. In: Erlauterungen zur Diskursethik. Frankfurt am Main, 1990,
pp. 117s.

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 361
meta-discourses that reformulate collisions in their own idiosyncratic
language”. Mediante essa descrição — wiethõlteriana — os direitos
privados internacionais, que só podem concretizar o singular ‘do direi­
to privado internacional no plural das muitas ordens jurídicas nacio­
nais, servem como exemplo da problemática geral do “acordo mútuo
entre discursos que constituem mundos estranhos uns para os outros.
Embora esses discursos não sejam semanticamente fechados, no sen­
tido de serem incompreensíveis uns para os outros, eles são regidos por
racionalidades e conceitualidades básicas diferentes e inconciliáveis
entre si, de modo que o que é falso ou de menor importância em um
universo pode ser correto ou prioritário em outro.
Essa incomensurabilidade é de tipo semelhante ao do conflito
intraestatal entre as comunidades integradas em torno das respectivas
concepções do que seja bom, e que por exemplo descrevem o aborto
de perspectivas distintas, de modo que a identidade do fato como tal se
torna difusa em decorrência da falta de uma perspectiva valorativa co­
mum. Se isso for assim, porém, cria-se para Teubner uma conseqüência
desagradável: com sua concepção de incomensurabilidade, ele tacita-
mente coloca o discurso ético em situação privilegiada em relação a to­
dos os outros tipos de discurso. Isso contradiz a premissa da igualdade
de importância entre todos os discursos, da qual deve resultar uma ine­
vitável assimetria do “acordo mútuo” entre eles. Voltarei em breve a isso.
De fato a assimetria que Teubner explica com base nas regras de
colisão do direito privado internacional é o produto contra-intuitivo
de uma demarcação de itinerário teórica ainda presa à tradição da fi­
losofia da consciência. Quando se parte de sistemas ou discursos que
constituem o próprio m undo segundo premissas próprias qual fossem
um sujeito transcendental, então só se pode conceber o “acordo mútuo”
com base na observação recíproca de forma intencionalista e de tal
maneira que um “enseje” ao outro o desenvolvimento das respectivas
operações. Essa estratégia teórica é contra-intuitiva porque ignora a
circunstância — e o discernimento hermenêutico básico — de que nin­
guém pode chegar com um outro a um acordo mútuo sobre o que quer
que seja se não dominar o sistema dos pronomes pessoais que podem
transformar-se uns nos outros, e se não souber como produzir uma
simetria entre as perspectivas intercambiáveis da primeira e da segunda
pessoas, no âmbito de uma interação que se possa observar a partir
da perspectiva de uma terceira pessoa.

362 A INCLUSÃO DO OUTRO


No mais, o direito privado internacional só pode servir de exem­
plo para isso enquanto um direito desencadear inevitavelmente os pró­
prios conflitos com outros direitos sob premissas próprias, tal como
ocorre nas ordens jurídicas nacionais de Estados soberanos. Mas so­
mente no período entre 1648 e 1914 os Estados foram “soberanos”
no sentido de não estarem submetidos a uma convenção de direitos
humanos internacionalmente obrigatória, nem de haverem positivado
direitos humanos nas próprias constituições. Pois tão logo seja esse o
caso, o teor universalista dos direitos hum anos acaba se impondo so­
bre todas as regulamentações concretas, passando pela legislação do
direito privado. A pressão bilateral de um sistema de direitos hum a­
nos e fundamentais exercida efetivamente tanto de dentro quanto de
fora, e que passou a ser efetiva nesse meio tempo, certamente não
exclui a disputa intercultural em torno da interpretação desses direi­
tos. Mas o discurso sobre os direitos humanos, por sua vez, é infor­
mativo para as contendas jurídicas disputadas diante de cortes inter­
nacionais e que são decididas de um a maneira ou de outra. Ao menos
é possível conceber sem contradições uma condição cosmopolita fu­
tura, o que demonstra que o exemplo das regras de colisão não com­
prova de modo algum a inarredabilidade das assimetrias que ocor­
rem no direito privado internacional.
Sobre (b): Na concepção de Teubner, o papel do superdiscurso
deve caber ao direito, porque é o direito que se comporta em face de
todos os outros discursos sob a consciência de que eles constituem
m undos incomensuráveis uns para os outros e de que eles, por causa
de suas relações assimétricas, têm de se tornar reciprocamente “in­
justos”. O médium do direito compensa essa “injustiça” à medida que
se apropria à sua maneira de todos os discursos que encontra no uni­
verso social que o circunda, tornando-os compatíveis uns com os ou­
tros. Segundo essa concepção, portanto, o direito está especializado na
compatibilização do que é inconciliável, em sentido gramatical; natu­
ralmente, é apenas sob premissas próprias que ele tem sucesso nessa
tarefa, já que também o discurso jurídico, apesar de tudo, deve apre­
sentar a qualidade da incomensurabilidade: “Justice can be realized
to the degree as a concrete legal discourse is simultaneously able,
externally, to incorporate the rationalities of other discourses and,
internally, to observe its own requirements of legal consistency”. O que
caracteriza o discurso jurídico e sua “lógica própria” não é apenas a

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 363
coerência normativa, ou seja, a ligação de cada um dos novos casos à
rede das decisões tomadas até então, mas sim um questionamento
específico: como se pode tratar com igualdade o que é igual e com
desigualdade o que é desigual (how to treat new cases alike/not alike).
Isso significa, ao mesmo tempo, uma assimilação das racionalidades
apropriadas de novos universos discursivos ao próprio padrão de tra­
tamento igual. O direito é “senhor” sobre igualdade e desigualdade.
Esse padrão é subjacente à “comparação” da “justiça compensativa”
em face de discursos incomensuráveis e que portanto só podem se com­
portar de forma “injusta” em relação uns aos outros (no sentido herme-
nêutico-estetizante de “injusto”, segundo Derrida e Lyotard). Com esse
nivelamento assimilativo Teubner explica também a “impudência” e o
“ecleticismo” de uma jurisdição que segue descaradamente a palavra
de ordem da “ponderação de bens” — “be it balancing between prin­
cipies, between values, or even between interests”.
Mesmo que aceitássemos a descrição de incomensurabilidade e
“injustiça” segundo Teubner (de um tipo desconstrutivista, mais ele­
vado), a concepção do direito como um “superdiscurso” não poderia
ser convincente por duas razões (pelo menos). Por um lado, o princí­
pio do tratamento igual não serve como uma característica própria do
direito, já que a moral à maneira dela também ajuda esse mesmo prin­
cípio a obter validação. Direito e moral obedecem ao mesmo princí­
pio discursivo e seguem a mesma lógica de discursos de aplicação e
fundamentação. O que diferencia o direito da moral não é o questio­
namento abstrato sobre como se devem regulamentar os conflitos in­
terpessoais segundo o interesse eqüânime de todos, nem tampouco as
regras de argumentação da universalização e adequação. O que há de
específico nele não reside no discurso, mas sim na conformidade jurí­
dica de normas — discursivamente fundamentadas e aplicadas — que
são firmadas politicamente, interpretadas v inculativamente e impostas
sob a ameaça de sanções estatais. Ligados à forma jurídica estão tam ­
bém a diferenciação e autonomização de discursos de fundamentação
e aplicação, a coerção específica na direção de uma exatificação das
regras, da coerência de sua concatenação e da consistência do decidir.
Essas qualidades do código jurídico exigem uma “tradução” dos argu­
mentos pragmáticos, éticos e morais, assim como dos resultados de
negociações que ingressam no sistema jurídico por meio de aconse­
lhamentos e resoluções do legislador político e aos quais a justiça pode

364 A INCLUSÃO DO OUTRO


se referir ao fundamentar suas sentenças. Por outro lado, isso não li­
bera, sob hipótese alguma, a práxis decisória do juiz de que ela precise
considerar o sentido deontológico da validação das normas jurídicas.
Se a justiça realmente pudesse mover-se livremente no âmbito de uma
ordem de valores flexível, como afirma Teubner, e se dependesse de
reduzir princípios e demarcações de objetivos, normas e valores ao
denominador comum dos “bens jurídicos” e ainda “ponderá-los” uns
em relação aos outros, então os discursos jurídicos assumiríam na ver­
dade o papel de discursos paternalistas e substituintes de um auto-
entendimento ético-político, do qual os cidadãos estariam sendo priva­
dos. É certo que a práxis dos tribunais superiores oferece exemplos do
privilégio tácito que se dá a uma ética dos valores em relação ao direi­
to e à moral, mas uma conseqüência como essa provavelmente já não
vem ao encontro do sentido de Teubner.

Sobre o teor político do paradigma procedimental

(1) Sou grato a Ulrich K. Preufi por traçar os contornos do pano


de fundo sobre o qual se desenrola uma tradição especificamente ale­
mã do pensamento jurídico, de modo que só agora se evidencia nele o
ponto alto de uma ligação entre o direito e o poder comunicativo. Com
certeza faz parte da tradição liberal em geral definir o Estado de direi­
to com base no antagonismo entre um direito que preserva liberdades
individuais e um poder político que concretiza fins coletivos; nesse
contexto, remete-se esse “poder estatal” a um a origem “bárbara”, au­
tóctone e intocada pelo direito; à capacidade de dominação física41.
Mas nas sociedades politicamente civilizadas do Ocidente esse anta­
gonismo não foi acentuado até chegar ao ponto de uma luta entre
princípios opostos; ao contrário, ele sempre foi apreendido como uma
oposição que caberia balancear no Estado de direito. Na Alemanha, ao
contrário, o que se teve diante dos olhos foi uma concorrência insolú­
vel entre a integração política pelo direito, de um lado, ou então pelo
poder político, de outro. Aqui a discussão entre especialistas do direito

41. Cf., p. ex., Ch. Larmore,“Die Wurzeln radikaler Demokratie”, Deutsche Zeitung
fü r Philosophie, 41,1993.

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 365
público liberais e conservadores inflamou-se a partir da questão sobre
em que medida se deveria submeter o poder monárquico a um disci-
plinamento jurídico. A “substância” do Estado corporificada no exér­
cito, na polícia e na burocracia, que alguns temiam e outros feste­
javam, manteve a tal ponto a aura de um poder essencialmente irra­
cional e superior a todo o restante, que mesmo a esquerda jamais lo­
grou conceber a democracia de outra forma senão como uma sobera­
nia principesca invertida, transferida da cabeça do monarca para os
pés do povo. Por isso a democracia continuou sendo, mesmo para
seus defensores, um projeto estatista.
Sobre esse pano de fundo entende-se a idéia de Marx de uma
“morte paulatina do Estado”— uma radicalização do saint-simonismo
herdado de Friedrich Engels, segundo o qual a dominação “política”
de pessoas sobre pessoas se deveria transformar na administração “ra­
cional” das coisas. Essa idéia fascinou-me desde o início. Pois através
de Carl Schmitt e seus discípulos essa tradição de um a glorificação
do “elemento político” do poder estatal teve continuidade para além do
fim do regime nacional-socialista, no qual, a propósito, essa glorificação
teve seu ponto culminante42.
Assim como Preufi, também eu devo estímulos importantes à
aníitradição dos “juristas controversos”43, de raiz marxista, em espe­
cial a Hermann Heller, Franz Neumann, Otto Kirchheimer e Wolfgang
Abendroth. Evidentemente, na direção oposta os especialistas do di­
reito público desenvolveram a idéia que PreuB tem razão em destacar:
eles deram seqüência à “suprassunção” democrática da substância de
dominação presente no poder estatal, sobretudo sob o ponto de vista
de crítica ao capitalismo e favorável a uma reestruturação da organi­
zação socioeconômica da desigualdade. De m inha parte, no entanto,
desenvolví a noção de um a “racionalização” do exercício do poder
administrativo (de forma imanente, em um primeiro momento) pela
via de uma reconstrução do teor normativo peculiar ao direito e ao
Estado democrático de direito. É isso — e não a proximidade a mestres
que, de quando em quando, fazem alguém esquecer o que aprendeu

42. Cf. m inha recensão sobre as teses de doutoram ento de R. Koselleck e H.


Kesting do ano de 1960: J. Habermas, Kultur und Kritik, Frankfurt am Main, 1973, pp.
355-364.
43. Cf. Kritische Justiz (org.), Streitbare Juristen. Eine andere Tradition, Baden-
Baden, 1988.

366 A INCLUSÃO DO OUTRO


com eles — que pode explicar a razão de eu não ter tratado expressa­
mente dessas fontes44. Todavia, ao olhar retrospectivamente vejo uma
deficiência, sim, no fato de eu não haver investigado em porm enor as
tendências que hoje fazem do processo democrático o instrumento de
uma dominação de maiorias que trata de excluir minorias fortes. Pos­
sivelmente, a constelação hoje modificada, em que as estruturas de
classe foram dissolvidas pela segmentação mais acentuada de popula­
ções tornadas supérfluas e pelo desleixamento da infra-estrutura de
bairros e regiões inteiras, também precisasse ter conseqüências no plano
normativo — sob a forma de direitos a veto e direitos minoritários e
sob a forma de instâncias advocatícias para os que se vêem compe­
lidos cada vez mais para fora dos espaços públicos estabelecidos e que
têm chances cada vez menores de melhorar sua situação com as pró­
prias forças, ou então de fazer valer sua voz. A tendência à destruição
do Estado social e o surgimento de um a subclasse nas sociedades in­
dustriais desenvolvidas carece de um a análise acurada também sob o
ponto de vista normativo do recurso efetivo, e sob igualdade de chances,
aos direitos de participação política.
Com Preufi, gostaria de insistir na idéia de que nem no paradig­
ma jurídico liberal, nem no paradigma jurídico socioestatal se leva a
sério ou se esclarece a coesão interna entre direito e poder político.
Somente um conceito de poder que acabe com a falsa alternativa entre
direito e poder político pode chegar a isso; o poder que nasce do uso
público das liberdades comunicativas dos cidadãos do Estado irm a­
na-se à criação legítima do direito.
Por fim, Preufi propõe questões com as quais já me ocupei em
outros momentos45. Em muitos casos, as coisas se dão de tal maneira
que as matérias que cabe regulamentar juridicamente também têm que
ser discutidas ao mesmo tempo sob pontos de vista pragmáticos, éti­
cos e morais. Contudo, o aspecto da justiça reivindica primazia sobre
os outros aspectos. Caso queira ser legítimo, o direito politicamente

44. Pontos de contato foram oferecidos pelas reflexões de Jürgen Seifert sobre a
“constituição como fórum”, dedicadas de forma nada casual à memória de A. R. L.
Gurland: do mesmo autor, cf. “Haus oder Forum. Wertsystem oder offene Verfassung”.
In: J. Habermas, Stichworte zur ‘Geistigen Situation der Z eit\ Frankfurt am Main, 1979.
pp. 321-339; lá tam bém se encontra bibliografia complementar. Cf. nesse ínterim J. P.
Müller, Demokratische Gerechtigkeit, München, 1993.
45. Cf. Posfácio à 4. ed. de Faktizitãt und Geltung.

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 367
firmado por escrito e concernente a uma comunidade jurídica con­
creta tem de estar em consonância com proposições morais básicas.
Entendo a complexa reivindicação de validação das normas jurídi­
cas, por um lado, como a pretensão de considerar os interesses par­
ciais estrategicamente firmados de um a maneira compatível com o
bem comum; e, por outro lado, como a pretensão de fazer valer prin­
cípios de justiça no âmbito do horizonte de um a forma de vida espe­
cífica, marcada por constelações valorativas determinadas. A gera­
ção de poder comunicativo e de direito legítimo torna necessário que
os cidadãos não recorram a seus direitos democráticos exclusivamente
como se eles fossem liberdades subjetivas, ou seja, a partir de interesses
próprios, mas sim enquanto autorizações legítimas a um emprego
público das liberdades comunicativas, ou seja, a um emprego delas
orientado pelo bem comum. De outra parte, há boas razões para que
os cidadãos não sejam juridicamente coagidos a isso. Por isso é ne­
cessária a habituação a instituições da liberdade no âmbito de uma
cultura política liberal — e necessária no sentido de um a exigência
funcional. Por se ter de evitar uma doutrinação política, não se deve
entretanto transpor irrestritamente a pergunta empírica pelas condi­
ções de um a socialização política favorável a um a exigência norm ati­
va por valores e virtudes políticas. Preufi mesmo, em outro contexto,
fez alusão a que não se pode ter grandes pretensões quando se exi­
gem virtudes públicas.
Isso também pode ser motivo para a sugestão de transm utar os
conflitos de valores, que não se podem resolver como se fossem con­
flitos éticos, em conflitos de interesse passíveis de acerto. Não consi­
dero que isso se justifique do ponto de vista normativo, porque a
redefinição de valores sob a forma de interesses pode resultar em uma
danificação das identidades. “Valorações intensas” subjazem aos ideais
sob cuja luz se articulam um projeto de vida existencial ou um jeito
de viver cultural. A força relativa dos valores varia; em alguns casos
questões de segurança ou saúde são mais importantes que questões
de justiça distributiva ou de educação; em outros casos, dá-se o in­
verso. Mas relações de valores como essas só podem ser alteradas atra­
vés de discursos de auto-entendimento, e não por meio do estabeleci­
mento de acertos. Negociações só são sensatas quando as reivindica­
ções ou interesses concorrentes referem-se aos mesmos bens ou a bens
comparáveis. Em negociações, as partes têm, desde o início, de che­

368 A INCLUSÃO DO OUTRO


gar a uma posição comum sobre as dimensões do que seja relevante
— como no caso dos primary goods de Rawls (ou seja, bens coletivos
socialmente reconhecidos e partilháveis, tais como salários, tempo
livre, segurança social e indenizações sociais monetárias em geral). À
medida que o estabelecimento de acertos estender-se sobre o próprio
sistema de referência dos bens, então se terá que fixar afortiori quais
as relevâncias inegociáveis — isto é, quais são os “valores fundam en­
tais” constitutivos da identidade dos participantes e constitutivos,
portanto, da autocompreensão deles. A confusão entre valores funda­
mentais e interesses é um erro categorial que acarreta muitas conse-
qüências. Amor ou respeito não podem ser trocados por dinheiro no
plano político, tampouco se pode trocar a língua materna ou a con­
fissão religiosa por postos de trabalho. O que interfere nas definições
de identidade não é passível de acerto. Golpes desse tipo, a propósito,
corresponderíam a um atentado contra a dignidade hum ana e se­
riam inadmissíveis, até mesmo por razões jurídicas.
(2) A política social do Estado constitui o ponto mais central
do Estado social e da compreensão socioestatal do direito. Desde que
os direitos fundamentais sociais estão garantidos sob a forma de segu­
ros obrigatórios e vinculados aos salários contra os riscos do m undo
do trabalho (tais como doença, acidente, invalidez, desemprego e
idade — ainda que sob a negligência, até hoje, dos encargos do tra­
balho doméstico e da educação dos filhos, especificamente ligados à
questão de gênero) uma prevenção burocrática da existência ocu­
pou o lugar das obrigações tradicionais de amparo. Com essa trans­
formação, não se firmou a consciência do pertencer a uma com uni­
dade cuja consistência se deve não apenas a relações jurídicas abs­
tratas, mas à solidariedade, de m aneira imediata. Entre clientes iso­
lados que fazem valer reivindicações de benefícios ante burocracias
estatais de bem-estar, não foi possível regenerar as relações de soli­
dariedade já decaídas. Günter Frankenberg interessa-se pela face nor­
mativa desse processo; ele crê que a forma correta de im plem enta­
ção deve ser precedida de um a correta compreensão normativa dos
direitos sociais. Daí advém a pergunta: “Why care?”
Frankenberg considera insuficiente a fundamentação relativa dos
direitos fundamentais sociais (defendida também por mim), segundo
a qual cabe a estes últimos assegurar (entre outras coisas) as condi­
ções de vida necessárias a que se faça uso, sob igualdade de chances,

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 369
dos direitos privados à liberdade e dos direitos políticos à cidadania
— cuja fundamentação é absoluta. Essa estratégia de fundamentação
que confere prioridade ao asseguramento da autonomia privada e pú­
blica, volta-se contra os efeitos de um paternalismo do Estado de bem-
estar. Os cidadãos precisam ser capazes de fazer uso efetivo de seus
direitos em favor de uma conformação autônoma da própria vida;
por isso, para que cheguem à constatação de suas competências for­
malmente asseguradas, eles têm que se pôr nesse lugar através de um
serviço estatal, conforme o caso. Frankenberg apresenta duas restri­
ções contra essa concepção, uma boa e uma não tão boa.
O princípio “ajuda para a auto-ajuda” só é satisfatório no que diz
respeito às pessoas que ou estão de posse plena de suas forças ou um
dia alcançarão o status de maioridade (como as crianças), ou às pes­
soas que podem recuperar suas forças e competências (como ocorre
com doentes ou, de outra maneira, com pessoas preteridas ou cujo
desenvolvimento mental fica abaixo da média). Diferente disso é a dis­
ponibilidade de ajudar pessoas desamparadas e débeis, ou o amparo a
pessoas que sofrem sem possibilidade de cura. Evidentemente, essa
assistência tem um valor intrínseco e não se confunde com a função
que desempenha em favor da produção ou restauração de autonomia.
Esse impulso moral elucidativo, que aponta para obrigações positivas,
certamente não pode ser traduzido de maneira imediata em um plano
político onde é necessário haver uma “divisão moral do trabalho”, até
mesmo por razões organizacionais46. Normalmente, um sentimento
de solidariedade baseado na cultura política irá expressar-se no apoio
a políticas e programas de ajuda correspondentes.
Frankenberg dá outra direção ao argumento ao propor a tese
de que a referência às condições de surgimento da autonom ia pri­
vada e pública conduziría a um a concepção unilateral dos direitos
sociais. Estes correríam o perigo de degenerar até se tornarem ins­
trum entos de restauração da força de trabalho ou da qualificação da
participação civil. Apenas quando os direitos sociais forem fun­
damentados de m odo absoluto, ou seja, como partes elementares
dos direitos à condição de m embro de uma comunidade é que se
conserva a sensibilidade para relações solidárias entre “partícipes”;
“Instead of underprivileging social rights as ‘implied’ or ‘relative’. ..

46. Cf. H. Shue, “Mediating Duties”, Ethics 98, jul. 1988, pp. 678-704.

370 A INCLUSÃO DO OUTRO


it seems more plausible to argue for social rights as self-incurred
obligations to limit one’s autonom y in order to realize it in society”.
Frankenberg, se o entendo bem, em face dos conceitos dicotomiza-
dores de autonom ia privada e pública, gostaria de levar em conta algo
como um a autonomia social de cada indivíduo que se deveria efetivar
em comunidade. A isso subjaz a intuição de que a leitura possessivo-
individualista de direitos subjetivos deve ser suplantada em favor de
uma compreensão solidarista. Disso advém a conseqüência comuni-
tarista de que um reavivamento da substância ética da coletividade
pode atuar opositivamente às tendências desintegradoras do sistema
jurídico. Frankenberg responde à pergunta “Why care?” com um apelo
por mais “civic virtue”, mais “communal spirit” e um “sense of soli-
darity” mais acentuado.
Considero essa concepção não apenas irrealista, mas também
problemática, porque atribui uma força integradora muito pequena
ao direito — como único médium pelo qual se poderia assegurar uma
“solidariedade com estranhos” em sociedades complexas — e um po­
tencial universalista muito grande aos vínculos pré-políticos de co­
munidades informais. Talvez ainda se espelhe nessas atribuições de
importância a herança do primeiro socialismo, que com face de Jano
olhava ao mesmo tempo para frente, em direção a um futuro emanci­
pado, e para trás, em direção a um passado idealizado, querendo
suprassumir as forças sociointegrativas das comunidades solidárias
corporativas, familiares e de vizinhança já exauridas, transformá-las e
resgatá-las sob as condições modificadas de uma sociedade industrial.
Seja como for, Frankenberg crê que não se pode em primeira linha
compreender os direitos sociais sob o ponto de vista moral de uma
viabilização equânime da autonomia privada e pública. O verdadeiro
problema consistiría em como poder mobilizar uma consciência de
solidariedade que tornasse aceitável, nos limites de uma comunidade
eticamente integrada, a restrição da própria autonomia em beneficio
de outros partícipes.
A essa concepção de um jogo das liberdades privadas em que to­
dos os saldos ficam zerados subjaz, porém, uma oposição antidialética
entre autonomia privada e pública. Se, ao contrário se toma como
ponto de partida um enfoque intersubjetivista, segundo o qual os di­
reitos derivam do fato de se pertencer a uma associação de juriscon-
sortes livres e iguais e segundo o qual esses mesmos direitos conquis­

A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 371
tam legitimidade somente com base no reconhecimento recíproco das
mesmas liberdades, então a solidariedade evocada por Frankenberg, e
já conhecida das relações concretas de reconhecimento da interação
simples, preserva para o próprio direito uma força estruturadora. Sob
uma forma abstrata, a solidariedade continua sendo um recurso social
de que a autodeterminação democrática dos cidadãos precisa se ali­
mentar, caso deva surgir daí um direito legítimo. Só são legítimas as
regulamentações que tratam com igualdade o que é igual e com desi­
gualdade o que é desigual, ou seja, as que também asseguram liberda­
des subjetivas de modo efetivo; e só se devem esperar regulamenta­
ções legítimas como essas quando os cidadãos fazem uso de suas li­
berdades comunicativas em comum, de maneira que todas as vozes
tenham chances iguais de ser ouvidas. Assim, o recurso efetivo às au­
tonomias privada e pública, que se pressupõem mutuamente, é ao
mesmo tempo uma condição para que os direitos civis sejam adequa­
damente interpretados e garantidos, além de utilizados de maneira
cada vez mais abrangente em seu teor universalista. Pelo fato de que a
reprodução do direito, considerada normativamente, sempre signifi­
ca a efetivação de uma associação de jurisconsortes livres e iguais, à
qual todos os partícipes estão vinculados no respeito eqüânime de uns
pelos outros, não surge nenhum a lacuna no processo circular da
viabilização e asseguramento recíprocos da autonomia privada e pú­
blica, ao menos não para um a autonomia social que devesse ser pre­
enchida pela solidariedade dos partícipes de maneira diversa da que
aliás já resulta do status próprio ao cidadão de um Estado.
(3) Filosofias do direito, ainda que não sejam escritas para o
aqui e agora, também dispõem de um teor político e diagnóstico para
a época em que surgem, à medida que espelham até certo ponto o
contexto que lhes é próprio. É notório que a força de explosão política
da filosofia do direito hegeliana instigou diversas gerações a reagi­
rem com passionalidade. Apesar das indicações lisonjeiras de Dick
Howard, é evidente que meu texto não ocasiona nenhum a compara­
ção com Hegel, nesse sentido. De qualquer modo, os diagnósticos po­
líticos de Dick Howard e Gabriel Motzkin são motivo de alegria para
mim. Pois freqüentemente deparo com reações diferentes.
Com certeza um acontecimento da história universal como o
colapso do Império Soviético obriga qualquer um a repensar sua
posição política; faz muito tempo, no entanto, que defendo um refor-

372 A INCLUSÃO DO OUTRO


mismo radical47. Apesar de todas as mudanças de minha posição teó­
rica48, vinculo à teoria do discurso do direito um sentido radicalmen­
te democrático. Tal intenção é reconhecida pela análise que Howard
faz da importância que o m undo da vida e a sociedade civil assumem
nessa teoria e por sua busca da herança revolucionária que ele acaba
por encontrar na cultura política das liberdades comunicativas aí
desencadeadas. Igualmente correta parece-me ser a descrição feita por
Motzkin da constelação política a que reajo. Ele apreende com exa­
tidão a situação interna da República Federal da Alemanha amplia­
da, mesmo que talvez se devesse falar de um “extremismo de centro”,
mais do que de um “extremismo de direita”: “The demise of the left
hab liberated the right ffom its servitude to the center: no longer does
it need liberalism as the best defence for antiliberalism... The criticai
enterprise... is not one of dismantling the power structure and re-
placing it by another, but rather one of buttressing the existing power
structure against the threat looming from the right, whether the po-
litical, the economic or the religious right”.

Comentários sociológicos: mal-entendidos e estímulos

Quando retornei a uma faculdade de filosofia após doze anos de


trabalho de pesquisa em um instituto de ciências sociais, chamou-me
mais a atenção do que antes o fato de que às vezes os filósofos, com
base em suas competências próprias, se acreditam capazes de emitir
juízos sobre fatos empíricos sem sequer ter tomado conhecimento da
complexa bibliografia especializada sobre o assunto. Essa atitude de
m andarim levou-me a fazer uma observação mordaz, que agora é ci­
tada por Mark Gould, só que voltada contra mim mesmo49. Mas não
são apenas os filósofos que lidam de maneira pré-científica com o co­
nhecimento empírico; há também sociólogos que preparam toda uma

47. Cf. J. Habermas, “Nachholende Revolution und linker Revisionsbedarf”. In:


Die nachholende Revolution, Frankfurt am Main, 1990, pp. 170-204.
48. Tentei dar conta disso pela última vez em 1990, no Prefácio à nova edição de
Strukturwandels der Õffentlichkeit.
49. Cf. J. Habermas, “Treffen Hegels Einwande gegen Kant auch auf die Diskurs-
ethik zu?”. In: J. Habermas, 1990, p. 30.

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 373
filosofia sem abdicar da perspectiva metodológica da própria área de
especialidade — isto é, que aparecem como filósofos em pele de cor­
deiro sociológica. Nisso, raramente pode se manisfestar originalidade,
como ocorreu sem dúvida alguma com Niklas Luhmann; em outros
casos, manifesta-se antes uma certa ingenuidade.
(1) Se por um lado Mark Gould arrisca-se muito pouco a sair de
sua morada parsoniana, ao mesmo tempo ele se atreve a emitir tantos
juízos, que sua competência na área específica (que tenho em alta conta
já não é de hoje) acaba se ligando às vezes a uma insensibilidade her­
menêutica assustadora. Em todo caso, ele compreende tão pouco a
postura pluralista de m inha teoria (enfatizada já desde o Prefácio) que
chega a confundir quase tudo.
Quando não se pretende estar restrito a reflexões normativas
sobre um a teoria da justiça, ou à análise de conceitos fundamentais
decisivos, ou a considerações jurídicas sobre a metodologia da prá-
xis decisória judiciária (o que tam bém é legítimo, com certeza), en­
tão não se pode construir um a filosofia do direito fechada em si
mesma, como ainda se fazia nos tempos de Hegel. Por isso procedi
de modo a desenvolver prim eiro o questionamento geral — da rela­
ção entre facticidade e validação — com base na teoria do agir com u­
nicativo, para depois explicar a função sociointegrativa do direito, à
luz dessa teoria. Foi então que confrontei a perspectiva normativa
da tradição jurídica racional à objetivação do direito empreendida
pelas ciências sociais, a fim de dar outra importância metodológica a
essa análise filosófica no âmbito de um a teoria social que procedesse
reconstrutivamente, sem deixar de satisfazer exigências descritivas,
e que assumisse seu enfoque a partir de uma “perspectiva dupla”.
Isso, no entanto, não significa de modo algum um apagamento de
diferenças na reconstrução do direito empreendida a partir da pers­
pectiva interna do sistema jurídico, que procurei levar a cabo nos
capítulos III a VI. Essa reconstrução racional dos direitos, dos prin­
cípios do Estado de direito, da práxis decisória judiciária e de sua
relação com o poder legislativo o que mais faz é preservar a auto-
suficiência de um a teoria do direito normativamente orientada. A
comparação entre direito e moral exige até mesmo reflexões de teo­
ria moral, ou seja, reflexões filosóficas em sentido mais estrito, da
mesma forma que a investigação dos discursos jurídicos de aplica­
ção exige reflexões de metodologia jurídica. Só os dois capítulos se­

374 A INCLUSÃO D0 OUTRO


guintes cum prirão a m udança de perspectiva em direção a uma teo­
ria da democracia no âmbito das ciências sociais.
Essas análises particularmente centradas no processo de legiti­
mação não servem ao objetivo de uma sociologia do direito e dos sis­
temas políticos constituídos em conformidade com o Estado de di­
reito. Mais que isso, cabe ao modelo de um ciclo político do poder
(desenvolvido nessas análises) tornar plausível que a autocompreen-
são normativa das ordens jurídicas modernas (apreendida de forma
reconstrutiva) apóia-se sobre uma base real, bem como demonstrar
de que m aneira essa autocompreensão se encaixa na realidade de
sociedades altamente complexas. Pois o resultado dessas análises50
— e eis o que im portou para mim nos excursos sociológicos — ofe­
rece o gabarito com o qual se pode julgar o teor do paradigma jurí­
dico procedimentalista que concerne às ciências sociais, conforme in­
troduzido no último capítulo. Assim como se dá com os paradigmas
liberal e do Estado de bem-estar social, também subjaz a esse terceiro
paradigma determinada interpretação da sociedade como um todo a
partir da visão do sistema jurídico. Para isso certamente foi necessário
um retorno à perspectiva performativa interna do sistema jurídico e
de seus integrantes. À medida que a teoria estabelece em seu todo
uma relação com a práxis, ela visa, segundo declaro na conclusão do
livro, a uma mudança da pré-compreensão falível, em cujo horizonte
não apenas os especialistas em direito, mas também os cidadãos e
seus políticos participam do processo de interpretação constitucio­
nal e da efetivação do sistema de direitos, mediante uma estratégia de
divisão do trabalho.
Essa concepção democrática da relação entre teoria e práxis é
ignorada por Gould, porque ele mesmo parte da noção instrumental
de um a Aufklârung sociológica da justiça como agência de reforma
social. Ele exige uma “jurisprudence rooted in social Science”, caben­
do à sociologia o papel de uma autoridade que ensina a agir: “Suggest-
ing that courts implement equitable standards rests on a preliminary
theory of social development that attempts to discover an immanent
progression from within our liberal legal structure”. Gould não com­
preende que apresento uma filosofia do direito com a qual defendo
uma compreensão paradigmática do direito modificada — e não uma

50. Cf. Habermas, 1992, pp. 464-467.

A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 375
teoria social que, ao mobilizar o ativismo judiciário, deva contribuir
para mudar a sociedade, especialmente suas relações de produção.
Considero ainda mais provocativo que ele não acompanhe a já
mencionada mudança de perspectiva metodológica e que portanto
deixe recair sobre si mesmo a confusão de planos analíticos de que
vem acusar-me. Do contrário ele não cairia na tentação de tirar con­
clusões sobre meu conceito de ação a partir de determinações da “si­
tuação ideal de fala” — um conceito que só teve um lugar para si na
teoria da verdade. É por essa via ilustre que ele chega ao diagnóstico
de que eu confundiría normas com valores, valores com posições de
interesse e uma orientação segundo valores com preferências; ou ain­
da pior: eu operaria com um conceito atomístico e empirista do agir
social, não faria distinção entre limitações factuais da situação acionai
e outras situações, normativas, teria uma compreensão utilitarista das
obrigações morais, e assim por diante. Isso tudo são artefatos de uma
leitura precavida. As únicas diferenças sérias nesse plano dos concei­
tos básicos resultam do fato de eu não partilhar a compreensão não-
cognitivista da moral e da vinculação a valores tal como defendida
por Parsons, e portanto não excluir “valores morais” da esfera do “ra­
cional”. Gould contenta-se com asseverar: “J believe that there is an
irreducible, non-rational component of moral principies.” Em outro
momento ele também “crê” que os valores do “individualismo insti­
tucionalizado” deveríam encontrar acesso ao sistema jurídico. Não se
trata aqui de questões de fé, e sim de argumentação filosófica.
As longas digressões sobre o princípio da proporcionalidade e do
“excesso” na justiça do direito privado vêm bem ao encontro do desen­
volvimento que descreví remetendo-me à expressão “materialização
do direito”, de origem weberiana. No entanto, essas digressões nada
têm a oferecer à crítica do procedimentalismo, nem de um ponto de
vista (a) imanente, com referência à norma procedimental jurídica da
liberdade contratual; nem muito menos (b) na transposição a proce­
dimentos de argumentação juridicamente institucionalizados. Nem
mesmo (c) na distinção entre “equity” e “equality” consigo encontrar
um ponto de vista novo.
Sobre (a): A liberdade contratual, de acordo com a compreen­
são liberal, deveria pôr à disposição das relações entre as pessoas do
direito privadas um procedimento que garantisse justiça procedi-
m ental“pura”: enquanto as partes cumprissem as prescrições formais,

376 A INCLUSÃO DO OUTRO


o resultado deveria ser considerado correto ou “justo”. Com a cres­
cente desigualdade das posições econômicas de poder, fortuna e
proventos, foi se tornando cada vez mais pronunciado o caráter fic­
tício de uma “livre declaração da vontade” — advinda de situações
sociais e em correlação com a liberdade de fechamento de contratos.
Daí se explicam as correções socioestatais empreendidas em relação
ao direito dos contratos, em cujo contexto a máxima interpretativa
da jurisdição (unconscionability) destacada por Gould conquistou,
também ela, seu significado atual. Entretanto, Gould interpreta erro­
neamente tal evolução ao tentar demonstrar, com base nessa máxi­
ma, de que maneira os “valores” materiais da justiça social ingressam
no direito formal e de que maneira eles põem em questão um a con­
cepção jurídica procedimental, em termos gerais. A partir da m ate­
rialização do direito dos contratos, o que mais se evidencia é que com
a alteração dos contextos sociais verificados determinadas condições
fáticas de uma aplicação indiscriminadora do procedimento passa­
ram a fazer parte da consciência pública. No paradigma jurídico libe­
ral, a expectativa de justiça associada à liberdade contratual generali­
zada também havia sido dependente, ao menos de maneira implícita,
do cum prim ento dessas mesmas condições. Eis por que se podem
entender as correções socioestatais como uma efetivação do mesmo
princípio de distribuição eqüitativa de liberdades de ação subjetivas,
princípio que também estivera subjacente à compreensão liberal do
direito. No princípio da separação entre forma e conteúdo (se é que a
norm a procedimental precisa m udar nessa direção) tam bém não
m uda o fato de que uma aplicação indiscriminadora deva se tornar
possível em um contexto social modificado.
Sobre (b): Mesmo que a interpretação de Gould procedesse, não
se poderíam deduzir daí quaisquer objeções a m inha compreensão
“procedimentalista” do direito. Pois o tipo de procedimento consul­
tivo e decisório juridicamente institucionalizado sobre o qual este pa­
radigma se apóia difere em todos os aspectos essenciais da figura do
contrato. Diversamente de uma norm a procedimental jurídica da li­
berdade contratual, talhada apenas ao gosto da liberdade de arbítrio
e cuja tarefa é assegurar a justiça procedimental pura, o que se dá
aqui é o entrecruzamento de processos de acordo m útuo com outros,
de convenções, bem como a ocorrência de “procedimentos” jurídicos
e discursivos tais, que com eles só se garanta a justiça procedimental

A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o : 377
“incompleta”. No mais, as condições de comunicação, que nada fa­
zem senão assegurar o livre trânsito de informações e razões “dispo­
níveis”, além de possibilitar com isso soluções de problemas e proces­
sos de aprendizagem, continuam dependendo do envio de contri­
buições substanciais; elas não podem mais gerá-las por si só. Gould
tem razão em observar que o princípio de se dever tratar com igual­
dade o que é igual e com desigualdade o que é desigual irá perm ane­
cer vazio enquanto não tivermos critérios adequados de compara­
ção. Isso porém não é um argumento contrário, mas sim favorável a
uma concepção que vê no asseguramento de liberdades de ação sub­
jetivas iguais algo dependente da clareza que os envolvidos possam
ter em relação a uma interpretação adequada das carências em ques­
tão e em relação aos pontos de vista relevantes na comparação das
situações típicas de vida; e que o façam assumindo seu papel de cida­
dãos do Estado, ou seja, fazendo um uso público de suas liberdades
comunicativas, para então chegar a uma postura comum em face des­
sas questões, segundo procedimentos democráticos. Tudo isso, caso
queiramos evitar o paternalismo, não pode ser abandonado apenas
às decisões de um a justiça única (mesmo que a atuação dela se orien­
te segundo o Estado social). Essa concatenação interna (e recíproca)
entre autonom ia privada e pública, quando a entendemos correta­
mente, não é de forma alguma trivial, mas constitui, sim, o âmago
normativo do paradigma procedimentalista.
Sobre (c): Gould pretendeu distinguir entre “equality”, no sentido
da igualdade abstrata de direitos, e “equity”, no sentido de uma igual­
dade da aplicação dos direitos referida a casos concretos. Essa questão
terminológica não teria maior interesse caso não estivesse vinculada à
crítica ao “formalismo” de um a concepção de direito “liberal” (em sen­
tido pejorativo). Segundo a concepção de Gould, a teoria do discurso
de aplicação (que devo a Klaus Günther) está condenada a perm ane­
cer presa a uma concepção abstrata de igualdade de direitos (equality)
e a não conseguir cum prir a idéia da igualdade de conteúdos jurídicos
(equity), já que ela separa drasticamente a fundamentação e a aplica­
ção das normas: “The meaning of a principie can only be determinated
in the light of its consequences and thus its ‘justifiability’and ‘appropria-
teness’ are always intermingled”. Em face disso, Günther remeteu ao
papel lógico-argumentativo diverso que os casos concretos assumem
em discursos de fundamentação e discursos de aplicação.

378 A INCLUSÃO DO OUTRO


Em discursos de fundamentação eles servem como exemplos pa­
dronizados hipoteticamente ponderados, com base nos quais são si­
muladas as possíveis conseqüências de um seguimento geral das nor­
mas; no discurso de aplicação são os casos sérios faticamente ocorri­
dos que se submetem à decisão, mediante a consideração de sua
concreção plena. Ao passo que lá se põe à prova uma possibilidade de
generalização de uma práxis, consideradas as conseqüências que pos­
sam ser exemplificadas com base em casos individuais típicos e previ­
síveis, o que se dá aqui é um a explicação sobre a norma que, dentre
todas as normas válidas, seja adequada a todas as características de
um caso conflituoso que ocorreu de fato. Com “equity” Gould enten­
de justamente esse tratamento eqüânime, concreto e talhado de acor­
do com a peculiaridade de um a situação dada. Contudo, o que o tra­
tamento jurídico eqüânime justamente não pode fazer é referir-se de
maneira exclusiva à complexa constelação dos que estão envolvidos
de forma imediata. Como membros do universo de jurisconsortes com
direitos iguais, estes últimos podem recorrer a que se os trate com igual­
dade; e essa referência a “todas as outras” normas assegura o conjunto
das normas fundamentadas que a comunidade jurídica constitui, ou
seja, as normas prima facie válidas. Por sua vez, essas regras só de­
sempenharão um papel constitutivo à medida que forem reconhecidas
afortiori como sendo válidas, justamente em um momento anterior à
ocorrência dos casos atuais; ou seja, elas precisam “subsistir” antes de
serem aplicadas a conflitos que estejam ocorrendo. Essa relação tam ­
bém se espelha nas formas de comunicação dos respectivos processos
consultivos ou decisórios - sejam eles legislativos ou judiciários. No
que respeita à fundamentação, todos os envolvidos (ainda que de forma
indireta, na maioria das vezes) devem participar de maneira equâ-
nime (isto é, sem privilégio ou discriminação); a aplicação das normas
aceitas como fundamentadas, por sua vez, é feita no caso em particular
com base na visão de um terceiro, que é imparcial, e que atua como
representante de todos, ainda que os envolvidos no conflito sejam
“ouvidos” sobre sua visão controversa do caso.
Gould parece não ver o problema central que precisa ser resolvido
nesses discursos: a solução de colisões normativas, ou seja, a decisão
racional entre candidatos prima facieválidos, que concorrem pela “ade­
quação” a um caso dado, por assim dizer. Mais que isso, Gould tem em
vista uma situação específica, que também tem sua importância: casos

A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 379
de tratamento social desigual que só podem ser resolvidos quando fo­
rem modificadas as relações de trabalho, formas de organização, estru­
turas familiares etc. implicitamente discriminadoras. Mas em geral isso
só é possível com a implementação de novos programas legais; esses
casos, portanto, dizem respeito em primeira linha ao legislador políti­
co e não à justiça. A canalização de propósitos de reforma para a socie­
dade por meio de tribunais superiores ativistas e esclarecidos no que
diz respeito às ciências sociais alça a práxis da Suprema Corte norte-
americana durante o New Deal à condição de um caso normal; ao lon­
go do tempo, porém, essa práxis conduziria a um paternalismo judiciá­
rio inconciliável com os princípios do Estado democrático de direito.
(2) Até aqui, m inha réplica segue as regras usuais do jogo argu-
mentativo científico, ou ao menos tenta agir dessa maneira: depara com
objeções, e na seqüência da reconstrução dessas objeções apresenta suas
respostas. Luhman, o verdadeiro filósofo, pratica outro estilo de refle­
xão; ele trata de perscrutar o todo com alguns comentários — cautelo­
sos só na aparência. Aqui se trata da apreciação artesanal do alcance e
sustentabilidade de um empreendimento, para além da vontade de es­
tar certo. De qualquer maneira, cada um de nós trilha seu caminho, e é
preciso ver onde se vai e quão longe se chega. No mais, tenho a sensa­
ção de que Luhmann — ao longo de uma discussão duradoura, com a
qual sempre aprendi — ainda não agiu com um grau tão alto de pron­
tidão hermenêutica, nem jamais deu tanto espaço ao princípio da ne­
gligência. Já que permanecer aberto e seguir adiante é próprio às dis­
cussões, deposito minha confiança nas continuações e limito-me aqui
a uns poucos comentários sobre algumas das observações.
Quod omnes tangit.. .51 — uma bela reminiscência, mas que não
é bem correta como se apresenta, já que a questão da participação inclu-
siva de todos os jurisconsortes no procedimento não se coloca nem em
relação a assuntos de herança, nem mesmo em desavenças jurídicas,
mas apenas com referência à legislação nacional de um Estado demo­
crático. Aqui ela é garantida pelos demais direitos de comunicação e
participação, entre outros pelo direito geral a eleições. No discurso de
aplicação institucionalizado sob a forma de tribunal, que de um modo
já conhecido limita a participação, assegura-se a referência à suposta

5 1 .0 texto de Luhmann foi publicado em alemão com esse título em: Rechts-
historisches Journal, 12, 1993, pp. 36-56.

380 A INCLUSÃO DO OUTRO


“concordância de todos” pelo fato de se ter de usar um direito vigente.
A validação dessas normas depende do procedimento democrático de
um poder legislativo apoiado sobre discursos de fundamentação e cu­
jas resoluções via de regra dizem respeito “a todos”. Com isso não pre­
tendo de maneira alguma “externalizar” um problema de jurisdição na
“direção da democracia política”, mas simplesmente trato do problema
de legitimação situando-o onde ele deve estar, de acordo com a auto-
compreensão das democracias ligadas ao Estado de direito. Na Alema­
nha, foi com essa concepção que o positivismo democrático da lei con­
seguiu se impor na República de Weimar (Kelsens entre outros, e ape­
nas de maneira póstuma), opondo-se a uma tradição jurídica marcada
pela monarquia constitucional. Mas isso provavelmente é apenas parte
do capítulo jurídico no livro da “nação adiada”.
É natural que toda essa escaramuça não chega sequer a tocar na
questão verdadeira, e levada muito a sério, sobre a maneira pela qual o
sistema de instituições pode lidar afinal com as idealizações inevitá­
veis, já instaladas no agir comunicativo; ou seja, com idealizações que
por elas mesmas já criam fatos sociais. Luhmann, como era de espe­
rar, põe o dedo na ferida de um a operação de destranscendentalização
que se volta à oposição kantiana entre o inteligível e o empírico,
veladamente ontológica, para então diluí-la em meio aos excedentes
de uma transcendência intramundana, desveladamente idealizadores.
Em seguida Luhman se afasta, deixando-nos nas mãos uma relação
tensa entre facticidade e validação. O que lhe interessa é sobretudo o
caráter das reivindicações de validação universal que tratam de supe­
rar o tempo (embora elas mesmas estejam historicamente situadas);
ou seja, interessa-lhe o sentido momentaneamente inverso dos acrés­
cimos de imputabilidade invariante e de uma identidade das signifi­
cações lexicais e sintáticas empreendidos ao longo do tempo. Ele é de
opinião que essas idealizações “paralisam o tempo” e sugere em vez
delas descrições que “diluam temporalmente” as idealizações. “Todas
as identidades (e enfatizo: todas!) são criadas por meio da avaliação
seletiva de complexos de eventos já decorridos e continuamente recons­
truídas em sua seletividade. É preciso não apenas pressupô-las, mas
também produzi-las.” Mas o que é a descrição correta?
Surpreendentemente, Luhmann, que do contrário reflete sobre
tudo, deixa de refletir sobre determinada classe de premissas: deduzir
a tensão entre facticidade e validação pendendo para o lado da factidade

A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 381
de seqüências observáveis (!) de acontecimentos construídos no tem­
po e no espaço só é trivial na aparência. Somente o nominalismo que
subjaz a essa formação conceituai voltará o olhar ao que há de peculiar
no tempo e na contingência; a partir do que é peculiar tem-se que ex­
plicar o geral como uma construção igualmente fugaz, já que nesse
universo teórico todas as distinções visam ao que é peculiar. Luhmann
pergunta pela unidade entre facticidade e validação e supõe a priori
que ela se produz por um a operação que de sua parte (a partir de ou­
tras perspectivas sistêmicas) pode ser observada como algo que de­
corre no tempo. Essa estratégia conceituai nominalista trai uma deci­
são que em Luhmann — assim como em Davidson ou Derrida — atua
enquanto cúmplice, como uma decisão prévia não-tematizada. Ao con­
trário do que pensa Luhmann, a teoria dos sistemas não deixou para
trás, em hipótese alguma, as alternativas conceituais realistas-nomi-
nalistas que nasceram da dissolução do paradigma ontológico. Pois esse
processo de dissolução teve continuidade com a irrupção de impulsos
contingenciais subseqüentes: do nominalismo medieval, passando pelo
empirismo clássico, até alcançar um segundo empirismo, historica­
mente aplicado, e que hoje se manifesta sob muitos disfarces, mas sem­
pre com a mesma operação de singularização. Esse nominalismo recen-
tíssimo é uma resposta à irrupção do pensamento histórico, que se ini­
cia no século XVIII, quando se dilui não apenas a natureza observada
no fluxo contingente dos acontecimentos, mas também a cultura no
rum or das ocorrências comunicativas ou na vertigem dos significantes
— cultura que, embora elucidada a partir da perspectiva do partici­
pante, vê-se reduzida a uma segunda natureza, por meio do estranha­
mento. O fato de as filosofias surgidas sob a égide da pós-m odernida-
de se abandonarem de maneira inconsciente ao turbilhão das figuras de
pensamento nominalistas integra claramente o delineamento das mar­
cas de uma modernidade que sempre deveu suas conquistas de liber­
dade, como ainda agora, ao pathos antiplatônico.
Essa característica, porém, de reduzir o geral ao particular ali­
mentou-se cada vez de um pressuposto paradoxal próprio ao que é
geral. Isso tem início no século XIII (o mais tardar), com o apego in­
consistente dos nominalistas a uma determinidade de coisas singula­
res que são-em-si. Se a subdivisão conceituai do m undo em gêneros e
espécies deve ser uma obra subjetiva empreendida pelo espírito hu­
mano, que opera com signos, a fim de elaborar suas impressões a par­

382 A INCLUSÃO DO OUTRO


tir de coisas individuais e chegar a um saber sobre as coisas, o trabalho
abstrativo não pode simplesmente ocorrer de maneira arbitrária, mas
tem de conservar para si um fundamentum in re, de modo que as com­
parações feitas pelo sujeito partam de critérios que se mantenham em
relação com as próprias coisas. Essa inconsistência deu motivo à in­
vestigação epistemológica da atividade construtiva de um intelecto que
não continuasse sendo imitativo por muito tempo, mas sim que pro­
cedesse de maneira inquisitiva e que fizesse perguntas à natureza ao se
aproximar dela — eis aí a situação de partida do empirismo e da filo­
sofia transcendental. Da reviravolta lingüística provinda dessa revira­
volta mentalista, no momento em que ela se vinculou à filosofia trans­
cendental, surgiu então um empirismo inteligente, ligado a universos
semânticos, e que continua não dando conta da natureza paradoxal
de sua tentativa nominalista de singularizar também as generalidades
simbólicas. Quando Luhmann enfatiza que “todas as identidades...
são criadas”, ele faz uso de um a generalização que só se pode reduzir
inteiramente à ocorrência do processo de generalização caso se exija
do sistema de referências (da ciência ou da pessoa) uma autoconsti-
tuição de generalidades que só pode ser descrita de maneira parado­
xal. Antes, porém, que se faça dessa miséria uma virtude, em uma ati­
tude triunfante, talvez a lembrança histórico-filosófica possa levar as
pessoas a fazer uma pausa e ponderar o preço do a priori nominalista
em comparação com um enfoque alternativo.
Quando alguém se livra da obsessão por um a objetivação exclu­
sivamente observadora e se envolve com a perspectiva interna de uma
abordagem compreensiva em face dos mundos simbolicamente es­
truturados, ao qual quem teoriza necessariamente pertence de uma
maneira pré-teorética, aí sim é que se pode escapar desapaixonada-
mente da ascendência nominalista. Dessa posição é que se vê que as
relações entre o geral, o específico e o particular (!) já estão instaladas
desde a origem, por assim dizer, nas comunicações subjetivamente
constituídas das nossas formas de vida simbolicamente estruturadas,
e que elas não precisam de nenhuma dissolução assimétrica — da mes­
ma forma que a tensão entre facticidade e validação também não pre­
cisa de um abrandamento assimétrico da tensão, seja em uma direção
(nominalista), seja em outra (platônica). No m undo em que nada se
recebe senão em troca de um pagamento também há que se pagar um
preço por isso. Esse preço consiste no desacoplamento temporário entre

A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 383
os enunciados que podem ser feitos a partir de uma perspectiva parti­
cipativa (testável) e os enunciados sobre o que só se pode m ostrar ao
observador no âmbito de uma estratégia conceituai nominalista: por
exemplo, enunciados objetivos sobre como as formas culturais de
vida surgiram na história natural, sobre qual a aparência das constan­
tes da natureza sob as quais elas podem se reproduzir sozinhas etc.
Mas por que razão não se deveria deixar isso ao encargo de outras
ciências? É preciso sonhar mais um a vez o sonho empirista da ciência
nomológica única, embalado agora em um tule certamente mais are­
jado e festivo da poiesis distinguidora, própria à teoria dos sistemas?
Sob as condições do pensamento pós-metafisico, sequer considero que
haja um “preço” a pagar pela renúncia a uma teoria universal.
Quando se cumpre a mudança de perspectiva sugerida, no entan­
to, desaparece a coerção sistemática que obriga a propor as perguntas
que se impõem a Luhmann: a pergunta pela natureza local de todas as
argumentações, a pergunta pelos efeitos excludentes de todos os discur­
sos, a pergunta pelos teores normativos do conceito de racionalidade
etc. É certo, como já revela a forma gerundiva, que idealizações são ope­
rações que cumprimos aqui e agora, mas as quais temos de cumprir de
maneira a não danificar o sentido delas que seja capaz de transcender o
contexto. É certo, também, que o discurso civil de liberdade e igualdade
se constitui segundo regras próprias; mas de maneira que ele, enquanto
discurso universalista, submete-se como tal a uma crítica a partir de den­
tro — já que é justamente sua capacidade de autotransformação que o
distingue de outros discursos, como os descritos por Foucault. A raciona­
lidade comunicativa que desvenda o segredo do surgimento da legi­
timidade a partir da legalidade não pode “substituir” o dominador, já
que o lugar deste último na democracia deve permanecer desocupado,
e não apenas em sentido literal. A contribuição paradoxal do direito (e
paradoxal somente à primeira vista) consiste sim em que ele subjuga o
potencial conflituoso das liberdades subjetivas aí desencadeadas, por
meio de normas que garantem a igualdade e que só podem exercer coer­
ção enquanto forem reconhecidas como legítimas no terreno instável
das liberdades comunicativas que aí se desencadeiam.

384 A INCLUSÃO DO OUTRO


Fontes dos capítulos

(1) inédito
(2) Reconciliation through the Public Use of Reason: Remarks on John
Rawls’ Political Liberalism, The Journal of Philosophy, XCII, mar. 1995,
pp. 109-131
(3) inédito
(4) versão ampliada de: The European Nation State — Its Achievements
and Limitations, Ratio Juris, 9, jun. 1996, pp. 125-137
(5) inédito
(6) Remarks on Dieter Grimrrís‘Does Europe Need a Constitution?’, Euro­
pean Law Journal, 1, nov. 1995, pp. 303-307
(7) in: Kritische Justiz, 28,1995, pp. 293-319
(8) in: Ch. Taylor et alii. Multikulturalismus und die Politik der Anerken-
nung [Multiculturalismo e a política do reconhecimento], f/m, 1993.
pp. 147-196
(9) versão ampliada de uma colaboração para a “Festschrift” em homena­
gem a Iring Fetscher: H. Münkler (org.). Die Chancen derPreiheit. Mu­
nique, 1992, pp. 11-24
(10) in: U. Preufi (org.). Zum Begrijf der Verfassung [Sobre o conceito de
constituição], f/m, 1994, pp. 83-94.
(11) em inglês in: Cardozo Law Review, vol. 17, mar. 1996, Part II, pp. 1477-
1558

385
.J l .
índice de nomes

A bendroth, Wolfgang 366 Dahl, R.A . 160,164,165


Alexy, R obert 60, 354, 373, 380 Daniels, N. 69
Alter, P. 247 D avidson, D onald 5 0 ,5 1 ,3 4 8
A nderson 127 D errida, Jacques 347, 364, 384
Apel, K arl-O tto 60, 344 D oppelt, G. 171
Archibugi, D. 193,210 D um m ett, M ichael 343
A rendt, H annah 270,279 D w orkin, Ronald 40, 42, 70, 233, 244,
Aristóteles 15,20,291 260

Bade, K. J. 264 Elster, Jon 26


Baier, A. C. 24 Em m er, P. C. 261
Baynes, K. 60, 63 Engels, Friedrich 366
Bedau, H .A . 216 Enzensberger, H ans M agnus 222, 223
Beiner, R. 245
Benhabib, Sheyla 60, 71, 86, 239 Fichte, Johann G ottlieb 197
Berding, H elm ut 148,152 Flick, Friedrich 219
Berm an, P. 241 Forst, Rainer 54, 60, 63, 89, 108, 111,
Bernstein, Richard F. 300, 301 157,218
Bismarck, O tto von 122, 258,266 Foucault, Michel 308,349, 384
Bluntschli, Johann C aspar 133,153 Frankenberg, G ü n th er 376-378
Bõckenfõrde, E rnst Wolfgang 151 Fraser, Nancy 237
Bodin, Jean 282 Frederico II 196
Brubaker, Richard 258 Frowein, J. A. 163,174
Brumlik, M icha 198
B runkhorst, H auke 198,199, 301 G adam er, H ans-G eorg 301
Bryde, B. O. 156 G ehlen, A rnold 223
G ibbard, Allan 27-31,36
Caracalla 143 G iddens, A nthony 138,195
Carens, J. H. 259 G offm an, Erving 356
Carter, Jimmy 210 G ould, M ark 300, 373-379
Cavour, C am illo Benso, G raf von 122 G reenw ood, Ch. 171,202,205
C ohn-B endit, D aniel 251,259 Grice 349
C onnor, W. 148 G rim m , D íeter 177-181,183
Cooper, R. 207 G uéhenno, J. M. 143, 144
Czempiel, Ernst O tto 144,198,209,223 G ünther, Klaus 52, 226,227, 355, 357

387
G urland, A. R. L. 367 Kant, Im m anuel 1 5 ,2 3 ,2 8 ,4 3 ,4 5 ,4 6 ,
G utm an n ,A m y 232,241 6 1 ,8 3 ,8 6 ,9 2 ,9 3 ,9 5 , 104, 118, 126,
129, 159, 160, 185-197, 199, 202-
H aberm as, Jürgen 16,19,20,47,49,50, 204, 206, 208, 211, 214, 216, 217,
52, 54, 59, 60, 71,72, 79, 8 1 ,9 1 ,9 4 , 222,223,227,232,286,287,291,373
106, 117, 137, 152, 156, 164, 197, Kelsen, H ans 211
199, 202, 211, 225, 230, 235, 241, Kesting, H anno 366
253, 254, 259, 267, 278, 300, 301, Kierkegaard, Sõren 15
306, 308, 310, 314, 319-321, 323, Kirchheimer, O tto 366
345,354-356,361,366,367,373,375 Knieper, R. 139,195
Hare, Richard M. 14 Kõnig, S. 214,216
H art, H. L. A. 13,69 Korsgaard, Chr. M. 46
Hauser, L. 16 Koselleck, R einhart 366
H eath, J. 50 Kymlicka, W. 249
Hegel, G. W. F. 54, 71, 118, 122, 143,
157, 194,208,220, 233,319 Lafont, C ristina 353
Heidegger, M artin 41 Larmore, Charles 117, 365
Held, D. 193,210 Leggewie, Claus 148
Heller, H erm ann 173 Lênin, W. I. 154,223
H insch, W ilfried 69 Lenk, H ans 21
Hitler, A dolf 200 Lenoble, Jacques 300,345-349,351 -353
Hobbes, T hom m as 92,95,101,106,130, LePre, E. 51
149,163,214,221 Lepsius, M. Rainer 122,148
Hõffe, O tfried 213,342 Lindholm , T. 208
H onneth, Axel 54 ,1 9 8 ,2 2 2 ,2 3 0 , 308 Locke, John 2 1 3,214,286,291
H orkheim er, Max 22, 223 Lübbe, H erm an n 147,152,174
H oward, Dick 300, 372, 373 L uhm ann, Niklas 380
Hoy, D. 308 Lukács, G eorg 194
Huber, W. 204 Lyotard, François 358, 364
H um boldt, W ilhelm von 54
H um e, D avid 23 M aclntyre, Alasdair 305, 323
Hurley, S. 213 Mackie, J. L. 20,25
Husserl, E dm und 353 M artens, Ekkehard 22
M arx, Karl 124
Ipsen, H .R 173 M aus, Ingeborg 154,157,159
Isensee, ]. 201,212 M cCarthy, T hom as A. 89, 308, 322
McDowell, J. 2 0 ,2 1 ,3 7 ,3 8
Jacobson, A rthur J. 336 M ead, George H erbert 42, 54, 71,96
Jahn, B. 169 M ichelm an, Frank I. 269,271,272,274,
Jellinek 82 275,277
Joas.H . 308 Milo, R. 98
Joppke, Ch. 175 Minow, M artha 335
M otzkin, Gabriel 300, 372, 373
Kaa, D. J. van de 256 Müller, J. P. 367
Kambartel, Friedrich 325 M ünkler, H erfried 126

388 A INCLUSÃO DO OUTRO


Murswiek, D. 173 Sahlins, P. 149
M ussolini, Benito 223 Scanlon, T. M. 65, 74, 95,96
Scelle, Georges 203
N apoleão 265 Schm id, Th. 251,259
Nass, K. 171 Schm idt, Th. M. 16
N eum ann, Franz 366 Schm itt, Carl 152-157, 161, 168, 169,
N iquet, Marcei 58 173, 181, 186, 203, 205, 212, 213,
N ordhofen, Eckhard 16 218-226
Nye, J. S. 196 Schnàdelbach, H erbert 22
Schulze, H. 127, 128, 133, 149, 193
0 ’Neill, O n o ra 68 Schwardtlãnder, J. 213
Offe, Claus 309 Schwarz, G. 209
O tt, K onrad 58 Searle, John 241
Seel, M artin 3 3 ,3 4 ,4 1 ,4 2 ,5 5
Parsons, Talcott 376 Seifert, Jürgen 367
Peirce, C harles S. 51 Sen, A. K. 65,95
Peters, B ernhard 329, 330 Senghaas, D ieter 171,195, 208, 223
Platão 20 Senghass, Eva 208
Popper, Sir Karl 14 Shue, H enry 216,370
Power, M ichael 196 Shue, St. 213
Prantl, H eribert 263 Sima, B. 163
Preufi, U lrich K. 300, 365-368,385 St. Pierre, Abbé de 185
Puhle, H ans 166 Stevenson 14
P utnam , H ilary 343 Strauss, Leo 336
Strawson, P. F. 13
Q uaritsch, H elm ut 205
Q uine, W illard Van O rm an 325, 349 Taylor, Charles 9,39,164,231-234,241,
242,244, 250,255,256, 272
Rasmussen, D avid 300, 353, 354 Teubner, G u n th er 300, 353, 358, 359,
Rawls, John 8, 36, 37, 52, 61-101, 103- 361-365
114, 116-118, 231, 233, 253, 262, T ugendhat, E rnst 2 2 ,2 6 ,2 7 ,3 2 -3 6 ,4 6 ,
267,317 55,59
Raz, J. 167
Regan, T. 216 Verdross, A. 163
Rehg, W illiam R. 60, 72, 338 Vico, G iovanni Battista 325
R hode, D. L. 236 Voltaire 196
Riedel, E. 204
Riedel, M anfred 21 W aldron 25
Rorty, Richard 51, 74, 115, 301 W allerstein, Im m anuel 139
Rosenfeld, Michel 300, 326, 327, 330, Walzer, M ichael 169-171,233,244,258
332-336 Weber, M ax 85, 124, 149
Rousseau, J.-J. 43,83,129,159,213,282, Weer, D. van de 216
286, 291 Wehler, H ans-U lrich 147, 152
Rushdie, Salm an 252 W eischedel, W ilhelm 43,126

Í n d ic e d e n o m e s 389
Weizsácker, Carl Friedrich von 144 W ittgenstein, Ludwig 38,70
Wellmer, Albrecht 51,198,301,343,348 Wolf, Susan 250
W iegand, E. 256 W olfrum, Rüdiger 168, 204
Williams, B ernard 37, 4 0 ,6 5 ,9 5 W olin, Richard 41
W ilson, W oodrow 154,199 W right, C rispin 51, 343
W ingert, Lutz 13, 19, 51, 54, 89, 102,
118,323 Young, I. M. 67

390 A INCLUSÃO DO OUTRO


M fpSes L o y n la
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