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A INCLUSÃO DO O U T I O
estudos de teoria política
Tradução:
George Sperber
Paulo Astor Soethe [UFPR]
Edições Loyola
T ítulo original:
Die Einbeziehung des Anderen — Studien zur politischen Theorie
© Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main 1996
Zweite Auflage 1997
Alie Rechte vorbehalten
ISBN: 3-518-58233-X
E dição B rasileira
Direção
Fidel Garcia Rodríguez, SJ
Edição de texto
Marcos Marcionilo
Revisão
Albertina Pereira Leite Piva
Diagramação
Ronaldo Hideo Inoue
Edições Loyola
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ISBN: 85-15-02438-1
Prefácio........................................................................................ ... 7
A id é ia k a n tia n a d e p a z p e rp é tu a
— à d is tâ n c ia h is tó ric a d e 200 a n o s ........................................................ 185
F o n te s d o s c a p ít u lo s ....................................................................................... 385
ín d ic e d e n o m e s ............................................................................................... 387
Prefácio
7
uma relação de deferência mútua. Essa comunidade projetada de modo
construtivo não é um coletivo que obriga seus membros uniformiza
dos à afirmação da índole própria de cada um. Inclusão não significa
aqui confinamento dentro do próprio e fechamento diante do alheio.
Antes, a “inclusão do outro” significa que as fronteiras da comunidade
estão abertas a todos — também e justamente àqueles que são estra
nhos um ao outro — e querem continuar sendo estranhos.
A segunda parte contém uma discussão com John Rawls, para a
qual fui convidado pela redação e pelo editor do Journal ofPhilosophy.
Nela, procuro demonstrar que a teoria do discurso é mais apropriada
para formular, em termos de conceitos, as intuições morais que nor
teiam Rawls e que me norteiam. É claro que minha réplica também
serve ao intuito de esclarecer as diferenças entre o liberalismo político
e um republicanismo kantiano tal como eu o entendo.
A terceira parte pretende contribuir para o esclarecimento de uma
controvérsia que voltou a surgir na Alemanha depois da reunificação.
Continuo a fiar a linha que iniciei outrora num ensaio sobre “Cidada
nia e Identidade Nacional”1. Do conceito, inspirado pelo romantis
mo, da nação como uma comunidade de cultura e de destino, etnica-
mente enraizada, que pode reivindicar uma existência própria como
Estado, alimentam-se até hoje muitas convicções e opiniões proble
máticas: o apelo a um pretenso direito à autodeterminação nacional,
o rechaço simétrico do multiculturalismo e da política de direitos hu
manos, assim como a desconfiança diante da transferência de direitos
de soberania a instituições supranacionais. Os apologistas da nação-
povo deixam de perceber que são justamente as notáveis conquistas
históricas do estado nacional democrático e seus princípios constitu
cionais republicanos os que podem dar-nos lições a respeito de como
deveriamos lidar com os problemas da atualidade, decorrentes da pas
sagem inevitável a formas de socialização pós-nacionais.
A quarta parte ocupa-se da realização dos direitos humanos em
nível global e nacional. O bicentenário do texto sobre a Paz perpétua
dá-nos motivo para um a revisão do conceito kantiano dos direitos do
cidadão do mundo, à luz de nossa experiência histórica. Os Estados-
sujeitos, outrora soberanos, que perderam há muito a pressuposição
de inocência de que partia o direito constitucional, não podem mais
8 A INCLUSÃO DO OUTRO
invocar o princípio da não-intromissão nos assuntos internos. O de
safio do multiculturalismo comporta-se de forma a especular em face
da questão das intervenções por motivos humanitários. Também aqui
há minorias que procuram proteger-se de seu próprio governo. Essa
discriminação assume, porém, no contexto de um Estado de direito
legítimo em seu todo, a forma mais sutil do poder pela maioria, em
que uma cultura de maioria se funde à cultura política geral. Contudo,
em oposição à proposta comunitarista de Charles Taylor, sustento que
uma “política do reconhecimento” — à qual cabe garantir, com igual
dade de direitos, a coexistência de diferentes subculturas e formas de
vida dentro de uma só comunidade republicana — tem de cumprir
seu papel sem direitos coletivos nem garantias de sobrevivência.
A quinta parte lembra pressupostos básicos da teoria do discurso
a respeito da concepção de democracia e de Estado de direito. Esse modo
de ver a política deliberativa permite sobretudo uma maior precisão
da igualdade de origem da soberania popular e dos direitos humanos.
Já em setembro de 1992, a Cardozo School of Law de New York
organizou uma conferência científica, por ocasião da publicação, próxi
ma então, de Faktizitãt und Geltung. O posfácio contém, por extenso,
a minha réplica aos reparos feitos naquela oportunidade, pelos quais
sou grato.
J. H.
Starnberg, janeiro de 1996
P refácio 9
1
Uma visão genealógica do
teor cognitivo da morar
O
Frases ou manifestações morais têm, quando podem
ser fundamentadas, um teor cognitivo. Portanto, para termos
clareza quanto ao possível teor cognitivo da moral, temos de
verificar o que significa “fundamentar moralmente” alguma
coisa. Ao mesmo tempo, devemos diferenciar entre, por um
lado, o sentido dessa questão quanto à teoria da moral, ou
seja, se manifestações morais expressam algum saber e como
elas podem ser eventualmente fundamentadas, e, por outro
lado, a questão fenomenológica a respeito de qual teor cogni
tivo os próprios participantes desses conflitos vêem em suas
manifestações morais. De início, falo em “fundamentação
moral” de maneira descritiva, tendo em vista a prática rudi
mentar de fundamentação que tem seu lugar nas interações
cotidianas do m undo vivido.
Aqui nós pronunciamos frases que têm o sentido de exi
gir dos outros determinado comportam ento (ou seja, de
reclamar o cumprimento de um a obrigação), de fixar um a *
11
forma de agir para nós mesmos (ou seja, de assumirmos uma obri
gação), de admoestar outros ou nós mesmos, de reconhecer erros, de
apresentar desculpas, de oferecer indenizações etc. Nesse primeiro ní
vel, as declarações morais servem para coordenar os atos de diversos
atores de um modo obrigatório. É claro que essa “obrigação” pressupõe
o reconhecimento intersubjetivo de normas morais ou de práticas
habituais, que fixam para uma comunidade, de modo convincente, as
obrigações dos atores, assim como aquilo que cada um deles pode es
perar do outro. “De modo convincente” quer dizer que, toda vez que a
coordenação das ações fracassa no primeiro nível, os membros de uma
comunidade moral invocam essas normas e apresentam-nas como
“motivos” presumivelmente convincentes para justificar suas reivin
dicações e críticas. As manifestações morais trazem consigo um poten
cial de motivos que pode ser atualizado a cada disputa moral.
Regras morais operam fazendo referência a si mesmas. Sua ca
pacidade de coordenar as ações comprova-se em dois níveis de inte
ração, acoplados de modo retroativo entre si. No primeiro nível, elas
dirigem a ação social de forma imediata, na medida em que compro
metem a vontade dos atores e orientam-na de modo determinado.
No segundo nível, elas regulam os posicionamentos críticos em caso
de conflito. Uma moral não diz apenas como os membros da comu
nidade devem se comportar; ela simultaneamente coloca motivos para
dirimir consensualmente os respectivos conflitos de ação. Fazem par
te do jogo da linguagem moral as discussões, as quais, do ponto de
vista dos participantes, podem ser resolvidas convincentemente com
ajuda de um potencial de fundamentações igualmente acessível a to
dos. Devido a essa relação íntima com a branda força de convenci
mento inerente aos motivos, os deveres morais recomendam-se, do
ponto de vista sociológico, como alternativa a outras espécies de solu
ção de conflitos, não orientadas pelo acordo mútuo. Dito de outra
forma, se a moral carecesse de um teor cognitivo crível, ela não seria
superior às formas mais dispendiosas de coordenação da ação (como
o uso direto da violência ou a influência sobre a ameaça de sanções ou
a promessa de recompensas).
Quando dirigimos o olhar para as discussões morais, temos de
incluir as reações provindas dos sentimentos na classe das manifesta
ções morais. O conceito central do dever já não se refere apenas ao teor
dos mandamentos morais, mas também ao caráter peculiar da valida
12 A INCLUSÃO DO OUTRO
ção do dever ser, que se reflete também no sentimento de assumir uma
obrigação. Posicionamentos críticos e autocríticos diante de infrações
manifestam-se em atitudes dos sentimentos; do ponto de vista de ter
ceiros, como repulsa, indignação e desprezo; do ponto de vista do atin
gido diante de seu próximo, como sentimento de humilhação ou de
ressentimento; do ponto de vista da primeira pessoa, como vergonha e
culpa1. A isso correspondem, enquanto reações afirmativas dos senti
mentos, a admiração, a lealdade, a gratidão etc. Como esses sentimen
tos que assumem posição exprimem implicitamente juízos, a eles cor
respondem valorações. Julgamos ações e intenções como “boas” ou
“más”, enquanto o vocabulário das virtudes se refere a características
das pessoas que agem. Também nesses sentimentos e valorações m o
rais se revela a pretensão de que os juízos morais possam ser funda
mentados. Pois eles diferenciam-se de outros sentimentos e valora
ções pelo fato de estar entretecidos com deveres racionalmente exigí-
veis. Nós justamente não entendemos essas manifestações como ex
pressão de sensações e preferências meramente subjetivas.
A partir do fato de haver normas morais “em vigor” para os inte
grantes de uma comunidade, não segue necessariamente que as mes
mas tenham, consideradas em si, um conteúdo cognitivo. Um obser
vador sociológico pode descrever um jogo de linguagem moral como
um fato social e pode até mesmo explicar por que os integrantes estão
“convictos” de suas regras morais, sem ele mesmo estar em condições
de acompanhar o raciocínio que explica a plausibilidade desses m oti
vos e interpretações12. Um filósofo não pode dar-se por satisfeito com
isso. Ele aprofundará a fenomenologia das respectivas disputas m o
rais para descobrir o que os participantes fazem quando (acreditam)
justificar algo moralmente3. É claro que “perscrutar” significa algo dife
14 A INCLUSÃO DO OUTRO
atribui às valorações “fortes” um status epistêmico. A consciência re
flexiva daquilo que, considerado como um todo, é “bom” para mim
(ou para nós) ou que é “determinante” para o meu (ou o nosso) modo
consciente de levar a vida torna possível (na tradição de Aristóteles ou
de Kierkegaard) uma espécie de acesso cognitivo às orientações de valor.
Aquilo que, em cada caso, é valioso ou autêntico impõe-se-nos, em
certa medida, e diferencia-se das meras preferências por meio de uma
qualidade obrigatória, que remete para além da subjetividade das ne
cessidades e das preferências. Contudo, a compreensão intuitiva de
justiça é revista. A partir da perspectiva de uma concepção própria e
individual do bem, a justiça adaptada às relações interpessoais apre
senta-se como apenas um valor (seja qual for sua forma de pronun-
ciação), junto a outros valores, e não como escala de medida para jul
gamentos imparciais, independente dos contextos.
O cognitivismo severo quer, ainda, fazer justiça à reivindicação
categórica de validade dos deveres morais. Ele tenta reconstruir o con
teúdo cognitivo do jogo moral de linguagem em toda a sua amplidão.
Diferentemente do neo-aristotelismo, na tradição kantiana não se trata
do esclarecimento de uma práxis de fundamentação moral, que se m o
vimenta dentro do horizonte de normas reconhecidas e incontestes,
mas da fundamentação de um ponto de vista moral, a partir do qual
tais normas podem ser julgadas em si de forma imparcial. Aqui a teo
ria moral fundamenta a possibilidade da fundamentação, na medida
em que reconstrói o ponto de vista que os próprios membros das so
ciedades pós-tradicionais assumem intuitivamente, quando, diante de
normas morais básicas que se tornaram problemáticas, só podem re
correr a motivos sensatos. Porém, diferentemente das formas de jogo
empíricas do contratualismo, esses motivos não são concebidos como
motivos relativos aos atores, de modo que o núcleo epistêmico da va
lidade do dever ser permanece intato.
Em primeiro lugar, caracterizarei a situação inicial, na qual a fun
damentação religiosa para a validade da moral é desvalorizada (II).
Esse é o pano de fundo para um questionamento genealógico, diante
do qual eu gostaria de examinar as duas variantes do empirismo clás
sico (III), duas interessantes tentativas de renovação do programa de
explicação empirista (IV-V) e as duas tradições que remontam a Aris
tóteles (VI) e a Kant (VII). Tudo isso serve para preparar as duas ques
tões sistemáticas, a respeito de quais intuições morais é possível re
O
As tentativas de explicação do “ponto de vista moral” lembram
que os mandamentos morais, após o desmoronamento de uma visão
de m undo “católica”, obrigatória para todos, e com a passagem para as
sociedades de cosmovisão pluralista, não mais podem ser justificados
publicamente segundo um ponto de vista divino transcendente. Se
gundo esse ponto de vista, para além do mundo, era possível objetivar
o m undo como um todo. O “ponto de vista moral” deve reconstruir
essa perspectiva intramundialmente, quer dizer, deve recuperá-la den
tro dos limites de nosso m undo compartilhado intersubjetivamente,
sem perder a possibilidade do distanciamento do m undo como um
todo, nem a da universalidade de um olhar que abarca o mundo todo.
Contudo, junto com essa mudança de perspectivas no sentido de uma
“transcendência de dentro”4, surgem as seguintes questões: primeiro,
se é possível, a partir da liberdade subjetiva e da razão prática do homem
abandonado por Deus, fundamentar a força obrigatória específica das
normas e dos valores em geral; e, segundo, como se modifica com
isso, se possível for, a peculiar autoridade do dever ser. Nas sociedades
ocidentais profanas, as intuições morais cotidianas ainda estão marca
das pela substância normativa das tradições religiosas por assim dizer
decapitadas, declaradas juridicamente como questão privada — sobre
tudo pelos conteúdos da moral da justiça judaica, do Antigo Testa
mento, e da ética do amor cristão, do Novo Testamento. Esses elemen
tos são transmitidos por meio dos processos de socialização, embora
freqüentemente de forma implícita ou sob outras denominações. Uma
filosofia moral que se entenda como reconstrução da consciência moral
cotidiana coloca-se com isso diante do desafio de examinar até que
ponto essa substância pode ser justificada racionalmente.
Os ensinamentos proféticos transmitidos pela via bíblica tinham
à sua disposição interpretações e motivos que conferiram às normas
16 A INCLUSÃO DO OUTRO
morais uma força de convencimento pública. Eles explicavam por que
os mandamentos de Deus não são ordens cegas, mas podem requerer
validação própria, em um sentido cognitivo. Se mesmo sob as condi
ções de vida m oderna não há um equivalente funcional para a moral
como ela mesma, e se o jogo de linguagem moral não pode ser sim
plesmente substituído por um controle qualquer do comportamento
— percebido como tal — , então o sentido cognitivo de validade com
provado fenomenologicamente leva-nos a perguntar se a força per-
suasiva de normas e valores já aceitos é algo assim como uma aparên
cia transcendental ou se ela pode ser justificada também sob condi
ções pós-metafísicas. A filosofia moral não precisa apresentar ela pró
pria os fundamentos e as interpretações que, nas sociedades seculari-
zadas, ocupam o lugar dos fundamentos e das interpretações religio
sas desvalorizadas — ao menos publicamente. Contudo, ela precisaria
designar o gênero de fundamentos e interpretações que poderíam as
segurar ao jogo de linguagem moral um a força de convicção suficien
te, também sem uma retaguarda religiosa. Tendo em vista esse ques
tionamento genealógico, gostaria de (1) lembrar a base de validação
monoteísta de nossos mandamentos morais e (2) determinar mais
precisamente o desafio proveniente da moderna situação de partida.
(1) A Bíblia origina os mandamentos morais na revelação da pa
lavra de Deus. Esses mandamentos devem ser objeto de obediência
imediata, pois estão munidos da autoridade de um Deus onipotente.
Nessa medida, a validade de seu dever ser estaria munida apenas da
qualidade de um “dever”, na qual se reflete o poder ilimitado de um
soberano. Deus pode obrigar à obediência. Essa interpretação volunta-
rista, porém, ainda não confere à norm a um sentido cognitivo. Esse,
ela o ganha apenas pelo fato de que os mandamentos morais são inter
pretados como manifestações da vontade de um Deus onisciente e ab
solutamente justo e bondoso. Os mandamentos não surgem do arbítrio
de um todo-poderoso, mas são manifestações da vontade de um sábio
deus criador, que é também um deus salvador justo e bondoso. A par
tir das duas dimensões da ordem da criação e da história da salvação
podem ser obtidos fundamentos ontoteológicos e soteriológicos para
o fato de os mandamentos divinos serem dignos de aceitação.
A justificação ontoteológica recorre a uma instalação do m undo
devido à sábia legislação do deus criador. Ela confere ao homem e à
comunidade humana um status destacado em meio à criação e, com
18 A INCLUSÃO DO OUTRO
pode se fazer representar por outro diante de Deus. Essa estrutura co-
municacional marca o relacionamento moral — mediado por Deus —
com o próximo, sob os pontos de vista da solidariedade e da justiça (en
tendida apenas num sentido mais estrito). Enquanto membro da comu
nidade universal dos fiéis, estou solidariamente unido ao outro, como
companheiro, como “um dos nossos”; como indivíduo insubstituível
eu devo ao outro o mesmo respeito, como “uma entre todas” as pessoas,
que merecem um tratamento justo enquanto indivíduos inconfundí
veis. A “solidariedade” baseada na qualidade de membro lembra o liame
social que une a todos: um por todos. O igualitarismo implacável da
“justiça” exige, pelo contrário, sensibilidade para com as diferenças que
distinguem um indivíduo do outro. Cada um exige do outro o respeito
por sua alteridade5. A tradição judeu-cristã considera a solidariedade
e a justiça como dois aspectos de uma mesma questão: elas permitem
ver a mesma estrutura comunicacional de dois lados diferentes.
(2) Com a passagem para o pluralismo ideológico nas socieda
des modernas, a religião e o ethos nela enraizado se decompõem en
quanto fundamento público de validação de uma moral partilhada
por todos. Em todo caso, a validação de regras morais obrigatórias
para todos não pode mais ser explicada com fundamentos e interpre
tações que pressupõem a existência e o papel de um deus transcen
dental, criador e salvador. Com isso, suprime-se por um lado a au
tenticação ontoteológica de leis morais objetivamente racionais e, por
outro lado, a ligação soteriológica de sua justa aplicação com bens
salvacionistas objetivamente almejáveis. Aliás, a desvalorização de
conceitos metafísicos básicos (e da correspondente categoria de ex
plicações) também está relacionada com um deslocamento da auto
ridade epistêmica, que passa das doutrinas religiosas às modernas
ciências empíricas. Com os conceitos essenciais da metafísica dissol
ve-se a correlação interna das proposições assertivas com as correspon
dentes proposições expressivas, avaliatórias e normativas. Aquilo que
é “objetivamente razoável” só pode ser fundam entado na medida em
que o justo e o bom estão fundamentados no ente impregnado da
norma. Aquilo que é “objetivamente almejável” só pode ser funda
20 A INCLUSÃO DO OUTRO
— O utilitarismo, embora ofereça um princípio para fundamen
tar os julgamentos morais, não permite uma reconstrução apro
priada do sentido da normatividade por causa de sua orientação
pelo benefício total esperado de determinado modo de agir. O
utilitarismo falha sobretudo ao desconhecer o sentido individu
alista de uma moral do respeito igual devido a todos.
— O ceticismo fundamentado de forma metaética leva, como já
foi dito, a descrições revisionistas do jogo de linguagem moral
que perdem o contato com o sentido comum dos participantes.
Elas não podem explicar o que querem explicar: as práticas m o
rais do cotidiano, que desmoronariam, se os participantes negas
sem todo conteúdo cognitivo às suas disputas morais8.
— O funcionalismo moral não é tradicionalista no sentido em
que retorna a padrões de fundamentação pré-modernos. Ele in
voca a autoridade das tradições religiosas abaladas, mas o faz por
fundamentado, a cuja luz a razão prática aparece como um a disposição natural, que
pode reivindicar objetivamente a sua validade: “O ur Bildung actualizes some of the
potentialities we are bom with; we do not have to suppose it introduces a non-animal
ingredient into our constitution. And although the structure of the space o f reasons
cannot be reconstructed out o f facts about our involvement in the ‘realm of law’, it can
be the framework within which meaning comes into view only because our eyes can be
opened to it by Bildung, which is an element in the normal coming to maturity of the
kind of animais we are. Meaning is not a mysterious gift from outside nature” [“Nossa
Bildung [educação, formação] atualiza algumas das potencialidades com as quais nas
cemos; não temos que supor que ela introduza um ingrediente não animal em nossa
constituição. E embora a estrutura do espaço das razões não possa ser reconstruída a
partir dos fatos relativos a nosso envolvimento no ‘campo da lei’, pode ser a moldura
dentro da qual o significado salta à vista somente porque os nosso olhos podem ser
abertos a ela pela Bildung, a qual é um elemento no caminho normal para a idade
m adura no tipo de animal que nós somos. O significado não é um dom misterioso de
fora da natureza.” (88) McDowell não nega, de forma alguma, a pretensão metafísica
dessa concepção, que não posso discutir aqui em detalhe: “The position is a naturalism
of second nature, and 1 suggested that we can equally see it as a naturalized platonism.
The idea is that the dictates of reason are there anyway, wether or not one’s eyes are
opened to them; that is what happens in a proper upbringing” [“A posição é um n atu
ralismo de segunda natureza, e eu sugeri que tam bém podemos vé-la como um plato-
nismo naturalizado. A idéia é que os ditames da razão estão lá de qualquer modo,
estejam nossos olhos abertos para eles ou não. Isso é o que acontece num processo
apropriado de educação”] (91).
8. Cf. H. Lenk, “Kann die sprachanalytische Moralphilosophie neutral sein?”
[Pode a filosofia moral baseada na análise lingüística ser neutra?] in: M. Riedel (ed.),
Rehabilitierung derpraktischen Philosophie, vol. II, Freiburg 1974,405-422.
22 A INCLUSÃO DO OUTRO
suportem julgamentos ou opiniões, tal como o fazem as razões epis-
têmicas. Elas constituem motivos racionais para os atos, não para as
convicções. Claro que elas “afetam” a vontade apenas na medida em
que o sujeito atuante se apropria de determinada regra de ação. É
fundamentalmente nisso que reside a diferença entre os atos premedi
tados e os atos motivados espontaneamente. Também um “propósito”
é uma disposição; mas essa, à diferença da “tendência”, só se constitui
mediante a liberdade do arbítrio, a saber, na medida em que um ator
adota uma regra de ação. O ator age racionalmente quando o faz a par
tir de razões, e quando sabe por que está seguindo uma máxima. O em
pirismo só leva em consideração razões pragmáticas, ou seja, o caso
em que um ator deixa vincular seu arbítrio, pela razão instrumental,
às “regras de destreza” ou aos “conselhos da prudência” (como diz Kant).
Assim, ele obedece ao princípio da racionalidade dos fins: “Quem quer
um fim, também quer (na medida em que a razão tem uma influência
decisiva sobre seus atos) o meio imprescindível para tanto, que está
em seu poder” (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, BA 45).
Sobre essa base, os dois enfoques clássicos do empirismo recons-
troem o cerne racional da moral. A filosofia moral escocesa parte de
sentimentos morais e entende por moral aquilo que funda a coerência
solidária de uma comunidade (a). O contratualismo refere-se imedia
tamente aos interesses e entende por moral aquilo que garante a jus
tiça de um trânsito social normativamente regulado (b). As duas teo
rias defrontam-se, no fim, com a mesma dificuldade: elas não podem
explicar apenas com motivos racionais a obrigatoriedade dos deveres
morais, que remete para além da força obrigatória da inteligência.
(a) Posicionamentos morais exprimem sentimentos de aprova
ção ou reprovação. Hume os entende como os sentimentos típicos de
um terceiro que julga as pessoas agentes a partir de uma distância be
nevolente. Uma congruência no julgamento moral de um caráter sig
nifica portanto uma convergência de sentimentos. Mesmo que a apro
vação e a reprovação exprimam simpatia e rejeição, sendo portanto de
natureza emocional, é racional para um observador reagir desse modo.
Porque nós consideramos que um a pessoa é virtuosa se demonstrar
ser útil e agradável (useful and agreeable) para nós e para nossos ami
gos. Essa demonstração de simpatia, por sua vez, enche a pessoa vir
tuosa de orgulho e satisfação, enquanto a repreensão mortifica o recrimi
nado e, portanto, desperta nele desprazer. Por isso é que também há
24 A INCLUSÃO DO OUTRO
com as pessoas que conhece face a face em favor de uma solidariedade
para com estranhos. Contudo, quando as dimensões de uma comuni
dade de seres morais que merecem igual respeito ultrapassam o limite
do compreensível, os sentimentos constituem uma base evidentemen
te estreita demais para a solidariedade entre seus membros12.
(b) O contratualismo deixa de lado logo de início o aspecto da
solidariedade, porque refere a questão da fundamentação normativa
de um sistema de justiça imediatamente aos interesses do indivíduo
— e com isso desloca a moral dos deveres para os direitos. A figura
mental jurídica do direito subjetivo a campos de ação garantidos pela
lei para a persecução dos interesses individuais vai ao encontro de uma
estratégia de fundamentação que opera com motivos pragmáticos e
que se orienta pela pergunta sobre ser ou não racional que o indiví
duo subordine sua vontade a um sistema de regras. Para além disso, a
figura generalizada do contrato, que provém do direito privado e fun
damenta tais direitos simetricamente, é apropriada para a construção
de uma ordem baseada no livre acordo. Tal ordem é justa, ou é boa no
sentido moral, quando satisfaz uniformemente os interesses de seus
participantes. O contrato social surge da idéia de que qualquer aspi
rante precisa ter um motivo racional para se tornar participante de
livre e espontânea vontade e para submeter-se às normas e procedi
mentos correspondentes. O conteúdo cognitivo daquilo que faz com
que uma ordem seja moral ou justa repousa, portanto, na aquiescência
agregada de todos e de cada um dos participantes; ele se explica mais
acuradamente a partir da racionalidade da avaliação dos bens que
cada um deles efetua a partir da sua própria perspectiva de interesses.
Esse enfoque se defronta com duas objeções. Por um lado, a as
similação das questões morais às questões da justiça política de uma
associação de pessoas que integram o mesmo sistema jurídico13 tem a
desvantagem de que com base nela não é possível fundamentar um
14. Cf. E. Tugendhat, “Zum Begriff und zur Begründung der Moral”. In: idem,
Philosophische Aufsatze, Frankfurt am Main 1992,315-333.
15. E. Tugendhat (1993), 75.
16. Cf. J. Elster, The Cement o f Society, Cambridge 1989, cap. 3.
26 A INCLUSÃO DO OUTRO
bém não há um caminho que leve diretamente de volta aos sentimen
tos de reprovação internalizada a partir da fundamentação contratua-
lista de uma ordem normativa. Sentimentos morais exprimem posicio
namentos, os quais implicam juízos morais. E, no caso de um conflito,
nós não discutimos a respeito da validade dos juízos morais apenas
com motivos pragmáticos ou preferenciais. O empirismo clássico não
dá conta desse fenômeno, porque exclui motivos epistêmicos. Em úl
tima instância, ele não pode explicar a força vinculatória das normas
morais a partir das preferências.
28 A INCLUSÃO DO OUTRO
elementos reguladores com funções de coordenação ao longo da evo
lução do gênero humano. A normatividade das regras que fazem pa
recer racional aos membros dos grupos cooperativos ter tais senti
mentos, ou seja, reprovar comportamentos que se desviem da norma,
assim como oferecer ou esperar desculpas condizentes como repara
ção por um fracasso na coordenação dos atos, não possui uma racio
nalidade que possa ser reconhecida pelos próprios participantes. Con
tudo, para um observador, a autoridade que se manifesta nos juízos
de racionalidade dos participantes explica-se a partir do “valor re
produtivo” das normas internalizadas e das correspondentes atitudes
dos sentimentos. O fato de elas serem vantajosas do ponto de vista
da evolução deve ficar expresso por seu caráter subjetivamente con
vincente. A tarefa filosófica propriamente dita consiste, então, em
estabelecer um a conexão plausível entre aquilo que é funcional para
o observador e aquilo que é considerado racional pelos participantes.
Esse problema torna-se palpável no mais tardar quando os autores
não mais podem confiar apenas nas normas internalizadas, mas pas
sam a discutir explicitamente quais são as normas que devem admitir
como válidas.
A língua funciona, aliás, como o mais importante meio de coor
denação das ações. Juízos e posicionamentos morais que se apoiam
em normas internalizadas se exprimem num a linguagem carregada
de emoções. Contudo, quando o consenso normativo de fundo des
m orona e novas normas precisam ser elaboradas, faz-se mister outra
forma de comunicação. Nessas circunstâncias, os participantes preci
sam confiar na força orientadora dos “discursos normativos”: “I shall
call this influence normative governance. It is in this governance of
action, belief and emotion that we might find a place for phenomena
that constitute acceptance of norms, as opposed to merely internali-
zing them. W hen we work out at a distance, in community, what to do
or think or feel in a situation we are discussing, we come to accept
norms for the situation”20.
21. Gibbard (1992), 193 “A speaker treats what he is saying as an objective matter
of rationality if he can demand its acceptance by everybody. More precisely, the test is
this: could he coherently make his demands, revealing their grounds, and still not
browbeat his audience? What makes for browbeating in this test is a question of conver-
sational inhibitions and embarassments.” [Um falante trata aquilo que diz como uma
questão de racionalidade objetiva se ele puder pedir a sua aceitação por parte de todos.
Mais precisamente, o teste é este: poderia ele fazer coerentemente os seus pedidos,
revelando os seus motivos, e ainda assim não intimidar o seu público? O que leva a
intimidar neste teste é uma questão de embaraços e inibições conversacionais. ]
30 A INCLUSÃO DO OUTRO
dade22. Portanto, não causa surpresa o fato de que as normas que
ganham aceitação sob essas condições resultam, no fim, num a moral
da responsabilidade igual para todos. Como o processo discursivo
não foi m oldado no sentido da mobilização dos motivos melhores,
mas pela capacidade de contágio das expressões mais impressio
nantes, não se pode falar aqui em “fundamentação”.
Por isso, Gibbard precisa explicar por que, sob condições de co
municação pragm aticam ente excelentes, elas deveríam encontrar
anuência justamente nas normas que demonstram ser as melhores do
ponto de vista funcional de seu “valor de sobrevivência”, objetiva
mente elevado e específico: “In normative discussion we are influenced
by each other, but not only by each other. Mutual influence nudges
us towards consensus, if all goes well, but not toward any consensus
whatsoever. Evolutionary considerations suggest this: consensus may
promote biological fitness, but only the consensus of the right kind. The
consensus must be mutually fitness-enhancing, and so to move toward
it we must be responsive to things that promote our biological fit
ness”23. Gibbard percebe o problema que reside no fato de os resulta
dos obtidos a partir da perspectiva de pesquisa objetiva terem de ser
juntados aos resultados de que os participantes da discussão se con
vencem, por considerá-los sensatos a partir de sua própria perspec
tiva. Qualquer procura por uma explicação será, contudo, vã. Não se
fica sabendo por que as condições improváveis de comunicação dos
discursos normativos deveríam ser “seletivas” no mesmo sentido e por
que deveríam levar ao mesmo resultado de um incremento da pro
babilidade de sobrevivência coletiva, esperável dos mecanismos da
evolução natural24.
22. Gibbard (1992), 195, nota 2, tam bém remete à teoria do discurso.
23. [“Na discussão normativa somos influenciados um pelo outro, mas não ape
nas um pelo outro. A influência m útua persuade-nos ao consenso, mas não em direção
a qualquer consenso. Considerações evolucionistas sugerem-nos o seguinte: o consen
so pode promover a aptidão física, mas apenas o consenso da espécie certa. O consenso
tem que ser mutuamente prom otor da aptidão e, portanto, para movermo-nos em sua
direção temos que ter disposição para aquilo que promove a nossa aptidão física.”]
Gibbard (1992), 223.
24. Isso também não pode ser garantido pelo meio de os participantes do dis
curso se apropriarem da descrição biológica, pois tal autodescrição objetivante ou des
truiría a autoconsciência prática dos sujeitos capazes, ou, no caso da mudança do ob
servador, mudaria essencialmente o seu sentido da perspectiva dos participantes.
32 A INCLUSÃO DO OUTRO
munidade; elas dependem de orientações de valor precedentes, inter-
subjetivamente compartilhadas. Em todo caso, esses motivos não expli
cam por que poderia ser racional, para os atores que se encontram num
estado pré-moral e que só conhecem esse estado, passar para um estado
moral. Quem formula de antemão as razões de sua decisão em favor de
uma vida moral, as quais só poderíam surgir da reflexão sobre as vanta
gens já experimentadas de um contexto interativo moralmente regra
do, deixou de lado a visão egocêntrica de uma escolha racional e, em
seu lugar, orienta-se por concepções do bem viver. Ele submete sua
reflexão prática à questão ética sobre qual o tipo de vida que ele deveria
levar, sobre quem ele é e quem quer ser, o que é bom para ele, para o
todo, e a longo prazo etc. Razões que recaem sob esse ponto de vista só
ganham força motivadora no sentido em que tangem a identidade e a
autoconsciência de um ator já formado por uma comunidade moral.
É assim que também M artin Seel entende (e aceita) esse argu
mento. Embora a felicidade de uma vida bem-sucedida não resida numa
vida moral, há do ponto de vista de um sujeito que se preocupa com
seu bem viver razões racionais para se envolver com circunstâncias
morais (sejam quais forem). Já a partir da perspectiva ética é possível
reconhecer que não pode haver um bem viver fora de uma comunida
de moral. É claro que isso quer dizer apenas que “há interfaces neces
sárias entre um bem viver e uma vida moral, mas não quer dizer, pelo
contrário, que o bem viver seja possível somente dentro dos limites de
um bem viver moral”26. Tugendhat, porém, interessa-se menos pelo
relacionamento entre o bem viver e a moral, e mais pela fundamenta
ção ética de ser moral. E essa só pode levar a um paradoxo, caso se
insista na diferença entre o que é bom para cada um e a consideração
moral pelos interesses dos outros — como faz Tugendhat, com razão.
Na medida em que um ator se deixa convencer, por motivos éticos, de
que deveria preferir as circunstâncias de vida morais às pré-morais, ele
relativiza o sentido vinculatório da consideração moral pelos outros,
cuja validade categórica ele deveria admitir sob essas circunstâncias.
Seel registra a circunstância de que “a consideração m oral... (é
transcendente) em face das razões preferenciais que temos para ao me
nos observar o respeito moral”27. Mas ele não tira disso conclusões cor-
26. M. Seel, Versuch über die Form des Glücks, Frankfurt am Main 1995,206.
27. Seel (1995), 203s.
28. Seel (1995), 203: “Embora à pergunta ‘ser moral para quê?’ possa ser dada
um a resposta bastante — ou apenas — preferencialmente fundamentada: porque ape
nas o ser moral torna o m undo mais amistoso e abre a convivência solidária com os
outros; mas com este passo fundamentado preferencialmente nós aceitamos padrões
de com portam ento que de nenhum a forma são deduzíveis de orientações preferen
cialmente fundamentadas.”(203)
34 A INCLUSÃO DO OUTRO
tamente quais normas morais eles deveríam se pôr de acordo. Nessa
questão ninguém pode reivindicar mais autoridade do que qualquer
outro; todos os pontos de vista para um acesso privilegiado à verdade
moral estão invalidados. O contrato social não tinha conseguido dar
uma resposta satisfatória ao desafio dessa situação, porque a partir de
um acordo orientado pelos interesses entre parceiros contratuais só pode
surgir, no melhor dos casos, um controle de comportamento social
imposto de fora para dentro, mas não uma concepção vinculatória a
respeito de um bem comum, nem muito menos a concepção de um
bem concebido universalisticamente. Tugendhat descreve a situação de
partida de modo semelhante à minha proposta. Os membros de uma
comunidade moral não demandam um controle de comportamento
social vantajoso para todos que possa ocupar o lugar da moral; eles não
querem substituir o jogo moral de linguagem como tal, mas apenas a
base religiosa de sua validação.
Esse questionamento leva à reflexão sobre as bases para o acordo
que, depois da religião e da metafísica, restaram como único recurso
possível para a fundamentação de uma moral da consideração igual
para todos: “Se o que é bom deixa de ser prescrito de forma transcen
dente, o respeito pelos membros da comunidade, que passa a ser ilimi
tado, ou seja, o respeito por todos os outros — por sua vontade e seus
interesses — é que, segundo parece, passa a fornecer os princípios da
bondade”. Ou para dizê-lo de modo mais marcante: a intersubjetividade
assim entendida passa a ocupar o lugar da prescrição transcendente (...).
Como são as obrigações mútuas (...) o que perfaz a forma de qualquer
moral, pode-se dizer também: na medida em que o conteúdo, ao qual
se referem as reivindicações, nada mais é do que o respeito por aquilo
que todos querem, agora o conteúdo corresponde à forma29.
Dessa forma Tugendhat chega ao princípio kantiano da generali
zação a partir das condições simétricas da situação de partida, na qual
se confrontam as partes, destituídas de todos os seus privilégios e que,
nessa medida, estão em igualdade de condições para entrar num acor
do sobre as normas fundamentais, que podem ser aceitas racional
mente por todos os participantes30. É claro que ele não dá satisfações a
36 A INCLUSÃO DO OUTRO
se dissolve na razão instrumental, m uda a constelação de razão e von
tade — e com isso o conceito da liberdade subjetiva. Então, a liberdade
não mais se esgota na capacidade de vincular o arbítrio às máximas da
inteligência, mas se manifesta na autovinculação da vontade pelo dis
cernimento. “Discernimento” significa aqui que uma decisão pode ser
justificada com a ajuda de razões epistêmicas. Em geral, razões epistê-
micas sustentam a verdade de declarações assertivas; em situações prá
ticas, a expressão “epistêmico” carece de um a explicação. Razões prag
máticas referem-se às preferências e metas de uma pessoa. Em última
análise, quem decide a respeito desses “dados” é a autoridade epis-
têmica do próprio ator, que tem de saber quais são suas preferências e
metas. Uma reflexão prática só pode conduzir ao “discernimento” se
se estender para além do m undo do ator, de acesso subjetivamente
privilegiado, para um m undo intersubjetivamente compartilhado.
Assim a reflexão sobre experiências, práticas e formas de vida comuns
torna consciente um saber ético, do qual não dispomos graças apenas
à autoridade epistêmica da primeira pessoa.
A conscientização de algo implicitamente sabido não significa o
mesmo que a cognição de objetos ou fatos31. “Cognições” são contra-
intuitivas, enquanto os “discernimentos” obtidos pela reflexão explici
tam um saber pré-teórico, organizam-no em contextos, examinam a
sua coerência e, através disso, também fazem a sua sondagem crítica32.
Os “discernimentos” éticos devem-se à explicação daquele saber que
os indivíduos comunicativamente socializados adquiriram na medida
em que cresceram para dentro de sua cultura. No vocabulário avalia
dor e nas regras de aplicação das sentenças normativas sedimentam-
se as partes constitutivas mais gerais do saber prático de uma cultura.
À luz de seus jogos de linguagem impregnados de elementos de ava
liação, os atores desenvolvem não apenas representações de si próprios
e da vida que gostariam de levar em geral; eles também descobrem em
cada situação traços de atração e de rejeição, os quais não podem en
tender sem “ver” como devem reagir a eles33. Como sabemos intuitiva
31. B. Williams, Ethics and the Limits o f Philosophy, London, 1985, cap. 8.
32. John Rawls fala neste contexto em ‘reflective equilibrium ’ [equilíbrio re
flexivo].
33. McDowell insurge-se contra um a interpretação objetivista destas ‘salient
features’ [características salientes] de um a situação: “The relevant notion o f salience
cannot be understood except in terms of seeing something as a reason for acting which
silences all others”. [A relevante noção da saliência não pode ser entendida a não ser
em termos de ver algo como uma razão para agir, a qual silencia todas as outras. ]
McDowell, “Virtue and Reason”, Monist, 62, 1979, 345. Ele explica “discernimentos”
éticos a partir da interação entre, por um lado, a orientação da vida e a autoconsciência
de um a pessoa, e pelo outro, a sua compreensão de cada situação, impregnada de valo
res. Essas análises ainda podem ser entendidas — para aquém do realismo — no sen
tido de uma ética neo-aristotélica instruída por Wittgenstein.
34. Cf. J. McDowell, “Are Moral Requirements Hypothetical Imperatives?”, Pro-
ceedings o f the Aristotelían Society, supl. 52, 1978,13-29.
38 A INCLUSÃO DO OUTRO
preferências e metas não são mais algo dado, mas são elas mesmas
passíveis de discussão33. Dependendo de minha autoconsciência e por
meio da reflexão sobre aquilo que para nós, dentro do horizonte de nos
so m undo compartilhado, tem um valor intrínseco, elas podem m u
dar de um modo fundamentado.
Sob o ponto de vista ético nós esclarecemos, portanto, questões
clínicas de uma vida que está sendo bem-sucedida, ou melhor, que
não está indo pelo caminho errado, as quais se colocam no contexto
de determinada forma de vida ou de uma história de vida individual.
A reflexão prática é executada na forma de um auto-entendimento
hermenêutico. Ela articula valorações fortes, pelas quais orienta-se
minha autoconsciência. A crítica das auto-ilusões e dos sintomas de
uma forma de vida forçada ou alienada mede-se na idéia de uma vida
vivida de modo consciente e coerente. Aqui, a autenticidade de um
projeto de vida, analogamente à pretensão de veracidade de atos ex
pressivos de linguagem, pode ser compreendida como uma pretensão
de validade de grau mais elevado3536.
O modo como sentimos nossa vida está mais ou menos determi
nado pelo modo como nós mesmos nos entendemos. Por isso os dis
cernimentos éticos sobre a interpretação dessa autocompreensão in
tervém na orientação de nossa vida. Como discernimentos que vincu
lam a vontade, eles provocam uma condução consciente da vida. Nisso
se manifesta a vontade livre no sentido ético. Do ponto de vista ético,
a liberdade de vincular meu arbítrio a máximas da prudência se trans
forma na liberdade de decidir-me por uma vida autêntica37.
É claro que os limites dessa forma de ver ética aparecem logo que
entram em jogo questões a respeito da justiça, pois a partir dessa pers
pectiva a justiça é rebaixada a um valor junto a outros valores. Obriga
ções morais são mais importantes para uma pessoa do que para outra,
têm maior significado num contexto do que noutro. É certo que, tam
bém do ponto de vista ético, pode-se levar em conta a diferença semân
tica entre vinculação ao valor e obrigação moral, dando certa prioridade
35. Cf. Charles Taylor, As fontes do self, São Paulo, Edições Loyola, 1997, parte I.
36. Também as teorias, por exemplo, colocam um a pretensão de validade “mais
elevada” ou mais complexa; elas não podem ser “verdadeiras” ou “falsas” no mesmo
sentido que cada uma das proposições delas deduzidas.
37. A exacerbação existencialista desta decisão para um a escolha radical confun
de essa liberdade com um processo epistemicamente dirigido.
38. [“A vida ética em si é importante, mas ela pode ver que outras coisas além dela
mesma são im portantes... Há uma espécie de consideração ética que conecta direta
mente importância e prioridade deliberativa, e ela é a obrigação.”) Williams (1985), 184s.
39. [“Estas espécies de obrigações muitas vezes com andam a mais elevada prio
ridade deliberativa... Contudo, tam bém podemos ver como elas nem sempre preci
sam com andar a mais elevada prioridade, mesmo em agentes eticamente bem dispos
tos.”] Williams (1985), 187.
40 A INCLUSÃO DO OUTRO
de vista do conteúdo, suficientemente informativa, deve (sobretudo
com vistas à felicidade das gerações futuras) levar a um paternalismo
insuportável; uma concepção isenta de substância, distanciada de to
dos os contextos locais, deve destruir o conceito do bem40.
Se pretendemos levar em consideração a presumida imparcia
lidade dos julgamentos morais e a pretensão categórica de validade
das normas vinculatórias, temos de desatrelar a perspectiva horizontal
(dentro da qual são regradas as relações interpessoais) da perspectiva
vertical (a dos projetos individuais de vida), e tornar independente a
resposta a perguntas genuinamente morais. A pergunta abstrata so
bre o que é do interesse uniforme de todos ultrapassa a pergunta ética
contextualizada a respeito do que é o melhor para nós. A intuição de
que as questões da justiça surgem de uma ampliação idealizadora do
questionamento ético continua, porém, fazendo sentido.
Se interpretarmos a justiça como aquilo que é igualmente bom
para todos, o “bem” contido na moral constitui uma ponte entre a
justiça e a solidariedade. Pois também a justiça entendida universalis-
ticamente exige que uma pessoa responda pela outra — e que, aliás,
cada um também responda pelo estranho, que formou a sua identida
de em circunstâncias de vida totalmente diferentes e entende-se a si
mesmo à luz de tradições que não são as próprias. O bem na justiça
lembra que a consciência moral depende de determinada autocom-
40. M artin Seel (1995) esforça-se em encontrar tal conceito formal do bem. Mas
a idéia de uma determinação formal do bem, diferente da moral no sentido kantiano,
é um espeto de pau. A tentativa de Seel de explicar a constituição e as condições de
um a vida bem-sucedida não pode abrir mão da designação de bens fundamentais (se
gurança, saúde, liberdade de ir e vir), de conteúdos (trabalho, interação, jogo e con
templação) e de metas da condução da vida (autodeterminação com abertura para o
m undo). Essas são pressuposições e valorações antropológicas falíveis, que não apenas
são controvertidas de um a cultura para outra, mas que aqui, no diálogo intercultural,
permanecem controvertidas por bons motivos. Também uma compreensão não-criterial
de tal projeto das possibilidades humanas tem conseqüências paternalistas, mesmo
quando apenas pretende encam inhar conselhos bem-intencionados: “Mas se alguém
não quiser este bem? Teremos de dizer-lhe que está renunciando ao melhor”.(189) O
conteúdo manifesto de um a antropologia do bem, que for além do esclarecimento da
argumentação lógica das condições dos discursos hermenêuticos de auto-interpreta-
ção, fica preso de modo peculiar ao contexto de seu surgimento — como o demonstra
o exemplo de Heidegger, cuja ontologia existencial delata para qualquer leitor atento, a
partir da perspectiva de uma ou duas gerações, não apenas o jargão mas tam bém as
vantagens políticas de seu tem po (cf. R. Wolin, The Politics o f Being, New York, 1990).
42 A INCLUSÃO DO OUTRO
que a moral pode ser entendida como um dispositivo de proteção con
tra a vulnerabilidade específica das pessoas. Mas o saber a respeito da
suscetibilidade constitutiva de um ser que só pode formar sua identi
dade na externação em meio a relações interpessoais e estabilizá-la em
relações de reconhecimento intersubjetivo emana da familiaridade
intuitiva com as estruturas gerais de nossa própria forma de vida co
municativa. É um saber geral profundamente enraizado, que se apre
senta enquanto tal apenas em casos de desvios clínicos — a partir de
experiências de como e quando a identidade de um indivíduo socia
lizado corre perigo. O recurso a um saber dessa espécie, determinado
por tais experiências negativas, não traz o peso da pretensão de indi
car positivamente o que significa uma vida boa. Só os próprios envol
vidos, a partir da perspectiva dos que participam de consultas prá
ticas, podem ter clareza a respeito do que em cada caso é uniforme
mente bom para todos. O bem relevante do ponto de vista moral apre-
senta-se caso a caso a partir da perspectiva ampliada do nós de uma
comunidade que não exclui ninguém. Aquilo que de bom é subsumi-
do no justo é a forma de um ethos intersubjetivo compartilhado en
quanto tal e é, com isso, a estrutura da pertença a uma comunidade,
que, aliás, livrou-se das amarras de uma comunidade exclusiva.
Essa correlação entre solidariedade e justiça inspirou Kant a ex
plicar o ponto de vista segundo o qual as questões a respeito da justiça
podem ser julgadas de modo imparcial, a partir do modelo da autole-
gislação de Rousseau: “De acordo com ela todo ser racional deve agir
como se, através de suas máximas, fosse um membro legislador no
reino geral dos fins”44. Kant fala de um “reino dos fins” porque cada
um de seus membros não se contempla a si mesmo e a todos os outros
como um mero meio, mas sempre também como um “fim em si mes
mo”. Enquanto legislador, ninguém é súdito da vontade de um estra
nho; mas ao mesmo tempo cada membro está submetido às leis que a
si próprio outorga, assim como todos os outros. Na medida em que
Kant substitui a figura de direito privado do contrato pela figura de
direito público da legislação republicana, ele pode juntar num só os
dois papéis da moral, separados do ponto de vista do direito: o papel
do cidadão que participa da legislação e o do indivíduo privado, sub
44. Kant, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Werke, (Weischedel), Vol. IV,
72 [ed. br.: Fundamentação da metafísica dos costumes, Lisboa, Edições 70,1995],
Uma lei é válida no sentido moral quando pode ser aceita por
todos, a partir da perspectiva de cada um. Como apenas as leis “gerais”
cumprem com a condição de regrar uma matéria no interesse unifor
me de todos, é nesse momento de capacidade de generalização dos
interesses respeitados pela lei que a razão prática se faz valer. Logo,
agindo como um legislador democrático, passa a assumir o ponto de
vista moral a pessoa que consulta a si mesma para saber se a praxe que
resultaria do respeito generalizado de uma norm a cogitada hipoteti
camente poderia ser aceita por todos os potencialmente envolvidos
enquanto legisladores potenciais. No papel de co-legislador, cada pes
soa participa de uma empreitada cooperativa e aceita, com isso, uma
perspectiva intersubjetivamente ampliada, a partir da qual se pode
examinar se um a norma que é objeto de discussão pode ser conside
rada generalizável segundo o ponto de vista de todos os participantes.
Quando se dá essa cogitação, são considerados também motivos prag
máticos e éticos, que não perdem sua relação interna com a situação
de interesses e com a autoconsciência de cada pessoa individual. Con
tudo, esses motivos relativos aos atores não contam mais como m oti
vos e orientações de valor de pessoas individuais, mas como contri
buições epistêmicas para um discurso de exame das normas, realiza
do com o intuito do m útuo entendimento. Como uma praxe legislati
va só pode ser exercida em comum, não é mais suficiente a regra de
ouro do uso monológico e egocêntrico desses testes de generalização.
As razões morais têm um modo de vincular o arbítrio diferente
das razões pragmáticas ou éticas. No momento em que a autovincula-
ção da vontade assume a forma da autolegislação, vontade e razão se
44 A INCLUSÃO DO OUTRO
interpenetram integralmente. Por isso, Kant só reconhece como “livre”
a vontade autônoma, determinada pela razão. Só age livremente aquele
que permite que sua vontade seja determinada por sua compreensão
daquilo que todos poderíam desejar. “Só um ser racional tem a capa
cidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princí
pios, ou uma vontade. Como para a dedução das ações a partir das leis
é necessária a razão, a vontade não é outra coisa do que razão prática”45.
Certamente todo ato de autovinculação da vontade exige da razão prá
tica razões para que ocorra; mas, enquanto ainda entrarem em jogo
determinações subjetivamente casuais e a vontade não tiver apagado
todos os momentos da coação, a vontade não será realmente livre.
A normatividade que nasce per se da capacidade de autovincu
lação da vontade ainda não tem um sentido moral. Quando um agen
te se apropria de regras técnicas da habilidade ou de conselhos prag
máticos da prudência, leva sua arbitrariedade a submeter-se à razão
prática; as razões para isso, no entanto, têm força determinante ape
nas com vista a preferências e fins. Ainda que de forma diversa, isso
vale tam bém para razões éticas. Embora a autenticidade das vincula-
ções a valores ultrapasse o horizonte da racionalidade finalista mera
mente subjetiva, as valorações severas só ganham força objetiva e ca
paz de determ inar a vontade com vista a experiências práticas e for
mas de vida casuais, ainda que partilhadas intersubjetivamente. Nos
dois casos, os imperativos e recomendações correspondentes só po
dem reclamar para si uma validade condicionada: só valem sob o pres
suposto de situações de interesse subjetivamente dadas, ou sob o
pressuposto de tradições intersubjetivamente partilhadas.
Para alcançar uma validação incondicionada ou categórica, obri
gações morais precisam derivar-se de leis que emancipem a vontade
das determinações casuais (caso a vontade esteja comprometida com
essas determinações) e que, por si mesmas, se mesclem à razão prática.
Pois à luz de normas como essas, fundamentadas sob o ponto de vis
ta moral, também os fins, preferências e orientações de valor casuais
que exercem coações externas sobre a vontade podem ser subme
tidas a um julgamento crítico. Razões podem levar até mesmo a von
tade heteronômica a submeter-se a máximas; mas a autovinculação
continua presa a situações de interesse dadas por razões pragmáticas
46. Isso é desconsiderado por Chr. M. Korsgaard, The Sources ofNormativity. The
Tanner Lectures on Humati Values, n. XV (1994), pp. 88ss.
47. Cf. Kant, vol. IV, p. 69.
48. O mesmo se pode dizer de Tugendhat, cf. IV, 2, acima.
46 A INCLUSÃO DO OUTRO
podem mais contar com um acordo prévio sobre condições de vida e
situações de interesse mais ou menos homogêneas, o ponto de vista
moral só pode se realizar sob condições de comunicação que garan
tam que cada um, também da perspectiva de sua própria autocom-
preensão e compreensão de mundo, possa testar a aceitabilidade de
um a norm a elevada a práxis comum. O imperativo categórico con
tém assim uma forma de leitura concernente à teoria do discurso. Em
seu lugar, surge o princípio discursivo “D”, segundo o qual só podem
requerer validação normas que possam contar com a concordância
de todos os envolvidos como partícipes de um discurso prático49.
Partimos da questão genealógica sobre ainda ser possível justifi
car ou não o teor cognitivo de uma moral do respeito indistinto e da
responsabilidade solidária por toda e qualquer pessoa após a perda
de valor do fundamento religioso de sua validação. Por fim, sob a
mesma perspectiva, gostaria de submeter a prova o resultado que al
cançamos pela interpretação intersubjetiva do imperativo categórico.
Para tanto é preciso separarmos dois problemas. De um a parte, é pre
ciso esclarecer quais são, afinal, os elementos das instituições origi
nais que a ética discursiva põe a salvo no universo desenganado das
tentativas de fundamentação pós-metafísicas, e em que sentido ainda
se pode falar de uma validação cognitiva de juízos e posicionamentos
morais (VII). De outra parte, é precípuo perguntar se um a moral que
parte da reconstrução racional de instituições tradicionais, inicial
mente religiosas, não permanece conteudisticamente presa a seu con
texto original, não obstante seu caráter estimativo, ou seja, estar em
perm anente processo de avaliação (VIII).
48 A INCLUSÃO DO OUTRO
agir de outra maneira. Isso não impede, porém, que outros motivos
acabem sendo mais fortes50.
Com a perda da base validativa sotereológica, altera-se em espe
cial o sentido da obrigatoriedade normativa. A própria diferenciação
entre dever e vinculação de valor, entre o que é moralmente certo e
eticamente almejável, aguça a validação do dever tornando-a em nor-
matividade, a que corresponde tão-somente a formação imparcial de
juízos. Outra conotação deve-se à mudança da perspectiva, de Deus
para o homem. “Validade” significa agora que normas morais conta
rão com a concordância de todos os envolvidos, quando esses, em dis
cursos práticos, testarem em conjunto se a respectiva práxis vem ao
encontro do interesse de todos em igual medida. Nessa concordância
expressam-se duas coisas: a razão falível dos sujeitos em conselho, que
se convencem mutuamente de que uma norma introduzida hipote
ticamente merece reconhecimento, e a liberdade dos sujeitos legislado
res, que se entendem ao mesmo tempo como autores das normas a que
se submetem como destinatários. No sentido validativo das normas m o
rais, ficam vestígios tanto da falibilidade do espírito humano que des
cobre, quanto da construtividade do espírito humano que projeta.
(2) O problema sobre em que sentido juízos e posicionamentos
morais podem requerer validade revela-se ainda sob outro aspecto
quando trazemos à memória as asserções essenciais com que os m an
damentos foram justificados onto-teologicamente, no passado, como
partes de um mundo racionalmente estabelecido. Enquanto foi possí
vel manifestar o teor cognitivo da moral por meio de asserções descri
tivas, os juízos morais foram falsos ou verdadeiros. Porém, desde que o
realismo moral não se deixa mais defender pela evocação da metafísica
da criação e do direito natural (ou de sucedâneos para eles), a valida
ção da obrigatoriedade de asserções morais não pode mais ser assimi
lada pela validação da verdade de asserções descritivas. Alguns dizem
como são as coisas no mundo, outros dizem o que devemos fazer.
Se supomos que sentenças só podem ser válidas no sentido de se
rem “verdadeiras” ou “falsas”, e que se deve entender a “verdade” no sen
tido de uma correspondência entre sentenças e objetos ou fatos, tor
51. Para o que segue cf. J. Heath, Morality and Social Action, tese de doutoramento
na Northwestern University, 1995, pp. 86-102.
52. Cf. D. Davidson, Wahrheit und Interpretation, Frankfurt am Main, 1986.
53. Cf. J. Haberm as, “Exkurs zur A rgum entationstheorie”. In: Theorie des
kommunikativen Handelns, Frankfurt am Main, 1981, vol. 1, pp. 44-71; e, do mesmo
autor, 1992, pp. 276ss.
50 A INCLUSÃO DO OUTRO
O plano pragmático para a fundamentação abre caminho para
um conceito epistêmico de verdade que tem por tarefa oferecer uma
saída à teoria das correspondências. Com o predicado de verdade re-
ferimo-nos ao jogo de linguagem da justificação, ou seja, da solvência
pública das reivindicações de validação. Por outro lado, não se deve
igualar “verdade” com fundamentabilidade — warranted assertibility.
A utilização “cautelar” do predicado — ‘p’ pode estar muito bem fun
damentado e mesmo assim não ser verdadeiro — alerta-nos para a
diferença semântica entre “verdade” como qualidade inalienável das
asserções e “aceitabilidade racional” como qualidade das declarações,
mas condicionada pelo contexto54. Essa diferença pode ser entendida
no horizonte das justificações possíveis como a distinção entre “justi
ficado em nosso contexto” e “justificado em qualquer contexto”. De
nossa parte, podemos fazer jus a essa diferença por meio de uma idea
lização atenuada de nossos processos argumentativos — se concebi
dos como passíveis de prosseguimento. À medida que afirmamos ‘p’
e que reivindicamos verdade para ‘p’, assumimos — embora conscien
tes da falibilidade — a obrigação de defender ‘p’ contra todas as obje-
ções possíveis55.
Nesse contexto, interessa-me muito menos a complexa relação
entre verdade e justificação do que compreender o conceito de ver
dade — já depurado pelas conotações de correspondência — como um
caso especial de validade, enquanto se introduz esse conceito geral de
validade referenciado à solvência discursiva de reivindicações de vali
dação. Com isso, abre-se um espaço conceituai em que se pode abrigar
o conceito de validade normativa, e mais especialmente de validade
moral. A correção de normas morais (ou de asserções normativas ge
rais) e de m andam entos singulares pode ser entendida por analogia
à verdade de sentenças assertivas. O que vincula os dois conceitos de
validação é o procedimento da solvência discursiva das reivindica
54. R. Rorty, “Pragmatism, Davidson and Truth”. In: E. LePre (org.). Truth and
Interpretation, Londres, 1986, pp. 264ss.
55. O conceito da “solvibilidade discursiva”, reativo, referente não a estados
ideais, mas ao enfraquecim ento de restrições potenciais, aproxima-se do conceito de
“superassertibility”: C. Wright, Truth and Objectivity, Cambridge, 1992, pp. 33ss. So
bre a crítica a meu conceito anterior de verdade, ainda orientado por Peirce, v. A.
Wellmer, Ethik und Dialog, Frankfurt am Main, 1986, pp. 102 ss; cf. ainda Wingert,
1993, pp. 264ss.
52 A INCLUSÃO DO OUTRO
A ética discursiva justifica o teor de uma moral do respeito indis
tinto e da responsabilidade solidária por cada um. Certamente, ela só
chega a isso pela via da reconstrução racional dos conteúdos de uma
tradição moral abalada em sua base validativa religiosa. Se a maneira
de ler o imperativo categórico assumida pela teoria discursiva perm a
necesse atrelada a essa tradição da origem, essa genealogia se interpo
ria ao objetivo de comprovar o teor cognitivo dos juízos morais em
geral. Ainda falta uma fundamentação, a partir da teoria moral, do
próprio ponto de vista moral.
Na verdade, o princípio discursivo responde ao constrangimento
que acomete os membros de comunidades morais aleatórias quando
estes, durante a transição para sociedades modernas, pluraristas em sua
visão de mundo, incorrem no dilema de continuar, como antes, discu
tindo sobre juízos e posicionamentos morais munidos de razões, a des
peito de já ter desmoronado seu consenso substancial de fundo no que
concerce às normas morais subjacentes. Tanto em nível global quanto
dentro da própria sociedade a que pertencem, essas pessoas envolvem-
se em conflitos de conduta que elas mesmas, muito embora seu ethosjá
esteja em ruínas, ainda entendem como conflitos morais, e portanto
solúveis a partir de certa fundamentação. O cenário a seguir não retrata
nenhum “estado primordial”, mas sim um percurso estilizado de m a
neira ideal e tipificada, tal como ele poderia dar-se sob condições reais.
Tomo como ponto de partida que os envolvidos pretendem so
lucionar seus conflitos sem violência ou acertos ocasionais, mas sim
através de um acordo mútuo. Assim, propõe-se de saída a tentativa de
estabelecer um conselho e desenvolver, sobre uma base profana, uma
autocompreensão ética comum a todos. Sob as condições de vida di
versificadas das sociedades pluralistas, porém, uma tentativa como essa
está fadada ao fracasso. Os envolvidos aprendem que, ao se certifica
rem criticamente de suas fortes convicções valorativas, ainda preser
vadas na prática, são constatadas concepções divergentes sobre o que
seja o bem. Suponhamos que insistam, ainda assim, em sua intenção
de chegar a um acordo mútuo, e que não queiram simplesmente subs
tituir o convívio moral já ameaçado por um modus vivendi qualquer.
Em face da debilidade de um acordo substancial sobre os conteú
dos das normas, os envolvidos vêem-se abandonados a uma circuns
58. Cf. A. Honneth. Kampf und Anerkennung, Frankfurt am Main, 1992; R. Forst,
Kontexte der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1994.
59. Cf. L. Wingert, 1984, pp. 295ss. Sobre a estrutura perspectória da ação orien
tada ao acordo mútuo, v. o artigo que intitula J. Habermas, 1983, pp. 127ss., em espe
cial pp. 144-152.
60. As implicações desse duplo aspecto foram elaboradas energicamente por
Wingert, 1993.
54 A INCLUSÃO DO OUTRO
mente diferentes de todos os outros61. 0 respeito reciprocamente equâ-
nime por cada um, exigido pelo universalismo sensível a diversifica
ções, é do tipo de um a inclusão não-niveladora e não-apreensória do
outro em sua alteridade.
Mas como justificar afinal a transição para uma moral pós-tradi-
cional? As obrigações enraizadas na ação comunicativa e tradicio
nalmente ajustadas a ela não vão por si sós62 para além dos limites da
família, do clã, da cidade ou da nação. É diferente, porém, com a for
ma reflexiva da ação comunicativa: argumentações apontam per separa
além de todas as formas particulares de vida. Pois, nos pressupostos
programáticos de discursos ou de conselhos racionais, o teor norm a
tivo de suposições empreendidas na ação comunicativa é generalizado,
abstraído e descingido, ou seja, é estendido a uma comunidade que
insere e que, em princípio, não exclui nenhum sujeito capaz de falar e
agir, desde que esteja em condições de dar contribuições relevantes.
Essa idéia mostra a saída daquela situação em que os envolvidos per
deram o suporte ontoteológico e precisam criar com base em si mes
mos as próprias orientações normativas. Tal como mencionado, os
envolvidos só podem recorrer às coisas que têm em comum e das quais
dispõem naquele momento. Depois do último fracasso, essas coisas em
comum ficaram reduzidas à provisão de qualidades formais disponí
veis na situação de conselho, que podem ser partilhadas performativa-
mente por seus integrantes. Todos, afinal, já estão envolvidos no em
preendimento cooperativo de um conselho reunido na prática.
Essa é uma base muito frágil, mas a neutralidade conteudística
de sua subsistência comum pode representar também uma chance em
face do constrangimento ocasionado pelo pluralismo de cosmovisões.
Haveria perspectiva de encontrar um equivalente para a fundamenta
ção conteudística-tradicional de um comum acordo normativo básico,
caso a própria forma comunicacional em que se cumprem as reflexões
práticas comuns redundasse em um aspecto sobre o qual fosse possí
vel fundamentar normas morais e que, por ser imparcial, fosse con
vincente para todos os envolvidos. O “bem transcendente” que falta
61. Por isso, para se cum prir a condição de imparcialidade, não basta que al
guém isento pondere o bem e o mal em jogo para uma pessoa “qualquer”; posição
diversa é a de Tugendhat, 1993, p. 353.
62. Cf. Seel, 1995, p. 204.
56 A INCLUSÃO DO OUTRO
Sobre isso, três comentários: os “interesses específicos e orienta
ções valorativas” põem em questão as razões pragmáticas e éticas dos
participantes em particular. A inclusão desses dados deve prevenir uma
marginalização da autocompreensão e da compreensão de m undo de
participantes em particular e assegurar em geral a sensibilidade her
menêutica por um espectro suficientemente amplo de contribuições.
Além disso, a assunção recíproca e generalizada de perspectivas alheias
(“cada um” — “por todos em conjunto”) exige não apenas empatia,
mas também uma intervenção interpretativa na autocompreensão e
na compreensão de m undo dos participantes, que precisam se manter
abertos a revisões das descrições de si mesmos e dos outros (e abertos,
portanto, a revisões da linguagem utilizada em tais descrições). O pro
pósito da “aceitação geral e não coativa”, por fim, fixa o aspecto sob o
qual as razões apresentadas extraem dos motivos para a ação o senti
do relativo aos atores, e sob o qual assumem um sentido epistêmico
sob o ponto de vista da consideração simétrica.
(c) Os próprios envolvidos talvez se dêem por satisfeitos com essa
regra de argumentação (ou com um a regra semelhante), à medida que
ela se mostre útil e não conduza a resultados contra-intuitivos. É pre
ciso evidenciar que normas capazes de conquistar concordância geral
— os Direitos Humanos, por exemplo — estão marcadas por uma
práxis fundadora orientada dessa maneira. Mas do ponto de vista do
teórico da moral ainda resta um último passo fundador.
Podemos tomar como ponto de partida que a práxis de justifica
ção e reunião em conselhos — a que chamamos argumentação — po
de ser encontrada em todas as culturas e sociedades (se não de forma
institucionalizada, ao menos como um a práxis informal) e que não
há equivalente algum desse tipo de solução de problemas. Em face
da disseminação universal da práxis argumentativa e da falta de al
ternativas para ela, fica difícil contestar a neutralidade do princípio
discursivo. Mas, considerada a abdução de ‘U’, pode ser que esteja
subjacente aqui, às escondidas, um pré-entendim ento etnocêntrico
(e com ele uma determinada concepção do que é bom ), não parti
lhado por outras culturas. A suspeita de um comprometimento eu-
rocêntrico que recai sobre um a compreensão de moralidade opera-
cionalizada por ‘U ’ poderia perder força se fosse possível, de modo
aceitável, tornar “imanente” a explicação para o ponto de vista m o
ral, ou seja, se esse ponto de vista moral pudesse ser explicado a par
63. Cf. Konrad Ott, “Wie begründet man ein Diskussionsprinzip der Moral?”. In:
Vom Begründen zum Handeln, Tübingen, 1996, pp. 12-50.
64. Cf. M. Niquet, Transzendentale Argumente, Frankfurt am Main, 1991; idem,
Nichthintergehbarkeit und Diskurs, tese de livre-docência (inédita), Frankfurt am
Main, 1995.
58 A INCLUSÃO DO OUTRO
coação, só poderão ser decisivas as razões para o assentimento de uma
norm a discutível. Por fim, sob a premissa de uma orientação segun
do o acordo mútuo, presumida reciprocamente em todos os envol
vidos, essa aceitação “não coativa” só pode dar-se “em comum”.
Contra a objeção ao círculo65, deve-se mencionar que o teor dos
pressupostos argumentativos gerais ainda não é “normativo”, em sen
tido moral. Pois a possibilidade de inserção significa apenas a con
dição de acesso irrestrito ao discurso, e não a universalidade de uma
norm a de ação vinculativa, qualquer que seja. A distribuição eqüi-
tativa de liberdades comunicativas no discurso e a exigência de sin
ceridade em favor do discurso significam deveres e direitos argumen
tativos, e de forma alguma morais. Igualmente, a ausência de coação
refere-se ao próprio processo argumentativo, e não a relações inter
pessoais externas a essa práxis. As regras constitutivas do jogo argu
mentativo determ inam o intercâmbio de argumentos e de posicio
namentos de “sim”/ “não”; elas têm o sentido epistêmico de possibi
litar a justificação de asserções, e não o sentido prático imediato de
motivar ações.
O cerne da fundamentação do ponto de vista moral consiste, para
a ética discursiva, em que só através de uma regra argumentativa seja
possível transferir o teor normativo desse jogo de linguagem epis
têmico para a seleção de normas acionais, sugeridas em discursos prá
ticos — junto com sua reivindicação de validação moral. A obrigato
riedade moral não pode resultar, por si só, de algo como uma im po
sição transcendental de pressupostos argumentativos inevitáveis; mais
que isso, ela se liga a objetos peculiares do discurso prático — a nor
mas nele introduzidas, e às quais rem ontam as razões arregimenta
das nas reuniões em conselho. Destaco essa circunstância lembrando
que ‘U’ pode se tornar plausível a partir do teor normativo de pressu
postos argumentativos ligado a um conceito (fraco, e portanto não pre-
julgador) de fundamentação de normas.
A estratégia de fundamentação ora sugerida partilha o ônus dos
esforços para tornar-se plausível com um questionamento genealó
gico atrás do qual se escondem algumas suposições caras à teoria da
65. Cf. Tugendhat, 1993, pp. 16 lss. A crítica de Tugendhat refere-se a um a versão
de meu argumento presente na segunda edição de Moralbewufítsein und kommunikatives
Handeln [Consciência moral e agir comunicativo, ed. br. cit.] e já revista portanto em
1984 (!); v. tb. J. Habermas, 1991, p. 134, nota 17.
66. É o que acentua W. Rehg, Insightand Solidarity, Berkeley, 1984, pp. 65ss.; v.
tb. S. Benhabib, “Autonomy, Modernity and Comm unity”. In: Situating the Self, Cam-
bridge, 1992, pp. 68-88.
67. Cf. K.-O. Apel, “Die transzendentalpragmatische Begründung der Kommuni-
kationsethik”. In: Diskurs und Verantwortung, Frankfurt am Main, 1988, pp. 306-369.
68. V. nota 56, acima.
69. Cf. Habermas, 1992, pp. 135ss. e o Posfácio à 4. ed., pp. 674ss.
70. Cf. R. Alexy, Theorie derjurístischen Argumentation, Frankfurt am Main, 1991;
idem, Begriff und Geltungdes Rechts. Freiburg, 1992; idem, Recht, Vernunft, Diskurs,
Frankfurt am Main, 1995. Cf. tb. K. Baynes, The Normative Grounds o f Social Criticism,
Albany, 1992; S. Benhabib, “Deliberative Rationality and Models o f Democratic
Legitimacy”, Constellations, n. 1 (1994): 26-52; e sobretudo R. Forst, 1994.
60 A INCLUSÃO DO OUTRO
2
Reconciliação por meio do
uso público da razão*
61
democrático de direito: “O ur exercise of political power is fully proper
only, when it is exercised in accordance with a constitution the essentials
of which all citizens as free and equal may reasonably be expected to
endorse in the light of principies and ideais acceptable to their common
human reason.”1Essa frase provém do livro com o qual Rawls encerrou,
por enquanto, um processo de ampliação e revisão de sua teoria da
justiça, que demorou vinte anos. Do mesmo modo como antes se diri
gira contra as posições utilitaristas, ele hoje reage sobretudo contra as
posições contextualistas, que contestam o pressuposto de uma razão
comum a todos os seres humanos.
Como admiro esse projeto, compartilho sua intenção e considero
corretos seus resultados essenciais, o dissentimento de que quero falar
acaba ficando dentro dos estreitos limites de um briga de família. M i
nhas dúvidas limitam-se a saber se Rawls faz valer suas importantes
intuições normativas, pertinentes na minha opinião, de um modo sem
pre convincente. Antes de tudo, porém, gostaria de lembrar os contor
nos do projeto, tal como ele agora se apresenta.
Rawls fundamenta princípios segundo os quais se deve instituir
uma sociedade moderna, se ela tiver de garantir a cooperação justa e
imparcial entre seus cidadãos, como pessoas livres e iguais. Num pri
meiro passo, ele esclarece o ponto de vista a partir do qual represen
tantes fictícios poderíam responder a essa questão de modo imparcial.
Ele explica por que as partes, na assim chamada condição primitiva,
por-se-iam de acordo quanto a dois princípios, a saber: primeiro, o
princípio liberal, de acordo com o qual são concedidas a todos os cida
dãos iguais liberdades subjetivas de ação. Segundo, o princípio subor
dinado que regula e fixa os mesmos direitos de acesso aos cargos públi
cos para todos e que diz que as desigualdades sociais só podem ser acei
tas na medida em que ao menos tragam vantagens aos cidadãos menos
privilegiados. Num segundo passo, Rawls mostra que essa concepção,
sob aquelas condições de um pluralismo que ela mesma promove, pode
esperar ser objeto de aprovação. Do ponto de vista ideológico, o libera
lismo político é neutro porque é uma construção racional, sem suscitar
ele próprio uma reivindicação de verdade. Num terceiro passo, Rawls
esboça finalmente os direitos fundamentais e os princípios do Estado1
1. J. Rawls, Political Liberalism iv, New York 1993, p. 137 [ed. br.: Liberalismo
político, São Paulo, Ática, 2000].
62 A INCLUSÃO DO OUTRO
de direito que podem ser deduzidos dos dois princípios supremos de
justiça. Na seqüência desses passos, apresentarei alguns reparos, que se
dirigem menos contra o projeto como tal, e mais contra alguns aspec
tos de sua realização. Temo que Rawls faça concessões a posições filo
sóficas contrárias, que prejudicam a clareza de sua própria abordagem.
A minha crítica, feita com intenções construtivas, inicia-se de
modo imanente. Em primeiro lugar, tenho dúvidas de se o desigti da
condição primitiva é apropriado em todos os sentidos para explicar e
para assegurar o ponto de vista do julgamento imparcial de princípios
de justiça entendidos de modo deontológico (I). Além disso, tenho a
impressão de que Rawls deveria diferenciar mais nitidamente as ques
tões de fundamentação das questões de aceitabilidade; ele parece ter
intenção de conquistar a neutralidade ideológica de sua concepção de
justiça ao preço de sua reivindicação cognitiva de validação (II). Essas
duas decisões relativas à estratégia de sua teoria têm como consequência
uma construção do Estado de direito que subordina o princípio de
legitimação democrática a direitos liberais fundamentais. Assim, Rawls
malogra seu objetivo de compatibilizar a liberdade dos modernos e a
liberdade dos antigos (III). Encerro com uma tese a respeito do auto-
entendimento da filosofia política: nas condições do pensamento pós-
metafísico, ela deve ser modesta, mas não da maneira errada.
O papel de adversário que me foi atribuído pela redação do Jour
nal ofPhilosophy obriga-me a exacerbar objeções e reparos tentativos.
Essa exacerbação pode ser justificada com a intenção amistosa e pro
vocante de mexer com a “economia doméstica” argumentativa, nada
fácil de manejar, de um a teoria altamente complexa e muito bem
lucubrada, de tal modo que ela possa fazer valer suas potencialidades2.
°
O desigtt da condição primitiva
3. J. Rawls, “Der Vorrang der Grundfreiheiten”. In: idem, Die Idee des politischen
Liberalismus, Frankfurt am Main 1992, 176.
4. Cf. J. Rawls, “Gerechtigkeit ais Fairnefi”. In: idem (1992), 273s., nota 20.
64 A INCLUSÃO DO OUTRO
objetivo de demonstração a que originalmente deveria servir o design
da condição primitiva, ele continuou a insistir claramente em que o
sentido do ponto de vista moral pode ser operacionalizado desse modo.
Isso traz conseqüências desagradáveis, três das quais quero discutir a
seguir: (1) Podem as partes, na condição primitiva, perceber apenas
com base em seu egoísmo racional os interesses prioritários de seus
clientes? (2) É lícito que os direitos fundamentais sejam assimilados
como bens fundamentais? ( 3 ) 0 véu da insciência garante a imparcia
lidade do juízo?5
(1) Rawls não consegue sustentar de forma conseqüente a deci
são de fazer com que cidadãos “plenamente” autônomos sejam repre
sentados por partes às quais falta essa espécie de autonomia. Os cida
dãos são, por pressuposto, pessoas morais, possuidoras de um senso
de justiça e da capacidade de ter um a concepção própria do bem, as
sim como de um interesse em que essas predisposições sejam racio
nalmente aperfeiçoadas. Devido a seu design objetivamente racional,
as partes são desoneradas justamente dessas características racionais
das pessoas morais. Mesmo assim, espera-se que elas entendam e res
peitem adequadamente esses “interesses da mais elevada ordem” dos
cidadãos, resultantes justamente dessas características. Elas têm de
contar, por exemplo, com que os cidadãos autônomos respeitem os
interesses dos outros à luz de princípios justos e não apenas por inte
resse próprio; com que se deixem obrigar a um comportamento leal;
com que se deixem convencer, pelo uso público de sua razão, da legiti
midade das instituições e políticas existentes etc. As partes, portanto,
devem entender, levar a sério e tornar objeto de sua negociação as con
seqüências de uma autonomia que lhes é vedada em sua extensão in
tegral, assim como as implicações do uso de uma razão prática a que
elas próprias não podem recorrer. Isso ainda poderia parecer plausível
em face de uma percepção vicária do interesse auto-referido e voltado
ao seguimento das diferentes concepções do que seja bom, individual
mente desconhecidas. Mas será que o sentido das questões da justiça
pode ficar intocado pelo modo de ver de egoístas racionais? Em todo
caso, as partes, dentro das fronteiras de seu egoísmo racional, são in-
66 A INCLUSÃO DO OUTRO
contudo, ela desvia a atenção para os constrangimentos conceituais
resultantes da intenção inicial de resolver o problema hobbesiano do
ponto de vista da teoria das decisões. Pois mais uma conseqüência
do design da condição primitiva a partir da teoria das decisões é a in
trodução de bens fundamentais. E esta definição de rota tem relevância
para a ulterior ampliação da teoria.
(2) Para atores que decidem racionalmente, vinculados à pers
pectiva da primeira pessoa, o aspecto normativo, seja qual for, só pode
se apresentar como conceitos de interesses ou valores, que são preen
chidos por bens. Os bens são aquilo que é por nós almejado, aquilo
que é bom para nós. Coerentemente, Rawls introduz “bens fundam en
tais” como meios generalizados de que as pessoas podem precisar para
realizar os seus planos de vida. Embora as partes saibam que, para os
cidadãos de um a sociedade bem ordenada, alguns desses bens funda
mentais assumem o caráter de direitos, elas próprias, na situação da
condição primitiva, só podem descrever direitos como uma catego
ria de bens entre outras. Para elas, a questão que diz respeito aos prin
cípios de justiça só pode se colocar como um a questão da justa distri
buição de bens fundamentais. Com isso, Rawls se envolve com um
conceito de justiça baseado na ética dos bens, que se encaixa melhor
nas abordagens aristotélicas ou utilitaristas do que em sua própria teo
ria dos direitos, que parte do conceito da autonomia. Como Rawls se
prende a um a concepção de justiça segundo a qual a autonomia dos
cidadãos se constitui mediante direitos, o paradigma distributivo lhe
traz dificuldades. Os direitos só podem ser “gozados” na medida em
que deles se faz uso. Eles não podem ser assimilados a bens distribu-
tivos, sem abrir mão de seu sentido deontológico. Uma distribuição
uniforme de direitos só ocorre quando os jurisconsortes se reconhe
cem mutuamente como livres e iguais. Naturalmente, existem direi
tos a um a participação justa no todo dos bens e das oportunidades,
mas os direitos em si regulam relações entre atores — e não podem ser
“possuídos” por estes como se fossem coisas9. Se eu não estiver co
metendo um erro, Rawls vê-se obrigado pelos constrangimentos da
estratégia conceituai do modelo ainda eficiente da escolha racional a
não conceber imediatamente as liberdades fundamentais como di
reitos fundamentais, mas a reinterpretá-las por ora como bens funda -
10. Este reparo não se baseia (como no caso de O nora 0 ’Neill, Constructions o f
Reason, Cambridge 1989, cap. 12, pp. 206ss.) na tese de um a primazia dos deveres
sobre os direitos.
68 A inclusão do outro
mindo, as normas se diferenciam dos valores, primeiro por meio de
suas relações com diferentes tipos de ação comandada por regras ou
direcionadas para objetivos; segundo, pela codificação binária ou gra
dual de suas pretensões de validade; terceiro, por sua obrigatoriedade
absoluta (ou relativa); e quarto, por meio dos critérios que deve preen
cher o conjunto dos sistemas de normas e de valores.
Ora, Rawls quer levar em conta a intuição deontológica que se
exprime nessas diferenciações. Por isso, ao dar primazia ao primeiro
princípio, em detrim ento do segundo, ele precisa corrigir o nivela
m ento da dimensão deontológica que aceitara primeiro — devido
ao design da condição primitiva. Contudo, a partir da perspectiva da
prim eira pessoa, pela qual nós nos orientamos de acordo com nos
sos interesses e valores, não é possível fundam entar uma primazia
absoluta das mesmas liberdades subjetivas de ação diante dos bens
fundamentais regulados pelo segundo princípio. Esse ponto foi cla
ramente salientado por H. L. A. H art11 em sua crítica. É interessante
que Rawls enfrenta essa crítica apenas na medida em que inclui pos
teriormente entre seus bens fundamentais um a qualificação que lhes
assegura uma relação com as liberdades fundamentais enquanto di
reitos fundamentais, a saber, ele só confere validade como bens fun
damentais aos bens sociais que são apropriados para os planos de vida
e para o desenvolvimento da capacidade moral dos cidadãos como pes
soas livres e iguais1
112. Além do mais, Rawls diferencia entre bens funda
mentais que são constitutivos no sentido moral para a moldura ins
titucional da sociedade bem ordenada e os bens fundamentais res
tantes, na medida em que ele inclui no primeiro princípio a garantia
do “justo valor” da liberdade13.
Contudo, essa determinação adicional estabelece tacitamente uma
diferenciação deontológica entre direitos e bens que contradiz a clas
sificação de direitos e bens feita de início. Porque o justo valor de liber
dades iguais mede-se pelo preenchimento de condições efetivas para
um exercício com igualdade de oportunidades dos direitos correspon
dentes — e desse modo apenas os direitos podem ser qualificados. Não
11. Cf. H. L. A. Hart, “Rawls on Liberty and its Priority”. In: N. Daniels (ed.),
Reading Rawls, New York, 1975,230ss.
12. Cf. W. Hinsch, Introdução a: Rawls (1992), 36ss.
13. J. Rawls, “Vorrang”. In: idem (1992), 178ss. e 196ss.
70 A INCLUSÃO DO OUTRO
justa como lei geral. Mas enquanto aplicamos monologicamente esse
exame mais pretensioso, restam perspectivas individuais isoladas, a
partir das quais cada um de nós imagina privadamente o que todos
poderíam querer. Isso é insatisfatório. O que de meu ponto de vista é
igualmente bom para todos só faria parte efetiva do interesse uniforme
de cada um se, em cada uma das coisas que me parecem evidentes, se
refletisse uma consciência transcendente, isto é, uma compreensão de
m undo universalmente válida. Nas condições do moderno pluralismo
social e ideológico, ninguém mais poderá partir desse pressuposto. Se
quisermos salvar a intuição do princípio kantiano de universalização,
poderemos reagir a esse fato do pluralismo de diferentes maneiras.
Pela limitação da informação, Rawls fixa as partes da condição pri
mitiva num a perspectiva comum e neutraliza assim de antemão, m e
diante um artifício, a multiplicidade das perspectivas particulares de
interpretação. A ética do discurso, pelo contrário, vê o ponto de vista
moral como encarnado no procedimento de uma argumentação levada
a efeito intersubjetivamente, que exorta os participantes a erguerem as
barreiras de suas perspectivas de interpretação.
A ética do discurso apóia-se na intuição de que a aplicação do
princípio de universalização bem entendido exige uma “assunção ideal
de papéis”, feita em conjunto. Contudo, ela interpreta essa idéia de
senvolvida por G. H. Mead com os meios de uma teoria pragmática
da argumentação14.
Sob os pressupostos comunicacionais de um discurso não-coa-
tivo, preocupado em inserir e conduzido entre participantes livres e
iguais, cada um é exortado a assumir a perspectiva— e com isso a auto-
compreensão e compreensão de m undo — de todos os outros; desse
cruzamento de perspectivas constrói-se uma perspectiva em primeira
pessoa do plural (“nossa”) idealmente ampliada, a partir da qual todos
podem testar em conjunto se querem fazer de uma norma discutível a
15. Cf. W. R. Rehg, Insight and Solidarity. The Discourse Ethik ofjürgen Habermas,
Berkeley, 1994.
72 A INCLUSÃO DO OUTRO
Se é tão pesado o ônus da prova ocasionado pela subtração de
informações que se inflige com o véu da insciência às partes em con
dição primitiva, então é natural que, para se diminuir esse encargo, se
operacionalize o ponto de vista moral de maneira distinta. Penso aqui
no procedimento aberto de uma práxis argumentativa que acate as
severas pressuposições do “uso público da razão” e que não descarte já
de antemão o pluralismo das convicções e cosmovisões. Esse procedi
mento pode ser elucidado sem a recorrência aos conceitos substan
ciais básicos, que Rawls usa para construir a condição primitiva.
O
O fato do pluralismo e a idéia do consenso abrangente
74 A INCLUSÃO DO OUTRO
dida que socializasse seus cidadãos de forma correta16. Com vistas ao
factum do pluralismo social e de cosmovisões, que só mais tarde pas
sou a ser levado a sério em suas reflexões, Rawls acredita ser preciso
testar de forma semelhante se a concepção da justiça em geral, intro
duzida por via teórica, incide “sobre a arte do possível” e se ela, em tal
medida, é “praticável”17. Antes de mais nada, é preciso que o conceito
central de pessoa, sobre o qual a teoria se apóia, seja tão neutro que
possa ser aceito a partir das perspectivas interpretativas de diferentes
visões de mundo. Deve-se demonstrar, portanto, que a justiça enquanto
honestidade pode compor a base de um “consenso abrangente”. Irri
ta-me aí a suposição de Rawls de que tal prova de aceitabilidade seja
de tipo semelhante ao da prova de consistência que ele mesmo, no
primeiro plano, aplicara em face da possibilidade de auto-estabilização
de um a sociedade bem-ordenada.
Essa paralelização metódica é irritante porque desta vez a prova
não pode ser tirada internamente à teoria. O teste quanto à neutralida
de de visão de m undo dos conceitos sustentadores básicos segue ou
tras premissas que não aquelas de uma conferição hipotética da capa
cidade reprodutiva de uma sociedade já instituída segundo princípios
de justiça. O próprio Rawls fala agora de “dois planos” da formação de
teorias. Os princípios fundamentados no primeiro plano precisam ser
submetidos publicamente à discussão no segundo plano, porque apenas
aí se pode levar em conta o fato do pluralismo e tornar retroativo o
corte abstrativo da condição primitiva. Diante do fórum do uso pú
blico da razão, a teoria em seu todo precisa ser exposta à crítica dos
cidadãos; trata-se aí não mais de cidadãos fictícios de uma sociedade
justa, sobre os quais se podem emitir enunciados no interior da teoria,
mas sim de cidadãos de carne e osso; a teoria precisa manter em aber
to o térm ino de um teste como esse. Rawls também tem em vista dis
cursos reais com final em aberto: “What if it turns out that the principies
of justice as fairness cannot gain the support of reasonable doctrines,
so that the case for stability fails? (...) We should have to see whether
acceptable changes in the principies of justice would achieve stability”18.
19. J. Rawls, “Gerechtigkeit ais Fairnefi: politisch, nicht metaphysisch”. In: J. Rawls,
1992, pp. 263s.
76 A INCLUSÃO DO OUTRO
mental da teoria já fracassa pelo fato de os cidadãos terem primeiro
de se convencer da concepção de justiça, antes que se possa firmar tal
consenso. Essa última não deve ser erradamente “política”, não deve
simplesmente conduzir a um modus vivendi. A própria teoria precisa
fornecer premissas “que nós e os outros reconhecemos como racio
nais quando temos o objetivo de alcançar uma convenção praticável
sobre os pontos fundamentais da justiça política”20. Ao excluir uma
interpretação funcionalista da justiça enquanto honestidade, no en
tanto, Rawls precisa acatar um a relação epistêmica qualquer entre a
validade de sua teoria e a perspectiva de uma comprovação de sua
neutralidade de visão de m undo em discursos públicos. O efeito so
cial estabilizador de um consenso abrangente explica-se então a par
tir da atestação cognitiva da suposição de que a concepção de justiça
enquanto honestidade comporte-se de maneira neutra em face de
“doutrinas circunscritivas”. Não penso que Rawls se apóie em premis
sas que o tenham impedido de chegar a essas conclusões; noto, ape
nas, que ele hesita em expressá-las, porque associa à designação “po
lítico” uma restrição segundo a qual a teoria da justiça não poderia
estar munida de um anseio epistêmico, da mesma forma que seu efeito
prático esperado não poderia tornar-se dependente da aceitabilidade
racional de seus enunciados. Surge-nos, portanto, a ocasião para per
guntar por que Rawls não considera sua teoria como apta à verifica
ção e em que sentido ele se utiliza aqui do predicado “racional” ao
invés de dizer “verdadeiro”.
(2) Uma teoria da verdade não poder ser verdadeira ou falsa, só
pode assumir, em uma interpretação atenuada, o sentido comprome
tedor de que enunciados normativos não retratam nenhuma ordem
de fatos morais que dependa de nós. Em um a interpretação bastante
severa, essa tese assume o sentido valorativamente cético de que por
trás do anseio de validação de enunciados normativos esconde-se algo
puramente subjetivo — sentimentos, desejos ou opções expressos, do
ponto de vista gramatical, de um a maneira desencaminhadora. Para
Rawls, no entanto, realismo valorativo e ceticismo valorativo são igual
mente aceitáveis. Para os enunciados normativos — e para a teoria da
justiça como um todo — , a intenção de Rawls é assegurar certa obriga
toriedade apoiada em um reconhecimento intersubjetivo fundam en
21. “W hat rational agents lack is the particular form o f moral sensibility that
underlies the desire to engage in fair cooperation as such, and so on terms that others
as equals might reasonably be expected to endorse” [O que falta aos agentes racionais
é a forma particular de sensibilidade moral que fundam enta o desejo de se engajar em
uma cooperação justa e honesta como tal, e isso de modo que se possa esperar racio
nalmente dos outros, como iguais, que eles apoiem tal coisa] J. Rawls, 1993, p. 51.
78 A INCLUSÃO DO OUTRO
por não considerar tal coisa problemática) e, por outro lado, à di
mensão pragmática da condição pública em que se dá a fundamenta
ção de normas (o que desperta especial interesse no contexto de nossa
reflexão). A condição pública de seu uso, por assim dizer, está inscrita
na razão. “Pública” é a perspectiva comum a partir da qual os cidadãos
se convencem reciprocamente do que seja justo ou injusto, com a força
do melhor argumento. É tão-somente essa perspectiva do uso pú
blico da razão, partilhada por todos, que confere objetividade às con
vicções morais. Rawls denomina “objetivos” os enunciados normativos
válidos; e a objetividade ele fundamenta com base em procedimentos,
ou seja, com referência a um uso público da razão que satisfaz certas
condições contrafactuais; “Political convictions (which are also moral
convictions) are objective — actually found on an order of reasons
— if reasonable and rational persons, who are sufficiently intelligent
and conscientious in exercising their powers of practical reason...
would eventually endorse those convictions... provided that these
persons know the relevant facts and have sufficiently surveyed the
grounds that bear on the matter under conditions favorable to due
reflection”22. Embora Rawls acrescente, a essa altura, que razões só
podem ser especificadas como boas razões por meio de um progra
ma de justiça já reconhecido, esse programa, por sua vez, tem que
contar com a concordância dos envolvidos sob as mesmas condições
ideais23. Por isso, suponho que precisamos entender Rawls de modo
que, também segundo a concepção dele, o procedimento do uso p ú
blico da razão continue sendo para os enunciados normativos a última
instância de comprovação.
À luz dessa reflexão, seria cabível dizer que o predicado “racional”
refere-se ao cumprimento de um anseio de validação atendido por via
discursiva. Por analogia a um programa de verdade não-semântico, p u
rificado de noções de correspondência, poderiamos entender “racional”
como um predicado para a validade de enunciados normativos24. Evi
dentemente, Rawls não pretende chegar a tal conclusão — que a meu
ver é correta; do contrário, ele teria de evitar o irritante uso lingüístico
segundo o qual imagens de m undo não precisam ser “verdadeiras”, mes
80 A INCLUSÃO DO OUTRO
de um estado constitucional justo”25. Esse modo de ver as coisas é muito
simpático; mas como conciliá-lo exatamente com as razões pelas quais
Rawls e eu aceitamos uma primazia do justo sobre o bom?
Questões de justiça são acessíveis a uma decisão fundada— fun
dada no sentido de uma aceitabilidade racional — , porque elas, a partir
de uma perspectiva descingida de modo ideal, referem-se ao que cor
responde equanimemente aos interesses de todos. Em face disso, ques
tões “éticas” em sentido estrito não admitem um julgamento que seja
obrigatório para todas as pessoas morais, e isso porque questões como
tais se referem, sob a perspectiva da primeira pessoa, ao que no todo
e a longo prazo é bom para mim ou para nós enquanto uma determi
nada coletividade — mesmo que tal coisa não seja igualmente boa
para todos. Imagens de m undo metafísicas e religiosas estão ao menos
impregnadas de respostas a perguntas éticas; pois nelas, de maneira
exemplar, articulam-se identidades e esboços de vida. Portanto, im a
gens de m undo medem-se antes pela autenticidade dos estilos de vida
que as marcam do que pela verdade dos enunciados que elas contêm.
É justamente por serem “abrangentes” no sentido de que interpretam
o m undo como um todo que não se podem entender as imagens de
m undo como uma quantidade ordenada de enunciados descritivos;
elas não se diluem em sentenças aptas à verificação e tampouco cons
tituem um sistema simbólico que seja verdadeiro ou falso como tal.
De qualquer maneira, ele se apresenta a nós sob as condições de um
pensamento pós-metafísico, sob as quais se deve fundam entar a jus
tiça enquanto honestidade.
Mas então não é possível tornar a validade de uma concepção de
justiça dependente da verdade de uma imagem de m undo “racional”,
seja ela qual for. Sob essa premissa é m uito mais sensato analisar os
diferentes anseios de validação que vinculamos a enunciados descri
tivos, avaliativos e normativos (de diferentes tipos) independente
mente daquela síndrome característica a reivindicações de validação
disparadas de maneira obscura nas interpretações religiosas e m eta
físicas do m undo26.
25. J. Rawls, “Der Gedanke eines übergreifenden Konsenses”. In: J. Rawls, 1992,
p. 332.
26. Cf. J. Habermas, “Motive nachmetaphysischen Denkens”. In: J. Habermas,
Nachmetaphysiches Denken, Frankfurt am Main, 1988, pp. 35-60 [ed. br.: Pensamento
pós-metafísico, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990).
82 A INCLUSÃO DO OUTRO
de questões práticas (no sentido de uma coação trascendental ate
nuada). Rawls crê que uma teoria da justiça não poderia ser “suficien
temente estruturada” somente por uma alegação procedimental como
essa. Já que prezo em minha reflexão a divisão de trabalho entre teoria
moral e teoria da ação, não considero esse reparo decisivo; a estrutu
ração conceituai dos contextos acionais a que se referem as questões
da justiça política não é tarefa de uma teoria normativa. Com o con
teúdo de conflitos carentes de solução impõe-se a nós toda uma rede
de conceitos básicos da teoria da ação para interações regradas nor
mativamente — uma rede em que têm lugar conceitos como pessoa e
relação interpessoal, agente e ação, comportamento divergente da nor
ma ou conforme a ela, imputabilidade e autonomia, e mesmo senti
mentos morais subjetivamente estruturados. Esses conceitos neces
sitam de uma análise prévia. E, então, quando damos ao conceito da
razão prática a versão procedimental que o próprio Rawls sugere com
seu conceito de uso público da razão, podemos dizer que válidos são
justamente os princípios que, sob as condições discursivas, poderiam
merecer reconhecimento intersubjetivo isento de coações. Há então
um a questão a mais, que se deve responder, a propósito, de forma
amplamente empírica, sobre quando é que os princípios válidos tam
bém asseguram estabilidade política sob as condições do pluralismo
moderno de visões de mundo. A seguir, será meu interesse executar o
enfoque procedimental tão-somente com vistas a uma conclusão que
diz respeito à elucidação do estado democrático de direito.
Os liberais acentuaram as “liberdades dos modernos”, em pri
meira linha a liberdade de crença e consciência, bem como a defesa da
vida, da liberdade e propriedade pessoal, ou seja, o cerne dos direitos
civis subjetivos; em face disso, o republicanismo defendeu as “liber
dades dos antigos”, quais sejam os direitos políticos de participação e
comunicação que possibilitam a práxis autodeterminante dos cida
dãos. Rousseau e Kant tinham a ambição de derivar os dois elementos
de um a mesma raiz, ambos como primordiais: nem se podem sim
plesmente abafar os direitos básicos liberais da práxis autodetermina-
dora como sendo restrições externas, nem se pode instrumentalizá-
los em prol dessas mesmas restrições. Também Rawls segue essa intui
ção; entretanto, da conformação de sua teoria em dois níveis resulta
uma vantagem dos direitos fundamentais liberais que chega de certa
maneira a obscurecer o processo democrático.
84 A INCLUSÃO DO OUTRO
cias indesejadas. Isso se mostra, por exemplo, no limite rígido entre a
identidade política e a identidade não-pública dos cidadãos. De acordo
com Rawls, esse limite é traçado por direitos fundamentais liberais
que delimitam de antemão a autolegislação e, com isso, a esfera do que
é político, ou seja, sobretudo da formação política da vontade.
Rawls usa a expressão “político” em sentido triplo. Até aqui co
nhecemos o significado teórico específico: um a concepção de justiça é
política e não metafísica quando é neutra em relação a visões de m un
do. Mais adiante, Rawls usa a expressão “político” como de costume
para a classificação de assuntos de interesse público, de modo que a
filosofia política se restringe aí à justificação do contexto institucional
e da estrutura básica de uma sociedade. Finalmente, os dois significa
dos estabelecem uma ligação interessante quando se fala de “valores
políticos”. Nesse terceiro significado, “o político” forma uma reserva
tanto para convicções que os cidadãos têm em comum como para os
pontos de vista da delimitação regional de um campo objetivo. Rawls
— nesse ponto quase um neokantiano como Max Weber — trata a
esfera política de valores, que nas sociedades modernas se destaca de
outras esferas culturais, como algo dado. Pois é só com a referência a
valores políticos, sejam quais forem, que ele pode cindir a pessoa m o
ral em uma identidade pública do cidadão e em uma identidade não-
pública da pessoa em particular, determinada por uma respectiva con
cepção própria do que seja bom. Essas duas identidades formam assim
os pontos de referência para duas esferas, das quais um a é defendida
pelos direitos políticos de participação e comunicação e a outra, por
direitos liberais à liberdade. E nisso tem primazia a defesa legal básica
da esfera civil, ao passo que “as liberdades políticas” continuam tendo
“consideravelmente um papel instrumental de defesa das demais li
berdades”28. Com referência à esfera política de valores exclui-se por
tanto uma esfera de liberdade anterior à política, eximida da interven
ção por parte da autolegislação democrática.
Contudo, um estabelecimento de limites como esse entre auto
nomia privada e pública, firmado a priori, contradiz não apenas a ins
tituição republicana segundo a qual a soberania dos povos e os direi
tos humanos derivam da mesma raiz. Ela contradiz também a expe
riência histórica, em especial a circunstância de que os estabelecimen
28. J. Rawls, “Der Vorrang der Grundfreiheiten”. In: J. Rawls, 1992, p. 169.
29. Cf. S. Benhabib, “Models of Public Space”. In: S. Benhabib, Situating the Self.
Cambridge, 1992, pp. 89-120.
30. Cf. J. Rawls, 1993, p. 215.
31. Esse princípio jurídico de Kant retorna no primeiro princípio de Rawls.
86 A INCLUSÃO DO OUTRO
A relação dialética entre autonomia privada e pública só se torna
clara por meio da possibilidade de institucionalização do status de um
cidadão como esse, democrático e dotado de competências para o es
tabelecimento do Direito, e isso somente com o auxílio do direito coer
civo. No entanto, porque esse direito se direciona a pessoas que, sem
direitos civis subjetivos, não podem assumir de forma alguma o status
de pessoas juridicamente aptas, as autonomias privada e pública dos
cidadãos pressupõem-se reciprocamente. Como já mencionamos, os
dois elementos já estão entrelaçados no conceito do direito positivo e
coercivo: não haverá direito algum, se não houver liberdades subje
tivas de ação que possam ser juridicamente demandadas e que garan
tam a autonomia privada de pessoas em particular juridicamente aptas;
e tampouco haverá direito legítimo, se não houver o estabelecimento
comum e democrático do Direito por parte de cidadãos legitimados
para participar desse processo como cidadãos livres e iguais. Quando
esclarecemos de tal maneira o projeto do Direito, é fácil notar que a
substância normativa dos direitos à liberdade já está contida no ins
trum ento que é ao mesmo tempo necessário à institucionalização jurí
dica do uso público da razão por parte de cidadãos soberanos. O objeto
central da análise a seguir é formado então pelos pressupostos da co
municação e pelos processos de um a formação discursiva da opinião
e da vontade, em que o uso público da razão se manifesta32.
Em comparação com a teoria da justiça de Rawls, uma teoria da
moral e do direito como essa, voltada aos procedimentos, é ao mesmo
tempo mais modesta e menos modesta. Ela é mais modesta, porque se
restringe aos aspectos procedimentais do uso público da razão e por
que desenvolve o sistema dos direitos a partir da idéia de sua insti
tucionalização legal. Ela pode deixar mais perguntas abertas, porque
confia mais no processo de uma formação racional da opinião e da
vontade. Em Rawls, os pesos são divididos de outra forma: enquanto
se reserva à filosofia a precedência para desenvolver a idéia potencial
mente consensual de uma sociedade justa, os cidadãos utilizam essa
idéia como base a partir da qual julgam as instituições e os políticos
ora subsistentes. Em face disso, sugiro que a filosofia se restrinja ao
esclarecimento do processo democrático e do ponto de vista moral, à
88 A INCLUSÃO DO OUTRO
3
"Racional" ve rsu s
"verdadeiro" — ou a moral
das imagens de mundo*1
89
face de imagens de m undo ou comprehensive áoctrines [doutrinas cir-
cunscritivas] concorrentes. Rawls associa à expressão “político” uma
interpretação muito particular de neutralidade: “It means that we must
distinguish between how a political conception is presented and its
being part, or derivable within, a comprehensive doctrine”2. O tipo
de neutralidade caracterizado pela natureza “política” da “justiça como
honestidade” pode ser elucidado pelo fato de que se pode apresentar
essa concepção como sendo “vaga”. O que se tem em mente com esse
status, Rawls explica-o com uma das assunções mais notáveis de sua
teoria: “I assume all citizens to affirm a comprehensive doctrine to
which the political conception they accept is in some way related. But
a distinguishing feature of a political conception is that it is... ex-
pounded apart from, or without reference to, any such wider back-
ground... The political conception is a m odule... that fíts into and
can be supported by various reasonable comprehensive doctrines that
endure in the society regulated by it” (PL, p. 12)3.
Nessa segunda acepção, a expressão “político” não se refere a uma
matéria determinada, mas sim a um status epistêmico particular ao
qual aspiram as concepções políticas de justiça: elas devem se integrar
como partes coerentes a diversas imagens de mundo. Muito embora
as concepções políticas de justiça possam ser apresentadas indepen
dentemente de contextos ligados a visões de m undo em particular, e
mesmo “esclarecidas” dessa forma, ou seja: muito embora possam ser
introduzidas de maneira plausível, elas só podem ser fundamentadas
em uma doutrina circunscritiva. Também o liberalismo político se
arroga um status como esse. E como ele precisa ser explicado no âm
bito dessa teoria, a expressão “vago” tem aqui uma dupla referência.
De um lado, designa uma condição necessária de todas as concepções
2. [“Isso quer dizer que precisamos distinguir entre, de um lado, a maneira pela
qual um a concepção política é apresentada e, de outro, sua parte existente, ou, o que
se pode derivar nesse âmbito, um a doutrina circunscritiva”] Cf. J. Rawls. Political
Liberalism. New York, 1993, p. 12 (doravante cit. como PL) [ed. br.: Rawls, Liberalismo
político, São Paulo, Ática, 2000].
3. [“Aceito que todos os cidadãos afirmem uma doutrina compreensiva, com a
qual a concepção política que eles aceitam está de certo m odo relacionada. Mas uma
característica distintiva da concepção política é que ela é ... interpretada separada de,
ou sem referência a, qualquer circunstância mais am pla... A concepção política é um
m ódulo... que cabe em e pode ser apoiada por várias doutrinas racionais compreensi
vas que persistem na sociedade que por ela se regula”].
90 A INCLUSÃO DO OUTRO
de justiça que se possam cogitar como candidatas à inclusão em um
“consenso abrangente”. De outro lado, o predicado “vago” deve apli-
car-se à própria teoria que o explica: “justiça como honestidade” é uma
das candidatas mais promissoras. Esse uso auto-referencial de “vago”
pode ser entendido como anseio político. Rawls espera que, sob as
condições de um “equilíbrio reflexivo ilimitado”4, a própria teoria ofe
reça um fundamento sobre o qual os cidadãos da sociedade norte-ame
ricana (e mesmo de toda e qualquer sociedade “moderna”) possam al
mejar um consenso político fundamental.
Menos plausível é que Rawls ainda onere o uso auto-reflexivo da
expressão “vago” com outro anseio, teórico. Ele parece supor que uma
teoria vaga no campo do que é político assuma uma mesma posição
no campo da filosofia e contorne assim todas as questões controver
sas da metafísica — “leaving philosophy as it is” [deixando a filosofia
como ela é]. Não é de se esperar que Rawls possa elucidar o status epis-
têmico de um a concepção vaga de justiça sem que precise tomar po
sição em relação a questões filosóficas, que talvez nem se incluam na
categoria do que é “metafísico”, mas que certamente ultrapassam a
esfera do “político”.
A expressão “metafísico”, na verdade, ganha um sentido próprio a
partir da oposição a “político”. Sociedades modernas, por causa de seu
pluralismo religioso e cultural, dependem de um consenso abrangente
sobre questões relacionadas à justiça política, e neutro em relação a
visões de m undo em particular. Sem dúvida, mesmo uma teoria que
pretenda apenas apoiar tal consenso tem de ser “política e não meta
física”, nesse sentido. Disso ainda não resulta, de modo algum, que a
própria teoria política possa mover-se “por completo no campo do que
é político” (R, p. 133) e manter-se isenta das controvérsias filosóficas
remanescentes. Discussões filosóficas podem ultrapassar a esfera do po
lítico em muitas direções. A filosofia, afinal, é um empreendimento
institucionalizado que se dá sob a forma de uma busca cooperativa
da verdade, e não cultiva necessariamente uma relação interna ao que
é metafísico” (no sentido do Liberalismo político). Se a explicação do
status epistêmico de uma concepção “vaga” nos enreda em discussões
não-políticas sobre a razão e a verdade, isso não significa eo ipso o envol
Racional ” v e r s u s “verdadeiro ” 91
vimento em questões e controvérsias metafísicas. De maneira indireta,
como que performativa, a investigação a seguir deve aclarar esse pon
to. Ela procurará, de modo explícito, clarear o status epistêmico de uma
concepção vaga de justiça em sentido — capciosamente — político.
Eu gostaria de checar como funciona a divisão de trabalho entre
o político e o metafísico, que se espelha em uma especial dependência
do “racional” em relação ao “verdadeiro”. Não é nada evidente que ra
zões publicamente defensáveis e independentes de seus agentes pos
sam ter peso decisivo apenas em favor da “racionalidade” de uma con
cepção política, ao passo que razões não-públicas e dependentes dos
agentes devam bastar para a reivindicação autóctone e consolidada de
uma “verdade” moral. A resposta generosa e detalhada de Rawls a m i
nhas observações tentativas5 deixa claros — entre outras coisas — os
tipos de justificação que conduzem a um “overlapping consensus”. Sob
a luz desses esclarecimentos, gostaria de desenvolver a seguinte tese:
enquanto os cidadãos racionais não estiverem em condições de adotar
um “ponto de vista moral” que se mostre independente das perspectivas
das diferentes imagens de m undo assumidas por cada um deles em
particular e que as preceda, não podemos esperar deles um “consenso
abrangente”. O conceito “racional” — reasonable — ou inflaciona-se
ao ponto de se tornar atenuado demais para assinalar a validade de
uma concepção de justiça subjetivamente reconhecida; ou é definido
de forma suficientemente severa, mas de modo que o que seja prati
camente “racional” coincide com o moralmente correto. Eu gostaria
de demonstrar que — e por que — Rawls não consegue evitar enfim o
total esvaziamento das exigências da razão prática — exigências essas
que são na verdade arrancadas das imagens de m undo racionais e não
se limitam a refletir sobreposições bem-sucedidas dessas mesmas ima
gens de m undo6.
Antes que eu comece medias in res, permitam-me caracterizar o
desafio da situação moderna da consciência à qual as teorias da justiça
têm de reagir, de um maneira ou de outra (1). Logo a seguir, esboça
rei com a brevidade possível o passo filosófico que leva de Hobbes a
Kant (2), pois essa posição constitui o pano de fundo para a peculiar
alternativa de Rawls (3). Na parte central, analisarei (4) a divisão dos
92 A INCLUSÃO DO OUTRO
ônus de prova entre as concepções “racionais” de justiça e as “verdadei
ras” morais das imagens de mundo, para então (5) discutir as dificul
dades daí decorrentes para a construção da justificativa de um consen
so abrangente. Finalmente, (6) menciono argumentos em favor de uma
concepção procedimental e próxima a Kant, qual seja a concepção de
“uso público da razão”. Quando se entende a justiça política dessa m a
neira, (7) a autolegislação democrática assume o lugar ocupado no li
beralismo político pelas liberdades negativas. Assim, os realces deslo
cam-se e posicionam-se em favor de um republicanismo kantiano.
O
A moderna situação de partida
94 A INCLUSÃO DO OUTRO
Diante desse contexto, nem a premissa com a qual Hobbes pre
tendeu tirar a filosofia prática de seu beco sem saída torna-se mais plau
sível. Hobbes pretendeu reduzir a razão prática a uma razão instru
mental. Na tradição da teoria hobbesiana do contrato, há até hoje en
foques inteligentes que logram, de forma harmônica, entender razões
morais no sentido de motivos racionais e atribuir juízos morais à esco
lha racional. O contrato social é sugerido como um procedimento para
o qual é suficiente haver o interesse próprio e esclarecido dos partici
pantes. Aos contratantes basta refletir se é racional ou propositado, à
luz de seus desejos e preferências, adotar uma regra comportamental
ou um sistema de regras desse tipo. Contudo, como demonstra o pro
blema dos que deixam para tomar decisões oportunistas de última hora
quando tudo já está praticamente resolvido, essa estratégia ignora o
sentido especificamente obrigatório de normas vinculativas e de enun
ciados morais válidos. De passagem, limito-me ao argumento que T.
M. Scanlon usou contra o utilitarismo: “The right-making force of a
persons desire is specified by what might be called a conception of
moral argumentation; it is not given, as the notion of individual well-
being may be, simply by the idea of what is rational for an individual to
desire”8. Contudo, se não se pode elucidar o teor cognitivo de enuncia
dos normativos segundo os conceitos da racionalidade instrumental,
qual é o tipo de razão prática a que devemos recorrer?
O
De Hobbes a Kant
Racional ” v e r s u s “verdadeiro ” 95
tivas” que garantem a verdade das concepções morais que nelas re
pousam. Nas duas direções acabamos deparando impedimentos. Na
primeira direção, precisamos diferenciar claramente a razão prática
da teórica, mas de tal forma que ela não ponha a perder seu teor cog
nitivo. Nesse caso, estamos envolvidos com um pluralismo perm a
nente de visões consideradas verdadeiras no círculo de seus defen
sores, muito embora todos saibam que apenas um a delas pode ser
realmente verdadeira.
Na tradição kantiana, a razão prática determina a perspectiva de
um julgamento imparcial de normas e princípios. Esse “ponto de vista
moral” é operacionalizado com a ajuda de diferentes preceitos e pro
cedimentos — seja o imperativo categórico, seja um a troca ideal de
papéis, tal como em Mead, seja uma regra argumentativa, como em
Scanlon, seja a construção de uma condição primitiva que impõe res
trições adequadas à escolha racional das partes, tal como sugere Rawls.
Esses diferentes delineamentos têm a finalidade última de possibilitar
uma convenção ou um acordo tal, que os resultados de nossa intuição
satisfaçam a deferência eqüânime e a responsabilidade solidária de
vidas a cada um. Como os princípios e normas selecionados dessa
maneira exigem para si um reconhecimento geral, essa união erigida
por via correta precisa qualificar-se em sentido epistêmico. As razões
postas na balança precisam ter peso epistêmico e não podem expres
sar tão-somente o que certas pessoas consideram racional fazer, se
gundo suas respectivas preferências dadas.
Uma possibilidade de apreender o papel epistêmico de reuniões
práticas em conselho é a descrição exata, sob o ponto de vista moral,
da maneira pela qual os interesses pessoais que entram nessas reu
niões como motivos racionais vão alterando seu próprio papel e sig
nificado ao longo da argumentação. Pois em discursos práticos o que
“conta” para o resultado são apenas os interesses apresentados como
valores intersubjetivamente reconhecidos e que se candidatam a ser
aceitos no teor semântico das normas válidas. Somente as orienta
ções de valor generalizáveis ultrapassam esse limiar, ou seja, somente
as orientações de valor que podem ser aceitas com boas razões por
todos os participantes (e envolvidos) para servirem à normatização
de uma matéria carente de regulamentação — e que com isso ganham
força normativamente vinculativa. Um “interesse” pode ser descrito
como “orientação de valor” quando é partilhado por outros integran
96 A INCLUSÃO DO OUTRO
tes em situações parecidas. Portanto, caso se deva considerar um in
teresse sob o ponto de vista moral, é preciso que ele se desprenda da
vinculação à perspectiva de um a primeira pessoa. Tão logo ele seja
traduzido para um vocabulário avaliativo subjetivamente partilhado,
aponta para além de desejos ou preferências e então, como candidato
a um a generalização valorativa no âmbito de fundamentações m o
rais, pode assumir o papel epistêmico de um argumento. O que in
gressa no discurso como desejo ou preferência só passa no teste de
generalização mediante a descrição de um valor que seja considerado
por todos os participantes em geral como aceitável para a regulamen
tação da respectiva matéria.
Suponhamos que a reunião prática em conselho possa ser con
cebida como uma forma de argumentação que se diferencie tanto da
escolha racional quanto do discurso factual. Aí então uma teoria da ar
gumentação orientada de maneira pragmática se apresentaria como
caminho para se elaborar a concepção de uma razão prática distinta
tanto da razão instrumental quanto da teórica. Seria possível garantir
um sentido cognitivo a sentenças obrigacionais sem assimilá-las a sen
tenças assertivas ou atribuí-las à racionalidade instrumental. Ainda
persiste, no entanto, a analogia entre verdade e correção normativa, o
que imporia novas questões. Não poderiamos eximir-nos das já co
nhecidas controvérsias sobre conceitos semânticos e pragmáticos de
fundamentação e de verdade, nem tam pouco da discussão sobre a
relação entre significação e validação, sobre a construção e o papel de
argumentos, sobre lógica, procedimento e forma comunicativa da ar
gumentação, e assim por diante. Precisaríamos ocupar-nos da rela
ção do universo social com os universos objetivo e subjetivo, e não
poderiamos escapar do debate perm anente acerca da racionalidade.
Por isso é muito compreensível a tentativa de Rawls de evitar discus
sões desse tipo — e mesmo que não se classifiquem essas controvér
sias como sendo “metafísicas”.
Por outro lado, se a estratégia de desoneração de uma separação
clara entre o político e o metafísico pode ou não ter êxito, essa é outra
questão. Inicialmente, Rawls procurou seguir a estratégia kantiana de
avanço; em Uma teoria da justiça ele se havia imposto a tarefa de aclarar
o “ponto de vista moral” com o auxílio da condição primitiva. De qual
quer modo, a construção da “justiça como honestidade” nutriu-se de
um a razão prática que se corporifica nas duas “capacidades elevadas”
98 A INCLUSÃO DO OUTRO
tre o político e o metafísico, o que resulta na separação entre o con
teúdo — sobre o qual todos os cidadãos podem estar de acordo — e as
respectivas razões — a partir das quais o indivíduo pode aceitar esse
conteúdo como sendo verdadeiro. Essa construção parte tão-somente
de duas perspectivas: cada cidadão vincula a perspectiva de partici
pante à de observador. Observadores podem descrever processos na
esfera política, tais como, por exemplo, o fato do surgimento de con
sensos abrangentes. Podem saber que esse consenso se ajusta em de
corrência da sobreposição bem-sucedida das diversas partes de dife
rentes imagens religiosas e metafísicas de mundo, e que ele contribui,
desse modo, para que haja estabilidade na coletividade. Porém, nesse
ajuste dos observadores, o qual tem por fim a objetivação, os cida
dãos não podem imergir reciprocamente nas demais imagens de
mundo, nem reconstituir os respectivos teores de verdade a partir de
cada uma das demais perspectivas internas. Banidos às fronteiras dos
discursos que se limitam a constatar fatos, veda-se aos cidadãos um
posicionamento em face do que os participantes crentes ou convic
tos consideram verdadeiro, correto e valoroso, a partir de suas pers
pectivas de primeira pessoa. Tão logo os cidadãos tenham a intenção
de se expressar sobre as verdades morais ou, em geral, sobre as “con
cepções do que tem valor na vida hum ana” (PL, p. 175), eles se vêem
obrigados a reassumir a perspectiva de participante inscrita em sua
própria imagem de mundo. Pois os enunciados morais ou os juízos
de valor só podem ser fundamentados a partir do contexto de inter
pretações de m undo mais próximo. Razões morais para um a con
cepção de justiça que se tenha presuntivamente em comum são, por
definição, razões não-públicas.
Só a partir da perspectiva de seu próprio sistema interpretativo
é que os cidadãos podem se convencer da verdade de uma concepção
de justiça — adequada para todos. É ao obter um a aprovação funda
mentada de maneira não-pública por todos os envolvidos que tal con
cepção comprova sua adequação como base comum para um a justi
ficação pública de princípios constitucionais. Portanto, a validação
pública do conteúdo desse “consenso abrangente” acatado por to
dos, ou seja, sua “racionalidade”, decorre tão-somente da feliz cir
cunstância de que no resultado final converjam as razões não-pú
blicas motivadas pelas mais diversas vias. Das premissas de diferen
tes visões resulta, nas conseqüências, um a concordância. Com isso, é
'Racional ” v e r s u s “verdadeiro ” 99
decisivo para a adoção da teoria no todo que os participantes pos
sam observar essa convergência como mero fato social: “The express
contents of these doctrines have no normative role in public justifi-
cation” [Os conteúdos expressos dessas doutrinas não desempenham
papel normativo no processo de justificação pública] (R, p. 144). Pois
nesse estágio Rawls não concede a seus cidadãos um a terceira pers
pectiva, um a perspectiva que venha acrescer-se à dos observadores e
participantes. Antes que se chegue a um consenso abrangente, não
há qualquer perspectiva pública, intersubjetivamente partilhada, que
possa tornar possível aos cidadãos alcançar um a formação de juízo
“de casa”, por assim dizer. Podemos dizer que falta o “ponto de vista
moral” sob o qual os cidadãos, em um conselho público e comunal,
possam desenvolver e justificar uma concepção política. O que Rawls
denomina “uso público da razão” pressupõe, como base comum, um
consenso político fundamental já alcançado. Essa base só é ocupada
pelos cidadãos post festum, ou seja, na seqüência da “sobreposição”
de suas diferentes convicções de fundo que se vão ajustando: “Only
when there is a reasonable overlapping consensus can political
societys political conception of justice be publicy... justified” [So
mente quando há um consenso racional decorrente da sobreposição
é que se pode justificar publicamente a concepção política de justiça
de uma sociedade política] (R, p. 144).
Decisiva para a relação complementar entre o político e o m e
tafísico é uma descrição da situação de partida tal como representada
a partir da visão de “crentes”, ou seja, da visão que representa a parte
“metafísica”. Na divisão de trabalho entre o político e o metafísico re-
flete-se a relação complementar entre o agnosticismo público e a con
fissão privada, entre o daltonismo confessional de um poder estatal
neutro e a força iluminadora de visões de m undo que pelejam pela
“verdade” no sentido enfático. As verdades morais que como antes
continuam abrigadas em imagens de m undo religiosas e metafísicas
partilham dessa forte reivindicação de verdade, mesmo que o fato do
pluralismo também lembre que as doutrinas circunscritivas não estão
mais aptas à justificação pública.
A engenhosa distribuição dos ônus de prova liberta a filosofia
política de sua inquietante tarefa de criar um sucedâneo para a funda
mentação moral das verdades morais. O metafísico, embora tenha sido
riscado da agenda pública, continua sendo o fundamento último para
10. Cf. L. W ingert, Gemeinsinn und Moral, Frankfurt am Main, 1993, parte II,
pp. 166ss.
O
O último estágio da justificação11
11. Seguirei os “três tipos” de justificação na sequência indicada por Rawls. Essa
seqüência lógica não é entendida como um a ordem cronológica de estágios, mas assi
nala o caminho em que cada contem porâneo pode radicalizar seu posicionamento em
relação a questões atuais de justiça política. Tão logo sua crítica questione o consenso
político fundamental vigente, a partir da visão de um a concepção de justiça concor
rente, já caberá a esse mesmo contem porâneo defender sua alternativa a caminho de
um a gênese lógica como essa.
13. [“O conteúdo expresso dessas doutrinas não tem função na justificação p ú
blica; cidadãos não levam em conta o conteúdo de outras d outrinas... Antes levam em
conta e concedem alguma importância apenas ao fato — a existência — do próprio con
senso racional coincidente”.]
14. R. Forst, Kontexte der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1994, p. 159.
15. Cf. Forst, 1994, pp. 152-161 e 72ss.
16. “The particular meaning of the priority o f rights is that comprehensive con-
ceptions of the good are admissible... only if their pursuit conforms to the political
conception ofjustice” [“O significado próprio de prioridades de direitos é que as concep
ções compreensivas do bem são admissíveis... apenas se a busca desse bem é conforme
à concepção política de justiça”] (PL, p. 176, Fn. 2).
17. “In this case (i. e. w henan overlappingconsensus is achieved) citizens embed
their shared political conception in their reasonable comprehensive doctrines. Then
we hope that citizens will judge (by their comprehensive view) that political values are
normally (though not always) prior to, or outweigh, whatever non-political values
may conflict with them ” [“Nesse caso (i. é, quando um consenso abrangente é alcan
çado), os cidadãos fixam sua concepção política comum em suas doutrinas racionais
compreensivas. Esperamos que então esses cidadãos julguem (com sua visão com
preensiva) que os valores políticos são normalmente (em bora não sempre) prioritá
rios, ou mais valiosos, que quaisquer valores não-políticos que possam entrar em
conflito com eles”] (R .,p. 147).
Filósofos e cidadãos
20. [“... de que de fato (a oferta filosófica) será capaz de formatar (grifo meu)
essas doutrinas em relação a si mesma”].
121
ram uma “entidade estatal” racional; de outro, havia escritores e histo
riadores, sobretudo eruditos e intelectuais, que, com a propagação da
unidade mais ou menos imaginária de uma “nação cultural”, estiveram
ocupados em preparar a unificação estatal imposta (apenas em um se
gundo momento) por via diplomático-militar (por Cavour ou Bismarck,
por exemplo). Uma terceira geração de Estados nacionais muito diver
sos surgiu após a Segunda Guerra Mundial, como decorrência do pro
cesso de descolonização, sobretudo na África e na Ásia. Não raro, esses
Estados fundados nos limites do domínio colonial precedente já re
clamavam soberania antes mesmo que as formas de organização esta
tais importadas pudessem lançar raízes sobre o substrato de uma na
ção — que ultrapassava os limites tribais. Nesses casos, Estados artificiais
tiveram de ser “preenchidos” com nações que iam crescendo posterior
mente. Por fim, a tendência à formação de Estados nacionais indepen
dentes continuou na Europa Oriental e Meridional, após o colapso da
União Soviética, na trilha de secessões mais ou menos violentas; na si
tuação social e econômica precária desses países, os velhos apelos etno-
nacionais foram suficientes para mobilizar populações vacilantes de
modo que assumissem a luta pela independência.
Hoje, portanto, o Estado nacional impôs-se definitivamente so
bre as formações políticas mais antigas1. Certamente as cidades-esta-
do clássicas haviam tido sucessores na Europa moderna, por ora em
cidades da Itália Setentrional e — na região da antiga Lotaríngia —
nos cinturões urbanos de que surgiram a Suíça e os Países Baixos. Tam
bém reapareceram as estruturas dos Impérios da Antigüidade, inicial
mente sob a forma do Sacro Império Romano-Germânico, e mais tar
de nos Estados pluriétnicos dos Impérios russo, otomano e austro-
húngaro. Mas nesse ínterim o Estado nacional recalcou essas heranças
pré-modernas. No momento, observamos a profunda transformação
da China, o último dos antigos impérios.
Na concepção de Hegel, toda formação histórica, a partir do m o
mento de sua maturidade, está condenada à decadência. Não é preciso
adotar sua filosofia da história para reconhecer que essa marcha vito
riosa do Estado nacional tem também sua face irônica. A seu tempo, o
Estado nacional foi um a resposta convincente ao desafio histórico de1
O
“Estado” e “Nação”
0
A tensão entre nacionalismo e republicanismo
7. Cf. J. Habermas, Faktizitàt und Geltung, Frankfurt am Main, 1992, pp. 493ss.
11. J. M. Guéhenno, Das Ende der Demokratie, München-Zürich, 1994, pp. 86s.
147
de “etnonacionalismo”, para salientar a indisponível relação com as
origens, seja no sentido físico de uma ascendência comum, seja no
sentido mais amplo de uma herança cultural comum.
As terminologias estão longe de ser inocentes. Elas sugerem de
terminado modo de ver. A recente criação do termo “etnonaciona
lismo” passa por cima da diferença fixada na terminologia tradicio
nal entre “ethnos” e “demos”2. A expressão salienta a proximidade
entre, por um lado, as etnias, ou seja, as comunidades de ascendên
cia, pré-políticas, organizadas segundo relações de parentesco, e, por
outro lado, as nações organizadas como Estados e que pelo menos
aspiram à independência política. Com isso, contradiz-se implici
tamente a pressuposição de que as comunidades étnicas são “mais
naturais” e “mais antigas”, do ponto de vista da evolução, do que as na
ções3. A “consciência do nós”, fundada num imaginário parentesco
de sangue ou identidade cultural, de pessoas que compartilham a cren
ça num a origem comum e se identificam mutuamente como “m em
bros” de uma mesma comunidade, diferenciando-se assim dos que
os rodeiam, deveria constituir o cerne comum das comunidades étni
cas ou nacionais. Em vista desses aspectos comuns, as nações dife-
renciar-se-iam essencialmente de outras comunidades étnicas pela
sua complexidade e tamanho: “It is the largest group that can command
a persons loyalty because of felt kinship ties; it is, ffom this perspective,
the fully extended family”4.
Esse conceito etnológico de nação entra em concorrência com o
conceito empregado historicamente, porque apaga as referências es
pecíficas à ordem do Estado democrático de direito, à historiografia
política e à dinâmica da comunicação de massas, às quais a consciência
nacional surgida na Europa do século XIX deve seu caráter reflexivo e
2. Cf. M. R. Lepsius, “‘Ethnos’ und ‘Demos’". In: idem:, Interessem Ideen und Insti-
tutionen, Opladen 1990, 247-256; idem, Demokratie in Deutschland, Gõttingen 1993.
3. Cf. C. Leggewie, “Ethnizitat, Nationalismus und multikulturelle Gesellschaft”.
In: H. Berding (ed.), Nationales Bewufitsein und kollektive Identitãt, Frankfurt am Main
1995,54.
4. [É o maior grupo que pode comandar a lealdade de um a pessoa devido ao
sentimento de liames de parentesco; é, a partir desta perspectiva, a família extensa ple
na.] W. Connor, Ethnonacionalism, Princeton U. P., 1994,202: Ouranswer to that often
asked question, “W hat is a nation”, is that it is a group ofpeople whofeel they are ancestrally
related [“Nossa resposta à pergunta frequentemente formulada, “o que é um a nação?”,
é que ela é um grupo de pessoas que sentem que são ancestralmente relacionadas.]
1 50 A INCLUSÃO DO OUTRO
“patriotismo constitucional” não pode suplantar uma “sã consciência
nacional”: “Esse conceito (do patriotism o constitucional) paira... no
ar... O recurso à nação,... à consciência de um ‘nós’ nela contida,
capaz de criar liames emocionais, não pode ser, portanto, elidido”7. É
certo que, a partir de outra perspectiva, a simbiose entre naciona
lismo e republicanismo se apresenta mais como um a constelação pas
sageira. Foi apenas uma consciência nacional propagada por intelec
tuais e sábios, que se espraiou lentamente a partir da burguesia urba
na culta e se cristalizou em redor da ficção de uma ascendência co
mum, da construção de uma história compartida e de uma língua
escrita, gramaticalmente simplificada, aquilo que certamente trans
formou os súditos em cidadãos politicamente conscientes, que se iden
tificam com a constituição da república e com seus fins declarados.
Contudo, o nacionalismo não é, não obstante esse papel catalisador,
uma condição prévia necessária para um processo democrático. A
progressiva inclusão da população no status de cidadãos não apenas
abre para o estado uma fonte secular de legitimação, mas também
produz o novo patam ar para uma integração social abstrata, juridi
camente mediada.
Ambas essas interpretações partem da idéia de que o Estado na
cional reagiu ao problema da desintegração de uma população que
foi arrancada dos liames sociais estamentais da sociedade dos pri-
mórdios da Idade Moderna. Mas um dos lados localiza a solução do
problema no nível da cultura, e o outro, no nível das instituições e dos
procedimentos democráticos. Ernst Wolfgang Bõckenfõrde salienta
a identidade coletiva: “No sentido contrário, é necessária... uma re
lativa homogeneização num a cultura com um ..., para que a socieda
de, tendencialmente atomizada, possa ser novamente coesa e — sem
levar em consideração sua diferenciada multiplicidade — associada
num a unidade capaz de agir. Essa função é assumida, ao lado e de
pois da religião, pela nação e pela consciência natural a ela perten
cente. .. Assim, não se pode ultrapassar a meta e substituir a identi
dade nacional, nem mesmo em favor da idéia da universalidade dos
direitos hum anos”8. O lado contrário está convencido de que o pró
prio processo democrático pode assumir o papel de fiador em caso
O
Construções da soberania popular
no direito constitucional
1 56 A INCLUSÃO DO OUTRO
retornar a formação da vontade política ao a priori substantivo de um
consenso passado obtido entre membros de um povo homogeneizado
num momento pré-político: “O direito positivo não é legítimo pelo
fato de corresponder a princípios substantivos de justiça, mas por ter
sido criado em processos que, por sua própria estrutura, são justos,
quer dizer, democráticos. O fato de, durante o processo legislativo,
todos decidirem a mesma coisa a respeito de todos, é um pressuposto
normativo pretensioso, que não mais se define pela substância, mas
pela autolegislação dos destinatários do direito, pela igualdade de po
sições nos processos e pela generalidade das regras jurídicas, e deve
impedir o arbítrio e minimizar a dominação”21. Não é necessário um
consenso básico anterior, garantido pela homogeneidade cultural,
porque uma formação democraticamente estruturada de opinião e de
vontade possibilita um acordo normativo racional também entre es
tranhos. Pelo fato de o processo democrático, graças às suas caracte
rísticas procedimentais, garantir legitimidade, ele pode, quando ne
cessário, preencher as lacunas da integração social. Porque, na medida
em que garante uniformemente o valor de uso das liberdades subjeti
vas, ele cuida de que a rede da solidariedade cidadã não se rompa.
A crítica dessa interpretação clássica dirige-se sobretudo contra
sua leitura “liberalista”. Carl Schmitt questiona a força de integração
social do Estado de direito centrado no processo democrático a partir
dos dois aspectos que já tinham sido determinantes para a crítica feita
por Hegel do “Estado da necessidade e da razão”, característico do m o
derno direito natural, e que hoje são retomados pelos “comunitaristas”
na sua discussão com os “liberais”22. Os alvos são a concepção atomística
do indivíduo como um “eu desvinculado” e o conceito instrumentalista
da formação da vontade política como uma agregação de interesses
sociais. Os contraentes do contrato social são apresentados como egoís
tas isolados, racionalmente esclarecidos, que não estão cunhados por
tradições comuns, ou seja, não compartilham orientações culturais de
valor e não agem orientados para o acordo mútuo. Segundo essa des
crição, a formação de vontade política ocorre exclusivamente pelo modo
de negociações a respeito de um modus vivendi, sem que seja possível
21.1. Maus, “‘Volk’ und ‘Nation’ im Denken der Aufklârung”, Blàtter fü r deutsche
und internationale Politik, 5, 1994,604.
22. Cf. R. Forst, Kontexte der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main 1994, Gap. I e III.
1 58 A INCLUSÃO DO OUTRO
Dos pontos de vista de Kant e de um Rousseau bem entendido23,
a autodeterminação democrática não possui o sentido coletivista e
ao mesmo tempo excludente da afirmação da independência nacio
nal e da concretização da singularidade nacional. Mais do que isso,
tem o sentido de inserção de um a autolegislação que inclui unifor
memente todos os cidadãos. Inserção significa que tal ordem polí
tica se m antém aberta para equiparar os discriminados e para incluir
os marginalizados, sem confiná-los na uniformidade da comunidade
homogênea de um povo. Para isso é significativo o princípio da volun-
tariedade; a nacionalidade do cidadão fundamenta-se em seu con
sentimento, pelo menos implícito. A visão substancialista da sobe
rania popular refere “liberdade” essencialmente à independência ex
terna na existência de um povo; a visão procedimentalista, por sua
vez, refere-a à autonom ia privada e pública, uniformemente garanti
da internamente a um a associação de jurisconsortes livres e iguais. A
partir dos desafios com que hoje nos vemos confrontados, gostaria
de m ostrar que essa leitura do republicanismo, feita segundo os prin
cípios da teoria da comunicação, é mais apropriada do que um a vi
são etnonacionalista, ou mesmo comunitarista dos conceitos de na
ção, Estado de direito e democracia.
O
Sentido e falta de sentido da autodeterminação nacional
23. Cf. I. Maus, Zur Aufklarung der Demokratietheorie, Frankfurt am Main 1992.
24. [Dizer que todos os povos... têm direito a um processo democrático pressu
põe um a pergunta anterior. Q uando uma coleção de pessoas constitui um a entidade re
‘um povo’ae com direito a se autogovernar democraticamente?] R. A. Dahl, Democracy
and Its Critics, Yale U. P., New Haven e Londres, 1989,193.
162 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
cia nacional. Foi a partir desse ponto de vista que a independência
dos Estados Unidos foi reconhecida pela Espanha e pela França já
em 1778. A partir da secessão das colônias espanholas nas Américas
do Sul e Central, contrariamente à prática usual até então27, prevale
ceu a visão de que o reconhecimento internacional de uma secessão
da m etrópole tam bém seria permissível sem a anuência do sobera
no anterior28.
Na medida em que os movimentos de independência nacional
apelam para a autodeterminação, no sentido republicano do termo,
um a secessão (ou a anexação de uma parte separada a um outro Esta
do) não é justificável sem atentar para a legitimidade do status quo.
Porque, enquanto todos os habitantes gozarem dos mesmos direitos e
ninguém for discriminado, não existe nenhum motivo normativamen
te convincente para a separação da comunidade existente. Porque, sob
tais circunstâncias, não se pode falar em repressão nem em “domínio
estrangeiro”, que dariam direito de secessão a uma minoria. A isso cor
responde também a resolução pertinente da Assembléia Geral das
Nações Unidas que, de acordo com a Carta das Nações Unidas, conce
de a todos os povos um direito à autodeterminação, sem contudo fi
xar o conceito de “povo” no sentido étnico do term o29. Aliás, nega-se
expressamente a existência de um direito à secessão, isto é, “um direito
à separação daqueles Estados que se comportam de acordo com os
princípios da igualdade de direitos e do direito à autodeterminação
dos povos e, portanto, possuem um governo que representa a todo o
povo, sem discriminação de raça, crença ou sexo”30.
31. Cf. Ch. Taylor, Multikulturalismus und die Politik der Anerkennung, Frank
furt am Main 1993.
32. Cf. J. Habermas, “Kampf um Anerkennung im demokratischen Rechtsstaat”,
vide adiante.
33. [“O princípio da maioria em si depende de pressupostos prévios a respeito
da unidade: depende de que a unidade dentro da qual ele deve operar seja em si legíti
ma e de que os assuntos aos quais é aplicado recaiam apropriadamente em sua jurisdi
ção. Com outras palavras, o fato de o escopo e o domínio da regra majoritária serem
apropriados para um a unidade específica depende de pressupostos para cuja justifica
tiva o princípio da maioria em si nada pode contribuir e que, por isso mesmo, ficam
além do alcance da própria teoria democrática”] Dahl (1989), 104.
164 A IN C L U S Ã O DO OUTRO
Na medida em que o direito intervém em questões ético-políticas, ele
toca a integridade das formas de vida dentro das quais está enfronhada
a configuração pessoal de cada vida. Com isso entram em jogo — ao
lado de considerações morais, de reflexões pragmáticas e de interesses
negociáveis — valorizaçõesfortes, que dependem de tradições intersub-
jetivamente compartidas, mas culturalmente específicas. As ordens de
direito também são, em seu todo, “eticamente impregnadas”, porque
interpretam o conteúdo universalista dos mesmos princípios consti
tuintes de modo diferente em cada caso, a saber, no contexto das ex
periências de uma história nacional e à luz de uma tradição, um a cul
tura e uma forma de vida historicamente predominantes. Na regula
ção de matérias culturalmente delicadas, como por exemplo a lingua
gem oficial, os currículos da educação pública, o status das igrejas e
das comunidades religiosas, as normas do direito penal (por exemplo
quanto ao aborto), mas também em assuntos menos chamativos, como
por exemplo a posição da família e dos consórcios semelhantes ao
matrimônio, a aceitação de normas de segurança ou a delimitação das
esferas pública e privada — em tudo isso reflete-se amiúde apenas o
auto-entendimento ético-político de um a cultura majoritária, dom i
nante por motivos históricos. Por causa de tais regras, implicitamente
repressivas, mesmo dentro de uma comunidade republicana que ga
ranta formalmente a igualdade de direitos para todos, pode eclodir
um conflito cultural movido pelas minorias desprezadas contra a cul
tura da maioria. Exemplos recentes desse fenômeno são dados pela m i
noria de fala francesa no Canadá, pelos valões na Bélgica, pelos bascos
e catalães na Espanha etc.
Uma nação de cidadãos é composta de pessoas que, devido a seus
processos sociais, encarnam simultaneamente as formas de vida den
tro das quais se desenvolveu sua identidade — e isso ocorre mesmo
quando, como adultos, eles se libertaram das tradições da sua origem.
Naquilo que é relevante para seu caráter, as pessoas são como entron
camentos num a rede adscritícia de culturas e tradições. A composição
contingente do povo de um Estado, a unidade política, na term inolo
gia de Dahl, determina também implicitamente o horizonte das orien
tações de valor, dentro do qual ocorrem os conflitos culturais e os dis
cursos do auto-entendimento ético-político. Junto com a composição
social da cidadania também muda esse horizonte de valores. Por exem
plo: as questões políticas que dependem de um horizonte cultural espe
43. (“O mero fato de a multidão compartir alguma forma de vida em comum ae
tradições, costumes, interesses, história, instituições e fronteiras comuns ae não é su
ficiente para gerar um a comunidade política genuína, independente, legítima”.] G.
Doppelt, “Walzers Theory of Morality in International Relations”, Philosophy and Pu
blic Affairs, 8, 1978, 3-2, aqui 19.
44. Cf. D. Senghaas, Wohin driftet die Welt?, Frankfurt am Main 1994,185.
45. Cf. K. O. Nass,“Grenzen und Gefahren humanitãrer Interventionen”, Europa-
Archiv, 10,1993,279-288.
46. Cf. Ch. Greenwood, “Gibt es ein Recht auf humanitãre Intervention?” Europa-
Archiv, 23, 1993,93-106.
O
Somente uma Europa das Pátrias?
1 72 A INCLUSÃO DO OUTRO
A sentença do Tribunal Federal Constitucional da Alemanha a
respeito dos tratados de Maastricht, embora confirme o resultado da
prevista ampliação de tarefas da União Européia, parte em sua funda
mentação da noção de que o princípio democrático seria “esvaziado”
de um modo insuportável, se o exercício das competências do Estado
não pudesse ser vinculado a um povo “relativamente homogêneo”. O
Tribunal, que fez referência a Hermann Heller (e não a Carl Schmitt)
quer impedir, ao que tudo indica, o uso de um conceito etnonaciona-
lista de povo. Mesmo assim ele defende a opinião de que um poder do
Estado, democraticamente legitimado, tem que emanar de um povo
que, quando da formação da vontade política, articule a sua “identi
dade nacional”, entendida como pré-política e extrajurídica. Aliás, para
que um processo democrático possa até mesmo começar a se desen
volver, o povo de um Estado deveria ter a possibilidade de “dar expres
são jurídica àquilo que o une, espiritual, social e politicamente, de um
modo relativamente homogêneo”47.
Como conseqüência dessa hipótese fundamental, o Tribunal ex
plicita por que o Acordo de Maastricht não cria um Estado federati
vo europeu, dentro do qual a República Federal da Alemanha seria
absorvida, o qual lhe tiraria a posição de um sujeito do direito inter
nacional público (com direito às suas próprias políticas de justiça,
do interior e do exterior, e à manutenção de suas próprias forças ar
madas)48. Essencialmente, a argumentação da Segunda Câmara visa
a prova de que o Acordo da União não fundam enta um a competên
cia de competências de um sujeito independente de direito supra
nacional (em analogia, por exemplo, com os Estados Unidos da Amé
rica). A “união de Estados”49 deverá ser resultado exclusivamente das
“autorizações dadas por Estados que continuam sendo soberanos”:
“O Acordo da União leva em consideração a independência e a sobe
1 74 A INCLUSÃO DO OUTRO
A história, rica em conflitos, da formação de Estados durante a
fase pós-colonial, na Ásia e, sobretudo, na África, não é um exemplo
negativo convincente. Quando as antigas colônias, pela desistência de
suas metrópoles, foram “dispensadas” para a independência, o proble
ma consistiu em que esses territórios, na realidade surgidos artificial
mente, ganharam uma soberania externa sem contar de imediato com
um efetivo poder de Estado. Em muitos casos, os novos governos, após
a retirada das administrações coloniais, só puderam afirmar sua sobe
rania interna com muitas dificuldades. Essa condição não pôde ser cum
prida nem mesmo recorrendo à “autoridade do Estado”, entenda-se, à
repressão: “The problem was everywhere to ‘fill in ready made States
with national content. This poses the interesting question, why post-
colonial States had to be nations... Nation-building as development
means the extension of an active sense of membership to the entire
populace, the secure acceptance of state-authority, the redistribution
of resources to further the equality of members, and the extension of
effective State operation to the periphery”53. Os duradouros conflitos
tribais em Estados pós-coloniais tornados formalmente independen
tes lembram que as nações só surgem após terem percorrido o árduo
caminho que leva das comunidades etnicamente fundamentadas, cons
tituídas de indivíduos que se conhecem entre si e que reconhecem seus
traços comuns para uma solidariedade juridicamente mediada entre
cidadãos que são estranhos entre si. No Ocidente, essa formação dos
Estados nacionais não se deu por meio da fusão de tribos e regiões,
mas pelo entrelaçamento, que demorou mais de um século.
Justamente graças ao exemplo desse processo de integração é
possível aprender em que consistiram realmente as condições fun
cionais indispensáveis para um a formação democrática da vontade:
nos circuitos públicos de comunicação de opiniões políticas, que se
desenvolveram sobre a base do sistema de associações civis e através
53. [“Em toda parte o problema era ‘preencher’ Estados ‘pré-fabricados’com con
teúdos nacionais. Isso coloca a interessante questão de por que os Estados pós-colo-
niais têm que ser nações... A construção de um a nação, enquanto desenvolvimento,
significa a extensão de sentimento ativo de pertença a toda a população, a aceitação
segura da autoridade do Estado, a redistribuição de recursos para fom entar a igualda
de dos membros, assim como a extensão de um a operacionalidade efetiva do Estado
à periferia”] Ch. Joppke, Nation-Buildingafter World War Two, (European Institute),
Florença 1995, p. 10.
1 76 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
6
A Europa necessita de
uma Constituição?
UM COMENTÁRIO SOBRE DIETER GRIMM '
177
Conselho de Ministros, bem como as decisões do Tribunal Europeu,
intervém cada vez mais profundamente nas relações dos Estados-mem-
bros. No âmbito dos direitos de soberania que foram transferidos à
União, o Poder Executivo Europeu pode impor suas decisões à revelia
do descontentamento de governos nacionais. Ao mesmo tempo, en
quanto o Parlamento Europeu dispuser apenas de competências bran
das, falta a essas decisões uma legitimação democrática imediata. Os
órgãos executivos da Comunidade derivam sua legitimação da legiti
mação dos governos dos Estados-membros. Eles não são órgãos de
um Estado que tivesse sido constituído por um ato da vontade dos
cidadãos europeus unidos. Com o passaporte europeu não se vincu
lam até o momento quaisquer direitos que fundamentem uma cida
dania democrática de base estatal.
A consequência política: em face dos federalistas, que exigem uma
configuração democrática da UE, Grimm adverte contra um desgaste
ainda maior das competências dos Estados nacionais no âmbito do
direito europeu. Segundo ele, o déficit democrático não seria solucio
nado pela “redução estatizante” dos problemas, mas sim aprofundado.
Novas instituições políticas — um Parlamento Europeu m unido das
competências usuais, uma Comissão alçada a governo, uma Segunda
Câmara que substituísse o Conselho de Ministros e um Tribunal Eu
ropeu com competências ainda maiores — não constituem per se so
lução alguma. Enquanto não se lhes infundir vida, elas antes corrobo
ram a tendência de crescimento da autonomia de uma política buro
crática, já perceptível no âmbito nacional. Até hoje, porém, faltam os
pressupostos reais de uma formação da vontade dos cidadãos integrada
em âmbito europeu. O euroceticismo quanto ao direito constitucional
leva portanto a um argumento empiricamente fundamentado: enquan
to não houver um povo europeu suficientemente “homogêneo” para
formar uma vontade política, não deve tampouco haver uma Cons
tituição européia.
Para discussão: minhas ponderações voltam-se (a) contra a des
crição incompleta das alternativas e (b) contra a fundamentação nor
mativa (não totalmente isenta de ambigüidades) das exigências fun
cionais para uma formação democrática da vontade.
Sobre (a): D. Grimm evidencia as conseqüências indesejadas que
a transformação da União Européia em um Estado confederado de
constituição democrática poderia ocasionar, caso as novas instituições
1 78 A INCLUSÃO DO OUTRO
não pudessem lançar raízes em solo fértil. Enquanto faltarem uma
sociedade civil integrada em âmbito europeu, uma opinião pública de
dimensões européias sobre assuntos de ordem política e uma cultura
política em comum, os processos decisórios supranacionais necessa
riamente continuarão se autonomizando em face dos processos de
formação de opinião e de vontade, que são hoje como ontem organi
zados em âmbito nacional. Considero plausível esse prognóstico em
relação aos perigos. Mas qual é a alternativa?
A opção de Grimm parece sugerir que o status quo do direito
público pode ao menos congelar o déficit democrático hoje existen
te. Com total independência em relação a inovações do direito cons
titucional, porém, esse déficit continua aumentando dia após dia, e
isso porque a dinâmica econômica e social, no âmbito institucional
ora dado, continua impulsionando o desgaste das competências dos
Estados nacionais por parte do direito europeu. O próprio Grimm
afirma: “O princípio democrático recebe validação nos Estados-mem-
bros, no entanto tiram-se deles os poderes decisórios; e esses mes
mos poderes aumentam na Comunidade Européia, embora nela o
princípio democrático só esteja constituído de maneira débil”. Mas
se de qualquer maneira continua aumentando a disparidade entre os
crescentes poderes decisórios das autoridades européias e a legiti
mação precária das regulamentações européias, que continuam a
adensar-se, a decisão inflexível pelo modo de legitimação exclusiva
mente ligado aos Estados nacionais não significa simplesmente a es
colha de um mal menor. Os federalistas assumem como um desafio o
risco (previsto, e muitas vezes evitável) de uma autonomização de orga
nizações supranacionais. Os eurocéticos, por sua vez, conformam-se
desde o início com a erosão da substância democrática (inevitável,
segundo eles), para não terem que abandonar a morada aparente
mente segura proporcionada pelo Estado nacional.
Só que nessa morada há cada vez menos aconchego. Os debates
sobre a situação atual, tal como os conduzimos hoje, revelam outra
disparidade ainda maior: a que se delineia entre os espaços de ação
limitados pela via dos Estados nacionais e os imperativos das condi
ções de produção integradas em âmbito global. Os Estados moder
nos, que vivem de tributos, só poderão ter ganhos com suas respecti
vas economias enquanto abrigarem “economias nacionais” sobre as
quais ainda possam exercer influência por meios políticos. Com a
182 A IN C L U S Ã O DO OUTRO
Por isso, do ponto de vista normativo, não poderá haver um Estado
federativo europeu merecedor do nome de uma Europa democrática,
se não se afigurar, no horizonte de uma cultura política, uma opinião
pública integrada em âmbito europeu, uma sociedade civil com asso
ciações representativas de interesses, organizações não-estatais, movi
mentos de cidadania etc., um sistema político-partidário concebido
em face das arenas européias — em suma: um contexto comunica-
cional que avance para além das fronteiras de opiniões públicas de
inserção meramente nacional, até o momento.
As grandes exigências funcionais impostas à formação democrá
tica da vontade praticamente não podem ser cumpridas de maneira
satisfatória no âmbito dos Estados nacionais; e isso vale tanto mais
para a Europa. O que me importa, no entanto, é a perspectiva a partir
da qual se possam fundamentar essas condições funcionais; pois a vi
são normativa prejulga de certa maneira a avaliação política empírica
da importância das dificuldades existentes. Caso se considere necessá
ria uma identidade coletiva como substrato cultural que se articule
tão-somente no cumprimento das exigências funcionais já menciona
das, essas dificuldades, “for the time being”, terão mesmo de parecer
intransponíveis. Mas uma compreensão de democracia a partir da teo
ria da comunicação, que também parece ser a preferência de Grimm,
não pode se apoiar durante muito tempo sobre o conceito concretista
de “povo”: pois ele trata apenas de simular homogeneidade onde nada
há senão coisas heterogêneas.
Dessa perspectiva, a autocompreensão ético-política do cidadão
de uma coletividade democrática não surge como elemento históri-
co-cultural primário que possibilita a formação democrática da von
tade, mas como grandeza de fluxo em um processo circular que só se
põe em movimento por meio da institucionalização jurídica de uma
comunicação entre cidadãos de um mesmo Estado. Foi exatamente
assim que se formaram as identidades nacionais na Europa moderna.
E por isso seria de esperar que as instituições políticas que viessem a
ser criadas por uma Constituição Européia tivessem um efeito indutivo.
No entanto — enquanto houver vontade política para isso — nada
depõe afortiori contra a possibilidade de se criar o contexto comunica-
cional politicamente necessário em uma Europa que cresce unida (eco
nômica, social e administrativamente) e na qual se dispõe de uma base
cultural comum e uma experiência histórica conjunta de bem-suce
185
em geral, e afasta toda guerra” (Streit der Fakultãten, WerkeVl, 3641).
Surpreendente aí é a conseqüência: “... e afasta toda guerra”. Isso
aponta para que as normas do direito das gentes, que regulam a guer
ra e a paz, só devam estar vigentes de maneira peremptória, isto é, só
devam vigorar até o m om ento em que o pacifismo jurídico, ao qual
Kant apontou em seu texto “Sobre a paz perpétua”, tenha levado ao
estabelecimento de um a categoria cosmopolita e, portanto, à supres
são da guerra.
Naturalmente, Kant desenvolve essa idéia segundo os conceitos
do direito racional e no horizonte de experiência de sua época. As
duas coisas afastam-nos de Kant. Com o imerecido “saber melhor”
alardeado pelas gerações mais jovens, reconhecemos hoje que a cons
trução sugerida por Kant enfrenta dificuldades conceituais e já não se
mostra mais adequada a nossas experiências históricas. Por isso, tra
tarei primeiro de rememorar as premissas assumidas por Kant como
ponto de partida. Elas dizem respeito a todos os três passos de seu
raciocínio: tanto à definição do fim imediato, a paz perpétua, à defi
nição do verdadeiro objetivo, a forma jurídica de um a aliança entre
os povos, e à solução histórico-filosófica do problema aí proposto, a
concretização da idéia da condição cosmopolita (I). A isso sucede a
pergunta sobre como se apresenta a idéia kantiana à luz da história
dos últimos duzentos anos (II) e de que maneira essa idéia precisa
ser reformulada em vista da situação mundial em nossos dias (III). A
alternativa esboçada por juristas, politólogos e filósofos à reincidên
cia em uma condição natural suscitou restrições ao universalismo do
direito cosmopolita e à política de direitos humanos, que podem ser
atenuadas por meio de um a diferenciação adequada entre direito e
moral em relação ao conceito de direitos humanos (IV). Essa diferen
ciação também apresenta a chave para uma metacrítica dos argumentos
de Carl Schmitt contra os fundamentos humanistas do pacifismo ju
rídico, argumentos a propósito bem-sucedidos sob o ponto de vista
da história de sua recepção (V).1
A ID É I A K A N T IA N A D E P A Z P E R P É T U A 187
limitada que a normatização do direito internacional se estende à con
dução da própria guerra e ao regramento da paz. O direito “à guerra”,
o assim chamado ius ad bellum, anteposto ao direito “na guerra” e ao
direito “no pós-guerra”, não é rigorosamente direito algum, porque só
expressa o livre-arbítrio concedido aos sujeitos do direito internacional
em condição natural, ou seja, na condição extralegal da relação consi
go mesmos (Werke VI, 212). As únicas leis penais que intervém nessa
situação extralegal — ainda que sejam cumpridas apenas por tribu
nais do próprio Estado beligerante — referem-se ao comportamento
na guerra. Crimes de guerra são crimes cometidos na guerra. Apenas
o alargamento do conceito de guerra, ocorrido nesse meio tempo, e a
respectiva ampliação do conceito de paz irão despertar a noção de que
a própria guerra — sob a forma da guerra de ataque — é ela mesma
um crime, merecedor de censura e reprovação. Para Kant ainda não
há o crime da guerra.
A paz perpétua é um elemento característico importante, mas
não passa de um sintoma da condição cosmopolita. O problema con
ceituai que Kant precisa resolver é a conceitualização jurídica de uma
condição como essa. Ele precisa indicar a diferença entre direito cos
mopolita e o direito internacional clássico, manifestar o elemento es
pecífico desse ius cosmopoliticum.
Ao passo que o direito das gentes, como qualquer direito em
condição natural, tem vigência apenas peremptória, o direito cosmo
polita acabaria definitivamente com a condição natural, assim como
faz o direito sancionado na forma estatal. É por isso que Kant, para
ilustrar a transição a uma condição cosmopolita, recorre sempre à
analogia com o primeiro abandono de uma condição natural, que,
com a constituição de determinado Estado com base no contrato so
cial, possibilita aos cidadãos do país uma vida de liberdade assegurada
por via legal. Assim como term inou a condição natural entre indiví
entre os povos se ela se tornasse regra geral” (§ 60, Werke VI, 473), os exemplos que ele
apresenta — a ruptura de contratos do direito internacional ou a divisão de um país
vencido (como a Polônia, em seu tempo) — deixam claro o status acidental dessa
figura de pensamento. Uma “guerra punitiva” contra inimigos injustos continua sendo
uma noção sem maiores consequências enquanto continuarmos contando com Esta
dos soberanos. Pois não é possível para os Estados soberanos reconhecer um a instância
judicial que julgue de maneira imparcial as violações a regras nas relações interestatais,
sem que eles restrinjam sua própria soberania. Somente a vitória e a derrota são deci
sivos sobre “de que lado está o direito” ( Werke VI, 200).
190 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
siva sobre como assegurar a permanência da autovinculação de Esta
dos que continuam sendo soberanos. Isso ainda não diz respeito —
nota bene — à questão empírica da aproximação a uma idéia, mas
sim à versão conceituai dessa mesma idéia. Se a aliança entre os povos
não deve constituir um evento moral, mas sim jurídico, então não lhe
devem faltar as qualidades de um a boa “constituição de Estado”, tal
como Kant as esclarecerá poucas páginas adiante — isto é, as quali
dades de uma constituição que não se abandona à “boa formação
m oral” de seus membros, mas que na melhor das hipóteses pode esti
mular essa mesma formação.
Sob o ângulo da história, foi certamente muito realista a reserva
manifestada por Kant em face do projeto de uma comunidade consti
tucional dos povos. O Estado democrático de direito recém-nascido
das Revoluções Americana e Francesa ainda era a exceção, não a regra.
O sistema das potências funcionava sob o pressuposto de que somen
te Estados soberanos podiam ser sujeitos do direito internacional. A
soberania externa significa a capacidade do Estado de afirmar sua in
dependência na arena internacional, ou seja, manter a integridade de
suas fronteiras, se necessário com a força militar; e soberania interna
significa a capacidade, baseada no monopólio da força, de preservar a
tranqüilidade e a ordem no próprio país, com recursos do poder ad
ministrativo e do direito positivo. A razão de Estado define-se por prin
cípios de uma política de poder prudente, que inclui guerras delimi
tadas, e segundo os quais a política interna permanece sob o primado
da política externa. A clara separação entre política externa e interna
baseia-se em um conceito de poder estrito e discernidor, que se mede
em última instância pelo modo como o detentor do poder faz uso da
força policial e militar disponível nos quartéis.
Enquanto esse universo estatal clássico-moderno determina o
horizonte intransponível, toda perspectiva de uma constituição cos
mopolita e que não respeite a soberania dos Estados surge necessaria
mente como irreal. Isso explica também por que a possibilidade de
uma união dos povos sob a hegemonia de um Estado poderoso, que
Kant vislumbra na imagem de uma “monarquia universal” (Werke VI,
247), na verdade não representa qualquer alternativa: sob as premissas
já mencionadas, tal condução do poder teria que ter por conseqüência
o “mais terrível despotismo” (WerkeV 1 ,169). Como Kant não chega a
transpor esse horizonte de experiências, acaba sendo igualmente difí
A I D É I A K A N T IA N A D E P A Z P E R P É T U A 191
cil crer em uma motivação moral para a criação e manutenção de uma
federação de Estados livres e comprometidos em uma política conjun
ta de poder. Para a solução desse problema, Kant esboça uma filosofia
da história com intenções cosmopolitas, cuja tarefa é tornar plausível,
a partir de uma “intenção da natureza” ainda oculta, a “consonância
entre política e moral”, tão improvável em um primeiro momento.
O
Kant menciona essencialmente três tendências naturais que vêm ao
encontro da razão, e às quais cabe a tarefa de explicar por que uma
aliança entre os povos poderia corresponder ao interesse próprio e
esclarecido dos Estados. São elas: a natureza pacífica das repúblicas
(1), a força geradora de comunidades, própria do comércio interna
cional (2) e a função de cunho político da opinião pública (3). Um
olhar histórico sobre esses argumentos é elucidativo em um duplo
sentido. De um lado, eles foram falsificados em seu manifesto teor
significativo pelos desenvolvimentos dos séculos XIX e XX. De outro
lado, direcionam a atenção para desenvolvimentos históricos que apre
sentam um a dialética peculiar. Na verdade, esses desenvolvimentos
revelam em primeiro lugar que as premissas subjacentes à teoria de
Kant, firmadas sob as condições percebidas em fins do século XVIII,
já não estão mais corretas; por outro lado, no entanto, eles também
depõem em favor de que um a concepção do direito cosmopolita, refor
mulada de acordo com os novos tempos — em conformidade com a
maneira como interpretamos as condições já bastante diversas deste
final do século XX — , bem poderia aplicar-se a uma constelação de
forças predisposta a aceitá-los.
( 1 ) 0 primeiro argumento afirma que as relações internacionais
perdem seu caráter belicista à mesma medida que se impõe nos Esta
dos a forma de governo republicano; pois as populações de Estados
constitucionais democráticos, movidas por interesses próprios, com
pelem seus governos a desenvolver políticas de paz: “Quando se con
vida os cidadãos do Estado a manifestar-se sobre a necessidade de ha
ver guerra, nada mais natural que eles, ao se verem obrigados a decidir
sobre os encargos que a guerra acarretará sobre si mesmos, tenham
sérias dúvidas quanto a dar início a um jogo tão nocivo.” Essa suposi
ção otimista foi refutada pela força mobilizadora de uma idéia que
192 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
Kant, em 1795, ainda não podia conhecer em sua ambivalência: penso
aqui na idéia de nação. O nacionalismo foi certamente um veículo da
transformação de súditos em cidadãos ativos que se identificam com
o Estado a que pertencem. Isso porém não tornou o Estado nacional
mais pacífico do que seu antecessor, o Estado dinástico absolutista3.
Pois sob a perspectiva dos movimentos nacionais, a auto-afirmação
clássica do Estado soberano ganha as conotações de liberdade e inde
pendência nacional. E por isso a consciência moral republicana dos
cidadãos deveria comprovar-se em sua prontidão a lutar e morrer pelo
povo e pela pátria. Com razão, Kant viu nos exércitos mercenários de
seu tempo instrumentos para o “uso de pessoas como meras m áqui
nas na mão de um outro”, e exigiu a instauração de exércitos; ele não
pôde prever que a mobilização maciça de jovens em serviço militar
obrigatório, inflamados pelo sentimento nacionalista, ainda iria oca
sionar uma era de guerras de libertação catastróficas e descontroladas,
do ponto de vista ideológico.
Por outro lado, não está totalmente errada a noção de que uma
condição democrática no interior do Estado sugere para ele um com
portam ento externo pacifista. Na verdade, exigências histórico-esta-
tísticas demonstram que Estados de constituição democrática não tra
vam menos guerras do que regimes autoritários (de um tipo ou de
outro); demonstram, porém, que esses Estados se comportam de m a
neira menos belicista nas relações entre si. Esse resultado permite fa
zer uma leitura interessante4. À medida que as orientações universalistas
valorativas de uma população acostumada a instituições liberais im
pregnam também a política externa, as guerras travadas pela coletivi
dade republicana, mesmo que ela no todo não se comporte de manei
ra pacífica, assumem um caráter diverso. Com os motivos dos cida
dãos, altera-se também a política externa do Estado que integram. O
uso de força militar não é determinado exclusivamente por um a razão
de Estado essencialmente particularista, mas também pelo desejo de
fomentar a expansão internacional de formas de Estado e de governo
não-autoritárias. Quando, porém, as preferências valorativas se expan
dem para além da percepção de interesses nacionais e em favor da
A ID É I A K A N T IA N A D E P A Z P E R P É T U A 193
afirmação da democracia e dos direitos humanos, então se alteram
também as condições sob as quais funciona o sistema de potências.
(2) A história, que nesse meio tempo já podemos observar em seu
conjunto, agiu de maneira analogamente dialética em relação ao se
gundo argumento. De modo imediato, Kant errou, mas de maneira in
direta também teve razão. Pois Kant viu na crescente interdependência
das sociedades (“Doutrina do direito”, § 62) — incrementada pela cir
culação de informações, pessoas e produtos, e em especial na expansão
do comércio — uma tendência que favorece a união pacífica dos po
vos. As relações comerciais em expansão no início da Era Moderna in-
tensificam-se e acabam por constituir um mercado mundial que, se
gundo a opinião de Kant, deveria fundamentar “através do proveito
próprio mútuo” um interesse pelo asseguramento de relações pacíficas:
“Com a guerra não pode subsistir o espírito comercial, que se apodera
cedo ou tarde de cada um dos povos. Pois já que entre todos os poderes
a que se subordina o poder estatal o poder financeiro seja talvez o mais
confiável, os Estados vêem-se compelidos a fomentar a paz valorosa”
( Werke VI, 226). Certamente Kant ainda não havia aprendido — tal
como Hegel irá fazê-lo logo a seguir, com a leitura dos economistas in
gleses5 — que o desenvolvimento capitalista iria resultar em um con
flito entre classes sociais que ameaça duplamente a paz e a presumível
disposição para a paz, demonstrada justamente pelas sociedades politi
camente liberais. Kant não pôde antever tampouco que as tensões so
ciais, fortalecidas em um primeiro momento no decorrer de uma in
dustrialização capitalista acelerada, iriam onerar a política interna com
lutas de classe e direcionar a política externa às vias de um imperialis
mo belicoso. Ao longo do século XIX e da primeira metade do século
XX, os governos europeus serviram-se reiteradamente da força propul
sora proporcionada pelo nacionalismo, a fim de desviar os conflitos
sociais para fora e neutralizá-los por meio de êxitos na política externa.
Só após a catástrofe da Segunda Guerra Mundial, quando se esgotam as
fontes de energia do nacionalismo integral, uma pacificação bem-suce
dida do antagonismo de classes, promovida pelo Estado social, modi
fica a situação interna das sociedades desenvolvidas, a ponto de o entre
laçamento econômico mútuo entre as economias nacionais — ao me
nos no universo da OECD — poder levar a uma espécie de “economi-
A I D É I A K A N T IA N A D E P A Z P E R P É T U A 195
Ao mesmo tempo torna-se indiferenciado para os Estados sobera
nos o limite constitutivo entre política interna e externa. A imagem da
política clássica de poder não se altera apenas mediante pontos de vista
normativos complementares à política de democratização e direitos hu
manos, mas também por meio de uma difusão muito peculiar do poder.
Sob a crescente compulsão a que se estabeleçam formas de cooperação,
ganha significado sempre maior a influência mais ou menos direta sobre
a estruturação das situações de que se pode tirar proveito, a influência
sobre o estabelecimento de contatos ou a interrupção de vias de comuni
cação, e sobre a definição de pautas e problemas. Freqüentemente, a
influência que se exerce sobre as condições circunstantes sob as quais
outros agentes tomam suas próprias decisões acaba sendo mais impor
tante que a imposição direta dos próprios objetivos, o exercício de po
der executivo ou a ameaça por meio da violência9. 0 “soft power” recalca
o “hard power”, e priva os sujeitos — a partir dos quais Kant concebera
a associação de Estados livres — da base de sua independência.
(3) Por sua vez, a situação é semelhante no que diz respeito ao
terceiro argumento, proposto por Kant para minimizar a suspeita de
que a projetada aliança entre os povos não passasse de um a “idéia fer
vorosa”. Em uma coletividade republicana, os princípios da constitui
ção afiguram parâmetros segundo os quais é preciso poder avaliar a
política publicamente. Governos como esses não se podem permitir
“fundar publicamente a política apenas com base em torneios da pru
dência” ( WerkeVl, 238) — mesmo que eles se vejam obrigados a cum
prir sua função apenas da boca para fora. Em tal medida, a opinião
pública cidadã e de cunho político tem uma função controladora: por
meio da crítica aberta, ela pode impedir a concretização de intenções
“avessas à luz do dia”, inconciliáveis com máximas publicamente defen
sáveis. Além disso, segundo a opinião de Kant, a opinião pública deve
ganhar uma função programática à medida que os filósofos, na função
de “professores públicos do direito” ou intelectuais, “falem aberta e pu
blicamente sobre as máximas da condução da guerra e promoção da
paz”, e à medida que possam convencer o público de cidadãos da cor
reção de seus princípios. Foi provavelmente o exemplo de Frederico II
e Voltaire que Kant teve em vista ao escrever a comovente sentença a
seguir: “Não é de esperar que reis filosofem ou filósofos reinem; nem
12. Cf. o texto que intitula: J. Habermas, Die Normalitàt einer Berliner Republik,
Frankfurt am Main, 1995, pp. 167ss.
13. Sobre o “povo como soberano em aprendizado”, cf. H. Brunkhorst, Demokratie
und Differenz, Frankfurt am Main, 199ss.
15. Cf. os exemplos dados por Chr. Greenwood,“Gibt es ein Recht auf humanitare
Intervention?”, Europa-Archiv, n. 4, pp. 93-106,1993. Na citação acima, p. 94.
16. Cf. J. Habermas, Vergangenheit ais Zukunft, München, 1993. pp. 10-44.
202 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
direito às mesmas liberdades segundo leis gerais (“sobre as quais to
dos decidem, levando em conta todos os demais, da mesma forma que
cada um o faz, levando em conta a si mesmo”). Essa fundamentação
do direito em geral com base nos direitos humanos assinala os indi
víduos como portadores de direitos e confere a todas as ordenações
jurídicas modernas um talhe imprescindivelmente individualista17. Se
Kant, no entanto, considera essa garantia de liberdade — “o que o ser
hum ano deve fazer segundo as leis da liberdade” — como o que há de
“mais essencial na intenção de se alcançar a paz perpétua”, “e isso se
gundo todas as três dimensões do direito público: o direito do Estado,
das gentes e o direito cosmopolita” {WerkeVI, 223), então ele de fato
não pode fazer que a autonomia dos cidadãos seja mediatizada pela
soberania dos respectivos Estados.
Antes de mais nada, o cerne do direito cosmopolita consiste em
que ele se lance por sobre as cabeças dos sujeitos jurídicos coletivos do
direito internacional, que se infunda no posicionamento dos sujeitos
jurídicos individuais e que fundamente para esses últimos uma condi
ção não-mediatizada de membros de uma associação de cidadãos do
m undo livres e iguais. Carl Schmitt compreendeu esse ponto central e
percebeu que segundo essa concepção “todo indivíduo é ao mesmo
tempo cidadão do m undo (no sentido jurídico pleno da palavra) e
cidadão de um Estado em particular”18. Já que a dupla competência
recai sobre “a federação mundial dos Estados”, e os indivíduos assu
mem nessa comunidade internacional um a posição juridicamente
imediata, o Estado em particular transforma-se assim “em mera com
petência de determinadas pessoas, que entram em cena com um duplo
papel de função nacional e internacional”19. A competência mais im
portante de um direito que se infunde por meio da soberania dos Es
tados é a responsabilização de pessoas em particular por crimes come
tidos em serviços prestados sob ordens do Estado ou na guerra.
Também quanto a isso o desenvolvimento até os dias de hoje foi
para além de Kant. Em seqüência à Carta do Atlântico de agosto de
1941, a Carta das Nações Unidas de junho de 1945 obriga os Estados
22. É o que afirma H. Quaritsch em seu Posfácio a Carl Schmitt, Das international-
rechtliche Verbrechen des Angriffskrieges (1945), Berlin, 1994. pp. 125-247. No contexto
acima, pp. 236ss.
23. Cf. as análises e conclusões de Chr. Grenwood, op. cit., 1993.
24. Greenwood (1993) chega à seguinte conclusão: “Atualmente, já parece estar
mais consolidada a idéia de que as Nações Unidas poderíam lançar mão de suas atri
buições para intervir em um Estado por razões humanitárias” (p. 104).
25. Cit. cf. Greenwood, 1993, p. 96.
29. E. O. Czempiel investiga essas estratégias com base em diversos exemplos, tal
como em: G. Schwarz, “Internationale Politik und der Wandel von Regimen”, Sonderheft
der Zeitschrift fü r Politik, Zürich, pp. 55-75, 1989.
30. Sigo aqui D. Archibugi, “From the United Nations to Cosmopolitan Demo-
cracy”. In: Archibugi; Held, op. cit., 1995, pp. 121-162.
33. C. Schmitt, Der Begriff des Politischen (1932), Berlin, 1963. p. 55. O mesmo
argumento é apresentado por ]. lsensee (1995): “Desde que há intervenções, elas servi
ram às ideologias, aos princípios confessionais nos séculos XVI e XVII, aos princípios
monarquistas, jacobinistas, humanitários, à revolução socialista mundial. Agora che
gou a vez dos direitos hum anos e da democracia. Na longa história da intervenção, a
ideologia serviu para dourar os interesses de expansão de poder dos que intervinham
e para ungir a efetividade da medida com uma aura de legitimação” (p. 429).
34. Cf. C. Schmitt, Glossarium (1947-1951), Berlin, 1991. p. 76.
40. Cf. a análise da estrutura dos direitos humanos em: H. A. Bedau, “Internatio
nal Human Rights”. In: T. Regan; D. van de Weer (orgs.), And Justice for All, Totowa,
1983, p. 297, onde o autor se reporta a Henry Shue: “The emphasis on duties is meant
to avoid leaving the defense o f hum an rights in a vacuum, bereft o f any moral signi-
ficance for the specific conduct o f others. But the duties are not intended to explain
and generate the duties” [“A ênfase nos deveres é para evitar que a defesa dos direitos
humanos caia num vácuo, destituída de todo significado moral para a conduta especí
fica dos demais. Mas deveres não foram feitos para explicar ou gerar direitos; ao con
trário, os direitos é que costumam explicar e gerar deveres”].
41. Cf. S. Kõnig, 1994, pp. 84ss.
O
Gostaria de desenvolver esse argumento de maneira metacrítica,
em controvérsia com as restrições de Carl Schmitt. Primeiramente,
preciso dedicar-me ao contexto dessas restrições, porque Schmitt as
socia diversos planos da argumentação de uma maneira nem sempre
clara. A crítica a um direito cosmopolita que perpasse a soberania dos
Estados em particular ocupa Schmitt sobretudo em vista do conceito
discriminativo de guerra. Com isso, sua crítica parece assumir um foco
claro e juridicamente delimitado. Ela se volta reiteradamente contra a
penalização da guerra de ataque, firmada na Carta das Nações Unidas,
e contra a responsabilização de pessoas em particular por um tipo de
crime de guerra ainda desconhecido para o direito internacional clás
sico, válido até a Primeira Guerra Mundial. No entanto, essa discussão
jurídica, inofensiva em si mesma, recebe de Schmitt uma carga de con
siderações políticas e fundamentações metafísicas. Por isso, precisa
mos em primeiro lugar desnudar a teoria de fundo subjacente a essa
discussão (1) e avançar até o cerne moral-crítico do argumento (2).
(1) À primeira vista, a argumentação jurídica almeja civilizar a
guerra pela via do direito internacional (a); ela se vincula a uma argu
mentação política que parece preocupar-se apenas com a preservação
de uma ordem internacional já assegurada (b).
(a) Se Schmitt refuta a distinção entre guerra de ataque e guerra
de defesa, ele não o faz pela razão pragmática de que é difícil ope-
racionalizar tal distinção. Mais que isso, a razão jurídica reside em que
apenas um conceito de guerra moralmente neutro, que exclua a respon
sabilidade pessoal por uma guerra penalizada, pode conciliar-se com
a soberania de sujeitos do direito internacional; pois o ius ad bellum,
isto é, o direito de começar uma guerra seja por que razão for, é cons
titutivo da soberania de um Estado. Como bem demonstra seu escrito
decisivo sobre o assunto43, nesse plano da argumentação ainda não
42. Quanto à diferenciação entre ética, direito e moral, v. R. Forst, Kontexte der
Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1994. pp. 131-142.
43. Cf. C. Schmitt, 1994.
56. Cf. J. Habermas, Kleine Politische Schriften I-IV. Frankfurt am Main, 1981,
pp. 328-339.
57. Klaus Günther, “Kampf gegen das Bõse? Wider die ethische Aufrüstung der
Kriminalpolitik”, Kritische Justiz, n. 27, pp. 135-157,1994 (acréscimos entre parênteses
são meus).
58. K. Günther, 1994, p. 144 (acréscimo meu, entre parênteses).
229
Uma constituição pode ser entendida como projeto histórico que
os cidadãos procuram cumprir a cada geração. No Estado democrá
tico de direito, o exercício do poder político está duplamente codifi
cado: é preciso que se possam entender tanto o processamento insti
tucionalizado dos problemas que se apresentam quanto a mediação
dos respectivos interesses, regrada segundo procedimentos claros,
como efetivação de um sistema de direitos1. Mas nas arenas políticas,
quem se defronta são agentes coletivos, que discutem sobre objetivos
coletivos e acerca da distribuição dos bens coletivos. Apenas diante de
um tribunal e no âmbito de um discurso jurídico é que se trata ime
diatamente de direitos individuais cobráveis através de ação judicial.
Quanto ao direito vigente, também ele precisa ser interpretado de
maneira diversa em face de novas necessidades e situações de inte
resse. Essa disputa acerca da interpretação e imposição de reivindica
ções historicamente irresolvidas é uma luta por direitos legítimos, nos
quais estão implicados agentes coletivos que se defendem contra a
desconsideração de sua dignidade. Nessa “luta por reconhecimento”,
segundo demonstrou A. Honneth, articulam-se experiências coletivas
de integridade ferida12. Esses fenômenos são conciliáveis com uma teoria
dos direitos de orientação individualista?
As conquistas políticas do liberalismo e da social-democracia,
decorrentes do movimento emancipatório burguês e do movimento
de trabalhadores europeu, sugerem um a resposta afirmativa a essa
pergunta. Ambos tiveram por objetivo suplantar a privação de direi
tos de grupos desprivilegiados e, com isso, a fragmentação da socie
dade em classes sociais; contudo, a luta social contra a opressão de
grupos que se viram privados de chances iguais de vida no meio social
concretizou-se sob a forma da luta pela universalização socioestatal
dos direitos do cidadão, empreendida tão logo o reformismo socioli-
beral viu-se capaz de agir. Na verdade, após a bancarrota do socia
lismo de Estado restou apenas essa perspectiva: por meio da prom o
ção do status do trabalho assalariado dependente, alcançado com o
acréscimo de direitos de compartilhamento e participação política,
cabe à massa da população a chance de viver com expectativas bem
fundadas de contar com segurança, justiça social e bem-estar. As in
1. Cf. J. Habermas, Faktizitàt und Geltung, Frankfurt am Main, 1992. cap. III.
2. A. Honneth, K am pfum Atterkennung, Frankfurt am Main, 1992.
3. Cf. Ch. Taylor et alii, Multikulturalismus unddie Politik der Anerkennung, Frank
furt am Main, 1993, pp. 13ss.
8. Cf. D. L. Rhode, Justice and Gender, Cambridge, Mass., 1989. Parte Um.
9. Cf. N. Fraser, “Struggle over needs”. In: Unruly Practices, Oxford, 1989.
pp. 144-160.
O
Lutas por reconhecimento —
os fenômenos e os planos de sua análise
10. Cf. S. Benhabib, Situating the Self. Oxford, 1992. Parte II.
240 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
Ao lado dos fenômenos descritos de (a) a (d), ainda é preciso
diferençar e autonomizar diversos planos de sua análise. As conside
rações de Taylor concernem ao menos a três discursos inflamados por
esses fenômenos.
(e) No debate sobre political correctness, esses fenômenos ocasio
nam em primeiro lugar um auto-entendimento entre os intelectuais
norte-americanos sobre o status da modernidade11. Nenhuma das duas
partes em conflito gostaria por si mesma de levar adiante a m oderni
dade enquanto projeto inabdicável1112. O que para os “radicais” signifi
ca um passo encorajador rumo à pós-modernidade e à remoção de
figuras de pensamento totalizadoras configura para os “tradicionalis
tas” um sinal de uma crise que só pode ser superada por um persistente
regresso às tradições clássicas do Ocidente. Podemos deixar esse de
bate de lado, já que ele contribui com muito pouco para a análise das
lutas por reconhecimento no Estado democrático de direito e pratica
mente com nada para a solução política dessas lutas13.
(f) Num outro plano situam-se os discursos filosóficos em sen
tido estrito, que partem dos fenômenos acima mencionados para des
crever problemas de ordem geral. Os fenômenos prestam-se bem à
ilustração de dificuldades do acordo m útuo intercultural; eles esclare
cem a relação entre moral e eticidade ou uma vinculação interna entre
significação e validação, e realimentam a velha questão sobre poder
mos transcender o contexto de nossa respectiva língua e cultura ou,
ao contrário, todos os padrões de racionalidade estarem atrelados a
11. Cf. P. Berman (org.), DebatingP. C., New York, 1992; cf. aí tam bém J. Searle,
“Storm over the University”, pp. 85-123.
12. Cf. J. Habermas, O discurso filosófico da modernidade, São Paulo, Martins
Fontes, 2000.
13. A. G utm ann manifesta-se sobre o método de desmascaramento como a se
guir: “Em geral, conduz-se essa argumentação abreviada em favor de grupos sub-re-
presentados na universidade e depreciados na sociedade; é difícil divisar, no entanto,
de que maneira ele pode ser de alguma serventia para quem quer que seja. Tanto do
ponto de vista lógico quanto do ponto de vista prático, ele mina seu próprio funda
mento. De acordo com sua lógica interna, a tese desconstrutivista de que parâmetros
intelectuais nada mais são senão mascaramentos de anseios por poder conduz a que
tam bém nela se espelhe um anseio de poder, qual seja o dos próprios desconstrutivistas.
Mas se as pessoas de fato só têm em mente o poder político, por que é que elas se
dedicam a questões intelectuais que certamente não são o caminho mais rápido e mais
seguro para alcançá-lo, e nem mesmo o caminho mais cômodo?” Ch. Taylor et alii,
Multikulturalismus und die Politik der Anerkennung, Frankfurt am Main, 1993. p. 139.
246 A IN C L U S Ã O DO OUTRO
caso dos cidadãos imigrados) com dar continuidade a um projeto cons
titucional já preexistente. As pessoas a partir das quais em determina
do m omento se forma uma nação vinculada a um Estado, no entanto,
também corporificam a um só tempo as formas culturais de vida em
que se formou sua própria identidade cultural — mesmo que nesse
meio tempo elas já tenham se afastado das tradições de sua origem. As
pessoas, ou melhor, as estruturas de personalidade formam como que
junções dos fios de uma rede ágrafa de culturas e tradições, de conca-
tenações vitais e experienciais intersubjetivamente partilhadas. E esse
contexto é também o horizonte dentro do qual os cidadãos do Estado,
queiram eles ou não, desenvolvem seus discursos de auto-entendimento
ético-político. Quando se altera o conjunto básico de cidadãos, tam
bém se altera esse horizonte, de tal modo que se desenvolvem outros
discursos sobre as mesmas questões e se almejam outros fins. As m i
norias, ao menos intuitivamente, têm consciência dessa circunstância;
ela constitui um importante motivo para a reivindicação de um Esta
do próprio, ou mesmo para a exigência do reconhecimento enquanto
“distinctive society”, tal como revelou o projeto constitucional de Meech
Lake, que a propósito não teve êxito. Caso a minoria ffancófona se
constituísse enquanto comunidade jurídica própria, em importantes
questões ético-políticas ela iria, pela mesma via democrática, formar
outras maiorias e chegar a regulamentações diferentes daquelas a que
os canadenses chegaram até hoje, em seu conjunto.
Como mostra a história da formação das nações16, com novas fron
teiras para o Estado certamente também surgem outras minorias na
cionais; e o problema não desaparece, a não ser à custa de “purificação
étnica” — o que é injustificável do ponto de vista político-moral. Com
base no exemplo dos curdos, que vivem dispersos em cinco Estados
diferentes, ou da Bósnia-Herzegovina, em que os grupos étnicos lu
tam impiedosamente entre si, pode-se demonstrar claramente a con
dição cindida do “direito” quando voltado à autodeterminação nacio
nal. Por um lado, com o passo que se dá rumo à autonomia enquanto
Estado próprio, a coletividade que se entende como comunidade do
tada de identidade própria conquista um novo patamar de reconheci
mento, o qual lhe é negado em um estágio anterior à consolidação polí
tica, seja na condição de comunidade lingüística e de ascendência co
248 A IN C L U S Ã O DO OUTRO
turais de vida estão mais ou menos de acordo com a separação territorial
entre eles. Em muitas sociedades multiculturais, como os Estados Uni
dos, não é esse o caso; e será menos ainda para países em que a compo
sição étnica da população vem se modificando (como na Alemanha)
sob a pressão de fluxos imigratórios em nível mundial. Também um
Québec que se tornasse culturalmente autônomo acabaria por encon
trar-se na mesma situação e simplesmente trocaria uma cultura majo
ritária inglesa por outra, francesa. Suponhamos que em sociedades mul
ticulturais como essas, no contexto de uma cultura liberal e com base
em associações voluntárias, subsista uma opinião pública eficiente, que
funcione com estruturas de comunicação não simplesmente herdadas,
mas que possibilitem e fomentem discursos de auto-entendimento.
Nesse caso, o processo democrático de efetivação de direitos subjetivos
iguais também pode estender-se ao asseguramento da coexistência
eqüitativa de diferentes grupos étnicos e de suas formas culturais de
vida. Para isso não é preciso haver qualquer fundamentação especial,
nem tampouco uma proposição básica concorrente. Pois se é possível
garantir a integridade da pessoa do direito em particular, de um ponto
de vista normativo, isso não pode ocorrer sem a defesa dos contextos
vitais e experienciais partilhados intersubjetivamente, nos quais a pes
soa foi socializada e nos quais se formou sua identidade. A identidade
do indivíduo está entretecida com identidades coletivas e só pode esta-
bilizar-se em uma rede cultural que está tão longe de poder ser adqui
rida como propriedade privada quanto a própria língua materna. Por
isso, embora o indivíduo continue sendo o portador dos respectivos
“direitos de pertencer culturalmente”, no sentido de W. Kymlicka18, ainda
resultam disso, em virtude da dialética das igualdades jurídica e factual,
amplas garantias de status e direitos à autonomia administrativa, bene
fícios de infra-estrutura, subvenções etc. Culturas autóctones que es
tejam ameaçadas podem fazer valer em defesa própria certas razões m o
rais peculiares, advindas da história de um país dominado nesse meio
tempo pela cultura majoritária. Argumentos semelhantes em favor de
uma “discriminação ao inverso” podem ser usados por culturas longa
mente oprimidas e renegadas, como as de antigos escravos.
Obrigações como essas, e outras semelhantes, resultam de rei
vindicações jurídicas; elas não resultam em hipótese alguma de uma
A LUTA P O R R E C O N H E C I M E N T O N O E S T A D O D E M O C R Á T I C O D E D I R E IT O 249
apreciação valorativa geral da respectiva cultura. A política do reco
nhecimento de Taylor estaria assentada sobre um alicerce muito fraco,
caso dependesse de uma “suposição de valor idêntido” em relação às
culturas e à sua respectiva colaboração com a civilização mundial. O
direito à igualdade de respeito que cada um pode reivindicar também
nos contextos vitais formadores da própria identidade nada tem a ver
com a suposta excelência de sua cultura de origem, ou seja, com um
desempenho que ocasione um agrado generalizado. É o que acentua
Susan Wolf ao afirmar: “ao menos um grande dano perpetuado pelo
não-reconhecimento tem pouco a ver com a questão sobre a impor
tância geral que possam ter para a humanidade os seres humanos e a
cultura aos quais se nega o reconhecimento. E a necessidade de repa
rar esse dano não se deve à suposição -— ou à aceitação da suposi
ção— de que uma determinada cultura tem um valor especial para as
pessoas que não pertencem a ela”19.
Em tal medida, a coexistência eqüitativa de diferentes grupos ét
nicos e de suas formas de vida culturais não pode ser assegurada por
um tipo de direitos coletivos que necessariamente estaria além dos
limites de uma teoria do direito talhada para atender a pessoas indivi
duais. Mesmo que se acatassem tais direitos coletivos no Estado de
mocrático de direito, eles seriam não apenas desnecessários, mas tam
bém questionáveis do ponto de vista normativo. Pois a defesa de for
mas de vida e tradições geradoras de identidade deve servir, em últi
ma instância, ao reconhecimento de seus membros; ela não tem de
forma alguma o sentido de uma preservação administrativa das es
pécies. O ponto de vista ecológico da conservação das espécies não
pode ser transportado às culturas. Normalmente, as tradições cultu
rais e as formas de vida que aí se articulam reproduzem-se ao conven
cer do valor de si mesmas os que as assumem e as internalizam em
suas estruturas de personalidade; ou seja, elas se reproduzem ao m oti
var os indivíduos a uma apropriação e continuação produtivas de si
mesmas. O caminho do direito estatal nada pode senão possibilitar
essa conquista hermenêutica da reprodução cultural de universos vi
tais. Pois uma garantia de sobrevivência iria justamente privar os inte
grantes da liberdade de dizer sim ou não, hoje tão necessária à apro
priação e manutenção de uma herança cultural. Sob as condições de
250 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
uma cultura que se tornou reflexiva, só conseguem se manter as tradi
ções e formas de vida que vinculem seus integrantes, e isso por mais
que fiquem expostas à provação crítica por parte deles, e por mais que
dêem às novas gerações a opção de aprender com as outras tradições,
ou mesmo converter-se a elas e migrar, portanto, para outras para
gens. Isso vale até mesmo para seitas relativamente fechadas como os
amish na Pensilvânia20. Mesmo que considerássemos sensato o obje
tivo de colocar as culturas sob um regime de preservação das espécies,
as condições hermenêuticas para um a reprodução promissora seriam
inconciliáveis com esse objetivo — “to maintain and cherish distinct-
ness, not just now but fore ver".
Para isso não basta evocar as muitas subculturas e universos vi
tais que floresceram na sociedade burguesa precoce da Era Moderna
européia, estratificada em associações de ofício, ou então as formas de
vida dos assalariados que se seguiram a eles, ora pagos por dia de tra
balho, ora integrantes das massas urbanas proletárias e desenraizadas
que caracterizaram a primeira fase da industrialização. Todos eles cer
tamente foram abarcados e esmagados com violência pelo processo
de modernização; mas não foram todos, em absoluto, que encontra
ram um mestre protetor ou se viram defendidos convictamente por
seus aliados contra as alternativas desse novo tempo. Formas de vida
que, do ponto de vista cultural, foram suficientemente fortes e atrati
vas para estimular a vontade a se auto-afirmar (foi o que se deu prova
velmente com a cultura urbana e burguesa do século XIX) só logra
ram manter-se vivas, em alguns de seus traços, graças a uma força de
autotransformação. Mesmo uma cultura majoritária que não se vê
ameaçada só conserva sua vitalidade através de um revisionismo ir
restrito, do esboço de alternativas ao que existe até hoje ou da integra
ção de impulsos alheios — até o ponto de romper com algumas de
suas próprias tradições. Isso vale em especial para as culturas de imigra
ção, as quais, pela pressão assimiladora das novas circunstâncias, vêem-
se desafiadas a um isolamento étnico relutante e à revivificação de ele
mentos tradicionais, mas estabelecem logo a seguir uma forma de vida
igualmente distanciada da assimilação e da origem tradicional21.
20. Cf. a decisão da Suprema Corte no caso Wisconsin versus Yoder, 406 U. S. 205
(1972).
21. Cf. D. Cohn-Bendit, Th. Schmid, Heimat Babylon, Hamburgo, 1992, pp. 316ss.
A L U T A P O R R E C O N H E C I M E N T O N O E S T A D O D E M O C R Á T I C O D E D I R E IT O 251
Em sociedades multiculturais, a coexistência eqüitativa das for
mas de vida significa para cada cidadão uma chance segura de crescer
sem perturbações em seu universo cultural de origem, e de também
poder criar seus filhos nesse mesmo universo; ou seja, significa a
chance de poder confrontar-se com sua cultura de origem — como
com qualquer outra — , dar-lhe continuidade ou transformá-la, ou ainda
a chance de distanciar-se com indiferença de seus imperativos, ou
mesmo romper com ela, em uma atitude autocrítica, para viver a par
tir daí com a marca deixada por uma ruptura consciente com a tra
dição ou então com uma identidade cindida. A m udança acelerada
das sociedades m odernas manda pelos ares todas as formas estacio
nárias de vida. As culturas só sobrevivem se tiram da crítica e da cisão
a força para uma autotransformação. Garantias jurídicas só podem
se apoiar sobre o fato de que cada indivíduo, em seu meio cultural,
detém a possibilidade de regenerar essa força. E essa força, por sua
vez, não nasce apenas do isolamento em face do estrangeiro e de pes
soas estrangeiras, mas nasce também — e pelo menos em igual me
dida — do intercâmbio com eles.
Na modernidade, formas rígidas de vida tornam -se vítimas da
entropia. Movimentos fundamentalistas podem ser entendidos como
a tentativa irônica de, com meios restaurativos, conferir ultra-estabili-
dade ao próprio m undo vital. A ironia consiste na autocompreensão
errônea por parte de um tradicionalismo que surge na esteira da m o
dernização social e apenas imita uma substancialidade já decaída.
Como reação a um impulso modernizador triunfante, o fundamenta-
lismo representa um movimento de renovação plenamente moderno.
O nacionalismo também pode tornar-se um fundamentalismo, mas
não pode ser confundido com ele. O nacionalismo da Revolução Fran
cesa aliou-se às proposições básicas universalistas do Estado de direi
to; naquele tempo, nacionalismo e republicanismo eram como irmãos
gêmeos. No entanto, as sociedades em processo de mudança radical
não são as únicas a se ver expostas a esse fenômeno; também as conso
lidadas democracias do Ocidente são cortejadas por movimentos fun
damentalistas. Todas as religiões mundiais geraram seu próprio funda
mentalismo, mas nem todas os movimentos organizados em seitas
apresentam traços desse tipo.
O caso Rushdie vem lembrar que o fundamentalismo que conduz
a uma práxis de intolerância é inconciliável com o Estado de direito.
252 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
Essa práxis apóia-se sobre interpretações religiosas ou histórico-filosó-
ficas do m undo que reivindicam exclusividade para uma forma privi
legiada de vida. Falta a tais concepções a consciência da falibilidade de
sua reivindicação de validação e o respeito em face do “ônus da razão”
(John Rawls). É natural que interpretações globais do mundo e convic
ções religiosas não se vinculem a um falibilismo dessa natureza, que
hoje acompanha o saber hipotético das ciências empíricas. Mas visões
de m undo fundamentalistas são dogmáticas em um outro sentido: elas
não concedem nenhum espaço à reflexão sobre sua relação com ima
gens de m undo alheias, nem mesmo com imagens de m undo com as
quais partilham o mesmo universo discursivo, e contra cujas reivin
dicações de validação podem impor-se sem dificuldade, apenas com
base em fundamentos racionais. Visões de m undo fundamentalistas
não dão nenhuma chance a “reasonable disagreement”22.
Em face disso, as forças subjetivadas de fé do m undo moderno
são marcadas por um posicionamento reflexivo que não permite ha
ver um único moáus vivendi— juridicamente imponível sob condições
da liberdade religiosa. As imagens de m undo não-fundamentalistas,
que Rawls caracteriza23 como “not unreasonable comprehensive doc-
trines”, permitem muito mais — no espírito da tolerância propugnada
por Lessing -— uma disputa civilizada entre diversas convicções, na
qual um partido pode reconhecer os demais como parceiros na busca
de verdades autênticas, sem com isso renunciar à própria reivindi
cação de validação. Em sociedades multiculturais, a constituição jurí-
dico-estatal só pode tolerar formas de vida que se articulem no médium
de tradições não-fundamentalistas, já que a coexistência eqüitativa
dessas formas de vida exige o reconhecimento recíproco das diversas
condições culturais de concernência ao grupo: também é preciso reco
nhecer cada pessoa como membro de uma comunidade integrada em
torno de outra concepção diversa do que seja o bem, segundo cada
caso em particular. A integração ética de grupos e subculturas com
cada uma das identidades coletivas próprias precisa ser desacoplada
do plano de uma integração política abstrata, que apreende os cida
dãos do Estado de maneira eqüitativa.
254 A IN C L U S Ã O DO OUTRO
de que o desencadeamento de liberdades comunicativas em meio à opi
nião pública de caráter político, o procedimento democrático da solu
ção de conflitos e a canalização jurídico-estatal da dominação funda
mentam uma perspectiva de banimento do poder ilegítimo e de utili
zação do poder administrativo em favor do interesse eqüitativo de to
dos. O universalismo dos princípios jurídicos reflete-se, com certeza,
em um consenso procedimental que certamente precisa estar circuns
crito por um patriotismo constitucional— por assim dizer — , no con
texto de uma respectiva cultura política historicamente determinada.
O
Imigração, cidadania e identidade nacional
25. D. J. van de Kaa, “European Migration at the End o f History”, European Re-
view, vol. 1, jan. 1993, p. 94.
26. Cf. E. Wiegand, “Auslànderfeindlichkeit in der Festung Europa. Einstellungen
zu Fremden im europãischen Vergleich”. In: Informationsdienst Soziale Indikatoren
(ZUMA), n. 9, jan. 1993, p. 1-4.
256 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
dãos. Por isso, o teor ético de um a integração política que unifique
todos os cidadãos precisa ser “neutro” em face das diferenças que haja
no interior do Estado entre comunidades ético-culturais que se inte
gram cada qual em torno de um a respectiva concepção própria do
que seja o bem. Não obstante o desacoplamento desses dois planos de
integração, uma nação de cidadãos reunidos em um mesmo Estado só
poderá manter vivas as instituições da liberdade quando desenvolver
um a determinada medida de lealdade em face do próprio Estado, leal
dade que não seja necessário im por juridicamente.
É essa autocompreensão ético-política da nação que se vê afetada
pela imigração; pois a afluência de imigrantes altera a composição
da população também sob um ponto de vista ético-cultural. Isso ex
plica a questão quanto aos limites do anseio por imigração: ele não
esbarra justamente no direito de um a coletividade política a manter
intata sua forma de vida político-cultural? E o direito à autodetermina
ção — sob a premissa de que a ordem geral do Estado, conformada de
m aneira autônom a, está eticamente impregnada — não inclui o di
reito à auto-afirmação da identidade de um a nação? E isso também
diante de imigrantes, que poderíam alterar a índole amadurecida ao
longo da história de uma forma de vida político-cultural?
Da perspectiva da sociedade que acolhe os imigrantes, o proble
ma da imigração suscita a pergunta acerca das condições legítimas de
entrada. Negligenciando os graus intermediários do ingresso, pode
mos centrar a pergunta sobre um de seus aspectos extremos: o ato de
naturalização. É com ele que o Estado controla a ampliação da coleti
vidade, definida justamente através dos direitos à cidadania. Sob que
condições cabe ao Estado negar a cidadania aos que tornam válida
um a pretensão de naturalização? Sem levar em conta as medidas de
precaução usuais (contra a criminalidade, por exemplo), em nosso
contexto é especialmente relevante a pergunta sobre em que medida
um Estado de direito democrático, em defesa da integridade da forma
de vida de seus cidadãos, pode exigir do imigrante que ele se assimile.
No plano abstrativo das considerações filosóficas podemos distinguir
dois níveis de assimilação:
(a) o da concordância com os princípios da constituição no inte
rior do espaço de atuação interpretativo que se determina em dado
momento por meio da autocompreensão ético-política dos cidadãos
e pela cultura política do país; e isso significa, portanto, o assimilar-se
27. Cf. M. Walzer, “W hat does it mean to be an American”, Social Research, vol.
57, outono de 1999, p. 591-614, em que se constata que a concepção comunitarista não
faz jus à complexa composição de um a sociedade multicultural (p. 613).
28. Cf. R. Brubaker, Citizenship and Nationhood in France and Germany, Cam-
bridge, Mass., 1992, pp. 128ss.
258 A IN C L U S Ã O DO OUTRO
imigratórias fundamentalistas. Mas ela não justifica a assimilação
coagida, em prol da auto-afirmação de uma forma de vida cultural
predom inante no país29.
Dessa alternativa estatal-jurídica decorre que a identidade cole
tiva, firmada de maneira legítima na seqüência das ondas imigratórias,
a longo prazo jamais fica imune a mudanças. Pelo fato de não se p o
der coagir os imigrantes a abandonar suas próprias tradições, tam
bém se amplia, de acordo com a nova forma de vida que se estabe
lece, o horizonte no qual os cidadãos interpretam os princípios cons
titucionais que têm em comum. Sucede a isso uma interferência do
mecanismo segundo o qual se altera o contexto a que se refere a auto-
compreensão ético-política da nação como um todo, tão logo se m o
difique a composição cultural do conjunto de cidadãos ativos: “People
live in communities with bonds and bounds, but these may be of
different kinds. In a liberal society, the bonds and bounds should be
compatible with liberal principies. Open immigration would change
the character of the community, but it would not leave the community
without any character30”.
Por ora, é o que basta dizer sobre as condições que um Estado
democrático de direito pode im por para a aceitação de imigrantes.
Quem, no entanto, realmente tem direito à imigração?
Há boas razões morais para um a reivindicação de direito indivi
dual a asilo político (no sentido do art. 16 da Lei Fundamental, que
deve ser interpretado com remissão à defesa da dignidade hum ana
garantida no art. Io e ao direito à garantia de defesa legal, firmada
no art. 19). Sobre isso não é necessário manifestar-me. Im portante,
sim, é a definição de refugiado. Segundo a Convenção sobre Refu
giados, de Genebra, tem direito a asilo todo aquele que foge de paí
ses “em que sua vida ou sua liberdade pudesse estar ameaçada por
causa de sua raça, religião, nacionalidade, por pertencer a determ i
nado grupo social ou por causa de sua convicção política”. À luz das
experiências mais recentes, porém, essa definição precisa ser ampliada
de m odo a incluir a defesa de mulheres contra estupros em massa.
Além disso, não apresenta problemas a reivindicação por parte de
262 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
um tratamento juridicamente irreparável desse problema. Igualmen
te problemática, além disso, é a restrição da garantia de defesa jurídica
para fugitivos de países que, a partir do ponto de vista da Alemanha,
passam a ser definidos como “isentos de perseguição”32.
(c) Em vez de tornar mais simples o processo de aquisição da
nacionalidade alemã para os estrangeiros já assentados na Alemanha,
especialmente para aqueles “trabalhadores-hóspedes” recrutados em
outros tempos, o acordo sobre o asilo recusa mudanças no direito à
naturalização. Aos estrangeiros já estabelecidos no país recusa-se a
concessão de dupla cidadania, embora houvesse razões muito com
preensíveis para que ela lhes coubesse de maneira preferencial; nem
sequer seus filhos nascidos na Alemanha adquirem os direitos de cida
dania sem restrições. E até os estrangeiros dispostos a renunciar à ci
dadania de que já dispõem precisam ser residentes na Alemanha há
mais de quinze anos para se naturalizar. Por outro lado, os assim cha
mados “alemães por nacionalidade”, sobretudo poloneses e russos que
podem comprovar uma ascendência alemã, dispõem de direito cons
titucionalm ente expresso a se naturalizar. Com base nesse funda
mento, em 1992 foram acolhidos na Alemanha 220.000 novos cidadãos
de origem alemã provenientes do Leste Europeu, que se somaram a
500.000 outros solicitantes de asilo (entre os quais 130.000 provenientes
das regiões de conflito civil da ex-Iugoslávia).
(d) A política alemã para concessão de asilo baseia-se sobre a pre
missa sempre reiterada de que a República Federal da Alemanha não é
um país de imigração. Isso contraria não somente o que se vê nas
ruas e metrôs em nossas grandes cidades — Frankfurt, por exemplo,
conta hoje com 26% de estrangeiros em sua população — , mas tam
bém os fatos históricos mais remotos. É bem verdade que desde o
início do século XIX emigraram, só para os Estados Unidos, cerca de
33. Cf. K. J. Bade, “Immigration and Integration in Germany since 1945”, Euro-
pean Review, v. 1,1993, pp. 75-79.
34. Idem, ibidem, p. 77.
266 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
em torno da cesura de 1989 esconde atrás de si o anseio por norm ali
zação (reiteradamente rechaçado) dos que não quiseram admitir a
cesura anterior, de 194 535. Essas pessoas se defendem contra uma al
ternativa que — embora não leve necessariamente, e por um motivo
qualquer, a outras opções em curto prazo — faz surgir, isso sim, uma
outra perspectiva para a questão. Segundo essa leitura, a orientação
ocidental da antiga República Federal da Alemanha não corresponde
a uma decisão de política externa, prudente e episódica, e de forma
alguma a uma decisão estritamente política, mas sim a uma ruptura
intelectual bastante profunda com as tradições especificamente ale
mãs que marcaram o Reino guilhermino e que fomentaram a deca
dência da República de Weimar. Essa orientação do país traçou o iti
nerário de uma mudança de mentalidade que — após a revolta estu
dantil de 1968, sob as excelentes condições de uma sociedade de bem-
estar social existentes na época — alcançou agora camadas mais ex
tensas da população e possibilitou pela primeira vez um enraizamento
da democracia e do Estado de direito em solo alemão. Hoje se trata de
adaptar o papel político da República Federal da Alemanha a novas
realidades, sem interromper sob o peso dos problemas econômicos e
sociais da reunificação o processo de civilização política que vinha
avançando até 1989 e sem sacrificar as conquistas normativas de uma
autocompreensão nacional fundamentada na noção da cidadania no
âmbito de um Estado, e não mais em velhas noções étnicas.
35. Cf. o capítulo que intitula tam bém o volume em J. Habermas, Die Normalitat
einer Berliner Republik, Frankfurt am Main, 1995.
J
9
Três modelos normativos
de democracia"
O
A diferença decisiva reside na compreensão do papel
que cabe ao processo democrático. Na concepção “liberal”,
esse processo cumpre a tarefa de programar o Estado para *
269
que se volte ao interesse da sociedade: imagina-se o Estado como apa
rato da administração pública, e a sociedade como sistema de circula
ção de pessoas em particular e do trabalho social dessas pessoas, es
truturada segundo leis de mercado. A política, sob essa perspectiva, e
no sentido de formação política da vontade dos cidadãos, tem a fun
ção de congregar e impor interesses sociais em particular mediante
um aparato estatal já especializado no uso administrativo do poder
político para fins coletivos.
Segundo a concepção “republicana”, a política não se confunde
com essa função mediadora; mais do que isso, ela é constitutiva do
processo de coletivização social como um todo. Concebe-se a polí
tica como forma de reflexão sobre um contexto de vida ético. Ela cons
titui o médium em que os integrantes de comunidades solidárias sur
gidas de forma natural se conscientizam de sua interdependência
m útua e, como cidadãos, dão forma e prosseguimento às relações
preexistentes de reconhecimento mútuo, transformando-as de forma
voluntária e consciente em uma associação de jurisconsortes livres e
iguais. Com isso, a arquitetônica liberal do Estado e da sociedade so
fre uma mudança importante. Ao lado da instância hierárquica regu
ladora do poder soberano estatal e da instância reguladora descen
tralizada do mercado, ou seja, ao lado do poder administrativo e dos
interesses próprios, surge também a solidariedade como terceira fonte
de integração social.
Esse estabelecimento da vontade política horizontal, voltada ao
entendimento m útuo ou ao consenso almejado por via comunicativa,
deve gozar até mesmo de primazia, se considerado do ponto de vista
tanto genético quanto normativo. Para a práxis de autodeterminação
por parte dos cidadãos no âmbito do Estado, aceita-se um a base social
autônoma que independa da administração pública e da mobilidade
socioeconômica privada, e que impeça a comunicação política de ser
tragada pelo Estado e assimilada pela estrutura de mercado. Na con
cepção republicana, confere-se significado estratégico tanto à opinião
pública de caráter político quanto à sociedade civil, como seu susten-
táculo. Ambos devem conferir força integrativa e autonomia à práxis
de entendimento m útuo entre os cidadãos do Estado1. Ao desacopla-
270 A IN C L U S Ã O D O OUTRO
mento da comunicação política em relação à sociedade econômica
corresponde uma retroalimentação do poder administrativo a partir
do poder comunicativo decorrente do processo de formação da von
tade e opinião políticas.
Dos dois enfoques concorrentes resultam diversas conseqüências.
(a) Em primeiro lugar diferenciam-se as concepções de cidadão do
Estado. Segundo a concepção liberal, determina-se o status dos cida
dãos conforme a medida dos direitos individuais de que eles dispõem
em face do Estado e dos demais cidadãos. Como portadores de direi
tos subjetivos, os cidadãos poderão contar com a defesa do Estado
desde que defendam os próprios interesses nos limites impostos pelas
leis — e isso se refere igualmente à defesa contra intervenções estatais
que excedam ressalva interventiva prevista em lei. Direitos subjetivos
são direitos negativos que garantem um espaço de ação alternativo
em cujos limites as pessoas do direito se vêem livres de coações exter
nas. Direitos políticos têm a mesma estrutura: eles oferecem aos cida
dãos a possibilidade de conferir validação a seus interesses particu
lares, de maneira que esses possam ser agregados a outros interesses
privados (por meio de votações, formação de corporações parlamen
tares e composições de governos) e afinal transformados em uma von
tade política que exerça influência sobre a administração. Dessa m a
neira, os cidadãos, como membros do Estado, podem controlar se o
poder estatal está sendo exercido em favor do interesse dos cidadãos
na própria sociedade2.
2. Cf. F. I. Michelman, “Political Truth and the Rule of Law”, TelAviv Univ. Stu-
dies in Law, n. 8, 1988, p. 283: “The political society envisioned by bumper-sticker
republicans is the society o f private right bearers, an association whose first principie is
the protection of lives, liberties and estates, o f its individual members. In that society,
the State is justified by the protection it gives to those prepolitical interests; the purpose
of the constitution is to ensure that the State apparatus, the government, provides such
protection for the people at large rather than serves the special interests of the governors
or their patrons; the fiinction of citizenship is to operate the constitution and thereby
motivate the governors to act according to that protective purpose; and the value to
you of your political franchise — your right to vote and speak, to have your views
heard and counted — is the handle it gives you on influencing the system so that it will
adequately heed and protect your particular, pre-political rights and other interests”.
[“A sociedade política que os adesivos republicanos esboçam é a sociedade dos porta
dores de direitos privados, uma associação cujo primeiro princípio é a proteção das
vidas, liberdades e propriedades de seus membros individuais. Nessa sociedade, o es
tado é justificado pela proteção que dá aos interesses pré-políticos; o propósito da
constituição é assegurar que o aparato estatal, o governo, proveja proteção para o povo,
sem servir a interesses privados dos governantes ou de seus patrões; a função da cida
dania é praticar a constituição e, portanto, motivar os governantes a agirem segundo
esse objetivo de proteção; e o valor do direito político de cada um — direito a voto e
expressão, direito de ter a própria opinião ouvida e levada em conta — é o suporte que
ele dá ao indivíduo, para que ele influencie o sistema a dar atenção e proteção aos
interesses pré-políticos particulares e a outros interesses”].
3. Sobre a liberdade positiva versus a negativa, cf. Ch. Taylor,“Was ist menschliches
Handeln?” In: Negative Freiheit?, Frankfurt am Main, 1988, pp. 9ss.
4. Cf. F. I. Michelman, 1988, p. 284: “In civic constitutional vision, political society
is primarly the society not of right-bearers but o f citizens, an association whose first
principie is the creation and provision of a public realm within which a people, together,
argue and reason about the right terms of social coexistence, terms that they will set
together and which they understand as their common good... Hence the State is justified
by its purpose of establishing and ordering the public sphere within which persons can
achieve freedom in the sense of self-government by the exercise of reason in public
dialogue”. [“Na visão cívica constitucional, a sociedade política é primariamente a so
ciedade não dos portadores de direitos, mas dos cidadãos, um a associação cujo princí
pio primeiro é a criação e provisão de um âmbito público dentro do qual um a popula
ção, em conjunto, discuta e raciocine sobre os termos do direito à coexistência social,
termos que serão definidos em conjunto e entendidos como bem co m u m ... A partir
disso o estado é justificado por seu propósito de estabelecer e ordenar a esfera pública
dentro da qual as pessoas podem alcançar a liberdade no sentido de autogoverno pelo
exercício da razão no diálogo público”].
272 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
tencial do Estado não reside primeiramente na defesa dos mesmos
direitos subjetivos, mas sim na garantia de um processo inclusivo de
formação da opinião e da vontade, em que cidadãos livres e iguais
chegam ao acordo m útuo quanto a quais devem ser os objetivos e
normas que correspondam ao interesse comum. Com isso, exige-se
do cidadão republicano mais que a orientação segundo seus respecti
vos interesses próprios.
(b) Na polêmica contra o conceito clássico da pessoa do direito
como portadora de direitos subjetivos revela-se a controvérsia em tor
no do conceito de direito em si mesmo. Segundo a concepção liberal, o
sentido de um a ordem jurídica consiste em que ela possa constatar
em cada caso individual quais são os direitos cabíveis a que indiví
duos; em uma concepção republicana esses direitos subjetivos se de
vem a uma ordem jurídica objetiva, que possibilite e garanta a integri
dade de um convívio eqüitativo, autônom o e fundamentado sobre o
respeito mútuo. Em um dos casos a ordem jurídica constrói-se a par
tir de direitos subjetivos, no outro caso concede-se um primado ao
teor jurídico objetivo desses mesmos direitos.
Esses conceitos dicotômicos certamente não atingem o teor in-
tersubjetivo dos direitos, que exigem a consideração recíproca de di
reitos e deveres, em proporções simétricas de reconhecimento. Na ver
dade, o projeto republicano vai ao encontro de um conceito de direito
que atribui pesos iguais de um lado à integridade do indivíduo e suas
liberdades subjetivas, e de outro lado à integridade da comunidade
em que os indivíduos podem se reconhecer uns aos outros como seus
membros e enquanto indivíduos. Esse projeto vincula a legitimidade
das leis ao procedimento democrático de sua gênese, e preserva assim
uma coesão interna entre a práxis de autodeterminação do povo e do
dom ínio impessoal das leis: “For republicans rights ultimatly are
nothing but determinations of the prevailing political will, while for
liberais some rights are always grounded in a ‘higher law’ of trans-
political reason or revelation... In a republican view, a com m unitys
objective, the common good substancially consists in the success of its
political endeaver to define, establish, effectuate and sustain the set of
rights (less tendentiously laws) best suited to the conditions and m o
res of that community, whereas in a contrasting liberal view the higher
law rights provide the transcendental structures and the curbs on power
required so that pluralistic pursuit of diverse and conflicting interests
274 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
reza do processo político. Segundo a concepção liberal, a política é es
sencialmente uma luta por posições que permitam dispor do poder
administrativo. O processo de formação da vontade e da opinião polí
tica, tanto em meio à opinião pública como no parlamento, é deter
minado pela concorrência entre agentes coletivos agindo estrategica
mente e pela manutenção ou conquista de posições de poder. O êxito
nesse processo é medido segundo a concordância dos cidadãos em
relação a pessoas e programas, o que se quantifica segundo números
de votos. Ao votar, os eleitores expressam suas preferências. As deci
sões que tomam nas eleições têm a mesma estrutura que os atos eletivos
de participantes do mercado voltados à conquista de êxito. São os elei
tores que licenciam o acesso a posições de poder pelas quais os parti
dos políticos lutam, em uma mesma atitude que se orienta pela busca
de sucesso. Um mesmo modelo de ação estratégica corresponde igual
mente ao inputàos votos e ao output do poder.
Segundo a concepção republicana, a formação de opinião e von
tade política em meio à opinião pública e no parlamento não obedece
às estruturas de processos de mercado, mas às renitentes estruturas de
uma comunicação pública orientada ao entendimento mútuo. Para a
política no sentido de uma práxis de autodeterminação por parte de
cidadãos do Estado, o paradigma não é o mercado, mas sim a inter-
locução. Segundo essa visão, há um a diferença estrutural entre o po
der comunicativo, que advém da comunicação política na forma de
opiniões majoritárias estabelecidas por via discursiva, e o poder admi
nistrativo de que dispõe o aparato estatal. Também os partidos que
lutam pelo acesso a posições de poder no Estado têm de se adequar ao
estilo e à renitência dos discursos políticos: “Deliberation... refers to a
certain attitude toward social cooperation, namely, that of openness
to persuasion by reasons referring to the claims of others as well as
one’s own. The deliberative médium is a good faith exchange of views
— including participants reports of their own understanding of their
respective vital interests — ... in which a vote, if any vote is taken, repre-
sents a pooling of judgements”7. Portanto, o embate de opiniões ocor
rido na arena política tem força legitimadora não apenas no sentido
de uma autorização para que se ocupem posições de poder; mais que
isso, o discurso político ocorrido continuamente também apresenta
O
Por ora, é o que basta dizer sobre a comparação entre os dois
modelos de democracia que hoje dominam a discussão entre os assim
chamados comunitaristas e os “liberais”, sobretudo nos Estados Uni
dos. O modelo republicano tem vantagens e desvantagens. Vejo como
vantagem o fato de ele se firmar no sentido radicalmente democrático
de uma auto-organização da sociedade pelos cidadãos em acordo
mútuo por via comunicativa e não remeter os fins coletivos tão-so
mente a um “deal” [uma negociação] entre interesses particulares opos
tos. Como desvantagem, entendo o fato de ele ser bastante idealista e
tornar o processo democrático dependente das virtudes de cidadãos
voltados ao bem comum. Pois a política não se constitui apenas — e
nem sequer em primeira linha — de questões relativas ao acordo m ú
tuo de caráter ético. O erro reside em uma condução estritamente ética
dos discursos políticos.
Por certo, entre os elementos que formam a política são muito
importantes os discursos de auto-entendimento m útuo em que os
envolvidos procuram obter clareza quanto à maneira como eles mes
mos se entendem enquanto integrantes de uma determinada nação,
membros de certa municipalidade ou Estado, habitantes de uma re
gião etc., ou ainda quanto às tradições a que dão continuidade, à ma
neira como se tratam entre si e como tratam minorias ou grupos mar
ginalizados, quanto ao tipo de sociedade em que querem viver. Mas
sob as condições do pluralismo cultural e social também é freqüente
haver, por detrás de objetivos politicamente relevantes, interesses e
orientações de valor que de forma alguma são constitutivos para a
identidade da coletividade em geral, ou seja, para o todo de uma for
ma de vida partilhada intersubjetivamente. Esses interesses e orienta
ções de valor que permanecem em conflito no interior de uma mesma
coletividade sem qualquer perspectiva de consenso precisam ser com
pensados; para isso não bastam os discursos éticos — mesmo que os
resultados dessa compensação (alcançada com recursos não-discur-
sivos) sofram a restrição de não poder ferir os valores fundamentais
278 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
nômico capitalista. Segundo a concepção republicana a formação po
lítica da opinião e vontade dos cidadãos forma o médium sobre o
qual a sociedade se constitui como um todo firmado politicamente.
A sociedade centra-se no Estado; pois na práxis de autodeterm ina
ção política dos cidadãos a coletividade torna-se consciente de si
mesma como um todo e age efetivamente sobre si mesma através da
vontade coletiva dos cidadãos. Democracia é sinônimo de auto-orga-
nização política da sociedade. Resulta daí uma compreensão de política
polemicamente direcionada contra o Estado. Dos escritos políticos de
Hannah Arendt é possível depreender a rota de colisão pela qual se di
reciona a argumentação republicana; apontada contra o privatismo
burguês de uma população despolitizada e contra a busca de legiti
mação por parte de partidos estatizados, a opinião pública de cunho
político deve revitalizar-se a ponto de um conjunto de cidadãos rege
nerados, nas diversas formas de um a auto-administração descentra
lizada, ser capaz de se (re)apossar do poder estatal burocraticamente
autônomo.
Segundo a concepção liberal, não há como eliminar essa sepa
ração entre o aparato estatal e a sociedade, mas apenas superar a dis
tância entre ambos pela via do processo democrático. As débeis co
notações normativas de uma equilibração regrada do poder e dos
interesses certamente carecem de um a complementação estatal e ju
rídica. A formação democrática da vontade de cidadãos interessados
em si mesmos, entendida de forma minimalista, constitui não mais
que um elemento no interior de um a constituição que tem por tarefa
disciplinar o poder estatal por meio de precauções normativas (como
direitos fundamentais, divisão em poderes e vinculação da adm inis
tração à lei) e ainda impulsioná-lo à devida consideração dos diver
sos interesses e orientações de valores na sociedade. Essa compreen
são de política centrada no Estado pode prescindir da assunção irrea
lista de um conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir. Ela
não se orienta pelo input de um a formação política e racional da von
tade, mas sim pelo output de um balanço positivo ao se avaliar as
conquistas da atividade estatal. A rota de colisão dessa argumentação
tem seu alvo no potencial perturbador de um poder estatal que im
peça a circulação social autônom a das pessoas em particular. O cen
tro do modelo liberal não é a autodeterminação democrática de ci
dadãos deliberantes, mas sim a normatização jurídico-estatal de uma
280 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
Essas comunicações sem sujeito, internas e externas às corporações
políticas e programadas para tomar decisões, formam arenas nas quais
pode ocorrer a formação mais ou menos racional da opinião e da von
tade acerca de temas relevantes para o todo social e sobre matérias
carentes de regulamentação. A formação de opinião que se dá de m a
neira informal desemboca em decisões eletivas institucionalizadas e
em resoluções legislativas pelas quais o poder criado por via comuni
cativa é transformado em poder administrativamente aplicável. Como
no modelo liberal, respeita-se o limite entre Estado e sociedade; aqui,
porém, a sociedade civil, como fundamento social das opiniões públi
cas autônomas, distingue-se tanto dos sistemas econômicos de ação
quanto da administração pública. Dessa compreensão democrática,
resulta por via normativa a exigência de um deslocamento dos pesos
que se aplicam a cada um dos elementos na relação entre os três recur
sos a partir dos quais as sociedades modernas satisfazem sua carência
de integração e direcionamento, a saber: o dinheiro, o poder adminis
trativo e a solidariedade. As implicações normativas são evidentes: o
poder socialmente integrativo da solidariedade, que não se pode mais
tirar apenas das fontes da ação comunicativa, precisa desdobrar-se so
bre opiniões públicas autônomas e amplamente espraiadas, e sobre
procedimentos institucionalizados por via jurídico-estatal para a for
mação democrática da opinião e da vontade; além disso, ele precisa
também ser capaz de afirmar-se e contrapor-se aos dois outros pode
res, ou seja, ao dinheiro e ao poder administrativo.
282 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
sível que, em sua qualidade de soberano, o povo se deixe representar.
O poder constituinte funda-se na práxis autodeterminativa de seus
cidadãos, não de seus representantes. A isso o liberalismo contrapõe a
concepção mais realista de que no Estado de direito democrático o
poder estatal que nasce do povo só é exercido “em eleições e votações
e por meio de organismos legislativos específicos, organismos do poder
executivo e da jurisdição” (é o que se lê, por exemplo, no art. 20, § 2o
da Constituição da República Federal da Alemanha).
Essas duas concepções certamente oferecem uma alternativa en
tre aquelas premissas muito questionáveis de um projeto de Estado e
de sociedade que toma como ponto de partida o todo e suas partes —
muito embora o todo seja formado ou por um conjunto soberano de
cidadãos ou por uma constituição. Ao conceito de discurso na dem o
cracia, por outro lado, corresponde a imagem de uma sociedade des
centralizada, que na verdade diferencia e autonomiza com a opinião
pública um cenário propício à constatação, identificação e tratam en
to de problemas pertinentes à sociedade como um todo. Quando se
sacrifica a formação de conceito ligada à filosofia do sujeito, a sobe
rania não precisa se concentrar no povo de forma concretista, nem
exilar-se na anonimidade de competências atribuídas pelo direito
constitucional. O si-mesmo da comunidade jurídica que se organiza
desaparece em formas de comunicação isentas de sujeitos, as quais
regulam o fluxo da formação discursiva da opinião e da vontade de
modo que seus resultados falíveis guardem para si a suposição de ra
cionalidade. Com isso, a intuição vinculada à idéia de soberania po
pular não é desmentida, mas interpretada de maneira intersubjeti-
vista. Uma soberania popular, mesmo que se tenha tornado anôni
ma, só se abriga no processo democrático e na implementação jurí
dica de seus pressupostos comunicacionais, bastante exigentes por
sinal, caso tenha por finalidade conferir validação a si mesma enquanto
poder gerado por via comunicativa. Sendo mais exato, essa validação
provém das interações entre a formação da vontade institucionaliza
da de maneira jurídico-estatal e as opiniões públicas culturalmente
mobilizadas, que de sua parte encontram uma base nas associações
de um a sociedade civil igualmente distante do Estado e da economia.
De fato, a autocompreensão normativa da política deliberativa
exige para a comunidade jurídica um modo de coletivização social; esse
mesmo modo de coletivização social, porém, não se estende ao todo
T rês M O D F .L O S N O R M A T IV O S D E D E M O C R A C I A 283
da sociedade em que se aloja o sistema político constituído de maneira
jurídico-estatal. Também em sua autocompreensão, a política delibe
rativa continua sendo elemento constitutivo de uma sociedade com
plexa que no todo se exime de assumir um ponto de vista normativo
como o da teoria do direito. Nesse sentido, a leitura da democracia
feita segundo a teoria do discurso vincula-se a uma abordagem distan
ciada, própria às ciências sociais, e para a qual o sistema político não é
nem o topo nem o centro da sociedade, nem muito menos o modelo
que determina sua marca estrutural, mas sim um sistema de ação ao
lado de outros. Como a política consiste em uma espécie de lastro
reserva na solução de problemas que ameacem a integração, ela certa
mente tem de poder se comunicar pelo médium do direito com todos
os demais campos de ação legitimamente ordenados, seja qual for a
maneira como eles se estruturem ou direcionem. Se o sistema polí
tico, no entanto, depende de outros desempenhos do sistema— como
o desempenho fiscal do sistema econômico, por exemplo — , isso não
se dá em um sentido meramente trivial; ao contrário, a política deli
berativa, realizada ou em conformidade com os procedimentos con
vencionais da formação institucionalizada da opinião e da vontade,
ou informalmente, nas redes da opinião pública, m antém uma rela
ção interna com os contextos de um universo de vida cooperativo e
racionalizado. Justamente os processos comunicativos de cunho polí
tico que passam pelo filtro deliberativo dependem de recursos do uni
verso vital — da cultura política libertadora, de uma socialização po
lítica esclarecida e sobretudo das iniciativas de associações formado
ras de opinião — , recursos que se formam de maneira espontânea ou
que, em todo caso, só podem ser atingidos com grande dificuldade,
caso o caminho escolhido para se tentar alcançá-los seja o do direcio
namento político.
284 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
Sobre a coesão interna
entre Estado de direito
e democracia
285
direito em que o poder governamental ainda não foi democratizado.
Em suma, há ordens jurídicas estatais sem instituições próprias a um
Estado de direito, e há Estados de direito sem constituições democrá
ticas. Essas razões empíricas para um tratamento acadêmico dos dois
objetos marcado pela divisão do trabalho, porém, não significam de
modo algum que possa haver do ponto de vista normativo um Estado
de direito sem democracia.
A seguir, pretendo abordar a relação interna entre Estado de di
reito e democracia sob vários aspectos. Essa relação resulta do próprio
conceito moderno de direito (I), bem como da circunstância de que
hoje o direito positivo não pode mais obter sua legitimidade recorren
do a um direito superior (II). O direito moderno legitima-se a partir
da autonomia garantida de maneira uniforme a todo cidadão, sendo
que a autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente (III).
Essa concatenação conceituai também passa a ter validade na dialética
entre as igualdades jurídica e factual, suscitada pelo paradigma jurí
dico socioestatal em face da compreensão liberal do direito e que hoje
compele a uma autocompreensão procedimentalista do Estado demo
crático de direito (IV). Para concluir, explicarei o paradigma jurídico
procedimentalista a partir do exemplo da política feminista pela igual
dade de direitos (V).
O
Qualidades formais do direito moderno
286 A IN C L U S Ã O D O O U T R O
e um modo de estabelecimento do direito capaz de gerar legitimida
de, por outro. Por isso, de um ponto de vista normativo subsiste não
apenas uma relação historicamente casual entre a teoria do direito e a
teoria da democracia, mas sim um a relação conceituai ou interna.
À prim eira vista isso parece um truque filosófico. Na realidade,
porém, essa relação interna está profundam ente alicerçada nas pres
suposições de nossa práxis jurídica cotidiana. Pois no modo de vali
dação do direito a facticidade da imposição do direito por via estatal
enlaça-se com a força legitimadora de um procedimento instituidor
do direito, o qual, de acordo com sua pretensão, é racional, justa
m ente por fundam entar a liberdade. Isso se revela na peculiar am
bivalência com que o direito vai de encontro a seus destinatários e
deles espera obediência. Pois ele os deixa livres, seja para considerar
as norm as apenas como uma restrição efetiva de seu espaço de ação
e portar-se estrategicamente em face das conseqüências previsíveis
de uma possível violação das regras, seja para querer cumprir as leis em
uma atitude performativa — e isso por respeito a resultados de uma
formação comum da vontade que demandam legitimidade para si.
Kant, com o conceito de legalidade, já destacava a ligação entre esses
dois m omentos sem os quais não se pode exigir qualquer obediência
legal: normas jurídicas têm de ser tais que possam ser consideradas a
um só tempo, e sob cada um dos diferentes aspectos, como leis coerci-
vas e como leis da liberdade. Esse duplo aspecto integra nossa com
preensão do direito moderno: consideramos a validade de uma norma
jurídica como um equivalente da explicação para o fato de o Estado
garantir ao mesmo tempo a efetiva imposição jurídica e a institui
ção legítima do direito — ou seja, garantir de um lado a legalidade
do procedimento no sentido de um a observância média das normas
que em caso de necessidade pode ser até mesmo impingida através
de sanções, e, de outro lado, a legitimidade das regras em si, da qual
se espera que possibilite a todo m om ento um cum prim ento das nor
mas por respeito à lei.
Com isso, surge de imediato a pergunta sobre como afinal se
deve fundamentar a legitimidade de regras que podem ser alteradas
pelo legislador a qualquer momento. Normas constitucionais tam
bém são modificáveis; e até mesmo as normas básicas que a própria
Constituição declara imodificáveis compartem com o direito positi
vo a sina de poderem deixar de vigorar, por exemplo se ocorrer uma
O
Sobre a relação complementar entre
direito positivo e moral autônoma
0
Sobre a mediação
entre soberania popular e direitos humanos
O
O exemplo das políticas feministas de equiparação
j,
I
Apêndice a
Facticidade e va lida çã o *
RÉPLICA ÀS COMUNICAÇÕES EM UM
SIMPÓSIO DA CARDOZO LAW SCHOOL
299
resposta correta a cada caso, aos conflitos de valores típicos das socie
dades multiculturais (II). Michel Rosenfeld, com a visão do jurista, dá
continuidade à discussão acerca da primazia do procedimento sobre um
comum acordo substancial de fundo, e sugere por fim uma alternativa
que vem a ser desenvolvida por A. J. Jacobson sob a forma de uma con
cepção dinâmica do direito (III). Bill Regh, com sua interessante per
gunta sobre a relação entre discurso e decisão, dá ensejo à passagem para
questões mais essenciais sobre a construção teórica. Michael Power
aborda o papel das idealizações, ao passo que J. Lenoble me defronta
com contestações ligadas à crítica da razão, concernentes à abordagem
de uma teoria da ação comunicativa em seu todo (IV). Assim como
Lenoble, também David Rasmussen, Robert Alexy e Gunther Teubner
dão-me ocasião para abordar uma vez mais a lógica dos discursos de
aplicação prática (V ). Ulrich PreuB e Günther Falkenberg discutem sob
diversos aspectos a relação entre autonomia privada e pública, ao passo
que Dick Howard e Gabriel Motzkin dedicam-se ao teor político de
minha teoria do direito (VI). Por fim, posiciono-me diante de restri
ções feitas no âmbito da sociologia do direito, por Mark Gould a partir
de uma visão parsoniana de esquerda, e por Niklas Luhmann a partir da
teoria dos sistemas (VII).
O
O bom e o justo
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 301
É por razões sistemáticas que entendo haver a exigência de uma
alojação “constitucional-patriótica” do processo democrático, se a po
demos chamar assim. O que explica tal exigência é a circunstância se
gundo a qual os direitos políticos fundamentais também assumem a
forma de direitos subjetivos-públicos e podem ser interpretados, por
tanto, como liberdades subjetivas de ação. Em ordens jurídicas mo
dernas cabe aos cidadãos do Estado decidir livremente sobre como
fazer uso de seus direitos de comunicação e participação. Pode-se su
gerir aos cidadãos que se orientem segundo o bem comum, mas não
se pode transformar tal orientação em obrigação jurídica. Não obs
tante, ela é necessária em certo grau, já que a atividade legislativa de
mocrática só pode legitimar-se a partir do processo de acordo mútuo
ocorrido entre os cidadãos do Estado quanto às regras do convívio
entre eles. O paradoxo do surgimento da legitimidade a partir da lega
lidade, portanto, só se dissipa quando a cultura política dos cidadãos
os predispõe a não insistir em assumir uma postura de integrantes do
mercado interessados em si mesmos e voltados ao sucesso, mas sim a
também fazer um uso de suas liberdades que se volta ao acordo m ú
tuo, no sentido kantiano de um “uso público da razão”.
É esse “também” que distingue a leitura atenuada de um a outra,
rígida — clássico-republicana — , favorecida por Bernstein. Pois se ele
acentua sua tese até torná-la um a contestação, chega a isso justamente
por depositar, em última instância, toda a carga legitimadora do direi
to positivo sobre a virtude dos cidadãos que se uniram entre si. Em
face disso, a explicação apresentada pela teoria do discurso para o pro
cesso democrático desonera os cidadãos da imputação rousseauniana
de virtude, com um argumento estruturalista. Ainda é preciso, somente,
cobrar em detalhes a orientação voltada ao bem comum, à medida
que a razão prática se retrai, deslocando-se das cabeças e corações de
agentes coletivos ou individuais para os procedimentos e formas de
comunicação da formação política da opinião e da vontade, e à medi
da que se transfere do plano individual das motivações e discernimen
tos éticos, alocando-se no plano social da aquisição e processamento
de informações. A isso corresponde uma certa intelectualização. Pois
os processos decisórios e de aconselhamento precisam ser instaurados
de tal maneira que os discursos e negociações funcionem como filtros
e deixem passar somente os temas e contribuições que devam “con
tar” para a tomada de decisão. Para combater melhor o falso realismo
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 303
m undo ou de um si-mesmo a partir de uma primeira pessoa do sin
gular ou do plural, as questões sobre justiça só podem ser respondidas
sob uma consideração equânime das perspectivas de interpretação de
m undo ou de si mesmo de todos os envolvidos, e de forma imparcial
(o que explica a exigência de Mead quanto a “assumir uma perspec
tiva de maneira ideal”). Bernstein não contesta a distinção analítica
como tal; mais que isso, afirma que hipostasio essa distinção e que
não faço um uso sensato dela (e que portanto sucumbo ao “myth of
the framework”).
Em primeiro lugar, preciso desfazer um mal-entendido. Ques
tões do auto-entendimento dependem do contexto, mas em um sen
tido diferente do que ocorre com as questões morais; e isso porque
cada uma delas se propõe no âmbito do horizonte de uma história de
vida pessoal ou de uma forma de vida intersubjetivamente partilhada,
e porque só se pode respondê-las de forma sensata com referência a
esse contexto presente de antemão. Por outro lado, também nos dis
cursos éticos é natural que precisemos assumir um posicionamento
reflexivo capaz de resistir à pressão dos interesses e imperativos acionais
imediatos, de interromper na medida do possível o cumprimento in
gênuo do fluxo da vida e de distanciarmo-nos do próprio contexto de
vida. Só que esse distanciamento de toda a rede de nossos processos de
formação não pode (e nem precisa) ir tão a fundo como o que prati
camos na reflexão moral; nela, o que fazemos é assumir um posicio
namento hipotético em face das reivindicações de validação de nor
mas em particular que se tornaram problemáticas. Justamente o prag
matismo vem ensinar que não é o fiat de um a dúvida posta no papel
que nos torna capazes de trazer para o lado objetivo nem nossa iden
tidade nem tampouco nosso universo de vida como um todo.
Polêmica, apenas, é a pergunta sobre se podemos propor e res
ponder questões morais tão-somente no interior do horizonte de nos
sas respectivas autocompreensão e compreensão de m undo eticamente
articuladas e portanto particulares, ou se, à medida que consideramos
algo sob um ponto de vista moral, procuramos ampliar esse horizonte
de interpretação, e de forma tão radical que ele se “funde” aos hori
zontes de outras pessoas, para dizermos como Gadamer. Em vista dessa
questão da precedência do justo sobre o bom, Bernstein não é plena
mente unívoco: “If I take my own life history as a Jew or an Ameri
can... I certainly do not restrict myself to questions concerning my
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 305
capazes de se relacionar de m aneira tolerante por causa do potencial
universalista que apresentam desde sua origem, podemos contar, em
questões da justiça política, com um consenso abrangente (Rawls). Já
que — segundo o modelo da liberdade religiosa — pressupõe-se aqui
certa ampliação de horizontes (das religiões mundiais e visões de
m undo que nesse ínterim terão se tornado reflexivas), resulta disso
uma concordância racionalmente motivada, ainda que isso se dê ape
nas mediante o fato de que soluções básicas idênticas (reconstruídas
por Rawls em Uma teoria da justiça) sejam aceitas por razões diver
sas, caso a caso. Finalmente, a teoria do discurso (c) introduz a dis
tinção entre questões éticas e morais de maneira que a lógica das ques
tões relativas à justiça passe a exigir a dinâmica de uma ampliação
progressiva do horizonte, e afirma nesse sentido uma precedência do
que é justo em relação ao que é bom. A partir do horizonte de sua
respectiva autocompreensão e compreensão de mundo, as diversas
partes referem-se a um ponto de vista moral pretensamente parti
lhado, que induz a um a descentralização sempre crescente das diver
sas perspectivas, sob as condições simétricas do discurso (e do apren
der-um -com -o-outro). G. H. Mead falou, nesse contexto, do “appeal
to an ever wider com m unity” [“desejo de um a comunidade sempre
mais ampla”].
O fato de a distinção entre questões morais e éticas “fazer dife
rença” no campo da justiça política, e não estar simplesmente “cor
rendo em ponto m orto”, fica claro quando se consideram as discus
sões ocorridas hoje no âmbito do “multiculturalismo”6, bem como os
esforços de paz ante os conflitos étnicos na Europa Oriental e Meridio
nal — ou ainda o exemplo da Conferência de Direitos Humanos de
Viena, em que representantes asiáticos e africanos discutiram com re
presentantes das sociedades ocidentais a interpretação dos direitos
fundamentais (ou ao menos tidos como fundamentais).
(2) Não é casual o fato de Frank Michelman estar entre os três ou
quatro autores contemporâneos que citei com mais freqüência: foi de
seus escritos que mais aprendi sobre política deliberativa, e foi através
dessa leitura que me vi encorajado a aplicar a concepção de discurso
ao direito e à criação do direito — à “jurigênese”, como ele mesmo di-
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 307
exemplo de que os tribunais nos Estados Unidos e no Canadá tratam
de maneira diversa a nova situação de “hate speech”. A partir das duas
interpretações dessa diferença propostas por Michelman para que se
opte por uma delas, eu gostaria de construir ainda uma terceira, que
me parece adequada a um caso como esse: “The same (universal) prin
cipie of equal liberties for all, resting on somewhat different variants
of discourses of originary constitutional justification, prevails in both
countries, which have somewhat different cultural, and ethical histories.
The doctrinal differences we observe are secondary applicational
variants reflecting (what is probably) a combination of differing legal
traditions and different social facts at the m om ent”.
O
A neutralização de conflitos de valor
e a “acedência de diferenças”
10. Cf. Claus Offe, “M odera Barbarity: A Micro State of Nature?” Constellations,
2, 1996, pp. 354-377.
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 309
Por causa de seu caráter coletivo, não é com os recursos do direi
to privado que se pode assegurar per se a coexistência de formas de
vida em igualdade de direitos; pois direitos subjetivos asseguram li
berdades que se prestam de modo imediato a proteger o empenho por
se cumprir de maneira autônom a cada um dos planos individuais de
vida. O paradigma liberal ainda contava com certo isolamento dos
indivíduos; quando se tratasse de concretizar cada uma das respectivas
concepções do que fosse bom, caberia a cada indivíduo manter dis
tância dos outros, de forma que ninguém precisasse enviesar-se pelos
caminhos alheios e portanto “perturbar” os demais. Em sociedades
multiculturais e altamente individualizadas, no entanto, a tendência é
de um encolhimento sempre mais complexo dos “recortes” no espaço
social e no tempo histórico que possam ser ocupados por indivíduos
diversos e por integrantes de subculturas diferentes, e que possam ser
como que “privatizados” por eles. A pessoa do direito abstrata, tal como
concebida pela dogmática clássica do direito, precisa ser substituída
hoje por uma concepção intersubjetiva; a identidade do indivíduo está
enredada com identidades coletivas. Como também as pessoas do di
reito só se individualizam por meio da coletivização social, não se pode
garantir sua integridade sem a defesa dos contextos de vida e de ex
periência partilhados subjetivamente, nos quais tenham sido forma
das suas identidades pessoais e nos quais elas possam estabilizar essas
mesmas identidades, caso a caso11.
Gostaria de (1) abordar duas máximas da neutralização de con
flitos de valores no âmbito do Estado de direito, (2) tratar de diversos
detalhes que me parecem importantes para o esclarecimento da con
trovérsia, (3) discutir a alternativa sugerida por McCarthy e (4) propor
uma reflexão indagativa sobre o ponto realmente problemático — qual
seja a premissa da “única resposta correta”.
( 1 ) 0 Estado democrático de direito conta apenas com um re
pertório limitado de recursos para a regulamentação de conflitos de
valores que resultam das inevitáveis interações entre (integrantes de)
formas de vida coexistentes, muito embora “alheias” umas para as
outras, de um m odo existencialmente dissonante. (Assim como
McCarthy, restringirei minha reflexão a esse tipo de conflito causado
por via “multicultural”.) Em nosso contexto, interessam sobretudo dois
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 311
pectiva deve possibilitar uma regulamentação moralmente aceitável,
ou seja, aceitável pelas mesmas razões e que não apresenta solução
para o conflito de valor. Ora, tal regulamentação ainda não correspon
de à distribuição simétrica dos encargos decorrentes que terão de ser
assumidos a partir de uma opção estratégica. Em vista do objetivo de
uma coexistência sob igualdade de direitos, ela é “igualmente boa para
todos”, mas nem sempre em vista de toda e qualquer conseqüência.
Não se pode excluir uma distribuição desigual dos “rigores” que uma
solução justa acarrete para a autocompreensão ética de um a ou outra
das partes envolvidas; mais que isso, é antes mesmo provável que tal
coisa aconteça. Pois em geral a abstração trabalha em favor de uma
regulamentação relativamente “liberal” (que a mim pessoalmente, por
exemplo, pareceria bastante insuportável no caso da eutanásia). Por
outro lado, a expectativa normativa associada a isso, de que em todo
caso se tolere um comportamento eticamente condenável de integran
tes de um outro grupo (a partir de “nossa” visão), implica ao menos
em parte uma ofensa a nossa integridade; a “nós” continua se permi
tindo recriminar eticamente a práxis de outras pessoas, mesmo que a
ela se tenha garantido o aval jurídico. O que se exige juridicamente de
nós é a tolerância em face de práticas que consideramos eticamente
extraviadas a partir de “nossa” perspectiva.
Eis o preço a pagar pela convivência nos limites de uma comu
nidade jurídica igualitária, na qual diversos grupos de origem cultu
ral e étnica distintas precisam relacionar-se uns com os outros. É ne
cessário haver tolerância, caso se pretenda que permaneça intacto o
fundamento do respeito recíproco das pessoas do direito um a pelas
outras. O preço por “suportar” diferenças éticas desse tipo também é
juridicamente exigível, desde que se assegure o direito a um a coexis
tência de diferentes formas de vida. Pois um direito como esse, “abs
trato” de um a perspectiva ética, constitui o ponto de referência para
uma regulamentação que, por se poder aceitá-la pelas mesmas ra
zões em face do objetivo comum a todos, prescinde da única alterna
tiva existente, qual seja; o acordo a que se chega nos conflitos de va
lor que não admitem acordo, e que é essencialmente mais doloroso,
por ameaçar integridades.
Sobre b): Por certo isso só vale sob o pressuposto de que se trate
efetivamente de uma circunstância ética que como tal e de maneira
imediata não seja acessível a uma solução moral passível de consenso.
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 313
entendemos “legitimidade” em um sentido não-em pirista12, então
supomos a possibilidade de um acordo m útuo não-violento quanto
a questões políticas. Pois nesse sentido amplo só se pode ver o “acor
do m útuo” como alternativa à imposição de um interesse mais forte
(imposição sustentada sobre uma simples prática costumeira, uma
coerção, um a influência, engodo ou sedução premeditados), caso os
envolvidos — de maneira mediata ou imediata — aceitem por von
tade própria os resultados de um debate político (ou então possam
aceitá-los sob condições adequadas). Esse sentido amplo de acordo
m útuo contempla convenções que se firmam ora pela livre expres
são da vontade dos parceiros de negociação ou contrato (expressão
que também pode ser voluntariamente pressuposta), ora segundo re
gras livremente aceitas para se chegar a acertos (regras reconhecidas
como legítimas ou então como justas e honestas); e ele contempla
também formações de consenso e resoluções fundamentadas que se
apoiem sobre o reconhecimento racionalmente motivado de fatos,
normas, valores e respectivas pretensões de validação, bem como de
procedimentos de formação discursiva da opinião e da vontade (in
clusive decisões sustentadas em argumentação). O que qualifica tal
acordo m útuo como alternativa ao “uso da força” é o fato de os parti
cipantes, em última instância, abandonarem-se à força geradora de
laços comunitários, a qual emana do discernimento atestado por via
comunicativa e da liberdade de expressão da vontade assegurada ins
titucionalmente (ou então de uma combinação entre “razão” e “von
tade livre”, regulada por procedimentos). Não seria possível que os
participantes se abandonassem a essa base comum, não fosse o fato
de todos os cidadãos, pelas mesmas boas razões, poderem tomar como
ponto de partida tanto a constituição, que instaura um a rede de pro
cessos legitimadores para se chegar ao acordo mútuo, quanto a supo
sição de racionalidade, que se vincula, ela mesma, a esses processos e
instituições.
Isso tudo também permite fazer uma leitura republicana da pre
missa de “uma única resposta correta”. As boas razões pelas quais os
cidadãos confiam na legitimidade da constituição e na força legitima-
dora do processo democrático poderiam estar amparados por um ethos
político internalizado de maneira imediata, e com isso essas mesmas
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 315
jurídicos controversos podem ter para si uma solução “correta”, então
a disputa política abrandaria seu caráter deliberativo e degeneraria a
ponto de se tornar uma luta exclusivamente estratégica pelo poder.
Sem estar orientados para o objetivo de uma solução de problemas
passível de comprovação baseada em fundamentos, os participantes
não saberíam de modo algum o que procurar. Por outro lado, como
envolvidos não podemos ignorar ingenuamente as evidências empíri
cas. McCarthy tem razão ao insistir no seguinte: o que sabemos sobre
o dissenso contínuo a partir de uma perspectiva de observadores pre
cisa vir a integrar-se ao que apenas supomos, na condição de pessoas
voltadas ao acordo m útuo e envolvidas em aconselhamentos e discus
sões políticas. Ao menos, uma coisa não pode contradizer a outra. Em
coisas práticas, apesar do dissenso permanente, é preciso que se deci
da; mas as decisões devem ser tomadas de tal modo que elas possam
valer como sendo legítimas.
Essa exigência, que pode parecer paradoxal em um primeiro
momento, satisfaz a “legitimação por meio de procedimentos”, que se
começa a discutir. Até aqui, estivemos atentos a que uma formação
discursiva da opinião e da vontade precisa conferir legitimidade ao
direito escrito. Igualmente interessante, no entanto, é o avesso da ques
tão: o fato de que o próprio processo de legitimação carece de insti
tucionalização jurídica. Pois eis aí o que mune os discursos (e negocia
ções) políticos das qualidades formais do direito. Afinal, é qualidade
específica do direito poder coagir de maneira legítima. Graças a essa
peculiaridade, e pelas vias de sua institucionalização jurídica, é que se
podem introduzir coerções decisórias nos processos de aconselha
mento democrático (as quais se demonstram necessárias a partir da
perspectiva do observador), sem que com isso se imponham danos à
força legitimadora que, segundo a perspectiva de seus participantes,
inere aos discursos. Tentei demonstrar, em outra ocasião, de que ma
neira os processos de aconselhamento e decisão podem ser juridica
mente institucionalizados (e alojados em comunicações públicas in
formais), de modo a fundamentar uma pretensão de racionalidade
dos resultados almejados, em conformidade com determinados pro
cedimentos. Em um sentido bastante complexo, fala-se aqui do “proce
der” do “processo democrático”. Este último, com aconselhamentos (e
negociações) juridicamente institucionalizados, direciona o desenrolar
de uma formação de opinião de caráter mais espontâneo (possibili
13. Cf. J. Rawls, Fine Theorie der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1975. pp.
106ss. [ed. br.: Uma teoria da justiça, São Paulo, Martins Fontes, 32000].
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 317
tões em particular: (a) a distinção entre um plano omniestatal e um
plano intra-estatal da integração ética; (b) o conceito da identidade
coletiva, que deve ser entendido como processual; e (c) a impregna
ção ética da ordem jurídica estatal.
Sobre (a): Nos limites de um Estado nacional, temos de dis
tinguir (pelo menos dois) planos juridicamente relevantes da inte
gração ética. Os conflitos de valor que abordamos até o m omento
surgem da coexistência de diversas comunidades confessionais e in-
terpretativas, subculturas e formas de vida no interior de uma nação
de cidadãos ligados a um Estado (as quais, segundo queremos supor,
não estão separadas territorialm ente). Com freqüência, esses confli
tos intra-estatais são suscitados pelo fato de que o ethosde uma cultu
ra majoritária, preponderante por razões históricas, dom ina as re
lações jurídicas e impede, com isso, um tratam ento igualitário (dos
membros) das coletividades que se encontram integradas eticamente
a esse plano subpolítico — o que se dá de maneira dissonante para
as diferentes coletividades entre si. Em seu papel de cidadãos de uma
mesma nação organizada como Estado, porém, os integrantes de
diversas subculturas, em casos de conflito, vêem-se obrigados a pres
tar contas à norm a prioritária da coexistência em igualdade de di
reitos, m antida por meio de regulamentações abstratas. Como se de
monstrou, no entanto, para se conquistar regulamentações desse tipo,
que asseguram a integridade defensável de cada um em suas corpora
ções culturais peculiares e formadoras da identidade, é preciso pagar o
preço sociopsicológico bastante amargo das exigências de tolerância.
Em face de tais considerações, é preciso ter em conta que o plano da
integração ético-política da coletividade estatal em si mesma distin-
gue-se disso tudo.
Nesse último plano está o que se chamou nos Estados Unidos de
“civil religion” — um “patriotismo constitucional” que vincula todos
os cidadãos do Estado, não importando suas diferentes marcas cultu
rais ou origens étnicas. Trata-se aí de uma grandeza metajurídica; pois
esse patriotismo constitucional baseia-se na interpretação das reco
nhecidas proposições fundamentais da constituição, que são univer-
salistas, segundo seu teor, e provêm do contexto da respectiva história
e tradição nacional. Pois dos cidadãos só se pode esperar uma lealdade
constitucional não coagida juridicamente e assentada em motivos e
estados de consciência moral, se esses mesmos cidadãos forem capa
14. Mutatis mutandisisso tam bém se aplica à neutralidade de uma autocom pre
ensão civil que se exige de todos em face de outras diferenças (de gênero, de classe
social, de idade etc.). As diferenças de situação de vida, sobretudo as que se fundam en
tam em questões sexuais ou socioeconômicas, vinculam-se cumulativamente com as
distinções culturais e étnicas.
15. Isso já estava presente em meu discurso sobre Hegel, de 1974, por ocasião da
pergunta: “Kónnen komplexe Gesellschaften eine vernünftige Identitât ausbilden?” [As
sociedades complexas podem estabelecer uma identidade racional?], in: J. Habermas,
Zur Rekonstruktion des Historischen Materialismus, Frankfurt am Main, 1976, pp. 92-126.
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 319
Nossa identidade não é apenas algo que assumimos, mas tam
bém um projeto de nós mesmos. Não podemos escolher nossas pró
prias tradições: alguns têm os patriarcas fundadores e uma tradição
constitucional bicentenária nas costas, por mais que essa tradição possa
merecer críticas; outros, a Revolução Francesa; e outros, alemães como
eu, a assim chamada “Guerra de Libertação” contra Napoleão, a malo
grada Revolução de 1848, o Império guilhermino, a República de
Weimar, que fracassou, o nacional-socialismo e os crimes em massa
cometidos nessa época, a guinada de 1989, e assim por diante. Mas
depende de nós escolher as tradições a que queremos dar continuida
de ou não16. A isso corresponde um conceito processual de identidade
coletiva. A identidade de um a nação de cidadãos ligados a um Estado
não é nada estática; de qualquer maneira, ela se projeta hoje em dia nos
parâmetros delimitados pelo respectivo espectro da disputa pública
em torno da melhor interpretação da constituição, e em torno de uma
autocompreensão autêntica das tradições constitutivas da coletivi
dade política. Enquanto princípios constitucionais vigentes continua
rem formando o foco comum desses discursos de auto-entendimento
talhados segundo as formas de vida da nação como um todo, as inter
pretações concorrentes também continuarão se sobrepondo de m a
neira suficiente para assegurar— “for the time being”— uma concor
dância capaz de sustentar a integração ético-política dos cidadãos, mes
mo que de maneira difusa. Em todo caso, as discussões sobre temas
específicos que concernem à forma de vida histórica comum a uma
nação em seu todo vêm se cumprindo mesmo em face desse cenário
algo oscilante. Uma questão político-ética de tipo mais trivial, por
exemplo, diz respeito à prontidão de uma população a correr riscos
maiores ou menores quando se trata de ponderar o grau de segurança
referente à tecnologia pesada, em comparação aos encargos econômi
cos daí decorrentes.
Sobre (c): Entretanto McCarthy tem razão ao mostrar-se cético
diante de minha tentativa (corrigida no Posfácio da 4a edição do livro)
de ordenar aspectos pragmáticos, éticos e morais a determinadas clas
ses de matérias legislativas. Via de regra, as questões políticas são tão
complexas que têm de ser discutidas sob todos esses aspectos ao mesmo
16. Cf. J. Habermas, “Grenzen des Neohistorismus”. In: Die nachholende Revolu-
tion, Frankfurt am Main, 1990, pp. 149-156.
17. Cf. J. Habermas, Posfácio. In: Faktizitat und Geltung, Frankfurt am Main,
1994, p. 667, nota 3.
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 321
tões de justiça também têm primazia por uma outra razão: há con
cepções do que seja bom que sancionam relações internas autoritá
rias. Na Alemanha, por exemplo, é preciso não somente firmar os di
reitos de jovens turcas por oposição à vontade de seus pais, os quais
evocam prerrogativas de sua cultura de origem para tentar impor-lhes
padrões de comportamento, mas também direitos individuais em ge
ral, por oposição a pretensões coletivas nascidas de um a autocom-
preensão nacional. Não creio, por exemplo, que nos dias de hoje os
Estados ainda possam manter a obrigatoriedade universal do serviço
militar, ou seja, que possam exigir de determinados grupos (do sexo
masculino) em um a faixa etária específica que ponham suas vidas à
disposição, em prol da pátria. Concordo com a seguinte afirmação de
McCarthy: “Legitimate law is at once a realization of universal rights
and an expression of particular self-understandings and forms of life.
A concrete law must be both at once.” Mas a frase que segue, “Hence
its acceptability or legitimacy can be thematized under both aspects:
the right and the good”, só está correta mediante a seguinte restrição:
no caso de conflito, argumentos de justiça são trunfos dworkianos, os
quais tratam de extirpar e afastar as ponderações feitas a partir de uma
perspectiva interna de um a forma de vida que coexista em igualdade
de condições com outras subculturas.
(3) Na questão central sobre a possibilidade de fundam entar a
precedência do que é justo em relação ao que é bom, McCarthy não é
totalmente unívoco. A partir da visão ético-existencial de um projeto
de vida pessoal, “justiça” está entre os valores que podem ser ponde
rados em relação a valores diversos, até mesmo precedentes, inclusive
quando já se tem claro que a práxis que se privilegia deve satisfazer os
parâmetros da justiça. Contudo, as questões de justiça no sistema de
referências do convívio de um a sociedade multicultural no âmbito
de um Estado de direito afirmam uma precedência incondicionada.
Por um lado, McCarthy admite tal coisa; insiste, por outro lado, em
que também aqui não se podem separar “em última instância” as ques
tões de justiça das questões ético-políticas. Ele repete sua asserção ante
rior: “We cannot agree on what is just without achieving some measure
of agreement on what is good18”. Isso é correto, mas não deixa de ser
trivial enquanto “a certa medida de concordância” referir-se apenas à
19. Cf. m inha crítica in: J. Habermas, Erlãuterungen zur Diskursethik, Frankfurt
am Main, 1991, pp. 176-184 e 209-218.
20. Cf., porém, L. Wingert, Gemeinsinn und Moral, Frankfurt am Main, 1993.
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 323
vel, devem surgir a tolerância, o respeito mútuo, o amparo etc. Segun
do suponho, o fato de McCarthy não tornar ainda mais precisa essa
alternativa tem sua explicação em uma certa falta de clareza quanto às
condições cognitivas a serem preenchidas para que se possa exigir to
lerância de maneira racional.
Pois só podemos chegar a um consenso sobre a tolerância mútua
de formas de vida e visões de m undo que signifiquem umas para as
outras um desafio existencial, quando temos uma base constituída de
convicções em comum em favor desse “agree to disagree”. Ora, segun
do as suposições de McCarthy faltam nas questões de justiça convicções
éticas em comum e até mesmo uma base em comum. Quando, porém,
não consideramos possível a conquista racional de um consenso, nem
mesmo nesse plano mais abstrato, então só resta o recurso às práticas
costumeiras, à imposição forçada de interesses e à adequação involun
tária (compliance). Isso pode bastar para o equilíbrio precário de uma
trégua, para um modus vivendi provisório, mas não para um recurso à
tolerância, fundamentado por via normativa. De fato, sociedades com
plexas dependem cada vez mais da tolerância almejada por McCarthy,
a qual não se pode im por juridicamente; ou seja, dependem sempre
mais da prontidão a suportar diferenças existencialmente significati
vas e da prontidão a cooperar com integrantes de formas de vida disso
nantes; ao mesmo tempo, no entanto, essa exigência é tomada cada
vez mais, de um ponto de vista subjetivo, como uma exigência imper
tinente. A tolerância, a partir da visão do observador sociológico, passa
a ser vista como recurso sempre mais escasso. Por isso, a exigência de
tolerância carece de justificação normativa— e isso em proporção cres
cente. Essa justificação, por sua vez, precisa atender à reivindicação
de que a coexistência das formas de vida protegidas em sua integri
dade sejam também regulamentadas de maneira justa e honesta, ou
seja, de acordo com regras que possam ser aceitas por todas as partes,
de maneira racional.
(4) O processo democrático só promete uma racionalidade pro
cedimental “imperfeita” mas “pura”, sob a premissa de que em princí
pio os participantes considerem possível haver justamente uma res
posta correta também para as questões de justiça. Em tal medida sub
siste uma analogia em relação à disputa sobre questões factuais, a qual
não levaríamos adiante com recursos argumentativos, caso não to
mássemos como ponto de partida que, em princípio, podemos nos
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç à o 325
e que têm aí, até certo ponto, um fundamentum in re. Por outro lado,
as ordens modernas do direito “escrito” são, de maneira semelhante,
criadas e construídas artificialmente, tal como o intuicionismo supõe
em relação aos objetos da geometria e da aritmética. Portanto, tam
bém não é totalmente despropositado contar nesse universo com per
guntas para as quais não haja uma resposta claramente única, enquanto
a “construção” não “lograr êxito” para os envolvidos. Em face da regu
lamentação normativa de interações, talvez não devéssemos contar a
priori com a validação do princípio da bivalência. Pode ser que no
caso em particular não falte acuidade argumentativa, mas talvez cria
tividade. Mesmo assim, nesse campo pantanoso, em que é preciso to
mar decisões em prazos determinados, não podemos esperar indefi
nidamente por idéias construtivas que nos ocorram de repente. Se es
tiver correta nossa suposição, diante de tais situações normativamente
insolúveis apenas operaríamos com a premissa (genericamente vá
lida) da “resposta correta única”, assim como se fosse uma aposta a des
coberto em favor do futuro. Porém, jamais poderemos abandonar essa
premissa, caso não queiramos que o processo democrático, ao perder
sua racionalidade procedimental inerente, perca também sua força
legitimadora. Sob as condições de um pensamento pós-metafísico,
porém, não vejo qualquer alternativa a isso.
0
Forma e conteúdo: o cerne “dogmático”
do procedimentalismo
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 327
procedimentos? A resposta quanto ao papel que a distinção forma/
conteúdo reserva para si no paradigma jurídico procedimentalista de
pende da compreensão desse processo que gera legitimidade.
No início de m inha reconstrução do sentido de uma ordem ju
rídica legítima situa-se a decisão de um grupo (aleatório) de pessoas
que a partir de então querem regular seu convívio com recursos do
direito positivo, e que dão início, portanto, a uma práxis em comum,
com a qual possam levar a cabo essa intenção. O sentido performativo
dessa práxis geradora de constituições consiste assim em revelar e de
cidir em comum quais são os direitos que (sob a premissa já mencio
nada) cabe aos envolvidos reconhecer de maneira recíproca. Portanto,
preceituam-se duas coisas à práxis geradora de constituições: o direito
positivo como médium de regulamentações vinculativas, bem como o
princípio discursivo como instrução para os aconselhamentos ou de
cisões racionais. Uma combinação e imbricamento desses dois elemen
tos formais tem de bastar para a instauração de processos de criação e
aplicação do direito legítimo. Pois sob as condições do pensamento
pós-metafísico não se pode contar com um consenso que continue a
avançar e seja conteudístico, nesse sentido. A restrição a pressupostos
formais, nesse sentido, é como que talhada para as condições especifi
camente modernas de um pluralismo de visões de mundo, formas
culturais de vida, posições de interesse etc. Naturalmente, ela não sig
nifica que uma práxis geradora de constituições desse tipo esteja isenta
de quaisquer teores normativos. Ao contrário, no sentido performativo
dessa práxis, que simplesmente se desdobra no sistema dos direitos e
nos princípios do Estado de direito, já se encontra, como cerne dog
mático, a idéia (rousseauniana e kantiana) da autolegislação de juris-
consortes livres e iguais, associados voluntariamente. Essa idéia não é
apenas formal; na verdade, como ela pode ser totalmente desenvol
vida sob as formas de um a práxis geradora de constituições que em
seus detalhes não está conteudisticamente determinada (e em formas
de uma práxis da configuração de um sistema de direitos insaciáveis,
determinada tão-somente por normas constitucionais), subsiste a su
posição bem fundam entada de que ela é neutra no que concerne a
visões de mundo, desde que as auto-interpretações e as interpretações
de m undo sejam não-fiindamentalistas, isto é (no sentido das “not
unreasonable comprehensive doctrines” de Rawls), desde que elas se
jam compatíveis com as condições do pensamento pós-metafísico.
21. Sobre o que segue, cf. B. Peters, Rationalitãt, Recht und Gesellschaft, Frank
furt am Main, 1991,Cap. VII.
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 329
procedimentos do direito devem cuidar de que ocorra a instituição
vinculativa de processos de aconselhamento discursivos e de proces
sos decisórios justos e honestos.
Discursos que, de acordo com as respectivas proposições de ques
tões, obedecem a uma lógica própria (e estão aliados no meio parla
mentar a procedimentos justos e honestos para firmar acertos, isto é,
procedimentos discursivamente fundados) formam o centro nervoso
desses processos multiplamente entrecruzados, a ponto de caber a eles
o encargo da legitimação. Processos argumentativos, porém, como já se
mencionou, são suficientes apenas para condições de uma racionalida
de procedimental imperfeita, e isso na medida em que eles se cumpram
sob formas de comunicação e segundo regras que incrementem uma
“busca cooperativa da verdade”. A institucionalização (de uma rede) de
discursos (e negociações) tem de se orientar em primeira linha de acor
do com o objetivo de cumprir da maneira mais ampla possível os pres
supostos pragmáticos comuns de argumentos em geral (acesso univer
sal, participação sob igualdade de direitos e igualdade de chances para
todas as contribuições, orientação dos participantes em direção ao en
tendimento mútuo e incoerção estrutural). A instituição dos discursos,
portanto, deve assegurar tanto quanto possível, sob as restrições tempo
rais, sociais e objetivas dos respectivos processos decisórios, o livre trân
sito de sugestões, temas e contribuições, informações e razões, de ma
neira que possa entrar em ação a força racionalmente motivadora do
melhor argumento (da contribuição convincente ao tema relevante).
Aqui parece ter origem o velamento da substância por meio da
forma, do qual Rosenfeld se queixa. Pois pode-se duvidar, como fez
Bernhard Peters22, de que seja possível descrever a práxis argumenta-
tiva como um procedimento imperfeito mas “puro”, que fundamente
a suposição de resultados racionais. Pois não são afinal as razões subs
tanciais que decidem sobre o resultado correto, em vez do “procedi
mento” de um intercâmbio de argumentos regido por regras? Não há,
para o julgamento de um resultado alcançado em conformidade com
o procedimento, razões que independem do próprio procedimento,
de modo que sequer se poderia fàlar em uma legitimação procedi
mental? A resposta a isso depende do sentido em que consideramos as
questões práticas como “capazes de conter verdade”.
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 331
Procedimentos e razões, forma e conteúdo estão de tal modo
imbricados, que nos convencemos de poder defender com boas ra
zões os enunciados que consideramos válidos, e de poder defendê-los
à revelia de todas e quaisquer objeções — sejam elas levantadas quando
e por quem for. Nesse recurso prévio ao enfraquecimento de possivel
mente “todas”as objeções, como eu gostaria de dizer referindo-me a A.
Wellmer e L. Wingert, reside uma idealização que permite diferenciar
entre “validade” e “aceitabilidade racional” do enunciado, sem subtra
ir à validade a referência epistêmica de um “valer para nós”. Isso ex
plica a ambivalência peculiar sobre a qual Peters apóia sua dúvida.
Estão aí, por um lado, as razões substanciais que nos convencem da
correção de um resultado; mas sua solidez só se pode comprovar, por
outro lado, em processos de argumentação efetivamente conduzidos,
ou seja, na defesa contra cada objeção factualmente posta.
Isso vale em geral para o discurso como procedimento. Os acon
selhamentos ocorridos no Estado democrático de direito, institucio
nalizados e atrelados a prazos de decisão e procedimentos de vota
ção, de qualquer m odo não garantem resultados válidos, mas ape
nas fundam entam a suposição de sua racionalidade; com isso, eles
asseguram para os cidadãos a “aceitabilidade racional” das decisões
tomadas em conform idade com os procedimentos. Em face de um
procedimento como esse, legitimamente reconhecido, ainda se pode
fazer valer a diferença entre um resultado “válido” e um resultado
“racionalmente aceitável” (no âmbito institucional dado) — seja por
meio da restrição opinativa por parte de um a m inoria que simples
mente se agrega procedimentalm ente a resoluções irreprocháveis,
seja por meio do protesto simbólico de quem pratica desobediência
civil e então, depois de esgotadas todas as possibilidades formais de
revisão, apela à m aioria por meio da violação de um a regra, na ten
tativa de que se retome o procedimento em um assunto de signifi
cação fundamental.
(b) Mesmo que aceite um procedimentalismo nesse sentido,
Rosenfeld não tem de se dar por vencido. Pois para questões de justiça
ele rejeita reivindicações de validação que transcendam o contexto es
pecífico: “Justice beyond law (that is beyond a particular legar order,
J. Habermas) cannot achieve complete impartiality... to the extentthat
it m ust... rely on a vision of the good that has intracommunal roots,
thus favoring the members of the relevant intracommunal group over
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 333
de vista normativo que subjaz à crítica contra a falta de respeito por
diferenças culturais sob uma coação imperialista à assimilação.
Em todos esses casos, trata-se da postulação de que se trate o
que é igual de maneira igual, e o que é desigual de maneira desigual.
Os direitos iguais que se cobram referem-se, no primeiro caso, a com
petências; no segundo caso, a benefícios sociais cuja tarefa é possibi
litar, sob igualdade de chances, o uso de competências já asseguradas;
e no terceiro caso trata-se das duas coisas — mas não com referência
precípua a uma compensação de interesses ou de poder que não possa
mais ser alcançada com o auxílio (de classes reconhecidas) de indeni
zações sociais (tais como dinheiro, tempo livre, formação escolar etc.),
e sim com referência à independência nacional ou autonom ia cul
tural, ou, no caso do multiculturalismo, com referência à coexistên
cia de diversos grupos culturais, étnicos ou religiosos sob igualdade
de direitos. Trata-se o tempo todo de uma reivindicação de garantia
da integridade das pessoas do direito, às quais se garantem liberdades
iguais no sentido de um a igualdade de conteúdo jurídico entendido
de maneira não-seletiva. Pois essas liberdades devem ser asseguradas
para os cidadãos de maneira não apenas formal, mas efetiva; ou seja:
sob as condições sociais e culturais do surgimento de sua autonomia
privada e pública.
Com postulados feministas de equiparação não é diferente, em
princípio. Rosenfeld esboça (para fins do argumento) duas formas
de vida concorrentes, especificamente vinculadas ao gênero, e cujos
registros de valor colidem um com o outro de modo inconciliável —
de um lado, com realce da intimidade, vínculo, amparo e sacrifício, de
outro lado, com realce da distância, concorrência, orientação segun
do os desempenhos apresentados etc. Ora, tão logo se tratasse da re
gulamentação de situações de interesse e conflitos de valor indivi
duais, essa oposição monolítica e estilizada de duas “visões” do bem
viver iria dissolver-se, de um modo ou de outro, em diversas concor
rências entre grupos de homens e mulheres, estabelecidas sob outras
disposições; além disso seria preciso considerar, em diferentes áreas
da vida, os demais imperativos funcionais. Da perspectiva do para
digma jurídico procedimentalista, tais conflitos podem ser bem re
solvidos, mas apenas se o poder de definição para experiências e si
tuações especificamente ligadas a cada gênero não forem deixadas
por mais tempo a cargo de especialistas ou mandatários. Os próprios
334 A in c l u s ã o do outro
envolvidos precisam lutar em fóruns públicos pelo reconhecimento
das interpretações reprimidas ou marginalizadas sobre suas carências,
a fim de que novas situações factuais sejam reconhecidas como rele
vantes ou carentes de regulamentação e de que se negociem critérios
sob os quais se possa tratar com igualdade o que é igual e com desi
gualdade o que é desigual. Sem o princípio do tratam ento em condi
ções de igualdade, porém, transform ado a fortiori em fundamento,
não haveria base de sustentação para qualquer crítica ou reinvin-
dicação de revisão dos critérios antigos.
Por fim Rosenfeld dedica-se novamente a precisar o “desafio fe
minista”: cabe agora pôr em questão o médium do direito e a estrutura
dos próprios direitos, com a postulação de que “se deve substituir a
hierarquia dos direitos por uma rede de relações interpessoais”. Enquan
to subjazer a essa postulação apenas a crítica a uma leitura possessivo-
individualista de “direitos” longamente em voga, o que ela faz— e com
boas razões — é conferir validação a um conceito intersubjetivista de
direito (em consonância, a propósito, com Martha Minow ou Frank
Michelman). Direitos, desde sua origem, são relacionais, porque fun
dam ou consolidam as relações de reconhecimento simétrico. Também
os direitos privados, que a situação um contra os outros pode tornar
válidos em situações de conflito, têm origem em uma ordem jurídica
que exige de todos o reconhecimento recíproco de cada um enquanto pes
soa do direito livre e igual, e isso de modo a garantir o mesmo respeito
a cada um; em tal medida, essa ordem jurídica só pode ser legítima se
tiver sua origem em uma práxis comum de autodeterminação civil.
Se, no entanto, a crítica se volta contra o conceito dos direitos
como tal, a discussão se transfere para um outro plano. A contraparte
vê-se obrigada a sugerir ou um a alternativa ao direito, é o que faz
Marx, ou então conceitos alternativos de direito. Não tenho qualquer
dificuldade com questionamentos desse tipo, já que eu mesmo não
sugiro qualquer fundamentação normativa para a condição jurídica
como tal. Só se pode iniciar uma discussão sensata quando as alter
nativas estão colocadas de maneira suficientemente precisa. Conten-
to-m e com uma explicação funcional quanto a por que devermos pri
vilegiar ordens do direito positivo (ou, na linguagem do direito racio
nal clássico: por que devermos assumir a “condição de sociedade”).
A princípio, não vejo um equivalente funcional para esse tipo de esta
bilização de expectativas de com portam ento (mediante direitos sub
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 335
jetivos distribuídos por igual). A esperança romântica — em um sen
tido não-pejorativo — do jovem Marx em relação a um a “m orte pau
latina” do direito praticamente não se cumprirá em sociedades com
plexas como as nossas.
A alternativa que o próprio Rosenfeld sugere na conclusão de seu
trabalho, ao assumir a noção de um “universalismo reiterativo”, ainda
se move no âmbito conceituai básico de uma teoria dos direitos. Da
alusão vaga a uma “concepção dinâmica dos direitos” não se pode ex
trair muito mais que o anseio de uma concepção alternativa de direito.
(2) Essa alternativa torna-se ainda mais clara em Arthur J. Jacob-
son23. Primeiramente, ele contrapõe à teoria dos direitos uma teoria
dos deveres. A isso, se bem entendo, subjaz um a teologia política que
— tal como a de Leo Strauss ou a de Carl Schmitt, ainda que com
conseqüências muito distintas — lamenta o direito m oderno como
expressão da decadência de um a autoridade divina vinculadora. De
fato, é somente com Hobbes, em conjunto com um conceito positi
vista do direito, que se valida pela primeira vez o princípio moderno
de que tudo que não seja probido é permitido. Com isso, dilui-se a
precedência moral dos deveres em relação aos direitos, estes últimos
resultantes das obrigações de outras pessoas, em prol de uma priori
dade de direitos que garantem espaço a liberdades subjetivas — ou a
esferas privadas da liberdade de ação. Em ordens jurídicas modernas
os deveres resultam tão-somente da limitação recíproca de tais liber
dades, sob leis gerais. A isso Jacobson contrapõe um direito divino
concebido de maneira aristotélica (ou tomista?), que só conhece de
veres; tal direito obriga seus destinatários, no comportam ento deles, a
imitar a pessoa de um “comandante ideal” ou perfeito (“ideal legal
commander”). Ele entende o “common law”, por fim, como uma me
diação dialética entre aqueles dois tipos de ordem jurídica: “Common
law breaks the correlation of rights with duties in both directions in
order to produce a succession of correlations, according to the principie
that law is just the application o f law in single cases. Here dynamism
flows ffom the incessant activities of legal persons to assemble, then
disassemble, then reassemble correlations”.
23. Por conta dos muitos mal-entendidos, seria muito desgastante abordar aqui
a crítica a minha recepção do direito: se sou um “positivista”, Jacobson é um “adepto
do direito natural”.
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 337
Problemas da construção teórica
(1) Devo a Bill Rehg uma das análises mais perspicazes e um dos
aperfeiçoamentos mais produtivos da ética do discurso. Como já re
vela o título de seu livro Insight and Solidarity, Rehg está insatisfeito
com um certo intelectualismo desse enfoque; ele está convencido de
que a práxis argumentativa em seu conjunto só leva a discernimentos
quando os participantes podem amparar-se em relações solidárias
exercitadas de antemão. Por um lado, eles só estarão suficientemente
motivados a se deixar envolver em um entendimento m útuo discursi
vo e sinuoso se, de comum acordo, considerarem a “cooperação racio
nal” como um “bem” que se deve priorizar em relação a outras formas
de interação; o que está subjacente à decisão entre a alternativa da con
cordância racional e um a confrontação violenta (mesmo que subli
mada, de uma ou de outra forma) é, na verdade, uma preferência que
se embasa de maneira muito mais confiável em orientações de valor
comuns, ao menos em comparação com o embasamento fundado em
quaisquer interesses particulares. Por outro lado, segundo o pensa
mento de Rehg, o enfoque da ética do discurso só poderá se livrar dos
últimos restos da filosofia subjetiva quando o cumprimento inevita
velmente incompleto dos pressupostos pragmáticos da argumentação
que ultrapassam contextos temporais e espaciais for compensado pela
“confiança” dos participantes na regulação de um processo de comu
nicação supra-subjetivo, que avança independentemente desses mes
mos participantes e se amplia para além do grupo em sua composição
atual: “If rational consensus is cooperative even to the degree of
requiring a decentered ‘cooperative insight’, then it would seem that
something like trust must inhabit the heart of rational conviction”24.
Rehg postula que se deposite uma confiança antecipada em procedi
mentos que escolhemos quando, sem atitudes derrotistas, pretendemos
conciliar pressupostos comunicacionais muito exigentes, surgidos sob
a pressão de decisões iminentes, com restrições empíricas de discursos
localizados que se devem cumprir aqui e agora. Ele pensa que a lealdade
diante de procedimentos que abreviam ou tornam coeso o processo
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 339
da fonte cognitiva de discursos em que se justificam os procedimen
tos, mas sim a partir de uma fonte volitiva precedente a todos os dis
cursos, qual seja a da inclusão de todos os atingidos no procedimento.
Isso não chega a me convencer totalmente. Com certeza, a parti
cipação inclusiva em procedimentos cumpre duas funções diferentes:
por um lado, a participação abrangente no discurso deve assegurar
um espectro o mais amplo possível de contribuições; por outro lado,
uma participação justa e honesta no processo decisório deve assegu
rar que se transfiram às decisões, da forma mais confiável possível, os
resultados obtidos em aconselhamentos. Dessa maneira, no processo
democrático os “votos” significam duas coisas: juízos e decisões. Mas
disso não resulta que a participação inclusiva no processo decisório
seja regulamentado sob um ponto de vista da justeza e honestidade
que não se deva ao julgamento imparcial, mas genuinamente ao cará
ter vinculativo de tais procedimentos. Rehg afirma justamente isso:
“An adequate elaboration of equal opportunity in decision-making
should refer, not just to influence on outcome, but also to an idea of
solidaristic inclusion built on equal respect of each citizen... Habermas
risks neglecting the intrinsic procedural fairness in law and its potential
contribution to solidarity and compliance”.
Essa qualidade intrínseca de justiça dos procedimentos deci-
sórios é explicada por Rehg a partir do procedimento de sorteio, que
em muitos casos é visto como justo e honesto, embora não esteja li
gado a justificações objetivas e possua, portanto, um caráter pura
mente decisionista. Mas e não se tem de justificar a justeza e honesti
dade do procedimento com referência à situação de uso? É só em con
textos determinados que um procedimento casual se qualifica como
um procedimento justo e honesto: por exemplo no caso de jogos de
azar que asseguram aos participantes chances iguais de vitória, ou
então no caso hobbesiano da anarquia insuportável, onde qualquer
decisão é melhor que nenhuma, ou ainda em casos da distribuição
justa de bens de estoque remanescente que, sendo indivisíveis, só
podem ser consumidos individualmente etc. De fato há razões muito
boas para que decisões políticas sejam tomadas democraticamente e
não apenas sorteadas.
Rehg tem em vista um fenômeno importante. O direito, em com
paração com a moral, tem um caráter artificial, de modo que nós mais
construímos uma ordem jurídica do que a descobrimos. Mesmo que
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 341
Essa resolução na origem já implica o reconhecimento recíproco de
pessoas livres e iguais, e com isso a obrigação assumida em prol da in
clusão, que Rehg, por meio do conceito de solidariedade, pretende
introduzir enquanto fonte de legitimidade que independe do discurso.
Faz parte do sentido performativo de uma práxis geradora de cons
tituições o fato de que um grupo situado no tempo e no espaço esteja
resolvido a constituir-se como associação voluntária de jurisconsortes.
Como essa resolução tem por conteúdo regulamentar de maneira legí
tima o convívio através de recursos do direito positivo (do direito ca
rente de fundamentação, portanto), os momentos que Rehg dissocia
— discurso e decisão — estão unidos desde o início.
(2) Michael Power tam bém entende o autor m elhor do que este
a si mesmo; de qualquer modo, ele constrói ligações sistemáticas entre
“conhecimento e interesse”, de um lado, e “facticidade e validação”,
de outro, das quais eu não tinha consciência. Nesses paralelos sur
preendentes talvez ele apenas subestime a m udança de perspectiva
ligada ao fato de eu ter migrado de um questionamento epistemoló-
gico para a pergunta lingüístico-pragmática acerca das condições ne
cessárias do acordo m útuo possível. Com isso, a tentativa de uma
reconstrução do saber utilitário de sujeitos que falam e agem de m a
neira competente certamente passou para o prim eiro plano, em re
lação à auto-reflexão de processos de formação. E quero duvidar de
que isso leve a um enfraquecimento da energia crítica, e menos ainda
ao “fim da Teoria Crítica”25. Muito embora eu mesmo fosse identifi
car de maneira diversa as linhas de uma transformação lingüística
da arquitetônica teórica kantiana, e sobretudo interpretar diferente
mente a dissolução lingüístico-pragmática de seu conceito de razão
como faculdade de idéias formadoras de mundo, é preciso dizer que
Power analisa de maneira elucidativa o papel de idealizações e o sen
tido hermenêutico profundo de argumentos atenuadamente trans
cendentais. Power, porém , com sua análise do conceito de “pressu
postos contrafactuais”, e em geral do “vocabulário do como se \ toca
um ponto nevrálgico de todo meu empreendim ento teórico. Aqui
ainda há m uito que fazer.
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 343
var pela via de uma análise de pressuposições que cada um que parti
cipa com seriedade de um a argumentação inevitavelmente se envolve
em pressupostos comunicacionais de teor contrafactual. Para tanto,
deixo-me guiar pela seguinte intuição: em toda argumentação os en
volvidos supõem condições de comunicação que (a) previnem uma
ruptura racionalmente imotivada da controvérsia; (b) asseguram tan
to a liberdade da escolha de temas como a consideração de todas as
informações e razões disponíveis, seja pelo acesso irrestrito à deli
beração, sob igualdade de direitos, seja pela participação simétrica
nessa mesma deliberação, sob igualdade de chances; e (c) excluem toda
coerção que atue a partir de fora sobre o processo de acordo mútuo,
ou que surja a partir dele mesmo, salvo a coerção do “argumento m e
lhor”, e neutralizam com isso todos os motivos, salvo o da busca coo
perativa da verdade. Se os participantes não supusessem tal coisa, não
poderíam tomar como ponto de partida o fato de poderem se conven
cer, uns aos outros, do que quer que fosse. Os pressupostos de argu
mentação mencionados não seriam “condenáveis” nesse sentido, não
mais que cada um que se visse obrigado a incorrer em autocontradição
performativa ao negar, no cumprimento de uma argumentação, o teor
proposicional dessa mesma argumentação que houvesse sido expli
citado28. Essas idealizações não significam nenhum recurso prévio a
um estado final ideal, mas apenas iluminam a diferença entre a acei
tação racional de uma reivindicação de validação em um dado con
texto e a validade de um enunciado que tivesse que se comprovar em
todos os contextos possíveis.
Power percebe m uito bem que essas idealizações, nascidas elas
mesmas da facticidade social da práxis cotidiana, não logram salvar
nenhum universalismo abstrato, mas devem apenas fundam entar
um a “transcendência de dentro” a partir dos respectivos contextos
concernentes ao m undo da vida: “We can only ‘make sense’ of certain
practices on the basis of assuming an operative role for deeply em-
bedded fictional norms. These fictions are foundations from within,
without any heavy-weight metaphysical support”. Isso vale não ape
nas para a práxis argumentativa, ainda que para ela sirva de um a
28. Cf. K.-O. Apel, “Falibilismus, Konsenstheorie der W ahrheit und Letzt-
begründung”. In: Forum für Philosophie (org.), Philosophie und Begründung, Frank
furt am Main, 1987, pp. 116-211.
A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 345
decisão. O primeiro caso é evidentemente a base da qual se alimen
tam parasitariamente todos os demais casos; pois mesmo a impos
sibilidade de decisão tem de se posicionar em face da alternativa ver-
dadeiro/falso. A afirmação de um enunciado que pode ser verdadeiro
ou falso, correto ou incorreto é sem dúvida a regra na práxis com uni
cativa diária.
Como unidade elementar de tal enunciação pode-se tomar e ana
lisar a oferta de ato de fala de um falante A, em conjunto com a postu
ra de sim/não de um ouvinte B. Essa análise se fará da perspectiva de
uma segunda pessoa; os dois objetivos do falante, quais sejam expres
sar-se de maneira compreensível e chegar a um acordo m útuo com
alguém sobre alguma coisa, são definidos a partir da visão de um ou
vinte ao qual cabe entender e aceitar como válido o que se diz, em bo
ra ele possa a todo m omento dizer “não”. O ponto de referência do
compreender são as condições para um acordo mútuo possível. Mas es
sas condições só se cumprem se o ouvinte aceita a reivindicação de
validação apresentada pelo falante em favor de seu enunciado. A base
do acordo mútuo, portanto, é o reconhecimento intersubjetivo de uma
reivindicação de validação que pode ser criticada por parte do ouvinte,
e a cuja solução discursiva — obrigatória, conforme o caso — o fa
lante dá garantia — merecedora de credibilidade em maior ou menor
grau, à primeira vista. Naturalmente, essa garantia pode se revelar
insuficiente; mas em face de um amplo consenso de fundo acerca de
certezas concernentes ao m undo da vida, não é raro que mesmo ga
rantias frágeis sirvam como base para uma aceitação capaz de criar
obrigações relevantes para as conseqüências da ação. O que parece
ser racionalmente aceitável para o ouvinte ainda não precisa ser válido
de imediato; o agir comunicativo do dia-a-dia passa pela aceitação de
reivindicações de validação que parecem ser suficientemente racionais
aos destinatários em um dado contexto, mas não pela validade de
atos de fala que, mediante um a análise mais cuidadosa, comprovam
ser racionalmente aceitáveis.
Lenoble contesta o enfoque dessa análise (que está apenas suge
rida aqui) e o faz com a afirmação de que o falante jamais poderia
decidir se sua oferta de ato de fala é aceita com seriedade ou não: em
princípio, não seria possível decidir sobre o êxito ilocucionário. Por
exemplo, um falante não poderia saber se um ouvinte que concorda
com uma afirmação ou cumpre uma ordem de fato crê no enunciado
A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 347
cima do palco: “Estou falando sério”30. Com esses exemplos especiais
pode-se ilustrar a situação geral de que não basta para o êxito comu
nicativo de um falante que o ouvinte entenda o significado literal do
que se diz. O entrecruzamento entre saber lingüístico e saber sobre o
m undo também se estende ao fato de que falantes competentes só
entendem corretamente uma declaração quando sabem como enun
ciar uma sentença — compreensível em sentido literal — de maneira
adequada à situação; pois é somente com base em tal entendimento
dos sinais de fundo das situações típicas de aplicação que o ouvinte
poderá inferir em casos atípicos qual a intenção do falante e qual o
significado “adaptado” ou irônico da declaração, conforme o caso.
Com essa estratégia de análise não quero de maneira alguma ne
gar o que há de ocasional, fugaz e difuso nas comunicações do dia-a-
dia, nas quais só se podem realizar de maneria transitória as possibili
dades de acordo m útuo— por meio da dissonância polifônica de decla
rações imprecisas, fragmentárias, polissêmicas carentes de interpreta
ção e mal-entendidas. Mas o ponto de partida da análise é constituído
pelo factum de que sobre esse médium opaco os inúmeros planos contin
gentes de ação acabam por enredar-se em um tecido de interações mais
ou menos isentas de conflitos. Toda análise de enfoque transcendental
pretende ilustrar as condições de possibilidade de um factum que ela
mesma pressupõe. Kant partiu do factum da física newtoniana e pro
pôs-se a pergunta sobre como a experiência objetiva é possível, afinal.
A pragmática formal substituiu essa pergunta epistemológica básica pela
pergunta concernente à filosofia da linguagem: como é possível algo
como o entendimento mútuo intersubjetivo? Com isso, ela parte do
factum ligado ao m undo da vida, e não menos surpreendente, de uma
integração social que se concretiza de maneira não-violenta e por meio
de processos de acordo mútuo (na maioria das vezes implícitos). Por
tanto, o fato de que o acordo mútuo seja bem-sucedido é pressuposto
em uma análise cuja tarefa é explicar como esse mesmo acordo mútuo é
possível. Contrariamente à dúvida de Lenoble, penso poder apegar-me
tanto mais a esse pressuposto quanto mais se pode medir inequivoca
30. Albrecht Wellmer, em conjunto com Davidson, trata do exemplo sob o pon
to de vista que interessa aqui: “Autonomie der Bedeutung und Principie of Charity aus
sprachpragmatischer Sicht” (1994). Desse manuscrito inédito também aproveito a dis
tinção entre o conhecimento do significado literal de um a sentença e o saber acerca da
adequação situacional de sua aplicação.
A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 349
inscrito o sistema dos pronomes pessoais, e portanto os pronomes
não apenas de prim eira e terceira, mas também de segunda pessoa.
Um falante só consegue alcançar seu objetivo ao assumir uma
atitude diante de segundas pessoas, justamente porque a medida para
o êxito ilocucionário é dada pela aprovação concedida a uma reivin
dicação de validação que possa ser contestada pelo destinatário. Pois a
aprovação ou a contradição em relação a um enunciado manifesto só
são possíveis (com base em uma compreensão comum do que foi dito)
a partir da perspectiva de uma pessoa envolvida. Isso se evidencia no
status do comum acordo ou do dissenso, onde aprovação ou contra
dição têm seu ponto de chegada: é o caráter intersubjetivo de ambas
que as leva a se distinguir da concordância ou discordância interpes
soal de opiniões (que se podem constatar a partir da perspectiva do
observador). Uma opinião objetivamente em concordância com outras
opiniões, cada um pode ter a sua só para si; mas a um consenso só se
chega junto com outras pessoas, sendo que essa condição comum pró
pria ao empreendimento funda-se sobre o fato de que falantes e ouvin
tes tomam parte do mesmo sistema de perspectivas do tipo “eu-você”
entrecruzadas e reciprocamente intercambiáveis.
Ao contrário, denominamos perlocucionários os efeitos exerci
dos sobre o destinatário através de ações de fala, quer estejam ligados
internamente ao significado do que se diz (tal como no cumprimento
de uma ordem), quer dependam de contextos casuais (como no es
panto causado por uma notícia) ou decorram de enganos (como no
caso da manipulação). Efeitos perlocucionários são ocasionados pela
ação efetiva intencional ou desintencional sobre um destinatário, sem
ação cooperativa da parte dele. os efeitos acontecem com ele. O falante
que busca atingir objetivos perlocucionários, orienta-se de acordo com
as consequências de sua enunciação, as quais ele não pode prognos
ticar de maneira correta quando calcula os efeitos de sua própria inter
venção junto ao m undo a partir da perspectiva do observador. Por
dependerem da tomada de posição de uma segunda pessoa que o faça
por estar racionalmente motivada, não se podem calcular os êxitos
ilocucionários dessa maneira. Atos de fala especificamente ligados à
desavença, como ameaças, ofensas, maldições etc. podem ser enten
didos como “perlocuções”, isto é, como enunciações cujo significado
estandardizado não se firma pelo próprio ato ilocucionário utiliza
do como veículo, mas sim por meio do efeito perlocucionário que se
A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 351
que supõe que essa concepção ainda esteja presa à imagem de m undo
do determinismo clássico. Ele mesmo, de maneira semelhante a Jacob-
son, parece estar impressionado com especulações cosmológicas que
se deixam inspirar — a uma distância própria — pela pesquisa sobre
o caos. Em todo caso, Lenoble situa a possibilidade precípua de dis
tinção de êxitos comunicativos e a dinâmica do acaso do evento lin-
güístico no âmbito de uma ontologia probabilística. O acontecimento
do mundo, apreensível assim apenas de maneira estatística, deve cor
responder mais ao modelo laplaceano do jogador de dados do que ao
crítico kantiano, que pondera razões entre si, em vez de simplesmente
contar os pontos resultantes de um lance de dados. A suspeita é evi
dente: a razão comunicativa postula ordem demais em meio à verti
gem de significantes. Sobre isso, uma breve reflexão.
Da mesma forma que se pode conceber a reviravolta mentalista
na filosofia m oderna como resposta a uma nova experiência contin
gente, isto é, à experiência de um a natureza que se tornara contingente
a olhos vistos, também a reviravolta lingüística procura dar conta da
irrupção de um novo tipo de contingências históricas que somente
adquirem relevância filosófica após o surgimento da consciência histó
rica, no século XVIII. Doravante, a consciência destranscendentaliza-
da do sujeito cognoscente tem que ser situada nas formas de vida his
tóricas e corporificada na linguagem e na práxis. Com isso, a esponta
neidade da consciência que concerne a imagens de m undo migra para
a função da linguagem cuja tarefa é proporcionar a abertura de mundo.
A questão em torno da qual gira o debate da racionalidade resume-se
basicamente ao seguinte: os sujeitos que agem comunicativamente são
capturados pelo sobe-e-desce das interpretações de mundo, discursos
e jogos de linguagem de cada época? Isto é, eles ficam conforme a von
tade do destino entregues ao pré-entendimento ontológico que torna
possíveis os processos de aprendizado no interior do mundo? Ou os
resultados desses processos de aprendizado também podem rever o
próprio saber lingüístico que interpreta o mundo, retrospectivamen
te? Se queremos fazer jus ao factum transcendental da aprendizagem,
então é provável que tenhamos que contar com a segunda alternativa
— e com uma razão comunicativa que deixa de prejulgar quaisquer
conteúdos. Essa razão que passa a ser apenas procedimental opera com
reivindicações de validação que transcendem o contexto específico e
com suposições de m undo pragmáticas. Mas a suposição de um m undo
O
Sobre a lógica dos discursos jurídicos
A pêndice a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 353
formal-pragmática dos pressupostos gerais da comunicação parecem
constituir para Rasmussen — apesar da virada lingüística — o re
gresso a um ponto anterior ao início da destranscendentalização da
consciência pura. Ele situa o erro na suposição de que ainda se pode
ría preservar o estilo transcendental da argumentação, mesmo depois
da reviravolta lingüística — em vez de se abandonar totalmente a he
rança transcendental de uma tensão entre facticidade e validação e
renunciar, com a hermenêutica, a todas as idealizações.
Espanta-me que Rasmussen negue taxativamente a pergunta for
mulada de maneira retórica: “Does interpretation require idealiza-
tion?” Pois Gadamer e Davidson demonstraram, cada um à sua m a
neira, que a interpretação de expressões lingüísticas (e de composições
simbolicamente pré-estruturadas em geral) exige muito provavelmen
te um princípio de clemência. Temos de supor nos agentes im putabi
lidade, e em suas enunciações, racionalidade — é exatamente isso
que exige a teoria do agir comunicativo32. Essas idealizações são esti
madas apenas com fins metodológicos; porém elas têm um fundamen-
tum in re, ou seja, nas suposições de racionalidade da própria práxis
de uma busca do acordo mútuo.
Eu mesmo sempre enfatizei que não se pode estabelecer de ma
neira falaciosa uma relação entre a práxis discursiva e o procedimento
de formação democrática da opinião e da vontade. Além do mais, uma
compreensão da jurisdição a partir da teoria do discurso não leva de
modo algum à exigência de uma “democratização” dos tribunais. O
que resulta do alojamento (apenas postulado) da justiça em uma comu
nidade de intérpretes constitucionais que seja aberta e crítica em face
da justiça são muito mais as exigências jurídico-políticas, e apenas no
que concerne ao solapamento da divisão funcional em poderes, que já
se mencionou acima: quanto mais a justiça recicla o direito, tanto mais
energicamente é preciso conclamá-la a justificar-se, não apenas diante
de uma opinião pública formada por especialistas, mas sim para fora,
perante o fórum dos cidadãos.
(2) A tese de doutorado de Alexy33, por sua vez, encorajou-me a
também estender ao direito e ao Estado constitucional a teoria do dis
34. Cf. R. Alexy, Baden-Baden, 1985; nesse meio tem po foi publicado: R. Alexy,
Begriff und Geltungdes Rechts, Freiburg/München, 1992.
35. Cf. K. Günther, Der Sinn ftir Angemessenheit, Frankfurt am Main, 1988, pp.
268-276; Habermas, 1992, pp. 309ss.
36. Alexy, 1985, p. 133.
37. Idem, ibidem.
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 355
meira linha à efetivação de fins coletivos — tal como acontece com as
políticas38. Alexy não se dá por satisfeito com essa réplica. Pois ao
tratar do caráter deontológico (e portanto incondicionado) da vali
dação do dever — caráter que eu gostaria de ver preservado nas nor
mas jurídicas — , ele o entende no sentido de uma validação univer
sal, que inclua todos os sujeitos capazes de agir e de utilizar a lingua
gem; com isso, ele torna as coisas fáceis para si: normas jurídicas ape
nas vinculam uma comunidade histórica de pessoas, limitada no tem
po e no espaço, e portanto não podem ser “deontológicas” naquele
sentido estrito.
Quanto a isso deve-se dizer que a expressão “deontológico” re
fere-se em primeiro lugar apenas a um caráter obrigatório codifica
do de maneira binária. Normas são ou válidas ou inválidas, enquan
to valores concorrem pela primazia em relação a outros valores e
precisam ser situados caso a caso em uma ordem transitiva. O código
de uma diferenciação análoga à verdade entre m andam entos “cer
tos” e “errados” e a respectiva incondicionalidade de sua reivindica
ção normativa de validação permanecem intocados pela restrição do
campo de validação a um a comunidade jurídica particular. No inte
rior de um campo de validação como esse, o direito se apresenta dian
te de seus destinatários, assim como antes, munido de um a reivindi
cação de validação que exclui uma pesagem dos direitos segundo o
modelo da ponderação de “bens jurídicos” precedentes ou menos
importantes. A m aneira de avaliar nossos valores e a maneira de de
cidir o que “é bom para nós” e o que “há de m elhor” caso a caso, tudo
isso se altera de um dia para o outro. Tão logo passássemos a consi
derar o princípio da igualdade jurídica meramente como um bem
entre outros, os direitos individuais poderíam ser sacrificados caso a
caso em favor de fins coletivos; no caso de uma colisão, deixaria de
ocorrer o “recuo” de um direito em relação a outros, sem que ele
tivesse que perder com isso sua validade.
É evidente que se trata aqui de algo mais que um mero embate
por palavras; mostra-o a maneira como entendemos o princípio da
proporcionalidade, que orienta a jurisdição nos casos de colisão. Dado
que os direitos desempenham no discurso jurídico o papel de razões
ponderáveis entre si, Alexy vê nisso a confirmação de sua concepção,
39. Não posso dedicar-me aqui à respectiva discussão entre Alexy e Günther:
K. Günther, “Criticai Remarks on Robert Alexy’s ‘Special case Thesis”’, Ratio Júris,
vol. 6,1993, pp. 143-156; R. Alexy. “Justification and Application o f Norms”, loc. cit.,
pp. 157-170.
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 357
tionamento, que em um dos casos visa à justificação de proposições
normativas gerais à luz das conseqüências para casos exemplares pre
visíveis, e que no outro caso visa à justificação de sentenças singulares
à luz de normas que se pressupõe serem válidas. Mas ele não logra
esclarecer determinados fenômenos, tais como as diferenças do arran
jo comunicativo entre legislação e jurisdição, por exemplo. Pois essas
diferenças, de maneira lógico-argumentativa, resultam dos princípios
de generalização e de adequação, que são diretivos em discursos de fun
damentação e aplicação. Nos discursos de fundamentação, por exem
plo, em que não pode haver pessoas sem envolvimento, deixaria de
existir o papel de um terceiro imparcial, que a propósito determina a
estrutura do discurso judicial. Quando incluímos a distinção entre dois
tipos de discurso, desaparece o fundamento racional em favor de uma
divisão funcional de poderes, que se justifica a partir das diversas pos
sibilidades de recurso a tipos determinados de razões. As razões com
as quais o legislador político tiver fundamentado as normas já decidi
das (ou as quais ele poderia ter mobilizado racionalmente para tal fim)
simplesmente não estarão à disposição da justiça e da administração
quando se for aplicar ou implementar essas mesmas normas. Isso as
sume um sentido crítico sempre que a justiça e a administração têm de
tomar decisões que contribuam para a formação continuada do di
reito, ou sempre que têm que assumir tarefas legislativas veladas —
tendo de se expor, dessa maneira, a outras coerções legislativas que não
as previstas na divisão tradicional de poderes. (Daí decorre, por exem
plo, do ponto de vista jurídico-político, a exigência de que haja fóruns
que se posicionem criticamente em face da justiça, bem como formas
de participação administrativa, funções de ombudsman etc.)
(3) A crítica de Gunther Teubner visa ao que é essencial. Primeiro,
ele saúda a diferenciação dos aconselhamentos em discursos e negocia
ções (bem como a diferenciação dos discursos segundo diversas formas
da argumentação — pragmática, ética, moral e jurídica). Quando, po
rém, em face do pluralismo de discursos, não se leva em consideração o
fechamento semântico de cada um deles e a indiferença de uns em rela
ção aos outros (como se dá com Lyotard, por exemplo), surge logo na
seqüência o problema que interessa a Teubner. Pois no caso da colisão é
preciso preocupar-se com a conciliabilidade dos diferentes discursos:
“After the move to pluridiscursivity, the success of Habermas’ theory
depends on a plausible solution to the collision of discourses”. Precisa
Apêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 359
para alcançar posições únicas, sob um ponto de vista moral acerca das
regras de convívio; e embora esse ponto de vista moral seja mais abstra
to, ele terá sido suposto em comum e atenderá eqüitativamente os inte
resses de todos. Este é apenas um modelo de relações interdiscursivas, e
a seu lado há muitos outros modelos possíveis. O que importa aqui,
apenas, é que as transições não se fixem em um superdiscurso; elas
decorrem muito mais da lógica do questionamento de um discurso
em particular, e têm como resultado que se privilegie o que seja bom em
face do que seja propositado, e o que seja justo em face do que seja bom.
No caso de uma colisão, as razões morais “fisgam” as razões éticas, e as
razões éticas, as pragmáticas; e isso porque o respectivo questionamen
to, tão logo se torne problemático em seus próprios pressupostos, trata
ele mesmo de indicar a direção em que lhe cabe transgredir de maneira
racional. O fato de que os ajustes precisem estar em consonância com
os valores éticos básicos devidamente reconhecidos, e de que estes, por
sua vez, precisem estar em consonância com princípios morais válidos,
é resultado da lógica dos questionam entos e das concatenações
interdiscursivas que eles mesmos regulam.
Com certeza, essa “auto-seletividade” da proposição de questões
só pode funcionar enquanto a seleção dos questionamentos e a escolha
de aspectos sob os quais se deve tratar uma matéria controversa não
forem, elas mesmas, controversas. Uma “colisão discursiva” ocorre, po
rém, quando os envolvidos não logram decidir em conjunto, por exem
plo, se o caso em questão é um conflito de interesses passível de solu
ção por um acerto, ou se é um conflito de valores, para o qual não se
pode ter uma solução como essa; ou então se a questão no caso espe
cífico é de ordem moral ou de ordem ética; ou ainda se a matéria de
que se trata carece de uma regulamentação política ou se ela é juridi
camente regulamentável etc. Já que não há metadiscursos para pro
blemas de segunda ordem como esses, também aqui tem-se de recor
rer a procedimentos juridicamente institucionalizados; pois esses só
correspondem a um a pré-seleção à medida que tudo que se vai nego
ciar tenha áe ser negociado na linguagem do direito e de acordo com
pontos de vista jurídicos (desde que uma das partes envolvidas o queira).
Os procedimentos jurídicos devem sua competência reguladora, no
caso das colisões discursivas, ao fato de o código do direito ser inespe-
cífico demais para ter sensibilidade em face da “lógica dos questiona
mentos”. Não há procedimento jurídico que classifique as matérias se
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 361
meta-discourses that reformulate collisions in their own idiosyncratic
language”. Mediante essa descrição — wiethõlteriana — os direitos
privados internacionais, que só podem concretizar o singular ‘do direi
to privado internacional no plural das muitas ordens jurídicas nacio
nais, servem como exemplo da problemática geral do “acordo mútuo
entre discursos que constituem mundos estranhos uns para os outros.
Embora esses discursos não sejam semanticamente fechados, no sen
tido de serem incompreensíveis uns para os outros, eles são regidos por
racionalidades e conceitualidades básicas diferentes e inconciliáveis
entre si, de modo que o que é falso ou de menor importância em um
universo pode ser correto ou prioritário em outro.
Essa incomensurabilidade é de tipo semelhante ao do conflito
intraestatal entre as comunidades integradas em torno das respectivas
concepções do que seja bom, e que por exemplo descrevem o aborto
de perspectivas distintas, de modo que a identidade do fato como tal se
torna difusa em decorrência da falta de uma perspectiva valorativa co
mum. Se isso for assim, porém, cria-se para Teubner uma conseqüência
desagradável: com sua concepção de incomensurabilidade, ele tacita-
mente coloca o discurso ético em situação privilegiada em relação a to
dos os outros tipos de discurso. Isso contradiz a premissa da igualdade
de importância entre todos os discursos, da qual deve resultar uma ine
vitável assimetria do “acordo mútuo” entre eles. Voltarei em breve a isso.
De fato a assimetria que Teubner explica com base nas regras de
colisão do direito privado internacional é o produto contra-intuitivo
de uma demarcação de itinerário teórica ainda presa à tradição da fi
losofia da consciência. Quando se parte de sistemas ou discursos que
constituem o próprio m undo segundo premissas próprias qual fossem
um sujeito transcendental, então só se pode conceber o “acordo mútuo”
com base na observação recíproca de forma intencionalista e de tal
maneira que um “enseje” ao outro o desenvolvimento das respectivas
operações. Essa estratégia teórica é contra-intuitiva porque ignora a
circunstância — e o discernimento hermenêutico básico — de que nin
guém pode chegar com um outro a um acordo mútuo sobre o que quer
que seja se não dominar o sistema dos pronomes pessoais que podem
transformar-se uns nos outros, e se não souber como produzir uma
simetria entre as perspectivas intercambiáveis da primeira e da segunda
pessoas, no âmbito de uma interação que se possa observar a partir
da perspectiva de uma terceira pessoa.
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 363
coerência normativa, ou seja, a ligação de cada um dos novos casos à
rede das decisões tomadas até então, mas sim um questionamento
específico: como se pode tratar com igualdade o que é igual e com
desigualdade o que é desigual (how to treat new cases alike/not alike).
Isso significa, ao mesmo tempo, uma assimilação das racionalidades
apropriadas de novos universos discursivos ao próprio padrão de tra
tamento igual. O direito é “senhor” sobre igualdade e desigualdade.
Esse padrão é subjacente à “comparação” da “justiça compensativa”
em face de discursos incomensuráveis e que portanto só podem se com
portar de forma “injusta” em relação uns aos outros (no sentido herme-
nêutico-estetizante de “injusto”, segundo Derrida e Lyotard). Com esse
nivelamento assimilativo Teubner explica também a “impudência” e o
“ecleticismo” de uma jurisdição que segue descaradamente a palavra
de ordem da “ponderação de bens” — “be it balancing between prin
cipies, between values, or even between interests”.
Mesmo que aceitássemos a descrição de incomensurabilidade e
“injustiça” segundo Teubner (de um tipo desconstrutivista, mais ele
vado), a concepção do direito como um “superdiscurso” não poderia
ser convincente por duas razões (pelo menos). Por um lado, o princí
pio do tratamento igual não serve como uma característica própria do
direito, já que a moral à maneira dela também ajuda esse mesmo prin
cípio a obter validação. Direito e moral obedecem ao mesmo princí
pio discursivo e seguem a mesma lógica de discursos de aplicação e
fundamentação. O que diferencia o direito da moral não é o questio
namento abstrato sobre como se devem regulamentar os conflitos in
terpessoais segundo o interesse eqüânime de todos, nem tampouco as
regras de argumentação da universalização e adequação. O que há de
específico nele não reside no discurso, mas sim na conformidade jurí
dica de normas — discursivamente fundamentadas e aplicadas — que
são firmadas politicamente, interpretadas v inculativamente e impostas
sob a ameaça de sanções estatais. Ligados à forma jurídica estão tam
bém a diferenciação e autonomização de discursos de fundamentação
e aplicação, a coerção específica na direção de uma exatificação das
regras, da coerência de sua concatenação e da consistência do decidir.
Essas qualidades do código jurídico exigem uma “tradução” dos argu
mentos pragmáticos, éticos e morais, assim como dos resultados de
negociações que ingressam no sistema jurídico por meio de aconse
lhamentos e resoluções do legislador político e aos quais a justiça pode
41. Cf., p. ex., Ch. Larmore,“Die Wurzeln radikaler Demokratie”, Deutsche Zeitung
fü r Philosophie, 41,1993.
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 365
público liberais e conservadores inflamou-se a partir da questão sobre
em que medida se deveria submeter o poder monárquico a um disci-
plinamento jurídico. A “substância” do Estado corporificada no exér
cito, na polícia e na burocracia, que alguns temiam e outros feste
javam, manteve a tal ponto a aura de um poder essencialmente irra
cional e superior a todo o restante, que mesmo a esquerda jamais lo
grou conceber a democracia de outra forma senão como uma sobera
nia principesca invertida, transferida da cabeça do monarca para os
pés do povo. Por isso a democracia continuou sendo, mesmo para
seus defensores, um projeto estatista.
Sobre esse pano de fundo entende-se a idéia de Marx de uma
“morte paulatina do Estado”— uma radicalização do saint-simonismo
herdado de Friedrich Engels, segundo o qual a dominação “política”
de pessoas sobre pessoas se deveria transformar na administração “ra
cional” das coisas. Essa idéia fascinou-me desde o início. Pois através
de Carl Schmitt e seus discípulos essa tradição de um a glorificação
do “elemento político” do poder estatal teve continuidade para além do
fim do regime nacional-socialista, no qual, a propósito, essa glorificação
teve seu ponto culminante42.
Assim como Preufi, também eu devo estímulos importantes à
aníitradição dos “juristas controversos”43, de raiz marxista, em espe
cial a Hermann Heller, Franz Neumann, Otto Kirchheimer e Wolfgang
Abendroth. Evidentemente, na direção oposta os especialistas do di
reito público desenvolveram a idéia que PreuB tem razão em destacar:
eles deram seqüência à “suprassunção” democrática da substância de
dominação presente no poder estatal, sobretudo sob o ponto de vista
de crítica ao capitalismo e favorável a uma reestruturação da organi
zação socioeconômica da desigualdade. De m inha parte, no entanto,
desenvolví a noção de um a “racionalização” do exercício do poder
administrativo (de forma imanente, em um primeiro momento) pela
via de uma reconstrução do teor normativo peculiar ao direito e ao
Estado democrático de direito. É isso — e não a proximidade a mestres
que, de quando em quando, fazem alguém esquecer o que aprendeu
44. Pontos de contato foram oferecidos pelas reflexões de Jürgen Seifert sobre a
“constituição como fórum”, dedicadas de forma nada casual à memória de A. R. L.
Gurland: do mesmo autor, cf. “Haus oder Forum. Wertsystem oder offene Verfassung”.
In: J. Habermas, Stichworte zur ‘Geistigen Situation der Z eit\ Frankfurt am Main, 1979.
pp. 321-339; lá tam bém se encontra bibliografia complementar. Cf. nesse ínterim J. P.
Müller, Demokratische Gerechtigkeit, München, 1993.
45. Cf. Posfácio à 4. ed. de Faktizitãt und Geltung.
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 367
firmado por escrito e concernente a uma comunidade jurídica con
creta tem de estar em consonância com proposições morais básicas.
Entendo a complexa reivindicação de validação das normas jurídi
cas, por um lado, como a pretensão de considerar os interesses par
ciais estrategicamente firmados de um a maneira compatível com o
bem comum; e, por outro lado, como a pretensão de fazer valer prin
cípios de justiça no âmbito do horizonte de um a forma de vida espe
cífica, marcada por constelações valorativas determinadas. A gera
ção de poder comunicativo e de direito legítimo torna necessário que
os cidadãos não recorram a seus direitos democráticos exclusivamente
como se eles fossem liberdades subjetivas, ou seja, a partir de interesses
próprios, mas sim enquanto autorizações legítimas a um emprego
público das liberdades comunicativas, ou seja, a um emprego delas
orientado pelo bem comum. De outra parte, há boas razões para que
os cidadãos não sejam juridicamente coagidos a isso. Por isso é ne
cessária a habituação a instituições da liberdade no âmbito de uma
cultura política liberal — e necessária no sentido de um a exigência
funcional. Por se ter de evitar uma doutrinação política, não se deve
entretanto transpor irrestritamente a pergunta empírica pelas condi
ções de um a socialização política favorável a um a exigência norm ati
va por valores e virtudes políticas. Preufi mesmo, em outro contexto,
fez alusão a que não se pode ter grandes pretensões quando se exi
gem virtudes públicas.
Isso também pode ser motivo para a sugestão de transm utar os
conflitos de valores, que não se podem resolver como se fossem con
flitos éticos, em conflitos de interesse passíveis de acerto. Não consi
dero que isso se justifique do ponto de vista normativo, porque a
redefinição de valores sob a forma de interesses pode resultar em uma
danificação das identidades. “Valorações intensas” subjazem aos ideais
sob cuja luz se articulam um projeto de vida existencial ou um jeito
de viver cultural. A força relativa dos valores varia; em alguns casos
questões de segurança ou saúde são mais importantes que questões
de justiça distributiva ou de educação; em outros casos, dá-se o in
verso. Mas relações de valores como essas só podem ser alteradas atra
vés de discursos de auto-entendimento, e não por meio do estabeleci
mento de acertos. Negociações só são sensatas quando as reivindica
ções ou interesses concorrentes referem-se aos mesmos bens ou a bens
comparáveis. Em negociações, as partes têm, desde o início, de che
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 369
dos direitos privados à liberdade e dos direitos políticos à cidadania
— cuja fundamentação é absoluta. Essa estratégia de fundamentação
que confere prioridade ao asseguramento da autonomia privada e pú
blica, volta-se contra os efeitos de um paternalismo do Estado de bem-
estar. Os cidadãos precisam ser capazes de fazer uso efetivo de seus
direitos em favor de uma conformação autônoma da própria vida;
por isso, para que cheguem à constatação de suas competências for
malmente asseguradas, eles têm que se pôr nesse lugar através de um
serviço estatal, conforme o caso. Frankenberg apresenta duas restri
ções contra essa concepção, uma boa e uma não tão boa.
O princípio “ajuda para a auto-ajuda” só é satisfatório no que diz
respeito às pessoas que ou estão de posse plena de suas forças ou um
dia alcançarão o status de maioridade (como as crianças), ou às pes
soas que podem recuperar suas forças e competências (como ocorre
com doentes ou, de outra maneira, com pessoas preteridas ou cujo
desenvolvimento mental fica abaixo da média). Diferente disso é a dis
ponibilidade de ajudar pessoas desamparadas e débeis, ou o amparo a
pessoas que sofrem sem possibilidade de cura. Evidentemente, essa
assistência tem um valor intrínseco e não se confunde com a função
que desempenha em favor da produção ou restauração de autonomia.
Esse impulso moral elucidativo, que aponta para obrigações positivas,
certamente não pode ser traduzido de maneira imediata em um plano
político onde é necessário haver uma “divisão moral do trabalho”, até
mesmo por razões organizacionais46. Normalmente, um sentimento
de solidariedade baseado na cultura política irá expressar-se no apoio
a políticas e programas de ajuda correspondentes.
Frankenberg dá outra direção ao argumento ao propor a tese
de que a referência às condições de surgimento da autonom ia pri
vada e pública conduziría a um a concepção unilateral dos direitos
sociais. Estes correríam o perigo de degenerar até se tornarem ins
trum entos de restauração da força de trabalho ou da qualificação da
participação civil. Apenas quando os direitos sociais forem fun
damentados de m odo absoluto, ou seja, como partes elementares
dos direitos à condição de m embro de uma comunidade é que se
conserva a sensibilidade para relações solidárias entre “partícipes”;
“Instead of underprivileging social rights as ‘implied’ or ‘relative’. ..
46. Cf. H. Shue, “Mediating Duties”, Ethics 98, jul. 1988, pp. 678-704.
A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 371
tam legitimidade somente com base no reconhecimento recíproco das
mesmas liberdades, então a solidariedade evocada por Frankenberg, e
já conhecida das relações concretas de reconhecimento da interação
simples, preserva para o próprio direito uma força estruturadora. Sob
uma forma abstrata, a solidariedade continua sendo um recurso social
de que a autodeterminação democrática dos cidadãos precisa se ali
mentar, caso deva surgir daí um direito legítimo. Só são legítimas as
regulamentações que tratam com igualdade o que é igual e com desi
gualdade o que é desigual, ou seja, as que também asseguram liberda
des subjetivas de modo efetivo; e só se devem esperar regulamenta
ções legítimas como essas quando os cidadãos fazem uso de suas li
berdades comunicativas em comum, de maneira que todas as vozes
tenham chances iguais de ser ouvidas. Assim, o recurso efetivo às au
tonomias privada e pública, que se pressupõem mutuamente, é ao
mesmo tempo uma condição para que os direitos civis sejam adequa
damente interpretados e garantidos, além de utilizados de maneira
cada vez mais abrangente em seu teor universalista. Pelo fato de que a
reprodução do direito, considerada normativamente, sempre signifi
ca a efetivação de uma associação de jurisconsortes livres e iguais, à
qual todos os partícipes estão vinculados no respeito eqüânime de uns
pelos outros, não surge nenhum a lacuna no processo circular da
viabilização e asseguramento recíprocos da autonomia privada e pú
blica, ao menos não para um a autonomia social que devesse ser pre
enchida pela solidariedade dos partícipes de maneira diversa da que
aliás já resulta do status próprio ao cidadão de um Estado.
(3) Filosofias do direito, ainda que não sejam escritas para o
aqui e agora, também dispõem de um teor político e diagnóstico para
a época em que surgem, à medida que espelham até certo ponto o
contexto que lhes é próprio. É notório que a força de explosão política
da filosofia do direito hegeliana instigou diversas gerações a reagi
rem com passionalidade. Apesar das indicações lisonjeiras de Dick
Howard, é evidente que meu texto não ocasiona nenhum a compara
ção com Hegel, nesse sentido. De qualquer modo, os diagnósticos po
líticos de Dick Howard e Gabriel Motzkin são motivo de alegria para
mim. Pois freqüentemente deparo com reações diferentes.
Com certeza um acontecimento da história universal como o
colapso do Império Soviético obriga qualquer um a repensar sua
posição política; faz muito tempo, no entanto, que defendo um refor-
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 373
filosofia sem abdicar da perspectiva metodológica da própria área de
especialidade — isto é, que aparecem como filósofos em pele de cor
deiro sociológica. Nisso, raramente pode se manisfestar originalidade,
como ocorreu sem dúvida alguma com Niklas Luhmann; em outros
casos, manifesta-se antes uma certa ingenuidade.
(1) Se por um lado Mark Gould arrisca-se muito pouco a sair de
sua morada parsoniana, ao mesmo tempo ele se atreve a emitir tantos
juízos, que sua competência na área específica (que tenho em alta conta
já não é de hoje) acaba se ligando às vezes a uma insensibilidade her
menêutica assustadora. Em todo caso, ele compreende tão pouco a
postura pluralista de m inha teoria (enfatizada já desde o Prefácio) que
chega a confundir quase tudo.
Quando não se pretende estar restrito a reflexões normativas
sobre um a teoria da justiça, ou à análise de conceitos fundamentais
decisivos, ou a considerações jurídicas sobre a metodologia da prá-
xis decisória judiciária (o que tam bém é legítimo, com certeza), en
tão não se pode construir um a filosofia do direito fechada em si
mesma, como ainda se fazia nos tempos de Hegel. Por isso procedi
de modo a desenvolver prim eiro o questionamento geral — da rela
ção entre facticidade e validação — com base na teoria do agir com u
nicativo, para depois explicar a função sociointegrativa do direito, à
luz dessa teoria. Foi então que confrontei a perspectiva normativa
da tradição jurídica racional à objetivação do direito empreendida
pelas ciências sociais, a fim de dar outra importância metodológica a
essa análise filosófica no âmbito de um a teoria social que procedesse
reconstrutivamente, sem deixar de satisfazer exigências descritivas,
e que assumisse seu enfoque a partir de uma “perspectiva dupla”.
Isso, no entanto, não significa de modo algum um apagamento de
diferenças na reconstrução do direito empreendida a partir da pers
pectiva interna do sistema jurídico, que procurei levar a cabo nos
capítulos III a VI. Essa reconstrução racional dos direitos, dos prin
cípios do Estado de direito, da práxis decisória judiciária e de sua
relação com o poder legislativo o que mais faz é preservar a auto-
suficiência de um a teoria do direito normativamente orientada. A
comparação entre direito e moral exige até mesmo reflexões de teo
ria moral, ou seja, reflexões filosóficas em sentido mais estrito, da
mesma forma que a investigação dos discursos jurídicos de aplica
ção exige reflexões de metodologia jurídica. Só os dois capítulos se
A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 375
teoria social que, ao mobilizar o ativismo judiciário, deva contribuir
para mudar a sociedade, especialmente suas relações de produção.
Considero ainda mais provocativo que ele não acompanhe a já
mencionada mudança de perspectiva metodológica e que portanto
deixe recair sobre si mesmo a confusão de planos analíticos de que
vem acusar-me. Do contrário ele não cairia na tentação de tirar con
clusões sobre meu conceito de ação a partir de determinações da “si
tuação ideal de fala” — um conceito que só teve um lugar para si na
teoria da verdade. É por essa via ilustre que ele chega ao diagnóstico
de que eu confundiría normas com valores, valores com posições de
interesse e uma orientação segundo valores com preferências; ou ain
da pior: eu operaria com um conceito atomístico e empirista do agir
social, não faria distinção entre limitações factuais da situação acionai
e outras situações, normativas, teria uma compreensão utilitarista das
obrigações morais, e assim por diante. Isso tudo são artefatos de uma
leitura precavida. As únicas diferenças sérias nesse plano dos concei
tos básicos resultam do fato de eu não partilhar a compreensão não-
cognitivista da moral e da vinculação a valores tal como defendida
por Parsons, e portanto não excluir “valores morais” da esfera do “ra
cional”. Gould contenta-se com asseverar: “J believe that there is an
irreducible, non-rational component of moral principies.” Em outro
momento ele também “crê” que os valores do “individualismo insti
tucionalizado” deveríam encontrar acesso ao sistema jurídico. Não se
trata aqui de questões de fé, e sim de argumentação filosófica.
As longas digressões sobre o princípio da proporcionalidade e do
“excesso” na justiça do direito privado vêm bem ao encontro do desen
volvimento que descreví remetendo-me à expressão “materialização
do direito”, de origem weberiana. No entanto, essas digressões nada
têm a oferecer à crítica do procedimentalismo, nem de um ponto de
vista (a) imanente, com referência à norma procedimental jurídica da
liberdade contratual; nem muito menos (b) na transposição a proce
dimentos de argumentação juridicamente institucionalizados. Nem
mesmo (c) na distinção entre “equity” e “equality” consigo encontrar
um ponto de vista novo.
Sobre (a): A liberdade contratual, de acordo com a compreen
são liberal, deveria pôr à disposição das relações entre as pessoas do
direito privadas um procedimento que garantisse justiça procedi-
m ental“pura”: enquanto as partes cumprissem as prescrições formais,
A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o : 377
“incompleta”. No mais, as condições de comunicação, que nada fa
zem senão assegurar o livre trânsito de informações e razões “dispo
níveis”, além de possibilitar com isso soluções de problemas e proces
sos de aprendizagem, continuam dependendo do envio de contri
buições substanciais; elas não podem mais gerá-las por si só. Gould
tem razão em observar que o princípio de se dever tratar com igual
dade o que é igual e com desigualdade o que é desigual irá perm ane
cer vazio enquanto não tivermos critérios adequados de compara
ção. Isso porém não é um argumento contrário, mas sim favorável a
uma concepção que vê no asseguramento de liberdades de ação sub
jetivas iguais algo dependente da clareza que os envolvidos possam
ter em relação a uma interpretação adequada das carências em ques
tão e em relação aos pontos de vista relevantes na comparação das
situações típicas de vida; e que o façam assumindo seu papel de cida
dãos do Estado, ou seja, fazendo um uso público de suas liberdades
comunicativas, para então chegar a uma postura comum em face des
sas questões, segundo procedimentos democráticos. Tudo isso, caso
queiramos evitar o paternalismo, não pode ser abandonado apenas
às decisões de um a justiça única (mesmo que a atuação dela se orien
te segundo o Estado social). Essa concatenação interna (e recíproca)
entre autonom ia privada e pública, quando a entendemos correta
mente, não é de forma alguma trivial, mas constitui, sim, o âmago
normativo do paradigma procedimentalista.
Sobre (c): Gould pretendeu distinguir entre “equality”, no sentido
da igualdade abstrata de direitos, e “equity”, no sentido de uma igual
dade da aplicação dos direitos referida a casos concretos. Essa questão
terminológica não teria maior interesse caso não estivesse vinculada à
crítica ao “formalismo” de um a concepção de direito “liberal” (em sen
tido pejorativo). Segundo a concepção de Gould, a teoria do discurso
de aplicação (que devo a Klaus Günther) está condenada a perm ane
cer presa a uma concepção abstrata de igualdade de direitos (equality)
e a não conseguir cum prir a idéia da igualdade de conteúdos jurídicos
(equity), já que ela separa drasticamente a fundamentação e a aplica
ção das normas: “The meaning of a principie can only be determinated
in the light of its consequences and thus its ‘justifiability’and ‘appropria-
teness’ are always intermingled”. Em face disso, Günther remeteu ao
papel lógico-argumentativo diverso que os casos concretos assumem
em discursos de fundamentação e discursos de aplicação.
A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 379
de tratamento social desigual que só podem ser resolvidos quando fo
rem modificadas as relações de trabalho, formas de organização, estru
turas familiares etc. implicitamente discriminadoras. Mas em geral isso
só é possível com a implementação de novos programas legais; esses
casos, portanto, dizem respeito em primeira linha ao legislador políti
co e não à justiça. A canalização de propósitos de reforma para a socie
dade por meio de tribunais superiores ativistas e esclarecidos no que
diz respeito às ciências sociais alça a práxis da Suprema Corte norte-
americana durante o New Deal à condição de um caso normal; ao lon
go do tempo, porém, essa práxis conduziria a um paternalismo judiciá
rio inconciliável com os princípios do Estado democrático de direito.
(2) Até aqui, m inha réplica segue as regras usuais do jogo argu-
mentativo científico, ou ao menos tenta agir dessa maneira: depara com
objeções, e na seqüência da reconstrução dessas objeções apresenta suas
respostas. Luhman, o verdadeiro filósofo, pratica outro estilo de refle
xão; ele trata de perscrutar o todo com alguns comentários — cautelo
sos só na aparência. Aqui se trata da apreciação artesanal do alcance e
sustentabilidade de um empreendimento, para além da vontade de es
tar certo. De qualquer maneira, cada um de nós trilha seu caminho, e é
preciso ver onde se vai e quão longe se chega. No mais, tenho a sensa
ção de que Luhmann — ao longo de uma discussão duradoura, com a
qual sempre aprendi — ainda não agiu com um grau tão alto de pron
tidão hermenêutica, nem jamais deu tanto espaço ao princípio da ne
gligência. Já que permanecer aberto e seguir adiante é próprio às dis
cussões, deposito minha confiança nas continuações e limito-me aqui
a uns poucos comentários sobre algumas das observações.
Quod omnes tangit.. .51 — uma bela reminiscência, mas que não
é bem correta como se apresenta, já que a questão da participação inclu-
siva de todos os jurisconsortes no procedimento não se coloca nem em
relação a assuntos de herança, nem mesmo em desavenças jurídicas,
mas apenas com referência à legislação nacional de um Estado demo
crático. Aqui ela é garantida pelos demais direitos de comunicação e
participação, entre outros pelo direito geral a eleições. No discurso de
aplicação institucionalizado sob a forma de tribunal, que de um modo
já conhecido limita a participação, assegura-se a referência à suposta
5 1 .0 texto de Luhmann foi publicado em alemão com esse título em: Rechts-
historisches Journal, 12, 1993, pp. 36-56.
A p ê n d ic e a Fa c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 381
de seqüências observáveis (!) de acontecimentos construídos no tem
po e no espaço só é trivial na aparência. Somente o nominalismo que
subjaz a essa formação conceituai voltará o olhar ao que há de peculiar
no tempo e na contingência; a partir do que é peculiar tem-se que ex
plicar o geral como uma construção igualmente fugaz, já que nesse
universo teórico todas as distinções visam ao que é peculiar. Luhmann
pergunta pela unidade entre facticidade e validação e supõe a priori
que ela se produz por um a operação que de sua parte (a partir de ou
tras perspectivas sistêmicas) pode ser observada como algo que de
corre no tempo. Essa estratégia conceituai nominalista trai uma deci
são que em Luhmann — assim como em Davidson ou Derrida — atua
enquanto cúmplice, como uma decisão prévia não-tematizada. Ao con
trário do que pensa Luhmann, a teoria dos sistemas não deixou para
trás, em hipótese alguma, as alternativas conceituais realistas-nomi-
nalistas que nasceram da dissolução do paradigma ontológico. Pois esse
processo de dissolução teve continuidade com a irrupção de impulsos
contingenciais subseqüentes: do nominalismo medieval, passando pelo
empirismo clássico, até alcançar um segundo empirismo, historica
mente aplicado, e que hoje se manifesta sob muitos disfarces, mas sem
pre com a mesma operação de singularização. Esse nominalismo recen-
tíssimo é uma resposta à irrupção do pensamento histórico, que se ini
cia no século XVIII, quando se dilui não apenas a natureza observada
no fluxo contingente dos acontecimentos, mas também a cultura no
rum or das ocorrências comunicativas ou na vertigem dos significantes
— cultura que, embora elucidada a partir da perspectiva do partici
pante, vê-se reduzida a uma segunda natureza, por meio do estranha
mento. O fato de as filosofias surgidas sob a égide da pós-m odernida-
de se abandonarem de maneira inconsciente ao turbilhão das figuras de
pensamento nominalistas integra claramente o delineamento das mar
cas de uma modernidade que sempre deveu suas conquistas de liber
dade, como ainda agora, ao pathos antiplatônico.
Essa característica, porém, de reduzir o geral ao particular ali
mentou-se cada vez de um pressuposto paradoxal próprio ao que é
geral. Isso tem início no século XIII (o mais tardar), com o apego in
consistente dos nominalistas a uma determinidade de coisas singula
res que são-em-si. Se a subdivisão conceituai do m undo em gêneros e
espécies deve ser uma obra subjetiva empreendida pelo espírito hu
mano, que opera com signos, a fim de elaborar suas impressões a par
A pêndice a F a c t ic id a d e e v a l id a ç ã o 383
os enunciados que podem ser feitos a partir de uma perspectiva parti
cipativa (testável) e os enunciados sobre o que só se pode m ostrar ao
observador no âmbito de uma estratégia conceituai nominalista: por
exemplo, enunciados objetivos sobre como as formas culturais de
vida surgiram na história natural, sobre qual a aparência das constan
tes da natureza sob as quais elas podem se reproduzir sozinhas etc.
Mas por que razão não se deveria deixar isso ao encargo de outras
ciências? É preciso sonhar mais um a vez o sonho empirista da ciência
nomológica única, embalado agora em um tule certamente mais are
jado e festivo da poiesis distinguidora, própria à teoria dos sistemas?
Sob as condições do pensamento pós-metafisico, sequer considero que
haja um “preço” a pagar pela renúncia a uma teoria universal.
Quando se cumpre a mudança de perspectiva sugerida, no entan
to, desaparece a coerção sistemática que obriga a propor as perguntas
que se impõem a Luhmann: a pergunta pela natureza local de todas as
argumentações, a pergunta pelos efeitos excludentes de todos os discur
sos, a pergunta pelos teores normativos do conceito de racionalidade
etc. É certo, como já revela a forma gerundiva, que idealizações são ope
rações que cumprimos aqui e agora, mas as quais temos de cumprir de
maneira a não danificar o sentido delas que seja capaz de transcender o
contexto. É certo, também, que o discurso civil de liberdade e igualdade
se constitui segundo regras próprias; mas de maneira que ele, enquanto
discurso universalista, submete-se como tal a uma crítica a partir de den
tro — já que é justamente sua capacidade de autotransformação que o
distingue de outros discursos, como os descritos por Foucault. A raciona
lidade comunicativa que desvenda o segredo do surgimento da legi
timidade a partir da legalidade não pode “substituir” o dominador, já
que o lugar deste último na democracia deve permanecer desocupado,
e não apenas em sentido literal. A contribuição paradoxal do direito (e
paradoxal somente à primeira vista) consiste sim em que ele subjuga o
potencial conflituoso das liberdades subjetivas aí desencadeadas, por
meio de normas que garantem a igualdade e que só podem exercer coer
ção enquanto forem reconhecidas como legítimas no terreno instável
das liberdades comunicativas que aí se desencadeiam.
(1) inédito
(2) Reconciliation through the Public Use of Reason: Remarks on John
Rawls’ Political Liberalism, The Journal of Philosophy, XCII, mar. 1995,
pp. 109-131
(3) inédito
(4) versão ampliada de: The European Nation State — Its Achievements
and Limitations, Ratio Juris, 9, jun. 1996, pp. 125-137
(5) inédito
(6) Remarks on Dieter Grimrrís‘Does Europe Need a Constitution?’, Euro
pean Law Journal, 1, nov. 1995, pp. 303-307
(7) in: Kritische Justiz, 28,1995, pp. 293-319
(8) in: Ch. Taylor et alii. Multikulturalismus und die Politik der Anerken-
nung [Multiculturalismo e a política do reconhecimento], f/m, 1993.
pp. 147-196
(9) versão ampliada de uma colaboração para a “Festschrift” em homena
gem a Iring Fetscher: H. Münkler (org.). Die Chancen derPreiheit. Mu
nique, 1992, pp. 11-24
(10) in: U. Preufi (org.). Zum Begrijf der Verfassung [Sobre o conceito de
constituição], f/m, 1994, pp. 83-94.
(11) em inglês in: Cardozo Law Review, vol. 17, mar. 1996, Part II, pp. 1477-
1558
385
.J l .
índice de nomes
387
G urland, A. R. L. 367 Kant, Im m anuel 1 5 ,2 3 ,2 8 ,4 3 ,4 5 ,4 6 ,
G utm an n ,A m y 232,241 6 1 ,8 3 ,8 6 ,9 2 ,9 3 ,9 5 , 104, 118, 126,
129, 159, 160, 185-197, 199, 202-
H aberm as, Jürgen 16,19,20,47,49,50, 204, 206, 208, 211, 214, 216, 217,
52, 54, 59, 60, 71,72, 79, 8 1 ,9 1 ,9 4 , 222,223,227,232,286,287,291,373
106, 117, 137, 152, 156, 164, 197, Kelsen, H ans 211
199, 202, 211, 225, 230, 235, 241, Kesting, H anno 366
253, 254, 259, 267, 278, 300, 301, Kierkegaard, Sõren 15
306, 308, 310, 314, 319-321, 323, Kirchheimer, O tto 366
345,354-356,361,366,367,373,375 Knieper, R. 139,195
Hare, Richard M. 14 Kõnig, S. 214,216
H art, H. L. A. 13,69 Korsgaard, Chr. M. 46
Hauser, L. 16 Koselleck, R einhart 366
H eath, J. 50 Kymlicka, W. 249
Hegel, G. W. F. 54, 71, 118, 122, 143,
157, 194,208,220, 233,319 Lafont, C ristina 353
Heidegger, M artin 41 Larmore, Charles 117, 365
Held, D. 193,210 Leggewie, Claus 148
Heller, H erm ann 173 Lênin, W. I. 154,223
H insch, W ilfried 69 Lenk, H ans 21
Hitler, A dolf 200 Lenoble, Jacques 300,345-349,351 -353
Hobbes, T hom m as 92,95,101,106,130, LePre, E. 51
149,163,214,221 Lepsius, M. Rainer 122,148
Hõffe, O tfried 213,342 Lindholm , T. 208
H onneth, Axel 54 ,1 9 8 ,2 2 2 ,2 3 0 , 308 Locke, John 2 1 3,214,286,291
H orkheim er, Max 22, 223 Lübbe, H erm an n 147,152,174
H oward, Dick 300, 372, 373 L uhm ann, Niklas 380
Hoy, D. 308 Lukács, G eorg 194
Huber, W. 204 Lyotard, François 358, 364
H um boldt, W ilhelm von 54
H um e, D avid 23 M aclntyre, Alasdair 305, 323
Hurley, S. 213 Mackie, J. L. 20,25
Husserl, E dm und 353 M artens, Ekkehard 22
M arx, Karl 124
Ipsen, H .R 173 M aus, Ingeborg 154,157,159
Isensee, ]. 201,212 M cCarthy, T hom as A. 89, 308, 322
McDowell, J. 2 0 ,2 1 ,3 7 ,3 8
Jacobson, A rthur J. 336 M ead, George H erbert 42, 54, 71,96
Jahn, B. 169 M ichelm an, Frank I. 269,271,272,274,
Jellinek 82 275,277
Joas.H . 308 Milo, R. 98
Joppke, Ch. 175 Minow, M artha 335
M otzkin, Gabriel 300, 372, 373
Kaa, D. J. van de 256 Müller, J. P. 367
Kambartel, Friedrich 325 M ünkler, H erfried 126
Í n d ic e d e n o m e s 389
Weizsácker, Carl Friedrich von 144 W ittgenstein, Ludwig 38,70
Wellmer, Albrecht 51,198,301,343,348 Wolf, Susan 250
W iegand, E. 256 W olfrum, Rüdiger 168, 204
Williams, B ernard 37, 4 0 ,6 5 ,9 5 W olin, Richard 41
W ilson, W oodrow 154,199 W right, C rispin 51, 343
W ingert, Lutz 13, 19, 51, 54, 89, 102,
118,323 Young, I. M. 67