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INTRODUÇÃO GERAL

AO DIREITO

111

O DIREITO NÃO ESTUDADO


PELA TEORIA JURÍDICA MODERNA
LUIS A LBERTO W ARA T

INTRODUÇÃO GERAL
AO DIREITO

111

O DIREITO NÃO ESTUDADO


PELA TEORIA JURÍDICA MODERNA

Sergio Antonio Fabris Editor


Porto Alegre 1997
©Luis Alberto Warat

Editoração Eletrônica:
Fonnato Artes Gráficas

Reservados todos os direitos de publicação, total ou parcial, à


SERGIO ANTONIO F ABRIS EDITOR
Rua Miguel Couto, 745
CEP 90850-050
Caixa Postal 400 I
CEP 90631-970
Fone (051) 233-2681
Porto Alegre - RS
As minhas filhas, Gisela,
Valéria e Florência, com as
quais reaprendi a sonhar
SUMÁRIO

PARTE I
D IREITOS HUMANO S E DEMOCRACIA : PRÁTICAS
POL ÍTICAS, P SICOANAL ÍTICAS E PEDAGÓGICAS
I. Os direitos humanos tamb ém passam pelos desejos. . . . . . . . . . . . 11
IL Democracia, direitos h umanos e pós-m ode rnidade : uma re-
flexão sociológica a partir do princípio da realidade de Freud . . 21
III. Eco- ética, direitos humanos e pós-modernidade : prelúdios
para uma semiologia ecológica.. . . . . . . . . . ..... .. . ... . . . . . ..... . . .. . . . . . . . 31
IV. Incidentes de ternura : b reve prelúdio para um discurso so-
b re o ensino j u rídico, os direitos humanos e a democracia
nos tempos do pós-totalitarismo .. . .. . . .... . . . . .. . .. .. . . . . . . . . ..... . . ... . 41
V. D i reitos humanos e semiologia ecológica : do direito natural
às dimensões simbólicas da política . . . . . . . . ... . ..... . . .. .. . . . . . . .. ..... 69
VI. O abuso estatal do direito : breves comentários sobre a
concepção j u risdicista dos direitos humanos . . . . . . . . . ... . . . . . . ..... 83

PARTE 11
DEMOCRACIA E ESTADO DE DIREITO
L Estilhaçando utopias . . . ... . . ..... .... . ..... .... . .. .. .... . . . . .... . . . . . . . .. . . .. . 97
li. C rise da democracia e crise da modernid ade . . .. . . . . . ... .. . . . . . . . . . 107
III. Fobia ao Estado de D i reito . . . . . . . .. . . .... . .. ... ... . . . . . . . ... .. . . . . . . . . . .... 121
IV. A Dogmática Jurídica e o Estado de Direito . . . . . .. . .. . . . . .. . . . . . .. . 137
PARTE III
ECOLOGIA E D E S EJO
I . Os sonhos aposentados : reflexões a margem de maio de 68. 163
li.Diabrites de amor contra os filósofos sentados : imagens do
cemitério . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . 1 69
III. É p reciso aprender a usar as armas da ternu ra: Ecologia e
pós-modernidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179
IV. Mal-estares de um final de milênio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 95
V. É p reciso ser alguém para poder amar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
VI . O amor nas noites sem amor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . 217
VII . As des(ilusões) militarizadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 1
PARTE I

D i reitos humanos e democ racia:


p ráticas p olíticas, psicoanalíticas e pedagógicas
CAPÍTULO I

O S D IREITOS HUMANOS TAMBÉM


PASSAM PELOS DESEJOS

Dizia Clarice Lispector que o amor está feito de infinitas paciên­


cias . Feito, acrescentaria eu, de infinitas incertezas, de um plural nada
tedioso de afetos e desej o s . Clarice reivindica, também, a necessidade
muito feminina de elim inar nosso tripé, o pé que nos dá segurança, mas
que nos imobiliza, c não nos deixa ir ao encontro da vida com os
nossos p róprios pés, que são os pés das incertezas e do amor. Assusta,
mas é um medo que é p reciso vencer para poder reatar nossos laços
com a vida.
Falarei, então, do amor. Falarei da importância do amor para as
p ráticas políticas dos direitos humanos. Quero fugir de um certo espí­
rito fanático que paira quase que obsessivamente em todos os discursos
sobre direitos humanos . As falas dominantes sobre esta problemática
no Cone Sul tomam-se discu rsos sobre a morte. Falas que tentam gerar
uma certa consciência culposa em auditórios assumidos indiretamente
como cúmplices .
P refiro deslocar a questão e falar do amor, para falar dos direitos
humanos . Eles não são p ráticas e discursos de resistência à morte.
Trata-se de mostrar que os direitos humanos, como problemática, p re­
cisam gerar p ráticas e discursos de preservação do amor, discursos que
precisem falar de instâncias libertatórias, que permitam ao homem
reencontrar seus vínculos perdidos com a vida.

11
* * *

Pretendo falar das condições de possibilidade de um ensino


jurídico centrado no desej o e nas paixões . Não tenho dúvida de que
desta maneira estarei constm indo um discurso oblíquo sobre o direito à
maturidade afetiva, sobre o direito à criatividade, do nosso direito de
sonhar e semear o novo, fecundando-o sem o auxílio de fantasias
perfeitas ou ilusões frustradas .
S into a angústia de uma espécie (o homem) que teme desaparecer.
Já se sentiu de alguma manei ra a necessidade de uma prática política
dos direitos humanos dirigida à p reservação da espécie. Lendo à minha
maneira o quadro de fatos e denúncias apresentados, construo minha
mensagem: Temos direito a que a ciência não nos prenda a um projeto
heterônomo de dominação e a um ensino universitário que predetermine
nossos pensamentos pela manipulação, narcisista e arrogante, de
verdades que não servem p ara mobilizar o homem na p rocura de um ar
transfonnador da sociedade.
Estamos despedindo-nos de um milênio com a apocalíptica sen­
sação de estannos fazendo um balanço final . Pode-se duvidar seria­
mente se haverá a virada do século. Sem cair no pessimismo extremo
de certa versão ecologista do mundo, pretendo chamar a atenção para
um complexo de sintomas p reocupantes .
Descobrem-se hoje na sociedade e no ensino universitário estm­
tu ras inquisitivas e arrogantes, dourados encob rimentos que manipulam
nossos desej os, fazendo-os oscilar entre a paixão alienada e a indi­
ferença. Uma encenação de argumentos, de agressões, de formas histé­
ricas de múltiplas vozes unifonnes que vão tomando o espaço social até
convertê-lo em uma grande di stância imobilizadora: a ordem simbólica
totalitária.
De modo geral estou falando do caráter fantasmático das dimen­
sões que vão configu rando a complexidade simból ica de uma fom1a de
sociedade opressora.
Não podemos el ucidar nossas apocalípticas impressões deste fim
de m i lênio se desatendermos os efeitos devastadores, as escleroses e os
acomodamentos provocados pela repressão semiológica (discursos
castradores, classificações, divisões, versões unívocas do mundo etc)

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dos desejos . Vivemos obrigados a pensar de uma certa maneira, a
valorar e agir confom1e uma etica consumista mediocremente simbó­
l ica. Verdades pomposas que nos excluem e nos anestesiam afetiva­
mente por seus efeitos de censura. P redetem1inações do pensamento
que nos excluem das vertigens da razão e dos sentimentos . Vivemos
dependentes de um esquema de racionalidade que nos detennina
heteronomamente. Uma razão neutra e aristocrática que despreza as
incertezas e os desequ ilíbrios dos desejos aspirando libertar a "cidade
do saber" do i rracional . Uma razão esclarecida, mas extremamente
gélida em sua busca de univocidade.

* * *

Em um certo sentido podemos dizer que as incertezas e a


multiplicidade dos desej os são aspectos essenciais para o estabele­
cimento de uma ordem simbólica democrática.
O sentido democrático de uma forma de sociedade depende da
dissolução de toda referência à certeza. A racionalidade democrática
realiza-se em disj unção com as certezas . As práticas políticas demo­
cráticas precisam de uma mobilidade discursiva que saiba j ogar
dialeticamente com a paixão e com a razão, que saiba dar passagem a
uma ou a outra. Estamos perante uma fonna de razão que se abre
diante do sentimento : A razão ardente, criativa, sonhadora, p lenamente
seduzida diante do novo.
A versão cartesiana dos processos educacionais facilita a reprodu­
ção e a conservação de uma fom1a totalitária de sociedade, não levando
em conta a relação desejo-saber e o caráter lúdico das verdades .
Enfim, parece-me interessante não perder de vista a necessidade de
p rocurar uma relação mais rica com a razão, uma razão que sej a capaz
de denunciar o substrato de desumanização que acompanha a razão
instrumental . Precisamos entender também que nenhuma verdade per­
du ra historicamente se não é capaz de p rovocar a subversão do saber
que a fundamenta. Historicamente desapareceram muitas ciências,
muitos saberes que não tiveram a capacidade de auto-subverterem-se,
que não tiveram a competência de fazer a leitura do mundo à margem
das versões onipotente s .

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* * *

A i lusão acadêmica da verdade perfeita esconde muitas coisas:


defesas maníacas, narcisismos inconfessos, cultos imperiais e um
profundo terrorismo acadêmico sustentado por medíocres eruditos .
Estes são os únicos que podem viver longe do terror acadêmico,
acomodando-se à pedagogia do medo e da indiferença. Luthcr King
alertava sobre os perigos dos homens indiferentes, os achava mais
perigosos que os torturadores de turno . De minha parte, acho muito
mais perigoso aos professores que nos educaram para a indiferença,
que nos transmitiram verdades medrosas, travestidas de objetividade, e
que nos mostraram versões das ciências orgulhosas de suas distâncias
políticas.

* * *

Venho participando de muitas reuniões sobre direitos humanos e


democracia, onde notei a alarmante reprodução destes perigosos
hábitos institu ídos . Os militantes dos direitos humanos às vezes
lembram os militares . Perigosamente podem virar militantes-militares .
Perversões de uma militância que se apossa confusamente dos saberes
universitários para recobrir retoricamente o exercício de um poder de
polícia sobre as idéias . Os espaços militantes sempre me pareceram
perigosos na medida em que enclausuraram mortalmente os espaços
políticos da sociedade. Parece-me importante não confundir a dimensão
política das verdades com sua versão militante. Temos que ter uma
desconfiança crescente com relação àqueles que fazem das idéias armas
para um combate i ntolerante.
Vislumbramos uma distância radical : a distância que vai das
incertezas democráticas às convicções totalitárias . As práticas militan­
tes inauguram processos de identificação intra-grupais sustentados em
práticas fechadas que excluem ao "outro".
Não se pode falar dos direitos humanos desde lugares arrogan­
temente fechados . Existe uma paixão militante que exila a paixão pela
vida, toma utopias perfeitas os sonhos militantes e deixa a seus
corifeus p ri sioneiros de seu p róprio discurso. Assim, suas verdades
tomam-se soberbas, excludentes e extremamente intolerantes com as

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diferenças . A paixão pelo seu p róprio discurso impede-lhes o autêntico
exercício de uma prática política que p recisa administrar as contra­
dições de uma p ráxis que o sonho perfeito sempre escamoteia.
A grande maioria dos militantes militarizam seus sonhos, suas
idéias-força, falham sempre ao falar da prática política que amam e
que excede sempre as grosseiras malhas de seus inflexíveis modelos de
futuro.
O s movimentos dos sujeitos na história desmoronam inexora­
velmente os arranj os alienados das racionalizações completas que
sustentam os p rojetos revolucionários . A i rracionalidade da maioria das
práticas militantes passa por sua obcecada p retensão de absoluto. Os
padrões míticos . das ideologias sustentadas no absoluto desprezam
ilusoriamente o valor transformador do inominável e de todas as
sutilezas comprometidas com as aventuras imprevistas dos desejos que
recriam, numa significância infinitamente aberta, a história precedente.

* * *

A vida, como ela é feita, entrechoca-se com as veleidades dos


discursos das m i litâncias inflexíveis e o fracasso das verdades impostas
como lei . No fundo, um "indesej ável" significativo que p recisa ser
confrontado com as práticas de sentido de um discurso do desej o não
alienado. Trata-se de uma opção a favor do aprendizado do imperfeito
e do incerto . Ignorando as incertezas dos desejos e dos pensamentos, as
práticas p olíticas dos direitos humanos ficam reduzidas a um conteúdo
de crenças elaboradas à margem de todos os princíp ios de realidade.
Um mero p retexto inócuo e especulativo que, no fundo, entrava a
renovação do homem e o compromisso de seu corpo com a vida e sua
história .

* * *

Não basta, pois, o trabalho de um discurso militante sobre os


direitos humanos absolutamente comprometidos com a denúncia e com
a lembrança da barbárie e com o terrorismo instituído . Ao contestar a
barbárie "estatal", temos que levar em conta sua estreita vinculação
com a ordem simbólica que nos p roduz como sujeitos institucional-

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mente alienados. Assim, as p ráticas políticas dos direitos humanos,
como empreendimento emancipatório, e como um compromisso do
homem com a autonomia, não podem fugir das tarefas de libertação e
transformação da linguagem que fu ndamenta a heteronomia dos desejos
e a ausência de uma práxis política quotidiana. Enfim, as práticas polí­
ticas dos direitos humanos não podem fugir das tarefas de libertação da
linguagem como p rática de libertação dos desej os .

* * *

Porém, a libertação da linguagem não se alcança num esponta­


neismo militante que promove um certo "oba-oba" da dor, nem na
neu rótica imposição de uma utopia perfeita assentada num vasto saber
sem pluralidades . Contrariamente, ao que se acredita correntemente,
estamos, nos dois supostos, no domínio do estereótipo, uma reiteração
dos espaços s imbólicos totalitários .
Os discu rsos sobre os direitos humanos mu itas vezes fascinam por
carregar o óbvio pontificado, que é sempre um discurso de morte. Ora,
se desej amos o compromisso das práticas políticas dos direitos
humanos com a vida que nos foi subtraída, precisamos sustentá-lo num
saber plural e disseminado que p ratica a vida amparando as incertezas
e "desnatu rando" as verdades .
A p rática p()lítica dos direitos humanos precisa de uma linguagem
sem regências, de uma linguagem que permita a circulação dos sentidos
e garanta, tão só, a pluralidade dos desejos . Este ideário pode ver-se
seriamente ressentido na história de certos debates que fixam papéis e
discursos e que intimidam com uma arrogante imposição de p rocu­
radores de uma causa.

* * *

Não se pode fazer das p ráticas políticas dos direitos humanos um


exercício regrado, e por essa mesma razão, auto abortiva. Não deve­
mos tampouco transfonnar sua p rática política em um saber distante,
afastado de seu valor primordial : ser uma atitude de vida não dissemina
culpas .

16
As práticas de di reitos humanos precisam gerar momentos ines­
'
perados de resistência e transgressão que, muitas vezes, passam pela
subversão das verdades que se ensinam com um certo espírito de
absoluto e mestres enamorados de seus discursos .
Possivelmente a melhor manei ra de introduzir a questão dos
direitos humanos nas p ráticas quotidianas das universidades, passa por
um i rrenunciável compromisso de todos a exercitar nossa criatividade,
nossa capacidade de elaborar coisas imperfeitas e utopias incertas e
eficazes . Talvez precisemos aprender o valor de um passeio ao léu com
as verdades . A vida necessita de leituras múltiplas, como diria
Cortázar, a volta à realidade em oitenta mundos .

* * *

À p rimeira vista pode-se dizer que a esperança básica dos direitos


humanos encontra-se diretamente vinculada ao próprio desenvolvi­
mento do direito . É impossível desconhecer que só se pode ler a história
do direito como a história dos direitos humanos .
A função ética do direito deve ser entendida com uma lenta e
confl itiva realização da idéia ampla dos direitos humanos.
A institu ição imaginária do direito e sua circulação simbólica na
sociedade encontra-se ancorada, no que tem de mais profundo, no ideal
de uma real ização dos direitos humanos .
Para medir as incidências éticas do direito, temos que fugir da
nossa tradicional tendência positivi sta, que nos impulsiona a vincular a
ética e o direito aos sentimentos de obrigação . A experiência ético­
j u rídica coloca o homem numa relação com sua própria ação, que é
maior do que a de uma lei articu lada, numa direção que reivindica uma
falta, constitu indo um ideal de conduta que se situa para além das
declarações c garantias especiais que se instituem em nome da proteção
dos di reitos humanos, vale dizer, para além do que pode apresentar-se
como um sentimento de dever. É assim que creio necessário situar a
dimensão da experiência dos j ur istas em ralação aos direitos humanos .
As circunstâncias quotidianas com os direitos humanos - sem
colocar em segundo plano o sentimento moral do dever - nos impõe
também a necessidade de tratá-los dentro de uma abordagem integral

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do direito, que, transbordando os estreitos marcos do jurisdicismo
ocidental, nos s itue diante de uma perspectiva que o proponha como
um caminho de realização dos processos - solidários e plurais - de
transformação da sociedade .
Tratar o direito a partir da ótica dos direitos humanos é a re­
sultante forçosa de uma concepção do j urídico comprometida com as
p ráticas de autonomia do indivíduo e da sociedade.
Estamos tocando aqu i em uma direção que foi bastante explorada
pelo p rojeto lyriano, preocupado com mostrar o direito como "processo
e modelo de liberdade conscientizado" ou "conscientização libertadora
na e para a p ráxis transformadora do mundo". Isto é, uma p rática
política e s imbólica que instrumentaliza o direito para superação das
opressões.
Eros e psique em sua relação mitológica nos fazem compreender
que o amor e o psiquismo são indissociáveis . O amor e o desejo, o
desej o de amor é uma i nstância da psique que a constitui e a realiza na
tentativa de p reenchimento de uma falta, u ma tendência à síntese do
simbólico e ao desej o do outro: uma aspi ração à realização de corpos e
obras que desej am a imortalidade.
Amor e psiqu ismo se precisam porque este último tem o p rimei ro
como possibilidade de uma carência que se abre caminho para negar-se
metaforicamente como carência pelo s imbólico. Uma energia amorosa
que p recisa da fecundidade do simbólico para esquivar a pulsão de
morte, o desej o mórbido de negar-nos a possibilidade de encobrir o
abi smo pelo amor : o buraco do sexo matemo.
A modernidade encontra-se ameaçada por um processo de
desintegração centrado, em uma neutralização da libido procurada pela
negação de sua realização simbólica.
Estamos indo para um mundo onde os bens cu lturais não teriam
nada a haver com o desej o. Trituração de fronteiras que nos trans­
formam em andróides andrógenos e i rreversivelmente entediados com a
vida, sem nenhuma consciência para vivê-la.
A cultura nos está despreparando para a vida. Isto porque nos está
fazendo esquecer o valor do amor como dimensão do simbólico, como a

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instância de uma p rática de significação que pemüta fazer funcionar o
amor como único antídoto contra a morte .
Uma espécie que não sabe amar encaminha-se para a sua morte.
Paródia de uma humanidade que viverá em uma solidão que lembra o
amanhecer em um cais. O lamentar de um amor que se ignora. A perda
do receptáculo da vida interior.

* * *

Acompanhando Freud, diria que para transformar o estágio atual


do mundo d�vemos apelar para uma imensa "transferência" amorosa.
·Enxergar o p rocesso transferencial como p rática política inaugural de
uma nova fom1a de sociedade e de um homem com outras qualidades .
Uma dialética do suj eito e do obj eto que deve ser incorporado a novas
fom1as que mobi lizem rei v indicações de direitos para o homem: o
direito à transferência amorosa.

Santa Maria, Março d e 1 988

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CAPÍTULO II

DEMOCRACIA, DIREITOS HUMANOS E PÓS­


MODERNIDADE : UMA REFLEXÃO SOCIOLÓGICA A
PARTIR D O P RINCÍPIO DA REALIDAD E D E FREUD

I. ALGUMAS C I RCUNSTÂNCIAS PRELIMINARES

Desej o começar minha intervenção, neste "2° Seminário de


S ociologia Jurídica", pontualizando alguns aspectos do quadro político
e ideológico que inaugu ra a "infâmia discriminatória" da nona década
do século XX. Observo, desde minha condição de latino-americano,
com bastante temor, a "euforia" reinante. Tenho medo dos efeitos
p revis íveis de uma Europa unificada pela magnetizadora proposta de
um capitali smo real de livre mercado (CRLM) . A estrutu ra perversa de
um espaço público confundido com o mercado, pode trazer um (re)
descobrimento Ibero-americano que leve a uma segunda solução final .
A hiper-realização européia do CRL M nos ameaça com uma
discriminação exterm inadora . Maus estigmas de superioridade racial
abrigam novamente na mente dos europeus para amparar os "interesses
permanentes" de sua agressão inconclusa. De Walesa a Le Pen cresce
um sentimento anti-semita que inclui na mencionada "cons­
p iração j u daica", aos indefesos imigrantes que, até há pouco tempo
atrás, contribuíam para criar riqueza com seu trabalho mal remu­
nerado . A política dura contra a imigração aparece como um novo
aspecto da formidável b recha que se vai abrindo entre os países muito

21
pobres e a nova "casa comum européia", ávida por assegurar a seus
trabalhadores ameaçados de desocupação, os postos antigamente
considerados desprezívei s e bons, unicamente para acalmar a miséria
dos imigrantes . Os objetivos máximos do nacionalismo europeu, adap­
tando-se às bárbaras condições de trabalho num mercado refinada­
mente tecnológico, recuperam o fantasma inconformado da intolerância
racista, como expressão melodramática de uma exploração que precisa
ser alucinada. O desenho de um novo mapa racista para a Europa é a
manifestação de um estereotipado sentimento de exclusão, que permite
ocultar uma nova ordem i nternacional disposta à consolidação de um
sindicalismo conservador, e decidido a impor a sorte "biafrana" em
toda África e Ibero-americana.
No momento em que Walesa se manifesta porta-voz do anti­
j u daísmo polaco, está esquecendo que a demagogia anti-semita é um
clássico da direita européia vinculado a uma das mais perigosas
manobras de supressão da política. Todo um conjunto de pontos de
fuga poderão detenninar - num futu ro não muito distante - o fim do
social e a fossilização da realidade. Uma espécie de ameba voraz que
i rá carcomendo os vínculos e as identidades cultu rais, com todas as
conseqüências que se segue disso: a forma b rutal de abolição dos
p roj etos identificatórios, dos p rojetos sociais e políticos, pela cele­
b ração de sua realização simulada.
No meu entender, a paródia ideológica que sustenta a nova
política expancionista do CRLM, prega a coexistência pacífica de um
mercado confundido com o espaço público, para asseg�rar - com uma
retórica menos satirizadora que a empregada por Reagan - a esta­
b i l i zação reacionária do capitalismo. Depois da reunião de cúpula de
Malta, o dia seguinte do imperialismo, começa a mostrar seus novos
pretextos e intenções . Enquanto Gorbachov e Bush põem em ênfase no
fim da guerra fri a, nas questões ecológicas e na luta contra o narco­
tráfíco, a marcha em direção ao l ivre mercado está conseguindo - nas
economias necessitadas - a tomada da estrutura de produção em seu
conj unto (tip icamente no caso argentino). "Não querem - como disse
James Petras - somente a teta para secar o leite, querem a vaca". E
p ara i sto necessitam de um p rograma de extermínio das identidades,

22
desvincular todo sonho de autonomia do atual "aggiornamiento eco­
nômico".
Meu p rognóstico frente a um imperialismo sem Yalta, é que se
incrementaram as condições de deterioração generalizada da vida, a
miséria que não imaginamos, como condição indispensável para uma
ampliação do capital pela amplificação da exploração. A lei do CRLM
não tem concessões, tem exigências para ampliar os espaços da
decomposição social, a desarticulação política, a fragmentação regional
e a decl inação das configurações vinculadas . Depois da onda de
mudança do Leste Europeu, os apetites dos beneficiários com o CRLM
só poderão ser saciados excluindo o homem da história, criando o vazio
político e buscando a hiper-realização de um espaço público sem
vínculos sociai s . O ponto de partida seria a afirmação de um mercado
que se expande ao i nfinito pelo intercâmbio de bens entre homens que
abdicaram de sua possibilidade de s ignificar. O fim da história, como
p roclama Francis Fukuyama . Um final que não se p roduzirá como
culminação feliz do sonho americano, senão como alocada conse­
qüência de uma humanidade que foi expropriada pelo capital .
Na minha condição de latino-americano, vivo diariamente a racio­
nalidade aterradora de um liberalismo de mercado que p recisa dis­
criminar a própria condição humana, para sustentar sua expansão
i limitada. De minha diária convivência com o terror e o aniquilamento,
disfarçados com p romessas do futuro, parece-me que a própria espécie
humana seria o p reço a pagar pelos bens que se consomem.
A ideologia reduzida a uma série de imagens e designações vulga­
res (uma imagologia como disse Kundera) só consegue mobi lizar um
sentimento kitsch, adesões e ódios que favorecem u ma programação
melodramática da existência (o menemismo como expressão meramente
sentimentalóide do peronismo}, que poderia favorecer a projeção ex­
tema do p róprio fracasso existencial . Matar ou endeusar o que é
estrangeiro para não perceber a própria morte . Essa discriminação
radical com que se trata de j ustificar o fim do homem pela realização
i nfernal do mercado. A inquietante irrupção da extrema direita euro­
péia, o anti-semitismo, p ronunciado e escutado, do sindicato Solidarie­
dade da Polônia, o medo e o desprezo contra os imigrantes muçulmanos

23
na Espanha e na França, não são mais que sintomas graves - con­
densadores - do poder imagológico, que vê no sentimento pelo outro a
seu pior inimigo. Desde Fukuyama a Vargas Llosa, os corifeus do
CRLM querem reduzir a democracia à letra de um bolero para acabar
com qualquer pretensão de perturbação. Sabem que o CRLM necessita
que os povos, as sociedades e os homens retrocedam em direção aos
nacionalismos de obscuras lealdades e medíocres reivindicações .
A aliança de identidades é nefasta para sua atual fase expan­
cionista. Agora precisa-se de astutas, ávidas e ressentidas réplicas
humanas . Na era de uma cultura de tecnologias sofisticadas toma-se
imprescindível uma nova fonna de disciplinação social, baseado na
produção de rancorosos autômatos . Personalidades culturalmente
estilhaçadas, que originarão respostas perversas frente aos que se
recordam sua p rópria discriminação.
Nós, latino-americanos, estamos sendo convidados para assistir ao
enterro do socialismo, sem dannos a oportunidade de poder dizer que
se está transportando o caixão de um sósia. O socialismo que so­
nhamos foi confundido com o estalinismo burocrático do Leste euro­
peu . Atingidos desde o descobrimento da América, seguimos esperando
ser reconhecidos em nossa alteralidade. Todavia, decidimos a fazer o
caminho ao andar, muitos latino-americanos esperamos superar nossas
carências sem renunciar à identidade, sem renunciar ao desejo de lutar
por uma sociedade fundada na autonomia. O sentimento libertário,
todavia, está p resente no novo mundo com a convicção de que ele só
poderá desenvolver-se através de homens comprometidos com seu
próprio reconhecimento, solidários em sua luta contra uma solução
final para a espécie . Talvez esse sej a o sentido do socialismo que não
se enterrou .
Em resumo, o espetáculo civilizatório é cada dia mais brilhante,
artificial e afetivamente indiferente. A transmodemidade, como hiper­
realização da modernidade, nos importuna com uma sensibilidade mar­
cada por certezas que apontam ao mesmo registro delirante do psi­
cótico . Uma minuciosa mutilação da atividade do pensamento revela
uma alannante tendência à supressão do homem enquanto significado .
Os espaços de elaboração do mundo interno, minados por ficções que

24
se multip l icam, em meio de emoções sumánas, que convertem os
corpos em descu l pas . O CRLM, valendo-se de tudo isto para deixar­
nos em um "estado de alienação violenta" que permita celeb rar o fim
do social, a dest nt ição da pol ítica c o '·consumo de uns pelos outros".
O fi m do amor para o triunfo da explosão tecnológica e suas
necess idades de mercado .

II. A SOCIOL OGIA A PARTIR DE FRE U D

As pontualizações anteriores deixaram-me uma forte convicção


sobre a importância da teoria psicoanalítica na interrogação de uma
experiência quotidiana, condicionada por um "estado de alienação
violenta". P reocupado, nos últimos anos, pela radicalização da demo­
cracia, dos direitos humanos c o mal-estar ecológico, cheguei a con­
clusão de que não poderia avançar na problematização destas questões,
sem a aj uda da meta-psicologia freudiana. Tendo uma aprendida
predileção pela sociologia, senti-me necessitado de uma orientação
psicoanalítica para prolongar minhas reflexões sociológicas. Algumas
minuciosas leitu ras de Freud, confirmaram minha intu ição sobre a
importância de uma psicanál ise do vínculo social, como forma de
abordagem de uma subj etividade atravessada pelos conflitos . Desta
fom1a, iniciei uma investigação sobre as configurações democráticas e
a prática política dos d i re itos humanos que estaria centrada na
reivindicação do predomínio cultural do princípio da realidade (que
Frcud explícita desde sua meta-psicologia) . D ito de outra fonna,
interesso-me por mostrar como a problemática da democracia e dos
direitos humanos se encontra pré-determinada pelo sentimento de
alteridade. Um sentimento pelo outro que precisa ser recuperado como
limite ético e condição epistemológica.
Em primeiro lugar, entendi que para escapar da armadilha das
abstrações n i i l i stas, que sempre aparecem nas discussões sobre a
democracia e os direitos humanos, p reci sava de uma sociologia que
teria que ser recondicionada desde uma perspectiva psico-analítica, é
dizer, desde um ponto de vista que tome como consideração prioritária

25
as postçoes identificatórias (do sujeito) que vão surgindo do reco­
nhecimento do outro como alteridade constitutiva (de nossas diferenças
e nossa unicidade).
Estou convencido que Freud inaugurou, ou deixou bem insinuado,
o caminho para uma sociologia e uma ciência social que tomaria como
seu ponto fundamental a noção de alteralidade; as modalidades espe­
cíficas com as que entramos em contato com outro ser, aceitando vê-lo
em sua singularidade, diferenças, potencial conflitivo e como modelo de
comportamento. Sobretudo, Freud sugere o abandono de uma socio­
logia de caracteres rígidos que coloca o. homem em uma posição de
anonimato no i nterior de suas categorias . Em um certo sentido, Freud
insinua que uma sociologia só teria razão de existir se pudesse trans­
formar em u ma psicossociologia das relações sociais, que não negu e
aos grupos e indivíduos reais em seus conflitos e enfrcntamentos.
Para combater a dominação pelo niilismo, que a transmodemidade
está impondo, creio importante, como possibilidade, a recuperação da
historicidade freudiana, o resgate da singularidade que propicia a
psicoanálise.
A partir de Freud pode surgir uma postura para a interpretação
sociológica, entendida como um p rocesso de reelaboração, que ajuda a
liberação de nosso pensamento, nos investimentos do "eu" que
favo recem os espaços potencializadores da identidade . Não consigo
pensar em uma· forma sociológica que não sirva como ajuda para
superar as formas de uma cultura que nos submete, deixando-nos
hipnotizados no interior de uma i nfância artificial. Uma fantas­
matização obrigada, que relaciona a realidade psíquica com um m u ndo
externo de s imulações tendentes à supressão do p rojeto identificatório,
como capacidade de significar. Assim, penso a psicoanálise como um
método que permite perceber as interações dinâmicas dos componentes
da estrutura social, que fazem de cada sujeito o lugar de onde se fazem
e se desfazem as significações .
A sociologia, com o apoio de alguns aspectos do método psico­
analítico, pode servir para responder a um interrogante que se toma
cada dia mais angustiante: como se podem criar as condições para a
formação de uma sociedade satisfeita, democrática, apesar da inevi-

26
tabilidade da violência e da alienação? É dizer como aliviarmos da
repressão e do desej o de não desejo, que p ressupõe desde muito tempo
a conformação da sociedade.
O pensamento psicoanalítico nos mostra como os problemas mais
fundamentais da sociedade se inscrevem, c dependem, do corpo e do
psiquismo. As configurações afetivas aparecem, assim, como desafio
para um trabalho de interpretação que permita o papel de desej o na
detem1inação da significação e na configu ração dos vínculos alienados
ou autônomos .
Em um certo sentido, poderia sustentar-se que a experiência
psicoanalítica brinda subsídios semiológicos para situar o amor como
di111e nsão política. Isto, na: medida em que privilegiaria a com­
p lexidade do sentimento de alteralidade (pelo outro), é dizer, do p ri­
vilégio concedido a uma modalidade do destino de p razer que funcione
como substrato de um p rojeto identificatório, fundado na introj eção
criativa das potencialidades s imbolizantes do outro . A autonomia
individual e coletiva buscada através dos vínculos criativos com o
outro.
Colocando-me num plano de ampla generalidade, diria que a
preocupação básica da minha investigação, passa pela reflexão sobre
as condições de possibilidade e desenvolvimento de uma forma de
sociedade, onde a autonomia s ej a seu sentido ou destino. C reio que esta
busca constitui o ponto medular das práticas políticas dos direitos
humanos, da democracia como sentido de vínculo social e da ecologia
como d imensão ética de uma utopia que se aceita em sua historicidade.
Trato de realizar uma investigação sobre o futuro da democracia e
dos direitos humanos desde o interior de uma s ociedade que está
situada numa g rande encruzilhada. Uma cultura que substituiu a
ideologia pela hiper-realização das utopias, confundindo a autonomia
com um espetáculo publicitário e um aparente bem-estar de consumo.
Enfim, uma nova forma de sensibilidade (transmodema), com homens
perdidos entre objetos e signos sem configurações , com afetos comu­
nicacionais que negam o p siquismo como p rodutor de sentidos
(eliminando totalmente a capacidade de estabelecer uma relação entre
desej o e linguagem) . Indubitavelmente, em termos freudianos, a volta

27
ao estado mítico da horda selvagem . Este é um estado de onde não
existe a função simbólica do padre (de linguagem), nem a aliança
fraterna e os determinantes da culpa. Uma nova impossibilidade,
portanto, para estabelecer a distinção entre natureza e cultura.

111. A DEMOCRACIA E OS DIREITOS HUMANOS


COMO PROVOCAÇÃO ANALÍTICA

Estudando a democracia e os direitos humanos desde a meta­


psicologia freudiana chega-se a conclusão, de que o principal desafio
que surge de suas interrogações passa pela p rópria condição humana, é
dizer, o direito ao futuro da própria espécie. A defesa, diria, diante do
perigo da discriminação da espécie como um "eu significante".
A caracterização meta-psicológica da democracia, a situa como
uma tendência a uma "atitude transferencial", que nos colocaria em
contato com nossas potencialidades de renovação psíquica e de cria­
tividade de pensamento . Uma p rovocação analítica que faria compre­
ender a riqueza potencializadora que desencadeia a incompletude
enquanto sentido.
A democracia entendida como discurso tran�ferencial, ajudaria ao
entendimento de uma subj etividade ameaçada em sua autonomia por
seus fantasmas mal trabalhados . A submissão a uma forma discursiva
totalitária por uma afetividade mal resolvida.
Estou falando do centro nevrálgico do vínculo transferencial, de
suas possibilidades de mostrar, ao final de seu percurso, as frustrações
derivadas do nosso discurso de amor para um outro impossível . De um
discurso de amor perdido na negação do princíp io da realidade.
Em meio a uma harmonia cultural excedida em sua imobilidade, o
homem p recisa conservar seu p rojeto identificatório, intentando
quotidianas atitudes transferenciais que situem ao outro no lugar da
significação.
A democracia entendida como discurso transferencial, revela o
valor emancipatório da alteralidade, mostra um sentido da autonomia
como inscrição dos ideais de temporalidade e superação dos condi-

28
cionantes da alienação. A autonomia como possibilidade de investir no
tempo e na diferença.
Vivemos u m tempo de falsificações consentidas, de transparências
simuladas . Dentro deste contexto, a democracia aparece como uma
espécie de identidade social publicitada. De abstrata, a democracia, vai
se tornando figu rativa, expressão encenada de uma participação simu­
lada. Existe u m look democrático que equ ivale a materialização ótica
de um processo mágico. Assim, a democracia se expande como um
campo magnético, convertido no espectro de sua própria esperança.
Refiro-me ao funcionamento i lusório da democracia, que não pode
ser connmdido com seu papel na formação dos ideais emancipatórios
de uma comunidade.. Neste último sentido, a democracia é uma
dimensão semiológica da política que nunca pode ser expressão de u m
espanto diante do novo, nem d e u m a fuga d a temporalidade e das
diferenças . O espanto que não permite ao "eu" aceitar-se no conflito,
transportando-se para um campo de soluções mágicas .
Tomando a F reud como um suporte distante destas reflexões pode
vincular-se o sentido do totalitarismo e da democracia aos sentidos do
prazer. Desta maneira, o totalitarismo seria o sentido de uma forma de
sociedade de onde se torna inútil a criatividade e se p roduz um esta­
do de (des)esperança. A democracia, correlativamente, seria o denomi­
nador comum dos diversos processos que pemlitem o desenvolvimento
de uma estrutura emocionalmente madura da sociedade. Uma inscrição
plena do homem na vida. Em poucas palavras, ela depende de uma
potência de amor que faci lite o trabalho de transforn1ação do homem
sobre si mesmo.
Estou levando em consideração as enormes possibilidades da
alteral idade afetiva para produzir uma compreensão não alienada do
mundo, para poder i ntroduzir a potência dos sentimentos entre os p ro­
dutos de uma cultu ra que se alimenta de consumo ilusório do prometido
c esperado .
A democracia que fale da alteralidade afetiva, é lícito concluir,
encontra seu sentido social na tentativa de evitar a morte do pen­
samento e a destru ição de uma sociedade que. procurando u ma
harn1onia absoluta, volta-se violenta e discriminatória.

29
Os discursos sobre os direitos humanos muitas vezes fascinam por
expressar o óbvio pontificado, que é sempre um discurso de morte.
Participei de inúmeras reuniões sobre os direitos humanos, onde notei
uma alam1ante reprodução de perigosos hábitos institu ídos . Um dis­
curso militante propenso às identificações grupais sustentadas em
práticas fechadas que excluem ao outro . A paixão por seu próprio
discurso lhes impede o autêntico exercício de uma prática política que
precisa aceitar as diferenças . Assim, a maioria dos militantes na causa
dos direitos humanos esquece que sua luta está comprometida com uma
opção a favor do aprendizado do imperfeito e do incerto. Ignorando as
incertezas do pensamento, as p ráticas dos direitos humanos acabam
reduzidas a um conteúdo de crenças elaboradas à margem do princípio
de realidade. Um mero p retexto, que, no fundo, trava a renovação do
homem e o compromisso de seu corpo com a vida.
Os direitos humanos, como empreendimento emancipatório, como
um compromisso do homem com a autonomia, não pode escapar das
tarefas de transfom1ação da linguagem como prática de libertação do
desejo.
A modernidade se encontra ameaçada por um processo de desin­
tegração do homem centrado numa neutralização da libido como
realização significativa. Nestas circunstâncias, os militantes dos
direitos humanos, como forças de realização histórica da autonomia,
precisam abandonar sua linguagem carregada de ideais inflexíveis,
reivindicando o direito à transferência amorosa .
Assim, o s direitos humanos surgiriam como práticas políticas
tendentes à p reservação do homem pela recuperação de uma capa­
cidade de auto-significar-se através do outro. Uma batalha que também
servi ria para a recuperação do espaço social e político, partindo da
forma mais íntima e privada de construção da identidade: o amor como
sentimento criativo e solidário pelo outro.

Oíicti, 2 de abril de 1 990

30
CAPÍTULO IH

ECO-ÉTICA, D IREITOS HUMANOS E


PÓS-MODERNIDADE: PRELÚDIOS PARA
UMA SEMIOLOGIA ECOLÓGICA

Tentarei com este b reve artigo deixar assentada, de forma esque­


mática, minha posição em relação ao papel que a ética e a psicanálise
devem cumprir diante das m udanças substanciais que se estão p ro­
duzindo na cultura deste fim de século, ruptura que está sendo deno­
minada pós-modernidade.
De forma geral, pretendo fazer uma apreciação crítica do futuro
do homem e sua sociedade: u m sujeito cultural sem mal-estar e sem
perigo de extermínio. Neste sentido, me interessa salientar a postura
desmesu rada de certas formas do saber que ignoram seus compro­
missos com a continuidade da vida. Em última instância, trata-se de
compreender as transformações, as resistências e as transgressões que
precisam ser realizadas para garanti r o direito ao filluro da espécie
humana.
Nesta ordem de idéias p rocurarei destacar, especialmente, as
novas dimensões que precisam ser impressas nas p ráticas políticas dos
direitos humanos, para comprometê-los com a p reservação da
existência e a extirpação de sociedade que acelera o invisível corte da
pulsão da morte.

31
D istanciando-me da concepção jurídico-liberal dos direitos huma­
nos, que os enxergava como uma declaração c defesa de princípios,
tentarei redefinir seu sentido, em direção a uma prática que aponte para
a formação de um novo homem c de uma diferente fom1a de
organização da sociedade . Por isso, prefiro entendê-los como momentos
ético-pol íticos de proteção do desejo como p rodutor da cu ltura, e não
somente um meio de impedir o abuso do poder estatal .
Diante do perigo da produção institucional de uma infra-espécie
humana, p rofundamente condicionada para o intercâmbio de desper­
dícios, a p rática política dos direitos humanos tem que adquirir uma
dimensão de resistência que ultrapasse a tradicional luta pela aquisição
de um d i reito irrestrito à cidadania. Tenho a sensação de que a pós­
modernidade dos direitos humanos esteja forçosamente exposta a u m
trabalho d e superação da "miséria psicológica das massas". Minha tese
consiste em afinnar os direitos humanos como capacidade de reali­
zação de uma ética dos desejos . Ela serviria para a matu ridade psico­
lógica do homem e a formação de uma consciência existencial
transformadora . Estou me referindo a um esforço obstinado para
salvar a condição humana, impondo o bem-estar na civil ização.
Uma reflexão mai s p rofunda me permitiria mostrar a íntima
conexão que existe entre a produção simból ica e a preservação do
homem como espécie. A função simbólica permite um vínculo
discriminado com o Llmndo que cerca os conteúdos psíquicos, forta­
lecendo atitudes com tendência a tornar o indivíduo independente do
destino. Trata-se, com efeito, de consegu ir formas simbólicas que pos­
sam garantir as semelhanças que existem entre os processos de
civilização e o desenvolvimento libidinoso dos indivíduos . É importante
ressaltar que as sociedades tecno-informatizadas tendem a uma
supressão da satisfação simbólica da pulsão de vida, levando o homem
para um estado de regressão indiscriminado com relação à massa geral
de sensações .
Estamos diante da ameaça de uma produção institucional de ho­
mens ps icologicamente pulverizados por um excedente de civilização,
um excesso no controle da vida comunitária e uma negação da carga
s i mból ica da lib ido.

32
O homem está 4meaçado em sua capacidade como produtor das
significações . Confesso que considero esta ameaça u ma das maiores
causas da possível destru ição de nossa espécie.
Vivemos em uma sociedade que apresenta u m inquietante quadro
de desagregação simbólica. A cultu ra começa a ignorar a Eros como
produtor significativo, desaloj ando de nossa estrutura psicológica a
possibilidade de recobrir, pelo sentido, o "caos inaugural". Isto põe em
perigo a totalidade da humanidade, que sob a influência de uma
sensibilidade informatizadora, caminhará para um au tismo genera­
lizado. Um estado de ps icose coletiva, uma nova modalidade de mal­
estar na cultura, p rovocado agora pelo efeito psicótico que traz consigo
a perda da libido como condição de significação. Um "segundo eu",
exterior à estrutura psíquica, mudou o espaço que estará além do
"nome do pai" e da ordem da representação. Um território de expecta­
tivas informáticas que poderão nos converter em autistas informa­
tizados .
Cabe supor que a transição da modernidade para um tipo de socie­
dade altamente caracterizada pela informação do cotidiano, provocará
uma cultu ra do vazio existencial. Assim, iniciar-se-á uma era de
desmoiivação afetiva generalizada, de apatia amorosa . A indiferença a
serviço do lucro, a tecnologia e o exercício totalitário do poder.
A cultura pós-moderna põe em risco a racionalidade sedimentada
nos afetos, impedindo que o homem possa conj ugar a verdade sentida
pelo desejo, com a verdade expressa pela tecnologia. Desta forma, a
pós-modernidade pode deixar o indivíduo sem forças para iniciar o
p rocesso de discriminação da realidade. O exterior perderia toda a
possibilidade de revelar-se no interior, decretando o fim da ideologia,
pela imobilidade de mundo interior.
Na pós-modernidade o homem pode converter-se em um andróide,
na medida em que desaparece como local de um intercâmbio ativo com
o mundo exterior e com os demais homens . Intercâmbio que constitui o
funcionamento de seu Eu .
Poderá existi r no futuro uma totalidade exterior absolutamente
alheia ao Eu . Uma distância exterior que matará o Eu, impedindo seu
prolongamento simbólico com o mundo.

33
Estaremos, assim, imersos em uma cultura armada além da
ideologia, além de toda diferenciação ilusória. Uma cultura que negará
a aparição de u m campo simbólico no corpo. Teremos, assim, um Eu
impedido no seu processo de adequação com a realidade, impos­
sibilitado de realizar o combate real contra o exterior repressivo.
Na pós-modernidade não existirá nenhum acesso à realidade a
partir do Eu . Isto é cru cial como uma ameaça à espécie. Fundamen­
talmente, as p ráticas políticas dos direitos humanos devem proteger-nos
diante desta agressão convertida em castração absoluta.
Então, a conclusão fundamental que defendo: o sentido pós-mo­
demo dos direitos humanos passa, em última instância, por um espaço
vital de luta pela preservação da economia libidinal como critério de
diferenciação narcisista do Eu . Desta forma, o conceito dos direitos
humanos pode ser redimensionado, mostrando-se como uma plura­
lidade fragmentária de p ráticas destinadas a cumprir uma função de
preservação terapêutica do Eu .
Desta vez, os direitos humanos aparecem como um lugar de
articulação dos componentes ético-políticos de uma prática psicoa­
nalítica destinada à construção de uma comunidade de homens autô­
nomos e dialeticamente integrados às formas em que historicamente
evoluiu a cultura. Este enfoque recoloca os direitos humanos como um
conglomerado complexo de tarefas e lutas comprometidas com o
movimento c riador da vida. Uma programa de ação, proposto desde o
íntimo do ideal do Eu, como o desej o de conservação da única forma de
humanidade e de felicidade possíveL
A relação entre direitos humanos e psicanálise salienta a possibi­
lidade de evitar, por seu i ntermédio, que as formas do poder social e os
vínculos entre os homens transformem-se em um destino tão iniludível
como o sofrimento diante de nossa própria morte. O social depende de
nós . Para isso, devemos considerar a idéia exposta por Winnicott, de
que o que outorga sentido à vida é a possibilidade de aprender a
realidade criativamente.
A inibição desta capacidade conduzirá à falta de autonomia inte­
rior, a um estado de autismo generalizado e a uma sucessão de micro­
suicídios político-afetivos .

34
A primeira exigência para se conceber com êxito uma política pós­
moderna dos di reitos humanos res ide em substitui r o ponto de vista
jurídico liberal que até agora p revaleceu, pela idéia de que suas
modalidades operacionais necessitam caminhar transformadoramente,
para poder inscrever na realidade o desejo insatisfeito e o prazer
histórico.
A cultu ra deste fim de milênio, mais que nenhuma outra forma
passada, nega-se a si mesma na depreciação da vida que deveria
organizar e garantir . Trata-se de uma cultura que já não serve à pulsão
de vida e ameaça solapar definitivamente o resto de felicidade acessível
para a humanidade. O grave perigo que se corre é o da substituição de
um tempo de neu roses por outro de indiferenças letai s .
Deste modo estamos diante d e um grande desafio, quase que o
último. Temos de inventar uma nova forma de cultu ra, em que a
presença do prazer, que a vida exige, seja mantido na ciência, na
técnica e nas artes, não deixando de exaltar também as possibilidades
do ser humano na criação transformadora da realidade, de sua estrutura
psíquica e de sua relação com os outros .
O sentido da cultu ra estaria assim fundamentado em uma ética da
preservação da existência, que é muito mais do que uma ordem de
responsabil idade. Dir-se-ía que é uma ética ancorada em uma dimensão
psicológica que não p recisa apelar para uma consciência hipostasiada,
nem para u ma construção de nenhuma promessa ilusória.
O resultado final há de ser o estabelecimento de uma forma
democrática de sociedade, na qual se permita uma relação entre a lei, o
saber e o poder, que não prive as condições de possibilidade de uma
cultura de bem-estar, do mínimo de fel icidade a que o homem pode ter
acesso como supressão da insatisfação.
Na pós-modernidade encontram-se transfonnaçõcs culturais que
negam o sentido da cultura sob a aparência de tê-lo satisfeito.
Nenhuma cultu ra realiza seu sentido aniqu ilando a satisfação indivi­
dual da pulsão de l iberdade, destruindo os elementos básicos que fun­
damentam a p rodução de nossa subj etividade .
Por todas estas razões afirmo a necessidade de procurar um
caráter novo para a p roblemática dos direitos humanos, visceralmente

35
centralizada na preservação da realidade interior do homem e na
possibilidade de que possamos colocar nosso corpo no mundo para
transformá-lo na busca do bem-estar. O p rolongamento da corporei­
dade do homem na racionalidade da técnica é um abismo agudo na
cultu ra pós-moderna, que tem um papel decisivo no fortalecimento de
uma sociedade de guardiães totalitários, homens sem desejos nem
capacidade para fazer fluir a linguagem por seus corpos . Em suma,
uma cultura que caminha para a formação de um conglomerado de
andróides .
Deve ser destacado, de maneira clara, que o germe da dissociação
da espécie encontra-se no tipo de cultura que consumimos, delirando
por um p rogresso tecnológico que nos coloca diante de uma realidade
sem afetos, diante de significações divorciadas de toda a compreensão
da história e do sentido do homem dentro dela. Estamos inaugurando
uma era civilizatória que exclui a maturação normal do indivíduo como
condição geral da cultura. Parte da tentativa de compreender o mal­
estar da cultura pós-moderna passa pela detectação de um processo que
acentua ao extremo os riscos de uma regressão a uma situação similar
à família primitiva descrita por Freud. Poderíamos nos deparar
condenados a uma substituição da "aliança fraterna" por uma nova
forma de horda selvagem. Uma humanidade condenada outra vez ao
domínio de um pai-chefe de poder ilimitado. O campo da consciência e
das relações pensadas e reguladas dos homens, separada do
fundamento afetivo que lhes deu uma origem simbólica. Dessa forma,
estamos sob a ameaça de ficar outra vez sem um fundamento do que
constitua a significação humana na história. A significação social da
busca do prazer e da felicidade poderia estar radicalmente negada na
pós-modernidade pela emergência do que seria chamado de u ma "horda
tecnológica" . Ela nos reduziria a sujeitos a-simbólicos, cortando,
principalmente, a relação entre o amor e a cultura. O homem não
disporia mais de modelos para a solução afetiva. A lei do pai ancestral
será somente reconhecida como absoluta a serviço do sistema da
produção tecnológica, quer dizer, s íntese não significativa, senão me­
ramente instrumental .

36
Podemos estar à beira de uma delicada possibilidade de alienar um
corpo sem amor, a um s istema em cadeia de repressões ao serviço de
uma tecnologia sem nenhum p ropósito humanista.
Assim, os direitos humanos estão comprometidos com o vital
problema ético de integrar o indivíduo no mundo e ajudá-lo a constru i r
uma racionalidade interior que o preserve como singularidade madura
diante dos simulacros da racionalidade cultural . Pontos p recisos onde
se é ob rigado a intervir para desfazer as aparências castradoras que,
desde a consciência instituída, pem1ite negar-nos a partir de nossa
própria interioridade.

li

Estabelecida a necessidade de contar com uma ética de preserva­


ção da existência, interesso-me em situá-lo como uma dimensão
simbólica emancipadora. Ela marcaria o conflito engendrado entre a
produção institucional dos corpos e a razão repressora.
A meu ver, é necessário contar com uma ética preservacionista da
existência, quando o sentido da emancipação deixe de estar aparentado
com o perfil de uma concepção perfeita do mundo . O desejo de um
mundo melhor está longe de ser desenvolvido se o vinculamos a versões
éticas apriorísticas e a códigos morais, muito mais p reocupados pela
repressão que pela formação autônoma dos indivíduos . Soluções
aparentes que impedem, no fundo, o surgimento de uma consciência do
direito a uma vida verdadeiramente humana, sem s imulacros de
dignidade e com força para que os processos de transformação do
mundo passem por nosso p róprio corpo. Certamente não se pode fal ar
de uma ética da p reservação da existência sem ver que o sentido de sua
solução está na tentativa de formação de um novo modelo de homem .
Um homem apto para desfazer a annadilha que está presente em cada
subj etividade institucionalmente produzida.
Neste trânsito para uma nova significação do homem, existem
questões políticas e epi stemológicas que precisam ser destacadas .

37
Para defender-nos da cultura, que teria a sua verdadeira razão de
existir na defesa do homem contra a natureza e as frustrações do
desejo, é imprescindível contar com uma forma de sociedade que
encontre na democracia a organização da forma social . Ela estaria
comprometida com todas as práticas de autonomia que surjam como
uma resistência. Isto é, de uma ética preocupada com os processos
emancipatórios do homem e da sociedade, assim como das novas
medidas que possam i maginar-se para garantir as condições de uma
existência digna e plena. Seria uma forma de sociedade que levaria em
consideração todos os elementos que introduziram a novidade na
cultura.
Não tenho a menor dúvida de que para consolidar uma forma
social democrática é necessário elaborar um espaço transicional onde
amor e trabalho se encontrem na unidade de uma relação fraterna.
Desprezando todas as certezas acumuladas, talvez o novo sej a a
descoberta de que o homem não tem outro compromisso existencial a
não ser o de produzir, pelas afeições, o sentido da vida, inaugu rando a
felicidade com base na dignidade e na solidariedade social .
O mundo assiste, j unto à ameaça de uma hecatombe, à estru ­
turação de novas lutas que redefinem sua esperança de liberdade e
autonomia. O magma de crenças, utopias e princípios da modernidade
vai se desmanchando . Muitos se perdem na decomposição das grandes
convicções, outros apostam, com renovados brios, em uma atitude nova
diante da vida. Apostam em um novo sentido do novo, além das ino­
cências, das utopias da modernidade. Um sentido que responde a novas
forn1as de sensibilidade e autonomia.
De alguma fonna poder-se-ia dizer que estamos socialmente em
busca de um novo sentido para a democracia, que dependerá, em última
instância, de nossa possibilidade de devorar o pai todo-poderoso que
impõe a lei da horda tecnológica. Estaríamos à espera da democracia
entendida como incessante tentativa de encontrar uma nova signifi­
cação da fraternidade social .
Quanto às verdades estabelecidas pela ciência, temos que pergun­
tar-nos seriamente se elas servem para o estabelecimento de um novo
pacto fraternal . À primeira vista a resposta parece negativa. Isto, me

38
parece, porque creio que não conseguiu incluir em seus discursos de
verdade a dimensão vital em que está em jogo o ser do homem. Assim,
instala-se uma realidade convencional que despreza a estrutu ra
psicológica dos indivíduos como núcleo de verdade histórica.
Uma nova forma de sociedade precisa contar também com uma
nova forma de saber, que se abra para o espaço psíquico dos desej os
insatisfeitos e assuma o homem como algo muito maior que um mero
porta-voz anônimo de u m p resumido discurso obj etivo .

Brasília, fevereiro de 1989

39
CAPÍTULO IV

INCIDENTES DE TERNURA : b reve p rel ú d i o p a ra u m


d i s c u rs o s o b re o e n s i n o j u ríd i c o , os d i reitos h u m a n o s e a
d e m o c r a c i a n o s tempos do pós-total itaris m o

I . E N SINO JURÍDICO : O FRACASSO D E U M S ONHO

P rovocado c estremecido com as incertezas da escrita, manifesto


meu bntmoso desej o de elaborar alguns curtos fragmentos sobre as
condições possíveis de um ensino j ur í dico como prática preventiva dos
processos de pós-alienação. O que se segue depende da idéia de haver
uma ligação fu ndamental entre o ensino jurídico c as dimensões
simbólicas dos direitos humanos . Quem quer que se disponha a abrir
um diálogo sobre esta vinculação deve tomar-se consciente da neces­
sidade de recuperar, na conj u nção de seus interrogantes, os fermentos
de um questionamento geral dos registros semânticos que direcionam,
na ordem social atual, os processos tenninais da alienação .
D isponho-me a dizer algumas coisas do ensino jurídico, reconhecen­
do-o previamente como uma prática política dos direitos humanos. Assim,
proponho um movimento inverso: desobrigo-me do vão desejo generalizado
de encontrar um método apropriado para ensinar a "álgebra moral" dos
direitos do homem defendendo a possibilidade de ver a totalidade do ensino
do direito como uma prática política pelos direitos do homem .
Feita de uma imensa confu são sonhadora, a fala dos p rofessores
de direito não revela seus verdadeiros fins Apresenta-se como uma

41
eficiente discurs ividade técnica que escamoteia o duvidoso êxito de sua
proposta expl ícita.
Amparado numa tradição de utopias fracassadas, o professor de
Direito encena seu amor vencido pela lei, em nome de wn conj unto atro­
fiado de valores . Empolgado de fracassos, organiza um simulacro dis­
cursivo que empresta um princípio soberano de enunciação para guardar
segredo de wna submissão sublimada ao poder. Estremecimentos melan­
cólicos de geometrias sonhadas perfeitas para submeter o poder à lei; como
utopia vencida que se mantém como esperança de luta, palavra lírica e
moral que arrasta o ensino jurídico em direção a uma difusa esperança
numa frustração, a esperança na horda da justiça.
Condenado ao u niversal, o discurso docente do Direito ignora suas
faltas políticas e existenciais, oferecendo-nos o espetáculo de uma luta
sem ardores e mu itas culpas .
Como mortos que falam da vida, o saber tradicional do Direito
mostra suas fantasias perfeitas na cumplicidade cega de uma l ingua­
gem sem ousadias, enganosamente cristalina, que escamoteia a presen­
ça subterrânea de uma "tecnologia da alienação". Utopi as fantasiadas
de si mesmas que explicam com razões consumidas pela história, novas
fonnas de legitimação das práticas ilícitas do Estado.
Estamos diante de um imaginário estéril e em dificuldades para
explicar como os mesmos conceitos, que serviam para amparar a
subordinação do Estado à lei, agora serve para legitimar os aberrantes
desvios do Estado.
O p oder está adquirindo novas roupagens . O sentido da atual
forma de sociedade p recisa começar a ser pensado como pós-totalitário .
Urge encontrar p ráticas políticas mutantes e encaminhadas para a
legitimação das diferenças . Entretanto, o saber jurídico permanece
sempre igual a si mesmo, ens inado e encenado como uma situação p ré­
hipnótica (que nos p repara para o p ior) . Somos fascinados por esse
discurso b rilhante que nos deixa moles como um gato adom1ecido e
sem condições de reagir contra formas de sociedade cada vez mais
despolitizadas e desumanizadas .
Na sala de aula, estudantes e professores estimulam-se recipro­
camente p ara instalar-se confortavelmente na servidão das vozes insti-

42
tuídas . Ap rendem a operar com uma ordem simbólica que unicamente
reconhece máscaras para negar as ressonâncias da autonomia, para
assegu rar a i nscrição do poder na l inguagem e para reforçar a
opacidade da dominação .
É preciso reconhecer que o ensino do direito quase nunca se situa
como resposta superadora da opressão instituída e, muito menos, como
atitude antecipatória do devir totalitário e do negro futuro da condição
humana.
Assim, meu desejo centra-se em um te:-..io que o convida a equacionar
um e:-..ienso repertório de desencantos, que o convoca a interrogar a crise
-
política do ensino jurídico, sua falta de caráter para enfrentar os desafios de
uma fomm de sociedade prestes a depreciar a ideologia para dominar pela
eficácia tecnológica e as trivialidades emotivas: grandes maiorias absolu­
tamente p rivadas de informação, convertidas em "andróides semiológicos"
por total incapacidade de leitura do mundo.
* * *

P roponho-me montar u m texto de certo modo escatológico para


propor uma crítica edificada com vista a fazer estalar a "fatalidade" de
um p roj eto de dominação sem condicionamentos ideológicos, isto é, o
gregarismo falsificado de existências que se repetem, um espaço sim­
bólico que era, de alguma maneira, também sua p ropriedade. Sub-ho­
mens que se reproduzem des info rmados em meio a um espaço social
obscenamente potencializado e controlado pelas informações . A volta
tecnológica às cavernas como conseqüência de u ma fom1a de socie­
dade pós-totalitária que nega ao homem sua condição de "animal sim­
bólico".
* * *

Para concluir estas poucas observações introdutórias, permita-me


lembrar que ainda tudo é remediável, o tempo da resistência e da trans­
gressão é conceb ível . Acho que os diferentes sujeitos do oficio jurídico
têm muito a dizer para que todos possamos tomar nossas distâncias .
Eles podem aj udar o despertar da hipnose, impedir que desabemos
nesse imenso buraco negro do imaginário pós-alienado. Penso nas
possibilidades de mutação, nas viradas de situações inesperadas e nas
condições insuspeitas de conservação do espaço político.

43
* * *

Ora, certamente as possibilidades de contar com sujeitos mutantes


do oficio j u rídico dependem de uma substancial alteração das condições
do ensino j u rídico .
A política, colocada n a origem, tem um valor d e método, dela
parte o caminho inicial do ensino como fulgor instituinte, como oportu­
nidade para que o homem possa reencontrar seus vínculos perdidos
com a vida.
Postu ras singulares frente à vida, jogos de criatividade indivi­ I

I
dualizados, incertezas datadas, valores não resumidos pela moral de
uma época, demarcam uma travessia pol ítica para o ensino j ur ídico que
faz de seu sentido uma fónnula pennanentemente renovável antes que
um espelho ideal da humanidade.

I
Enfim, estamos necessitando retroagi r as práticas do ensino j u rí­
dico a uma instância inaugu ral da política, que pem1ita a reimplantação
de um espaço de autonomia da sociedade. j

* * *
j

l
A representação lingüística da realidade é uma fonna inicial de
política . As p ráticas do ensino do direito não podem deixar de intervir
nessa i nscrição inicial da política na linguagem, se quiserem contribuir
p ara que o homem possa p reservar o devir de seus sonhos .
O ensino do direito tem que reconhecer-se comp rometido com as
transformações da linguagem, aceitar-se como prática genuinamente
transgressora da discu rsividade institu ída, como exercício de resis­
tência a todas as formas de violência simbólica, isto é, como uma
p rática política dos direitos do homem à sua própria existência.
E, para isso. o ensino j u rídico tem que começar a transgredi r o
discu rso de seus sonhos fracassados .

1 1 . A E XI STÊNCIA SAQUEADA

O suj eito que fala aqu i reconhece, sem mu ito esforço, que a con­
dição humana continua fantasiada de si mesma. Séculos de discursos

44
roubaram do homem sua existência, alienando-a. Espanta ver a quan­
tidade de homens que sobrevivem penosamente ao genocídio de suas
ilusões . Mataram seus sonhos, ensinando-lhes a viver culposamente
as glorificadas fmstrações do "intelectuali smo capital ista": um pensa­
mento i dealista das verdades que retomam constantemente suas fms­
trações para p reservar o fracasso de um programa autônomo de vida.
Toda uma pedagogia de indiferença conduz um gregarismo
alienado que desestimu la quase absolutamente o florescimento autô­
nomo do desej o . Estamos sendo socializados, aprendendo a perder o
sentido vital da existência. Nós nos aceitamos gregários, desaprenden­
do a amar, esquecendo o valor da afetividade c da temura, apagando a
força t ransformadora de nosso imaginário, negando-nos a sonhar criati­
vamente o futuro e amarando com versões estereotipadas o devir co­
meta de nossa própria sensibilidade; o encanto que nos devemos,
negando a percepção refinada das delicadezas s ignificativas com que a
realidade dos homens deveria ser produzida para assegu rar a conti­
nuidade da condição humana.
A pedagogia dominante nos roubou a vitalidade de leitura do
mundo; ela nos deixou desannados, frágeis e sem entusiasmos deli­
cados para poder assumir que unicamente existimos na autonomia
das significações imag inárias . O simbólico detem1ina as condições ge­
rais da existência que esperam o sujeito para aliená-lo ou conectá­
lo vitalmente como "outro do mundo", que é sempre um "ainda
mais do sentido". É por graça do simbólico - no plural irredutível
das ressonâncias de seus sentidos - que se afinna uma existência
singular.
Pela palavra entendemos o mundo, mas também podemos, por seu
intennédio, desentendermo-nos, desconhecermo-nos pelo sentido e tor­
nanno-nos indiferentes pela comunicação alienada, enfim, podemos
sentir-nos mortos em meio a uma multidão de palavras e informações
que nunca nos provocam . Para sentir-se vivo, o homem precisa ex­
perimentar as inqu ietações da l i nguagem, encontra espaços de discur­
s ividade que possam ser cúmplices de seus sentimentos . É claro que
esta possibilidade depende, por excelência, do amor que devemos ao
verbo, de um lugar de leitura sempre cada vez mais assumido no

45
p rojeto de fazer aliar a escrita do mundo ao corpo amoroso: um pleno
brilho sem luzes de ribalta, um amor aguerrido em suas ternuras, "um
amor que não é de um só, mas sim a alma de todos" 1 .
Em poucas palavras : a vida unicamente pode revelar a dimensão
afetiva de seus acontecimentos, os sentimentos e as intensidades
existências inscritas em sua escrita, para aqueles que se encontram
amorosamente predispostos a essa leitura. Os significados emocionais
emergem desde o interior de uma leitura feita com o coração aberto,
vale dizer, disposto para comprometer o corpo com os ardores do
mundo. A escritura do mundo, o mundo como texto, pode ser penetrado
de afetividade quando o amor é sua leitura, quando a caução do amor
faz transparecer, nas aventuras da escritura, toda uma carga de
sentimentos que estão na alma daquele que lê. O amor abre os signos,
constitui uma gramática vital que permite o trabalho do corpo l igado
aos significantes, desde que o corpo, que faz o trabalho, precise
encontrar suas emoções na escrita do mundo . O corpo não é mais que o
leitor de suas p róprias emoções, é sempre u m leitor de si mesmo.
A escritura do mundo nada responde, recusa o texto de suas
emoções vitais se é interrogada por corpos já indiferentes pelas
idiotices de alguma doxa instituída que se lhe cola aos corpos para
i mob i lizá-los, ou pela melancolia de leitores insensíveis pelos fracassos
não elaborados de sonhos passados .
A escritura do mundo abre suas respostas exclusivas para os que
investem nas mutações da existência que soam como que pontos de
mais-valia de uma inacabável arte de sentir a vida.
Os textos de Barthes podem ser vistos como exemplos escla­
recedores do amor comportando-se como gramática de uma prática de
escrita. Em Barthes, a compreensão do mundo como acontecimento
discursivo, assim como as saídas emocionais que provoca nos textos de
outros dependem sempre de um trabalho íntimo de interrogação que ele
p ratica sobre seus próprios sentimentos . Implosões de sentido, emer­
gências interiores de um escritor poroso que se sabe amoroso e com

1
Sílvio Rodrigues, da nova trova cubana .

46
força para comprometer-se com as entonações da vida, negando-se a
ser existencialmente saqueado .

* * *

As p ráticas políticas dos direitos humanos teriam que emergir,


como u m texto bartheano, da própria anterioridade dos indivíduos,
deixando de lado os embaraços de um senso comum que finge saber o
que não se pode, para ficar, entus iasticamente pris ioneiro dos poderes e
das suas sobras morais. Textos e corpos que explodem a partir de uma
interioridade amorosa e sem culpas condicionadas : atos inéditos
erguidos contra os u niversais frustrantes, contra o gregarismo esva­
ziado de sentido e a moralidade trôpega da linguagem; trapaças deli­
cadas e esquivas que visam abalar a l inguagem como i nscrição
obrigatória do poder. Uma resistência vivificante que induz, desliga e
convida a u ltrapassar.
Assim, a temática dos direitos humanos deve ser convertida em
um campo de aprendizagem que inverte a institucionalização de nossas
relações amorosas com o poder, redirecionando o amor rumo à vida e
suas paixões . Desta maneira, estar-se-ia lutando para impedir que a
produção institucional de uma subjetividade padronizada captura nossa
existência. As práticas políticas dos direitos humanos precisam inau­
gurar suas lutas, na ordem do simbólico, transgredindo os efeitos da
produção institucional de u m homem negado pelas significações que
pretendem ser a racionalidade geral desta época. S ignificações que não
fazem outra coisa que prescrever um lugar comum de saber que ordena
o que não se pode para roubar-nos a instância mais radical de nosso
direito à vida, um direito superficialmente consagrado como prioritário
em todas as declarações universais dos direitos do homem .
O direito à vida e o direito à posse de uma linguagem não alie­
nada, de uma ordem s imbólica que nos assegu re vivos, criativos e
singulares. A i nstância semiológica das lutas por melhores condições de
existência, tentando, de uma fonna inclaudicável, uma somatória de
incidentes s ísmicos que nos aj udem a resistir e mudar a produção do
homem "semiologicamente tomado".

47
* * *

As vozes do poder, lembra C hico B uarque, pennanentemente nos


ordenam a calar, nos roubam a exi stência, si lenciando a autenticidade
de nossas p róp rias vozes . O poder inscrito na l i nguagem é u ma p rede­
tenninação opress iva que p recisa ser fm strada. Nenhuma resi stência às
fom1as impositivas da dominação atinge seu alvo se descuida a
inscrição do poder na l i nguagem, se descuida os modos em que o poder
manda calar o desej o .
Existe toda u m a atmosfera de saberes q u e se arrogam o direito de
decidir o que nossos desej os não podem fazer, mandam-nos calar
negando-lhes o d i reito de decidir o que não podem .
Um panorama ensombreado que dá uma profunda tristeza, pena
que não diminui quando se constata que o sentimento de vida hoj e
passa p e l a res istência a o saque s imbólico: sentimos a vida como o
encanto que pode dar-nos uma forma de resistência.
Quando me refiro ao ensino j u rídico como uma prática política dos
direitos humanos, estou querendo falar deste profundo desencanto, mos­
trando o valor de um aprendizado visceralmente comprometido com as
aberturas do coração. Quando os homens aprenderem a abrir seus cora­
ções, aprenderam também a preservar o espaço político da sociedade.

111. O PERFEITO FRUSTRA O DESEJO

A p rática política dos di reitos humanos mobi l iza areias escal­


dantes e p erigosas . Para escrever sobre os direitos não podemos es­
quecer que estamos diante de p ráticas e di scursos provenientes das ilu­
sões, enganosamentc perfeitas, do j u ridicismo do sécu lo XIX c sua
moral p rotetora.
A fé nas categorias do j u ridicismo nos força a medir o valor de
nossas relações de acordo com c renças que se referem a u m mundo
absolutamente fictício, no fundo n i i li sta.
É i nteressante reparar que os slogan.� perfeitos do j u ridicismo
tomam-se sérios obstácu los psicológicos para os p rocessos de
transfom1ação da sociedade e para o combate das condições institu ídas

48
da heteronomia. O j u ridicismo é u m grande caldei rão de sonoridades
que determinam condições alienadas de passi vidade : uma over dose de
crenças, verdades reveladas , valores banal izados, sentidos de posse que
destroem os esforços de i nstauração de uma soc iedade autônoma.
Narcotizada pelo j u ridicismo, a cena dos direitos h umanos corre o risco
de esvaziar-se na esteri lidade de uma p roposta que impede a emer­
gência dos desejos, pelo imperativo categórico de uma utop ia perfeita .
Nenhum desej o emerge a não ser como paradoxo, como diferença
de uma fantas ia perfeita.
* * *

Há também na temática dominante dos direitos humanos outra


fomJa de p erfeição que frustra o desejo: a persistência nostálgica de
uma fru stração do passado que se vive tanaticamente como um
universal da existência. Assim, certa fom1a do p resente é depreciada e
certa fonna do passado é exaltada: lêem-se ambos segundo o movi­
mento de uma fru stração que se fals ifica.
O s fracassos têm que ser aceitos c ultrapas sados para que se
possam edificar novos sonhos . Instalamo-nos na morte quando p re­
tendemos viver o p resente, t razendo, para ele, os fracassos do passado,
quando l evamos esses fracassos tão dentro de nós que só conseguimos
ler o p resente através dele . No fundo, estaríamos ficando sem p resente,
exilados no passado, como Gardel em Pari s . De alguma manei ra
estaríamos inconscientemente idealizando o fracasso, continuando a
luta contra ele, sem atrevenno-nos a reconhecer que perdemos.
As fru strações do passado, como componentes existenciais do
p resente, não servem p ara a transfo rmação da sociedade à p rocura de
uma nova forma de existência: os olhos que não reconhecem seus
fracassos não podem mirar transfo rmadoramente o m undo . B rigando
com o fracasso, começa-se algo novo, já vencido .
* * *

Na p rática rioplatense dos di reitos humanos observam-se os


efeitos perniciosos de uma concepção, digamos, perfeccionista dos
fracassos . Fru strados por anos de terror, nega-se o compromisso com o
p resente dos direitos humanos para conservar a consciência do

49
monstruoso, através de uma "bem-intencionada" confusão . Porque uma
coisa é ter memória dos mortos e, outra, é tentar jogar exclusivamente
esta memória como proj eto .
* * *

Cada vez que volto a Buenos Aires, comprovo, com tristeza, como os
portenhos se agarram a suas ilusões e fiustrações passadas como substituto
nostálgico de sua incapacidade de encontrar, no presente, algo com que se
identificar: memória ingrata em sua persistência fantasmática e culpabi­
lizadora. Esperança inútil que confunde a paixão por uma espera impos­
sível com o desejo. Volúpia de uma fé histérica que não sabe emigrar para
o novo. Como uma pele mal sã, as fiustrações passadas deixam os por­
tenhas na irnobilizadora posição de um objeto de espera sem objeto do
desejo: alienados em suas próprias fiustrações.
Estou falando de uma história que é também a minha e que, por
isso, compreendo-a e luto contra ela desgarrando-me2 . Eu também tive
que enfrentar-me com a dor que me p rovocava a ilusão de que um
projeto fracassado desse certo. À s vezes me senti impossibilitado de
gozar as coisas boas do p resente, pensando como seria esse mesmo
presente se meus sonhos não tivessem sido frustrados . Matei muitos
presentes p rocurando remediar histericamente o passado. Prova­
velmente uma forma de onipotência mal resolvida que não me permitiu
dizer adeus às frustrações de meu passado 3 .

2 Não tenho nenhuma experiência direta, pessoal, do resto da Argentina, por esta
razão não faço j ulgamento sobre as outras realidades do país em que nasci .
3 No amor acontece muito esta situação perversa do adeus. Os casais não têm muito
cuidado (nem temura) para dizer-se adeus. Angustiam a resolução de seu futuro
como o protagonista de Paris Texas. Desta maneira, ficam pri sioneiros de sua
angústia, negando-se a entender, empreendendo viagens inúteis rumo a uma
cidade paliativa, porém inexi stente. Com os povos pode acontecer a mesma coisa.
É o caso da Argentina que conheço: ressentida, rancorosa, tri ste e descrente frente
aos novos sonhos. Os argentinos depositam muitas esperanças, acreditam em
muitas promessas que logo foram desfraldadas. Confiaram no discurso de
Irigoyen, de Peron, de Alfonsin. Todos não fizeram outra coisa que matar a ilusão
depositada neles. Agora não querem arriscar de novo, têm medo inclusive de
i nterrogar-se para poderem sadiamente dizer adeus a todos eles, entender que a
Argentina que estão procurando está em si mesmos.

50
O que di ssemos até agora não pode deixar de referir-se, sobretudo,
aos p rocessos estimu lantes que realimentam a frustração, reinstaurando
a ilusão fracassada, seduzindo com um discurso que diz que ela é ainda
possível, u m discurso que nos deixa a inquietante suspeita de que tudo
é ainda possível . Assim falou Alfonsin, assim falou Peron4 , para
manter a-historicamente uma fantasia de transfom1ação para a
sociedade argentina. Eles unicamente consegu i ram transformar uma
fru stração em mito: u m duplo discurso que mantém, no p lano da
fantas ia p erfeita, a i lusão frustrada no plano real . Talvez uma forma de
deixar-nos prisioneiros de uma fantasia para que tudo se mantenha
como antes ; p reocupando-nos com a frustração, nos despreocu­
paríamos de perceber as causas concretas que impedem a transfor­
mação da sociedade . Porque muitas vezes o fracasso, o medo ou a dor
funcionam, por um masoquismo latente, como pontos compensatórios
de fuga, como uma fórmula mágica que evita assumir a falta e aceitar
que existiram componentes confl itivos na realidade, os quais l evaram
ao fracasso nossa i lusão . Sem esquecermo-nos de que a manutenção da
poss ibilidade de transformar em êxito uma ilu são fracassada pennite
ocu ltar p róprias mi sérias comprometidas com um projeto fracassado .
As frustrações perfe itas p roduzem um desl umbramento rígido que,
como uma lamparina sepulcral , não permitem iluminar as u ltrapas­
sagens p ara o novo . Trata-se de um sistema inflexível de ostentações
s imbólicas que não abalam o presente para p rovocar o novo. As
frustrações perfeitas cantam as p roezas de novos cruzados, constru indo
uma lenda simbólica que anula e engana o desej o, deixando-o prisio­
neiro de u m fantasmático m undo de verdades estabelecidas . Os desejos
sempre morrem alienados . As frustrações perfeitas não deixam de ser
p ropostas que s imulam res istir as forças alienantes da produção i nstitu­
cional da subjetividade . Para s uperar um pensamento alienante é p re­
ciso envolvê-lo com a magia do "ancore": distingu i-lo do estabelecido
para reencontrar o desej o nas incertezas, nos espaços de criatividade
que surgem da p rocu ra do "ainda mais" do institu ído.

4 Assim falou Tancredo Neves.

51
* * *

Qu and o se fala da necess idade de repolitização do espaço social,


no fu n d o se está querendo destacar o valor p o l ítico de um desej o não
alienado . O es pa ç o da pol ítica é inconceb ível sem o pressuposto
inaugural de um espaço público para os afetos. A dimensão pú b lic a dos
afetos, das paixões e dos desejos é a única garantia - respeitada sua
produção autônoma - para que uma fonna de sociedade possa en­
contrar na democracia seu sentido .
Postulando a prática política dos direitos humanos como com­
ponente nevrálgico da democracia - como sentido de uma forma de
sociedade - temos que reconhecer que sua vitória dependerá de nossa
sensibilidade para entender que é preciso refazer o mundo com o
desej o . Em outras palavras, precisamos entender que na democracia,
como no amor cigano, se tem que entregar o morto à morte para
resgatar a vi d a
.

O amor cigano se conquista vencendo uma luta com a morte, e se


sai vitorioso dessa b riga entregando à morte nosso passado e suas
p romiscuidades .
Este compromisso cigano m u i tas vezes falta na p ráti ca dos
direitos humanos que faz, da conservação de uma memória desgar­
radora, um fantasma imperativo, um fantasma que não deixa discri­
minar a diferença que existe entre uma memória que passa a formar
parte de um p rojeto e uma memória convertida em p rojeto . Nesta
segunda suposição des apa re ce o elemento primordial da p rát i ca demo­
crática: a produção de um sentido para a vida que não pré-designe nem
garanta a realização do devir. Porque nesta segunda supos ição, de uma
lembrança moral e do sentimento de que uma lógica do terror frustrou
várias gerações, aparece como ú n ica p roposta visível, vale dizer, que
estamos diante da fru s traç ão e da culpa funcionando como p roj eto .
Como sair desta opção tanática?
Sem a pretensão de dar uma resposta profética, pensaria nas pos­
sibilidades de uma profunda revolução do desej o ; pensaria em micro­
revoluções desejantes que poderiam ir configu rando o que Guattari
chamaria de nova cartografia dos desejos . Dito de outro modo, para
obter um comp romisso dos direitos humanos com a d e m o c ra ci a en-,

52
tendida como o sentido de uma forma de sociedade política, deve­
se romper com as representações simbólicas que alienam nossos de­
sejos e os impenneabi lizam politicamente, tentando, ao mesmo tempo, .
recuperar o espaço público como lugar onde o desejo pode realizar­
se através do político enquanto território que institucionaliza o valor
das u topias incertas . É bom lembrar que o desej o morre se não conta
com um imaginário aberto que o aceite indetem1Ínado c numa in­
cessante luta contra os estabelecimentos simbólicos que pretendem afo­
gá-los com certezas . N ão tenho dúvidas de que sem uma altera­
ção radical dos objetos de nossos desejos nos manteremos no interior
de u m sistema de valores que nos fará perder o sentido da própria
humanidade.
Quando falo dos d i reitos h umanos, estou, sobretudo, apontando as
lutas pelo caráter inacabado, conflitivo e ambíguo dos desejos : a
reivindicação do direito à indeterminação do homem como condição
necessária de preservação da p lena existência.

* * *

Nesta perspectiva é que s u rge o sentido do ensino do direito como


prática política dos direitos humanos . Ele é concebido como um espaço
político de debates ilimitados e indeterminados; como um espaço do
devir sem fronteiras; como a matriz de um dinâmica que ultrapassa os
intentos de impor l imites pelo saber e suas idealizações perfeitas e
fracassadas. Porque se aprende o direito entregando suas certezas à
morte .

I V. O PODER PÓS-MODERNO E O S
PRESSUPOSTOS D A PÓS-A L I E NAÇÃO

Nos fragmentos anteriores, destaquei enfaticamente a dimensão


simbólica dos direitos do homem como parte constitutiva de um espaço
público, que aglutina focos de autonomia dos desejos, experimenta
novas relações com o saber, a lei c o poder, para assegurar, sem
garantias, o valor emancipatório da criatividade .

53
Pretendi mostrar que os direitos humanos também passam pela
semiologia e pelo desej o, porque eles inscrevem-se, no registro social,
como signos de emergência e acesso ao espaço público, assim como
também de preservação simbólica da produção autônoma da subj e­
tividade. Eles emergem como instância simbólica para a mediação
autônoma entre a sociedade civil e o Estado, um registro simbólico da
sociedade que abala obstinadamente as inscrições totalitárias do poder
na linguagem .
Voltando a ler este texto, noto que meu desejo foi condicionado
pela necessidade de mostrar como os direitos humanos se encontram
comprometidos com as grandes recusas que o perfil atual dos poderes
impõe. Noto minha constante preocupação em exaltar a íntima
vinculação dos direitos humanos com as lutas que o homem trava para
ter o direito a pertencer a uma forma de sociedade política, a ter o
direito de participar da cultura e das suas verdades . Enfim, observo que
pretendi vincular os direitos humanos a uma dimensão simbólica
comprometida com uma reivindicação global do direito a ter direito, do
direito a p roduzir autonomamente nossa p rópria existência.
Assim, caracterizei os direitos humanos com o nome genérico, a
temática condensadora de toda resistência e recusa às formas de
exclusão social . Creio que tentei sugerir como, em seu nome, é possível
aprende r a dizer não a todos os modos e formas de exclusão social .
Desta maneira, estou apresentando um texto que faz referência a
todas as formas de transgressão aos poderes excludentes de uma
cultura, aos poderes que fazem da lei, do saber e do desejo, estereo­
tipadas instâncias totalitárias .
Por todas estas razões, encaro os direitos humanos como uma luta
do homem pela transformação de sua linguagem: resistindo a todas as
formas da violência simbólica, ampliando os espaços de criatividade da
linguagem; impedindo o encurtamento da capacidade expressiva, infor­
mativa e l údica que p recisam ter as leituras do mundo e de nós
mesmos .
Encontramo-nos, então, com os direitos humanos como uma
p rática política e educativa que nos vincu la - criativa, lúdica e apaixo-

54
nadamente - com a linguagem, evitando uma concepção tecno-lógico­
mecanicista dos campos do saber.
Isto é fundamental para enfrentar a forma de sociedade utopi­
camente indiferente que se avizinha. Estamos entrando nos tempos de
um pós-totalitarismo5 que demandará ao homem uma inclaudicável
luta por sua linguagem, por sua imaginação e sua criatividade, como
condição impostergável para sua sobrevivência.
Compartilho com Baudrillard o sentimento de estarmos ingres­
sando em uma sociedade onde já não tomaremos mais parte do drama
da alienação. Vivemos a passagem da sociedade discipli nar à sociedade
do êxtase COJ11unicacional : extravasamento forçado e frio de toda
interioridade de um homem reduzido esquizofrenicamente a uma pura
tela informativa por sua inscrição na instantaneidade total das coisas .
Uma transparência informativa que o acossará como sua própria
morte.
Escandalosamente falando, até poderia dizer que existe um certo
beneficio s imbólico na alienação, que consiste no reconhecimento da
existência do outro e da representação.
A força alienante encontra seus b rios na encenação simbólica do
poder. A alienação não é possível sem um mínimo de sedução discur­
s iva que nos convide a aceitar a revelação vigiada do segredo. Enquan­
to existir alienação, haverá ação, cena, luzes de ribalta que preser­
vam estereotipadamente o espaço dos desejos . Nas sociedades pós­
totalitárias o espetáculo do poder será suprimido. As versões paranói­
cas de um mundo metafisicamente enclausurado cederam seu lugar a
uma p romíscua rede de solicitações comunicacionais absolutamente
expostas e paradoxalmente inacessíveis . Uma informação elitizada que
servirá para controlar, sem resistências, um "proletariado de andrói­
des". A infom1ação à disposição de uns poucos privilegiados, na boca
do povo, o s ilêncio final .
Visualizo, assim, um mundo onde, longe de suprimirem-se as
luzes que estereotipam a encenação, suprime toda a cena. Do homem

5 Considero o pós-totalitarismo e a pós-al ienação como as duas notas que melhor


servem para caracterizar a fonna de sociedade que se diz chamar de pós-moderna.

55
tomado pela lei e pelo saber, chegaríamos ao homem anulado por um
mundo que vai deixar de ser seu espelho, por um mundo que não lhe
pennitirá mais ter acesso ao seu próprio corpo.
Posso imaginar uma vinculação tão estreita entre o poder, a
tecnologia c a comunicação, que fará desnecessária toda e qualquer
preocupação com a produção p adronizada da subjetividade: o êxtase de
uma comunicação que tomará vetusta todas as estratégias da alienação,
privando-nos absolutamente da representação.
O fenômeno da alienação é subsidiário da produção de uma ilusão
da verdade que p reserva o resíduo de um ato polêmico. A alienação é
uma leittJra do mundo, q esboço estereotipado de um encadeamento
vigiado das verdades que dependem da força da linguagem . O fenô­
meno da alienação pode chegar a seu fim em formas de sociedade que
façam a experiência da linguagem fora dos corpos, separando o sentido
dos homens : o que reinará não é o mistério dos sentidos, é a eficiência
comunicacional . Daí, uma fom1a nova de controle absolutamente
despreocupada com a manipulação das ilusões e com os carecteres dos
corpos; uma situação inédita de alteridade que chamarei espaço de pós­
alienação . Neste espaço os efeitos da censura se reconhecem por uma
negação da infonnação e não mais por um suplemento heterônomo de
sentido.
Ora, o espaço de pós-alienação nos coloca diante de uma profunda
crise de representação que, ao mesmo tempo, é uma alarmante crise da
condição humana.
Para se d izer homem, o homem precisa da linguagem, quer dizer,
de um intercâmbio simbólico que funcione como sua matriz identi­
ficadora c como o sentido de seu destino. O homem sem linguagem fica
desprovido de sua dimensão psicológica.
Nos termos do pós-totalitarismo um "poder telemático" decretará
o fim da metafísica e da metáfora, reduzindo o ser do homem a uma
forma imoral do êxtase comunicacional : o ser reduzido a um vetor
operacional .
O mesmo sucederá com o espaço público reduzido a um imenso
território de comunicações e conexões efêmeras . O magnetismo que
exerce uma forma de sociedade que se simula a si mesma detenninará

56
que o p ú b lico c o p rivado se convertam em uma oposição sem sentido .
O p ú b l ico não se s u p ri m i rá a favor do p rivado, se negará em favor de
algo mais públ ico: o êxtase de u ma comunicação sem interlocutores . O
p rivado não se supri m i rá frente ao p ú b l ico, se exti ngu i rá frente a u m
redobramento da p rivacidade; o indivíduo tão p reso e m si mesmo, tão
narcis isticamentc enclausu rado, que desconhecerá o valor exi stencial
do outro.
Numa sociedade pós-al ienada (mais alienada que as sociedades
alienadas), a informação adq u i rirá um caráter obsceno . Ficará transpa­
rentemente exposta e se converterá num del í rio comunicacional . S upe­
rará os limites de sua função para entrar numa escalada fantas­
magórica de desinfo rmação c de negação do caráter públ ico do espaço
social .
S ensações vertigi nosas de verdades darão ao saber uma conexão
ainda mai s íntima com o poder e um afastamento ainda mais radical
com o desej o . A identidade entre a lei, o saber c o poder do Estado será
redob rada, obtendo-se, por consegu inte, um efeito duplicado de hetcro­
nomta.
O s fenômenos de inércia se acelerarão e as formas imobilizadoras
prol i fe ra ram para criar seres fusionados com um mundo de obj etos c
infonnaçõcs excedidas em sua finalidade para excl u i r o outro como
obj eto de desej o .
Podemos viver tempos de intercâmbios i mpossíveis . A história
dei xará de existir sem nos dannos conta. O espaço social pode en­
contrar seu dead point, esse estado de inércia que lhe pennitirá repe­
ti r-se sem contrad ições, debates, conflitos e incertezas . Desta manei ra,
estaremos diante de um espaço que garantirá a inércia totalitária, a
inércia de u m espaço social que se sucederá despolitizado, exclu indo
qualquer sentimento c qualquer poss ibil idade de vínculo com os outros .
Como evitar que a inércia se converta no sentido de u ma fonna de
sociedade? Como podemos impedir que a hi stória desapareça?
Penso que a catástrofe da história é a catástrofe da linguagem . A
exi stência de sujeitos p rodutores de sentido é o único antídoto para
as formas inerciais do espaço social . Assim, o homem p recisa lutar
por sua li nguagem, por sua imaginação c por sua criatividade, para

57
evitar as condições que assegurem o ponto de inércia do espaço so­
cial .
Consegu iremos evitar o devir de uma forma social pós-totalitária
na medida em que possamos assegurar u ma ação transformadora so­
b re nosso presente semiológico. Temos que recuperar uma energia
s imbólica de transgressão, para preservar-nos do final da cena da
política, do segredo dos segredos : a transparência de uma sociedade
sem enigmas de sentido.
Desafios impostergáveis que redefinem as dimensões s imból icas
da democracia e dos direitos humanos . Colorações anômalas que pre­
cisam ser refinadamente percebidas para não esmagar os focos de
resistência às novas formas do totalitarismo.
Posto a pensar nos direitos humanos, evidencio-os como dimen­
sões s imbólicas transgressoras de todas as formas de morte no seio da
vida, focos de res istência a todas as formas de patologia social que
fazem do ser do homem u m acontecimento socialmente supérfluo.

V. DIGNIDADES E SOLIDARIEDADES

Regresso às intimidações do ensino jurídico. Vem-me uma metá­


fora de Baudrillard: o refém . Penso na fala convicta e terrorista dos
p rofessores de direito que arrebatam o estudante de seus próprios
desej os, suspendendo-os numa eminente insegurança. Trata-se de uma
fala que tem por função a manipulação. Ela pode ser entendida como
uma p roposta delicada da violência feita através da chantagem. Esta,
por sua vez, cumpre seu obj etivo tomando como refém uma parte do
outro: um sentimento, uma falta, um fragmento de seu imaginário, um
medo, talvez uma i lusão, no fundo uma maneira de fazer surgir no
sujeito capturado uma demanda ou uma verdade equivalente à do
capturador.
Sempre penso que o estudante de direito é um refém afetivo do
professor, condenado a responder moralmente a uma gigantesca cena
de efeitos especiai s . Uma sentença de morte e de indiferença pende so­
bre a cabeça dos estudantes chantageados por um discurso e uma

58
atitude frente à vida que os prepara para ingressar, em uma condição
suspensiva, numa sociedade que os mostrará como o equivalente nulo
do estágio obsceno da informação.
O estudante é u m protótipo redobrado do refém na medida em que
fica prisioneiro do professor e da sociedade.
O professor é outro p rotótipo redobrado do refém na medida em
que fica capturado pela sociedade e pelas arrogâncias de seu saber.
Temos, então, u ma figura de morte compartilhada por um inter­
câmbio impossível : o p rofessor não tem com quem negociar a devo­
lução de sua imagem; uma relação que denuncia a impossibilidade de
um intercâmbio.
A obscenidade do ato de ensino muitas vezes é total, na medida em
que se converte numa arte de exibição do neutro, que deixa aos
participantes uma fascinação pura, uma paixão formal, onde o valor
das verdades deixa de existir, como deixa o desejo na sedução:
apresentações vertiginosas das verdades que convertem mestres e
ap rendizes em reféns de u m universo pornográfico .
O segredo da fala docente encontra-se numa representação desor­
b itante das verdades : o grande simulacro de uma hiper visibilidade que
só serve para s ustentar o p rojeto de uma pedagogia da indiferença.

* * *

A pedagogia dominante estimula o gregarismo da indiferença. Em


toda parte há evidência de um projeto de socialização sem paixões, nem
gestos sensíveis que vão preparando o terreno de uma cultura que nos
precipitará no abismo da pós-alienação. Estratégias fatais de submis­
são que nos predi spõe para um vazio informativo que ameaça ser
existencial .
O pensamento idealista das verdades, a produção institucional da
subj etividade, o poder das utopias c das frustrações perfeitas, a insti­
tuição metafísica da sociedade estão sob ameaça de extermínio, arrui­
nadas pela tentativa de implantação de uma forma de sociedade que
poderá prescindir do devir do homem através de alienações sucessivas .
Uma humanidade que corre o risco de tornar-se estranha a si mesma,
consagrando u m espaço comunicacional despolitizado e desprovido das

59
máscaras e cerimônias do pensamento. Des l igados das significações e
de seus enigmas, o homem perderia sua condição alienada para ficar
prisioneiro de uma censura que não poderá ser abalada por nenhuma
prática de autonomia. O fenômeno da alienação chegará a seu fim em
fom1as de sociedade que façam a experiência da infom1ação fora dos
corpos, separando o sentido dos homens .

* * *

O ensino do direito pode proteger-nos contra estas fom1as pato­


lógicas de humanidade que ameaçam instalar-se como um fascinante
proj eto de existência. Entrevej o essa possibilidade mirando-o como
uma p rática de inscrição nas dimensões simbólicas dos direitos huma­
nos e da democracia. Trata-se de pôr em circulação uma cumplicidade
de l inguagem, um deslize do imaginário que permita algumas pequenas
recusas da grande chantagem educativa do ensino do direito . Uma das
coisas que se pode esperar do ensino jurídico, despojado das estratégias
alucinantes dos saberes da lei, é a de poder contribuir para a formação
de personalidades visceralmente comprometidas com duas dimensões
éticas fundamentais : a dignidade e a solidariedade. Sem estes dois
valores, nunca poderemos gerar uma sociedade melhor.
Para evitar a construção de uma sociedade de imbecis, necessi ­
tamos começar por reconhecer a importância d e nossa própria digni­
dade, inclus ive nos incidentes ínfimos do cotidiano. Temos que aspirar
à dignidade total da existência. Nosso compromisso com a vida passa
por pensar e atuar procurando gerar homens melhores, homens que se
p reocupem com a produção social da dignidade. Para que exista uma
fom1a social democrática, a dignidade tem que ser algo que se possa
respirar constantemente. E todos temos que aj udar para que o outro
possa reconhecer, em nós, sua dignidade.
A solidariedade é uma forma fundamental de reclamo. Ela nos
coloca diante do conteúdo mais nobre de nosso compromisso com os
socialmente exclu ídos e os existencialmente desaparecidos . A solida­
riedade representa um estar j unto dos oprimidos, participando compro­
metidamente em suas lutas transgressoras . Muitas vezes se tem
confundido a solidariedade com a caridade e com o paternalismo: duas

60
formas aristocráticas de tomar distância dos conflitos c impedir sua
resolução . A sol idariedade é u ma forma de sai r do narci si smo, acei­
tando que o outro existe . A solidariedade é a forma do amor. Não se
pode amar sem ser solidário com o obj eto amado . Não existe afeti­
vidade sem solidariedade . Q uando se pratica a solidariedade, está-se
reconhecendo a existência do outro como diferente, está aceitando-o
sem p retender narcisisticamentc fl.i sioná-lo com o modelo de homem
que o imaginário institu ído p roduz como fantasia tanática.
D ignidade e solidariedade constituem, portanto, os dois compo­
nentes básicos da matriz simbólica dos direitos humanos . Porque o
homem p recisa reconhecer-se d igno c solidário para poder contrapor-se
às densidades simbólicas que vão p reparando as estratégias fatais da
al ienação, a i rru pção forçada de uma sociedade pós-totalitária.

* * *

A ética do ensino tem que descansar na aprendizagem da digni ­


dade c da solidariedade c nã o na demonstração cerimoniosa e ideoló­
gica de certos p reconceitos cstereoti padamcntc institu ídos . O espaço da
sala de aula pode ser u m espaço p ropício para isso, na medida em que
possamos convertê-la num território de cumplicidades lingüísticas, isto
é, de desej o s c amores, de reconhecimentos dos outros . Nu ma sala de
au la o saber tem que serv i r para que aceitemos as diferenças, sem
esperar que o outro nos devolva a imagem esperada de nós mesmos .
A dignidade se recupera unicamente pela autonom ia. A dignidade
é nossa poss i b i l idade de extrair, solidariamente, o amor da vida.
Vi ramos indignos se deixarmos que nos rou bem essa poss i b i lidade.
Também perdemos a dignidade entrando no desassossego, negando-nos
a fazer, de uma falência ou de um atropelo, uma vitória.
Não existe democracia sem dignidade . A democracia é o espaço
político da dignidade
A dignidade é a libertação de todos os referentes opressivos . Mas
ela não se consegue sem sol idariedades, sem que os demais ap rendam
a respeitar-nos em nossas dignidades . A perda da dignidade repousa,
sobretudo, nas violações que os outros fazem dela. Devemos aprender a
passar pelas ruas da vida respeitando ao outro em suas dignidades, sem

61
invadi-lo com nossas soberbas, nossas verdades, ou nossos desejos de
poder.
Mas vejo que o homem muitas vezes foge de sua dignidade,
aceitando os atropelos, as agressões dos poderes c sua autonomia. O
homem perde sua dignidade quando não sabe dizer não para defender
sua liberdade: no trabalho, no amor, na procura de nossas verdades ou
na preservação ecológica do mundo. Devemos admitir que nos tempos
atuais a dignidade é subversiva: convoca para um tipo melhor de
sociedade onde, entre todos, possamos consegu i r nosso respeito,
impedindo as modalidades de dominação econômica, política, cultural e
militar. A democracia é a luta permanente c renovada pela dignidade:
um ato coletivo da sociedade que permite lutar pela dignidade dos
outros, reconhecendo que suas vidas não são úteis e que não podem ser
iguais à nossa. Ver, sentir, lembrar que a dignidade do outro se
preserva respeitando suas diferenças .
Mágoas íntimas p recisam ser reabi litadas, lutando em todas as
frentes para sentir a dignidade na desestruturação das verdades insti­
tuídas, para doar-nos a possibilidade de ver o mundo de outra maneira:
sem cinzas fecundantes e sem purpu rinas, a dignidade fora das
aparências banais . O homem se prostitui intentando fazer-se respeitar
por suas propriedades e seus s ímbolos de s tatus. Especializou-se nas
indignidades e nos fogos-fátuos .
As culturas dos sentimentos espasmódicos escrituram a indig­
nidade i mpedindo que se tome consciência de que não existe dignidade
sem um compromisso envolvente com a vida. Poder sentir a dignidade
para não perdê-la por não saber entrar com tudo na vida: dar a cada
emoção seu lugar; saber pensar com as emoções e sentir com os
pensamentos, para poder respeitar, no coletivo, a existência dos outros
como uma dignidade inaugural .
D izer simbolicamente a democracia é encontrar no espaço público
o valor da dignidade como sentido de uma forma de sociedade.
Razões pelas quais penso que o ensino j urídico, como prática
produtora de dimensões simbólicas comprometidas com os direitos do
homem, tem que responder pela formação de uma pedagogia da
dignidade e da solidariedade social .

62
C omo semp re, estou falando de alguma coisa que falta. As coisas
que se vivem plenamente nunca se podem contar.
No que diz estritamente às situações de ensino do direito, a luta
pela dignidade começa na tentativa de desembaraçar o discu rso docente
das suas vestes sacerdotais e da competência de suas provocações .

* * *

Sempre pensei que as tarefas educacionais teriam que organizar-se


tentando responder à seguinte pergunta: o que a dignidade pode nos
ensinar? Quer dizer, em que sentido a dignidade pode nos educar? A
idéia que gostaria de transmitir é a de que a dignidade é a forma pela
qual os homens podem ating i r um conhecimento no sentido científico,
mas adquirem um saber existencial com todas as contradições, com as
incertezas e com os conflitos que os desejos e as paixões determinam :
aprendem-se politicamente os sentidos da dignidade .
Diante dessa tarefa, convém que nos desfaçamos da crença de que
é possível a construção de um saber teórico, cientificamente contem­
plativo sobre a dignidade, p rincipalmente no sentido de que este
conhecimento teórico seria a condição prévia para uma prática correta
da dignidade. Desta maneira, correríamos o risco de um controle
totalitário da dignidade ou de uma redução de suas implicações e uma
atividade puramente racional, cuja conseqüência, ao limite, é o
imobi lismo e a indignidade.
O que defendemos aqui conceme particu lam1ente a uma prática da
existência que só pode ser compreendida por quem tem a sensibilidade
p redisposta para percebê-lo com seu próprio corpo. Entendemos o
sentido da dignidade quando estamos sentindo a necessidade de cuidar
dela.

VI. PASSEIOS A O LÉU COMO TÁTI CA D E ENSINO

Recuperando a dimensão política da educação jurídica, quero


dizer que ela se realiza a partir de algumas recusas e abalos da tradição
cultural do direito.

63
O aluno cresce existencialmente quando consegue pertu rbar a
claridade derivada dos efeitos de autoridade da fala docente . Quem se
prepara para escutar (numa s ituação de ensino) deve tomar-se
consciente de sua necessidade de libertação criadora frente a uma fala
magnética por natureza.
Na educação j urídica temos que nos preocupar em mostrar as
faltas de um saber que escamoteou o lugar e o papel da lei e dos
j u ristas (assim como do próprio ensino) em todos os terrenos onde a
repressão se manifesta .
Apagar os ecos solenes da palavra legal, negar-se a pensar que o
discurso dogmático só se deixa pensar dogmaticamente, rejeitar as
ingenuidades epistemológicas que sustentam a concepção de Estado de
direito, lutar contra a cormpção dos signos jurídicos, são exemplos,
tomados ao acaso, das coisas que devemos recusar, para podennos
educar-nos em dignidade.
Aprendemos sem p re afastando-nos do estabelecido, descobrindo o
novo . Não se aprende acumulando simplesmente um cabedal de
infonnações . Aprende-se denunciando as faltas do saber acumulado,
desligando seus signos de seus efeitos, fazendo uma passagem eman­
cipatória e facilitadora do novo .
Para educar-se sacudindo o esmagador peso de jurisdicismo e suas
vivências estereotipadas, os j u ristas têm que prover-se de uma
estratégia de abalos, .mais que de um método . Não existem métodos
nem fundamentações sistemáticas para que uma sociedade, tomando
consciência de si mesma, lute por sua transfonnação radical .
As práticas de abalo visam quebrar as estruturas das linguagens
total itárias . A matéria que se alimenta do abalo provém da discur­
sividade alienante. É uma estratégia que estala os pontos mortos dos
corpos negados à democracia dos sentidos, os restitui a sua forma
amorosa que é sempre um des�jo móvel.
Nesta ordem de idéias, torna-se visível a função amorosa do abalo
quando o comp reendemos como um compromisso desintegrador dos
pontos mortos que saturam o espaço pol ítico, impedindo, pela
alienação, a democracia. O espaço pol ítico só existe como um território

64
sem saturações . Não há satu rações no amor nem tampouco no espaço
político . Em ambos estamos diante do desej o c de sua mobilidade .
A democracia se perde com a saturação do espaço social, e o
abalo aparece como estratégia que abre fissuras numa ordem simbólica
que satura e faz metástases por todo o corpo social .
As metástases da cultu ra6 são formas simbólicas que têm
excedido sua final idade, apresentando-se como manifestações obscena­
mente exageradas de si mesmas : formas da razão insensata que se
exibem e se expõem sem pudores, destacando estereotipadamente uma
prática, exi b indo-a sem segredos, para constituir-se em um neutro
simulacro de seu p róprio sentido . P ráticas s imbólicas que atingem o
enfastiamento de seu sentido para ficar saturadas de si mesmas .
Quanto mais contemplo o espetáculo do mundo, mais me
convenço da marcha da cu ltura p ara suas metástases s imbólicas .
Múltiplas p ráticas de sentido exibem s uas anomalias vitoriosas,
invadindo com suas p rotuberâncias o espaço social, saturando-o com
suas p róprias saturações .
Estamos diante de uma catástrofe em câmera lenta que precisamos
abalar para evitar que a humanidade se converta no ú ltimo objeto
descartável da sociedade de consumo.
Educamo-nos através das p ráticas de abalo, quando conseguimos
deslocar de seus efeitos uma discursividade que se nos apresenta como
alienante, repressiva ou saturada, reproduzimo-la para compenetrarmo­
nos sensivelmente de suas conseqüências, em última instância,
gordurosas 7 .

6 Expressão q u e empresto de Rnudri l l a rd .


d e "obesidade social"
N a s "est m t é g i a s fa t a i s" , Baudri l l a n.l lil l a meta foricmnentc
para referir-se a unw anom a l i a q u e cncontrmnos em s oci edad e s confonnadas ao
excesso com seu pró p r i o conlonn i s m o , u m a dcfonnidade q u e t m d uz um caráter
soc i n l tão s a t u rado como vazio, onde fo i extra v i a d a a cena pol í t i ca c a do próprio
coq){>.

65
O abalo não Imita, porque precisamente pretende mostrar, com
nitidez, as imitações que, de si mesmas, fazem algumas formas simbó­
licas para antecipar-se ao funcionamento pós-totalitário das socie­
dade s.
As formas simbólicas alienantes e as repressivas estão começando
a satu rar- se de si mesmas, p reparando as condições de possibilidade de
um mu ndo pós-alienado. Pelo abalo podemos resistir.
P ara Barthes o abalo tem que ser discreto, rápido, se neces­
sário rep etido, mas nunca instalado . Ele recusa as grandes má­
quinas co ntestatórias, brinda retrospectivamente uma leitura modi­
ficante de algu ma configu ração simbólica opressiva. O abalo nos
convida a ler delicadamente as metástases ou as dimensões alienantes
de um a relação simból ica quando, num ponto qualquer, por muito
afastado, por muito tênue que sej a, essa relação se mexeu . O abalo é
um tip o diferente de crítica que não cai na armadilha de pretender
desm isti ficar uma relação s imbólica que nos violenta, mostrando
amplificadoramente seus atributos . Por esta razão o abalo forma parte
das estratégias de uma semiologia que se vê a si mesma como uma
sismologia.
O abalo é sempre uma estratégia amorosa, intervém com ternura
sobre um a relação discursiva, procurando uma mutação, uma
mo bili dade de desejos que nos devolva o resto polêmico que se vai
perden do nos discursos alienados, até chegar ao efeito final de uma
fo nna sim bólica saturada de si mesma. Mudanças discretas da ordem
simb ólica que p odem mudar a construção social da realidade,
devo lve ndo-lhe um espaço político onde possa vislumbrar-se o novo,
real izarem-se os sentidos que transcendam suas próprias marcas
estab el eci das . Discursos marginais, avessos ao padrão de sentidos
dom inantes e que conseguem transgredir seus interditos na p rocura de
u �1 "ai nda mais simbólico", que o abalo facilita, mostrando faltas da
disc ur siv idade institu ída.
Est am os diante de pequenos incidentes de ternura que pern1item
tratar os p ontos mortais da linguagem - que não deixam de ser também
po ntos mo rtos i nscritos em nossos próprios corpos - para que se possa
elab or á- los no interior de um p rocesso de autonomia.

66
P raticando os abalos , espera-se que o desej o recupere seu
conteúdo d issolvendo os efe itos total itários de um p rocesso repressivo.
A al ienação toma-se exitosa reprimindo o desejo, isto é, dissociando-o
de seu conteúdo. Os sujeitos alienados não sabem o que querem, seus
desej os foram reprimidos .
A rep ressão é condição do total itarismo : quem não sabe o que
quer, quer aquilo que lhe dizem que deve querer.
Nesse sentido, os processos de autonomia perm item que o homem
saiba o que quer, devolvendo ao desejo sua significação . Assim,
redefinimos um amor· proibido, captu rável por propostas tanáticas que
'precisam ser dcscortinadas por m11a erótica do texto chamada abalo.
Ele refere-se às faltas que p recisam da fala para exib i r seu insucesso, e
p rocurar, em troca, a poesia das paixões como um intercâmbio amo­
roso que é também s imbólico.
O s abalos também estilhaçam certas utopias perfeitas, transfor­
mando o imposs ível de u ma ilusão sem possibil idade de uma troca
s imbólica que não demanda fusões fatais.
O abalo tende a erotizar o mundo, ensinando o sujeito a criar um có­
digo ético desligado das ataduras inutilmente severas da moral hegemônica.
É p reciso dizer agora que os abalos pedagógicos não se sustentam
num método, eles descansam numa tática de ensino que chamarei, à
falta de melhor expressão, passeio ao léu .
Trata-se de um passeio que, de nenhuma maneira, pode ser
confundido com um ir à deriva. Poderíamos dizer, com Bmthes, que se
trata de uma viagem com infinitas paradas, tantas quantas o nosso
desejo demande : um vôo dos sentimentos para captu rar a pluralidade de
sentidos que podemos constru i r nos múltiplos incidentes que formam o
percu rso das significações quando nos negamos a fazer uma leitu ra
estereotipada delas . No fundo, alguns fragmentos simbólicos que des­
cobrimos como as saídas de uma cultu ra que se apropria das paixões,
para estabelecer um estilo de civilização que faz do desejo de cum­
primento das normas uma forma de descarga da energia reprimida dos
desejos: uma saída neurótica do desej o que, nas fom1as de sociedade

67
pós-alienadas, adquiriram contornos fatai s . Nelas as paixões perderam
totalmente seu sentido, ficando o homem sem chance para que os
desej os recuperem seu conteúdo.
Nesse quadro, o passeio ao léu aparece como uma tentativa de
recuperar o que foi banido da consciência moderna pela condenação do
deseJo 8 .
.

O homem vive tentando inutilmente recuperar a satisfação dos desejos que a


situação uterina lhe proporcionava . Durante a vida a sati sfação de seus desej os
será incompleta, ficará sempre um resto de energia libidinal insatisfeita pelo
obj eto do desejo. O resto de energia insati sfeita precisa ser sempre completado
simbolicamente. Este complemento simbólico, muitas vezes, o coloca em situação
de dominação, quadros repressivos, em um estado agudo de angústia. Inscrevendo
a poesia e a ternura em suas relações com os outros, o homem pode atingir uma
d inâmica de satisfação simbólica de sua energia insatisfeita. Isto é, o que o
passeio ao léu pretende instaurar nas relações educativas.

68
CAPÍTULO V

DIREITOS HUMANOS E S EMIOLOGIA


ECOLÓGICA: DO D IREITO NATURA L À S
DIMENSÕES SIMBÓLICAS DA POLÍTICA

Permitam-me apresentar a questão dos direitos humanos e da


democracia como uma particular e específica postura política frente à
vida: a gênese de um p rocesso de transformação da ordem simbólica e
das instituições socialmente estabelecidas, onde a autonomi a dos
desej os sej a básica, assim como o cuidado com o planeta que nos
abriga. Numa palavra, os direitos humanos como ativo fermento de
uma auto-alteração da sociedade. Quero dizer com isso que, sob seus
diversos aspectos, a tarefa política dos direitos humanos inscreve-se
diretamente no esforço para a instauração de uma sociedade autônoma.
Seria, em suma, o combate às condições institu ídas da heteronomia. A
eco-cidadania
O projeto político de instauração de uma sociedade autônoma
p recisa dissipar as imposturas de uma cultu ra carcerária e policial que
vai destmindo - pela fonnação de subj etividades indiferentes - a
existência de um espaço público que aj ude a dar um sentido ao mundo,
superando esquemas proj etivos alienantes : uma parcela alam1antemente
significativa de pessoas vivem desmotivadas, descomprometi das e
impem1eabilizadas por uma representação esquizofrênica do espaço e
do tempo. Educados por uma pedagogia que faz da indiferença uma
força impositiva, o homem transita despolitizado e perdido no meio de

69
verdades abus ivas, consumos frenéticos, afetos descartáveis e paix ões
sem futuro .
Discursos desgastados de governantes que gritam sua penúria de
recursos e exaltam a eficiência administrativa; falas estéreis de polí­
ticos profissionais que lucram com as angú stias quotidianas e despre­
zam os conflitos reais dos mais débeis; corrupções mal-dissimuladas,
abusos institucionais apenas sustentados por uma frágil retórica
legalista; tecnocratas e bu rocratas mortos de tristeza e imbecilidade, e
um terrorismo de Estado mess ianicamente encoberto, complementam o
quadro de uma sociedade nas práticas políticas e nas significações
imaginárias que as s ustentam .
Enfim, a ordem social banali zada, as verdades homogeneizadas,
os comportamentos e as motivações dos governantes e dos políticos
profissionais, as crises de meio amb iente, as ameaças nucleares e
bacteriológicas, estão destru indo certos tecidos de solidariedade social
e agudizando o ponto de não retorno de uma forma totalitária de
sociedade.
A cena da linguagem totalitária cria a possibilidade semântica do
monstruoso : a fundamentação heterônoma de uma moral perversa e
de objetivos sociais delirantes . O sentido total itário de uma fonna
social repousa numa versão oficial da realidade que m istura ad­
miravelmente utopias histéricas (que aprisionam os indivíduos nos
atributos perfeitos de um sonho impossível), fmstrações epicamente
narradas, mobilizações paranóicas em torno de um necessário estado -
de guerra pennanente c um imenso complexo de saberes que im­
p regnam de onipotentes e beatíficas certezas as significações ima­
ginárias dominantes . Pensamentos enfeitados e conformistas de uma
dominação racional que se expande ilimitadamente até envolver em seu
manto p rotetor as refinadas manifestações de uma institu ição deli rante
do mundo.
De minha parte, arrisco-me a dizer que a razão totalitária
desenvolve, como lugares comuns, processos imaginários que recon­
ciliam a razão c o abominável. Exi ste na fundamentação s imbólica de
uma forma social totalitária, uma dupla mensagem que, como
normatividade difusa, organiza as significações imaginárias instituídas .

70
Assim, fascinações e medos sustentam um duplo discurso que mistifica
uma diabólica lógica do terror. A virada de um milênio nos su rpreende
participando de uma cultura que nos socializa, mostrando o horror
como razoável . Tempos glaciais e de agonia, tempos de confusão
representativa que pulverizam nossos desejos para recompô-los
alienados num apelo heterônomo que nos incapacita para distingu i r o
sensato dos absurdos do terror institu ído. Impregnados de terror e de
fascinações, grandes maiorias despolitizadas, tenninam aceitando
p rática de horror, com uma natu ral indiferença legal ista. Assim, pode
promulgar-se na Argentina uma lei de obediência devida, que perdoa a
militarização cotidiana do terror: o pesadelo dilu ído nas fantasias
perfeitas do j u ridicismo .
A s ituação é alannante. A desapiedada dialética da heteronomia
institu ída nos coloca diante de povos famintos e sem perspectiva de
vida que p roduzem computadores . Povos que aceitam p rogramas
econômicos que geram destru ição. Uma brutal pirataria em grande
escala organizada para colonizar os desej os e engordar o gado de uns
poucos p ri v ilegiados . Uma assustadora quantidade de intelectuais
convertidos em meros portadores de um núcleo de verdades solida­
mente adquiridas 9
Estamos diante de uma cultura que, desenvolvendo-se numa escala
p lanetária, força a perda das identidades 1 0 . Uma tragédia magicamente
apresentada que toma coerentes e significativas p ráticas sociais não
desejadas ; encadeamentos simbólicos que harmonizam inexplicavel­
mente horrores, acasos e desej os, para p roduzir indivíduos sem idéias e
sem caráter. Estamos diante de uma "bela" racionalidade do i rracional,
que produziria sentido em todos os níveis e, finalmente, imobilizaria

A s i tuação é m u i to mais preocupa n t e na América Latina, onde exi ste uma legião
de i n t e l e c t u a i s que não mostram u m mínimo d e interesse para tentar entender c
t ranslonnar a encamação hi stórica do seu i m a g i nário soci a l . Preferem revivê-lo
nos sabores d e uma triste depcndl:nc i a c u l t ura l .
1° Como res u l t a do da perda das iden t i dades n a c i o n a i s , m u i tos povos ficam conde­
nados a ser u m excedent e cul tura l : o gado h umano da humanidade privilegiada,
as m a i o r i a s espo l i ados que podem ser tratadas como mercadoria s .

71
nossas ilusões numa fantasmagórica projeção de deveres sufocantes e
enigmas metafisicamente resolvidos .
Eis-nos diante do sentido de uma fonna de sociedade que procla­
ma possu ir as chaves de uma racional idade garantida e sem resí­
duos : uma vestimenta teológica e selvagem que nos vai forçando a
renunciar aos nossos desej os de ser, imb ricando-nos numa totalitária
legislação heterônoma e fechada. Tomado nonnativamente, o homem
tem1ina prisioneiro de uma apresentação consumada do sentido de seu
sentido histórico. As novas fom1as de vida social pennanecem mcs­
s ianicamente asseguradas por uma ordem s imbólica, sem surpresas
e que prepara o novo sem que nada de inesperado daí resulte. Nessas
condições desaparece o elemento primordial da p rática democrática: a
p rodução de um sentido para a vida individual c coletiva que não é
p ré-designada c que tem que surgir dentro de condições concretas,
que não descartam nem garantem a realização do devir. A essência
da dialética simbólica da democracia acha-se na afim1ação das
i ncertezas c das diferenças dcsejantes . Esta essência não pode ser
destmída pela soberana p resença cultural do univocamcnte deter­
minado . Os corifeus da democracia precisam entender que suas
palavras de ordem comprometem o desenvolvimento de suas práticas,
que precisam estar indissociavelmente l igadas a uma indetermina­
ção última com respeito ao quadrinômio: poder-saber-lei-desejo. Não
podemos pretender a solução dos problemas humanos na certeza
do pensamento, nas medidas justas dos sonhos esquematizados pela
razão, dos sonhos armados, visivelmente arrogantes na postulação de
suas respostas .
A democracia, como sentido de uma forma de sociedade, depende
de uma prática política (que não exclui a dimensão do sentido), capaz
de transgredir a massa s imbólica que faz do indivíduo um escravo da
hetcronomia institu ída. Este progresso transgress ivo p recisa, inclusive,
subverter as difusas idéias que, na versão instituída da sociedade,
operam como um uso definitório e alienado do sentido da democracia.
A democracia, como sentido de uma fonna social, não depende de
nenhum sentido consagrado porque ela é, antes de mais nada, a
dinâmica de uma i maginação produtiva, criadora e incerta, que ao

72
mesmo tempo concretiza espaços de resistência c transgressão frente a
um universo s imbólico-institucional, que transfonna a política em
manipulação opressora, a economia em fo rma de exploração, o saber
numa magia alienada que altera as práticas de construção das verdades
em pretensas p ráticas de domínio do absol uto, c os desejos em res ­
postas parasi tárias a u m consumo sem necessidade .
Estou tentando mostrar a democracia como uma dimensão
simbóli ca da política que se abre interrogativamente em direção a u m
futuro visto como prob lema c não como certeza. Digamos que a
democracia é a i nstância do imaginário social que não se aliena n a
representação já adquirida do devir.
Para falar da democracia como uma prática política de produção
do sentido, precisamos levar em conta que toda interrogação em torno
da democracia é uma pergunta sobre as condições de produção do novo
como sentido (não alienado) apaixonado, como uma prática que
exorciza os estereótipos c ultrapassa toda determ inação preliminar,
arrogante c opressiva. Uma abertu ra ao ainda não dito na comédi a
discurs i va das respostas q u e se bastam a si mesmas . Vale dizer que a
democracia, ao nível da institu ição imaginária da sociedade, não
encontra seu sentido defin ido, devendo ser apenas reconhecida como o
sentido de u ma forma de sociedade. Trata-se de uma perspectiva
semiológica da democracia que a vislumbra como o conjunto das
práticas instituintes da autonomia. Poder-se-ia dizer que uma
detemlinada forma de sociedade é democrática quando existe nela u m
número significativo de espaços onde possam "respirar" os desejos
desclassificados pelos sistemas s imbólicos sancionados; onde possam
realizar-se um número indefinido de operações tendentes à libertação e
transformação da linguagem, que fundamenta a heteronomia simbólica.
A democracia aparece, então, como a outra face simbólica do
tota litarismo, um vasto campo de representações que desconstrói os
arranjos totalitários da linguagem estabelecida.
Em resumo, a p rodução institucional das significações de uma
cultura (que por sua vez determina a p rodução institucional da
subj etividade c da real idade) recoloca as concepções da democracia e
do totalitari smo mostrando-os como momentos antagônicos da traves-

73
sia simból ica de uma sociedade. Desta maneira, estou tentando me
separar das conceituações jurisdicistas da democracia e do totalita­
rismo; tentando vê-las como o jogo dialético da repressão (práticas
heterônomas) e a autonomia simból ica .
Contrariando muitos preconceitos , penso que seria importante
considerar a representação da realidade c a produção institucional da
subj etividade como as fom1as iniciais da política. De fato, existe uma
semiose do poder que p roduz o real , domínios de objetos e rituais de
verdade e de desej o . Poderes que se exercem positivamente para a
fab ricação institucional da vida: homens produzidos por um poder
polifonne que os enclausura num horizonte unifonne de utopias
perfeitas . Gostaria de sugerir que a grande transformação da socie­
dade passe pelas mudanças na .forma de representação da realidade e
da produção da subjetividade. Partindo dessa tese, falo da democracia
e das p ráticas políticas dos direitos humanos vinculando as proble­
máticas que suscitam as tarefas de formação de um espaço público
emancipatório.
F l âmulas a parte, repenso a vi são de di reitos humanos domi­
nante que os ressalta como recu rso de natu reza moral e jurídica
contra as eventuais violações dos d i reitos individuais e, os mostro
como p ráticas que canal izam as operações de transformação da
matriz simbó l i ca das relações soc i a i s , s i tuando-as no seio da p ró­
pria soci edade . No marco das cons iderações precedentes não resta
dúvida de que a poss i b i l idade de fazer p o l í tica a part i r da ótica dos
d i reitos hu manos encontra-se di retamente comprometida com o
desej o coletivo de mudar as sociedades em que vivemos . Mutação
que só poderá ser consistente n u m trabalho de l inguagem que
permita o u v i r os desarranjos, as s u rp resas do mundo e aos perigos
das verdades que nos enclausuram . Desmistifícações s imból icas que
p ropiciam a amp l i ação incessante do espaço públ ico, a p rática de
uma forma nova de sociedade .
A possibil idade de fazer política a partir da ótica dos direitos
humanos se desenvolve entre dois pólos perigosos : a morte e o
j u risdicismo.

74
Tenho sentido u m pouco por toda parte as dificuldades de uma
certa p rática m i l i tante dos direitos humanos que não consegue
desvincular seu discurso dos efeitos teneb rosos dos atos cometidos pelo
terrorismo do Estado. Um condicionamento auto limitado que nos
coloca frente ao risco da emergência de um mero estereótipo
culpab i l izador, c de um moral ismo transcendente que sela a percepção
do futuro, impedindo o luto . Daí o patético que imobiliza constru indo
uma moral idade perfeita c tanática A asserção de uma plenitude que se
.

anu la como p rática de uma forma nova que empurra uma utopia à vida.
A luta pelos d i reitos humanos é a descoberta de uma fórmula incerta,
pouco canônica, uma fórmula que se coloca do lado da autonomia dos
desejos, não do sacerdócio. Todo luto demanda um balanço que deve
ser feito como dispersão de cinzas fecundantes recuperando as
,

experiências traumáticas do passado, long e das fom1as da angústia não


elaborativa, da angústia que paralisa na repetição melancólica da dor.
O sofrimento que se prolonga no tempo corre o risco de facil itar o
trabalho de des investidura própria de Tânatos . No nível da sociedade,
ela pode gerar um estado de psicose coletiva que facil ita a reprodução
institucional de uma ordem s imból ica p redominantemente totalitária.
As fal as dominantes sobre os direitos humanos encontram-se organi­
zadas a part i r de i l u sões imobi lizadas pela morte c a dor, i l usões que se
reencontram com as versões "j usnaturalistas" da vida: figuras teolo­
gicamente estabilizadas por uma moralidade i nflexível , homens
pol iticamente mutilados por uma ortodoxia valorativa.
Porém existe um sofrimento claborativo ainda a serviço de Eros . É
o sofrimento - p resente no trabalho de luto - ligado ao des investimento
de um obj eto para recu perar a libido c colocá-la a serviço de outro
investimento . N o Cone Sul falta este investimento nas falas dominantes
sobre os direitos humanos . Estamos diante de discursos que adquirem o
sentido i m ediato de uma mobilização (ética c jurídica) contra o
terrorismo de Estado c suas eventuais reedições . Desta forma, em nome
dos direitos humanos reivindica-se a responsabilidade ju ríd ica c moral
dos crimes cometidos durante a vigência plena do terrorismo estatal .
Desenvolve-se assim, um conflito aberto entre os governos constitu­
,

cionais, os organi smos de direitos hu manos c as forças annadas, que

75
enfrentam na atualidade, enonnes dificuldades e dilemas em razão
de sua p recária força como p rática politizadora da sociedade. É que,
ao cessar as violações inerentes ao exercício desapiedado do terro ris­
mo de Estado, desaparece também o impacto político de uma prá­
tica defensiva-valorativa dos direitos humanos . Seguindo esta lógica
de raciocínio, penso que o espaço político que pode gerar uma polí­
tica dos direitos humanos não pode ser reduzido a uma luta em tomo
dos p roblemas herdados do passado (que desta forma continuam a
organizar tanaticamente o presente) . Sem dúvida, os movimentos de
direitos humanos p recisam superar as antinomias transmitidas pela
tradição individualista e transcendente do direitos natural , renunciar à
procu ra de um mínimo de certezas j u rídicas e desenvolver sua práti­
ca política na procura de m odalidades de ação não convencionais,
que assumam integralmente seu compromisso com uma forma nova
de sociedade.
Por sua vez o j u risdicismo compromete as p ráticas políticas dos
direitos humanos reivindicando ideologicamente a neutralidade de suas
lutas . Um arsenal de conceitos vagos e indetem1inados revestem de
uma au réola inquestionável a excessiva i nfluência do j urisdicismo na
visão predominante dos direitos humanos . As representações ideoló­
gicas do direito natu ral e do fonnalismo j u rídico convergem para redu­
zir a ótica dos di reitos humanos a uma demanda de garantias legais. No
fundo, como assinala José Eduardo Faria, uma visão perversa que os
esvazia politicamente na medida em que é o próprio Estado que
regulamenta seu exercício j urídico e os impregna de mundo dos
legisladores e dos magistrados . Estamos diante de uma semântica
desgastada e disfi.mcional para os p rocessos de implantação de uma
forma social democrática. Sem esquecer que em nome do jurisdicismo
desenvolveram-se práticas políticas abertamente antidemocráticas . Os
slogans humanitários de defesa dos direitos do homem encontram-se,
também, difi.1samente p resentes nos projetos neofascistas deste fim de
sécu lo. Assim, mistificam-se as noções de democracia e de direitos
humanos fixando-as ao sentido supra-histórico, apolítico e suposta­
mente p rotetor que lhe impõem o apelo às salvaguardas jurídicas e a
função ideológica do p rincípio do "Estado de Direito". Em sociedades

76
fortemente desiguais, discriminantes e conflitivas não se pode inspirar
uma ação política sustentada no marco do Estado de Direito e da
democracia representativa. É evidente que tal fonnulação surge como
um sério obstáculo ideológico para a compreensão das exigências
inerentes aos p rocessos de transfom1ação social . A discriminação
social não se postu la nas leis . Estas a censuram como violação dos
direitos humanos . A discriminação como instituto jurídico está fora de
moda. No direito constitucional modemo prevalecem as declarações
antidiscriminatórias, na vida continuam por meio de intrincadas
estratégias s imbólicas destinadas a neutralizar decepções e alienar os
desejos . Grandes maiorias, formalmente protegidas pelo direito ficam
informalmente vetadas para a vida. Vãs ilusões que atordoam e
adom1ecem a participação de u m espaço público que desencadeie uma
dinâmica i rres istível de interrogações sobre o sentido da sociedade e o
alcance dos direitos proclamados . O que se deve destacar na ação
política dos direitos humanos é sua disponibilidade para transcender o
que j á foi j u ridicamente i nstitu ído e defender as reivindicações inéditas
da sociedade . A expansão da prática política dos direitos humanos
exige que se transponha o imaginário jurisdicista, se supere sua
dependência ao ideário do Estado de Direito c se reconheça sua força
transfo rmadora. Uma perspectiva de mudança profunda que não exclui
a luta pela ordem simbólica que institui qual é a realidade.
Não s e vive na história apegando-se ao direito natural . Ele depen­
de de um s i stema de representações que se sustenta por si mesmo e
converte em pressupostos universais as condições conflitivas da prática
social, cedendo à ficção naturali sta de um mundo unívoco c preexis­
tente às formas históricas das sociedades . P redomina no j usnaturalismo
a ilusão de uma leitu ra do real a partir de um universal que fala de s i
mesmo e vive da recusa expl ícita o u implícita das certezas e antago­
nismos do mundo . Um discurso escrito com maiúsculas para consagrar
uma ordem das aparências que impõem a regência das nonnas que, de
toda maneira que é interpretada, fomece segu rança real . Assim, a
autoridade tende a ser recoberta sob o poder da idéia. Graças a esse
artifício se fomece uma resposta que dissimula o projeto impossível de
um discurso que se apresenta como transcendente .

77
Resta, por ú ltimo, dizer que a prática pol ítica dos direitos huma­
nos p recisa revelar-se contra os l ugares comuns de um imaginário j us­
natu ralista e fom1alista c se apossar dos s ignos do institu inte para
engendrar uma contestação que visa uma autonomia do ser.
3 . Des l ocando um tanto as questõ e s anteriormente ap resen­
tadas, p retendo fazer agora uma leitura derivada de uma p s i cologia
de cunho p s i coan a l ítico. D i ria, então, que a morte e o j u risdicis­
mo terminam encontrando-se nas traiçoei ras emergências sim­
ból icas de um narc i s i smo negati v o . Eles atuam no espí rito como
armadu ras do desej o .
Soluções imobilizadoras . Respostas paranóicas de uma p roposta
que se falsifica emancipatória encerrando as pulsões e nópticas ideais.
,

Perfeições do pensamento que excluem as cumpl icidades conflitivas e


os espaços sociais do desej o .

As p ráticas m i litantes em defesa do homem enfrentam-se sempre


ao risco de sua inoperância. Periga sua função pol ítica pela imobilidade
que pode derivar de u m cu lto litú rgico a uma auto-satisfação pulsional .

Existem militantes que s imulam preocupar-se pelos outros para


ocupar-se de si mesmos. O calor de sua i ra pela defesa do homem é o
álibi de seu narcisismo negati v o Manifesta um desejo que nasce ávido
.

dos outros e con v ive i nválido com eles . I lhados pelos efeitos de u ma
pulsão de destru ição (não elaborativa), que pennite que o eu regresse a
si mesmo, reto rn am à p rópria cidadela, quitando dos objetos as
investiduras que tem aderidas .
O narcisismo negativo compromete as práticas políticas dos
direitos humanos de várias maneiras :
Num sentido, o negativo emerge como oposto ao positivo, exem­
,

plo, o ódio oposto ao amor, onde o amor espalha-se em forma invertida


e, portanto, sem poder amar ao outro . I sto manife sta-se claramente
numa militância narcisista dos direitos do homem que expressam "um
ódio-enamoramento" dos repressores .
Em outro sentido, o negativo do narcisismo remete ao conceito
puro de anu lação . E l a pode ser entendida sob os auspícios conotativos
do tenno "branco".

78
Refi ro-me a u m u s o deste termo em u m endereço semelhante ao
que s u rge em exp ressões como "dou a você carta branca" (abdico
de todas as vontades ) ; ou "ass ino u m cheque em branco" (as s u mo o
risco de despoj ar-me de todos os ben s ) . O b ranco s u rge, então, co­
mo u m a manifestação conotat iva de u m obj eto referido como d i v i ­
nidade, verdade a b s o l u ta, perfeição. Um obj eto zero, neutro, que s e
l iga e s e des l iga n o m e s m o e no outro, p rovocando seu s "efeitos e s ­
peciais", o q u e d ã o albergue a o " s i mesmo" que pode constitu i r, nas
periferias de seu obj eto zero, o s i m u l acro de um "eu " integrado
(formando, como d i z Winnicott, a imagem do desej o da mãe, s u a
m i rada i deal izada) .
Desta manei ra, o gesto neutro faz de s u as referências espa­
ciais u m a esfera que é u ma clau s u ra que bri nda ao indivíduo o
s i m u l acro de estar em u m a morada p rotetora, aparentemente não
confl itiva.
O obj eto que funciona, idealizado, como esfera, anula o espaço
potencial de um campo compartido, cúmplice e conflitivo. Nega o espa­
ço transicional que permitiria a emergência do político, a criação dos
efeitos da existência, do p razer de existir (que não é algo instantâneo,
p recisa ser instalado pelo objeto) e a capacidade de aceitar a admissão
do outro e a separação dele .
Nada disso se dá na militância dos direitos do homem, que se
perdem em estado de fusão, constituem obj etos brancos e sem com­
promissos . Uma possibilidade que supõe a confiança infinita no obje­
to e transforma as referências espactats do desej o num território to­
talitário .
* * *

Num parêntes is, d i ria que a democracia precisa sempre de um


espaço transicional que dispense as purpu rinas dos estados de fusão e
pennita a realização cúmpl ice (com os outros, do novo) .
* * *

Retomando o fio de minhas observações, acrescento que o j u -


ridicismo c a moral devota q u e organiza c exprime a discursividade
j u risnatu ralista c a sedução tranqüilizadora nas crenças num Estado de

79
direito não passam de um culto narcisista à imobilidade p refixada das
pulsões .
Estamos diante de concepções, estão inadvertidamente omitin do-s e
de seu compromisso p rimordial com a prática de autonomia.
Militantes e aparentes defendidos pennanecem cativos de uma
odisséia racionalista que lhes impede debruçar-se caudalosamente na
vida para tentar constru i r ao outro como obj eto de desej o .
Os acordos primordiais da defesa d o homem surgem d a pre­
servação da mobilidade de seus desejos . Em outras palavras, na cons­
trução e p reservação de um espaço cúmplice que permita seu devir sem
experiências castradoras .
Não se trata de contar com m ilitantes privilegiados que protejam
aos homens dos excessos dos poderes, mas de contribuir para criar as
condições que pennitam, a cada i nteressado, assumir com autonomia
sua p rópria defesa.
Falar dos direitos do homem é fazer uma convocatória pedagó­
gica. C riticar um espaço para um aprendizado recíproco das condições
que tomam poss ível uma existência autônoma, sem protetores, regras
de amparo ou objetos neutros que substituam os espaços cúmplices . Os
homens se defendem sozinhos ou não se defendem .
As p roteções tenninam por desproteger. Anu lam as cumplicida­
des, instalando em substituição delas um lugar para as identificações
narcisistas e neutralizadoras .
A esse lugar concorrem p rotetores e protegidos para atender a seu
narcisismo de morte e negar-se como corpos políticos no mundo .
O homem não existe como tal, se não logra sair do estado i lusório
que lhe pem1ite acreditar que todas suas necessidades serão satisfeitas .
Toda instância que lhe faz acreditar nessa ilusão é mortal .
Os saberes e as utopias vivenciadas como perfeitas satisfazem
a esse chamado letal . O aconchego das conceituações j urisdicistas
também .
* * *

Freqüentemente noto nos movimentos militantes em defesa do


homem a invocação a uma cau sa que exige uma entrega completa, até
perder-se numa identificação simbiótica com essa causa exaltada.

80
Estamos diante de uma p roposta de mil itância que precisa satisfa­
zer suas p u l sões na dependência de um objeto de culto.
O cu lto garante o s ilêncio dos desejos, a i nsatisfação que o
narc i s i s m o p rec isa para conservar-se cxitoso . E a "invej a do obj eto de
culto", a necess idade inconsciente de um reconhecimento social .
A irrealidade do obj eto de culto induz a uma regressão à sexual i ­
d ade p ré-genital, cria mártires e heróis d a moral, nutridos pela idealiza­
ção : abnegados de ferro que não conseguem u sar am1as do amor e
da vida para o combate . Expl odem de agress i vidade c arrastam para
as m í nas de sua renúncia agressiva os desejos do que pretendem
defender.
João Pessoa , j ulho de 1 98 8

81
CAPÍTULO VI

O ABUSO ESTATAL DO D IREITO :


b reves co m e n t á rios s o b re a c o n cepção j u ri s d i c ista
dos d i reitos h u m a n o s

Existe u m a forte tendência a apresentar a questão dos direitos


humanos sob um enfoque desideologizado e despolitizado.
A história do pensamento j u rídico e político do século XX
reafim1a uma forte tendência a reivindicar a neutralidade ideológica da
luta pelos direitos humanos .
As concepções extra-ideológicas dos di reitos humanos significam,
a meu ver, só uma coisa: a suj eição di reta à ideologia das forças histo­
ricamente obsoletas e retrógradas . Recorre-se invariavelmente à ideolo­
gia das concepções extra-ideológicas dos d i reitos humanos, as consig­
nações da neutralidade política e ideológica das lutas pelos direitos
humanos, para encobrir a verdadeira intencionalidade dos diversos
s istemas estatais de terror e a repressão institucional izada do povo.
As freqüentes afirmações de que o problema dos direitos do
homem têm uma importância autônoma e ideologicamente neutra
fonnam parte do desenvolvimento ideológico c pol ítico das p ráticas
instituintes de uma forma totalitária de sociedade . Assim, as concep­
ções dominantes dos d i reitos humanos constituem a medula de um
proj eto de desumanização c de despolitização do social, feito cínica e
mediocremente em nome de certas práticas pseudo humanizantes e de
um pseudo espírito transcendente e sem alienações .

83
A concepção desideologizada do p roblema dos direitos hu manos
foi expresso com bastante claridade pelo atual ocupante do trono de
S ão Pedro no discurso que pronunciou no Concílio Latino-americano
de Puebla (j aneiro de 1 979) . Nesse p ronunciamento João Paulo li
condenou a impunidade com que são violados em todas as partes os
direitos fundamentais do homem, afirmando que a Igrej a não p recisa
recorrer a nenhum tipo de ideologia para amar e defender ao homem e
contribui r para sua l ibertação. O j ornal Le Monde comentou com
assombro a tese papal : "Para João Paulo li os direitos do homem não
implicam nenhuma ideologia".
Parece-me impossível pensar sobre o sentido histórico dos direitos
humanos despojando-os de toda referência ideológica e política. Desta
maneira unicamente se tenta impor um quadro estereotipado e
mistificante das lutas que envolvem e comprometem sua significação.
Por um estranho fenômeno de histeria política, nossas habituais
estruturas mentais continuam refletindo a mentalidade do século XVIII.
Possivelmente um sintoma da tragédia do idealismo intelectual que
procura um fabuloso paraíso perdido. Fantasias perfeitas que negam
(entre outras coisas) o caráter político das práticas e os discursos
mobilizados dos direitos humanos.
Não podemos, tampouco, esquecer que na atualidade a discussão
sobre o sentido dos direitos humanos esconde a controvérsia geral, o
confronto, das principais ideologias de nosso tempo. Uma luta que
influi ativamente na produção institucional das personalidades alie­
nadas e nas dimensões s imbólicas da política internacional . Em nome
de presumidas violações dos direitos humanos se conseguem mútuos
reforços às formas de pensamento, orientadas à reprodução das ordens
simbólicas estabelecidas para assegurar o triunfo de uma classe.
Movimentamo-nos a partir de uma caracterização vaga e amorfa
dos direitos humanos, vestígios conceituais, estilhaços do senso comum
que pern1item confirmar crenças identificatórias maniacamente defen­
didas .
Ao contrário do que pretende o idealismo intelectual do ocidente,
em suas múltiplas variantes, todo conhecimento e interpretação da
realidade dos direitos humanos estão l igados a uma das grandes visões

84
sociais do mundo, a categorias de pensamento impensadas, que de­
l imitam o pensável e p redeterminam o pensamento.
As estratégias mudam, mas as p redeterminações continuam .
No Ocidente nota-se a tentativa de desideologizar e despolitizar a
visão dos d i reitos humanos. Nos países do Leste aparentemente se
assume o caráter político e ideológico, mas se nega todo e qualquer
efeito repressivo do Estado. Mostra-se ao cidadão como uma partícula
orgânica do Estado, sem nenhum antagonismo com a sociedade, o
partido e as instituições do aparelho governamental .
Termino de ler um renomado j urista soviético que afirma textual­
mente: "a liberdade política se expressa e se revela na possibilidade
garantida de participar na formação da vontade estatal, que corres­
ponde aos interesses da maioria, aos interesses do povo, reftren­
dados pelas leis, assim como no cumprimento consciente e voluntário
delas " 1 No fundo, o mesmo pensamento j u risdicista do ocidente.

Apelando p ara a neutralidade das leis, conseguem-se recuperar, de


um modo ainda mais forte, os efeitos negados dos slogans desideo­
logizados do discurso Ocidental sobre os direitos humanos .
2 . Retomando a p roblemática colocada em meu p rimeiro livro pu­
blicado2 diria que as visões utópicas do pensamento jurisdicista ten-tam
apresentar uma versão exclusivamente p rivatista dos usos abusivos do
direito: l igam a noção do exercício abusivo dos direitos aos inte-resses
particulares expressamente reconhecidos pelas leis: o uso abso-luto e
egoísta dos direitos legalmente concedidos . Nenhum j u rista que se
preze tenta trasladar a p roblemática das p ráticas abusivas ao plano do
direito público. Ignora-se o abuso estatal dos direitos, a castração
estatal de nossa personalidade, de nossos interesses e necessidades .
Existe uma denegação generalizada dos excessos da normatividade
estatal . Escamoteia-se, por um lado, a existência de uma sociedade que
vai sendo dia a dia tomada pelas leis . Dissimula-se, por outro lado, o

Zivs Samui l . Derechos Humanos. Prosiguiendo la discusión. Ed i torial Progresso,


Moscou, 1 9 8 l .
2
Luis Alberto Warat. A b uso de/ Derecho y Lagunas de la Ley. Editorial Abeledo
Perrot, Buenos Aires, 1 9 7 1 .

85
uso absoluto que o Estado faz da lei positiva em nome dos interesses
da sociedade, dos interesses do povo . Por suposto não estou falando
só do abuso do terrorismo do Estado (desaparecimentos, torturas,
exí lios forçados) ou da desintegração sócio-econômica de uma socie­
dade comandada simbolicamente por apelativas ilu sões de redemo­
cratização (caso b rasileiro) . Interessa situar-me diante de certos abusos
simbólicos que falam a respeito da implicação do desejo pessoal no
impessoal : a experiência do indivíduo num lugar inesperado, que es­
capa à norma geral .
O Estado do direito enquanto reivindica o lugar do normativo,
como instância que p rovoca a alucinação do outro e exalta um projeto
político-j u rídico que se basta a si mesmo.
O direito aparece, então, como um lugar tópico e utópico inaba­
lável que j ustifica a normatização total do tecido social . Um discurso
"uterino" de socialização, um feitiço que instala, na sociedade, a ilusão
de um lugar simultaneamente protetor dos interesses da sociedade e
das liberdades pessoais . Em ambos os casos é sempre o indivíduo
visto como um selvagem potencialmente perigoso, como um culpado
potencial que deve ser vigiado pelo Estado e pelo Direito. Um Estado e
um direito livres de toda suspeita e dos riscos de qualquer abuso. Um
Estado e um direito vistos como os lugares de ham10nia entre os
interesses sociais e os interesses individuais. As exorb itâncias, as des­
mesuras, os abusos ficam para os que estão a eles obrigados, o Estado
e o direito ficam, então, negados como potência de desordem e per­
versão .
Desta forma o jurisdicismo, como lógica de dissimulação, mostra­
se eficiente, dando crédito a uma ficção de neutralidade que escamoteia
os abusos de uma dominação j u rídico-estatal, decidida nos bastidores .
Na versão soviética do ju risdicismo exalta-se a limitação das
liberdades individuais quando elas afetam os interesses da sociedade e
do Estado. O imagi nário j u risdicista soviético não admite manifesta­
ções que atentem ao cerne de seu projeto de implantação de um regime
socialista. Mas, acrescentam os juristas soviéticos: que a prática do
desenvolvimento social confirmou que o Partido Comunista da União
Soviética constitui o ótimo mecanismo político para o cálculo, conjun-

86
ção e coordenação dos interesses dos distintos componentes da
sociedade, o mecanismo adequado para exp ressar os interesses inte­
grais de todo o povo soviético . Acrescentando que a ideologia do mar­
xismo-leninismo expressa os interesses cardeais do povo soviético,
tomando realidade a harmonia entre os interesses da sociedade e os
direitos do cidadão . U m discurso que finge ignorar a tendência ou p re­
tensão de uma fonna de Estado que deseja controlar completamente o
social .
Desta manei ra define-se u m saber que se exibe, mas também se
circunscreve, nos limites de um aparelho d irigente c de uma moral
inflexível e glorificada. Uma moralidade que repudia as incertezas e
toma afetivamente imatura toda p rática institu inte .
3 . D e modo geral, a instituição s imbólica da sociedade fixa uma
ilusão homogeneizadora que força as sociedades a representarem-se na
imagem de uma o rdem, de u ma comunidade orgânica unívoca e coesa.
Uma unidade que se representa sempre como um corpo. Velhas trans­
cendências continuam fi m1es, com novos nomes, com diferentes
adereços e máscaras . O fato é que segu imos escutando o discurso de
uma comunidade organizada, auto-afirmado no direito e na p ressu­
posição da existência de uma razão e de uma moral reguladoras da
sociedade. A bela i magem grega da sociedade hannoniosa que perdura
na apologia idealizada do Estado de direito, que não é outra coisa senão
o p rivilégio das condições da obediência submissa a uma ordem
p ressuposta: o modelo de uma "boa sociedade" que rejeita o caráter
conflitivo em que as leis são criadas .
No Estado de direito, os direitos são idilicamente enumerados . A
democracia p recisa inventá-los nas indetemünações da história e na
permanência dos conflitos .
Talvez precisemos falar dos direitos humanos com o direito à
permanência dos conflitos, como o direito a impedir que as revoltas
sejam negadas nos subterfúgios de uma harmonia de leis e saberes que,
no fundo, satisfazem o desejo de servidão.
A democracia como o sentido de uma forma de sociedade é sempre
o p roduto dos conflitos sociais e das resistências à produção institu­
cional de uma subjetividade que nos marca e nos anula, insistindo nas

87
representações de certeza e na redução da ordem política às relaç ões de
poder.
Vivemos dias de perplexidade c de mudanças de sensibilidade.
Sociedades unidas ideologicamente ao Estado sem que se vislumbre no
horizonte o ocaso da exploração e do terror. Uma dominação tecnolo­
gico-bu rocrática-totalitária que se vai impondo, desannando e disse­
cando as paixões, consagrando o tédio e a indiferença.
Assim, a democraci a e as práticas políticas dos direitos humanos
pem1anecem p risioneiras de um traj eto de esperanças c desesperanças
que pedem os sinais de novas perspectivas, que ocultam a passagem a
uma nova redescoberta do mundo. Í dolos e fundamentos começam a ser
destronados por uma sensibilidade nova e receptiva às diferenças, às
particularidades, aos acontecimentos menores .
Estamos diante de uma nova "di sposição de espírito" para repen­
sar a política e o direito a adj udicar-lhe novos territórios de sentido.
Fugindo de um sentimento generalizado de desencanto começam a
fazer-se visíveis as fantasias, as lacunas do pensamento estabelecido.
Ele começa a envelhecer pela interrogação, no trabalho do pensamento
não degradado pela fixação das certezas . A tradição envelhece pelas
incertezas . As práti cas políticas dos direitos humanos não podem
esquivar-se desta p ressuposição se querem lutar além das alternativas
moralizantes e culpab i lizadoras da dupla face do juridicismo (socia­
lismo b urocratizado e capitalismo tardio) .
As evidências estabelecidas não servem para interrogar-nos sobre
os direitos humanos e sua inscrição na ordem s imbólica de uma
sociedade que encontra, na democracia, seu sentido. As últimas expe­
riências de luta e resistência mostram a esterilidade das profecias
onipotentes e das regras do jogo que delimitam padrões de compor­
tamento.
Tempos que p recisam de fem1entação criadora e afetiva. Tempos
à procura de transfo rmações sem vigilâncias moralizantes nem cinis­
mos . Tempos de desafio existencial que demandam a reinvindicação da
autonomia para todos os setores da vida social . Tempos em que o
homem p recisa ter uma consciência autônoma de seus direitos e capa­
cidade para fomulá-los e reivindicá-los . Estamos diante de uma

88
sociedade que busca reconhecer-se aberta para poder p reservar a
condição humana frente às grandes máquinas (simbólicas e tecnoló­
gicas) . Sociedades que necess itam do conflito para contrabalançar a
démarche de uma ordem total itária que ameaça com sua irrever­
sib ilidade.
Frente a Estados e a impérios econômicos que ampliam seu poder
e petrificam as i ndiferenças, frente a minorias de privilégios que
concentram a riqueza, o saber e o direito, devemos contrapor uma nova
concepção da política, do saber c do direito que se oponha aos que
querem conservar os privilégios . Os grandes proprietários temem os
conflitos . Eles ameaçam os logros conquistados . Obviamente os gran­
des possuidores p reocupam-se por garantir suas conquistas, falam
sempre dos d i reitos adquiridos . Denunciam algumas grandes explora­
ções, mas deixam o Estado no lugar do p rivilégio e o P artido Comu­
nista no lugar das respostas sem suspeita.
Já não é mais possível criar modos de vida que p reservem a vida,
sem aceitar as ambivalências do desej o e seus enigmas frente ao novo.
Estereoti pamos a compreensão do mundo quando renunciamos a reco­
nhecer que u m acontecimento pode ser não só conflitivo, mas também
contraditório. Um movimento pode ser ao mesmo tempo revolucionário
e contra-revolucionário (como acontece com muitas das p ráticas dos
direitos humanos ) . Podemos lutar contra o totalitarismo, desenvolvendo
fom1as totalitárias de resistência. Podemos amar a vida e violentar
tanaticamente os momentos de afetividade . Trata-se da exigência de
não deduzir dos esquemas de inteligibilidade as interpretações e os
caminhos operativos face aos eventos e às transfom1ações de nossa
sociedade. Desfazer as representações pre-estabelecidas é uma p ré­
condição para as lutas pelos direitos humanos. P recisamos ter o direito
a reencontrar a liberdade de i nstitu ir o mundo aceitando o risco de
decifrá-lo sem culpa e sem sentidos pré-adj udicados .
Por certo, estou falando das instâncias preliminares, dos p relúdios
para uma prática política dos direitos humanos, sem os fantasmas da
totalidade e dos saberes i nfalíveis. Para isso é mister constatar a
inadequação de uma visão instrumental da política que a mostra como
realidade secundária, que institu i historicamente o poder. A política é

89
também uma luta pelo espaço simbólico, incidente em que se apaga a
transcendência do poder e se anula sua eficácia s imból ica. A política
demanda um espaço público como espaço simbólico que irradia o
múltiplo e interdita o unívoco .
Pode-se dizer que estamos diante de uma reconsideração da
política que se defronta com uma concepção do peso do imaginário
social, sensível às vacilações do saber, da lei e dos desejos.
Uma fom1a social totalitária forja uma identidade do povo com o
poder que pressupõe o tratamento simbiótico do poder, do saber e da
lei . Desta manei ra forj a-se um p rincípio absoluto de inteligibilidade que
libera do risco de interpretar sem segurança as incertezas da tempo­
ralidade: o traçado de um sentido único para os acontecimentos a fim
de controlar os enigmas do tempo e as alterações da história. Não pode
dissimular-se que uma das grandes condições para a fom1ação e
rep rodução s imbólica do totalitarismo é a perda da memória histórica.
Assim, a consciência do homem identifica-se com a consciência do
Estado. É evidente que num projeto totalitário, o tempo e a memória
coletiva pertencem às instituições executórias do referido projeto. O
ritual de intervenção sobre a memória e o tempo se dá através de um
campo simbólico que exalta um relato não conflitivo da história: cele­
bra-se um passado convenientemente estereotipado para que opere
como referência legítima do projeto de dominação, apagando-se simul­
Umeamentc todo vestígio que pem1ita traçar uma interpretação diferen­
te. O Estado totalitário não só monopoliza a coerção como uma forma
de sua legitimação pennanente, também recorre ao saber para
monopolizar as lendas da história c modelar as sucessivas caras do
outro maléfico, permitindo, assim, apresentar-se como sua outra face.
O Estado aparece como o possu idor de um saber absoluto sobre a so­
ciedade, sua história e sua lei : um grande benfeitor. No fundo, uma
tutela sustentada na imagem de um saber c uma lei perfeita que nos faz
esquecer que numa memória coletiva unificada, não se percebem os
conflitos, as diferenças e as divisões . As imagens perfeitas da lei e do
saber fortalecem as apresentações transcendentes do poder totalitário
impedindo o desenvolvimento dos conflitos que tentem a resistência, a
transgressão c a ultrapassagem da institucionalidadc totalitária.

90
4 . As p ráticas empreendidas em nome dos direitos humanos têm
que ter como meta impedir que os problemas da sociedade sejam
definidos sem a participação efetiva (não ilusória) dos membros da
so ciedade ou mesmo contra eles . Em outras palavras, são ações que
traduzem o caráter essencialmente pol ítico dos d i reitos humanos, en­
quanto impedem que a pol ítica se confunda por inteiro com o poder e o
direito. Falar dos direitos humanos, como prática pol ítica, pressupõe
sempre, no mínimo, uma di stância entre o poder c a sociedade, um
espaço de diferentes ações que constituem uma forma de resistência e
transgressão à identidade entre os dominantes c os dominados . As
práticas políticas dos direitos humanos são sempre práticas de lutas
que abrem fissuras, que abalam a produção institucional de uma
identidade entre a opressão e os oprimidos .
Fugindo do j u ridicismo, diria com Leford, que a questão dos
direitos humanos adqu i re i mportância em razão de um impostergável
questionamento das formas totalitárias do poder, do saber e da lei,
ass im como do sentido, que determinam para a fonna da sociedade
contemporânea.
O significado político profundo de uma prática dos direitos hu­
manos encontra-se inti mamente ligado a uma concepção da política
entendida como espaço público (de uma sociedade incerta, heterogênea
c conflitiva) e p rática s imbólica de transgressão, resistência c trans­
formação .
Resulta claro, então, que as diferentes versões j u ridicistas dos
direitos humanos mal diss imu lam a incompatibilidade absol uta entre as
práticas políticas dos direitos do homem e o poder de um Estado que
engendra a ilu são de uma norma impessoal c anônima, praticando
muitas vezes a ilegalidade para atender à sua própria segurança. Pode
observar-se, com espanto, como na América Latina alguns governantes
reclamam que a sociedade ou as outras instituições do Estado conva­
l idam a legitimidade de suas práticas i l ícitas . Hoje na América Latina
se está passando de um estágio de i l icitude. s i lenciosamente tolerada
pela indiferença, a outro estágio onde se reivindica o reconhecimento do
caráter legítimo dos abusos, das corrupções, do terror p raticado por
alguns órgãos do Estado .

91
Estamos imersos numa forma social totalitária onde o poder, o
saber, o direito e a moralidade tornam-se propriedade do Estado,
enclausurando a política como reflexão e p rática. Os indivíduos n ão
podem invocar sentidos adversos acerca dos grandes lemas, as crenças
ideológicas e os p rincípios de organização da vida social . O
desconhecido é semp re domesticado, circunscrito ao registro do conhe­
cido. O Estado aparece como legitimador da ordem (ainda quando a
violenta descaradamente) - legitimidade atingida pelas práticas
s imbólicas de um p rojeto de socialização que despreza a questão do
"outro", a questão do ser.
Partindo desta perspectiva, percebe-se que a questão dos direitos
humanos e da democracia p recisa ser pensada como um projeto global
de l ibertação do homem em todos os nívei s : social, político, psíquico,
econômico, ético e estético. Em ú ltima análise, forçar o social a
afirmar-se como imprescindível cenário dos conflitos, das práticas de
auto-autonomia e das reviravoltas das verdades instituídas .
Desta maneira, as p ráticas dos direitos humanos determinam a
dissociação entre o saber, o poder, o direito e a moral estabelecida,
deixando a sociedade exposta "democraticamente" à indeterminação
dos direitos, das verdades, dos poderes e dos valores, à razão do
Estado . Para procurar o sentido democrático de uma forma de socie­
dade temos que tentar deixá-la exposta às suas próprias ambigüidades
e incertezas .
Frente às razões, aos poderes e às p rescrições que vão deter­
minando o sentido totalitário de uma forma de sociedade (um j ogo
disciplinar e culpabilizador que toma o espaço público e avança sobre a
intimidade quotidiana dos desejos e afetos), a p rática política dos
direitos humanos surge como um plural imprevisível dos espaços de
resistência e transgressão. Neles surgem práticas s imbólicas de deslo­
camentos, abalos, que vão, pouco a pouco, revelando uma insuspeita
matriz política: o "ainda mais" de todo discurso i nstituído.
As p ráticas dos direitos humanos desencadeiam uma irreprimível
dinâmica de democratização, na medida que provocam nosso reen­
contro com o "outro" e com a autonomia de nossos desej os, pelas
dimensões simbólicas do "além", numa multiplicidade de atividades

92
autônomas em todos os campos do social . Os direitos humanos s ão
fundamentalmente reivindicações do não-estabelecido . Eles fundamen­
tam o direito às incertezas . Nesse sentido eles preservam uma distância
entre o poder c o discu rso. E, por esta mesma razão, prop iciam a
possibilidade de um deslocamento c mesmo de uma transgressão do
imaginário e das p ráticas que, a despeito dos antagonismos dissimu­
lados, assegu ram uma i dentidade de referência c a continu idade de um
projeto de dominação.
Em nome dos d i reitos humanos pode assegu rar-se a ultrapassagem
permanente do instituí do, abrindo o social à dignidade das margens, ao
"outro" que não tem estatuto de suj ei to por não ter acesso à regra.
Asseguram-se, assim, democracia, criatividade e resistência.
Percorrendo esses caminhos temos que redimensionar conceitos para
poder permitir-nos a possibilidade de elaborar a crítica à dominação
totalitária e às práticas que sej am as locomotivas de uma permanente
reinvenção democrática da sociedade. As respostas ao totalitarismo
implicam a "resolução" (pelo menos a tentativa) do enigma que cons­
titu i o social como divisão e que faz da política uma luta para impedir
que as regras e rotinas não operem . Tenho insistido, em meus últimos
trabalhos, na necess idade de perceber o sentido da democracia como a
outra face do totalitarismo: um acontecer político entendido como auto­
criação incessante de novos direitos e ultrapassagem permanente de
limites na sociedade . É a política que encontra sua definição na própria
procura de seu destino c na negação de uma realidade, em princípio
prefixada: advento incompleto e ruptura do imaginário instituído e
suas p revisões . É a democracia como imaginário inventiva que recusa
todas as modalidades de petrificação social . O totalitarismo assenta-se
nessa petrificação, depende de um poder cristalizado que se irradia por
toda a sociedade . Frente a esse jogo de irradiações, as práticas dos
direitos humanos realiza o sentido da democracia criando espaços para
ir além dos limites do poder petrificador c fora do fechamento do
imaginário social , do imaginário sem invenções, que assegura a
transcendência do poder c sua eficácia simbólica.
Interessa-me, sob retudo, mostrar a democracia como uma prática
semiológica que abala os efeitos simbólicos do poder, pronunciando a

93
interrogação inicial, inaugural, acerca da alienação c da autonomia. Ela
passa simbol icamente à margem do poder estabelecido para combater
as condições institu ídas da hegemonia, tornando exp lícitas suas faltas .
Neste sentido, a questão dos direitos humanos surge também como
uma instância simból ica de interrogação que marca os limites do
totalitarismo, abrindo um espaço de reflexão e autonomia para a
constitu ição criativa do mundo .
5 . Após as interrogações precedentes sobre o sentido político dos
direitos humanos, pretendo encerrar as presentes digressões questio­
nando a tarefa de homogeneização c de unificação do social que per­
manecem impl ícitas nas atuais propostas de redemocratização do Cone
S u l . Elas reafi m1am o p rojeto impossível de um discurso e uma prática
que p retende a redemocratização de nossas formas de sociedade reto­
mando as gastas flâmulas do Estado de direito . Elas só ficam airosas
nos momentos críticos em que um povo busca sair de u ma conj untura
política gravemente contaminada pelo terrorismo de Estado; logo essas
crenças nos conduzem a um perigoso campo de certezas onde se podem
anular as possibilidades do espaço político . O Estado de D i reito e o Es­
tado moral que al imentam a ficção de dominar sua origem, seu próprio
espaço c o devi r das p ráticas e suas representações .
As crenças juridicistas que sustentam a ideologia do Estado de direito
dependem de um discurso vão, na medida em que o que é procurado por ele
não pode ser atingido. A democracia como dimensão simbólica da política é
sempre um "além" do social, a pennanência de um sonho incerto, de um
sonho que não pode ser burocratizado, nem pode ficar prisioneiro de uma
versão das regras que escondam a ambigüidade de suas represent:1ções e
efeitos . A democracia é um sonho em aberto. Ela pressupõe o direito
fimdamental do homem à criatividade, o direito de ter um imaginário sem
policiamentos : a invenção democrática como imaginação que nos leva
diante do novo. Assim, democracia e totalitarismo guardam profunda
relação com a autonomia do dcs�jo e do imaginário. A possibilidade da
livre criação de sonhos fora dos espaços mortos das instituições, para
pennitir a abertura para o novo, para o diferente, para o inesperado . . .
enfim, para a democracia.

94
PARTE 1 1

Democracia e Estado d e Di reito


CAPÍTULO I

ESTILHAÇANDO UTOPIAS

I. D O SENTIDO DA DEMOCRACIA À
D EMOCRACIA COMO SENTIDO

C omeço este artigo apoiando uma tendência atual da c1encia


política que considera a democracia como uma dimensão simbólica da
política 1 •
D e maneira geral, p retendo com este trabalho fazer uma
apreciação crítica da concepção j urisdicista da democracia de tal forma
que fiquem fixadas as bases da proposta, que i rei formular sobre as
condi ções de possibilidade e de existência de outra relação entre a
sociedade civil e o Estado . Neste sentido, interessa-me diagnosticar e
antecipar teoricamente o funcionamento global de uma sociedade que
encontra suas bases de sustentação e realiza suas práticas de poder no
interior de um imaginário social que integra e disciplina - em uma
p roposta dogmática - todas as dimensões da existência pública e
privada. Em ú ltimo tem1o, trata-se de compreender a expressão

Dentro desta t e n d ên c i a podemos citar Comcl ius Castoriadis e C laude Lefort. Eles
seriam seus mentores na fi l osofia política francesa Na América Latina poderia
citar o chileno Roberto Leclmer, o argentino José Maria Gomes e os brasi l eiros
Marilena Chauí, Ligia da S i l va Cavalcanti e Leonel Severo Rocha.

97
simbólica de uma sociedade, que só consegue produzir, a nív el teóri co e
i lusório, o sentido de uma forma de vida democrática.
Estou me referindo a um imaginário social baseado na ficção de
um Estado e de uma sociedade transparentes, harmônicos e íntegros,
graças às regras do j ogo que o direito consagra e preserva. Regras do
jogo que permitem tomar decisões coletivas, fortalecer atitudes
vinculantes e extingui r os conflitos sociais, através da apl icação da lei .
Regras de jogo que, por outra parte, favoreceriam o desenvolvimento
de relações sociais autônomas na medida em que as decisões coletivas
poderiam ser tomadas com o máx imo de consenso e respeito à Ie ?
Em contrapartida, pode-se pensar a relação entre a sociedade civil
e o Estado como lugar da heterogeneidade dos desejos e da produção de
um direito questionável, contraditório e imperfeito; um dire ito em
permanente estado de conflito e transformação.
Nessa ordem de idéias, a democracia não pode ser pensada como
uma "condição de garantia" senão como possibilidade de referência à
complexidade s ignificativa, que na sociedade determina a prática da
produção autônoma da subjetividade. Fica claro que toda prática de
autonomia nos remete ferozmente contra uma prática totalitária do
poder, já que encontra os caminhos de sua realização na resistência,
transgressão c transfo rmação das dimensões totalitárias de uma forma
de sociedade . Esta transgressão saudável, essa resistência, esse esquive
libertário que pemlite ouvi r uma forma de subjetividade coletiva fora
do controle institucional, no esplendor pem1anente da realidade social,
eu a chamo: democracia. Trata-se, sem dúvida, de uma prática política
que, sem ramificar-se metafis icamente, p roduz o sentido de uma forma
de sociedade, gerando espaços de resistência e alteração ao funcio­
namento - de uma oprimida eficácia - totalitário do espaço social .
Como sentido de uma fonna de sociedade política a democracia
caracteriza a sociedade como um conjunto de práticas organizadas a
partir de um imagi nário social que aceita a pluralidade e a hetcro-

Confonne Norberto Bobbio, "Fundamento y Futuro de la Democracia", confe­


rência pronunciada na Uni versidade de Valparaíso, em 29 de abril de 1 9 8 6 ,
Edeval, 1 9 8 6 .

98
enei dade de manifestações, desejos, discursos e ações; que aceita a
� e m1anen te interp retação cr.ítica d.os mo �os da institu ição social . e que,
p ri nc ipalm ente, perm1te atnbll lr a d1v1sao e ao conflito o carater3
de
el em ento constit utivo da vida, da política, do saber e do direito
D esta maneira, a democracia define o sentido de uma forma de
sociedad e política pela intens idade com que permite a divisão e o
confl ito , expressando-o em forma negativa: pela intensidade em que
p ode i r prod uzindo lugares de res istência frente às práticas de domi­
nação , às práticas de disciplina e às práticas da subj etividade .
Desde logo, pode-se falar de democracia como sentido de uma
fom1a de sociedade, s e se desenvolvem na sociedade modos de subj e­
tivação e de ação comunicativa que permitam a divisão e o conflito e,
simultaneamente, gerem espaços de resi stência com relação àquelas
práticas do poder, do saber e do direito que atentam contra as p ráticas
de autonomia abe rtas pela divisão e pelo conflito
As práticas de autonomia nos mostram que uma sociedade está
sempre em confronto com suas contradições, que existe semp re o
perigo de uma petrificação das opiniões, das condutas e das crenças.
Por outro lado existe sempre a possibilidade de fazer valer novos
direitos, de combater os p rojetos que pretendam restringi r a uma mino­
ria de privilegiados a riqueza, a cultura e o próprio direito . Não se pode
nunca deixar nas mãos dos que possuem a riqueza e o saber a
possibilidade de definir o sentido da democracia, nem a democracia
como sentido de uma forma de sociedade . É necessário entender que os
"donos" do saber e da riqueza unicamente conseguem produzir s ignifi­
cações que servem para a conservação de seus privilégios . O confronto
com as estrutu ras que sustentam os privilégios sociais, políticos e
econômicos vai conferindo o sentido da democracia como sentido de
uma forma de sociedade que se desenvolve confl itivamente resistindo
ao totalitarismo .
Estou, assim, apontando para uma caracterização procedimental
da democracia para deixar de lado todo compromisso especulativo em
tomo dos conteúdos da democracia.

3 Neste sentido, ver Lelàrt , A Jnvençclo Democrática, 13ra s i l i ense, 1 9 8 3 .

99
Trata-se, com efeito, de conseguir fom1as concretas para gerir as
p ráticas democráticas . Desta maneira, pode ser redimensionado o
conceito de democracia, mostrando-o simplesmente como a outra face
do totalitarismo . Com isso a democracia termina sendo entendida como
o sentido de uma resistência, como o sentido de uma transgress ão
permanente dos l imites de um futuro e de uma realidade que já foi
totalitariamente p rogramada. Como o sentido de uma transgressão, a
democracia é uma p rática política que se realiza buscando sua próp ria
definição.
No entanto, o totalitarismo pensa o desconhecido, o imprevisível e
o indeterminado como figuras do "inimigo"; a democracia perde seu
sentido na medida que não depende de uma definição antecipada de seu
destino.
A prática democrática cria espaços além dos limites do poder e
fora das clausuras do imaginário social . Ela se desenvolve à margem
do p oder estabelecido.
A democracia como sentido de uma prática de resistência nos
coloca diante de uma i déia alternativa de revolução; a revolução
molecular que não nasce sobre o impulso de um conflito interno a
transcendência do poder, no moniento em que se transgride a sua
eficácia s imbólica.
Adorno e Horkheimer pensaram a modernidade sobre o prisma de
uma "lógica totali tária" que se tomaria i rreversível. Estes dois autores
pensaram o totalitarismo como forma moderna do destino social .
Quando penso na democracia quero simplesmente me referir às
formas em que a sociedade se reinventa para resistir ao totalitarismo;
vej o nesta resistência o sentido da democracia e na democracia o
sentido da resistência.
Recorrem Ross, Kelsen e Bobbio ao que se denomina uma con­
cepção puramente p rocedimental da democracia. Em nenhum momento
estes autores pensam a democracia como o conteúdo de uma
determinada ordem social e econômica que se propaga com o melhor e
. .
com o mais J U Sto4 .

4 Bobbio, "Fundamento y Futuro de la democracia", p. 3 3 .

1 00
Os três aludidos autores vêem a democracia como o conjunto de
regras ou p rocedimentos, aquelas que amiúde se chamam "regras do
jogo" que pennitem tomar as decisões coletivas . Estas no sentido de
que se dirigem a todos os membros de uma coletividade e que, além
disso, são vinculantes 5 .
Para estes filósofos pos itivistas a questão da democracia se
resolve no p lano formal , definindo as regras gerais e abstratas, que
garantem o valor da segurança j u rídica, tomando previsíveis e
controláveis as decisões emanadas dos órgãos dotados de autoridade.
Esta caracterização formal da democracia se contrapõe à definição
substancial de democracia que p ropõe entender sua significação através
do conteúdo e dos valores nos quais o Estado deveria se inspirar para
ser qualificado como democrático. As propostas de Ross, Kelsen e
Bobbio estabelecem um sentido formal de democracia que não coincide
com o que estou mostrando .
Em primeiro lugar, porque a democracia concebida como sentido
normativo de um consentimento em tomo das decisões coletivas
termina sendo reduzida a um sistema de legalidade onde o consen­
timento se converte na necessidade de obedecer disciplinadamente à lei .
A democracia é, então, entendida como o consenso disciplinador de
órgãos e cidadãos para uma ordem simbólica, apresentada como racio­
nalidade formalmente homogênea e exclusiva6 .
A democracia fica, desta maneira, apresentada como um esforço
da racionalidade nom1ativa para garantir logicamente um jogo contro­
lado e burocratizado de argumentos e répl icas . Com isto, no fundo, se
recupera a p roblemática de Maquiavel em tomo do cálculo da ação
social, fundada em uma racionalidade fom1al, única e unifonne. Deste
modo, estereotipa-se uma idéia monologicamente totalitária de demo­
cracia. Triunfa a idéia de um Estado e de um D i reito racional que deixa

Bobbio, "Fundamento y Futuro de la democracia", p . 3 3 .


6
Luiz A. Warat, U n trilema epistemologico más a l i á dei p ositivismo j uridico,
H.L.A. Hart, Norberto Bobbio e A! f Ross in: Revista de Ciencias Sociales de la
Un iversidade de Va/paraíso, 1 9 84, n° 2 5 , p. 75 .

101
de lado da sociedade, do nosso cotidiano, o irracional , o caos e a in se-
7
gurança .
A democracia como sentido de uma forma de sociedade é
precisamente o privilégio da invenção quotidiana, a exaltação de seus
antagonismos e fom1as de resistência às práticas de dominação . Ela
precisa, para constituir-se, do reconhecimento de um território simbó­
lico coletivamente constituído como negação de um lugar a priori, e
como rebelião a um delito social ju lgado previsível .
Em segundo lugar, não me parece adequado fundar um enten­
dimento em tomo da democracia negando a possibilidade de deixar
aberto o futu ro e detem1inando antecipadamente os fins da ordem so­
cial.
Pmiiculam1ente, não aceito falar de democracia dando um valor a
um tipo de i magi nário que não aceite que a sociedade precisa estar
exposta a uma indetemlinação permanente, e exposta, também, a con­
fl itos de todo tipo (valores, opiniões, saberes, desejos) além do conflito
de classes . Falar do controle normativo como condição da democracia
implica não admitir que a resistência frente a uma forma social
totalitária passa pela perda de fundamentos segu ros para definir os
lugares sociais , o que é l ícito ou i lícito, o que é j usto ou injusto, ou o
que é moral ou imoral . C reio que algumas idéias em torno da demo­
craci a servem para o funcionamento de uma ordem simbólica
totalitária, se elas não pemlitem decifrar os sinais do novo, pondo em
crise as evidências estabelecidas . Naturalmente i sto quer dizer que não
se devem excluir as práticas políticas de resistência para exaltar
substitutivamcntc o valor abstrato de determinadas regras protetoras .
Para Bobbio as decisões coletivas preci sam ser tomadas através
de regras . Ou seja, trata-se de regras que estabelecem quem deve tomar
as decisões e como se devem tomar. Para esse autor, a regra funda­
mental da democracia é que as decisões devem ser tomadas com o
máximo de consenso daqueles aos quais as deci sões afetam 8 Como a

Hart-Bobbio-Ross, en "Revista de Ciencias Sociales de la Universidad de


Valparaíso", no 2 5 , p. 76.
Fundamento y tilturo de la Democracia, p . 38-39.

102
unanimidade é um ideal muito dificil de alcançar, os j ur i stas sustentam
o critério da maioria. Este c ritério majoritário permite sustentar a fic­
ção j urídica em torno de uma produção autônoma das decisões cole­
tivas .
Importa notar, aqu i , que sempre se produziu uma usurpação
retó rica da regra da maioria. As decisões coletivas não se deixam de
prod uzir heteronomamente quando se invoca ficticiamente a vontade
m ajoritária. As maiorias manipuladas suportam, em seu p róprio nome,
o funcionamento heterônomo das decisões coletivas . Sobre a base da
v ontade da maioria se cria uma aparência de autonomia que serve para
ocultar o caráter heterônomo das decisões coletivas . Em nome da auto­
nomia os j u ri stas conseguem legitimar a constitu ição heterônoma dos
suj eitos de direito c das ;;'ignificações ju rídicas, deixando nas mãos de
instâncias institucionais a fonnação da prática política e jurídica da
sociedade .
Cabe supor, portanto, que para Bobbio a democracia exige funda­
mentalmente o respeito às instituições . Elas, em nome da vontade majo­
ritária, p reservariam o governo das leis sobre os homens . De acordo
com esta idéia a problemática da democracia se identifica com o Estado
de direito . Por trás desta visão se esconde uma legitimação da ordem
existente fazendo coincidir a racionalidade e a "instituição imaginária
da sociedade" . Parece claro que a tese de Bobbio identifica, em última
instância, o consentimento das maiorias com a necessidade de garantia.
É interessante notar que o único ponto que as maiorias acordam, fora
de toda representação mítica, é a necessidade de contar com um sistema
institucional de garantias . De tal modo, em sentido mais profundo, as
maiorias unicamente conseguem reconhecer automaticamente certo
espaço institucional para a resolução hcterônoma dos conflitos e a
detenninação dos processos de identificação social .
Particularmente, não aceito relacionar as práticas de autonomi a
com a s práticas d e consentimento . Quando penso e m autonomia evoco
imediatamente uma certa concepção da subjetividade compreendida
como a formação não alienada dos desejos coletivos . Chego assim a
uma idéia de autonomia que aponta aos processos de resistência que
podem ser estabelecidos contra os modos disciplinadores e ou supres-

103
sores da produção institucional da subj etividade. Estou desta man eira
sustentando que, na garantia da produção institucional da subjetivi dade
e das decisões coletivas, se esconde u ma garantia de alienação. Uma
garantia que precisa ser entendida como negação e não como afirmaç ão
da democracia.
O traço comum de todos os p rocessos de autonomia está determi­
nado por um devi r diferencial, pelas micro lutas quotidianas que os
homens estão dispostos a travar contra a alienação .
Para resumir: a autonomia deve ser entendida como um processo
através do qual se consegue ir afim1ando uma pragmática da singula­
ridade humana, pragmática que permite produzir paulatinamente (plena
de contradições e conflitos) atos de resistência à alienação, à produção
institucional da subj etividade e das decisões coletivas . Nesse sentido a
autonomia, muitas vezes, é um ato de resistência à vontade de uma
maioria institucionalmente interpretada.
Parece-me que não haveria nenhum inconveniente em falar do
consentimento das maiorias se o pensarmos como um processo alta­
mente diferenciado (em pennanente estado de redefinição) de produção
da subj etividade, nunca como ponto de partida, como gesto i naugural
de uma fom1a de sociedade, ou como categoria a priori do imaginário
social . O que não podemos é p reservar a "vontade da maioria" como
uma categoria metafisica ou uma fórmula estereotipada.
Não existe, em meu entender, um processo democrático de produ­
ção da subj etividade, que não seja criador, produtor de novas reali­
dades e significações. Um p rocesso sempre precário e sem garantias .
Os j u ristas, acud indo à razão, pretenderam construir genuínos
s istemas de representação que terminaram desenvolvendo um conteúdo
abstrato e universal par a democracia. Recorrem miticamente à razão
para entender a democracia. Falam da democracia sem tempo, ou seja,
à margem da história. Poderia dizer que os j u ristas desenvolvem sua
idéia de democracia no interior de um tempo mítico . A temporalidade
própria do mito é uma plenitude de presente que não contém marcas de
história; nela os desej os, os atos e os pensamentos se dão em plenitude,
posto que não estão suj eitos à marcha do contingente.

104
Quai s são as conseqüências políticas desta representação abstrata
da de mocracia? Por um lado, se estabelece uma distância i rrecuperável
entre a democracia imag inada como realidade abstrata e seu funcio­
namento político como p rática de resistência ao poder do Estado, ou
seja, a separação sem retomo entre o espaço de instituição de uma
ordem social, p ressuposto como sentido valioso da vontade majoritária,
e uma sociedade à qual se reserva, como destino, o consumo passivo
das s ignificações i nstituídas . Por outra parte, nos defrontamos com
uma p roposta de unificação do conhecimento da sociedade, que
dissimula, com seus sentidos p reexistentes, a natureza incerta e ambi ­
valente d a p rodução s i mbólica d a realidade
.

C reio pertinente destacar que o totalitarismo não é o resultado de


uma t ransfonnação do modo de produção . É o resultado de uma trans­
fom1ação da ordem s i mbólica. A institu ição de uma ordem simbólica
totalitária depende de uma condensação da esfera do poder, o saber e a
lei . Desta fonna surge u m discurso unívoco, predizível e detenn inado
a-historicamente : um discurso destinado a oferecer a segurança de u m
princípio absoluto de i nteligib i lidade que nos l ivra do risco de i nter­
rogar, de i nterpretar e de questionar. O discurso totalitário detem1ina
uma identidade fantástica do povo consigo mesmo e do povo com o
poder. A p a rtir do ponto de vista s imbólico, o totalitarismo se rege
pelas noções de necessidade histórica c de continuidade temporal
homogênea. Em tempo s ignificativamente controlado pelo traçado de
um sentido único para os acontecimentos; tudo o que vem a inter­
romper o curso esperado da h istória (divisões conflitos, desej os não
,

modelados institucionalmente) será imputado a acidente, inimigos ,

traidores, personagens que terão de ser excluídos para não perturbar ou


modificar o sentido unívoco da história e ameaçar a identidade entre
dominantes e dominados .
Resulta evidente que a conceitualização abstrata e universal da
democracia, ao oferecer um p rincípio absoluto de inteligibil idade, en­
cerra as formas de interação social dentro de um modelo com poucas
oportunidades para uma prática de resistência c criatividade; um
modelo d e democracia que funciona sutilmente como expressão dis­
s imuladora de u m destino social totalitário.

105
Termino afirmando que o total itarismo é uma fonna de semio­
tização da realidade . A democracia, como prática de resistência à
produção s imból i ca de uma realidade altamente repressiva e discipli­
nadora da subjetividade, precisa ser entendida como uma estratégia
altemativa de semiotização da realidade . Desta manei ra a democracia
passa a ser entendida como um acontecer simbólico; a outra face
s imbólica do totalitarismo. Assim, a democracia pode ser entendida
como a transgressão permanente de uma realidade já dominada e de um
futuro antecipadamente interpretado. A democracia não é outra coisa
que uma ruptura simbólica do tempo instituído, um território de
significações sem garantias . Ou seja, uma fom1a de semiotização, que,
renunciando a uma concepção individualista da sociedade, e descar­
tando as visões congeladas do mundo, possibilite um desenvolvimento
ilimitado do homem e da sociedade.
Quando falo de democracia como sentido de uma fonna de
sociedade, quero, sobretudo, ressaltar a possibilidade de uma estratégia
de semiotização simultaneamente conflitiva, aberta e criativa.

106
CAPÍTULO li

CRISE DA DEMOCRACIA E CRI S E


DA MODERNIDAD E

Norberto Bobbio entra na história d a filosofia por vários caminhos.


Em linhas gerais, podem distinguir-se duas contribuições à Teoria Geral do
Direito c à Filosofia Política. Toda sua obra encontra-se penneada por um
inquebrantável desejo de estabelecer os fi.mdamentos - racionais e políticos
- de uma sociedade democrática. Obstinadamente trata de mostrar as
contradições c os efeitos perversos nos quais caem os regimes democrá­
ticos: perversos no sentido de que no próprio seio das democracias se
desenvolvem situações que a contradizem e ameaçam dermbá-la. Desta
maneira, Bobbio coincide com algumas correntes da Filosofia Política
contemporânea que ressaltam a necessidade de examinar os pontos críticos
das sociedades que lutam para estabelecer uma ordem democrática, como
uma fonna iniludível para compreender os mecanismos que em seu próprio
seio abrem as comportas para o estabelecimento de uma ordem social
i rreversivelmente totalit:-lria.
Com este b reve trabalho pretendo fazer algumas reflexões para­
lelas à tese de Bobbio sobre a crise da democracia, com a intenção de
estabelecer alguns novos interrogantes sobre o futu ro da democracia
nas culturas capitalistas pós-modemas . Neste sentido me interessa
diagnosticar que o funcionamento global destas sociedades parece estar
determinado pelo estabelecimento de uma ordem social i rrcversi ­
velmente totalitária. Se o diagnóstico é aceitável , a crise da democracia

1 07
estaria fundamentalmente determinada por sua incapacidade de proje­
tar-se e p rojetar o futuro do homem e da sociedade. O atual s istema de
necessidades socialmente estabelecidas, principalmente baseado no
consumo indiscriminado de bens e valores, não precisa de uma ordem
social democrática para reproduzir-se. As crenças democráticas
também terminam convertidas em mercadorias; segue-se apelando
ideologicamente às crenças democráticas e ao mesmo tempo se anul a o
espaço político onde elas poderiam emergir e consolidar-se.
Penso - seguindo Lefort - que a democracia se encontra compro­
metida com p ráticas e idéias que vão instituindo permanentemente
novos valores, novas necessidad�s e novos antagonismos na sociedade.
Uma ordem social democrática p recisa, para funcionar, do advento de
práticas e significações que pela ação de múltiplas circunstâncias his­
tóricas, vão instituindo novas relações com o poder, a dominação e o
sentido da autonomia do homem . Nesta direção, a democracia não se
encontraria comprometida com a organização das instituições existen­
tes, seja para criticá-las, reforçá-las ou simplesmente aperfeiçoá-las . A
democracia é uma p rática pennanentemente instituinte do espaço polí­
tico da sociedade. Um espaço onde o poder se legitima por estar perma­
nentemente vinculado à permanência dos conflitos e dos antagonismos
sociais. Assim, a sociedade vai sendo constituí<ia na dimensão do conflito e
por sua constante redefinição. O totalitarismo emerge da democracia
negando o conflito c a natureza indeterminada da sociedade. Desta forma,
apresenta a sociedade s implesmente regida por uma ficção de unidade e
hannonia; por esta ficção, lei, poder e saber se constituem instâncias
indifercnciadas que pemútem construir a in1agem de uma "boa sociedade",
de um "bom governo" c da. "comunidade ideal"9 .
É a imagem de povo Uno, ou do povo unido e indivisível . Parece-me
que a crise estrutural da democracia se passa, sobretudo porque ela carrega
em seu seio representações fictícias de unidade entre a lei, o poder e o
saber; representações u nitárias sobre o social c o político que são atua­
lizadas de fato pelo totalitarismo. Por este motivo, a "crise da democracia"
deve ser encontrada a partir da recuperação totalitária de suas crenças

9 C laude Lefort, A !nvençào Democrá tica , Cap. II, Brasiliense, São Paulo, I 982 .

l08
mestras . Em outras palavras, não se pode compreender a crise da demo­
cracia como uma forn1a de sociedade, sem fazer uma profi.mda interro­
gação sobre o totalitarismo, sem nos preocuparmos em desmantelar a
lógica de sistema totalitário, ali onde ela é exercida plenan1ente, ou seja, no
interior das instituições sociais de nossa cultura, nas instituições onde se
mantêm a organização alienada da lei, o saber e o poder.
C reio que, em p rincí pio, a superação da "crise da democracia" -
vista como p rodução predominantemente simbólica - pode se concre­
tizar a partir do reconhecimento de uma relação diferente entre lei,
saber e poder. Desta maneira, poderia passar a existir fora do poder
instituído um pólo alternativo do poder e do saber. A partir deste pólo
se desenvolveria autônoma e conflitivamente - em disj unção com
qualquer tipo de certezas - uma dinâmica dos direitos e uma dinâmica
do conheci mento . Então, as relações de p oder não poderiam continuar
sendo encaradas de forma p etrificada, como se elas fossem efeitos
necessários da pessoa de um p ríncipe, de um órgão coletivo, ou de uma
instância que funciona acima da sociedade.
Mais p assa o tempo, mais me convenço de que as questões que os
juristas privilegiamos amiúde em nosso itinerário teórico para pensar a
democracia, não bastam. A concepção j urisdicista da democracia entra
em crise em sua confrontação com a cultu ra pós-moderna, e pelo que
me toca, tenho a fí nne impressão de que a crise da democracia é um
resultado direto da crise da modernidade.
Minha esperança de achar alguns caminhos de superação desta
dupla crise está v inculada à possibilidade de desenvolvimento de meca­
nismos adequados para alterar as condições atuais de nossa cultura.
Parece-me evidente que unicamente podemos reinventar a democracia,
nos preocupando em tentar subverter e impor, cada vez mais, novos
limites à pragmática totalitária de nossa cultu ra instituída; estabele­
cendo a resistência à ordem social totalitária que nos governa, reivin­
dicando a autonomia para todos os setores da vida social, lutando
contra as atuais condições de produção alienada de nossa subj etividade.
Hoj e mais do que nunca, pode-se dizer que a crise da democracia
está sendo provocada por uma profunda crise de autonomia, por uma
profunda crise da razão iluminista.

109
Inclusive, a prob lemática dos di reitos humanos, que para Lefort
constitu i u o elemento modelador de uma pem1anente ampliação dos
espaços democráticos, precisa ser entendida em função das lutas que
devem ser empreendidas contra todos os sintomas e efeitos de uma
fom1ação social totalitária.
Toda p reocupação em torno dos direitos humanos é sempre uma
fornm de resi stência à imensa rede de coerções que vão tecendo os
laços da sociedade totalitária.
Parece-me oportuno ressaltar que, diante da vigência, em escal.a
planetária, de u ma formação social que apresenta sintomas de totalita­
rismo i rreversívCI , se toma necessário imaginar e produzir novas for­
mas de sensibilidade para o político e para o direito . Para isso, parece
imprescindível que se ponha em j ogo uma nova idéia de existência; que
se refo rmule o atual sistema de necessidades sociais e que se procurem
novos meios de pensamento e de ação.
Vivemos um tempo em que é preciso romper os limites, em que as
velhas segu ranças c as evidências estabelecidas por uma fom1a de
pensamento começam a destilar perplexidades, angústias e uma certa
resignação melancólica para articular um programa de transformação
da sociedade.
Como resultado, temos que conviver com propostas de pensamen­
to que oscilam - pelas tentações da desilusão - entre u ma filosofia
moralizantc e uma filosofia da i rresponsabilidade, negando-se, assim, a
contar com u m novo horizonte para o pensamento, o direito e a
política. Elas devem ser a passagem para novos tempos ; precisam
servir de passaporte vital a um futuro viável para o homem . Um futuro
mais fiel às exigências de u m cotidiano que precisa ser preservado
como lugar de p rodução do que é socialmente inédito . A democracia
depende da realização de um desej o de inovação . Nesse sentido, não se
podem deduz i r os significados da democracia a partir de saberes ou
modelos morais que se arroguem o direito de dizer-nos em que consiste
a verdade ou a realidade. Eles são sempre revitalizados pelo devir de
um desej o de inovação ; as representações ideológicas da sociedade vão­
se p roduzindo como negação e clausura de toda invenção s ignificativa.
A crise da democracia, em grande medida, é provocada por sua

1 10
vinculação a u m s i stema de rep resentações que se sustenta por si
mesmo, convertendo em condições universais da experiência as
condições m ú ltiplas, amb íguas ou conflitivas da prática e do discurso
social . O u sej a, é u ma crise de alienação, que nos faz pensar o novo
amparado pelas sombras do velho (ou pelo melancólico desej o de
descartabi lidade) . Por isso, para ter acesso ao futuro, é p reciso come­
çar por nos desvestir dos sistemas ideológicos, romper com as ciências
pseudo-obj etivas e aceitar a democracia como produtora do inédito,
como um trabalho aberto à razão, um trabalho de interrogação sobre a
forma moderna de dominação : a cu ltura totalitária, sua teologia e sua
teleologia. A democracia depende da criatividade social e não de uma
razão que ofereça as seguranças de certos p rincípios indiscutidos de
intel igibilidade. Para superar as formas alienadas da razão, temos que
renunciar a u m tipo de saber que nos l ibera do risco de interrogar ou de
interpretar, do risco de aceitar que não existe algo assim como a
necessidade histórica ou a continuidade temporal. A dominação
totalitária se exerce precisamente a partir de um j u ízo negativo sobre
todos os rumos não p revisíveis da história. A dominação totalitária
precisa de uma identidade absoluta entre dominantes e dominados (que
se vai logrando através da tecno-ciência) que a force a negar os
caminhos imprevistos da história. Por isso se privilegia um conceito
totalitário de democracia, fortemente impregnado da metafísica j uris­
dicista consagrada pelo modelo napoleônico de direito .
Muitos pensadores, inclusive Norberto Bobbio, pensam que
podem superar as formas atuais da dominação totalitária recuperando o
ideário sempre glorificado, das crenças jurisdicistas em tomo da
democracia. Creio que estamos diante de um grande equ ívoco: o retor­
no às grandes crenças do j urisdicismo serviria unicamente para reforçar
a dominação totalitária. Tanto as versões liberais do mundo como as

marxistas dependem de inumeráveis fónnulas de compromisso; todas


elas vinculadas à p resunção de u ma ordem e uma razão reguladoras da
sociedade. As duas tendências são complacentes com uma idéia de
comunidade c com a possibilidade de enunciação de uma lei
totalizadora e uma ham10nia social, a conqu istar idéias, todas elas mais
destinadas a encobrir um sistema de dominação que a desenvolver uma

111
luta real contra a opressão. Trata-se de idéias que vão tecendo a
história da cristalização do poder.
Deve-se reconhecer que a democracia como a outra face da
dominação totalitária, demanda um processo de constituição multípla,
pem1anentemente aberta ao inesperado, sensível a uma programaç ão
futura, que não se l igue às crenças do passado .
A p rática democrática (como a "outra face do totalitarismo") se
realiza por uma incessante criação de espaços além dos limites do
poder estabelecido, e fora dos lugares "fechados" em que se exercita e
se p roduz i nstitucionalmente o imaginário social . A democracia vai-se
realizando nas margen s do poder estabelecido e como uma negação
permanente de seus efeitos s imbólicos .
Falar em democracia exige um permanente confronto com a lógica
totalitária que vai organizando de fonna implacável, o destino social a
partir da modernidade. P ara freá-la, p recisamos de muita criatividade
política; um novo direito, uma nova abordagem do político e novas
formas de racionalidade que sirvam para anular a eficácia s imbólica do
poder estabelecido. E imponham permanentes limites ao totalitarismo,
estendendo as fronteiras do possível .
A p rática democrática não cessa de expor os poderes estabelecidos
aos conflitos que os desestabilizam e os transfonnam em uma recriação
contínua da política, do direito e do saber instituído. Desta forma,
convida-se a criar novas formas de experiência político-jurídica, novas
modalidades de convivência social, inventando contrapoderes sociais
capazes de enfrentar a onipotência da cultura oficial . Um poder
democrático se inventa contra os poderes instituídos, criando um
i maginário apto para transcender ao totalitarismo que vai tomando
posição nas diferentes instâncias sociais .
* * *

Em s íntese, tratarei de demonstrar que as lutas democráticas se


abrem para a história como processos de reversão do totalitarismo.
Também insinuarei que o poder institucional e suas formas de domi­
nação se constituem e disseminam seus efeitos apoiando-se nas virtudes
mágicas acopladas aos s istemas de representações que servem para
produzir institucinalmente as fonnas dominantes da subjetividade; ou

1 12
seja, a dominação cultural . Uma forma social total itária requer o uso
discipli nador das s ignificações .
Penso que as idéias dominantes na atualidade, baseadas em con­
cepções j u ri sdicistas do poder e da política, se instalam no sentido do
poder instituído, da dominação social totalitária.
O j u risdicismo apresenta um modelo de Estado que p recisa
cumprir uma ampla função protetora através do direito. Este deve p re­
servar e garantir todos os meios para o exercício de "certas liberdades"
(direito ao trabalho, a um certo nível de educação, de vida etc . ) ou, pelo
menos, em �tenuar os rigores e riscos de um ocaso social que possa
ameaçar essas liberdades. Assim, o j u risdicismo assume a imagem de
um "Estado-Socorro" que precisa atender às exigências mínimas das
chamadas "democracias sociais". Concebe-se a existência de um poder
tutelar que p recisa ser atenuado pelo controle dos setores sociais sobre
certas esferas de influência.
O modelo de Estado j u risdicista se fu ndamenta em uma concepção
negativa do poder, a qual supõe sua dissolução no reino da lei. Dito de
outra fonna, o uso da força fís ica - ainda em ú ltima instância, ainda
como "extrema ratio" - é o caráter específico do poder político . O
Estado pode ser definido, portanto, como o detentor do poder político.
Como meio e fim da ação política dos indivíduos e grupos em conflito
entre si, é o conj unto das institu ições que em um determinado território
dispõem c estão capacitadas para valer-se dela, da força física por­
quanto tem o monopólio da mesma; monopólio que encontra j u stifi­
cação racional em Hobbcs e em Max Weber 1 0 .

10 Norberto Bobbio, "La cri s i s de la democracia y la lección de los clássicos" en


Crisis de la democracia, N . Bobhio, P . Pontara y S. Vaca. Ariel , Barcelona,
1 985. ". . O Estado pode ser dctinido como o detentor do poder polí tico e,
portanto, como meio e fim da ação pol ítica dos indivíduos c dos gmpos e m
conOito entre si , enquanto é o conj unto das instituições que em um dctenninado
território di spõem, e estão capacitados para valer-se dela no momento oportuno,
da tàrça fi s i ca para resol ver o conOito entre os indivíduos e os gmpos. E pode
dispor, c estú capacitado para utilizar, da força tlsica, enquanto detém o
monopólio da mesma", p. 6-7.

1 13
Para Bobbio c o pensamento j urisdicista em geral, o exercicio
democrático do monopólio do poder coativo depende da existência de
um Estado de Direito que torne possível a solução dos conflitos sem
recorrer à força. Assim, a democracia dependerá, para Bobbio, do
monopólio estatal da coerção fisica, da detem1Ínação por parte do
Direito e de um conjunto de institu ições que reduzam ao mínimo as
possibilidades de uma regulação coercitiva das relações sociais 1 1 •
O Estado democrático entra em crise - para este autor - quando
começam debi litar-se algumas das características que acabo de
descrever. Para o filósofo italiano, a crise do Estado democrático pode
ser compreendida a partir da consideração de três problemas, a saber: a
ingovemabilidade, a privatização do público e o poder invisível 1 2 .
O primeiro problema p retende fazer referência às conseqüências
derivadas da desproporção entre as demandas, cada vez maiores, que
p rovêm da sociedade civil e a capacidade que tem o sistema político
para responder às mesmas . Nesse caso, não estaríamos diante de um
uso abusivo do poder, mas sim, de um não uso, instituições que não
pecam por excesso, porém, por defeito de poder. O segundo p roblema

1 1
Id. , ibid. , p . 1 2 : . . . n o que cada fonna d e exercício d a força física está regulada
"

por nonnas que pennitem distinguir o uso legal do uso i lega l . . . o conjunto das
instituições que tom a possível a solução dos conl1 i to s sem recorrer à força física
constitui , além disso, o estado de direito, o estado democrático."
12 "( .
. ) Trata-se da ingovemabilidade entendida como conseqüência da despro­
.

porção entre demandas que provem cada vez mais da sociedade civil e a
capacidade que tem o sistema político para responder às mesmas. Vemo-nos
obrigados a constatar cada dia mais que a máquina estatal , inclusive a mais
perfeita, se tomou d emasiado débil c demasiado lenta para sat i s fazer todas as
demandas que os c idadão s c os grupos lhe fonnulmn. Este inconveniente está
estreitamente relacionado com a democracia, da qual se po d e considerar um
e le i to perverso, porque o regime democrático é precisamente aquele que mais do
que qualquer outro fac i lita, c em um certo modo requer a apresentação de
demandas por parte dos cidadãos e dos gmpos." . . . "Colocado o problema da
ingovemabi l i da de como problema de d i ferenç a entre demanda c resposta,
compreende-se que as sol uções extremas possíveis são substancialmente duas: a
d issimulação forçada da s demandas, que é a solução autoritária c o bem, o
reforço e a melhora do Estado, dos serviços que é a solução social democrática. "
,

l l4
se refere à t ransfo m1ação das rel ações pol íticas em relações privadas,
fortal ecendo, ass i m , vínculos pessoais, extremamente util itários e
imed i at istas .
O tercei ro p roblema faz referência ao caráter invis ível, secreto,
das dec i sões do Estado, do exercício do poder: o autocrata invis ível que
governa a part i r de uma política capilarmente persuas i va. Um poder
que se oss ifica cada vez mai s para tornar-se invu l neráve l . Um poder
que multipl ica os s ignos exteriores da dominação para tornar cada vez
mais ocu lta a t rama das deci sões
Para Bobbio, ao tema da v i s i b i l idade e invi s i b i l idade do poder,
devem somar-se outros doi s : o da ideologia como ocu ltação e o da
crescente capacidade para conhecer os comportamentos dos cidadãos e,
portanto, "vê-los" através da o rganização pública de centros de infor­
mação, cada vez mais aperfeiçoados e sempre mais eficazes mediante a
u t i l i zação de meios eletrônicos .
Para Bobbio, uma das fu nções da ideologia é a de ocultar a
verdade com obj eto de dom í n i o . Portanto, o poder tende - para este
autor - não s ó a esconder, a não fazer saber quem é nem onde está,
mas, incl u s i ve, a esconder suas autênticas intenções no momento em
que suas decisões se fazem p ú b l i cas . S imula e dissimula para exercer a
dominação . O ún ico antídoto para esta tendência de quem detém o
poder é a crítica desmitificadora . Ela se tornaria cada d i a mais difícil
de ser exercitada, dada a real potênci a dos meios que tem o poder para
manipular a info rmação social .
Hoj e existe por parte do Estado u m ab uso de info rmação que
resultaria - a j u í zo de Bobb io - mais eficiente que o abuso de poder
cláss ico, determinado pelo ab u so da força. Bobbio mostra sua
preocu pação frente a este fato inédito, sugerindo que se deva pensar em
novas regras sobre os l i mites do p oder do Estado - o que evidentemente
é insuficiente. Não é uma questão de l imites, é uma questão que
corresponde às sutis fonnas em que se organi zam os mecani smos
psíquicos necessános para i n ternali zar a dominação na pós­
modernidade . Uma época onde o s aber tecnológico, instmmental, toma
inclusive inócuos os s i stemas ideológicos de representação .Talvez
teríamos que pensar na necessidade de recuperar algu ma fonna de

L15
presença das ideologi as como mecanismo de reinvindicação (e supe­
ração da crise) da democracia.
Encontro algumas dificuldades em aceitar o modelo de democracia
e as causas de sua crise, tal como Bobbio as apresenta.
Em primeiro lugar, não me agrada pensar a democracia a partir da
idéia de um monopólio da coerção por parte do Estado . A democracia
não se realiza nem se reinventa a partir desse monopólio. A democracia
precisa conceber o lugar do poder como um lugar vazio, sem donos
nem monopólios .
Em segundo lugar, encontro bastante dificuldade em pensar a
democracia a partir d� palavras de ordem, como se fosse a inovação de
um suposto estado de direito que regularia antecipada e idealmente os
conflitos dentro do horizonte das possibi lidades estabelecidas, dentro
dos limites de uma l icitude juridicamente reconhecida. Quando em
realidade a democracia é um pem1anente p rocesso de transgressão da
legalidade instituída. A democracia p recisa sempre ir além do direito e
do Estado, transgredi r sua licitude para realizar-se. Uma democracia
que não transgride os limites de um universo de licitudes consagradas,
morre. Para sobreviver, p recisa ampliar permanentemente o campo do
l ícito e para isto, tem i rremediavelmente que mover-se, crescer e viver a
partir de um espaço de ilicitude. A democracia entra em crise preci­
samente quando não consegue existir i nvocando o direito de tomar
lícitas certas zonas de i lícitos . Negar a dinâmica de i l icitudes compro­
metidas com as lutas democráticas é no fu ndo pensar nas possibi­
l idades de uma democracia totalitária, uma democracia vizinha ao
"estado direito".
Tão pouco creio que a mobi lidade constitutiva da democracia se
preserve a partir de u m conjunto de institu ições que tomem possível a
solução antecipada dos conflitos . Essas instituições servem somente
para enquadrar os movimentos sociais, as manifestações dos social­
mente excluídos ao modelo normalizador da subjetividade oficial .
No fundo, não estou aceitando a i déia que Bobbio tem de
democracia. Trata-se de uma idéia que não permite compreender que a
democracia não pode ser repensada a partir de uma perspectiva jurídi­
co-institucional . Ela tem que ser revista exaltando, desde a filosofia

1 16
política, seu funcionamento simbólico. Quanto aos problemas que
podem - segundo Bobbio - colocar em crise o modelo de democraci a
p o r e l e p roposto, me parece conveniente apontar:
a) Que a ingovemab ilidade é uma questão diretamente comp ro­
metida com a questão da eficiência técnica do Estado . Para fortalecê-la,
habitualmente apela-se a certas crenças a respeito do "bom desem­
penho" que resu ltaria do robustecimento das estruturas tecno­
burocráticas do Estado . Uma solução, no fundo, diretamente compro­
metida com a perda do espaço político da sociedade. Por outro lado, o
aumento das demandas sociais responderia a um incremento da lógica
de p rodução capitali sta; necessidades estas, que estão levando os
homens ao estado de "andróides eletronicamente dependentes". A crise
da democracia, a meu ver, não passaria, então, por uma questão de
ingovernabilidade das demandas existentes . Ela provém do tipo de
necessidades às quais os homens foram submetidos . Por isso me parece
importante pensar a democracia como um espaço político onde os
homens, coletiva e solidari amente, pudessem p rocessar um novo
sistema de necessidades .
b) Em relação à p rivatização das relações políticas, creio que a
questão p recisa ser enfocada a partir de outro ângulo. Não se trata de
um p roblema de emprego do poder, atendendo às necessidades
estritamente pessoais dos políticos, como Bobbio sugere. Parece-me
que a questão da p rivatização das relações políticas deve ser vista
como a perda do espaço e do sentido da política dentro do proj eto de
dominação pós-moderno. A negação do político é uma questão vis­
ceralmente comprometida com o declínio da democracia na pós-mo­
dernidade. A dominação totalitária está em relação direta com a perda
do espaço político na sociedade atual .
c) No que se refere ao problema da visibilidade das decisões
estatais, parece-me importante conectar esta questão com a da perda
total, a redução ao s ilêncio a que está submetida a atividade do
pensamento na pós-modernidade. Ele determina a transformação i rre­
versível do corpo em uma máquina programada. Um corpo diretamente
vinculado a um estado que decide "soberanamente" os rumos do
programa.

1 17
Desta maneira, vemos como na pós-modernidade - mais que na
invisibilidade de certas decisões é preciso denunciar a proibição a que
-

os homens foram submetidos, de pensar acerca das decisões tomadas


pelo Estado. Mai s que a invisibil idade, haveria que se falar do esque­
cimento da existência de uma instância decisória.
* * *

Para i r finalizando, direi que é impossível reinventar a democracia


para que ela funcione no seio da cultura pós-moderna sem advertir que
ela tem que ser repensada como instância simbólica, que se levanta
como res istência a uma sociedade imobilizada por um s istema de
imagens, u m olhar perpétuo e onipresente (The B ig Brother) que vai
tomando irrevers ível um abuso de dominação e de poder que acabará
aniquilando toda a possibilidade de pensar, descobrindo pem1anen­
temente o que deve ser reprimido por nossa consciência.
Enfim, é impossível pensar a democracia no interior de uma
cultura que nos despojou de toda confiança em nossa produção
psíquica.
Não é possível pensar a democracia no interior de uma cultura que
me deixa a curiosa sensação de que mais que um ser humano, sou uma
espécie de manequim. Uma cultu ra que, em vez de ensinar-me a pensar,
a expressar idéias, serve para dissolvê-las . Desde logo esta forma se
estaria diagramando um mundo onde se faz impensável a idéia de
conflito e, portanto, impensável a democracia. Sociedade prisioneira de
um discurso de poder que faz possível o totalitarismo, a subordinação e
todas as conseqüências que vão desde as travas sinistras da criatividade
às patologias graves .
Finalmente, quero dizer que estou pensando a crise da democracia
como uma crise s imból ica da cultu ra pós-moderna, porque me interessa
ressaltar a importância política (como forma de resistência a uma or­
dem que vai se afim1ando como irreversivelmente totalitária) que
adqu ire a luta por definir quem institu i qual é a realidade. Nesse
sentido se podem vislumbrar as atuais possibilidades de uma ordem
social democrática quando a institu ição da realidade provém (em forma
solidária e coletiva) da própria sociedade, como uma fonna de
resistência à imposição institucional de uma versão totalitária da

1 18
realidade. Parece-me oportuno indicar que, para que uma sociedade
possa i n stitu i r u ma real idade democrática, ela precisa, sobretudo,
tomar pensável o que foi decretado como i mpensável pela i nstitu ição
simbólica da política.
Desta forma, poderemos entender e transformar os si stemas tota­
litários de rep resentação . Para transfom1á-los, é necessário começar
por uma p rofunda alteração do estatuto do saber, sempre fechado sobre
si mesmo, sempre ignorante de seus próprios limites .

1 19
CAPÍTULO lll

FOBIA AO E STADO DE DIREITO

Não posso subtrair-me à atenção de começar este a1tigo confessando


meu pessoal desencanto pela forma com que na América Latina se tenta
fazer a atual critica ao direito. Quero em particular ocupar-me de certas
tendências que não passam de uma melodramática posta em cena de uma
luta pelo "direito dos oprimidos"; um exitoso simulacro de tensão libertária.
Não libertária que brinda a seus iluminados militantes uma força de inércia,
sempre renovada - como diria Baudrillard - por sua obsessão negativa do
poder. Não faz falta apelar à psico-análise para dar-se conta que por trás de
seu obstinado enfrentamento com o fantasma do poder capitalista se
esconde o próprio interesse pelo poder. Todo um truque da subversão à
ordem jurídica vigente, que conta com a cumplicidade de diversos grupos
de professores de direito que preferem adquirir prestígio tecendo alianças,
em detrimento do que seria seu natural esforço para pensar com
profimdidade (de um modo menos panfletário c mais clarificador). Todo
um espírito corporativo de esquerda que faz da produção de elogios mútuos
e da publicidade de certas in1agens revolucionárias uma atividade lucrativa.

IE em menor escala wn sindicato de defesa das posições já conquistadas na


universidade, sempre disposta a expulsar aos que fazem por esquerda a
crítica do estabelecido 1 ] . Uma busca de seu próprio poder alternativo nos

1 Na França num momento anterior à administração socialista os professores


marxistas, sentindo-se ameaçados em suas p osições universitárias, criaram a
Associação "Critique du Dro i t" com um intento de proteger-se corp orativamente.

121
lugares em que se julga ou ensina') A rival idade instalada no l ugar das
verdades invocadas como escusa. Disputas ociosas provocadas por um
pensamento entre medíocres que crêem que podem aumentar seu prestígio
adotando o modelo de um racismo transcendente.
Uma paixão p rovincial exacerbada') Uma l i b ido revolucionária
que se cristali zou em uma máqu i na de p rodução de imagens? Talvez
uma man i p u l ação do desejo das massas que só lhes interessa com uma
participação i nconsciente? Um res sentimento, di ria, "pequeno-mar­
xi sta" que define a crítica pela rivalidade, que fazem do ressentimento
sua utopi a . O d iscu rso destrutivo que termina sendo terrorista. Não
existe criativ idade no res sentimento .
Estou escrevendo sobre a i ncidência tardia em alguns lugares da
América Latina do movimento eu ropeu conhecido como "uso alterna­
tivo do d i reito" 2 Uma p roposta, agora, duplamente melancólica que

foi uma das principais razões que moti varam a criação deste movimento, segundo
manifestou-se pessoalmente A.ntoine .Teamnmaud, um de seus mais ativos
militantes.
O uso altemat i vo do direito originou-se na Itália como expressão das práticas e
idéias de um grupo de j u izes que fonnavam a chamada '"Magistratura Demo­
crática". De i n spiração marxista c apoiados nas correntes l ingüísticas em voga na
época reconheceram o caráter ideológico de suas interpretações e a natureza
absolutamente imprecisa dos textos legais. Encararam o aparato j udicial como
expressão de Direito burguês e não tiveram nenhum pn1rido em usar seus
funcionários para construir um polo de poder altemativo em favor dos oprimidos,
que poderia l evá-los, em alguns casos, a tomar decisões em aberto menosprezo
aos modos tradicionai s de interpretação de lei. Nada de neutralidade, toda
apl icação do Direito deve ser feita em favor dos oprimidos. O direito buscado na
própria quotidianeidade dos excluídos socialmente c realizado (por intermédio de
juizes ideologicamente cúmplices) através da elaboração de novos instrumentos
j urídicos. Muito mais que j ulgar com as palavras, os j uizes, deveriam mostrar sua
criatividade para impor sua vontade política a favor dos necessitados. Inclusive os
j uizes italianos não depreciaram suas vias de fato para tàzer cumprir suas
detcnninações processuais. O cumprimento da decisão, de qualquer fonna,
inclusive deseslimando a lei.
Seus êxitos foram de natureza pol ítica, mostrando bastante debilidade conceitual
para sustentar suas posições. Unicamente frouxos ensaios teóricos, importava
mais a atitude militante no exercício de suas funções como j uizes. Da tradicional

1 22
sustenta na perda de suas poss ibil idades: I . uma extemporânea cópia
do desafio frontal aos modos tradicionais de exercício do poder jurídico
na Europa; 2. as vencidas perspectivas revolucionárias do marxismo.
É possível afirmar em linhas gerais, que a tendência dominante no
movimento latino-americano, que poderíamos chamar de ''uso altema­
tivo tardio" - (por sua manifestação ultrapassada c não por ser uma

imagem do j uiz neutro passaram para a do j uiz m i l itante c sem l i mites mais além
de sua conscil:ncia ideológica.
Muitos professores uni versitários, deslumbrados com a atitude tomaram suas
bandei ras, tratando de der-lhes maior suporte tcóricp, com resultados relativos.
A corrente também teve seus dias de glória na Espanha pós-franquista, aj udando
no processo de redemocratização Espanhola. Não precisou-se mudar as leis,
postulava-se (de acordo com as recomendações do uso alternativo) que as leis
pouco diziam, não se necessitava, assim mudá-las, bastava ter j uizes abertamente
comprometidos com a transição. Isto aj udou muito na transição pacífica da
Espanha para a democracia.
No governo de Salvador Allende, tratou-se, também, de implementar um uso
alternativo do direito, mas Pinochet foi muito mais al temati vo.
Na América Lat i n a , como em outras tantas coisas, chega com considerável atraso.
Recém agora ganha espaço, principalmente no Bra s i l , México c na Argentina,
porém em grau menor.
No nosso continente existem d iversas i nterpretações do que é um uso alternati vo.
Alguns entendem como o direito praticado por a dvogados que querem orientar os
movimentos socia i s em suas lutas pontua i s . Assim, existem g mpo s de advogados
para favelados, campesinos, ou dt: assistência de bairros em diversas cidades do
Brasi l . O mesmo acontece na Argent ina.
Outros entendem o uso alternati vo em fonna similar à da magi stratura demo­
crática i taliana. Assim, gn1pos de j uizes no Brasil tratam lk ter um comporta­
mento similar ao de seus pares i ta l ianos.
Um terceiro t i po de direito a l ternativo pode s.:: r encontrado nas universidades
latino-americanas, l i derado por jovens professores, todavia sem nenhuma
expressão, mas com muita vontade de tê-l a . Desenvol vem uma intensa atividade,
bastante similar às que real izam alguns pastores pela televisilo.
Escasseiam os professores com prestigio acadêmico ligados a este movimento.
Pelo contrário, a maioria dos protcssores de bom nível acadêmico e sól i da
fonnação intelectual a lçaram seus vôos contra o uso alternati vo.
A decisão da suprema corte dos Estados Unidos, pennitindo violar a soberania de
outros países para seqüestrar pessoas para serem j ulgadas no país do norte é,
também, um exemplo de uso altemati vo do direito.

l 23
resposta de acordo com o capitalismo tardio), manifesta-se carregado
de uma violência política que o transforma em um modelo "alternativo"
de dominação . Tomam das concepções j urídicas já instituídas sua
viru lência e esquecem que elas contém também doses, nada depre­
ciáveis, de racionalidade. Com sua ética silvestre não passam de meros
cúmplices dos atuais círculos selvagens do poder.
Como complemento de sua violência política, salvo exceç ões
honrosas, os militantes do uso p.Itemativo tardio - para o resto do
artigo p roponho mencionando "AT" - assumem (para conservar seu
eleitorado) um duplo papel de vítimas . Por um lado dizem falar em
nome das vítimas da opressão capitalista; por outro sentido, colocam-se
em lugar de vítimas imag inárias de supostas ofensas de todos aqueles
que p retendem discordar de seus discursos . Sua retórica está des­
mesuradamente sustentada por uma recriminação interminável (tratam
de provar que o outro é inj u sto para acentuar a fantasia de sua supe­
rioridade moral, prêmio consolo para um narcisismo bastante dimi­
nuído em sua valia) . No fundo, um movimento que desestima a filo­
sofia que ataca ou b usca piedade em lugar de contra-argumentar
criativamente: um s imulacro filosófico prisioneiro de suas próprias
tendências destrutivas (enunciadas como críticas), uma fom1a dete­
riorada de fazer filosofia do direito, sua forma trivializada.
11 . A violência política, a raiva, o representar-se como agressivos
dos "A T" permite manter ativo o sentimento mágico de onipotência
como parte nodal do que M . Klein caracterizou como defesa maníaca.
Desde pequeno, aponta H. Bleichmar, o homem inscreve como um
recurso mágico a agressividade em seu psiquismo. desta forma começa
a crer que b asta exteriorizar sua agressividade para conseguir o
desejado: a criança chega a convicção de que é seu choro raivoso, seu
protesto que modifica a conduta de seus pai s . A violência como um
fantasma de domínio sobre uma real idade que escapa ao controle. A
pulsão agressiva criando o espelhismo de que só por sua expressão
fantasmática eliminam-se as causas do sofrimento.
Esta modalidade de pensamento mágico podemos ver quase des­
pido nos "AT" que dotam a sua raiva da capacidade de demover a
realidade que os conflitua, ao vencer sem argumentos a seus opositores :

1 24
o pensamento insu ltante ou o grito raivoso, como meio mágico para
negar existência aos que lhes é indesej ável e ao mesmo tempo outorgar­
lhes um sentimento de poder. Uma série de lamentações infantis que os
incapacita para entender por onde devem ir os caminhos que lhe
permitam realizar sua ansiedade emancipatória.
Todos os questionamentos levantados pelos "AT" sustentam-se
por referência a u ma verdade pontificada. Querem intimidar por essa
referência, repetindo assim uma prática de conhecimento bastante bur­
guesa, aceitando de seus próprios inimigos declarados o manej o da ver­
dade como arma de paranóia e poder. Zarpam de um porto de certezas
(de unidade e totalidade) no espaço das palavras e voltam carregados
de terror, como diria Lyotar.
Como Lyotar diria aos "AT": vou responder-lhes com cuidado,
não porque s inta inquietude alguma ao escutar seus questionamentos,
senão porque me vai pemlitir esse terror b ranco das verdades seguras,
sobretudo quando se apresentam como de esquerda.
III. Quando se milita, o combate mágico entra como valor de uso?
A desmesura, a trivialização e a simulação como expressão manifesta
da marcha morosa de uma revolução constantemente insinuada, que
mantém sua vontade de luta utilizando cinematograficamente certas
revelações escatológicas . O militante como Messias, como grande de­
positário p rofético da esperança . Uma redenção que se sustenta com a
promess a de devolver-nos a u m estado paradisíaco no dia seguinte do
triunfo revolucionário.
Em seu exercício mais radical, o uso altemativo do direito propõe
seu salto utópico produzindo um "uso escatológico do direito". Invo­
cam uma visão satânica da lei c suas interpretações mais tradicionais
que atacariam o propósito "divino" da luta em favor dos "oprimidos".
Uma "utopia socialista obscurantista" que se coloca no lugar em que
na América Latina, a miséria dos excluídos busca angustiada uma
palavra salvadora. A onipotência do pensamento que outorga aos
"AT", s i multaneamente, um mecanismo de defesa e o s imulacro de
uma esperança revolucionária.
Comove-me, como qualquer ingenuidade de infância, a maneira
cândida que tem os "AT" de crerem-se representativos dos valores

125
definitivos da história, os árbitros do destino fantástico do proletariado
(quando em real idade estão lutando contra seus p róprios fantasm as
patcmos) . Uma tcatra l ização melodramática, o gozo na paralizaç ão.
Cenas para uma atuação melodramática que tenta conqui star, com
annad il has, o coração do outro . Horizonte de fm strações narcisis tas
por t rás da figu ração revolucionária? O p ranto de u ma ideali zação, no
lugar da interp retação que pode dar estatuto se sentido para algo que é
cegamente vivido. Outra tribo fu ndamental ista que surge depoi s da
queda do muro de Berl i m . .
Fmstradas as expectativas de consti t uição de um proletariado
erigido em suj eito da h istória, na decadência desta fantasia, os j u ri stas
d a "altcmativa tardia" hiper-realizam essa i l usão auto-encamando-se
numa sorte de "sujeitos si m ulados da história". B u scam a configu ração
de um "poder altemativo" ignorando o modo de dar-se ao poder nas
condições t ransmodemas do capital ismo: uma outra classe de sociedade
que se avi zinha como uma sociedade sem classes (onde a idéia de
"suj eitos do poder" também desaparece) . lntencionam colocar em
relevo orientações, temas e estratégias para u m "uso portador de
nostalgias do d i reito dos oprimidos". Uma grande afeição melancól ica
frente a um destino u l terior do poder e nossas cond ições de existência.
O cativei ro para a nostalgia da p rópria fantasia impossível .
O "uso altemativo do d i reito": su rgiu numa primeira oportunidade
h istórica como acont€ci mento e agora tem a oportunidade de uma
segunda existência como farsa melancól ica. Uma convu lsão discursiva
que p ode sepu ltar, s ob a i ronia das aparências revolucionárias, a
esperança na recuperação do p roj eto de autonomia, que necessita
segu i r apostando nas condições - as mais rigorosas possíveis - da
legalidade como razão e argumento .
I V . Leio em Baudrillard : "quando tudo invol11ciona para um es­
tado segundo de latência i maginária, mas que segue sonhando em
soluções finais, quando todas nossas tensões s e resolvem num estado
subl ima!, acaba por encontrar o ponto de inércia e normali zá-lo todo
3
mediante a dcst m ição" . Seria como o grau zero da revolução, que é o

3 Baudri l l ard Cool Mcmori s .

126
grau em que se manifesta em sua forma exata : redob rada em sua forma
exacerbada e transparente, num simulacro de ímpeto (paixão trans ­
fomladora) q u e não é outra coisa q u e a forma exata d a indiferença .
As sim é o modo poss ível de dar-se uma revol ução nos usos "A T" do
d i reito: virtual , sem afundamentos carnais no mundo, hiperreal izada
como simulacro para força de uma fascinação proveniente de uma
palavra grandiloqüente . Não há que duvidar que a exuberância no
decidir p resta aos acontecimentos uma i l usão de onipotência que cria
u m efeito de realização onde só existe a ansiedade de uma expectativa:
uma aparência vivida como real idade pela força mágica das palavras . . .
palav ras, nada mais que palavras que impedem que as coisas realmente
passem. Falar demasiado é uma boa maneira de não fazer. A palavra
ansiosa pode ser uma euforia artificial que hiper-realiza o mundo.
Consciente com o que termino de dizer: os j ur istas do uso alter­
nativo tardio são tipicamente transmodemos, estão se perdendo em
suas p róp rias palavras . Desdob ram - sobretudo no B ras i l - uma
atividade i ntensa, aparecem em todas partes como se fossem fungos,
para consolidar a forma exata do di reto dos oprimidos . O marxismo
como espetáculo? As estratégias pol íticas correndo o risco de serem
convertidas em estratégias de mercado .
Observando os ardores argumentativos e a ilusão de algumas
p ráticas que pretendem exceder o estado de legalidade normativa é fácil
reconhecer uma i n imputab i l i dade teórica p rópria do lado destmtivo que
envolve a condição t ransmoderna. Adeptos dos efeitos publicistas e do
show-bussines organizam frenéti cos congressos que são como mo­
mentos de apoteose de uma res istência a dominação, transformada em
espetácu lo. O "uso do d i reito em favor dos oprimidos" convertido
numa "trivialogia de u s os" que fazem da opressão uma performance. O
festival j ur í d ico dos op rimidos? A mesma intensa incons istência
conceitual , o mesmo enlouquecido apego p u ro aos rótu los que estão
i nstalados nos meios de comunicação para aj udar-nos a simpl ificar
nossos mecanismos mentai s . Como se a invocação de um nome se­
dutor, em repetição persuasiva, pudesse serv i r para alterar as condições
de existência, institu i r o novo, ou retornar o frustrado proj eto de

1 27
autonomia da modem idade4 . A esquerda ideológica reduzida a u ma
esquerda trivializada.
Na transmodemidade não se pode falar mais de ideologia. Nela
predomina u ma forma melodramática, escandalosa, kitch de desesti­
mulação da alteridade : uma triviologia; ou melhor, a ideologia con­
vertida numa forma folhetinesca de persuasão dos próprios fantasmas,
em uma insatisfação compulsiva compensada por episódios fragmen­
tados de um "novelão sentimental" que não tolera o trabalho criativo
das diferenças : um pastelão melancólico de difusas esperanças para os
desesperançados . A teatralidade da representação niilista?
A atuação melodramática é sempre narcÍs ica, auto referencial . O
melodrama é sempre o drama de não poder encontrar-se com o outro,
aprofundar o vínculo com ele: uma tentativa frustrada de sedução que
aparenta desejar encontrar-se como o outro, quando em realidade se
está julgando outra coisa: o narcisismo negativo, que faz da altera­
lidade um fantasma. Inversão paranóica, que trabalha heteronoma­
mente a culpa, colocando-a principalmente nos outros . . . um grande
cativeiro . Um campo de concentração de que os militantes "AT" não
podem escapar.
Elogios das certezas definitiyas do marxismo. Um princípio de
idealização escatológico que no fundo expressa, no s ilêncio de certas
atuações melodramáticas dos "AT", o ilusório de um querer só estar de
acordo consigo mesmo, um acordo absoluto consigo mesmo, que não é
outra coisa que uma variante do absolutismo.
O discurso "AT" não chega a ser ideológico, é apenas sedutor,
pretende p render por fascinação a um pensamento que se auto
apresenta como revelador.
A sedução é um substituto transmodemo da ideologia. Seu espaço,
declarou Baudrillard, numa recente passagem por Buenos Aires, é o da
superficie e a aparência5 . a ideologia, como domínio alienado dos sen­
tido se opõem à sedução como domínio do reino dos simulacros .

Com respeito de ver meu trabalho apresentado para sua publicação na revista "No
hay derccho".
Entrevista concedida ao periódico "La maga".

1 28
Para Baudri l lard, nas mesmas declarações de Buenos Aires, "toda
estratégia de sedução consi ste em levar nas costas a aparência pura, em
faze-las brilhar c esvaziar-se em seu. jogo de aparências". Vertigem
imediatamente contagiosa de uma arte do ecl ipse, que joga como rito de
passagem . como pacto s imbólico, sem que nenhuma chave de subj e­
tivação sej a convocada. Estratégias sem transferência exi stencial, que é
também a regra secreta para os u sos "A T" do direito .
Como expressão do lado destrutivo da condição transmodema os
"usos s imu lados de u m direito para os oprimidos" não constituem outra
coisa que uma h i per-real ização do d i reito oficialmente instituído pelo
Estado : um efeito psicodélico de criação de direito (um sabor selvagem,
uma sensual perversidade, u m certo tom de blasfêmia, como o eco de
uma missa negra . . . toda para criar o magnetismo próprio de uma
transgressão vu lgar) . A fascinação pelo kitchs insinuando, da dos alter­
nativos, seus encantos para o m undo j u rídico: um i maginário que, na
medida que não admite o trabalho das diferenças, favorece a aceitação
inconsciente dos valores da exp loração .
O i maginário kitchs nos p ropõe um uso indiscriminado do
grotesco, vu lgar c estereotipado, como uma forma de alucinar a distin­
ção entre as condições reais da dominação e um sonho de autonomia.
Um universo onde tudo torna-se u m sentimento melodramático, em que
o excesso argumentai do melodrama é revelado à nível de valor de
verdade absoluta. Assim, o sentimento é ap resentado como uma
sensibil idade que se torna temí vel , p recisamente porque é considerado
como um valor indi scutível ou como um critério de verdade ideal izado,
um critério que, em sua grandiloqüência, justifica qualquer compor­
tamento. Falo de alguns sentimentos nobres, que trivializados - toma­
dos kitchs - acabam di sponíveis para todo tipo de j ustificação . É com o
peito cheio de pensamentos l í ricos, disse Kundera, que o homem
comete bai xezas em nome sagrado do amor.
Pode-se dizer que a sen s i b i l idade melodramática c trivial, que
substitu i a afeição éti ca da autonomia, torna-se o próprio fundamento
do não entendi mento ou da intolerância. Converte-se em u ma hiper­
cstrutura de b rutal idade.

129
Toda idealização ética (a mentira de um ideal) é absolutista.
Predicá-la é anti-ético, uma vitória da vontade do poder.
Pânico l ingüístico: o kitchs como componente medular da trivia­
logia . . . A l inguagem como hiper-realização das lágrimas . As lágrimas
expostas, artificial e melodramaticamente (o melodrama é sempre a
fantasmagoria de uma ilusão), para criar o efeito simulado de um valor
que se está realizando. o discurso artificial das grandes tragédias, que
nos acalmam deixando a propensão à transformação como puro efeito
das palavras .
Em linhas gerais, estou falando de sentimentos idealizados que se
perdem em combates inúteis, pequenas lutas que não permitem a
transfo rmação do homem por uma progressiva apropriação libidinal da
vida. A insustentável leveza dos estereótipos, o "cambalacho" exaltado
como realização do espaço público, o populismo melodramático que
transforma a alienação em dissuasão do político como criatividade . . . E
quanto de tudo isto faz nos uso "A T" do direito.
O crédito que podem, contudo, outorgar-se ao altemativismo
tardio dependerá, em boa medida, de que seus adeptos possam deixar
de ser orientados por arrebatadas mentalidades j uvenis, aleijar-se de
competentes· encenadores, abandonar uma grande narrativa do mundo
convertida em novela sentimental . . . E não segui r confundindo juros
empresariais ou editoriais com propostas de mudança social . Não
existe coisa mais triste que a auto-ridicularização dos intelectuais.
S imultaneamente melodramáticos, fervorosos e passivos, os juris­
tas dos usos alternativos, correm o risco de demostrar, em muito breve
tempo, a falência de um artifício crítico para uma aplicação do direito
que, mais que alternativo, é espontaneísta . . . com usuários que nunca
suspeitaram que por trás da palavra tolerância poderia haver algum
sentido.
V . Os alternativos tardios têm uma atitude de desdém com rela­
ção aos que poderia chamar: "uma visão j u rídico-positivista da
realização das condições de u m Estado de direito". Eles não se cansam
de exaltar sua fobia ao Estado de direito sem oferecer nenhum acesso
radical aos que, diante de nossos olhos, está surgindo como dras­
ticamente novo .

130
O s alternativos tardios são agentes portadores da fobia ao Estado
de direito na medida em que, desconhecendo os efeitos perversos das
práticas de governabilidade, se sentem ameaçados por u ma legalidade
que só conseguem representá-la como de classe. Assim, exilam-se da
lei para evitar que a mesma se perfile como instru mento de domi­
nação . E terminam apelando irracionalmente para abstratas práticas
. .

sociais, invocadas como um neo-jusnaturalismo de esquerda. Uma


fobia que não lhes permite ver, no problema da interp retação e apli­
cação do direito, práticas e condições democráticas de governabilidade.
Uma fobia que termina aproximando-os aos modos de pensamento de
Alfred Rosenberg .
O "no uso (fóbico) do Estado d e Direito" leva aos alternativos
manter (fo ra de hora) o rechaço de algumas concepções idealizantes do
liberali smo, como se fossem os únicos sentidos possíveis para a
doutrina do "Estado de direito". O impulso juvenil de alguns corifeus
do uso "AT" terminam arrastando-os para uma cega negatividade,
carregando de uma intensidade psíquica negativa ao significante
"Estado de direito": um estado emocional que desestima ao Estado de
direito em sua função subjetivizadora, como foco de virtuais
cartografias semióticas da legalidade democrática. Um "não há lugar"
raivoso dos "AT", que impede entender ao Estado de D i reito como um
desdobramento, sempre em abe rto, de sentidos oriundos de uma
subj etividade em transferência existencial, e localizada em meio às
práticas democráticas de governabilidade: um "uso eficiente do direito
vigente baseado num Estado de D i reito, que como foco de enunciação
ao narrativa, permite que um efeito existencial ingresse ao discurso
jurídico, como l imite ético para condições de governabilidade que
podem ser totalitariamente exercitadas . Um solo mínimo de legalidade,
unicamente transponível como irracionalidade.
E m outras palavras : não existe nada de antemão estabelecido
como sentido do Estado de direito, a enunciação de seus sentidos será
pern1anentemente "inventada" para permitir uma governabilidade não
dissociada das condições democráticas de existência. Os alternativos
não advertem, que desestimando um trabalho de autêntica criação das

13 1
enunciações do Estado de Direito, estão favorecendo a tempe ratu ra
irracional das doutrinas neo conservadoras .
VI . A j uventude b rasileira está sentindo "Collorgate" mediante, o
valor político de uma justiça baseada no Estado de direito . Provarão
novamente, como antes de 64, quais das principais cidades do país,
sentindo que o uso da j u stiça - impregnada com os valores do Estado
de direito - pode ser uma forma de reintroduzir a ética na política.
outra vez vibrarão com a política, saíram de sua indiferença, tiveram
ganas de ser novamente protagonistas .
O impedimento do presidente foi um acontecimento político que
realizôu uma importante alteração nos focos enunciativos, no devenir
de s ignificações do "Estado de Direito", como agenciamento referencial
afeição ética de uma cidadania que opera como produtora da
subj etividade política.
VII . os usos "AT" do direito descansam, em boa medida, em for­
mulações extraídas da semiologia, algo que muitos deles aprenderam,
também, em minhas aulas . Mas eu falava de semiologia fazem dez
anos, não agora. Os tempos são outros. Hoje a semiologia é somente
sedutora . A filosofia e a política são agora outra coisa. É torpe toda
proposta filosófica que não se volta para o futuro .
Nos tempos mais duros do terrorismo de Estado praticado na
. Argentina e no Brasil apelar para a semiologia era uma forma de
buscar uma saída, abalar o s inistro silêncio da instituição universitária.
Por certo, a desmistificação semiológica foi ambivalente. Por um
lado tratou-se de mostrar aos juizes da justiça militar que as palavras
contidas nas leis de seguridade nacional eram imprecisas, podiam ser
alteradas por vontade dos mesmos, que os j uizes podiam criar direito.
Por outro lado tratou-se de negar todo conteúdo impreciso para a
doutrina do Estado de direito, mostrá-la como expressão de um direito
inalienável das pessoas . Com este jogo, obviamente contraditório em
termos semiológicos, tratou-se de por um limite ético ao argumento da
livre iniciativa j udicial, evitar que o espírito nazista de muitos j uizes da
época usara a liberdade semiológicamente argumentada em favor do
Estado de terror. Com isto salvaram-se muitas vidas . Mas agora pode­
se perder, e muito, com esses mesmos argumentos .

132
Logo vieram Alfonsin e Sarney, que assessorados por j u ristas
l iberais, tiveram uma visão bastante ingênua do Estado de direito:
pensavam que as leis por si sós eram suficiente garantia para
consol idar a democracia, não se deram conta que em nome do Estado
de direito os j u izes poderiam causar as maiores atrocidades . P rova
disso foi a entrega que Alfonsin fez dos ju ízos às juntas militares, para
que os comandantes do processo fossem j u lgados por seus pares como
se o direito magicamente garantisse sua neutralidade.
A confiança no caráter mágico das garantias desejadas pela
doutrina do Estado de Direito, que expressaram Sarney e principal­
mente Alfonsin, levou-me a formular fortes críticas contra a postulação
do Estado de D i reito.
Nos tempos de Menen, Collor e Fuj imori, a situação volta a ser
outra. Trata-se de executivos encarnados em figuras presidenciais
proféticas, que não se cansam de usar seu pretendido carisma, para
afi rmar a incompatibilidade estrutu ral das garantias jurídicas com seus
sonhos de ingresso ao que dizem ser um primeiro mundo .
As culpas de seus fracassos são atribuídas a um excesso de
garantias que não lhes deixam governar. O Estado de Direito como
condição de ingovernab ilidade. A democracia como ameaça para a
expansão "benigna" do capitalismo . A crueldade da lógica capitalista,
projetada cinicamente para o suporte mínimo da democracia: o Estado
de direito . Tudo isto agravado por um poder j udicial cada dia mais
subserviente
É mais que evidente, que frente a este quadro de situação vejo-me
obrigado a fazer uma férrea defesa do Estado de Direito, esquecer suas
ilusórias afirmativas semiológicas e defende-lo como uma das ú ltimas
oportunidades para reintroduzir a ética do direito . As críticas semio­
lógicas são coisas do passado, hoje são reacionárias . É uma pena que
os j u ristas "AT" não o vej am .
Contudo, minha atual defesa do Estado d e direito não implica
nenhuma recuperação de uma espécie de j usnatu ralismo tardio. Estou
buscando fazer um elogio ao Estado de direito que não lhe devolva suas
ingenuidades mágica. É possível aceitar a crítica semiológica e ver ao
Estado de Direito como um lugar vazio, disponível para a criatividade.

133
Seria uma concepção do Estado de Direito como contido do sentido da
democracia p roposta por Claude Leford6 . O Estado de Direito (como o
lugar vazio que realiza a democracia) .
VIII . Estamos vivendo uma fase da história em que a consciência
tomou-se muito mais modesta da que sonhou Nitzsche. O dito vale
também para qualquer discurso intelectual . Querer tomar a huma­
nidade melhor é a última coisa que um intelectual pode hoje prome­
ter. Não existe mais lugar para os ídolos ou para as utopias seguras .
A cultura j á começa a tolerar a idéia, expressada por Nietzsche, de
que o mundo ideal só pode ser imaginado por uma menti ra. A men- · ·

tira do ideal que foi , até agora, a maldição suspendida sobre a


realidade.
Os "A T" em um número significativo, pertencem a classe de
intelectuais que se pennitem uma intransigência feroz contra a parte da
realidade (os outros da rivalidade) que acabam fora de seus fantasmas
e uma glorificação da outra parte dessa mesma realidade como forma
de afiançar a pertinência a um p rojeto revolucionário. Possivelmente
nesse descanso o sentido da palavra "alternativa" que tanto invocam.
Confesso que eu nunca compreendi o significado dessa palavra, não me
disse nada. Só conota-me alguma coisa que tem que ver com o
autoritarismo.
IX . De que uso alternativo estão falan-do? Toda uma política
mundial havia s ido constmída sobre a base de uma alternativa, ou bem
era o capitali smo ou bem era o caminho para o socialismo. Agora não
existe mais essa alternativa. Foi o que o muro de Berlim levou. A
situação antes da destmição do muro permitia falar de um uso
alternativo do direito, no sentido que fazia opção por um dos lados da
alternativa, a via ao socialismo. Agora falar de alternativa não sei ao
que conduz. O uso alternativo termina reduzido ao impulso nostálgico
de recuperar um relato sem cotação na bolsa das interpretações
finiseculares . Acabaria unicamente o horizonte de um capitalismo real
de livre mercado e suas crises . Neste exitoso contexto residual do

6 Ver Leford, "La invcncion democratica".

134
capitalismo o p roblema, que p rojeta o uso do direto, teria que ver, ao
meu j u íw, com sua eficiência p ara administrar as diferentes crises que
o próprio desenvolvimento capitalista determinou : um "uso do direito
na crise" . Um uso que mais que alternativo tem que ser politicamente
criativo. Em particular se está p recisando um uso politicamente
criativo do direito como forma de retomar, sobre outros horizontes, o
projeto de autonomia e democracia que a modernidade não pode
concluir.
X . C riativo pode significar várias coisas . Em primeiro lugar,
como diria Castoriadis, tem o s entido de uma história por fazer, que se
irá fazendo num ptocesso de auto-determinação e de auto-constituição
coletiva das regras que os limitem. C riativos enquanto atores ativos da
realidade que vão constituindo . Nesta direção o criativo expressaria a
tendência de valorar e racionalizar o real para legitimá-lo. Criação que
toma como ponte a ética e a razão para que o homem construa a cidade
e sej a formado por ela em sua identidade e cidadania. C riatividade é
constitu ição de cidadania no repúdio dos iluminados . É muito difícil
pensar num poder criativo que forje a cidadania e sej a ao mesmo tempo
atravessado por Messias político ou profetas das verdades . Eles
impossibilitam a criatividade ou pelo menos aj udam a criar uma
realidade que paralisa (ou marginaliza) ao outro. C riar não rima com
sacralizar. Complementa-se com cidadania (participação ativa na coisa
social ) .
A criatividade política e democrática descansa n a força auto­
instituinte da p rópria sociedade, não na ambição dos que buscam
encarnar-se como o espírito do povo, isso soa a "na(z)ional-socialis­
mo". E por aqui começa a passar minha resistência aos alternativos
tardios .
Para Guattari e Deleuze a criatividade está ligada ao pensamento
como construção, uma forma de encontrar finalidades singulares na
p rodução das atividades humanas . Não tem uma idéia de criatividade
universal, apontam para uma criatividade s ingu larizada, vinculada à
produção i nstituinte (e desinstituída) de identidades e práticas de
s ingularidade que renovam o gosto pela vida e pela reinvenção do
político.

135
N o momento em que se quer acentuar a c riatividade como valo r
polít ico, s u rge a necess i dade de pensá-la como fl u xos ou intens idade s
de ru ptu ra frente ao que acabou. por vários motivos, encravados .
Politicamente falando : criação, seria ru ptu ra c emergência do
novo, como também possi b i l idade de não tratar de ler o novo que
i rrompe desde um marco i nterpretativo esgotado ou reduzido a um
p unhado de imagens banal izadas . Este ú ltimo é o que tratam de fazer
os alternativos tardios e por aí também passa meu tédio em relação a
eles .

1 36
CAPÍTULO I V

A DOGMÁTICA JURÍDICA E O
ESTADO D E DIREITO

1 . UM JOGO DE MEMÓRIA
PARA S I TUAR O FUTURO

I . I O obj etivo desta conferência é o de explorar preliminannente


os mal-estares, tensões, inserções e buscas associadas ao ju rídico na
encruzilhada fi nisecular da modernidade.
Tratarei de ocupar-me, entre outras coisas, das relações (um tanto
confusas) da academia e da administração da j ustiça, p rincipalmente no
que diz respeito às distorções, mal-entendidos infiltrados por uma
mirada crítica desbordada em seus fins de concientização . Algo assim
como a posta em crise das críticas que estão sustentando oportuna­
mente u ma iconoclastia onde deveria produzi r-se uma transcrição, é
dizer, uma tradução, u m rcordenamento de acordo com o presente das
fantasias, representações c sentimentos que detenninaram organizações
estáveis da mente dos j u ri stas . Trata-se de poder escutar o ideal ava­
liado, os sentidos e as repressões da cultura jurídica, sem as forças de
destru ição que abrigam nas expressões das por si mesmas denominadas
posturas críticas do direito .
A transcrição tem sempre forma de olhar. O q u e se olha não é
outra coisa que o caminho recorrido; sublinhar algum contorno subs­
tancial, u m tom, uma cor, uma atmosfera predominante. É como dizer:

137
façam memória para proporcionar uma perspectiva; façam jogo para
apostar no futuro .
O olhar é sempre um esforço para obter, desde o presente, sentidos
para o passado; seria aquela releitura que trata de evitar que nosso
desej o repita o passado no presente - que é sempre uma fonna de
tentar eliminar o p resente pela melancolia, de não aceitá-lo como
diferença.
A repetição do passado impede receber os sinais do novo,
detennina a morte do pensamento, do sentimento e da ação. Em suma,
nos aliena, nos exclui, ou nos devora. Repetir o passado é uma fonna
de esgotar o presente, de desestimar sua força criativa, de introduzir
uma pulsão destrutiva: uma fomm de instalar a apatia e o cinismo
como condições da transmodemidade 1 • Um eterno presente de sobre­
vivências e um futuro indecifrável .
Osvaldo Soriano disse que a apatia é o estado de ânimo que
acompanha a consolidação de um novo poder sem adversários que o
inquietam2 Depois do espanto de um "Estado de terror" sobreveio,
para a América Latina, o cinismo e a s imulação democrática da nova
ordem internacional, que nos obriga a aferram10s a um presente eter­
no (onde se dá a inércia como repetição) : o kitsch como estado de
ânimo, de pensan)ento e de ação. O s horrores do passado que retor­
nam sobre as fonnas s imuladas de certas conquistas (a inflação
controlada na Argentina, a condenação de Collor no Brasil) e a
condenação à trivialização de tudo o que na modernidade representa o
sonho de uma sociedade melhor. O olhar apagado . A utopia convertida
em horror. A transmodemidade como forma passiva da modernidade.
O horror do terror que retoma como passividade. O olhar substituído
pela imagem .

Em meus trabalhos venho insistentemente usando o tenno "transmodemidade"


para me referir ao fenômenos geralmente agrupados sobre o rótulo : "pós­
modemidade". Isto porque penso que a "pó s-modemidade" não é outra coisa que
a modemidade em suas fonnas esgotadas, em tnínsito para outros estilos de
pensamento.
Osvaldo Soriano. Apatia , in S uplemento Diário, p . 1 2 , 26 de maio de ! 9 9 3 .

138
Vou introduzir uma metáfora que pode ser ilustrativa: Cuba
transita pelo chamado "período especial", onde a luta pelos alimentos
transformou-se numa penú ria quotidiana. Os cubanos, que fazem da
festa de casamento uma ilusão irrenunciável (sonham por anos pelo
bolo de noiva para seus fi lhos), têm sérias dificuldades para consegui r
o s ingredientes da insubstituível tOiia. Por isso mu itos casais optam por
constru i r um bolo de papelão, especialmente fabricada para que se
possa tirar uma foto . O que conta é a imagem, o artificio. A imagem
desprendida do que tem que ser víscera! . A foto e seus truques em lugar
do olhar.
O olhar, completando o que j á comentei dele, é um forma de
descobrir o artificio, o horror, o sinistro do passado, também uma for­
ma de resgatar a ilusão, a fantasia, o desejo de um mundo melhor que
havia no passado. Está claro que nada de tudo isto poderá encontrar-se
observando as fotos dos que se casaram no "período especial". Os
noivos teriam uma nostalgia trivializada.
Estou trazendo este episódio da fotografia porque quero usá-la
como metáfora para reivindicar o "olhar" sobre a dogmática jurídica,
resgatar algumas coisas de seu naufrágio, evitar consolar-nos com a
fotografia de um direito ao serviço dos oprimidos, consolar-nos com a
foto de uma revolução enquanto o bolo o seguem comendo os de
sempre.
Opino que a "cultura jurídica da aparência" está começando a
fonnar parte dos movimentos contra-dogmáticos . Eles estão entrando
na aparência enganosa do hiper-real, vivendo seu "período especial".
Os movimentos contra-dogmáticos dos anos 90 alimentam-se do
passado, simulam atacar os horrores do passado revivendo um combate
inexistente, para com isto "�justar-se às formas atuais do sinistro. Seu
desej o revolucionário acabou prisioneiro da morte. Um desejo que não
conseguem fazê-lo memória, o repetem como neurose do esquecido. Na
contra-dogmática dos anos 90 não se produzem acontecimentos, só
palavras e idealizações . Críticos, no mau sentido da palavra.
Não tenho dúvidas que o movimento contra-dogmático unicamente
pode continuar vital, não cair no ki tsch, se abandona suas fonnas
passadas, constitu i sua memória e aceita o lado positivo da dogmática

139
j u rídica. O tempo das negociações absolutas já passou, repeti-lo ago ra
é constitui r um anarquismo ingênuo.
A dogmática j urídica é nossa herança, temos que aceitá-la. Como
toda herança, temos que ver o que fazer com ela. A dilapidamos ou a
transformamos? Onde estamos '? Podemos ap render uma cruzada puri­
ficadora à margem da lei (do "Estado de Direito" ou da fantasia da se­
gu rança j u rídica?) . Pode-se segu i r crendo que o direito está sempre ao
serviço do opressor?
A cultu ra sempre mostra seu talento par cerrarmos os olhos . Ago­
ra a cu ltu ra mostra suas habilidades para que possamos s imular que
estamos abrindo os olhos . Isto também q � er 9izer: questionar o presen­
te como se fosse passado. Traduzindo para o direito: o ju rista que bus­
ca seu compromisso com o p resente não pode fazer à leitura da dog­
mática j u rídica como se estivesse trans itando os anos 70 ou os 8 0 .
Particulannente, sinto que não posso ser fiel a minhas convicções
desses anos sem duvidar delas, rever o que questionei da dogmática
jurídica. É um mau julgador o que aposta sempre no mesmo número.
Mario Benedetti disse que se deseja de ser um homem livre,
quando se aposta a uma fidelidade sem dúvidas . Esse é o sentido do
dogmatismo a combater (que não é necessariamente o da dogmática
ju rídica) . É o dogmatismo dos contra-dogmáticos transmodemos .
Em um certo sentido estou buscando o caminho para apostar num
contra-dogmatismo para homens l ivres . Homens, disse Benedetti, sem
paternalismos, nem soberbos, sem p resunção nem desplantes, intelec­
tuais que possam contribuir à investigação da realidade 3
Por que não aceitar que também a dogmática ju rídica pode inda­
gar, descob rir, criar? Por que não aceitar que o compromisso se exerce
também a partir da lei, o "Estado de Direito" ou reivindicando a
neutra-lidade do j u iz. É possível que a tradicional imagem da justiça
simpli-fique com excesso a idéia da neutralidade. A neutralidade
judicial não é a de um juiz que fecha os olhos .
Segu i ndo com Benedetti, recordaria, para o pensamento contra­
dogmático, o que este poeta encontrou em algum muro da cidade de
3
Mario Benedetti. Compromisso . Idem.

140
Quito: "quando j á teria resposta à vida, mudaram-me as perguntas" .
Possivelmente com a modernidade terminou um ciclo d e perguntas e
respostas . E o que se chama pós-modernidade é um entretempo no que
não se sabem as perguntas .
Frente ao que termino de dizer, tenho que fazer uma confissão:
estou surpreso com os modos radicais que usei para questionar a
dogmática j u rídica nos últimos vinte anos . Possivelmente porque estou
querendo ter um compromisso com o presente não o possa segui r
fazendo d o mesmo modo.
S into que uma pergunta oportuna para o 93 , qu içá seria esta:
frente a um socialismo real que quer copiar os fracassos do mercado;
frente às formas sociais constmídas para a fotografia; frente ao
descarado despreparo nos modos de governar; diante de um maltrato
(generalizado e pennitido) ao c idadão, não corresponderia uma nova
emergência da cidadania que encontre na proteção abstrata da lei o
inconsciente político que é necessário liberar (a outra do vínculo
social)? 4
Numa etapa como a atual, onde cinicamente se produzem tele­
visivamente as múltiplas formas de dissuasão do político-econômico­
afetivo, é p reciso dirigir utn olhar em d ireção aos indizíveis, ao que não
se pennite dizer. Com outras palavras : encontrar-se com o que não se
permite dizer (que é no fi.mdo o inconsciente político) . Encontrar-se
com a outra da lei) . E essa outra, para mim, é o novo lugar do "Estado
de Direito" e da dogmática j u rídica. Uma nova forma de exercício da
cidadania: o direito a dizer o indizível . O direito a que o ''corpo da lei"
receba seus indizíveis .
Agora parece-me óbvio que o que não pode ser dito pela lei, nunca
será dito quando se lhe ignore. Ignorá-la é deixar exposto o indizível
aos oportunismos de toda cor. Não existe compromisso com o outro
sem a lei . Só haveria uma volta ao estado de horda. O homem tem que
comprometer-se com o outro.

Para um melhor entendimento desta l i nha de argumentnção pode ver-se minha


comuni cação ao I o sem i n á r i o argentino-brasileiro de Psico-an á l i se , Direito c
Política. Florianópolis, 9/ 1 2 de dezembro de 1 9 9 2 .

141
É hora de não fechar os olhos e denunciar que a falta de proteção
abstrata, dada pela lei de direito, leva à impunidade, permite que a terra
latino-americana sej a repetidamente lastimada pelo horror; condenado
aos que nela vivem a ser os esquecidos do mundo .
O novo pai da horda transmodema é o que reivindica para os
todos os bens de consumo. Um sistema - denuncia Galeano - que fa­
brica milhares de pobres e lhes declara a guerra. E o faz porque o
sentido da lei debilitou-se no imaginário . A lei do mercado o lugar da
lei do direito e a lei do desej o .
Para terminar esta introdução quero deixar anotadas algumas
impressões : 1 ) que o terrorismo de Estado nasceu como um uso alter­
nativo do direito; 2) que uma causa deixa de ser nobre quando seus
defensores confundem seus corpos com a lei, não se submetem a ela; 3)
que não se pode combater o terrorismo de Estado opondo o terrorismo
dos oprimidos . Terminamos no mesmo: homens que se alimentam da
impunidade.
Por tudo isto, penso que os que se proclamam euforicamente
revolucionários do direito teriam que recordar que o veneno só se pode
consumir como antídoto (no caso: as idéias de altemativismo jurídico
só são vitais nos tempos do "Estado de terror") .
1 . 2 . Nos últimos - vinte anos a academia jurídica latino-americana
vivenciou o deslocamento da tensão entre o j usnaturali smo e o
positivismo jurídico, substituída pelo enfrentamento de estilos 5 entre o
dogmático e o contra-dogmático. O resultado que estamos presen­
ciando nos mostra uma desqualificação trivializada das indagações
dogmáticas, muito próximo às fonnas de dissolução do laço social que
invadem nossa atual experiência cu ltural . Uma compulsão crítica que
desconhece a diferença da palavra do outro: um não querer saber, um
não poder aceitar, um ter que esquecer o lugar que ocupa o recurso
dogmático para a constituição simbólico-imaginária do direito na
modernidade. A crítica só como a busca de um efeito de massa em
lugar de um efeito de sentido. Uma crítica do ressentimento que não
aceitou a postulação de uma temporalidade não histórica da lei, que

5 Estou chamando "estilo" a uma detenninada fonna de ver a vida.

142
deva ser transformada, violentada pela linguagem, para ligá-la à
temporalidade histórica.
Parece certo que há um recu rso ao tempo eterno, tempo do mito,
para a configuração do vínculo j u rídico e a atribuição de sentido para a
lei do direito, mas também é certo que não se trata de nenhum princípio
demoníaco senão um ponto de vista estético que atua na realidade
humana para impulsionar os atos criativos, sustentar a realização de
um p rojeto de autonomia e neutralizar a força das p ulsões de desunião.
Todos os pensadores contra-dogmáticos trataram de reprimir urna
consideração do recurso dogmático corno urna referência poética, uma
fanta�ia que permita pensar as relações do homem com a lei de direito.
Assim, rep rimiram o lado romântico do dogmatismo jurídico, o ba­
nal izaram como expressão de urna forma de dominação. De diferentes
maneiras as tendências contra-dogmáticas negaram-se a visualizar o
caráter performativo das fantasias dogmáticas . Elas também fizeram
e fazem marchar o mundo. Urna p roposta feita ao homem para · que
não abandone totalmente sua p roximidade com o horizonte da paixão
e do sentimento. A dogmática corno a afirmação estética de urna
igualdade e uma lei par que assegure o não - retomo à figura de u m
grande p a i onipotente.
Falar da dimensão estética da dogmática j u rídica supõe um modo
de relação consigo mesmo, com os outros e com a lei da cidade,
marcada por urna ilusão de realização, que apesar de sua impos­
sibilidade, vai impregnando a realidade, construindo nossos pensa­
mentos, ordenando nossa experiência e constituindo uma força atuante.
De nenhuma maneira supõe, necessariamente, a ilusão neurótica de um
domínio absoluto sobre os interesses e as indetem1inações das
condições de existência, como tampouco um domínio absoluto sobre as
ambivalências do vínculo social ou das palavras da lei . Não se trata
sempre de urna obturação fantasmática da falta, nem de um elogio
neurótico da certeza. Fazer referência ao recu rso dogmático implica
postular o lugar de um presumível saber como condição indispensável
para o exercício da função de j u lgar. É dizer: a significação imaginária
da magistratura, dada corno uma busca de sentido e não como um
atributo do que tem que j ulgar. A neutralidade como uma possibilidade

143
(desejada) de que o que j u lga pode controlar seu s sentimentos . A
famosa figu ra do j u iz neutro, vi sta como abstinência c não como um
suj eito sem desej o . A abstinência como di stância c não como falta de
responsabilidade com o que se interpreta.
Estou tratando de ver a dogmática j ur í d ica como a representação
mental de um ponto de referência racional para a p rodução dos sen tido s
da lei de direito, que vai permitir impor ao j u lgador seu poder sem
anular, na ação (o desej o) dos homens, o valor da lei como condição de
seus vínculos . Uma forma de outorgar poder ao j u lgador, deixando a
salvo a possibilidade de que a lei possa servir para organizar a
experiência social � os i ndivíduos . O outro que me impõe abstratamente
.
o sentido historizado de m inha liberdade.
A lei j urídica não é compreensível em seu funcionamento sem a
referência à dogmática j urídica que a organiza como garantia abstrata
da p rópria possibilidade do víncu lo social .
A dogmática j ur ídica permite a legitimação do poder no direito,
garante seu fu ncionamento, sempre irrestrito, com a ficção de um limite
racional . Gar à nte uma fantasia de segu rança j u rídica para um poder
ambivalentemente l i mitado e i rrestrito (todo poder é potencialmente
i rrestrito pela ilusão de um l i mite, que na p rática o vá restringindo) . É a
força de uma ficção que tennina carregando a percepção da realidade
com sua i lusão. Uma espécie de ''realismo fantástico" que permite à lei
de direito organizar as regras do j ogo social .
O p roblema con s i ste em como enfrentar os efeitos da história e de
um poder de interpretação que projeta, num número considerável de
caso, sentimentos de onipotência onde só deveria haver a fantasia de
um signo que nos conecta como o outro.
1 . 3 . A importância da dogmática j ur ídica está duplamente dada
por sua pecu liar percepção do direito associada à s ignificação imagi­
nária do projeto de solidariedade e autonomia (individual e social) da
modemidade e também por haver-se constitu ído num impulso essencial,
uma força motriz, da expansão do capitalismo c da limitação das
i rracionalidades de suas racionalizações .
A condição dogmática estabelece u m sentido para a lei do direito
que é ao mesmo tempo uma p resença c uma ausência: um sentido pleno

1 44
que fu nciona como uma eternidade c uma real idade que vai denuncian­
do a frustração dessa significação desgarrada de toda historização .
Uma ação do sentido sobre a realidade que vai dando apreciações
diferentes de um mesmo sentido: fluxos ou intensidades que vão como
atravessando o núcleo legível de uma fantas ia semântica (esteticamente
subtraída à relação com a realidade por uma simultânea condição de
criatividade e coerção cultural) . É dizer, a condição dogmática estabe­
lecendo uma fabulação da expansão racional do direito que só é
admitida como tendência que marca uma p rimeira rep resentação
institucional do outro, o primeiro limite de meu poder frente ao outro.
Não se trataria, portanto, de um dogmatismo propriamente dito,
que i ri a clausurando o dever dos significados (decretando a morte do
pensamento) senão uma fabulação de certas propriedades l ingüísticas
que constitu i ria um campo semântico poeticamente admitido como
imagem valorada da realidade ju rídica. É dizer, o ju rídico como criador
de uma nova ordem valorativa da realidade e para que os indivíduos
possam atuar socialmente (interpretando normativamente o sentido de
seu s atos) . Algo que Kelsen já havia marcado quando alertou que a lei
deve ser sempre vista como o sentido jurídico do ato social .
Trata-se, então, de uma confiança posta nas palavras da lei, como
um algo semântico que está fora de toda transmutação interp retativa,
para poder servir à organização da relação com o outro no laço social e
na estrutu ração dos argumentos interpretativos nos que se definem os
sentimentos da lei (a interp retação como a arte de romper com a
fantasia da plenitude semântica da lei j u rídica) .
Vou tratar de esclarecer u m pouco o que termino de dizer: a con­
dição dogmática deve comp reender-se como lugar de modelo a imitar
com o que o "eu do D i reito" se identifica no estabelecimento do laço
social c seus confl itos . Está claro que a aceitação do modelo requer
uma unidade discursiva, totalizante, capaz de abarcar as diversidades
de todo tipo. Uma totalidade que as interp retações reconstituem numa
função historizante que nunca termina de dissolver a função imaginária
da total idade (para garantia desta forma a não fragmentação do social) .
Trata-se da desconstrução da certeza (cuj a função é a de marcar u m
limite), deixando semp re um resto dela n o seio d e cada interpretação.

1 45
Em cada hitorização perdura um resto de ilusão de uma verdade
absoluta, mais além dos sentidos que imprime a interpretação em cada
um dos atos da administração da justiça.
É certo que a historização da lei, dos atos de sua interpretação,
não é revelação da verdade, constitui sempre um mundo no qual se
entrelaçam redes de s ignificação que fazem inteligíveis a produção de
sentidos normativos . Uma dessas redes está constituída pela condição
dogmática. Sem ela não é possível estabelecer nenhuma relação j urídica
com o vivido. A atribuição de sentido jurídico tem sempre a ilusão da
condição dogmática como disparador. Aqui a ilusão não é outra coisa
que a expressão de um desej o . desej o que, embora altera a realidade
deformando-a, não renega dela nem funda uma i rrealidade.
Não podemos ignorar, por outra parte, que existe sempre a
possibilidade de uma fixação neurótica à fantasia de plenitude, o risco
de um retomo em direção a um sentido alucinado que não está afetado
pela prova ou exame da realidade. A impossibilidade de abrir-se a
aceitação de que o modelo não sej a todo. A incapacidade de descrer de
um outro absoluto . A sombra do modelo é uma reconstrução do sen­
tido.
Estou fazendo um chamado de atenção sobre a existência, em toda
ilusão, de uma realização (que é também um enfrentamento do erótico
(a união com os outros) e o tanático (a alienação no sentido, a morte do
pensamento, o desejo perdido na palavra que alucina sua realização).
Obviamente esta tensão está presente nas formas de pensamento da
dogmática j u rídica: o criativo contra o alienante (morte do pensa­
mento) .
Querendo opor-se ao lado fanático da ilusão dogmático-jurídica
foi-se configurando uma tendência contra-dogmática que nunca levou
em conta o lado erótico (criativo) da dogmática jurídica (incluo-me
nesta crítica) . C reio que chegou a hora de indagar sobre este ponto . É
. .

dizer, também tratar de ver a dogmática jurídica como uma dimensão


simbólica que incide sobre o regime de funcionamento do indivíduo
com os outros e consigo mesmo; a ilusão contida num saber que é
sempre ao mesmo tempo orientador da conduta. O modo de obter a
conservação genérica da experiência coletiva. Também : um imaginário

1 46
radical que p rove as condições para que a administração de justiça
possa existir e o suj eito de direito sej a socialmente fabricado .
1 .4 . Embebidas de crenças epistemológicas as críticas ao dogma­
tismo ju rídico afirmaram-se em seu início, com as críticas ao conhe­
cimento que aspiravam à instalação de uma teoria pura, é dizer, um
conhecimento desligado das relações práticas entre o suj eito cognocente
e a reali dade. No fundo, uma guerra de fantasias : o tipo penal contra a
verdade da ciência.
Ass im, a condição dogmática viu-se acossada pelo desejo de
nascer dela . uma ciência j urídica em sentido estrito . A partir desse
momento o desej o de verdade passou a desempenhar, no cotidiano e no
imaginário do direito, um papel cada vez mais próximo ao do signo
fechado da dogmática jurídica.
A releitura pelo ângulo epistemológico da função dogmática no
direito não chegou a p roporcionar uma resposta satisfatória (refiro-me
a uma resposta que possa confonnar-me no tempo presente) . Entre
outras coisas por que privilegiou um tipo de conhecimento que caiu na
armadilha de reduzir o problema do saber à necessidade de um controle
teórico que minimizou a importância, para o direito, da construção da
subj etividade e dos processos imaginários e inconscientes de identi­
ficação.
Estou falando da onipotência de uma epistemologia que p re­
tende ser estrita, que descarta qualquer significação para os enun­
ciados da dogmática j u rídica: os declara sem sentido, em lugar de
tratar de aceitar que as palavras dogmáticas não s ignifiquem tudo o
que se quer que elas s ignifiquem . A epistemologia j u rídica nunca
consegu i u ver a dogmática do d i reito como s ignificações imag i ­
nárias q u e organi zam, n a modernidade, o mundo d o d i reito e lhe
dão seu sentido .
No fundo o que a epistemologia j u rídica negou-se a aceitar é o
fato de que as p ráticas do direito descansam na repressão de cará­
ter impossível da administração da justiça, da segurança e da eqüi ­
dade; q u e essa rep ressão é a garantia para a preservação e reprodução
do caráter i nstituído do direito . Uma forma também de possibilitar a
automática conversão das formas instituintes em instituídas .

1 47
É certo que a institu ição do direito na sociedade é o resultado da
própria criação dos j uristas, mas como em todas as outras instituições
p recisaram, uma vez criadas, aparecer para a coletividade (e aos
p róprios operadores j u rídicos) como dados pelos ancestrais, os deuses
ou outras referências escatológicas (razão incluída) . Em suma, o
recu rso à heteronomia para sua instituição imaginária.
Apoiando-me em Castoriadis diria que a dogmática jurídica é o
magma particular de s ignificações imaginárias que constituem (hetero­
nomamente) o mundo do direito e organizam a vida social de maneira
correlativa. Estamos falando da criação de uma institu ição, que precisa
pressupor-se institu ída para institui r-se, estabelecer o equ ilíbrio entre a
realidade social e as pulsões do indivíduo, emergir do caos imaginando
sentidos e codificando suas transgressões .
A s ignificação i magi nária social é princípio de existência (um ser
proporcionado pelo sentido), princípio de pensamento, de valor e de
ação . Uma trabalho abusivo da significação, permanentemente impossi-·
bilitado numa modalidade de apresentação/ocultação/retomo da expe­
riência do abi s mo que encontra ou o que ela própria faz ressurgir. Um
fazer-negando as exigências de auto-criação da sociedade (no caso de
auto-criação da instituição j u rídica) . Uma referência heterônoma (um
postulado de homogeneidade) destinada a mascarar o caos em que a
sociedade assenta-se e o caos que ela mesma constitu i . Uma fórmula de
comp romi sso, u m simulacro reificado e instituído do abismo.
Nos ú ltimos quarenta anos o itinerário da ciência e da filosofia do
direito nos levou por caminhos de erudição, numa tentativa de entender
com obj etividade, que terminaram por ignorar o caráter de imaginário
radical da dogmática j u rídica e sua ambivalência descritivo-prescritiva.
A conseqüência: distância e confusão entre a academia e as práticas
quotidianas do direito. Faltou a possibilidade de ajudar aos juristas
para que tenham uma relação deferente com a significação (no coletivo
e no individual), aceitando a lei sem outorgar-lhe ao abismo figuras
p recisas e sem gerar às mesmas reivindicando estrondorosamente
(como se fos sem efeitos especiais) um uso incontrolado do direito abso­
lutamente contingente, que deixaria ao intérprete numa posição de total
exterioridade (com a lei e consigo mesmo) . No fundo trata-se da

148
possibilidade da produção autônoma da significação e da subjetividade :
uma outra maneira de "fazer o pensamento" .
A maneira de "fazer o pensamento" nos anos noventa - para um.
direito que busque o respeito da diferença como princípio - tem que se
mais calada: um trabalho que se vai fazendo com a própria marcha
(work in progress), sem significantes de forte impacto social no que
reconhecer-se e abrigar-se numa espécie de estrutu ra de horda, com
vários asp irantes a pais ideais e um público de massa que prefere o
sentimento de pertinência à possibilidade de pensar por s i mesmo.
Um alarde de autoridade, porém contendo componentes quixotes­
cos, não tem nada que ver com a incidência de acontecimento e da
subj etividade.
1 . 5 . Os diferentes j uristas de oficio tem1inaram quotidianamente
transitando por um i magi nário conflituoso, com padrões intemalizados
de origens postas . O que intensifica o mal-estar em lugar da consciên­
cia. P revalece o estancamento, pela circulação superposta de várias
mecâni cas de representação trivializadas .
P rimeiro foi o enfrentamento com o positivismo jurídico e as
variantes fommlistas que deixaram "desanimada" a dogmática jurídica.
Logo vieram as intervenções contra-dogmáticas que terminaram circu­
lando no p róprio vazio denunciando em fomm estereotipada (circular
sem deixar nenhum atributo simbólico) o vazio. Uma espécie de
jusnaturalismo, onde o intérprete pode impunemente atribuir sentidos à
lei em nome de algum tipo de intuição escatológica (é dizer, o retomo
ao passado medieval do direito) .
Assim, da ficção performativa do pensamento dogmático passou­
se (no contra-dogmatismo) à postulação estereotipada de um vazio
(uma certa falta de sentido da lei à margem das intenções contextuais
dos intérpretes) . Vazio que só certos iluminados, ao que parece,
poderiam p reencher com legitimidade.
A necessidade de apelar a componentes políticos levou o pensa­
mento contra-dogmático para o lado de um ataque indiscriminado da
dogmática j urídica, o positivismo, o formalismo, o j u ridicismo, o cien­
tificismo, enfim, contra tudo o que poderia ser visto, diria eu, como um
"obj etivismo" contrário às vozes oprimidas . Tudo sobre a suposição do

149
caráter intrinsecamente opressivo da lei do direito. Foi uma reivin­
dicação política da função política do direito .
Mas, por que nos anos setenta os juristas p rogressistas da Amé­
rica Latina trataram de exaltar o lado político do direito? Era a forma
de encurralar o inimigo, de suavizar os efeitos da doutrina da segu­
rança nacional .
Neste contexto nasceu o pensamento crítico (contra-dogmático) da
América Latina. Algo muito diferente do que foi a origem da teoria
crítica européia.
Fazemos uma crítica j u rídica que foi-se constru indo e conso­
lidando no enfrentamento com o terrorismo de Estado. Foi um modo de
resistência, que pelo menos no B rasi l serviu.
Agora bem, essa crítica foi crescendo em forma ambivalente. Por
momento fazia-se a reivindicação da dogmática j u rídica para tentar que
os j uizes que aplicavam a lei de segurança nacional entrassem em
contradição (uma concepção dogmático-jurídica do Estado de Direito
foi, para esse contexto, u ma das estratégias combativas mais
empregadas e eficientes) . Mas em outras suposições, foi necessário
apelar ao poder dos j uizes, pedindo-lhes interpretações mais brandas
em nome da indeterminação das palavras da lei . Assim, desde a
academia trabalhou-se muito numa releitu ra semiológica dos processos
de interpretação da lei . Chegou-se até a p roclamar o caráter vazio das
leis (no caso da pena de morte para o lugar-tenente de Lamarca). Mas
isso queria dizer algo muito específico e para esse contexto. Outra coi­
sa é o modo em que esses argumentos trivializaram-se no presente (que
terminam numa negação do Estado de D i reito), sem ver como põe em
perigo o p apel da lei p ara a consolidação da democracia. Nunca pode­
se esquecer que quando se fala de um "Estado de Direito" também se
querem marcar uma oposição com o "Estado de Horror", a forma
típica do terrorismo de Estado que até pouco mais de uma década nos
governou .
No "Estado de Horror" a legalidade estava nas mãos dos
terroristas de Estado . Por isso, os que pretendiam o retomo da
democraci a tinham que tratar de estremecer, anular, o sentido, direi,
"verde oliva" da lei de direito. A situação é diferente quando se vivem

150
momentos de consolidação democrática. N estes casos são os demo­
cratas os que ocupam o l ugar da lei . E não há dúvida que negando a
referência legal se usurp a o lugar vazio, que é sempre uma quebra da
ordem democrática.

11. ELOGIO ÉTICO AO " ESTAD O DE DIREITO"

2 . 1 . O uso de um direito, melodramaticamente j ustificado como li­


bertário unicamente tem valor, insisto no enfrentamento com o que
p oderíamos chamar "Estados de terror". Quando o "Estado de D ireito"
é afirmado desde o Estado� como crença matriz para a organização
institucional dos sentidos j u rídicos será contraproducente propor
qualquer renovação com o fácil recurso de atacá-lo por que conduz a
um idealismo "cervo da dominação capitalista".
As p resentes trivializações e limitações de u ma p rática política do
"Estado de Direito" têm que ser revertidas, dotando-as de um status
conceitual mais aceitável e esclarecedor. O recurso à prática judicial
como critério de validação dos sentidos j u rídicos, é uma pendente
desl izante em direção ao irracionalismo . Uma forma de negar o poder
ético da razão, de introduzir um fantasma de moral socialista que
arrebata todo poder de participáção, todo respeito autêntico da
alterali dade. Como diria B audrillard: um espectro insubstancial de so­
cialismo que germina, incuba, instala e invade ao mesmo tempo. Um
efeito especial no destino moroso da autonomia que carece de conse­
qüências no que se refere a sua realização efetiva. Uma simulação de
mudança que introduz ao espaço do direito no processo generalizado de
dissuasão da razão, do político e do social, que caracteriza a trans­
modemidade em sua tendênci a destrutiva. O direito como modelo
estático de realização da violência. Uma "alternativa p ara desestimar"
o "Estado de D i reito" e fortalecer o jogo das atuais formas de expansão
do capitalismo.
Há que ter em conta que a expansão do capitalismo multinacional
(o capitali s mo real de l ivre mercado) precisa de uma fórmula de
govemabilidade sem política, e de um s imbologia meramente retórica

151
da democracia. No fimdo, uma negação da idéia de democracia, como
mediação da cidadani a e o d i reito de todos a viver conforme uma
gramática j u rídica instituída c respeitada pelo Estado .
Em outras palavras, a condição transmoderna da expansão do
capital está desej ando impor a crença em torno a uma incompa­
tibilidade estmtural entre o desenvolvimento do capital e a radica­
lização da democracia, através do exercício pleno do Estado de Direito.
Disse-se, então, que o acatamento sem restrições ao direito e suas
garantias constitucionais criariam desastrosas condições de "ingover­
nabjlidade" . A exigência que os círculos de poder querem impor, é a de
ignorar os direitos reconhecidos pelo ordenamento vigente (ou atenuar
suas exigências), quando esse reconhecimento ponha em risco a
governabilidadc desej ada, para impor essa sinistra forma de dominação
que se está chamando: "nova ordem internacional".
Ora, para assegurar esta idéia de ingovernab ilidade, que ganha
corpo nos círculos de poder do capitalismo transmoderno, é p reciso
massas indiferentes a suas próprias reivindicações legalmente garan­
tidas, sobre um fundo de um Estado de D i reito que unicamente incida
como fonna publicitária . Então, é quando se faz mais evidente a
pobreza de p ropostas que atacando, por bu rguesas, as garantias do
Estado de Direito, tern1inam desaguando junto com os que vêem na
democracia condições intoleráveis para as novas exigências de
reprodução do capitalismo.
Para estas circunstâncias, falar de uma "crítica" (a palavra não
me é simpática para este final de m ilênio) do direito exige, pelo menos,
creio eu, ter uma atitude de vigília para que se respeite o direito
instituído e suas razões . A crítica como uma atitude de luta contra um
imaginário - e certos fluxos de poder - que vem nas razões expres­
sadas na lei do direito uma zona de risco para a governabilidade. O que
em outras palavras quer dizer, uma luta pelo "Estado de Direito".
O "collorgate" é um bom exemplo para o que estou dizendo: uma
cidadania que conseguiu i mpor um desej o de realização do "Estado de
Direito" contra um p residente que queria um uso alternativo do Direito .
O capi talismo modificou-se p rofundamente e não pode ser
questionado com conceitos historicamente esgotados ou formulações

152
a nêmicas ("d i reito dos oprimidos", '·classes dominadas ", etc . ) O pro­
jeto de autonom ia só pode retomar-se superando as condições
transmodernas do capital ismo. Já existe um pensamento da transmo­
demidade, que pode dar um aporte mais consistente a esse projeto .
Para que serve o apego melancólico a u m sonho c a uma realidade
superada? Para que serve agora i ntroduzir no direito uma esquerda
defimta?
Já não basta aliviar aos exclu ídos com a desconstrnção da retórica
ideológica do cap italismo. Tampouco serve negar o valor da lei para
assinalar ao poder sua origem c competência. Pensar o direito, na
condição transmodema, requer uma sensibilidade que não anule a idéia
de uma necessária instituição j u rídica da sociedade, a referência a um
marco normativo que, a margem de suas ambivalências, pennita o
controle ético-racional do que se vai decidir. Podemos perguntar qual é
a fecundidade de uma p roposta que pode desembocar numa ignorância
deliberada do ordenamento normativo vigente . Para escutar os sinais do
novo não é p reciso ceder à ilusão de uma rnptu ra radical com o direito
estabelecido. Seria o retorno ao caos, onde, aparentemente, tudo
poderia estar potencialmente proibido.
Sem retomar à ilusão de pureza as respostas podem estabelecer
seus comp romissos redescobrindo o valor da dei (exposta como Estado
de Direito) na p rodução das mudanças sociai s . Um direito que pregou
liberar-nos de uma certa "tirania das leis" pode converter a seus mili­
tantes em guardiães dos que dizem aj udar para "sua libertação". Os
iluminados obtu radores de uma falta.
O pensamento j u rídico não pode abandonar a idéia, de que existem
certos deveres de legalidade nos processos decisórios, como exigência
de j ustificação ético-racional . A intenção de um convencimento ético­
legal -racional do outro é fundamental e não pode ser esquecido. Se
desclassificamos este trinômio estaríamos dizendo o mesmo que Alfred
Rosenberg ou Hans Gerber.
2 . 2 . Poder-se-ia dizer que a busca de uma nova articulação entre
legalidade-ética e razão, é o grande debate político que tem que
atravessar o pensamento j u rídico na transmodernidade para não obs­
trn i r as possibilidades de uma mudança na atitude dos homens e nos

153
objetivos, que assegure o ressurgimento, em fom1a inovadora, do
truncado p rojeto de autonomia. Recuperar a distância interpretativa da
lei, como criatividade ético-racional-legal; tratando ao mesmo tempo de
recuperar o político no direito, como conjunto de princípios geradores
das novas relações que os homens mantenham entre si e com o mundo,
e não como u sos desconstrutivos que se assemelham às form as
anarquistas de resistência. Isso podia ser útil nos anos sessenta, mas é
descartável nos anos noventa.
As lutas e resistências que se possam travar em nome do direito
resultaram politicamente improdutivas, transformaram-se numa infinita
negatividade, se não são acompanhadas por uma intenção de busca de
novas possi b i lidades ético-racionais-legais para a autonomia, em
condições de existência absolutamente alteradas .
Os j uizes alternativos querem que seu "desejo de justiça" não se
encontre submetido a nenhuma lei (reivindicam o perverso para si) .
Querem determinar o que é proibido para uma sociedade sem sub­
meter-se a nenhum tipo de interdito . Não querem, para si o limite de
uma lei . . . E não se dão conta que desta forma tampouco há uma lei
jurídica para a sociedade.
A lei j u rídica funciona na sociedade quando a castração do desejo
(de liberdade) é submetido a regras que s imbolicamente estabelecem os
limites do interdito. É dizer, que organizem uma demarcação de sentido
entre o p roibido e o permitido, submetendo também a uma instância de
lei aos i nterdito res. O pai que introduz a lei tem que submeter-se a ela.
A lei do desej o não funciona quando o interdito que impõe é dado por
um enunciador sem limites, que não se implica com nenhuma ordem.
Na mesma direção: o i nterdito jurídico precisa da precisão imaginá­
ria do que restou como permitido: "o Estado de Direito", "a dogmá­
tica j u rídica".
Graças a Freud pude reconciliar-me com um registro do direito
que por muitos anos molestou-me, entendi de outra forma o papel da
dogmática j u rídica e da concepção do "Estado de Direito" que dela
pude desprender-se. Entretanto, no universo psicoanalítico pude ver ao
"Estado de D i reito" como o lugar simbólico que sustenta a lei jurídica,
organizando a falta que ela introduz.

1 54
A lei j u rídica estabelece a falta na sociedade, para logo constituir
uma organização fantasmática que atenua o intolerável dessa castra­
ção. Assim, cria um universo abstrato de garantias p lenas (que pode
chamar-se de ideologia j u rídica) que consegue, por um lado alienar a
angústia da castração j u rídica (alucinar a precisão das condutas
proibidas, tipo penal, etc), e, por outro lado, impor uma instância de lei
para seus i ntérpretes . Surge, desse modo, o "Estado de Direito" como
uma organização fantasmática da lei do direito, "a metafís ica do desej o
jurídico" (a metafís ica d a subj etividade n o direito) .
A lei j u rídica difere da lei do desejo, no seu sentido próprio, na
medida em que contém instâncias instituídas para sua interp retação. A
lei do desej o é interpretada, diríamos, em "estado de terapia", com
amor de transferência. A lei j u rídica é interpretada pelos j uizes exer­
cendo o poder.
A lei do desej o é interpretada para ajudar ao atravessamento de
um fantasma, para que o corpo que desej a possa fazer-se carregado de
uma impossibilidade, aceite a falta sem elementos que a tapem, sem
alucinar a satisfação. Neste caso, a interpretação ajuda para enfrentar o
medo de u m desej o condenado a realizar-se em estado de impos­
sibilidade frente à p lenitude.
A lei j u rídica é interpretada com o apoio de uma organização
fantasmática que legitima as p ráticas decisórias do direito, como se
elas emanaram de um grande sentido preexistente na lei . Assim, na
interp retação do direito não se busca atravessar um fantasma, pelo
contrário, quer-se convocá-lo p ara j u stificar uma decisão que reprime
ao sujeito de enunciação . E isto não tem uma razão de ser, pelo menos
para sociedades em que, majoritariamente, impera o medo ao próprio
desejo?
A lei j u rídica é vista como suposta depositária de uma totalidade
que permite p roibindo (acaba pem1itindo o que não foi proibido), que
delimita sentidos excluindo os suj eitos de sua significação em fechados
e totalizantcs j ogos de significantes (tipicamente a figura do j u iz neutro
e de uma teoria j u rídica pura) . Atos de interpretação da lei jurídica
feita por suj e itos que se negam a saber o que sabem .

155
A lei j u rídica não escapa à impossibil idade do simbólico, o re­
veste. Sua interpretação depende de uma argumentação que satura a
falta. E o tecido social toma corpo, encontra sua razão no indefinido
dessa insatisfação s imbólica, sempre recoberta no lugar de seus dis­
cu rsos decisórios .
"O Estado d e D i reito" é o nome para a impossibilidade jurídica, o
significante transcendental que determina o modo s imbólico de sua rea­
lização social : a metafisica do poder j urídico, constituída por uma his­
tória que se oferece idealizada. Um "visto e decidido" que traduz para o
p resente os sentidos da lei do direito, alucinando uma plenitude
-
semiótica originária .
Estou falan do do "Estado de D i reito" como um fantasma que não
pode ser atravessado. Estou me perguntando sobre o que se requer para
sua resolução. Claramente sustento que os modos atuais do pensamento
contra-dogmático não o atravessam, unicamente posicionaram-se per­
versamente. Expus, também, minha preocupação em relação à neces­
sidade desse fantas ma, pelos efeitos sobre a subjetividade de uma
eventual perda da expressão do direito como resolução das diferenças
por fantasias de igualdade e expectativas de p roibições garantidas por
um eterno retomo às fontes (a perda da famosa segu rança jurídica) . No
fimdo, uma referência ao "Estado de Direito" como suporte da
problemática j urídica de·uma modernidade esgotada.
Intimamente sinto que a condição transmodema (que coloca um
monitor de televisão no lugar do outro) reduziu a complexidade simbó­
l ica do "Estado de D i reito" ao lugar comum das imagens trivializadas:
um adorno supérfluo que favorece a imobilidade crescente dos
indivíduos e a desilusão do laço social . Já não é necessário alienar, nem
encontrar-se como o outro numa organização fantasmática; a realidade
feita de imagens insinua apagar o efeito da falta. As imagens atualizam
um "grande outro" que anula o efeito do pai como significante.
Estamos vivendo u m momento de perda da experiência histórica,
de perda da experiência do coletivo. Um momento de "narcisismo
social", de uma solidão feita de desamparo que leva para um desin­
vestimento global da realidade. A metafis ica substituída pela hiper­
realidade das imagens . O vazio ocupando o lugar da falta?

L 56
Neste contexto urge perguntarmos pelo "Estado de D i reito", como
um modo de alimentar pontos de ruptura com os caminhos do vazio .
Isto faz com que, a concepção do Estado d e D i reito, porém corres­
panda a um espírito de época que passou, siga tendo vigência como
plano de constitu ição do sentido simbólico do d i reito na sociedade. O
s ignificante que reintroduziria para o laço social o valor do outro como
lei .
De início, a questão do di reito é relação com o outro . Por isso, o
sentido do di reito tem que ser compreendido sem p re como uma ambi ­
valente relação libidinal com o outro . . . U m a erótica social que nos
impõe um "entre-nós" como lugar do direito (de um consenso expres ­
sado como lei) e efeito de cidadania.
É dizer, estou reivindicando o valor transmodemo do "Estado de
D i reito" como significante que expressa o valor da lei do direito na
constitu ição do vínculo social . A concepção do "Estado de D i reito"
como um plano de constitu ição do víncu lo social que instala o enlace
l ib idinal com o outro, aceitado por uma referência simbólica a uma lei .
É dizer, o "Estado de D i reito" como manifestação de um outro que por
sua só p resença impõe a impossibilidade no reino de minha l iberdade
absoluta e a diferença como p rincípio ético do dire ito: o outro como
razão da lei do direito .
Não estou , por suposto, apregoando pelo retorno de uma con­
cepção ideológica do "Estado de D i reito". Seu valor atual depende das
condições que se tenha para atravessar sua organização fantasmática,
fazer-se cargo da angústia de uma impossibilidade, superar os disposi ­
tivos metafís icos e negar a perfeição dos modelos que envolviam sua
significação na modernidade. No fundo, um modo de instalar ao outro
(como lei de di reito) no lugar da invenção, na p rodução de pontos de
ruptu ra (o barroco), de acontecimento criador. O ' 'Estado de Direito"
como o significante que introduz a função da palavra e dos argumen­
tos racionai s (o outro como palavra) na constmção do novo . A
cidadani a como lei de direito . O significante que permite transformar
a falta em c riatividade, o poder em potência, a moral num plano ético
de mptu ra.

1 57
I I I . A TRANS MODERNIDADE JURÍDICA
E SEUS MODELOS D E SIMULAÇÃO

3 . 1 . O direito parece estar também afetado pela metástase infor­


mativa da transmodemidade. Temas que fazem a solidariedade, a
democracia, os direitos humanos, a cidadania, a censura, o exercício
dos direitos, são alterados por uma overdose de informação que lhes
fazem perder consistência, quase como se não existissem .
Como disse Baudrillard na sua última passagem por Buenos
Aires : "são tão pequenos o s atuais interesses humanos, que na prática
supõe que se dá o mesmo no regime democrático como um autoritá­
rio"6 . Uma indiferenç à que nos deixa, diria Almodovar, à beira de um
ataque de totalitarismo .
Hoj e convivemos com a triste figura de uma cidadania nebulosa
que não quer ser representada, unicamente escapar do político para
assistir ao espetáculo da representação. E que tampouco se p reocupa
muito com a justiça, as denúncias de corrupção e as evidências de
violação da legalidade.
Pertencemos a u m a "cidadania" que está muito longe dos compro­
missos participativos e mais perto das atuações de vaudeville. Próxima
do grau zero da energia política, mudada pelo frenesi de uma conj unção
de peripécias sem conseqüências e sucessos escandalosos, fomentados
por administrações que reivindicam para ali, a gestão disciplinada de
uma visão economicista (o programa em lugar da política) . Admi­
nistrações nas quais p redomina a intenção de mudar beneficios sociais
por signos, rituais de poder. O poder selvagem que só quer gestionar a
coisa pública para seus próprios interesses : o poder como valor de uso
para s i .
Quero m e apu rar em esclarecer que esta situação d e cinismo indi­
ferente, não se está produzindo como fatalidade histórica. Existem mui-
6 A verdadeira posição reacionária, o autêntico conservadorismo radical, para
B audrillard, naesperança i l u só r ia e rev isionista de salvar todos aqueles velhos
valores, num momento em que se encontram co mp l e ta me nte superados neste
estado transpolítico e são administrados como fundos de comércio. Ver
Baudrillard. La esquierda divina, Editorial Anagrama Barce l o na 1 9 8 5 , p. 5 9 .
,

158
tos sintomas positivos, micro esforços para restitui r o sentido ético pa­
ra a justiça e a política. O "Estado de D i reito" e o apego a regras racio­
nais retoma como exigência que convida à participação . O povo sente
que pode voltar a participar lutando por seu direito à participação .
Aparece um sentimento de que se pode participar politicamente, lutan­
do para que a sociedade volte a ser política (numa fonna de sociedade
que ameaça com o fim da política) eticamente regida pelo "Estado de
Direito" e j uridicamente instituída em tomo a regras racionais .
O B rasil, com s u a experiência d o "Collorgate" é uma prova do
que estou dizendo. Todo o povo brasileiro, que pintou-se de negro nas
ruas de suas maiores cidades, está s ilenciosamente atuando seu desej o
d e q u e a democracia deixe de ser uma etiqueta e o direito a mascara de
impunidade para uma estrutura corrupta. A cidadania atravessando seu
fantasma?
Por certo, estamos ameaçados por modelos de simulação; modelos
de simulação do direito, da democracia, da cidadania, dos direitos
humanos, da ecologia, do desej o, das identidades e, inclus ive, modelos
de s imulação da crítica ao conhecimento .
Poderia dizer-se que existe consenso sobre os valores contidos em
todos esses modelos, mas só no registro da ilusão . Uma ilusão que se
simula realizada, porém, ·os fatos demonstram todo o contrário . "É a
universalização de certo número de valores que se têm pago muito caro
no decorrer da modernidade" como disse Baudrillard na citada
passagem por Buenos Aires . A ilusão da grande história como modelo.
Ela funciona, para nosso p resente, como uma variante da negatividade
kitsch . O lugar comum que se instala como fantasma (atravessa-se
negando a perfeição dos modelos) .
3 . 2 . O capitalismo e o socialismo podem ser vistos (entre muitas
outras coisas) como as duas ideologias de p rogresso da modernidade.
Lutaram pela supremacia, na fantasia de uma felicidade futura. O que
se cogita, com o advento da transmodernidade, é sua capacidade para
perdu rar no trânsito para uma possibilidade diferente de condições de
pensamento e existência. Uma transição para uma nova etapa da
história bastante dificil , pelo momento, de ser pensada. Uma época de
dissolução de uma história concebida como p rocesso unitário e

159
totalizador. Fomos expulsos simultaneamente das promessas do pa­
raíso?
Como disse A . Touraine, "os intelectuais não dominam mais a
situação" e seus modelos para pensar, aparecem como uma simulação
de alguma das grandes fantasias da modernidade, agora perdidas num
mundo que aceita a ilusão da fragmentação sem apostar na finalidade.
A luta rendida frente do nada discreto encanto do político como
espetáculo: uma involução do pol ítico numa simulação de massas cada
dia mais i nclinada aos j ogos da simulação e da dissuasão . Uma
sociedade que fala da fragmentação c da morte do suj eito e simul­
taneamente recupera todo tipo de fundametalismos (que contém visões
fortemente congeladas do sujeito) .
Nós estamos encaminhando para um exercício do poder, que há
deixado de i nteressar-se pelo convencimento ideológico, pelo valor de
u so de nossas convicções profu ndas ; um poder que agora só se
preocupa por manejar adequadamente as novas estratégias da indife­
rença e da dissuasão . O poder disfarçando-se de si mesmo?

1 60
PARTE IH

Ecologia e desej o
CAPÍTULO I

O S SONHOS APOSENTADOS:
refl exões à m a rgem d e m a i o d e 6 8

I. Enquanto percorria o quartel de Mancada, fu i subitamente inva­


dido pela melancolia. Uma guia, burocraticamente apaixonada pela
revolução cubana, mostrava meus sonhos de j uventude como peças de
museu . A roupa dos guerrilheiros . A retirada de Raúl Castro. O Che e
sua carta de despedida de Cuba. M i nhas ilusões estavam sendo conta­
das como parte da História. Estavam falando de minhas primeiras
paixões políticas como se elas pertencessem a uma época já muito
distante no tempo . Os sonhos da minha geração estavam sendo
convertidos em fetiches de um mecânico relato para visitantes de um
museu : um discurso morto c glorificado . Meus sonhos convertidos em
um mostmário de lembranças i deologicamente recuperadas . O imagi­
nário da minha j uventude estava agora fazendo parte da lenda da pró­
pria revolução cubana. Já existem várias gerações de cubanos que
sentem o Che como mito identificatório de sua forma de sociedade, mas
não como parte comprometida e comprometedora de sua prática
política. Um jovem cubano sente pelo Che o que o jovem brasileiro
pode sentir por Tiradentes .
Confesso que me senti bastante incômodo comprovando o destino
terminal de minhas ilusões . Pertu rbava-me, inclusive, o final de seu
percurso exitoso na revolução . Por quê?
Levei alguns dias para encontrar o fio de uma resposta.

163
Camilo Cienfuegos, Ernesto Guevara estavam anulados como fór­
mula nova que empurra uma utopia à vida. Eles estavam aposenta­
dos como sonhos . Para a j uventude cubana eles eram sonhos es­
tabelecidos . Para muitos intelectuais quarentões como eu, simples­
mente, o rumor de um passado abortado, de algumas transgressões
frustradas, de algumas convicções desgastadas . Ilusões conservadas em
um estilo retrô, i lusões que não conseguiram transformar-se para
p rovocar o novo. Estilhaços nostálgicos que se esforçam em perdurar
na expectativa de uma con-creção, agora impossível . Trata-se de uma
concessão ao p assado não realizado feita com a intenção de recuperá-lo
como presente: O desej o vão de viver tardiamente uma frustração. No
fundo, uma espera inútil, um gesto de Penélope condenado ao fracasso
de uma espera impossível : os sonhos que se esperam não existem mais.
Eles apenas servem para negar os encontros possíveis com a vida que
está vindo até nós.
Pertenço a uma geração que se nega a fazer o luto de suas utopias
perdidas . P referimos ficar à espera de uma ressurreição; negar a morte
de um proj eto de vida conservando uma esperança histérica.
Todo luto demanda um balanço que deve ser feito como a
dispersão de cinzas fecundantes .
Desagrada-me reparar como se nega um luto persistindo numa
espera: o sonho de recuperar um sonho que já não tem mais força de
provocar o novo. Utopias abortadas q ue nem sequer conseguem
reconhecer-se transformadoras no novo . Quando um sonho deixa de
provocar o novo, ou deixa de impulsionar nossas descobertas nas
aventuras da vida, enfim , quando deixa de servir ao estremecer de uma
criatividade, p recisa ser enterrado. Um sonho insepulto fede. O trágico
ocaso de um sonho mede-se por sua incapacidade de passagem, passa
por sua medrosa indisposição para capturar as diferenças, para sentir
os desejos na vertigem de sua pluralidade. Há no amor pelas velhas
i lusões uma espécie de fascismo: encantamo-nos com o mesmo,
aborrecemo-nos com as diferenças . Nega-se a vida quando ficamos
encantados com a mesma, quando nos negamos a reconhecer que a vida
conserva-se numa polifonia dos desej os, numa prática que não sente
culpas quando abandonam as paixões para reencontrar o dever.

164
Vivemos numa cultura que congela os sonhos, reduzindo-os a
estereótipos . Tristes pontos cardeais, ingratos mergulhos numa p ropos­
ta de vida que renega a possibilidade de sentir a necessariedade do
devir. Tudo fica como irremediavelmente instituído . Morrem as expec­
tativas pelo além . Assim, nossos sonhos transfom1adores viram sonhos
totalitários : uma p rática conformada e politicamente exilada, uma prá­
tica que se nega a ser o sentido de um forma democrática de sociedade.
Existe nos sonhos congelados um espaço de suspensão del iciosa
dos avatares da história. Uma revolução imaginária que nos mantém
esperançosos no espaço, ainda puro, da fantasia: uma espécie de objeto
transacional (Winnicott) que perpetua um . espaço i lusório para a
política: a p rática de um imaginário estéril que nos conserva coesos
numa grande fórmula mediadóra. É o mito substituindo o sonho. No
fundo um sentido de pertinência que faz de toda revolução um desej o de
implantação de um mundo ideal . Nunca mais um lugar de trans­
formações imprevisíveis . As revoluções, para serem democráticas,
precisam inventar o mundo, praticar o acaso, aceitar as dispersões dos
sonhos . Elas morrem tentando implementar os sonhos que viraram
paradigmas . As revoluções e os sonhos não podem ser outra coisa que
uma ocasião para o "ainda mais" do desejo. Os militantes dos sonhos
estabilizados fundam, em nome das suas ilusões, uma moralidade
inflexível. Todo o afastamento da ortodoxia de suas ilusões é castigado.
Outras caras dos sonhos serão vistas como inimigas . Paradoxalmente o
novo é vivido como contra-revolucionário.
É espantoso numa moral inflexível é que esta mítica refinada de
deveres pode levar, ao povo que fica prisioneiro dela, a uma i matu­
ridade das paixões . Perde-se o feelling das paixões e o sentido de um
compromisso com os outros . A política fica para os lugares-tenentes
dos sonhos. Renunciamos a favor de seus heróis das práticas políticas .
É o homem politicamente mutilado pela perfeição de um sonho .
Porém, . o mais perigoso de um sonho moralizado está em sua
disponibilidade policialesca: o sonho funcionando como um poder de
polícia que etiqueta como imoral a contra-revolucionária toda a leitura
inesperada do mundo. No findo uma prática elitizante das ilusões que
impede incorporar aos sonhos os sentimentos populares .

165
2 . A incerteza e a indiferença desej ante são dois aspecto s esse n­
cia is para o estabelecimento de uma ordem s imbólica democrática.
Eis-nos diante do sentido de uma fonna de sociedade que penn ite
a rei nterpretação do político pela dissolução de toda referência à
incerteza. Segue-se daí a possibilidade de imaginar uma fo nna de
soc ied ade onde se experimenta uma indeterminação última não só com
resp eito aos fundamentos do poder, mas também com respeito aos
fund amentos do desej o . Inclusive, a democracia não pode admitir que
os sonhos em tomo de sua implementação histórica se apropriem dela
co mo seu fundamento .
Quando os sonhos perdem a sua mobilidade histórica (por sua
reali zação ou por sua fmstração), perde-se a possibil idade de legiti mar
o s ocial pelo conflito, recuperando-se, na pennanência do sonho, a
defi nição sobrenatural do sentido da sociedade. As ilusões imobilizad as
não deixam de ser sonhos "j usnatu rali stas": figu ras endeusadas de
uni dade que não preservam as condições de possibilidade de um a
ordem democrática, que são sempre as condições de sua detenninação
última: então, a autonomia do desejo, como chave da detemlinação
fundante de uma ordem simbólica democrática.
Uma ordem simbólica democrática precisa do além . O motor desta
fo m1 a de sociedade deve ser encontrado na p rocu ra do "ancore"
simbólico: um suplemento de sentido no "ainda mais " da lei, do poder e
do saber. Porque quando se perde a paixão pelo "ancore" simbólico,
começa-se baterem os s inos do total itarismo.
Talvez sej a tempo de mostrar que os sonhos imob il izados por uma
fan tasia de perfeição perpetuam a permanência exclusiva do que
poderíamos chamar o lado mascul ino da sociedade. Os sonhos perfeitos
e acabados recusam o feminino da sociedade: o desej o encontrando-se
c om a c riatividade, o desejo indo além do sonho que lhe deu origem .
E stabilizado s os sonhos, estabilizados os desejos, fi xados os senti­
do s, o homem vira afásico de fi.1turo, e o espaço público pennanece
to m ado pelo poder e pelos deveres .
O lado feminino da sociedade está comprometido com a procura
da afi nn ação to11t co11rt - da vida. Será a p rocu ra si mbólica da indi­
-

vi dualid ade.

1 66
O lado mascu lino está comprometido com o poder e com os
deveres .
O feminino revela-se como uma procu ra da vida no além do dever,
e poderes, no além do estabelecido.
O lado mascu lino e feminino da sociedade mostra a tensão (quase
irredutível) entre a p rocu ra do ser e o desenvolvimento dos desejos de
poder e de dever.
Quando o homem se apoi a em sonhos convertidos em metáforas
p oéticas, que viram mercadorias revolucionárias, renuncia a procura do
ser, que é uma demanda de incertezas .
Ora, quando os homens são privados do ser, resplandecem os
poderes e se reassegu ram os sonhos de uma ordem totalitária.
Por isso, penso que para transformar o mundo é preciso enterrar
os sonhos aposentados, construir novos sonhos que transformem os
desejos de poder em um desej o de ser.
As necessidades democráticas sustentam-se num discurso de vida.
É um discurso que encontra sua agregariedade na deriva de uma busca
de afinnação fora do poder e da lei . É o ser que se realiza no reco­
nhecimento do caráter amorfo de suas afirmações e num campo de
dispersão das significações . É o sentimento lingü ístico do devir que não
p rende o ser em sonhos repressivos .
Em certo sentido a democracia é o lado feminino da sociedade .
Encontraremos a ordem s imbólica democrática sonhando-a feminina­
mente, aceitando-a como um campo de dispersão de nossas ilusões .
N ão é possível sonhar em paz.
N ão é p reciso que nossos sonhos conqu istem o poder.

Baxamo, Cuba, fevereiro de 1 988

167
CAPÍTULO 11

DIA TRIBES DE AMOR CONTRA OS FILÓSOFOS


SENTA DO S : Il\1AGENS DO CEMITÉRIO

Em Buenos Aires existe um fluxo cultu ral recostado sobre a


morte. No centro da cidade, às voltas do cemitério, instalaram-se dois
museus de artes plásticas, proj eta-se construir a biblioteca nacional e
funciona a máquina p rodutora de cultura de um organismo interna­
cional ; circulando em si mesmos os "melhores consumistas portenhos"
exibem os modos em que se traem c comem em poltronas confortáveis
de requintados restau rantes levantados de fronte ao cemitério . Em
segu ida, alguns buscam o amor em motéis de j anelas que permitem
enxergar, depois dos ardores, sonolentos, o mám1ore dos túmulos de
alguns heróis nacionais . Um teatro de bons costumes, uma maneira de
estar entre os outros ignorando-os, um apoio para o que já se orde­
nou em excesso como Deus manda. Ocupações instaladas no nicho de
suas horas, olhares desatinados que convivem com a morte sem
perceber-se dela. Cu riosos transeuntes que, em grande maioria, nem
sequer reparam que perto deles, no coração de Buenos Aires, existe u m
cemitério.
A Faculdade de D i reito também está nesse lugar, levanta seu rosto
falsamente romano, cede suas inteligências jurisconsultas e opina sobre
a vida em assalto aos mortos que a rodeiam .
Inevitável metáfora para aqueles que, como eu, nos fom1amos em
Direito e tentamos, logo, ensinar filosofia, habituando-nos a esse ma-

1 69
cabro teatro u rbanístico . Indiferente e pavorosa monotonia que se
instala inadvertidamente no i maginário para receber uma cultura jurí­
dica que pertence à morte sem sabê-lo.
Ensina-se o Direito valendo-se de uma língua morta e sem muito
interesse em tentar o renascimento . Instrumentos interpretativos guia­
dos de longe da história, que dão acesso precário a uma matriz cultural
mediocremente custodiada pelos costumes conceituais. Uma densa
atmosfera de opressões inunda o panorama do saber jurídico carre­
gando-o de valores e verdades congeladas, de pura memória épica
contrastada com a solidez do cotidiano.
A Teoria Geral e a Filosofia do D i reito, aparentemente destinadas
a combater as deformações, o enganoso realismo das categorias univer­
sais, term inam disputando com o j u ridicismo clássico uma mesma
postu ra perante o saber e as prerrogativas de um laço i nabalável com o
passado das idéias .
No fundo, uma complexa negação do envelhecimento - nada
p rematu ro - dos conceitos que sustentam a versão clássica do Direito.
U m p rograma contra a deterioração baseado em categorias que também
se foram deteriorando sem levar ao Direito uma nova identidade,
emparelhamento estético que permitiu dissimular o tecido j á morto de
um sistema de cre.nças . Su lcos e rugas receberam cuidados externos
que aj udaram a restaurar uma capacidade epidérmica e melhoraram "o
metabolismo" de algumas práti cas discursivas alienantes . Os p rodutos,
filosoficamente remoçados, da cultu ra j u rídica não conseguiram re­
cuperar nenhuma j uvenil ousadia.
C renças que se correspondem, com séculos de intervalo, do mi­
rante da mais alta torre do observatório dos sacerdotes : um nicho de
mám10re que alberga o sentido cifrado que governa, até agora, uma
irrefreável invasão simbólica. C intilações tanáticas, relutantes ao novo
e a todas as formas de criatividade não vigiadas pela e rudição consa­
grada: uma forma, muito respeitada, de pertencer a um cemitério. Para
isso, basta tomar-se afetivamente amorfo, abandonar-se às correntezas
de um passado mal elaborado, resvalando com o rio dos saberes que
negam as cumplicidades mágicas .

1 70
Desta maneira, cede-se à imperceptível inclinação de renunciar à
vida cobiçando transparências perfeitas, embasando os desejos em um
saber que os ignora.
* * *

Domina na filosofia do d i reito um saber de antepassados, cons­


truído por notu rnas rondas ao aristocrático cemitério das erudições à­
toa: teorias que descobrem nomes ocos, classificações e divisões que
envelhecem as misérias e os horrores de uma dominação exter­
minadora, raciocínios que se auto-satisfazem na caça desapiedada das
contradições alheias, respostas dadas para tapar um buraco exclusi­
vamente discu rs ivo e pôr a tamp a numa pànela velha e barulhenta que
ferve refe rvc para ninguém . Teia de teias, mandarins feridos pela
diferença, embalsamadores que convidam a uma i nacabável cópula
com um céu que exige ordem e obediência, utopias canônicas que se
deleitam acreditando em suas p róprias fantasias de controle. Gaiolas de
luz constru ídas para atender exclusivamente satisfações mentais . Voca­
bulários encarcerados de uma teoria geral obstinada em produzir
generalizações abstratas e eunucos políticos.
Uma razão morta que serve muito bem a um certo tipo de filósofo
do direito, mu ito mais p reocupado em atender suas mesqu inharias
pessoais que em transformar a s ociedade.
* * *

Jogo de paradoxos . Anos a fio convivo com uma considerável


porção de j u ristas invej osos e nada solidários, que ensinam s imulando
p reocupar-se com a democracia, os direitos humanos e a dignidade.
Relacionei-me com filósofos do direito que falam das fonnas de
legitimidade do poder sem deixar-se acariciar, no íntimo, outra coisa,
conservação, a qualquer preço, de seu poder acadêmico.
Figuras repetidas . No horizonte cotidiano multiplicam-se os filó­
sofos que unicamente conseguem escutar-se a si mesmos, unir-se uns
contra outros, exibir-se com p rodutos vendíveis, aliar-se estrategica­
mente para garantir recíprocas sobrevivências e servir camufladamente
ao poder imperial .
Sensíveis aos gestos racionalistas mostram-se escandalizados
quando algum descu idado quebra as regras de suas boas manetras e

171
falam da fome, da tortu ra ou da exploração sem impor as abstrações
j uridicamente tranqüi lizadoras .
Trata-se de uma vitoriosa seita que não admite nenhum debate
aprofundado, nenhuma p reocupação fora das banalidades costumeiras
que fundaram o império de seus saberes .
Refutadores de utop ias e sonhos mágicos, todos cuidam de seu sa­
ber como se ele pudera refugiá-los como um santuário inviolável . Cada
um deles tentando retirar sua libido do mundo para dar-lhe asilo nas
m iragens de seu p róprio "eu", sem riscos, decepções ou incertezas . Um
narcisismo nada aventureiro . Pulsões de morte dos profissionais de um
saber que ignora o cumprimento da vida praticado por erros . . . Tudo em
nome dos mais altos ideais filosóficos, tudo às voltas de uma compre­
ensão letárgica da vida em sociedade. Nunca se unem por amor à
sociedade. Juntam-se pela vaidade e para assegu rar e reproduzir o seu
próprio poder.
Eternos refutadores do novo, insistem em demonstrar que o mundo se
acomoda às suas descrições porque o desejam assim. Muito mais perto do
desengano que da fantasia, produzem e produzem como uma pulsão de des­
tmição de todas as novas formas de interrogação que os ameaça.
Estrangei ros do mundo, vivem tratando de causar boa impressão.
Espertos na arte da impostura, limitam-se aos grandes simulacros e às
defesas maníacas . Sujeitos lastimados, de fato carentes que disfarçam
com verdades suas agressividades . Baseando-se em abstrações atempo­
rais, estes especialistas da organização imaculada ditam aulas que
servem para aconselham o sentido da lei, instmem desejos, resolvem
analiticamente as desigualdades sociais e consagram academicamente
as técnicas mais refinadas para obter aparências proveitosas .

* * *

PARTINDO PARA O NOVO

Estou tomando consciência da imperiosa necessidade de dizer


adeus a um saber que ignora soberanamente os outros e pretende fazer
as p ráticas políticas à sua imagem, como semelhança.

1 72
Meu repertório de expectativas em tomo de uma vida universitária
com j uristas que fazem filosofia ficou desiludida. Uma espera de muito
tempo esgotou a paixão . Apareceu urgente, então, um longo e meditado
afastamento. Muitos anos de parceria rompidos por amor ao parceiro
que se abandona e que talvez reencontre outras vezes de um modo
diferente, sem mu ita chance de encantamento. Despedida pensada,
cuidadosa e serena. Despedida que lava, lenta, nebulosas e prolongadas
feridas . Minhas e de toda a última geração de meia-idade deste milênio.
A p rincesa prometida está deixando de ser amorfa. Afasto-me
para ficar mais apto para uma convivência inimiga. S into-me agora
mais a gosto com a raiva i nacabável que trago contra os que fazem da
erudição uma estratégia banalizadora.
A i lusão morreu tardiamente. A princesa que me prometeram
meus mestres cumpriu novecentos anos e já aposentou sua paixão. Deu
no que deu : uma utopia perfeita que fracassou ignorando que a vida é
política, que a vida é criatividade transformadora.
* * *

Os j u ristas que fazem filosofia não servem como passaporte para


ingressar, democraticamente, em um novo milênio. Representam u m
sonho aposentado. Tem-se que quebrar o feitiço d e um saber que não
deixa os homens colocarem seus corpos no mundo, para fazer uma
reapresentação vibrante, transformadora e política dos sentimentos.
Acredito numa reapresentação da realidade que se faz na força de
p resença do corpo comprometido, sem recursos pré-fabricados que
funcionem como pontos racionais de fuga.
Não quero um saber de decorados ideais . Quero, sem adereços de
cartão, a redescoberta política do Direito .
Cada vez mais estou menos interessado em pensar o Direito
entesourando parasitárias purpurinas cartesianas, ruminando a ética
rançosa do patriarca juridicista. Cada vez mais quero saber menos dos
assinantes das teorias . Nego-me a continuar estimulando o cultivo de
ídolos . P retendo as ondas abertas de um saber que possa desmistificar
o senso comum que instalaram os filósofos do juridicismo. Quero
escolher minhas metáforas, minhas utopias perfeitas e conflitivas, sem
p ré-condicionamentos autoritários .

173
Quero colocar meu corpo nos acontecimentos do mundo para
constru i r um saber do direito que não p retenda proteger a ninguém no
útero do padrão estabelecido. Como professor, só me interessarei por
ensinar a inventar, mostrando ao mesmo tempo como é ruim deli ciar-se
com os deslumbres das verdades . Temos que aprender a ler menos
cartesianamente o mundo.
* * *

Agora sei que c riar um aluno é uma tarefa social que nos com­
promete com a criatividade. C ria-se, tomando criativo o outro . O pai­
professor tem de saber que não educa para que o aluno sej a seu .
Assume-se a tarefa s ocial da educação, aceitam-se essas respon­
sabilidades, na medida em que existe uma escola criativa. De outra
maneira, unicamente ensinaremos a gerações intei ras que estarão ex­
clusivamente p reocupadas em alimentar seu egocentrismo, reprodu­
zindo, assim, o espírito de seus velhos mestres .
No fundo, estaremos fornecendo as condições implícitas da
possessividade, um valor fundamental para um saber do direito exclu­
s ivamente preocupado com a defesa da p ropriedade.
Quando se cria u m j u ri sta, todo um território de arquétipos vem à
tona. Temos, então, uma boa oportunidade para desmistificá-los,
introduzindo o desej o como força emancipatória: uma luta contra os
niilismos que estão tomando conta do mundo.
* * *

Há pouco assisti em Buenos Aires a estréia mundial de Diatribes


de amor contra um homem sentado. No palco a primeira manifestação
de Garcia Marques como dramaturgo. Na p latéia, meu corpo, reu­
n indo-se com a c rítica assoberbada de uma mulher que encontrou em
seu matrimôni o a desgraça de ser feliz. Reconheci-me nela. Há muito
tempo queria escrever uma diatribe contra "mim" mesmo. Um discurso
sereno e violento que revele, indefeso e nu, o estalo de um homem que
durante longos anos foi desbaratado pelos figurinos de uma raciona­
l idade encantada . Pensamentos que param o mundo e tiram todo o ar
que serve para resptrar.
Sobre o palco os sentimentos de amor-ódio de uma mulher que
descobriu em seu p ríncipe encantado os agravos de seus desejos.

1 74
Na noite em que se dispunha a celebrar as bodas de prata com seu
príncipe prometido, decide pôr em evidência uma relação defraudada
por grandes e pequenas infidelidades, por mentiras incidentais e
enganos que lenta e silenciosamente foram-se acumulando num tempo
sem amor. Durante hora e meia, uma mulher descarrega sua diatribe de
amor contra um homem sentado que estava lendo um jornal de ontem,
preocupado com as notícias atrasadas . Frente a ele, a presença de uma
fêmea que desfaz, entre reflexões e reprovações, o tecido interno de
uma vida consagrada a um homem que parecia convocante .
Nessa diatribe a mulher consegue transformar a história de suas
complacências em u m descobrimento . Este (des)cobrimento permite-lhe
tomar inteligíveis os imobilismos, os pontos de fuga qUe se estabelecem
nas mentes que se perdem, substituindo o outro pelo que ele representa
de repressivo .
Desta manei ra, a personagem d e Garcia Marques d á conta das
faltas que escondem sua tristeza, aprende a sentir-se só e parte para
repor seu corpo no mundo. Assume-se politicamente como mulher de­
cretando, com raiva, o fim de um mundo que a criou como sombra de
machos predestinados . A morte do e:.\.cesso simbólico. A procu ra,
desca rregada de riscos, de uú1 gostoso sentimento de "mais-ainda ".
P ressente que no além pode estar o amor. Talvez não o encontre. Mas a
procura ficou como único caminho que faz sentido. Ela compreendeu
que a procura tem sempre mais sentido que a ren úncia . É a única
fórmula que tem um mortal para colocar o corpo no mundo .
No palco, uma mulher esmagada por sua condição de sombra. Na
platéia, eu, sentindo todo o peso de um destino que não pode reali zar-se
mais do que como sombra. Espaço sem luz p rópria, obscurecido pela
interposição de um corpo opaco . A sombra do corpo: a parte do corpo
que não recebe luz d ireta, a obscuridade dos desejos . Os desejos em
sombra, os desejos que provocam disfarces, simulacros, aparências,
nada mais .
Quando um corpo é sombra, unicamente consegue imitar o outro .
O sombrio como destino, isto é, a sensibilidade anestesiada, triste,
melancólica.

1 75
De p ronto, as tonalidades do palco me colocavam diante de meu
longo convívio com os juristas, que me ensinaram filosofia para que eu
fora uma sombra destinada a criar outras sombras, formar novas
gerações de j uristas indocumentados . . . E senti a mesma necessidade de
encarar, como o novo personagem de Garcia Marques, um convul­
sionado e sedimentado monólogo contra as sombras e o medo que
adormeceram a minha sensibilidade para acomodar-me ao instituído.
Quando alguém é sombra, agudiza seu espírito para poder
adivinhar os s inais mais sutis do desejo daquele que nos obscurece.
As sombras desenvolvem uma sensibilidade p roveniente do medo.
Este sempre aguça a sensibilidade dos reprimidos. Aconteceu historica­
mente com os escravos e com as mulheres . Eles têm sempre uma difusa
consciência do preço que têm de pagar por não saber ler os desejos dos
amos e senhores do mundo . Aconteceu também comigo. Exercitei uma
sensibilidade sombria, aprendi a sofisticar minha sensibilidade de repri­
mido. Por isso, aceitei graduar-me de jurista sombrio e logo continuar
pela trilha de uma filosofia universitária que me fez, por muito tempo,
perder a oportunidade de dar-me conta do valor das experiências,
solidariamente conflitivas do mundo. Aprendi os disfarces do cartesia­
nismo para não ficar desgarrado aos pés dos patriarcas . Apreendi os
disfarces que envolvem os atos de interpretação. da lei e os ensinei.
Fom1ei intérpretes sombrios da lei, sensíveis aos menores gestos dos
guardiães do capital, anestesiados e impotentes para poderem empre­
ender os caminhos de sua autonomia. Fui um homem que durante
muitos anos levitei entre verdades despolitizadas, deleitando-me com
Kelsen e alguns semiólogos bem-comportados . Não reparei tudo o que
eles me p rivavam como vendedores de milagres . Tardei em ver a
importância política de meu corpo, fio cego com as teorias que o saber
universitário inscreveu nele para subtraí-lo do mundo, fazendo-o
solidário das verdades e não dos homens . Impressiono-me agora,
advertindo como me senti falsamente livre e crítico entre as sombras e
o medo.
Encontro-me frente à necessidade de quebrar um estado de fusão
tanática, sair da prisão totalitária de um objeto neutro que constrói uma
realidade fechada e auto-suficiente. Efeitos massificante, super abun-

l76
dantes de concepções escravas de uma dominação tranqüilizada pelo
narciSismo.
P retendo fugir desse encantamento que me tributou . Aspi ro ficar
atento à vida, quebrando o feitiço de um saber que se nega a extrair
seus sentidos do espaço potencial de um campo compartido de desejos,
de um espaço potencial de u m campo compartido de desejos, de um
espaço que permita a emergência do político e de uma relação
construtiva com os outros .
* * *

Condenados a milênios de repressão, há centenas de anos de uma


versão j u ridicista do mundo, p recisamos agora imaginar outras armas
para consolidar o sentido democrático de uma forma mais digna de
sociedade.
Isso coloca-nos diante do u rgente imperativo de repensar as
concepções que a modernidade produziu em tomo do Direito, a
democracia, o poder, a c idadania, e os direitos humanos . Em outras
palavras, repensá-lo como crítica aos sentidos impostos pela tradição
j u ridicista, fruto das utopias compulsivas da razão planejada que foi
inscrevendo-se no proj eto iluminista.
* * *

Não há como negar que os j uristas que fazem filosofia em nossas


escolas de Direito encontram-se despreparados para enfrentar os
perigos que carregam as novas fom1as tecno-informatizadas do
totalitarismo que ameaça subverter a própria noção de vida.
Para preparar os juristas na resistência, temos que facilitar as bases de
um ensino político do direito, de um ensino que sirva para a compreensão
autônoma dos componentes emancipatórios da sociedade, que não são
outra coisa senão um produto refinado de nossos próprios desejos.
Frente às faltas de saídas existenciais com que nos ameaça o
trânsito às sociedades informatizadas, o homem p recisa encontrar as
estratégias que pennitam constru i r um caminho coletivo de preservação
das funções que cumpre a linguagem representativa como processo
institu inte da sociedade .
Este é u m combate pela redescoberta da instância inaugural da
política.

177
* * *

De agora em diante, meu trabalho estará destinado à inteligi­


bilidade política dos homens vivos, abertos às possibilidades de
transformação . A partir de agora, tentarei desnudar os s ítios-fósseis
vindos da soberba das verdades soberanas .
Na incerteza p rofunda de um mundo sem p rincesas prometidas,
instalo-me para procurar o s imbólico nos corpos comprometidos com o
mundo . P retendo aceitar, deixando de lado qualquer tipo de onipotên­
cia, que o sentido que p roduzimos culturalmente encontram seu funda­
mento num absurdo inaugural.
Vivemos num subúrbio solar, na periferia do universo. Somos
favelados cósmicos que unicamente encontramos alimento para nossa
sobrevivência nas metáforas e nos compromissos do corpo com o
mundo . Nossa única saída é política. Nossa única alternativa surge de
uma atitude cúmplice, destronada, fragmentária e, sobretudo, l ivre para
pensar e amar. Nessa difícil tarefa, não resta outra possibilidade senão
lutar por um desejo com a história.
* * *

Confissão presente de p reocupações passadas . Tentativa firme de


um desvio que espero surta efeitos transformadores, me dê a cons­
ciência das ruas sem saída que me imob i l � zaram para acompanhar um
arrogante rebanho de intelectuais seduzidos por sua própria consciência
reprimida. Tentação de clarificar por minha própria escritura o tecido
pantanoso, a objetividade mundana e repressiva, de uma discursividade
que constitui o homem como um personagem j uridicista, ou seja,
convertido em um "micro-Estado" de desejos sem história.

178
CAPÍTULO III

É PRECISO APRENDER A U SAR AS ARMAS DA


TERNURA : ECOLOGIA E PÓS-MODERNIDADE

O SURREA L I S M O ECOLÓGICO E S UA ÉTICA

Entre fmstrações passadas e fortes esperanças não dispenso a


chance de expressar-me no desenrolar de meu lado surrealista que é
feminino, ecológico e contradogmático, minha escrita é a de um pobre
amador no trânsito de um milfl nio para as sociedades que serão
quotidianamente tomadas pela infonnatização .
Gosto de pensar minha escrita como expressão do ser humano que
sobrevive desej ando ser vivente; desejando reencontrar seus vínculos
perdidos com a vida através de uma Ética que se revele como estética
essencial : inconclusa como o pensamento do oriente, serena como o
amanhecer do pampa c apaixonada como o sangue da mulher cari­
benha.
Meus ú ltimos trabalhos me surpreenderam no interior de uma
escrita que se assume como ecológica enquanto surrealista, o diatribe
pós-moderna contra os homens que se deleitam com a dcsconstmção da
vida.
Quando falo de um surrealismo pós-moderno tenho em mente
algumas exigências arraigadas na consciência da condição humana: um
sentimento ético que j unta a necessidade de transforn1ar o mundo, com
a da transformação do sentido da vida do homem.

179
Desde sempre o projeto surrealista encarnou plenamente a
exigência de uma solução Ética e usada de problema de nossa vida.
Trata-se, antes de mais nada, de um amb icioso programa existen­
cial ; desvios de sensibilidade que tomam a poesia como núcleo
articulador de uma Ética revolucionária . O que os surrealistas bus­
caram desde B reton poderia exprimir-se mostrando seu particular
enfoque ético, que nunca dispensou a p reocupação poética enquanto
capital de realização de uma É tica dos desejos. Encontro dos valores na
ordem da sensi b i lidade para a concretização de uma "ética da pre­
servação existencial", o que é muito mais que uma ordem de res­
ponsabilidades . Os surrealistas queriam uma É tica de "resistências
absolutas" que pudera regular-se como uma Ética psicoanalítica da
existência e pudera servir para o amadurecimento psicológico do ho­
mem . Eles confiavam, desde o início do movimento, numa sedimen­
tação psicológica da Ética que não p recisaria do apelo a uma
consciência hipostasiada 1 •

Sua desconfiança nas concepções éticas tradicionais partia de sua


convicção, traçada em peças poéticas radicais, de que não pode deixar­
se sem resposta as questões comprometidas com um sentido amplo do
viver bem.
Fazendo causa comum com as debilidades do homem, os s urrea­
listas entendiam a política como uma ação prática que pem1itiria
soluções relativas para o viver bem, e não como forças irreprimíveis e
conflitivas para o exercício do poder . Juntando, pela poesia, a Ética e a
política, os manifestantes do surrealismo mostraram - no interior de
um cli ma bélico - a importância de uma p rática política da Ética como
testemunho de uma atitude diante da vida. Campos semânticos mag­
néticos, que em estado de vigília reivindicavam a importância de

1
Não sei em que medida pode encontrar-se a Ética da preservação existencial no
proj eto surrealista. De qualquer maneira, preservação ética da existência provém
de uma relação detenninante com o surrealismo. Precariamente pressuponho os
surrealistas como precursores e efetuo neste texto uma releitura ética do sur­
realismo.

1 80
colocar o corpo no mundo por sobre todas as tentativas instituídas para
exercitar o controle do corpo. A grande diferença Ética do surrealismo
pode apontar-se mostrando sua apaixonada preocupação por imprimir
ao corpo uma Ética do compromisso e da solidariedade social em
substituição às mundanas exigências provenientes do controle moral do
corpo. O proj eto surrealista ambicionava uma nova fundação do
entendimento humano, fazendo passar a Ética pelo corpo para ultra­
passar integralmente os costumes opressivos .
A poesia aparece, então, não como uma atividade de ornamen­
to, senão como u ma forma do ser, uma necessidade vital para tomar
consciência das mutilações sociais, romper as- barreiras que nos
separam de nós mesmos, e encontra·r as saídas, para inscrever a ter­
nura nas relações humanas e romper, assim, as variadas formas de
servidão mental. O grupo surreal ista vê na poesia um valor eman­
cipatório, já que é através do amor (ato poético essencial onde se
une o ético ao estético) que o homem se faz sensível às transforma­
ções da vida.
É nos j ogos poéticos - escapados de sua torre de marfim para
p restar seus serviços à paixão viva - que os surrealistas apostam para
recusar a segurança dos sistemas estabelecidos, ligando-a a um
conhecimento comprometido com a mobi lidade dos desejos e novos
rumos para a sociedade.
Obviamente trata-se de uma força poética capaz do inesperado e
competente p ara formar uma "consciência existencial" transformadora,
isto é, condições simbólicas que permitam a formação de uma instância
moral transformadora: homens que cheguem a almejar transcender sua
própria situação de alienação e submissão, lutando para transformar a
sociedade, com plena consciência de que não se sai de uma condição de
escravidão se não se combate por uma liberação geral, por uma
qualidade de vida diferente. A Ética da preservação existencial é uma
pretensão surrealista encaminhada, fundamentalmente, a exaltar a im­
portância do compromisso ético com a preservação vital da existência.
Nega, assim, a importância dos s istemas de valores que impõem culpas
e responsabilidades metafísicas descuidando o pólo de expectativas,
sonhos e desejos que albergam o sentido da autonomia.

181
* * *

O surrealismo nos provoca existencialmente, juntando o poético e


o político para inverter a maldição platônica contra os poetas, e conde­
nar como "tribo de imitadores" os racionalistas da tradição platônica ­
cartesiana do ocidente.
Um novo chamado à poética e às paixões que sofreram dupla
desconfiança por parte dos virtuosos da política e dos virtuosos das
verdades .
D u rante sécu los arrastamos a condenação platônica que nega
a miscigenação do pol ítico e do rac ional com o estético e o pas­
s ional .
As v i rtudes cívicas ficaram sempre afastadas do poético. Impediu­
se, desta forma, entender que a consciência poética afeta e integra as
dimensões do simbólico que demos por chamar realidade.
As v i rtudes cívicas, esplendorosamente controladas pela razão
cartesiana, nos privaram de entender que o poético afeta a realidade de
um modo emancipatório, salvando o homem da possibilidade de ser
"nivelado pela alienação".
Pela poesia podemos interrogar com nobreza a dignidade recôndita
e autêntica da dor quotidiana, da dor do social .
Daí o imperativo su rrealista de integrar a consciência poética, a
consciência de classe, para determinar a consciência existencial, essa
consciência que pennitirá realizar as transfonnações do mundo, sem
esquecer que o homem se constitu i sem simulacros ou alienações, como
homem pelos desejos. E isto é muito importante num tempo de grandes
revoluções, sem grandes relatos que pemlitam sustentar metafisi­
camente o sentido político da vida.
Para p retender uma política que contribua para a fonnação de um
homem autônomo e competente para realizar um futuro melhor, temos
que recuperar a singular paixão do poético como "consenso lúdico e
onírico", am1a do inconfomlismo vital (aquele que permite desenvolver
o lado feminino do mundo)
É no poético que podemos encontrar os melhores recursos para
consagrar uma ordem definitiva e solidária das relações humanas,
quebrando as certezas que ti ranizam mas paixões . Vale d izer, essa

1 82
visão de contraste, essa visão da existência que cultiva o improviso e as
iniciativas - sem vigias - dos desejos .

O EFEITO E C O L Ó GICO DAS PAIXÕES

Com os surrealistas podemos aprender que as paixões têm


dignidade e que a poesia é a mais frutífera forma que os homens têm
para encontrar a identidade de sua dor.
A identidade na dor fortalece a beleza da vida e os valores que a
,s ustentam, independentemente dos músicos e dos cânones de uma
moral e uma razão que imobi l iza.
* * *

O poético permite descobrir a importância do "espírito negativo" .


Pelo poético podemos aprender que uma certa negação do estabelecido
sempre é necessária para a fecundação do futuro . Os surrealistas
entendem muito bem i sto, sempre valoraram com ardor os atos que
levam a p rescindir de determinados elementos para poder constitui r o
novo no espaço emergente.
Poderia dizer que o espírito surreali sta se encontra fortemente
marcado pela exaltação do imprevisto como atitude de fortalecimento
dos processos de humanização global da vida e da emancipação da
consciência.
O imprevisto tem uma estreita relação com o desej o . Evidente que
o desej o p recisa de uma atmosfera de imprevisibilidade que o reali za.
Por certo que o imprevis ível conota positivamente o desejo, provocando
s imultaneamente a negação e o confronto com as opressões instituídas .
Poderia dizer que não existe imprevisto sem a negação, e com a
negação de alguns dos componentes da mentalidade consagrada permite
ao homem p reparar-se para a recepção do novo, e o predispõe aberto
para o futuro.
O imprevisto tem uma importância fabulosa para a plenitude do
desej o . O desej o constitui-se no imprevisto e na negação dos compo­
nentes do passado, que nos aprisionam, que nos impedem de elaborar

183
as sínteses que farão do passado uma memória inscrita, no futuro,
como proj eto.
Quando aceitamos a p roposta de sermos "movidos por desejos",
temos que p redispor o espí rito para uma ralação conflitiva, lúdica e
criativa com as memórias do passado . A grande aventura de viver
caminho à autonomia e ao direito de aceder às metáforas do amor não
se resolve sem um sereno adeus aos fantasmas, antigas e consagradas
determinações culturais . A fonnação das identidades que vinculam com
a p lenitude do novo demandam utopias que permitam o previsível na
negação reelaborativa das opressões do instituído.
Os p rincípios morais do surrealismo são sempre princípios vitais .
Fogem d e qualquer valor que poderá manchá-los mentalmente para
conservar uma espécie de utopia do imprevisto frente a si mes­
mos, utopia que Breton levou aos extremos absolutos . É dizer, o sur­
realismo nos interpela questionando a força dos códigos morais ins­
tituídos precisamente p ara negar a imprevisibilidade das paixões, que
sempre são um desafio ao poder. A moral inscrita na memória coleti­
va facilita uma identidade mundana, artificial, p lutocrática, que man­
cha o mundo interior, criando uma atmosfera valorativa que funcio­
na como over-dose repressiva, uma sobrecarga de impedimentos
para que, através do conflito e da cooperação, possa construir-se
um futuro melhor.
O sonho de uma utopia democrática que encontra no imprevisto
das paixões os utensílios para um grande alerta geral contra as misérias
e indignidades que organizam esse sonho totalitário que chamamos
realidade.
A paixão é uma fórmula a que o homem pode apelar para co­
nhecer a realidade, tomando as devidas distâncias democráticas,
vencendo o medo e as sombras que possibilitam a servidão. Pela paixão
pode encontrar-se o sentido de uma ordem conflitiva e solidária.
A paixão é um alarme contra uma memória que guarda e protege
as certezas, impedindo que as diferenças consigam articular-se.
Por oposição, pode dizer-se que é pelo novo e pelo imprevisto
que as diferenças encontram seu lugar ao sol, melhorando a exis­
tência.

1 84
As memórias do passado raramente deixam de aparecer como uma
p rincesa p rometida, que a paixão deve desbaratar para que se possa
fazer as viagens da emancipação.
A paixão é a magia que pennite negar as forças que oprimem o
desejo, amarrando-o ao estabelecido . É nos corpos tomados pela magia
que encontramos o p rojeto de transfom1ação do homem e da sociedade.
O futuro como território de emancipação unicamente existe quando ele
p ode ser vislumbrado pela magia, nos incidentes que tomam mágico o
cotidiano. P ara a existência do homem como tal temos que constru i r
um p resente mob i l i zado por um futuro que sej a a dimensão simbólica
de um real iluminado, conflitivo e maravilhoso.
O sUrrealismo apela para uma estética da preservação existencial
p ara nos fazer entender que o fabuloso está no futuro como incerteza
mágica.
Quando a magia falta como dimensão do futuro, a caducidade do
corpo fala mais alto como sentimento de impotência e submissão ao
status quo .
Desde os tempos d e B reton o s surrealistas foram ecologistas sem
dizê-lo . P retenderam desenvolver a ecologia do imaginário. Trataram
dos empenhos da imaginação para combater os fantasmas da razão e as
.
misérias de uma realidade institucionalmente constru ída. Mostraram o
fantástico como uma dimensão ética das paixões coletivas . Reivin­
dicaram para elas o valo r do fantástico como uma concepção do real
maravilhoso, que não é outra coisa que a confrontação de uma utopia -
incerta . conflitiva - com um real miserável (que sustenta os projetos de
dominação apresentando-os como componentes naturais do mundo) .
O real maravilhoso é outro real da realidade oficial, sempre enxer­
gada como natural, como objeto da ciência e como expressão do
sensato.
O real maravilhoso é também a expressão de uma necessidade
vital : o desej o de viver.
O ra, para logrannos este desejo, é p reciso imaginar, apelar para o
real maravilhoso. O conteúdo da vida esvazia-se se nosso corpo não é
atravessado por uma realidade construída como maravilhosa.

185
Para recuperar nossos vínculos perdidos com a vida, precisamos
contar com um corpo maravilhoso. Ele será uma utopia interior que nos
transformará e mudará politicamente o mundo.
Contando com u m corpo maravilhoso poderemos tentar adquirir
as forças necessárias para vencer as disciplinas impostas ao corpo. O
co rp o maravilhoso é uma metáfora que fala dos lugares de resistência
interiores, aqueles que podem ser constru ídos para enfrentar o corpo
disciplinado . Uma viagem em busca do nosso Paris-Texas .
O surrealismo ecológico fala, então, da Ética como uma dimensão
do imaginário emancipatório, que não é arquetípico nem emparentado
com as s i lhuetas de uma concepção perfeita do mundo. Trata-se da
exaltação - sem hipostações - do conflito entre a inércia opressiva da
versão i nstitt,�ída do mundo e a projeção do desejo de um mundo
melhor. Fugindo da tragédia, mostrando que nem tudo é trágico na
comédia humana, os su rrealistas consagraram ao imaginário como um
componente político da solidariedade coletiva: uma fantasia social
pública comprometida; corrosiva.
Resumindo : a imaginação no surrealismo é uma atitude ética e
política que renega o paradigma grandiloqüentemente imperial dos
códigos morais e c ientíficos, assim como as razões impostas pelos
varões p rudentes e as burocracias bem arrumadas .

O S CAVALEIROS DE TRISTE FIGURAÇÃO

A i maginação surreali sta escapa à mania de projetar prej uízos e


dogmas sobre o mundo . Repudia os cavaleiros andantes c suas cortes ;
ou para vestir de inocente arrogância militar as lutas contra os males de
um mundo opressivo. Os quixotes da barbárie ou da brutalidade, os
cavaleiros das grandes desolações, os cavaleiros da inqu isição. F rente a
eles os surrealistas se sublevam, p rocurando mostrar que é pela ação
da imaginação aberta ao desej o que o homem estabelece novas relações
de participação e transparência. Para os surrealistas o mundo trans­
forma-se na transmutação poética do imaginário em uma experiência,

1 86
em processo de viver-se. A qualidade c o conteúdo não mudam sem as
ressonâncias mútuas da imaginação e do real, esse território - que vem
sendo consagrado - onde os homens projetam sua imaginação para
voltar a proibi-la como concrctude do mundo . A ingênua atração pelas
certezas, essa mentalidade carregada de utopias totalitárias, onde as
diferença não conseguem se articu lar.
A imaginação surrealista apela para o pensamento utop ista para
encontrar na paixão uma forma de conhecimento do mundo . Vivem,
ass im, a paixão como um sinal de alerta, um alarn1e ecológico contra
as certezas totalitárias .
S e por alguma coisa temos que agradecer ao movimento sur­
realista, é por haver defendido fogosamente sua convicção de que
"imaginar é possível", que imaginando rasgamos ataduras e nos
predispomos para a autonomia. Convicção importante para um tempo
cultu ral que tem de aceitar que a era das grandes revoluções acabou .
Agora que os fogos revolucionários estão perdidos, fica co­
mo alternativa a revolta interior; atender ao legado Bretoniano de
enfrentar o aterrado da condição humana com as arn1as da imagi­
nação: a emancipação ética do espírito pela poesia (que sempre é um
ato de ternu ra) pela solidariedade c dignidade da condição huma­
na, enfim, a emancipação do espírito pelas dimensões simbólicas da
democracia.
* * *

Breton fala dos sonhos fecundos do pensamento utopista, celebra


o poder inalterável de renegação e de recomeço que o utopismo permite
através da rebelião e do amor.
O pensamento utopista é para Breton uma resposta s imbólica da
existência individual confrontada com a dor, a morte, o destino do
mundo, na espera de um porvir novo ao pensamento incandescente, um
forte vigor ético para as idéias .
* * *

Em outro plano, podemos surpreender o pensamento utopista


como um ciclo de ilusões éticas que consagram as dimensões s imbóli­
cas da democracia, esses sentidos que pern1item investir contra os que
estão unicamente annados de persuasão.

1 87
Na minha fé democrática, como sentido de uma forma de socie­
dade, como possibilidade de sustentação simbólica da marcha dos
homens entregues a seus p róprios recursos, não é outra coisa senão
o canto ético que impulsiona e dá força nas lutas por um futuro me­
lhor.
Democracia, palavra-síntese que alberga complexos p rocessos de
construção de sujeitbs políticos e sociais, aptos para dar o sentido a
uma forma de sociedade; um sentido que nasce como necessidade de
transcender os excessos repressivos que configuram o "nefasto" como
nota distintiva do social . Falo da democracia como o sentido de um
mundo melhor.
Ass im, coloco-me diante da democracia como dimensão ética e,
portanto, utópica - que deixa a nu um mundo que está ficando sedu­
zido por formas inéditas de b arbárie, pelas promessas dos totalitários
de p lantão e pelos perigos da razão instrumental .
Imersos em um mundo de b arbáries informatizadas, a aceitação da
democracia como forma de sociedade implica um apelo ao p ensamento
utópico para recuperar uma razão histórica que coloque primordial­
mente o compromisso da razão com os valores que, conflitiva e
cooperativamente, forjem um sentimento de integração emancipatória.
Neste ponto a democracia surge como o direito a reconhecer-se
nas identidades - principalmente morais - condensadas em nome do
povo .
Por certo, o sentido dessas i dentidades surge de uma complicada
luta semiológica, uma luta de identidades por seu próprio sentido. Por
esta razão, a democracia aparece como uma utopia vazia, cujo valor
ético encontra-se na preservação de uma utopia, como o lugar vazio
das paixões : o lugar da autonomia, a Ética democrática sintetizada na
possibilidade de p reservação da autonomia e seus desej os .

O CHEIRO D A DIGNIDADE

O surrealismo ataca os estados de hibernação social enfrentando­


os com uma tradição moral l igada a versões éticas apriorísticas e a

188
códigos morais muito mais preocupados com a repressão do que com o
desenvolvimento autônomo da personalidade.
O código moral e a Ética podem ser inversamente proporcionais
um ao outro . Isto acontece quando as escolhas valorativas são guiadas
por modelos fixos em utopias perfeitas, opções que aparentam certezas
e refúgios seguros para negar o caráter problemático dos conteúdos
éticos . O código moral e a Ética se distanciam conflitivamente quando
o p rimeiro cristaliza os valores que não levam em conta o "elemento
novo". Nesta suposição, as ações codificadas pelos costumes morais
deixam de funcionar como fator da história para operar como postura
bu rocrática de uma imaginação alienada. Surge, então, a necessidade
de uma resistência moral ou de uma moral de resistência que est�j a
p reocupada com a constituição da Ética como processo emancipatório
e p reservativo das condições para uma existência plena.
Em nossos tempos de indiferenças bárbaras, de indignidades
radicais, é u rgente desenvolver a consciência do direito a uma vida
verdadeiramente humana, sem s imulacros de dignidade. Temos, para
salvar ao homem de sua hecatombe existencial, que desenvolver uma
consciência de dignidade humana, fazendo de nosso p róprio corpo uma
tocha emancipatória.
O lugar da Ética no surrealismo aparece, assim, como uma cons­
ciência existencial capaz de transformar-se numa força apta para mudar o
mtmdo, fazendo passar as transformações por nosso próprio corpo. O
corpo do homem tem que cheirar a dignidade. Um corpo que não cheira a
dignidade não pode transfom1ar o real em maravilhoso. Os homens pro­
fundan1ente comprometidos com a vida sempre cheiraram sua dignidade.
Eu cheirei a essa dignidade nas ruas de Havana, no sertanejo, nas mulheres
que se negaram a ser a sombra de um homem e em muitos amigos que
deram a vida por uma pátria que nunca lhes deu nada.
Do fundo da história da América Latina vem também este cheiro:
existe mu ita dignidade em nossa história. Nela devemos apoiar­
nos para fundamentar a " Ética de nossa preservação existencial".
Porque ela será latino-americana. Antes de mais nada, temos que
aprender a ser operários da América Latina. Trabalhar para sermos nós
mesmos os conquistadores, sem barbáries, de um novo mundo, de uma

189
América Latina que tem de atravessar nosso corpo como prelúdio de
um novo tempo. As sementes de um novo mundo encontradas na
consciência de l iberdade que está inscrita, como incidente de dignidade,
na história do povo latino-americano. Longe dos valores que de­
generaram em moral ismos abstratos ou sonhos estéreis, existem
batalhas que p recisam ser travadas contra os que nos devem nossa
liberdade, que precisam ser travadas para não condenar o futuro a um
destino fatal .
Em todas as nações que integram esta espoliada América Latina,
existe uma enom1e c dolorosa "dívida interna", que se tem de aprender
a cobrar, como condição imprescindível parà a fonnação de uma ordem
de valores que reconheça, sem aberrantes ilusões, o domínio do gênero
humano.

PERMITIR-SE VIVER

A Ética su rrealista encontra-se visceralmente comprometida com


uma postu lação ecológica da vida do homem em sociedade.
Pod � ria, assim, falar-se de uma ecologia su rrealista. Ela seria uma
vertente um tanto diferenciada da mental idade ecológica imperante, na
medida que tem muito mais a ver com os motivos, necessidades e
valores que convertemos em fins de vida do que com os meios que
utilizamos para poder viver.
O surrealismo ecológico assentaria seus compromissos na ordem
s i mbólica, reivindicando um caráter ético para o conteúdo da vida: ele é
uma dimensão ética poss ível para a ecologia, que desloca a questão do
político para o corpo e para o desejo, na tentativa de uma integração -
sempre em aberto - sobre a problemática do "para que" c não do
"como" viver.
* * *

Vivemos dias dificei s . O Estado está-se tomando um sujeito


diabólico de direitos que comanda institu indo dimensões totalitárias
sem saídas . Vivemos p rocu rando, mais perdidamente do que nunca,
como transfonnar o mundo e mudar, por fim, a vida . Estamos

1 90
trans itando por uma pós-modernidade que nos mostra pateticamente
como a sombria solidão do presente atual iza, toma ainda mais
contemporâneo, o projeto insatisfeito do su rreali smo" .
* * *

Para os su rrealistas, a É tica é uma disposição inesgotável em


direção ao maravilhoso. E isto precisa ser claramente cuidado nes­
te final de milênio, onde a desorientação e a ansiedade levam a uma
perda crescente do sentido de pertencer responsável à sociedade.
Estamos vivendo em uma época de inquietantes desmoronamentos .
O homem comum perdeu a confiança no direito, na política, no sa­
ber e nos valores . Moral e afetivamente apático se deixa levar pelo
pânico narcisista mmo a um alam1ante estágio de anomia desejante: a
cu ltu ra narcísica da violência. Esta cultura é o resultado c expressão
das formas mais diversas da decadência existenciaL com o que começa
a ammr-se o quebra-cabeça da sociedade info rmatizada.
A cultura narcísica da violência retira dos sujeitos a ilusão do
devir de todo investimento libidinal . Futuro negro, sem saídas . Futuro
vislumbrado semp re como ameaça apocalíptica que leva, no desespero,
à submissão cínica de tudo o que é presente e instituído . De tal forma
que não resta o menor espaço para qualquer projeto de transfonnação
do homem e sua sociedade.
* * *

F rente a este panorama desalentador, recupero o surrealismo e sua


Ética, para poder p roclamar a importância de superar a barreira
cu ltu ralmente traçada, entre os que querem mudar o mundo c os que se
dedicam a encontrar poeticamente a magia da vida. Não existem
motivos para que os que sabem da magia do viver não possam, ao
mesmo tempo, comp rometer-se numa profunda transformação da
sociedade. Não existem motivos para que os que queiram transformar
o mundo se sintam obrigados a viver tristes c passionalmente

Alain Touraine considera ultrapassadas as grandes revoluções porque desapa­


receram as paixões que as sustentavam : a crença triunfalista na razão, no
progresso das ciênci as c na força libertária das mas sas como dcstrutoras da
i rracionalidade e dos pro v ilégios.

191
austerizados . Para transformar o mundo é necessário permitir-se viver.
Pemlitir-se viver viaj ando pela fantasia e ternura.

O AMOR B RUXO

Nossas fantasias estão correndo o risco de ficar sujeitas à


p redição, correm o risco de terminar sendo politicamente impotentes .
Precisamos contar com as fantasias que s i rvam como fontes de
inspiração de uma genuína mudança social . O fantástico tem que
renascer lúdico e mágico para· contribuir para a plenitude do homem e
desmascaramento das intenções dos opressores . A magia da fantasia
faz menos i rresistível o poder, pondo a descoberto o elemento de
arbitrariedade que existe nas hierarquias sociai s . O fantástico rompe as
barreiras estabelecidas entre a política e a imaginação . A fantasia
sempre é faculdade de conceber alternativas radicais em uma ordem
dos motivos de vida. Motivo pelo qual a democracia e a ecologia
p recisam da fantasia, p recisam do surrealismo. A vida tem que ser
celebrada. A vida depende de um espírito carnavalizado.
* * *

Para conj ugar harmoniosamente o fantástico e o político, se requer


um simbolismo aberto que estimule os desej os sem dominá-los . Isto é
fundamental nos tempos de pós-modernidade, onde presenciamos
cotidianamente a morte das fantasias mágicas sobre o futuro do ho­
mem . Estamos começando a produzir uma sociedade inerte por nossa
incapacidade de criar fantasia com o futuro .
* * *

Ondas de sonhos, desejos de maravilhas e de poesia integral,


plenitude de um espírito apaixonado, um materialismo dialético
orientalizado. Itinerário de uma revolução diversificante, imprevisí­
vel, feita de jogos incessantes, de uma razão construída nas luzes dos
bares para preservar o amor nas metáforas do fantástico: o rio que
extravasa a falta do sentido para inventar o tempo sem tempo, infi­
nito. Assim é a É tica s urrealista, que reconhece que o homem preci­
sa da transfigu ração poética do cotidiano inerte, aceitando pagar o

1 92
preço de algumas contradições, de algumas aproxunações insólitas .
Esboços de uma fómmla mágica para o princípio da identidade .
Representações sensíveis que irradiam solidariedades e cumplici­
dades substitutivas da solidão, tudo pelo simples encanto do im­
previsto .
* * *

A É tica su rrealista descansa no amor. Introduz-nos imprevista-


mente para a p reservação da existência. Os vasos comunicantes da
temu ra que emergem, insolitamente, nos lugares onde o poder realiza
suas melhores operações de desmonte . É um amor bruxo que desa­
brocha, soberano, no meio do poder. Declara e decreta que ainda existe
uma capacidade infinita de amar, de se colocar no meio de qualquer
desej o .
Não existem zonas áridas para o amor su rrealista, porque e l e é
portador da maior das ousadias : a capacidade de pennutação perma­
nente de um corpo j ogado no mundo pelo desej o .
O amor i nstalado n o meio d o poder. Um espetáculo fascinante, a
melhor das am1as para su rpreender àqueles que por sua incapacidade
de amar, fizeram a opção do poder.
Flâmu las ao vento dos mares , signos com aparência cabalística,
que desafiam a imaginação c captu ram nossa atenção para a trans­
formação da vida.
Amor cigano, amor baiano, amor bruxo, amor camavalizado,
surrealista, u ma lenda cmancipatória que convida para mais uma
esplendorosa revolução que um homem pode sonhar: transformar-se
por uma infinita viagem de descoberta dos enigmas de um corpo que se
ama, uma viagem à plenitude, à constituição da realidade como
maravilhosa pelas cambiantes e desafiantes de um corpo exaltado
como mágico, porém negado como princesa prometida . S implesmente
encontrado como o rosto do desejo. Um amor que irradia fogo
instalando o desej o no mundo . Assim é o amor su rrealista, que efetua a
revolução do espírito convidando à descoberta do outro, ao encontro
encantado dos corpos . Assim é o amor que os su rrealistas vislum­
bram com É tica da p reservação da existência, como magnífica tentativa
de devolver ao homem seus vínculos perdidos com a vida. Uma

1 93
proposta, em suma, para a p rocura da plenitude como ato ecológico
fundante. O esplendor do ser desej ável . Como força de um desejo que
recompõe os laços com a vida, permitindo a inteligibilidade do mundo
pela paixão .
* * *

O amor surrealista é um amor b ruxo, porque entrega o passado ao


passado, comprometendo o corpo com o mundo. É b ruxo porque é
desafiante. Corre todos os riscos para permitir-se fazer passar a vida
pelos corpos . É bruxo porque enfrenta a esfinge que ameaça o desejo
revelando o segredo do amor : fazer do deserto cotidiano . um território
estilhaçado em infinitos incidentes mágicos, fortes que abalem as
ameaçadoras garras do que foi instituído, para que nos olvidemos de
vib rar com a vida. É bruxo porque não nos deixa ser nivelados pela
perda do desej o . Enfim, uma bruxaria ecologicamente salutar para
celebrar o fim de um milênio. Serve como uma musa para celebrar o
amor nas noites sem amor.

1 94
CAPÍTULO IV

MAL-ESTARES DE UM FINAL DE MILÊNIO

"Como esta durará tem só/o u n dia, como esta


durará tan só/o un tiempo o dos, como esta o lo
demás se acaba, !e guste o 110 a! Estado o a !
Individuo (ese pequeno Estado) esta se acaba porque
ya está 11aciendo el tiempo ab ierto e ! tiempo esponja "

Julio Cortáz a r

I. RAZÕES DE UMA CONVOCAÇÃO

Em seus vinte anos de vida o curso de pós-graduação em Direito


da Universidade Federal de Santa Catarina mostrou sempre um perfil
reflexivo e inovador. Pem1anentemente abrimos linhas de pesquisa com
uma visão interdisciplinar e com objetivos que foram além dos
clássicos limites da teoria j u rídica. C riamos também disciplinas nunca
contempladas nos currículos das faculdades de direito do país, como
Lingü ística e Teoria da Argumentação, Epistemologia Ju rídica, Direito
e Ecologia Política, D i reito Ambiental, Direito Sanitário, Pesquisas em
Direito e P sicanálise, Teoria Jurídica Contemporânea e a recente
Pesqu isa em F iloestética e D i reito (que recepciona toda uma linha de
trabalho que remonta às apl icações jurídicas da teoria Bajtiana da
camavalização - 1 9 8 3 ) foram ministradas pela primeira vez no B rasil
em nosso curso de pós-graduação . Este espírito criativo foi uma das

1 95
principais razões que nos pennitiu ganhar o reconhecimento naci onal
que hoj e desfrutamos .
Em matéria de organização de congressos e seminários provamos
os sabores de um certa ousadia mesclada com uma dose de provocação .
Para p rovar isto, basta citar os seminários sobre o amor que orga­
nizamos em 1 990, não só aqui em Florianópolis, mas também em
outras Faculdades de D i reito deste imenso paí s . Para surpresa de
muitos, tratamos de discutir as razões que podem levar os juristas a
falar, entre si, do amor.
Ser inovador significa, basicamente, tentar interpretar e avaliar o
novo, sem atenuar nem suprimir sua pluralíOadc. Acredito que somos o
ú nico curso de pós-graduação em direito tão abertamente direcionado
para o novo. O novo e o interdisciplinar fom1am parte de nosso capital
permanente, é - dir-se-ia - nosso "mandato institucional".
A idéia geral que inspirou a programação desta seqüência de
seminários p rovêm da p reocupação sentida pelos intelectuais deste fim
de século diante da multiplicidade de desencantos que acossam o
homem finissecular: mal-estares diante da democracia, as práticas
políticas dos direitos humanos e a cidadania, a ética, a representação
política, o conhecimento, as instituições e a circulação do desejo por
elas, amostras apenas do que vai se passando, já que os seminários são
tarefas em aberto .
Pensando, interpretando e avaliando alguns dos diversos mal­
estares que nos incomodam, poderemos - assim o esperamos -
desenhar grupalmente a cartografia, como diria Guattari, de vários dos
desencantos que atravessam a modernidade abolida. Este seria o
obj etivo geral da convocação.
O objetivo específico deste primeiro seminário teria a ver com
a p roblemática da articulação, do entrecruzamento, da psicanálise
com o di reito e com a política, seguida de seus desmembramen­
tos . Talvez aqui não exista, propriamente, um desencanto ou um
mal-estar, mas existiria certa perplexidade frente a um território ain­
da bastante incerto (é um campo de interrogação ainda demasiado in­
cip iente. Como se para p rovocar desencantos, ele precisasse de uma
história) .

1 96
A p rimeira dificu ldade a registrar na agenda diz respeito a certa
confusão dos diferentes lugares disciplinares (psicanálise, direito e
política) .
Os psicanalistas tentam interp retar o direito tomando como
referência parcialidades de um objeto j ur ídico ideologicamente simpli­
fi cado . Ficam, por exemplo, amarrados nas postu lações que os j u ristas
mais tradicionais fazem com respeito às p ropriedades ilusórias da
linguagem j u rídica (precisão semântica, verdades não persuasivas, etc) .
Os j u ristas procuram fazer uma interpretação psicanalítica de seu
obj eto p rofissional, apresentam a sua própria experiência de analisados
como principal recurso metódico. Um apoio bastante insatisfatório, que
muitas vezes termina por banalizar a psicanálise como arma
interpretativa. A impressão que ambas atividades passam é que ficaram
reciprocamente capturadas uma pelos lugares-comuns do discurso da
outra.
Quanto às vinculações da psicanálise com a política, passam-se
problemas similares . Isto se soma a acusações do tipo das discutidas
por Deleuzc c Guattari, que imputam à psicanálise de inspiração
freudiana ou lacaniana o trabalhar com um inconsciente abstrato c
exageradamente preocupado com questões papai-e-mamãe, ou com
tênues referências aos atravessamentos políticos do desejo. A dupla de
iconoclastas franceses questiona a falta de u m outro tipo de incons­
ciente que faça referência aos s ilêncios do político, bem como aos
modos em que o desej o constitui a realidade, sem tantas referências
familiais e tantas marcas do passado.
O inconsciente político é trabalhado pelo movimento chamado de
Análise Institucional, que coloca como um dos sentidos da instituição o
chamado inconsciente político . Em linhas gerais, os anal istas i nstitu­
cionais criam (ou ap roveitam) analisadores que lhes permitam contar
com catali sadores para a intervenção em diferentes grupos proble­
máticos das institu ições sociais . Eles se propõem a intervir nas ins­
titu ições para aj udar a formar uma consciência autogestionária que
i ria se configu rando a pa11ir da possibilidade de poder escutar os
silêncios, os não-ditos, enfim, o que o imaginário oficial das ins­
titu ições impede representar.

1 97
Sem entrar em detalhes sobre a p roposta institucional, quero
levantar, neste diminuto manifesto de intenções, minha preocupação
diante de uma zona de risco em que perigosamente parecem entrar
alguns grupos de analistas institucionais . Zona de risco na qual
parecem também p ropensos a cair alguns grupos que fazem a crítica ao
direito. Estou falando de uma perigosa inclinação trivializadora que ,
em nome dos espaços institucionais ou da crítica ao direito,
transformam suas intervenções em atuações publicitárias, fazendo de
seus discursos uma imagologia (nos tennos descritos por Kundera)
vendível como mercadoria. Reverberando a tantos outros messias
do dia seguinte (como diz Baudrillard falando de Foucault), questio­
nam os simulacros do poder que circula socialmente para beneficio de
seu p róprio poder como analistas, juizes ou professores . A Disney­
lândia institucional é a Disneylândia da crítica ao direito. Talvez eles
mesmos capturados por sua própria imagem como espetáculo, que os
leva a encarar o pensamento como se fosse uma superprodução ci­
nematográfica.
No Anti-Édipo, Deleuze e Guattari fazem uma profunda crítica do
marxismo, por razões opostas às apresentadas como crítica à
psicanálise. Acusam o marxismo de, num excesso economicista, não
atentar para as razões do desejo na constituição da realidade. Se a
realidade é um p rincípio de organização da vida e não algo exterior e
alheio ao homem, se é uma aparência que nos organiza, então o desejo
não pode ser ignorado como condição da realidade. Talvez se poderia
dizer que as faltas do marxismo com relação ao desejo provêm do fato
de que sua proposta teórica foi radicalmente cooptada pela mentalidade
epistemológica que dominava à época de sua origem (e ainda nos
domina, embora acantonada) . Estou me referindo aos abusos teóricos
cometidos em nome de uma realidade verificável e que transcende ao
homem como uma força externa, ao destino autônomo do real que
pem1itiu sustentar ideologicamente tanto a produção marxista como a
produção burguesa do conhecimento. Assim, o desejo tem1Ína sendo
uma ausência ideológica no pensamento marxista, a condição de sua
dimensão profética. Os efeitos ideológicos do marxismo c sua falta

1 98
como pensamento condicionado, como diria Baudrillard, pelo erro de
tomar o real por real .
Um Marx libidinal? Tratar-se-ia de fazer do marxismo um
dispositivo libidinal ?
Os autores do A nti-Édipo imputam ao marxismo o fato de não
haver falado do lugar da economia libidinal, do mesmo modo que
consideram faltante na psicanálise o lugar do político .
Tanto para o psicanalista como para o marxismo, seu problema
atual passaria pela discussão da função da pulsão numa forma de
sociedade capitali sta "ícono-consumista" : o modo em que se articulam
e enfrentam os fluxos do poder e do desejo, numa cultu ra acossada
pelos s imulacros .
Um grande desafio está posto: como sair de um mútuo redu­
cionismo que diminui a psicanálise como força interpretativa das
atuações políticas e leva o marxismo para uma visão da sociedade que
ignora a economia do desejo?
Para não discutir como se estivéssemos ladrando ao mar, poderia
tentar radicalizar o encontro entre psicanálise e o marxismo. Presumo
que é um bom p rograma para tentar o reencontro com algum eixo
"progressista" que restitua as ilusões de autonomia e solidariedade que
o muro de Berlim levou .
Todos os dias os j ornais notificam as forças destrutivas em
expansão pela Europa. Elas ganharam um espaço de considerável
repercussão e se mantiveram como ameaça por um longo tempo . Ao
que tudo indica, vieram para ficar pelo menos até o próximo século. E
as análises políticas sozinhas não vão aj udar na ação contra, na
interpretação e na avaliação dessas tendências destrutivas . Esta é uma
área onde não se pode p rescindir da psicanálise como am1a política.
Numa fom1a de sociedade onde se vive quotidianamente os efeitos
do menosprezo pelo social, pelo político, e a desestruturação das
identidades - diluídas numa cu ltu ra, que chamaria, para dar-lhe u m
outro nome d e " imago-eletrônica" - pareceria importante repensar o
político desde a psicanálise. E para isto não há como não repensar o
marxismo. Obviamente, sem seus vícios de pensamento, sem nenhuma
carapuça de sacerdote, p rocurando resgatá-lo como avaliação de futuro

199
para uma nova perspectiva de vida. Um marxista afi rmativo da unidade
entre a vida e o pensamento, e realizador das forças ativas da
criatividade. Um marxista capaz de redefinir-se aceitando o amor e o
desejo como dimensões políticas .
Acredito que todos concordamos que exi ste a necessidade de
restituir o político e a ética às sociedades do capitalismo multinacional .
E esta tarefa, parece-me, seria impossível sem repensar a articulação
entre psicanálise e marxismo. É inútil, e até grotesco, discutir de forma
isolada as faltas de um e de outro, sobretudo se aceitamos que o que
falta a um, possui o outro. O p roblema, presumo, está dado pelas
condições através das quais podemos mediatizar, no interior de um
discu rso, as conquistas aceitas pelo outro, sem que ambos percam sua
especificidade.
Corremos o risco de nos encontrar sem mediações pertinentes, que
diminuam as possibilidades de pensar, interpretar e avaliar os objetos
parciais do direito e da política.
Fazer um uso tosco dos conceitos da psicanálise, empregá-los
trivialmente de forma imprecisa, como se pudesse trabalhar significa­
ções complexas na periferia do que pretendem expressar, é um dos
sérios riscos que corre o incipiente encontro do psicanalista com o
direito e a política (que j á tem uma história um pouco mais p rolon­
gada) .
Há um excesso de generalizações difusas no emprego das
categorias oriundas da psicanálise. Isto é quase uma questão preliminar
que estes seminários devem afrontar objetivamente. Porque como se
está corre-se o sério risco de trivializar - com estas significações de
vôo cu rto - a ps icanálise, fazendo-a perder a poss ibilidade de reafinnar
sua índole sócio-política, como estratégia de um retomado p rojeto de
autonomia.
Por certo que a heterogeneidade do campo "psi", ilusoriamente
agm pados sob uma mesma denominação, aj uda pouco .
Uma fragmentação que entrava o pensamento na hora de tentar
fazer a mediação para interpretar objetos parciais do direito ou da
política. Esta não é uma das questões detcnninantes do próprio mal­
estar da psicanálise'l

200
O utro risco de s i m p l i smo p rovém das angústias p ro fi s s ionais dos
p s i có l ogos e advogados . Com um me rcado que d i a-a-d i a vai se
estreitando, o s p s i canal i stas e j ur i stas de oficio tentam criar desespe­
radamente novas ofertas de trabalho, i nventam sem m u i t o escrú p u l o
mil variáv e i s de i ntervenção . C hovem as ofertas extravagantes,
p rincipalmente em B uenos A i re s : esco las de sedução, formação de
g m p o s para aj udar a passar melhor a mel anco l i a dos domingos,
i nterco n s u ltas p s i co-j ur í dicas p a ra res o l ver os confl i to s de famí lia,
adoção, etc . . . Tudo fe ito numa ati v idade sobre os sentimentos, como se
eles fos s e m emoções baratas . A s s i stimos à tri ste emergência de um
encontro interd i s c i p l inar entre o d i reito e a ps icanál is e c o mo s imples
valor de consumo, comq si mu lacro de uma intervenção . Esta é outra
razão que j u st ifica u m outro t i p o de encontro entre a p s i canáli s e e o
d i re i to , como v a l o r de t roca das autonomi as . P s icanal i s tas, j u ri stas e
cienti s tas p o l íticos que saiam de s e u s terrenos para repen sar e recriar a
vida, sem contudo vu lgarizar s uas intervenções com as angú stias de
s u a p ró p r i a sobrevivência.

11. PSICANÁLIS E E FILOESTÉTI CA

D iverso c complexo é o território em que ingres samos com a


p roposta de trabalho que, s im p l i fi cada, tennino de j u ntar: a fi l osofia e
suas fo rmas esgotadas de pensar a totalidade ; a ciência da modernidade
acos s ada p e l o decl í n i o da p rópria modernidade; o i mag i nário radical
(Castoriad i s ) que constitu i a condição para uma democracia, hoje
ameaçada p e l a d i s suasão do p o l ítico e das mú l t i p las fonnas de
alteridade; e a própria p s i canál i s e arrostada pelo desafio de ter que
repensar-se p a ra s u stentar o valo r da t ransferência para um mu ndo que
vive a i l u são de fragmentar-se . . . Amostras das questões qu e p rova­
velmente operarão como vozes s i lentes do que se pode pensar,
interp retar c ava l i a r no semi nário que motiva este texto .
C re i o q u e não são esboçadas questões que p ode riam, todas elas,
ser reag m p adas s o b re u ma denomi nação comum, que p roponho - para
dar algum n o me p ro v i s ó ri o - chamar de F i l oestética (o amor s i m u l -

20 1
tâneo pela filosofia e pela poética). Por trás desta denominação há uma
fileira de pensadores: N ietzche, Espinoza, Bergson, Guattari, Casto­
riadis, Lefort, Foucault, Bajtin, Barthes, Baudrillard e outros adja­
centes a eles . Uma denominação e várias linhas de pensamento que lhe
outorgam sentido, que tentarei usar como um analisador para propor
quatro blocos de questões :
a) o primeiro bloco diz respeito à filosofia e ao que ela exclui para
constru ir seus modelos acima de toda suspeita. Aqui estariam
colocadas as questões que dizem respeito ao passional, ao quotidiano,
ao poético (em sua acepção mais aberta). Três registros que afetam a
psique, sem que a filosofia se dê conta deles .
A filosofia desenvolvida no meio acadêmico procura o enten­
dimento no interior dos modelos que ela mesma cria. Na busca do
entendimento da paixão; a p referência é pelo rigor lógico e sua
aplicação aos modelos de interpretação vigiados pela epistemologia.
Pelo menos esta é a p referência da casta de funcionários públicos que
fizeram sua opção pela fi losofia. O sonho dos filósofos de oficio é levar
as indagações da filosofia ao campo das pesquisas científicas (visto, em
seus sonhos, como um primeiro mundo do saber) . Em nenhum mo­
mento, complicaram sua existência tentando saber se não existe uma
ambivalência na construção cientificista da realidade, que permitisse
interessantes conquistas em nome da obj etividade e, s imultaneamente,
efeitos destrutivos mutiladores da vida.
Poder-se-ia entretanto constatar que crescem a quantidade de
atitudes e de vozes que denunciam a agonia desta forma, digainos,
burocrática (pelo menos no sentido de depender muito mais das intrigas
institucionais que de um gozo pela interrogação do mundo) de fazer
filosofia. Vozes e atitudes que indicam sua preferência por uma outra
fonna de fazer filosofia: uma atuação no mundo e não a produção de
um discurso de contemplação asséptica, onde o enunciador da palavra é
uma engrenagem anônima, diluída entre as ligações lógicas dos
conceitos . Um novo suj eito da filosofia que pensa, interpreta e avalia o
que deve ser destruído para amarar as condições de criatividade
(própria e alheia) . O filósofo, que agora encontra seu gozo, seu prazer,
na destruição de tudo que mutile a vida, para apostar na criatividade.

202
Uma filosofia da p raça pública que tente encontrar seus fundamentos,
precisamente nos lugares que foram excluídos pelos controles
metódicos do modelo filosófico das certezas . Uma filosofia que para
transitar na rua terá que relativizar o rigor de seus discursos incor­
porando a estética como meio de expressão, a psicanál ise como estra­
tégia de interpretação, a cartografia (no lugar da teoria) como produto
(em pem1anente processo de recriação) e a criatividade como destino:
verdades camavalizadas, fora do lugar instituído, para elas, pela
mentalidade cientificista. Pelo menos esse é o roteiro cartográfico que
apresento como exemplo.
Por certo, o que acabo de enunciar vale unicamente como p roposta
de saída para os fii ósofos que ainda estão enclausu rados nos redutos
universitários, sempre que queiram sair de seu convento antes da
catástrofe de seus saberes .
Já existem uma filosofia e homens-artistas-filósofos, elementos
difusos na quotidianidade e nos meios de comunicação, que não pre­
cisam de nenhum retoque para estabelecer sua singular unidade de vida
e pensamento . Uma aposta, não emoldurada, na possibilidade de p ros­
seguir tentando mudar o mundo e seus valores, mesmo diante dos
s imu lacros da mídia, por meio de uma expressão estética que suprima
os elementos cientificistas e academicistas, numa relação direta dos
suj eitos com suas obras . A fi losofia na rua como momento de ruptura
das grandes produções mediáticas (e do enfrentamento simultâneo da
complexidade c do caos transmodemo, o "caocosmos" de que fala
Guattari em sua última obra) .
O grande desafio é consegui rmos fazer de nosso trabalho univer­
sitário uma aposta singular na vida e uma expressão da vida quoti­
diana: ou seja, ap roximar a filosofia acadêmica da filosofia espontânea
da quotidianidade.
Poder-se-ia constatar, que, assim como a modemidade se encaminha
para suas fonnas simuladas (a famosa pós-modernidade), a filosofia, em
contrapartida, estaria abandonando o lugar do cientificismo, botando seu
"corpo" no mundo, e indo ao encontro da estética, em cuja companhia
poderá tentar estender-se, rizomaticamente, por todos os interstícios da vida
quotidiana, empreender um trânsito nômade - um passeio ao léu - que

203
s i rva para interpretar e avaliar as verdades do mundo, subl imar e recriar a
vida. A fi losofia como experimento que devolva a i lusão de unidade, num
mundo que está institu indo a fantasia da fragmentação . O retomo de uma
ilusão de unidade perdida que poderá servir para fommlar novos modos de
experimentar a vida, faze r perguntas ao mundo, descobrir que o mundo não
é alguma coisa fechada e fora de nós ; produzir, enfm1, um novo tipo de
modos de pensamento que s i rva para crescennos como pessoas , criando e
recriando a vida.
b) o segundo b l oco de q u estões faz refe rênci a à estética como meio
de expressão . A estética como anna exp res s iva que permita ao indi­
víduo const m i r as verdades do nrundo como s ignificados cartográficos .
A estética como fom1a expressiva da criatividade, que p roduza e
emerj a da un i dade do p ensamento e da vida: a criatividade na vida que
insp i re novos modos d e pensamento ; a criatividade do pensamento que
crie novas fom1as d e viver. A estética como p roj eção da psicanáli s e nas
artes , algo que os s u rreali stas compreenderam m u i to bem ao fazer sua
p roposta filosófica.
Não tenho dúvidas de que o su rreal i s m o foi uma fo rma, entre duas
guerras mundiai s , d e fazer da arte uma filosofia com cobertura
p s i canal ítica: u ma p ri m i t i va fo rma de fazer o t rabalho cartográfico . . .
P or i sto é que revivo o s u r real ismo, eu o recu pero, como antepassado
de uma futura fi l oestética.
S ustento o valor d e uma fi losofia que t roque a contemplação pela
criativi dade, que s u b stitua u m modelo abstrato por uma pennanente
observação inaugural ; uma fi losofia que olhe as coi sas do mundo como
se fos s e pela pr im e i ra vez, num pennanente retorno de u m ol har inicial .
Um o lhar intempest i v o (como diria N i etzche) , sem os fantasmas da
anteci p ação materna. O olhar cr iativo . O o lhar que, acredito, u nica­
mente pode ser alcançado através da estética.
Um novo paradigma estético? A palavra ''paradigma" seria
i m p róp ria, poi s , entraríamos no u n i verso i magi nário de Kuhn;
haveríamos que falar d e um horizonte de referênci a que s i rva para nos
posicionar criticamente d i ante das p róprias condições de existência,
e l i m i nar as somb ras que a valorização cap ital i sta gerou para encob rir
os focos d e atuação l i be rtária, afastar-nos do paradigma cientifici sta

204
que controla, há mais de 1 5 0 anos, a p rodução da filosofia p rofissional .
Uma atitude que, creio, implica o s imu ltâneo afastamento da estética
institucional, do mercado das artes e de certas passividades p resente
nos oficios estéticos .
A idéia principal cons iste no fato de que o âmago da criatividade
estética passa pela instauração de cartografias que trabalhem como
focos parciais de subjetivação l ibertária, servindo ao mesmo tempo
para fazer aflorar os focos de singularidade que se dão no social como
condição de existência, fora das novelas de subj etividade individual .
Trata-se de uma estética que s i rva para restitu ir a utopia da
tHlidade do suj eito à filosofia, perdida na p rédica transmoderna da
fragmentação. Justamente porque falta esta utopia, é difícil apontar
novas condições de vida.
Antes de p rosseguir, gostaria de fazer uma ressalva: advertir -
principalmente aos estudantes - que um olhar pcm1anentemente inau­
gural não implica nenhuma renúncia em relação ao saber acumulado .
Ao contrário, ela exige passos prévios que têm a ver com a pos­
sibilidade de ter essa mesma atitude inaugural com relação ao saber já
estabelecido, a recriação virginal do saber passado .
c) o terceiro bloco de interrogações tem a ver com a psicanálise
como método (no sentido de estratégia interpretativa e valorativa) para
a filosofia. Partindo da mesma concepção da clínica, aqui se trataria de
discutir a val idade da psicanálise para aj udar ao indivíduo em sua
descoberta das "verdades do mundo". Seria o trâns ito da psicanálise
desde o lugar da aj uda para a interpretação das verdades adonnecidas
no imaginário radical da sociedade.
É óbvio que muitos não compartilham esta assertiva, que não
pretende salientar o valor filosófico da psicanálise desde qualquer lugar
de "dever-ser", mas apenas minha opinião . C reio que o filósofo de
oficio evitaria o fim de sua espécie se consegu isse romper as amarras
com o cientificismo e expressar-se esteticamente com fundamentação
psicanalítica. É um ponto que, pessoalmente, gostaria de discutir neste
seminário.
Acredito que o mais importante para um resgate da psicanálise
pela filoestética passa por considerar aquele como uma produção de

205
sentido e de subjetividade a partir de elementos de ru ptura do sentido,
de dispositivos de criação da subjetividade em todos os registros da
vida.
d) o quarto bloco de questões faz referência à ética e sua função
na filoestética. Neste bloco é importante discutir a função ética que tem
uma filosofia esteticamente expressa: a possibilidade de tentar
recompor certos vínculos com a vida e com os outros sem levar em
consideração os valores éticos que podem lhe outorgar sentido, quais
sej am, a solidariedade (como fom1a social dos afetos) e o respeito ao
outro como diferente. O que Guattari chama de ''nova suavidade": a
possibilidade de amar o outro em sua diferença e não s implesmente
tolerá-lo contratualmente.
A estatização da ética pemutma questionar a necessidade de
contar com persistentes focos de criação de novos valores, que de
nenhum modo fiquem atrelados às pseudo-consistências dos va­
lores normalizantes do mundo capitalista; um sistema inamovível
que não respeita a alteridade nem a complexidade dos territórios
políticos e afetivos . Não há ética possível sem o reconhecimento da
alteridade.
e) o quinto bloco de questões problemáticas teria a ver com o po­
lítico e seus encartes poéticos; o político e o poético em suas conver­
gências e divergências . Em algum sentido, uma convocatória feita para
dissipar mútuas e antigas desconfianças .. Já existiu o desejo de expulsar
os poetas da república ideal de Platão. E os homens estéticos, desde
esta época, intuem intenções mesqu inhas por trás dos grandiloqüentes e
melodramáticos discursos dos políticos, que ressentem mediocremente
contra todos os que não são de sua própria "tribo".
É certo que, para uma discussão filoestética, o tema passa pela
estetização da política e não pela politização da estética: a tentativa de
incorporar à consciência estética e ver como a realidade é afetada por
essa m iscigenação. Gilberto Gil seria um bom exemplo dessa tentativa.
É óbvio que estamos falando de uma mestiçagem em defesa da
radicalização da democracia e não a favor de uma provocação niilista,
nostalgicamente anarquista. O que estaria em jogo, em toda proposta
de acoplàmento entre o político e o estético, é a inscrição da

206
criatividade nas institu ições para fortalecer a frági l circulação que
nelas têm as atuações democráticas .
Com relação a minha própria história pessoal , sinto-me à vontade
para falar destas questões, já que acredito que desde o início de minha
docência, há trinta anos, tentei implementar uma atitude estética como
metodologia do ensino do direito . A professora Laura Cipriano, da
Universidade de Mar dei Plata, aluna de meus primeiros anos de
ensino, me lembrava que um sua p rimeira aula se surpreendeu comigo
por falar do direito através de um fi lme da época ("Voar não é só para
os pássaros") . Logo veio Bajtin e a teoria da carnavalização, o
surrealismo, as novelas da Globo e assim por diante . Graças a esta
postu ra docente fui condenado pela tribo dos lógicos, estereotipado
como um p rofessor em eterna dependência do delírio. E poderiam dizer
agora que o delí rio - e não por minha causa - ameaça converter-se em
epidemia.
Para finalizar, quero retornar à psicanálise para lembrar duas
coisas : 1) a dimensão estética presente em toda a obra de Freud; 2) que
os psicanalistas não só estão saindo de uma atitude clínica fechada por
necess idade de sobrevivência econômica - este é o caso menor - mas
pela n ycessidade mesmo que sentem os intelectuais p rogressistas de
pensar seu tempo e sua vida.
Por fim, um s i nal de alerta: não desejaria que este breve mani­
festo, um tanto intimista, seja tomado como uma enunciação mes­
siânica de minha parte.

207
CAPÍTULO V

É PRECISO S ER ALG U É M PARA PODER AMAR

O mal-estar na civilização b rota com o problema que os homens


têm para poder amar.
O teatro de crueldades i nscrito na cultu ra deste fim de m ilênio é
p rovocado por uma péss i ma resolução das tensões entre a união c a
desunião, a p lenitude e o vazio, assim como das possessões e das
perdas dos sen ti mentos . Seres que não sabem o que desej am nem o que
amam . Seres e!1amorados de . sua imagem escorregadia e despossuídos
de espaço p róprio. Au sentes ··de amor por não terem identidade, por
haver v i rado uma sombra de humanidade . Absol utamente incapacitado
para entender que não pode amar quem não consegue ser alguém. E
que não é ninguém que deixa i nvad i r seu espaço ps íquico com engodos,
apetites de poder ou impotências afetivas . Para amar é p reciso que o eu
se torne dono de suas perdas c não aceite os desejos como meros
figu rantes em sua vida.
* * *

O p róximo milênio nos há de encontrar comprometidos com um


novo p roj eto de sociedade. Para que a espécie humana sob reviva temos
de nos engaj ar na p rocura do homem novo . Um p roj eto que tente
começar por reconhecer que existe um espaço psíqu ico que está sendo
absolutamente destnddo pela tecnologia avançada.
A p reservação e o reencontro do espaço psíqu ico do homem
constituem o comp rometimento i naugu ral com a formação do homem

209
do próximo milênio. Sem esse compromisso, o sentido da futura fo rma
·

de sociedade nunca será democrático .


* * *

Voltando ao presente, acredito que as práticas políticas dos


direitos humanos e os movimentos ecológicos têm de direcionar seus
obj etivos para a formação de uma nova sociedade que nos preserve
"psico-existentes", que nos preserve como sujeitos produtores de amor
e sentido . Isto é, que nos p reserve humanos, garantindo a sexualidade
como a ordem do discurso.
P ara a formação do homem novo, temos que favorecer as expe­
riências que reivindiquem o valor fecundo do desej o como produtor de
sentido e gênesis da dimensão moral : a sexualidade como instância
fundante de toda a experiência discursiva.
O homem do p róximo m ilênio só existirá se conseguir recuperar­
se como o homem do desejo, quer dizer, aquele que possa habilitar-se
para p rocurar a harmonia no meio dos desejos . A ponto de poder dizer
que o sentido não se enraizará em outro lugar senão no próprio desejo e
nas formas de sexualidade.
Para o próximo século o ego a.ffectus est deve tentar substituir aos
processos excludentes do ego cogito .
O mal-estar na cultura pode ser abalado se nós nos impedimos de
sofrer as exclusões do amor, que são os atos mais radicais de exclusão
do ser.
* * *

O novo unicamente percebe-se aceitando o desejo como ponto de


vista para a constituição do real, isto é, aceitando o caráter ardente da
razão.
As relações humanas encontram-se permeadas por um sentido que
precisa s ituar-se no amor para extrair sua fonte de significação .
O amor é sempre a determinante, em última instância, do sentido,
embora o sentido não s empre consiga expressar as demandas de am or .

A linguagem não é só e realmente l inguagem na medida que


carrega sempre a necessidade de produzir o sentido para realizar
metaforicamente o desejo: a metamorfose invisível que encobre o caos,
dando ao afeto seu sentido e à vida sua moldura.

2 l0
A l i nguagem engendra o m u ndo na medida que o homem precisa
compensar a falta que inaugu ra seu nascimento . Daí, p recisar o homem
conquistar a l i nguagem p ara a causa de seus desej o s .
O s e r falante encontra-se ferido pela falta inaugu ral, s u a l ingua­
gem b rota de seu p roblema para amar, que é sempre um p roblema
derivado da neces s idade de encob rir o abismo de uma carência, q u e
nunca p oderá s e r s u p rida, salvo metaforicamente pelos sentidos .
Amar é encob rir, pelo sentido, a pu lsão de morte .
* * *

Q ual é . o amo r que p reciso constru ir? Que qualidade deve ter o
amor para resolver as demandas de autonomia, desvencilhar o mal­
estar da civilização e converter o poder em p otênci a erótica? Que
qualidades deve poss u i r o amor para poder p roduzir a harmonia em
nossos desej os, sua ressu rreição?
É evidente, para mim, que o amor perde sua qualidade quando
transforma o homem em espelho amante das imagens estabelecidas e
estabi lizadoras, em espelho amante das culpas e dos códigos norma­
tivos .
A qualidade do amor há de ser sustentada por uma experiência
. i nterior que dispense as exigências de uma moral culpabilizadora, de
um sistema de valores que p retenda organizar a vida à partir de u m
inventário d e expectativas maximamente repressivas .
Não existe qualidade no amor se ele aprisiona num inventário de
expectativas abusivamente p reestabelecidas, se ele abafa sem deixar
espaço de l i berdade para que o homem possa tentar a harmonia de seus
desej o s .
* * *

Pensava noites atrás que para preencher a falta de amor, saciar


parcialmente a sede de nossa afetividade, temos que transgredir um
número i ncalcu lável de certezas, u ltrapassar os alicerces que sustentam
a versão cartes iana do mundo, negar o espí rito inqu is itorial de Bacon,
fugir, enfi m , de todos os p reconceitos de uma mentalidade que tenta
preencher totalmente a falta ps íqu ica, ignorando que o desej o se
mantém vivo, p reservando uma parte do território de sua não reali­
zação simbó l ica.

21 1
Os significados, como obj etos de amor, precisam estar abertos a
essa paixão dos sentidos que emergem do imprevi sto, da turbadora
necessidade preencher parcialmente uma falta afetiva.
* * *

O psiquismo se satistaz sem alienações se o tratamos como


uma instância de s ignificações abertas, conectadas afetivamente ao
outro para garanti r as possibilidades de uma renovação transfor­
madora.
Como afirma Julia Kristeva, nosso psiquismo unicamente vive se
está enamorado . Quando ele deixa de amar; está morto .
Um amor transicional, que evite tanto os comprometimen­
tos caóticos do amor passional como a estabilização letárgica da
ausência do amor. Estamos diante do amor como capacidade de ino­
vação.
* * *

Estou falando de um amor vinculado à idéia de criatividade. Um


amor constm ído para que a vida cobre sentido devolvendo-nos um
sentimento de integridade .
Amar na criatividade implica postular na possibilidade de um
viver criativamente, apoiando-nos nos afetos . É a possibilidade de
sentir-se vivo pela criatividade. Sendo criativo, o homem encontra-se
t:om o sentimento de ser ele mesmo, de viver uma vida própria e
apropriada. Assim ele poderá sentir que a vida vale a pena ser vivida.
* * *

Nesse endereço é que a sala de aula deve encaminhar-se. Ela tem


que ser um lugar onde a criatividade seja estimulada.
Vej o mu ito claro que esse estímulo só poderá surgir quando os
p rofessores estej am dispostos a ceder o domínio de suas verdades em
favor das artes e das fantasias adu ltas .
Pela poesia o homem consegue reintroduzir, na zona do prazer,
tudo aquilo que é insuportável .
A aceitação d o sonho e d a poes ia, sua incorporação à s nossas
p ráticas devidas e aos p rocessos educacionais poderá servir para que
cada "eu" aprenda a descobri r seus próprios tesouros emocionais, o
sentido de seus desej o s .

212
Acredito numa função poética que não estej a ligada a uma
organização neu rótica da personalidade, mas a uma função emo­
cional que possa serv i r para p roteger ao "eu " de uma organização
patológica, operando como uma ponte para a vida. Seria a poesi a
servindo o amor. Uma p oes ia q u e nos aj udaria a ser alguém para poder
amar.
A concretização desta fu nção poética pe rm i te re lações leves,
potenci adas, intensas com os outros e com as capas mais profundas da
persona l i dade . Um l iv re trâns ito que nos permite escutar a voz de
nossos sentimentos mais autônomos .
Um fl uido de lucidez que transita entre o mundo externo e o
interno, fecundando-os com uma criatividade ardente. Uma criativi­
dade que conjuga componentes racionais c afetivos para realizar o que
gosto de chamar "razão ardente".
As pré-condições para este tipo de razão passam pela acei­
tação das i ncertezas, dos antagon is mos exi stenciais e pela abdicação de
todo desej o de p reencher a carência i n au g u ra l com um saber de
certezas .

NOVAS LUTAS E UMA MESMA ESPERANÇA

Propus-me falar de uma cultura que está para morrer. Ela está
morrendo como conjunto de normas e v a lores como forma de
,

socialização e como tipo histórico-social dos indivíduos . A moder­


nidade está morrendo como s ignificado da relação da coletividade
c o n s igo mesmo, com o tempo e com suas próp rias obras .
O que está nascendo, d ifíc i l frag men tário e contraditório, é cha­
,

mado por mu itos de pós-modernidade. Com esse nome se estaria, em


última i nstância, apontando ao p rojeto de uma nova sociedade, ao
proj eto de au to no mi a social e individual . Proj eto que é criação política
em seu sentido mais primordial e do qual as tentativas de realização,
apesar de suas c o n t radições realizativas, vão infonnando a história da
modernidade.

213
Nesse sentido, a pós-modernidade não será outra coisa senão o
sonho de uma sociedàde e de um indivíduo melhor, no seio da pró­
pria modernidade. Um sonho em aberto, que depende muito das mi­
cro-revoluções que possam efetuar os movimentos sociais, como
também, e sobretudo, das possibilidades de realização de uma cultura
comprometida com o p rocesso de transformação do homem e da
sociedade.
* * *

Falo, então, de pós-modernidade comprometendo a expressão com


a i nstauração de uma sociedade autônoma. de uma sociedade que se
tem de jr elaborando como destru ição dos valores de poder, consumo e
prestígio que nos discrimina e nos exclui, como sujeitos de afeto, em
sua simples insipidez.
Negações que não são outra coisa senão a afirmação dos valores e
desej os numa sociedade autônoma. de uma cultura em que os indi­
víduos possam viver no reconhecimento recíproco. Algo que é dado
antes de mais nada numa prática política do amor. Aceitando-se o fato
de que a cultura tem um compromisso primordial com a instituição,
pelo amor, da sociedade.
* * *

Pós-modernidade, vocábulo polissêmico ao extremo. Muitas


vezes empregado como expressão dos direitos do homem à per­
plexidade e da p rocura de um novo entendimento do real e da formação
de um novo tipo de pensamento. Eu, habitualmente, o emprego nessa
direção.
Quando falo de pós-modernidade, tenho-me referido ao p rocesso
de constituição de uma nova forma de pensar o mundo e da adminis­
tração dos afetos que se vão desenvolvendo, criticamente, no interior de
uma modernidade em trânsito para as sociedades informatizadas . Penso
a pós-modernidade como crítica e prática preventiva de uma moderni­
dade prestes a p roduzir o "homem info rmatizado".
Vivo a pós-modernidade como um desejo de mudanças que não
termina escravo da negação ou afirmação da permanência do projeto da
modernidade. O pós-moderno demanda uma superação dialética da
modernidade. É uma forma de pensar as condições imaginárias para

2 14
uma nova forma de sociedade e um novo sujeito da história. Seu
pensamento inscreve-se nas possibilidades que se vão vislumbrando
para que o homem possa pensar melhores caminhos para a sua auto­
nomia. É, no fundo, o desej o de pensar de novo um p rincípio de consti­
tuição para a sociedade. Princípio este que deve ser discutido levando
em conta os vínculos estreitos da cultura com o amor e com os desejos.
Uma nova ordem que precisa tomar distância da proposta juridicista da
revolução francesa para dar lugar e prioridade ao amor como a ordem de
sentido da nova cultura: o amor como princípio político inaugural, como
ato fundador por excelência. Enfim, o comprometimento afetivo como a
forma futura do cóntrato social . Ou seja, uma preocupação maior com o
homem e seus afetos do que com o Estado e sua organização legal . Uma
revolução que passa por repensar o homem e não o Estado.
* * *

Em suma, a pós-modernidade implica uma nova concepção de


revolução, que aceita a idéia de ser ela mesma permanentemente
revolucionada, isto é, que pern1ita no seu interior a possibilidade de
uma pós-revolução como condição forçosa de um processo que
autenticamente tenha em mira a libertação dos desej os e a formação de
uma sociedade de hop1ens autônomos . Uma sociedade que, fugindo de
qualquer tipo dé pulsão de morte, se nega representar-se s imbolica­
mente transparente. Uma sociedade que não aceite fazer de uma fase a
miragem de uma instância definitiva. Uma cultura que não se perde nas
purpurinas de um saber unívoco e totalizador.
Desta manei ra, a pós-modernidade aparece como um pensamento
e uma p rática de passagem, uma obra imaginária em aberto. Tratar-se­
ia de um trânsito constituinte e não mais de um princípio fundador ou
uma ordem de conversão.
Por esse motivo, a forma futura do contrato social adquirirá um
estatuto sumamente particular pela idéia do deslocamento de um
princípio fundador para o de um trânsito fundador.
A pós-modernidade é um trânsito à procura do novo . O novo que
deve ser visto como a procura inacabável de um complexo fragmen­
tário e plural de desejos.

215
O novo tem sempre tempo, formas, rumos imprevisíveis, que não
permitem nunca que sej am estereotipados no s ingular, acolh idos
ocamente em nome de uma unidirecionalidade controlável . Porque neste
caso teríamos só uma máscara do novo que serviria à reprodução
irreversível da ordem totalitária.
Desta maneira é que falo da pós-modernidade como mero desejo
de trânsito à autonomia, sem fórmulas que o prefixem e sem pontos de
fuga para que o novo sej a diluído nas velhas amarras .

2 16
CAPÍTULO VI

O AMOR NAS NOITES SEM AMOR

I . AMOR DE G I GANTES

Escolhi como título deste trabalho o nome de um poema de


Lautreumont. P retendo empregá-lo como metáfora reveladora do p ro­
blema ético que angustia o mundo no fim deste milênio . Valendo-me
deste título me disponho também destacar a idéia que pode servir para
s intetizar poeticamente um critério de inteligibilidade, pouco concei­
tual, para o termo pós-modernidade.
Nesta perspectiva começo tentando captar a pós-modernidade por
um de seus lados negativos : a falta de amor.
Não resta dúvida que neste fim de milênio vemos os dias passarem
como se fossem longas noites de solidão. Noites sem amor, agravadas
por uma falta total de expectativas . O amor deixou de ser uma espe­
rança para os desejos. Existem o poder e a indiferença nos dias sem
amor. Há uma razão infonnatizada que tomou o lugar do amor para
celebrar a emergência dos andróidcs, as sombras do homem .
Para evitar que o homem se converta em sua própria som­
bra, temos que resgatar a ética da preservação da existência baseada
no amor c na sol idariedade. Pensar o amor como uma dimensão
s imbólica cmancipatória na pós-modernidade: o viés que pode per­
mitir a preservação da condição humana pela preservação dos de­
seJ OS .

2 17
A informatização do cotidiano está impedindo, agora mais do que
nunca, que o homem possa posicionar-se satisfatoriamente frente à
eterna dúvida de como viver. Esta falta radical de uma capacidade de
decifrar o senti do da vida ameaça a preservação da humanidade como
um todo.
O mundo caminha para a instalação de uma ordem social
i rreversivelmente totalitária. Uma forma de sociedade pós-alienação
que põe em risco a existência do homem, criando as condições
s imbólicas que lhe i mpedem de desenvolver o desejo de viver.
Sem que se tenha p reviamente recuperado tql inquietação interro­
gativa, é impossível pretender contestar esta radical forma de barbárie
quê nos ameaça, i ntroduzindo, na pós-modernidade, um sentimento
emancipatório.
Sabemos como viver, se sabemos como amar. Só criaremos espa­
ços de transfo rmação social se, previamente, criarmos espaços de
desejo, de afeto entre as pessoas .
O sentido da emancipação, no pensamento pós-moderno, passa
pela aquisição do fogo necessário para poder alimentar o desejo de
viver: uma capacidade de amar e, ao mesmo tempo, uma competência
para poder colocar os desejos no mundo .
Na pós-modernidade, o homem tem de ' aprender a ter, como diria
Wim Wenders, amores de gigantes, para poder, assim, pactuar -
dispensando as palavras - o espaço comum dos sentimentos, a ple­
nitude de sua humanidade.
Os amores de gigantes constituem, entre os parceiros, espaços de
afetividade que se convertem em um depositário dos enigmas da vida.
Uma disposição afetiva que permite a percepção de que, sem a
plenitude dos sentimentos, não existem forças suficientes para a trans­
formação da vida. É possível pretender uma troca nos sistemas de
valores e necessidades sociais, sem constituir espaços de ternura entre
as pessoas .
P retendo mostrar, antes de mais nada, que o conceito de "pós­
moderno" supõe uma reflexão sobre a realidade dos sentimentos e a
formulação de uma ética de preservação da existência. Trata-se de uma
atitude nascida do desencanto, do espanto, da sensação de naufrágio

218
dos corpos que não consegue m ficar conectados com seu corpo,
conectados com seu s próprios desej os .
A condição pós-modema, revela o desencanto d e quem s e desco­
bre cúmplice involuntário do p lanej amento totalitário das sociedades,
da guerra tecnológica, dos grandes simulacros de identidade que amea­
çam a humanidade de extermínio.
Diante de u m homem convertido em um efeito especial, em um
engodo de s i mesmo; diante de um homem sem memória e sem proj eto,
emerge um pensamento disposto a iniciar a construção de um caminho
capaz de subverter os ardilosos detenninismos da barbárie que se nos
impõe.
Debruçando-me sobre as múltiplas experiências e s ignificações
que tem sido postas sob a legenda do pós-modemismo, p rocuro res­
gatar um viés que exprime um sentimento profundo, uma p roposta de
práticas cultu rais altemativas, altamente identificadas com a ecologia:
as epopéias pacifistas e as multifacetadas esperanças de uma vida
melhor.
O pensamento ecológico precisa mostrar-nos, com muita clareza,
que quem não desej a a vida, não pode transfonnar o mundo; quem não
resolve o interrogante de como amar, é impotente para encontrar res­
postas sobre como viver e, portanto, revelar sua rebeldia contra a
informatização da b arbárie .
Essa impossi b i lidade d e mudança d e u m a vida solitária e absurda,
que faz do homem um estranho de si mesmo, encontra, na recuperação
dos sentimentos , a fórmula de sua força motriz.
O poder difuso da pós-modemidade determinou que as pessoas
perdessem o sentimento de si mesmas : ficaram fantasmas vazios, des­
cartávei s .
S u a recuperação, para a existência, depende d e uma viagem pelos
sentimentos . O primeiro passo para transformar a própria vida e a
sociedade, para elim inar os componentes de uma mentalidade que enve­
nena a espécie humana, para criar uma nova cultura sócio-política de
participação protagônica, para suprimir os buracos negros na comu­
nicação, para fazer alguma coisa para que este belo mundo em extinção
detenha sua crescente deterioração, necessitamos novas formas de

219
constmção s imbólica da vida. Revelar tendências e formas de produção
da real idade, a partir de um reencontro radical com os afetos será o
ponto de mutação . Ele começa pelo encontro dos sentimentos . Uma
reintegração dos afetos . O homem, assim, passa a entender o que
significa tocar o mundo para frente - reintegrar a razão e a emoção à
vida, para substitui r as pautas imperantes de hierarquia e dominação -
um mergulho no desej o .
N ó s q u e nascemos sem s e r donos das terras e d a história, temos
que aprender a i nscrever o amor no meio do poder, nos lugares onde os
senhores do mundo irradiam seus discursos institucionais de paróquias
e barbárie, para poderem transfonnar, assim, os poderes que alimentam
a morte em potências de vida.
Inscrevendo o amor no meio do poder, estaremos introduzindo
encontros de solidariedade e de dignidade entre os patrimônios de uma
cultu ra que nos faz viver sobre uma imensa lixeira habilidosamente
camuflada.
As pontes para a vida estão quase todas cortadas . Restam poucas
passagens, escasseiam-se os passaportes . Espera-se, em vão, uma
coleta. A viagem para a emancipação é difici l : agonia ao extremo.
Temos de estar p reparados para poder descobrir os acessos que foram
muito bem dissimulados para que os olhemos, sem vê-los . Corremos o
risco de ver passar o último trem sem nos dam1os conta.
Estamos carentes de olhares vitais . P recisamos dos olhares do
desejo, do brilho que existe nos olhares tomados pelos sentimentos . O
mundo em trânsito às sociedades infommtizadas multiplica os olhares
vazios . Uma tentativa de gerar, com isso, uma instância suprema de um
medo de viver que assegure a i rreversibilidade de uma forma totalitária
de poder. Tudo graças ao olhar invisível de um pai todo-poderoso.
O exibicionismo das debi lidades que buscam sustentar a fragili­
dade dos sentimentos s i mula complacências . Assim, homens solitários,
confundidos, angustiados, buscam compensar sua incapacidade para
formar vínculos afetivos e reconhecer interlocutores . Olhares, no fundo,
inúteis, na medida que não servem para recuperar potencialidades
reprimidas . Trata-se de olhares sem amor, que não inauguram depen­
dências emancipatórias, nem se comprometem com o nascimento de

220
vínculos afetivos . O homem cresce e se emancipa quando é sustentado
pelos olhares maternais, os quais constituem campos semânticos aptos
a criarem uma esteira de i ntensidades emocionais, sentidos que não se
encontram isolados de seus componentes afetivos . Não se caminha para
a emancipação p rocurando a p roteção de olhares que s imulam
compensar a desconexão com a capacidade de amar c negar a plenitude
de u m futuro. Podemos reconhecer a existência de uma cu ltura de olha­
res passivos, distantes de qualquer ato de amor e potência, na insti­
tu ição imaginária das sociedades em trânsito para uma discursividade
funcional e sem fantasias que legitimam seus sentidos pelo desempenho
info mmtivo . Um �ntimundo da mídia tecnológica que vai criando uma
segunda natu reza de olhares telepáticos que organizam uma cena social
desprovida de qualquer referência à economia libidinal : a morte lenta
por ausência de compreensão, a completa alteralidade. A falta total do
que se poderia chamar de energia de vida. Um processo histórico, sem
história que apagou o suj eito e não o deixa filtrar um nexo que institui
um sentido para s i mesmo. Assim é o olhar instalado nas sociedades
pós-industriais como recurso de distanciamento radical c descompo­
sição definitiva dos sujeitos Por isso multiplicam-se as telas de vídeo,
envolvem-se cotidianamente os homens nos olhares computadorizados,
exclusivamente destinados a espionar as emoções e assegurar que elas
continuem resguardadas e confundidas . Os homens desviados da
possibilidade de enfrentar suas memórias e suas fantasias, modelados
para evitar os contatos mais úteis, tendem a depositar em voyers que
aparentam fi rmeza, todas suas emoções resguardadas, conservando,
dessa manei ra, o patrimônio de suas cautelas fntstradoras . Olhos que
emprestam confianças e cobram seus juros na moeda do fracasso. A
vida protegida pelos reflexos dou rados que vão se inscrevendo nas
"telas de controle"
São visões que nos isolam . Olhares que nos separam de nossos
corpos e nos desconectam dos desejos. O corpo celebrado em todas as
suas partículas como se fosse um vídeo-game. Um corpo antropolo­
gicamente simplificado . Um novo mal-estar na cultura. Um fascínio
inédito pela medula espinhal c seu simulacro tecnológico . Um fascínio
pelas telas que substituem a magia do espelho, proporcionando um

22 1
vídeo perpétuo de desatinadas auto-referências insignificantes : intensi­
dades de superficie que fazem do homem um clichê de si mesmo. A
materialização ótica de uma necessidade de ver-se incansavelmente
refletido. Uma tentativa desesperada de identidades imediatas em socie­
dades que vão privando perspectivas, proj etos e fantasias de futuro.
Conexões imediatas, sem sexualidade e sem representação do sentido.
Identidade retórica, cheia de resplendor, que se esgota na instan­
taneidade de seus efeitos especiai s . Leis, poderes, publicidades, saberes
e amores, tudo sobredimensionado . O efeito look no lugar das potên­
cias de vida. As pessoas vivendo preocupadas com a construção de
suas p róprias aparências, com a publicidade de seus próprios artificios .
Sem ilusões sobre sua subj etividade e seus desejos, porém, fascinados
por suas atuações substitutivas e efêmeras . As diferenças entre as
pessoas exclusivamente marcadas pelo caráter efêmero de suas condu­
tas .
Ainda o sentido totalitário de uma formação social precisa ser
assegurado pela multip licação de olhares que prometem segurança,
produzindo sentimentos de culpa. Olhares que se dizem protetores . . .
O lhares que protegem vigiando e reprimindo em nome de uma
p roteção que p rolonga nossa condição inicial de infantes . Estou falando
do olhar da ideologia, do olhar dos deuses que construímos para
compensar a falta das pulsões . Do olhar das verdades que a ciência
consagra para il udir-nos com fi rmezas e, também, dos olhares que as
crenças impõem inaugurando o banquete das afinnações míticas . Falo,
em suma, do olhar das certezas que fundam a instituição imaginária da
sociedade. Ou seja, do trabalho das significações que funcionam como
p rincípio da existência, princípio do pensamento, princípio de valor e
ação. As significações impostas ao mundo para apresentá-lo, ocultan­
do o caos . Pela proteção e pela culpa.
Falo, assim, da história como produtora de sentidos e transfor­
madora do instituído em pulsões . É o caos inscrito no interior das
significações, o abismo administrado pela produção de sentidos : a
imagem do mundo e do corpo como significações .
Este esquema imaginário que organiza a sociedade e o psiquismo
está ameaçado de abolição no processo de transformação da menta-

222
!idade moderna em pós-moderna. Estamos diante da ameaça de
extinção da função da s ignificação como produtora dos processos de
criação ontológica do mundo, da sociedade e do psiquismo. A huma­
nidade ameaçada de morte pela supressão da função instituinte da
significação. Ecologicamente falando, a humanidade encontra-se amea­
çada pelo "desmatamento" do valor institu inte e potencializador do
sentido. A mental idade pós-moderna está impondo a destruição das
significações como excesso do ser sobre si mesmo, aquilo pelo qual o
indivíduo é sempre algo por ser. Por esse motivo impõe-se ao homem
uma regressão à s imples animalidade. Impõe-se a condição de
andróide, escusando a possibilidade de todos os olhares emocionais e
de todas as v isões constitutivas.
A humanidade se constitu i fazendo surgir a questão da s ign i ­
ficação. A humanidade esvazia-se, negando o espaço d a representação
cênica, negando a magma de significações imaginárias . Porque a
humanidade não pode ser sustentada por um sistema de determinações
instrumentais, funcionais, que se bastam a si mesmas . O homem não
pode existir como homem, sem considerar o porquê e o para que de sua
existência, de seu lugar no mundo. E estas respostas não podem ser
proporcionadas pelo desenvol vimento de uma racionalidade meramente
operativa, COll!O é a racionalidade que fundamenta o devir da mentali­
dade pós-moderna, que não p ropõe a experiência do caos como sua
dissimulação.
Na pós-modernidade a dissimulação do caos é trocada pelo
simulacro de uma realidade que se impõe como substituto extasiado de
si mesma, como transparênci a obscena. O deserto como simulacro da
experiência semiológica do abismo, das dissimulações instituídas do
caos. Acredito que o único caminho possível para res istir a este viés
auto-aniquilador da condição humana passa por um trabalho de
significação que permite aceitar o fato de que a instituição da sociedade
é auto-instituição autônoma, ou seja, autocriação baseada no processo
de amadurecimento emocional dos indivíduos . D ito de outra maneira,
não constru i remos um futuro melhor substituindo as respostas
heterônomas ao caos, por respostas que ignorem o valor instituinte da
significação. Respostas que impõem uma versão do mundo sustentada

223
na fabricação de s imulacros que ignoram o caos c que imposs ibilitam
ao homem s ituar-se frente ao enigma c seus l i mites .
P recisamos da m ptura efetiva da heteronomia constitu inte, não da
m ptu ra como processo institu inte da significação . Porém, toma-se
necessário um espaço s imból ico que pennita colocar a p roblemática da
autonomia da sociedade como questão pem1anente, isto é, que aceite o
absu rdo de atrib u i r ao abismo uma significação p recisa.
É neste p onto que aparece, com toda sua força, a questão do amor
como sentido constantemente p rocu rado, como ato pedagógico
inaugu ral .
A human idade emerge do não-sentido cósmico realizando sua
sexualidade como sign�ficação. A sobrevivência do homem é emo­
ciona l . Ele p recisa encontrar - pela via de sua sexualidade - a resposta
significativa a sua vida interior. Quando o indivíduo resolve significa­
t ivamente o caos interior, toma-se p sicótico . Quando resolve heterono­
mamente, toma-se neurótico . A resolução sal utar do ab ismo psíqu ico
demanda p rocedimentos que comp rometem autonomamente seus
sentimentos, que lhe permite pôr au tonomamente no mundo o s entido
de seus desejos.
Aqu i se s itua o desejo de um amor de gigantes que pem1ite
administrar o caos i nterior pela insc rição do desejo no sentimento que
consegu imos cativar nos vínculos com o outro . Desta maneira conse­
guimos transfo nnar o caos em potência de vida, evitando, ao mesmo
tempo, que o poder administre os sentidos, alienando a psique e impon­
do uma ordem total itária para encobrir a totalidade do caos . Uma
fórmu l a p rometedora para substitu i r a idéia metafisica do destino pelo
valor emanci patório das decisões .
Em certo sentido, o condicionamento mental da pós-modernidade
está colocando o homem frente ao desvelamento ente! do abismo do
mundo. C ruel porque o enfrenta ao caos, sem p repará-lo para o encon­
tro de qualquer tipo de resposta. Não existe sob revivência da condição
humana se o homem não se hab i l ita para transformar o não-sentido do
mundo em significações . Por certo i sto exige, já, uma alteração radical
em nossas relações com as significações . Temos de i r ao encontro dos
sentidos, de um esquema de racional idade que fundamente a autonom ia

224
do indivíduo pela descoberta de que ele, inicialmente, será autônomo se
consegue assumir-se como origem de seu próprio devi r, a causa
significativa de seu projeto de futuro. Faltando esta condição, tende­
remos à existência da sociedade pós-alienada. As respostas eman­
cipatórias unicamente seriam atingidas se forem dadas s imulta­
neamente, num plano coletivo e individual, como resposta dos sentidos
para as idéias e para as ações . Sentido que não é contingente nem
necessário, apenas sustentado pelos sentimentos .
O caos existencial é administrável pelos sentimentos vitalmente
amadurecidos . Uma postulação, a meu ver decisiva, para enfrentar os
perigos de um colapso existencial, p ré-figurado pela negação do ato
afetivo que está sendo plasmado nos p relúdios da sociedade informa­
tizada.

11. O AMOR SEM SAUDADES

Porque tenho uma vida p lenamente comprometida com o ato de


aprender, não posso subtrair-me à curiosidade, que desperta em mim, o
desejo de saber alguméJ- coisa sobre as funções emancipatórias que
pod�riam exist i r nas instâncias pedagógicas da pós-modernidade.
Minha curiosidade agudiza-se no sonho de algumas propostas utópicas,
porém viáveis .
Instalando-me em um território escorregadio das incidentais
utopias incertas (realizáveis), deleito-me pensando nas possibilidades
de uma pedagogia baseada na prática política dos sentimentos. Uma
pedagogia que encontre s imultaneamente seus fundamentos no ato
poético (como realização significativa do sentimento), no ato terapêu­
tico (como uma maneira possível de verbalizar o sentimento p res­
cindindo do discurso da saudade) e no ato de sonhar incertezas (como
fórmula de resolução de um sentido que precisa aceitar o novo como
deciframos).
A poesia, o desejo e a paixão que o amor converte em sutile­
zas, em refinamento das significações, precisam ser relevados no
ato pedagógico, à margem de seus discursos saudosistas, para ten-

225
tar instrumentalizá-lo como p rática política e terapêutica. Ficam, as­
s im, s ituados os doi s pontos modais do que poderia ser chamado uma
pedagogia ecológica para este fim de milênio, lamentavelmente carac­
terizado pela falta de vínculos afetivos e paixões pol íticas .
As terras e os homens estão sendo aniquilados no p relúdio do
milênio tecnológico . A destru ição do homem e do ambiente responde a
uma lógica de complementações que precisa ser combatida pelo
entendimento de que a temática ecológica da alma e da sua sexualidade.
Se existe contaminação ambiental , é porque existe anteriom1ente uma
contaminação do sentimento.. .
A solidão, a pobreza, a indignidade, o racismo, o narcisismo de
morte, a tortura, a tristeza, a incapacidade de desejar a vida, a histeria
das certezas, a neutralização cientifícista do sentimento e a despolitiza­
ção do social , são também p roblemas ecológicos . Esta é uma mensa­
gem que tem, por enquanto, uma p resença muito tênue, tanto na lite­
ratura ecológica quanto na literatu ra pedagógica. Esquece-se de que o
meio ambiente está em nós tanto como nós estamos no meio ambiente.
O homem precisa tomar-se responsável pela vida e pela morte da hu­
manidade e da natureza. Para isso, precisa tomar-se responsável por
seus sentimentos, criando laços afetivos, aceitando, sem temor, que
alguém cative suas emoções, amadu recendo na cumplicidade das dife- ·

renças . Enfim, desenvolvendo a dimensão emancipatória (e pedagógica)


do amor.
Minha escrita vai revelando, até agora, a importância de uma
prática pedagógica baseada em um ecologismo participante, em uma
solidariedade ativa, em uma diversidade respeitada e em uma afetivi­
dade cooperativa. Uma pedagogia sustentada em uma reintegração dos
sentimentos que substitu i a imperial relação estabelecida entre a lei, o
poder e o saber.
Seria, sem dúvida, uma somatória de momentos pedagógicos que
revelaria, em sua interação, a face emancipatória do amor, dos vínculos
afetivos. Uma fómmla política para aprender a revirar ecológica e amoro­
samente o mundo, evitando assistir à morte - desta espécie chamada
homem - causada pela neutralização absoluta das diferenças c dos efeitos
potencializadores de certas dependências emocionais : o nada.

226
Estou levando em consi deração as enonnes possibilidades do am or
para produzir uma compreensão não alienada do mundo . Trata-se de
um nível de leitura dirigido à criação dos espaços de trabalho e
exercício da l i berdade e da de mo cracia interna e extern a.
O sentido democrático é a autonomia s i mbólica de uma forma de
sociedade que vai surgindo das experiências interiores .
É impossível pensar na fonnação d e uma mentalidade demo­
crática, em uma visão ecológica do mundo, na liberação do homem ,
sem u m trabalho pedagógico qu e possibilite um cresci mento emocional,
a mobilidade, a descoberta de nossos desejos e a revelação de seus
jogos criadores . Em poucas palavras, estou admitindo que a demo­
cracia e suas múltiplas visões do mundo dependem de um trabalho de
amor que pernlita - por intens o s compromissos afetivos - transbordar
a solidão intemal i zada, conectando com outros corpos que sentem e se
revelam s imbolicamente , para tentar alterar a vida e a sociedade. Tudo
por um conj unto múltiplo de ta refas protagôn icas e cúmplices .
Pelo amor, podem -se resgatar as potencialidades reprimidas, esta­
belecer cativeiros e toma r p osse do governo de nossas emoções, para
conduzi-las a uma proposta de vida com menos imposições e maior
autonomia.
Os sentimentos veiculados pelos desej os desencadeiam a chamada
"vontade de potên cia". Um p ro cesso de constituição do mundo pelos
efeitos de nossas pulsões, de nossas paixões : o mundo visto a partir do
nosso interior de nossas paixõe s .
É n o plan o das tonalida des afetivas que s e nos mostra a vida, que
se nos revela o desejo de vi ver, este incomensurável prazer primordial
de existir: a superabundân c i a sem limites detenninados pela fecundi­
dade transbo rdante da potên cia que nos pennite conhecer a felicidade
de viver. C reio que a cultu ra das sociedades em trânsito à informa­
tização foi zelos amente esmagando a "vontade de potência", aneste­
siando os sentimentos, situand o o homem em uma (des)espe rança sem
limites .
Não deve haver dúvida de que o "revirão" das catástrofes afetivas
que se vão p roduzindo nos tempos pós-modernos exigem a abertura de
um teatro l ibidinal que constga transforn1ar a (des)esperança em

227
esperança, as extremas dependências em fortes afirn1ativas de autono­
mia, a solidão em solidariedade. Uma inquestionável necessidade de
u ltrapassar os l imites de uma cultura narcisista, violenta e fatal, incen­
diando de paixão a inscrição do amor no seio do poder.
O amor é um ponto de vista para a constituição não alienada dos
obj etos de uma cultu ra. É o ponto de vista da emancipação. O amor é o
melhor canal de comunicação entre as pessoas . Ele pernüte superar,
entre outras coisas, as zonas de desconexão do homem com a realidade
externa. O amor substitui os simulacros pelas fantasias, pulverizando o
c lima de solidão que as desconexões instalam, impedindo que os
homens possam reco riliecer os seus interlocutores .
Na pós-modernidade p recisamos perder o medo dos intensos com­
p romissos afetivos, res i stir a uma mentalidade canibalizadora, apren­
dendo o valor libertário do cativeiro afetivo: a intertextualidade dos
sentimentos, a união entre pessoas que necessitam mutuamente uma da
outra para serem l ivres . Livres por encontrarem-se reciprocamente
cativadas, compatibi lizadas pelos sentimentos .
Os seres cativados entre si podem experimentar a enorme dife­
rença que existe entre uma caminhada solitária e a liberdade. Uma
caminhada a dois, de dois que não se fazem um, porém que se mantêm
dois, para que exista o outro . Viagens simultâneas pelos sentimentos do
outro, descortinando-se mutuamente para evitar que nestes mares
afetivos alguns dos "barquinhos" afundem. Uma viagem ao léu, onde
não existem portos seguros onde ancorar os viajantes . Seria uma via­
gem pelo feminino, que sempre é uma viagem de resistência ao
masculino. Unicamente pode-se ficar cativado, inscrevendo-se o senti­
mento no feminino: a devolução da emoção a um corpo total que dará a
medida na incerteza.
O desejo feminino é sempre inseguro. Sua permanente demanda do
"mais ainda" o leva para uma procura que precisa queimar os "portos
seguros" que capturam o viajante, decretando o fim da viagem. O
desej o feminino é uma viagem pelos sentimentos, sem portos . Lembra
muito a viagem descrita por Garcia Marques em seu romance sobre o
amor nos tempos da cólera.

228
Como diz Baudrillard, o feminino não é o que se opõe ao mas­
cul ino, é o que cativa. O feminino é uma inscrição da fantasia nas b i:U­
mas do desejo, um campo s imbólico cheio de complexidades que cons­
tituem o desej o como possibilidade de aparecimento de uma represen­
tação (a imagem como p rojeção do desejo no s i mbólico) não alienada.
O feminino cativa o mascul ino transbordando seu campo de represen­
tações para u m devi r sem certezas, o cativa convidando-o para o novo.
Estou falando do feminino como fantasia ( imagem) que p roduz
abertura do mundo simbólico: o "mais ainda" dos sentidos . Falo do
feminino como lugar de criação dos laços afetivos que podem canalizar
os sentimentos reprimidos pelas certezas, confiar-se os corpos pela
pem1anente interrogação do novo, receber-se mutuamente para o
intenso gozo da revelação .
Os corpos cativados pelo lado feminino dos desej os permanecem
em estado de revelação criativa, de procura de uma liberdade que
unicamente se consegue mergulhando-se na mais intensa das depen­
dências, a dependência do amor. A do amor que consegue ultrapassar o
espelho narcisista para fu ndar o mais delicioso espaço de cumpli­
cidades : a troca das fantasias, os sonhos que se vão intertextualizando
cúmplices, para celebrar a vida. Só os que são capazes de fabricar
estes sonhos conseguem reinventar o Olimpo, estabelecer um amor de
deuses, isto é, um amor que não se contenta com os arremedos dos
sentimentos e vai à p rocu ra de uma união afetiva que possa revelar-lhes
como desejar a vida.
Tudo indica que o programa de base, que qualifica a pedagogia
como uma p rática política do sentimento, tem de apoiar-se em uma
p roposta psicoterapêutica para a sala de au la. Numa tarefa terapêutica
que, sem pôr ênfase na história pessoal dos alunos, o prepare adequa­
damente para administrar as demandas do amor c as inscrições do
desej o no simbólico.
O p rofessor convertido em um ortopedeuta (simultaneamente psi­
cólogo e pedagogo) estaria comprometendo-se na construção de u ma
simbologia amorosa que serviria para que os alunos aprendessem
aceitar em paz seu imaginário em falta. A psicoterapia tem como p reo­
cupação primordial a realização de um trabalho simbólico encam1-

229
nhado à construção imaginária dos sentimentos de autonomia. Constrói
metáforas de união afetivas, cumplicidades, para o estabelecimento
imaginário de nossa sexualidade. Pela psicoterapia aprendemos a lidar
com nossos desejos, inserindo-os no mundo . Ela tem um fundamento
ético que passa pela p reservação do vínculo entre nossos sentimentos e
a vida. Por seu intermédio sabemos como viver nossos desejos,
construindo i magens abertas, elaboradas em cumplicidade com o outro:
a falta encoberta pela cumplicidade.
Vinte e cinco anos tentando aprender o oficio de ensinar me fize­
ram ver que o compromisso maior de um professor é com o amor e não
com as verda:des . As verdades instituídas deperiâem de uma negação do
desej o como p rodutor dos sentimentos. Minhas bodas de p rata com a
Universidade me permitem aceitar, muito tranqüilamente, o fato de que
um ato pedagógico exige um p rofundo comprometimento com o de­
senvolvimento do lado feminino do desejo. No fundo, a procura de au­
tonomia é a p rocura do feminino, a busca de um "ainda mais" sem
distâncias narcisísticas, nem neutralismos devoradores .
Neste final de m ilênio temos de aprender o sentido cósm ico do
amor como ato constituinte da condição humana. Temos de aprender a
amar para aprender a preservar nossa espécie ameaçada de extinção.
Motivo mais do que suficiente para tentar abrir um espaço na sala de
aula onde haj a lugar para a troca dos sentimentos, dos sonhos e das
paixões . Teríamos de aprender alguma coisa dos índios Mapuches, que
acordam, reunindo-se em família, para trocar os sonhos da noite, antes
de começar as tarefas quotidianas : uma fomm de celebrar a vida. Uma
celeb ração ausente na sala de aula, que impede a conversão do espaço
acadêmico em um lugar para a criatividade, para o pensamento do
novo. Para reinventar a democracia como o sentido de uma fonna de
sociedade, cada vez mais comprometida com as condições de seu auto­
aniquilamento, talvez sej a salutar repensá-la como o desenvolvido do
lado feminino do desej o .
H á algum tempo venho pensando que o que vai tem1inar por
diferenciar o modemo do pós-modemo será a velha tensão entre o lado
feminino e masculino do desej o . A figu ra de um professor neutro está
negando isso. Ele é sempre um hennafrodita.

230
CAPÍTULO VII

DES(ILUSÕES) MILITARIZADAS

Príncipes azu is, dulcinéias, p rincesas prometidas, quixotes servis,


príncipes encantados, sábios infalíveis, as damas do pensamento, heróis
sem fraquezas . O melhor dos mundos para exaltar as glórias que não
. .

transgridem e instalam o homem num paraíso que expulsa os impug­


nadores do poder.
Sonhos arquetípicos que provocam a perda de nossa capacidade
de sonhar. Sonhos de pla(n)tão. Sonhos totalizadores que não preten­
dem outra coisa senão escusar uma ambição hegemônica. Sonhos de
brutalidade destinados a fortalecer as atrozes ousadias do subme­
timento . Enfim, fantasias para a dominação, que sustentam p ro­
jetos imposs íveis e fracassos poetizados que unicamente conseguem
assegurar as ambições, inconfessáveis, de uma militarização dos de­
seJOS.
* * *

Vivemos um mundo onde todos tem1inamos sendo hóspedes do


poder, servidor do que deveria estar a nosso serviço: leis, verdades,
instituições e valores morais . Vivemos covardemente a vida sem
atrever-nos a escutar suas vozes, sem atrever-nos a viajar por elas para
poder consagrá-las como a l anterna mágica de nossos desejos. Vivemos
covardemente nossos sonhos, aceitando que os simulacros que organi­
zam a cultura deste fim de milênio tomem também conta das fantasias
interiores . Como sobreviventes agônicos destes tempos terrivelmente

23 1
capacitados a banalizar as ilusões, perdemos até a possibilidade de ver
nossos próprios sonhos .
Estamos perdendo a força para sonhar com uma vida melhor.
Temos uma enom1e saudade do futuro. Contamos tão-só com os
sentimentos mortos e sem amor. Temos perdido toda capacidade de
entrega no amor, porque nossa falta de sonhos não permite que
renovemos nossos sentimentos, até nos transfonnarmos em um corpo
de areia; o corpo que pode ser l ido como infinitamente novo em cada
aproximação: corpo em que, depoi s de cada entrega, nascem novos
tesouros2 as luzes do i ncalculáve l .
• * * *

Figurantes sem oportunidades num mundo que militariza até o


gesto de i r à p rivada, estamos perdendo as forças para elaborar sonhos
de descoberta.
Feitos de deambu lação e de incomunicabilidade, estamos cobertos
por uma falta de destino e condenados por uma mental idade que
apagou o baluarte das identidades . Os homens que estão se despedindo
deste milênio não têm olhos para ver o efeito posterior de seus atos e
tenninam inscrevendo suas emoções no deserto.
* * *

Protagonistas de uma história sem papéis a desempenhar e


perdidos na noite das ilusões s imuladas, estamos vedados até para
receber o refluxo fugitivo dos sonhos desmoronados . Estamos carentes
de sonhos afetivos, e conseguimos, com isso, provocar nossa própria
infelicidade, olhando sem ver, transitando divididos entre nós mesmos e
os outros, sem ati ngir qualquer harmonia entre as ilusões e a ação.
* * *

Os cães do paraíso nos estão mordendo : já há 5 00 anos a América


foi submetida a um extermínio muito bem articulado, feito em nome de
uma guerra santa que ainda continua com monges de batina cor verde
oliva.
Agora, as pátrias deste fim de milênio estão preocupadas com
doutrinas de segurança que continuam deixando p isoteada a dignidade
do continente. Sempre uma rapi nagem fantasiada de nobreza, sempre
um sonho indigno ocupando o lugar dos sonhos que nascem do senti-

232
mento. Somos fi lhos de um conti nente que teve sua identid ade invad ida
dilacerada por uma bmtal i ntolerância. O imaginário longament �
elaborado de nossos ancestrai s americanos se perdeu conqu istado pela
barbárie, entre menti ras p rometidas que queriam transfom1ar-se em
pátria. Uma herança infeliz dos filhos de um genocídio chamado desco­
b rimento .
Desencontros tecidos pela barbárie que precisam vi rar encontros,
diálogo, respeito pela diferença, confiança para manter compromissos e
relações sól idas .
A América p recisa encontrar-se em meio a seus sentimentos pos­
tergados , ver a hi stória com seus p róprios olhos, com os olhos de seus
ancestrais : Temos que perder o medo da história, entender que ela não é
feita por nenh u m príncipe encantado. A história é feita de sol idarie­
dades, é o encontro de uns e de outros . A hi stória é o poyen . Esta
palavra, que pertence à l í ngua mapuche, quer dizer amor, c para um
mapuche o amor é, antes de mais nada, minha experiência com o outro .
* * *

Existe uma utop ia contida nos sentimentos que tem de ser aprovei-
tada para potenciar a inserção na vida. É uma força emocional incon­
testável, uma cavalgada mítica que luta pela transformação do mundo
sem fazer dos desejos moinhos de vento à e s pera de seu quixote, um
herói de mau caráter, que lutou contra seus desejos, traiu suas emoções
e ignorou a d imensão de solidariedade para suas andanças . O quixote é
u m sonho de tri ste figuração que convida a um destino di spcndido em
lutas por mundos que não existem . Um cavaleiro andante que escolhe
muito mal seus caminhos c luta sempre a favor dos que são poderosos e
armados .
Qu ixote : o melhor exempl o d e u m sonho que fm stra, de uma
utop ia mistificadora que canta i dealizadamente as glórias de u m sonho
covarde, fracas sado c del i rantemente submisso ao poder. O quixote
corporifica um sonho m il itarizado, um sonho que j u stifica o poder,
negando a capacidade integrada à pessoa. O quixote é o sonho da
esterilidade, a i l u são que não consegue transformar o poder em
potência, em energia transformadora É u m sonho sem ap rendizado . A
vida convertida num túmulo.

233
O quixote é exemp lo de um ideal utilizado para camuflar p re­
conceitos e perder identidade . Ele p retende realizar andanças que não
lhe pennitem encontrar para si qualquer fonna de plenitude. S imula ser
u m i deal i sta para esconder sua indiferença pela vida. A ele não
interessa l utar para t ransformar a vida. O qu ixotc não é nob re nem
desi nteressado; é narcisi sta e paranóico, uma espécie de kamikase
medieval que faz da guerra seu único destino possível . Dono da
verdade, autoritário e intrometido, não pode entender o que significa
tocar o mundo para frente, colocando !1ele o desejo, os sentimentos . Ele
t i nha u ma triste figu ra porque não foi capaz de nenhuma cumplicidade
com as pessoas ; de, ao menos, travar real mente conhecimento com elas .
Estava entorpecido e anestesiado de imbecilidade c, por isso mesmo, só
consegu iu o recolhimento choroso para lamber suas próprias feridas .
Como a geração do pós-guerra, como mu itos argentinos melancól icos,
o quixote é expressão da derrota, da resignação, em ú ltima análise, da
i ncapacidade de amar e de sonhar.
Evidentemente, uma busca desnorteada que não consegue efetivar
uma outra vida, unicamente o hábito de se queixar de que o mundo não
é como devia ser. Apenas um personagem encolhido, diminuto, que
implementou , no mito, uma versão antecipada da obediência devida.
S implesmente homens do desejo fracassado, que procu ram fugir
de uma realidade que os tritura, refugiando-se em des i l usões perfeitas e
moralizantes . Homens que se pennitem uma boa consciência sem que
isso lhes s i rva para mudar o mundo ou transformar-se, homens que só
conseguem sofrer c contemplar, nu nca comprometer seu s corpos para
refazer a h i stória.
O quixote é um herói sem história próp ria, o personagem ideal
para uma cultura que quer fazer do totalitarismo o sentido da socie­
dade . De todos os heróis p rometidos ele é o que melhor exprime os
simulacros de um sonho destinado a impedir que se origine qualquer
tipo de mudança no mundo.
Os sonhos se dife renciam de seus simulacros pela consciência de
l i be rdade que p rovocam . Eles são sempre viagens emanci patórias pelos
desejos c paixões . Os simulacros dos sonhos. perfeitos na fantasia, são

23 4
confissões de cul pa, conj u nto de relações de culpa sob re uma vida que
não está dando certo.
As fantasias perfeitas são semp re simulacros de sonhos, enquanto
se constituem como p rodutos privilegiados das forças alienantes . A
alienação necessita que os sonhos e a vida se mantenham separados .
O quixote como p ríncipe azul e d e triste figura representa, a meu
ver, o defensor de todos os heróis, de todas as fantasias perfeitas . Ele é
o cavaleiro andante de todas as causas alienadas . Ele é o cavaleiro da
alienação, o fiel camareiro das pátrias alienadas , das pátrias militari­
zadas . Está sempre a serviço dos príncipes encantados e das princesas
p rometidas . Todas as suas andanças, todas as s uas lutas, teimosas e
obstinada'S, destinaram-se a impor a alienação do mundo.
Tal como a vida, os sonhos se congelaram em mitos perfeitos,
num conjunto de conotações culposas onde, no final, os débitos são
impiedosamente cobrados. Pois os sonhos perfeitos constituem um
s istema de créditos no qual cada sentimento, cada emoção é devedor do
outro . Através dos sonhos perfeitos aprendemos a movimentar-nos
dentro de um sistema de cobranças . O preço que pagamos é nossa
impossibilidade de efetivar os desej os, as paixões no mundo .
Os sonhos perfeitos cstmtu ram um sistema estático, inabalável,
que num momento inexoravelmente estou ra, desmorona-se sobre seu
p róprio peso, soterrando a vida e, mais do que isso, o desejo de uma
vida melhor.
Os sonhos perfeitos são ilusões narcisistas que desbaratam o espa­
ço entre as pessoas, negando a possibilidade de instalar o amor, a ter­
nu ra, a poesia entre a gente, enfim, esses sentimentos de descoberta,
essa celebração da vida que surge da experiência com o outro, que
surge quando se consegue o vínculo com a vida no interior dos senti­
mentos .
Os homens não p recisam de sonhos perfeitos que ocupem o espaço
entre as pessoas através de u m mirante repressivo c militarizador que
esteril i za nossos desejos, uniformizando códigos c significados . Os
homens precisam transgredi r a alienação institucionalmente contro­
lada, a obsessiva procu ra de definições, de certezas, de regras de jogo
que vão heteronomicamente montando os grandes simu lacros da

235
identidade, esses fantasmas que se alimentam de nosso horror ao vazio
e ao conflito, de nosso medo de solidão e de nosso temor à imprevisi­
bilidade dos desejos .
Os homens precisam d e sonhos incertos, d e uma capacidade ines­
gotável de sonhar, de liberar energias criadoras no espaço interpessoal,
num espaço onde a gente possa se movimentar e deixar passear os
desejos entre os sentimentos em busca de saídas . Um espaço que
pudesse conter todas as estradas do mundo, que fizesse com que a
poesia (os sonhos inscritos nos sentimentos) e a vida voltassem a ter
pontos em comum : este seria o lugar da democracia.
'Pouco a pouco vamos imolando, no altar de nossas renúncias, os
desejos, a energia criadora, a possibilidade de sennos felizes, a vida em
todas as suas manifestações . Aos poucos precisamos resgatar tudo o
que fom10s sacrificando, p recisamos fazer acontecer coisas novas,
imprevistas, para encontrar a vida no novo, para vencer a militarização
das (des)ilusões . O importante é não desistir dessa necessidade de
lançar as paixões ao mundo. O importante é esquecer o quixote, desis­
tir das p rincesas prometidas e recuperar o sentimento inabalável de que
no dia de amanhã o poyen virá, mesmo que todas as experiências
demonstrem o contrári o .
Os homens precisam contar com sonhos q u e s i rvam como ritual de
passagem para uma rebeldia contra a situação do mundo. Uma rebeldia
que unicamente pode ser constituída como revelação dos sentimentos,
como revelação de uma paixão pela vida. P recisamos de sonhos que
nos permitam efetuar o aprendizado dos sentimentos .
O efeito inibitório das (des)ilusões perfeitas roubou nossa capa­
cidade de sonhar a vida na própria vida. Encontramo-nos algemados a
um deserto de poderes e senhores poderosos que roubaram nossa
dignidade. dependemos de heróis perfeitos que, no fundo, não são mais
que um punhado de p iratas melancólicos, i sto é, p iratas treinados para
sustentar os desej os na perda e impor seu domínio u ltraj ando a digni­
dade, o d i reito a nossa p rópria humanidade.
Está chegando a hora de lutar contra os "piratas encantados", para
que reconquistemos a capacidade de inscrever os sonhos na vida, re­
cuperar o espaço político dos desejos, procu rando a invenção

236
quotidiana como ato inaugural da mvenção democrática, da inven­
ção de uma dignidade criadora de seus sentimentos, desejos e digni­
dades .
Está chegando a hora de inventam10s nossas próprias fantasias,
abrirmos o caminho de uma rebelião reveladora que possa manifestar­
se contra a militarização das (des)ilusões : os sonhos perfeitos que
s u p rimem das pessoas qualquer sentimento de mudança.
Temos de ter sonhos que pem1itam não perder a necessidade de
desejar a vida.
As (des)ilusões perfeitas não passam de uma culpabilizadora pro­
paganda da situação vigente. Uma propaganda que inibe nossa capaci­
dade de compreender que, para lançar o copo no mundo, celebrando a
vida, é p reciso aceitar que tudo é imutável, aberto, incerto, exposto ao
perigo . Para colocar o corpo no mundo temos de aceitar que as perso­
nagens de nossos sonhos não podem virar fantoches que imbecilizam.
Quando queremos lançar os desejos no mundo, temos de procurar
entender que os p ríncipes encantados procriam andróides .
Acredito, sem reservas, que unicamente poderemos ser salvos
pelos sentimentos, pelos desej os jogados no mundo, abrindo as portas
para a produção su rrealista da realidade, abrindo-nos para os sonhos
de descobrimento . ·
Os sonhos ini l itarizados são produtores de um simulacro de
identidade destinado a impedir que o homem consiga apreender a
realidade, sobretudo a realidade dos sentimentos, a energia da vida e a
autenticidade dos desejos . Unívocos e perfeitos, estes sonhos envolvem
um compromisso da institu ição imaginária da sociedade com os senho­
res da guerra e da barbárie . Eles justificam e forçam a identificação do
homem com as am1as que controlam e destroem a existência. Os
sonhos mil itarizados são (des)ilusões repressivas que impõem cárceres
invisíveis para os desej os . É a mentalidade que é ensinada aos
militantes no quartel, agora tomando conta da alma.
Du rante longos anos eu sofri o ímpeto aniquilador das (des)ilusões
perfeitas . Tive minha identidade endividada pelas usuras da menta­
lidade j uridicista. Reconhecia-me ju rista em meio a suas fantasias
perfeitas e vencidas . Perdia-me em meio ao Estado de Direito e às

237
(des)ilusões de seus filósofos, até que compreendi que a dor, que o
sonho que devem ser suprimidos também pertencem aos outros .
Novos olhares me cativaram . S im, mostrando-me que existem
coisas de que devia despreender-me para começar uma nova viagem
que tinha que adquirir o fogo necessário, como para poder i r
queimando, d o passado, os referentes q u e pudessem impedir-me de
efetuar uma nova travessia, desta vez pelos sonhos de olhares que me
revelam o sentido de meu desejo de viver. Fiquei cativo e l iberto.
Depois de muitos anos encarcerado entre corpos gélidos, olhares
desinteressados e princesas prometidas, consigo a revelação de minhas
respostas; p reencho com sentimentos meu olhar e descubro a densidade
de (des)ilusões que encerram as ilusões perfeitas . Elas são portadoras
de u ma infinidade de olhares descompromissados, de olhares sem
histórias que unicamente servem para sustentar o desejo na perda.
Olhares onipotentes de um pai inexpugnável , encouraçado em suas
próprias impotências . Olhares sem encontros, sem cumplicidades
existenciais. Olhares de vigia que fragilizam o corpo, negando-lhe a
possibilidade de ser sustentado pelo carinho de um olhar que lhe desej a
um futuro d e plenitude.
Para desej ar a vida o homem tem de contar com olhares . Olhares
carregados de desejos e ternuras; olhares que convocam seus melhores
tesou ros interiores, que o resgatem da contradição de um deus carente e
que lhe pem1itam entender que as miradas que simulam fortalezas
debilitam suas paixões, fragilizam seus desejos. Por trás de um homem
que p recisa de olhares fortes esconde-se um ser indefeso que precisa do
simulacro de ser visto de infinitos lugares para proteger-se de sua
p rópria incapacidade de sentir: o útero dos olhares, essa cadência
radical que se agu çará nas sociedades info rmatizadas . Elas ameaçam o
p róximo milênio da história da humanidade, tentando impor o olhar
invisível que disciplina dispensando até os simulacros contemplativos
dos sonhos perfeitos : a concretização da profecia de O rwel .

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